O livro apresenta uma dura crítica
ao cânone e à tradição de um ensino de -
losoa que, historicamente, tem fomentado
o epistemicídio, silenciando, desqualicando
e invisibilizando saberes não eurocentrados,
brancos e heteropatriarcais e, com isso, hie-
rarquizando e excluindo seres, saberes, sabo-
res e losofares, na linguagem própria que a
obra cria e fomenta. Esse contexto alimenta
a colonialidade na qual vivemos, em espe-
cial no território brasileiro, com as marcas
que permanecem mesmo após a dissolução
dos processos de efetiva colonização, man-
tendo a dependência e a exclusão de gênero,
raça, classe e sexualidade. A partir da leitu-
ra e apropriação do texto de Amanda Ve-
loso, outros caminhos e possibilidades para
o ensino de losoa podem ser abertos, em
especial na experiência atual de reformas da
educação básica, que fragilizam a presença e
a manutenção da losoa, seus conhecimen-
tos e as habilidades que desenvolve com as/
os educandas/os em fase de formação.
O livro adota metáforas que aproxi-
mam o ensino de losoa à natureza, trazen-
do a importância de um sentir-pensar inte-
grado, esgarçando as hierarquizações entre
os seres, explodindo qualquer viabilidade
para o projeto colonial-capitalista-indus-
trial-heteropatriarcal-urbanizado da moder-
nidade europeia e sua pretensão de domínio
via racionalidade instrumental. Ao contrá-
rio, o texto valoriza o solo, as raízes, fungos,
bactérias, ervas, cipós e seus nós nós que
estruturam o conhecimento, nós que trazem
a emergência dos sujeitos coletivos.
A obra A losoa e seu ensino podem
colaborar para adiar o m do mundo? faz-nos
olhar crítica e propositivamente a docência
e o ensino e a aprendizagem da losoa, em
especial na educação básica, colocando em
xeque a nossa prática. Ao confrontá-la com
o que há de mais relevante na vida e suas po-
tências, este livro nos oferece caminhos vi-
tais para outros modos de fazeres e saberes
losócos que nutram o mundo e a diversi-
dade de existências.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio 0798/2018
Processo 23038.000985/2018-89
O livro tem como hipótese que o ensino de losoa precisa ser repensado
para lidar com os tempos urgentes que vivemos, rompendo com a aborda-
gem eurocêntrica e com a concepção de humanidade racional que alicerça o
fascismo e o especismo que destroem as condições de vida no planeta. Com
uma perspectiva losóca ecológica defende-se uma compreensão do ensi-
no de losoa de forma emaranhada ao contexto e os seres que, como nós,
compõem o ambiente, tendo como professores/as da vida o solo, as árvores, as
ervas, as bactérias, os fungos, os microrganismos e os mangues. Um losofar-
-com conectado com os devires da vida no planeta através de linhas de fuga
das ideologias de superioridade de um tipo de humanidade, aprendendo com
as sabedorias da terra na forma de uma ecosoa que articula ética, política e
estética como dimensões de uma mesma percepção sobre a existência.
A FILOSOFIA E SEU
ENSINO PODEM
COLABORAR PARA
ADIAR O FIM DO
MUNDO?
JOANA TOLENTINO BATISTA
Amanda Veloso
A FILOSOFIA E SEU ENSINO PODEM COLABORAR PARA
ADIAR O FIM DO MUNDO?
A FILOSOFIA E SEU ENSINO PODEM COLABORAR
PARA ADIAR O FIM DO MUNDO?
Amanda Veloso Garcia
Amanda Veloso Garcia
A FILOSOFIA E SEU ENSINO PODEM COLABORAR PARA
ADIAR O FIM DO MUNDO?
Ma
rília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
D
iretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Graziela Zambão Abdian
Patrícia Unger Raphael Bataglia
Pedro Angelo Pagni
Rodrigo Pelloso Gelamo
Maria do Rosário Longo Mortatti
Jáima Pinheiro Oliveira
Eduardo José Manzini
Cláudia Regina Mosca Giroto
Auxílio Nº 0798/2018, Processo Nº 23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES
F
icha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Gar
cia, Amanda Veloso.
G216f A filosofia e seu ensino podem colaborar para adiar o fim do mundo? / Amanda Veloso
Garcia. Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2021.
496 p.: il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-183-6 (DIGITAL)
ISBN 978-65-5954-182-9 (IMPRESSO)
1
.
Fi
losofia - Ensino. 2. Filosofia América latina. 3. Ecologia - Filosofia. 4.
Descolonização. I. Título.
CDD 370.1
C
opyright © 2021, Faculdade de Filosofia e Ciências
E
ditora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - c
ampus de Marília
DOI: https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-183-6
A todas vítimas e afetados pela pandemia de Covid-19 e às populações que
sobrevivem há séculos às necropolíticas hegemônicas.
Aos nossos parentes humanos e mais que humanos nesses tempos urgentes.
Às bactérias, fungos, ervas, cipós, árvores e solos companheiros que nos dão
vida, energia, pensamentos e nos com-põem de muitas formas.
Agradecimentos
A proposta que trago neste texto deve muito à convivência, e todo
aprendizado proporcionado por ela, com o Prof. Rodrigo Pelloso Gelamo.
A sua orientação acolhedora de diferenças, expressa na convivência de por
enquanto onze anos de diálogos, possibilitou escrever estas páginas, pois
nada disto não poderia ser pensado sem o espaço proporcionado por esta
orientação. O Prof. Rodrigo, por sua natureza acolhedora de divergências,
expressa a proposta que trazemos aqui, e, por isso, é o grande responsável
por sua existência. Muito obrigada por tudo!
Agradeço também à minha família por sempre incentivar,
especialmente à minha mãe Angela Elisa de Cássia Veloso Garcia por me
ensinar o potencial de ser educadora, a meu pai Flávio Henrique Garcia
por compartilhar comigo o amor pela natureza, a meu irmão Luis Eduardo
Veloso Garcia por desde sempre me provocar a pensar o mundo de uma
maneira mais sensível, e a meu irmão Vinicius Veloso Garcia por todo o
suporte. Muito obrigada pelo apoio Monica Veloso de Godoi, Aline
Veloso de Godoi, Silvano Matos Pereira e Angelina Veloso de Godoi.
Agradeço ao Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de filosofia
(ENFILO), especialmente ao amigo Augusto Rodrigues, que teve
contribuições durante todo o percurso de pesquisa. Também agradeço a
Renato de Oliveira Pereira, Joaquim Felipe Mourão, José Roberto
Sanábria e Daniel Salésio Vandresen que leram e ajudaram a pensar este
texto.
Muito obrigada às companheiras e companheiros do IFRJ,
estudantes e servidores, a quem agradeço por grande parte das reflexões
que compartilho e principalmente por toda a força que possibilitam no
cotidiano. Um agradecimento especial aos/às amigos/as do Grupo
Interdisciplinar de Pesquisas e Práticas em Educação (GIPPEd), do Núcleo
de estudos afro-brasileiros e indígenas (NEABI) e do Núcleo de estudos de
gênero e diversidade sexual (NUGEDS).
Agradeço pela parceria e amizade fértil de divergências de Roberto
César Alves da Silva, Iraceles Ishii, Vinicius França de Sene, Eliton Dias,
Mariana Vitti, Edilene de Souza Leite, Silmara Cristiane Pinto e Sara
Morais da Rosa.
Agradeço aos Profs. Wanderson flor do nascimento e Alonso
Bezerra de Carvalho pelas enormes contribuições durante a qualificação e
a defesa deste texto. Agradeço às Profas. Joana Tolentino e Maria Eunice
Quilici Gonzalez pelas contribuições na defesa. Cada um/uma com muita
generosidade possibilitou não apenas um texto com menos falhas, mas
também mudanças profundas em minha atuação docente através de seu
exemplo como educadores/as! Agradeço também aos Profs. Genivaldo de
Souza Santos, Sinésio Ferraz Bueno e Alik Wunder, suplentes desta banca,
mas que têm contribuições para além deste texto.
Agradeço à Renata Gelamo e Iraceles Ishii pelas imagens que estão
no texto e que conseguiram expressar minha percepção sobre a existencia,
e à Haydée Nascimbeni Rodrigues pela cuidadosa e generosa revisão deste
texto.
Por fim, agradeço à CAPES que financiou o momento inicial desta
pesquisa, bolsa sem a qual certamente não teria sido possível me dedicar a
um doutorado.
“O futuro não demora.” (Baianasystem, música “Fogo”, 2020)
“Que essa merda toda vire adubo.” (anônimo)
“Temos que parar de nos desenvolver e começar a nos
envolver.” (Ailton Krenak, 2020b, p. 24)
Sumário
Introdução ..................................................................................................... 13
Capítulo 1 – Políticas do ensino de filosofia: em que solo pisamos? ................. 33
Apresentação .............................................................................................. 34
1.1 Aspectos de ser estudante ..................................................................... 34
1.2 Aspectos de ser docente ........................................................................ 46
1.3 Modelo de educação dominadora: currículo e experiência .................... 57
1.4 Filosofia e seu ensino no Brasil ............................................................. 73
Capítulo 2 - Na árvore do pensamento filosófico: raízes do universo narcisista
...................................................................................................................... 97
Apresentação .............................................................................................. 99
2.1 Raízes coloniais: a construção hierárquica das diferenças como
desigualdades naturais ................................................................................ 99
2.2 Raízes patriarcais: a invenção do gênero ............................................. 125
2.3 Raízes especistas: o excepcionalismo europeu e a coisificação .............. 139
2.4 Raízes monoculturais: controle e eliminação das diferenças em prol de
um mundo capitalista .............................................................................. 157
2.5 Raízes logocêntricas: a “alucinação narcisista” .................................... 179
Capítulo 3 - Nas ervas do pensamento filosófico: rizomas antinarcísicos ...... 201
Apresentação ............................................................................................ 203
3.1 Devir erva-daninha: diferenças como potencial .................................. 204
3.2 Rizomas do ser ................................................................................... 225
3.3 Ecologias nas costuras do mundo: para além do discurso do
desenvolvimento sustentável .................................................................... 244
3.4 Ervas dos saberes ................................................................................ 270
Capítulo 4 - Nas bactérias e fungos do pensamento filosófico: decomposição da
alucinação narcisista ..................................................................................... 289
Apresentação ............................................................................................ 290
4.1 Nas costuras entre mundos ................................................................ 291
4.2 Alianças entre mundos mais que humanos ......................................... 311
4.3 Nos micélios do fazer mundos............................................................. 325
4.4 Devir simpoiético para uma cosmopercepção sobre o conhecimento de si e
do mundo ................................................................................................ 351
Capítulo 5 – Nós do filosofar: com-posições cosmopolíticas para adiar o fim dos
mundos ....................................................................................................... 375
Apresentação ............................................................................................ 376
5.1 Ecologias da existência: devir cipó ....................................................... 377
5.1.1 Nós do pensamento: aspectos de uma possível ecologia da mente 379
5.1.2 Nós dos saberes: aspectos de uma possível ecologia das
epistemologias, sabores e filosofares ...................................................... 407
5.1.3 Nós dos mundos: aspectos de uma possível eco-ontologia social
e planetária .................................................................................. 430
Considerações Finais .......................................................................... 455
Referências ......................................................................................... 467
Sobre a autora .................................................................................... 495
13
Prefácio
Uma ecosofia das relações:
e se a filosofia pudesse adiar o fim dos mundos?
Tenho dificuldades de escrever prefácios. No caso deste primeiro
livro da Amanda, minha tarefa torna-se ainda mais difícil, porque o texto
conta com a magia suficiente para encantar o leitor e, seguramente, com
uma potência de pensamento que vai incomodar a muitos. Isso, em si, já
tornaria um prefácio, além de tudo, desnecessário e inconveniente. Desse
modo, as palavras que se seguirão dizem menos sobre o livro do que
deveriam. Afinal, o que eu poderia dizer de um livro cujas intensidades e
pensamentos se dizem por si mesmos? Nada. Sinto-me um infans, sem
palavras para expressar. Mesmo assim, vou ensaiar algumas palavras, ainda
que desnecessárias, na tentativa de encontrar um sentido para aquilo que
o livro move em mim. Por isso, esse prefácio será muito mais um grito, ou
um sussurro.
Normalmente nos prefácios, assim como na filosofia (ou
especialmente na filosofia), escrevemos sobre os livros e os interpretamos;
lançamos luz sobre seus aspectos e antecipamos aquilo que o leitor
encontrará neles. Como se sabe, o objetivo do prefácio é escrever sobre o
livro, e escrever sobre algo é uma técnica que a filosofia acadêmica nos ensina
ht
tps://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-183-6.p13-22
14
muito bem. Por isso, em tese, não deveria haver dificuldades em escrever
um prefácio.
No caso do livro da Amanda, escrever sobre ele é um desafio quase
intransponível, pois, como escrever sobre um livro cuja concepção de
filosofia não se restringe à escrita? Teríamos de escrever sobre algo que não
aceita que sobre ele se escreva. Eis o nó. A saída talvez seja relatar uma
experiência. Por outro lado, discorrer sobre a experiência de pensamento
da Amanda é algo muito complexo, uma vez que seus caminhos na filosofia
não são retilíneos. Ao contrário, percorrem trilhas estreitas, entram em
cavernas obscuras, saltam de penhascos, apoiam-se na areia movediça, e,
especialmente, não têm um "filósofo de estimação". Amanda tampouco
quer fazer a interpretação de algum filósofo. Isso torna as técnicas que
aprendemos de escrever sobre, de analisar e interpretar textos insuficientes
para tal.
Por outro lado, os problemas que a Amanda coloca são como teias
repletas de injunções problemáticas, forçando-nos a percorrer os caminhos
por ela cartografados com muito cuidado, levando-nos a experiências-
limite. Muitas vezes isso se dá com a iluminação de uma lamparina para
não ofuscar, com o excesso de luz, as nuances de seu pensamento, o que
torna a tarefa de interpretar, narrar ou comentar, impossível. Nesse
sentido, a possibilidade que encontrei de me relacionar, simultaneamente,
com seu livro e com suas experiências, foi o testemunho.
Testemunhei esse acontecimento e vou inventar uma forma de
expressar, do meu modo, aquilo que vivi com a Amanda. Vou dizer, então,
aquilo que vivemos juntos nessa jornada e durante o tempo em que tive a
oportunidade de trilhar, junto a ela, um caminho. Digo isso porque
certamente este livro se iniciou antes de nos encontrarmos e continua a ser
15
escrito depois de a Amanda-lo submetido a análise. Além do mais, há de
se considerar que nenhum livro diz tudo o que o seu autor gostaria de ou
teria a dizer.
Penso que o livro da Amanda diz muito, mas, ao mesmo tempo,
diz muito pouco de tudo o que teria a dizer. Assim, essas páginas que se
seguem ao prefácio expressam apenas alguns vestígios da filosofia e da vida
filosófica vivida pela autora. São apenas rastros de alguns dos muitos
caminhos trilhados e de experiências vividas. É aquilo que se vê quando se
lança um olhar sobre os ombros, para um passado, para as marcas deixadas
pelo caminho. Meu privilégio foi ter podido fazer parte de alguns desses
momentos quando pudemos caminhar juntos, muitas vezes em silêncio,
outras, provocando-nos mutuamente e em raros momentos concordando
sobre algo. Isso tornou nossos encontros povoados de dissenso e nos
ajudou a ter de deixar de lado alguns dos valores que carregamos
desnecessariamente.
Uma noção que qualifica nossa relação de amizade no pensamento
é o desafio. Desafiamo-nos mutuamente desde 2010, quando a conheci
em um processo seletivo do PIBID. Ela não se tornou minha orientanda
nesse projeto, mas, daquele momento em diante, nossas vidas se cruzaram
e vivemos uma intensa relação marcada por provocações, e foram muitas,
mas especialmente por partilha de pensamentos, quase nunca de forma
pacífica. Nesses onze anos de convívio, nossos pensamentos foram
mutuamente violentados pelos signos que trazíamos à nossa relação.
Acredito que em três momentos nossa caminhada foi mais intensa. O
primeiro foi quando trabalhamos juntos em dois projetos que se
complementavam: o PIBID, que buscava olhar para a escola e encontrar
os limites e as possibilidades de ensinar a filosofia no Ensino Médio, por
meio do São Paulo faz Escola; o projeto que tinha como temática o ensino
16
da filosofia em espaços não formais e que procurava trabalhar com
adolescentes da Fundação Casa. Nesse contexto pudemos nos
problematizar, confrontar e ver a que ponto trazíamos em nossos corpos
os processos de institucionalização escolar. O segundo momento foi
quando ela se tornou supervisora dos bolsistas do PIBID e tivemos a
oportunidade de conversar muito sobre as condições institucionais do
ensino da filosofia nas escolas e atualizar as intensidades e experiências dos
projetos anteriores. E, finalmente, em sua pesquisa de doutorado, que tive
a satisfação de acompanhar e com ela aprender muito sobre possibilidades
de costurar todas essas experiências para poder pensar o ensino de filosofia
e a possibilidade de adiar o fim do mundo. Poderia acrescentar a essa lista
ainda um quarto momento, em que tivemos a oportunidade de aprender
aquilo que outros seres vivos podem oferecer e viver a experiência que
extrapola a cognição feita por um sujeito centrado em um Eu. Essa
experiência-pensamento ajudou a segurar o céu sobre nossas cabeças
enquanto procurávamos traduzir isso para, quem sabe, fazer sentido aos
outros.
Acho que nenhum de nós ensinou nada ao outro, mas aprendemos
muito juntos, especialmente a conviver. O lugar onde tudo isso se iniciou
foi a criação do Grupo de estudos e pesquisa em ensino da filosofia (ENFILO)
por insistência do grupo de estudantes e bolsistas de que a Amanda fazia
parte. Esse foi o lugar de convívio de um bando que se reunia, ora na sala
10, ora nos corredores e se perfilhava por muitos outros espaços. Acredito
que esse tenha sido o acontecimento que trouxe várias pessoas para habitar
um lugar comum e nos deter sobre esse comum, o acontecimento em que
todos nós aprendemos o valor do coletivo. Da luta coletiva. Do
pensamento coletivo. Da ação coletiva. O ENFILO foi uma criação
coletiva que aproximou pessoas e juntou seus projetos.
17
Essa multiplicidade de pessoas se reunia para pensar juntas algo
que estava posto em comum. Cada uma trazia aquilo que tinha de melhor
ou pior. Suas experiências, pensamentos, afetos, teorias. Como sempre foi
um espaço para o pensamento coletivo, a errância sempre foi uma
característica cultivada. Não havia, e ainda não há, um centro de referência
teórico. O movimento do grupo se dava por atratores que,
simultaneamente, nos organizavam e desorganizavam. O ensino da
filosofia era o vetor, nosso lugar comum. As pessoas que compunham o
grupo, suas vivências, experiências e pensamentos constituíam os múltiplos
atratores que disputavam o ensino de filosofia.
Nosso coletivo moveu-se por atratores em seus vetoriais e Amanda
exerceu uma força atratora muito grande sobre esse vetor. Ela foi um dos
múltiplos motores para que o grupo fosse um movimento coletivo que
agenciava pessoas, pensamentos e lutas. Esse coletivo, atraído pela força da
Amanda, lutou pela re-estruturação do curso de filosofia, pleiteando novas
disciplinas que tensionavam o caráter eurocêntrico da formação do
bacharel e abriu a possibilidade para que disciplinas de caráter filosófico
pudessem fazer parte do currículo de licenciatura, dando mais densidade à
formação do professor de filosofia. Esse movimento, para além das
conquistas institucionais, trouxe para o grupo que fazia parte daquele
movimento uma formação política muito densa e qualificada que reverbera
até hoje nesses corpos que já não estão mais na UNESP e que continuam
suas lutas em outras instituições.
Esse movimento formou também pesquisadores e foi responsável
por me deslocar do lugar institucional de professor responsável por formar
pessoas. Tornei-me, então, aprendiz: mais um entre os demais e mais um
entre os iguais. Nesse sentido, eu não fui o primus inter pares, como se
espera que aconteça na vida acadêmica, em que primeiro vem o professor
18
e, depois, os alunos. Ao contrário, vim depois. Fui atraído pelo movimento
articulado pelos estudantes e passei a fazer parte desse coletivo. Aprendi
com eles o valor da coletividade, uma raridade nas instituições de formação
e de pesquisa, mas talvez a única possibilidade de escapar do solipsismo
acadêmico.
Penso que o livro da Amanda seja sobre isto: o valor da
coletividade. O valor dos agenciamentos coletivos, das enunciações
coletivas, do pensamento coletivo. Mas é também uma crítica contundente
aos vários processos de formação pelos quais ela passou, que procuraram
silenciar seus afetos e seus pensamentos, um processo de assujeitamento
individualizante. Nesse sentido, este é um livro-denúncia. Ele denuncia as
mazelas da escola e da universidade com seus processo autoritários de
formação daqueles que não têm luz, seus alunos. É um livro que denuncia
os processos de individualização que produz sujeitos empreendedores de si
e egoístas. É, ainda, uma denúncia aos machismos, racismos,
eurocentrismos, privilegismos, especismos, enfim, a todo um processo
normalizador e modelador de subjetividades que visa a atender a um
"modelo de civilização" eurocentrada que, como o leitor poderá notar na
análise feita pela Amanda no decorrer do livro, está produzindo um
colapso em nosso planeta. Enfim, uma denúncia dos vários silenciamentos
pelos quais passamos.
Este é também um livro-diagnóstico em perspectiva, pois a autora
analisa sob vários ângulos as diversas experiências de formação pelas quais
passou. Assume, assim, o papel de narradora de experiências; não das suas
experiências, mas daquelas coletivas dos lugares por onde passou como
estudante e como docente de filosofia para diagnosticar as políticas de
ensino de filosofia no Brasil, em especial apresentando qual a filosofia que
vai à escola e à universidade e qual o seu papel na formação dos estudantes.
19
Procurou verificar quais foram as raízes que dão sustentação à árvore do
conhecimento, das práticas institucionais e das relações que usualmente
temos com a filosofia. Com esse olhar, destacou o enraizamento que a
colonização dos saberes produziu no modo de pensarmos a filosofia como
um processo de identificação das coisas, especificação de gênero, raça,
espécie e universalização da razão. A consequência disso foi o apagamento
das diferenças, das experiências singulares e coletivas, bem como dos
saberes produzidos por essas experiências por meio da universalização e
racionalização dos saberes. Em seu diagnóstico, Amanda mostra-nos como
nos tornamos logocêntricos, cerebralistas e exclusivistas em um processo
que chamou de "alucinação narcísica".
Mas será que a filosofia pode ainda adiar o fim do mundo? Esta é a
questão central que, a partir de suas denúncias e diagnósticos, Amanda se
propõe a responder ou, pelo menos, a ensaiar algumas respostas. Para isso,
ela pensa várias filosofias. A filosofia erva-daninha, que nasce em todo
lugar: entre paralelepípedos, nas trincas das paredes, no asfalto quente, na
terra que se junta no assoalho do carro, mas, especialmente, em todo lugar
onde a monocultura procura se instalar. O pensamento erva-daninha vem
incomodar a clareza e distinção, a sistematicidade, a lógica interna e a
monocultura da filosofia ocidental. Ela se impõe como diferença e vem
perturbar a hegemonia dos saberes colonizadores dos pensamentos. A
filosofia erva-daninha é insurgente, insubordinada, irreverente,
combatente e, especialmente, resistente. Por isso, ela insiste sempre em
aparecer e incomodar o estado de coisas que a filosofia monocultural
impõe. Talvez, uma das principais características dessa filosofia seja sua
ação coletiva.
20
Outra filosofia proposta é a microfilosofia da ocupação. Há nisso
um pano de fundo que o livro simultaneamente mostra e esconde. Talvez
seja necessário fazer uma dobra do terceiro capítulo sobre o primeiro para
perceber do que trata essa ocupação. Amanda é afeita a isso. Ela gosta de
ocupar os lugares e faz isso com muita intensidade. Sua força atratora
expande-se nos lugares por onde passa. Claro que isso nem sempre é aceito
com muita tranquilidade, pois muitos elementos que compõem o
conjunto da relação são necessariamente afetados. Pude testemunhar vários
desses acontecimentos. No ENFILO, como já narrei anteriormente, sua
ocupação trouxe um tom político necessário às discussões teórico-
acadêmicas que possibilitou mudanças internas ao grupo e ações
institucionais que ecoam até hoje. Quando foi supervisora do PIBID,
tensionou a vida acadêmica dos bolsistas, cujos efeitos se pôde notar na
participação deles nas aulas que ministro. Amanda ocupou também as
escolas onde dava aulas. O conselho de curso de filosofia. As aulas. E, como
diziam os meninos da Fundação Casa, projeto de que foi bolsista: - "vocês
entram na nossa mente". Não se ocupa um lugar, e ainda mais vários,
sozinho; é necessário um bando para isso.
A filosofia da ocupação, proposta neste livro, encontra nos fungos,
bactérias e vírus uma estratégia de contágio, de penetração e de ramificação
capaz de inocular nas pessoas uma filosofia que as arraste para fora de sua
alucinação narcísica. Inocula nelas uma potência de re-existência que as
torna capazes de criar para si um modo de vida outro. Aquilo que a
Amanda sempre perseguiu foi uma filosofia ecológica e, com o passar dos
anos, pudemos notar que sua proposta passou a ter um sentido, ao mesmo
tempo, plural e pungente. Sua ecosofia ultrapassa as sobreposições,
interações ou mesmo diálogos entre os seres, entre sujeitos e animais e
plantas e fungos e bactérias e vírus e pedras. Penso que a palavra que mais
21
se aproxima da sua proposta é o emaranhado. Uma trama de seres que se
relacionam, convivem e sobrevivem mutuamente em simpoiésis,
produzindo, assim, subjetividades múltiplas (se é que é possível falar ainda
em subjetividade). Com isso, há a re-composição de práticas sócio-esteto-
eto-políticas em que as multiplicidades podem se expressar sem
hierarquias.
Neste livro, o leitor encontrará uma fina ontologia das relações. Um
convite a pensar para além do antrophos e do logos. Este talvez seja o grande
desafio que a Amanda se coloca: pensar um ensino de filosofia que não
seja, eurocentrado, heteronormativo, segregacionista, capitalocêntrico e
antropocêntrico. Sua proposta coloca em conexão saberes múltiplos e mais
do que humanos, uma ecosofia relacional em que todos aprendem a pensar-
com no lugar onde se vive, com suas disputas e cooperações, onde todos
nós nos relacionamos e podemos, ou devemos, multiplamente cooperar,
que somos destinados a nos relacionar. Talvez essa ecosofia das relações
proposta pela Amanda possa nos ajudar a colaborar para adiar o fim dos
mundos ou, pelo menos, tornar o mundo mais pluriversal nas relações a
ele imanentes.
A juventude da Amanda contrasta com a força e a densidade que o
leitor irá encontrar aqui. Penso este livro como uma genuína filosofia
brasileira. Uma filosofia feita no Brasil e por uma brasileira. A alegria toma
o meu corpo ao dizer isso. Estou diante de um acontecimento. Um
acontecimento que tem mudado a história filosófica de nosso país: o
direito à filosofia. Já não é um ou outro que vem fazendo isso. Já não são
individualidades geniais que estão fazendo filosofia em seus quartos de
estudo. É um bando. Um bando com sede e fome de filosofia. Um bando
que não se submete ao silenciamento histórico que se pode notar no Brasil.
É nesse bando e nessa luta que a Amanda se encontra. Foi isso que pude
22
acompanhar nos anos em que tive o privilégio de estar perto o suficiente
para aprender com ela e longe o suficiente para não atrapalhar. Ademais,
sou grato por poder presenciar e testemunhar esse acontecimento. Estas
são apenas as minhas impressões. Convido o leitor a desfrutar o livro com
cuidado e tirar dele as próprias impressões.
Rodrigo Pelloso Gelamo
23
Introdução
Estamos num fim de mundo. Pelo menos desse mundo que todo mundo acha
que pode saquear. [...] Se tem uma parte de nós que acha que pode até colonizar
outro planeta, significa que eles ainda não aprenderam nada com a experiência
aqui da Terra. E eu me pergunto quantas Terras vamos ter que consumir até essa
gente entender que está no caminho errado. (KRENAK, 2019c, n.p.)
Começo
1
esta introdução evidenciando a partir de qual lugar
escrevo. Cresci literalmente na beira em muitos momentos dentro do
rio Paranapanema na cidade de Piraju (SP), que em seu nome pira+iju,
que significa “peixe amarelo”, já mostra sua ancestralidade Guarani, povos
expulsos do território. Infelizmente a região se tornou governada por
barões do café, além de ser uma das cidades que sofre com o impacto de
usinas hidrelétricas. Hoje, são quatro barragens, responsáveis pelas
mudanças drásticas na reprodução de peixes o que fica evidente nas
memórias que tenho da infância , mudanças no clima, problemas que
envolvem a ausência de mata ciliar e o assoreamento do leito, proliferação
de doenças transmitidas pelas águas, entre outros. Frequentemente voltam
especulações de construção de mais uma barragem, provocando
mobilizações da população que vem se colocando contrária. Atualmente
1
Alerto que o texto que se segue em alguns momentos adota a primeira pessoa do singular para expressar
situações vivenciadas de modo singular pela autora. A adoção da primeira pessoa do plural, para além de
uma norma, será usada na maior parte do texto considerando que os debates enunciados se referem a
experiências coletivas ou que podem ser comuns a outras pessoas.
24
moro em Volta Redonda (RJ), onde da janela da casa em que moro vejo a
Companhia Siderúrgica Nacional emitindo poluentes o dia todo, o que me
leva à forte sensação de que tais processos de destruição, como aqueles que
vivenciei em Piraju, estão por toda parte.
O problema que leva a existência desse texto é resultado de uma
reflexão sobre minha experiência com o ensino de filosofia enquanto
estudante, docente e filósofa. Minha formação se deu inteiramente em
instituições públicas no interior do Estado de São Paulo e, durante todo o
ensino básico, a filosofia não era uma disciplina obrigatória e, por isso,
nenhuma das instituições em que estudei ofereceu este saber. Entretanto,
o filosofar está para além de uma disciplina, bem como alguns desafios que
permeiam o ensino de filosofia são decorrentes da própria estrutura escolar
e não são exclusivos dessa área do saber. Diante disso, os processos que
envolvem a educação filosófica serão abordados de forma ampla, pensando
o ensino de filosofia de forma conectada ao contexto em que ocorre nas
instituições. No contexto atual, com a reforma do ensino médio se diluiu
a especificidade da disciplina de Filosofia no currículo básico, o que exige
investigá-la para além de uma disciplina. Minha experiência no ensino
médio sem esta disciplina também aponta para as consequências dessa
ausência de especificidade e para uma defesa necessária de sua presença.
Pedimos licença para trazer uma perspectiva sobre o ensino e a
formação em filosofia. Essa proposta é um convite para pensar um possível
impacto da forma hegemônica como concebemos a filosofia e seu ensino,
não um método, ou uma verdade unívoca. Nesse sentido, bastante parcial,
mas que encontra eco nas/os/es pensadores/as que trazemos para o diálogo
neste trabalho. Nas páginas que se seguem, sugerimos possíveis concepções
de ensino de filosofia que incentivem a conexões menos daninhas e mais
25
férteis com o mundo e também possibilitem rever a formação tanto na
universidade quanto no ensino médio.
Este texto é um convite para lembrar da finitude do mundo e
provocar o movimento de pensar sobre qual papel desenvolveremos nele.
Existem muitos sinais de que o fim do mundo já começou, seus efeitos
estão por todos os lados, as mudanças climáticas geram desabrigados e
fome em vários locais. A crise da falta de recursos alimenta a crise da
exploração, o que gera efeitos no âmbito econômico, político, social e
ecológico. Vivemos um tempo de grandes extinções e genocídios que se
amplificarão para “salvar a economia”. O que está em crise é um modelo de
civilização, é o fim deste mundo que está em voga e, se ele continuar sendo
visto como a única possibilidade, pode significar o colapso do planeta
como um todo. Precisamos refletir profundamente se queremos esse
mundo em ruínas a fim de manter vida de poucos, ou se queremos
construir outras formas de viver que rompam com a exploração de seres
humanos e não humanos. A pandemia de COVID-19 está apenas nos
dando uma amostra do futuro que está por vir.
O planeta, assim como a humanidade, é finito. Portanto, é
impossível evitar o seu fim. Porém, o processo de devastação que se
expressa tanto no domínio social quanto ambiental está em aceleração e
não são consideradas soluções adequadas. O fim de mundo de que estamos
falando diz respeito ao “conjunto das graves alterações de origem
antropogênica observadas nos processos biogeoquímicos da Terra
(COSTA, 2019, p. 6). Toda ação no planeta em que vivemos tem uma
reação e talvez já não seja possível reverter o processo de devastação
planetária:
26
podemos já ter saído da zona de segurança de três destes processos a taxa de
perda da biodiversidade, a interferência humana no ciclo de nitrogênio (a taxa
com que o N2 é removido da atmosfera e convertido em nitrogênio reativo
para uso humano, principalmente como fertilizante) e as mudanças climáticas
e estamos perto do limite de três outros uso de água doce, mudança no uso
da terra, e acidificação dos oceanos. (DANOWSKI & VIVEIROS DE
CASTRO, 2014, p. 21-22)
Nesse sentido, as próximas gerações já estão condenadas a viver em
um meio empobrecido e sórdido, um deserto ecológico e um inferno
sociológico(DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 29),
um mundo em ruínas. Esse futuro envolve “Imprevisibilidade,
incompreensibilidade, sensação de pânico diante da perda do controle,
senão mesmo perda da esperança: eis o que são certamente desafios
inéditos para a orgulhosa segurança intelectual da modernidade”
(DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 107). O que
Danowski e Viveiros de Castro chamam de “inferno sociológico” diz
respeito às consequências que a escassez provoca, as relações podem se
tornar imprevisíveis, a violência pode se tornar a principal regra de
sobrevivência.
Contudo, a reflexão sobre o apocalipse não pode se resumir ao
medo, deve ser um chacoalhão para que ampliemos a consciência sobre o
mundo. A modernidade criou a ficção da ideia de existência de um mundo
único e uma humanidade universal com uma determinada maneira de
pensar e agir. O fim do mundo que nos ocupamos neste trabalho é o fim
do mundo colonial/moderno e de uma concepção de humanidade
universal. Se a perda do mundo era um sentimento de alguns povos que
foram eliminados por genocídios em nome do progresso e do
desenvolvimento, com a crise e a violência eco-ontológica que ela traz à
27
tona, se torna uma experiência de todos/as/es. O fim do mundo é um
acontecimento fractal que já aconteceu para muitos povos e que, através
da crise da modernidade, passa a ser compartilhado. Basta considerar a
pandemia de Covid-19, um sintoma do Antropoceno que nos permite sentir
coletivamente o que é viver na beira do fim do mundo e como os
problemas experienciados são sentidos em diferentes graus por grupos
distintos. O fim do mundo que conhecemos já está acontecendo e tem a
ver com a maneira que nos relacionamos com o que nos cerca, o que pode
ser percebido através das políticas atuais que nos empurram cada vez mais
para o fim de nossa existência. Se continuarmos ignorando tudo isto, só
nos restará aceitar o “inferno sociológico” e filosófico que está por vir.
Os desafios de hoje nos obrigam a duvidar verdadeiramente de
todas as certezas indubitáveis que sustentaram este mundo. O
conhecimento tem se reestruturado por diversas “viradas” nos últimos
tempos, especialmente devido ao contato com os saberes que foram
excluídos do debate acadêmico. Encarar este mundo significa rever todas
as certezas que nos trouxeram até ele.
A história da filosofia ocidental nos conta que filosofar é lidar com
problemas. Porém, quando olhamos para a filosofia no Brasil encontramos
primordialmente comentários de livros, autores e conceitos europeus e
alguns poucos estadunidenses, mas raramente problemas que emergem do
contexto brasileiro. Nesse sentido, nosso trabalho nasce da necessidade de
pensar um problema que tem afetado o mundo todo e, em maior grau,
países colonizados como o Brasil –, e como podemos enfrentá-lo através
da filosofia e seu ensino. É necessário que repensemos qual o nosso papel
enquanto docentes, pesquisadores/as, filósofos/as/es e também enquanto
sujeitos/as/es nesse mundo que tende às ruínas. Desde nossa existência
nesse planeta, este é o pior cenário possível, especialmente porque o
28
(des)governo que temos no país tem adotado diversas formas de boicotar
a filosofia.
Contudo, o problema a que nos dedicaremos neste trabalho é: “A
filosofia e seu ensino podem colaborar para adiar o fim do mundo?”. Tal
problema decorre da constatação de que é um grande dilema de nossa
época e por estar intrinsecamente relacionado à história de nosso
continente e país. Pensar sobre a nossa existência nesse mundo e
especialmente em nosso continente passa por refletir sobre a catástrofe
ecológica. Nesse sentido, este texto é um trabalho de filosofia que se pensa
a partir da nossa atuação enquanto docente. No entanto, as questões que
pensamos nesse texto estão para além da sala de aula, pois consideramos
que faz mais sentido pensar filosofia na escola se estiver ligada ao fora, com
os problemas que invadem a vida cotidianamente. A fim de investigar se
“A filosofia e seu ensino podem colaborar para adiar o fim do mundo?”,
nosso texto se dividirá em cinco movimentos-capítulos:
O primeiro movimento deste texto consiste em investigar em que
solo está ancorado o ensino de filosofia no Brasil a partir da minha
experiência enquanto estudante, docente e filósofa. Refletiremos,
inicialmente, o que envolve ser estudante e ser docente nas instituições de
ensino, trazendo elementos de suas perspectivas e relações. Após isto,
analisaremos que modelo de ensino sustenta tais relações e, ao final, quais
aspectos envolvem a filosofia em nosso país. Nossa hipótese é de que a
filosofia no Brasil está ancorada em uma ontologia hegemônica que se
reproduz através de políticas de silenciamento das diferenças e dos
problemas do nosso território, não colaborando, assim, para adiar o fim do
mundo.
29
No segundo movimento, aprofundaremos a compreensão do
modelo de ensino de filosofia hegemônico no Brasil, investigando as
origens e causas de ontologia que o acompanham e produzem políticas de
silenciamento das diferenças. A partir de diferentes facetas de tal ontologia,
investigaremos que tipo de humanidade, de mundo e de filosofia são
produzidas por ela. Por meio de sua representação através da árvore do
conhecimento, defenderemos que a ontologia hegemônica é guiada por uma
filosofia narcisista autocentrada que hierarquiza as diferenças. Nossa
hipótese é que um modelo de ensino de filosofia ancorado em tal
ontologia, além de não possibilitar lidar com as diferenças e pensar os
problemas do mundo, colabora para a produção do mundo em colapso
que vivemos. Também apontaremos as relações entre tal ontologia
narcisista e a história da filosofia hegemônica ocidental.
Partindo da compreensão de que a crise em que vivemos no mundo
contemporâneo é resultado de uma filosofia narcisista hegemônica, no
terceiro movimento, olharemos para o mundo através de outras
perspectivas vistas como daninhas pelo saber dominante dessoterrando
concepções de conhecimento, humanidade, cultura, natureza, ecologia e
educação. Nossa hipótese é que tais perspectivas filosóficas oferecem
contribuições para um futuro do planeta por potencializarem e fertilizarem
as condições de vida através da diversidade como potencial. Neste capítulo,
utilizaremos como ferramenta anti-narcísica especialmente as
contribuições do perspectivismo ameríndio e sua ontologia das diferenças.
No quarto movimento, experienciaremos uma virada no
pensamento, visando a perceber o mundo para além de uma filosofia
narcisista. Na linha de uma ontologia das diferenças, que nos permite
pensar a vida como um emaranhado de perspectivas e seres, buscaremos
decompor o narcisismo, antropocentrismo e individualismo da filosofia
30
hegemônica. A partir de bactérias e fungos professores, vamos olhar para
relações interespecíficas e procurar observar que perspectivas tais seres nos
trazem sobre a existência nesse planeta. Nossa hipótese é que, quando
consideramos outros sujeitos/as/es, humanos e não humanos, como
mediadores do conhecimento, aprendemos muito sobre o mundo em que
vivemos, e, inclusive, sobre nós mesmos/as/es.
Por fim, no quinto e último capítulo, seguindo a transformação
proporcionada pela virada ontológica da filosofia, iremos propor sugestões
para que o ensino de filosofia possa colaborar para adiar o fim do mundo.
Em uma perspectiva ecosófica, que inclui ecologias da mente, dos saberes,
dos sabores, das práticas, da sociedade e do planeta, proporemos uma
articulação ético-político-estética para o ensino de filosofia. Apontaremos
para um ensino de filosofia com-posto por emaranhados sujeitos/as/es-
mundos, em simbiose com a complexidade do planeta e praticado nos
termos de um filosofar-com multiespécies no qual as diferenças são
negociadas e a existência é fruto de alianças.
Pretendemos pensar de que formas a filosofia pode contribuir para
uma compreensão profunda de nós mesmos/as/es através de uma reflexão
sobre o território, um filosofar que decomponha ideologias ao mesmo
tempo em que nos decompõe, de forma a evidenciar os emaranhados nos
quais estamos envolvidos/as/es tanto por outros povos quanto por outros
seres. Acreditamos que, assim, o pensamento filosófico pode contribuir
para o ressurgimento multiespécies e para um ressurgimento de nós
mesmos/as/es, retirando da invisibilidade nossa própria história. O
objetivo não é desatar os s como tensionamentos de um problema ,
mas sim possibilitar recompor os nós com as urgências do aqui-agora,
permanecendo com a complexidade dos problemas e da vida. Os capítulos
que seguem serão camadas do emaranhado que somos. Com essas páginas
31
pretendemos evidenciar os emaranhados, apontar conexões, a fim de
compartilhar o processo de virada ontológica pelo qual passamos durante
esta pesquisa, percebendo perspectivas que sequer sabíamos que existiam.
Com as páginas que se seguem, fazemos um convite para construir um
futuro, especialmente através do ensino de filosofia que é a ferramenta que
temos disponível.
33
Capítulo 1
Políticas do ensino de filosofia: em que solo pisamos?
“o que pretendem os opressores “é transformar a mentalidade dos
oprimidos e não a situação que os oprime”, e isto para que, melhor
adaptando-os a esta situação, melhor os domine.” (FREIRE, 1987, p. 39).
FIGURA 1O SOLO.
Fonte: Arquivo pessoal de Rodrigo Pelloso Gelamo.
34
Apresentação
Neste capítulo inicial, temos como objetivo entender em que solo
pisamos quando nos dedicamos ao ensino de filosofia. Para começarmos a
pensar sobre o problema-central “A filosofia e seu ensino podem colaborar
para adiar o fim do mundo?”, olharemos para as políticas oficiais e ocultas
que permeiam as instituições de ensino. Partiremos da perspectiva de
estudantes e suas relações com docentes para entender qual a natureza das
interações que ocorrem em instituições de ensino. Em seguida,
aprofundaremos na compreensão de tais relações por meio da discussão
acerca de seu modelo. E, por fim, refletiremos sobre as políticas que
envolvem o ensino de filosofia tanto no ensino médio quanto nas
graduações. Pretendemos, assim, evidenciar algumas camadas das políticas
de silenciamento que permeiam o ensino de filosofia no Brasil e que podem
dificultar um pensamento filosófico conectado com os desafios cotidianos.
1.1 Aspectos de ser estudante
Para analisarmos as políticas que permeiam o ensino de filosofia, é
essencial olharmos primeiramente para a perspectiva dos/as/es
sujeitos/as/es que justificam a existência de instituições de ensino:
estudantes. De que modo a perspectiva discente é considerada nas
instituições de ensino? Iniciamos nossa reflexão com esta pergunta por
considerarmos que ela é essencial para compreender os processos de ensino
e aprendizagem. A maneira como este processo é compreendido é
consequência de uma determinada concepção de estudante, na qual sua
perspectiva deve ser controlada, moldada, apassivada, domesticada.
35
Ainda que muitas pessoas tenham uma experiência
potencializadora com a escola e a universidade, com poucas exceções
2
minha experiência foi permeada por frustrações e silenciamentos, e isto
reflete nos apontamentos que se seguem. Em geral, estudantes são
vistos/as/es como seres sem conhecimento algum, que precisam ser
inseridos na “sabedoria universal” para que se tornem “alguém na vida”. A
perspectiva e mundo próprio de estudantes, assim como as linguagens que
costumam ter mais afinidades, como por exemplo o desenho, são vistos
como inúteis e inferiores. Em tais espaços, a única linguagem que é vista
como produção e expressão de saberes é a linguagem escrita, se ignora a
diversidade de modos de aprendizagem e as diferentes formas de expressar
saberes. Nas palavras de Santos (2007, p. 54), “nossa maneira de criar
teoria, reprime totalmente o conhecimento próprio, o deslegitima, o
desacredita, o inviabiliza”.
Em espaços institucionais, a aprendizagem é vista como
consequência do ensino e a disciplina é vista como necessária para que as
pessoas estejam aptas a receber os conhecimentos transmitidos por
docentes, os únicos detentores dos saberes. A suposta relação direta entre
ensino e aprendizagem fomenta a passividade de estudantes e, quando há
resistência, fomenta a repressão e a disciplina como parte da atividade
docente. Há um pensamento bastante presente no cotidiano das
instituições de ensino de que as dificuldades fazem parte do aprendizado,
2
Com este trabalho não pretendemos fomentar uma visão pejorativa das instituições de ensino. Nossa
preocupação é com as práticas opressoras e os danos que podem trazer para a vida de muitas pessoas. No
entanto, reconhecemos que há muitos/as/es profissionais remando contra a corrente opressora. Porém,
nossa análise nasce de uma preocupação com experiências opressoras que vivenciamos, mas
principalmente com aquelas que nos são relatadas cotidianamente por estudantes em nossa prática
docente. Entendemos que a estrutura que sustenta a educação brasileira pode ser dificultadora para que
práticas de liberdade se efetivem.
36
inclusive fomentado por docentes que se empenham nesse objetivo de
extrair supostas “superações” de estudantes.
A inferiorização da perspectiva discente fica evidente quando
estudantes propõem algo diferente das expectativas de docentes. Quem
responde diferente, erra. Quem não reproduz, erra. Quem cria, erra. E
quem insiste em errar é corrigido através de notas baixas, punições,
suspensões ou expulsões. O sistema avaliativo, bem como o uso de
punições, funcionam como silenciadores da perspectiva de estudantes. É
senso comum que não há saber e nem cultura fora dos currículos oficiais.
Tal relação ensina principalmente que saber é aquilo que é
determinado por docentes e que estudantes não têm qualquer capacidade
de determinar por si mesmos seu saber, dependendo do aval docente para
saber se está adequado ou correto, se faz sentido, se é capaz, se será “alguém
na vida”. Nesse processo, por meio da inferiorização da perspectiva
estudantil, a escola vai silenciando. Como um erro pode ser motivo de
humilhações, punições ou notas baixas, durante a escolarização
aprende-se a esperar que indiquem o que devemos fazer/pensar/ser.
Obedecer à autoridade é o principal ensinamento das instituições de
ensino, por isso dedicam a maior parte de sua força vital em promover
disciplina, cujo objetivo não é o conhecimento, mas a padronização das
pessoas, especialmente voltada para o mercado de trabalho. Outras
possibilidades de viver o descartadas e menosprezadas pelos discursos
institucionais.
Tais fatores levam à compreensão de que as relações entre
estudantes e docentes podem se configurar como formas de
silenciamento, anulando as diferenças nas diversas dimensões que
envolvem as instituições em prol de uma padronização. Nesse sentido, é
37
relevante o relato de Monique Evelle
3
que afirma que "Nunca fui tímida,
fui silenciada", associando isto especialmente ao seu processo escolar.
Monique Evelle ressalta que seu silenciamento foi principalmente
decorrente do racismo, sobre ela recaíam mais cobranças do que sobre os
demais, os saberes que faziam parte da sua realidade só apareciam no
currículo de forma negativa, além do silêncio de docentes diante das
situações racistas que vivenciava. Podemos entender o padrão que
determina o que é ou não relevante em instituições de ensino como um
dispositivo que pode impedir a fala, pois ou os saberes trazidos por
estudantes são inferiorizados e silenciados ou aparecem assimilados por
categorias hegemônicas.
Um importante dispositivo para impedir a fala e silenciar
diferenças é estereotipar e ridicularizar quem busca romper com as
situações de opressão. Djamila Ribeiro (2019, n.p.) ao discutir o
silenciamento das mulheres negras escreve:
Um dos temas que norteia o pensamento de muitas feministas negras é o
silêncio. É a importância de romper com um regime de autorização discursiva
que nos cala, hierarquiza a humanidade, nos põe na condição de outro do
humano, aquela que não é pensada a partir de si, mas sempre pelo olhar de
quem a define. Silêncio, aqui, é entendido como forma de silenciar existências
ou confiná-las a lugares marcados, subalternizados, fixos. […] Não só nossas
vozes são silenciadas, mas também nossas existências, posto que relegadas à
condição de outro. Enfrentar, ou como disse Conceição Evaristo, estilhaçar a
máscara do silêncio, torna-se fundamental para que possamos definir a nós
mesmas. […] Quantas vezes, ao lutar contra injustiças, escutamos coisas como
“deixa para lá”, “pare de criar caso”, “tenha mais senso de humor”. Interessante
perceber que a pessoa ofendida é quem precisa se calar ou ser superior
3
Monique Evelle é ativista e idealizadora do “Desabafo Social” (http://desabafosocial.com.br/) e da rede
social Ubuntu, cujo objetivo é a aprendizagem colaborativa. Disponível em:
http://moniqueevelle.com.br/blog/nuncafuitimidafuisilenciada/
38
moralmente em vez de exigir que quem ofende pare. Numa sociedade de
imagens, em que pessoas estão mais preocupadas em projetar uma estampa
revolucionária do que de fato observar seus comportamentos, fica mais difícil
não ser tachada de “louca raivosa” quando se cobra respeito. (RIBEIRO, 2019,
n.p.)
Como explica a filósofa, o silêncio funciona como um modo de
subalternizar, fixando os lugares de cada um/a/e nas hierarquias sociais nas
quais nem todos/as/es têm o direito de falar. Desse modo, o silenciamento
de vozes implica no silenciamento de existências, pois define quem pode
efetivamente existir no mundo. Como Ribeiro escreve acima, quando uma
mulher negra fala é taxada de “louca raivosa” ou “criadora de caso, como
apontava Lélia Gonzalez, o que “advém do fato de essas mulheres
precisarem gritar para serem ouvidas ou terem sua humanidade
reconhecida” (RIBEIRO, 2019, n.p.). Entretanto, ao final deste artigo,
Ribeiro faz referência à Audre Lorde para destacar que pessoas oprimidas
já se encontram vulneráveis, e que perpetuar o silenciamento não melhora
suas vidas, apenas coloca o silêncio como arma nas mãos dos opressores.
Os dispositivos de silenciamento se articulam no cotidiano das
instituições de ensino especialmente através da disciplina. As relações
escolares estão engessadas por diversas normas que visam a disciplinar
estudantes, anulando sua autonomia e voz própria. Apesar das cobranças
em excesso, estudantes são tratados de forma infantilizada, não tendo voz
nas comissões/conselhos disciplinares das escolas e nem podendo se
defender de supostas acusações. Isto se constitui de um tipo específico de
dominação na qual adultos, através da inferiorização, silenciam crianças e
adolescentes, o que pode dificultar que consigam denunciar crimes
sofridos. Mesmo que as escolas pensem na integração de conteúdos, pouco
se pensa de forma integrada nas pessoas que permeiam seus espaços.
39
Julio Groppa Aquino (1998, n.p.) colabora no entendimento desse
problema refletindo acerca do estereótipo de “estudante-problema”:
O aluno-problema é tomado, em geral, como aquele que padece de certos
supostos "distúrbios psico/pedagógicos"; distúrbios estes que podem ser de
natureza cognitiva (os tais "distúrbios de aprendizagem") ou de natureza
comportamental, e nessa última categoria enquadra-se um grande conjunto de
ações que chamamos usualmente de "indisciplinadas". Dessa forma, a
indisciplina e o baixo aproveitamento dos alunos seriam como duas faces de
uma mesma moeda, representando os dois grandes males da escola
contemporânea, geradores do fracasso escolar, e os dois principais obstáculos
para o trabalho docente.
