A valorização orgulhosa dos particularismos culturais no campo educa-
tivo está longe de se constituir como um paradigma isento de proble-
mas a serem pensados pelos educadores, e é justamente essa fraqueza da
agenda pós-moderna que Renata Peres Barbosa se propõe apresentar e
tensionar intelectualmente. Para esse objetivo, a autora conta com um
instrumental teórico muito consistente, que se baseia nas reexões dos
lósofos da Escola de Frankfurt, em especial Theodor Adorno, que é um
de seus mais importantes pensadores. O argumento central da autora
consiste na tese de que a pós-modernidade, em sua atividade febril de
contestar a universalidade ocidental, acabou produzindo efeitos irracio-
nalistas, dadas suas tendências de fetichização da diferença como núcleo
incontestável de libertação dos particularismos reprimidos. A partir da
perspectiva de Adorno, Renata expõe a necessidade de uma confronta-
ção dialética entre as particularidades culturais e os conceitos universais,
com o objetivo de preservar a diferença em sua condição de não-iden-
tidade.
PENSAMENTO PÓS-CRÍTICO,
CURRÍCULO E TEORIA CRÍTICA
Renata Peres Barbosa é Doutora em Edu-
cação pelo Programa de Pós-graduação em
Educação Universidade Estadual Paulista
UNESP - Campus de Marília e Professora
do Setor de Educação da Universidade Fe-
deral do Paraná. Desenvolve pesquisas no
campo do currículo e das políticas curricu-
lares tendo como referenciais conceituais a
Teoria Crítica da Sociedade e Educação, em
especial, Theodor Adorno, Max Horkhei-
mer e Herbert Marcuse.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio 0798/2018
Processo 23038.000985/2018-89
Este livro originou-se da tese de Dou-
torado em Educação da Faculdade de
Filosoa e Ciências da Universidade Es-
tadual Paulista UNESP - Campus de
Marília, defendida em março de 2017.
A banca examinadora foi composta pe-
los professores Doutores Sinésio Ferraz
Bueno (orientador), Alonso Bezerra de
Carvalho, Ari Fernando Maia, Bruno
Pucci e Divino José da Silva.
PENSAMENTO PÓS-CRÍTICO, CURRÍCULO E TEORIA CRÍTICA
Renata Peres Barbosa
SINÉSIO FERRAZ BUENO
aproximações, tensões
Renata Peres Barbosa
PENSAMENTOS-CRÍTICO,
CURRÍCULO E TEORIA CRÍTICA:
aproximações, tensões
RENATA PERES BARBOSA
RENATA PERES BARBOSA
PENSAMENTO PÓS-CRÍTICO,
CURRÍCULO E TEORIA CRÍTICA:
aproximações, tensões
Ma
rília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
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Eduardo José Manzini
Cláudia Regina Mosca Giroto
Auxílio Nº 0798/2018, Processo Nº 23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Barbosa, Renata Peres.
B238p Pensamento pós-crítico, currículo e teoria crítica: aproximações, tensões / Renata Peres
Barbosa. Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2021.
157 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-168-3 (DIGITAL)
ISBN 978-65-5954-167-6 (IMPRESSO)
1. Teoria crítica. 2. Dialética. 3. Diferença (Filosofia). 4. Ensino. 5. Currículos. I. Título.
CDD .375.006
Copyright © 2021, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Para meus pais, Maria Eliane e Antônio Barbosa,
com muito amor e carinho.
Agradecimentos
Ao professor Doutor Sinésio Ferraz Bueno, pelas agradáveis e
enriquecedoras orientações ao longo do processo do doutoramento,
professor de admirável grandeza intelectual. Foi um prazer esses anos de
trabalho, confiança e amizade.
Aos professores Doutores Alonso Bezerra de Carvalho, Ari
Fernando Maia, Bruno Pucci e Divino José da Silva, pelas contribuições
na avaliação deste trabalho.
Ao professor Doutor José Antônio Zamora, pela cordial recepção
no Instituto de Filosofia do Centro de Ciências Humanas e Sociais do
Conselho Superior de Investigações Científicas de Madrid.
Ao Gustavo, pelo amor, companheirismo e compartilhamento de
sonhos.
À Cláudia, pela presença especial na minha vida e na minha
formação.
À Mara Salgado, Renata Lopes Andrade, Carla Pompeu e Anne
Clinio, pelas partilhas e amizade.
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
concessão da bolsa de doutorado sanduíche.
“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é
só fazer outras maiores perguntas”
(João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas)
Sumário
Prefácio..............................................................................................13
Introdução.........................................................................................17
Capítulo I | A Dialética Negativa Como Mobilização do Conceito de
Diferença...........................................................................................28
Capítulo II | As Teorias Curriculares e Sua Articulação Com a Agenda
Pós-Crítica ........................................................................................69
Capítulo III | Teoria Pós-Crítica e Currículo: Análise da Recepção no
Brasil .............................................................................................. 103
Considerações Finais ...................................................................... 139
Referências ..................................................................................... 148
13
Prefácio
Este livro tem como tema central a reflexão filosófica sobre a
recepção do discurso pós-moderno de questionamento radical da
universalidade e sua consequente valorização da diferença no campo
educativo. Trata-se de repercutir criticamente a desqualificação das
concepções modernas da existência de um saber universal, com base na
relativização de todo tipo de conhecimento e de valor moral que apresente
pretensões de universalidade. Desde as últimas décadas do século XX, a
agenda pós-crítica adquiriu relevância entre educadores brasileiros, o que
conduziu ao questionamento sistemático dos metarelatos pedagógicos de
origem moderna, que se fundamentavam em concepções universalistas de
sujeito, progresso e formação. Essa problematização originou um novo
estilo de formatação curricular, em que os conceitos universais foram
depreciados como signos de uma colonização eurocêntrica destinada a
legitimar diversos tipos de preconceito na esfera da etnia, do gênero, da
religião e da nacionalidade. Com base nessa relativização das ideias e
conceitos universais que marcaram a modernidade ocidental, a pós-
modernidade no campo educativo passou a valorizar o reconhecimento das
diferenças e do pluralismo das identidades no campo da educação.
Essa valorização orgulhosa dos particularismos culturais no campo
educativo está longe de se constituir como um paradigma isento de
problemas a serem pensados pelos educadores, e é justamente essa fraqueza
da agenda pós-moderna que Renata Barbosa se propõe apresentar e
tensionar intelectualmente. Para esse objetivo, a autora conta com um
14
instrumental teórico muito consistente, que se baseia nas reflexões dos
filósofos da Escola de Frankfurt, em especial Theodor Adorno, que é um
de seus mais importantes pensadores. O argumento central da autora
consiste na tese de que a pós-modernidade, em sua atividade febril de
contestar a universalidade ocidental, acabou produzindo efeitos
irracionalistas, dadas suas tendências de fetichização da diferença como
núcleo incontestável de libertação dos particularismos reprimidos. A partir
da perspectiva de Adorno, Renata expõe a necessidade de uma
confrontação dialética entre as particularidades culturais e os conceitos
universais, com o objetivo de preservar a diferença em sua condição de
não-identidade. Em outras palavras, trata-se de contornar as fortes
tendências de fetichização da diferença, que acompanham o discurso pós-
moderno, mediante um exercício autoreflexivo que seja capaz de elucidar
a distância necessária entre cada cultura em particular e os horizontes
universalistas de uma humanidade livre.
Ao propor uma reflexão de natureza dialética acerca da valorização
da diferença no campo curricular da educação, a autora aponta para a
necessidade de abordagem sobre os aspectos negativos que são intrínsecos
ao pensamento filosófico. O filósofo Hegel, que com toda justiça pode ser
lembrado como o grande mestre da dialética, alertou para o fato de que
todo tipo de conhecimento é afetado pela não-coincidência necessária com
o próprio objeto que busca conhecer. Há um descompasso estrutural e
irredutível entre os que as coisas são em seu aparecer fenomênico e
imediato (o ser-para-si) e o que elas são em si mesmas (o ser-em-si). Na
medida em que a dialética é a experiência que a consciência é capaz de
produzir sobre si mesma em sua relação com os objetos que intenta
conhecer, a produção do conhecimento é necessariamente afetada pela
dissonância contínua entre seus objetivos de se elevar para além das
contingências do empírico e do histórico, e seu próprio engajamento no
15
mundo. Esse fracasso necessário do sujeito em conhecer o objeto sem
conseguir se libertar das contingências históricas de sua finitude, foi
denominado por Hegel como consciência infeliz, termo que designa a
experiência histórica da contradição, o que consiste na própria alma da
dialética.
A dialética negativa de Adorno é animada internamente pela
consciência dessa contradição necessária entre o que coisas pretendem ser
e o que elas efetivamente são, descompasso que é o núcleo irredutível da
própria experiência do pensamento. A tese de Renata Barbosa expõe a
incompletude do pensamento pós-moderno como paradigma capaz de
resgatar a dignidade da diferença no campo da educação. Quando se
elaboram propostas curriculares centradas na diversidade étnica, de gênero,
de nacionalidade ou de religião, desprovidas de uma confrontação dialética
com horizontes universalistas de liberdade, há um risco muito grande de
aprisionamento do discurso educacional nos padrões identitários da
comunidade a que se referem. Sob o pretexto, em si mesmo muito válido,
de transcender os padrões ideológicos que durante séculos sequestraram a
diferença em nome de práticas etnocidas, corre-se o risco de reproduzir
outras modalidades de opressão, dessa vez em nome de uma suposta pureza
cultural. Esse é o tema das “ciladas da diferença”, termo que designa o
equívoco de toda valorização romântica e irrefletida dos particularismos
culturais, sem que estes sejam confrontados com referências universalistas.
A experiência dialética da infelicidade da consciência se torna relevante,
mesmo quando os sujeitos parecem estar sendo redimidos de experiências
colonizadoras, uma vez que a libertação da humanidade não se deixa captar
em um momento histórico isolado, mas somente na compreensão da
sequência evolutiva de suas experiências negativas.
Uma educação emancipadora não pode, então, ser pensada nos
horizontes reducionistas do universalismo eurocêntrico que caracterizou
16
grande parte da formação escolar das gerações anteriores, nem tampouco
na valorização irrefletida dos particularismos culturais. Mas é importante
observar que não se trata simplesmente de almejar algum tipo de equilíbrio
entre o universal e o particular, pois a experiência dialética da contradição
requer uma compreensão consciente da negatividade que é imanente ao
desenvolvimento histórico da consciência. No campo educativo, isso
significa que o polo do universal e do particular sejam continuamente
confrontados um em relação ao outro, para que seja possível aferir a
distância existente entre os modos de vida de uma determinada cultura e
os horizontes genéricos de uma humanidade livre. Quando a educação se
presta à exaltação cega de matrizes eurocêntricas de natureza racista,
patriarcal e nacionalista, ela não está menos distante dos horizontes de sua
emancipação do que ao se refugiar em particularismos identitários
supostamente mais autênticos, vivos e múltiplos. Em ambos os casos, a
educação se deixa circunscrever a recortes ideológicos que impedem a
compreensão lúcida dos limites que afetam tanto o universalismo vazio do
discurso colonial, quanto a exaltação orgulhosa dos particularismos
culturais. Entre um e outro, se situa a experiência formativa do
pensamento que não se deixa aprisionar nem pelas ideologias eurocêntricas
da modernidade, nem pelas ciladas da diferença pós-moderna. É a essa
importante reflexão crítica e negativa que a autora desta obra nos convida.
Sinésio Ferraz Bueno.
17
Introdução
A modernidade é marcada pela aposta de uma razão utópica,
símbolo de desenvolvimento e progresso, que carrega a promessa de novos
tempos, subsidiada pela evolução da ciência e pelos aparatos tecnológicos.
No entanto, o progresso e a autodestruição se imbricam e a tão proclamada
promessa de liberdade se dilui. A razão é sustentada por traços
contraditórios, os quais consentem com tendências regressivas que
permeiam a vida social. Frente à onipotência do método e da lógica
classificatória de ordem cientificista, que pressupõe categorias fixas e a
exposição ordenada das ideias com determinações mensuráveis e
quantificáveis, os objetivos primordiais de liberdade se esvaem.
Com a primazia de uma racionalidade instrumental, o potencial
emancipador do pensamento moderno é transformado em seu oposto. A
ciência moderna, na ânsia de dominação, domina a si própria, e segue em
desvario em uma sociedade dilatada. Ao invés de os homens se tornarem
mais livres, tornam-se mais aprisionados. No prefácio de Eclipse da razão, Max
Horkheimer (2002) assinala:
Parece que enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte da
atividade e do pensamento humanos, a autonomia do homem,
enquanto indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente
mecanismo de manipulação de massas, o seu poder de imaginação e o
seu juízo independente sofreram aparentemente uma redução
(HORKHEIMER, 2002, p. 07).
18
Em meio aos avanços científicos e tecnológicos, o cenário social
não apresenta ares tão promissores: altos níveis de desigualdade, exclusão
e miséria social, conflitos bélicos (políticas de extermínio planejadas
calculadamente); expansão das brutais formas de atuação do sistema
capitalista (intensificação da precarização do trabalho, degradação do meio
ambiente), entre outros, beirando o limite de destruição da vida na terra.
O véu tecnológico irracional se sobrepõe aos homens: “O avanço dos
recursos técnicos de informação se acompanha de um processo de
desumanização. Assim, o progresso ameaça anular o que se supõe ser o seu
próprio objetivo: a ideia de homem” (HORKHEIMER, 2002, p. 07).
Dentre os desdobramentos, assiste-se à perda do valor formativo,
no campo cultural e educacional. Os laços que poderiam viabilizar a
experiência formativa são rompidos, desembocando em uma educação
miserável, voltada para a autopreservação e para a materialidade da
produção. Inserida na esteira da racionalização, a pxis educativa é
convertida em tecnologia, limitada à aplicação de técnicas, e negligencia a
relação com a existência e com a formação humana, tornando-se cúmplice
da expansão das tendências regressivas da contemporaneidade, uma vez
que legitima e incorpora seus mecanismos.
Em face da alienação do universo cultural, emerge uma formação
tolhida, para a adaptação, desvirtuada da emancipação (ADORNO,
2010). O papel da educação se esvazia, e reflexões pedagógicas são tratadas
como adequação a novos métodos. A concepção positivista se insere nas
práticas e nos currículos escolares e, até mesmo, nos discursos pedagógicos
de cunho mais progressista.
Tomando tais considerações, compreendemos a importância em se
promover o debate sobre a crítica ao pensamento moderno e suas raízes no
plano da dominação e absolutização do pensamento, que petrifica a
reflexão e inviabiliza a experiência formativa. A razão moderna assume um
19
caráter totalitário que exclui aquilo que não enquadra em suas leis, subjuga
as singularidades a um conceito universal, de modo que a multiplicidade
da experiência, necessária à formação humana, é negligenciada pela
cegueira do formalismo lógico.
Assume-se como pressuposto que a crítica epistemológica, no
âmbito da educação, tem sido constantemente retomada pelos
pesquisadores brasileiros, os quais apontam para a insuficiência dos
pressupostos positivistas, sinalizada pela crise da ciência, e que essa
discussão tem se enviesado pela via da irracionalidade, do subjetivismo e
do relativismo, por meio da liquidação dos parâmetros racionais de
critérios universais, representados pelo discurso da pós-modernidade. É
um quadro amplo, que aponta para a necessidade de investigar, mais
atentamente, a discussão epistemológica do projeto moderno, na complexa
abordagem e tensionamento entre modernidade e pós-modernidade.
Deparamo-nos com outras pesquisas, as quais, da mesma forma,
evidenciaram que o quadro hegemônico que sustenta o caminho de
resistência ao pensamento moderno é respaldado pela “agenda pós-
moderna” (MORAES, 2004) ou “pós-crítica” (PARAÍSO, 2004), termos
abrangentes e, embora não consensuais, partilham do diagnóstico de crise
da experiência formativa, com ênfase na descrença do projeto iluminista
de emancipação, e liquidam os parâmetros racionais de critérios universais.
Dentre seus principais argumentos, destacam-se: a desconstrução das
pretensões universalistas (sujeito e razão), a crítica à metafísica e às grandes
narrativas, aos conceitos de ser e verdade, à dialética, entre outros
(PETERS, 2000; WILLIAMS, 2012; LYOTARD, 1986). Revestidos por
pressupostos antiuniversalistas, em geral, têm como norte a diferença e a
pluralidade, pautados no perspectivismo cultural e no pluralismo moral,
questionamentos radicais que colocam sob suspeita princípios basilares do
20
pensamento moderno, entre os quais o da possibilidade de emancipação e
o do sujeito racional.
Tais questionamentos levam à suspensão das grandes cosmovisões
que prometeram mais justiça e liberdade entre os homens. A desconfiança
sobre a razão é acompanhada pela popularidade do discurso da diferença e
da pluralidade, que dão ênfase a outras dimensões, para além da esfera
racional. Essa crítica se articula ao discurso pós-moderno, de
deslegitimação dos metarrelatos pedagógicos modernos. A compreensão é
de que os sujeitos são construções a partir das relações de poder e, por isso,
é preciso desconstruir o papel das instituições e dos discursos que
legitimaram e cristalizaram as relações de dominação. A análise se estende
ao campo do simbólico, dos discursos e das práticas, críticas que alcançam
a reflexão pedagógica. Assim, o reconhecimento da diferença e da
pluralidade das identidades se coloca como inevitável, no campo da
educação, na emergência de uma formação que valorize e amplie a
heterogeneidade, rompendo com os discursos opressores produzidos pelos
vínculos entre conhecimento e poder.
As teorizações e pesquisas de matriz “pós-moderna” ou “pós-
crítica”, no Brasil, se voltam, sobretudo, às áreas da Filosofia, Educação e
Ciências Sociais. Nas produções no campo educacional, a recepção desse
pensamento tem ressoado, em especial, no debate sobre o currículo escolar
(PARAÍSO, 2004), influenciando tanto os fundamentos conceituais do
campo do currículo quanto o campo das políticas curriculares.
Nosso interesse, nesta obra, se volta à análise filosófico-educacional
dos fundamentos teóricos hegemônicos da teorização curricular, no Brasil,
que também se mostraram propícios às influências pós-críticas.
Pesquisadores brasileiros que têm se debruçado na temática da teoria do
currículo demonstram o quanto esse campo de estudos se enredou para a
influência pós-crítica, do final da década de 1990 até os dias atuais
21
(MOREIRA, 1998; LOPES; MACEDO, 2010; SILVA, 2004a), com
ênfase nos processos de subjetivação, rompendo com visões de totalidade,
universalidade, objetividade e sujeito, um “[...] movimento de
hegemonização dos estudos de corte pós-crítico no campo da produção
científica em currículo” (THIESEN, 2015, p. 641).
Tendo como pano de fundo a consolidação de uma “agenda pós-
crítica” na teorização curricular no Brasil, nossa hipótese é a de que tal
perspectiva recai em armadilhas, o que justifica a necessidade de
problematizar, em termos filosóficos, seus desdobramentos. A
problematização aqui levantada é a de que a perspectiva pós-crítica incide
num irracionalismo inevitável, o que torna inconsistente sua recepção no
campo educativo. Nas tentativas de dar conta da multiplicidade da
experiência, advogam justamente no que pretendem romper, de sorte a
atenuar a crítica. Ao prescindir da universalidade e de qualquer mediação,
recaem em “ciladas da diferença”, no “culto à imediaticidade irracional”
(ADORNO, 2009, p. 15), excluindo os potenciais críticos, na resignação
a novas formas de dominação por detrás do discurso de liberdade. Em
outras palavras, a análise busca demonstrar que o pensamento pós-crítico,
em seu teor antimetafísico, segue à mercê do imediato, em uma razão
miserável, e se estabelece no mesmo plano do positivismo, daquilo que
pretendia criticar.
Ressalta-se que o movimento de crítica à razão, no âmbito
filosófico-educacional, nem sempre segue análogo à perspectiva da agenda
pós-crítica. O movimento de contraponto já vem sendo alvo de diversos
autores do campo da educação e do currículo (BONNET, 2007; BUENO,
2015; ROUANET, 2001; MORAES, 2004; PIERUCCI, 1999;
ZAMORA, 2008), e a proposta aqui levantada segue analogamente, com
ressalva ao aporte teórico da tradição crítica. Diferentemente da proposição
pós-crítica, esses pesquisadores acentuam que o culto à diferença e a recusa
22
ao universal desfazem os próprios alicerces das possibilidades de crítica à
racionalidade instrumental, pois se respaldam em discursos relativistas, de
base irracional e subjetivista, minando as possibilidades de crítica e o
enfrentamento da reificação.
Diante do exposto, a presente obra propõe a análise crítica da
problemática epistemológica no campo educativo, com recorte para o
campo de estudos do currículo, a partir do referencial da Teoria Crítica da
Sociedade, apresentando a dialética negativa como suporte teórico
adequado. Os objetivos consistem em compreender o campo de
problematização filosófico-educacional acerca da teoria crítica e pós-crítica
presente no debate sobre o currículo escolar. Apresenta como fontes as
produções nacionais de grupo de pesquisas já consolidados no campo do
currículo, sob o recorte de tendências pós-críticas.
A tradição da Escola de Frankfurt teve, em seu cerne, a crítica
inerente à razão instrumental e suas consequências para as relações sociais,
no desvelamento dos mecanismos de reificação que impedem o
pensamento crítico. Para esses autores, o projeto da modernidade, na busca
por verdades e modelos absolutos e pelo método que assegurasse o
verdadeiro conhecimento, levou à dogmatização do pensamento e reduziu
o sentido da vida a uma vida danificada, prevalecendo a frieza, a rigidez e
o anulamento da capacidade de realizar experiências.
O referencial da Teoria Crítica se justifica, uma vez que a reflexão
sobre os limites e possibilidades da experiência formativa se configura
como problemática inerente ao debate desses pensadores. Theodor W.
Adorno, na Dialética negativa, reitera o quanto a multiplicidade da
experncia foi negligenciada por uma racionalidade cega que “[...] se fecha
contra os momentos qualitativos” (ADORNO, 2009, p. 44). O projeto
moderno, ao depositar nos sujeitos a capacidade para confrontar a
pluralidade dos sujeitos singulares a um conteúdo universal e objetivo,
23
reprime a diferença através do positivismo, subsumindo suas
singularidades a um conceito universal, o qual enfraquece a força crítica
do pensamento.
Os filósofos da tradição crítica, de modo enfático, procuram
superar os limites do conhecimento, sem abandonar as potencialidades
emancipatórias da razão, que deve ser compreendida no seu sentido
histórico como condutora da liberdade, pelo caminho da autocrítica dos
elementos regressivos nela contidos. Eles pressupõem o movimento
dialético de confrontação do particular com a universalidade, para que os
potenciais do objeto possam se realizar historicamente e que a diferença e
a multiplicidade da experiência, subsumidas pelo procedimento científico,
pela razão instrumental, possam emergir desse confronto.
Na proposta da dialética negativa, Adorno (2009, p. 123)
empreende a crítica à razão, sem prescindir do horizonte racional, pois,
para ele, o pensamento “[...] consegue pensar contra si mesmo, sem abdicar
de si”. É a própria razão, como potencialidade emancipatória, a partir de
sua autocrítica, que desvelará e compreenderá os elementos regressivos e os
limites do conhecimento, desdobramentos provenientes da primazia da
razão instrumental: “[...] a degeneração da consciência é produto de sua
carência de reflexão crítica sobre si. Esta é capaz de calar ao princípio da
identidade” (ADORNO, 2009, p. 129). A dialética negativa potencializa
a não-identidade e denuncia o abismo entre a coisa e o seu conceito, como
modo de constituir a experiência individual perante os falsos universais,
para além do princípio de identidade. O pensamento negativo é o
instrumento que permite resistir e negar a configuração do existente, à
integração do indivíduo ao sistema social, constituindo fonte da força
crítica do pensamento.
De acordo com a tese da dialética negativa, não é possível alcançar
a pureza do singular de maneira positiva e dispensar a mediação racional.
24
De acordo com Adorno (2009), a busca pelo qualitativo, por meio de sua
afirmação, é ingênua, pois “[...] a individualidade ainda não é e por isso é
ruim onde ela se estabelece” (ADORNO, 2009, p. 132). O conteúdo
singular, aquilo que escapa do enquadramento matemático, é algo por
conquistar, em direção à superação do pensamento identificatório, e não
está livre de coação. Assim, abdicar do conceitual, para Adorno (2009), foi
o grande equívoco da filosofia contemporânea; oportunamente, ressalta
que o pensamento crítico “[...] opõe-se tão bruscamente ao relativismo
quanto ao absolutismo”, ao considerar que “[...] o relativismo é um
escândalo de pensamento sem solo” (ADORNO, 2009, p. 38). A Dialética
negativa (2009) investe na recuperação do trabalho do conceito, pois a
atividade conceitual se constitui na reflexão e consciência de seus limites.
Logo, enfrentar o totalitarismo da razão pela dialética negativa é a maneira
de liberar o singular e o diferente. O espaço da diferença é, dessa forma,
esse espaço de tensão entre o particular e o universal e não pode abster-se
dos parâmetros racionais.
Por fim, o impasse se constitui em refletir sobre as possibilidades
da experiência formativa e do desenvolvimento do pensamento autônomo,
frente ao diagnóstico da estreita relação do esclarecimento e dominação,
que converte o potencial de emancipação em aprisionamento das
condições de liberdade, na dissolução do indivíduo autônomo. A doutrina
da abstração e axiomatização, amparada pelo recurso da coerência
inexorável, resulta no embrutecimento dos sentidos e na reificação do
espírito.
Para tais propósitos, o trabalho estrutura-se em três capítulos. O
primeiro capítulo se destina aos fundamentos analíticos que sustentam a
tese, a saber, a mobilização conceitual a partir da dialética negativa de
Theodor W. Adorno, contraponto direto do campo hegemônico das
produções acadêmico-científicas em educação, sob a preeminência do
25
pensamento pós-crítico. As obras Dialética do esclarecimento (1985) e
Dialética negativa (2009) sustentam a análise, ao versarem sobre os limites
do pensamento e da constituição do conhecimento, escritos que se
justificam pelas catástrofes do século XX, quando se assiste à recaída na
barbárie promovida pelo progresso da razão, catástrofes estas que só podem
ser diagnosticadas e enfrentadas pela própria razão.
Na primeira seção, busca-se realçar a crítica à razão proposta na
Dialética do esclarecimento, levada ao limite, no desvelamento da lógica da
dominação, em que Adorno e Horkheimer salientam a autodestruição do
esclarecimento, seu caráter mítico, o qual posteriormente será trabalhado
sistematicamente na Dialética negativa. A análise permite realizar a crítica
à razão instrumental e a vinculação ao impulso de dominação da natureza
inerente ao processo de esclarecimento. A razão, constituída a partir da
lógica da dominação, absolutiza o conceito, que perde suas raízes históricas
e sua criticidade.
Na segunda seção do capítulo, a análise segue consoante à base na
Dialética negativa, que destaca a convergência entre a tradição filosófica e
a lógica da dominação social. Segue a argumentação de Adorno, do
negativo como forma de sobrevivência da filosofia Adorno sustenta a
necessidade da redundância e do excesso do próprio título da obra. Assim,
visa a potencializar os elementos singulares da experiência crítica,
conferindo à filosofia a tarefa de realização da razão. A filosofia deve
preservar sua atividade conceitual e buscar os elementos não-idênticos que
constituem a racionalidade. Por mais que Adorno pondere a insuficiência
do conceito como elemento indispensável para o pensamento, não diz
respeito a uma filosofia não conceitual, de postura irracional.
No segundo capítulo, procura-se efetuar a análise crítica da agenda
pós-crítica e sua articulação com as teorias curriculares que mais
influenciam o debate atual. Para isso, no primeiro momento, é realizada
26
uma breve apresentação dos princípios teóricos do pós-estruturalismo, que
emerge da corrente pós-crítica e que se mostra presente nos debates
educacionais. A perspectiva pós-estruturalista lança como ponto de apoio
uma referência supostamente externa à razão, o recurso da diferença pura.
Em seguida, no segundo momento, focalizam-se as influências dessa
perspectiva no campo educativo, no Brasil, demarcando os principais
aspectos históricos dos estudos sobre currículo, sob a primazia da vertente
pós-crítica.
O terceiro e último capítulo é destinado à análise da recepção do
pensamento pós-crítico, no campo do currículo. A seleção das obras
pautou-se em representantes de grupos de pesquisa já consolidados sobre
a temática, no Brasil. O objetivo consistiu em compreender o campo de
problematização filosófico-educacional acerca da teoria crítica e pós-
crítica, presente no debate sobre o currículo, e problematizar as
contradições marcadamente presentes.
28
Capítulo I
A Dialética Negativa e a
Mobilização do Conceito de Diferença
O que há de doloroso na dialética é a dor em relação a esse
mundo, elevada no âmbito do conceito. O conhecimento
precisa se juntar a ele, se não quiser degradar uma vez mais a
concretude ao nível da ideologia; o que realmente está
começando a acontecer
(ADORNO, 2009, p. 14).
O projeto da modernidade se desenvolve tendo como referências a
razão, o progresso, a emancipação e a liberdade, e deposita no sujeito a
capacidade para confrontar a pluralidade dos sujeitos singulares a um
conteúdo universal e objetivo. No entanto, a razão moderna assume um
caráter totalitário que exclui aquilo que não enquadra em suas leis, e a
multiplicidade da experiência, necessária à formação humana, é
negligenciada pela cegueira do formalismo lógico.