Um bom exemplo da justificativa do "aluno-problema" para o fracasso escolar
é uma espécie de máxima muito recorrente no meio pedagógico, que se
traduziria num enunciado mais ou menos parecido com este: "se o aluno
aprende, é porque o professor ensina; se ele não aprende, é porque não quer ou
porque apresenta algum tipo de distúrbio, de carência, de falta de pré-
requisito."
Mais uma vez, não é algo estranho e contraditório para os profissionais da área
educacional explicar o sucesso escolar como produto da ação pedagógica, e o
fracasso escolar como produto de outras instâncias que não a escola e a sala de
aula? Isto é, se entendermos o fracasso escolar como efeito de algum problema
individual e anterior do aluno, não estaremos nos isentando, em certa medida,
da responsabilidade sobre nossa ação profissional? E mesmo se assim o fosse, o
que estaríamos fazendo nós para alterar esse quadro cumulativo?
[...] Seria o mesmo que o médico supor que o grande obstáculo da medicina
atual são as novas doenças, ou o advogado admitir que as pessoas que a ele
recorrem apresentam-se como um empecilho para o exercício "puro" de sua
profissão. (AQUINO, 1998, n.p.)
Aquino destaca que os problemas que envolvem a vida de
estudantes não são tratados como problemas das instituições de ensino,
sendo atribuídos a fatores externos, em geral a questões familiares, déficits
40
e/ou defasagens cognitivas, doenças e síndromes. Nunca há iniciativa de
entender qual a contribuição da instituição para essas situações, nem
sequer se repensa as metodologias empregadas.
Quando se trata de indisciplina considerada grave nos meios
escolares, há a adoção de suspensões e expulsões. Em nossa experiência,
tanto como estudante quanto como docente, vemos que, entre as práticas
que mais resultam em expulsão estão principalmente o uso de substâncias
ilícitas na maioria dos casos maconha e lícitas como o álcool e o
tabaco –. Embora careçam de pesquisas sobre essa temática em uma
perspectiva adequada que olhe para como a escola lida com o problema e
não para os usuários, talvez pela forte ligação entre educação e moralismo
religioso no Brasil; em uma rápida consulta em um site de buscas,
encontramos muitas páginas com notícias de expulsão de estudantes por
causa do uso de maconha. Na primeira reportagem
4
que aparece sobre o
assunto, os repórteres falaram com oito escolas, das quais sete confirmaram
que a expulsão é o procedimento padrão para o uso de maconha.
Frequentemente uso de maconha é considerado infração grave punida com
expulsão no regulamento escolar, ao contrário do assédio sexual que não
gera sequer suspensão, como já vi acontecer algumas vezes. Não cabe à
escola determinar decisões penais a estudantes, quando ocorrem crimes,
devem ser encaminhados à instância adequada. O que é de competência
das instituições de ensino é o papel educativo, ou seja, promover palestras
e debates sobre o assunto, realizar atendimento individualizado e, se
possível, psicológico, se ocupando de buscar reforçar a dignidade de
estudantes. Se as escolas realmente estivessem preocupadas com a saúde de
estudantes, não expulsariam usuários de substâncias psicoativas, levando a
4
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0112200123.htm
41
uma situação de maior vulnerabilidade social no caso de adolescentes, o
que pode agravar casos de dependência.
Acrescenta-se a tal panorama que, nas instituições de ensino, do
mesmo modo preconceituoso como atua o sistema judiciário e
penitenciário do país, é possível notar que medidas disciplinares são
aplicadas apenas para estudantes que se encaixam no estereótipo que o
poder hegemônico quer excluir. Ou seja, uma mesma situação pode levar
à expulsão de estudantes negros ou LGBTs e não gerar nem sequer uma
advertência a estudantes brancos de classe média. Em nossa experiência,
pudemos perceber essas diferenciações em vários momentos,
principalmente no Conselho de Classe, local em que elas ficam mais
evidentes.
Nesse sentido, cabe citar os últimos dados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (IBGE, 2019). No que diz respeito ao
quantitativo de jovens de 14 a 29 anosquase 50 milhões –, 20,2% não
completaram o ensino médio, nível de escolaridade em que se acentua o
abandono (IBGE, 2019, p. 10). Isto é, “10,1 milhões de jovens, dentre os
quais, 58,3% homens e 41,7% mulheres. Considerando-se cor ou raça,
27,3% eram brancos e 71,7% pretos ou pardos” (IBGE, 2019, p. 10).
Portanto, o índice de evasão escolar da população negra é muito maior do
que da população branca.
A grande maioria de docentes brancos/as/es colabora para o
racismo nas instituições de ensino, pois há uma tendência de tais docentes
em verem estudantes negros/as/es como agressivos/as/es e a tratar com
empatia estudantes brancos/as/es. Em estudo de caso realizado
comparando a autoclassificação racial de crianças e a classificação feita por
seus docentes, Marília Carvalho (2005, p. 94) concluiu que docentes tanto
42
tendiam a perceber como negras crianças com problemas de
aprendizagem, com relativa independência de sua renda familiar, quanto
tendiam a avaliar negativamente ou com maior rigor o desempenho de
crianças percebidas como negras”. Como Carvalho (2005, p. 94) explica:
o fato de a desigualdade de desempenho escolar entre brancos e negros na
escola estudada ser maior quando se usa a classificação das professoras do que
quando a autoclassificação é usada, decorreria tanto de as professoras clarearem
crianças de melhor desempenho quanto de, simultaneamente, avaliarem com
maior rigor crianças que percebem como negras. Esse fenômeno é
particularmente intenso em relação aos meninos, o que indica a presença de
uma associação, no quadro de referências utilizado pelas professoras para
avaliar as crianças, entre um tipo de masculinidade negra e o baixo desempenho
na aprendizagem. (CARVALHO, 2005, p. 94)
Tal fenômeno tem sido observado por pesquisadores em todos os
níveis de ensino, apontando também menor afetividade com crianças
negras. Fabiana de Oliveira e Anete Abramowicz (2010, p. 222) em
pesquisa realizada em uma creche observaram que as crianças negras eram
excluídas decerta paparicação que ocorria com determinadas crianças”,
de maneira que “estavam, na maior parte do tempo, “fora”, em situações
como as seguintes: recusa do contato físico em determinados momentos,
recebimento de elogios relacionados à beleza e ao “bom comportamento
e estereótipos na relação professora/criança negra”.
Em pesquisa publicada no ano de 2015, Fernando Botelho,
Ricardo Madeira e Marcos Rangel, utilizando como referências as notas do
Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São
Paulo) apontaram que estudantes negros com o mesmo desempenho de
43
estudantes brancos recebiam em média notas menores dos docentes nas
avaliações internas:
estudantes brancos têm menos probabilidade de serem considerados não
competentes (abaixo da nota para passar) do que seus colegas negros com
desempenhos e comportamentos equivalentes. Os primeiros também têm uma
probabilidade relativamente maior de serem avaliados acima da média da
classe. Quantitativamente, isso corresponde a um aumento de 4,1% na
probabilidade de retenção e uma redução de 4,5% na probabilidade de os
negros estarem no topo de sua distribuição de notas de classe (BOTELHO et
al., 2015, p. 37-36, tradução nossa).
Em um estudo recente da Universidade da Carolina do Norte,
foram mostradas imagens de crianças brancas e negras com diferentes
expressões faciais, “Quando o retratado era um aluno negro, a chance de
serem mal interpretadas era 36% superior do que um coleguinha branco
ser julgado equivocadamente. Se fosse uma menina negra, o índice de erro
era ainda mais alto, de 74%” (UOL, 2020, n.p.).
Ainda que o mito da democracia racial queira vender a
miscigenação como uma convivência pacífica, as oportunidades não são
nem um pouco iguais para pessoas brancas, negras e indígenas, o que
reflete nas estatísticas de renda, desemprego e nas taxas de evasão escolar.
Por isso, docentes brancos/as/es como nós precisam se repensar
profundamente. Nosso silêncio é o complemento perfeito da cultura do
silenciamento nas instituições de ensino. Julieta Paredes (2019b) define a
branquitude como uma decisão política de privilégio, haja vista que
“branco” é uma das categorias inventadas pelo colonialismo. Russell
Means (1939-2012) da etnia Oglala Sioux (um dos sete grupos do povo
Lakota) diz o mesmo com relação ao europeu, entendendo como
44
“europeus mentais” (2020, p. 15) aqueles que compactuam com a
manutenção dos privilégios europeus. Nessa lógica branca no sentido
político aqui expresso as instituições de ensino propagam segregação e
não conhecimento.
Para justificar o suposto completo fracasso que julgam estar a
educação brasileira, muitos recorrem a um saudosismo à escola de décadas
atrás, omitindo que esse modelo escolar era adequado à ditadura. No
contexto ditatorial, além dos conteúdos que eram ensinados pregarem a
disciplina e a submissão sem questionamento de regras, a escola era
bastante excludente e permitia castigos físicos. A defesa de uma escola
excludente é um discurso comum nas instituições. Um grande número de
docentes atribui os problemas escolares à ampliação do atendimento
escolar, com propostas e iniciativas de retomar essa escola da “exclusão
ditatorial”. Porém, a realidade que estamos discutindo neste capítulo não
está tão distante desse ensino excludente, pois inclui para silenciar
diferenças e ensinar passividade diante de um ideal de saber. A atitude de
resistência de estudantes diante das instituições de ensino está ligada a um
não pertencimento e reconhecimento que é consequência de processos de
silenciamento.
Aquino (1998) destaca que o relacionamento com os chamados
estudantes-problema” se configura como uma oportunidade privilegiada
de reflexão ética sobre as relações institucionais, apontando para outras
formas de entender o conhecimento, além de levar docentes a uma
autoavaliação, ampliando o entendimento da sala de aula e de si:
a indisciplina do aluno pode ser compreendida como uma espécie de
termômetro da própria relação do professor com seu campo de trabalho, seu
papel e suas funções. Sob esse aspecto, valeria indagar: [...] Temos nos
45
posicionado mais como agentes moralizadores ou como professores em sala de
aula? [...] Temos encarado os alunos, nossos parceiros de trabalho, como filhos
desregrados, frutos de famílias desagregadas, ou como alunos inquietos, frutos
de uma escola pouco desafiadora intelectualmente? Enfim, indisciplina é uma
resposta ao fora ou ao dentro da sala de aula? (AQUINO, 1998, n.p.)
O ato indisciplinado revela algo sobre as relações institucionais
que, muitas vezes, ignoram as subjetividades existentes. Não à toa
estudantes podem ter comportamentos considerados “indisciplinados
apenas com uma pessoa do corpo docente, ou até mesmo a “indisciplina
não atrapalhar sua aprendizagem. Tais situações apontam para as
adequações necessárias na intervenção docente em aula. Aquino destaca
ainda que a atividade docente é sempre ética e exige atenção a alguns
aspectos essenciais tais como a compreensão de estudantes-problema
como porta-vozes das relações estabelecidas em sala de aula, e
principalmente, a des-idealização do perfil de estudante:
os grandes problemas que enfrentamos hoje evocam, na maioria das vezes, este
"para quê escola?". Acreditamos, portanto, que grande parte dos nossos dilemas
de todo dia exija um encaminhamento de natureza essencialmente éticos, e não
metodológica, curricular ou burocrática.
Curiosamente, essa idéia parece apontar na mesma direção para a qual o aluno
indisciplinado está incessantemente nos chamando a atenção. É essa a pergunta
que ele está fazendo o tempo todo: para quê escola? Qual a relevância e o
sentido do estudo, do conhecimento? No quê isso me transforma? E qual é
meu ganho, de fato, com isso?
Temos conseguido responder essas perguntas quando direcionadas a nós
mesmos? Qual a relevância e o sentido da escola, do ensinar e do aprender para
nós, professores? Escola realmente faz diferença na vida das pessoas? Se ela
marca uma diferença sem precedentes, por que ela geralmente é conotada
como um lugar entediante, supérfluo, aquém da "realidade", inclusive para nós
46
mesmos? Por que nos esforçamos em imaginar, tal como nossos alunos, que a
"vida mesmo" está para além dos muros escolares? E por que é que o mundo
deixou (e parece deixar cada vez mais) de parecer com um grande livro aberto?
(AQUINO, 1998, n.p.)
As instituições de ensino, ao silenciarem a perspectiva discente,
afastam a vida do cotidiano escolar, dificultando a aprendizagem e
produzindo consequências à formação de identidade e personalidade,
inclusive gerando danos psicológicos. Nesse sentido, estudantes-
problema” não são a fonte do problema como geralmente se deduz.
Concordamos com Aquino que estudantes-problema” apontam para os
reais problemas das relações nas instituições de ensino, resistindo ao
silenciamento que lhes são impostos.
Contudo, podemos dizer que em sua maioria as instituições de
ensino têm os processos de aprendizagem cerceados por políticas de
silenciamento. O que ensinam tais políticas? Ensinam que a perspectiva
discente não é relevante, que estudantes não têm conhecimento e nem
cultura, que diferenças são erros, que a disciplina e a passividade são
essenciais para a aprendizagem e que quem resiste às opressões é o
problema”. Se a perspectiva estudantil é silenciada, a perspectiva docente
é vista como relevante? Discutiremos este ponto na próxima seção.
1.2 Aspectos de ser docente
Considerando que todo docente já foi ou é estudante, sua
perspectiva se constrói geralmente também como consequência de suas
experiências enquanto discentes, ou como reafirmação ou em
contraposição a elas. Assim como entendemos que não faz sentido
47
responsabilizar os discentes sobre o fracasso escolar, também entendemos
que não se sustenta responsabilizar os docentes. A atuação docente é
consequência de um sistema que promove uma formação voltada para um
modelo específico de educação. Não são raras formas de punição e
advertência de docentes que questionam normas impostas. Diante disso,
compreendemos que a atuação docente é resultado do silenciamento ao
qual estes foram submetidos durante seu processo de formação e
continuam a sofrer na atualidade através de alguns movimentos e políticas
educacionais.
Conforme os resultados do Censo da Educação Básica 2019, No
ano de 2019, foram registradas 47,9 milhões de matrículas nas 180,6 mil
escolas de educação básica no Brasil, cerca de 582 mil matrículas a menos
em comparação com 2018, o que corresponde a uma redução de 1,2% no
total” (BRASIL, 2019, p. 05). A redução no número de matrículas também
aparece nos resultados preliminares do Censo da Educação Básica referente
ao ano de 2020 publicados na Portaria nº 777 do Ministério da Educação,
de 28 de setembro de 2020, no qual podemos observar uma queda de mais
de 470 mil matrículas em comparação com os dados de 2019. No entanto,
ao contrário do que apresentam os órgãos públicos da educação que, no
atual momento, tentam responsabilizar docentes pela diminuição das
matrículas e pelo abandono escolar, são muito mais responsáveis por tal
situação a precarização e o desmonte da educação pública, bem como
movimentos que criminalizam a atuação docente. Movimentos que
defendem o silenciamento de docentes diante de assuntos como racismo,
sexismo e LGBTfobia contribuem significativamente para uma escola que
não dialoga com o cotidiano estudantil e, consequentemente, leva a um
desinteresse, além de aumentar a violência no espaço escolar obrigando
muitos a abandonarem os estudos. Nesse sentido, podemos dizer que as
48
políticas de silenciamento se aplicam de modo articulado a estudantes e
docentes.
Um exemplo é o “Escola Sem Partido” (ESP), que nasce como
empresa em 2004 a partir dos interesses de Miguel Nagib, afirmando ter
como objetivo defender os estudantes do “grau de contaminação político-
ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao
superior”
5
. Tal movimento é o cerne do silenciamento docente no
contexto atual, impactando profundamente nas possibilidades de
transformação do cenário descrito nas páginas anteriores. Miguel Nagib,
que se baseia em concepções estadunidenses inclusive citando
documentos , ainda afirma que “A pretexto de transmitir aos alunos uma
“visão crítica” da realidade, um exército organizado de militantes
travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina
de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de
mundo”. Conforme alerta a pesquisadora Fernanda Pereira de Moura
(2016), no site vemos que Miguel Nagib copiou trechos da “Convenção
americana de direitos humanos” de 1969 de forma desonesta, pois utiliza
artigos direcionados à religião e que tratam da educação moral dada por
responsáveis em casa para afirmar seus ideais para a educação escolar
pública, esferas que não devem coincidir para uma educação de qualidade.
O documento citado por Nagib inclusive não se refere à educação, seus
preceitos nesse campo voltam-se à afirmação da defesa dos direitos
humanos e encontram-se em documento anexo que foi ocultado por ele.
5 Todas essas informações constavam no site http://www.escolasempartido.org/quem-somos quando
acessado em 17/09/2019. Cabe ressaltar que em 2020 em nova consulta ao site, a frase citada é uma das
muitas que foram apagadas. As alterações nos sites tanto do Escola Sem Partido quanto do Instituto
Millenium demonstram uma reação às pesquisas sistemáticas na temática que vêm sendo desenvolvidas
há alguns anos. Não é mera coincidência que todas as frases referenciadas em pesquisas e artigos foram
apagadas posteriormente às suas publicações, o que pode ser comprovado por prints de diversos/as
pesquisadores.
49
O ESP se pauta, principalmente, em um modelo ideal de família
que existe em poucas casas do país e se mantém principalmente numa
aparência forjada que carrega consigo muitos problemas. Tal modelo
prega a autoridade absoluta da família, amparado em uma visão distorcida
da laicidade do Estado. Nessa perspectiva, jovens e crianças são vistos/as/es
como propriedade de responsáveis por sua tutela, sem autonomia para
pensar e tomar as próprias decisões, além de terem seus direitos negados
no que diz respeito ao contato com informações e a multiplicidade do
mundo. Como afirma Luis Felipe Miguel (2016, p. 615-616):
Ao lado da proteção aos docentes e ao próprio exercício da profissão, é
importante destacar que tais propostas atacam os direitos dos estudantes.
Receber uma educação que permita apreender o mundo de forma crítica e
questionadora, ampliando a capacidade de fazer suas próprias escolhas, é
condição para uma vida autônoma. Na contramão da ideia de que os “valores”
herdados da família devem permanecer livres de qualquer contaminação, é
importante que os estudantes tenham contato com uma multiplicidade de
visões de mundo, até para serem capazes de produzir um escrutínio crítico
sobre as próprias crenças que receberam condição indispensável para o
exercício da autonomia. (MIGUEL, 2016, p. 615-616)
O ESP, se aproveitando do conservadorismo da sociedade
brasileira, uniu-se a partir de 2010 com o fundamentalismo religioso,
utilizando a discussão sobre ideologia de gênero para se expandir e ganhar
adeptos.
Os adeptos do projeto de ESP veem docentes como inimigos que
são essencialmente doutrinadores. Tal visão é extrapolada, levando
docentes a serem comparados com abusadores, como aparece
explicitamente nas falas de Miguel Nagib em debates no congresso
50
nacional. Defensores do ESP afirmam que “professor não é educador”,
pregando que ensinar é uma atividade técnica que se ocupa da transmissão
neutra de saberes e tratando estudantes como meros consumidores/as de
saberes. Porém, A liberdade de expressão do professor não é uma forma
de irresponsabilidade; ao contrário, é uma necessidade de sua
responsabilidade profissional(MIGUEL, 2016, p. 614), pois um ensino
alienado que esconde seus pressupostos oferece mais riscos do que soluções
para estudantes, justamente por negar informações importantes para que
entendam o mundo em que vivem e, até mesmo, questionem as relações
opressoras dentro de casa e possam se defender delas. Assim, evidenciam
outras facetas da cultura de silenciamento.
No entanto, os adeptos do ESP se esquecem que a cultura
opressora das instituições de ensino não é aceita passivamente por
estudantes. Embora o modelo de ensino domesticador tente submeter
estudantes, há uma grande resistência, no entanto, tais processos de
resistência não encontram respaldo institucional. A aprendizagem é um
processo coletivo no qual docentes também aprendem. Além disso, para
qualquer processo educativo acontecer, a pessoa precisa estar disposta a ser
desafiada, algo que não é fácil de mediar no ensino médio. A perspectiva
defendida pelo ESP entende estudantes como passivos, infantilizados,
incapazes de pensarem por si mesmos, mesmos preceitos que guiam as
políticas de silenciamento das instituições de ensino. O que estamos
tentando chamar a atenção com as análises deste capítulo é, justamente,
para todo o potencial que discentes têm e que costuma ser ignorado e
desperdiçado por um modelo de ensino que, no fim das contas, ensina
quase nada sobre filosofia ou qualquer outro saber e muito sobre disciplina
e passividade.
51
Para entender o contexto de surgimento do ESP, é preciso
compreender o funcionamento do modelo de think tanks que, como define
Moura (2016, p. 23), Um Think-Tank é em geral um grupo de interesse
ou uma instituição que investe em divulgação e propagação de
conhecimento com viés político-ideológico definido e ligado a interesses
particulares deste grupo, visando transformações na sociedade. Esse
modelo ganha força nos EUA com a Atlas Network, que afirma procurar
soluções privadas para problemas públicos através de doações e
financiamento de políticos, organizações e movimentos que defendem o
livre mercado e a privatização. Há um especial interesse da Atlas Network
na política da América Latina sob a justificativa de derrubar governos ditos
“comunistas” que ganharam força na última década em vários países latino-
americanos. Estes últimos se dedicaram a implementar políticas que
favorecessem os mais pobres, fortalecendo as empresas públicas e
desafiando, com isso, a hegemonia estadunidense. Isso explica, por
exemplo, porque nove das entidades apoiadas pelo think tank Atlas
Network o brasileiras. Luiza Rabelo Colombo (2018, p. 58-59), baseada
na pesquisa de Rejane Hoeveler, explica que
o think tank Atlas Network, por exemplo, funciona como elemento comum
de conexão transnacional, uma espécie de metathinktank, atuando como
fomentador, financeiro e intelectual, de mais de 400 outras entidades similares
em todo o mundo, que por sua vez também tem como princípio a defesa de
políticas públicas orientadas para o mercado” [...]. Consideramos, pois, o
surgimento e crescimento dos think tanks neste contexto como parte das
estratégias de recomposição da burguesia no contexto em que desponta a crise
estrutural do capital, buscando a construção de consenso e consentimento em
relação ao neoliberalismo. (COLOMBO, 2018, p. 58-59)
52
Entre as principais ideias que divulgam estão a predominância do
indivíduo sobre o Estado, a liberdade absoluta do mercado e a defesa
irrestrita da propriedade privada. E, nesse sentido, se trava uma guerra
contra a suposta ameaçacomunista” e ao que chamam de “marxismo
cultural” como inimigos da família e da moral. Miguel Nagib tinha relação
íntima com o Instituto Millenium, um dos primeiros think tanks brasileiros
apoiados pela Atlas Network, inclusive escrevendo em 2009 o artigo “Por
uma escola que promova os valores do Millenium” que defendia ideais liberais
para a educação, embora o site tenha retirado recentemente todas as
referências que haviam de seu nome entre os colaboradores, a fim de forjar
uma suposta neutralidade e proporcionar uma visão de que o movimento
é resultado de um grupo de pais preocupados com a doutrinação escolar.
O apagamento da relação de Nagib com tal think tank torna
essencial explicitar seu nome neste texto, pois o que parece aos olhos de
muitos como um movimento autônomo em busca de uma suposta
“liberdade” de expressão, na verdade é fruto de interesse de pessoas como
ele, como detalha a pesquisadora Renata Aquino da Silva em artigo de
2016
6
. Neste artigo, ela indica a ligação dele com artigos e iniciativas do
ESP e interesses de forjar neutralidade, o que impactou diretamente nas
eleições dos últimos anos e, inclusive, em projetos de lei. Explicitar quem
são os indivíduos e os interesses por trás de movimentos como o ESP é
essencial para uma visão crítica e de resistência acerca dele, não à toa a
estratégia desses indivíduos foi apagar sua autoria de tais sites e artigos,
conforme seus movimentos foram conseguindo ampla adesão na
sociedade. Como Silva (2016, n.p.) explica, “o problema essencial aqui é
como estes vínculos são escondidos, objetivando manter a mentira de um
6
Disponível em: https://liberdadeparaensinar.wordpress.com/2016/04/24/a-ideologia-do-escola-sem-
partido/
53
grupo de pais preocupado com as crianças e com a aplicação das leis”. Ela
também aponta que, há alguns anos, era possível ver, juntamente aos
princípios do Instituto Millenium, a afirmação de que a educação atual
calunia o mundo real para vender a jovens imaturos, inexperientes e
presunçosos a ideia de que outro mundo é possível’”. Nosso trabalho é
justamente sobre esses “outros mundos possíveis”.
Colombo (2018, p. 60) ressalta que podemos entender a
chamada onda conservadora no Brasil também como reação ultraconservadora
à série de protestos e manifestações de rua que chegaram a reunir mais de um
milhão de pessoas em 2013, conhecidas como jornadas de junho de 2013, e à
radicalização produzida pelas formas de luta e enfrentamento produzidas neste
movimento. E é justamente neste contexto a partir de 2013 que o movimento
Escola Sem Partido vem ressurgir com um novo tipo de protagonismo ofensivo
e de estratégias de atuação. (COLOMBO, 2018, p. 60)
O crescimento de think tanks no Brasil ocorre no contexto das
jornadas de junho de 2013. Tais organizações entendem as crises de
hegemonia como oportunidades de propagação de seus interesses, gerando
confusão a fim de tornar senso comum as ideias que representam seus
interesses. Nesse sentido, usam como estratégias de conformação de
consenso o estreitamento com as instituições religiosas e o controle e
vigilância das práticas docentes.
Embora tenhamos ainda poucos anos atuando como docente, foi
possível notar uma mudança radical nas formas de controle das aulas,
inclusive por parte de estudantes. Em anos anteriores, ainda que pudessem
ocorrer reclamações sobre os saberes que apareciam em sala de aula tanto
por parte de estudantes, responsáveis e gestores, não era recorrente
54
denúncia formal. Hoje, sites como o do ESP disponibilizam modelos
prontos de denúncias e também projetos de lei relacionados , nos quais
os interessados apenas incluem seus nomes, e, com isto, incentivam uma
cultura do denuncismo e banalizam tais mecanismos. Além do que os
discursos de representantes políticos têm dado aval para membros
conservadores do judiciário cada vez mais legislarem em causa própria.
Também mudou a percepção sobre discussões de gênero e racismo.
Quando começamos a lecionar em 2013, faziam parte do currículo
estadual paulista, entretanto, quando abordamos tais temas em sala de aula
nos dias de hoje, é sempre preciso justificar, condição que, ainda assim,
não impede a reverberação de reclamações e comentários. A consequência
mais grave do ESP para a educação brasileira é calar os/as/es docentes por
medo das denúncias, retrocedendo em avanços obtidos, os quais
acreditamos que podem ser verificados pelos movimentos de ocupações nas
escolas nos últimos anos e as propostas de educação pensadas pelos/as/es
estudantes envolvidos/as/es.
Através de falsos alardes morais, difundidos especialmente nas
redes sociais, os partidos conservadores juntamente com think tanks que os
apoiam, propagam uma caça à suposta ameaça da “ideologia de gênero
nas escolas que acreditam fazer crianças se tornarem homossexuais ou
hiperssexualizadas. Tal caça mostra o quanto tais famílias estão alheias à
realidade das instituições de ensino, desconhecendo as experiências
vivenciadas por seus/suas filhos/as/es, haja vista que acreditam que tais
debates ocorrem diariamente nas escolas quando infelizmente não são tão
presentes quanto deveriam, o que também aponta para a desconexão entre
as instituições e comunidades. Nesse sentido, as tecnologias digitais têm
funcionado como arma de silenciamento de docentes, pois são utilizadas
55
para intimidar com gravações e para propagar ódio através da divulgação
sem consentimento e fora de contexto de vídeos de suas aulas.
Qual é o objetivo real de impedir que discussões de gênero ocorram
nas escolas? O Anuário de Segurança Pública 2019 apontou que 63,8% das
vítimas de estupro têm até 13 anos e 75,9% possuem algum tipo de vínculo
com o agressor, entre parentes, companheiros, amigos e outros, de maneira
que “a maior parte dos agressores são conhecidos e frequentemente tem
acesso ao ambiente doméstico da vítima ou nele habitam” (FBSP, 2019, p.
121). Em um país como o Brasil, no qual mais da metade dos estupros
ocorre em ambiente doméstico e com crianças de até 13 anos, onde o
feminicídio é uma triste realidade que chega aos nossos ouvidos pelos
telejornais diariamente, discutir gênero não pode se reduzir a opiniões
infundadas e que, inclusive, contrariam os estudos da área. Neste contexto,
é obrigação da escola discutir LGBTfobia, desigualdade de gênero e
sexualidade a fim de proteger e esclarecer crianças e adolescentes. A defesa
de uma liberdade que permite que as pessoas tenham preservada sua moral
tem servido para a ocultação de violências de vários tipos. Sob o argumento
da liberdade de expressão, tais grupos acreditam poder espancar suas
esposas, estuprar filhas, violentar filhos/as/es LGBT, serem racistas e outros
tipos de violências. E o que permite com que tais práticas continuem
presentes em nosso cotidiano é a doutrinação religiosa e a falta de
informação. Por isso, as principais vítimas são crianças, que não têm
informação sobre sexualidade e não são capazes de entender o que acontece
como violência. Contudo, é obrigação da escola oferecer educação sexual
e de gênero para ensinar crianças e adolescentes a se protegerem de
violência, doenças, gravidez, LGBTfobia, etc. Como afirma Luis Felipe
Miguel (2016, p. 615), Uma escola “sem partido” é uma escola que toma
56
o partido da injustiça e da opressão, o nosso silêncio que se finge neutro,
nesse sentido, é opressão.
Contudo, podemos dizer que o silenciamento dos estudantes
promovido nas instituições de ensino é consequência de um ciclo de
silenciamentos que se constroem tanto no plano micropolítico quanto no
macropolítico. A formação docente também é resultado de processos de
silenciamentos, o que faz com que muitos acreditem que esta é a única
forma de ensinar. Por outro lado, mesmo quem tem iniciativa de romper
com esse ciclo é silenciado de diferentes formas, por exemplo, não sendo
considerados importantes para o delineamento de políticas públicas ou
mesmo na gestão das instituições que trabalham, ou, como faz o E S P,
através de denúncias e perseguição. Assim, o silenciamento discente está
articulado profundamente com o silenciamento docente, de forma que a
imposição de um ensino alienado é resultado de processos em que docentes
também não podem expressar suas perspectivas e saberes, tendo que
reproduzir o que impõem políticas institucionais, sobre as quais não foram
consultados nem convidados a participar da elaboração.
A disciplina e o autoritarismo, entendidos no imaginário social
como parte do processo de ensino, são elementos silenciadores das
diferenças. O ensino voltado à reprodução e à disciplina resulta em uma
domesticação e exclusão das diferenças, e não em uma educação que
possibilita uma percepção-ação ampliada do mundo em que vivemos,
necessária para lidar com os desafios atuais. Para que instituições de ensino
deixem de ser um espaço de domesticação, é importante que se rompa com
as hierarquias valorizando as perspectivas de todos/as/es que as compõem.
Só assim, as diferenças podem ser entendidas em si mesmas, não mais
como erros/desvios, servindo de motivo para o diálogo constante. Tem os
como grande desafio das escolas da atualidade resgatar a concepção de um
57
mundo no qual as instituições de ensino fazem parte dotado de
diferentes sentidos, como um grande livro aberto com o qual nos
deparamos cotidianamente, e no qual a vida mesma esteja presente em
todas as suas dimensões e complexidade.
No entanto, o que aprendemos está para além dos currículos e se
apesar dele e das políticas de silenciamento. As diferenças proliferam no
(sub)mundo das instituições, mostrando perspectivas que não aparecem
nas políticas oficiais, mas que sempre estão em movimento por todas as
frestas resistindo. Porém, a pergunta que fazíamos quando éramos
estudantes, e que hoje podemos refletir mais profundamente através da
nossa atuação como docente, é: O que leva docentes a entenderem o
autoritarismo como parte dos processos educativos? O que significa esse
modelo de ensino que tem em seu bojo processos de silenciamento?
1.3 Modelo de educação dominadora: currículo e experiência
O que justifica que estudantes tenham que apenas reproduzir
passivamente e que docentes tenham sua atuação induzida a partir de
políticas externas e não no diálogo constante com estudantes é um modelo
de educação. A cultura do silenciamento que afeta todas as esferas das
instituições de ensino depende de uma compreensão do ensino de forma
hierarquizada e individualista para sua manutenção. Nessa perspectiva, o
corpo docente, que se subentende que é composto por pessoas capazes de
apreender o conhecimento do objeto digno de estudo determinado pelos
currículos oficiais que pode ser um tema, conteúdo, problema, autor, o
mundo, etc. –, tem a função de transmitir a representação adequada sobre
o mesmo para estudantes. Nesse modo de entender, estudantes são
58
vistos/as/es como pessoas de uma inteligência inferior e, portanto,
dependem da ajuda de docentes nesse processo.
Tal modelo de “ensino” é denominado por Paulo Freire (1987)
como “educação bancária”, pois consiste no “ato de depositar, de
transferir, de transmitir valores e conhecimentos” (FREIRE, 1987, p. 38):
A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização
mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em
“vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá
“enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será.
Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão.
Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos
são os depositários e o educador o depositante.
Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os
educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem.
Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação
que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e
arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que
arquivam.
[…] Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se
julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das
manifestações instrumentais da ideologia da opressão a absolutização da
ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo
a qual esta se encontra sempre no outro. (FREIRE, 1987, p. 37-38)
Neste formato, apenas educadores/as são vistos/as/es como dotados
de inteligência necessária para os saberes do mundo, educandos/as/es são
inferiorizados/as/es e infantilizados/as/es, independentemente de sua
idade. Essa narrativa propaga a ideia de que educadores/as realizam
depósitos que devem ser memorizados e reproduzidos passivamente por
59
educandos/as/es, que são mera “tábula rasa” nesse processo. A educação
bancária com seus depósitos de “falso saber” é uma forma de opressão que
serve à “cultura do silêncio”, pois nessa perspectiva cabe ao ensino
“apassivar” as pessoas para que se “adaptem” ao mundo opressor em que
vivem (FREIRE, 1987, p. 41). O objetivo dos “opressores “é transformar
a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime”, e isto para
que, melhor adaptando-os a esta situação, melhor os domine” (FREIRE,
1987, p. 39). Dessa forma, a educação se restringe a uma domesticação de
pessoas e tem como principal estratégia o autoritarismo e o silenciamento
dos saberes de educandos/as/es. Assim, a dominação se propaga porque a
escola ensina a calar diante das opressões e a reproduzir o que for
determinado, o que também permeia a formação de docentes e faz com
que também estejam acostumados a silenciar diante de situações opressoras
e a não refletir sobre o contexto a que estão submetidos/as/es.
Nesse processo em que docentes alienam o/a/e outro/a/e de seu
saber, também se alienam da sua ignorância, haja vista que parte de uma
concepção de que o saber é somente aquilo que lhe foi determinado
durante o processo de escolarização. E, assim, a partir dessa da educação
bancária docentes se tornam incapazes de perceber que o conhecimento é
um processo de busca e não um “arquivo”. Freire chama a atenção para
uma educação libertadora em que docentes não se alienem da sua própria
ignorância: “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os
homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987,
p. 44). Desse modo, seria mais adequado que a relação docente-estudante
se configurasse como uma relação entre “educador-educando com
educando-educador” (FREIRE, 1987, p. 44).
A relação de desigualdade de inteligências consiste em um mito
pedagógico porque deixa de lado a reflexão sobre a possibilidade de
60
transmissão, bem como sobre o próprio processo de docentes e estudantes
com o objeto de estudo. No cerne, está o problema de não levar em conta
o aspecto principal: a experiência que tanto docentes quanto estudantes
podem ter com o objeto, verificando os limites e possibilidades tanto da
aprendizagem quanto da enunciação do conhecimento. É dado como certo
o compartilhamento e a transmissão de representações unívocas. Tal
concepção de educação se baseia na crença da possibilidade de
compartilhamento de representações, não à toa ensino e aprendizagem são
tratados pelas teorias didáticas como uma relação direta.
Nesse sentido, ensinar consiste em transmitir representações
adequadas sobre algo. E, se a partir da experiência do/a/e outro/a/e com o
que enunciamos surgir alguma resposta ou interpretação diferente, será
taxada como “erro”. Além disso, o aspecto representativo do conhecimento
menospreza a experiência do/a/e sujeito/a/e, o que contribui para a
alienação. Tal alienação também acontece com docentes que, muitas vezes,
também não tiveram acesso ao objeto, reproduzindo representações que
lhes foram transmitidas. As mediações feitas podem perpassar por diversos
níveis, pode ser a leitura de docentes acerca de um tema, ou do texto de
comentadores, ou apenas a explicação recebida em sua graduação:
assim, o modo de olhar o mundo é delineado na repetição das pautas de leitura
das significações atribuídas pelas inúmeras mediações que antecedem e
direcionam o contato do aluno com o mundo. A forma como essa relação se
constitui evidencia, então, a questão de uma nítida desvalorização da
experiência possível de se fazer face ao conhecimento transmitido. (GELAMO,
2009, p. 119-120)
61
Nessa perspectiva, o que se pode ensinar é a imagem/representação
que se extrai de algo, e o conhecimento seria a capacidade de reproduzir
tais imagens “corretas”. Entender o pensamento como representação é
entendê-lo como uma verdade a ser reproduzida. Por exemplo, para
responder ao problema “o que é o conhecimento?” no campo da filosofia
existem como respostas possíveis a teoria platônica, kantiana, cartesiana,
entre outras. Outras respostas que fujam das amplamente aceitas são
consideradas erradas ou não relevantes. Há um paradigma que determina
o que deve ser pensado, prescrevendo movimentos limitados e finitos de
pensamento, isto é, o pensamento é entendido enquanto representação de
um polo de referência. Nesse sentido, haveria uma imagem de pensamento
que determina o que é pensar e também o que é a aprendizagem e o
conhecimento, dessa forma, aquele que não se adequar a esta não estará
desenvolvendo ou produzindo conhecimento. A representação
impossibilita outras relações com os saberes, separa o saber da experiência.
Nesse processo, o que se produz é ideologia através da universalização de
uma relação particular com os saberes.
O ensino e a aprendizagem, neste contexto, ocorrem sob a lógica
da explicação e o pensar é silenciado pelas soluções impostas legitimadas
por argumentos de autoridade. O delineamento de uma relação passiva
frente ao conhecimento nos mantém na condição infantil, em que o papel
das instituições de ensino parece ser mais o de distrair do que informar. O
modelo explicador “como uma política de ensino, silencia no aprendiz seu
pensamento pulsante, sua experiência de pensamento, para dar voz àquilo
que compreendeu pela explicação do professor” (GELAMO, 2009, p. 117-
118). Ao refletir sobre os processos de ensino da filosofia, Gelamo (2009,
p. 117) ressalta:
62
Dessa perspectiva, o pensamento dos alunos aquilo que se produziu do
contato direto do aluno com a filosofia de nada valeria, pois o que se espera
do aluno é que este adquira a representação adequada dos significados
produzidos e que consiga relacioná-los aos significantes consolidados pelo
verdadeiro pensamento filosófico. Nesse registro, pensar filosoficamente
configurar-se-ia como um exercício de erudição vazio, desenvolvido a partir do
acúmulo de conhecimentos sobre a filosofia: uma forma de cristalização do
filosofar. Isso dificultaria uma experiência com a filosofia que fosse capaz de
produzir uma fissura na relação significativa dominante e de permitir ao
aprendiz” a procura de uma ressignificação de sua relação com o mundo e com
a própria filosofia. [...] Esse modo de entender o ensino, incluindo o ensino da
Filosofia, justifica a premissa de que ensinar é transmitir um conteúdo a um
aluno que precisa aprender; e aprender é compreender e acumular esses
conteúdos que lhe foram transmitidos. Isso manteria uma separação entre
aquilo que se compreendeu pela transmissão (o conteúdo acumulado) e aquilo
que foi experienciado por si só. Nesse sentido, os conhecimentos que foram
produzidos pelo aluno como experiência de pensamento muitas vezes são
moldados, ou até mesmo negados, a partir da explicação do professor.
(GELAMO, 2009, p. 117)
Nesse processo de transmissão, a experiência de estudantes não tem
importância, pois o objetivo é a reprodução de representações adequadas.
Este sistema representacional leva à estagnação do indivíduo frente ao
mundo e ao que este pode lhe oferecer enquanto experiência de
pensamento, prejudicando, inclusive, sua aprendizagem. A representação
fixa a relação pensamento/objeto. Neste domínio, não há pensamento
genuíno, pois não há construção de sentido, mas apenas reprodução. O
pensamento está atrelado à semelhança, analogia, identidade, e a diferença
é vista numa condição negativa de referência ao mesmo. É um excesso de
verdades, verdades estas que não interessam a quem as enunciam: “ao ligar
o pensamento a uma abstracta vontade geral da verdade, essa imagem
impede-se de fundá-lo nas vontades concretas que o motivam, ou melhor,
nas paixões concretas que o forçam a pensar, que arrancam o pensamento
63
da sua inércia (SOUSA DIAS, 1995, p. 53). Nesta perspectiva, a
aprendizagem não se ancora genuinamente no desejo de aprender e nas
motivações das diferentes realidades de estudantes, pois implica na
imposição de formas de pensar.
Nesse contexto, há a imposição de uma imagem dogmática do que
seja razão e pensar por meio de fazer com que se reproduzam as formas de
compreensão aceitas: “não aprendemos uma imagem do pensamento não a
experimentamos como novidade absoluta de nosso próprio pensamento,
mas somos treinados para pensar segundo ela, investindo na recognição e
na repetição do mesmo” (GALLO, 2008, p. 72). Gallo entende que houve
uma transição de uma educação pela experiência para um ensino como
treinamento, que está relacionada à passagem da tecnologia oral para a
tecnologia escrita. Este primeiro momento pode ser encontrado em
diferentes tradições de pensamento, incluindo a citada por Gallo que diz
respeito ao ensino grego que era essencialmente oralista, se tratava de uma
educação pela experiência e estava ligada ao uso da memória, da poesia e
recitação de mitos. Esta educação foi substituída por um ensino no qual o
importante era o treinamento para o exame dialético e retórico das ideias,
que se relaciona à realidade que vivenciamos ainda hoje. Assim, o processo
de aprendizagem de cada estudante é avaliado a partir de uma tradição que
determina o que é pensar e quais são as formas adequadas de aprender,
exigindo, por exemplo, que se apresente uma única e determinada maneira
de solucionar os problemas. Nessa perspectiva, outras formas de aprender
não são contempladas, o que é problemático, se temos como interesse uma
aprendizagem significativa, a qual, ao ser fundada na experiência,
compreende a construção de outros sentidos com o mundo.
Tal modelo de ensino explicador fomenta uma relação deturpada
com o conhecimento, a aprendizagem é entendida como uma competição
64
na qual quem acumula mais ganha e será bem-sucedido na sociedade em
que vivemos, o que fica evidente no sistema avaliativo e nas políticas de
premiação nessas instituições. Grada Kilomba (2019a, n.p.) colabora no
entendimento da lógica do saber escolar e acadêmico:
nós temos uma noção muito patriarcal e fálica do que é o conhecimento.
Fazemos muitas coisas, mas há uma hierarquia: aquilo que está ligado à
academia é o verdadeiro conhecimento e a verdadeira profissão. Depois, nós
nos especializamos numa coisa, depois fazemos um mestrado, um doutorado…
É uma coisa bem fálica que vai crescendo, crescendo, crescendo. Eu acho a
coisa é muito mais cíclica, mais circular, em que nosso conhecimento atravessa
muitas diferentes disciplinas e está em diálogo com diferentes formatos. [...] A
Pinacoteca, que tem um acervo de arte brasileira composto maioritariamente
por duas disciplinas clássicas, esculturas e pinturas, representa corpos que não
são todos os corpos brasileiros. Portanto, há uma narrativa do que é o
conhecimento, do que é a arte, e dos corpos, sexualidades e dos gêneros
excluídos, e que cria categorias para desumanizar certos corpos e identificá-los
como desviantes, inferiores, insubordinados, aqueles que não podem
representar a nação. Essa é uma das dimensões do colonialismo, que é
patriarcal, é homofóbico, é toda forma de opressão. (KILOMBA, 2019a, n.p.)
Nesse sentido, o conhecimento escolarizado e acadêmico segue a
estrutura patriarcal e fálica do acúmulo como tudo no capitalismo –,
tratando o conhecimento numa lógica de propriedade privada, sustentada
por hierarquias, na qual o conhecimento é mensurado individualmente.
De diversas formas, somos ensinados nas instituições de ensino qual o
padrão para o que se denomina “conhecimento”. Kilomba cita, como
exemplo, o acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, onde ela fez uma
exposição em 2019, no qual a partir da seleção de um determinado perfil
de autores, obras e representações se cria uma narrativa que especifica quais
saberes e corpos são válidos, colocando no topo de todas as hierarquias
65
válidas homens brancos europeus e estadunidenses. Tais padrões constam
em todas as dimensões da sociedade, se propagam especialmente através
dos meios de comunicação, mas ganham seu status legítimo a partir do
ensino formal e dos espaços de exposição cultural. O que Kilomba sugere,
ao questionar essa lógica patriarcal do conhecimento, é uma compreensão
dos saberes de forma cíclica e não fragmentada, que permeia diversas
facetas e pessoas, que não se restringe a disciplinas específicas nem a
indivíduos/as/es isolados/as/es. Nesta perspectiva apresentada por
Kilomba, o saber se reinventa continuamente, fugindo da lógica da
especialização e do acúmulo de saberes hierarquizados em graus de
dificuldade e segmentados em categorias abstratas. Kilomba aponta para a
compreensão do saber como um processo coletivo e transdisciplinar, e não
como representações a serem reproduzidas, em que a segmentação não tem
sentido.
Tal perspectiva hegemônica do saber adota um modelo de
mensuração da educação que implica em diversos problemas, porque
acabamos por medir o que é mais conveniente ou o que conseguimos, e
não o que faria mais sentido para o processo educativo. Até porque é difícil
delimitarmos em números o que uma pessoa aprendeu. Além disto, este
modelo anula a subjetivação de estudantes. Julgamos mais interessante
pensar a aprendizagem a partir da experiência. Por exemplo, como defende
Gert Biesta (2013), faz mais sentido uma educação por meio da democracia
do que uma educação para democracia, pois esta última defende a
necessidade de um conjunto sistematizado de saberes como pré-requisito
para o exercício democrático. Por outro lado, a educação por meio da
democracia oferece espaço para a participação ativa e autônoma de
estudantes, o que exige que a escola se repense continuamente, levando ao
66
questionamento constante do que é democracia e evitando o equívoco de
entendê-la de maneira universal e sem especificidades contextuais.
O que permite silenciar experiências é principalmente uma
concepção essencialista de currículo, que é visto como mais importante do
que as relações e como algo a ser cumprido integralmente. Porém, o que
justifica tais escolhas curriculares até o ponto de serem mais importantes
do que as demandas do contexto? A denúncia que Monique Evelle faz
aponta para o silenciamento dos currículos, que são majoritariamente
compostos pelo pensamento de homens brancos europeus, tanto nas
escolas quanto nas universidades. A educação nos moldes descritos neste
capítulo, executa um projeto político da branquitude de padronização e
anulação das diferenças, de maneira que podíamos descrever tal projeto
como embranquecedor de estudantes, já que visa a criar condições de
manutenção dos privilégios de parte da sociedade. Não é uma coincidência
que se utilize a expressão “grade curricular”, pois o currículo alicerça os
silenciamentos e aprisionamentos dos modos de ser no mundo que fazem
com que as experiências não sejam importantes.
A escolha do currículo costuma ser justificada pelo fato de que
alguns saberes são universais e que, portanto, não carregam marcas
culturais. No entanto, todo saber pertence e parte de uma cultura
específica de modo que nunca é neutro e, consequentemente, as escolhas
curriculares são sempre políticas e decorrentes de um pertencimento
cultural. Quando refletimos sobre quais conhecimentos devem ser
ensinados, estamos refletindo sobre quais modelos de humano devem ser
formados. Um currículo universalizante hierarquiza saberes e,
consequentemente, pessoas. Nessa ótica, “a diferença adquire o caráter de
estigma” e o discurso de tolerância aparece como a reafirmação da
“superioridade por parte daquele que tolera” (SILVA, 2015, p. 465).
67
Nesse sentido, é relevante o trabalho de bell hooks (2019b) que
compara as diferenças entre o sistema educacional segregacionista e as
escolas decorrentes da integração racial. Hooks explica que, durante o
período em que as escolas eram segregadas, o ato de educar era visto pela
população negra como “uma pedagogia revolucionária de resistência, uma
pedagogia profundamente anticolonial”, “fundamentalmente político”,
“uma forma de retribuir à comunidade” estimulando estudantes a “nutrir
seus intelectos”, entendendo a “devoção ao estudo” como “um ato contra-
hegemônico, um modo fundamental de resistir a todas as estratégias
brancas de colonização racista” (2019b, p. 10-11). Nessa perspectiva, as
professoras bell hooks afirma que quase na totalidade eram mulheres
negras se empenhavam em conhecer estudantes: “Elas conheciam nossos
pais, nossa condição econômica, sabiam a que igreja íamos, como era nossa
casa e como nossa família nos tratava” (2019b, p. 11). No caso de hooks,
como suas professoras eram as mesmas de seus pais, a capacidade de
aprender era contextualizada “dentro da estrutura de experiência das várias
gerações da família” (2019b, p. 11), isto é, integrada à comunidade. hooks
relata que, nesta época, aprender era “pura alegria”, no entanto, isso
mudou radicalmente com a integração racial:
de repente, o conhecimento passou a se resumir à pura informação. Não tinha
relação com o modo de viver e de se comportar. não tinha ligação com a
luta antirracista. Levados de ônibus a escolas de brancos, logo aprendemos que
o que se esperava de nós era a obediência, não o desejo ardente de aprender. A
excessiva ânsia de aprender era facilmente entendida como uma ameaça à
autoridade branca.
Quando entramos em escolas brancas, racistas e dessegregadas, deixamos para
trás um mundo onde professores acreditavam que precisavam de um
compromisso político para educar corretamente as crianças negras. De repente,
passamos a ter aula com professores brancos cujas lições reforçavam os
68
estereótipos racistas. Para as crianças negras, a educaçãoo tinha a ver com
a prática de liberdade. Quando percebi isso, perdi o gosto pela escola. A sala
de aula não era um lugar de prazer ou de êxtase. A escola ainda era um
ambiente político, pois éramos obrigados a enfrentar a todo momento os
pressupostos racistas dos brancos, de que éramos geneticamente inferiores,
menos capacitados que os colegas, até incapazes de aprender. Apesar disso, essa
política não era contra-hegemônica. O tempo todo, estávamos somente
respondendo e reagindo aos brancos.
Essa transição das queridas escolas exclusivamente negras para escolas brancas
onde os alunos negros eram sempre vistos como penetras, como gente que não
deveria estar ali, me ensinou a diferença entre a educação como prática de
liberdade e a educação que trabalha para reforçar a dominação.” (HOOKS,
2019b, p. 12).
Através dos depoimentos de Monique Evelle e bell hooks é possível
perceber o quanto é necessário que a inclusão esteja para além da presença
de corpos, mas que sejam tratados como sujeitos/as/es e tenham suas
subjetividades e saberes vistos como relevantes e não apenas inferiorizados
pelas hierarquias eurocêntricas e racistas. Um elemento muito importante
que aparece no escrito de hooks é que a escolarização para a obediência não
deixa de ser política, porém, no caso apresentado, parte de uma política de
dominação racista. Embora faça parte do imaginário comum que a escola
não é um ambiente político, não há possibilidade de uma educação neutra,
pois sempre se parte de concepções de ensino e conhecimento que
carregam pressupostos, os quais partem de uma relação específica com o
mundo que não pode ser entendida como neutra.
Sueli Carneiro (2015) colabora na compreensão de como ocorrem
no espaço escolar tais políticas de silenciamento, que estão tanto no
currículo formal quanto no currículo oculto que se expressa nas relações,
69
levando à destruição da forma própria de pensar de cada estudante
denominada de epistemicídio:
para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do
conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da
indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade;
pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de
deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de
rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo
comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes
no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de
conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual
e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão,
a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o
epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a seqüestra,
mutila a capacidade de aprender etc.
É uma forma de seqüestro da razão em duplo sentido: pela negação da
racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe é
imposta.