Ao transpor a racionalidade instrumental como condutora do
progresso, através de certos valores, como o utilitarismo, a funcionalidade
e a eficiência, o desencantamento do mundo teve sérias implicações éticas,
políticas e sociais. Tais valores negligenciaram diversas dimensões humanas
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que não poderiam ser secundarizadas, aprisionando as condições de
liberdade e os potenciais de emancipação.
Com efeito, os avanços tecnológicos são acompanhados pela
crescente miséria humana que se pulveriza, no palco da indústria cultural,
na mercantilização dos próprios desejos e no embrutecimento dos sentidos,
os quais of
uscam o modo de ser e estar no mundo,
rompendo com os
possíveis laços emancipatórios. A educação também se torna cúmplice da
expansão das tendências regressivas da contemporaneidade, uma vez que
legitima e incorpora seus mecanismos, limitada e convertida em
tecnologia.
São inúmeras as críticas ao pensamento moderno,
questionamentos radicais que colocam sob suspeita princípios basilares,
dentre os quais o da possibilidade de emancipação e do sujeito racional. A
desconfiança sobre a razão é acompanhada pela popularidade do discurso
da diferença e da pluralidade, que dão ênfase a outras dimensões para além
da esfera racional. Essa crítica se articula ao discurso pós-moderno, de
deslegitimação dos metarrelatos pedagógicos modernos, que prescinde da
universalidade e de qualquer mediação conceitual, se apoia na
contingência, no efêmero, na multiplicidade, entendendo a realidade em
sua constituição discursiva.
A questão aqui levantada é que o discurso pós-moderno recai num
irracionalismo inevitável, no “[...] culto à imediaticidade irracional”
(ADORNO, 2009, p. 15), na esteira da instrumentalização da cultura,
excluindo os potenciais críticos, com “[...] sério risco de tornar os homens
reféns de um relativismo ético irracional e indesejável” (BUENO, 2015,
p. 160), na resignação a novas formas de dominação por detrás do discurso
de liberdade, o que torna inconsistente sua recepção no campo educativo.
Dito de outro modo, o culto à diferença e a recusa ao universal desfazem
os próprios alicerces das possibilidades de crítica à racionalidade
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instrumental, pois se respaldam em discursos relativistas, de base irracional
e subjetivista, minando as possibilidades de crítica e o enfrentamento da
reificação. À luz dessas reflexões, indagamos: quais as possibilidades de
confrontação à instrumentalidade técnica, a partir de um suporte teórico
que prescinde de mediações conceituais, sem horizonte? Ou ainda, “[...]
no reino das diferenças puras, como definir o que poderá ser um ‘mundo
melhor’?” (BUENO, 2015, p. 160).
Para enfrentar tais questões, recorremos aos aportes teóricos da
Teoria Crítica, tradição na qual encontramos base teórica para a discussão
epistemológica no campo educativo restringimos nossa análise ao
pensamento de Herbert Marcuse, Max Horkheimer e Theodor Adorno. A
tradição da Escola de Frankfurt teve em seu cerne a crítica inerente à razão
instrumental e suas consequências para as relações sociais. Segundo esses
autores, o projeto da modernidade, na busca por verdades e modelos
absolutos e pelo método que assegurasse o verdadeiro conhecimento, levou
à dogmatização do pensamento e reduziu o sentido da vida a uma vida
danificada, prevalecendo a frieza, a rigidez e o anulamento da capacidade
de realizar experiência.
Os filósofos da tradição crítica almejam superar os limites do
conhecimento, sem abandonar as potencialidades emancipatórias da razão,
a qual deve ser resgatada no seu sentido histórico como condutora da
liberdade, pela autocrítica de seus elementos regressivos. Os frankfurtianos
depositam na razão, através do embate dialético, as possibilidades de
resistência à reificação do pensamento, como possibilidade de tensionar,
negar e confrontar as contradições que permeiam a vida social, impregnada
pelo formalismo lógico. Referenciados pelo pensamento hegeliano, os
teóricos frankfurtianos sustentam que há conceitos e princípios objetivos
universalmente válidos, e só através deles é que os homens teriam
condições para se guiar. A razão, enquanto substrato universal, é que
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possibilita estabelecer os conceitos e princípios necessários para a
autonomia do pensamento, tendo como parâmetro a liberdade.
Neste capítulo, temos como objetivo travar o debate sobre o tema
da diferença, a partir da dialética negativa de Theodor W. Adorno,
enquanto contraponto direto do campo hegemônico das produções
acadêmico-científicas em educação, sob a preeminência do pensamento
pós-crítico. Apresentamos a dialética negativa como opção metodológica
para mobilizar o conceito de diferença, como suporte teórico mais
adequado, que nos permite efetivar uma leitura para além da singularidade
absoluta do plano empírico. A dialética negativa pressupõe o movimento
de confrontação do particular com a universalidade, a fim de que os
potenciais do objeto possam se realizar historicamente, para que a
diferença e a multiplicidade da experiência, subsumidas pelo procedimento
científico, possam emergir desse confronto.
As obras Dialética do esclarecimento (1985) e Dialética negativa
(2009) sustentam nossa análise, ao versarem sobre os limites do
pensamento e da constituição do conhecimento, escritos que se justificam
pelas catástrofes do século XX, nas quais se assiste à recaída na barbárie
promovida pelo progresso da razão, catástrofes estas que só podem ser
diagnosticadas e enfrentadas pela própria razão. Embora tenha fracassado,
a promessa da razão se mantém: ser a instância capaz de formar os homens
e a sociedade, de modo a dar fim às desigualdades, às injustiças e às mazelas
humanas, com força própria capaz de estruturar a sociedade e os homens,
de guiar a vida em termos e leis racionais. Sua dívida com a humanidade
persiste.
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1.1 A Dialética do Esclarecimento:
A Crise da Razão e Ctica à Racionalidade Instrumental
A regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão
a incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios
ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a
nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas
míticas superadas. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
47).
Ao propor um novo imperativo categórico, “[...] que Auschwitz
não se repita”, Theodor W. Adorno (1995, p. 119) incita a reflexão sobre
a cumplicidade entre Auschwitz e os processos históricos que o tornaram
possível, e revela as contradições contidas nas promessas da modernidade.
Adorno apresenta a vinculação do esclarecimento com o princípio de
dominação, expondo o quanto está entrelaçado com progresso e regressão,
o que resulta na constituição patológica da sociedade e dos indivíduos que
acolhem as condições para que barbáries e catástrofes continuem sendo
reproduzidas, permitindo que sociedades com o desenvolvimento
tecnológico em níveis avançados permaneçam tuteladas, em termos
culturais.
Tal condição nos é indicada na obra Dialética do esclarecimento
(1985), em que Adorno e Horkheimer colocam a razão sob suspeita:
buscam compreender quais justificativas das tendências regressivas no
curso dos processos civilizatórios, de por que a razão não cumpriu com a
promessa de instauração de uma sociedade pautada na liberdade e na
justiça, em “[...] descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um
estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie
de barbárie” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 11).
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Nessa obra, Adorno e Horkheimer apresentam os instrumentos
teóricos para a compreensão do momento de crise da modernidade, que se
insere numa lógica da dominação universal da natureza e do homem, a
partir de uma crítica radical, na qual a razão entra em conflito consigo
mesma. A razão se desenvolve moldada pelo espírito da dominação e
escamoteia a crítica necessária para a plena realização da liberdade, da
justiça e da emancipação, que se converte no domínio dos próprios
sujeitos, um autodomínio empobrecido, presidido pelo princípio de
identidade. A razão instrumental é acentuada enquanto categoria universal
do processo civilizatório, e a barbárie inerente ao processo de modernização
da sociedade, em termos sociais e psicológicos. A resposta a esse impasse é
dada pela própria razão, pelo trabalho de autocrítica a limitação da razão
deve ser refletida, “[...] o esclarecimento tem que tomar consciência de si
mesmo.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 14). Os autores
assinalam:
[...] objeto a investigar: a autodestruição do esclarecimento. [...]
acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio
conceito desse pensamento [...] contém o germe para a regressão que
hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro
de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu
próprio destino. Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o
elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente
pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua
relação com a verdade (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 13).
Neste tópico, dissertaremos sobre a crítica aos limites da razão, com base em
Dialética do esclarecimento (1985), influente obra do século XX, publicada em 1947, que
alicerça os fundamentos da crítica à civilização ocidental e em que subjazem os elementos
essenciais do pensamento desses filósofos. O pressuposto é que a busca incessante pelo
domínio da natureza estabelece uma relação estreita entre o progresso e a racionalidade
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instrumental, relação esta que se solidifica em um quadro de comprometimento das
experiências que sucumbe às relações humanas: [...] o progresso converte-se em
regressão” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 14), e [...] a terra totalmente
esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 17).
1.1.1 O esclarecimento e o impulso à dominação: do mito à ciência
O mito já é esclarecimento e o esclarecimento
acaba por reverter à mitologia
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 15).
No capítulo inicial da Dialética do esclarecimento (1985), intitulado
O conceito de esclarecimento, os autores irão delinear o processo de
constituição da razão e o entrelaçamento entre o mito e a ciência, na
história da civilização ocidental, procurando elucidar os aspectos
emancipatórios e regressivos desse percurso. A obra analisa o processo de
esclarecimento: concerne às relões dos indivíduos em enfrentar os
medos, diante da natureza e da ignorância, da explicação mítica ao
Iluminismo, expondo a relação com a natureza interna, externa, e a
pretensão de dominação.
Vale ressaltar o sentido atribuído ao conceito de esclarecimento
adotado na obra: em alemão, Aufklarung diz respeito ao processo de
racionalização e de dominação da natureza, o qual ultrapassa o processo
histórico-filosófico do Iluminismo do século XVIII. Como denominador
comum do esclarecimento, os autores conferem à pretensão de dominação
“[...] o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de
senhores” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19), que comporta
desde os rituais míticos até os novos experimentos científicos.
35
No cenário mítico, as narrativas almejam superar a angústia frente
à situação de ameaça da natureza pelos rituais sagrados, na esfera da
representação, através do encantamento da natureza. Em face das forças da
natureza, projetam nas divindades míticas as forças naturais e buscam uma
regularidade pela imitação e pela repetição, estabelecendo uma relação
mimética com a natureza:[...] o sobrenatural, o espírito e os demônios
seriam as imagens especulares dos homens que se deixam amedrontar pelo
natural” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19).
Já na modernidade, para vencer a condição de impotência, a
relação com a natureza é invertida: a razão visa a desencantar a natureza e
destruir os mitos, e o homem submete a natureza ao seu controle. Instaura-
se uma relação de senhorio: a intenção é a dominação pela calculabilidade
e registro dos fatos, endossado pelos avanços técnicos, de maneira, assim,
a modificar, manipular e secularizar o conhecimento, “[...] dissolver os
mitos e substituir a imaginação pelo saber” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 17). O mito é substituído pelo saber racional-
científico, pela razão que promete desmembrar as leis lógicas e racionais
que regem a natureza, amparado por uma mentalidade prática e por
ferramentas tecnológicas, as quais resultam não só na dominação da
natureza externa, mas também da natureza interna (o disciplinamento dos
sentidos, pela repressão das forças libidinais e das pulsões), e na dominação
social (a lógica da uniformização, o mundo administrado, como se assiste
no capitalismo tardio).
A modernidade simbolizou o ápice da confiança do progresso das
ciências e da sociedade, trazendo a promessa de novos tempos. Entre os
pensadores modernos que fundamentaram o sistema de pensamento que
almejou libertar a humanidade das amarras míticas e representou a nova
autoconfiança da razão e do progresso da ciência, Francis Bacon,
considerado o pai da experimentação científica, e René Descartes, filósofo
36
que fundamenta o método analítico e a matemática moderna, merecem
atenção. O saber de Bacon, com base na observação e na experimentação,
passíveis de comprovação empírica, objetivava o domínio patriarcal da
natureza, o conhecimento que deve servir ao homem saber é poder: “[...]
o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a natureza
desencantada” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 18), e “[...] só o
pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para
destruir os mitos” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 18).
Descartes, por sua vez, aspirava a apresentar um método racional
capaz de “[...] unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases
seguras, construindo um edifício plenamente iluminado pela verdade e,
por isso mesmo, todo feito de certezas racionais” (DESCARTES, 1999, p.
05) e, assim, “[...] inaugurar, desde os fundamentos, o luminoso reino da
certeza” (DESCARTES, 1999, p. 07). Para o pensador francês, a essência
da natureza humana era o pensamento, o “cogito”, pressuposto que
inaugura uma nova concepção de sujeito: o sujeito do conhecimento,
pensante, detentor de uma estrutura racional, a qual, apoiada em métodos
adequados, poderia alcançar a verdade, com “clareza e distinção”, para
superar a condição de ignorância.
Esse saber culminou na constituição da ciência moderna e
posterior pensamento positivista, que deposita na ciência o modo de
compreensão objetiva dos fatos e concebe o método científico como a
ferramenta capaz de universalizar o conhecimento. Amparado pelo
formalismo lógico e pelo ideal de dominação, a unidade do método visa
ao conhecimento completo e exato, obedecendo a alguns princípios e
procedimentos para manipulação dos dados, tais como: a decomposição, a
fragmentação, a racionalização e a matematização. Através do manuseio
dos dados empíricos, prezou-se pela neutralidade e pelo rigor nos
experimentos científicos o positivismo extingue o conhecimento pautado
37
na incerteza e na contradição, e elimina as contaminações externas. O
conhecimento científico se pauta na esfera da exatidão, da ordem, daquilo
que é mensurável, fixo e concreto, de modo que “[...] o que não se submete
ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o
esclarecimento” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19).
O novo método de investigação “[...] oferecia aos esclarecedores o
esquema da calculabilidade do mundo” (ADORNO; HORKHEIMER,
1985, p. 20), ao passo que “[...] aquilo que não se reduz a números e, por
fim, ao uno, passa a ser ilusão” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
20). Assim, “[...] o número se tornou o cânon do esclarecimento”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20). De modo imperativo, a
lógica formal enaltece o método e reivindica a validade absoluta: passa a
simbolizar o grande triunfo da humanidade.
[...] a lógica representa a tentativa de integração e ordenação rígida do
que originalmente é equívoco, isto é, um passo decisivo para a
desmitologização. O princípio de contradição é uma espécie de tabu
imposto ao difuso [...]. Enquanto ‘lei do pensamento’ contém uma
proibição: não penses distraidamente, não te deixes despistar pela
natureza inarticulada, mantém como uma posse a unidade do
considerado (ADORNO apud ZAMORA, 2008, p. 191).
De acordo com Adorno e Horkheimer (1985), a questão
problemática é que a explicação do mundo, a partir de sua ordenação lógica
e determinista, pautada na explicação causal, absolutiza o universal e
congela a percepção à configuração imediata da realidade, que é mediada.
O conhecimento se constitui com base na semelhança e na identificação,
é submetido à classificação e categorização dos dados, que o limitam ao
factual, na reprodução controlada e precisa do existente. Desse modo,
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segue uma função opressora de classificar e subsumir os objetos a conceitos
universais. O enquadramento lógico da razão reduz o conhecimento a
esquemas já pré-concebidos, decididos de antemão, fazendo com que “[...]
o novo apareça como algo predeterminado [...]. Quem fica privado da
esperança não é a existência, mas o saber que no símbolo figurativo ou
matemático se apropria da existência enquanto esquema e a perpetua como
tal” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 35).
O desencantamento do mundo, que impetuosamente adentrou na
filosofia e na ciência, resulta em paradoxos que tornam a humanidade
refém de seu próprio conhecimento. Ao dispor de mecanismos de
uniformização e integração, para o controle social, sufoca aquilo que escapa
de seu domínio e elimina a contingência: “[...] nada mais pode ficar de
fora, porque a simples ideia do ‘fora’ é a verdadeira fonte de angústia
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 26). O esclarecimento converte-
se em mitologia: recai no mito do positivismo, do domínio cego da
natureza, nos dados como fatos, “[...] mantém o pensamento firmemente
preso à mera imediatidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 34),
o “[...] conhecimento restringe-se à sua repetição, o pensamento
transforma-se na mera tautologia” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985,
p. 34).
O princípio da imanência, a explicação de todo acontecimento como
repetição, que o esclarecimento defende contra a imaginação mítica, é
o princípio do próprio mito. A insossa sabedoria para a qual não há
nada de novo sob o sol, porque todas as cartas do jogo sem-sentido já
teriam sido jogadas, porque todos os grandes pensamentos já teriam
sido pensados, porque as descobertas possíveis poderiam ser projetadas
de antemão, e os homens estariam forçados a assegurar a
autoconservação pela adaptação essa insossa sabedoria reproduz tão
somente a sabedoria fantástica que ela rejeita (ZAMORA, 2008, p. 23).
39
Como enfatizado por Adorno e Horkheimer (1985), “[...] o
horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob
raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 38). O espírito é reificado e se distancia das
finalidades últimas, “[...] sob o domínio da mais profunda cegueira”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 14), e “[...] o que se torna
problemático é não apenas a atividade, mas o sentido da ciência”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 11). O esclarecimento se volta à
dominação que separa o homem da natureza e, na medida em que a razão
transforma a natureza em instrumento, ela também se instrumentaliza: a
razão se automatiza e o Iluminismo se limita à autoconservação. O “[...]
pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a
máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-
lo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 37). O desenvolvimento da
razão evidencia sua estreita relação com o poder e com a dominação. que,
da herança mágica para a unidade conceitual, se reverte em ideologia:
[...] o mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera
objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu
poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O
esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta
com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-
los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode
fazê-las (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 24).
No aforismo Contradições, Adorno e Horkheimer (1985) ensaiam
as consequências do pensamento lógico dedutivo, que não aceita a
contradição pensamento este que atinge todas as esferas da vida social.
Conforme os autores, seguir tal doutrina tem um preço: a lógica, na
pretensão do conhecimento constituído a partir de fundamentos claros,
40
universais, capaz de alcançar conclusões evidentes, obedece tão
rigidamente a tais princípios, que limita a complexidade das relações ao
pensamento binário, do “ou isso, ou aquilo”, e elimina aquilo que não se
enquadra nos polos opostos, estabelecidos de antemão. Tal relação revela
o caráter coercitivo e autoritário do pensamento ordenador, ao almejar a
neutralidade, com um fim em si mesmo: “[...] a doutrina só precisa ser
geral, segura de si, universal e imperativa. O que é intolerável é a tentativa
de escapar à disjuntiva ‘ou isso ou aquilo’, a desconfiança do princípio
abstracto, a firmeza sem doutrina” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985,
p. 195-196).
Em Eclipse da razão, Max Horkheimer (2002), no mesmo sentido,
chama a atenção que, no processo de instrumentalização da razão, o
pensamento se dilui e se torna instrumento indiferente aos fins. Para ele, a
crítica aos princípios metafísicos e a defesa da secularização resultaram na
neutralização e na formalização da razão, que afetou os conteúdos
objetivos. A razão assume um viés antiuniversalista e uma configuração
relativista,
[...] na imparcialidade da linguagem científica, o impotente perdeu
inteiramente a força para se exprimir, e só o existente encontra aí seu
signo neutro. Tal neutralidade é mais metafísica do que a metafísica.
O esclarecimento acabou por consumir não apenas os símbolos mas
também seus sucessores, os conceitos universais (HORKHEIMER,
2002, p. 31).
No primeiro capítulo da obra, denominado Meios e fins,
Horkheimer (2002) propõe a reflexão centrada na distinção entre a
concepção de razão objetiva e razão subjetiva. A razão subjetiva se volta à
atividade de coordenação, à adequação de procedimentos, à função
41
operacional, em que “[...] tudo e todo no mundo é classificado e rotulado”
(HORKHEIMER, 2002, p. 31), “[...] não importando qual o conteúdo
específico dessas ações” (p. 9), “[...] mais preocupada com o como do que
com o porquê” (HORKHEIMER, 2002, p. 62).
A razão objetiva, enquanto instância orientadora, “[...] se liquidou
a si mesma” (HORKHEIMER, 2002, p. 23) e se fecha na resolução prática
da atividade, na tentativa de normatizar e mensurar o pensamento - uma
inevitável desumanização do pensamento, que se desvanece na cultura da
autopreservação: “[...] ser racional significa não ser refratário, o que por
sua vez conduz ao conformismo com a realidade tal como ela é. O
princípio de ajustamento à realidade é dado como certo”
(HORKHEIMER, 2002, p. 15).
Dentre os mecanismos que fortalecem a barbárie, é possível
associar a razão instrumental e o fetichismo da técnica, os quais são
acentuados com a influência da indústria cultural e se unem as condições
psicológicas do caráter do ser humano moderno, na instrumentalização da
vida e das relações sociais. O desenvolvimento técnico permite a produção
de conhecimento e o aumento das riquezas, e, ao mesmo tempo, gera as
condições para a produção da exploração e alienação: “[...] os avanços dos
recursos técnicos de informação se acompanha de um processo de
desumanização. Assim, o progresso ameaça anular o que se supõe ser o seu
próprio objetivo: a ideia de homem” (HORKHEIMER, 2002, p. 7).
Na obra Educação e emancipação, Adorno (1995) leva essa crítica
ao limite, associando a influência do progresso técnico na reificação das
consciências, que vai ao encontro da definição de barbárie:
Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na
civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se
encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação
42
a sua própria civilização e não apenas por não terem em sua
arrasadora maioria experimentado a formação nos termos
correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se
encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio
primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que
contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta
civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a
caracteriza (ADORNO, 1995, p. 155).
Para Adorno, a fetichização da técnica e a coisificação da
consciência resultam em um processo de desumanização e de reprodução
de tendências anticivilizatórias, possibilitando barbáries e violências
extremas e legitimadas, como o fascismo, em que técnicos são capazes de
projetar desde projetos humanitários a campos de concentração, câmeras
de gás e[...] um sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz
com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com essas vítimas
em Auschwitz” (ADORNO, 1995, p. 133). Segundo Adorno,
[...] na relação atual com a técnica existe algo exagerado, irracional,
patogênico. Isto se vincula ao ‘véu tecnológico’. Os homens inclinam-
se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si
mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço
dos homens. Os meios a técnica é um conceito de meios dirigidos à
autoconservação da espécie humana são fetichizados, porque os fins
uma vida humana digna encontram-se encobertos e desconectados
da consciência das pessoas (ADORNO, 1995, p. 132-133).
43
1.1.2 A razão instrumental e a eliminação da diferença
Adorno e Horkheimer (1985) demonstram que o rigor científico
apregoado na modernidade tem como horizonte a unidade do
pensamento, que é medido pela régua totalitária. A relação entre sujeito e
objeto se resume à redução do objeto a sua mensurabilidade. A questão
levantada pelos autores é que a dominação se estende para os próprios
indivíduos, os quais se tornam reféns de si próprios, na reificação das
consciências: “[...] não é meramente a alienação dos homens com relação
aos objetos dominados [...] as próprias relações dos homens foram
enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 35). No doutrinamento do
espírito, a autorreflexão foi suprimida, “[...] pôs de lado a exigência clássica
de pensar o pensamento” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 37), “o
procedimento matemático [...] transforma o pensamento em coisa, em
instrumento, como ele próprio o denomina” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 37).
O modelo matemático, nos quais os objetos se encaixam em
categorias pré-definidas, naquilo que já é conhecido, se estende para os
demais campos e faculdades do saber. Os objetos suscetíveis à investigação
científica são submetidos ao procedimento eficaz, tornando-se
mensuráveis, e o excesso de método ignora elementos que jamais poderiam
ser negligenciados: o múltiplo, o singular, as qualidades, ou seja, as
potencialidades latentes da multiplicidade da experiência.
Nesse sentido, os autores destacam que o caráter totalitário do
Iluminismo reprime a diferença, através do procedimento positivista, ao
excluir aquilo que não se enquadra em sua medida, o que foge de seu
domínio, “[...] a multiplicidade das figuras [que] se reduz à posição e à
ordem” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20), voltado para a
44
configuração imediata da realidade. O positivismo pretendeu eliminar o
outro, buscando torná-lo idêntico, enquadrando suas singularidades em
um conceito universal falso, que enfraquece a força crítica do pensamento.
Controla e classifica as qualidades dos indivíduos, reduzindo-as a uma
categoria comum, “[...] torna o heterogêneo comparável” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 20). Logo,
[...] o esclarecimento é totalitário [...] sua inverdade [...] está [...] no
fato de que para ele o processo está decidido de antemão. Quando, no
procedimento matemático, o desconhecido se torna a incógnita de
uma equação, ele se vê caracterizado por isso mesmo como algo que há
muito conhecido, antes mesmo que se introduza qualquer valor [...]
Até mesmo aquilo que não se deixa compreender, a indissolubilidade
e a irracionalidade, é cercado por teoremas matemáticos. Através da
identificação antecipatória do mundo totalmente matematizado com a
verdade, o esclarecimento acredita estar a salvo do retorno do mítico.
Ele confunde o pensamento e a matemática (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 32-33).
Nessa busca por alicerces seguros e resultados concretos, a ciência
moderna vai minando qualquer tipo de conhecimento que leva à dúvida,
ao subjetivo, àquilo que não se enquadra nas leis do movimento da
história, traça um caminho “[...] sem o recurso ilusório a forças soberanas,
sem a ilusão de qualidades ocultas” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985,
p. 19). As faculdades do conhecimento, pautadas nos sentidos, nas
emoções e na imaginação, são postas em xeque, instâncias consideradas
enganosas por não possuírem exatidão, devendo ser superadas pelo
conhecimento racional.
45
Nenhuma das coisas que a imaginação me capacita a entender tem
qualquer relevância para o “verdadeiro” conhecimento que possuo de
mim mesmo, e, portanto, deve-se, com todo o cuidado, desviar a
mente desse modo de conceber as coisas, para que se possa perceber sua
própria natureza o mais distintamente possível (DESCARTES apud
COTTINGHAM, 1995, p. 83).
O pensamento cartesiano sustenta que corpo e mente são tidos
como entidades separadas e diferentes: a res cogitans, a mente, coisa
pensante, e a res extensa, a matéria, a coisa extensa, e, consequentemente, a
ideia de razão se desvincula dos sentidos e da emoção: “[...] a luz, as cores,
os sons, os odores, os sabores, o calor, o frio e as demais qualidades
apreendidas pelo tato encontram-se em meu pensamento com tanta falta
de clareza e confusão que ignoro” (DESCARTES, 1983, p. 279). A
subjetividade é considerada a instância que desvia o conhecimento do real,
ao passo que o pensamento, “o cogito”, a essência da natureza humana:
[...] a filosofia buscou sempre [...] uma definição moderna de
substância e qualidade, de ação e paixão, do ser e da existência, mas a
ciênciapodia passar sem semelhantes categorias. Essas categorias
tinham ficado para trás [...] potências de um passado pré-histórico
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19).
Para Adorno e Horkheimer (1985), em nome do zelo paranoico
de enquadramento e controle, a “[...] brutalidade com que enquadra o
indivíduo tão pouco representativa da verdadeira qualidade dos homens”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 35) exclui as singularidades dos
objetos e dos indivíduos, de sorte que “[...] sucumbem as múltiplas
qualidades” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 22), pois se “[...]
elimina o incomensurável” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 24) e
46
o que é classificável impera sobre o singular. Trata-se de um
empobrecimento desmedido, no qual o pensamento é tolhido: “[...] não
apenas são as qualidades dissolvidas no pensamento, mas os homens são
forçados à real conformidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
24).
Dito de outra forma, o que ocorre é que o pensamento tradicional
assume o princípio de identidade, originalmente presidido pela
necessidade humana de domínio patriarcal da natureza, e segue sua função
de classificar, subsumir objetos a conceitos, e concebe o conceito a partir
da identificação. Sujeita os indivíduos à realidade imediata, ofuscando os
antagonismos numa lógica miserável da autoconservação e permanência de
injustiças, a qual anula as potencialidades críticas.
No aforismo Sobre a gênese da burrice, publicada na secção Notas e
esboços da obra Dialética do esclarecimento, os autores tensionam o
momento de atrofia do pensamento e a perda da capacidade de se realizar
experiências. Nesse fragmento, eles sustentam como a vida do pensamento
é inibida desde a mais tenra idade, atrofiando os “músculos” que
potencializariam a experiência que se conecta com a multiplicidade das
representações. Com isso, a capacidade de sair do plano seguro se enrijece,
e a experiência com o universo qualitativo e múltiplo é mutilada em nome
da unidade, da uniformização e da integração, que não permite nada novo,
não permite o desconhecido, o diferente.
Segundo os autores, cada inibição vai formando cicatrizes, as quais
sedimentam o que é a verdade e delineiam quais caminhos devem ser
seguidos, ainda que tais caminhos ocultem a própria humanidade dos
sujeitos. Quanto mais segura e convicta é a verdade, mais autoritária e
menos humana. O impulso de absolutizar a verdade, que concebe a pura
consciência tomada como validade absoluta, desaparece com a dimensão
47
histórica do conceito e, sem mediação, impede que o sujeito acesse a
dimensão formativa no processo do conhecimento.
Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo
dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do
despertar. Essas cicatrizes constituem deformações. Elas podem criar
caracteres, duros e capazes, podem tornar as pessoas burras no sentido
de uma manifestação de deficiência, da cegueira e da impotência,
quando ficam apenas estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia
e do fanatismo, quando desenvolvem um câncer em seu interior. A
violência sofrida transforma a boa vontade em má. E não apenas a
pergunta proibida, mas também a condenação da imitação, do choro,
da brincadeira arriscada, pode provocar essas cicatrizes. Como as
espécies da série animal, assim também as etapas intelectuais no
interior do gênero humano e até mesmo os pontos cegos no interior de
um indivíduo designam as etapas em que a esperança se imobilizou e
que são o testemunho petrificado do facto de que todo ser vivo se
encontra sob uma força que domina (ADORNO; HORKHEIMER,
1985, p. 210-211).
O impasse é refletir sobre quais as possibilidades da experiência
formativa e do desenvolvimento do pensamento autônomo, frente ao
diagnóstico da estreita relação do esclarecimento e dominação. A
racionalidade instrumental atingiu todos os setores da vida social,
transformando o potencial de emancipação em aprisionamento das
condições de liberdade, na dissolução do indivíduo autônomo. A doutrina
da abstração e axiomatização, amparada pelo recurso da coerência
inexorável, resulta no embrutecimento dos sentidos e na reificação do
espírito.
Para Adorno (2009), é a negação determinada que enseja a crítica
da realidade irreconciliada, no desvelamento do impulso dominador e do
48
caráter instrumental do pensamento petrificado. Nesse aspecto, nós nos
aproximamos da crítica de Adorno ao pensamento identificador e ao
princípio da identidade, traçado na Dialética negativa (2009), que investe
na recuperação do trabalho do conceito, o qual será tratado no próximo
tópico. A atividade conceitual se constitui na reflexão e consciência de seus
limites.
1.2 A Dialética Negativa e a Crise da Razão: A Insuficiência da
Identidade e do Pensamento Conceitual
O cisco do seu olho é a maior lente de aumento
(ADORNO, 2009, p. 18).
No anseio de realizar-se enquanto instância esclarecida e
onipotente, a razão triunfa de maneira dilacerada e inconsistente. No
entanto, sua promessa se mantém: ser a instância capaz de formar os
homens e a sociedade, de modo a dar fim às desigualdades, às injustiças e
às mazelas humanas, com força própria capaz de estruturar a sociedade e
os homens, de guiar a vida em termos e leis racionais. Sua dívida com a
humanidade persiste.
Não é por acaso que a obra Dialética negativa (2009) se inicia com
o aforismo intitulado Sobre a possibilidade da filosofia, com o enunciado
categórico: “A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva
porque se perdeu o instante de sua realização” (ADORNO, 2009, p. 11).
A filosofia permanece atual, mesmo tendo sido fracassada sua realização. A
experiência filosófica, nesse sentido, tem a exigência dialética de
autocrítica, deve ser acompanhada da consciência da falsidade da
identidade, da não identidade, enquanto referência epistemológica.
49
A obra Dialética negativa, de Theodor W. Adorno, publicada em
1966, busca construir o conceito dialético negativo, visando a demonstrar
a insuficiência da razão e a necessidade do exercício autorreflexivo do
pensamento, uma crítica que não nega a legitimidade das pretensões do
sujeito moderno e de sentido à objetividade. A crítica da razão segue no
sentido de proporcionar a autorreflexão do pensamento frente à pretensão
de emancipação e sua impossibilidade, uma crítica ao movimento interno
da razão, no qual o conceito é sujeitado à identidade. Segundo Adorno, a
dialética deve refletir criticamente sobre essa pretensão falida, expor aquilo
que está para além da identidade do conceito.
A partir de uma leitura crítica da tradição filosófica e das filosofias
idealistas pautadas no princípio de identidade, Adorno veicula a
possibilidade da razão, mesmo perante seu fracasso decorrente do vínculo
da dominação. A filosofia dos sistemas idealistas, sob o preceito da
identidade como princípio absoluto, irrefutável, em sua pretensão de
coincidir com a realidade, elimina o outro, buscando torná-lo idêntico,
enquadrando suas singularidades em uma totalidade falsa, que enfraquece
a força crítica do pensamento. No decorrer da obra, problematiza a
atividade conceitual sob a lei do pensamento da unidade, que almeja a
verdade única, absoluta e atemporal, procurando quebrar com o encanto
da identidade.
Desse modo, Adorno investiga, em termos filosóficos e
epistemológicos, a constituição do conceito, como importante ferramenta
para a atividade reflexiva do pensamento, dispondo como recurso a
dialética da identidade e da não identidade, entre individual e universal. A
atividade conceitual se instaura na refleo e consciência de seus limites,
como meio para alcançar aquilo que lhe escapa, que foi negligenciado na
absolutização dos sistemas filosóficos.
50
Cristophe Türcke (2004) propõe a reflexão sobre o papel da
filosofia, sugerindo o caminho da dialética negativa. Para Türcke, Adorno
é incisivo no papel da filosofia, atualmente: a filosofia está a serviço da
realização da razão, é sua “advogada”, deve transformá-la num estado
esclarecido, trazê-la à sua forma racional. Essa tarefa é possível somente por
meio da autorreflexão crítica de sua inconsistência: “[...] resta reconhecer
a culpa, aceitar o castigo, prestar penitência. Filosofia que não tem
consciência, não tem consciência adequada de si mesma” (TÜRCKE,
2004, p. 46). A razão “[...] vive sob a sugestão permanente da onipotência
dos pensamentos”, e deve ser criticada em sua insuficiência. A dialética
negativa possui a “força que habilita a razão a pensar contra sua própria ‘lei
de movimento’ sem desistir de si mesma”, “[...] a força auto-reflexiva e
autocrítica da razão” (TÜRCKE, 2004, p. 54).
Neste tópico, concordando com Adorno, quando enfatiza que
“[...] a filosofia que reconhece esse fato, que extingue a autarquia do
conceito, arranca a venda de seus olhos” (ADORNO, 2009, p. 19), nós
nos dedicamos a fragmentos que tratam dos aspectos conceituais, em face
das categorias essenciais da dialética negativa, como o conceito e suas
potencialidades.
1.2.1 Crítica ao princípio de identidade
Theodor W. Adorno constrói críticas fecundas à racionalidade
instrumental e ao positivismo. Para o filósofo, o formalismo da razão e o
rigor científico no excesso de método passam a exigir mecanismos de
controle e de manipulação dos fatos, tendo, portanto, seus objetivos
voltados para um contexto pré-concebido, estático, de cunho
instrumental. Em nome de uma unidade do sistema, o pensamento é
51
submetido ao esquema ordenador, o qual anseia o saber absoluto, próprio
do mundo administrado. Conforme Adorno, “[...] tal vontade de
compreender revela uma exigência de poder que contradiz o que deveria
ser compreendido” (ADORNO, 2009, p. 12), ou seja, na ânsia de controle
e dominação, domina a si próprio, ofuscando seu desvario.
O ponto nevrálgico é que a razão instrumental produz uma
identidade sem arestas entre o objeto e o conceito, “[...] tende a excluir as
qualidades, transformando-as em determinações mensuráveis”
(ADORNO, 2009, p. 44). A obsessão à ordem, à exatidão, e a compulsão
à identidade, revestidas pela racionalidade paranoica do sempre igual, “[...]
transformam o mundo todo em algo idêntico, em totalidade” (ADORNO,
2009, p. 128), eliminam a possibilidade de expressão do diferente: “[...] o
que seria diferente é igualado. Esse é o veredicto que estabelece
criticamente os limites da experiência possível” (ZAMORA, 2008, p. 23-
24).
Assim, o pensamento tradicional assume o princípio de identidade,
originalmente presidido pela necessidade humana de domínio patriarcal
da natureza, e segue sua função de classificar, subsumir objetos a conceitos,
concebendo o conceito a partir da identificação. Sujeita os indivíduos à
realidade imediata, ofuscando os antagonismos em uma lógica miserável
da autoconservação e permanência de injustiças, que anula as
potencialidades críticas:
A ratio que, para se impor como sistema, eliminou virtualmente todas
as determinações qualitativas às quais se achava ligada caiu em uma
contradição irreconciliável com a objetividade que violentou,
pretendendo compreendê-la. Ela se distanciou tanto mais amplamente
dessa objetividade quanto mais plenamente a submeteu aos seus
axiomas, por fim, ao axioma da identidade (ADORNO, 2009, p. 27).
52
O pensamento reificado, de maneira limitada e parcial, busca
incessantemente enquadrar o objeto ao conceito, insiste na identidade
entre o objeto e o pensamento, “[...] como uma totalidade autossuficiente
em relação à qual o pensamento filosófico não pode nada” (ADORNO,
2009, p. 18).
Aquilo que, no que há para conceber, escapa à identidade do conceito
impele esse último à organização excessiva de modo que não se levante
absolutamente nenhuma dúvida quanto à inatacável exaustividade, à
completude e à exatidão do produto do pensamento. A grande filosofia
foi acompanhada pelo zelo paranoico de não tolerar nada senão ela
mesma (ADORNO, 2009, p. 27).
Na análise de Adorno, os produtos da razão se fetichizam e, por
temor à ameaça de dominação, se contentam com os resquícios
deformados de seus ideais de liberdade e de emancipação, “[...] neutralizam
rapidamente todo o passo em direção à emancipação por meio do
fortalecimento da ordem” (ADORNO, 2009, p. 26).
Adorno endereça essa crítica aos sistemas filosóficos modernos, no
percurso histórico perseguido: frente à sua incompletude e ao desespero da
desordem, emerge a petulância do saber absoluto, da verdade ordenada:
“[...] o que um dia quis ultrapassar o dogma e a tutela por meio da certeza
de si transformou-se em asseguramento social” (ADORNO, 2009, p. 38).
Dessa forma, a razão, sufocada pela paranoia da dominação, hostiliza o
próprio pensamento; “[...] a razão se limita a si mesma [...] a ideia de
autonomia do espírito foi acompanhada por seu autodesprezo reativo”
(ADORNO, 2009, p. 39).
José Antônio Zamora (2008, p. 14) apresenta a atualidade do
pensamento de Adorno, na obra Theodor W. Adorno: pensar contra a
53
barbárie, chamando a atenção para a importância da crítica adorniana ao
pensamento identificador, de se libertar do “feitiço da identidade”, que
“[...] submete coercivamente o diferente, singular, múltiplo”. A
experiência crítica exige sair do plano do empírico e da aparência, visando
a realçar os antagonismos ofuscados pelo primado da identidade. O
pensamento deve confrontar-se com a insuficiência da contingência, onde
põe em horizonte o qualitativamente diverso. Zamora (2008) enfatiza:
Adorno pôs seu empenho em realizar essa autocrítica com a finalidade
de alumiar um pensamento que não anexe de modo dominador seu
outro, o não-idêntico, e, dessa maneira, sirva para que os seres humanos
encontrem o caminho de relações diferentes com a natureza nas quais
o princípio de autoconservação desembocado não ponha em perigo as
próprias bases naturais de produção da sociedade (ZAMORA, 2008,
p. 14-15).
A dialética negativa apresenta a contraposição às modalidades de
pensamento que se contentam com a identidade conceitual, partindo da
compreensão de que a experiência formativa se constitui para além da
noção do acúmulo quantitativo de informações:
Alterar essa direção da conceptualidade, voltá-la para o não-idêntico, é
a charneira da dialética negativa. Ante a intelecção do caráter
constitutivo do não-conceitual no conceito, dissolve-se a compulsão à
identidade que, sem se deter em tal reflexão, o conceito traz consigo.
Sua automediação sobre o próprio sentido conduz para fora da
aparência do ser-em-si do conceito enquanto unidade do sentido
(ADORNO, 2009, p. 19).
54
1.2.2 A constituição do pensamento conceitual
O pensamento de Theodor W. Adorno se assenta sobre as bases
filosóficas do pensamento hegeliano. Para Adorno, a dialética hegeliana é
um instrumento fundamental de reconhecimento dos potenciais
emancipadores do esclarecimento (ADORNO, 2009; MARCUSE, 1989).
O filósofo adota a dialética hegeliana como fundamento da análise crítica
e da experiência filosófica, com algumas discordâncias, uma dialética com
Hegel, contra Hegel (PUCCI, 2012).
Ao tomar a dialética como fundamento de análise crítica, Adorno
salienta alguns pontos: o sistema hegeliano pressupõe que há conceitos e
princípios objetivos universalmente válidos, e só através deles é que os
homens têm condições para se guiar. A razão, enquanto substrato
universal, permite estabelecer os conceitos necessários para a autonomia,
tendo como parâmetro a realização da liberdade. A teoria dialética de
Hegel “[...] argumentou contra o mero ser para si da subjetividade em
todos os seus níveis” e, além disso, “[...] abomina toda e qualquer
singularidade solta” (ADORNO, 2008, p. 10).
Dessa forma, para Adorno, a filosofia de Hegel permite ilustrar a
fragilidade da aparência das coisas e a possibilidade efetiva de sua superação
por meio do próprio pensamento, de modo que toda representação
imediata da realidade deve ser pensada e levada ao julgamento crítico pelo
crivo da razão. Segundo ele, para Hegel, aquilo que se apresenta nas
particularidades da vida social pode ser trazido ao pensamento, mediado
pela negação, de maneira que o conhecimento se inicia quando a
experiência cotidiana e a certeza sensível são destituídas. Ou seja, a
estrutura da realidade é negativa e o espírito tem uma relação contraditória
com o mundo.
55
A proposta de reformulação do conceito de dialética, levada a cabo
por Adorno, se pauta na suspensão do momento da síntese, enfatizando
aspectos de negatividade negligenciados pelo sistema hegeliano. Conforme
Adorno, por mais que o idealismo utilize a dialética como método, acaba
por assentar as possibilidades de emancipação no sujeito e no progresso do
espírito absoluto. Ao prescrever a síntese, a dialética hegeliana assumiu um
caráter dogmático, “[...] estipulou uma unidade do conhecimento sem
fissuras por meio de suas fissuras” (ADORNO, 2009, p. 173) e tangenciou
para uma[...] concepção de uma totalidade harmônica na travessia dos
seus antagonismos” (ADORNO, 2008, p. 11). Nesse aspecto, Adorno irá
recusar o sistema idealista, o que não significa que recuse o momento
especulativo.
Adorno irá reconhecer a contradição no próprio pensamento,
realçando que o espírito é contraditório, articulando progresso e regressão.
Assim, a própria razão é dialética: enquanto instrumento de libertação, é
também instrumento de opressão, possui os elementos para emancipação
bem como para barbárie, em um movimento de autodissolução
(ADORNO, 2009; ADORNO; HORKHEIMER, 1985; MARCUSE,
1989).
O procedimento da dialética negativa consiste, portanto, em
potencializar a negação determinada como crítica e suspender a síntese
conceitual. Com efeito, passa a incorporar o fracasso do conceito como
momento necessário do processo de conhecimento e absorver esse
elemento como momento de autorreflexão.
***
Para Adorno, os conceitos são tidos como o instrumental da
filosofia, é o modo pelo qual se constitui o pensamento. A ideia de
conceito, com base na tradição crítica, visa a romper com a rigidez do
conceito de cunho operacional e utilitário, que paralisa naquilo que o
56
objeto apresenta de maneira imediata e, assim, reduz a complexidade do
objeto a uma forma pré-concebida. Nesse sentido, o conceito dialético
incorpora o movimento de negação determinada como crítica, como
forma de identificação das potencialidades não realizadas do objeto e
exposição ao qualitativamente diverso. Pela via da negatividade, irá expor
aquilo que não está explícito, as potencialidades latentes do objeto e a
elucidação das contradições, a possibilidade de contraposição aos
condicionantes ideológicos. Desse modo, cabe ao procedimento dialético
negativo revelar a natureza do objeto ao sujeito, em estado de formação.
Trata-se de uma insatisfação contínua, e se constitui como o movimento
inerente à emancipação humana.
Dessa maneira, a dialética adorniana considera que o conceito
possui elementos da realidade particular e, ao mesmo tempo, possui
potenciais virtuais que agem como potenciais universais de emancipação,
potencialidades não realizadas do objeto, a sua não identidade.
Diferentemente do pensamento tradicional, “[...] para a dialética, a
imediaticidade não permanece como aquilo pelo que ela se apresenta
imediatamente. Ela se transforma em momento ao invés de ser
fundamento” (ADORNO, 2009, p. 41).
Dito de outro modo, o conceito é idêntico e não idêntico, ao
mesmo tempo. Quer dizer que o pensamento parte da identificação, pois
“[...] pensar é identificar” e, no entanto, não se reduz a esse momento: é
acompanhado pela consciência da contradição, o que tensiona sua
incompletude e prescreve a desconfiança com o que está posto, o modo de
expor a “não-verdade da identificação total” (ADORNO, 2009, p. 13). O
pensamento dialético aceita a insuficiência do conceito, sem a imposição
de unidade: “[...] é a consciência consequente da não-identidade. Ela não
assume antecipadamente um ponto de vista” (ADORNO, 2009, p. 13).
57
Com efeito, o elemento não conceitual é primordial à constituição
do conceito dialético, servindo como sustentação ao expor a falsidade da
identidade e, assim, mediar a sua formação: “[...] em termos dialéticos, o
conhecimento do não-idêntico [...] identifica, mais e de maneira diversa
da maneira do pensamento da identidade. [...] é o telos da identificação,
aquilo que precisa ser salvo nela” (ADORNO, 2009, p. 130). Em outras
palavras, a identidade é conservada e negada, é oposta a si mesma, é
contraditória, aponta aquilo que o objeto é e, ao mesmo tempo, o seu vir-
a-ser: “[...] as ideias vivem nas cavernas existentes entre aquilo que as coisas
pretendem ser e aquilo que elas são” (ADORNO, 2009, p. 131).
Em suma, segundo Adorno (2009), o pensamento dialético
negativo leva o pensar através dos conceitos, preservando a consciência da
não identidade, na superação do princípio de identidade. Nada mais é que
o pensamento que busca a liberdade, negando a condição da existência:
“Lá onde o pensamento se projeta para além daquilo a que, resistindo, ele
está ligado, acha-se a sua liberdade” (ADORNO, 2009, p. 24). Cabe à
filosofia defender-se da contingência diletante e da positividade dos
sistemas, no “[...] esforço de ir além do conceito por meio do conceito”
(ADORNO, 2009, p. 22).
No aforismo Dialética da identidade, Adorno reitera a relevância
do procedimento dialético ao movimento autônomo do pensamento que
visa a contrapor-se ao primado da identidade. O que ocorre, conforme
Adorno, é que a crítica ao princípio de identidade segue análoga à crítica à
sociedade e, por isso, pode não alcançar o cerne de sua problemática, a
saber, a cumplicidade com o impulso de dominação na qual se configura
o pensamento conceitual. O pensamento deve apreender o “[...] caráter
antinômico imanente” (ADORNO, 2009, p. 127), a contradição do
pensamento e o seu heterogêneo, a não identidade entre o pensamento e o
seu conceito. Adorno frisa que não há como relegar uma compulsão à
58
identificação de que é preciso se libertar, de que[...] a difusão do princípio
transforma o mundo todo em algo idêntico, em totalidade” (ADORNO,
2009, p. 128). É preciso descortinar a vontade de identidade do próprio
pensamento, que visa à adequação, como toda pretensão de síntese.
Adorno destaca que tal equívoco está circunscrito até mesmo nas
filosofias que se pretendem críticas, a exemplo da crítica ao princípio de
troca. Nesse sentido, Adorno enfatiza que a “[...] identidade é a forma
originária da ideologia” (ADORNO, 2009, p. 129) e que “[...] a crítica à
ideologia não é nada periférico [...] ela é, sim, filosoficamente central: a
crítica da própria consciência constitutiva” (ADORNO, 2009, p. 129). A
dialética negativa está ligada com as categorias da filosofia da identidade,
sendo falsa, permanecendo naquilo contra o que pensa. O progresso crítico
somente se desenvolve, se contrariar a pretensão da filosofia tradicional e
não colocar conceitos primeiros.
Adorno acentua como tarefa da filosofia o Desencantamento do
conceito, entendendo que “[...] o desencantamento do conceito é o
antídoto da filosofia. Ele impede o seu supercrescimento: ele impede que
ela se autoabsolutize” (ADORNO, 2009, p. 19). Desencantar o conceito
é o mesmo que negá-lo em sua autossuficiência, porém, conservando sua
configuração conceitual pela consciência da não identidade. Ou seja, o
conceito deve se constituir a partir da compreensão racional e histórica do
objeto, deve aproximar o objeto da sua não identidade, para além do
impulso de dominação.
A dialética negativa potencializa a não identidade e denuncia o
abismo entre a coisa e o seu conceito, como modo de constituir a
experiência individual perante os falsos universais, para além do princípio
de identidade. O pensamento negativo é o instrumento que permite
resistir e negar a configuração do existente, à integração do indivíduo ao
sistema social, é fonte da força crítica do pensamento.
59
No aforismo intitulado Autorreflexão do pensamento, Adorno
(2009) versa com acuidade o movimento dialético de constituição do
pensamento conceitual. Para ele, é necessário preservar a universalidade
como parâmetro de confrontação do particular com a sua essência, de
modo que a razão seja resgatada em seu sentido histórico como condutora
da liberdade, confronto possibilitado pela negação, pela estranheza frente
ao objeto, porque “[...] o potencial de liberdade exige crítica frente àquilo
em que lhe converteu sua inevitável formalização” (ADORNO, 2009, p.
129). É a própria razão, como potencialidade emancipatória, a partir de
sua autocrítica, que desvelará e compreenderá os elementos regressivos e os
limites do conhecimento, desdobramentos provenientes da primazia da
razão instrumental: “[...] a degeneração da consciência é produto de sua
carência de reflexão crítica sobre si. Esta é capaz de calar ao princípio da
identidade” (ADORNO, 2009, p. 129).
Como sinalizado nas passagens anteriores, já nas primeiras palavras
da obra Dialética negativa (2009), a mesma ideia é defendida: não significa
que a razão, por ter tido sua promessa de emancipação arruinada e não ter
privado os homens das engrenagens sociais fetichizadas, deve ser
abandonada, mas, sim, dialeticamente criticada e refletida:[...] depois de
quebrar a promessa de coincidir com a realidade ou ao menos de
permanecer imediatamente diante de sua produção, a filosofia se viu
obrigada a criticar a si mesma sem piedade” (ADORNO, 2009, p. 11).
Bruno Pucci (2012) apresenta a dialética negativa como opção
metodológica: a dialética tem o potencial de tensionar o pensamento e a
realidade, e refletir sobre os limites da razão, em sua pretensão de abarcar
a totalidade através dos conceitos. Dentre os elementos teórico-
metodológicos pressupostos por Adorno, Pucci (2012) destaca o duplo
sentido do conceito, o qual tem como premissa evidenciar a ambiguidade
dos conceitos, expor os diferentes polos, confrontá-los entre si, balizar “[...]
60
os espaços de tensão e possibilidades” (PUCCI, 2012, p. 7). O exemplo
canônico é a análise do próprio esclarecimento, que “[...] gera luz e
petrifica-se enquanto mito” (PUCCI, 2012, p. 7), como vimos
anteriormente, o que podemos oportunamente estender a outras
categorias.
1.2.3 A mobilização do conceito de diferença sob o viés crítico:
contrapontos
Em diversas passagens da obra Dialética negativa, Adorno (2009)
concentra sua crítica à racionalidade instrumental, presente de maneira
contundente na modernidade, e reitera que a multiplicidade da experiência
foi negligenciada por uma racionalidade cega que “[...] se fecha contra os
momentos qualitativos” (ADORNO, 2009, p. 44). Ressalta a crítica aos
pressupostos universais e aos modelos de representação que agiram
historicamente enquanto opressores ideológicos e sustenta que “[...] a
filosofia não pode ser saciada com teoremas” (ADORNO, 2009, p. 22).
O mesmo diagnóstico é realizado pelo pensamento pós-crítico. No
entanto, este percorre um caminho de enfrentamento distinto do
pressuposto pela dialética negativa: a crítica não passa pela via da
racionalidade. A perspectiva pós-crítica defende a ruptura com qualquer
discurso que se pretenda universal, no qual a diferença e a pluralidade
possam surgir como norte. A sociedade é concebida como um devir
caótico, construída à base de contingências, sem telos, caracterizando-se
pela “desconstrução” e “desterritorialização” infinita dos discursos, privada
de fundamento, e se respalda por uma “ontologia do devir”. O pós-
estruturalismo pensa a diferença como algo empírico, defendendo como
ponto de apoio uma referência supostamente externa à razão,
antimetafísica e, por sua vez, antidialética.
61
Como principal ponto de divergência, de maneira acentuada,
Adorno (2009) salienta que são os próprios conceitos universais que
permitem o questionamento das mazelas advindas do desprezo pela
experiência plena do conteúdo particular. Legitima sua crítica, sem
prescindir do horizonte racional, sua “[...] insistência no qualitativo serve
a essa autorreflexão, não evoca irracionalidade” (ADORNO, 2009, p. 45),
é “[...] algo que precisa ser por sua vez pensado racionalmente”
(ADORNO, 2009, p. 44). Desse modo, é sentencioso na insistência pela
autorreflexão crítica da razão. Para ele, o pensamento [...] consegue pensar
contra si mesmo, sem abdicar de si” (ADORNO, 2009, p. 123). Logo,
enfrentar o totalitarismo da razão pela dialética negativa é a maneira de
liberar o singular e o diferente. O espaço da diferença é, dessa forma, esse
espaço de tensão entre o particular e o universal e não pode abster-se dos
parâmetros racionais.
1.2.3.1 Autorreflexão da razão
O pensamento conceitual está fadado ao fracasso, uma vez que
subsume o objeto à identidade imediata do conceito e recalca a diferença.
Entretanto, o próprio pensamento é capaz de perceber essa insuficiência,
por meio da autocrítica filosófica. A crítica à razão não significa a sua
desistência e a adesão ao irracional: não podemos jogar “[...] a criança com
a água do banho” (ADORNO, 2008, p. 39). O fato de “[...] que a cultura
tenha falhado até hoje não é justificativa para promover o seu fracasso”
(ADORNO, 2008, p. 41), de sorte que sua determinação “[...] não deveria
ser pretexto para escapismos românticos de captura das diferenças puras”
(BUENO, 2015, p. 159).
62
De acordo com a tese da dialética negativa, não é possível alcançar
a pureza do singular de maneira positiva e dispensar a mediação racional.
Para Adorno (2009), a busca pelo qualitativo por meio de sua afirmação é
ingênua, pois[...] a individualidade ainda não é e por isso é ruim onde
ela se estabelece” (ADORNO, 2009, p. 132). O conteúdo singular, aquilo
que escapa do enquadramento matemático, é algo por conquistar, em
direção à superação do pensamento identificatório, e não está livre de
coação:
[...] ante todo e qualquer conteúdo específico, enquanto algo firmado
abstratamente, essa estrutura é negativa no sentido mais simples
possível, espírito que se tornou coação. O poder dessa negatividade
continua vigendo até hoje, realmente. Aquilo que poderia ser diverso
ainda não começou. Isso afeta todas as determinações particulares
(ADORNO, 2009, p. 127).
No aforismo A três passos de distância, da obra Minima moralia, a
questão já é pressuposta: “[...] é apenas na distância em relação à vida que
se desenvolve a vida do pensamento que realmente atinge a vida empírica
(ADORNO, 2008, p. 110). Não há como desistir do pensamento
conceitual, para alcançar o elemento diferente que foi privado pela
predominância do formalismo lógico:[...] os singulares teriam qualidades
que não poderiam ser atribuídas aqui e hoje a ninguém” (ADORNO,
2009, p. 131). Conforme Adorno, “[...] nenhuma filosofia está em
condições de colar as coisas particulares nos textos, como pinturas
poderiam fa-la pensar” (ADORNO, 2009, p. 18), e “[...] é justamente
essa assimilação do espírito ao princípio dominante que precisa ser trazida
à luz pela reflexão filosófica” (ADORNO, 2009, p. 36).
63
Com efeito, abdicar do conceitual, para Adorno (2009), foi o
grande equívoco da filosofia contemporânea, de sorte que oportunamente
ressalta que o pensamento crítico “[...] opõe-se tão bruscamente ao
relativismo quanto ao absolutismo”, ao considerar que “[...] o relativismo
é um escândalo de pensamento sem solo” (ADORNO, 2009, p. 38).
No aforismo O interesse da filosofia, endereçado aos potenciais
latentes da experiência filosófica, Adorno (2009) é categórico, ao advogar
pelo heterogêneo, tarefa essa que só pode ser efetivada pelo conceitual e
não pelo contingente. Em sua postura de desconfiança diante das filosofias
modernas[...] para aquilo que desde Platão foi alijado como perecível e
insignificante e sobre o que Hegel colocou a etiqueta de pueril”
(ADORNO, 2009, p. 15), Adorno já sinaliza que recorrer a fundamentos
de crítica externos à razão se trata de um caminho equivocado. Corrobora
que o particular emerge como um desiderato e recai em irracionalismo:
“[...] o ódio contra o rígido conceito universal fundou o culto à
imediaticidade irracional, à liberdade soberana em meio à não-liberdade”
(ADORNO, 2009, p. 15).
Nessas circunstâncias, Adorno (2009) problematiza algumas
tentativas já realizadas na história da filosofia, em que “[...] o tema da
filosofia apontaria para as qualidades por ela degradadas como
contingentes e transformadas em quantidade negligenciável” (ADORNO,
2009, p. 15), ou seja, para a qualidade do singular negligenciada pela
soberania do mensurável. No entanto, o fato é que essas tentativas, em
nome de uma primazia do singular, acabaram por negligenciar o conceito
dialético. Nesse aspecto, é possível observar uma involuntária crítica de
Adorno ao pensamento pós-moderno, quando se refere às filosofias cujo
“[...] sal dialético foi arrastado pelo fluir indiferenciado da vida”
(ADORNO, 2009, p. 15), tentativas filosóficas de abrir-se à
64
multiplicidade da experiência que, todavia, recaíram naquilo que
pretendiam superar.