Sendo, pois, um processo persistente de produção da inferioridade intelectual
ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais, o
epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades realiza, sobre seres
humanos instituídos como diferentes e inferiores constitui, uma tecnologia que
integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por característica
específica compartilhar características tanto do dispositivo quanto do biopoder,
a saber, disciplinar/ normalizar e matar ou anular. É um elo de ligação que não
mais se destina ao corpo individual e coletivo, mas ao controle de mentes e
corações. (CARNEIRO, 2015, p. 97)
Sueli Carneiro chama a atenção para o modo como a escola pode
ser um espaço hostil para negros/as/es e indígenas promovendo mais
epistemicídio do que formação. Como aponta a filósofa, o currículo
70
eurocêntrico produz um sentimento de inferioridade intelectual
destituindo povos não europeus de racionalidade. Contudo, os currículos
silenciam a realidade de estudantes tanto por inferiorizar seu mundo
próprio, mas também por serem eurocêntricos e patriarcais e fomentarem
relações nessa lógica, invisibilizando resistências.
Para além do racismo, o padrão eurocêntrico do conhecimento que
se evidencia tanto nas escolhas curriculares quanto nas metodologias
adotadas, afeta em diferentes graus todos/as/es que não se encaixam nos
padrões hegemônicos. Os currículos oficiais não contam a história de
violência do Brasil, nem evidenciam a importância de negros/as/es,
indígenas e mulheres em geral na construção dele, produzindo ideologias
de encobrimento e elitização do conhecimento. O racismo e a misoginia
dos currículos e metodologias são elementos fundamentais que levam à
inferiorização de estudantes e seus saberes, e tornam a aprendizagem um
processo distante e difícil, no qual é preciso anular quem se é para se tornar
aquilo que esperam tais currículos. Portanto, podemos dizer que a escola
funciona através de políticas de hierarquização das diferenças, a partir de
um currículo que imprime uma percepção única da realidade do nosso
território e constrói uma determinada visão da história.
Marcos Rolim (2014) entrevistou jovens de 16 a 20 que cumpriam
pena por crimes violentos e colegas de infância indicados por eles, mas que
não tinham ligação com crimes. Um dos fatores diferenciais que se
destacaram entre os dois grupos foi justamente a evasão escolar, todos os
jovens que cumpriam pena largaram a escola entre 11 e 12 anos, enquanto
os colegas de infância continuaram estudando. Devido à falta de
oportunidade e perspectivas futuras para aqueles que não possuem
escolaridade completa, os jovens ficam vulneráveis ao treinamento de
grupos violentos. Entre os principais fatores citados pelos jovens para o
71
abandono escolar está a dificuldade de aprendizagem se consideravam
“burros” por não conseguirem acompanhar as aulas , também destacaram
considerar a escola “chata” e não atrativa, e principalmente as chacotas que
aconteciam na escola por serem pobres terem “sapato furado” e outros
preconceitos. Assim, é possível notar que a evasão escolar esna raiz de
crimes violentos, quando a escola exclui, o crime acolhe. Os dados
supracitados evidenciam que tornar a escola mais interessante, sem
preconceitos e conectada à vida das pessoas, tem impacto na diminuição
da desigualdade de renda e da violência.
Diante do cenário descrito acima, podemos dizer que há
pluralidade na escola? Estudantes são estimulados a pensar suas próprias
realidades? São incentivados a usar a criatividade ou a elaborar um
pensamento próprio? São estimulados a refletir sobre os problemas
contemporâneos? Quando refletimos profundamente sobre estas questões
fica evidente que as escolas em geral se ocupam mais da domesticação de
estudantes do que de sua formação. É um processo contínuo de exclusão
das diferenças através de sua negação e silenciamento.
É possível notar que a escola não abarca as singularidades porque
não pensa a diferença em si mesma, esta sempre é vista em referência a um
padrão de normalidade, sendo entendida como um erro, um desvio da
norma, algo que precisa ser corrigido. Nesse sentido, as escolas não
fomentam o direito de viver as singularidades, mas apenas o direito de
ascender ao que se entende como universal. Consideramos mais
interessante entender a diferença em sua positividade, pois no processo de
experiência com o outro, experimentamos nós mesmos/as/es, o que nos
leva a repensar as relações de ensino e aprendizagem entre docentes e
estudantes. Tal mudança de perspectiva colabora para um currículo plural
que, a partir da relação com o/a/e outro/a/e, percebe que um padrão de
72
saber eurocêntrico e patriarcal é um equívoco, mas também aponta para
uma compreensão não hierárquica das relações. E, assim, os sentidos de
ensinar e aprender se expandem e podem emergir novas relações em que
estudantes ensinam e docentes aprendem, novas possibilidades éticas
diante de uma nova percepção das diferenças.
A cultura do silenciamento nas instituições de ensino depende de
um modelo de educação dominadora, sustentado em um currículo
supostamente superior, construído por eurocentrismo e patriarcalismo,
que hierarquiza as diferenças e cujo foco é a reprodução. Tal modelo recusa
a pluralidade nas relações entre docentes e estudantes, nas concepções de
ensino e aprendizagem e no currículo. É preciso salientar que o currículo
está para além do escrito em um documento, mas se dá também no modo
como as relações ocorrem, ensinando formas de ser ao silenciar alguns
saberes e práticas. Uma perspectiva do saber que vê as diferenças como
negativas propaga os saberes dominantes como as únicas perspectivas
válidas sobre o mundo.
Ressaltamos também que uma análise sobre o contexto da
educação hoje não pode ser feita apenas pensando sobre seu modelo de
educação, haja vista que este apenas pode ser efetivado por uma estrutura
que o fomenta, sendo delimitado pelas condições de possibilidade do
ensino. Ainda que existam muitos projetos de educação que valorizam as
diferenças, a falta de infraestrutura e investimentos em educação funciona
como impedidora de sua efetivação, boicotando as iniciativas de docentes
em romper com tal modelo silenciador e impossibilitando relevantes
propostas. Nesse sentido, a redução e congelamento do investimento em
educação é um problema para que as reflexões que estamos propondo com
esse texto possam ser úteis, pois dificultam a possibilidade de uma
percepção sensível em um cotidiano permeado por ameaças à democracia,
73
jornadas exaustivas de trabalho, péssimas condições estruturais, ausência
de materiais e tempo para dedicação às atividades e diálogos, desigualdade
de todos os tipos. Não podemos ignorar que a BNCC, ao tratar
igualitariamente contextos desiguais, acaba por promover desigualdade, e
é um exemplo do que tentamos chamar a atenção. No entanto, como os
últimos anos não têm sido nada fáceis para os/as/es educadores/as, este
texto foca em algumas brechas para que possamos continuar em
movimento em todas as esferas que forem possíveis. Nesse sentido,
continuaremos nossa reflexão a partir da seguinte questão: Que ensino de
filosofia cabe na propagação dessa perspectiva dominante sobre o
conhecimento?
1.4 Filosofia e seu ensino no Brasil
É comum que docentes de filosofia se perguntem, ao final do
bimestre, se contribuíram de algum modo para que estudantes filosofassem
sobre suas vidas, conseguindo pensar de forma mais ampla sobre os
problemas que enfrentam. Porém, o que é mesmo “filosofia”? O que
significafilosofar”? A função de docentes de filosofia é ensinar a filosofar
ou apenas os “gênios” são capazes desse feito? Ser docente de filosofia
envolve algumas reflexões, já que, ao contrário das demais disciplinas, não
há um consenso sobre o que significa ser filósofo/a/e e nem o que
corresponde à natureza específica desta área do saber. Ser docente de
filosofia também implica na reflexão sobre qual o impacto do que é
pensado em sala de aula fora dos muros das instituições de ensino, haja
vista que esta área do saber mais do que qualquer outra nasce da
necessidade de pensar os problemas do mundo e da vida. Ainda que
74
consideremos a diversidade de definições desta área do saber, grande parte
está relacionada a um caráter intrinsecamente antidogmático, que através
do pensamento ou da ação
7
colabora para ampliar a percepção da realidade.
Porém, o ensino de filosofia não tem recebido tanta atenção na
pesquisa desenvolvida no Brasil, principalmente porque não costuma ser
tratado como um problema filosófico, sendo delegado ao universo da
pedagogia. Ainda que reconheçamos a importância da pedagogia para
pensar o ensino, como não há um consenso na tradição sobre o que é
filosofia, a tarefa de ensi-la exige um refletir sobre sua natureza, haja vista
que a metodologia terá que ser mudada de acordo com a perspectiva
adotada. Por isso, ser docente de filosofia implica em refletir sobre o que
ela é para, a partir de suas possibilidades e dificuldades, pensar formas de
ensiná-la. Contudo, a atuação de docentes de filosofia envolve ainda
algumas especificidades que não podem ser resolvidas por meio de
metodologias e de discussões didáticas, pois o seu ensino é em si um
problema filosófico.
Podemos dizer, nesse sentido, que há um silenciamento do ensino
de filosofia na pesquisa da área. Na grande maioria das graduações em
filosofia, o ensino não é visto como uma questão relevante e há um
privilegiamento dos bacharelados, ainda que a quase totalidade de
graduandos/as/es estejam mais interessados/as/es na licenciatura, tanto por
questões trabalhistas quanto por entender que docentes universitários
também precisam pensar suas práticas de ensino. A pouca pesquisa que há
sobre ensino de filosofia, se comparada com os temas “clássicos” da área,
geralmente é realizada por filósofos/as/es que se aventuram em áreas como
7
No caso de filosofias não eurocentradas há maior foco na ação do que no pensamento, como
demonstram as filosofias orientais ancoradas em Lao Tsé.
75
a educação, uma vez que há pouco espaço para tal estudo nas pós-
graduações em filosofia.
Além disso, o silenciamento do ensino de filosofia também é uma
política governamental. Nesse sentido, é importante citar a reforma do
Ensino Médio (Lei 13.415/ 2017), aprovada em fevereiro de 2017, e a
consequente reformulação da Base Nacional Comum Curricular do
Ensino Médio (BNCC), aprovada em dezembro de 2018. No artigo 36 da
Lei 13.415, é determinado que O currículo do ensino médio será
composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários
formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes
arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a
possibilidade dos sistemas de ensino”.
Embora o documento se aproprie de conceitos e debates caros
àqueles/as que lutam pela educação democrática, tais ideias não coincidem
com as práticas determinadas pelo documento. A BNCC tem muitas
páginas com reflexões sobre “protagonismo juvenil”, “criticidade”,
“criatividade”, “formação humana integral”, “justiça”, “autonomia”,
“mundo do trabalho”, porém, vemos que tais conceitos escondem
intenções utilitaristas por aparecerem no texto vinculados ao “mercado de
trabalho”, ao “empreendedorismo” e à “empregabilidade”, conectando
conceitos contraditórios. Isto só pode ser entendido como uma estratégia
ultraliberal que visa a esvaziar conceitos importantes para a educação
democrática, distorcendo seus sentidos e dificultando a compreensão das
intenções que guiam tal documento e, consequentemente, dificultando a
resistência a ele.
A BNCC do ensino médio dilui a maior parte das disciplinas em
competências e determina que a formação se dará por meio de itinerários
76
formativos. O que o documento denomina “autonomia e protagonismo
juvenil” se expressa na escolha dos itinerários formativos, no entanto, quais
escolas terão condições de ofertar todos os itinerários formativos possíveis?
O que será entendido como digno de “relevância para o contexto local” e
para o corpo estudantil? A BNCC colabora para a precarização da
educação ao anular as especificidades de algumas áreas do saber, bem como
desconsiderar que a escolha por um itinerário pode ser consequência da
falta de infraestrutura adequada nas instituições ou informação e
conhecimento sobre outros, ou até mesmo pela ausência de ofertas
diversificadas, haja vista que a escolha dos componentes curriculares ficará
à mercê dos sistemas de ensino a partir de poucas competências muito
genéricas. Desse modo, a BNCC reduz a diversidade, ainda que afirme a
“valorização da diversidade” em vários momentos do documento. Dessa
forma, o discurso focado em competências gerais por não garantir as
especificidades necessárias para uma educação de qualidade nem ao menos
em seu currículo, além de estar articulada a um projeto de sucateamento
da educação brasileira, reduz os direitos de aprendizagem e precariza a
educação ofertada. O mais grave é que não há compromisso com a
formação docente, muito menos com o financiamento da infraestrutura
necessária para a aplicação da BNCC, por isso é um documento indutor
da precarização da educação.
Ao realizar uma busca da palavra “filosofia” no documento,
encontramo-la associada ao ensino religioso. No que diz respeito à área
“Ciências Humanas e Sociais Aplicadas”, que deve dar conta de saberes
filosóficos, não há referências à filosofia e nem a conceitos pertinentes a
ela. Ainda que a lei de obrigatoriedade da Filosofia não tenha sido revogada
a ausência de espaços que a afirmem de fato, promove uma exclusão por
omissão. Contudo, por excluir nas entrelinhas, dificulta a luta por outro
77
modelo de ensino de filosofia. Lembramos que a disciplina de Filosofia
nunca desapareceu dos currículos nacionais, mas sem a garantia das suas
condições de oferta, diluindo seus saberes em outras disciplinas
consideradas mais importantes, seu espaço foi inexistente na maior parte
da história da educação pública brasileira.
Tal cenário não pode ser desvinculado do fato de que, após o
retorno da filosofia e da sociologia como disciplinas obrigatórias na
educação básica em 2008, ocorreram ocupações de escolas, além de
maiores enfrentamentos institucionais como consequência de aulas que
ofereciam algum tipo de debate com estudantes. Ainda que tal contexto
não possa ser atribuído exclusivamente à atividade docente nessas áreas, a
mudança de perspectiva sobre tais disciplinas do currículo é resultado de
uma imagem forjada de tais disciplinas como doutrinadoras e
incentivadoras da rebeldia. Num contexto em que crises agravam o
tensionamento entre as relações, silenciar é essencial para a manutenção de
um modelo de exploração.
Especialmente quando analisamos documentos, é preciso fazer o
exercício filosófico de refletir sobre o contexto em que emergem, pois seu
sentido não pode ser explicado por significações literais. Basta lembrar que
para alguns (des)governantes autonomia significa cortar as verbas da
educação e submetê-la aos interesses de mercado. Assim, cabe-nos
perguntarmos: Base para quem? É consenso nacional? Comum a quem?
Currículo para quê? Que tipo de humano pode ser pensado a partir da
BNCC? A adoção de um currículo único como a BNCC pode silenciar as
subjetividades que permeiam as escolas, é preciso existir espaço para que
todos/as/es participem da construção curricular, entendendo inclusive o
próprio processo como formativo, o ensino precisa se dar em constante
negociação com todos/as/es agentes envolvidos. Assim, é preciso entender
78
o “protagonismo juvenil” para além apenas de realizar uma escolha por um
itinerário formativo que foi elaborado à sua revelia.
Pensando a formação integrada à vida, especialmente no que diz
respeito ao ensino de filosofia, acreditamos que seria interessante que parte
do currículo fosse aberto, desde que mantidas as especificidades das
diferentes áreas do saber na base comum e que essa margem de abertura
partisse de problemas relevantes para o mundo contemporâneo e o
contexto local e não apenas competências gerais –, de maneira a permitir
que os saberes sejam conectados frequentemente com as realidades locais.
Precisamos perguntar ainda: é necessária uma base nacional? Nesse sentido,
a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)
lançou em 2016 a campanha “Aqui já tem Currículo...” a fim de que
educadores relatassem suas experiências curriculares. Além disso, também
já há documentos que indicam um currículo comum, como destacam
Maria Valnice da Silva e Jean Mac Cole Tavares Santos (2018) a seguir:
A Constituição Federal (CF/1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN/1996) tratam dessa questão. O texto da CF/1988
estabeleceu conteúdos mínimos nacionais e conteúdos específicos em âmbito
local e regional. A LDBEN/1996 determinou a necessidade de uma base
comum nacional equilibrada com conteúdos específicos mediante a
diversidade étnica, geográfica e cultural do Brasil. O Plano Nacional de
Educação (PNE/2014) reiterou essa demanda por meio de metas e estratégias
para serem alcançadas até o ano de 2024. A CF/1988 e a LDBEN/1996
regulamentaram documentos para a educação básica, como os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997; 2000) e as Diretrizes
Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998; 2010; 2011). Os Parâmetros são
documentos de caráter não obrigatório com referências para a elaboração do
currículo de todas as etapas da Educação Básica. As Diretrizes, por sua vez, são
normas obrigatórias que orientam o planejamento curricular das escolas e
79
sistemas de ensino e fixadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE)
(SILVA & SANTOS, 2018, p. 01).
O que Silva e Santos questionam são os argumentos que legitimam
a ideia de uma BNCC para as escolas brasileiras. Se o objetivo fosse de fato
a melhoria da qualidade e a garantia de direitos, faria mais sentido
aumentar o investimento em educação e incentivar processos democráticos
de elaboração dos Projetos Político-Pedagógicos das instituições, a fim de
fazer a articulação entre os saberes clássicos e os contextos locais. Sob o
argumento de garantir o mínimo, objetivo tão pertinente para os/as/es
defensores/as da educação democrática, não é oferecido quase nada.
Não podemos esquecer que, embora o MEC tenha dado espaço na
elaboração da BNCC para empresários da educação privada, não houve o
mesmo espaço para especialistas e profissionais da educação, de modo que
em sua maioria os/as/es docentes só foram consultados/as/es via formulário
online em momento no qual o documento já pronto podia receber apenas
sugestões de reelaboração, não havendo formas de criticar ou reestruturar
a BNCC. Quando analisamos as instituições que apoiaram tal reforma,
vemos que a BNCC consiste num subproduto da política de ajustamento
do Brasil ao ultraliberalismo econômico, pois visa a aumentar a
produtividade dos pobres a partir de uma educação empobrecida.
É importante ressaltar que a empresarização e mercantilização da
educação está para além da privatização. Como a própria BNCC
demonstra, o capital privado já está ditando, há muito tempo, os rumos da
educação, inclusive levando docentes a entender estudantes como
“clientes”, o que em diversos contextos resulta numa disputa por
matrículas, a fim de impedir o fechamento das escolas ameaça constante
dos (des)governos . A mercantilização da educação também pode ser
80
vista, por exemplo, na “parceria” público-privado, ou na política de bônus
adotada há muitos anos. Tal modelo retribui com adicional salarial às
escolas com os melhores “índices” de educação. Esse índice consiste numa
equação entre a média das notas recebidas por estudantes em uma avaliação
estadual, a quantidade de repetentes e de evasão escolar. Com isto, ao invés
das escolas investirem na qualidade da educação o que não está
relacionado a tirar boas notas em uma avaliação conteudista estadual –, em
um contexto de péssimas condições salarias, incentivam a equipe docente
a não reprovar estudantes, bem como estimulam à falsificação de números
relativos à evasão escolar, como pude vivenciar enquanto professora.
A mercantilização da educação também significa a transformação
em mercadoria de todas as pessoas envolvidas, por isso, vem acompanhada
de precarização das condições de trabalho tanto para docentes quanto para
estudantes, convertidos em produtos de uma sistema-mundo desigual, que
só os oferecerá competências gerais e suficientes para seu suposto lugar nas
hierarquias sociais.
No que diz respeito ao investimento em educação em geral
alguns anos, estão sendo impostos cortes que dificultam o funcionamento
das instituições, obrigando-as a se submeterem aos interesses privados. E
os ataques voltam-se principalmente para as ciências humanas, sempre com
ressalva para a filosofia. Como vimos nas portarias da CAPES e do CNPq
de 2020 que cumprem algo repetido diversas vezes por (des)governantes e
ministros da educação, determinando as áreas da saúde e das engenharias
como prioritárias na obtenção de bolsas e afirmando que “quem quiser
estudar filosofia deve fazer com dinheiro próprio” porque a verba pública
deve ser destinada para áreas “úteis”. Nesse sentido, é preciso perguntar: o
que é utilidade? O que significa dar retorno para o contribuinte?
81
Através de tais afirmações, vemos a defesa de um modelo de
conhecimento fragmentado no qual as áreas do saber se desenvolvem
isoladamente. Porém, o desenvolvimento científico ocorre de forma
colaborativa entre as diversas áreas, tendo a filosofia como uma área que
contribui inclusive em momentos como uma pandemia. A pandemia do
COVID-19 expôs a quem servem os (des)governos e quais são suas
prioridades. Os fenômenos sociais não são universais, são as ciências
humanas que fazem a análise qualitativa de dados, permitindo protocolos
adequados para diferentes realidades. Por exemplo, médicos não
conseguirão controlar eficientemente uma pandemia sem levar em
consideração as diferenças sociais entre os centros e as periferias, entre
pessoas brancas e negras, entre ricos e pobres, entre classe trabalhadora e
empresarial.
Além do que as ciências humanas colaboram na prevenção quando
oferecem relações entre problemas e fatores sociais projetando possíveis
implicações e agravantes, especialmente a filosofia que se ocupa em
levantar problemas. Também contribuem com reflexão ética sobre as
técnicas e tecnologias desenvolvidas, de modo a pensar suas possíveis
consequências sociais e os aspectos culturais que incidem sobre seu uso. A
filosofia ainda pode atuar de maneira conceitual, questionando sobre as
variáveis implicadas em um experimento científico. Por exemplo, o uso de
chips Deep Brain Stimulation e medicamentos voltados para o
tratamento de depressão profunda precisam refletir sobre “o que é
felicidade?”, “o que é tristeza?”, ou “para que realidade é este tratamento?”,
o que faz diferea na eficiência dos tratamentos desenvolvidos.
O projeto de educação em andamento tem como objetivo garantir
o viés ideológico e a militarizado das instituições de ensino o que está
para além de transformar as escolas em instituições militares. Uma vez que
82
se cria a imagem de que aquilo que é produzido pelas instituições públicas
é visto como doutrinação, faz-se necessário um projeto de educação que
permita às famílias preservar sua ideologia. Por isso, com o objetivo de
traçar estratégias para o controle ideológico, retirando o espaço de
disciplinas reflexivas como a filosofia, o projeto de educação defendido
pelo (des)governo foca na privatização das redes de ensino, no
estabelecimento de vouchers para pagamento de ensino privado,
homeschooling para as elites e educação a distância para a classe
trabalhadora , e na militarização das escolas onde não for interesse da
iniciativa privada.
Nesse contexto em que se tentam silenciar especialmente aqueles
que se dedicam à filosofia, que espaço há para o filosofar? Para além das
reformas educacionais, ser filósofo/a/e no Brasil envolve enormes desafios
tanto para pesquisadores/as quanto para docentes. Por um lado,
cotidianamente nas graduações de filosofia ouvimos que não somos
capazes de filosofar e que precisamos estudar a tradição europeia para
atingir, talvez algum dia, tal patamar; por outro lado, a atividade docente
é descredibilizada como algo distante do ser filósofo e de menor
importância, não configurando como um problema filosófico em si. Neste
contexto, qual modelo de ensino de filosofia é possível?
Na produção sobre ensino de filosofia, encontramos um grupo
que, a partir das reflexões de Kant, irá justamente compreender que não é
possível ensiná-la. Kant apontava para a impossibilidade do ensino de
filosofia porque entendia que seu saber não está dado objetivamente no
mundo, de modo que seu ensino permitiria apenas o acesso a
conhecimentos históricos sobre os sistemas elaborados por filósofos
reconhecidos, isto é, o contato com conteúdos sobre filosofia e não a
filosofia em si mesma. Ainda sob a perspectiva kantiana, alguns consideram
83
ser possível aprender a filosofar a partir do exemplo da tradição, enquanto
outros acreditam que o ensino de filosofia deve se restringir apenas a
compreender o pensamento de filósofos consagrados, como uma estratégia
de propedêutica cultural. Será que a apreensão dos diferentes sistemas
filosóficos, que ficaram consagrados na história, é suficiente para que se
comece a filosofar? Podemos compreender a aprendizagem filosófica como
a reprodução eficiente e adequada de teorias de filósofos consagrados?
Afinal, é estranho acreditar que alguém que se dedica ao estudo da filosofia
não queira descobrir seu próprio lado filósofo/a/e. Parece que é preciso
refletir mais profundamente sobre o que significa a aprendizagem filosófica
e se, de fato, o contato e conhecimento sobre as teorias e sistemas filosóficos
de grandes filósofos permite, àquele que aprende, filosofar. Entendemos
que o contato com tais pensadores pode despertar para o filosofar, desde
que a metodologia não seja o foco principal e estejamos focados nos
problemas e em nosso próprio contexto.
Esta vertente, que entendia que a única forma de estudar filosofia
era através dos filósofos renomados, teve enorme influência no Brasil,
determinando hegemonicamente as estruturas dos cursos na área e
pesquisas desenvolvidas nas universidades. Nesse sentido, é preciso se
referir a uma importante especificidade da filosofia no Brasil, que diz
respeito à Missão Francesa e à influência do método estrutural de leitura de
textos filosóficos, conhecido como método estruturalista. Haja vista que os
professores franceses convidados para dar início ao curso de filosofia da
USP, entre os primeiros da área no país, concordavam sobre a necessidade
do estudo da tradição como única forma possível de se aproximar do
filosofar, propuseram um método que se ativesse à leitura e análise focada
na lógica interna dos textos clássicos, sem extrapolar os domínios da sua
coerência própria, apenas reconstruindo e compreendendo seus
84
argumentos e teses, supondo não só a possibilidade de objetividade diante
de um texto filosófico, mas também certa independência do texto ante seu
contexto de prodão. Ainda que diversas disputas ocorreram nas décadas
seguintes, este método prevaleceu como a própria essência da filosofia no
Brasil.
O conceito de filosofia que sustenta o método chamado de
estruturalista está vinculado, como explica o filósofo Augusto Rodrigues
(2020, p. 94), à “noção de sistema, arquitetônica e de lógica filosófica”.
Essas três noções são fundamentais para expressar uma ideia de
racionalidade universalista e a priori que confere autonomia discursiva à
filosofia face ao seu tempo histórico. Se cada filosofia, entendida em seu
sistema fechado e arquitetônico, possui uma temporalidade, esta é
estritamente lógica. Ao elencar um tempo lógico, singular a cada filosofia
e discursivamente autossuficiente perante o contexto, Rodrigues (2020, p.
94) aponta que tal método foi recorrência de “forte resistência contra os
métodos de interpretação que reduzem as doutrinas às circunstâncias de
seu tempo histórico”. Assim, a relação do/a/e filósofo/a/e com seu tempo,
o entrelaçar entre o contexto e a construção do conhecimento filosófico,
se tornam irrelevantes para aquilo para qual tal método era almejado em
nossa realidade formativa: “a compreensão verdadeira das doutrinas
filosóficas, a partir da interpretação da estrutura do próprio sistema”
(RODRIGUES, 2020, p. 100). Rodrigues investiga os porquês desse
movimento exegético e do olhar voltado para a compreensão verdadeira,
refletindo sobre os limites de tal processo de formação para as práticas de
pensar o presente:
como a importação das práticas técnicas de leitura e explicação de textos cujos
sentidos já estão determinados pelo seu ofício do historiador-filósofo,
proporcionaria as condições da construção de um pensamento filosófico outro
no cenário brasileiro? Se a relação formativa que se estabelece com a tradição
85
filosófica é através dos exercícios do historiador-filósofo, o que sustentaria
filosoficamente o pressuposto que dessas práticas iriam se consolidar uma
tradição outra com a filosofia, que pensa seu presente, por exemplo? Isso
porque, mesmo que consideremos as práticas de compreensão e explicação
estruturalista da história da filosofia como primeiro momento nas práticas
formativas, uma estratégia pedagógica e profilática, questionamos em que
momento aquele que aprendeu a compreender/explicar estará suficientemente
preparado para polemizar e repor os problemas de suas reflexões ante à tradição
filosófica?
De acordo com os textos analisados e com a análise das projeções formativas
do Departamento de Filosofia da USP, não há um aporte teórico no próprio
método que demonstraria filosoficamente suficiente para uma suposta
progressão entre a compreensão e o pensamento filosófico do presente, como
requeriam os idealizadores desse projeto. Assim como a compreensão da
história da filosofia ainda aparece como pressuposto e cerne das práticas de
ensinar e aprender filosofia no ensino médio e em nossa licenciatura, os
responsáveis pela consolidação dessa estratégia formativa não conseguem
explicitar filosoficamente a substancialidade de tais práticas no
desenvolvimento do filosofar. (RODRIGUES, 2020, p. 144-145)
Contudo, é possível concluir que a explicação acrítica de sistemas
filosóficos, ignorando seus contextos sociais e políticos, e focando apenas
em movimentos internos a textos, não leva necessariamente a uma postura
filosófica do presente. Tal problema não costuma ganhar a atenção dos
defensores deste método ou de quem, como a grande a maioria, sequer
reflete que as práticas as quais foi ensinado/a/e dizem respeito a um método
específico. Percebemos que a grande maioria dos/as/es pesquisadores/as da
área no Brasil não refletem profundamente se o que fazem de fato é
filosofia.
Um dos pressupostos do ensino desse método no Brasil foi a crença
de que não havia filosofia brasileira, pois nada que foi produzido aqui
ganhou amplitude na história do pensamento filosófico rigoroso, por isso,
86
era necessário inserir brasileiros na “racionalidade universal” e afastá-los
dos mitos e crendices. Assim, uma vez que tais docentes formaram em
grande parte os futuros docentes dos cursos de outras universidades, o
método estrutural se espalhou por diversas graduações como sinônimo de
filosofar” e gerou um afastamento da filosofia da vida cotidiana e,
principalmente, do contexto social. O mesmo se propagou no ensino de
filosofia escolar uma vez que docentes têm origem em graduações que, em
geral, mantêm os mesmos preceitos. Não à toa são poucas as pesquisas
desenvolvidas sobre temas contemporâneos que não se prendam de modo
subalterno aos filósofos estrangeiros consagrados. O filósofo Antonio
Trajano de Menezes Arruda (2013, p. 14) descreve a escolha desses
professores da Missão Francesa da USP voltados apenas para uma
metodologia como o “pecado original” da filosofia brasileira.
Parece que no Brasil a elitização do filósofo caiu como uma luva
aos interesses de dominação herdados da colonização e sua episteme
moderna. Como aponta José Roberto Sanabria de Aleluia (2014), o que
sustenta a legitimação jurídica da criação da USP é a formação discursiva
em torna da ideia de universidade da elite ilustrada. O objetivo era “formar
a elite dirigente, no rigor do método e refinamento espiritual das
humanidades para conduzir o país no progresso e na ordem(SANABRIA
DE ALELUIA, 2014, p. 125). Porém, como destaca o filósofo:
na encenação trágica da epistémê brasileira, em que a peça representada se repete
na relação de dominadores e dominados, algo foi silenciado entre a emergência
da ordem discursiva maugüetiana e a nossa atualidade. A Filosofia pensada em
sua concepção mais ampla foi formada por uma ordem discursiva para caber e
não exceder às regras estabelecidas. O desejo de formar filósofos da elite ilustrada
inspirados pela doutrina da sabedoria que constituiria legisladores da razão não
ocorreu, mas serviu aos interesses das classes dominantes no silenciamento e
87
exclusão, impossibilitando a emergência de outras formas de vida filosófica.
Sendo assim, se existe Filosofia no Brasil, provavelmente não habita nos
departamentos ou institutos filosóficos, que passaram pela disciplinarização da
ordem discursiva da Universidade de São Paulo. (SANABRIA DE ALELUIA,
2014, p. 126-127)
Assim, a filosofia ficou restrita a uma elite e foi atada à ideia de
rigor metodológico, e a condição de filósofo ficou então restrita a poucos.
Isto contribui para que os documentos oficiais que balizam as graduações
em filosofia no Brasil não tenham como objetivo a formação de
filósofos/as/es. Aliás, durante a graduação, docentes repetiam que não
éramos filósofos/as/es e alguns, inclusive, afirmavam que nunca seríamos
porque brasileiros/as/es não tinham capacidade para tanto.
Se o direito ao filosofar é negado para a América Latina como um
todo, no que diz respeito às filósofas fica ainda mais distante, pois a mulher
não é vista em nossa sociedade como pensadora e diariamente tem sua
subjetividade relegada ao seu corpo e às emoções. Em nossa formação tal
lugar foi ensinado através das inúmeras interrupções e do modo como
descredibilizavam nossas falas desde criança. Tal processo resultou numa
grande dificuldade quando tentamos falar em público, especialmente em
espaços majoritariamente masculinos como as graduações de Filosofia, mas
que, apesar disso, buscamos desconstruir todos os dias.
Tal compreensão da filosofia se reproduz nos documentos oficiais
voltados ao ensino médio. Analisando documentos como os Parâmetros
Curriculares: Ensino Médio, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio
e o Currículo do Estado de São Paulo, Rodrigues (2020) identifica um duplo
erro dos documentos oficiais. O primeiro diz respeito a “apropriar de uma
herança que seria impossível materialmente de se construir em sala de aula
88
(2020, p. 164), haja vista que a leitura de textos originais e seus sistemas
o é possível nas condições do ensino médio. Tal apropriação, ignorando
as características contextuais do ensino médio, faz com que a atuação
docente na área se reduza a explicações de sistemas filosóficos, precarizando
ainda mais o contato com o saber filosófico. O segundo, por sua vez, tem
a ver com se “apropriar de uma herança, sequer sem problematizar seus
efeitos na contemporaneidade, no caso, suas reais possibilidades de atingir
os objetivos de pensar filosoficamente o contemporâneo” (2020, p. 164),
comportamento também recorrente entre docentes da área. Isto faz com
que as aulas de filosofia se tornem ““as aulas em que se falam dos filósofos”
e não o lugar em se pensa o presente em interlocução com a tradição
filosófica” (RODRIGUES, 2020, p. 167).
Em nossa formação enquanto docentes, fica evidente que o
distanciamento entre aprendizes e o ser filósofo/a/e é reforçado
continuamente nas graduações da área, justificando tal ideia em preceitos
coloniais que afirmam que o Brasil é uma nação “muito jovem” ainda e
precisa de mais tempo para elaborar um pensamento próprio. No entanto,
no cerne desse pensamento temos a crença de que o Brasil é um “país de
Terceiro Mundo”, e, assim, precisa das nações “superiores” europeias ou
estadunidense para ascender à racionalidade e sair do denominado
submundo do mito, folclore e magia”.
Tal cenário está relacionado ao entendimento da filosofia como
uma atividade muito difícil de modo que apenas intelectuais dotados de
uma razão superior podem praticá-la, o que está na origem da tradição
filosófica ocidental com Platão e a ideia de filósofo-rei e se mantém na
contemporaneidade através da elitização da filosofia como uma tarefa
difícil. Nos documentos oficiais das graduações em filosofia pelo Brasil, é
difícil encontrar como objetivo transformar discentes em filósofos/as/es, é
89
um legítimo tabu se colocar nesse lugar que é visto como restrito a poucos
gênios iluminados”.
Durante a graduação, docentes pediam encarecidamente que nos
atentássemos aos autores não fugindo do assunto e escolhendo para leitura
e pesquisa apenas textos comprovadamente consagrados como referência,
ainda que nenhum deles falasse sobre a realidade brasileira e nenhuma
mulher, pessoa negra ou latino-americana fizesse parte desse seleto grupo.
A prática de tentar pensar os problemas cotidianos de forma autônoma,
sem se amparar em filósofos europeus e estadunidenses, era vista como algo
a ser evitado, um desvio, como algo não rigoroso e ingênuo. Felizmente
tivemos a oportunidade de ter como professor Antonio Trajano Menezes
Arruda, que nos mostrou que este modelo que nos foi apresentado como
a única possibilidade era um “pecado original” da filosofia, incentivando
que buscássemos o contato com os problemas, o que ele chamava de
filosofia propriamente dita (ARRUDA, 2013). Ele não foi o único a nos
apontar para os problemas, docentes como Maria Eunice Quilici Gonzalez
e Rodrigo Pelloso Gelamo também nos possibilitaram perceber a
pluralidade de filosofares, mas tal perspectiva durante nossa formação
esteve longe de ser majoritária nos departamentos que compunham. Se em
sua formação docentes têm suas perspectivas do filosofar silenciadas, como
poderão fomentar o filosofar com seus estudantes em qualquer nível e
modalidade de ensino? Concordamos com Rodrigues (2020, p. 164) que
do mesmo modo que nos habituamos a acreditar que a compreensão da história
da filosofia constituiria o cerne das práticas de ensinar e aprender filosofia, nós
ensinaremos filosofia no ensino médio sujeitados por esse pressuposto, de tal
forma a crer que só a partir do conhecimento da história da filosofia poderá o
estudante refletir sobre suas próprias questões. (RODRIGUES, 2020, p.164)
90
Consideramos que nesse modelo de formação filosófica são
empobrecidos tanto a vida quanto os próprios livros. Enquanto os livros se
reduzem, na melhor das hipóteses, a uma repetição irrefletida de suas ideias
tanto por docentes quanto estudantes, as vidas se distanciam cada vez mais
das salas de aula e, consequentemente, da própria filosofia.
Em nosso entendimento, parece majoritário um pensamento
abstrato sobre a filosofia, afastando-a dos problemas da vida e do mundo.
A filosofia, nessa perspectiva, é um ideal transcendente a ser cultuado,
entendido como um pensamento separado objetivo, neutro e universal
da experiência. Nesse viés, há uma separação entre o pensamento e o modo
de existência no decorrer da história ocidental da filosofia. A filosofia, na
sua vertente ocidental, começa a se delinear por volta do século VII a.C. a
partir da tentativa de pensar os problemas que mais incomodavam os
cidadãos, sem recorrer às respostas prontas e impostas da mitologia vigente.
Ainda que existam muitas definições para o filosofar, nenhuma delas
ignora seu caráter de pensar a sociedade em que vivemos em cada período
histórico e os consequentes problemas ético-políticos que o acompanham.
Filosofar de algum modo se liga a pensar os problemas que o contexto que
vivenciamos impõe, não se resume à mera erudição.
Além de tais fatores que acompanham a filosofia no Brasil desde
sempre, no atual contexto, muitos problemas urgentes se colocam e exigem
que intelectuais repensem seu papel na sociedade. A democracia no país
está ficando cada vez mais distante, além dos problemas globais que
colocam desafios para a permanência da humanidade num futuro
próximo. As questões que mais assolam a humanidade são as de vida ou
morte, os dilemas que colocam dúvidas sobre a possibilidade da nossa
sobrevivência e de nossos descendentes no futuro. Diante de um mundo
que tem sido caracterizado por crises tanto das relações humanas quanto
91
materiais, que vivemos à espreita de uma grave crise ecológica que coloca
em xeque o modo de vida hegemônico, precisamos pensar que
contribuições o ensino de filosofia pode oferecer neste contexto. Por outro
lado, cabe pensar também para que mundo esse modelo de filosofia que
descrevemos neste capítulo colabora. O contexto que vivenciamos e que
descredibiliza a importância da filosofia nos exige repensar que papel
filósofos/as/es devem ter na contemporaneidade. Contudo, a pergunta que
nos incomoda cotidianamente é: qual filosofia faz sentido no mundo
contemporâneo e deve fazer parte de nossas preocupações enquanto
docentes filósofos/as/es?
A filosofia, que é majoritária nas instituições de ensino e que estou
descrevendo neste capítulo a partir de minhas experiências enquanto
estudante, docente e filósofa, corresponde a um modelo de ensino
dominador e racista que silencia as diferenças e propaga uma filosofia
subalterna. Para os interesses hegemônicos atuais, qualquer modelo de
ensino de filosofia é um empecilho, vide as políticas supracitadas. No
entanto, quando analisamos o modelo de ensino de filosofia que permeia
as graduações na área e, consequentemente, as aulas no ensino médio,
também não há muito espaço para o filosofar. Há um fomento da
passividade diante dos problemas e subalternidade diante do pensamento
e realidade europeia, de maneira tal que não permite tanto enfrentamento
às opressões quanto acreditam os ministros da educação.
Tal modelo de ensino de filosofia promove uma perspectiva única
de mundo que recusa as diferenças através de currículos exclusivamente
formados por homens europeus, o que demonstra um silenciamento da
pluralidade do próprio filosofar. Não só seu ensino não tem espaço nas
políticas oficiais, como também em suas práticas não há um incentivo para
o pensamento próprio. Tal cenário se configura como um dificultador do
92
pensamento dos problemas atuais, haja vista que não apenas elementos da
vida são silenciados, mas qualquer iniciativa de construção própria, tão
necessária para os desafios atuais, é inferiorizada.
Se as pessoas são silenciadas, como poderão pensar saídas para
construir um outro mundo possível? Um ensino de filosofia que não
permite pensar diferente e nem ao menos filosofar, que incentiva um
pensamento individualista e que reproduz filósofos que justificam a
exploração racista do nosso território, pode colaborar para adiar o fim do
mundo?
Esse modelo de ensino de filosofia propaga o aprisionamento do
ser a partir da perspectiva de uma ontologia hegemônica na qual o homem
branco europeu é a matriz referencial. Tal modelo fomenta uma ideologia
subalterna que faz com que não nos vejamos como capazes de filosofar e
silencia a possibilidade de qualquer filosofia a partir do contexto brasileiro.
Desse modo, passamos a entender que problemas de filósofos europeus e
estadunidenses como se fossem nossos, cometendo o grande equívoco de
aplicar suas soluções para nossos contextos, o que nos impede de perceber
quais são os nossos reais problemas porque estamos presos a entender suas
teorias. Um ensino de filosofia que segue a lógica domesticadora e exclui as
diferenças por meio de políticas de silenciamento cultiva um indivíduo
abstrato, desconectado da sua experiência cotidiana e das pessoas à sua
volta, já que seu saber depende somente de si mesmo isoladamente.
Nesse sentido, podemos dizer que o silenciamento que impede de
pensar nossa própria realidade contribui para o fim do mundo, haja vista
que a passividade na qual somos formados dificulta refletirmos
profundamente sobre o que nos atravessa enquanto sujeitos/as/es, levando
a uma repetição das políticas que produzem este mundo em colapso
93
ambiental e social e que dependem de nossa conformação para
continuarem funcionando.
A diversidade, que é vista como um mal a ser excluído nas
instituições de ensino, é justamente o elemento mais importante numa
sociedade em que a padronização produz esgotamento dos recursos
naturais, além de possibilitar uma gama maior de soluções para os
problemas sociais através da pluralidade de perspectivas. Entender
estudantes como inferiores é um desperdício do potencial de construção
coletiva que existe em sala de aula e que é necessário para os tempos em
que vivemos, significa tratar as diferenças como negativas ou supérfluas
como na BNCC ao invés de utilizar a diversidade como a ampliação das
possibilidades de transformação social. As instituições de ensino são
espaços que podem potencializar a busca por soluções aos problemas
contemporâneos. Assim, como entender a filosofia como comentarismo
neutro e distante da vida é um desperdício de nosso potencial filosófico de
pensamento.
Contudo, podemos dizer que o paradigma hegemônico no ensino
de filosofia brasileiro não contribui para adiarmos o fim do mundo, pois
não incentiva a pensar os problemas da nossa realidade e nem a buscar
soluções próprias e coletivas a eles, o que é essencial para que nossa atuação
enquanto filósofos/as/es não se restrinja a criar explicações sobre a
realidade, mas que possa contribuir para transformá-la efetivamente,
permitindo contribuir para adiar o mundo.
Como expusemos neste capítulo, o ensino de filosofia é atravessado
por diversas políticas de silenciamentos e dispositivos que impedem a fala:
silenciamento estudantil através do autoritarismo, silenciamento docente
através de perseguição ideológica e de políticas antidemocráticas,
94
silenciamento da experiência através de uma educação bancária,
silenciamento curricular através do racismo e do sexismo, silenciamento
do ensino de filosofia a partir da anulação de seu espaço das políticas
públicas educacionais, silenciamento do filosofar a partir de uma relação
subalterna com os filósofos consagrados europeus e estadunidenses. De
certa maneira, podemos afirmar que o silenciamento do filosofar perpassa
todas as dimensões já que o pensamento autônomo não é incentivado.
Diante das discussões feitas neste capítulo, retomamos a pergunta:
em que solo pisamos quando nos dedicamos ao ensino de filosofia no
Brasil? Um solo pouco fértil nas políticas oficiais tanto da própria filosofia
que, além de inferiorizarem o seu ensino, são colonizadas por interesses
hegemônicos, quanto de governos antidemocráticos, adotando formas de
exclusão nas verbas e currículos nacionais. É um solo pobre de mundo, que
anula as especificidades que envolvem a diversidade, para que a terra e toda
a vida que a compõem continuem servindo para a única função de gerar
lucro a poucos. Quando não anulada, a vida é permitida em “vasos” com
fronteiras bem delimitadas e “nutrientes” bem norteados por interesses
específicos. Instituições de ensino nesse modelo dominador produzem
emudecimento, padronizando o que nutre as pessoas em prol de um projeto
de consumo e muitas vezes os sufocando.
Por outro lado, o potencial necessário para que o solo se torne fértil
existe em um território tão plural quanto o que vivemos. Mas, para isso, é
necessário que o ensino de filosofia rompa com as políticas de
aprisionamento do ser e permita que a pluralidade emerja para além das
hierarquias. O solo em que pisamos tem um potencial fértil de problemas
e conceitos próprios existentes em constante transformação e permeados
de diferenças com outros territórios, mas também guarda a potencialidade
de muitos outros problemas e conceitos por vir. Entendemos que a filosofia
95
pode ajudar a lidar com a finitude tanto da humanidade quanto do
planeta, permitindo pensar outros mundos possíveis bem como nosso
papel no cosmos.
No próximo capítulo, iremos investigar as causas dessa ontologia
hegemônica que determina o modelo de ensino de filosofia aprofundando
a sua compreensão. O que garante esse privilégio ontológico, epistêmico,
político, econômico do ser europeu masculino? O que causa essa ontologia
da excepcionalidade que dá direito a um grupo de homens de determinar
os rumos do planeta? No próximo capítulo, investigaremos suas raízes.
97
Capítulo 2
Na árvore do pensamento filosófico:
raízes do universo narcisista
Como é possível que o cânone do pensamento em todas as disciplinas das ciências
sociais e humanidades nas universidades ocidentalizadas (Grosfoguel, 2012) se
baseie no conhecimento produzido por uns poucos homens de cinco países da
Europa Ocidental (Itália, França, Inglaterra, Alemanha e os Estados Unidos)?
Como foi possível que os homens desses cinco países alcançaram tal privilégio
epistêmico ao ponto de que hoje em dia se considere o seu conhecimento
superior ao do resto do mundo? [...] Por que o que hoje conhecemos como teoria
social, histórica, filosófica, econômica ou crítica se baseia na experiência sócio-
histórica e na visão de mundo de homens destes cinco países?
Como é que no século XXI, com tanta diversidade epistêmica existente no
mundo, estejamos ancorados em estruturas epistêmicas tão provincianas
camufladas de universais? (GROSFOGUEL, 2016a, p. 26-27)
98
FIGURA 2A ÁRVORE OCA.
Fonte: Arquivo pessoal de Renata Pelloso Gelamo.
99
Apresentação
O que justifica o modelo de ensino de filosofia que decrevemos no
primeiro capítulo é a universalização de uma perspectiva única de mundo,
expressa por uma ontologia do ser baseada na superioridade do homem
branco europeu. Neste capítulo, tentaremos responder “Quais as origens e
causas do modelo de ensino de filosofia hegemônico no Brasil?”. As raízes
dessa ontologia hegemônica, especialmente quando refletimos sobre o
contexto em que vivemos no Brasil e na América Latina, remontam, por
um lado, ao colonialismo e seus pressupostos racistas, patriarcais,
especistas, monoteístas e capitalistas; que, por outro lado, não poderiam se
fundamentar sem as contribuições de filósofos ocidentais, tendo raízes no
logocentrismo da filosofia europeia. Discutiremos algumas facetas do
pensamento hegemônico refletindo qual humanidade e concepção de
filosofia cabem nesta ontologia e, consequentemente, qual mundo é
produzido a partir dela.
2.1 Rzes coloniais: a construção hierárquica das diferenças como
desigualdades naturais
A ontologia racista, que fundamenta currículos e relações nas
instituições de ensino, tem suas raízes no colonialismo. Ainda que o
colonialismo seja um acontecimento histórico que tem início e fim
demarcados, sua influência ainda hoje perdura por estabelecer um “padrão
de poder mundial”, cujo principal eixo é caracterizar e hierarquizar os
povos a partir da invenção da categoria de “raça”, que, como ressalta o
peruano Aníbal Quijano, nasce com a “América” (2014, p. 106). Este
100
novo padrão de poder mundial que se origina com o colonialismo é
chamado de colonialidade do poder (QUIJANO, 1997) e está
intrinsecamente ligado à colonialidade do ser e do saber. Como explica
Ramón Grosfoguel (2010, p. 467): “a colonialidade permite-nos
compreender a continuidade das formas coloniais de dominação após o
fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e
pelas estruturas sistema-mundo capitalista moderno/colonial”. A divisão
império/colônia transcende o colonialismo através das relações globais de
poder, saber e acumulação de capital. Ainda hoje os povos que foram e
continuam sendo explorados, inferiorizados e criminalizados são os
mesmos do período colonial. Como explica Quijano:
a globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo
que começou com a constituição da América e do capitalismo
colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial.
Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da
população mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que
expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia
as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade
específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial,
mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi
estabelecido. Implica, conseqüentemente, num elemento de colonialidade no
padrão de poder hoje hegemônico. (QUIJANO, 2005, p. 117).
A colonialidade consiste no padrão de poder hegemônico na
atualidade e estrutura o sistema-mundo em que vivemos a partir da ideia
de raça, o que serviu para legitimar práticas antigas de dominação e em
benefício exclusivamente dos mesmos grupos sociais, continuando o
projeto imperial. Desse modo, a “elaboração intelectual do processo de
modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de
101
produzir conhecimento que demonstram o caráter do padrão mundial de
poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado” (QUIJANO, 2005,
p. 126).
A determinação eurocêntrica de identidades raciais resultou
também em uma divisão racial do trabalho. Como escreve Quijano (2005,
p. 118), “As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça
foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global
de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raça e divisão do
trabalho, foram estruturalmente associados”. Dessa forma, a ontologia
racista imposta por europeus durante a colonização, por trás de seus
discursos de pretensa superioridade universal, esconde interesses
econômicos.
Embora o contato de europeus com os povos originários das
Américas seja chamado de encontro” ou “descobrimento”, Enrique Dussel
explica que ocorreu na realidade um “encobrimento”:
não é um “descobrimento” do novo, mas simplesmente o reconhecimento de
uma matéria ou potência onde o europeu começa a “inventar” sua própria
“imagem e semelhança”. A América não é descoberta como algo que resiste
distinta, como o Outro, mas como matéria onde é projetado “o si-mesmo”.
Então não é o “aparecimento do Outro”, mas a “projeção do si-mesmo”:
encobrimento. (DUSSEL, 1993, p. 35)
A visão que temos dos povos originários é consequência da imagem
inventada pelos europeus no contato com ameríndios, projetando a si
mesmos e procurando seus costumes e hábitos no que viam. Nesse sentido,
102
se invertermos as virtudes atribuídas aos índios, encontraremos os vícios
europeus: rancor, dissimulação, espírito vingativo. Por exemplo, à veracidade
dos índios corresponde a duplicidade europeia. Assim, segundo Las Casas,
quando se perguntava aos índios se eram cristãos, respondiam que já o eram
um pouco, porque sabiam mentir um pouco, mas que seriam mais cristãos
quando tivessem aprendido a mentir mais. (ROUANET, 1999, p. 423)
Concordamos com Dussel (1993, p. 65) que “nenhum “encontro”
pôde ser realizado pois havia um total desprezo pelos ritos, deuses, mitos,
crenças indígenas. Tudo foi apagado com um método de tabula rasa”. Não
houve “encontro” entre mundos e culturas, houve encobrimento do que
eram tais povos a partir das projeções dos próprios europeus para esconder
os interesses econômicos e exploratórios.
Em geral, os europeus, neste período, descreviam os ameríndios
como um povo sem lei, sem fé, sem governo e preguiçoso demonizando
seus costumes. O próprio conceito de “índio
8
surge a partir de uma
compreensão equivocada dos invasores, o que reflete a relação de cegueira
diante de tais povos, pois os europeus viram o que queriam e não o que de
fato estava diante deles. O “índio” consiste no outro do europeu, naquilo
que estes últimos consideravam ser seu avesso. Mesmo que existam muitos
povos originários diferentes, ainda hoje somos ensinados a perceber apenas
o “índio” como uma categoria homogênea, tal como descrito pelos
europeus.