Adorno sugere filósofos contemporâneos, tais como Bergson,
Husserl, Sartre e Heidegger, como exemplo de filósofos que criticaram a
absolutização do conhecimento e demonstraram a busca pelo
qualitativamente diverso, como representantes da modernidade filosófica
a favor do elemento não conceitual, mas que acabaram enveredando pelo
caminho da irracionalidade, que “[...] permaneceram na espera da
imanência subjetiva” (ADORNO, 2009, p. 16), de forma que “[...] o
modo mecânico-causal permanece” (ADORNO, 2009, p. 15). Tais
filósofos solaparam o conceito dialético[...] sob o encanto da
imediaticidade” (ADORNO, 2009, p. 54) e, ao dispensar o momento
especulativo, recaem “[...] naquele formalismo que elas combatem em
função do interesse essencial da filosofia” (ADORNO, 2009, p. 51).
Segundo o frankfurtiano, Bergson propõe uma forma de
pensamento que rechaça o conhecimento metafísico e se orienta pelos
“données immédiates de la conscience”. A crítica de Adorno é que “[...] o
puro devir, o actus purus convertem-se na mesma atemporalidade que
Bergson critica na metafísica desde Platão e Aristóteles” (ADORNO,
2009, p. 16). Deixa o pensamento à mercê de um “[...] modo intuitivo de
comportamento [...] rudimento arcaico de uma reação mimética”
(ADORNO, 2009, p. 16), sem mediação, apenas ao redor de seus próprios
meios intuitivos, “[...] degradando-se em arbitrariedade em meio a um
comportamento que não é de antemão mediado pelo comportamento
cognitivo” (ADORNO, 2009, p. 16). Assim, mais uma vez, salienta que
“[...] todo o conhecimento, mesmo aquele de que fala o próprio Bergson,
precisa da racionalidade por ele assim desprezada” (ADORNO, 2009, p.
16). Uma crítica, na qual se renunciou à própria compreensão de
65
conteúdo, “[...] acabou por se transformar em um apelo do ser que rejeita
todo conteúdo como uma contaminação” (ADORNO, 2009, p. 15).
Do mesmo modo, observa a proposta de Sartre, como a[...]
tentativa mais recente de escapar do fetichismo do conceito” que “[...]
permaneceu preso ao idealismo” (ADORNO, 2009, p. 49). Adorno
acentua que o existencialismo se enredou por um caminho em que “a
objetividade é indiferente” e, em decorrência disso, seu potencial crítico é
esvaziado, pois “[...] o pensamento expurgado de conteúdo objetivo não é
superior à ciência particular desprovida de conceitos” (ADORNO, 2009,
p. 51). Segundo Adorno, ao pressupor a espontaneidade absoluta, a
filosofia de Sartre enrijece a própria espontaneidade. Sua ponderação é de
que “[...] a representação de uma liberdade absoluta de decisão é tão
ilusória quanto aquela do eu absoluto que engendra o mundo a partir de
si” (ADORNO, 2009, p. 50). Dessa maneira, na crítica existencialista, que
nega a onipotência da razão, “[...] o sujeito absoluto não escapa de seus
enredamentos: as correntes que ele gostaria de arrebentar, as correntes da
dominação, equivalem ao princípio da subjetividade absoluta”
(ADORNO, 2009, p. 50).
Adorno redobra sua atenção com respeito à ontologia
heideggeriana, a qual, de acordo com ele, se popularizou no século XX, na
Alemanha, dentre as filosofias que negam a onipotência da razão. Segundo
Adorno, Heidegger também se inclui na perspectiva de traços irracionais,
como crítico da essência e da universalidade, que se estabelece por “[...]
uma consciência na qual nominalismo e subjetivismo estão sedimentados”
(ADORNO, 2009, p. 66)”. Cabe lembrar que, na segunda parte da
Dialética negativa, Adorno dedica sua crítica à ontologia heideggeriana, em
que não nos deteremos neste trabalho.
Em outras palavras, Adorno endossa a postura desses filósofos de
que o particular reificado deve ser trazido à reflexão filosófica, de que é
66
preciso “[...] insistir no que eles buscam em vão” (ADORNO, 2009, p.
16), no conteúdo não conceitual. Trata-se de uma exigência filosófica,
movida por uma confiança utópica de que se pode ultrapassar o conceito,
de “dizer o que não pode ser dito”, necessária “[...] contradição que
qualifica a filosofia como dialética” (ADORNO, 2009, p. 16):
Uma confiança como sempre questionável no fato de que isso é
possível para a filosofia; no fato de que o conceito pode ultrapassar o
conceito, os estágios preparatórios e o toque final, e, assim aproximar-
se do não-conceitual [...] A utopia do conhecimento seria abrir o não-
conceitual com conceitos, sem equipa-lo a esses conceitos
(ADORNO, 2009, p. 16-17).
Todavia, é oportuno sublinhar que tal exigência filosófica só pode
ser cumprida pelo caminho racional de autocrítica: “[...] o trabalho da
autorreflexão filosófica consiste em destrinçar tal paradoxo. Todo o resto
é designação, pós-construção, hoje como nos tempos de Hegel algo pré-
filosófico” (ADORNO, 2009, p. 16). À filosofia “[...] reside o esforço de
ir além do conceito por meio do conceito” (ADORNO, 2009, p. 22), “[...]
a reflexão filosófica assegura-se do não-conceitual no conceito”
(ADORNO, 2009, p. 18).
Em suma, para a dialética negativa, a identidade deve ser superada,
entretanto, considera a identificação necessária, pensar a identidade em
suas contradições, através do movimento negativo. Para Adorno, é
impossível pensar sem conceitos: “pensar é identificar”, no entanto, é
insuficiente.
Adorno reconhece que toda identidade possui um caráter coativo,
não deixa de ser subsumidora das diferenças e se fixa no significado da
identificação imediata e absoluta. Por isso, toda identificação deve ser
67
acompanhada da reflexão sobre sua limitação. Nesses termos, a dialética
negativa não nega a legitimidade das pretensões do sujeito moderno e de
sentido à objetividade. Contudo, a crítica da razão é no sentido de refletir
criticamente sobre essa pretensão falida, de proporcionar a autorreflexão
do pensamento frente à pretensão de emancipação. Somente na
autorreflexão do pensamento é possível escapar da repressão e violência da
identificação total, a qual ratifica as injustiças e reproduz a barbárie.
Em seus elementos incondicionalmente universais, toda filosofia,
mesmo aquela que possui a intenção da liberdade, arrasta consigo a não
liberdade na qual se prolonga a não liberdade da sociedade. Essa possui
em si a compulsão; mas é apenas essa compulsão que a protege de uma
regressão à arbitrariedade. O pensamento consegue reconhecer
criticamente o caráter compulsivo que lhe é imanente; sua própria
compulsão é o meio de sua libertação (ADORNO, 2009, p. 48).
Conforme Adorno, “[...] aquilo que há de falso na racionalidade
[...] é ele mesmo determinável racionalmente” (ADORNO, 2009, p. 37).
Ou seja, cabe ao pensamento filosófico opor-se ao aniquilamento da razão,
que, sem pressupor a confrontação objetiva com as contradições
perduráveis, padece em sua irrazoabilidade e irracionalismo que
inviabilizam o pensamento reflexivo. Concordamos com o
posicionamento de José Antônio Zamora: “[...] de saída, todo juízo realiza
uma afirmação absoluta de seu conteúdo e não deve subestimar a
dificuldade para corrigi-lo e relativi-lo por meio de uma reflexão
segunda” (ZAMORA, 2008, p. 190). Nas palavras de Adorno: “[...] a
reflexão que quebra o poder da imediatez nunca é tão persuasiva como a
aparência que ela suprime” (ADORNO apud ZAMORA, 2008, p. 190).
68
Ao desconsiderar os potenciais dialéticos universais de
confrontação com as particularidades, ficamos à mercê da impotência da
multiplicidade de narrativas parciais e, com isso, aceitamos a
impossibilidade de uma explicação dos nexos entre particular e universal,
que possibilite a conexão com a realidade política e social, de uma
compreensão global da dinâmica social.
69
Capítulo II
As Teorias Curriculares e sua Articulação
com a Agenda Pós-Crítica
Frente ao ideal de uma formação universal, apregoado na
modernidade, relações de opressão e de desigualdade são reproduzidas e
legitimadas com base em uma razão universal. No mesmo sentido, a partir
de mecanismos de integração e uniformização, a multiplicidade das
experiências é tolhida. Nesse contexto, o reconhecimento da diferença e da
pluralidade se coloca como inevitável, na emergência de uma formação que
valorize e amplie a heterogeneidade, rompendo com os discursos
opressores produzidos pelos vínculos entre conhecimento e poder.
No auge dos movimentos culturais dos anos de 1970, com a
bandeira de valorização das diferenças, a tendência pós-moderna ganha
destaque e se dissemina em diversas áreas do conhecimento, como uma
“nova onda” que entusiasma novas orientações investigativas. Torna-se
uma tendência cultural dominante, a qual impacta a esquerda, passa a
animar os ares acadêmicos e se hegemoniza no campo das ciências
humanas e sociais, nos anos de 1990.
O questionamento dos princípios da modernidade é o carro-chefe.
Desconfia-se do discurso universal, das metanarrativas e das grandes
cosmovisões que prometeram mais justiça e liberdade entre os homens. A
crítica alçada se articula aos discursos sobre a promoção da diferença, da
pluralidade e das linguagens particulares e alcança a reflexão pedagógica.
70
Certas categorias, como sujeito, razão, emancipação, progresso e
universalidade, são postas em suspensão.
No Brasil, desde a década de 1990, o campo educativo passa a
incorporar enfoques de influência pós-moderna, tornando-se referencial
hegemônico. O pensamento pós-crítico ganha a cena e passa a ser base
teórica que fundamenta o debate filosófico-educacional. Nesse cenário, a
bandeira da diferença influencia o campo de estudos do currículo escolar,
na esfera nacional.
Buscando subsidiar a análise da recepção dessa perspectiva no
campo dos estudos curriculares, no Brasil, neste capítulo, temos como
objetivo apresentar as articulações do pensamento pós-crítico com as
teorias curriculares. Os estudos do currículo se configuram como um
espaço de lutas e controvérsias, ao versarem sobre as concepções de homem
e de sociedade, as quais delineiam as bases para um projeto formativo que
ampara as experiências escolares.
Visando a atender tais objetivos, no primeiro momento, é realizada
uma breve exposição dos princípios teóricos da agenda pós-moderna, em
especial, do pós-estruturalismo, que se mostra presente nos debates
educacionais. Em seguida, no segundo momento, focalizamos os
principais enfoques teóricos das teorias curriculares no debate nacional,
que, na segunda metade da década de 1990, têm a perspectiva pós-crítica
como principal embasamento teórico.
2.1 A Crítica às Representações e o Fim das Metanarrativas: Crítica ao
Sujeito, à Razão e a Ênfase na Diferença
Embora a tendência pós-moderna se insira num quadro de
distintas vertentes, o que dificulta traçar uma definição, o questionamento
71
dos princípios da modernidade ressoa como um traço em comum:
desconfia-se do discurso universal, das metanarrativas e das grandes
cosmovisões que prometeram mais justiça e liberdade entre os homens, ao
considerar as relações de opressão e de desigualdade legitimadas pela razão
universal. Assim, os processos formativos implicados nas pretensões
universalistas são postos em suspensão, na rejeição dos núcleos
fundamentais do legado do Iluminismo e da filosofia clássica: as
concepções de sujeito, razão e conhecimento científico. A razão é
desacreditada enquanto fundamento e ferramenta para eliminar as
desigualdades e injustiças sociais. Trata-se de uma “[...] reavaliação radical
da cultura do Iluminismo e de sua concepção de uma razão universal”
(PETERS, 2000, p. 50).
Jean François Lyotard, um dos principais expoentes da perspectiva
pós-moderna, na obra o Pós-Moderno (1986), define o pós-moderno como
o rompimento com as grandes narrativas, como uma tendência contra as
pretensões de totalidade e universalidade, como uma reação ao
hegelianismo. Representa o fim das esperanças quanto às promessas
modernas, no desmanche de seu projeto, validade, categorias e discursos,
na deslegitimação dos saberes, relatos e instituições por ela constituídos.
Ou seja, representa a “[...] crise de conceitos caros ao pensamento
moderno, tais como ‘razão’, ‘sujeito’, ‘totalidade’, ‘verdade’, ‘progresso
(LYOTARD, 1986, p. vii).
Trata-se do rompimento com qualquer elemento transcendental,
que, segundo Lyotard, nada mais são que histórias construídas
culturalmente para legitimar práticas e crenças dominantes: “[...] o pós-
moderno, enquanto condição da cultura nesta era, caracteriza-se
exatamente pela incredulidade perante o metadiscurso filosófico-
metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes”
(LYOTARD, 1986, p. vii). Nesse sentido, para ele, com o fim das
72
metanarrativas, “[...] a questão da legitimação do saber coloca-se em outros
termos. O grande relato perdeu sua credibilidade, seja qual for o modo de
unificação que lhe é conferido: relato especulativo, relato de emancipação”
(LYOTARD, 1986, p. 69).
Ainda no campo das definições, Tomaz Tadeu da Silva (2004a)
sintetiza outros aspectos que podem ser destacados. Para ele, o pós-
modernismo
[...] privilegia a mistura, o hibridismo e a mestiçagem de culturas,
de estilos, de modos de vida. O pós-modernismo prefere o local e o
contingente ao universal e ao abstrato. O pós-modernismo inclina-se
para a incerteza e a dúvida, desconfiando profundamente da certeza e
das afirmações categóricas. No lugar das grandes narrativas e do
‘objetivismo’ do pensamento moderno, o pós-modernismo prefere o
‘subjetivismo’ das interpretações parciais e localizadas (SILVA,
2004a, p. 114, grifos nossos).
Conforme Terry Eagleton (2016), com o diagnóstico de
esgotamento da racionalidade moderna e a diluição dos metarrelatos de
critérios universais, acentuam-se o efêmero, o fugidio, o pluralismo o
pós-moderno “[...] deposita sua confiança no pluralismo em uma ordem
social que seja tão diversificada e inclusiva quanto possível.
(EAGLETON, 2016, p. 34). Ainda assinala:
[...] pós-moderno quer dizer, aproximadamente, o movimento de
pensamento contemporâneo que rejeita totalidades, valores universais,
grandes narrativas históricas, sólidos fundamentos para a existência
humana e a possibilidade de conhecimento objetivo. O pós-
modernismo é cético a respeito de verdade, unidade e progresso, opõe-
se ao que vê como elitismo na cultura, tende ao relativismo cultural e
73
celebra o pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade
(EAGLETON, 2016, p. 27).
De acordo com Michael Peters (2000), o pós-estruturalismo,
perspectiva que tem ecoado com mais intensidade no campo educativo,
busca responder e revisar algumas lacunas postas pelo estruturalismo,
inspirados especialmente em Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger. A
crítica recai sobre os pressupostos logocêntricos e homocêntricos, com
questionamentos sobre a figura do sujeito humanista. Adota-se o
perspectivismo cultural, o qual implica no pluralismo moral e na
desconstrução das pretensões universalistas. Sem grandes pormenores, vale
ressaltar alguns aspectos do estruturalismo.
O estruturalismo começa a se desenvolver a partir da crítica
literária e da análise linguística do discurso, institucionalizado no cenário
francês ao final dos anos 1950 e anos 1960 como um megaparadigma
transdisciplinar. Caracteriza-se pela centralidade da linguagem na vida
social e cultural, em que os processos de significação ocorrem a partir de
sistemas linguísticos e simbólicos, através das relações entre os elementos,
e mantém como base a noção de estrutura. Como principais influências,
Ferdinand Saussure e Roman Jakobson, que enfatizam as regras de
formação estrutural da linguagem (PETERS, 2000).
Vale lembrar que Saussure desenvolveu o estudo do sistema de
signos, que desembocou na semiologia. Preocupou-se com a função dos
elementos linguísticos, com o significado e o significante. A relação entre
eles é arbitrária, podendo haver diferentes significantes para o mesmo
significado, de modo que o sistema linguístico é formado por diferentes
estruturas: “[...] nenhum deles causa o outro; em vez disso, eles estão
funcionalmente relacionados: um depende do outro. A identidade é
definida de forma relacional, puramente como uma função das diferenças
74
no interior do sistema” (PETERS, 2000, p. 20). De seu lado, o papel de
Jakobson para o desenvolvimento da linguística estrutural foi
fundamental, utilizando primeiramente o termo “estruturalismo”, em
1929, para “[...] designar uma abordagem estruturo-funcional de
investigação científica dos fenômenos, cuja tarefa básica consistiria em
revelar as leis internas de um sistema determinado” (PETERS, 2000, p.
22).
Além da linguística, o estruturalismo se disseminou em outras
áreas, tornando-se um globalizante referencial teórico, representado por
Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes, Jacques Lacan, Michel Foucault,
entre outros. Vale destacar que Lévi-Strauss inaugura a explosão
estruturalista na França, a partir da publicação de Anthropologie structurale.
Utiliza o método estrutural para desenvolver seu método antropológico, a
partir da noção de estrutura inconsciente, de modo que, “[...] tal como os
fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação; tal como
os sistemas fonológicos, ‘são elaborados pelo espírito no estágio do
pensamento inconsciente” (PETERS, 2000, p. 24). Já Michel Foucault, a
despeito de haver declarado nunca ter sido um estruturalista, reconhece
que compartilhava o mesmo problema, a crítica ao sujeito (PETERS,
2000, p. 26). É importante salientar que, embora o estruturalismo
mantivesse a noção de estrutura, foi alvo de críticas quanto ao viés
irracionalista, as quais serão mais notórias e direcionadas ao pós-
estruturalismo.
Carlos Nelson Coutinho (2010), na obra Estruturalismo e Miséria
da razão, a fim de reivindicar a atualidade da filosofia crítica e
emancipatória, funda no estruturalismo sua crítica à razão miserável e ao
irracionalismo. Pela história da filosofia, levanta a problemática entre razão
e desrazão, trazendo filósofos e pensadores que empregam uma
racionalidade subjetivista (usa, como recurso didático, a distinção entre
75
razão objetiva e razão subjetiva, sublinhada por Horkheimer (1980), na
obra Teoria tradicional e teoria crítica). Como ponto crucial, caracteriza
como movimento da miséria da razão e irracionalismo a reação contra o
pensamento hegeliano, que solapa a razão dialética e o historicismo
concreto, os quais, de alguma maneira, se afastam do terreno da ciência e
da razão, voltando-se para o subjetivismo.
O pós-estruturalismo, a fim de suprir as brechas do estruturalismo,
também irá teorizar sobre a linguagem e sobre os processos de significação;
no entanto, o significado passa a ter caráter fluido, indeterminado e
incerto, no qual a linguagem ganha uma centralidade ainda maior. Além
disso, algumas críticas são radicalizadas, como o conceito de diferença e a
crítica ao sujeito.
Michael Peters (2000) sublinha alguns aspectos convergentes e
divergentes entre o estruturalismo e o pós-estruturalismo, com saliência ao
caráter antifundacional que o pós-estruturalismo passa a adotar:
[...] os pós-estruturalistas mantém a crítica estruturalista do sujeito,
negando ao sujeito qualquer papel importante na fundação da
realidade ou no conhecimento que podemos ter dessa realidade. Mas,
em oposição ao estruturalismo, eles também rejeitam a ideia de que um
sistema de pensamento possa ter qualquer fundamentação lógica (em
sua coerência interna, por exemplo). Para os pós-estruturalistas, não
existe nenhuma fundação, de qualquer tipo, que possa garantir a
validade ou a estabilidade de qualquer sistema de pensamento
(PETERS, 2000, p. 39).
No mesmo sentido, quanto às divergências entre estruturalismo e
pós-estruturalismo, Tomaz Tadeu da Silva (2004a) ressalta a noção de
76
sujeito, o que realça ainda mais a radicalidade do enfoque pós-
estruturalista:
[...] o pós-estruturalismo, entretanto, radicaliza o caráter inventado do
sujeito. No estruturalismo marxista de Althusser, o sujeito era um
produto da ideologia, mas se podia, de alguma forma, vislumbrar a
emergência de um outro sujeito, uma vez removidos os obstáculos,
sobretudo a estrutura capitalista, que estavam na origem desse sujeito
espúrio. Em troca, para o pós-estruturalismo podemos tomar
Foucault como exemplo não existe sujeito a não ser como o simples
e puro resultado de um processo de produção cultural e social (SILVA,
2004a, p. 120).
Com efeito, dentre as principais premissas incorporadas pelo pós-
estruturalismo, destacam-se a descrença do projeto iluminista de
emancipação, a desconstrução das pretensões universalistas (sujeito e
razão), a crítica à metafísica e as grandes narrativas e a recusa à dialética.
Em linhas gerais, transparece a crítica ao sujeito humanista, às ideias e
instituições modernas, à metafísica, ao autoconhecimento e ao
pensamento hegeliano, tendo como norte a diferença e a pluralidade.
O pensamento de Nietzsche, em especial, a crítica à metafísica e
aos conceitos de ser e de verdade, marcam o campo do pós-estruturalismo
francês e os temas filosóficos tratados por seus principais representantes.
Pode-se considerar que os expoentes que marcaram a primeira geração dos
pós-estruturalistas foram: Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles
Deleuze, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard, Julia Kristeva, entre
outros.
Peter Dews (1996) sintetiza as questões cruciais a serem
confrontadas pelo pós-estruturalismo, a saber: romper com a noção de um
77
sujeito absoluto e com o pensamento conceitual e, ao mesmo tempo, com
as possibilidades dialéticas:
Um dos problemas fundamentais que confrontam o pensamento pós-
estruturalista, portanto problema que responde por muitas de suas
características distintas -, consiste em como rejeitar, simultaneamente,
a rigidez repressora da consciência de si e do pensamento conceitual e
as alternativas dialéticas existentes. Na busca de uma solução para essa
dificuldade, foi Nietzsche quem desempenhou o papel mais
importante (DEWS, 1996, p. 55).
O enfrentamento aos impasses construídos e legitimados na
modernidade, portanto, se dá por outro caminho, não mais pela via da
racionalidade, nem mesmo pelos metadiscursos: “[...] a prática de
legitimação não pode vir de outro lugar senão de sua linguagem e de sua
interação comunicacional” (LYOTARD, 1986, p. 74). Pedro Georgen
(2005), na obra Pós-modernidade, Ética e Educação, endossa que “[...] o
cerne deste paradigma seria o reconhecimento de que o mundo somente
pode conhecer-se através das formas de discurso que o interpretam”
(GEORGEN, 2005, p. 67).
Com isso, a ênfase é para o contingente, e o olhar se volta para o
local, o particular, o pontual. Trata-se de uma nova pragmática do
conhecimento narrativo, que diz respeito à ideia de narrativa enquanto
“[...] conhecimento costumeiro, cultural ou étnico, desenvolvido no nível
local e popular, como um ‘saber como’, um ‘saber como viver’ e um ‘saber
como escutar contra as tendências totalizantes e globalizantes das antigas
narrativas-mestras da legitimação” (PETERS, 2000, p. 63). Assim,
78
[...] tendem a enfatizar as noções de diferença, de determinação local,
de rupturas ou descontinuidades históricas, de seriação, de repetição e
uma crítica que se baseia na ideia de desmantelamento ou de
desmontagem(leia-se desconstrução). Essa postura relativamente
ao significado e à referência pode ser interpretada como uma espécie
de anti-realismo, isto é, uma posição epistemológica que se recusa a ver
o conhecimento como uma representação precisa da realidade e se nega
a conceber a verdade em termos de uma correspondência exata com a
realidade (PETERS, 2000, p. 37).
Em face do desmonte da esfera racional, anulam-se as
possibilidades até então depositadas na noção de sujeito centrado,
autônomo, emancipado, e a ênfase passa a ser no sujeito múltiplo, que não
se fixa numa identidade, fragmentado, sem coerência, em um processo de
desconstrução, que “[...] radicaliza o caráter inventado do sujeito” (SILVA,
2004a, p. 120). Para Dews (1996, p. 54), “[...] esse protesto contra a
unificação coercitiva subentendida na noção de um sujeito consciente de
si e idêntico a si mesmo é naturalmente um dos temas centrais do pós-
estruturalismo”. No que concerne ao sujeito,
[...] seguindo Nietzsche, todos eles questionam o sujeito cartesiano-
kantiano humanista, ou seja, o sujeito autônomo, livre e
transparentemente autoconsciente, que é tradicionalmente visto como
a fonte de todo o conhecimento e da ação moral e política. Em
contraste [...] eles descrevem o sujeito em toda a sua complexidade
histórica e cultural um sujeito “descentrado” (PETERS, 2000, p. 33).
Logo, o sujeito é discursivamente constituído, dependente do
sistema linguístico e “[...] posicionado na intersecção entre as forças
libidinais e as práticas socioculturais” (PETERS, 2000, p. 33). Desse
modo, a ênfase é na constituição discursiva do eu, no culto à diferença, no
79
pluralismo, em detrimento de um suposto sujeito universal em busca da
emancipação via autoconsciência. No horizonte da emancipação, surge a
transgressão:
[...] inspirado nos insights pós-estruturalistas, o sujeito não é o centro
da ação social. Ele não pensa, fala e produz: ele é pensado, falado e
produzido. Ele é dirigido a partir do exterior: pelas estruturas, pelas
instituições, pelo discurso. Enfim, para o pós-modernismo o sujeito é
uma ficção (SILVA, 2004a, p. 113-114).
No que se refere ao conceito de diferença, destaca-se a perspectiva
da filosofia da diferença, de Gilles Deleuze, em decorrência de sua crítica
à dialética hegeliana, a partir de Nietzsche: trata-se do ponto-chave para
compreender o pós-estruturalismo francês, “[...] a celebração do ‘jogo da
diferença’ contra o ‘trabalho da dialética’”. Ao compreendê-lo como reação
ao pensamento hegeliano, “[...] fixa-se na diferença como o elemento
característico que permite substituir Hegel por Nietzsche, privilegiando os
‘jogos da vontade de potência’ contra o ‘trabalho da dialética” (PETERS,
2000, p. 32).
Na apresentação da obra Diferença e Repetição, Deleuze (2000, p.
8) expressa acentuadamente que o tema da obra diz respeito a “[...] um
anti-hegelianismo generalizado”. Deleuze esclarece que a obra se direciona
a partir dos conceitos de diferença e de repetição. O primeiro conceito
situa-se livre do esquema hegeliano, das representações e da negação. E o
segundo “[...] concerne a um conceito de repetição tal que as repetições
físicas, mecânicas ou nuas (repetição do Mesmo) encontrariam sua razão
nas estruturas mais profundas de uma repetição oculta, em que se disfarça
e se desloca um ‘diferencial” (DELEUZE, 2000, p. 8-9). Ambos os
conceitos confluem: “[...] conceitos de uma diferença pura e de uma
80
repetição complexa pareciam reunir-se e confundir-se. À divergência e ao
descentramento perpétuos da diferença correspondem rigorosamente um
deslocamento e um disfarce na repetição” (DELEUZE, 2000, p. 9).
Tal assertiva já coloca em xeque toda a história da filosofia
ocidental, a qual, para ele, se sustentou no plano metafísico, das
representações. De acordo com Deleuze, a diferença não deve mais ser
submetida às exigências dialéticas, não mais pensada no plano das
representações:[...] a diferença e a repetição tomaram o lugar do idêntico
e do negativo, da identidade e da contradição, pois a diferença só implica
o negativo e se deixa levar até a contradição na medida em que se continua
a subordiná-la ao idêntico” (DELEUZE, 2000, p. 8). Radicaliza, por sua
vez, o acento na diferença “sem a negação”, que “não é subordinada ao
idêntico”, livre das representações: “[...] queremos pensar a diferença em
si mesma e a relação do diferente com o diferente, independentemente das
formas da representação que as conduzem ao Mesmo e as fazem passar pelo
negativo” (DELEUZE, 2000, p. 8).
Com base na filosofia da diferença, a concepção pós-estruturalista
tem a diferença como um processo linguístico e discursivo, que se produz
na relação com o outro, nas relações de poder: “[...] não pode ser concebida
fora dos processos linguísticos de significação”, uma vez que “[...] não é
uma característica natural: ela é discursivamente produzida” (SILVA,
2004a, p. 87). Trata-se de um conceito levado ao limite: “[...] a afirmação
ontológica de uma pluralidade irredutível” (DEWS, 1996, p. 56). “O pós-
estruturalismo estende consideravelmente o alcance do conceito de
diferença a ponto de parecer que não existe nada que não seja diferença”
(SILVA, 2004a, p. 120).
81
2.2 Constituição do Campo da Teoria do Currículo no Brasil:
breve histórico
Neste tópico, temos como objetivo demarcar os aspectos históricos
e as influências teóricas dos estudos sobre currículo, no Brasil. Para
examinar a trajetória do campo da teoria do currículo, nós nos deteremos
nas considerações de pesquisadores consolidados que se debruçaram na
área, no cenário nacional, em função de três principais períodos, a saber: a
teoria curricular tradicional, a teoria curricular crítica e a teoria curricular
pós-crítica.
A breve retomada histórica dos estudos do currículo nos ajuda a
compreendê-lo como espaço de lutas e controvérsias, animado por
questões históricas, éticas e políticas. Os currículos são tensionados
constantemente pelas demandas e exigências sociais, na apropriação de seus
códigos, e carregam uma carga ideológica que pode se conformar ao
modelo social, na incorporação da racionalidade e lógica dominantes.
Assim, vemos que o conceito de currículo já adquiriu diversas definições,
modificando-se conforme o contexto histórico.
A área de estudos curriculares, no Brasil, é considerada recente e
tem como marco inicial os anos de 1920 (MOREIRA, 1995). Quanto aos
principais aspectos históricos, Rosa Fátima de Souza (2013) observa que o
campo nasce com o movimento escolanovista, no início do século XX, e
se consolida com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
(INEP), criado em 1938. Dentre outros aspectos, Souza acentua a
publicação da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, em 1944, e, em
1955, a publicação do primeiro livro brasileiro sobre currículo, Introdução
ao Estudo da Escola Primária, de João Roberto Moreira. No final dos anos
de 1970 e início da década de 1980, outro marco importante para o
desenvolvimento do campo foi a inserção da discussão, no âmbito do
82
ensino superior, com a introdução da disciplina Currículos e Programas,
nos cursos de Pedagogia/Faculdades de Educação, a partir da Reforma
Universitária (Lei 5.540/68), fazendo com que o campo tomasse mais
corpo.
Na década de 1990, considera-se a consolidação dos estudos do
currículo, em decorrência da produção dos Programas de Pós-Graduação
e com o GT-Currículo da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Educação ANPed, que resultou em uma maior circulação
e publicação de livros e periódicos, entre outros. Atualmente, o campo de
estudos concentra-se na Pós-Graduação (SOUZA, 2013). No âmbito da
produção acadêmica, a obra Currículos e Programas no Brasil, de Antonio
Flavio Moreira (1995), representa um marco do avanço na produção na
área de currículo, no Brasil, em que o autor diagnosticou a emergência e o
desenvolvimento do campo, no início dos anos 1990.
No que se refere ao campo teórico, a teoria curricular, sob o
enfoque tradicional, perdurou dos anos de 1920 até por volta dos anos de
1980, no país. Teve respaldo no referencial positivista e funcional, de
caráter técnico e instrumental, caracterizado pela transferência
instrumental das teorizações americanas. O campo associou-se aos
interesses voltados para formação do trabalhador e à consequente
massificação da escolarização, atendendo às demandas da industrialização
e da urbanização. Através do currículo, buscava-se a racionalização dos
processos educativos, com base nos preceitos da administração, a partir da
organização racional dos tempos e espaços. Com base nos princípios de
racionalidade e eficiência, o currículo centra-se no planejamento e
organização das atividades, em função de bases científicas, voltado para a
adequação de métodos educacionais, visando ao controle dos processos
educativos.
83
No final da década de 1970, começam a emergir no Brasil
perspectivas críticas, de viés marxista, sob a influência das teorias da
reprodução e das abordagens sociológicas, desenvolvidas nos Estados
Unidos e na Inglaterra. A teoria crítica contesta radicalmente o viés
tecnicista e denuncia a escola enquanto instituição reprodutora das
estruturas sociais injustas e desiguais. O currículo é compreendido como
veículo de disseminação da ideologia dominante. O pensamento crítico
ganha a cena no país e se torna o quadro hegemônico dos estudos
curriculares, até meados da década de 1990.
Na década de 1990, assiste-se à abertura do campo da teoria
curricular para influências teóricas pós-críticas, nas quais novas questões
são colocadas. A crítica enfatiza o quanto a escola, a partir de um modelo
universalista e eurocêntrico, oprimiu e segregou grupos sociais. São
correntes céticas em relação ao projeto moderno e seus princípios, sob a
perspectiva do contingente e do descontínuo, buscando abarcar as
subjetividades plurais, rompendo com as noções de sujeito racional e
emancipação aclamadas pelas teorias críticas. Assim, o currículo passa a
enfatizar discursos sobre a promoção da diferença e das linguagens
particulares, no intuito de reconhecer e dar voz às minorias silenciadas,
com vistas à construção de identidades e subjetividades.
84
2.2.1 Teoria Curricular Tradicional
A educação é um processo que consiste em modificar os
padrões de comportamento das pessoas
(TYLER, 1983, p. 05).
O campo da teoria curricular, enquanto objeto específico de
estudos, é considerado recente, emerge nos anos 1920, nos Estados
Unidos. Está associado à massificação da escolarização, atrelada à
industrialização, à urbanização e aos movimentos imigratórios.
Influenciado pela organização da indústria, o currículo tornou-se um
campo de trabalho sistemático na educação, como difusor do
conhecimento técnico para o desenvolvimento das forças produtivas.
A escola passa a ser considerada o local ideal para disseminar os
interesses e ideais da industrialização e do desenvolvimento tecnológico.
Assim, com base em um positivismo pedagógico, investe-se na eficiência
da escola, com o objetivo de socializar os alunos nos padrões da sociedade
industrial, preparar para a vida adulta, ativa economicamente. Desse
modo, a escola se insere como propagadora dos ritmos do relógio com
vistas ao trabalho, no tempo racionalizado.
O currículo, por sua vez, visa à racionalização dos processos
educativos, com base nos preceitos da administração, predominantes no
século XX, de modo que os tornassem funcionais, a partir de uma
organização racional dos tempos e espaços. O currículo passa a ser
basicamente científico, estruturado e organizado com base na lógica
cartesiana de compartimentalização e fragmentação, processual e
sistematizado, com foco no planejamento e no cumprimento do programa.
85
Como pontua William Pinar (2016), em tal concepção, os esforços
se voltaram para estruturar o currículo com a vida social, como preparação
para a vida adulta e, no caso, sua estreita relação com as atividades e
expectativas econômicas, tendo o indivíduo como motor da economia. No
mesmo sentido, Alice Lopes e Elizabeth Macedo (2010) reiteram que o
currículo, nessa vertente, se baseia nos preceitos de eficiência e eficácia,
voltado para as atividades laborais. A ideia é a de que a escola, através do
currículo, deveria formar o trabalhador, incutindo valores de interesse
mercantil. A prioridade se direciona ao planejamento, à avaliação e à
especialização do trabalho, que imprimiam maior controle e eficiência no
trabalho educativo.
Tomaz Tadeu da Silva (2004a), ao discorrer sobre as principais
influências teóricas desse período, destaca Franklin Bobbit e John Dewey.
Como sustentação dos ares tecnicistas do período, Bobbit defendia uma
formação voltada para o trabalhador especializado, enfatizando que a
escola deveria funcionar como uma empresa, resumindo-se a uma questão
de técnica e de organização. Sua concepção de currículo acompanha o
movimento de administração científica da indústria, aplicando seus
princípios à escola. A ideia de escola se vincula à fábrica, a partir de uma
visão técnica e burocrática. O currículo é tido como instrumento de
natureza administrativo-pedagógica, para maximizar o controle sobre o
conhecimento e sobre os atores escolares:
[...] o currículo é visto como um processo de racionalização de
resultados educacionais, cuidadosa e rigorosamente especificados e
medidos. O modelo institucional dessa concepção de currículo é a
fábrica. Sua inspiração ‘teórica’ é a ‘administração científica’ de Taylor.
No modelo de currículo de Bobbitt, os estudantes devem ser
processados como um produto fabril. No discurso curricular de
Bobbitt, pois, o currículo é supostamente isso: a especificação precisa
86
de objetivos, procedimentos e métodos para a obtenção de resultados
que possam ser mensurados (SILVA, 2004a, p. 12).
O emprego dessa racionalidade no currículo teve sua expressão
máxima com Ralph Tyler, na década de 1940, nos Estados Unidos, que
consolidou as ideias de Bobbit, com a publicação, em 1949, da obra Basic
principles of curriculum and instruccion, que influenciou o campo de
estudos educacionais em diversos países, como no Brasil. Aqui, teve seu
revigoramento, em função de uma vertente tecnicista de educação, com a
tradução da obra de Tyler, Princípios Básicos de Currículo e Ensino, em
1974. Lopes e Macedo (2011, p. 43) destacam a proporção que essa
abordagem tomou, de modo que, “[...] no Brasil, até meados dos anos
1980, praticamente todas as propostas curriculares são elaboradas segundo
Tyler”, a qual é amplamente conhecida e divulgada em diversos países.
Ainda podemos observar que a racionalidade tyleriana tem sido utilizada
na formulação de currículos, a despeito de suas matrizes teóricas.
Na perspectiva de Tyler, a partir de bases racionais, o currículo tem
o caráter prescritivo, que opera na classificação e na especificação dos
objetivos educacionais, na definição de metas e estabelecimento de
métodos para alcançá-los de maneira eficaz, visando ao máximo de
resultados com o mínimo de dispêndio. O conhecimento é tido como algo
neutro, pronto para ser desvelado, desde que utilizado um bom método.
Dessa forma, tem o planejamento como fator decisivo da qualidade do
ensino. Sua concepção de educação é circunscrita por um enfoque técnico,
o qual salienta aspectos mecânicos e comportamentais:
A educação é um processo que consiste em modificar os padrões de
comportamento das pessoas [...]. Quando a educação é considerada
desse ponto de vista, torna-se claro que os objetivos educacionais
87
representam os tipos de mudança de comportamento que uma
instituição se esforça por suscitar nos seus alunos (TYLER, 1983, p.
05).
Pautado em um positivismo pedagógico, de base racional, Tyler
pensa em um programa educacional de caráter utilitário e pragmático,
como um programa de treinamento voltado para a resolução de problemas
práticos. É preciso o estabelecimento de critérios para a elaboração de um
plano de ensino eficaz, definindo os objetivos, conteúdos, orientações
didáticas e critérios de avaliação. A elaboração do currículo deve ficar a
cargo de especialistas, de maneira que o papel do professor se limita a sua
implementação.
A obra Princípios básicos de currículo e ensino reitera os elementos
centrais dos estudos sobre currículo como uma questão técnica: de
organização, desenvolvimento e foco nos resultados. Sua obra é dividida
em cinco capítulos e, em cada um deles, Tyler expõe os métodos
necessários para se alcançar êxito nas questões fundamentais para a
elaboração de um bom currículo. Nela, apresenta uma seqncia de
procedimentos para o planejamento, organização e avaliação do currículo.
As questões norteadoras são: definição dos objetivos, seleção das
experiências de aprendizagem, organização dessas experiências e avaliação.
É interessante notar que os passos propostos por Tyler subscrevem uma
visão técnico-linear do processo educacional. Na apresentação da obra,
Tyler sustenta:
Este livro apresenta, em linhas gerais, um modo de encarar um
programa de ensino como instrumento eficiente de educação. A base
racional aqui desenvolvida começa por identificar quatro questões
fundamentais que devem ser respondidas quando se desenvolve
qualquer currículo e plano de ensino. Ei-las aqui:
88
1. Que objetivos educacionais a escola deve procurar atingir?
2. Que experiências educacionais podem ser oferecidas que tenham
probabilidade de alcançar esses propósitos?
3. Como organizar eficientemente essas experiências educacionais?
4. Como podemos ter certeza de que esses objetivos estão sendo
alcançados?
Este livro sugere métodos para estudar as questões acima. [...] Em lugar
de responder às questões, são explicados os procedimentos pelos quais
é possível respondê-las. Isso constitui uma base racional para o exame
dos problemas do currículo e ensino (TYLER, 1983, p. 01).
Tyler compartimentaliza e submete os saberes aos padrões
científicos, com base em sua utilidade, o que inclui o saber filosófico.
Assim, para ele, por exemplo, é importante ter clareza sobre a utilidade da
filosofia, no [...] uso da filosofia na seleção dos objetivos” (TYLER, 1983,
p. 30): “[...] uma filosofia educacional indicaria, em linhas gerais, os
valores que são considerados essenciais a uma vida satisfatória e eficaz.
(TYLER, 1983, p. 31). A psicologia segue a mesma lógica: “[...] a
psicologia da aprendizagem nos dá alguma noção do tempo requerido para
alcançar-se um objetivo e dos níveis etários em que esse trabalho será mais
eficiente” (TYLER, 1983, p. 35).
Outro aspecto da racionalidade tyleriana, com inúmeros
desdobramentos, é a articulação que realiza entre o currículo e a avaliação.
A eficiência do currículo passa a ser medida pela avaliação de rendimento
dos alunos, enquanto o objetivo passa a ser mensurado pela nota e não pela
aprendizagem (LOPES; MACEDO, 2011). Sob essa orientação, com foco
nos resultados quantitativos, começaram a se disseminar testes
padronizados, a fim de mensurar e quantificar os resultados educacionais
em bases científicas. Pinar (2016) também alude às implicações da
89
articulação dos objetivos da avaliação pressupostos por Tyler, que “[...]
ligou objetivos a avaliação e, ao fazê-lo, relançou o ensino como
implementação. Esse rebaixamento simples, mas devastador, erradica a
liberdade acadêmica intelectual, um pré-requisito indispensável para o
ensino” (PINAR, 2016, p. 43).
Nessa concepção, o currículo remete à ação de planejar, se volta
para o planejamento mais adequado, para o melhor método ou modelo e
não se articula a objetivos mais amplos. A ação pedagógica é reduzida, em
termos comportamentais e pragmáticos. Não problematiza, por exemplo,
questões externas à escola, como os sistemas de ensino, o direito à
educação, a organização social como um todo, entre outras. Nessa
perspectiva, “[...] admitindo-se o caráter científico de sua elaboração, os
insucessos são, com frequência, descritos como problemas de
implementação e recaem sobre as escolas e os docentes” (LOPES;
MACEDO, 2011, p. 26). Conforme Tomaz Tadeu, “[...] as teorias
tradicionais pretendem ser apenas isso: ‘teorias’ neutras, científicas,
desinteressadas [...] ao aceitar mais facilmente o status quo, os
conhecimentos e os saberes dominantes, acabam por se concentrar em
questões técnicas” (SILVA, 2004a, p. 16). Em suma, na teoria curricular
tradicional, o currículo é tido como instrumento de natureza
administrativo-pedagógica, destinado a maximizar o controle sobre o
conhecimento e sobre os atores escolares.
90
2.2.2 Teoria Curricular Crítica
O sistema escolar representa um espaço social [...] onde
estudantes de diferentes classes aprendem as necessárias
habilidades para ocupar seus lugares em suas classes sociais
específicas, correspondentes à divisão ocupacional do trabalho
(GIROUX, 1983, p. 36).
No final da década de 1960 e início da década de 1970, o campo
de estudos do currículo começa a sofrer uma série de críticas, que
resultaram em uma reviravolta em direção a uma perspectiva mais crítica,
capaz de ensejar seu domínio político. Tais abordagens denunciavam as
contradições do contexto social e político e sua relação com a educação
que, até então, negligenciava fatores estruturais e ideológicos.
Em outras palavras, passam a criticar o papel da escola e do
conhecimento enquanto instrumentos ideológicos para controle social, na
manutenção da estrutura social estratificada, como instituição difusora de
seus interesses, na legitimação de determinada visão de mundo e de grupo
social. Entende-se que a organização do trabalho pedagógico é
determinada “[...] pelos interesses e discursos dominantes, que fornecem a
legitimação ideológica para promover práticas hegemônicas de sala de
aula” (GIROUX, 1992, p. 64). Assim, procuravam demonstrar o quanto
a organização das experiências escolares se voltava para atender às
demandas de formação do trabalhador, incutindo os valores da sociedade
capitalista. As questões que tomaram corpo perpassavam em torno de
certas temáticas, como desigualdade e justiça social, educação e ideologia,
papel reprodutor da escola, entre outros.
No movimento de contestação do pensamento e da estrutura
educacional de cunho tecnicista, passou-se a problematizar o campo do
91
currículo e a questionar suas relações com o contexto social e as estruturas
de poder. A partir do questionamento das abordagens técnicas e
burocráticas do currículo, iniciou-se um movimento de rejeição dos
pressupostos tradicionais e das concepções instrumentais, ao se explicitar
o quanto os currículos tradicionais estavam desconectados com a realidade,
ocultando as contradições, as relações de poder e as desigualdades sociais.
Na perspectiva tradicional, “[...] foi empalidecida qualquer
tentativa de refletir sobre o desenvolvimento histórico, a seleção, o uso e a
legitimação daquilo que a escola definiu como conhecimento ‘real
(GIROUX, 1983, p. 32); ademais, “[...] não há menção de como tal
conhecimento é selecionado, quais interesses representa” (GIROUX,
1992, p. 61). Nesse sentido, propôs-se pensar o currículo para além da
prescrição, voltado para os problemas sociais, econômicos e políticos da
realidade. As bases marxistas da educação, ao elucidar os vínculos entre
educação e ideologia e os aspectos ideológicos subjacentes aos processos
educacionais, passam a ser utilizadas como chaves para as teorizações sobre
o currículo.
A teoria curricular crítica emerge no Brasil, no final da década de
1970, com a Nova Sociologia da Educação, em especial, sob influência das
teorias da reprodução e das abordagens sociológicas desenvolvidas nos
Estados Unidos e na Inglaterra, momento em que há um esforço para a
integração do pensamento curricular brasileiro e a produção internacional.
A tradução dos textos de Henry Giroux e Michael Apple se inserem como
importantes influências teóricas, no país. Nesse período, no cenário
nacional, as obras de Paulo Freire ganham destaque. O pensamento crítico
se torna o quadro hegemônico dos estudos curriculares, o que predominou
até meados da década de 1990. As vertentes que mais se destacam são a
pedagogia histórico-crítica e a pedagogia do oprimido.
92
No âmbito da nova sociologia da educação, as teorias da
reprodução passam a reivindicar uma nova forma de teorização que
questionasse as bases teóricas e as práticas estabelecidas na escola, com o
intuito de desvelar os mecanismos de dominação e opressão interiorizados
nas práticas escolares. Conforme tais teorias, a escola é entendida enquanto
instituição que opera na reprodução da hegemonia dos grupos dominantes
e na manutenção de seus privilégios. Ou seja, as análises dos reprodutivistas
articulam a dominação econômica com as questões culturais e destacam o
papel reprodutivo da escola: a escola opera a partir de mecanismos de
dominação, na manutenção das desigualdades sociais, como instituição
legitimadora dos interesses da classe dominante.
Assim, buscam compreender o funcionamento da escola e o
quanto seus recursos materiais e ideológicos atuam no favorecimento das
práticas sociais dominantes, como instituição que reproduz o status quo.
Para eles, a ação pedagógica opera no plano da violência simbólica, de sorte
que o capital cultural é distribuído de maneira desigual. O currículo,
enquanto processo social, é o instrumento que opera na reprodução
simbólica e material das desigualdades e não se direciona apenas ao espaço
da sala de aula, mas se estende à estrutura econômica da sociedade. Logo,
escola e currículo são tidos como instrumentos de controle social. Vale
destacar que as teorias da reprodução não acreditam nas possibilidades de
transformação da sociedade capitalista, por isso, consideradas teorias
crítico-reprodutivistas.
Ainda como modelo crítico de natureza sociológica, a agenda
reconceptualista ganhou força, na década de 1980, com a tradução das
obras Ideologia e Currículo, de Michel Apple (1982), e Pedagogia Radical,
de Henry Giroux (1983)
Com ênfase nos conceitos de resistência e emancipação e com
notória influência no cenário nacional, destacam-se os trabalhos de Henry
93
Giroux. Inspirado pelos modelos críticos de natureza sociológica, é
defensor de uma pedagogia radical, contra-hegemônica, que vise à
emancipação, procurando formular uma teoria crítica da escolarização.
Fundamenta sua proposta pedagógica nos teóricos da Escola de Frankfurt,
especificamente, na crítica social e cultural formulada Adorno,
Horkheimer e Marcuse. Giroux irá tematizar sobre o potencial
emancipatório da escola e o investimento da construção de um currículo
contra-hegemônico. Tendo como pano de fundo as análises dos teóricos
da reprodução, de que a escola é tida como difusora de valores subjacentes
à divisão social do trabalho, Giroux defende que é possível criar
mecanismos de resistência às formas de dominação e submissão, ou seja,
que há possibilidades de resistência, a partir do pensamento reflexivo e da
consciência crítica.
Com efeito, a escola é tida como o espaço para a tomada de
consciência sobre as contradições sociais e as relações de poder e controle
estabelecidas socialmente, enquanto o currículo é concebido como o
instrumento potencial para produção de resistência, não só de reprodução.
Assim, os conceitos de resistência e emancipação tornam-se centrais para o
processo pedagógico. Por essa via, ao questionar a formação social
dominante, o trabalho na escola deve estar relacionado com a realidade
social mais ampla e desempenhar um papel contra-hegemônico, e o
professor atuar como intelectual transformador. O planejamento, nesse
sentido, deve ter um papel contra-hegemônico.
Destarte, a proposta pedagógica de Giroux se coloca para além das
teorias da reprodução, fato que dará contornos mais delineados ao
currículo, conforme o próprio autor pontua:
[...] a base para uma nova sociologia da educação e do currículo deverá
derivar de uma compreensão teoricamente refinada a respeito da forma
94
como o poder, a estrutura e a ação humana funcionam para reproduzir
não só a lógica da dominação, mas também o cálculo da mediação, da
resistência e da luta social. Não há outra resposta ou projeto que se
possa seguir. Aquilo de que mais necessitamos é combinar esperança
com árdua prática e trabalho intelectual; trabalho e prática que, nas
palavras já citadas de Walter Benjamin, ‘devem escovar a história em
sentido contrário à sua trama (GIROUX, 1983, p. 56).
À vista disso, a “pedagogia crítica radical” de Henry Giroux se volta
para a construção de uma proposta educacional crítica, a qual almeja travar
movimentos de resistência e de luta contra-hegemônica, no interior da
escola, com acento no potencial transformador e compromisso com a
emancipação:
Quero enfatizar que acredito ser necessário reconsiderar e reconstruir a
escola como esfera pública democrática, onde os estudantes aprendam
as habilidades e os conhecimentos de que precisam para viver e lutar
por uma sociedade democrática viável. Dentro dessa perspectiva, a
escola deverá ser caracterizada por uma pedagogia que demonstre seu
compromisso em levar em conta as concepções e os problemas que
afetam profundamente os estudantes em suas vidas diárias. Igualmente
importante é a necessidade da escola cultivar um espírito de crítica e
um respeito pela dignidade humana que sejam capazes de associar
questões pessoais e sociais em torno do projeto pedagógico de ajudar
os alunos a se tornarem cidadão críticos e ativos (GIROUX, 1992, p.
102).
Por fim, na teoria curricular crítica, a escola é vista como um
mecanismo de manutenção das desigualdades sociais, como instituição
legitimadora dos interesses da classe dominante, e, ao mesmo tempo, como
o espaço para a tomada de consciência sobre as contradições sociais e as
95
relações de poder e controle instauradas socialmente. O currículo, por sua
vez, como instrumento potencial para a produção de resistência, não só de
reprodução.
2.2.3 Teoria pós-crítica e currículo
Na segunda metade dos anos de 1990, o campo da teoria curricular
no Brasil é marcado por múltiplas influências teóricas advindas, em
especial, da literatura francesa, e principia a incorporar enfoques da
chamada “agenda pós-moderna”, que colocam em suspensão os princípios
críticos. Logo, amplia-se o campo da teoria curricular no cenário nacional,
com forte influência do viés pós-crítico e, sobretudo, na incorporação de
enfoques pós-modernos e pós-estruturalistas. Alguns autores, como
Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Edgar
Morin, entre outros, são os que mais tiveram repercussão no período
(MOREIRA, 1998; LOPES; MACEDO, 2010; SILVA, 2004a;
PARAÍSO, 2004).
No campo do currículo, a expressão teorias pós-críticas é utilizada para
se referir às teorias que questionam os pressupostos das teorias críticas,
marcadas pelas influências do marxismo, da Escola de Frankfurt e em
alguma medida da fenomenologia, discussões em que as conexões entre
currículo, poder e ideologia são destacadas (LOPES, 2013, p. 9).
A expressão teorias pós-críticas em educação e no currículo não
apresenta um corpo conceitual coerente e unificado, porém, composto por
várias tendências. O ponto em comum é que são correntes céticas em
relação ao projeto moderno e seus princípios, sob a perspectiva do
contingente e do descontínuo, buscando abarcar as subjetividades plurais.
96
São marcadas por diversas tendências teóricas, as quais procuram atender
às demandas da incorporação teórica proposta pela “virada linguística”, no
campo cultural, tido como “[...] cenário de fluidas, irregulares e subjetivas
paisagens” (LOPES, 2013, p. 17) e que “[...] inclui os estudos pós-
estruturais, pós-coloniais, pós-modernos, pós-fundacionais e pós-
marxistas” (LOPES, 2013, p. 10), em que “[...] todos esses movimentos se
cruzam, se mesclam [...] pertencendo a uma tradição que se remete aos
pensamentos de Nietzsche, Heidegger e Derrida” (LOPES, 2013, p. 17).
Seguindo as premissas da perspectiva pós-estruturalista, em que os
processos de significação são tidos enquanto instáveis, a análise se estende
ao campo do simbólico, dos discursos e das práticas, críticas que alcançam
a reflexão pedagógica: [...] a atitude pós-estruturalista enfatiza a
indeterminação e a incerteza também em questões de conhecimento”
(SILVA, 2004a, p. 123).
Veiga-Neto e Macedo (2008), ao pesquisarem a recepção dos
conceitos de modernidade e pós-modernidade, no âmbito da teorização
curricular no espaço do GT-Currículo da ANPed, consideram a
abrangência e a imprecisão de significados que os termos carregam:
Alguns apresentam clara contraposição ao projeto da Modernidade,
geralmente caracterizada de maneira uniforme, em sua versão
cartesiana. Outros tentam incorporar as preocupações trazidas pela
pós-modernidade a um legado que trazem das teorias críticas, por vezes
considerando esse processo uma espécie de desdobramento ou mesmo
avanço de suas pesquisas, por vezes explicitando mais claramente uma
ruptura. Outros, ainda, passam ao largo da polêmica moderno x pós-
moderno, assumindo posições mais claramente pós-modernas ou
vinculando-se ao pós-estruturalismo (VEIGA-NETO; MACEDO,
2008, p. 248).
97
Dentre os principais referenciais da teorização curricular pós-
crítica, no Brasil, podemos apontar os pesquisadores Tomaz Tadeu da
Silva, Alfredo Veiga-Neto, Silvio Gallo, Sandra Mara Corazza, Antonio
Flavio Moreira, Alice Casemiro Lopes, Elizabeth Macedo, Marlucy Alves
Paraíso, Marisa Vorraber Costa, entre outros.
Com a ampliação do campo da teoria curricular, no cenário
nacional, inserem-se novas problemáticas nas produções acadêmicas, que
encontram espaço nos debates pós-estruturalistas, tais como: os processos
de desconstrução das teorias curriculares, do pensamento de Derrida; a
localização dos micropoderes no cotidiano escolar, com as noções de
Foucault; as implicações da estrutura do conhecimento para a organização
curricular e a ênfase na diferença, a partir de Deleuze e Guattari etc.
No Brasil, a perspectiva pós-estruturalista tem como marco
principal as produções do Grupo de Currículo da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), liderado por Tomaz Tadeu da Silva, que,
desde a primeira metade da década de 1990, vem produzindo
significativamente e tem notoriedade, nesse campo de investigação. Dentre
os pressupostos teórico-metodológicos orientadores do grupo, destacam-se
os Estudos Culturais, em especial Stuart Hall, além das contribuições de
Foucault, Derrida, Deleuze e Guattari.
Um dos pontos importantes para se pensar um currículo pós-
estruturalista é o questionamento das bases do projeto moderno, em
especial, aos conceitos de sujeito, razão e conhecimento. Os discursos
modernos são desestabilizados: questiona-se a noção de projeto de
transformação social e de formação de sujeitos. A razão moderna é levada
ao tribunal, “[...] falhou como esteio de um julgamento ético e político”
(VEIGA-NETO; MACEDO, 2008, p. 248), diagnóstico que
impulsionou a “guinada rumo ao discursivo”, pautado nos processos de
subjetivação. Em síntese, são marcadamente “[...] anti-essencialistas, anti-
98
objetivistas, críticos dos determinismos e valorizam a linguagem como
central na mediação da compreensão do social, substituindo as estruturas
pelo discurso e ampliando as discussões filosóficas da cultura” (LOPES,
2013, p. 17).
A crítica se volta às pretensões iluministas de formação as
concepções de totalidade, universalidade, objetividade, conhecimento
científico, razão e sujeito na suspensão das grandes cosmovisões e
deslegitimação dos metarrelatos pedagógicos modernos, que prometeram
mais justiça e liberdade. A crítica se radicaliza na recusa a qualquer
pretensão de representação conceitual, que coloca sob suspeita princípios
basilares do projeto formativo iluminista, dentre eles, o da possibilidade de
emancipação e do sujeito racional: “[...] não existe nenhum processo de
libertação que torne possível a emergência finalmente de um eu livre e
autônomo” (SILVA, 2004a, p. 150).
Para Silva (2004a), os pós-estruturalistas “[...] olham com
desconfiança para conceitos como alienação, emancipação, libertação,
autonomia, que supõem, todos, uma ausência subjetiva que foi alterada e
precisa ser restaurada” (SILVA, 2004a, p. 150). Em outras palavras, a
partir de um viés antifundacional, essa tendência “[...] acaba com qualquer
vanguardismo, qualquer certeza e qualquer pretensão de emancipação”
(SILVA, 2004a, p.116). Logo, “[...] são desestabilizados os projetos de
formação de um sujeito emancipado e consciente, capaz de dirigir a
transformação social” (LOPES, 2013, p. 18), uma vez que “[...] o existe
sujeito a não ser como o simples e puro resultado de um processo de
produção cultural e social” (SILVA, 2004a, p. 120).