8
É importante ressaltar que “indígena” não coincide com o que se entende por “índio”, seu significado
diz respeito aos povos originários da terra que vivem, de maneira que seu antônimo é “alienígena”. Por
isso, quando tratarmos do encobrimento eurocêntrico sobre os povos originários utilizaremos o termo
“índio”. A expressão “indígena” também pode ser considerada uma invenção europeia haja vista que faria
mais sentido chamar tais povos pela sua autodenominação, já que são diversos e não podem se reduzir a
uma categoria única.
103
O encobrimento europeu justificou a colonização do mundo da
vida, estabelecendo o domínio sobre a cultura, a sexualidade, o trabalho e
a organização política dos povos dos territórios invadidos. Tal relação
desigual e eurocêntrica Dussel descreve como o “mito da Modernidade”:
vemos já perfeitamente construído o “mito da Modernidade”: por um lado, se
autodefine a própria cultura como superior, mais “desenvolvida” [...]; por
outro lado, a outra cultura é determinada como inferior, rude, bárbara, sempre
sujeito de uma “imaturidade” culpável. De maneira que a dominação (guerra,
violência) que é exercida sobre o Outro é, na realidade, emancipação,
“utilidade”, “bem” do bárbaro que se civiliza, que se desenvolve ou
“moderniza”. Nisto consiste o “mito da Modernidade”, em vitimar o inocente
(o Outro) declarando-o causa culpável de sua própria vitimação e atribuindo-
se ao sujeito moderno plena inocência com respeito ao ato sacrifical. Por
último, o sofrimento do conquistado (colonizado, sub-desenvolvido) será o
sacrifício ou o custo necessário da modernização. (DUSSEL, 1993, p. 75-76)
Os povos colonizados foram asvítimas do primeiro holocausto do
mito violento da Modernidade” (DUSSEL, 1993, p. 165). Tal mito
consiste numa inversão na qual a vítima inocente se transforma em
culpada, enquanto seu algoz é visto como o salvador. Uma vez que a
ontologia da superioridade branca-europeia afirmava os povos não
europeus como naturalmente inferiores, a violência contra eles assumiu
contornos de historicamente justa: É um processo de racionalização
próprio da Modernidade: elabora um mito de sua bondade (“mito
civilizador”) com o qual justifica a violência e se declara inocente pelo
assassinato do Outro” (DUSSEL, 1993, p. 58-59). O suposto “atraso” de
tais povos foi a justificativa para seu sacrifício em prol do desenvolvimento
e da modernização do mundo.
104
O mito violento da modernidadeproduz o que Dussel (2005)
chama de “falácia desenvolvimentista”, isto é, a ideia de que a violência
contra alguns povos é necessária para o desenvolvimento da sociedade.
Antônio Bispo dos Santos (2015) traz uma perspectiva interessante para
compreendermos as consequências dessa falácia ao refletir sobre os
processos de aniquilamento violento que passaram os povos de Canudos,
Caldeirões, Pau de Colher e Palmares:
do que todas essas comunidades são acusadas? De serem povos atrasados,
improdutivos e sem cultura, portanto, um empecilho ao avanço e ao
desenvolvimento da integridade moral, social e econômica e cultural dos
colonizadores. O que podemos perceber é que essas comunidades continuam
sendo atacadas pelos colonizadores que se utilizam de armas com poder de
destruição ainda mais sofisticado, numa correlação de forças perversamente
desigual. Só que hoje, os colonizadores, ao invés de se denominarem Império
Ultramarino, denominam a sua organização de Estado Democrático de Direito
e não apenas queimam, mas também inundam, implodem, trituram, soterram,
reviram com suas máquinas de terraplanagem tudo aquilo que é fundamental
para a existência das nossas comunidades, ou seja, os nossos territórios e todos
os símbolos e significações dos nossos modos de vida. (SANTOS, 2015, p. 76)
Dessa forma, Santos dá um novo sentido para o processo de
encobrimento deixando mais explícita sua violência: o mito da
modernidadeé um processo de soterramento das diferenças, que, como
terraplanagem, ao mesmo tempo em que padroniza a terra, padroniza,
exclui, expulsa, mata os povos entendidos como “subdesenvolvidos”. O
trabalho de Santos denuncia os mega projetos privados que emergem no
Piauí e que se configuram, nos termos apontados pelo filósofo, de uma
forma de recolonização no contexto do Estado entendido como
democrático. Como apontado por Maria Sueli Rodrigues de Souza (2015,
105
p. 118) no posfácio do livro de Santos, “o grande capital entra com mega
projetos e o Estado brasileiro com a infraestrutura, isenção fiscal e
flexibilização das leis ambientais e os povos entram com suas vidas,
configurando desse modo mais uma batalha na guerra da colonização”.
Como o autor ressalta (SANTOS, 2015, p. 51),
mesmo tendo ocorrido conflitos no interior da organização político-social dos
colonizadores, esses sempre se fizeram no campo de disputa da gestão e não no
campo de disputa ideológica. Tanto é que os colonizadores mudavam a
denominação das suas organizações político-administrativas, mas a estrutura
não sofria modificações, já que as mesmas práticas de violência, de subjugação,
de invasão, de expropriação e de etnocídio se repetiram em todas as gestões,
independentemente dos conceitos por eles apresentados.
Como destaca Santos (2015, p. 97), a guerra da colonização nada
mais é que uma guerra territorial, de disputa de territorialidades”. Santos
desencobre vidas soterradas, tanto pelos agentes da terraplangem do
Império Ultramarino Português quanto do Estado Democrático de
Direito, por serem um empecilho para o desenvolvimento.
O que Dussel denomina mito da modernidadeé uma ideologia
de desumanização, pois propaga uma visão deturpada de outros modos de
vida, muitas vezes destituindo povos não europeus de sua humanidade,
tratando-os como mercadoria. A ontologia racista desumaniza quem não a
reproduz, coloca as pessoas diferentes da matriz ontológica como incapazes
intelectualmente. Tais ideologias de desumanização de grupos ameríndios
e de ancestralidade africana determinam o que é considerado justo ainda
hoje, pois permanecem no imaginário social a partir da cultura, das
políticas públicas e da atuação dos agentes de segurança do Estado, das
106
decisões judiciais sobre divisão de terras, do encarceramento em massa da
população negra e da história que nos contam sobre o território.
Em nome do progresso e do desenvolvimento, europeus realizaram
uma repressão sistemática no âmbito das crenças de outros povos
deslegitimando suas ideias, símbolos e conhecimentos específicos. Os
principais alvos da repressão eurocêntrica foram os “modos de conhecer,
de produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens e sistemas
de imagens, símbolos, modos de significação” (QUIJANO, 1992, p. 12,
tradução nossa). Assim, impondo os padrões europeus de expressão e
crenças “que serviam não só para impedir a produção cultural do meio
dominado, mas também como modo muito eficaz de controle social e
cultural, quando a repressão imediata deixou de ser constante e sistemática
(QUIJANO, 1992, p. 12, tradução nossa). Dessa maneira, a dominação
colonial desembocou em epistemicídio do mesmo modo como a filósofa
Sueli Carneiro refletiu sobre processo escolar no primeiro capítulo , isto
é, a exclusão da epistemologia de povos não dominantes por meio de
escravidão, evangelização, doenças, escolarização, genocídio ou até mesmo
devastação ambiental. Contudo, a dominação colonial estabeleceu a
colonialidade do ser a partir da criação de identidades raciais, a
colonialidade do saber a partir do eurocentrismo como racionalidade
específica e superior, e a colonialidade do poder através da exploração e
divisão do trabalho. Estes três aspectos fundamentaram a colonização e
permanecem nas relações contemporâneas.
A ontologia racista corresponde a uma maneira específica de se
relacionar com as diferenças como destaca Quijano:
107
o surgimento da ideia do "Ocidente" ou da Europa é uma admissão de
identidade, isto é, de relações com outras experiências culturais, de diferenças
com outras culturas. Mas, por essa percepção "européia" ou "ocidental" em
plena formação, essas diferenças foram admitidas acima de tudo como
desigualdades, no sentido hierárquico. (QUIJANO, 1992, p. 16)
As diferenças entre europeus e os povos colonizados foram tratadas
pelos invasores como desigualdades naturais, uma vez que cada raça” tinha
um lugar na hierarquia mundial na qual os europeus se autoproclamaram
o topo e último estágio da evolução. Embora a ideologização das diferenças
entre os povos seja construída por relações de poder, é tratada no âmbito
da colonialidade como diferença de natureza racial e, por isso, estabelece a
subjugação de povos não europeus à exploração da sua força de trabalho,
de seus corpos e controla a formação de suas subjetividades: “O espelho
eurocêntrico nos faz crer que as diferenças entre europeu e não-europeu,
por exemplo, são naturais, não criadas pelas relações de poder e pelo
processo de colonização” (PEREIRA & PAIM, 2018, p. 4). No cerne da
colonialidade, há o estabelecimento de uma multiplicidade de dualidades
excludentes, nas quais apenas um lado é considerado válido. Nessa
perspectiva, o mundo passa a ser dividido em “o tradicional e o moderno,
o racional e o mítico, o primitivo e o civilizado, o mágico e o científico” e,
assim, “estabelece as diferenças entre os dois polos como diferenças de
natureza, não como diferenças históricas construídas segundo as injunções
do poder” (PEREIRA & PAIM, 2018, p. 4).
A própria identidade europeia é inventada a partir da racialização
forjada pelo soterramento, pois o europeu cria uma compreensão de si
mesmo devido ao seu contato com os povos originários das Américas. Nas
palavras de Quijano:
108
a América constitui-se como o principal espaço/tempo de um padrão de poder
de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id-entidade da
modernidade. Dois processos históricos convergiram e se associaram na
produção do referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos
fundamentais do novo padrão de poder. Por um lado, a codificação das
diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma
supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural
de inferioridade em relação a outros. Essa ideia foi assumida pelos
conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das
relações de dominação que a conquista exigia. Nessas bases,
consequentemente, foi classificada a população da América, e mais tarde do
mundo, nesse novo padrão de poder. Por outro lado, a articulação de todas as
formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos,
em torno do capital e do mercado mundial. (2005, p. 117, tradução nossa)
A América se constitui como a primeira id-entidade da
modernidade porque foi, ao mesmo tempo, a primeira identidade criada
pelos europeus nesse período inicial, que com a exploração dos territórios
e dos povos de modo subsequente constituíram sua própria id-entidade: a
“Europa foi a segunda e foi constituída como consequência da América,
não o inverso(QUIJANO, 2005, p. 116) porque foi a exploração que
possibilitou que esta se reafirmasse enquanto centro e o restante do mundo
enquanto periferia. A Europa Ocidental não era o centro quando se
iniciaram as grandes navegações, se encontrava à margem do mundo
muçulmano, apenas com a invasão dos espanhóis às Américas se torna
possível impor seus interesses ao restante do mundo.
Dussel (1993, p. 113) entende tal fenômeno como o nascimento da
Modernidade: “1492 é a data de seu nascimento, da origem da
experiência” do ego europeu de constituir os Outros sujeitos e povos como
objetos, instrumentos, que podem ser usados e controlados para seus
próprios fins europeizantes, civilizatórios, modernizadores”. 1492 é
109
metaforicamente o nascimento do que foi chamado de “América Latina,
inclusive em homenagem ao invasor Américo Vespúcio e a língua
colonizadora.
Nesse sentido, a “Europa” só existe porque aAmérica” existe. Do
mesmo o que chamamos de “modernidadee “capitalismose construiu à
custa da dominação dos europeus sobre ameríndios e africanos. Como
explica Grosfoguel (2016b, p. 128, tradução nossa):
sem a conquista da África, Ásia e América não haveria capitalismo mundial.
De maneira que estamos falando de um sistema capitalista e colonialista desde
o seu nascimento. Sem colonialismo e dominação colonial, não haveria
mercado capitalista global. O colonialismo é constitutivo do capitalismo. Um
é inerente ao outro. De maneira que não vivemos em um sistema puramente
capitalista. Habitamos um capitalismo histórico que é inerentemente colonial
e, portanto, racial.
Por isso, não há modernidade sem colonialidade assim como não
poderia existir uma economia-mundo capitalista sem a invenção da
América” (BALLESTRIN, 2017b, p. 518) porque esta é constitutiva da
modernidade e não derivada, consiste justamente na sua face oculta. Assim,
o soterramento é necessário para que a Europa invente a sua superioridade,
encobrindo os/as/es legítimos/as/es responsáveis pelo enriquecimento
europeu e seu projeto desenvolvimentista.
Embora a tradição ocidental se coloque como um pensamento
superior ancorado em justificativas racionais, o que fundamenta a
ontologia racista é o fato de tomar por verdades hipóteses restritas e sem
justificação racional. Toma-se por certo, por exemplo, que a modernidade
representa o auge da humanidade, ainda que tal hipótese não possa ser
110
testada. Entender a história da humanidade como um processo que se
resume às transições entre antiguidade/idade média/modernidade é uma
hipótese que tem um lugar definido: a Europa. Tal concepção define que
a modernidade é o sentido necessário para o desenvolvimento da
humanidade e que qualquer outro povo não europeu não tem história
própria. Basta observar que nunca olhamos para a história indígena ou
africana refletindo sobre sua antiguidade ou modernidade. O mesmo
movimento ocorre também com os denominados “africanos”, “brasileiros”,
“latino-americanos”, etc. Tais povos se mantiveram durante tantos séculos
estáticos diante da história? Obviamente que não, porém, quando
indígenas são vistos com costumes diferentes daqueles determinados pelo
modelo de “índiona perspectiva eurocêntrica, grande parte da população
os acusa de não serem mais indígenas e que, por isso, não deveriam ter seu
direito à terra garantido, mesmo que contraditoriamente nas relações
cotidianas as mesmas pessoas os lembrem o tempo todo de que são
“índios”. Entender a história como um processo que tende à modernidade,
tal qual o modelo europeu de desenvolvimento, consiste em uma hipótese
que não pode ser testada, além de desconsiderar que o próprio
desenvolvimento europeu se alicerçou e continua dependente totalmente
de outros povos e territórios. Nesse sentido, é muito importante expor as
raízes do pensamento moderno que sem a colonialidade jamais poderia
existir.
O mito da modernidadeé elaborado teoricamente com a ideia
da existência de um estado de natureza aprofundada pelos filósofos
contratualistas como Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-
1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). O que subjaz tais teorias é
uma perspectiva na qual os não europeus são vistos desde o colonialismo
como pré-europeus, “dispostos em certa seqüência histórica e contínua do
111
primitivo ao civilizado, do irracional ao racional, do tradicional ao
moderno, do mágico-mítico ao científico. Em outras palavras, do não-
europeu/p-europeu a algo que com o tempo se europeizará ou
modernizará”” (QUIJANO, 2005, p. 129). A ideia de progresso é
resultado de uma “ideia-imagem da história da civilização humana como
uma trajetória que parte de um estado de natureza e culmina na Europa
(QUIJANO, 2005, p. 122), isto é, de uma compreensão da totalidade
como historicamente homogênea e linear que entende todos os povos
como parte de um continuum evolutivo.
Embora os três autores supracitados divirjam em alguns aspectos
acerca dos direitos básicos do ser humano, têm como semelhança a
compreensão de que existiu um estado pré-civilizatório que gerou a
necessidade de um contrato social com a finalidade de proteger os seres
humanos. Enquanto na perspectiva hobbesiana, fora do âmbito da
sociedade, o ser humano seria movido por suas paixões e desejos sendo
incapaz de conviver e provocando um “estado de guerra de todos contra
todos”, na teoria rousseauniana o estado de natureza é romantizado a partir
do conceito de “bom selvagem”. Entretanto, o “bom selvagemé uma
invenção europeia, pois o “estado de natureza é pré-social, e a vida social é
inerente à condição humana” (ROUANET, 1999, p. 432), o que torna
inconsistente associar os povos originários a tal ideal. A ideia de estado de
natureza” consiste em mais uma projeção europeia que resultou em
soterramento, pois, como afirmam Simas e Rufino (2018, p. 71), “o que ata
os homens na banda de cá não é o contrato social mas sim o racial”.
A necessidade universal de um pacto social própria das teorias
contratualistas parte de uma concepção restrita e eurocêntrica de poder. As
sociedades ameríndias mostram outras formas de entender a organização
política para além das repúblicas e democracias modernas. Aliás, tal
112
perspectiva evidencia o caráter colonizado do que chamamos de
democracia”, haja vista que, em algumas de suas versões, o genocídio de
alguns grupos sociais é institucionalizado e parte do próprio Estado. Basta
pensar sobre a atuação dos agentes de segurança pública ou sobre a tese do
“Marco Temporal” que impossibilita a luta institucional sobre o direito à
terra de povos indígenas por exigir que tivessem judicializado a luta em
períodos em que não eram vistos pelo Estado como portadores de direitos,
o que não é possível. Além do que, práticas como a escrita também
costumam ser determinadoras daqueles que detêm direitos e que podem
participar do que é chamado de democracia, o que exclui povos que
priorizam a tradição oral de transmissão de conhecimento. Concordamos
com Pierre Clastres (2004, 2013) que o Estado capitalista é etnocida em
essência. A partir de tal contexto, podemos dizer que, desde sua origem,
somos governados por Estados Narcisos, que só funcionam em prol de
significantes-espelho, isto é, homens brancos heterossexuais e de origem
europeia, que não precisam se esforçar para terem seus privilégios
reconhecidos. Corpos indígenas, negros, transgêneros, imigrantes,
femininos, entre outros, em diferentes graus, não são entendidos enquanto
cidadãos/ãs e travam batalhas diárias para terem seus direitos reconhecidos.
Outra expressão do contrato racial de grande destaque na história
da filosofia ocidental é o pensamento de Hegel (1770-1831), que afirmava
que faltava aos africanos a objetividade, e, por isso, não teriam história.
Segundo Hegel (1982, pp. 279-283), a África:
não tem interesse histórico próprio, senão o de que os homens vivem ali na
barbárie e na selvageria, sem fornecer nenhum elemento à civilização. Por mais
que retrocedamos na história, acharemos que a África está sempre fechada no
contato com o resto do mundo, é um Eldorado recolhido em si mesmo, é o
113
país criança, envolvido na escuridão da noite, aquém da luz da história
consciente. [...] Nesta parte principal da África, não pode haver em realidade
história. Não há mais que casualidade, surpresas, que se sucedem umas às
outras. Não há nenhum fim, nenhum Estado, que possa se perseguir; não há
nenhuma subjetividade, mas somente uma série de sujeitos que se destroem.
[...] Entre os negros é, de fato, característico o feito de que sua consciência não
chegou ainda à intuição de nenhuma objetividade, como, por exemplo, Deus,
a lei, na qual o homem está em relação com sua vontade e tem a intuição de
sua essência. O africano não chegou todavia a essa distinção entre ele mesmo
como indivíduo e sua universalidade essencial; é impedido pela sua unidade
compacta, indiferenciada, onde não existe o conhecimento de uma ciência
absoluta, distinta e superior ao eu. Encontramos, pois, aqui o homem em sua
imediatez. [...] encontra-se no primeiro estágio, dominado pela paixão, pelo
orgulho e a pobreza; é um homem em estado bruto. [...] O negro representa o
homem natural em toda a sua barbárie e violência; para compreendê-lo
devemos esquecer todas as representações europeias. Devemos esquecer Deus
e a lei moral. Para compreendê-lo exatamente, devemos abstrair de todo
respeito e moralidade, de todo o sentimento. Tudo isso está no homem em seu
estado imediato, em cujo caráter nada se encontra que pareça humano.
(HEGEL, 1982, pp.279-283)
Hegel afirma que o africano é o homem em sua “imediatez”, em
seu “primeiro estágio”, “em estado bruto”, “dominado pela paixão”,
envolto em “barbárie e violência; pois, segundo ele, não é capaz de olhar
para além da sua experiência subjetiva. Hegel associa a objetividade a Deus,
à moralidade, às leis, à “ciência absoluta, distinta e superior ao eu”, sem
perceber que a realidade africana aponta justamente para o fato de que tais
elementos não possam serem entendidos como universais. Ignora também
que especialistas em barbárie são os próprios europeus, que causaram
diversos genocídios e holocaustos ao longo da história. Hegel afirma que a
África é um continente sem história, porém, são as relações de poder
desiguais que apagam e invisibilizam a história e os saberes dos povos do
continente africano.
114
A obra de Claude Lévi-Strauss, portanto um europeu, foi
importante para que a relação racista entre objetividade e história fosse
revista, como explica Ailton Krenak (2020a, n.p.):
toda a literatura e talvez até os Tristes Trópicos de Claude Lévi-Strauss, que
ele publicou em 1955, dizia que os índios não têm história. Lévi-Strauss deu
um cutucão nos outros antropólogos ao dizer que: “é claro que eles têm
história, mas outra história”.
[...] O Eduardo Viveiros de Castro gosta de exemplificar esse período com
aquele episódio do embaixador brasileiro, que estava em Paris, quando Lévi-
Strauss estava preparando sua primeira viagem ao Brasil. Eis que o embaixador
pergunta o que ele viria fazer no Brasil e ele responde: “eu vou conhecer os
indígenas, entender melhor a situação dele”. O diplomata responde: “ah que
pena, você vai ter de fazer outra coisa, pois acabaram os índios no Brasil”.
Lévi-Strauss veio mesmo assim e deu no que deu: a chave abriu a tranca e
mostrou que não apenas os indígenas não tinham acabado no Brasil como,
também, demonstrou que o Brasil não tinha conseguido acabar com os
indígenas.
[...] E os indígenas que eram um povo sem História, voltou à cena, de uma
forma tão determinada, como se tivesse reconhecendo seu destino de ser
testemunha da sua própria história, mas também testemunha da história do
branco.
Hoje, eu acredito que no mundo inteiro, os povos indígenas da Nova Zelândia,
Austrália, África, Brasil e Canadá são as testemunhas mais duras que os Estados
nacionais colonialistas têm diante de si. Se a gente entender os indígenas não
como a invenção do português, mas com uma constatação de que grande parte
da humanidade foi excluída da narrativa, todos os excluídos ficam na condição
de indígenas.
Talvez aquilo que tem sido mencionado como devir-índio seja a ideia mais
ampla que inclui todos aqueles que não fazem parte do trato do Estado. Que
não são constituídos dentro do contrato social dos Estados nacionais, pois,
transbordam essas beiradas para outras maneiras de estar no mundo.
(KRENAK, 2020a, n.p.)
115
Enquanto alguns órgãos oficiais do Estado brasileiro afirmam a
inexistência dos indígenas, afirmação que ficou escancarada com a
elaboração da Constituição em 1988 em que a população indígena teve
que exigir a presença de seus direitos
9
no documento, eles continuam
existindo e resistindo. A história universal silencia a história indígena como
estratégia de invisibilizar seus direitos e demandas. Krenak vai além ao
afirmar que aqueles/as que são excluídos pelas políticas de Estados
nacionais vivenciam o devir-índio “índio” enquanto a invenção europeia
que se opõe ao que se entende por “branco” e civilizado . São aqueles que
não têm espaço dentro do “contrato social dos Estados nacionais”. Como
pontua Krenak, a perspectiva indígena é uma importante testemunha da
história dos brancos e da guerra entre mundos promovida por eles há
séculos. O encobrimento causado pela ontologia hegemônica, nesse
sentido, não é mero resultado de etnocentrismo, é a invenção de narrativas
oficiais que justificam interesses de dominação. Do mesmo modo, tal
narrativa oficial só foi questionada quando um europeu a expôs, outras
narrativas só podem aparecer se forem assimiladas de algum modo pela
ontologia dominante.
Concordamos com Chimamanda Adichie (2008) que, quando
começamos a história com a perspectiva dos nativos, temos uma história
totalmente diferente. Como aponta Krenak no documentário Guerras do
Brasil (Luiz Bolognesi, 2019), os ameríndios eram povos abertos à
alteridade, acostumados a conviver com a enorme quantidade de
diferenças de sujeitos que havia no território em que vivemos. Os
europeus, por outro lado, sequer conseguiam perceber os ameríndios,
9
Os direitos indígenas não estavam presentes na primeira versão da Constituição e foi necessária muita
luta para isso. É marcante a imagem de Ailton Krenak pintando o rosto de jenipapo na assembleia
constituinte a fim de chamar atenção para o genocídio indígena.
116
projetaram o que queriam e o que não queriam na imagem que criavam,
não os enxergando verdadeiramente. Os ameríndios viram os europeus
como mais um povo na diferença, como fala Krenak, é provável que por
pelo menos cem anos socorreram pessoas que chegavam pelos mares
moribundas, flageladas, com escorbuto, resultantes das péssimas condições
dos navios. Como poderiam se curar de tais doenças se não conheciam as
plantas medicinais disponíveis no território? Além do que, como um navio
poderia chegar facilmente às margens sem o auxílio de canoas? Como
poderiam sobreviver tais pessoas se nem sequer conheciam os alimentos
disponíveis no território especialmente hostil que chegaram? É provável
que europeus foram recebidos com auxílio dos povos que aqui viviam. Tais
questionamentos apontam para o fato de que não houve um
acontecimento de conquista, isso é mais um encobrimento eurocêntrico.
Viveiros de Castro traz alguns elementos para pensarmos essa
abertura à alteridade, chamada na literatura jesuíta como “inconstância da
alma selvagem”. No Sermão do Espírito Santo (1657), Antonio Vieira
diferencia a relação de europeus e ameríndios com a religião, associando os
primeiros às estátuas de mármore que “dão grande trabalho até se
renderem; mas, uma vez rendidas, uma vez que receberem a fé, ficam nelas
firmes e constantes” (VIEIRA apud VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.
184) , e os ameríndios às estátuas de murta que “recebem tudo que lhes
ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar,
sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a
mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza
antiga e natural, e a ser mato como dantes eram” (VIEIRA apud
VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 184) –. Sobre isto, o antropólogo
comenta:
117
a explicação para a receptividade (inconstante) ao discurso europeu não deve,
parece-me, ser procurada apenas ou principalmente no plano dos conteúdos
ideológicos, mas naquele das formas socialmente determinadas de (auto- )
relação com a cultura ou tradição, de um lado, e naquele das estruturas
(culturais) de pressuposição ontológica, de outro. Uma cultura não é um
sistema de crenças, mas antes já que deve ser algo um conjunto de
estruturações potenciais da experiência, capaz de suportar conteúdos
tradicionais variados e de absorver novos: ela é um dispositivo culturalmente
ou constituinte de processamento de crenças. Mesmo no plano constituído da
cultura culturada, penso que é mais interessante indagarmos das condições que
facultam a certas culturas atribuir às crenças alheias um estatuto de
suplementaridade ou de alternatividade em relação às próprias crenças.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 209).
Os relatos descrevem que os ameríndios demonstravam interesse
pela religião cristã e até mesmo afirmavam o desejo de ser cristãos, porém,
isto não os levavam a abandonar sua religiosidade própria, nem a caminhar
no sentido de uma conversão. Por isso, Antonio Vieira escreveu que “ainda
depois de crer, são incrédulos”, relato que aparece em diversos textos da
época. Para esses povos com que os jesuítas tiveram contato
especialmente os Tupinambá e Guaranis o interesse por outras religiões
não entrava em contradição com sua religiosidade.
A “inconstância” ameríndia aparecia justificada pelos jesuítas da
seguinte forma: “três ausências constitutivas do gentio brasileiro estavam
causalmente encadeadas: não tinham fé porque não tinham lei, não tinham
lei porque não tinham rei. [...] A verdadeira crença supõe a submissão
regular à regra, e esta supõe o exercício da coerção por um soberano”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 218-219). No entanto, Viveiros de
Castro (2002, p. 220-221) estimula a perceber a inconstânciade outra
maneira, analisando que condições a fomentavam:
118
essa religião não se pensava em termos da categoria da crença, essa ordem
cultural não se fundava na exclusão unicista das ordens alheias, e essa sociedade
não existia fora de uma relação imanente com a alteridade. O que estou
dizendo é que a filosofia tupinambá afirmava uma incompletude ontológica
essencial: incompletude da socialidade, e, em geral, da humanidade. Tratava-
se, em suma, de uma ordem onde o interior e a identidade estavam
hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença, onde o devir e a
relação prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse tipo de cosmologia, os
outros são uma solução, antes de serem como foram os invasores europeus
um problema. A murta tem razões que o mármore desconhece. (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002, p. 220-221)
Entre as possibilidades e “razões da murta” levantadas pelo
antropólogo, aparece o papel essencial do outro para a afirmação de si, pois
as cosmologias ameríndias incluíam o outro como elemento crucial para a
compreensão de sua própria cultura, papel que pode ter sido
desempenhado pelos europeus ao menos no início da invasão colonial.
Além disso, Viveiros de Castro também aponta para a possibilidade de
entender a forma religiosa de maneira não assentada na “experiência
normativa da crença” (2002, p. 219), o que era muito estranho para os
jesuítas:
era inconcebível aos Tupi a arrogância dos povos eleitos, ou a compulsão a
reduzir o outro à própria imagem. Se europeus desejaram os índios porque
viram neles, ou animais úteis, ou homens europeus e cristãos em potência, os
Tupi desejaram os europeus em sua alteridade plena, que lhes apareceu como
uma possibilidade de autotransfiguração, um signo da reunião do que havia
sido separado na origem da cultura, capazes portanto de vir alargar a condição
humana, ou mesmo de ultrapassá-la. [...] Para os primeiros, não se tratava de
impor maniacamente sua identidade sobre o outro, ou recusá-lo em nome da
própria excelência étnica; mas sim de, atualizando uma relação com ele (relação
desde sempre existente, sob o modo virtual), transformar a própria identidade.
119
A inconstância da alma selvagem, em seu momento de abertura, é a expressão
de um modo de ser onde “é a troca, não a identidade, o valor fundamental a
ser afirmado”. [...] Os europeus vieram compartilhar um espaço que já estava
povoado pelas figuras tupi da alteridade: deuses, afins, inimigos, cujos
predicados se intercomunicavam. [...] Guerra mortal aos inimigos e
hospitalidade entusiástica aos europeus, vingança canibal e voracidade
ideológica exprimiam a mesma propensão e o mesmo desejo: absorver o outro
e, neste processo, alterar-se. Deuses, inimigos, europeus eram figuras da
afinidade potencial, modalizações de uma alteridade que atraía e devia ser
atraída; uma alteridade sem a qual o mundo soçobraria na indiferença e na
paralisia. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 206-207)
Em algum sentido também era um cálculo de benefícios, uma
estratégia de sobrevivência diante desse outro, o que é importante
ressaltarmos para que não caiamos em uma visão ingênua. Porém, não é
possível entender a abertura à alteridade, sua “inconstância”, apenas nesses
termos:
considerar a ‘venalidade’ e a ‘leviandade’ indígenas como uma camuflagem
estratégica, que permite a obtenção de coisas preciosas (como instrumentos de
ferro, ou a tranquilidade) em troca de concessões irrelevantes (como a alma, ou
o reconhecimento dos poderes constituídos), não é inteiramente falsa, mas me
parece insuficiente. Certamente muitos povos indígenas trataram e tratam os
brancos como idiots savants de quem se pode subtrair objetos maravilhosos em
troca de gestos de fachada; e muitos outros pagam o preço da adesão verbal
para que os deixem em paz. Mas, sobre implicar uma concepção estática e
reificada da cultura, como algo a ser preservado sob camadas de verniz refletor,
esse argumento esquece que em muitos casos as concessões foram bem reais, e
que os efeitos da introdução de bens e valores europeus sobre as estruturas
sociais nativas foram profundos. Ele esquece também que a relação com a
parafernália dos invasores, ainda que inevitavelmente guiada por fins culturais
autóctones, não se deixa ler sempre em termos de um instrumentalismo
autoesclarecido. Ele ignora, sobretudo, que a cultura estrangeira foi muitas
120
vezes visada em seu todo como um valor a ser apropriado e domesticado, como
um signo a ser assumido e praticado enquanto tal.
Não é mera pirueta dialética dizer que os Tupinambá nunca foram mais si
mesmos que ao exprimirem seu desejo de “ser christianos como nosotros”. As
eventuais vantagens práticas que buscavam ao declarar seu desejo de conversão
estavam imersas em um “calcul sauvage” (Sahlins 1985) onde ser como os
brancos e o ser dos brancos era um valor disputado no mercado simbólico
indígena. [...] Isto que chamaríamos de impulso aloplástico ou alomórfico dos
Tupi não pode estar mais distante do patetismo da alienação ou do espelhismo
do Mestre e do Escravo; ele é a contrapartida necessária de um canibalismo
generalizado, que se distingue radicalmente da vertigem aniquiladora própria
dos imperialismos, ocidentais ou outros. As leituras da antropofagia tupi nos
termos simplistas de um impulso de absorção e controle (simbólico, político
ou como se o queira chamar) do outro negligenciam esta dupla face e este
duplo movimento: incorporar o outro é assumir sua alteridade. À moda
inconstante da casa, bem entendido. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.
223-224)
Nesse sentido, o ““virar branco e cristão” dos Tupinambá não
correspondia em nada ao que queriam os missionários” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002, p. 223-224). Assim, a abertura inconstante ao mesmo
tempo que é estratégia de resistência, é também parte de diversas filosofias
ameríndias, e não pode ser entendida sem uma percepção ampla do que as
envolviam, para além das lógicas europeias ancoradas na normatividade da
crença e em uma submissão irrestrita.
Na ontologia racista, apenas algumas histórias podem ecoar. Em
Discurso sobre o Colonialismo (1978) originalmente publicado em 1955
Aimé Césaire traz uma importante reflexão sobre a invisibilização de
outras perspectivas históricas não europeias:
121
a barbárie suprema, a que coroa, a que resume a quotidianidade das barbáries;
que é o nazismo, sim, mas que antes de serem vítimas, foram os cúmplices; que
o toleraram, esse mesmo nazismo, antes de o sofrer, absolveram-no, fechando-
lhe os olhos, legitimaram-no, porque até aí só se tinha aplicado a povos não
europeus; que o cultivaram, são responsáveis por ele, e que ele brota, rompe,
goteja, antes de submergir nas suas águas avermelhadas de todas as fissuras da
civilização ocidental e cristã.
Sim, valeria a pena estudar clinicamente, em pormenor, os itinerários de Hitler
e do hitlerismo e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista, muito
cristão do século XX que traz em si um Hitler que se ignora, que Hitler vive
nele, que Hitler é o seu demónio, que se o ultraja é por falta de lógica, que, no
fundo, o que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem,
não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco e o ter
aplicado à Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia,
os ‘coolies’ da Índia e os negros da África estavam subordinados. (CÉSAIRE,
1978, p. 18)
Como evidencia Césaire, o que torna o nazismo um holocausto e
motivador da criação do discurso sobre direitos humanos é o “crime contra
o homem branco”, haja vista que o que foi feito nas Américas e na África
foi ainda pior e violento e não motivou as mesmas reações. Alguns dos
europeus que foram perseguidos, anteriormente não manifestavam
indignação com relação à colonização. Até mesmo porque o colonialismo
é visto como necessário para o projeto desenvolvimentista. E, por isso,
concordamos com ele que a “A Europa é indefensável” (CÉSAIRE, 1978,
p. 13).
Podemos dizer, no mesmo sentido apontado por Césaire, que a
branquitude também é indefensável. Como reprodução da ontologia
racista, o ideal de branquitude se estende para além da nacionalidade,
produzindo relações de colonialismo interno baseadas na cor da pele, haja
vista que a matriz ontológica se constitui enquanto uma escala ascensional
122
a uma suposta perfeição. Podemos dizer que, como consequência do
colonialismo, a comunidade branca criou no decorrer da história um
sistema de poder, decisão e fala para defender a superioridade de seu ego,
através do qual se articula mundialmente, tanto no domínio micropolítico
quanto macropolítico, para perpetuar essa estrutura de privilégio. Nesse
viés, uma educação racista e embranquecedora é necessária para que se
mantenham a articulação e propagação desse sistema de privilégio branco,
bem como a quase exclusiva branquidade dos espaços de poder.
A partir de uma cultura eurocêntrica que produz uma
cumplicidade narcísica da branquitude ocorre uma política racista de
desumanização, que consiste em inventar uma imagem negativa sobre os
outros que não cabem nessa ontologia. Assim, há a criação de inimigos,
responsabilizados por todos os males sociais, funcionando como uma
necropolítica racista de controle elaborada e executada por esse sistema de
branquitude mundial.
Nessa perspectiva, Grada Kilomba (2019a n.p.) explica que a
colonialidade tem três dimensões intrínsecas: “a marginalização de certos
corpos e certas identidades; a capitalização da terra, da natureza, do
ambiente; e a militarização das relações humanas”, pois A política do
colonialismo é a política do medo. É criar o 'outro', criar corpos desviantes
e dizer que eles são assustadores e terríveis e que nós temos que defender-
nos deles com barreiras como passaportes e fronteiras”. Tal narrativa
encobre e, assim, produz corpos, sexualidades e gêneros excluídos,
invisíveis, que são desumanizados por seus desvios e sua inferioridade
forjada. É uma ontologia da identidade, tudo que está distante dessa escala
de perfeição tem que ser silenciado e descartado. E, para o controle social
se efetivar se faz necessária a dominação da natureza, por um lado, como
fonte de riqueza, e, por outro, como forma de controle para que os povos
123
se tornem dependentes das classes dominantes impedindo sua subsistência
autônoma. A colonialidade fundamentada na racialização do mundo
consiste num processo de construção da diferença, como ressalta Kilomba:
a primeira é a construção de/da diferença. A pessoa é vista como “diferente”
devido a sua origem racial e/ou pertença religiosa. Aqui, temos de perguntar?
Quem é “diferente” de quem? É o sujeito negro “diferente” do sujeito branco ou
o contrário, é o branco “diferente” do negro? Só se torna “diferente” porque se
“difere” de um grupo que tem o poder de se definir como norma a norma
branca. Todas/os aquelas/es que não são brancas/os são construídas/os então
como “diferentes”. A branquitude é construída como ponto de referência a
partir do qual todas/os as/os “Outras/os” raciais “diferem”. Nesse sentido, não
se é “diferente”, torna-se “diferente” por meio do processo de discriminação.
A segunda característica é: essas diferenças construídas estão inseparavelmente
ligadas a valores hierárquicos. Não só o indivíduo é visto como “diferente”, mas
essa diferença também é articulada através do estigma, da desonra e da
inferioridade. Tais valores hierárquicos implicam um processo de
naturalização, pois são aplicados a todos os membros do mesmo grupo que
chegam a ser vistas/os como “a/o problemática/o”, “a/o difícil”, “a/o
perigosa/o, “a/o exótica/o, “a/o colorida/o” e “a/o incomum”. Esses dois
últimos processos a construção da diferença e sua associação com uma
hierarquia formam o que também é chamado de preconceito.
Por fim, ambos os processos são acompanhados pelo poder: histórico, político,
social e econômico. É a combinação do preconceito e do poder que forma o
racismo. E, nesse sentido, o racismo é a supremacia branca. Outros grupos
raciais não podem ser racistas nem performar o racismo, pois não possuem esse
poder. Os conflitos entre eles ou entre eles e o grupo dominante branco têm de
se organizados sob outras definições, tais como preconceito. O racismo, por
sua vez, inclui a dimensão do poder e é revelado através de diferenças globais
na partilha e no acesso a recursos valorizados, tais como representação política,
ações políticas, mídia, emprego, educação, habitação, saúde, etc. quem pode
ver seus interesses políticos representados nas agendas nacionais? Quem pode
ver suas realidade retratadas na mídia? Quem possui o quê? Quem vive onde?
Quem é protegida/o e quem não é? (KILOMBA, 2019b, p. 75-76)
124
As três dimensões do racismo apontadas por Kilomba ocorrem
simultaneamente e se pautam em uma relação de desigualdade entre as
diferenças ignorando a pluralidade do mundo. Através da ontologia racista
como matriz normativa, hierarquizam-se as diferenças, delimitando o lugar
para os “diferentes” no mundo, no trabalho, bem como os recursos que
poderão usufruir. São as relações de poder desiguais que permitem a
invenção e violência racial. Na ontologia racista, as diferenças são
entendidas como degradações do ser, o maior exemplo disto em nosso
território foram as políticas públicas de incentivo à imigração para fins de
embranquecimento da população, evitando sua suposta “degeneração”.
Diante do que discutimos nesta seção, podemos afirmar que a
ontologia hegemônica é, portanto, uma ontologia essencialmente racista,
que encobre as diferenças em prol de usá-las com fins de exploração. Esta
ontologia hierarquiza as pessoas e povos a partir da compreensão das
diferenças como desigualdades naturais. A partir do exposto, é possível
compreender como a relação dos nascidos em território brasileiro com sua
história foi construída alicerçando a produção de conhecimento em bases
racistas, invisibilizando e silenciando os povos que construíram tal
território e que representam a maioria da população atual. Tal sistema se
perpetua através da cultura racista, que se expressa, por exemplo, através
de currículos eurocêntricos que menosprezam e inferiorizam os saberes não
europeus. Nessa perspectiva, ensinar consiste em reproduzir o paradigma
hegemônico, enquanto aprender consiste em embranquecer ou europeizar
os modos de ser. Vemos que desde a origem do que chamamos de “Brasil”,
o que ocorreu foi perseguição e massacre das diferenças através da
universalização de uma perspectiva única sobre o mundo. Tudo isto em
prol de um modelo de civilização moderna que é segregacionista, pois não
se mantém sem a exploração de povos colonizados. No fundo, o que está
125
sendo imposto com essa ontologia é uma restrita concepção de
humanidade, que tem implicações também no que diz respeito às questões
de gênero, como refletiremos na próxima seção.
2.2 Raízes patriarcais: a invenção do gênero
O modelo de ensino de filosofia que discutimos no primeiro
capítulo se constitui de uma ausência fundamental do papel das mulheres
na história do pensamento. Em Nos filhos dos dias (2012), Eduardo
Galeano (2012, p. 88) comenta que “Ao longo da história, vários
pensadores, humanos e divinos, todos machos, cuidaram da mulher, por
várias razões”. Indicando tais machos divinos, Galeano aponta as razões e
os argumentos utilizados no decorrer da história para “cuidarem” da
mulher:
- Pela sua anatomia
Aristóteles: A mulher é um homem incompleto.
São Tomás de Aquino: A mulher é um erro da natureza, nasce de um esperma
em mau estado.
Martinho Lutero: Os homens têm ombros largos e cadeiras estreitas. São
dotados de inteligência. As mulheres têm ombros estreitos e cadeiras largas,
para ter filhos e ficar em casa.
- Pela sua natureza
Francisco de Quevedo: As galinhas botam ovos e as mulheres, chifres.
São João Damasceno: A mulher é uma jumenta teimosa.
Arthur Schopenhauer: A mulher é um animal de cabelos longos e pensamentos
curtos.
126
- Pelo seu destino
Disse Yahvé à mulher, segundo a Bíblia: Teu marido te dominará.
Disse Alá a Maomé, segundo o Corão: As boas mulheres são
obedientes. (GALEANO, 2012, p. 88)
Poderíamos citar ainda muitos outros machos divinos que
categorizaram as fêmeas no decorrer da história, no entanto, a seleção feita
por Galeano é muito expressiva, especialmente por em sua maioria se
referir a filósofos consagrados. Em suas diferentes dimensões e contextos,
as mulheres foram entendidas como seres incompletos, resultado de uma
“fraquejada”, portadoras de uma inferioridade intelectual, de forma que
até mesmo as mulheres brancas europeias foram alvo de silenciamento e
apagamento no decorrer da história, fazendo com que poucas sejam
reconhecidas como filósofas ainda hoje. Aristóteles, por exemplo, afirma
que em todos os aspectos os machos se desenvolvem mais rapidamente que
as fêmeas, inclusive durante a gestação, indicando que a gravidez e o parto
de filhos homens são mais fáceis devido à maior inteligência dos machos.
Em todos os períodos históricos encontramos tais afirmações, o
que produz incômodo ao lermos alguns dos mais importantes filósofos da
história. o é coincidência que os mesmos filósofos que apontamos neste
capítulo com afirmações segregacionistas também afirmam a inferioridade
da mulher. Apontam para o lugar natural da mulher como a submissão aos
interesses do homem, por sua suposta inferioridade, passividade e fraqueza
de espírito.
Embora exista uma narrativa hegemônica dentro das graduações e
pós-graduações em filosofia de afirmar que tais indivíduos correspondiam
ao ideal de seu tempo, defendendo que suas contribuições para a história
127
são muito maiores do que isso, como afirma a filósofa Izilda Cristina
Johanson (2020, p. 237), “foi também trabalho das feministas mostrar
que, ao mesmo tempo em que esses indivíduos filósofos faziam suas
filosofias de cunho machista e misógino, mulheres filosofavam também:
contra eles (os filósofos) e, ao mesmo tempo, a despeito delas (de suas
filosofias falocráticas)”. Mulheres filosofavam, desde a Antiguidade grega,
mesmo que apenas agora seus registros estejam vindo à tona.
Uma filosofia que exclui as mulheres, bem como pessoas negras e
indígenas, não têm um problema contingencial, mas sim um problema
conceitual profundo, que torna a filosofia muito distante da realidade e
diversidade do mundo. Concordamos com Johanson (2020, p. 238) que
“um sistema de produção conceitual que se pretenda válido e verdadeiro
do ponto de vista filosófico não pode ser um sistema que constrói seus
conceitos com instrumentos deficientes e subestimando uma parte
significativa da realidade à qual se aplica!”.
No entanto, é importante ressaltar que a situação das mulheres
europeias brancas não expressa a realidade das sujeitas colonizadas que
sequer são reconhecidas enquanto mulheres pelos colonizadores. Maria
Lugones caracteriza o sistema de gênero como colonial/moderno, pois
assim como a categoria de raça, “gênero” ganha outro significado com o
estabelecimento do padrão colonial/moderno. O trabalho de Lugones
complexifica e também critica o que Quijano apresenta em sua obra acerca
do gênero no sistema-mundo colonial/moderno. Sobre isso, seguem os
apontamentos da autora:
para Quijano, as lutas pelo controle do “acesso ao sexo, seus recursos e
produtos” definem a esfera sexo/gênero e são organizadas a partir dos eixos da
colonialidade e da modernidade. Essa análise da construção moderna/colonial
128
do gênero e seu alcance são limitados. O olhar de Quijano pressupõe uma
compreensão patriarcal e heterossexual das disputas pelo controle do sexo, seus
recursos e produtos. Ele aceita o entendimento capitalista, eurocêntrico e
global sobre o gênero. Seu quadro de análise capitalista, eurocêntrico e global
mantém velado o entendimento de que as mulheres colonizadas, não-
brancas, foram subordinadas e destituídas de poder. (LUGONES, 2008, p. 78,
tradução nossa)
Nesse sentido, Maria Lugones critica Quijano por entender a
diferença de gênero em aspectos biológicos, não investigando mais
profundamente as características que envolvem a violência com mulheres
colonizadas, pois em sua obra o gênero só é visto em termos de acesso
sexual às mulheres, haja vista que ele entende as diferenças de gênero como
resultado de disputas pelo controle do sexo, seus recursos e produtos. E,
assim, a teoria de Quijano acaba por colaborar com o apagamento das
mulheres colonizadas. Como ela explica,
entender os traços historicamente específicos da organização do gênero em seu
sistema moderno/colonial (dimorfismo biológico, a organização patriarcal e
heterossexual das relações sociais) é central para entendermos como essa
organização acontece de maneira diferente quando acrescida de termos raciais.
Tanto o dimorfismo biológico e a heterossexualidade, quanto o patriarcado são
característicos do que chamo o lado iluminado/visível da organização
colonial/moderna do gênero” (LUGONES, 2008, p. 78, tradução nossa).
Isto porque o dimorfismo biológico, a dicotomia homem/mulher,
a heterossexualidade e o patriarcado, pressupostos no modelo de Quijano,
são o lado visível do sistema de gênero, ocultando outros aspectos da
sexualidade. O autor não se debruça a compreender o próprio sentido da
categoria gênero”.
129
Lugones (2008, p. 82) argumenta que a categoria ““mulher”
seleciona como norma as fêmeas burguesas brancas heterossexuais,
“homem” seleciona os machos burgueses brancos heterossexuais, “negro
seleciona os machos heterossexuais negros, e assim sucessivamente”.
Portanto, “o capitalismo eurocêntrico global é heterossexual”
(LUGONES, 2008, p. 92) e oculta as experiências, por exemplo, de
homossexuais e intersexuais, bem como das mulheres racializadas. Desse
modo, quando a categoria “mulher” é utilizada sem articulação com as
questões raciais não há lugar para as mulheres não brancas, que não cabem
também na categoria “negro”. Assim, tal termo
não tem sentido ou tem um sentido racista, já que a lógica categorial
historicamente seleciona somente o grupo dominante as mulheres burguesas
brancas heterossexuais e, portanto, esconde a brutalização, o abuso, a
desumanização que a colonialidade de gênero implica. (LUGONES, 2008, p.
82)
Apoiada em pesquisas como a de Oyèrónké Oyěwùmí acerca das
sociedade Iorubá e de Gunn Allen acerca de nativos-americanos, Lugones
aponta que o binarismo de gênero é uma construção colonial, haja vista
que há registro de grupos sociais pré-colonização que eram matriarcais, que
não se reduziam ao binarismo reconhecendo um “terceiro gênero” e nem
subordinavam hierarquicamente as mulheres, embora estabelecessem
diferentes papéis sociais, não segregavam as mulheres à esfera privada.
Oyěwùmí aponta que o gênero não era um princípio da organização social
Iorubá, de maneira que o gênero não era uma categoria de poder. Allen
mostra como o “colonizador branco construía uma força interna nas tribos
à medida que cooptava homens colonizados para ocupar papéis patriarcais”
130
(LUGONES, 2008, p. 90). Nesse sentido, um exemplo que podemos
considerar vem de Julieta Paredes (2019b, p. 39):
a raridade, digamos, não se vê como anormalidade, mas como um presente da
Pachamama. É como quando colhemos a batata, todas as batatas são do mesmo
jeito, mas quando aparece uma batata diferente essa é especial para comer, não
é vista como um fenômeno ruim. Então, esse é o respeito ao transgênero.
(PAREDES, 2019b, p. 39)
Assim, as diferentes sexualidades não são necessariamente
consideradas inferioridades em contexto não brancos, podendo ser vistas
inclusive como potencialidades.
Contudo, Lugones ressalta que “A consequência semântica da
colonialidade do gênero é que “mulher colonizada” é uma categoria vazia:
nenhuma mulher é colonizada; nenhuma fêmea colonizada é mulher.
Assim, a resposta colonial a Sojouner Truth é, obviamente, “não””
(LUGONES, 2014, p. 939). Para o padrão de poder colonial/moderno,
Truth, abolicionista afroamericana que questionou “Não sou eu uma
mulher?” em uma Convenção das Mulheres de 1851, de fato não teria
sequer sua humanidade reconhecida, por isso, não cabe na categoria
“mulher”. Isto fica evidente quando analisamos que as ideias de fragilidade
e passividade são associadas apenas a mulheres não racializadas. Como
destaca Lugones (2014, p. 936-937) a seguir:
sob o quadro conceitual de gênero imposto, os europeus brancos burgueses
eram civilizados; eles eram plenamente humanos. A dicotomia hierárquica
como uma marca do humano também tornou-se uma ferramenta normativa
para condenar os/as colonizados/as. As condutas dos/as colonizados/as e suas
personalidades/almas eram julgadas como bestiais e portanto não gendradas,
131
promíscuas, grotescamente sexuais e pecaminosas. Mesmo que nesse tempo a
compreensão do sexo não fosse dimórfica, os animais eram diferenciados como
machos e fêmeas, sendo o macho a perfeição, a fêmea a inversão e deformação
do macho. Hermafroditas, sodomitas, viragos e os/as colonizados/as, todos
eram entendidos como aberrações da perfeição masculina.
A missão civilizatória, incluindo a conversão ao cristianismo, estava presente
na concepção ideológica de conquista e colonização. Julgar os/as
colonizados/as por suas deficiências do ponto de vista da missão civilizatória
justificava enormes crueldades. Proponho interpretar, através da perspectiva
civilizadora, os machos colonizados não humanos como julgados a partir da
compreensão normativa do “homem”, o ser humano por excelência. Fêmeas
eram julgadas do ponto de vista da compreensão normativa como “mulheres”,
a inversão humana de homens. Desse ponto de vista, pessoas colonizadas
tornaram-se machos e fêmeas. Machos tornaram-se não-humanos-por-o-
homens, e fêmeas colonizadas tornaram-se não-humanas por-não-mulheres.