Assim, o currículo é considerado o espaço de crítica à lógica
moderna, suas centralidades, hierarquias e verdades. Dá lugar ao múltiplo,
como prática de significação: “[...] se os percursos exigem outros traçados,
os currículos envolvem tranversalizações que abandonam fronteiras
99
disciplinares em sua forma de organização, em seus desenhos” (MAUÉS,
2004, p. 8).
Não há a noção de um sujeito, porém, a defesa da subjetividade
fragmentada (LOPES; MACEDO, 2010; SILVA, 2004a). Como destaca
Tomaz Tadeu, faz-se necessário “[...] questionar a concepção de sujeito
autônomo, racional, centrado, unitário na qual se baseia todo o
empreendimento pedagógico e curricular, denunciando-a como resultado
de uma construção histórica muito particular” (SILVA, 2004a, p. 124). O
sujeito é constituído pela linguagem e convive com a provisoriedade da
multiplicidade de discursos e realidades constituídas por tais discursos
noção de descentramento do sujeito, de Derrida: “[...] o sujeito é uma
ficção”, “[...] não é o centro da ação social. Ele não pensa, fala e produz:
ele é pensado, falado e produzido” (SILVA, 2004a, p. 113-114).
Com efeito, a incorporação do pós-estruturalismo se dá na
liquidação dos parâmetros racionais de critérios universais, e a realidade é
concebida por processos linguísticos e discursivos, com ênfase nos
processos de subjetivação, na linguagem e no elogio à diferença. O
currículo volta-se para a valorização da experiência individual, do
conhecimento particular e da realidade cotidiana. No mesmo sentido,
amplia-se o debate para além do econômico, enfatizando-se as narrativas
parciais e as discussões sobre as minorias, tais como gênero, etnia e
sexualidade. As temáticas sobre diferença, alteridade, subjetividade,
gênero, cultura são temas que ganharam visibilidade (SILVA, 2004a).
Tomaz Tadeu da Silva (2004a) considera o pós-estruturalismo
como predominante na análise social e cultural e, a partir da adoção
explícita dessa vertente, ensaia o que seria um currículo com base nesse
viés. Segundo ele, não é possível descrever uma teoria pós-estruturalista do
currículo, mas uma “atitude pós-estruturalista”, uma vez que o conceito de
teoria deve ser substituído, deve ser pensado enquanto discursos, enquanto
100
noções particulares. Ou seja, os discursos sobre o currículo produzem nada
mais que noções particulares sobre o currículo, pois os processos de
significação são tidos como instáveis e indeterminados. O currículo é
tomado como a cultura, um campo de conflitos e disputas de poder em
torno da produção de significados. Para Silva, o currículo é uma prática de
significação, resultado das relações de poder estabelecidas, em meio ao jogo
das diferenças, à construção de subjetividades, à entrada em territórios não
demarcados.
As implicações da “virada linguística” na teorização curricular são
inúmeras e, como bem enfatizado por Tomaz Tadeu da Silva, trata-se de
uma perspectiva que rompe por completo com as concepções anteriores,
tradicional e crítica. Além disso, conforme o autor, por mais que as teorias
críticas e pós-críticas se aproximem, por possuírem algumas afinidades
temáticas, na desconfiança frente às promessas consolidadas na
modernidade, suas dissonâncias são claras, com barreiras intransponíveis.
O autor prossegue na radicalização de tais dissonâncias, ao circunscrever
que “[...] a pedagogia tradicional e a pedagogia crítica acabam convergindo
em uma genealogia moderna” (SILVA, 2004a, p. 115), pois em ambas
“[...] está a mesma vontade de domínio e controle da epistemologia
moderna” (SILVA, 2004a, p. 115).
Nota-se, nos trechos a seguir, a clareza do autor, ao endossar os
aspectos mais radicais de divergências entre as concepções críticas e pós-
críticas, em suas pretensões:
[...] embora as teorias críticas sustentassem que o currículo é uma
invenção social, elas ainda mantinham uma certa noção realista de
currículo. Se a ideologia cedesse lugar ao verdadeiro conhecimento, o
currículo e a sociedade seriam finalmente emancipados e libertados
[...]. Com sua ênfase pós-estruturalista na linguagem e nos processos
101
de significação, as teorias pós-críticas já não precisam da referência de
um conhecimento verdadeiro baseado num suposto “real” para
submeter à crítica o conhecimento socialmente construído do currículo
(SILVA, 2004a, p. 149).
Nesse sentido, significa dizer que,[...] no limite, para a
perspectiva pós-estruturalista, é o próprio projeto de uma perspectiva
crítica sobre currículo que é colocado em questão” (SILVA, 2004a, p.
124). Isto é,
[...] é a própria teoria crítica do currículo que é colocada sob suspeita.
A teorização crítica da educação e do currículo segue, em linhas gerais,
os princípios da grande narrativa da modernidade. A teorização crítica
é ainda dependente do universalismo, do essencialismo e do
fundacionismo do pensamento moderno. A teorização crítica do
currículo não existiria sem o pressuposto de um sujeito que, através de
um currículo crítico, se tornaria, finalmente, emancipado e libertado.
O pós-modernismo desconfia profundamente dos impulsos
emancipadores e libertadores da teoria crítica (SILVA, 2004a, p. 115).
Por sua vez, o currículo, na matriz crítica, é concebido como um
modo de controle e de negação/negligência da diferença:
Se, nas pedagogias marxistas, constrói-se um sentido de planejamento
diverso do hegemônico na teoria curricular, nas discussões pós-
modernas e pós-estruturais talvez seja mesmo impossível pensar em
planejamento. Ou, pelo menos, como atividade que prevê e produz um
resultado aprendizagem, emancipação que lhe é externo (LOPES;
MACEDO, 2011, p. 66).
102
Por fim, na teoria pós-crítica do currículo, o currículo é
considerado o espaço de crítica à lógica moderna, suas centralidades,
hierarquias e verdades; critica-se a noção de sujeito e se defende a
subjetividade fragmentada. O currículo volta-se para a valorização da
experiência individual, do conhecimento particular e da realidade
cotidiana, com ênfase nas narrativas parciais e nas discussões sobre as
minorias.
103
Capítulo III
Teoria Pós-Crítica e Currículo:
Análise da Receão no Brasil
Neste capítulo, temos como propósito problematizar, analisar e
debater a recepção do pensamento pós-crítico, no campo do currículo.
Nosso objetivo consiste em compreender o campo de problematização
filosófico-educacional acerca da teoria crítica e pós-crítica, em especial, no
que se refere ao tema da diferença, presente no debate sobre o currículo.
Entendemos que a reflexão sobre o currículo se constitui como um modo
conceitual de aproximar-se dos problemas filosófico-educativos.
Para isso, abordaremos pontos de destaque quanto à incorporação
da perspectiva pós-estruturalista nas produções sobre currículo, no cenário
nacional, tendo em vista sua hegemonia, nos últimos anos. No primeiro
momento, analisaremos as produções em currículo sob o aporte teórico
pós-estruturalista, os “currículos pós-críticos”, denominados “pós-
currículos”: os “currículos como modos de subjetivação”, “currículo da
diferença pura”, “currículos rizomáticos”, “currículos nômades”,
“currículos-mapa”, entre outros, demarcando os aspectos marcantes dessa
perspectiva, no debate educativo, sobretudo nas propostas que enfatizam a
temática da diferença.
Na sequência, por fim, pretendemos problematizar as contradições
marcadamente presentes do campo do currículo, à luz das referências da
Teoria Crítica, pela mobilização da temática da diferença a partir de
104
categorias dialéticas, a saber: conceito, sujeito, universalidade, progresso,
entre outras, buscando um olhar crítico sobre as influências teóricas.
A análise será pautada em produções nacionais de pesquisadores da
área da teorização curricular, atualmente, sob a influência da tendência
pós-crítica. Utilizaremos como fontes artigos científicos publicados em
periódicos da área de educação, capítulos de livros e obras completas. A
seleção das obras orientou-se por representantes de grupos de pesquisa já
consolidados sobre a temática.
O debate sobre os fundamentos teóricos curriculares críticos e pós-
críticos alude a princípios que sustentam projetos sociais, os quais
repercutem na educação e incidem diretamente sobre os projetos
formativos. Promover tal debate torna-se tarefa relevante para o campo da
teorização curricular, como salientam Pacheco e Sousa (2016):
[...] escrever sobre a teorização crítica e pós-crítica é sempre algo de
pertinente, mais ainda quando a sociedade, onde estão mergulhadas as
escolas, com os seus projetos de currículo orientados tendencialmente
para a aprendizagem, necessita de ser repensada, sobretudo no modo
como as políticas neoliberais impõem lógicas que anulam o currículo
como projeto de educação (PACHECO; SOUSA, 2016, p. 67).
Como vimos no capítulo anterior, as teorizações e pesquisas da
agenda “pós-moderna” ou “pós-crítica”, no Brasil, se voltaram para o
campo do currículo escolar, sobretudo, do final da década de 1990 até os
dias atuais (MOREIRA, 1998; LOPES; MACEDO, 2010; SILVA, 2004a;
PARAÍSO, 2004; MORAES, 2004), quando houve uma “[...] virada
teórica para o pós-estruturalismo” (LOPES; MACEDO, 2010, p. 14), um
“[...] movimento de hegemonização dos estudos de corte pós-crítico no
campo da produção científica em currículo” (THIESEN, 2015, p. 641), e
105
suas implicações merecem ser examinadas, o que pretendemos, neste
capítulo.
Para o pós-estruturalismo, a sociedade é concebida como um devir
de forças, caótico, sem ordem, carente de sentido, sem telos, sem horizonte.
É um jogo social, e a regra é a não submissão a qualquer fundamento. Os
jogos são os da desconstrução infinita dos discursos, da desterrito-
rialização, entre outros. Com isso, tornam-se salientes alguns
questionamentos: como compreender uma teoria social sem horizonte?
Como conceber o pensamento sem fundamento? Como “[...] aventurar-
se, sem bússola, pelos mares da multiplicidade dos saberes”? (GALLO,
2009, p. 25). Como “[...] excluir a coerência de um mundo pensado, do
sujeito pensante e de qualquer fiador universal”? (CORAZZA, 2006, p.
19). Quais as possibilidades de pensamento, confrontação e resistência?
Estes são alguns dos confrontos que pretendemos trazer, em nossa análise.
3.1 Pós-Estruturalismo e Currículo: a Recepção no Brasil
Os textos que aqui analisaremos são de diferentes grupos de
pesquisas já consolidados, no Brasil, que tratam da teoria educacional
curricular pós-crítica. Observamos que os pesquisadores que compõem
esse quadro se tornaram pioneiros na área, de forma que outros grupos de
pesquisas surgidos posteriormente se assemelham no debate e referenciais
adotados. Nosso intuito é travar o debate, a partir dessas vozes, as quais
respaldam a teoria do currículo, no Brasil, sob o enfoque hegemônico do
pós-estruturalismo. o buscamos esgotar o assunto com uma análise
quantitativa ou mesmo o estado da arte da área, contudo, almejamos
promover e problematizar o debate acerca da recepção do pensamento pós-
crítico, no país.
106
Para tanto, nossa exposição segue na análise dos textos de teóricos
curriculistas que respaldam suas pesquisas no pensamento pós-crítico.
Selecionamos os textos de Tomaz Tadeu da Silva, Sandra Mara Corazza,
Marlucy Alves Paraíso, Alfredo Veiga-Neto, Antonio Flavio Moreira, Alice
Casemiro Lopes e Elizabeth Macedo.
Em todos esses trabalhos, podemos colocar como aspecto comum
a diferença, enquanto crítica da identidade e dos processos identificatórios
que a enquadram em suas infinitas normatizações. A ideia de diferença é
radicalizada, remete a algo que não se fixa, que não se submete à
identidade. A diferença aparece, nesse sentido, como indeterminação e
rebeldia, um modo de subversão aos saberes postos, quebra com as noções
de estabilidade, substituídas pelo instável, pelo incerto, a diferença como
transgressora da ordem para dar voz à multiplicidade das identidades.
“Suas produções e invenções têm pensado currículos que apontam para a
abertura, a transgressão, a subversão, a multiplicação de sentidos, a
diferença e a invenção” (PARAÍSO, 2005, p. 71). Em resumo, a noção de
diferença sob o ponto de vista pós-estruturalista, se reveste por
pressupostos antiuniversalistas, uma diferença sem fundamento,
pautando-se no perspectivismo cultural e na transgressão.
Caminhos rizomáticos esse é um dos termos muito presentes nos
debates sobre currículo, nos dias atuais, já que os diferentes estudos pós-
críticos do currículo “[...] fazem rizoma em sua heterogeneidade”
(PARAÍSO, 2005, p. 79). O conceito de rizoma é um termo da botânica,
que significa uma espécie de raiz; são ramificações de plantas que não se
direcionam a partir de uma base, como as árvores. Assim, os rizomas
seguem sem uma direção prévia. No campo da filosofia, a imagem do
rizoma é utilizada por Deleuze e Guattari, para exemplificar um sistema
filosófico aberto, não mais ancorado por conceitos, mas num devir caótico
107
estabelecido na heterogeneidade, na multiplicidade, sem eixo, sem direção,
na ordem das experimentações:
O que Guattari e eu chamamos rizoma é precisamente um caso de
sistema aberto. Volto à questão: o que é filosofia? Porque a resposta a
essa questão deveria ser muito simples. Todo mundo sabe que a
filosofia se ocupa de conceitos. Um sistema é um conjunto de
conceitos. Um sistema aberto é quando os conceitos são relacionados
a circunstâncias e não mais a essências. Mas por um lado os conceitos
não são dados prontos, eles não preexistem: é preciso inventar, criar os
conceitos, e há aí tanta invenção e criação quanto na arte ou na ciência
(DELEUZE, 1991, p. 23).
O currículo, sob essa perspectiva, é tomado como lugar de diversas
vozes, em que é possível estabelecer relações de assimetria, um currículo
que cria sujeitos, livre de prescrições, enquanto prática de subjetivação, que
“[...] prefere a diferença em si, a variação, a multiplicação, a disseminação
e a proliferação” (PARAÍSO, 2010, p. 588). No currículo como modo de
subjetivação (CORAZZA, 2002), “[...] o processo de produção de
conhecimento pode ser imaginado como rizoma, que requer criatividade e
invenção e que pode ser confeccionado por linhas não lineares” (MAUÉS,
2004, p. 7), que se “[...] prolifera e estende-se para os modos de
subjetivação” (PARAÍSO, 2005, p. 76). Conforme veremos, nas
perspectivas pós-críticas de currículo, os caminhos rizomáticos são
recorrentes, utilizados como opção metodológica para a promoção da
diferença.
108
3.1.1 A questão da identidade e da diferença: caminhos rizomáticos
Com a recusa sistemática das categorias iluministas, dentre as quais
as concepções de razão, sujeito e conhecimento científico, o debate sobre
identidade e diferença tem adquirido maior importância. Observa-se a
valorização da diversidade, de sorte que os discursos sobre o
reconhecimento da diferença, da pluralidade e das linguagens particulares
ganham a cena e se colocam como inevitáveis, no campo da educação, na
emergência de uma formação que valorize e amplie a heterogeneidade,
rompendo com os discursos opressores produzidos pelos vínculos entre
conhecimento e poder.
Desse modo, percebemos que a bandeira do respeito ao pluralismo
das identidades e à diversidade cultural influenciaram tanto os
fundamentos teóricos da teoria curricular quanto o campo das políticas
educativas curriculares, no cenário nacional. A base de sustentação desse
cenário é a compreensão de que as questões culturais estão intimamente
vinculadas às questões de poder, e que se deve dar voz às minorias
oprimidas e recusar as culturas sob a “[...] expressão do privilégio da cultura
branca, masculina, europeia, heterossexual” (SILVA, 2004a, p. 88).
Tomaz Tadeu da Silva, professor da Faculdade de Educação da
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenador do
grupo de pesquisa “DIF - artistagens, fabulações, variações”, grupo que
investe no trabalho com as filosofias da diferença e educação, é considerado
um dos pesquisadores pioneiros que recepcionou as tendências pós-críticas
no currículo, no Brasil. Em diversos momentos de suas produções
acadêmicas, discorre sobre o tema da diferença, o qual, de maneira direta
ou indireta, perpassa suas reflexões, uma vez que adota a filosofia da
diferença em suas investigações. Busca problematizar o currículo, levando
em conta a noção empregada pelas filosofias da diferença: “[...] como seria
109
uma teoria do currículo que levasse em conta a noção de diferença tal como
desenvolvida pelas diferentes filosofias da diferença?”
Para Tomaz Tadeu, pensar a diferença a partir da concepção pós-
estruturalista exige compreender algumas noções. O pós-estruturalismo irá
teorizar sobre a linguagem e sobre os processos de significação, nos quais,
diferentemente do estruturalismo, o significado é fluido, indeterminado e
incerto, radicalizando algumas críticas, como o conceito de diferença e a
crítica ao sujeito: “[...] o pós-estruturalismo estende consideravelmente o
alcance do conceito de diferença a ponto de parecer que não existe nada
que não seja diferença” (SILVA, 2004a, p. 120). A diferença é concebida
como um processo linguístico e discursivo e se insere nas discussões sobre
o multiculturalismo, que passa a contestar as expressões de diversas
culturas.
Por sua vez, seguindo tais acepções, o currículo deve refletir sobre
o movimento de constituição dos processos de significação, que nunca são
fixos, devendo se voltar sobre a produção das diferenças. Tomaz Tadeu
esclarece acentuadamente que não se trata de uma questão de respeito e
tolerância sobre a diferença, porém, de compreensão da produção dos
processos de significados que elas carregam, imersas nas relações de poder.
Segundo Silva, as diferenças “[...] estão sendo constantemente produzidas
e reproduzidas através das relações de poder. As diferenças não devem ser
simplesmente respeitadas ou toleradas. [...] o que se deve focalizar são
precisamente as relações de poder que presidem sua produção” (SILVA,
2004a, p. 88).
Com efeito, não há nenhum elemento transcendental e absoluto
a diferença se produz nas relações de poder: “[...] a diferença não pode ser
concebida fora dos processos linguísticos de significação [...] ela é
discursivamente produzida [...] não se pode ser ‘diferente’ de uma forma
absoluta (SILVA, 2004a, p. 87). Com ênfase na instabilidade e na
110
indeterminação, reforça que “[...] não existe nenhuma posição
transcendental privilegiada, a partir da qual se possam definir certos valores
ou instituições como universais” (SILVA, 2004a, p. 90).
Sandra Mara Corazza, pesquisadora que se dedica ao pensamento
da diferença e suas implicações para a pesquisa educacional, para a
docência e para o currículo, também é referência do campo do pensamento
curricular pós-crítico. É professora da Faculdade de Educação da UFRGS
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Departamento de
Ensino e Currículo e no Programa de Pós-Graduação em Educação. A
autora trabalha com a filosofia da diferença e o currículo, em torno das
temáticas a respeito de pós-currículo, diferença e subjetivação de infantis.
Junto a Tomaz Tadeu da Silva, é coordenadora do grupo “DIF -
artistagens, fabulações, variações”, o qual investe no trabalho com as
filosofias da diferença, no campo da pedagogia e do currículo, a partir do
pensamento pós-nietzschiano, em especial Foucault, Derrida, Lyotard e
Deleuze. Com uma vasta produção intelectual, Corazza adota o estilo
“rizomático” mais ousado, já em sua escrita, escrevendo sobre os
currículos pós-críticos”, “currículos nômades”, “pós-currículos da
diferença”, “currículos da diferença pura”, “currículos rizomáticos”, entre
outros.
Eternamente movente, maximamente diferenciada, heterogênea,
incontável, inumerável, a escrita-artista é um vir-a-ser que não deriva
de um estado anterior e nunca atinge um estado final. Ela carece de
medida, fundamento e finalidade. Ela é acaso, contingência e
necessidade. Caso fortuito, delírio, pathos da distância. Fluxo do
acontecer, continuum infinito de pontos de vista, força singular de
experimentação do alargamento de horizontes (CORAZZA, 2006, p.
35).
111
Nos registros dos “pós-currículos da diferença pura”, a diferença é
pensada na recusa ao pensamento dialético, não se submetendo ao
negativo. Para a autora, não se deve “[...] nunca mais [...] subordinar a
diferença ao idêntico e reduzi-la ao negativo; [...] colocar a negação como
motor do educar(CORAZZA, 2006, p. 18).
O desafio da diferença no currículo se lança na recusa aos modos
de governabilidade impostos pela lógica da Identidade-Diferença. Seu
papel é contrapor-se às tentativas de representação; o currículo deve “[...]
produzir e contestar verdades, confrontar narrativas e experiências,
construir e desconstruir identidades” (CORAZZA, 2002, p. 109), “[...]
para que nunca mais suas diferenças sejam governadas, traduzidas,
calibradas, reparadas ou integradas ao velho Princípio da Identidade
Universal” (CORAZZA, 2006, p. 5). Por sua vez, o entendimento de
currículo desde o pensamento da diferença pura é marcado pela
desterritorialização.
O “pós-currículo privilegia temáticas culturais em torno das
disputas dos diferentes discursos nos processos de significação, sobre
políticas de identidade e de diferença, tratando das “[...] diferenças desses
diferentes-puros isto é, não referidos a nenhuma identidade”
(CORAZZA, 2002, p. 105). Isto é, é um “[...] currículo perspectivista, de
traços caleidoscópicos, híbrido, mestiço, polimorfo, multifacético,
fronteiriço, morador e cruzador das fronteiras dos conteúdos, valores e
subjetividades fixos e universais” (CORAZZA, 2002, p. 109).
O currículo é concebido como indeterminado, como expressão do
múltiplo, como vontade criadora, que se movimenta no terreno rizomático
indefinido, livre de hierarquias, conceitos, categorias: um “currículo
vivente”, o qual “[...] realiza uma pragmática múltipla, cuja matéria
plástica (relativamente indiferenciada e incerta) não segue circuitos fixos,
112
mas abre-se para imprevistos trajetos”, que lida com “[...] signos,
acontecimentos, rizomas” (CORAZZA, 2012, p. 3).
Nesses termos, o currículo é concebido a partir do Jogo multívoco e
polifônico [...] que exclui a coerência de um mundo pensado, do sujeito
pensante e de qualquer fiador universal” (CORAZZA, 2006, p. 19), como
“[...] uma ‘máquina de guerra’ contra a fixidez de significados, de
narrativas, de valores, de classificações, de subjetividades, de verdades”
(PARAÍSO, 2005, p. 75).
Em linhas gerais, os escritos de Corazza se inscrevem sob a
preeminência de um currículo como modo de subjetivação, que segue em
desatino nas vias caóticas da proliferação da diferença: “[...] investigar o
currículo como prática subjetivadora exige isolar e reconceptualizar uma
dimensão específica, derivada desses poderes e saberes, mas que não
depende deles nem a eles se reduz: a dimensão da subjetividade”
(CORAZZA, 2002, p. 57-58). Um currículo pensado sem qualquer apelo
à identidade, é o que considera uma obra-prima: “Obra-prima [...] educar
afirmando a Diferença no estado de revolução permanente do eterno
retorno! Ah, educar para mostrar a diferença diferindo! Ah, educar apenas
uma diferença entre as diferenças!” (CORAZZA, 2006, p. 18).
Marlucy Alves Paraíso, professora e pesquisadora da UFMG
Universidade Federal de Minas Gerais, comporta como temática de
investigação o currículo pós-crítico. Tem grande expressividade no âmbito
do GT Currículo da ANPed e coordena o grupo de estudos sobre
currículos e culturas (GECC). No texto Currículo-mapa: linhas e
traçados das pesquisas pós-críticas sobre currículo no Brasil (2005),
investiga as principais linhas de discussão sobre o currículo pós-crítico,
com base nas publicações no âmbito da ANPed. Subsidia sua análise com
elementos da filosofia da diferença deleuziana, entendendo o currículo
como “currículo-mapa”, de saliência rizomática, da multiplicidade:[...] o
113
currículo pós-crítico pode ser lido como um mapa. Afinal, nele
encontramos um conjunto de linhas dispersas, funcionando todas ao
mesmo tempo, em velocidades variadas” (PARAÍSO, 2005, p. 69). Ou,
ainda: “[...] currículo-mapa é experimental, quer ligar multiplicidades,
fazer conexões e composições, desterritorializar e reterritorializar
(PARAÍSO, 2005, p. 69).
Para a autora, as pesquisas pós-críticas, no cenário nacional,
recebem forte influência dos estudos pós-estruturalistas. Destaca: “[...]
existe uma forte influência no currículo-mapa dos trabalhos de Michel
Foucault. Existem também algumas produções com base nas elaborações
de Gilles Deleuze e Jacques Derrida” (PARAÍSO, 2005, p. 70), que “[...]
realiza, no pensamento curricular, substituições, rupturas, mudanças de
ênfases e fraturas em relação ao currículo-crítico” (PARAÍSO, 2005, p. 70-
71).
O currículo pós-crítico é marcado pela multiplicidade de
definições, as quais, segundo a autora, são caminhos que permitem
transgredir e romper com a rigidez. O currículo “[...] é pós-crítico porque
faz traçados e trajetos, sempre mutantes, que mostram conjunções,
disjunções e lacunas produzidas nos movimentos de desterritorializações e
reterritorializações, que geram trajetórias marcadas pelo pensamento pós-
crítico” (PARAÍSO, 2005, p. 70).
No texto Diferença no Currículo(2010), a autora visa a ensaiar
o currículo da diferença, a partir dos pressupostos da filosofia de Gilles
Deleuze, “filósofo da multiplicidade”, que pensa a diferença, a repetição e
o acontecimento. É enfática: o currículo da diferença se refere a “[...] um
adeus à identidade” (PARAISO, 2010, p. 588), contrapõe-se radicalmente
ao pensamento da identidade, à busca por definições, explicações,
ordenações, especificações, pois “mesmo quando é pensada na sua relação
com a diferença, é a identidade que está em foco” (PARAISO, 2010, p.
114
592), visto que “[...] buscamos o comum sob a diferença” (PARAISO,
2010, p. 592), somos “acostumados a olhar por meio da identidade”
(PARAISO, 2010, p. 593). Assim, “[...] pensar o currículo com a diferença
deleuziana é tirar o foco da identidade” (PARAISO, 2010, p. 592), é
romper com a ideia de “[...] classificar, encontrar a unidade, aquilo que as
identifica: a identidade” (PARAISO, 2010, p. 592).
Com efeito,[...] um currículo é diferença por natureza; é pura
diferença; é diferença em si” (PARAÍSO, 2010, p. 588), “[...] exalta e
reivindica a diferença em si: o diferenciar-se em si da própria coisa”
(PARAÍSO, 2010, p. 588). O currículo da diferença diz respeito a uma
reivindicação da diferença pura, da multiplicidade, implica “[...] aquelas
hastes de rizomas que brotam, crescem e se bifurcam” (PARAÍSO, 2010,
p. 595). Em síntese, “[...] para ver, sentir e registrar o jogo da diferença,
em vez do ‘é’ (que remete à identidade), devemos priorizar o ‘e’ (que
remete à multiplicidade). O ‘e’ é o entre-espaço de um currículo, é o que
está no meio, que cresce no meio dos currículos” (PARAÍSO, 2010, p.
595). Desse modo, assenta-se no terreno rizomático da diferença pura:
“Um currículo é, por natureza, rizomático, porque é território de
proliferação de sentidos e multiplicação de significados” (PARAÍSO,
2010, p. 588).
Inspirada nas ideias de uma “literatura menor” e de uma “educação
menor” (GALLO, 2006), a autora remete a um “currículo menor”, àquele
do cotidiano das escolas, que tem como critério o acontecimento. Dessa
maneira, a diferença é o ponto de partida, “[...] a diferença é o que vem
primeiro; é o motor da criação” (GALLO, 2006, p. 592), é “puro
acontecimento” (GALLO, 2006, p. 588).
Salienta que o currículo deve[...] transgredir, fazer proliferar a
diferença, o singular, a criação, o movimento” (PARAÍSO, 2005, p. 72).
Diferença e repetição são elementos atrelados e essenciais ao currículo pós-
115
crítico, que corresponde a uma criação, uma invenção social; o currículo
“[...] gosta de inventar, diferenciar, repetir” (PARAÍSO, 2005, p. 71-72).
No tocante à repetição, vale destacar que não significa a
repetição/reprodução do semelhante, ao contrário, associa-se à diferença, e
não à representação: “[...] não é generalidade e nem o procedimento de
reunião das coisas supostamente semelhantes sob o mesmo conceito ou a
mesma lei. Repetição é o que vem primeiro; é a força que faz a criação”
(PARAÍSO, 2005, p. 71):
A repetição tem ligação com a produção da singularidade e da
diferença. Ela é transgressão. Põe a lei em questão. Manifesta sempre
‘uma singularidade contra os particulares submetidos à lei e um
universal contra as generalidades que fazem a lei’ (Deleuze, 1988, p.
27). A repetição é crucial para a própria criação; é a condição da
diferença. A repetição é aquilo que faz agir a diferença; é o "motor" da
diferença. É pura invenção! (PARAÍSO, 2005, p. 71-72).
Em síntese, o currículo pós-crítico dispõe de uma relação estreita
com as noções de “cultura, linguagem, conhecimento e poder”
(NASCIMENTO, 2007). A cultura segue na problematização dos
vínculos com o poder e com a produção das subjetividades. A linguagem
opera na recusa às representações, como criação de práticas discursivas,
como elemento de produção e constituição de realidades. O modo de
conceber o conhecimento apropria novas formas: segue no
questionamento das metanarrativas iluministas, na suspensão das noções
de razão, sujeito, ciência, progresso, entre outras. Os mecanismos de
validação do conhecimento são mais relativizados, numa gama diversa de
narrativas, uma discursividade inventada. A noção de poder é descentrada,
composta por diversos mecanismos em práticas mais localizadas e
dispersas; “[...] o conhecimento e o currículo são, pois, caracterizados
116
também por sua indeterminação e por sua conexão com relações de poder”
(SILVA, 2004a, p. 123).
Silvio Gallo (2009), professor da Unicamp, atua no grupo de
estudos e pesquisas Diferenças e Subjetividades em Educação, examinando
as implicações do pensamento de Deleuze na educação. Enfatiza a crítica
à concepção curricular disciplinar, que concebe o saber
compartimentalizado e prioriza especialização científica e a
disciplinarização, a partir das premissas do método científico moderno.
Assim, contra a tradição filosófica, a qual, segundo ele, insiste na
unidade do real, parte da compreensão deleuziana do mundo como
multiplicidade, em que a realidade é multiplicidade, é diferença, em que
não se pode falar em uma realidade, mas em múltiplas realidades. A
filosofia do currículo deve pensar com base na imagem do rizoma: “[...] a
imagem do rizoma se converte em poderosa ferramenta para pensarmos
uma filosofia do currículo” (GALLO, 2009, p. 23).
Se o currículo disciplinar nos remete a uma “pedagogia da ordem”, que
investe em hierarquias, planejamentos, organizações, controle, um
currículo rizomático, por sua vez, implica uma “pedagogia do caos”,
isto é, um processo educativo que escape ao controle, traçando linhas
de fuga, que rompa hierarquias, que desfaça planos prévios. Aventurar-
se, sem bússola, pelos mares da multiplicidade dos saberes (GALLO,
2009, p. 25).
Contrapondo a noção da compartimentalização do saber, a qual
configura divisões estanques, o currículo deve ser concebido como um
sistema aberto, rizomático, priorizando o múltiplo, o efêmero:
117
Com o rizoma, as coisas se passam de maneira distinta. Sua imagem
remete para uma miríade de linhas que se engalfinham, como num
novelo de lã emaranhado pela brincadeira do gato. Ou talvez essa não
seja a melhor imagem; um rizoma é promiscuidade, é mistura,
mestiçagem, é mixagem de reinos, produção de singularidades sem
implicar o apelo à identidade (GALLO, 2009, p. 24).
No currículo rizomático, a produção de saberes deve se dar de “[...]
forma livre, não hierárquica, caótica” (GALLO, 2009, p. 25), e, para isso,
com base na filosofia francesa contemporânea, o autor recorre à
transversalidade:[...] se o rizoma pode ser a imagem do currículo, ou se o
currículo pode ser concebido à imagem do rizoma, a transversalidade é o
tipo de trânsito por entre os liames de um rizoma, de um emaranhado de
saberes” (GALLO, 2009, p. 25).
Alfredo Veiga-Neto (2002) - UFRS ULBRA/ Grupo de estudos
em currículo e pós-modernidade - na crítica às metanarrativas iluministas
e aos fundamentos epistemológicos da modernidade, é enfático ao inferir
que devemos entender o projeto moderno como um projeto inventado, e
o que perdemos foi a ilusão com as promessas modernas, evitando posturas
nostálgicas, como revelam as teorias críticas. Assim, defende a
“hipercrítica”, concebendo que é a linguagem que confere sentido ao
mundo, para além da representação.
Há que se considerar, ainda, um aspecto peculiar no cenário
nacional, o hibridismo teórico que o campo do currículo incorporou,
ainda sob viés pós-crítico, como destacado nos trabalhos de Antonio Flávio
Moreira, Elizabeth Macedo e Alice Lopes, que enveredam para um
caminho denominado híbrido, entre teorização crítica e pós-crítica.
Elizabeth Macedo e Alice Lopes, pesquisadoras do GT de currículo
da ANPed e professoras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
118
UERJ Alice Ribeiro Casimiro Lopes atua no grupo de pesquisa Políticas
de Currículo e Cultura, e Elizabeth Fernandes de Macedo, no grupo de
pesquisa Currículo, Cultura e Diferença desenvolveram várias pesquisas
que se voltam para a temática do currículo e também detalham essa
trajetória. Em investigação efetuada por elas, chegam à conclusão do
enredamento para o pensamento pós-crítico, em finais dos anos de 1990,
e apontam para três grandes grupos/linhas teóricas desse período, a saber:
a perspectiva pós-estruturalista, o currículo em rede e a história do
currículo e a constituição do conhecimento escolar.
A defesa das autoras é para a valorização do hibridismo cultural,
nesse campo de estudos. A tese é de que a marca do campo do currículo,
no Brasil, é o hibridismo cultural, a diversidade de tendências teóricas a
compreensão é a de que os próprios sujeitos se constituem como híbridos
culturais (LOPES; MACEDO, 2010, p. apud LADWING, 1988). O
processo de hibridização rompe com a organização dos sistemas culturais
e os mistura, constituindo sistemas “impuros”, de modo que teorias
diversas contribuem para a complexidade de questões postas e também
para a construção de novas preocupações/questões. A principal tendência
no campo são as discussões que envolvem a cultura, sob o viés teórico da
perspectiva multicultural e dos estudos culturais.
Antonio Flavio Moreira, pesquisador consolidado no campo do
currículo e coordenador do Núcleo de Estudo de Currículo NEC, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, situa a atualidade do campo,
enfatizando a aposta em uma “multirreferencialidade”, sob influência do
pensamento pós-moderno, pós-estrutural e de diversas outras vertentes.
Em estudos recentes, Moreira conclui como a temática do
multiculturalismo tem penetrado fortemente na produção de currículo, no
Brasil reforçando os conceitos de hibridismo e de identidade, a partir do
viés multirreferencial.
119
Postula como grande problemática a não ressonância do
pensamento crítico na prática. Para ele, é necessário pensar para a prática,
de forma que atinja o cotidiano escolar, os professores, suas ações e a escola
de modo geral, e o pensamento crítico não tem realizado tal tarefa. “Em
períodos de crise, a preocupação com a prática precisa intensificar-se [...]
trata-se de defender a centralidade da prática nos estudos que pretendem
contribuir para a superação da crise da teoria crítica do currículo”
(MOREIRA, 1998, p. 30). Desse modo, a aposta na adoção de uma
multirreferencialidade pode proporcionar a interação entre diferentes
teorias.
Segundo Moreira, a atenção das questões curriculares deve se voltar
“[...] para a desconstrução, a textualidade, as diferenças, as narrativas locais,
a produção simbólica, a cultura popular, as identidades sociais, os
excluídos etc.” (MOREIRA, 1998, p. 25). Para ele, a presença da
perspectiva multicultural “[...] enriquece o debate em torno do ‘direito à
diferença’ e de suas implicações para a construção de um currículo no qual
as vozes dos grupos oprimidos se representem e se confrontem”
(MOREIRA, 1998, p. 27).
3.2 Contrapontos: Educação, Currículo e o Debate Filosófico-
Educacional
Neste tópico, temos como objetivo problematizar as contradições
marcadamente presentes no debate filosófico-educacional de cunho pós-
crítico. Para isso, propomos travar o debate a partir da argumentação
trazida por pesquisadores que, de alguma forma, indagam o campo
hegemônico, de corte pós-crítico, assinalando as implicações da adoção
dessa perspectiva na esfera filosófico-educacional (BONNET, 2007;
BUENO, 2015; DEWS, 1996; EAGLETON, 2016; LOUREIRO, 2009;
120
MORAES, 2004), bem como no campo do currículo escolar (THIESEN,
2015; SANTOS, 2007).
Não se trata de rejeitar tais concepções, todavia, de possibilitar a
problematização crítica em função de bases dialéticas. O debate entre o
pensamento pós-crítico e a teoria crítica vem sendo assinalado por diversos
pesquisadores, nos últimos anos. O debate proposto a partir desses autores
nos auxilia a pensar os problemas de ordem filosófica latentes advindos da
adoção da perspectiva pós-crítica, com sutis armadilhas que podem levar
ao contrário daquilo que se pretende, de efeito reverso.
Nossa exposição segue da seguinte maneira: primeiro, situamos o
debate filosófico-educacional, através de contrapontos, em especial, do
debate entre pensamento crítico e pós-crítico. Em seguida, propomos
análises conclusivas, a partir de reflexões sobre a educação e o currículo, à
luz das categorias dialéticas adornianas, a saber: razão, objetividade,
emancipação.
3.2.1 Contrapontos: o debate filosófico-educacional
A discussão entre pós-estruturalismo e teoria crítica é tematizada
por vários estudiosos (BONNET, 2007; BUENO, 2015; DEWS, 1996;
EAGLETON, 2016; LOUREIRO, 2009). Tais pesquisas indicam que o
pós-estruturalismo e o pensamento de Adorno possuem afinidades
temáticas, entretanto, percorrem caminhos metodológicos distintos.
Embora o diagnóstico seja o mesmo, para tais debatedores, o movimento
de contraponto à racionalidade instrumental, sem abandonar as bases
racionais, é mais produtivo que os caminhos rizomáticos enredados pela
agenda pós-moderna, sob a perspectiva do contingente, do descontínuo e
das subjetividades plurais. Para um deles, “[...] a não-identidade não pode
121
ser acatada abandonando-se completamente o princípio da identidade”
(DEWS, 1996, p. 65), como o faz a agenda pós-estruturalista. A fim de
subsidiar o debate filosófico-educacional, neste tópico, passemos a alguns
pontos substanciais trazidos por alguns desses pesquisadores.
Abordaremos, a seguir, algumas dessas argumentações.
No texto Considerações sobre a Filosofia de Theodor Adorno e o Pós-
Moderno, Robson Loureiro (2009, p. 177), com base nas concepções de
filosofia e arte em Adorno, problematiza as impossibilidades de
aproximação teórica com o pensamento pós-moderno, teorias que,
segundo ele, possuem barreiras intransponíveis: “[...] por mais que haja
certas afinidades temáticas entre alguns intelectuais agrupados sob o rótulo
de pós-modernos e o pensamento de Adorno, há distanciamentos teóricos
intransponíveis na forma de tratar esses temas, que não podem ser desconsiderados”.
Acrescenta o autor:
é fato que a crítica de Adorno ao sujeito moderno é tão ácida quanto
àquela que mais tarde realizaram os pós-modernos. Porém, sua filosofia
não invoca a abolição pós-moderna do sujeito ou sua fragmentação.
Pelo contrário, ela reafirma o ideal de formação do sujeito auto-
reflexivo, isto é, autônomo e emancipado (LOUREIRO, 2009, p.
187).
Para o autor, o que distingue o pensamento de Adorno é a noção
de mundo objetivo, ou seja, a objetividade social, diferente do pensamento
pós-moderno. Loureiro (2009) ressalta a importância do tensionamento
da negatividade filosófica de Adorno, que preserva a possibilidade da
filosofia, as noções de sujeito e objetividade, diferentemente dos pós-
modernos, “[...] que fazem o referente objetivo desaparecer”
(LOUREIRO, 2009, p. 180):
122
[...] a filosofia de Adorno provoca um tratamento diferenciado da
questão da verdade, que o afasta, de forma radical, do pós-moderno.
Para ele, a verdade possui um conteúdo objetivo, isto é, histórico, que
não se dobra a uma perspectiva de eficiência empírica tampouco a um
caráter meramente linguístico; ela remete à dinâmica da própria
realidade (LOUREIRO, 2009, p. 181).
Em recente publicação, reforçando o debate, Sinésio Ferraz Bueno
(2015) propõe pensar o confronto entre a teoria crítica e o pós-
estruturalismo, os quais, para ele, assemelham-se nas temáticas trabalhadas
e se distinguem pelas opções metodológicas. De acordo com o autor,
Adorno e Deleuze partem de diagnóstico idêntico, de crítica aos modelos
de representação e de identidade que negligenciam as diferenças: “[...]
ambos os pensadores examinam em suas obras o mesmo problema, a saber,
a insuficiência da identidade, da representação e do pensamento conceitual
para representar com fidelidade a singularidade do objeto particular”
(BUENO, 2015, p. 157).
Segundo Bueno (2015), Deleuze assume o caráter antimetafísico e
de recusa à dialética como forma de crítica aos modelos de representação,
“[...] envereda pela recusa rizomática da identidade, propondo uma
elaboração conceitual não transcendental, referida à criação de conceitos
simultaneamente absolutos e relativos, mergulhados no plano de
imanência” (BUENO, 2015, p. 157), sob o crivo das “[...] diferenças
puras, pensadas em si mesmas sem o auxílio precário das mediações
representativas” (BUENO, 2015, p. 153). Já Adorno potencializa a
dialética como maneira de denunciar o pensamento da identidade e
preservar a autorreflexão sobre sua insuficiência.
Nessa linha, segundo o autor, o modelo antidialético de Deleuze
carrega uma inconsistência incontornável. A leitura de Bueno (2015) se faz
123
pertinente para este debate, ao sustentar que a saída do pós-estruturalismo
de recusa a mediações conceituais para a superação do princípio de
identidade e o alcance da diferença pura possui problemas de ordem
filosófica latentes. Para ele, “[...] a primazia das diferenças puras enfatizada
por Deleuze, em sua pretensão de concretude do imediato, é simples efeito
reverso e mediado pelas pretensões totalitárias do pensamento conceitual,
[...] como efeito reflexo do insucesso necessário de enquadrar o não-
idêntico sob a armadura conceitual” (BUENO, 2015, p. 158). Isto é, a
“recusa rizomática da identidade”, realizada por Deleuze, “[...] desloca a
culpa da coisa para o método” (BUENO, 2015, p. 158), de modo que a
insuficiência da identidade é “[...] assumida precipitadamente como limite
irredutível da razão” (BUENO, 2015, p. 159). Isso não significa que o
fracasso da identidade deve remeter ao plano da imanência sem mediações
e voltar-se ao imediato: “[...] não deveria ser pretexto para escapismos
românticos de captura das diferenças puras” (BUENO, 2015, p. 159).
Entrementes, lança como duvidosa a supressão do aparato conceitual,
[...] sem o recurso a conceitos universais, que possam remeter a
princípios mínimos de dignidade passíveis de serem estendidos a toda
a humanidade, como será possível formular juízos críticos e
eventualmente condenatórios frente a práticas culturais ou individuais,
que em sua prosaica diferença e singularidade, corroboram a violência
e a barbárie? Se dermos primazia a diferenças puras, imaculadamente
preservadas e livres das prisões conceituais, não teremos sequer
condições de definir o que são violência e barbárie, e nem mesmo
aquilo que nossas habituais representações costumam definir como seu
oposto, acivilidade(BUENO, 2015, p. 160).
As análises de Peter Dews (1996) percorrem um caminho similar.
Para Dews, o pós-estruturalismo desenvolve uma forma de crítica não
124
dialética, de caráter discursivo e provisório, que recai numa abstração,
reflexo das pretensões arbitrárias do pensamento. Frente à destruição da
razão representada pelo movimento pós-estruturalista, o qual se refere a
“[...] um ataque autodestrutivamente indiscriminado e politicamente
ambíguo às estruturas da racionalidade e da modernidade in totó(DEWS,
1996, p. 52), por meio de uma “[...] afirmação ontológica de uma
pluralidade irredutível” (DEWS, 1996, p. 56), reconhece como
substanciais os instrumentos conceituais de Adorno.
De acordo com Dews, o pós-estruturalismo situa-se em uma
“dinâmica auto-invalidante de uma priorização grosseira da
particularidade, da diversidade e da não-identidade” (DEWS, 1996, p.
65). No mesmo sentido de Bueno (2015), Dews frisa que “[...] a pura
singularidade é em si uma abstração, o resíduo do pensamento
identificatório” (DEWS, 1996, p. 61), ou seja, “[...] a tentativa do
pensamento pós-estruturalista de isolar a singularidade simplesmente
ricocheteia numa outra forma de abstração, e que o que ele confunde com
imediatismo é, na verdade, altamente mediado” (DEWS, 1996, p. 61).
A análise sobre o pensamento de Adorno e Deleuze também é
realizada por Alberto Bonnet (2007). Para o autor, ambas as perspectivas
são dispostas como sustentação para o rompimento com o modelo atual
de troca. A argumentação do autor é que o pós-estruturalismo, ao rechaçar
os princípios da contradição, da negação e da dialética, inviabiliza pensar
para além da lógica instaurada nos moldes mercantis. Com a ausência de
fundamento crítico, as condições objetivas de superação das contradições
desaparecem. Por outro lado, ao examinar a proposta adorniana, que
preserva o conteúdo objetivo e universal, Bonnet (2007) acentua que a
dialética negativa corresponde a um recurso apropriadamente passível de
assumir a crítica anticapitalista, uma vez que propõe uma teoria crítica da
125
sociedade, das produções sociais, dispondo da autorreflexão sobre as
formas abstratas reais de dominação, que tem uma dimensão universal.
Ainda dentre os pensadores contemporâneos críticos da agenda
pós-moderna, mencionamos Terry Eagleton. Na convidativa obra Depois
da teoria, de maneira provocativa, Eagleton tece críticas ao teor
antimetafísico do pensamento pós-moderno, que, para ele, se estabelece no
mesmo plano daquilo que pretendia criticar. Segundo as considerações de
Eagleton, a teoria cultural é retórica, academicista e caricatural: “[...] o
preconceito pós-moderno contra normas, unidades e consensos é um
preconceito politicamente catastrófico” (EAGLETON, 2016, p. 31). Para
ele, “[…] ela acredita no local, no pragmático, no particular. E, com este
devotamento, ironicamente, difere muito pouco da erudição conservadora
que detesta, e que também só acredita no que pode ver e pegar
(EAGLETON, 2016, p. 106). Nesses termos, de modo persuasivo,
assinala que,
[...] num mundo de puras diferenças, ninguém seria capaz de dizer
qualquer coisa inteligível e não poderiam existir poesia, sinais de
trânsito, cartas de amor ou folhas de registro, bem como nenhuma
afirmação de que tudo é peculiarmente diferente de tudo o mais
(EAGLETON, 2016, p. 29-30).
***
Há ainda que se mencionar outras pesquisas que seguem o
movimento de contraponto à racionalidade instrumental, sem abandonar
as bases racionais, como as obras de Sérgio Paulo Rouanet (2001), Maria
Célia Marcondes de Moraes (2001; 2004), Antônio Flávio Pierucci
(1999), Sinésio Ferraz Bueno (2013), Lucíola Santos (2007) e Juares
126
Thiesen (2015), pesquisas pertinentes à temática aqui trabalhada, relativa
ao papel da educação e do currículo.
Rouanet (2001) demonstra diversos equívocos concernentes ao
elogio à diferença, no campo da cultura e da educação, e a importância do
resgate da universalidade. Para o autor, os discursos pautados em
demandas particulares recaem no irracionalismo, com tendências
intelectuais de negação da teoria e idealização da prática, de maneira a
impossibilitar que se desenvolvam os elementos essenciais para
transformação e emancipação.
Maria Célia Marcondes de Moraes (2001, 2004) assinala a
importância da crítica à filosofia ocidental, à epistemologia e à noção de
verdade, contudo, sem cair no ceticismo e no relativismo. Nesse sentido,
problematiza o quanto as produções da chamada “agenda pós-moderna”
tendem a suprimir a discussão teórica, momento de “recuo da teoria”
(2004), com implicações éticas e políticas que inviabilizam a
potencialização do pensamento crítico e renunciam ao pensamento
objetivo sob a perspectiva do contingente, do descontínuo e das
subjetividades plurais.
Pierucci (1999) também sublinha a importância em se manter o
referencial da universalidade, para romper com as desigualdades
historicamente constituídas em determinadas culturas, defendendo a
existência de um gênero humano universal. De acordo com o autor,
romper com a universalidade corresponde a uma “cilada da diferença”.
A argumentação de Pierucci é de que a “diferença vem da direita”
e, com isso, torna-se importante salientar os “[...] efeitos perversos da
apropriação de um tema das tradições de direita, a saber, a diferença”.
Trata-se de um “efeito de retorsão”, no qual a direita se utiliza das mesmas
armas do adversário: “[...] ao retornar para o campo da direita, o direito à
127
diferença se reinsere em seu velho contexto discursivo de matriz anti-
igualitarista, recarregando a temática da diferença de demandas sociais e
soluções políticas abertamente excludentes e segregacionistas
(PIERUCCI, 1999, p. 12).
Assim, o direito à diferença se distorce, o que pode ser entendido
como “[...] o direito de um povo de permanecer como é, em sua terra natal
e sem misturas” (PIERUCCI, 1999, p. 15). Ou seja, o direito não é mais
concebido como “direitos iguais do homem” e pode, de fato, tomar o rumo
de “direitos preferenciais dos povos”, reforçando todo o tipo de racismo,
preconceito e práticas de xenofobia. É importante atentar ao campo
semântico da diferença, como realça Pierucci, “o risco do feitiço virar
contra o feiticeiro”, de sorte que é “[...] com os ares de legitimidade ganhos
à esquerda que a bandeira da diferença está hoje hasteada bem no centro
deste fenômeno difuso e quase onipresente que muitos chamam de neo-
racismo” (PIERUCCI, 1999, p. 15).
Por sua vez, Bueno (2013) dispõe da metodologia da dialética
negativa para pensar a superação das “ciladas da diferença” e propõe
problematizar dialeticamente a diferença, para além da estigmatização ou
valorização: “[...] a diferença será, então, pensada em sua oposição dialética
frente a conceitos universais que são capazes de medir o valor do objeto
particular à luz de potenciais dialéticos de emancipação do gênero
humano” (BUENO, 2013, p. 330). Problematiza os polos da diferença,
um negativo, que enfatiza o preconceito, e outro polo positivo, que força
um elogio dogmático. Tanto o preconceito/estigma quanto o elogio à
diferença, ambas as saídas ainda se mantêm no plano da estereotipia de
uma estereotipia negativa, que vê o outro, o diferente, com hostilidade,
como inferior, para uma estereotipia positiva, lançando um elogio até
mesmo dogmático sobre as singularidades culturais das populações que
sofreram discriminação.
128
Ou seja, trata-se de substituir um estereótipo por outro, sem a
superação dos rótulos, “[...] permanece estática e incompreendida”
(BUENO, 2013, p. 330). Do preconceito ao elogio/dogma, os dois
caminhos se tornam improdutivos teoricamente, se encontram em uma
armadilha, na medida em que conduzem ou “[...] à identidade com o
agressor, ou ao refúgio metafísico” (BUENO, 2013, p. 329), um “falso
dilema” (BUENO, 2013, p. 330), uma “cilada da diferença”, como
acentuado por Pierucci.
Para Juares Thiesen (2015), a ausência de perspectivas formativas
futuras do pensamento pós-crítico tem consequências para a formação de
professores e pode repercutir negativamente, ao esvaziar de sentidos os
projetos de formação humana. Além disso, para ele, a proposta de uma
educação pela indeterminação, por não poder demarcar padrões do que se
almeja alcançar, pode ser bem recebida pelo mercado e por setores não
comprometidos com uma educação de qualidade:
[...] considerando-se haver rejeição a fundamentos, perspectivas de
projetos de futuro e orientação teórico-metodológica, pode, sob certo
aspecto, ampliar ainda mais as fendas que separam os registros teóricos
do campo curricular da prática dos professores e, sob outro aspecto,
estimular certo esvaziamento de sentidos para projetos de formação
humana, o que induziria o fortalecimento da iniciativa não estatal e
privada nestes espaços politicamente menos marcados (THIESEN,
2015, p. 643-644).
No artigo “Currículo em tempos difíceis, Lucíola Santos (2007)
argumenta que, com a gradual influência de referenciais pós-modernistas
no currículo, esse campo teórico deixou de oferecer contribuições efetivas
para a prática pedagógica, nas escolas. Sob o crivo do campo hegemônico
pós-crítico, tal tendência tem paralisado a crítica, engessado as
129
possibilidades de se avançar nas discussões em currículo, nas escolas.
Conforme a autora, “[...] falar em currículo implica em pensar e analisar
criticamente o que as escolas estão fazendo ou o que pretendem fazer. Para
este grupo, como não há certezas objetivas que assegurem o que é melhor
e pior, não há como trabalhar nessa perspectiva” (SANTOS, 2007, p.
294). Dessa maneira, sob o viés pós-moderno, o campo do currículo perde
seu caráter crítico, “[...] não mais oferecendo reflexões, ideias e perspectivas
que façam avançar o currículo escolar” (SANTOS, 2007, p. 295).
O que ocorre é que, ao discutir currículo, há um receio em se ser
normativo, o que faz com que se impossibilitem orientações pedagógicas
nas escolas: “[...] de uma maneira bem direta e simples, parece que fica
quase impossível, para alguns, aprofundar problemas presentes nos
currículos escolares sem ser prescritivo, e para outros, sem ser moralista,
essencialista e metafísico” (SANTOS, 2007, p. 294). Ao se rechaçar as
verdades objetivas, discutir currículo pensando na possibilidade de
emancipação tornou-se, portanto, sinônimo de opressão. A crítica é para o
normativo, que oprime ao imprimir regras, normas e convenções para a
vida social; “[...] o não-normativo tornou-se a norma” (EAGLETON,
2016, p. 32).
Todavia, as normas nem sempre são restritivas. Santos (2007)
argumenta sobre a importância em se estabelecer parâmetros futuros nas
escolas, de modo objetivo, pontuando suas fragilidades e necessidades. A
pluralidade, no plano relativista, desacompanhada do conteúdo objetivo,
não supera os discursos do senso comum:
[...] sua preocupação com a diferença leva a um discurso acadêmico,
em que, muitas vezes, a própria diferença na forma e conteúdo da
produção não tem possibilitado um estranhamento, que leve a novas
130
interpelações sobre questões naturalizadas pelo senso comum
pedagógico (SANTOS, 2007, p. 305).
Ainda como outro risco advindo da adoção do discurso pós-crítico,
Santos (2007) conclui sua argumentação alertando o quanto os valores
efêmeros, defendidos por essa abordagem, podem aliar-se à sociedade do
consumo, seguindo os ritos da cultura de mercado. Para a autora,
[...] é preciso examinar com cautela as ideias que circulam nesse campo,
pois algumas delas parecem estar se alinhando à arquitetura dessa
sociedade de consumo, em que a valorização do efêmero, do
instantâneo, do que causa prazer imediato, reproduz a exclusão social
de forma insidiosa e brutal (SANTOS, 2007, p. 305-306).
3.2.2 Análises conclusivas: problematização da educação e do currículo
Ao considerar que o ceticismo epistemológico, a desqualificação do
conhecimento objetivo e o anti-humanismo, isto é, os núcleos centrais do
pensamento pós-crítico que sustentam sua postura relativista, têm
repercussões que incidem diretamente no papel da educação escolar,
propomo-nos, neste tópico, analisar a recepção do pensamento pós-crítico
no âmbito do currículo escolar, a partir das categorias dialéticas
adornianas, buscando problematizar as possíveis ciladas pedagógicas em
que o pensamento pós-crítico pode desembocar. Nossas acepções, com
aspectos conclusivos, são tecidas com base em categorias dialéticas, tais
como razão, objetividade e emancipação.
Na crítica da identidade, o currículo assume um viés caótico, na
ordem das experimentações, voltada ao plano de contingência, da
espontaneidade, com o discurso da pluralidade como algo dado: “[...]
131
experimentar em um currículo: fazer currículo sem medo e sem programa.
Arriscar!” (PARAÍSO, 2010, p. 602).
O irracionalismo do pós-estruturalismo transposto ao pensamento
curricular, como currículo pós-crítico, currículo da diferença pura, entre
outros, torna a crítica inócua. Como sustentar a crítica, sem alicerces?
Como pensar um currículo em que seu terreno não é restrito nem
demarcado, que emerge em “[...] todos os espaços em que um ser humano
for subjetivado, encontros se realizarem, fluxos de saber se esparramarem,
forças de vida se afirmarem, flechas de esperanças forem lançadas?”
(CORAZZA, 2002, p. 110).
Adorno é incisivo em sua postura crítica quanto ao papel da razão,
e isso não significa de maneira alguma a sua desistência. O filósofo
frankfurtiano problematiza as agudas contradições da sociedade atual, que,
em tempos de esclarecimento, ainda reproduz miséria, barbárie, num
processo de frieza e embrutecimento dos sentidos. Na sociedade
administrada, os modos de representação do mundo são mediados por
modos de dominação, nos quais se exacerba o empobrecimento do espírito,
intensificando o estado de não liberdade. Dessa forma, percebemos, com
Adorno, que as práticas formativas são consentidas por uma racionalidade
instrumental que limita a capacidade autorreflexiva e impede a realização
de uma práxis fundada numa racionalidade objetiva e crítica,
predominando o que o filósofo denominou semiformação.