Consequentemente, fêmeas colonizadas nunca foram compreendidas como em
falta por não serem como-homens, tendo sido convertidas em viragos. Homens
colonizados não eram compreendidos como em falta por não serem como-
mulheres. (LUGONES, 2014, p. 936-937)
Através de uma ontologia patriarcal, o homem branco europeu e
heterossexual é visto como o único ser perfeito e completo, as demais
possibilidades de sexualidade são vistas como desvios, imperfeições,
ausências, deficiências, etc. Assim, sujeitos/as/es colonizados/as/es eram
vistos como não correspondentes nem aos “homens” nem às “mulheres”,
pois sua humanidade não era reconhecida. Os sujeitos colonizados podiam
ser vistos como afeminados, enquanto as sujeitas colonizadas eram vistas
como masculinizadas, a sexualidade que não correspondia à heterossexual
era vista como pervertida, portanto, colonizados/as/es não eram dignos de
respeito. Tal ontologia justificava a violência a que eram submetidos, os
estupros e a escravidão.
132
No entanto, a argentina Rita Laura Segato “identifica nas
sociedades indígenas e afro-americanas uma organização patriarcal, ainda
que diferente da do gênero ocidental e que poderia ser descrita como um
patriarcado de baixa intensidade(2012, p.116). Nesse sentido, Segato
(2012, p. 117-118) aponta alguns aspectos que possibilitam reconhecer
relações de gênero nas sociedade pré-intrusão:
dados documentais, históricos e etnográficos do mundo tribal, mostram a
existência de estruturas reconhecíveis de diferença semelhantes ao que
chamamos relações de gênero na modernidade, que incluem hierarquias claras
de prestígio entre a masculinidade e a feminilidade, representados por figuras
que podem ser entendidas como homens e mulheres. Apesar do caráter
reconhecível das posições de gênero, nesse mundo são mais frequentes as
aberturas ao trânsito e à circulação entre essas posições que se encontram
interditas em seu equivalente moderno ocidental. Como é sabido, povos
indígenas, como os Warao da Venezuela, Cuna do Panamá, Guayaquís do
Paraguai, Trio do Suriname, Javaés do Brasil e o mundo inca pré-colombiano,
entre outros, assim como vários povos nativos norte-americanos e das nações
originárias canadenses, além de todos os grupos religiosos afro-americanos,
incluem linguagens e contemplam práticas transgenéricas estabilizadas,
casamentos entre pessoas que o Ocidente entende como do mesmo sexo e
outras transitividades de gênero bloqueadas pelo sistema de gênero
absolutamente engessado da colonial/modernidade. (SEGATO, 2012, p. 117-
118)
O que Segato denomina “pré-história patriarcal da humanidade”
(2012, p. 118) são os processos que envolvem a construção da
masculinidade em sociedade pré-intrusão de forma associada ao status.
Segato relata denúncias de mulheres tanto indígenas como afro-americanas
que se sentiam pressionadas pelas autoridades de suas comunidades a não
relatarem sua luta interna contra a opressão “sob o argumento de que, ao
133
não fazê-lo, estão colaborando para o enfraquecimento da coesão em suas
comunidades, tornando essas mais vulneráveis nas lutas por recursos e
direitos” (SEGATO, 2012, p. 117). Tal situação indica que:
por um lado, que o gênero existe, mas de uma forma diferente da que assume
na modernidade. E, por outro, que quando essa colonial/modernidade intrude
o gênero da aldeia, modifica-o perigosamente. Intervém na estrutura de
relações da aldeia, apreende-as e as reorganiza a partir de dentro, mantendo a
aparência de continuidade mas transformando os sentidos, ao introduzir uma
ordem agora regida por normas diferentes. É por isso que falo, no subtítulo,
de verossimilhança: as nomenclaturas permanecem, mas são reinterpretadas à
luz de uma nova ordem moderna. Esse cruzamento é realmente fatal, porque
um idioma que era hierárquico, em contato com o discurso igualitário da
modernidade, transforma-se em uma ordem ultra-hierárquica, devido aos
fatores que examinarei a seguir: a superinflação dos homens no ambiente
comunitário, no seu papel de intermediários com o mundo exterior, ou seja,
com a administração do branco; a emasculação dos homens no ambiente
extracomunitário, frente ao poder dos administradores brancos; a superinflação
e universalização da esfera pública, que na condição de espaço público era
habitada ancestralmente pelos homens, e o consequente colapso e a
privatização da esfera doméstica; e a binarização da outrora dualidade de
espaços, resultante da universalização de um dos seus dois termos quando
constituído agora como esfera pública, por oposição ao outro, constituído
como espaço privado. (SEGATO, 2012, p. 118)
A intrusão do sistema colonial/moderno de gênero, ao
superinflacionar a participação dos homens na esfera pública impondo a
interdição da mulher ao espaço privado, modifica perigosamente as
relações de gênero em comunidades que já possuíam um patriarcado de
baixa intensidade. Tal processo corresponde ao que Julieta Paredes (2010)
chama de Entroncamento Patriarcal:
134
existem, precisamente, condições históricas para que nós, como indígenas,
estejamos como estamos. Nós, Feministas Comunitárias, explicamos esse fato
por meio do que chamamos de Entroncamento Patriarcal (PAREDES, 2010):
o entroncamento de dois patriarcados, o colonial e o patriarcado indígena, que
a partir de 1492 estão conectados, fazendo uma série de pactos entre homens,
relações que moldam a situação atual das mulheres indígenas, de maior
opressão e discriminação. (PAREDES, 2019a, p. 84)
O colonizador se aproveita dessa inclinação patriarcal existente em
alguns grupos colonizados, negociando apenas com os homens e
incentivando-os de diferentes maneiras a agirem em prol da intensificação
das relações patriarcais. Nesse sentido, podemos dizer que o gênero
antecede a colonialidade e pertence a diferentes ontologias. No entanto, é
importante ressaltar que as relações de gênero pré-intrusão são diferentes
do sistema colonial/moderno de gênero, de maneira que situações
denunciadas pelas feministas pode não ser machismo nessas comunidades,
como podemos observar no documento “Território: nosso corpo, nosso
espírito”, elaborado pela Primeira Marcha das Mulheres Indígenas realizada
em agosto de 2019 no Brasil, que afirma o machismo como “mais uma
epidemia trazida pelos europeus” (MARCHA, 2019, p. 1-2). O
documento também aponta que a luta das mulheres indígenas se articula
através do conceito de território e não de gênero como no feminismo
hegemônico, e que as mulheres indígenas são entendidas como guardiãs
dos saberes tradicionais tendo importantes responsabilidades em suas
comunidades. Assim, em diversos grupos indígenas as mulheres são sujeitas
políticas centrais na luta pelo território, pois são elas que mais são afetadas
pelo poder destruidor do capital e seu patriarcalismo. Além disso, o
documento também ressalta que a forma de organização social é de
complementariedade entre homens e mulheres.
135
Paredes, que entende o gênero como “as prisões dos corpos”
(2019b, p. 38), observa outros elementos a serem considerados sobre o
patriarcado no mundo indígena:
em Kollasuyo, que era a região que hoje é a Bolívia, em 1492, quando esse
evento colonizador ocorre, por exemplo, a distribuição administrativa
respondia ao poder do Inca, mas também havia autonomia nos territórios
dominados e governados pelas autoridades locais, onde havia controle da fome
e da saúde pública. Por outro lado, mulheres, nossas avós, participavam da vida
política e das campanhas militares autonomamente, enquanto que na Europa
essa participação não existia. Todas as mulheres no Kollasuyu possuíam terras,
meio tupu ao nascer até morrerem. Se olharmos para a Europa, as mulheres
não tinham terra e não participavam autonomamente nem da vida política,
nem da militar. Então, quem estava na vanguarda em termos de direitos em
1492?
O Feminismo euro-ocidental contribuiu para as lutas das mulheres na Europa,
isso não vamos negar, mas é bastante racista quando se trata de olhar para as
lutas de mulheres de outros continentes como o nosso. Seu eurocentrismo as
leva a imaginar que nos civilizam, que somente elas possuem os conceitos, que
nos interpretarão. Que a partir desses centros de poder e imaginários, elas
ditarão políticas para as mulheres em nível mundial bem, graças ao
colonialismo e ao imperialismo neoliberal, é isso que elas fazem.” (PAREDES,
2019a, p. 81)
Com tais apontamentos, Paredes denuncia duas invenções
europeias. Primeiramente descontrói o suposto estágio desenvolvido e
moderno europeu, haja vista que a perda de direitos das mulheres
indígenas se deu mais por conta do colonialismo do que de suas próprias
histórias, podendo serem consideradas muito mais “modernas” nesse
sentido do que as feministas europeias que no mesmo período
reivindicavam a participação na esfera pública, algo que não era negado a
136
mulheres de grupos indígenas como o de Paredes. Ao mesmo tempo,
Paredes descontrói o feminismo civilizatório, que exala racismo quando
pensa que tem muito mais a ensinar do que aprender com a luta das
mulheres indígenas, como se segue:
pressupõe que o que elas querem, nós queremos; ou pior, é o que devemos
querer. Existem coordenações que podemos fazer e suas demandas são
parcialmente aceitáveis para nós, mulheres do sul, pois podemos concordar
com elas, por exemplo, na luta contra a violência dos homens em relação às
mulheres, mas não concordaremos com outras questões, como a inclusão de
mulheres no sistema patriarcal. Explico-me. Por exemplo: temos que lutar
contra a violência doméstica, mas também devemos lutar contra a violência
estrutural que beneficia as mulheres dos países ocidentais, porque com nosso
trabalho e riqueza natural, se edifica o bem-estar do norte rico. Além disso, as
mulheres da classe média e da burguesia, feministas autonomeadas, vivem
privilégios às custas de nosso trabalho como mulheres no sul, além de também
o trabalho dos homens de nossos povos. As mulheres feministas e não
feministas na Europa estão incluídas no Bem-Estar Social de seus Estados e
não dizem nem uma palavra sobre a expulsão de migrantes que procuram
sobreviver, ou sobre os bombardeios da OTAN aos povos árabes. (PAREDES,
2019a, p. 81)
Contudo, o mito civilizatório aparece em diferentes aspectos do
mundo moderno, impondo uma ontologia falocêntrica a todos os grupos
sociais colonizados. Por isso, faz sentido entender os problemas que
envolvem gênero como resultantes do “Patriarcado Capitalista Branco”.
Quando consideramos as relações educativas, é possível dizer que o
patriarcado continua sendo bem-sucedido haja vista que ensina os lugares
destinados às mulheres no mundo, impondo um lugar de subalternidade e
violência em nível profundo às mulheres racializadas.
137
Dessa maneira, o discurso do empoderamento, que acompanha o
feminismo hegemônico, não contribui para a transformação da estrutura
patriarcal, haja vista que ao focar no individualismo produz, na melhor das
hipóteses, a ideia da mulher autossuficiente, que dá conta de todas as
demandas que lhes são impostas, frequentemente, no caso das mulheres
brancas, à custa de outras mulheres não brancas. Assim, podemos dizer que
algumas vertentes feministas quando não consideram o racismo das
estruturas hegemônicas, se movem por dentro da estrutura capitalista
produzindo outras formas de opressão. Um dos exemplos nesse sentido são
movimentos que, em prol da conquista do direito ao voto, não questionava
discursos racistas que impediam o voto de negras/os/es. Assim, uma
educação que promova uma transformação estrutural precisa descontruir
a visão individualista da luta por direitos e incentivar a luta por mudanças
coletivas.
Sobre o aspecto colonial do sistema binário sexo-gênero nos
provocou a pensar o diálogo realizado em mesa da Flip 2020, intitulada
“Transições”, com Caetano Veloso e Paul Preciado
10
. A reflexão de
Caetano sobre o que ele chama de “Narciso” traz elementos para
pensarmos a ontologia hegemônica narcisista. Como relata no livro e
documentário homônimo “Narciso em férias” (2020), Caetano Veloso
resgata documentos sobre sua prisão durante a ditadura que o apontavam
como perigoso por ser visto como um agente subversivo e desvirilizante
pelos militares. Ao explicar o título de seu livro, Caetano diz que o espaço
muito masculino da prisão militar causou um apagão em seu Narciso,
inclusive em sua atração sexual e sentimental por homens, produzindo
uma rejeição sexual que antes não existia. A maneira como Caetano
10
As falas a seguir foram transcritas a partir do vídeo disponível no link:
https://www.flip.org.br/evento/mesa-7-sem-nome/
138
expressa seu desejo sexual por homens associando a Narciso, nos revela um
pouco do imaginário da masculinidade hegemônica e seu narcisismo.
Preciado, autodefinido como dissidente do sistema sexo-gênero,
explica que para um corpo ser reconhecido como humano precisa passar
por um protocolo visual e linguístico de reconhecimento, sendo assimilado
ao gênero feminino ou masculino. Isso funciona como um aparato de
ficção, algo como um teatro político, que é um teatro voltado para a visão.
Tal protocolo, que estamos nomeando aqui como ontologia hegemônica,
também determina o monopólio da violência, que Preciado destaca ser de
um conjunto de corpos masculinos e brancos reconhecidos como
soberanos, enquanto os outros corpos são pensados como subalternos.
Assim, aqueles que se encaixam nessa ontologia da masculinidade soberana
têm o poder de fazer o uso legítimo da violência, não sendo
responsabilizados por ela em nenhuma circunstância. O patriarcado
hegemônico fabricou alguns corpos como soberanos e outros corpos como
subalternos, concedendo aos primeiros o monopólio da violência,
autorizado a matar, roubar, violar, estuprar, consumir, explorar, etc. Esse
aspecto diz respeito ao fascismo da ontologia hegemônica. Desse modo,
Preciado destaca que um conjunto de ficções determina a vida e morte dos
corpos, criando corpos vulneráveis à violência da masculinidade soberana,
sendo considerado patológico quem entra em dissonância com a
linguagem que os identifica.
Preciado se coloca como um arquiteto que olha um edifício prestes
a cair, entendendo que o sistema sexo-gênero está ruindo. Tal edifício,
alicerce da epistemologia patriarcal e colonial, está em colapso epistêmico.
Ele chama a atenção que o surgimento de uma política tão ancorada na
extrema direita em todo o mundo é uma tentativa desesperada de segurar
o desmoronamento. Sua perspectiva, num certo sentido otimista, convida
139
que contribuamos com o colapso desse edifício reconhecendo ou
inventando outras bases que permitam perceber a radical multiplicidade
da vida. Vivemos um estado de guerra, é necessário recuperar ou inventar
tecnologias de governo que não sejam necropolíticas. Neste sentido que
pensamos nossa proposta de ensino de filosofia, no entanto, todas as bases
desse edifício em colapso precisam ser expostas, na próxima seção
apontaremos mais um dos problemas dessa ontologia patriarcal.
2.3 Raízes especistas: o excepcionalismo europeu e a coisificação
A excepcionalidade do homem europeu e sua forma de entender o
mundo também significa a excepcionalidade da espécie humana, de modo
que a mesma hierarquização que permite excluir alguns humanos, coisifica
também seres não humanos.
Na antiguidade grega, a racionalidade era entendida como a
própria essência da humanidade. Isto leva Aristóteles a definir o homem
como um “animal racional”, definição pouco questionada na história do
pensamento. Aristóteles também é responsável pela primeira classificação
dos seres vivos, utilizando o padrão de racionalidade expresso através do
tipo de alma, de modo que as plantas são vistas como portadoras de uma
alma restrita e limitada à nutrição, como algo pouco complexo, e no topo
da hierarquia está a alma racional que, em sua visão, define o únicoanimal
racional” da natureza. Se a própria natureza do ser humano passa a ser
definida a partir da racionalidade, o que nessa visão não é compartilhado
por nenhum outro ser, a vocação e realização do homem só podem ocorrer
a partir do exercício do uso da razão.
140
A partir de um ideal de racionalidade universal, do qual apenas o
homem europeu pode ser considerado portador, produzem-se hierarquias
de perfeição entre os humanos e entre os seres em geral. Aristóteles elabora
uma escala da natureza apontando hierarquias a partir de critérios que ele
entendia como dotados de maior ou menor perfeição, baseado em
características como o tipode sangue, a forma de reprodução, estrutura
óssea, postura ereta. Adota como características superiores as mais
próximas dos homens, lembrando que a masculinidade também era um
critério de superioridade para ele. Os seres mais inferiores nesta escala são
os mais parecidos com as plantas e os mais próximos dos humanos estão
no topo da hierarquia. A ontologia aristotélica cria espécies e gêneros
superiores e inferiores.
Embora a classificação ocidental dos seres vivos, iniciada por
Aristóteles, tenha sido reelaborada diversas vezes na história, a
superioridade humana se mantém e dá suporte para a ontologia
hegemônica que, como argumentamos aqui, só pode ser entendida em sua
complexidade através de um paradigma ontológico antropocêntrico.
Contudo, a ontologia delineada pela filosofia ocidental, por meio de uma
escala ascendente de perfeição, afirma a superioridade de alguns humanos
homens europeus livres ao inferiorizar outros grupos humanos e não
humanos. Vemos, então, que a filosofia ocidental é baseada em ontologias
hierárquicas que delimitam sujeitos, seres vivos e conhecimentos como
superiores e inferiores.
O dualismo cartesiano também contribuiu para tal paradigma
hegemônica. Como explicam Lynn Margulis e Dorion Sagan (2002, p.
50-51), Descartes contribuiu para o especismo ao postular
141
uma cisão fatal entre a res extensa, a realidade material, e a res cogitans, a
realidade pensante. Só os seres humanos, afirmou Descartes, faziam parte de
Deus, por serem dotados de alma: “Estamoso acostumados a nos convencer
de que os bichos sentem como nós, que é difícil nos livrarmos dessa opinião.
Mas, se estivéssemos igualmente acostumados a ver autômatos imitarem à
perfeição todos aqueles de nossos atos que eles são capazes de imitar, e a tomá-
los apenas por autômatos, não teríamos a menor dúvida de que os animais
irracionais são autômatos”. Com base na autoridade de Descartes, pregaram-
se animais vivos em tábuas, sem remorso, para ilustrar fatos da anatomia e da
fisiologia. (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 50-51)
Assim, o dualismo funcionou como uma “licença cartesiana”
(MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 50) para a coisificação de seres não
humanos. No entanto, como ressaltam Margulis e Sagan (2002, p. 43),
“Todos os seres vivos não apenas os animais, mas também plantas e
microrganismos o dotados de percepção. Para sobreviver, o ser
orgânico tem que perceber: tem que procurar ou, pelo menos, reconhecer
o alimento e evitar perigos ambientais”, de maneira que a afirmação de
Descartes não se sustenta.
A constituição do homem moderno se dá num processo de
coisificação do que o cerca, incluímos aqui animais não humanos e
plantas que são literalmente objetos humanos utilizados a seu bel prazer,
mas também se volta para aqueles que não cabem nesse ideal de
humanidade que está no cerne da filosofia desde a sua origem ocidental.
Desta forma, a desumanização é um processo de animalização, o que
permite perceber como o especismo é uma ferramenta de dominação que
subjuga ao mesmo tempo humanos e não humanos, além de ser o cerne
da mentalidade que produz a extinção de várias espécies importantes
para a vida no planeta.
142
As justificativas da escravidão humana afirmavam a
irracionalidade de alguns povos. Tal ideologia permanece presente, por
exemplo, quando os trabalhadores das lavouras, que morrem de câncer
em pouco tempo para a produção do agronegócio, também não são
tratados como portadores de direitos, e muitas vezes são associados a
animais não humanos de forma pejorativa, basta pensar no vocabulário
popular e na maneira como os barões do agronegócio se referem a eles.
O documentário "A primeira pedra" (Vladimir Seixas, 2018), que
retrata a realidade sobre os linchamentos no Brasil entre os países que
mais adota essa prática , se inicia com o depoimento do professor de
história André Ribeiro que foi confundido com um assaltante por um
dono de bar, e, por isso, foi espancado até que um policial pedisse que
provasse que era professor dando uma aula sobre a revolução francesa.
Na entrevista, André Ribeiro conta sobre a conversa do dono do bar com
seu filho durante o espancamento:o dono do bar pediu pro filho dele
buscar uma corrente e um facão. O pai pede pro filho buscar o facão pra
você abater o bicho, tudo está errado” (A PRIMEIRA, 2018, 5:50
minutos). Refletir sobre aqueles que são desumanizados na sociedade nos
permite entender verdadeiramente o que significa ser animal nesse
contexto exploratório que vivem diversos seres em prol dos interesses de
poucos. Basta observar que o mercado da carne e o agronegócio sempre
existiram para enriquecer alguns poucos homens brancos que
escravizam, odeiam indígenas e quilombolas e são contra os direitos
humanos em geral, grupo este que está cada vez mais forte no Brasil. O
genocídio humano de alguns grupos sociais ocorre conjuntamente à
destruição de árvores, plantas e animais não humanos que circundam suas
relações.
143
Ainda que a filosofia ocidental afirme frequentemente que um
determinado ideal de homem é o único animal racional” e que outros
seres sejam entendidos mais como objetos do que seres vivos, o mesmo
questionamento nunca é feito com relação a si próprios. A humanidade
é de fato racional? Está tão distante assim da animalidade intrínseca e
dos instintos selvagens?
A suposta superioridade de alguns humanos sobre outros seres é
fundamentada na dicotomia natureza/cultura ou instintos/razão. Há um
senso comum que determina que apenas o humano tem cultura e que todas
as outras espécies estão reduzidas aos instintos, o que colabora para um
entendimento restrito da cultura. A visão dualista entre instintos/cultura
dicotomiza o ser selvagem e o ser domesticado, de maneira que este último é
aquele que saiu do estado de natureza e não está submetido aos seus
instintos que o fariam mais animal do que humano. A dualidade
selvagem/domesticado, como categoria do excepcionalismo humano,
estabelece uma abstração que não corresponde às redes de inter-relação
entre os humanos e os outros seres. Por isso, consideramos relevantes as
contribuições do antropólogo Miguel Aparicio (2019, p. 107-109) que
ressalta que:
hoje, cada vez mais, somos capazes de reconhecer que a condição humana
está enredada nas plantas que convivem conosco. Ao avançarmos num
ponto de vista que podemos chamar de fitófilo, descobrimos que muitos
vegetais são verdadeiros antropófilos que emaranham nossa vida e a tornam
viável. Parafraseando Latour (1991), é possível afirmar que a vida humana
também se define a partir das iniciativas do “parlamento das plantas”.
Quando Michael Pollan (2002) escreveu The Botany of Desire, na tentativa
de encontrar um acesso ao ponto de vista das plantas sobre o mundo e levá-
lo a sério, observou o modo como algumas espécies vegetais configuram os
desejos humanos. Mais do que descrevê-las, o esforço consiste em
144
compreender como os nossos desejos se conectam com as plantas; dessa
maneira, é posvel observar como a maçã molda nossas percepções de
doçura, como a tulipa define o desejo de beleza, a maconha nossa vontade
de intoxicação, as batatas nosso anseio de controle.
[...] Pesquisas atuais na Amazônia reconhecem parte das suas florestas como
derivadas de processos de domesticação de paisagens e de populações de
plantas que interagiram com populações indígenas que as manejavam ou as
cultivavam ao longo de centenas de anos (CLEMENT, 1999; CLEMENT
et al., 2010; LINS et al., 2015; LEVIS et al., 2017). A coevolução entre
humanos e espécies botânicas expressa uma peculiar socialidade, um campo
de mutualismo onde, como apontam as concepções indígenas, incidem
eixos da vida humana tão expressivos como o parentesco ou o xamanismo.
Porém, falar em domesticação de plantas oculta os processos concomitantes
segundo os quais as populações vegetais transformaram as formas de vida e
de socialidade dos grupos humanos que foram contradomesticados por elas.
Essas conexões interespecíficas entre humanos e plantas impelem ecólogos
e antropólogos a repensar alguns lugares-comuns na compreensão da
Amazônia, tais como a oposição entre selvagem e domesticado, ou entre
floresta e roça. Mais ainda: o pensamento amazônico nos ajuda a desmontar
a tribuna do nosso excepcionalismo e a confundir os limites da condição
humana e da condição vegetal. [...] Não se trata de uma floresta
antropogênica em absoluto, mas das plantas cultivadas por e para um
determinado sujeito” (CABRAL DE OLIVEIRA, 2016, p. 128).
(APARICIO, 2019, p. 107-109)
Quando repensamos profundamente os pressupostos que
fundamentam o excepcionalismo humano, faz-se necessário romper com
as categorias que o determinam, de maneira que se torna inviável
sustentar concepções puristas e dicotômicas como selvagem/
domesticado ou instinto/cultura. Humanos têm sua sociabilidade
transformada pela interação com outros seres. Além das indemarcáveis
fronteiras entre o ser selvagem e o domesticado, a domesticação tem sido
restritamente entendida como o processo de controle dos humanos sobre
145
outras espécies, porém, não apenas as atitudes humanas têm
intencionalidade se olharmos para além da nossa própria perspectiva. As
relações com outras escies também transformam os humanos e
possibilitam, em um certo sentido, suas condições de existência.
Concordamos com Donna Haraway (2003, p. 12) que A domesticação
é um processo emergente de co-habitação, envolvendo agências de muitos
tipos e histórias.
Anna Tsing traz à tona movimentos que mostram que, em uma
perspectiva, os cereais domesticam os humanos e possibilitaram o
surgimento da propriedade privada, da família e do Estado. Sobre isso,
Tsing (2015, p. 186) ressalta que
a história que contamos a nós mesmos sobre a “conveniência” eeficiência” de
plantar em casa simplesmente não é verdadeira. O cultivo quase sempre requer
mais trabalho do que o forrageamento. Houve provavelmente muitas razões,
da religião à escassez local, para se experimentar a domesticação. (TSING,
2015, p. 186)
Embora essa forma de cultivo costume ser entendida como a mais
conveniente”, demanda dedicação diária, tão ou mais desgastante que a
atividade de coleta, especialmente se considerarmos ambientes ricos em
alimentos. Além disso, o cultivo leva à necessidade de fixar lugar, o que
para alguns povos implica em riscos por conta das investidas genocidas e
exploratórias a que são submetidos constantemente. Isso ajuda a
compreender por que alguns povos não se identificam com essa forma
de cultivar, como acrescenta Aparicio (2019, p. 108-109):
146
na Amazônia, os riscos desse movimento derivaram, entre alguns povos
indígenas como os Huaorani do Equador, numa certa relutância em relação
à horticultura (RIVAL, 2007) devido à dedicação permanente que ela exige.
No âmbito dos povos Arawa, no vale do Purus, percebi entre os Banawa
uma notável preferência pela caça e a coleta, também em detrimento do
trabalho nas roças. (APARICIO, 2019, p. 108-109)
Por isso, Tsing sugere que provavelmente o que levou à preferência
pela domesticação de plantas pode ter sido a religião ou a escassez durante
algum período. Entretanto, é importante considerar outros aspectos mais
complexos sobre esta relação:
o que manteve e estendeu o cultivo de grãos foi a emergência das hierarquias
sociais e a ascensão do Estado. A agricultura intensiva de cereais é bem-sucedida
em um aspecto, em relação a outras formas de subsistência: o de apoiar as elites.
Os Estados institucionalizam o confisco de uma porcentagem da colheita. Por
toda a Eurásia, a ascensão dos Estados, e suas civilizações especializadas, foi
associada à disseminação da agricultura intensiva de cereais. Em alguns lugares
o Estado sucedeu a agricultura; em outros, a agricultura sucedeu os Estados.
Em ambos os casos, os Estados promoveram a agricultura em suas insígnias e
exércitos. Algumas vezes outras formas de subsistência foram criminalizadas:
apenas os foras da lei recusariam a dádiva da fertilidade estatal. [...] Estados
encorajam o estabelecimento de fazendas sedentárias e estáveis. O Estado
incentivou unidades domésticas de base familiar e garantiu as formas de
propriedade privada e herança que traçaram linhas dentro e entre famílias. [...]
Foi no interior dessa configuração política que tanto as mulheres quanto os
grãos foram confinados e manejados para maximizar a fertilidade. [...] Ao invés
de investirem em limitar a fertilidade, como fazem a maioria dos forrageadores,
as pessoas repentinamente passaram a querer o número máximo possível de
filhos, não apenas por conta do fetiche da fertilidade, mas também porque a
família precisava de mais trabalho para os cereais. [...] a propriedade apoiada
pelo Estado incentivou o trabalho dentro da família, ou seja, o trabalho
infantil. [...] Essa obsessão pela reprodução, por sua vez, limitou a mobilidade
147
das mulheres e suas oportunidades para além do cuidado com as crianças.
(TSING, 2015, p. 186-187)
A autora estabelece uma relação intrínseca entre a formação do
Estado e as formas de cultivo adotadas pelas populações, e,
consequentemente, a organização hierárquica da sociedade. O incentivo à
agricultura surge no contexto do delineamento dos Estados, pois permite
o sustento das elites de modo permanente através de confiscos e tributos.
No entanto, a dedicação intensiva diária da produção agrícola fomentou o
ideal de família, pois os filhos ajudavam com os afazeres. Por outro lado,
isso significou “a derrota histórica do feminino” (TSING, 2015, p. 187)
porque à mulher coube o confinamento doméstico, do mesmo modo que
as plantas se domesticaram, as mulheres também tiverem uma forma de
domesticação porque os hábitos que lhes foram exigidos faziam seu
confinamento necessário para maximizar a fertilidade e a produção. Por
isso, a agricultura intensiva de cereais é especialmente bem-sucedida em
apoiar as elites, como aponta Tsing, outras formas de subsistências foram
criminalizadas e, “Onde quer que o poder do Estado tenha se atenuado,
paisagens de maior biodiversidade e de maior diversidade social
continuaram a proliferar” (TSING, 2015, 186-187). Contudo, a
perspectiva trazida por Tsing nos permite entender por que a colonização
vem acompanhada de uma forma específica de cultivo. Não à toa
diferentes etnias desenvolveram afinidades mais profundas com algum
tipo específico de cultivar. Nesse sentido, não parece ser possível pensar
as sociedades desconexas de suas relações com o ambiente que o cerca, nem
considerar a domesticação como uma atividade restrita aos humanos.
148
Tsing (2015, p. 184-185) explorou as redes de relações
interespecíficas apontando a raiz da cegueira humana diante de outras
espécies:
o excepcionalismo humano nos cega. A ciência herdou das grandes religiões
monoteístas narrativas sobre a superioridade humana. Essas histórias
alimentam pressupostos sobre a autonomia humana e levantam questões
relacionadas ao controle, ao impacto humano e à natureza, ao invés de instigar
questões sobre a interdependência das espécies. Uma das muitas limitações
dessa herança é que ela nos fez imaginar as práticas de ser uma espécie
(humana) como se fossem mantidas autonomamente e, assim, constantes na
cultura e na história. A ideia de natureza humana foi apropriada por ideólogos
conservadores e por sociobiólogos que se utilizam de pressupostos da
constância e autonomia humanas para endossar as ideologias mais autocráticas
e militaristas. E se imaginássemos uma natureza humana que se transformou
historicamente com variadas teias de dependência entre espécies? A natureza
humana é uma relação entre espécies. Longe de desafiar a genética, um recorte
interespecífico para nossa espécie abre possibilidades de linhas de pesquisa
tanto biológicas quanto culturais. [...] Prestar atenção a essa diversidade pode
ser o início da apreciação de um modo interespecífico de ser das espécies.
(TSING, 2015, p. 184-185)
Tsing atribui a cegueira humana diante das outras espécies como
resultado especialmente do discurso religioso monoteísta. O que
fundamenta a supremacia humana é a supervalorização de uma razão
narcisista, que não enxerga as relações interespécies que possibilitam a
vida humana. Concordamos com Tsing que a natureza humana é uma
relação entre espécies, de modo que não sustentam ideologias de
superioridade. Não é possível pensar as vidas humanas sem considerar sua
coevolução com o planeta e todos os seres que o compõem.
149
Até mesmo o que entendemos por floresta amazônica não
corresponde ao ideal abstrato de “mata virgem” do imaginário ocidental,
pois é resultado de muitos milênios de interação com ameríndios que
medem, assim, muito bem a incidência dos antigos terrenos de cultivo sobre a
caça, sendo as zonas de forte concentração de plantas silvestres comestíveis as
mais frequentadas pelos animais, o que influi a longo prazo na demografia e na
distribuição da caça. [...] Certos especialistas chegam até a afirmar que no
momento da Conquista já não existia floresta climática, isto é, que nunca
tivesse sido afetada pela presença humana (Denevan, 1992). Nessa região,
portanto, a natureza é na verdade muito pouco natural, podendo ao contrário
ser considerada o produto cultural de uma manipulação antiga da fauna e da
flora. Embora sejam invisíveis para um observador desprevenido, as
consequências dessa antropização estão longe de ser desprezíveis, notadamente
no que diz respeito à taxa de biodiversidade, a cujo respeito foi possível mostrar
que era mais elevada nas porções de floresta antropogênicas do que nas porções
de floresta não modificadas pelo homem. (DESCOLA, 1999, p. 115)
Sendo assim, a floresta é muito mais um produto cultural do que
natural, pois se constrói a partir do desejo e necessidade de interagir com
determinados grupos de animais, insetos e vegetais. Por este motivo que
não é possível entender as características de um bioma sem considerar
aspectos culturais da interação entre humanos e não humanos em um local.
A fragilidade dos ecossistemas amazônicos que são pobres em nutrientes
nos aponta para a admirável habilidade dos povos indígenas de
desenvolvimento de técnicas sofisticadas de plantio, cultivo e caça que
permitiram um uso dos recursos que não comprometesse o equilíbrio por
séculos. Ao compreender diferentes perspectivas as dicotomias
selvagem/domesticado ou natureza/cultura se diluem.
150
Entendemos que embora o excepcionalismo europeu é
questionado por diversos movimentos e grupos, o excepcionalismo do
homem moderno como um todo não tem sido denunciado tão
amplamente. Consideramos que a crítica ao antropocentrismo é
essencial para adiar o fim do mundo, haja vista que a ontologia
hegemônica se baseia nos mesmos preceitos para inferiorizar humanos e
não humanos, além da exploração e a escravidão sempre ocorreram de
modo combinado com a intervenção na vida de outras espécies, como
através da agricultura ou da criação de animais não humanos.
Embora o discurso dominante afirme a ideia de superioridade
europeia, o sistema de plantation, baseado na monocultura para exportação
através de grandes latifúndios e de trabalho escravo, está na raiz da
afirmação da Europa como centro durante a colonização. Plantations são
simplificações ecológicas nas quais os seres vivos são transformados em recursos
ativos futuros , removendo-os de seus mundos de vida. As plantations são
máquinas de replicação, ecologias evocadas para a produção do mesmo [...].
Produzir recursos isto é, coisas desembaraçadas requer trabalho cultural.
Vamos chamar este trabalho de “alienação”, quer envolva humanos ou não
humanos. A alienação cria as possibilidades das máquinas de replicação, que se
tornam eficientes produtoras de ativos, que podem ser transformados
novamente em ativos futuros e de fato ajudam a produzir esse modelo de
futuro a que chamamos de progresso. A alienação produz os dilemas
ambientais que chamamos de Antropoceno. A mudança climática
antropogênica, a crise de extinção e a poluição radioativa [...] são todos
produzidos através da busca de ativos por meio de ecologias simplificadas e dos
processos industriais que essas ecologias tornaram possíveis. (TSING, 2019, p.
206)
151
Como explica Tsing (2019), transformar seres vivos em recursos
que sejam eficientes requer trabalho cultural, isto é, alienação. Tal modelo
de ecologia simplificada, coisifica humanos e não humanos, alienando-os
das condições de sua existência, das relações com seus contextos e seres que
o permeiam. O modelo de coisificação das plantations se estende para além
da agricultura significando uma produção de pessoas e diversos outros
animais, nesse sentido, Tsing fala em “plantation de porcos”, já que muitos
seres vivos são transformados em recursos na racionalidade moderna.
Neste contexto, há uma mudança da relação das pessoas com as
plantas o que podemos notar também com relação à criação de animais
não humanos. Se antes da invasão europeia os cultivares se baseavam em
uma relação simbiótica de amor com as plantas, a monocultura estabelece
o cultivo pela coerção:
as plantas eram exóticas; o trabalho era realizado à força por meio da
escravidão, de contratos e de conquista. Apenas por meio de ordenamento e
controle extremos algo poderia frutificar dessa maneira; mas com hierarquia e
antagonismo administrado em campo, lucros enormes (e misérias
complementares) puderam ser produzidos. Como as plantations formataram a
maneira como o agronegócio contemporâneo é organizado, tendemos a pensar
em tais arranjos como a única maneira de praticar agricultura. Mas esse arranjo
teve de ser naturalizado até que aprendêssemos a levar em conta a alienação das
pessoas em relação às suas lavouras. Considere a cana-de-açúcar, uma
participante-chave. Ninguém ama a monocultura de cana. Os trabalhadores
da cana em Porto Rico saem para “se defender” e “brigar” com a cana.
(TSING, 2015, p. 189)
A cana-de-açúcar foi e ainda hoje é muito importante na
exploração colonial de vários territórios, correspondendo às primeiras
lavouras durante a colonização em solo do que hoje se denomina “Brasil”.
152
Embora os sistemas monoculturais sejam entendidos como os únicos
possíveis para alimentar a população mundial argumento exaustivamente
repetido pelos defensores do agronegócio –, obviamente não são a única
maneira de praticar agricultura. Ao contrário do discurso oficial, quem
sustenta o mercado de alimento no Brasil é a agricultura familiar, e não o
agronegócio que se restringe a produzir commodities. Tal ideologia
dominante depende de diferentes níveis de alienação que propagam uma
completa ignorância dos processos de agricultura e de todos os seres que o
envolvem. A ciência das plantations se baseia a partir do controle e
alienação tanto de plantas quanto de humanos. Desse modo,
na ciência das plantations, o bem-estar é uma fórmula calculada a partir de
cima; o dano colateral é esperado, e ninguém para para perguntar: “Bem-estar
para quem?” Na ciência das plantations, especialistas e objetos são separados
pela vontade de poder; o amor não flui entre o especialista e o objeto. (TSING,
2019, p. 59)
O trabalho forçado leva a uma relação conflituosa entre humanos
e plantas, que afasta da simbiose amorosa dos cultivos ancestrais:
e ao forjar um novo antagonismo com as plantas das monoculturas, os seres
humanos modificaram a natureza de ser espécie. As elites estabeleceram seu
senso de autonomia com relação às outras espécies: eles eram senhores e não
amantes dos seres não humanos, ou seja, das espécies outras que vieram ao
mundo para definir a autoatribuição humana. Mas para os monocultores isso
só era possível na medida em que uma subespécie humana era formulada e
produzida à força: alguém tinha que trabalhar na lavoura de cana. A biologia
veio a significar a diferença entre proprietários livres e trabalhadores
submetidos. As pessoas de cor trabalhavam nos canaviais; as pessoas brancas
apenas os possuíam e administravam. Não havia lei ou ideal que parasse a
153
miscigenação, mas garantia-se que apenas a raça branca podia herdar
propriedades. As divisões raciais foram produzidas e reproduzidas a cada dote
ou herança. (TSING, 2015, p. 190)
Ainda que a sobrevivência da espécie humana desde sempre
dependa da relação com outros seres, a monocultura forja uma relação
antagonista que se pauta na afirmação da autonomia de alguns humanos
é claro, os da elite branca diante da natureza. As elites sustentam sua
“autonomia” à custa do fim da autonomia de outros seres humanos e não
humanos, usando toda a ideologia possível para determinar quem seriam
os escravizados e quem usufruiria dos lucros. A invenção da “raça”, bem
como as hierarquias que determinam tipos superiores e inferiores de outras
espécies, são o alicerce das plantations. Assim, as plantations funcionam
através de três aspectos: a) determinação de uma sub-humanidade que deve
trabalhar e humanos superiores que devem ficar com os lucros; b)
determinação de plantas superiores que devem ser cultivadas e daquelas
que devem ser eliminadas; c) determinação de animais não humanos
superiores que devem ser incorporados à lógica de produção para consumo
humano e outros que devem ser eliminados.
Contudo, podemos afirmar que:
a modernidade é, entre outras coisas, o triunfo da destreza técnica sobre a
natureza. Este triunfo requer que a natureza seja limpa de relações sociais
transformadoras; caso contrário, esta não poderia ser a matéria-prima da techne.
A plantation mostra como é preciso criar terra null, a natureza sem
reivindicações emaranhadas. Os emaranhamentos nativos, humanos e não
humanos, devem ser extintos; refazer a paisagem é uma maneira de se livrar
deles. Então, trabalhadores e plantas exóticas (ou outros elementos do projeto)
podem ser trazidos, projetados para alienação e controle. (TSING, 2019, p.
186)
154
Assim, apaga-se a relação de simbiose entre os seres. Do mesmo
modo, apagam-se as relações interdependentes entre os seres humanos,
sem as quais até mesmo o que chamamos de “Europa” como conhecemos
na atualidade não poderia existir, o que por tudo que estamos discutindo
aqui não seria ruim.
Carol Adams no livro “A política sexual da carne: uma teoria
feminista-vegetariana” utiliza a teoria do referente ausente para explicar
como a violência que envolve outras espécies se torna aceitável em
sociedades urbanas. Por meio do retalhamento de seus corpos e a
elaboração de uma linguagem que oculta sua origem, os animais se tornam
referentes ausentes. A partir desse conceito, a autora estabelece paralelos
entre a experiência animal e as violências contra as mulheres, “Um exemplo
disso é quando as mulheres vítimas de estupro ou espancadas dizem: “Eu
me senti como um pedaço de carne”. Nesse exemplo, o significado da carne
não se refere a ela própria, mas a como se sentiu uma mulher vitimizada
pela violência masculina” (ADAMS, 2018, p. 79-80). Adams (2018, p. 81)
argumenta que
do mesmo modo como os corpos mortos estão ausentes da nossa linguagem
sobre carne, nas descrições da violência cultural as mulheres também são,
muitas vezes, o referente ausente. [...] A violência sexual e o consumo de carne,
que parecem ser formas distintas de violência, têm no referente ausente um
ponto de interseção. As imagens culturais de violência sexual, e a violência
sexual real, frequentemente repousam no nosso conhecimento de como os
animais são retalhados e comidos. Por exemplo, Kathy Barry nos fala de Maison
d’abattage (tradução literal: casas de matança) onde seis ou sete mulheres
atendem 80 a 120 clientes por noite. Além disso o equipamento pornográfico
usado para a sujeição correntes, espetos de gado, laço, coleiras de cachorro e
cordas evoca o controle sobre os animais. Assim, quando as mulheres são
155
vítimas de violência, o tratamento dado aos animais é lembrado. (ADAMS,
2018, p. 81)
Em outras palavras, as mulheres, assim como os animais não
humanos, são pedaços a serem consumidos, não sujeitas. Nesse sentido,
são componentes essenciais do paradigma de retalhamento sexual
metafórico (ADAMS, 2018, p. 102):
- A faca, real ou metafórica, como o equipamento escolhido (na pornografia,
as lentes da câmera tomam o lugar da faca como equipamento da violência);
- O agressor tentando controlar/consumir/violar o corpo da vítima;
- O fetichismo das partes do corpo;
- O consumo de carne fornecendo a imagem de animais retalhados. (ADAMS,
2018, p. 102)
As mulheres são retalhadas por meio da objetificação e do
fetichismo de partes de seus corpos, que fica evidente na produção
cinematográfica e televisiva. Além disso, é possível observar que o consumo
da carne em geral é associado ao homem, ele é o caçador, quando há pouca
carne é ele que tem a prioridade, e ainda um privilégio de classe, o que
Derrida nomeou carnofalogocentrismo.
A teoria do referente ausente também pode colaborar para
compreender a violência racista, o que permite perceber um dos modos da
atuação da ontologia hegemônica através da linguagem e da produção
cultural. É um mesmo processo político e simbólico que torna consumíveis
animais não humanos e humanos sob uma lógica de dominação.
156
Se, como apontado no capítulo anterior, as instituições de ensino
no Brasil não incentivam a pensar problemas autonomamente e, por isso,
dificultam a busca por soluções para o problema da catástrofe ambiental;
por outro lado, ao ensinarem a superioridade de um tipo de humanidade
opressora, produzem uma mentalidade de destruição, e, portanto,
fomentam o fim de mundo. Concordamos com Ailton Krenak (2020b, p.
101-102) que é
gravíssimo as escolas continuarem ensinando a reproduzir esse sistema desigual
e injusto. O que chamam de educação é, na verdade, uma ofensa à liberdade
de pensamento, é tomar um ser humano que acabou de chegar aqui, chapá-lo
de ideias e soltá-lo para destruir o mundo. Para mim isso não é educação, mas
uma fábrica de loucura que as pessoas insistem em manter. (KRENAK, 2020b,
p. 101-102)
Tal modelo (de)forma sujeitos para a “experiência urbana intensa,
de virar um consumidor do planeta” (KRENAK, 2020, p. 104), através da
inferiorização de seus mundos próprios em prol de um sistema-mundo
universal supostamente superior que exige padronização para a
perpetuação do capitalismo. A empresa de produção de consumidores está
entrando cada dia mais nas instituições de ensino. Assim, do mesmo modo
como as plantations simplificam ecossistemas fazendo humanos, não
humanos e plantas de prisioneiros, alienando-os e escravizando-os, as
plantations da educação também reduzem a existência à produção
capitalista de consumidores. As raízes antropocêntricas se evidenciam em
um ensino voltado para a produção de consumidores, sem conscientizar
profundamente as pessoas para os processos de devastação ambiental e sua
ligação com a industrialização e o trabalho alienado. Se o ensino não vai
além da transmissão alienada neste contexto, a aprendizagem também não
157
extrapola os domínios da experiência de se tornar consumidor,
reverberando na postura diante dos saberes o que possibilita entender a
recognição como um “consumo” de saberes , dos objetos industrializados
e de outros seres não humanos, numa perspectiva de objetificação da
existência de outros seres, bem como da própria existência. As hierarquias
hegemônicas determinam uma hierarquia entre modelos de vida, que
macroestruturam as sociedades ditas como “civilizadas”, como
discutiremos na próxima seção.
2.4 Rzes monoculturais: controle e eliminação das diferenças em prol
de um mundo capitalista
A padronização fomentada pelo modelo de ensino de filosofia
hegemônico no Brasil, parte de um desejo de controle das subjetividades
de maneira a direcioná-las para os interesses dominantes, pois produz a
conformação necessária para que o sistema capitalista continue
funcionando. Desse modo, a hierarquia de saberes é ao mesmo tempo uma
hierarquia entre pessoas e culturas, que delimita os lugares específicos de
cada um nessa engrenagem global, na qual alguns poucos bilionários ligam
e desligam as máquinas. Assim, aprender a superioridade europeia é
aprender o nosso lugar nesse sistema-mundo capitalista. Portanto, do
mesmo modo como a ontologia hegemônica é racista, patriarcal e especista
é também capitalista, foram os interesses de exploração que produziram
discursos de superioridade que justificaram a escravidão de alguns e o
direito aos lucros de outros. A colonização impôs um modo de produção
intrinsecamente relacionado à exploração.
158
O controle acerca das diferenças no âmbito da cultura corresponde
aos interesses de exploração. Assim como as diferenças são desvios do ser,
o que diverge do modelo hegemônico de modo de vida são degradações da
cultura, isto é, atrapalham o desenvolvimento da humanidade
hegemônica. Dessa maneira, a (mono)cultura dominante es
intrinsecamente ligada à padronização necessária para a manutenção do
sistema de exploração capitalista.
A indiana Vandana Shiva (2003) afirma que o saber ocidental
dominante é uma monocultura da mente porque “Descarta uma pluralidade
de caminhos que levam ao conhecimento da natureza e do universo
(2003, p. 80) ao estipular como válida apenas a perspectiva europeia sobre
o mundo. Determina como única possibilidade uma forma de plantar,
comer, viver, pensar, ser e saber. Nesse sentido, quando analisamos a
monocultura do solo, estamos desvelando o resultado de uma
racionalidade monocultural que foi o elemento-chave da dominação
europeia. Assim, a monocultura do solo é consequência de uma
monocultura da mente, uma percepção unilateral de mundo que, do mesmo
modo que não enxerga a pluralidade humana, não enxerga a diversidade
da natureza.
O saber dominante suprime a diversidade pelo mesmo motivo que
ignora a pluralidade dos cultivares: para controlar o uso dos recursos e seus
lucros e, consequentemente, as populações. Ao controlar a percepção de
mundo das pessoas, torna também seus comportamentos mais previsíveis
e passíveis de serem manipulados, e, assim, controla-se também a sua vida,
pois os problemas e as próprias soluções já estão previstos dentro do
paradigma do saber ocidental hegemônico e não possibilidade de pensar
fora desta lógica. Como disse Shiva em entrevista (2014, n.p.): A cegueira
que nos impede de ver tanto a riqueza da diversidade quanto a própria
159
diversidade é o que chamo de monocultura da mente. A monocultura da
mente é, literalmente, a raiz da ditadura sobre a Terra. É um instrumento
de poder e controle. Não produz mais. Controla mais”.
É possível entender melhor o que significa uma monocultura da
mente quando observamos a pluralidade de saberes que alimentam as
relações entre os diferentes povos e a natureza. A monocultura que
estrutura a relação com os saberes fomenta uma percepção padronizada da
relação humanidade/natureza. Em geral, os sistemas locais de saber se
baseiam em uma visão ampla e contextualizada da floresta, o que permite
aos seus membros perceber e saber utilizar um número maior de plantas
do que o saber científico tem catalogadas e patenteadas. Ao contrário, o
saber dominante olha para a natureza a partir apenas de sua exploração
comercial, entendendo, por exemplo, a madeira como produto principal e
não na sua relação com a floresta e com aquilo que ela fornece para o solo
e para as diferentes práticas da comunidade. A monocultura da mente
corresponde a uma visão fragmentada da floresta porque não entende que
as plantas e árvores se relacionam e muitas vezes dependem totalmente
das trocas que estabelecem com outras plantas e seres que as rodeiam. É,
por isso, que as monoculturas do solo precisam de tantos insumos para se
manterem, pois estão deslocadas de suas relações intrínsecas com outros
seres e plantas.
A perspectiva dominante reduz a multiplicidade da floresta a
poucas espécies que tenham valor comercial como “produto morto”. Nessa
perspectiva, a floresta natural é vista como caos”, e aquilo que ela tem para
oferecer na sua multiplicidade e que não apresenta possibilidade de lucro
à exploração comercial, é entendido como “erva-daninha” que precisa ser
eliminada com veneno para garantir a alta produtividade. Shiva (2003, p.
40) cita como exemplo a “batua”, planta acessível na Índia e que cresce
160
associada ao trigo e é eliminada com herbicida, ainda que seja rica em
vitamina A e que, na Índia, 40 mil crianças fiquem cegas todo ano por falta
desta vitamina.
Plantas que não são exploradas comercialmente são vistas como
inferiores e improdutivas, bem como as sementes das plantas nativas que
fazem parte do cotidiano tradicional de diversas comunidades locais
séculos. O suposto progresso que justificou a colonização e a escravidão,
também torna justa a eliminação das plantas e sementes nativas, pois sua
suposta inferioridade, assim como a suposta inferioridade dos saberes e
povos não dominantes, atrapalha a produtividade e a ideologia
desenvolvimentista que mantém o privilégio das classes dominantes. Para
garantir a produtividade do plantio, a ciência moderna desenvolve uma
enorme variedade de herbicidas e “sementes milagrosas” transgênicas
resistentes, o que permite ao agricultor utilizar um maior número de
venenos para combater as ervas-daninhas. É preciso salientar que A
perspectiva unidimensional do saber dominante está baseada nas ligações
íntimas da ciência moderna com o mercado(SHIVA, 2003, p. 42). Desse
modo, o saber dominante cria insustentabilidade, pois suas sementes não
toleram outros sistemas e não são capazes de se reproduzir, obrigando o
agricultor a comprá-las em toda safra, ficando refém das empresas que as
desenvolveram. Do mesmo modo, ao eliminar os saberes locais, os povos
camponeses ficam reféns do saber hegemônico.
Assim como Shiva, Antônio Bispo dos Santos (2015) estabelece
uma crítica à chamada “Revolução Verde”. O argumento do
desenvolvimento foi a justificativa para estabelecer uma nova forma de uso
do que restou do “lixo da Segunda Guerra virasse implementos agrícolas
no Brasil” (SANTOS, 2015, p. 54). Santos ressalta que o “pacote”
desenvolvimentista de produção em ciclos curtos e larga escala trouxe além
161
de um combo agroquímico de venenos para combater as ervas-daninhas,
antes utilizados como desfolhante para combater a capacidade de
camuflagem dos adversários, caminhões criados para transportar soldados
que agora eram forjados como necessários para transportar os
trabalhadores. Neste contexto, Santos (2015, p. 53) afirma que
ofereceram aos povos tradicionais a alfabetização como forma de desqualificar
os saberes tradicionais das mestras e dos mestres de ofício. Tanto é que a
escolarização que lhes foi ofertada veio totalmente descontextualizada dos
modos de vida dessas populações, tendo por finalidade promover um amplo e
acelerado processo de êxodo rural e, assim, atender à necessidade de absorção
do lixo tecnológico da Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo em que o
êxodo rural também atendia a grande demanda por mão de obra nos grandes
centros urbanos, esvaziando os territórios tradicionais, enfraquecendo a
resistência contra colonizadora e criando as condições publicitárias para a
introdução da monocultura mecanizada no setor primário da economia.
(SANTOS, 2015, p. 53)
No contexto da “Revolução Verde”, Santos (2015, p. 51-52)
destaca que a oferta da alfabetização pode ter sido uma estratégia para
desmantelar e substituir os saberes tradicionais transmitidos através da
oralidade e da convivência entre as pessoas de diferentes gerações, e ao
mesmo tempo produzir mão de obra, configurando-se assim como um
confronto sutil para além dos confrontos físicos do período. Isto explica por
que “o acesso à linguagem escrita que sempre foi negado às comunidades
contra colonizadoras, lhes foi oferecido como oportunidade de melhoria
das suas condições de vida(SANTOS, 2015, p. 51-52). Nesse viés, a
imposição de uma determinada forma de expressão guarda relações com
processos de dominação. A falácia desenvolvimentista criou uma narrativa
oficial de que o que era produzido não era suficiente para o abastecimento
162
das cidades. Dessa forma, a “Revolução Verde” impôs uma forma de se
relacionar com a terra, com o trabalho e com a vida, desmantelando as
resistências socioculturais e intelectuais dos povos contra colonizadores.
Santos traz outra perspectiva sobre o que significam mega projetos
privados, vistos como aqueles que levam desenvolvimento para os
agricultores familiares. Ele apresenta como exemplo o Programa Nacional
do Biodiesel do governo federal que, em 2005, visava a trazer o
desenvolvimento para o Estado do Piauí através de um projeto no qual
enquanto o Estado fornecia as terras, a UFPI fornecia o seu laboratório de
biodiesel, o governo federal prometia por meio da Petrobrás comprar a
produção, e os agricultores familiares forneceriam seus saberes tradicionais
de cultivo da mamona.
A forma tradicional de cultivo da mamona é feita através de um
ciclo produtivo de dois anos, no qual seu plantio é feito de forma conjunta
com outras culturas de ciclo mais curto, como, por exemplo, feijão, milho,
abóbora e outras leguminosas, fazendo colheitas parciais da mamona
anual. No entanto, sem realizar estudos suficientes, a Brasil Ecodiesel
focada em ciclos curtos e de larga escala não seguiu as formas tradicionais
plantando outras variedades da mamona. Santos (2015, p. 73) afirma que
a Brasil Ecodiesel usou o povo como cobaia, pois seus métodos mostram
que tinham a intenção de mecanização do plantio e não se importava nem
com os saberes nem com melhorias na vida da população, como
inicialmente haviam se comprometido. O resultado disso foi que a Brasil
Ecodiesel desistiu do projeto, haja vista que o experimento realizado
comprovou que, nessa perspectiva, a mamona não era a oleaginosa mais
apropriada para a produção de biodiesel.
163
Consequências: a universidade perdeu um dos seus melhores laboratórios, a
Brasil Ecodiesel ainda é a proprietária legal das terras, os agricultores familiares
não tiveram para quem vender a produção, tampouco foram indenizados pelo
trabalho perdido e continuam vivendo nas terras que cultivaram, totalmente
abandonados pelo Estado e pela empresa, lavrando a terra a partir dos seus
saberes tradicionais, plantando feijão, mandioca e outras culturas sem qualquer
segurança ou garantia de permanência, lutando pelo o direito às terras que
cultivam. (SANTOS, 2015, p. 74)
A reflexão trazida por Santos me remete a história do local onde
moro hoje, que é Volta Redonda (RJ). Nascida no contexto das
negociações durante a Segunda Guerra Mundial, a Companhia Siderúrgica
Nacional (CSN) surge permeada por discursos de impulsionar um novo
modelo de operário e, consequentemente uma nova sociedade. Atraindo
muitos trabalhadores do campo, especialmente vindos de Minas Gerais, o
discurso era de que a “família siderúrgica” desenvolveria esses
trabalhadores, civilizando-os, “libertando” o trabalhador da vida no
campo. A cidade se construiu a partir dos interesses da CSN que, através
da construção dos bairros, constrói também a hierarquia que envolvia a
empresa, quanto mais alto o bairro em que a casa se situava, mais alto o
cargo. Assim, tal hierarquia territorial permitia políticas de vigilância
constante dos trabalhadores mesmo fora de seus horários de trabalho. O
bairro mais baixo, construído em 1942, foi destinado aos operários e,
obviamente, mais próximo da poluição e escória de minério de ferro, que
é sentida diariamente por meio de uma poeira metalizada que se forma
sobre as coisas. Um caso emblemático é o da greve de 1988, que contou
com mais de 10 mil trabalhadores e que acabou com o assassinato por parte
das forças armadas de Carlos Augusto Barroso, na época com 19 anos,
Valmir Freitas Monteiro, que tinha 27, e William Fernandes Leite, que
tinha 22 anos.
164
Isto nos impulsiona a refletir, como fez Russell Means em discurso
proferido em 1980 no Encontro Internacional de Sobrevivência de Black
Hills, o que é considerado um custo aceitável para o desenvolvimento?
Neste momento, hoje, nós que vivemos na Reserva de Pine Ridge estamos
vivendo no que a sociedade branca designou como “Área de Sacrifício
Nacional”. Isso significa que temos muitos depósitos de urânio aqui, e a cultura
branca (não nós) precisa desse urânio como material de produção de energia.
A maneira mais barata e eficiente para a indústria extrair e lidar com o
processamento desse urânio é despejar os resíduos de produtos aqui mesmo nos
locais de escavação. Bem aqui onde moramos. Esse lixo é radioativo e tornará
a região inteira inabitável para sempre. Isto é considerado pela indústria, e pela
sociedade branca que a criou, como um preço “aceitável” a se pagar pelo
desenvolvimento dos recursos energéticos. No decorrer disso, eles também
planejam drenar o lençol freático sob essa parte da Dakota do Sul como parte
do processo industrial, de modo que a região ficará duplamente inabitável.
(MEANS, 2020, p. 8)
Também no sentido de refletir sobre os custos do processo de
industrialização, Means faz uma crítica a algumas perspectivas que, embora
defendam a necessidade da redistribuição de renda, tratam a existência de
um sistema industrial massivo como pré-condição de uma sociedade bem-
sucedida. Assim, ele afirma que “teríamos que cometer suicídio cultural e
nos tornar industrializados e europeizados” (MEANS, 2020, p. 10),
colocando os povos como um “sacrifício aceitável para as necessidades
industriais” (MEANS, 2020, p. 11). As preocupações de Means nascem de
uma vivência territorializada da violência voltada para seu povo e de suas
experiências de resistência à industrialização: “Nós resistimos não para
derrubar um governo ou tomar o poder político, mas porque é natural
resistir ao extermínio, sobreviver. Não queremos poder sobre as instituições
165
brancas; queremos que as instituições brancas desapareçam. Essa é a
revolução” (MEANS, 2020, p. 14). Para a revolução que defendia Means,
os europeus, seres que se consideram “divinos em seu racionalismo e
ciência” (MEANS, 2020, p. 13), precisam sair “da cultura europeia junto
com o resto da humanidade para ver a Europa como ela é e o que ela faz.
Ater-se ao capitalismo, ao marxismo e a todos os outros “ismos” é
simplesmente permanecer dentro da cultura europeia” (MEANS, 2020,
17).
Para o saber dominante, a diversidade atrapalha o desenvolvimento
e o progresso, pois não permite uma exploração eficiente, gera
comunidades autônomas que protegem a floresta, gera pessoas que não
movimentam o consumo. Nesse sentido, são ervas-daninhas as plantas que
emergem nas monoculturas do solo, mas também o modo de vida e os
saberes que fazem parte das culturas das comunidades locais.
Além de tornar o saber local invisível ao declarar que não existe ou não é
legítimo, o sistema dominante também faz as alternativas desaparecerem
apagando ou destruindo a realidade que elas tentam representar. A linearidade
fragmentada do saber dominante rompe as integrações entre os sistemas. [...]
Desse modo, o saber científico dominante cria uma monocultura mental ao
fazer desaparecer o espaço das alternativas locais, de forma muito semelhante à
das monoculturas de variedades de plantas importadas, que leva à substituição
e destruição da diversidade local. O saber dominante também destrói as
próprias condições para a existência de alternativas, de forma muito semelhante
à introdução de monoculturas, que destroem as próprias condições de
existência de diversas espécies. (SHIVA, 2003, p. 25)
Através da destruição da diversidade em prol da manutenção de
um sistema exploratório de progresso, o saber dominante cria uma
166
monocultura mental, padronizando o mundo em seus cultivares, alimentos,
e, consequentemente, formas de ser. Como afirma o Boaventura de Souza
Santos (2007, p. 29), quando o saber se constitui como monocultura
“Reduz a realidade porque descredibilizanão somente os conhecimentos
alternativos mas também os povos, os grupos sociais cujas práticas são
construídas nesses conhecimentos alternativos”. Os saberes locais são
entendidos pelo saber dominante como “primitivos”, como erva-daninha
a ser eliminada para que a “civilização” moderna possa agir como
engrenagem do modo de produção explorador. O sistema dominante se
utiliza de políticas de eliminação e não de diálogo com os outros saberes
produzindo insustentabilidade a fim de controlar o consumo das
populações.
Os povos que habitam as florestas são descartados no âmbito do
conhecimento, mas recrutados para o trabalho semiescravo. A eliminação
por veneno ocorre literalmente se considerarmos que muitas comunidades
são vítimas dos aviões que arremessam venenos nas plantações, o que leva
à morte de diversas pessoas, mas também porque as principais vítimas de
doenças graves como câncer decorrentes de lavouras cheias de venenos são
trabalhadores/as sem opções. A eliminação dos saberes locais deixa os povos
nativos sem escolha, pois a devastação ambiental e, principalmente, a
violência, ameaças, genocídio, assassinatos de líderes, entre outros, fazem
com que não tenham como continuar em suas terras e precisem migrar
para as cidades viver de trabalho sub-remunerado nas lavouras dos
proprietários” que invadiram as florestas. Desse modo, a eliminação das
ervas-daninhas e a padronização do que entendemos por cultura são
necessárias para a manutenção do modo de produção capitalista.
Esse modelo monocultural e exploratório leva à destruição dos
ecossistemas florestais, como destaca Shiva (2003, p. 32-33):
167
os princípios correntes da administração florestal científica levam à destruição
do ecossistema das florestas tropicais porque se baseiam no objetivo de modelar
a diversidade da floresta viva à uniformidade da linha de montagem. Em vez
de a sociedade tomar a floresta como modelo, como acontece nas culturas
florestais, é fábrica que serve de modelo à floresta. [...] As florestas tropicais,
quando seu modelo é a fábrica e quando são usadas como uma mina de
madeira, passam a ser um recurso não renovável. Os povos tropicais também
se tornam um lixo histórico descartável. Em lugar do pluralismo cultural e
biológico, a fábrica produz monoculturas sem sustentabilidade na natureza e
na sociedade. Não há lugar para o pequeno; o insignificante não tem valor. [...]
Aqueles que não se ajustam à uniformidade são declarados incompetentes. A
simbiose cede lugar à competição, à dominação e à condição descartável. Não
há sobrevivência possível para a floresta ou seu povo quando eles se
transformam em insumo para a indústria. (SHIVA, 2003, p. 32-33)
Em outras palavras, ao invés da floresta em simbiose servir de
modelo para a sociedade, a uniformidade da linha de montagem das
fábricas que serve de modelo às florestas. Desse modo, a natureza e os povos
que vivem em simbiose com a floresta são vistos como insumo para a
indústria ou como lixo descartável. E quem não se submete a tal
uniformização é entendido como “incompetente” oupreguiçoso, como
vemos nos discursos violentos dirigidos especialmente aos povos
originários no Brasil. O modelo da linha de montagem produz
monoculturas insustentáveis ambientalmente e socialmente.
Antônio Bispo dos Santos traz outra dimensão do pensamento
monocultural e sobre as ervas-daninhas no livroColonização, Quilombos:
modos e significados” (2015), no qual busca “compreender as diferenças e a
interlocução entre a cosmovisão monoteísta dos colonizadores e a
cosmovisão politeísta dos contra colonizadores(SANTOS, 2015, p. 20).
O que Shiva chama de monocultura mental, Santos (2015, p. 94) entende
como o “pensamento monista dos povos colonizadores”. O pensador
168
evidencia que tal pensamento monista é consequência do monoteísmo,
trazendo à tona uma perspectiva sobre o trabalho e as ervas-daninhas que
consideramos muito relevante para a reflexão que estamos fazendo, como
é possível notar no seguinte trecho da Bíblia citado e comentado por
Santos a seguir:
Javé deus disse para o homem: "já que você deu ouvidos à sua mulher e comeu
da árvore cujo fruto eu lhe tinha proibido comer, maldita seja a terra por sua
causa. Enquanto você viver, você dela se alimentará com fadiga. A terra
produzirá para você espinhos e ervas daninhas, e você comerá a erva dos
campos. Você comerá seu pão com o suor do seu rosto até que volte para terra,
pois dela foi tirado, você pó e ao pó voltará". (GÊNESIS 3:17).
Por bem dizer, o Deus da Bíblia inventou o trabalho e o fez como um
instrumento de castigo. Daí entendemos o caráter escravagista de qualquer
sociedade que venha a construir seus valores a partir das igrejas originárias da
Bíblia.
O Deus da Bíblia, ao expedir e executar essa sentença, condenou o seu povo a
penas perpétuas e indefensáveis, portanto, precisamos analisar essa leitura com
certo detalhamento. Senão vejamos: ao amaldiçoar a terra e determinar uma
relação fatigante entre o seu povo e a terra, classificando os frutos da terra como
espinhos e ervas daninhas e impondo aos condenados que não comam de tais
frutos, só podendo comer das ervas por eles produzidas no campo com o suor
do seu próprio corpo, o Deus da Bíblia além de desterritorializar o seu povo,
também os aterrorizou de tal forma que não será nenhum exagero dizer que
nesse momento ele inventou o terror psicológico que vamos chamar aqui de
cosmofobia.
E como se não bastasse o terror psicológico, a invenção do trabalho como
castigo e o amaldiçoamento dos frutos da terra, os versículos [...] também
comprovam o uso dos textos bíblicos como fundamento ideológico para a
tragédia da escravidão. (SANTOS, 2015, p. 31)
169
Em sua análise, Santos traz vários elementos da ontologia
hegemônica nesses poucos parágrafos. Primeiramente, percebemos a
criação do trabalho como castigo pelo pecado original e,
consequentemente, como justificativa da escravidão. Para mostrar a
diferença de concepção entre o trabalho na perspectiva monoteística dos
povos colonizadores e na perspectiva politeísta dos povos contra
colonizadores, chamados por ele de afro-pindorâmicos como forma de
romper com as categorizações soterradoras do pensamento dominante,
Santos destaca:
como podemos interpretar nesta leitura bíblica, o trabalho (castigo) foi criado
pelo Deus dos cristãos para castigar o pecado, portanto, o seu produto
dificilmente servirá ao seu produtor que, por não ver o seu Deus de forma
materializada, muitas vezes se submete a outro senhor que desempenha o papel
de coordenador do trabalho (castigo). Talvez por isso nas religiões de matriz
afro-pindorâmicas a terra, ao invés de ser amaldiçoada, é uma Deusa e as ervas
não são daninhas. Como não existe o pecado, o que há é uma força vital que
integra todas as coisas. As pessoas, ao invés de trabalhar, interagem com a
natureza e o resultado dessa interação, por advir de relações com deusas e
deuses materializados em elementos do universo, se concretizam em condições
de vida. (SANTOS, 2015, p. 40-41)
Santos destaca a autonomia e organização dos povos contra
colonizadores de Canudos, Caldeirões, Pau de Colher e Palmares. Quando
mais autônomos tais grupos se tornavam, maior a investida violenta dos
governos em destruí-los. Isto fica evidente por “os colonizadores não se
contentaram com o aniquilamento do povo e o desmantelamento da
organização [...] ateando fogo em tudo aquilo que poderia simbolizar ou
significar os seus modos de vida” (SANTOS, 2015, p. 64). A destruição
das plantações e produções dos contra colonizadores, mostra como os
170
colonizadores e seus governos se sentiam “ameaçados pela força e sabedoria
da cosmovisão politeísta na elaboração dos saberes que organizam as
diversas formas de vida e de resistência dessas comunidades, expressas na
sua relação com os elementos da natureza que fortalece essas populações
no embate contra a colonização(SANTOS, 2015, p. 65). Ele lembra que:
os colonizadores, segundo podemos interpretar em GENESIS, foram
desterritorializados ao ouvir do seu Deus que as ervas eram espinhosas e
daninhas, que para se alimentarem tinham que comer do suor do próprio
corpo, ou seja, transformar os elementos da natureza em produtos
manufaturados e/ou sintéticos. Foi nesse exato momento que se configurou a
desterritorialização e a desnaturalização do povo cristão monoteísta, fazendo
com que esses só se sentissem autorizados pelo seu Deus a fazer uso dos
produtos das suas artificialidades. Isso fez com que esse povo
desterritorializado, antinatural, eternamente castigado e aterrorizado pelo seu
Deus, sentisse a necessidade de se reterritorializar em um território sintético.
Para tanto, se espraiaram pelo mundo afora com o intuito de invadir os
territórios dos povos pagãos politeístas e descaracterizá-los através dos
processos de manufaturamento, para a satisfação das suas artificialidades.
(SANTOS, 2015, p. 96)
A danação do mundo pelo pecado original é uma
desterritorialização dos cristãos, pois ao mesmo tempo que incentiva a
manufaturação da natureza, autoriza a destruição de outras formas de vida.
O pensador nos traz o exemplo da Bula Romanus Pontifex do Papa
Nicolau V, de 08 de janeiro de 1455, na qual os cristãos são autorizados a
fazerem o que quiserem com os povos pagãos, indicando invadir, perseguir,
capturar, submeter à escravidão perpétua e roubar seus reinos e
propriedades. Assim, a ontologia monocultural é monoteísta.
171
A monocultura da mente e do solo são as principais produtoras da
catástrofe ecológica que nos aproxima do fim do mundo através de suas
políticas de eliminação da diversidade. A partir de uma perspectiva única
propagada na forma de uma cultura superior, gera um desejo de consumo
único, que demanda um modo de produção único que explora a natureza
e os trabalhadores. Podemos dizer, então, que a monocultura da mente e do
solo é produtora do fim do mundo, pois a uniformidade que impõe, leva
ao esgotamento ambiental e da vida como um todo.
O resultado da ontologia capitalista nos obriga a refletir sobre a
possibilidade de permanência da humanidade no planeta. Pesquisadores
apontam que os níveis alarmantes do aquecimento global já se encontram
quase irreversíveis, o que exige ações imediatas. Porém, o que vemos é o
aumento da exploração ambiental e humana. Assim como esse sistema
exploratório não afeta as classes dominantes, o fim do mundo também
afetará a população em diferentes níveis. Como ressalta Ailton Krenak
(2020a, n.p.) em entrevista,
podemos dizer que a canoa pode afundar, mas tem uma parte que está
blindada, pensa que está ou pelo menos vai lutar para continuar assim. [...] há
uma boa parte da população planetária que está vulnerável, do ponto de vista
de todas as relações institucionais, os que as torna as vítimas em potencial de
uma catástrofe ambiental ou política. (KRENAK, 2020a, n.p.)
O capitalismo é um sistema mundial no qual a riqueza e ótimas
condições de vida de alguns depende da exploração da vida e territórios de
outros. Basta analisar que embora países como o Brasil tenham em seu
território grande parte da riqueza mundial no que diz respeito à água,
pedras preciosas e condições e espaço para produção de alimentos; isso não
172
se reverte nas condições de vida da população local, recaindo nas mãos dos
mesmos grupos sociais há séculos. Grande parte dessa riqueza é usufruída
em território europeu ou dos bilionários que são os donos das empresas
que exploram e devastam o território brasileiro, por isso uma enorme
parcela da população não tem acesso à moradia, água potável, saneamento
básico e nem alimentação segura. Além do que, é importante lembrar que
o interesse comercial tem no princípio da escassez sua principal fonte de
lucro, pois “numa sociedade que tudo mercantiliza, um bem só tem valor
econômico se é escasso (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 67). Crises e
guerras fazem parte da lógica capitalista. A catástrofe ecológica se expressa
na forma de muitas guerras por territórios contra outros povos e seres, a
crise climática é apenas uma faceta dessa guerra ecológica.
Com a crise climática decorrente de um modelo de civilização
monocultural que se impõe universalmente, a situação se agravará
atingindo desigualmente alguns territórios. O Conselho de Direitos
Humanos da ONU divulgou em junho de 2019 um documento, escrito
pelo relator especial sobre pobreza extrema e direitos humanos Philip
Alston, alertando para as preocupações urgentes com o apartheid climático.
Segundo o relatório, os países pobres e as comunidades em situação de
vulnerabilidade social serão os mais afetados. Estima-se que a 2030, 120
milhões de pessoas serão empurradas para a condição de pobreza e que
cerca de 140 milhões perderão suas casas nos países em desenvolvimento
até 2050. Ainda que os países mais pobres sejam responsáveis pela menor
parcela das emissões de gases poluentes cerca de 10% serão os
principais afetados pela crise climática tendo que suportar, segundo o
relatório, cerca de 75% dos custos gerados por ela. Além disso, também
serão os que mais sofrerão com o impacto, pois:
173
os desequilíbrios causados pelo sobreaquecimento global recaem
principalmente sobre os habitantes dos países mais pobres, enquanto os ricos
poderão se permitir evitar as piores consequências da emergência climática,
uma grande parte da população do planeta corre o risco de perder não apenas
os direitos de base à vida, a água, à alimentação e à moradia, mas também
conquistas como a democracia ou o respeito dos direitos civis e políticos.
Enquanto os países mais ricos, neste cenário de "apartheid climático" graças
aos seus recursos financeiros "conseguirão realizar os ajustes necessários para
enfrentar temperaturas cada vez mais extremas". E se isso acontecer, "os
direitos humanos não serão capazes de resistir à tempestade que se aproxima".
(GIOVANNINI, 2019, n.p)
Mesmo no melhor cenário hipotético possível, no qual a
temperatura global subirá apenas 1,5° C até 2100, grande parte da
população será obrigada a migrar por causa da fome e dos conflitos
decorrentes dela. A pandemia do COVID-19 nos deu uma amostra de
como ricos e pobres têm condições completamente diversas de se
protegerem de condições sociais catastróficas. Enquanto a população rica
conseguiu realizar o isolamento necessário, tendo garantido seus direitos
trabalhistas através do home office, podendo pagar pela alta dos preços dos
alimentos, tendo acesso à água e álcool gel para a higienização necessária,
e, mesmo quando doentes, tiverem seu tratamento garantido através de
planos de saúde, leitos de UTI mais da metade dos leitos no Brasil estão
no sistema privado e máquinas respiradoras em hospitais privados; os
mais pobres foram demitidos em massa por seus empregadores ou
continuaram nas ruas trabalhando informalmente a fim de manter a
sobrevivência, além de não terem estrutura para isolar os infectados de sua
família, uma vez que grande parte da população divide poucos cômodos
em casa. No Brasil, muitos/as/es tiveram que continuar trabalhando
mesmo quando seus empregadores/as estavam infectados com o vírus, o
174
que levou à morte de diversas pessoas. Ficou evidente que o principal
motivo das mortes foi a falta de equipamentos para todos/as/es, o que levou
os médicos em muitos países a terem que escolher quem salvariam, e a
desigualdade de condições de cumprimento da quarentena e das condições
de higiene.
Como apontou o relatório supracitado, em um contexto de crise
climática, a democracia é posta em risco e há retrocesso das conquistas
relacionadas aos direitos humanos e civis como podemos observar no
Brasil, sendo estabelecido um estado de exceção baseado em uma suposta
crise econômica retirando direitos fundamentais a fim de “salvar o
mercado”. Para governos desse tipo, até mesmo a pandemia se torna
prioritariamente um problema econômico, deixando de lado a vida de
grande parte da população, com interesses explícitos de eliminação dos
mais pobres vistos como ervas-daninhas para o desenvolvimento.
O critério racial também está no cerne das políticas de gestão
ambiental, nas quais os mesmos grupos sociais que foram explorados
durante o colonialismo continuam restritos às piores condições. Benjamin
Franklin Chavis Jr. cunhou em 1981 o conceito de “racismo ambiental”
definindo-o como:
a discriminação racial no direcionamento deliberado de comunidades étnicas
e minoritárias para exposição a locais e instalações de resíduos tóxicos e
perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias na formulação,
aplicação e remediação de políticas ambientais. (RIBEIRO, 2019, n.p.)
O impacto da crise ambiental se manifesta especialmente para
alguns grupos sociais porque há uma seletividade dos territórios a serem
175
explorados a partir da exclusão social e da ausência de direitos para os
grupos oprimidos. Como segurança e saúde só são garantidos para as
classes dominantes, impedir queimadas, derrubadas de árvores, despejo de
rejeitos tóxicos em seus territórios e a poluição do solo, da água e do ar de
onde vivem são tarefas difíceis. Além do que a elite tem condições de
comprar os melhores terrenos longe de qualquer risco de rompimento de
barragens ou poluição ambiental. A devastação dos ambientes leva à
improdutividade dos solos e causa a migração forçada das populações
nativas em busca da sobrevivência. Assim, as pessoas são obrigadas a se
separarem de seus territórios e a abandonarem seus modos de vida para
migrarem para as periferias das cidades, onde provavelmente trabalharão
em empregos tóxicos e exploratórios.
Além disso, como ressalta Ribeiro acima, os grupos sociais que
habitam os territórios com interesses de exploração são excluídos dos
processos de elaboração e aplicação das políticas ambientais. Antonio
Bispo dos Santos (2015) compara a Carta de Pero Vaz de Caminha com os
Estudos de impacto Ambiental (EIA/RIMAS) dos mega projetos de
desenvolvimento atuais, destacando que prefere chamá-los de projetos de
expropriamento por serem utilizados como “instrumentos ideológicos de
promoção e recolonização(2015, p. 71-72). Isto porque “esses estudos
são descritos em linguagens bem diferentes das nossas, com o propósito
deliberado de nos excluir dos processos de discussão e de tomada das
decisões, quando não buscam nos iludir com falsas promessas de melhorias
de vida” (SANTOS, 2015, p. 71-72). Neste contexto, corpos e palavras
são soterradas. Nesse sentido, Santos (2015, p. 97) afirma que é preciso
superar o caráter autoritário do atual Estado Democrático de Direito, por meio
da participação plena de todos os envolvidos nos processos de transformação
176
da natureza e das condições de vida da população, para que toda e qualquer
proposta de mudança seja sempre exaustivamente debatida, respeitando-se as
mais diversas formas de linguagem e comunicação. (SANTOS, 2015, p. 97)
Nesse sentido, seria interessante compreender o produzido no
território também como pertencente aos grupos afetados e que as
consequências desastrosas dos projetos executados fossem arcadas pelas
empresas proponentes.
O agravamento da crise ambiental tem, como resultado, o
apartheid climático porque os países com maior recursos poderão
desenvolver tecnologias e formas de lidar com a escassez, além dos ricos
terem condições de pagar por territórios com menor impacto ambiental
vale lembrar que alguns estão investindo na possibilidade de vida em
outros planetas , levando à expulsão dos nativos dessas regiões e através
da migração aumentando o número de refugiados climáticos. Como
destaca Ribeiro (2019, n.p.):
Conseguir asilo será mais difícil para aqueles que já são “marcados” (já vemos
isso acontecendo na Europa em relação a africanos e árabes). Pela ausência de
recursos, não teremos chance de escolher como e onde viver, seremos expulsos
de nossas terras caso elas se tornem mais interessantes para quem tem mais
dinheiro. Populações serão extintas. Ao pensar em mulheres, já se sabe que em
catástrofes ambientais, elas são afetadas de forma diferente: se tornam alvos
mais vulneráveis para violência sexual e tem seu fazer mais afetado, já que
muitas são camponesas, assim como negros, pobres, indígenas, asiáticos e
latinos. (RIBEIRO, 2019, n.p.)
Não por acaso o discurso anti-imigração tem crescido muito nos
últimos tempos, a ampliação de muros, de fronteiras e do ódio ao diferente
177
faz parte de uma estratégia de exploração e racismo ambiental. Territórios
como o Brasil que sempre foram de enorme interesse para a exploração e
acumulação de riquezas, serão impedidos de migrar para os países com
temperatura mais amena.
Nossa percepção do mundo se tornou tão monocultural que, como
afirma Fredric Jameson, é mais fácil de imaginar o fim do mundo do que
o fim do capitalismo. Essa ontologia capitalista transforma a humanidade,
a cultura e a natureza em elementos da engrenagem capitalista: “O modo
de vida ocidental formatou o mundo como uma mercadoria” (KRENAK,
2020b, p. 100-101). A mercantilização do ser resulta em uma
invisibilização da diversidade, reduzindo ao entendimento da humanidade
como capital humano, da cultura como capital cultural e da natureza como
capital natural. O “fundamento “ontológico” do consumo capitalista foi a
conversão das coisas do mundo em recursos” (NODARI, 2014, p. 5), de
maneira que todas as dimensões do ser só valem na medida em que
movimentam o sistema. Não à toa, as instituições de ensino estão cada
mais próximas da concepção de empresa, visando a formar capital humano¸
isto é, “espécies de competência-máquina que vão produzir renda, ou
melhor, que vão ser remuneradas por renda” (FOUCAULT, 2008, p. 315).
No contexto contemporâneo, no qual a empresa tem se estendido a todos
os domínios da vida, o indivíduo se torna empreendedor de si mesmo e deve
investir de diversas maneiras em se tornar o mais rentável possível
obedecendo ao imperativo da eficiência da ontologia capitalista. Diante
disso, podemos entender as grandes corporações da educação, como
plantations que articulam todos os aspectos da ontologia hegemônica
através de mega projetos de suposto desenvolvimento dos índices na área.
A monocultura mental se baseia na imposição de uma forma
unilateral de entender e agir no mundo, levando a um empobrecimento
178
tanto intelectual quanto da natureza no que diz respeito à diversidade e
autonomia dos sujeitos, e, consequentemente, à eliminação da
humanidade como resultado do esgotamento da natureza. Compreender a
cultura de maneira restrita ao modo de vida europeu é empobrecedor da
nossa compreensão da realidade. O imaginário comum que temos de
cultura” tem origem iluminista e corresponde ao processo de instrução
resultante da soma de saberes acumulados e de origem europeia. Nesse
sentido, o não europeu é o “sem cultura” que deve ser instruído pelos
homens “civilizados, autodeclarados o auge do desenvolvimento humano,
para sair das trevas da irracionalidade. Essa é uma visão restrita de cultura,
pois a entende de maneira fragmentada da vida a partir de uma única
perspectiva, resumindo-se à cultura dos colonizadores.
Contudo,A diversidade, biológica e social, se amontoa
defensivamente em margens despercebidas” (TSING, 2015, p. 193). Por isso,
os pequenos agricultores convivem com uma diversidade biológica muito
maior do que os grandes latifundiários, as ervas-daninhas não cansam de se
adaptar e proliferar nas monoculturas e os saberes locais também não
param de se reinventar e produzir novas formas de saber e resistência.
Mignolo (2017, p. 13) aponta a necessidade de descolonialização da
cultura como um tratado político que se pretende ser “um mundo em que
muitos mundos coexistirão”. Até porque nada menos racional,
finalmente, do que a afirmação de que a visão de mundo específica de um
determinado grupo étnico seja imposta como racionalidade universal,
embora esse grupo étnico seja chamado de Europa Ocidental”
(QUIJANO, 1992, p. 19-20). A própria ontologia dominante é também
um saber local baseado em uma determinada cultura, classe social e gênero.
A monocultura da mente, que faz parte do modelo de ensino
dominante, fomenta uma ontologia capitalista na qual o ser é definido por
179
sua utilidade para o sistema econômico. O estabelecimento de uma
perspectiva única de mundo mantém os interesses únicos sobre ele. Nesse
sentido, o que é visto como superior e universal pela história oficial é
resultado de uma política de controle e eliminação baseada em interesses
econômicos que destrói as possibilidades de outros modos de vida
existirem.
A monocultura dos currículos das plantations da educação é um
dispositivo de silenciamento e segregação que fomenta a ontologia
capitalista e seus interesses. A partir de uma perspectiva unilateral de
mundo se mantém as práticas únicas de poder, trabalho, consumo, relações
sociais, e, em consequência, a destruição do planeta em que vivemos. Para
compreender como a concepção de saber hegemônica é uma herança da
filosofia ocidental, em nossa próxima seção apontaremos as raízes
logocêntricas da ontologia hegemônica e suas consequências.
2.5 Rzes logocêntricas: a “alucinação narcisista”
O modelo de ensino de filosofia que é hegemônico no Brasil
fomenta uma filosofia distante da experiência, abstrata e universalista. Tal
modelo tem suas raízes na tradição ocidental e sua relação com uma
perspectiva sobre a conhecimento, produzindo uma compreensão do ser
humano que é logocêntrica. No entanto, o que é definido como razão pelo
pensamento hegemônico ocidental é uma maneira específica de produzir
conhecimento, que tem sua origem na Europa. Como conta a história
oficial do pensamento ocidental, o logos é uma criação da antiguidade
grega. Assim, a filosofia “entendida como aspiração ao conhecimento
racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e
180
causas do mundo e de suas transformações, da origem e causas das ações
humanas e do próprio pensamento, é um fato tipicamente grego
(CHAUÍ, 1997, p. 20). Tal compreensão de razão, essencial para a
filosofia, é vista como uma exclusividade europeia, garantindo a invenção
de sua superioridade. Considerando que amesmo o que chamamos por
“Grécia antiga” é controverso, haja vista que a maioria dos grandes filósofos
desse período viviam ou foram formados por tradições do pensamento
originárias de territórios diversos da atual Grécia e até mesmo do que é
denominado “Europa”.
A filosofia, enquanto uma aspiração ao conhecimento racional da
realidade, emerge na antiguidade grega ancorada em uma pretensão de
generalidade, por isso, o objeto da filosofia grega são conhecimentos
universalizantes sobre os diversos temas. Isto fica evidente com a relação
intrínseca entre a filosofia ocidental e uma determinada tradição
metafísica. Para os mais importantes filósofos gregos, a metafísica
corresponde à filosofia fundante de todo o conhecimento. A metafísica
consiste na busca pelo “alicerce seguro do edifício do conhecimento como
diria posteriormente Descartes (1596-1650) em suas Meditações
Metafísicas.
A obra de Aristóteles é essencial para o desenvolvimento do que
chamamos hoje de metafísica. O termo utilizado por Aristóteles nos
escritos, que não é a palavra “metafísica” que lhe foi atribuída como título
posteriormente devido a seu objeto de estudo, é justamente “Filosofia
Primeira” (prote philosophia). O termo “metafísica” tem origem no grego ta
meta ta fysika (as coisas “para além/depois” das coisas físicas). A palavra
meta se trata de uma proposição que pode ser entendida em referência ao
processo do conhecimento, é o de “depois de” como posição de estudo da
natureza, pois aqui se parte do imediato (física) para o mais distante de
181
nossos sentidos que são os princípios e causas. Essa expressão também diz
respeito ao objeto da metafísica, isto é, as coisas não físicas; se trata do
termo aplicado no sentido de “para além de” como disciplina que trata do
que está além das coisas físicas. Este último sentido aqui estabelecido é o
de maior presença na filosofia ocidental.
Na perspectiva grega, os universais são entendidos como o próprio
conhecimento, pois é o processo de generalização que permite com que
algo seja válido e não a experiência sensível por si. A partir de múltiplas
experiências similares com repetição de resultados, extrai-se um jzo
universalizante. Nesta perspectiva, a experiência não é conhecimento já
que é possível agir de maneira mecânica habituado aos casos particulares,
de maneira que sem a criação dos universais só há apreensão de objetos e
não o reconhecimento.
A metafísica se distingue das outras disciplinas justamente por
tratar do ser em seu âmbito mais geral e não de partes dele, isto é, de seres
particulares. E, desse modo, ao conhecer as causas e princípios do ser se
encontra um fundamento último de tudo que é pasvel de conhecimento.
Para Aristóteles, para conhecer algo sobre o mundo é preciso buscar uma
certa identidade, pois para ele da multiplicidade de diferenças não é
possível ter conhecimento, haja vista que nenhuma regra ou padrão pode
ser extraído, de um objeto visto desse modo não se pode fazer qualquer
tipo de previsão.
O modelo de construção de conhecimento proposto por
pensadores gregos em perspectiva metafísica fez com que a filosofia
hegemônica fosse essencialmente baseada numa racionalidade
universalizante e abstrata, adquirindo um caráter transcendental, separada
da experiência cotidiana, distante da singularidade. Para uma percepção de
182
mundo supostamente legítima e universal, era preciso priorizar a razão, e
não a experiência corpórea, na obtenção de conhecimento. A busca pelo
maior grau de generalidade e universalidade implica em uma ontologia
logocêntrica, na qual a essência do homem está intrinsecamente
relacionada à racionalidade.
Diante disso, podemos dizer, especialmente a partir de Descartes,
que nesta perspectiva hegemônica ocidental, “toda filosofia é como uma
árvore” cujas raízes são metafísicas. O pensamento hegemônico no
Ocidente e, consequentemente, a filosofia hegemônica ocidental
consistem num pensamento hierárquico, tal como elaborado por Descartes
com suaárvore do conhecimento”. A árvore do conhecimento cartesiana
talvez seja a mais influente representação dessa ontologia hierárquica. Em
“Princípios da Filosofia (1644) como resposta à ascensão de um novo modo
de lidar com os problemas que vinha sendo desenvolvido por pesquisadores
como Galileu e Kepler, Descartes repensa que papel deveria ter a filosofia:
toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são formadas pela metafísica, o
tronco pela física e os ramos que saem deste tronco, constituem todas as outras
ciências que, ao cabo, se reduzem a três principais: a medicina, a mecânica e a
moral, entendendo eu por moral a mais elevada e mais perfeita, a que,
pressupondo inteiro conhecimento das outras ciências, vem a ser o último grau
da sabedoria. (DESCARTES, 1989, p. 42)
Na perspectiva cartesiana, o conhecimento pode ser representado
pelo modelo da árvore de maneira que a base de todo saber se alicerçaria
na metafísica dando importante papel para a filosofia. A física que era a
ciência de maior destaque neste cenário, representada pelo tronco, seria
derivada da metafísica, e, portanto, da filosofia; e as demais ciências como
183
a medicina e a mecânica seriam os ramos, dentre os quais a moral receberia
especial atenção. A árvore do conhecimento cartesiana é resultado de uma
busca incessante do filósofo em estabelecer primordialmente um alicerce
seguro para o edifício do conhecimento buscando princípios indubitáveis para
o saber, e, também, de estabelecer uma utilidade para a filosofia nesse
contexto. Nesse sentido, Descartes propõe um modelo hierárquico e
abstrato para o conhecimento que tem implicações profundas na
compreensão da diversidade de saberes impedindo que enxerguemos o que
há para além da árvore e a própria pluralidade que a compõe. Além de
estipular a metafísica como um ideal de conhecimento fomentando a
desconexão do saber com a experiência cotidiana. Quando consideramos
o cogito cartesiano, vemos que até mesmo a existência humana é afirmada
através de uma relação metafísica que fragmenta corpo res extensa e
substância pensante res cogitans –.
O dualismo cartesiano teve um papel essencial na ontologia
hegemônica, como explica Quijano (2005, p. 129):
com Descartes o que sucede é a mutação da antiga abordagem dualista sobre o
corpo” e o “não-corpo”. O que era uma co-presença permanente de ambos os
elementos em cada etapa do ser humano, em Descartes se converte numa
radical separação entre “razão/sujeito” e “corpo”. A razão não é somente uma
secularização da idéia de “alma” no sentido teológico, mas uma mutação numa
nova id-entidade, a “razão/sujeito”, a única entidade capaz de conhecimento
racional”, em relação à qual o “corpo” é e não pode ser outra coisa além de
objeto” de conhecimento. Desse ponto de vista o ser humano é, por
excelência, um ser dotado de “razão”, e esse dom se concebe como localizado
exclusivamente na alma. Assim o “corpo”, por definição incapaz de raciocinar,
não tem nada a ver com a razão/sujeito. Produzida essa separação radical entre
razão/sujeito” e “corpo”, as relações entre ambos devem ser vistas unicamente
como relações entre a razão/sujeito humana e o corpo/natureza humana, ou
entre “espírito” e “natureza”. Deste modo, na racionalidade eurocêntrica o
184
corpo” foi fixado como “objeto” de conhecimento, fora do entorno do
sujeito/razão”. (QUIJANO, 2005, p. 129)
Com o trabalho de Descartes, há a afirmação de uma nova id-
entidade na qual razão e sujeito se tornam indissociáveis, delegando o corpo
ao universo da natureza. Desse modo, o corpo só pode ser objeto de
conhecimento, pois é caracterizado como irracional devido aos impulsos e
instintos. A filosofia cartesiana foi decisiva na história para afirmar a
inferioridade do corpo na obtenção do conhecimento. Para ele, as paixões
têm o poder de iludir a “alma” com enganações ou ilusões e, por isso, o
intelecto seria uma entidade superior que teria o poder de controlar as
paixões e, inclusive, é o “Cogito, ergo sum que permite a afirmação da
existência humana de maneira segura. Embora a diferenciação entre corpo
e não corpo esteja presente desde muito tempo, apenas com o surgimento
do eurocentrismo esta vai ser delineada como separação, sem a ideia de
copresença que aparecia em outros períodos ou culturas.
A grande inovação que o eurocentrismo acrescentou ao dualismo
foi tornar o corpo um objeto do conhecimento, fora da id-entidade
razão/sujeito. Como destaca Quijano (2005, p. 129):
sem essa “objetivização” do “corpo” como “natureza”, de sua expulsão do
âmbito do “espírito”, dificilmente teria sido possível tentar a teorização
científica” do problema da raça, como foi o caso do Conde de Gobineau
(1853-1857) durante o século XIX. Dessa perspectiva eurocêntrica, certas raças
são condenadas como “inferiores por não serem sujeitos “racionais”. São
objetos de estudo, “corpo” em conseqüência, mais próximos danatureza”. Em
certo sentido, isto os converte em domináveis e exploráveis. De acordo com o
mito do estado de natureza e da cadeia do processo civilizatório que culmina
na civilização européia, algumas raças negros (ou africanos), índios, oliváceos,
185
amarelos (ou asiáticos) e nessa sequência estão mais próximas da “natureza
que os brancos. (QUIJANO, 2005, p. 129)
A fragmentação corpo/razão ou natureza/cultura fez com que
alguns povos que, diferentemente dos europeus não tinham como prática
a inferiorização de suas experiências, tivessem suas vidas reduzidas a objetos
de exploração europeia. Tal relação serviu de justificativa para o controle
de povos entendidos como “irracionais, ou seja, excluídos do âmbito do
sujeito, já que nessa perspectiva o conhecimento se torna algo de uma
entidade racional superior e metafísica, descolando-se das experiências
cotidianas. Quando mais um povo cultiva saberes corporais e ligados à
experiência, mais é visto como inferior nesta lógica, ignorando que o
conhecimento não se produz fora das experiências vividas e que a
teorização abstrata não é a única forma de saber que existe. Povos
ameríndios e africanos que tinham uma compreensão mais ampla e não
dicotômica de sujeito, foram considerados “inferiores” principalmente por
sua ligação intrínseca com o corpo, que entendido como restrito aos
impulsos deveria ser controlado e reprimido pela razão, id-entidade
superior do homem.
Dessa maneira, povos de relevantes culturas das Américas foram
convertidos em subculturas apenas por não possuírem padrões de
expressão formalizados de acordo com os padrões ocidentais dominantes
de racionalidade, como se não tivessem algum modo de se expressar. Por
isso, foi necessário “subvertê-los em certos casos, para transmitir outras
necessidades de expressão” (QUIJANO, 1992, p. 13, tradução nossa), além
de delineá-los como “exóticos” para deslegitimar-lhes no âmbito do
saber/poder. Nesse sentido, o dualismo eurocêntrico colabora para uma
visão restrita de natureza, corpo, humanidade e conhecimento.
186
Se durante o início da invasão das Américas os debates filosóficos
na Europa giravam em torno de investigar se os ameríndios tinham alma,
o que garantiria seu tratamento humanizado e afastaria de uma suposta
condição bestial que os excluía de qualquer lei divina ou terrena de
proteção, com a secularização burguesa moderna do dualismo
eurocêntrico, o debate ganhou outra perspectiva:
só a cultura européia é racional, pode conter "sujeitos". Os outros não são
racionais. Eles não podem ser ou abrigar "sujeitos". Consequentemente, outras
culturas são diferentes no sentido de serem desiguais, de fato inferiores, por
natureza. Eles só podem ser "objetos" de práticas de conhecimento e/ou
dominação. Nesta perspectiva, a relação entre a cultura europeia e outras
culturas foi estabelecida e desde então tem sido mantida como uma relação
entre "sujeito" e "objeto". (QUIJANO, 1992, p. 16, tradução nossa)
Se a racionalidade eurocêntrica é entendida como universal, quem
não a reproduz não pode ser considerado portador de razão alguma. Logo,
não é sujeito, portanto, não tem humanidade. A partir da id-entidade
razão/sujeito, a perspectiva hegemônica estabelece que a zona colonial é o
universo das crenças e dos comportamentos incompreensíveis que não são
verdadeiros ou falsos, isto é, não podem ser considerados conhecimento
válido”. Os comportamentos dos não europeus servem somente como
objeto de análise científica porque, neste contexto, o não europeu é visto
como um sub-humano que necessita ser civilizado. Só é reconhecido como
sujeito aquele que corresponde ao restrito ideal europeu. A partir do
entendimento do outro como inferior e autodeterminação de uma vocação
civilizadora e moderna, o europeu também estipula o outro como coisa,
ignora seus sentimentos, sua racionalidade própria, de maneira que a vida
do outro só cabe enquanto serve ao ideal de humanidade desenvolvida.
187
Podemos entender as consequências do logocentrismo europeu a
partir da experiência de Antônio Bispo dos Santos e Russell Means. Santos
(2015, p. 38-39), ao comparar o povo eurocristão monoteísta e os povos
pagãos politeístas, aponta uma faceta do papel da abstração em mecanismos
de dominação.
O povo eurocristão monoteísta, por ter um Deus onipotente, onisciente e
onipresente, portanto único, inatingível, desterritorializado, acima de tudo e
de todos, tende a se organizar de maneira exclusivista, vertical e/ou linear. Isso
pelo fato de ao tentarem ver o seu Deus, olharem apenas em uma única direção.
Por esse Deus ser masculino, também tendem a desenvolver sociedades mais
homogêneas e patriarcais. Como acreditam em um Deus que não pode ser
visto materialmente, se apegam muito em monismos objetivos e abstratos.
Quanto aos povos pagãos politeístas que cultuam várias deusas e deuses
pluripotentes, pluricientes e pluripresentes, materializados através dos
elementos da natureza que formam o universo, é dizer, por terem deusas e
deuses territorializados, tendem a se organizar de forma circular e/ou
horizontal, porque conseguem olhar para as suas deusas e deuses em todas as
direções. Por terem deusas e deuses tendem a construir comunidades
heterogêneas, onde o matriarcado e/ou patriarcado se desenvolvem de acordo
com os contextos históricos. Por verem as suas deusas e deuses até em
elementos da natureza como, por exemplo, a água, a terra, o fogo outros
elementos que formam o universo, apegam-se a plurismos subjetivos e
concretos. (SANTOS, 2015, p. 38-39)
No sentido trazido por Santos, o monoteísmo devido a seu caráter
abstrato fomenta uma percepção do mundo patriarcal e hierárquica. Ao
contrário, a materialidade e concretude das várias deusas e deuses dos povos
politeístas, descritos no plural devido a seus elementos pluripotentes,
pluricientes e pluripresentes, através de sua expressão em elementos
188
cósmicos fazem emergir uma organização social e política circular,
horizontal, plural.
No mesmo sentido, Russell Means (2020, p. 2), ao falar sobre a
importância da tradição oral em seu povo, afirma que “Este é um dos
modos de o homem branco destruir as culturas de povos não-europeus:
impor uma abstração sobre as relações que são estabelecidas na fala”. Means
(2020, p. 04) traz alguns exemplos para expressar o que está dizendo:
Newton, por exemplo, “revolucionou” a física e as chamadas ciências naturais,
reduzindo o universo físico a uma equação matemática linear. Descartes fez o
mesmo com a cultura. John Locke o fez com a política e Adam Smith com a
economia. Cada um desses “pensadores” pegou uma fatia do sagrado da
existência humana e o converteu em código, em uma abstração. Partiram
justamente de onde o cristianismo parou: “secularizaram” a religião cristã,
como os “eruditos” gostam de dizer e, ao fazê-lo, tornaram a Europa mais
capaz e pronta para agir como uma cultura expansionista. Cada uma dessas
revoluções intelectuais serviu para abstrair ainda mais a mentalidade europeia,
remover a maravilhosa complexidade e santidade do universo e substituí-la por
uma sequência lógica: um, dois, três. Responda! Isto é o que veio a ser
denominado “eficiência” na mente europeia. O que quer que seja mecânico é
perfeito. (MEANS, 2020, p. 04)
A abstração, como uma maneira de transformar em código o
sagrado e a complexidade do mundo, funciona como forma de dominação.
Means compara a tradição materialista europeia de desespiritualizar o
universo ao processo mental de desumanização de pessoas que torna
aceitável o assassinato e destruição dos povos, citando como exemplo os
soldados em combate, o Holocausto, a ação das polícias e o papel das
corporações na exploração do trabalho em minas de urânio e aço.
189
Um dos mandamentos cristãos diz: “Não matarás”, pelo menos não os huma-
nos, então o truque é converter mentalmente as vítimas em não-humanos.
Assim vocês podem proclamar a violação de seu próprio mandamento como
uma virtude. Em termos de uma desespiritualização do universo, o processo
mental funciona de forma a tornar virtude destruir o planeta. [...] seus filósofos
desespiritualizaram a realidade, de modo que não há satisfação (para eles) em
simplesmente observar a maravilha que é uma montanha, um lago ou um ser
humano. Não, a satisfação é mensurada em termos de ganho material. Assim,
a montanha se torna cascalho, e o lago se torna refrigerador para uma empresa,
e as pessoas são formatadas para serem transformadas por meio de fábricas de
doutrinação que os europeus gostam de chamar de escolas. (MEANS, 2020, p.
5-6)
A escola que fomenta a destruição das diferenças caminha no
sentido da abstração do mundo, afastando os sujeitos de suas experiências
para produzir uma visão única acerca da realidade.
Um exemplo dos erros que o logocentrismo provoca pode ser
encontrado na seguinte citação de Hume (1711-1776):
eu estou em condições de suspeitar serem os negros naturalmente inferiores aos
brancos. Praticamente não houve nações civilizadas de tal compleição, nem
mesmo qualquer indivíduo de destaque, seja em ações seja em investigação
teórica. [...] Tal diferença uniforme e constante não poderia ocorrer, em tantos
países e épocas, se a natureza não tivesse feito uma distinção original entre essas
raças de homens. Sem citar as nossas colônias, há escravos negros dispersos por
toda a Europa, dos quais ninguém alguma vez descobriu quaisquer sinais de
criatividade, embora pessoas de baixa condição, sem educação, venham a
progredir entre nós, e destaquem-se em cada profissão. Na Jamaica, realmente,
falam de um negro de posição e estudo, mas provavelmente ele é admirado por
realização muito limitada como um papagaio, que fala umas poucas palavras
claramente (HUME, 2004, p. 252).