O esforço filosófico de Adorno para empreender tal tese culmina
no exercício autorreflexivo da razão, “[...] a insistência no qualitativo serve
a essa autorreflexão, não evoca irracionalidade” (ADORNO, 2009, p. 45),
“[...] é algo que precisa ser por sua vez pensado racionalmente”
(ADORNO, 2009, p. 44). Em diversas passagens Adorno realça que o
“[...] pensamento consegue pensar contra si mesmo, sem abdicar de si”
(ADORNO, 2009, p. 123). No fragmento inicial da Dialética negativa,
132
infere sobre Possibilidade da Filosofia, que não pode ser conduzida por
questões externas à racionalidade. Assim, aponta o caminho equivocado
das filosofias contemporâneas, no qual “[...] o ódio contra o rígido
conceito universal fundou o culto à imediaticidade irracional”, filosofias
que indicavam para uma “[...] liberdade soberana em meio a não
liberdade” (ADORNO, 2009, p. 15). Tal arcabouço argumentativo nos
oferece insights significativos para pensar a educação e o currículo perante
o quadro hegemônico do pensamento pós-crítico.
Percebemos que a postura cética adotada pelos enfoques pós-
críticos leva ao esvaziamento das potencialidades críticas, exaurindo os
conteúdos objetivos formativos necessários para a resistência aos modos de
dominação do mundo administrado. Com isso, ao aludir a uma
singularidade sem apelo à identidade, essas abordagens recaem em solo
relativista, em um horizonte de indeterminação, anulando-se o
investimento no conteúdo objetivo e nas potencialidades de resistência à
reificação.
Conforme se pode observar, o caminho antirrepresentacional e
anti-identitário, de renúncia à mediação racional, que corrobora o
desprezo pelos conteúdos objetivos, pela teoria, impossibilita a consciência
cognoscível, aprisiona a educação nos limites do imediato, aos limites da
vida cotidiana, desprovida de objetividade, sem ensejar sua apropriação
consciente.
Como vimos, ao transpor essa análise para os limites da escola e do
currículo, tal postura se agrava. Ao renunciar às mediações representativas
e valorizar o puro caos, no nível da espontaneidade, reforça as concepções
de cunho pragmático, que “[...] equivalem ao princípio da subjetividade
absoluta” (ADORNO, 2009, p. 50). Maria Célia Moraes (2004) refere-se
ao movimento de “recuo da teoria”, uma retração teórica em decorrência
do ceticismo pós-crítico, em “[...] que descarta-se a necessidade humana
133
de inquirir sobre questões relativas à natureza do objeto e do próprio
conhecimento” (MORAES, 2004, p. 352), “[...] reduz o cognoscível à
experiência sensível” (MORAES, 2004, p. 352), com implicações éticas e
políticas que inviabilizam a potencialização do pensamento crítico.
Esvazia-se a intervenção pedagógica, através da renúncia ao saber
historicamente sistematizado e ao conhecimento acumulado. Reduz-se ao
pragmático, à dimensão prática, na obstrução da apropriação dos
conhecimentos elaborados, imersos a “[...] fragmentos descolados,
nômades perdidas nas ilhas dos discursos” (MORAES, 2004, p. 353).
Conceber a ação pedagógica circunscrita aos limites da experiência
imediata, aos limites rizomáticos da diferença pura, da multiplicidade das
narrativas simbólicas, discursivas e parciais, dos “jogos de linguagem”,
parece-nos emboscar em uma cilada pedagógica, que impede ainda mais a
apropriação dos conteúdos objetivos formativos de forma crítica.
Na Teoria da Semiformação (2010), Adorno sinaliza o caráter
pragmático da educação, a qual não estabelece os vínculos da crise da
formação cultural com a realidade pedagógica. Como se pode notar, “[...]
os indivíduos, tanto cognitiva quanto afetivamente, são educados para
subordinarem-se ao processo de semiformação que impinge a exaltação da
adaptação e do conformismo, ou seja, das consciências felizes, em vez do
discernimento e do inconformismo” (PUCCI; ZUIN; LASTÓRIA, 2010,
p. 05). Desprover o pensamento de seus instrumentos necessários para a
constituição do conhecimento, tomar a dimensão prática da educação
como fim em si mesma, sem considerar os obstáculos culturais, contrastam
com as expectativas de uma experiência formativa. Sob a égide da razão
instrumental e da semiformação, o esforço pedagógico para responder aos
anseios formativos não pode tomar a verdade e o conhecimento como
ficção. Nos limites do dado, a educação segue limitada à autopreservação,
à adaptação.
134
Concordamos com o diagnóstico de que a formalização da razão
insufla os processos educativos aos mecanismos de integração e
uniformalização, na ânsia de que “[...] nada mais pode ficar de fora”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 26). No entanto, prescindir do
saber sistematizado na escolarização é o mesmo que “jogar a criança com a
água do banho”. Nas palavras de Adorno:
[...] é ainda a formação cultural tradicional, mesmo que questionável,
o único conceito que serve de antítese à semiformação socializada, o
que expressa a gravidade de uma situação que não conta com outro
critério, pois se descuidou de suas possibilidades (ADORNO, 2010, p.
18).
Wolfgang Leo Maar (1995), ao discorrer sobre Adorno e a
experiência formativa, refere-se ao esvaziamento desta, que pode agravar a
continuidade de barbáries e atrocidades. Para ele,[...] no capitalismo
tardio, a preservação das condições objetivas da experiência formativa no
contato com o outro e na abertura à história [...] é a única possibilidade de
evitar a repetição de Auschwitz” (MAAR, 1995, p. 28).
A crítica endereçada à razão não inviabiliza o zelo por seu conteúdo
objetivo, ou seja, não enreda para uma perspectiva irracional: “[...] essa
aparência não pode ser sumariamente eliminada, por exemplo, por meio
da afirmação de um ser-em-si fora da totalidade das determinações do
pensamento” (ADORNO, 2009, p. 13). Nos debates radiofônicos
realizados na década de 1960, Adorno expõe tal posicionamento, o qual se
trata de um caminho equivocado:
[...] creio que filosoficamente é muito bem possível criticar o conceito
de uma razão absoluta, bem como a ilusão de que o mundo seja o
135
produto do espírito absoluto, mas por causa disto não é permitido
duvidar de que sem o pensamento, e um pensamento insistente e
rigoroso, não seria possível determinar o que seria bom a ser feito, uma
prática correta. Simplesmente vincular a crítica filosófica do idealismo
com a denúncia do pensamento constitui para mim um sofisma
abominável, que precisa ser exposto com clareza para levar a este mofo
finalmente uma luz que possibilite sua explosão (ADORNO, 1995, p.
174).
Para Adorno, portanto, no que tange às possibilidades
emancipatórias, “[...] a única concretização efetiva da emancipação
consiste em que [...] a educação seja uma educação para a contradição e
para a resistência” (ADORNO, 1995, p. 183).
Não significa, por certo, omitir os moldes opressivos nos quais a
racionalidade iluminista se estabeleceu, nem mesmo negar a cumplicidade
dos processos educativos no aprofundamento das mazelas engendradas
pela divisão social, na reprodução das desigualdades e exclusões sociais. As
bases racionais e representacionais precisam ser revistas. A crítica à razão,
por meio dos instrumentos que ela própria oferece, na reflexão sobre as
atrocidades que a própria razão e o conhecimento científico
desencadearam.
Ao perfazer tal análise, poderiam nos indagar: o caminho
adorniano da dialética negativa não equivale ao momento de valorização
de uma dimensão metafísica que legitima discursos abstratos e
universalistas, no mesmo plano das metanarrativas modernas, das amarras
idealistas, tão rechaçadas na contemporaneidade? Em face de tais possíveis
alusões, recorremos à sugestiva análise da metafísica negativa, realizada em
recente publicação.
136
Bruno Pucci (2014), no artigo intitulado Dialética Negativa:
Filosofia e Metafísica tensões, analisa as categorias metafísicas na
perspectiva adorniana. Pucci (2014, p. 261) argumenta que as categorias
metafísicas negativas seguem um percurso invertido do idealismo, sofrem
uma conversão “[...] para as coisas aparentemente insignificantes”, por isso,
uma “nova metafísica” (PUCCI, 2014, p. 257), todavia, sem abandonar
as categorias que deram sustentação à metafísica tradicional: “[...] não
abandona as categorias específicas que historicamente lhe deram
sustentabilidade, porém, inverte-as na tendência de sua direção: a
metafísica negativa emigra para a micrologia, para a escória do mundo
dos fenômenos” (PUCCI, 2014, p. 257).
A saliência da análise de Pucci é que a inversão da metafísica
realizada por Adorno demonstra o quanto tais categorias metafísicas só se
constituem a partir do confronto com o objeto concreto, histórico. Ou
seja, à metafísica cabe aproximar-se daquilo que sempre rejeitou e inverter
sua direção: “[...] se quiserem continuar sendo categorias metafísicas,
devem reconhecer esse fato e se aproximarem, cada vez mais, dos objetos
que as constituem” (PUCCI, 2014, p. 261). Em outras palavras, significa
dizer que a metafísica, para evitar sua queda, deve rejeitar a si mesma,
aproximar-se dos objetos reais, assim como o pensamento deve pensar
contra si mesmo, de sorte que “[...] a metafísica só poderia vencer e evitar
sua queda se rejeitasse a si mesma, se efetivasse sua passagem para o
materialismo, para a priorização do objeto” (PUCCI, 2014, p. 261).
Assim, as análises de Pucci são extremamente profícuas para este
debate, ao demonstrar as ressalvas que giram em torno das categorias da
metafísica. Tal análise está em conformidade com as bases de sustentação
do pensamento negativo, que, para atingir o objeto, deve pensar contra si
mesmo, “[...] medir-se pelo que lhe é heterogêneo e lhe escapa” (PUCCI,
2014, p. 261).
137
O horizonte que pretendemos apontar, por fim, é que o
movimento dialético negativo, de negação determinada, pereniza o
exercício autorreflexivo e permite a crítica; é o que preserva as
possibilidades para que a educação se realize, de modo indissociável, entre
o momento de adaptação e emancipação dos sujeitos, de uma educação
crítica que produza a identidade e a diferença. Em meio aos processos
implicados no contexto da semiformação, a possibilidade da filosofia
mantém-se como promessa face ao mundo danificado. Há um referente, a
verdade possui um conteúdo objetivo, histórico, que se opõe tanto às
perspectivas da eficiência empírica, do positivismo, bem como à verdade
subsidiada meramente pelos processos linguísticos.
Diante do exposto, com rigor e seriedade, salienta-se a importância
de elaborar o passado, de dotar os alunos de formação crítica, retomar os
fundamentos da história da filosofia, como modo de problematização,
resistência e enfrentamento da realidade reificada, ou seja, resistir, por
meio do currículo, aos mecanismos da semiformação. A abordagem
autorreflexiva adorniana sustenta o trabalho conceitual no desvelamento
das contradições postas e a importância do conteúdo objetivo, desafio que
se impõe aos educadores, nos dias atuais.
139
Considerações Finais
Vivemos em uma sociedade marcada por traços de violência e
preconceitos, arraigados historicamente. Dentre os desdobramentos,
entendendo a educação enquanto prática social intimamente ligada aos
processos sociais e culturais, s nos deparamos com uma educação
esvaziada, inserida na lógica da sociedade industrial, cumprindo o papel de
legitimadora dos mecanismos que solidificam as contradições sociais,
cúmplice de tendências regressivas. Vemos os processos educativos
delineados pela primazia de uma razão instrumental que reforça o caráter
adaptativo e privilegia a dimensão conformadora dos percursos formativos,
fragilizando os processos de emancipação, autonomia e diferenciação.
As reformas pedagógicas atuam como veículo reforçador para a
implementação de mudanças na esfera social. O currículo se insere nesse
ínterim, como um dos elementos da organização das experiências escolares,
mediado por concepções de homem e sociedade, que delineia as bases para
um projeto formativo. A breve retomada histórica dos estudos do currículo
nos permite compreendê-lo como espaço de lutas e controvérsias, animado
por questões históricas, éticas e políticas. Os currículos são tensionados
constantemente pelas demandas e exigências sociais, na apropriação de seus
códigos, e carregam uma carga ideológica que pode conformar ao modelo
social, na incorporação de uma racionalidade dominante.
Ao se ter em vista que o pensamento pós-crítico ganha a cena na
década de 1990 e passa a ser considerado tendência dominante, na análise
cultural, tal debate ressoa no campo educativo e, em grande medida, no
140
currículo. A crítica, de teor anti-humanista, enfatiza a descrença nos ideais
Iluministas e segue na deslegitimação dos metarrelatos pedagógicos
modernos. O diagnóstico é de que houve o predomínio de ideologias
excludentes, no interior da escola, reproduzindo mecanismos repressores
em nome de um modelo universalista, pautado no modelo de um projeto
moderno e eurocêntrico. Nesse cenário, a diferença emerge como
potencial.
Propusemo-nos, neste trabalho, realizar uma análise crítica da
problemática epistemológica moderna pelo viés dos estudos da teoria
curricular. A proposta empreendida foi de analisar a recepção do
pensamento pós-crítico nos estudos do currículo, no intuito de
compreender o campo de problematização filosófico-educacional acerca da
teoria crítica e pós-crítica.
No Brasil, a área de estudos do currículo foi intensamente afetada
pelo viés positivista, pela transferência de teorias curriculares de cunho
tecnicista e instrumental, voltadas para a adaptação da escola à educação
de massas e à formação da força de trabalho. Por mais que outras
tendências tenham emergido, as escolas ainda são fortemente
caracterizadas por uma forma tradicional de organização curricular, de
orientação disciplinar e fragmentária, a qual propaga sua lógica na
organização do trabalho pedagógico como um todo e impõe à escola uma
perspectiva pragmática, voltada para a resolução de tarefas imediatas, que
perde os nexos entre o particular e o universal, entre meios e fins. À escola
é imputada a lógica marcada pela eficiência e pela competitividade, guiada
por uma racionalidade técnica e instrumental que aprisiona os indivíduos
nas condições da semiformação, direcionada à adaptação a uma ordem
social que atende aos imperativos da profissionalização. Tal lógica imprime
à formação uma força utilitária e conformadora, a qual inibe a reflexão e a
crítica, suprimindo os potenciais emancipadores.
141
Hoje, a primazia do pensamento pós-crítico tem-se sobressaído,
nos estudos curriculares. O que ocorre é que a abordagem pós-crítica
representa uma crítica radical aos próprios princípios do esclarecimento, à
concepção de sujeito, à metafísica, à razão, entre outros. Assumidamente
de caráter antifundacionista, o pós-estruturalismo empreende sua crítica às
formas de representação e de identidade, endereçada aos conceitos
abstratos de ordem transcendental, da metafísica platônica à dialética
hegeliana. Tais filosofias, para eles, sustentadas pelas representações
metafísicas, negligenciam o múltiplo e aprisionam as diferenças reais, as
diferenças puras.
A defesa é que as diferenças puras podem ser pensadas sem o
recurso das representações e da identidade. Não é necessário ao
pensamento dispor da identidade como alicerce; pelo contrário, o
pensamento conceitual é que assenta e negligencia as diferenças. Assim,
recusa a dialética, a identidade e o conceito. Para o pós-estruturalismo, o
pensamento dialético, que dispõe do confronto negativo com a
universalidade, ainda está submetido à identidade e, consequentemente,
subordina a diferença à identidade. Desse modo, o pensamento dialético é
substituído pelo emprego das diferenças puras, o qual se prolifera no solo
rizomático, caótico e indeterminado.
Nossa problematização delineou-se a partir desse cenário. Com
base em categorias dialéticas adornianas e em contraste a essa concepção,
entendemos que o caminho pós-estruturalista recai no plano retórico de
romantização da própria diferença, como se a diferença tal qual se
apresenta na imediaticidade já fosse realizada. A questão é como conceber
uma singularidade pura, sem mediação, a qual escape da totalidade
instrumentalizada. Conceber a diferença, a singularidade, enquanto
afirmação, sem problematizar seu caráter coativo e repressor, é insuficiente.
142
O enfoque pós-crítico, ao contestar a racionalidade moderna e sua
pretensão universalista, recai em enfoques relativistas e irracionais que
inviabilizam a crítica. Se levarmos em conta que se encontra, enquanto
crítica hegemônica no campo educativo e da teoria curricular, no Brasil,
estamos em um terreno repleto de problemas de ordem filosófico-
educacional, que inviabilizam o pensamento crítico. Ficamos à mercê da
espontaneidade, da diferença pura, de uma falsa singularidade solta, a qual
põe em risco inclusive o que buscam defender.
A reivindicação da diferença, por sua vez, trata-se de um campo
minado, o qual esconde muitos perigos e, no campo educativo, ciladas
pedagógicas que podem resultar justamente na preservação do status quo e
conformidade a ele. Assumida como bandeira pedagógica, a partir dos
referenciais pós-críticos, embora sejam reivindicações legítimas, de
oposição a práticas segregadoras, racistas e discriminatórias, acabam
vulneráveis aos ataques conservadores, surtindo o efeito contrário ao
almejado. Ao abdicar da razão e relativizar os conteúdos objetivos da
verdade, abdicam dos próprios instrumentos intelectuais de contraposição
ao instituído. O resultado é a desvalorização da escola e do trabalho
educativo, a negação do trabalho educativo, em sua forma clássica, do saber
sistematizado. Ou seja, ao recusar a tradição, engessa as potencialidades
críticas “o feitiço se vira contra o feiticeiro”. A ausência de mediação
deixa as vítimas do preconceito expostas aos ataques conservadores, numa
cumplicidade involuntária aos mecanismos de discriminação.
O atual contexto histórico tem demonstrado avanços na agenda
conservadora, como é o caso do movimento da Escola sem partido, que
põe em risco o próprio sentido da formação escolar. Esse movimento, que
remonta a uma educação “neutra” e “não-ideológica”, tem ganhado
visibilidade e força política, a qual incide diretamente no papel da escola e
da formação.
143
Como pensar o currículo enquanto aparato capaz de
instrumentalizar os alunos na problematização da formação cultural atual,
nos moldes da semiformação, de caráter acrítico, tecnicista e não
emancipatório? Como resistir e problematizar as propostas pedagógicas
carregadas de preconceitos, tendo como recursos aparatos discursivos, sem
a mediação conceitual? Como pensar na formação cultural das novas
gerações, na valorização da cultura, em seu padrão mais elevado? Ao se
defrontar com tais indagações, o pós-estruturalismo demonstra sua
fragilidade, enquanto base teórica e conceito potencialmente pedagógico.
Ambicionamos sustentar, dessa forma, que a crítica à razão, a partir
de tendências céticas e irracionalistas, é autodestrutiva. Na rejeição das
bases da tradição, destrói justamente aquilo que poderia salvá-la. Tal
postura fragmenta ainda mais o currículo e legitima práticas esvaziadas de
conteúdo, podendo aprofundar ainda mais os problemas que já existem na
formação educacional.
Entendemos, assim, que tomar a diferença no campo afirmativo
aprisiona ainda mais os indivíduos nos moldes da sociedade administrada,
no plano da não liberdade, privando-os do acesso aos instrumentos
conceituais que poderiam promover a tomada de consciência sobre as
condições objetivas que os aprisionam.
Apresentamos a dialética negativa como suporte teórico mais
adequado para escapar das armadilhas conservadoras tão presentes no
cenário nacional atual. A diferença, em termos dialéticos, nos permite
realizar uma leitura para além da singularidade absoluta do plano empírico.
Para a teoria crítica, a autorreflexão crítica da razão, tarefa exigida
na modernidade, pode ser empreendida pelo pensamento dialético,
enquanto instrumento capaz de superar suas próprias limitações. O
método dialético negativo é adequado para preservar as diferenças e as
144
singularidades do objeto, na confrontação permanente da identidade com
a sua não identidade. Propõe-se pensar a realidade enquanto contradição,
pensar a experiência com o mundo não reduzida ao imediato,
confrontando com o processo histórico e seus desdobramentos. Embora
precário e limitado, o instrumento para a filosofia escapar das amarras
totalitárias e mergulhar no heterogêneo é o próprio conceito.
Logo, o pensamento filosófico crítico se volta ao fortalecimento das
potencialidades latentes dos sujeitos, dos resíduos de autonomia e
liberdade, em meio à realidade social contraditória que coisifica as relações
sociais e os próprios sujeitos. À filosofia cabe a resistência e crítica à
instrumentalidade e miséria da razão e suas consequências sociais, à vida
danificada, à condição de miserabilidade humana. A dialética negativa é o
método pelo qual se tensiona a dinâmica da realidade e suas contradições,
com a força do próprio pensamento, no saber fundado na razão.
Cabe ressaltar, por certo, que o totalitarismo do esclarecimento é
criticado e posto em pauta de maneira contundente, em diversos
momentos, pelos teóricos críticos, que nos alertam sobre o quanto é preciso
refletir sobre as novas formas de ofuscamento da realidade, as quais, sob a
aparelhagem tecnológica, substituem as formas míticas. Na exposição do
imbricamento inevitável entre progresso e regressão, denunciam o caráter
totalitário do pensamento e suas pretensões autárquicas transpostas pelo
princípio da identidade.
Conforme vimos no primeiro capítulo, na Dialética do
esclarecimento, os autores denunciam o caráter instrumental e totalitário
que a razão assume, ao imprimir no domínio cego da natureza sua forma
de progresso, que desemboca, em sua forma mais sofisticada, nos moldes
científicos positivistas que conhecemos hoje. O procedimento positivista
reprime a diferença e elimina a possibilidade de expressão do diferente,
exclui aquilo que não se enquadra na fórmula matemática, ao sempre
145
idêntico. Na Dialética negativa, Adorno refuta as pretensões de
absolutização do pensamento postas pelos sistemas filosóficos e pela
dialética hegeliana e dá ênfase ao caráter negativo que a dialética deve
assumir, bem como no trabalho de autorreflexão crítica sobre essa
insuficiência. Ou seja, em ambas as obras, o diagnóstico é de reificação do
pensamento, o qual é submetido ao plano utilitário sob a ordem do
enquadramento lógico, e as singularidades do objeto são recalcadas,
aprisionadas pelo princípio da identidade. O pensamento da identidade
assume como totalidade a lógica do mercado e reduz as relações humanas
ao valor de troca.
Nesse exercício reflexivo, enfatizamos o quanto é importante que
o currículo preserve a consciência sobre os processos ideológicos que
permitiram e permitem a barbárie, na disposição, problematização e
confrontação de conteúdos objetivos históricos, que possibilite o
enfrentamento da instrumentalidade técnica e irracional presente nas
relações pedagógicas, e alargue a maneira de olhar para o mundo. O
aparato conceitual é necessário para o reconhecimento da relação entre
educação e dominação, para a compreensão e a conscientização de como
se articulam as contradições na preservação da heteronomia da organização
social e das instâncias mediadoras reforçadoras de tal configuração, as
quais, nesse bojo, legitimam a exclusão e o extermínio do outro.
Abdicar dos recursos da teoria é, portanto, negar possibilidades
históricas, abdicar da compreensão da forma histórica pelo qual se
objetivou o progresso que gerou as condições da barbárie, é abdicar da
apreensão de suas determinações concretas, na emergência da noção de um
sujeito fragmentado que liquida as promessas do sujeito como agente
histórico. Tal postura renuncia pensar uma educação para a emancipação,
uma formação para a autonomia.
146
Tomando como base de análise a teoria crítica da sociedade,
entendemos a escola enquanto espaço social, para que os indivíduos
percebam as relações sociais historicamente construídas. Sem a
confrontação com conteúdos universais, os indivíduos são privados dos
instrumentos intelectuais que poderiam habilitar a compreensão do
entorno social, privados de compreender a constituição do movimento
histórico, suas potencialidades e as promessas não cumpridas, limitados aos
referentes estabelecidos no plano imediato, que é mediado e possui estreita
relação com uma experiência formativa tolhida. Ou seja, cremos que a
experiência formativa somente se realiza através da experiência
autorreflexiva, da razão em sua dimensão emancipatória, o que buscamos
fundamentar neste texto.
Para opor-se a tais movimentos, para que haja resistência e resgate
da dignidade humana e seus direitos, a diferença deve ser acompanhada de
uma reflexão mais ampla, de caráter dialético, sendo necessária a
confrontação com os potenciais universais de racionalidade e liberdade.
Apontamos o caminho da dialética negativa, como forma de superar os
discursos pautados na ordem da estereotipia, que cristaliza discursos e
práticas preconceituosas. É preciso munir-se de instrumentos teóricos que
reflitam e problematizem sobre os potenciais universais de liberdade. O
acesso ao saber sistematizado possibilita o combate ao preconceito, o
rompimento com os estereótipos.
Como vimos, neste trabalho, conforme as categorias dialéticas
negativas, entender a razão como categoria universal não se trata de
abstração, pelo contrário, a verdadeira abstração é a absolutização da
particularidade, que hoje se reveste tanto dos discursos conservadores, que
visam a uma educação neutra, como de discursos de esquerda, os quais
carregam a bandeira da diferença que se limita ao plano empírico da
experiência sensível.
147
A tarefa vital que se coloca para a educação é dotar os indivíduos
da capacidade crítica para enfrentar a aparência do mundo administrado,
que permita a reflexão crítica sobre as condições objetivas, a consciência de
que as condições que tornaram Auchwitz possível ainda permanecem.
148
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Pareceristas
Este livro foi submetido ao Edital 001/2021 do Programa de Pós-graduação em
Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, câmpus de Marília e
financiado pelo auxílio nº 0798/2018, Processo Nº 23038.000985/2018-89, Programa
PROEX/CAPES. Contamos com o apoio dos seguintes pareceristas que avaliaram as
propostas recomendando a publicação. Agradecemos a cada um pelo trabalho realizado:
Adriana Pastorello Buim Arena
Alberto Luiz Pereira da Costa
Alexandre Filordi de Carvalho
Américo Grisotto
Ana Claudia Saladini
Ana Maria Klein
Angelica Pall Oriani
Carlos Bauer
Carlota Boto
Celia Regina Rossi
Cinthia Magda Fernandes Ariosi
Claudia Cristina Ferreira
Cristina Maria Carvalho Delou
Daniel Ferraz Chiozzini
Domingos Leite Lima Filho
Erika Porceli Alaniz
Francismara Neves de Oliveira
Genivaldo de Souza dos Santos
Giza Guimarães Pereira Sales
Joana Tolentino
Jose Deribaldo Gomes dos Santos
Lalo Watanabe Minto
Lia Leme Zaia
Luciana Aparecida Nogueira da Cruz
Luciano Mendes de Faria Filho
Márcia Lopes Reis
Maria Cristina da Silveira Galan Fernandes
Maria de Fatima Felix Rosar
Maria José Viana Marinho de Mattos
Maria Lucia Marques
Marta Sueli de Faria Sforni
Mauro Castilho Gonçalves
Nadia Aparecida Bossa
Nilza Sanches Tessaro Leonardo
Ofelia Maria Marcondes
Olga Maria Piazentin Rolim Rodrigues
Rita Melissa Lepre
Sandra Aparecida Pires Franco
Simone Wolff
Sonia Bessa da Costa Nicacio Silva
Virgínia Pereira da Silva de Ávila
Comissão de Publicação de Livros do Edital 001/2021 do
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus de Marília
Graziela Zambão Abdian, Patricia Unger Raphael Bataglia,
Eduardo José Manzini e Rodrigo Pelloso Gelamo
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Lívia Pereira Mendes
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
A valorização orgulhosa dos particularismos culturais no campo educa-
tivo está longe de se constituir como um paradigma isento de proble-
mas a serem pensados pelos educadores, e é justamente essa fraqueza da
agenda pós-moderna que Renata Peres Barbosa se propõe apresentar e
tensionar intelectualmente. Para esse objetivo, a autora conta com um
instrumental teórico muito consistente, que se baseia nas reexões dos
lósofos da Escola de Frankfurt, em especial Theodor Adorno, que é um
de seus mais importantes pensadores. O argumento central da autora
consiste na tese de que a pós-modernidade, em sua atividade febril de
contestar a universalidade ocidental, acabou produzindo efeitos irracio-
nalistas, dadas suas tendências de fetichização da diferença como núcleo
incontestável de libertação dos particularismos reprimidos. A partir da
perspectiva de Adorno, Renata expõe a necessidade de uma confronta-
ção dialética entre as particularidades culturais e os conceitos universais,
com o objetivo de preservar a diferença em sua condição de não-iden-
tidade.
PENSAMENTO PÓS-CRÍTICO,
CURRÍCULO E TEORIA CRÍTICA
Renata Peres Barbosa é Doutora em Edu-
cação pelo Programa de Pós-graduação em
Educação Universidade Estadual Paulista
UNESP - Campus de Marília e Professora
do Setor de Educação da Universidade Fe-
deral do Paraná. Desenvolve pesquisas no
campo do currículo e das políticas curricu-
lares tendo como referenciais conceituais a
Teoria Crítica da Sociedade e Educação, em
especial, Theodor Adorno, Max Horkhei-
mer e Herbert Marcuse.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0798/2018
Processo Nº 23038.000985/2018-89
Este livro originou-se da tese de Dou-
torado em Educação da Faculdade de
Filosoa e Ciências da Universidade Es-
tadual Paulista UNESP - Campus de
Marília, defendida em março de 2017.
A banca examinadora foi composta pe-
los professores Doutores Sinésio Ferraz
Bueno (orientador), Alonso Bezerra de
Carvalho, Ari Fernando Maia, Bruno
Pucci e Divino José da Silva.
PENSAMENTO PÓS-CRÍTICO, CURRÍCULO E TEORIA CRÍTICA
Renata Peres Barbosa
SINÉSIO FERRAZ BUENO
aproximações, tensões
Renata Peres Barbosa