190
Hume afirma que pessoas negras são inferiores devido a uma
diferença de natureza com relação aos brancos porque ele não conhece
nenhum indivíduo negro de destaque, e aquele único de quem ouviu falar
jamaicano deve ser um “papagaio” limitado que não tem consciência
do que fala. O autor desconsidera que povos que foram escravizados não
m as mesmas oportunidades e raramente são ouvidos, como poderia
qualquer pessoa nesse contexto demonstrar seu conhecimento se sequer
pode falar o que pensa? Além do que, Hume considera conhecimento
apenas o seu próprio pensamento e realidade, embora seja completamente
ignorante dos saberes africanos, para ele, “sabedoria” é apenas sua própria
cultura, todo o resto é “ignorância”. Hume demonstra não conhecer
muitos negros e se baseia no que ouviu falar sem qualquer evidência
empírica. Nada mais ignorante que tomar sua própria experiência como
universal, aliás, este é um dos principais problemas de entender o
conhecimento como uma construção individual e não coletiva. Porque ele
nunca ouviu falar, quer dizer que não existe nenhum negro com
criatividade”. O fato de Hume não conhecer nenhum negro de destaque
é resultado de um sistema que escravizava e assassinava, o que nada tinha
de natural, mas era totalmente político e baseado na (ir)racionalidade
branca-europeia.
Kant (1724-1804) também concordou com Hume:
os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se
eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único
exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os
milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos
deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que
apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra
aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da
191
plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons
excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que
parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de
cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de
idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza
humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou
qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras,
tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito
vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve
dispersá-los a pauladas (KANT, 1993, p. 75-76).
Kant afirma que a cultura e costumes africanos são “ridículos,
afirmando baseado em nenhuma evidêncialembrando que Kant sequer
saiu da província em que vivia que não existem negros que apresentem
algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão”. Por
outro lado, assim como Hume afirma que existem muitos brancos de
destaque, desconsiderando as desigualdades sociais. Kant chama a
religiosidade africana de “fetichee “idolatria” especialmente por seu uso
de elementos da natureza como sagrados, sem considerar que tais críticas
poderiam ser dirigidas à religião cristã, da qual ele era adepto. Kant em
nome de uma suposta “razão universal” reafirma o exposto por Hume de
maneira ainda mais irracional, inclusive indicando que negros devem ser
dispersados a pauladas”.
A razão, na perspectiva kantiana, é o que tira o ser humano da
condição de animalidade e selvageria em prol de uma ordem cosmopolita,
reafirmando a inferioridade do corpo e dos povos que tem nele a principal
fonte de conhecimento. A exclusão de alguns é condição necessária para a
universalização da moral kantiana, pois a racionalidade que a sustenta se
pauta em características eurocêntricas e, portanto, só pode ser realizada por
brancos. Com diferenciação entre “raças” avançadas e degeneradas e
192
afirmações sobre suas diferentes disposições ao trabalho, a filosofia
kantiana tem o racismo como parte fundamental de seu sistema.
Kant também contribuiu para a ontologia de sujeito moderno
através do que foi denominado de “revolução copernicana” da filosofia.
Como afirmam Débora Danowski e Eduardo Viveiros de Castro (2014, p.
47), “O sujeito constituinte moderno é uma alucinação narcisista”, pois tal
revolução conduziu a filosofia “para uma via que a afastou infinitamente
do Grande Forae a encerrou na gaiola dourada do sujeito. Com Kant
perdemos o mundo, em suma, voltando-nos para nós mesmos, no que se
poderia chamar de um verdadeiro surto psicótico de nossa metafisica”.
Através do entendimento da razão determinadora da forma do
conhecimento através de categorias universais, Kant afirma que não é
possível conhecer a “coisa-em-si”. Nesse sentido, o objeto que
experienciamos é determinado pelo próprio sujeito voltando-se para a
investigação acerca dos limites da razão. Embora Kant considere que a
experiência é a origem da “matéria” do conhecimento, o que
experienciamos é uma abstração do que está fora de nós. Desse modo, o
sujeito moderno se afasta ainda mais do “Grande Fora” estabelecendo
quase como impossível o conhecimento sobre o mundo. Danowski e
Viveiros de Castro entendem o sujeito moderno como uma “alucinação
narcisista” que gera outras consequências.
A equivocamente denominada revolução copernicana de Kant é, como se sabe,
a origem oficial da concepção moderna do Homem (guardemos a forma
masculina) como poder constituinte, legislador autônomo e soberano da
natureza, único ente capaz de elevar-se para além da ordem fenomenal da
causalidade que seu próprio entendimento condiciona: o "excepcionalismo
humano" é um autêntico estado de exceção ontológico, fundado na separação
autofundante entre Natureza e História. A tradução militante desse dispositivo
193
mítico é a imagem prometeica do Homem conquistador da Natureza: o
Homem como aquele ser que, emergindo de seu desamparo animal originário,
perdeu-se do mundo apenas para melhor voltar a ele como seu senhor. Mas
este privilégio é profundamente ambivalente, como sabemos desde, pelo
menos, o Romantismo. A apropriação racional e a economização instrumental
do mundo levariam a seu desencantamento (Weber). (DANOWSKI &
VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 43)
Como desdobramento de um conhecimento voltado para o ego
moderno, o homem reafirma o seu “excepcionalismo” diante da natureza.
Danowski e Viveiros de Castro compreendem que a autoafirmação como
senhor” conquistador da natureza funciona como um estado de exceção
ontológico que justifica qualquer ação realizada em nome da
excepcionalidade do homem. Dessa forma, em nome de uma suposta
racionalidade superior, se justifica qualquer ação no mundo, tanto a
exploração do território quanto das pessoas vistas como mais próximas da
natureza do que da humanidade hegemônica. Contudo, é possível afirmar
que a ontologia logocêntrica diz respeito a um sujeito narcisista, pois só
enxerga a si mesmo e seus semelhantes, deturpando e coisificando outras
realidades, saberes, sujeitos, seres. Aqui cabe uma reflexão que nos tomou
durante o processo de pesquisa para este texto
11
. Se a própria concepção de
Estado se alicerça no soterramento de seres inventados como “africanos”,
“índios”, “brasileiros”, “latino-americanos”, etc., só é possível sustentar o
entendimento de uma excepcionalidade do Estado em bases do próprio
pensamento hegemônico, uma vez que tais humanidades sequer são
consideradas sujeitos nesse modelo de estado desde sua origem.
Hume e Kant apresentam afirmações sem base na realidade que
apenas apontam para o completo desconhecimento dos mesmos sobre o
11
Quem nos chamou a atenção para este importante ponto foi o Prof. wanderson flor do nascimento.
194
pensamento africano. Ainda que não tenha qualquer rigor conceitual, no
que tange esse aspecto, o trabalho de tais autores é considerado filosofia.
Enquanto, por outro lado, muitos questionamentos são levantados quando
falamos de filosofia latino-americana, indígena, brasileira ou feminina.
Uma filosofia verdadeiramente antidogmática exige que se questione
igualmente tanto filosofias não hegemônicas quanto a de filósofos
renomados.
O que Hume e Kant, bem como Hegel na primeira seção deste
capítulo, citam como evidências nada mais são do que etnocentrismo haja
vista que adotam por “criatividade”, “arte”,universalidade”,
objetividade”, “ciência” e “história” aquilo que é desenvolvido pela cultura
europeia, impossibilitados pelo dogmatismo algo que desde a
antiguidade grega é de natureza inversa à filosofia de experienciar outros
tipos de saberes. Sem qualquer embasamento que não seja o preconceito
tais escritos foram replicados de muitas formas fomentando uma
concepção de filosofia, conhecimento e arte racistas, o que só pode ser
entendido, especialmente pela alusão de Kant ao uso da violência contra a
população africana, com profunda indignação.
O que as filosofias explicitadas neste capítulo têm em comum é a
universalização de perspectivas específicas e, além de parciais, muitas
vezes deturpadas da realidade. É o universalismo que leva os filósofos
supracitados a cometerem equívocos, pois se baseiam na sua experiência
restrita de mundo para teorizar e construir modelos sobre todos os seres do
planeta. Na tradição ocidental, o universalismo vem sendo entendido,
muitas vezes, como a própria essência da filosofia, embora existam muitas
filosofias, as que se tornaram hegemônicas seguem as tendências
universalistas. Ao mesmo tempo, o universalismo é uma herança da
ontologia logontrica, pois através dele que o europeu se autoafirmou
195
como o sujeito mais evoluído de todos, utilizando a si mesmo como
referencial de superioridade para dizer sobre os outros seres e sujeitos.
Portanto, acreditamos que uma filosofia que possa ser relevante para o
mundo em que vivemos, ou seja, que fertilize o pensamento e a vida,
precisa repensar o universalismo e se construir a partir da relação contínua
com a concretude e a pluralidade da sociedade.
A contribuição de filósofos consagrados para a ontologia
hegemônica se dá na supervalorização de uma racionalidade específica
entendida como universal, o que resulta na inferiorização do corpo e na
negação da experiência como fonte de conhecimento. Isso fica evidente no
modelo de ensino de filosofia hegemônico quando as vivências de
estudantes precisam ser deixadas de lado para “não atrapalharem” as aulas,
assim como as experiências de filósofos/as/es precisam ser eliminadas para
que o conhecimento seja válido. Romper com a “alucinação narcisista” que
nos afasta do “Grande Fora” é uma necessidade para que a filosofia
contemporânea possa contribuir para pensar os enormes desafios
contemporâneos, o que só pode ser alcançado com uma mudança
profunda das relações entre os povos e das pessoas com o mundo,
repensando as lógicas universalizantes.
A filosofia que emerge no contexto da antiguidade grega não reflete
a pluralidade do mundo, pois propaga um ideal de conhecimento restrito.
Diante do que discutimos, é possível dizer que a filosofia ocidental é uma
monocultura, haja vista que não corresponde à pluralidade de ser e viver
no mundo, e, consequentemente, das filosofias existentes. Nessa
perspectiva, é impossível filosofia latino-americana, brasileira ou
ameríndia, pois não reproduz a ontologia hegemônica que sustenta a
filosofia ocidental. A compreensão de que nós não somos capazes de
filosofar sem a tutela europeia, também se relaciona com a falácia
196
desenvolvimentista que nos referimos neste capítulo. Traz um exemplo,
nesse sentido, Julieta Paredes (2019a, p. 82) ao falar sobre a filosofia
indígena:
as coisas dos índios são cosmovisão e o pensamento de “culto” é europeu,
portanto; é filosofia. A consequência dessa afirmação é que os índios não são
filósofos, ou pior, os índios não podem ser filósofos, eles apenas conseguem ter
e criar cosmovisões. O mesmo vale para a arte, que é uma atividade que se
desenvolve sob os parâmetros da cultura ocidental; em vez disso, nossos
trabalhos estéticos, que são desenvolvidos sob nossas sensibilidades estéticas,
são chamados de artesanato. (PAREDES, 2019a, p. 82)
O/a/e indígena não pode ser filósofo/a/e da mesma forma que
um/a/e estudante não é visto/a/e como capaz de pensar por si mesmo.
Quando analisamos as relações educativas, é possível notar uma
compreensão do ensino como forma de desenvolver o outro, aculturar,
levando estudantes rumo ao progresso, retirando-os das “trevas” da
ignorância. Nesse sentido, se reafirma o aspecto da aprendizagem como
reprodução de um ideal de saber e cultura.
O logocentrismo que fundamenta o alicerce da filosofia ocidental
produz um afastamento do pensamento da experiência pautado num ideal
moderno de humanidade que divide a sociedade em sujeitos” e “objetos”.
Tanto no paraíso e quanto na modernidade que defendiam filósofos
europeus, só cabiam sujeitos e também filosofias à sua imagem e
semelhança. A ontologia hegemônica é uma filosofia narcisista, que tenta
explicar a realidade por categorias abstratas e supostamente universais
baseadas em sua perspectiva. Em nosso país, consiste em reproduzir
197
teoricamente filosofares imperialistas, haja vista que não nos encaixamos
no padrão do ser hegemônico.
Viveiros de Castro (2010) reflete que a antropologia tem em seu
cerne um narcisismo implícito, no qual o outro é sempre o não nós, o
não algo, não ocidental, não europeu, não civilizado, não capitalista, não
homem, não humano. A filosofia ocidental hegemônica também faz parte
desta monocultura narcisista, pois só vê a si mesma, sua própria origem,
deturpando outras perspectivas filosóficas sobre o mundo. O outro é
sempre o não filósofo, o não racional, o sem cultura, o não humano. Do
mesmo modo como na antropologia narcisista o que importa não são os
outros e sim o eu, na filosofia também o que importa não é o mundo, mas
sim o ego da ontologia hegemônica, a sua perspectiva de mundo. Assim, a
diversidade do mundo, vista como desigualdade e inferioridade, serve para
reafirmar o ego, o dentro e suas ideias a priori.
A ontologia hegemônica se dá em uma relação de transcendência
do mundo e não de experiência. Desse modo, funciona como forma de
controle, pois se perceber o mundo e seus problemas pode ser enganação,
o que podemos pensar sobre o mundo, no caso de brasileiros/as/es e latino-
americanos/as/es que não são entendidos como portadores/as da
racionalidade ideal, é determinado por outros e não por nossas
experiências. Isso pode nos impedir de perceber os problemas do contexto
em crise em que vivemos, já que há uma excepcionalidade ontológica que
justifica a situação do mundo atual, e de reagir a ele, pois a produção de
conhecimento boicota os espaços de pensamento contra hegemônicos.
As raízes coloniais, monoculturais e metafísicas do modelo ensino
de filosofia hegemônico no Brasil propagam uma ontologia racista,
patriarcal, especista, capitalista, monoteísta e logocêntrica que silencia,
198
segrega, explora, elimina a diversidade. Na discussão que trazemos neste
capítulo, é possível entender que o modelo de ensino de filosofia
hegemônico fomenta uma aprendizagem narcisista, individual, a partir de
uma compreensão fálica de acúmulo individual do conhecimento como
propriedade. O ensino também se pauta em uma lógica narcisista na qual
docentes buscam a reprodução de suas explicações, entendendo as
diferenças como desvios. Portanto, fomenta narcisismo entre docentes e
estudantes. Se no primeiro capítulo vimos que o modelo de ensino de
filosofia majoritário não incentiva a pensar problemas e, portanto, impede
o filosofar e dificulta adiar o fim do mundo, em nosso segundo capítulo,
ao expor as raízes da ontologia que o governa, vemos que tal modelo
produz a mentalidade de destruição, impulsionando o fim do mundo.
Dessa forma, a ontologia hegemônica produz destruição, elimina outras
formas de racionalidade, de conhecimento, de vida, através da
padronização levando ao esgotamento das condições de vida neste planeta.
Esta ontologia produz o fim do mundo porque propaga uma visão do ser
que é narcisista e insustentável, por isso, um dos principais desafios da
filosofia contemporânea é pensar que sujeito cabe nesse mundo da finitude
da natureza e seus recursos.
Podemos entender tal ontologia como a produção de mudas. Há
raízes formadas, o que é muito importante para a constituição da planta,
no entanto, as relações possíveis estão podadas pelos limites impostos por
um outro e por sua mercantilização. Nesse sentido, a planta passa a
depender quase exclusivamente de um outro para sua sobrevivência, haja
vista que é impedida de estabelecer as relações que mantém sua vida.
Quando consideramos a árvore na terra é possível perceber toda a
dinamicidade que a compõe, o seu movimento, a transformação contínua
de suas raízes, outros seres que a nutrem e que se nutrem dela de uma
199
maneira mais ampla. A raiz no vaso limita a interação da planta e seu
potencial. Tais mudas são transplantadas para campos monoculturais,
onde estão isoladas de suas relações significativas e rodeadas de outras
plantas “podadas”. Na plantation da educação, estudantes são como essas
mudas.
Contudo, é possível entender que a ideologia do desenvolvimento
moderno consiste em uma perspectiva que engloba no sentido de abarcar,
mas também de impor globalmente eurocentrismo, racismo,
patriarcalismo, heterossexualismo, antropocentrismo, especismo,
monoteísmo, cosmofobia, monocultura da mente e do solo, capitalismo e
logocentrismo. Isto nos leva a nomear tal ontologia, a partir da
contribuição de filósofos como Jacques Derrida (1991), Wallace Lopes
Silva e Renato Noguera (2015) e Suely Rolnik (2018, p. 92), como
antropo-euro-falo-ego-capital-logocêntrico. As diferenças são vistas como
desvios da ontologia hegemônica, isto é, degradações do ser, que precisam
ser silenciadas e eliminadas. Uma ontologia que não se mantém na
diversidade, só consegue existir na medida em que suprime outras formas
de existências, transformando povos, seres e saberes em recurso e
mercadoria.
Diante de tudo que discutimos neste capítulo, podemos dizer que
a filosofia ocidental tem grande responsabilidade na subalternização e
exploração de alguns povos. Por isso, consideramos que é obrigação do
ensino de filosofia colaborar na desconstrução da ontologia hegemônica e
suas ideologias caminhando em prol da reparação. Esse processo passa por
aprender com as filosofias que foram e são silenciadas, uma vez que elas
apresentam perspectivas importantes para questionarmos os
universalismos e a própria natureza antropo-euro-falo-ego-capital-
logocêntrica e narcisista da filosofia ocidental, que se considera a detentora
200
de sua origem e de toda a produção relevante na área. Apenas refletindo
radicalmente sobre as categorias que sustentam a filosofia ocidental,
poderemos conceber um ensino de filosofia que leve as pessoas a pensarem
o mundo e não a encaixá-lo em teorias que invisibilizam, negam e
silenciam as histórias do nosso território.
Aqui vale ressaltar a mitologia que envolve o baobá em tradições
africanas, na qual a árvore, a primeira entre as criações, ao se comparar com
outras não se satisfazia com o que tinha. Na história, suas constantes
reclamações fizeram com que seu criador a virasse de cabeça para baixo,
ficando com suas raízes para cima. A partir do imaginário das raízes
invertidas, entendemos que as ontologias africanas apontam para uma
perspectiva não hierárquica entre os seres. A exposição das raízes da
ontologia hegemônica neste capítulo foi uma maneira de calar a arrogância
da árvore do conhecimento.
Este capítulo evidencia uma ontologia insustentável, produtora do
modelo de ensino de filosofia que descrevemos no primeiro capítulo, que
só enxerga a si mesma e implica em uma percepção monocultural forjada
por uma única perspectiva de mundo, afirmando uma visão restrita e ideal
de humanidade, cultura, natureza e conhecimento. Diante disso,
entendemos que é necessário olhar para o mundo em que vivemos e suas
categorias subjacentes através de outras perspectivas, que é o que
tentaremos fazer no próximo capítulo investigando se existem outras
filosofias que podem colaborar com os desafios da nossa época. Como
podemos perceber o mundo para além da ontologia narcisista? Como
pensar o mundo para além de tal excepcionalidade ontológica? No
próximo capítulo, tentaremos perceber, nas frestas, filosofias antinarcísicas
que permitam outro pensamento sobre o eu e os/a/es outros/as/es.
201
Capítulo 3
Nas ervas do pensamento filosófico:
rizomas antinarcísicos
No fundo do poço
No bagaço, no osso
Mingua o nosso admirável mundo novo
Nego se arrepiou, gemeu
Alguma coisa aconteceu
De erro, em erro, em erro
O mundo se entortou inteiro
Vai ter que pagar o preço
Desde o fim até o começo
[...] Um índio desceu e baforou três vez
Tossiu, cuspiu e se amigou da mente
Do limo, pio, da pedra e da estrela cadente
Relampiou, caminho aberto pela frente
Se inscripou e falou no encantado
Agora é sério, agora é fato
Nego tem que tá preparado
Pra fazer seu pacto com o mato.
(INSTITUTO & CURUMIN, Música “Pacto com o mato”, 2015)
202
FIGURA 3MESTRAS DA RESILIÊNCIA.
Fonte: Arquivo pessoal de Amanda Veloso Garcia.
203
Apresentação
Como apontamos no segundo capítulo, o modelo de ensino de
filosofia que é hegemônico no país se sustenta em uma ontologia narcisista,
alicerce do edifício do mundo contemporâneo e seus desdobramentos
catastróficos. As diversas crises contemporâneas que vivenciamos
significam profundamente uma crise de paradigma, portanto, é preciso que
olhemos para este mundo a partir de outras vivências a fim de perceber as
linhas de fuga em suas frestas. Nossa ferramenta antinarcísica, neste
capítulo, será o perspectivismo ameríndio¸ que nos possibilita tirar do
soterramento antropo-euro-falo-ego-capital-logocêntrico outros saberes,
outras humanidades, outros/as/es sujeitos/as/es e outras formas de se
relacionar com o mundo. Olhando para o mundo através de outras
perspectivas, pretendemos perceber a vida nas frestas, para além da árvore,
perceber a terra, os insetos, os animais não humanos, as pessoas e as ervas
que estabelecem relações intrínsecas e permitem a existência da árvore em
simbiose. E, assim, romper com os lugares fixos e subalternos que nos
foram delegados no sistema-mundo enquanto “ervas-daninhas”, latino-
americanos/as/es”, “brasileiros/as/es”, “inferiores”, “primitivos/as/es”,
subdesenvolvidos/as/es”, e inventar nosso lugar próprio no mundo. Desse
modo, pretendemos trazer à tona percepções soterradas pela terraplanagem
produzida pela monocultura ocidental, investigando seu potencial para
lidar com os desafios contemporâneos e ressignificando a erva-daninha.
204
3.1 Devir erva-daninha: diferenças como potencial
O primeiro passo para conceber um modelo de ensino de filosofia
que não produza uma alucinação narcisista e permita adiar o fim do
mundo, é refletir sobre as categorias que determinam nossa relação com os
saberes. Como analisa bell hooks (2019a), a diversidade pode ser entendida
como uma consequência do estilo de vida moderno, que aglomera várias
etnias em um mesmo espaço e leva a constatação das diferenças. Porém,
diversidade não é o mesmo que pluralidade, pois esta última diz respeito à
maneira como lidamos com a diversidade. E, assim, a presença da
diversidade no pensamento, na vida, nas escolas e no ensino de filosofia
não gera necessariamente pluralidade, podendo ocorrer sobre a lógica do
“exótico” que reafirma o lugar de subalternidade desses saberes diante da
monocultura hegemônica, ou com o objetivo de criar novos mercados
como vemos no ultraliberalismo econômico. A mera inclusão não implica
em pluralidade, é preciso olhar para os saberes não como erva-daninha,
mas em uma perspectiva pluricultural. E, por isso, é tão importante
começar pela desconstrução do que entendemos por saber para que
possamos vislumbrar outros mundos possíveis.
O pensamento arborescente hierarquizante é característico da
monocultura Ocidental e permeia a sociedade de diversos modos: “No
Ocidente a árvore plantou-se nos corpos, ela endureceu e estratificou a
os sexos. Nós perdemos o rizoma ou a erva(DELEUZE & GUATTARI,
1995, p. 28). Para Deleuze e Guattari (1995, p. 28), “Muitas pessoas têm
uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma
erva do que uma árvore” (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 24) porque
205
seu funcionamento se dá por conexões não hierárquicas, se utiliza de
contínuas ramificações não centralizadas.
O rizoma associado pelos autores à erva consiste em uma espécie
de caule que cresce horizontalmente, de maneira que não é hierárquico e
suas conexões se ramificam entrecruzando-se, qualquer parte se conecta
com outra, seu movimento é experimentação em expansão possuindo
múltiplas conexões. Citando Henry Miller, Deleuze e Guattari (1995, p.
28) chamam a atenção para o potencial da erva:
a China é a erva daninha no canteiro de repolhos da humanidade [...]. A erva
daninha é a Nêmesis dos esforços humanos. Entre todas as existências
imaginárias que nós atribuímos às plantas, aos animais e às estrelas, é talvez a
erva daninha aquela que leva a vida mais sábia. É verdade que a erva não produz
flores nem porta-aviões, nem Sermões sobre a montanha [...]. Mas, afinal de
contas, é sempre a erva quem diz a última palavra. Finalmente, tudo retorna
ao estado de China. É isto que os historiadores chamam comumente de trevas
da Idade Média. A única saída é a erva [...]. A erva existe exclusivamente entre
os grandes espaços não cultivados. Ela preenche os vazios. Ela cresce entre e no
meio das outras coisas. A flor é bela, o repolho útil, a papoula enlouquece. Mas
a erva é transbordamento, ela é uma lição de moral. (DELEUZE &
GUATTARI, 1995, p. 28)
Na perspectiva de Deleuze e Guattari, de todas as existências a erva
é a que leva a vida mais sábia porque nasce com poucos cuidados e
preenche os vazios entre as plantas e frestas. Para fugir da dominação da
árvore, que floresce na hierarquização dos saberes e das relações em geral,
os autores nos atentam para um pensar que é erva, que nasce entre e se
conecta de modo não centralizado. O pensamento rizomático se dá por
conexões nas quais todas as possibilidades estão abertas. Nesse sentido,
206
podemos falar de um devir erva-daninha, que desobedece a monocultura
através das frestas do mundo.
Com o objetivo de olhar entre, buscando romper com as categorias
ocidentais universais que determinam nossa relação com os saberes, nesta
seção, vamos investigar a monocultura sobre outra perspectiva, daqueles
que a atrapalham e resistem a ela: o que as ervas-daninhas (daninhas a
quem?) e os povos que são vistos como ervas-daninhas podem nos
ensinar? Sujeitos/as/es marginais, assim como as plantas marginais
denominadas de “daninhas”, são aqueles que atrapalham a monocultura e
insistem em resistir. O que é “daninho” para a monocultura, talvez seja
fértil para a pluricultura. O próprio termo erva-daninha nos apresenta um
paradoxo por ser uma referência antropocêntrica onde a planta em seu
habitat natural é vista como a invasora daninhapor atrapalhar os
planos econômicos dos agricultores e das corporações. O mesmo que
vimos com o colonialismo, em que os invasores se sentiam os verdadeiros
donos dos territórios e determinavam em que condições deveriam viver
e morrer os nativos.
Falar em ervas-daninhas” só faz sentido em uma relação
monocultural. Como vimos no capítulo anterior, a modernidade é um
fenômeno europeu que produz as desigualdades que fundamentam a
relação entre centros e periferias, de modo que o centro não existe sem a
exploração dos vistos como “marginais”. O primeiro movimento que
faremos para responder à pergunta do parágrafo anterior será de pensar o
que significa a perspectiva da margem, isto é, o local dos subalternos, da
subumanidade”, daqueles que devem ser eliminados com veneno quando
não servirem à modernização, ao progresso e desenvolvimento do mundo. A
partir da obra de bell hooks, Grada Kilomba reflete sobre a perspectiva da
margem:
207
nesse contexto de marginalização, ela argumenta, mulheres negras e homens
negros desenvolvem uma maneira particular de ver a realidade: tanto “de fora
para dentro” quanto de “dentro para fora”. Focamos nossa atenção tanto no
centro como na margem, pois nossa sobrevivência depende dessa consciência.
Desde o início da escravidão, nos tornamos especialistas em “leituras
psicanalíticas do outro branca/o” (hooks, 1995, pp. 31), e em como a
supremacia branca é estruturada e executada. Em outras palavras, somos
especialistas em branquitude crítica e em pós-colonialismo. Nesse sentido, a
margem não deve ser vista como um espaço de perda e privação, mas sim como
um espaço de resistência e possibilidade. A margem se configura como um
“espaço de abertura radical” (hooks, 1989, p. 149) e criatividade, onde novos
discursos críticos se dão. É aqui que as fronteiras opressivas estabelecidas por
categorias como “raça”, gênero, sexualidade e dominação de classe são
questionadas, desafiadas e construídas. Nesse espaço crítico, “podemos
imaginar perguntas que não poderiam ter sido imaginadas antes; podemos
fazer perguntas que talvez não fossem feitas antes” (Mirza, 1997, p. 4),
perguntas que desafiam a autoridade colonial do centro e os discursos
hegemônicos dentro dele. Assim, a margem é um local que nutre nossa
capacidade de resistir à opressão, de transformar e de imaginar mundos
alternativos e novos discursos.
Falar de margem como um lugar de criatividade pode, sem dúvida, dar vazão
ao perigo de romantizar a opressão. Em que medida estamos idealizando
posições periféricas e ao fazê-lo minando a violência do centro? No entanto,
bell hooks argumenta que este não é um exercício romântico, mas simples
reconhecimento da margem como uma posição complexa que incorpora mais
de um local. A margem é tanto um local de repressão quanto um local de
resistência (hooks, 1990). Ambos os locais estão sempre presentes porque onde
há opressão, há resistência. Em outras palavras, a opressão forma as condições
de resistência. (KILOMBA, 2019b, 67-69)
Ainda que a margem seja o universo da opressão, também é o local
da reação e da resistência contínua, onde novos discursos críticos emergem,
onde as categorias hegemônicas são questionadas. Sem a intenção de
romantizar a opressão haja vista que a luta política deve ser por um mundo
em que ninguém seja colocado/a/e na obrigatoriedade de resistir, bell
208
hooks e Kilomba explicam que a posição marginal leva a uma compreensão
mais ampla do sistema e as relações que o permeiam, haja vista que obriga
a desenvolver conhecimento tanto “de fora para dentro” quanto de “dentro
para fora”. Desse modo, pessoas negras são especialistas em branquitude,
enquanto pessoas brancas se vêm como universais e não questionam as
categorias que sustentam seus privilégios. A margem é uma posição
complexa onde novas ideias podem surgir.
A perspectiva ampla está relacionada intrinsecamente com o
movimento das pessoas que estão nas margens, que em geral costumam ser
obrigadas a se movimentarem diariamente para os centros. Quem se
localiza nos centros, tem um lugar fixo, no qual é servido por outros vindos
das margens, onde encontra tudo que precisa. Quem se localiza nas
margens, vive se deslocando, assimilando outros olhares, propondo outras
perguntas, outras respostas. A geopolítica das cidades produz esse fluxo de
movimento a partir das margens, o que também obriga tais pessoas a terem
uma percepção mais coletiva, vivenciando mais interação, outros
contextos, deslocando ideias. Tal experiência permite uma percepção
ampliada e uma reflexão que envolve outros lugares, uma multiplicidade
de contextos, de diferenças. Assim, a subjetividade do centro é uma
estagnação do composto corpo-pensamento. Os centros em sua fixidez
entendem a margem como o outro, como objeto. Mesmo quando há
interesse pela perspectiva das margens, o centro objetifica, criando um
fardo para a pessoa marginal que precisa dar conta da sua perspectiva e do
outro. A partir dessa discussão, é possível refletir a importância dos centros
se movimentarem às margens e não apenas trazer as margens para os
centros, para modificar a estrutura o movimento não pode ser apenas
conceitual, é preciso buscar linhas de fuga aos movimentos já consolidados
na sociedade.
209
Antônio Bispo dos Santos traz um exemplo da complexidade da
margem através da ressignificação do termo “Quilombo”. Antes, um termo
a ser evitado por seus riscos, hoje uma identidade a ser comprovada para
garantir direitos. Santos aponta que os povos contra colonizadores
demonstraram, em diversos momentos da história, a capacidade de
“compreender e até de conviver com a complexidade das questões que esses
processos (colonizadores) m nos apresentado”, trazendo como exemplo
as sucessivas ressignificações das nossas identidades em meio aos mais perversos
contextos de racismo, discriminação e estigmas; a readaptação dos nossos
modos de vida em territórios retalhados, descaracterizados e degradados; a
interlocução das nossas linguagens orais com a linguagem escrita dos
colonizadores. (SANTOS, 2015, p. 97)
No contexto em que vivemos de crise ecológica e humana no qual
o mundo tal como o concebemos até hoje não será possível de existir, é
preciso aprender com quem há muito tempo mostra outras formas de
existir e não se submete ao “liquidificador modernizante do Ocidente
como afirma Viveiros de Castro no prefácio da obra A queda do céu:
palavras de um xamã yanomami de Davi Kopenawa & Bruce Albert
(2015)
12
.
Como destaca a filósofa Lélia Gonzalez (1988, p. 72), a América
Latina é “muito mais ameríndia e amefricana do que outra coisa”, ainda
12
No livro citado - “A queda do céu” (2015) a autoria de Davi Kopenawa é dividida com o antropólogo
Bruce Albert por este último ter sido responsável pela transcrição/tradução do livro, o que explica sua
primeira versão em francês, tendo tradução para o português apenas alguns anos depois. Diversas críticas
são tecidas ao livro no sentido de atribuir alguns conceitos à forma como Albert entendia a filosofia de
Kopenawa. Porém, como o livro foi resultado de um convívio de décadas entre eles, acreditamos que tal
separação entre as ideias de um e outro só pode ocorrer abstratamente.
210
que isso seja soterrado. Quando consideramos a realidade do Brasil tal
apagamento é ainda mais grave, pois é o país com a maior população negra
fora do continente africano, compondo mais da metade da população
nacional, além de contar com mais de 250 etnias indígenas. Por isso,
inspirada por um texto do psicanalista lacaniano M. D. Magno, a filósofa
propõe compreendermos nosso território por meio do conceito de
ladinoamefricanidade:
trata-se de um olhar novo e criativo no enfoque da formação histórico-cultural
do Brasil que, por razões de ordem geográfica e, sobretudo, da ordem do
insconciente, não vem a ser o que geralmente se afirma: um país cujas
formações do inconsciente são exclusivamente européias, brancas. Ao
contrário, é uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve
trocado o t pelo d para, aí sim, ter o seu nome assumido com todas as letras:
Améfrica Ladina (não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no
racismo o seu sintoma por excelência). Nesse contexto, todos os brasileiros (e
não apenas os "pretos" e os "pardos" do IBGE) são ladinoamefricanos. [...]
Enquanto denegação de nossa ladinoamefricanidade, o racismo “à brasileira”
se volta justamente contra aqueles que são o testemunho vivo da mesma (os
negros), ao mesmo tempo que diz não o fazer (“democracia racial” brasileira).
(GONZALEZ, 1988, p. 69)
O conceito de Améfrica Ladina torna evidente a importância dos
povos de ancestralidade africana para a construção do continente e o
apagamento deles na produção de conhecimento como um todo. Como
explica Luiza Bairros (2000, p. 9-10), Gonzalez
negava a latinidade das Américas considerando, por um lado, a preponderância
de seus elementos ameríndios e africanos; e, por outro lado, a formação
histórica da Espanha e de Portugal, que só pode ser entendida tomando-se
211
como ponto de partida a longa dominação da Península Ibérica pelos mouros.
(BAIRROS, 2000, p. 9-10)
A latinidade, forjada especialmente por Napoleão no início do
século XIX por interesses imperialistas, não encontra eco em um
continente cuja herança ibérica já é africanizada. Por outro lado, a
ladinidade expressa um viver cheio de esperteza e artimanhas, uma
estratégia das margens quando o confronto direto é desvantajoso. A
proposta do conceito de amefricanidade de Gonzalez não é meramente
uma troca de termos, criar outros conceitos para nossa realidade implica
em olhar através de outras perspectivas.
A contribuição de povos africanos, assim como dos povos
ameríndios, na cultura do território que é chamado de “Brasil” é marcante
em todas as áreas do conhecimento relevantes, no entanto, “tudo isso é
encoberto pelo véu ideológico do branqueamento, é recalcado por
classificações eurocêntricas do tipo “cultura popular”, “folclore nacional”
etc, que minimizam a importância da contribuição negra” (GONZALEZ,
1988, p. 70). Os espaços de produção de conhecimento são marcados
majoritariamente pelo eurocentrismo, de maneira que quando tais saberes
aparecem nos estudos estão aprisionados sob a lógica colonizadora de
“objetose pela característica da exoticidade. Contudo, para entender o
Brasil é preciso pensar para além das instituições. Num cenário em que os
espaços de produção de saberes estão marcados profundamente pela
colonialidade, é urgente aprender com os saberes que estão para além das
academias. Nesse sentido, Lélia Gonzalez chama a atenção para a
necessidade de aprender com as histórias de resistência que existem em
nosso território.
212
Já na época escravista, ela se manifestava nas revoltas, na elaboração de
estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas alternativas
de organização social livre, cuja expressão concreta se encontra nos quilombos,
cimarrones, cumbes, palenques, marronages e marron societes, espraiadas nas mais
diferentes paragens de todo o continente [...]. Reconhecê-la é, em última
instância, reconhecer um gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos
leva para o lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que
somos hoje: amefricanos. (GONZALEZ, 1988, p. 79)
Como aponta a filósofa, nosso território está permeado de
exemplos de histórias de resistência. Como exemplos, podemos citar as
inúmeras revoltas ameríndias que não são citadas nos currículos brasileiros,
a própria concepção de sustentabilidade praticada pelos ameríndios desde
sempre através da integralidade humanidade/natureza, a organização dos
quilombos e a Revolta dos Malês que recebem pouca ou nenhuma
importância nas escolas, bem como a filosofias dos terreiros e ameríndias.
Em geral, sabemos mais sobre as histórias de resistências de outros países e
conhecemos quase nada sobre as histórias e filosofias do nosso território.
Podemos dizer que um currículo que dessoterre as relações que envolvem a
nossa história emaranhada com o território em que vivemos é necessário
para a compreensão da complexidade do mundo, para percebermos quem
somos e quem podemos nos tornar, trazendo à consciência os aspectos
fundamentais de uma sociedade formada profundamente por
amefricanos/as/es.
O contato entre europeus e ameríndios durante a colonização
resultou na imposição de um modo de vida que é insustentável. Quando
perguntaram a Ailton Krenak (2019b) sobre a situação dos indígenas no
cenário político atual, a resposta foi a seguinte:
213
como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria
acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar
esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e
desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos
antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que
inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de
bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de
transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade.
Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas “pessoas coletivas”, células que
conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo. [...] “Tem
quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os
brancos, como que vão fazer para escapar dessa”. A gente resistiu expandindo
a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais.
Ainda que existam aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes
umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos.
(KRENAK, 2019b, p. 28, 31)
Considerando a perspectiva trazida por Krenak, podemos dizer que
o mundo já acabou para várias culturas não europeias povos africanos
sequestrados e povos ameríndios durante a colonização com a invasão
colonial:
o primeiro sinal do fim foi dado no dia 12 de outubro de 1492, para sermos
exatos. (Como postou alguém no Twitter semanas atrás, o primeiro índio que
encontrou Colombo fez uma péssima descoberta...) A população indígena do
continente, maior que a da Europa naquela mesma época, pode ter perdido
pela ação combinada de vírus (a varíola foi espantosamente letal), de ferro, de
pó1vora e de papel (os tratados, as bulas papais, as encomiendas, e,
naturalmente, a Bíblia) - até 95% de seu efetivo ao longo do primeiro século e
meio da Conquista, o que corresponderia, segundo alguns demógrafos, a 1/5
da população do planeta. Poderíamos os assim chamar de Primeira Grande
Extinção Moderna esse evento americano, quando o Novo Mundo foi atingido
pelo Velho como se por um planeta gigantesco, que propomos chamar
Mercadoria. (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 138)
214
O mundo em que os ameríndios viviam em 1492 acabou com a
invasão europeia e o assassinato massivo de cerca de 95% das suas
populações levando ao genocídio de várias etnias. O genocídio se deu em
várias frentes, através de vírus para os quais tais povos não tinham
anticorpos, tecnologias como a pólvora que permitiam assassinatos
covardes, por meio do papel representado pelas Bíblias do necrocristianismo
e de tratados que determinaram quem detinham os direitos. Costumes
foram violentamente alterados, muitos foram assassinados/as/es e
escravizados/as/es e a tortura se tornou cotidiana. Talvez nem um meteoro
poderia matar tanto. Por outro lado, o fim do mundo ameríndio foi o
começo de outro mundo.
O genocídio dos povos ameríndios o fim do mundo para eles foi o começo
do mundo moderno na Europa: sem a espoliação da América, a Europa jamais
teria deixado de ser um fundo de quintal da Eurásia, continente que abrigava,
durante a "Idade Média", civilizações imensamente mais ricas que as europeias
(Bizâncio, China, Índia, o mundo árabe). Sem o saque das Américas, não
haveria capitalismo, nem, mais tarde, revolução industrial, talvez nem mesmo,
portanto, o Antropoceno. (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014,
p. 141)
A Europa, que não era o centro do mundo, pôde criar a si mesma
através do genocídio ameríndio. O fim do mundo para eles foi o começo
do mundo moderno para os europeus que invadiram e saquearam as
“Américas”. As narrativas oficiais tendem a mostrar a história do Brasil de
forma tão distorcida que, às vezes, é difícil imaginar o mundo para além
do que os europeus descreveram. O fim do mundo ameríndio é digno dos
filmes mais horrendos de ficção científica: “um mundo invadido, arrasado
e dizimado por bárbaros estrangeiros” (DANOWSKI & VIVEIROS DE
215
CASTRO, 2014, p. 142). Como apontam Danowski e Viveiros de Castro
(2014), o que os europeus fizeram nas “Américas” se assemelha muito ao
que mostram os filmes de invasão alienígena, nos quais os invasores se
apoderam dos territórios utilizando a seu bel prazer os povos da Terra,
escravizando ou consumindo-os de diferentes formas. Os alienígenas
como antônimo de indígena, aquele que pertence à terra europeus
fizeram o mesmo com os povos indígenas. Nesse sentido:
é como se o fim do mundo fosse um acontecimento fractal, que se reproduz
indefinidamente em diferentes escalas, das guerras etnocidas em diversas partes
da África ao assassinato sistemático de líderes indígenas ou militantes
ambientalistas na Amazônia, da compra de territórios gigantescos de países
pobres por potências hiperindustriais à grilagem e desmatamento de terras
indígenas por interesses minerários e agronegociais, à expulsão de famílias
camponesas para a ampliação de um campo de soja transgênica...
(DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 139)
Em outras palavras, podemos dizer que o fim do mundo se dá em
várias perspectivas e, nesse exato momento em que escrevemos, esse fim
está se efetivando para muitos povos ou sendo arquitetado para outros.
Entender o fim do mundo, a partir da perspectiva eurocêntrica, faz com
que pensemos que o que está em jogo é nossa vida confortável, e, assim,
não conseguimos perceber as várias guerras que são travadas há séculos
ininterruptamente. As guerras mundiais apenas ganham tal status por
envolver países dominantes no sistema-mundo, soterrando as constantes
guerras a que estes submetem outros povos continuamente. Tais guerras
contínuas podem ser entendidas como uma guerra entre mundos aqui
podemos citar também as guerras que acontecem nas periferias urbanas ,
216
de maneira que o discurso de paz é só uma forma de ocultar o
funcionamento violento do sistema dominante.
Nesse sentido, as crises atuais dizem respeito ao fim do mundo
moderno. Isto porque as filosofias ameríndias apontam que esse fim pode
ser um começo para que outras formas de viver sejam possíveis. Desapegar
da ideia de um mundo moderno, não implica em desesperança porque a
resiliência indígena nos inspira a pensar que outros mundos estão por vir.
Os ameríndios são os principais povos a apontar a possibilidade de viver
outros mundos, mostram que é possível viver em simbiose com o
ambiente, com uma compreensão diferente de trabalho, de economia, de
poder, de saber, etc:
capazes de originarem poderosas e inesperadas linhas de fuga de impacto
mundial, uma coisa é certa: os coletivos ameríndios, com suas populações
comparativamente modestas, suas tecnologias relativamente simples mas
abertas a agenciamentos sincréticos de alta intensidade, são uma "figuração do
futuro" (Kroijer 2010), não uma sobrevivência do passado. Mestres da
bricolagem tecnoprimitivista e da metamorfose político-metafisica, eles são
uma das chances possíveis, em verdade, da subsistência do futuro. Falar no fim
do mundo é falar na necessidade de imaginar, antes que um novo mundo em
lugar deste nosso mundo presente, um novo povo; o povo que falta: Um povo
que creia no mundo que ele deverá criar com o que de mundo nós deixamos a
ele. (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 159)
Em geral, as opressões do modo de vida moderno tentam nos fazer
acreditar a todo custo que isto é impossível, inclusive caracterizando como
utopia todas as iniciativas de pensar outra forma de viver para além do
capitalismo. Povos entendidos como “primitivos” ou “atrasados
representam um futuro possível, haja vista que a sua resiliência permitiu
217
sobreviver a outros fins de mundo. Os ameríndios têm muito a nos ensinar,
e, nesse sentido, o devir indígena ganha um sentido completamente
diferente:
hoje sentimos repugnância ao pensar na desaceleração, no regresso, no recuo,
na limitação, na frenagem, no decrescimento, na descida - na suficiência.
Qualquer coisa que lembre algum desses movimentos em busca de uma
suficiência intensiva de mundo (antes que uma ultrapassagem épica de
"limites" em busca de um hiper-mundo) é prontamente acusada de localismo
ingênuo, primitivismo, irracionalismo [...] Assim se dá, pois, que só é possível
(e desejável) a um indivíduo ou comunidade deixar de ser índio; é impossível (e
repulsivo) voltar a ser índio (Viveiros de Castro 2006): como alguém pode
desejar o atraso como futuro? Bem, talvez o escândalo tenha sua razão de ser:
talvez seja impossível voltar historicamente a ser índio; mas é perfeitamente
possível, mais que isso, está efetivamente se passando, um devir-índio, local
como global, particular como geral, um incessante redevir-índio que vai
tomando de assalto setores importantes da populaçãobrasileira de um modo
completamente inesperado. (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO,
2014, p. 157-158)
A monocultura moderna nos ensinou que ser “índio” é um
processo de atraso, porém, embora esse ideal de desenvolvimento se paute
em um suposto progresso humano, leva-o justamente para sua extinção.
Os ameríndios que são mestres da “bricolagem tecnoprimitivista” e da
“metamorfose político-metafísica” apontam para um humano que pode
ser o futuro, que sabe aproveitar as frestas, que busca entender todos os
seres que o permeiam, que não anseiam mudar o mundo a seu bel prazer,
mas utilizam sua resiliência para viver com o melhor dele e de si.
Concordamos com Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 119) em
referência à Isabelle Stengers que “a única coisa que é preciso acelerar,
em vista da proximidade crescente da barbárie por vir, é precisamente o
218
processo de desaceleração das ciências e da civilização que, em mais de um
sentido, vive às custas delas”: “[...] é o tempo das sociedades friasde Levi-
Strauss, sociedades contra o aceleracionismoou sociedades lentas (como
se fala em slow foodou em slow Science” Stengers)” (DANOWSKI &
VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 91).
A necessidade constante de resistir dos povos originários tem muito
a ensinar à humanidade hegemônica. Enquanto as diferenças são
entendidas como daninhas na monocultura moderna, pensar a preservação
da humanidade no planeta envolve justamente a pluricultura, de modo que
aquilo que é vulnerabilidade no contexto ocidental, pode apontar
caminhos a serem seguidos. Nesse sentido, explica Ailton Krenak (2020a,
n.p.):
assim, quando atinamos com essa ideia de vulnerabilidade, ficamos diante de
uma equação muito curiosa: porque ao mesmo tempo que nós, os indígenas,
somos a parte da humanidade pronta a desaparecer, nós também somos a parte
da humanidade que criou anticorpos para entender como habitar outros
mundos. Quem sabe, quem sempre esteve com o dedo no gatilho para fazer
gente desaparecer não acabe desaparecendo antes da gente? [...] É como se nós
fossemos chapados por eventos negativos recorrentes. Isso te torna muito
desconfiado em relação ao futuro. Mas como também temos uma matriz
cultural fundada numa outra perspectiva, na qual o futuro não é amanhã,
cresce também a resistência e eu tenho a impressão, que a palavra resiliência
talvez seja a melhor palavra para nossa experiência.
A resiliência não é a mera resistência a um evento em si, mas sim a capacidade
interna de se reconfigurar diante do momento. É mais ou menos o que o
camaleão faz, quando muda de lugar e luz para se reconfigurar e aumentar a
sua potência. (KRENAK, 2020a, n.p.)
219
A perspectiva indígena se apresenta como anticorpos para
vislumbrar mundos possíveis. Acostumados a viver apesar do Estado,
comunidades indígenas criaram suas próprias formas de sobreviver.
Resiliência, tal como proposta por Krenak, amplia nosso entendimento
sobre a resistência, pois não consiste em apenas contrapor diante do que se
apresenta, mas diz respeito a se reconfigurar e adaptar a uma situação nova.
Como um bambu ao vento que se movimenta, mas mantém sua estrutura
firme, a resiliência é movimento sem abandonar as raízes
13
. A resiliência,
nesse caso, é resultado de um contexto de opressões. Diferentemente de
povos privilegiados, a constante adaptação ameríndia foi e continua sendo
uma necessidade, não apenas uma escolha.
A resiliência ameríndia é a chave para o futuro desse território e
dos povos que merecem habitá-lo. É importante acrescentar que não se
trata de uma nostalgia purista das tradições ameríndias, até mesmo porque
tais povos não fazem parte do passado como acreditam os defensores da
modernidade, mas estão em constante transformação, e é especialmente
com a sua capacidade de se transformar que temos muito a aprender. As
filosofias ameríndias oferecem possibilidade para a sobrevivência humana
nesse planeta e, principalmente, em um contexto como o Brasil, de modo
que o futuro desse contexto e provavelmente de outros também pode
ser pensado de forma consistente a partir da perspectiva desses povos e seus
saberes.
Assim como os povos das margens, as plantas marginais também
nos ensinam sobre resiliência. Para discutir esse ponto trazemos o exemplo
13
Vale ressaltar que o sentido de resiliência trazido por Ailton Krenak não se confunde com o uso
neoliberal deste conceito, que o vincula a uma ideia de adaptação contínua aos interesses do mercado.
No viés neoliberal, as raízes de cada pessoa não são importantes e devem se submeter à lógica capitalista.
220
das Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs)
14
. As PANCs são
plantas em sua maioria que nascem e se desenvolvem espontaneamente
sem maiores cuidados porque estão adaptadas ao contexto de cada região,
acostumadas às condições de solo, temperatura e umidade do local. As
PANCs são consideradas como alimento do futuro por não precisarem de
muitos cuidados e, portanto, não necessitarem do uso de insumos
químicos para a sua produção, além de terem uma função de equilíbrio
ecológico dentro do sistema em que estão inseridas. As PANCs que se
desenvolvem em condições extremas várias dessas plantas são indicadoras
de excesso de alguns poluentes se tornam tóxicas, ainda que menos que
os agrotóxicos que consumimos diariamente. Muitas destas plantas até
mesmo tinham espaço e continuam tendo em muitos contextos nos
saberes locais, sendo parte da sua alimentação cotidiana, mas foram
substituídas por espécies comerciais produzidas em larga escala. Hoje
pouco se conhece sobre elas, sendo tratadas como ervas-daninhas e
descartadas nas hortas e bordas pelo mundo, haja vista que grande parte
das pessoas perdeu o acesso ao conhecimento sobre seus valores
nutricionais e medicinais.
O conhecimento de ervas como as PANCs aumenta a autonomia
dos sujeitos ao ampliar seu acesso a alimentos, nutrientes, medicinas
naturais, e, consequentemente, ampliam também o autoconhecimento e o
conhecimento dos saberes locais e suas respectivas culturas. A força de
resiliência dessas plantas é surpreendente, o que garante sua força é
justamente a diversidade de formas de resistir através da interação com seu
entorno. Assim como as PANCs, pessoas, povos e estudantes vistos como
erva-daninhaou “estudante-problema” como apresentamos no primeiro
14
O conceito de “PANCs” foi elaborado recentemente como uma forma de resgate das plantas nativas e
de uso tradicional na cultura. No entanto, vale lembrar que a relação com tais plantas não é recente.
221
capítulo podem ser pessoas com potencial para nutrir e cultivar formas
plurais de viver em nossa sociedade que rompam com a subserviência
monocultural capitalista, fertilizando o solo em que vivemos.
Além disso, assim como as PANCs que emergem em condições
extremas e apontam para a toxicidade do solo, os saberes entendidos como
daninhos também apontam para o caráter tóxico das relações
monoculturais. Do mesmo modo, estudantes que são vistos como
estudantes-problema” devem nos levar a perguntar: será que as aulas
também não são tóxicas? Ao invés de culpabilizar e punir estudantes
devemos refletir sobre que maneira o ambiente fomenta problemas de
convivência. Estudantes entendidos como erva-daninha na escola também
podem ser vistos como um importante indicador das relações em sala de
aula, colaborando na compreensão éticas das relações. Romper com a
passividade não deveria ser visto como daninho em um mundo no qual a
normalidade é estruturada em injustiças.
Em um mundo monocultural e que está em colapso, perspectivas
não hegemônicas apontam para a pluralidade das relações como forma de
resistir à crise ambiental, pois a padronização imposta em nome do
consumo é justamente o que leva à degradação da natureza. Os povos
indígenas sobrevivem há 500 anos buscando formas de resistir ao fim do
mundo. Nesse sentido, Krenak (2019b, p. 32-33) propõe como solução:
cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em
muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte
prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a
matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia
por consumir a natureza, também existe uma por consumir subjetividades as
nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos
capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo
222
assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de
manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência.
(KRENAK, 2019b, p. 32-33)
A pluralidade tanto da natureza quanto de subjetividades é
necessária para que a humanidade continue tendo espaço no planeta. O
consumo da natureza é inseparável do consumo das subjetividades, pois só
assim é possível convencer a todos/as/es a adotarem o mesmo cardápio,
figurino e língua” (KRENAK, 2019b, p. 23). Para que as pessoas se tornem
autônomas e deixem de ser consumidoras passivas é preciso permitir que
as subjetividades se enriqueçam.
O rompimento com o silêncio é fundamental para que outras
poéticas sobre a existência(KRENAK, 2019b, p. 33) possam emergir.
Além disso, é preciso que os currículos também rompam com o silêncio a
que são submetidos os saberes não hegemônicos. Pluriversar os temas
discutidos nas instituições de ensino é importante para que os diferentes
grupos sociais se vejam como parte dos ambientes educativos e como
capazes de construir saberes relevantes para a sociedade. Restringir o saber
à perspectiva antropo-euro-falo-ego-capital-logocêntrica é um desperdício de
saberes, além de fomentar perspectivas que promovem a alucinação
narcisista que produz o mundo em colapso em que vivemos. Como
destacamos com Santos (2015, p. 40-41) no capítulo anterior,
comparando as religiões monoteístas e as religiões politeístas, para os povos
afro-pindorâmicos as ervas não são daninhas e a terra não é amaldiçoada,
são Deusas e Deuses. Se o início do mundo moderno foi o fim para muitos
outros mundos, talvez o fim do mundo moderno há de ser a origem de
um outro-mundo, verdadeiramente novo” (VALENTIM, 2014, p. 23).
223
No entanto, como aponta Alyne Costa (2019, p. 38-39):
essa simetria de tratamento não implica “acreditar” no que estes outros povos,
por meio de suas próprias filosofias, dizem sobre o mundo, atitude que
caracterizaria um relativismo condescendente segundo o qual “tudo valeria”.
Tampouco se trataria de inverter o sentido da “seta epistemológica” e
considerá-los detentores de um saber exclusivo ou superior (porque sagrado ou
oculto a nós de alguma forma): essa inversão expressaria uma visão
grosseiramente exotizante, a qual é, no mínimo, inócua e, nos piores (e não
raros) cenários, resvala no racismo, pois reduz esses povos a meras caricaturas
de si mesmos. Com efeito, o que importa nesta outra prática antropológica é
interpretar, segundo os termos do outro (isto é, conforme as condições próprias
de produção desta prática), “a lógica que o outro pensamento põe em
funcionamento” (Calheiros, 2017), de modo a torná-la capaz de modificar
nosso próprio pensamento. Como afirma o antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro, contra o exotismo barato da tolerância cultural, o “exotismo
estratégico” da “alteridade cultural radical”, como forma de transfundir “as
possibilidades realizadas pelos mundos indígenas para dentro da circulação
cosmopolítica global, que se acha em evidente estado de intoxicação aguda”
(COSTA, 2012a, p. 152).
Aprender com as perspectivas soterradas pela narrativa oficial não
implica em relativismo e nem em uma substituição ingênua de saberes.
Entendemos que considerar tais saberes consiste em um processo de
diálogo constante, através do qual nos coloquemos em movimento em
todos os sentidos do termo. Até mesmo porque tais perspectivas não se
resumem às visões que temos delas e nossos interesses. Contudo, não se
trata de uma romantização das posições e filosofias das margens, mas de
reconhecê-las como válidas e portadoras de contribuições que nunca
pretenderam se tornar centro de nada. Por isso, não se trata de substituição
de perspectivas, mas de atravessamento (RUFINO, 2019), da construção
de novos saberes e formas de ser.
224
Como Catherine Walsh (2009) defendemos uma concepção de
interculturalidade crítica, que se diferencia das apropriações neoliberais da
interculturalidade. No sentido apontado por Walsh, não se trata apenas da
inclusão dos ausentes, mas de pensar coletivamente outros mundos
possíveis a partir das emergências de outros/as/es sujeitos/as/es e saberes,
em suas palavras, “é um projeto que aponta à reexistência e à própria vida,
para um imaginário “outro” e uma agência “outra” de com-vivência de
viver “com e de sociedade” (WALSH, 2009, p. 22). Nesse viés, a
interculturalidade inclui “a revitalização, revalorização e aplicação dos
saberes ancestrais, não como algo ligado a uma localidade e temporalidade
do passado, mas como conhecimentos que têm contemporaneidade para
criticamente ler o mundo, e para compreender, (re)aprender e atuar no
presente” (WALSH, 2009, p. 25). A partir disso, entendemos a
interculturalidade na educação como um caminho para pensar outras
formas de viver, ser, estar no mundo, mas também para pensar outras
formas de ensinar e aprender que, como afirma Walsh (2009, p. 25),
“cruzam fronteiras”.
Entendemos que lidar com o mundo atual diz respeito a uma
transformação sobre o que determinamos por conhecimento, dessoterrando
outros saberes. Contudo, os saberes ervas dentro e fora das instituições
acadêmicas não devem ser entendidos enquantomarginais”, haja vista que
isto reafirma o caráter central e universal do cânone monocultural. Para
além da resistência e resiliência que podemos aprender com as ervas, estão
suas próprias características medicinais e alimentícias, ou, no caso dos
saberes-ervas, sua potencialidade e resiliência de viver para além da
monocultura, nos ensinando a possibilidade de outros mundos por vir, e
também, desencobrindo outras humanidades, como refletiremos na
próxima seção.
225
3.2 Rizomas do ser
A tarefa de refletir sobre o que corresponde ao que chamamos de
humanidade nasce de uma necessidade urgente, especialmente no campo
da filosofia, como apontam Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 33):
este é um ponto muito pouco notado pelos discursos instalados na perspectiva
do ocidente moderno sejam eles de inspiração naturalista”,humanistaou
pós-humanistaa questão de saber quem é o nós”, o que se entende por
humanooupessoaem outros coletivos consensualmente considerados (por
nós) como humanos, raramente é colocada, e de qualquer modo jamais
ultrapassa o limite da espécie enquanto categoria taxonômica extensiva. A
abordagem desta questão é uma tarefa estratégica, para a qual a teoria
etnográfica está muito mais bem preparada, diríamos, que a metafísica ou a
antropologia filosófica, as quais quase sempre parecem saber perfeitamente que
gênero de entidade é o anthropos, e, acima de tudo, quem está falando, quando
se diz nós. (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 33)
Concordamos com Danowski e Viveiros de Castro que essa não
costuma ser uma preocupação de filósofos em geral, de forma que uma
determinada concepção de humano racional é o principal pressuposto da
filosofia ocidental hegemônica. Esse é o equívoco cometido por alguns
filósofos nas citações do capítulo anterior, afirmam muito sobre aqueles
que julgam ser os/as/es outros/as/es, mas não investigam quem seriam as
pessoas que cabem no nós. Quando essa investigação sobre o nós é realizada,
pode-se chegar à conclusão de que essa separação é possível apenas no nível
da abstração e que a materialidade que ela toma é consequência desse
movimento metafísico de ignorar o contexto do pensamento. Diante do
226
exposto, nesta seção, iremos investigar o que significa o homem moderno
e se existem outras humanidades nas bordas do planeta.
A ontologia hegemônica parte de uma compreensão da
humanidade como superior e separada da natureza. Nas palavras de Ailton
Krenak (2019c, n.p.), o “clube da humanidade” anda “pelo mundo como
se fosse a única inteligência viva da Terra”, como se não pudesse existir mais
nenhum lugar da Terra que não possa invadir. Uma grave consequência
desta ontologia que dá aval para a relação predatória com o planeta é o
antropocentrismo, que pode ser entendido como o próprio humanismo
moderno, uma excepcionalidade ontológica, como discutimos com
Danowski e Viveiros de Castro no capítulo anterior.
Krenak vê isto como “uma racionalização absurda do pensamento
em que o homem moderno se vê “descolado da Terra. Esses “agentes
colonizadores do planeta” produzem uma “humanidade-zumbi” que,
embora se julgue o único ser racional da Terra, não reflete sobre o que faz
e não consegue pensar a Terra de maneira ampla picotando-a em
pedacinhos através do extrativismo material, mas também através da
cultura, na qual percebemos o mundo sempre de forma fragmentada. Essa
humanidade-zumbi é “uma humanidade petrificada que nem sabe o que
está fazendo, mas continua fazendo” (KRENAK, 2019c, n.p.).
Acreditamos que, para desconstruir a monocultura da
humanidade, um jeito de começar é observar ascosturas” (TSING, 2015)
que envolvem os humanos na relação com seu entorno. Podemos olhar
para essas relações interespecíficas e procurar entender o que elas nos
dizem sobre a condição humana (TSING, 2015, p. 195). Por exemplo,
os líquens “captam a radioatividade dos acidentes nucleares, eles a ofertam
como alimento para as renas, que, por sua vez, alimentarão os humanos
227
caçadores. Nós podemos ignorá-los, ou podemos considerar o que eles
estão a nos dizer sobre a condição humana” (TSING, 2015, 195).
Uma concepção restrita de humanidade como superior e separada
da natureza mantém os interesses das grandes corporações, pois “fomos nos
alienando desse organismo que somos parte, a Terra, e passamos a pensar
que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo
onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos
é natureza” (KRENAK, 2019b, p. 16-17). Tal dicotomia fomenta a ilusão
de controle, de racionalidade “pura”, o que é “um abuso do que chamam
de razão” (KRENAK, 2019b, p. 19).
Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de
corporões espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade,
vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que
devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para
nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito
remédio. Porque, afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo
que produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos
entreter. (KRENAK, 2019b, p. 19-20)
O monstro corporativo “tem nome, endereço e até conta bancária.
E que conta! São os donos da grana do planeta, e ganham mais a cada
minuto, espalhando shoppings pelo mundo. Espalham quase que o mesmo
modelo de progresso que somos incentivados a entender como bem-estar
no mundo todo” (KRENAK, 2019b, p. 20-21). As grandes corporações
não têm interesse que os seres humanos sejam próximos da terra, como
ressalta Krenak sobre a atuação delas: “Vamos separar esse negócio aí, gente
e terra, essa bagunça. E, principalmente, gente não está treinada para
dominar esse recurso natural que é a terra” (KRENAK, 2019b, p. 22).
228
Assim, é preciso refletir profundamente porque é interessante para as
grandes corporações que os humanos sejam descolados da terra.
A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração
civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das
formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo
figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo. (KRENAK, 2019b,
p. 22-23)
Ao oferecer o mesmo “cardápio, figurino e língua” para
todos/as/es, controla mais profundamente as pessoas. Por isso, Krenak
(2019b, p. 69-70) propõe outra compreensão de nossa relação com a
natureza:
devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo
cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e um monte de
outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa abstração de unidade,
o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num
convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com
a qual se identificam, agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a
gente quiser. Esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir,
cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como
“natureza”, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela. Tem alguma
coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada identificada por nós
que está sumindo, que está sendo exterminada da interface de humanos muito-
humanos. Os quase-humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar
fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta. E por dançar
uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias, pobreza, fome,
violência dirigida. (KRENAK, 2019b, p. 69-70)
229
Em outras palavras, o que somos, em diferentes proporções, é o
que tudo que nos cerca também é. Elizabeth Povinelli vai além em suas
reflexões sobre o que chama de “imaginário do carbono” e aponta que
aquilo que é chamado de “ontologia” corresponde na verdade a uma “bio-
ontologia”, já que estabelece uma diferença radical entre vida e não vida
como necessária para uma predação do mundo, o que faz com que a autora
proponha uma concepção de “geo-ontologia” como uma ontologia não
ocidental. A filósofa Juliana Fausto (2020, n.p.) acrescenta:
“que diferença, da perspectiva do ciclo planetário do carbono, faz a diferença
entre Vida e Não-Vida?”. O planeta começou não apenas sem a humanidade,
mas também sem vida e não sabemos como haverá de terminar mas talvez
haja uma porosidade muito maior entre Vida e Não-Vida do que estamos
acostumadas a pensar. (FAUSTO, 2020, n.p.)
O conceito restrito de humanidade é uma invenção dos “muito-
humanos e contribui para os interesses dos monstros corporativos. Essa
abstração da racionalidade “pura” estabelece alguns “como medida de
todas as coisas”. Por outro lado, outros os “quase-humanos” são
os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa
terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas
margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América
Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes a sub-humanidade.
(KRENAK, 2019b, p. 22)
Os “quase-humanos” que se recusam a repetir a coreografia da
dança civilizatória são aqueles que também recusam o antropocentrismo.
230
Portanto, podemos dizer que adotar uma categoria universal para toda a
humanidade é um equívoco porque não há homogeneidade entre os
modos de ser humano no planeta.
Há alguns anos, a comunidade científica vem discutindo a
mudança para uma nova época geológica: o Antropoceno. O Antropoceno é
consequência do projeto moderno que combina “ecologias de plantations,
tecnologias industriais, projetos de governança estatais e imperiais e modos
capitalistas de acumulação. Juntos, eles movimentaram mais terra do que
as geleiras e mudaram o clima da Terra” (TSING, 2019, p. 228). O que
caracteriza essa nova época geológica é a predominância do ser humano
diante da força vital da natureza gerando impactos irreversíveis como o
aquecimento global, se estabelecendo, assim, como força geologicamente
dominante, com o agravamento de ter consciência desse papel geológico
o que não podemos afirmar com certeza sobre outras épocas geológicas.
Não há consenso sobre o que determina o início do Antropoceno, como
explica Tsing (2019, p. 249):
alguns arqueólogos sugeriram que o Antropoceno deve ter iniciado junto com
primeira domesticação de plantas e animais, data que tornaria os termos
Antropoceno e Holoceno limítrofes (Smith e Zeder, 2013). Alguns geógrafos
argumentam que, por volta de 1610, houve uma queda global de gás
carbônico, que pode ser explicada pelo genocídio de nativos americanos em
decorrência das doenças trazidas pelos europeus (Lewis e Maslin, 2015). Esse
genocídio encorajou o crescimento de florestas no Novo Mundo, diminuindo
a disponibilidade global de gás carbônico, o que talvez também explique a
última metade da Pequena Era Glacial na Europa. Inicialmente, os cientistas
do clima promoveram 1784 como a data inicial para o Antropoceno por causa
da invenção da máquina a vapor, um marco para a Revolução Industrial
(Crutzen e Stoermer, 2000). Agora, muitos voltaram sua atenção para 1945,
ano de lançamento da primeira bomba atômica, com sua clara marca radioativa
em sedimentos ao redor do mundo, e a “grande aceleração” de população
231
humana e da perturbação industrial (STEFFEN et al., 2015). (TSING, 2019,
p. 249)
Tsing (2019, p. 23) define o Antropoceno como a “era da
perturbação humana”, uma época em que as taxas de extinção
aumentaram. Ailton Krenak (2019, p. 58) explica que “O nosso apego a
uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é a marca mais
profunda do Antropoceno”, pois “Se já houve outras configurações da
Terra, inclusive sem a gente aqui, por que é que nos apegamos tanto a esse
retrato com a gente aqui?”. Ele acrescenta (2019a, n.p.) que estamos
diante de um desafio. Ou honramos a vida aqui no planeta ou renunciamos
à vida”. Tal reflexão também aponta para a insuficiência de nosso título,
haja vista que entender o fim do mundo como o fim da humanidade ou
um “fim para nós é uma distorção. Por outro lado, infelizmente pode ser
que alguns humanos talvez consigam destruir o planeta como um todo
com suas bombas nucleares, logo, um fim completo do planeta não pode
ser totalmente descartado.
Pesquisadores como Jason Moore têm chamado a atenção para o
fato de que a origem da crise que vivemos não está na existência da
humanidade por si só, mas é resultado de mudanças nas relações de
produção com o capitalismo. Por isso, ele prefere adotar o nome de
Capitaloceno ao invés de Antropoceno. Concordamos com Moore que nem
todos os humanos se encaixam nessa perspectiva predatória. Assim como
fez Moore, diversas outras propostas surgiram para evidenciar outros
aspectos da época em que vivemos, como por exemplo, Plantationceno,
Monoculturoceno, Homogenoceno, entre outros.
Como ressaltam Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 135),
apenas noventa grandes companhias são responsáveis por dois terços das
232
emissões de gases de efeito-estufa na atmosfera terrestre”. São estas
corporações que agem como representantes dos muito-humanos. Um
grupo restrito de humanos submete todos/as/es os/as/es outros/as/es. O
excepcionalismo humano tem cor, classe e gênero bem definidos. O francês
Bruno Latour entende o conflito entre mundos como uma guerra de Gaia,
diferenciando os humanos dos terranos. Os primeiros podem ser associados
em geral aos modernos e mais especificamente “a todos aqueles agentes, de
corporações a países a indivíduos, que se acham comprometidos de um
modo ou de outro (as diferenças nesses modos é, escusado repetir,
absolutamente essencial) com o avanço implacável da frente de
modernização” (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p.
135). Os terranos o aqueles que entendem que não é possível se sobrepor
à Terra, são chamados desse modo por não se descolarem da natureza e não
a virem como recurso, de maneira que não são a força motriz do
Capitaloceno, estão nas bordas do planeta. Por serem aliados da Terra, o
é contra a civilização”, o progresso”, a história”, o destino ou a
humanidade que os Terranos estão lutando concretamente, mas contra
estas entidades supracitadas. São elas que agem em nome dos Humanos””
(DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 135-136).
Alyne Costa diferencia os humanos dos terranos a partir de suas
divergentes concepções de poder. Os humanos, que Kopenawa (2015)
define como o “povo da mercadoria”, são aqueles que “acreditam encarnar
as potências isto é, que se identificam com o Estado e com o capitalismo”
(2019, p. 16), enquanto os terranos são “os que se recusam a deixar
tamanha responsabilidade nas mãos daqueles que se consideram
responsáveis por nós” (2019, p. 16). Por isso, os terranos
233
sabem que, para estarmos à altura do acontecimento sinalizado pelo
Antropoceno, é preciso criar outros meios de pensar e agir, e que é justamente
essa criação que é interditada pelo apelo ao consenso que “nossos responsáveis”
nos dirigem. Desse lado estão também aqueles que, tendo aprendido a existir
nas margens, nos interstícios, nas ruínas dos mundos governados pelas
potências, tornaram-se ases da sobrevivência: inventaram para si outras formas
de vida, aprenderam a restaurar ambientes degradados, recuperaram
conhecimentos abandonados, experimentaram agenciamentos outros que os
considerados viáveis economicamente, outros que os razoáveis, outros que
apenas humanos (ou Humanos). Eles são, em suma, os inúmeros indivíduos e
povos espalhados por toda parte que escolheram se aliar à Terra, esta sim a
verdadeira potência da vida. Aqueles que, seguindo Latour, chamamos de
Terranos são os que conseguem ir além da oposição e verdadeiramente resistir,
criando para si outras modalidades de existência ao seguir as linhas de fuga
traçadas por sua aliança com a Terra e seus seres. (COSTA, 2019, p. 16)
Aliados da Terra, os terranos não entendem a si mesmos como uma
potência superior, mas sim a própria Terra e o que ela oferece, recuperando
vida e os saberes que a alicerçam de diferentes modos.
O próprio termo Antropoceno reproduz a alucinação narcisista ao
entender o humano como protagonista da história trágica do planeta.
Como aponta Donna Haraway (2016), este termo ao tentar denunciar a
ação humana devastadora, incorre em antropocentrismo porque supõe um
poder impossível ao humano, nenhuma espécie é capaz de fazer um mundo
sozinha. Como aponta Gregory Bateson (1968, p. 44) evocando a
abordagem sistêmica, “o homem é apenas uma parte de sistemas maiores
e de que a parte jamais poderá controlar o todo”. Ancorando-se no
anthropos, o termo Antropoceno é equivocado porque humanos não fazem
história alguma sozinhos, aproveitam-se de outras histórias. Mesmos as
relações destrutivas dependem das condições oferecidas por outros seres, e
o que o humano “excepcional” faz é se aproveitar destas coordenando-as
234
de acordo com seus interesses. Por isso, Haraway (2016) se refere a esta
época como Antropoceno e Capitaloceno imperiais. No sentido aqui
apresentado, a ideia de Antropoceno pode ser entendida, como explica
Marco Antonio Valentim (2014, p. 07), como uma
falácia simultaneamente especista e racista contida na ideia de que homem
enquanto espécie natural ou essência metafísica, tomado à parte de toda
divergência de mundo entre os povos diferentemente humanos e não-humanos
(cf. Lévi-Strauss, 2013, p. 53), é o sujeito, absolutamente neutro e impessoal,
responsável pela catástrofe. (VALENTIM, 2014, p. 07)
A perspectiva monocultural da humanidade comete ao menos dois
equívocos primordiais. O primeiro deles é se entender como separada e
especial diante do que nos cerca, sendo que nada que existe em nós é
diferente do que existe “fora”. Como refletem Danowski e Viveiros de
Castro (2014, p. 147),
humanidade e mundo estão, literalmente, do mesmo lado; a distinção entre os
dois termos” é arbitrária e impalpável: se se começa o percurso a partir da
humanidade (do pensamento, da cultura, da linguagem, do dentro) chega-se
necessariamente ao mundo (ao ser, a matéria, a natureza, ao grande fora”) sem
cruzar nenhuma fronteira, e reciprocamente. (DANOWSKI & VIVEIROS DE
CASTRO, 2014, p. 147)
O outro equívoco corresponde a compreender a humanidade de
maneira homogênea, sem considerar os diferentes grupos humanos que são
soterrados pelo poder dominante.
235
O ideal de cultura que é intrínseco à versão moderna da
humanidade se delineia com o Iluminismo e a compreensão da cultura
como um saber erudito que civiliza a humanidade e a distancia de seus
supostos instintos selvagens”. Para descontruir tal perspectiva universal da
cultura, e, consequentemente, repensar o que entendemos por
conhecimento, traremos para o debate o xamanismo e o que Viveiros de
Castro chamou de multinaturalismo em 1996 para compreender as relações
entre os ameríndios e outros seres.
Ao observarmos as tradições ameríndias é possível perceber que,
em sua concepção, o humano pode trocar de “roupagens” com outros
animais. Tal possibilidade é sustentada especialmente pelo xamã, que é
aquele que tem a função primordial de traduzir tais experiências de
corporificação. Ian Packer (2019) relata uma história ouvida por ele em
uma aldeia krahô, na qual a caça em excesso levou o chefe dos queixadas a
transformar a mulher de um caçador também em porco-queixada. Ao
retornar, é dito ao seu marido pelo chefe dos queixadas: “Agora me escuta,
me escuta sobrinho (ijapar). Ela está grávida. [...] Cuida bem dela. Nós
estaremos vigiando” (PACKER, 2019, p. 184). Em resposta ao consumo
excessivo, a gravidez da mulher do caçador leva a um acordo pacífico:
narrativa apresenta então algo como um “tratado de paz” entre os queixadas e
o caçador krahô. O chefe-queixada pede, não sem tom de ameaça, que ele não
brigue com a esposa agora grávida e que cuide bem do filho-queixada que irá
nascer, isto é, que não o mate. Em troca, e como que para aplacar sua possível
ira ou desejo de vingança, o queixada lhe apresenta um novo fumo, esse
especialmente “entorpecente”
15
. Nesse momento, ele se dirige ao caçador por
meio do vocativo ijapar/ijapaxw`yj, termo de parentesco normalmente
15
A planta em questão é a Cannabis, de maneira que tal história também é a explicação da origem de seu
uso entre os krahôs.
236
traduzido como “sobrinho”/“sobrinha” e que está diretamente implicado nos
caminhos da onomástica krahô, já que essa é uma das classes a quem um
indivíduo pode transmitir seu conjunto de nomes.[...] Ao chamar o caçador
mehi
16
pelo termo ijapar, o chefe dos queixadas anuncia, portanto, que
pretende estabelecer com ele uma relação pacífica e de proximidade, por meio
da qual humanos adquirem um novo conhecimento. (PACKER, 2019, p. 188-
189)
A história krahô leva a uma compreensão de que a caça dos
queixadas não deve ser feita desregradamente a fim de preservar os porcos
e também os humanos que se alimentam deles. Em uma relação de
igualdade e pessoalidade, o xamanismo apresenta outra forma de entender
as espécies na qual os graus de parentesco são cultivados entre humanos e
outros seres, de modo que a diferença se dá pelos corpos. O contato com
a perspectiva dos outros seres que compõem a floresta se dá em convivência
próxima que, quando se converte também no consumo da carne, se dá
através de uma lógica antropofágica, na qual se ingere a força e o impulso
vital, demonstrando um conhecimento aprofundado sobre outros animais.
O xamanismo não se destina apenas à animalidade, Viveiros de
Castro (1996, p. 137) destaca: “Registre-se, entretanto, que nas culturas
da Amazônia Ocidental, e particularmente naquelas que fazem largo uso
de alucinógenos, a personificação das plantas parece ser pelo menos tão
importante quanto a dos animais”. O uso de plantas, cogumelos, venenos,
entre outros, demonstra uma relação muito próxima com a diversidade da
floresta, haja vista que a descoberta de seus usos não é um saber óbvio. A
floresta amazônica não é só portadora de uma vasta biodiversidade, mas
também apresenta uma grande sociodiversidade, uma vez que os povos
16
Nota do autor: Mehi é o termo pelo qual os Krahô se autodenominam e pode ser traduzido como
“nossa carne” ou “nosso corpo”” (PACKER, 2019, p. 184).
237
nativos da floresta têm uma gama enorme de usos e interações com o que
compõe a floresta. Além do que, algumas dessas substâncias oferecem risco
de morte, que é evitado através do conhecimento indígena sobre seus
efeitos e dosagens e pelo controle de suas variedades através do cultivo. A
experiência com essas substâncias também é demarcadora de fases da vida,
além de determinar o xamã, aquele que consegue ampliar sua perspectiva
através do contato com outros seres, em alguns grupos com a centralidade
do uso do rapé como aponta o xamã Davi Kopenawa (KOPENAWA &
ALBERT, 2015).
O xamanismo volta-se especialmente para o uso de plantas
psicoativas como forma de treinamento para o acesso a perspectivas
animais, vegetais, espirituais, de maneira que é a relação com tais plantas
que permite em grande medida perceber outros modos de ser. A relação
com essas substâncias pode ser entendida como um diálogo, como forma
de experimentar outras percepções, outras perspectivas. Isso leva
pesquisadores como Luis Eduardo Luna (2002) e Maria Betânia Barbosa
Albuquerque (2011) a afirmarem a existência de plantas professoras que
ensinam e mediam saberes. Nesse viés, por exemplo, a ayahuasca
17
personifica perspectivas cipós, vegetais, onça, formiga, árvore, pedra, entre
outros, como apontam diversos relatos e a nossa própria experiência
pessoal. Através da ayahuasca aprendem o modo de vida e valores que
envolvem a floresta e seus seres, por isso, podemos entender as plantas que
compõem a ayahuasca e outras plantas com as quais os ameríndios
interagem como tecnologias mediadoras da aprendizagem de muitos
saberes relevantes.
17
Bebida preparada com o cipó (Banisteriopsis caapi), a folha (Psychotria viridis) e água.
238
Sobre o xamanismo, Viveiros de Castro destaca (2002, p. 231)
destaca:
a noção de que os não-humanos atuais possuem um lado prosopomórfico
invisível é um pressuposto fundamental de várias dimensões da prática
indígena; mas ela vem ao primeiro plano em um contexto particular, o
xamanismo. O xamanismo amazônico pode ser definido como a habilidade
manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras
corporais e adotar a perspectiva de subjetividades alo-específicas, de modo a
administrar as relações entre estas e os humanos. Vendo os seres não-humanos
como estes se vêem (como humanos), os xamãs são capazes de assumir o papel
de interlocutores ativos no diálogo transespecífico; sobretudo, eles são capazes
de voltar para contar a história, algo que os leigos dificilmente podem fazer. O
encontro ou o intercâmbio de perspectivas é um processo perigoso, e uma arte
política uma diplomacia. Se o multiculturalismo ocidental é o relativismo
como política pública, o perspectivismo xamânico ameríndio é o
multinaturalismo como política cósmica. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002,
p. 231)
O xamanismo consiste em uma política cósmica na qual os xamãs
possuem a habilidade de diálogo transespecífico e são capazes de traduzir
tais interações para outros humanos, possibilitando percepções sobre essas
relações. O xamanismo pressupõe que diferentes seres veem coisas
diferentes da mesma maneira através dos referentes múltiplos que
constituem as suas ontologias. Assim, por meio de relações parcialmente
equivalentes, todos os seres têm as mesmas visões conceituais a partir de
diferentes referenciais. Nesse viés, o “xamanismo é essencialmente uma
diplomacia cósmica dedicada à tradução entre pontos de vista
ontologicamente heterogêneos” (VIVEIROS, 2006, p. 320), consistindo,
então, em uma poética da tradução ontológica. No viés do xamanismo,
todas as espécies veem o mundo da mesma maneira, o que muda é o
239
mundo que elas veem, o que tem a ver com o modo como seus corpos
experienciam o mundo.
A invenção da modernidade se baseou em uma concepção
multiculturalista na qual se pressupõe que existem diversas culturas, mas
apenas uma natureza humana universal. O xamanismo faz uma inversão
nesse esquema ao estabelecer que existe apenas uma cultura, isto é, uma
perspectiva que pode ser partilhada, e diversas naturezas apontando para
contextos relacionais e mutáveis. Enquanto a filosofia ocidental
hegemônica entende a cultura como aquilo que oculta a natureza, no
xamanismo o que é compartilhado é justamente a cultura, de maneira que
quando um humano se transforma em animal ainda carrega sua
humanidade mesmo que não evidente.
A habilidade xamânica carrega sempre um perigo, como explica
Arthur Imbassahy no artigo A arte de segurar o céu pela diferença: contra o
ódio a indígenas e meio ambiente, narrativas nos estimulam a alianças
(2019).
Na antropologia, é conhecida a imagem do xamã enquanto diplomata ou
tradutor cósmico, aquele que viaja por diferentes mundos e lida com sujeitos
diversos, mas igualmente humanos. Para voltar e contar o que viu, o xamã não
pode confundir as perspectivas, caso contrário corre o risco de ser capturado
pela visão alheia, virando Outro definitivamente. Na teoria da tradução
xamanística, um mesmo referente, objeto ou palavra pode significar outra coisa
por completo, a depender da perspectiva. Não há uma língua adâmica,
absoluta, responsável por igualar as diferenças entre mundos e idiomas. Aqui,
“traduzir é se situar na equivocidade e habitá-la”. (IMBASSAHY, 2019, p. 14)
O que acontece na transe xamânica gera consequências, e, por isso,
exige também a capacidade do xamã de lidar com as diferenças sem que
240
elas o dominem. Nesse sentido, muda radicalmente a forma como o
conhecimento é entendido.
O xamanismo é um modo de agir que implica um modo de conhecer, ou antes,
um certo ideal de conhecimento. Tal ideal é, sob vários aspectos, o oposto polar
da epistemologia objetivista favorecida pela modernidade ocidental. Nesta
última, a categoria do objeto fornece o telos: conhecer é objetivar; é poder
distinguir no objeto o que lhe é intrínseco do que pertence ao sujeito
cognoscente, e que, como tal, foi indevida e/ou inevitavelmente projetado no
objeto. Conhecer, assim, é dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito presente
no objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo ideal. Os sujeitos, tanto quanto
os objetos, são vistos como resultantes de processos de objetivação: o sujeito se
constitui ou reconhece a si mesmo nos objetos que produz, e se conhece
objetivamente quando consegue se ver ‘de fora’, como um ‘isso’. Nosso jogo
epistemológico se chama objetivação; o que não foi objetivado permanece
irreal e abstrato. A forma do Outro é a coisa.
O xamanismo ameríndio parece guiado pelo ideal inverso. Conhecer é
personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido
daquilo, ou antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um ‘algo’ que
é um ‘alguém’, um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 231)
A epistemologia moderna se sustenta em um ideal de objetivação
no qual é preciso diferenciar sujeito e objeto como na teoria kantiana, o
conhecimento passa por esse processo de dessubjetivar. O xamanismo
implica em uma outra maneira de se relacionar com o conhecimento, pois
enquanto na modernidade o saber sobre um objeto se determina sobre sua
análise interpretativa: “a convenção interpretativa ameríndia segue o
princípio inverso: um objeto é um sujeito incompletamente interpretado.
Aqui, é preciso saber personificar, porque é preciso personificar para saber:
o objeto da interpretação é a contra-interpretação do objeto” (VIVEIROS
241
DE CASTRO, 2002, p. 232). O que está em movimento no xamanismo é
o modo como cada um apreende o outro.
Neste cenário, temos outra compreensão de cultura como “a
natureza do Sujeito, ela é a forma pela qual todo agente experimenta sua
própria natureza”, por isso, “os animais e outros entes dotados de alma não
são sujeitos porque são humanos, mas o contrário eles são humanos
porque são sujeitos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 237). O que
subjaz tal relação é o fato de que “a condição comum aos humanos e
animais é a humanidade, não a animalidade, é porque ‘humanidade’ é o
nome da forma geral do Sujeito” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.
237). Nesse viés, não existem fronteiras rígidas entre humanidade,
natureza e cultura.
Como explica Sérgio Augusto Domingues (2011, p. 19), com a
cartografia do pensamento ameríndio Viveiros de Castro “procura
desdobrar ou redobrar o pensamento selvagem em uma filosofia”.
Domingues ressalta que “O saber indígena não funciona com conceitos
puros, mas sim com imagens-conceitos. Por isto ele é mito-poético. Mas
nem por isto ele é destituído de rigor lógico. Existe uma lógica neste
pensamento que é a lógica do sensível” (DOMINGUES, 2011, p. 18).
Nesse sentido, o entendimento pejorativo do mito que é fomentando pela
história oficial da origem da filosofia ocidental hegemônica não pode ser
tomado enquanto um fato, pois o mito pode carregar outras lógicas, como
a filosofia ameríndia nos dá exemplos.
Enquanto a filosofia ocidental hegemônica nega o status de sujeitos
para alguns humanos, animais não humanos e a natureza, “a filosofia
indígena atribui a todos os seres” (DOMINGUES, 2011, p. 21).
Domingues (2011, p. 22) acrescenta:
242
assim pode-se dizer que para o pensamento indígena a política é tratar os seres
vivos, principalmente os animais, a partir das mesmas condições que nos
tratamos. Pois a condição humana é comum a nós e a eles. [...] Em suma o
referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto
espécie, mas a humanidade enquanto condição. (DOMINGUES, 2011, p. 22)
A partir de uma condição comum entre todos os seres, o
xamanismo permite uma compreensão não exploratória. Por isso,
Domingues (2011, p. 24) conclui: “Creio que dialogando com os saberes
indígenas sobre as catástrofes ambientais, além de aprendermos muito,
podemos estar criando verdadeiramente um pensamento múltiplo,
nômade e planetário”.
Contudo, “cultura” não se restringe apenas ao ideal abstrato e
elitizado iluminista. Romper com a dualidade natureza/cultura resulta em
experimentar aprender com o que nos cerca, e, consequentemente, se o ser
humano é natureza, aprender sobre o que nos cerca significa aprender
sobre nós mesmos/as/es. O homem moderno comete três principais
equívocos no que diz respeito à cultura: entendê-la vinculada a um modo
de vida eurocêntrico considerado superior, entendê-la como algo que só
humano possui, entendê-la na perspectiva iluminista como algo
especial e para além da experiência cotidiana, de modo que só alguns
seriam portadores de cultura. Se, na perspectiva apresentada nesse capítulo,
não faz sentido falar em humanidade descolada da natureza, haja vista que
a dualidade que faz com que este conceito exista não pode se sustentar em
outras filosofias como a ameríndia que entendem o cosmos em unicidade
com todos os seres que o permeiam, julgamos que também não faz sentido
falar de cultura como algo descolado da vivência de cada ser do cosmos.
Assim, não apenas humanos têm cultura.
243
O xamanismo aponta para o mundo através de suas diferenças e
não na busca pela semelhança como explicou um kadiwéu à etnógrafa
Mônica Pechincha, como se refere Viveiros de Castro (2012, p. 158):
“O índio é parecido, mas o pensamento dele é muito diferente”. Aforismo
contra-antropológico exemplar, visto que alguém de nosso ofício diria, antes,
algo como: “o índio parece diferente, mas seu pensamento é muito
semelhante”. Eis que o “selvagem”, então, parece que pensa diferentemente
sobre o pensamento selvagem. (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 158)
Desse modo, traz uma nova perspectiva ontológica:
o pensamento ameríndio pode ser descrito como uma ontologia política do
sensível, um pan-psiquismo materialista radical que se manifesta sob a forma
de um perspectivismo imanente: [...]. Esse pensamento pensa então um
universo denso, saturado de intencionalidades ávidas de diferença, que se
sustentam reciprocamente de suas respectivas distâncias perspectivas; onde
todas as relações são concebidas como sociais (isto é, como formas-forças
duplas, com uma face visível e outra invisível), determinando idealmente todos
os termos como sujeitos dotados de um ponto de vista. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2012, p. 157)
Desencobrindo e dessoterrando as perspectivas daqueles/as que são
vistos/as/es como impedidores/as do mundo moderno, encontramos um
pensamento antinarcísico guiado por uma ontologia das diferenças e do
sensível. O pensamento ameríndio aponta para um mundo múltiplo de
perspectivas, com outros saberes, outros humanos, outros agentes do
planeta, outras formas de conhecer e viver. Uma ontologia que expressa os
rizomas do ser quando aponta para a interconexão entre humanidade e
244
natureza, mas também para interconexões entre as espécies, vistas como
parentes.
A partir de uma outra compreensão de humanidade, como
podemos pensar a relação com o planeta? Tentaremos responder tal
pergunta repensando o que entendemos por natureza na próxima seção.
3.3 Ecologias nas costuras do mundo: para além do discurso do
desenvolvimento sustentável
Quando olhamos através de outras perspectivas para a
humanidade, se faz necessário também repensar o que é natureza e de como
deve ser a relação entre humanidade/natureza o que é sustentabilidade?
. A fim de ampliar nossa compreensão dos seres que nos cercam e ouvi-
los de algum modo, trazemos para a discussão o perspectivismo ameríndio
que consiste na busca por entender a floresta para além da percepção
humana. Segundo Ailton Krenak, o perspectivismo ameríndio É uma
convocatória para pensar de outro jeito, para estar no mundo de outro
jeito, admitir outro jeito de estar no mundo. Ou você ouve a voz de todos
os outros seres que habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra
a vida na Terra” (KRENAK, 2019c, n.p). Como explica Viveiros de
Castro:
a condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas
a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo
da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os
animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os
humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são ex-
humanos, e não os humanos ex-animais. Assim, se nossa antropologia popular
245
vê a humanidade como erguida sobre alicerces animais, normalmente ocultos
pela cultura tendo outrora sido ‘completamente’ animais, permanecemos,
‘no fundo’, animais , o pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo
outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmos continuam a ser
humanos, mesmo que de modo não-evidente. [...] Essa distinção entre a
espécie e a condição humana deve ser sublinhada. Ela tem uma conexão
evidente com a idéia das roupas animais a esconder uma ‘essência’ humano-
espiritual comum, e com o problema do sentido geral do perspectivismo.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 230)
A invenção da modernidade se alicerçou principalmente na ideia
de evolução de um estado de natureza para um estado civilizado,
afirmando que o estado animal seria um estágio anterior da evolução e o
elo que manteríamos com outras espécies, das quais a humanidade se
diferencia pela racionalidade. No entanto, o perspectivismo ameríndio
propõe um entendimento diferente. Como apontam Danowski e Viveiros
de Castro (2014, p. 87), um número considerável de mitos ameríndios
acreditam na existência de uma humanidade primordial “seja
simplesmente pressuposta, seja fabricada por um demiurgo” de maneira
que “Na origem, enfim, tudo era humano, ou melhor dizendo, nada não
era humano”. Do mesmo modo que o Homem moderno acredita que
“”permanecemos no fundo animais ferozespor baixo de nossa roupagem
civilizada”, tais grupos ameríndios compreendem “a humanidade como o
inconsciente animal” de modo que mantêm uma “virtualidade humana
por baixo de sua atual aparência animal, vegetal, astral, etc” (DANOWSKI
& VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 92-93). Isto significa uma
importante mudança de paradigma.
As espécies animais e outras são concebidas como outros tantos tipos de
gentesou povos”, isto é, como entidades políticas. Não é o jaguarque é
246
humano; são os jaguares individuais que adquirem uma dimensão subjetiva
(mais ou menos pertinente, conforme o contexto prático da interação com eles)
ao serem percebidos como tendo atrás delesuma sociedade, uma alteridade
política coletiva. Nós também (referimo-nos aos ocidentais, incluindo-se aí,
por mera convenção, os brasileiros de cultura europeia), por certo, pensamos,
ou gostaríamos de pensar que pensamos, que só se pode ser humano em
sociedade, que o homem é um animal político etc. Mas os ameríndios pensam
que há muito mais sociedades (e portanto humanos) entre o céu e a terra do
que sonham nossas antropologias e filosofias. O que chamamos de ambiente
é para eles uma sociedade de sociedades, uma arena internacional, uma
cosmopoliteia. Não há, portanto, diferença absoluta de estatuto entre sociedade
e ambiente, como se a primeira fosse o sujeito, o segundo o “objeto”. Todo
objeto é sempre um outro sujeito, e é sempre mais de um. Aquela expressão
comum na boca dos militantes iniciantes da esquerda, tudo é político, adquire
no caso ameríndio uma literalidade radical (inclusive na indeterminação desse
tudo- os jabotis...) que nem o manifestante mais entusiasmado das ruas de
Copenhague, Rio ou Madri talvez esteja preparado para admitir.
(DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 93-94)
Para os adeptos do perspectivismo não apenas os humanos
constituem sociedades, expandindo a ideia de entidade política para além
do homem moderno, de maneira que há muito mais sociedades e humanos
do que sonham nossas filosofias. Assim, dão um novo sentido para afirmar
que “tudo é político” a partir do entendimento do ambiente como um
espaço de emergência cosmopolítica (STENGERS, 2015), no qual muitos
mundos coexistem, onde outros seres têm agência e intencionalidade, não
apenas os humanos. Nesse sentido, a despersonalização da natureza é
também a “despolitização das relações cósmicas” (VALENTIM, 2014, p.
07).
Nessa perspectiva, “cada espécie de existente vê-se a si mesma como
humana (anatômica e culturalmente)” (DANOWSKI & VIVEIROS DE
CASTRO, 2014, p. 95). Assim, os ameríndios não veem os jaguares como
247
humanos, mas entendem que ainda assim eles são “humanos-para-si” e
imaginam que os jaguares os veem como “bichos de caça, ou como feras
predadoras, ou tribos inimigas poderosas” (DANOWSKI & VIVEIROS
DE CASTRO, 2014, p. 96). É importante entender que:
como todos os seres humanos, como todo animal, enfim, os ameríndios
precisam comer ou de alguma forma destruir outras formas de vida para viver.
Eles sabem que a ação humana deixa inevitavelmente uma pegada ecológica
no mundo. A diferença está em que o solo em que deixam suas pegadas
também é vivo e alerta, sendo, frequentemente, o domínio ciosamente vigiado
de algum super-sujeito (o espírito-mestre da floresta, por exemplo). O que
requer, portanto, olhar com muita atenção onde se pisa. [...] o postulado
fundamental da cosmopolítica ameríndia é o que se costuma designar de
antropomorfismo. (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 96)
Ainda que não seja possível viver sem destruir outras formas de
vida, o que explica a centralidade da ideia de predação nas cosmologias
ameríndias, a relação com o que nos cerca pode se dar numa lógica de
“pisar leve sobre a Terra” (KRENAK, 2019c). Sobre isso, concordamos
com Renzo Taddei (2014, p. 2) que “é curioso que as sociedades fundadas
em uma metafísica da predação [...] mate menos que as sociedades que se
dizem fundadas na ética do amor (cristão)”
18
. Na filosofia ameríndia isso é
18
Mesmo os grupos indígenas que têm a centralidade na guerra e na antropofagia com outros grupos,
não podem ser necessariamente associados a uma moralidade violenta. Como explica Viveiros de Castro
(2002, p. 248), “não se pode nem se quer ignorar as inúmeras informações que sublinham o alto valor
atribuído à proeza guerreira, a onipresença do tema da vingança, a natureza iniciatória do homicídio, e
as conexões entre guerra e casamento. Seja como for, embora talvez caiba rotular os Tupinambá de
extremamente belicosos, seria muito difícil considerá-los como particularmente violentos. Os cronistas e
missionários representam sua vida cotidiana como marcada por uma notável afabilidade, generosidade e
cortesia. [...] seu ódio aos inimigos e todo o complexo do cativeiro, execução ritual e canibalismo estavam
assentados em um reconhecimento integral da humanidade do contrário o que nada tem a ver, bem
entendido, com qualquer humanismo.”
248
consequência de um entendimento de que tudo que nos cerca é vivo e
portador de uma perspectiva. Por outro lado, as ecologias modernas
quando tentam “pisar leve” o foco continua sendo o humano moderno,
sua sobrevivência, sua superioridade que aparece na ideia de que ele é
portador da responsabilidade necessária para “cuidar da natureza”, mas
raramente implica em um questionamento de si mesmo, de quem é, do
que é constituído materialmente e subjetivamente. Dessa forma, as
ontologias ameríndias contrastam com “o princípio antropocêntrico que
nos parece constituir um dos pilares mais firmemente fixados da metafísica
ocidental” (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 97)
manifestando um princípio antropomórfico.
Neste sentido, o antropomorfismo é uma inversão irônica completa (dialética?)
do antropocentrismo. Dizer que tudo é humano é dizer que os humanos não
são uma espécie especial, um evento excepcional que veio interromper
magnífica ou tragicamente a trajetória monótona da matéria no universo. O
antropocentrismo, inversamente, faz dos humanos uma espécie animal dotada
de um suplemento transfigurador; ele os toma por seres atravessados pela
transcendência como se por uma flecha sobrenatural, marcados por um
estigma, uma abertura ou uma falta privilegiada (felix culpa) que os distingue
indelevelmente no seio - no centro - da Natureza. E quando a filosofia
ocidental se auto-critica e se empenha em atacar o antropocentrismo, sua
forma usual de negar o excepcionalismo humano é afirmar que somos, em um
nível fundamental, animais, ou seres vivos, ou sistemas materiais como todo o
resto - a redução ou eliminação materialista é o método favorito de
equiparação do humano ao mundo preexistente. O princípio antropomórfico,
ao contrário, afirma que são os animais e demais entes que são humanos justo
como nós - a generalização ou expansão panpsiquistaé o método básico de
equiparação do mundo ao humano preexistente. (DANOWSKI &
VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 97)
249
O antropomorfismo traz uma perspectiva filosófica que não
entende a humanidade como uma espécie excepcional, rompendo com a
lógica do antropocentrismo. Na filosofia ocidental hegemônica, o
excepcionalismo humano só é questionado a partir da animalidade
intrínseca à humanidade ou na sua essência como ser vivo. Por trás da
lógica de se igualar ao restante, está um suposto “rebaixamento” humano
na escala evolutiva. O antropomorfismo ameríndio ao focar em um outro
entendimento humano não reproduz a lógica de retorno a um estágio
anterior, mas afirma a possibilidade ao outro de tudo aquilo de que
também se considera capaz, é equidade e não novas formas de entender as
hierarquias evolutivas. Diante disso, Danowski e Viveiros de Castro (2014,
p. 97) reivindicam que “o antropomorfismo merece receber cidadania
filosófica plena, apontando para possibilidades conceituais ainda
inexploradas”.
O filósofo ameríndio concluiria que “tudo já está vivo
(DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 98). Desta forma,
os ameríndios não veem outros animais como objeto. E, nesse sentido, o
que podemos afirmar sobre os/as/es múltiplos outros/as/es implica em
perspectivar:
poderia ser objetado que, a rigor, os animais são humanos-para-sipara nós,
pois somos nós (os Ameríndios) que sabemos isso e agimos de acordo com
esse saber. Sem dúvida. Mas não sabemos tudo o que os animais sabem, e
menos ainda tudo o que eles são. De qualquer modo, isto não significa que
exista, escondido nas profundezas do mundo, um Humano-em-si ou um
Animal-em-si, porque nas metafisicas ameríndias não há distinção e aqui
avançamos uma tese etnográfica, não uma hipótese universalista entre o
mundo-em-si” e a série indeterminada de existentes enquanto centros de
perspectiva ou, se assim se preferir, enquanto mônadas. Cada objeto ou aspecto
do universo é uma entidade híbrida, ao mesmo tempo humano-para-si e não-
250
humano-para-outrem, ou melhor, por-outrem. Neste sentido, todo existente,
e o mundo enquanto agregado aberto de existentes, é um ser-fora-de-si. Não
ser-em-si, ser-enquanto-ser, que não dependa de seu ser-enquanto-outro; todo
ser e ser-por, ser-para, ser-relação (Latour 2012). A exterioridade está em toda
parte. O Grande Fora é como a caridade, ele também começa em casa.
(DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 97-98)
Não sabemos tudo que os outros animais sabem, logo qualquer
afirmação de que nenhum outro ser do planeta além do homem tem
perspectiva o que na cosmologia ocidental implica ter consciência,
racionalidade, moralidade, política, entre outros é difícil de sustentar. O
que somos também carrega o ser-relação, o que quer dizer que depende
também dos outros seres. Sem separação entre sujeito e objeto, no mundo
ameríndio não existem objetos, tudo está inter-relacionado.
Assim, podemos perceber que o perspectivismo ameríndio aponta
para o sentido de que “os humanos não são os únicos seres interessantes e
que têm uma perspectiva sobre a existência. Muitos outros também têm
(KRENAK, 2019b, p. 32). Ailton Krenak aprofunda na compreensão do
perspectivismo ameríndio a partir do rio Watu: “O rio Doce, que nós, os
Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso,
como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se
apropriar; é uma parte de nossa construção como coletivo que habita um
lugar específico” (2019b, p. 40). Watu, que está em coma depois do
rompimento da barragem em Mariana (MG) em 2015, não é um objeto
manipulável como a ontologia predadora da modernidade entende. É vivo
e fez possível a sobrevivência de muitas gerações Krenak fornecendo água,
alimento, local para banho e diversão, como ele explica em entrevista:
251
sempre olhei essas grandes cidades do mundo como um implante sobre o corpo
da Terra. Como se pudéssemos fazer a Terra diferente do que ela é, não
satisfeitos com a beleza dela. A gente deveria é diminuir a investida sobre o
corpo da Terra e respeitar sua integridade. Quando os índios falam que a Terra
é nossa mãe, dizem “Eles são tão poéticos, que imagem mais bonita”. Isso não
é poesia, é a nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra. Somos terminal
nervoso dela. Quando alguém fura, machuca ou arranha a Terra, desorganiza
o nosso mundo. (KRENAK, 2019c, n.p.)
A organização e permanência da vida Krenak depende de Watu. A
situação em que ele se encontra hoje faz com que os Krenak vivam
confinados no que Ailton chama de “campos de concentração, onde
diversos de seus costumes tiveram que ser abandonados como a caça e a
pesca, tornando-se dependente da alimentação e água fornecidas pelo
governo.
O documentário “Para onde foram as andorinhas?” (2015), no
qual indígenas apontam os sintomas do aquecimento global em seus
contextos, permite perceber como o perspectivismo fomenta a vida e está
para além de uma forma poética de perceber o mundo. Entre as narrativas
encontramos referências ao canto das cigarras, que tiveram seus ovos
cozidos e não cantam mais, e às sumidas andorinhas que trazem a chuva.
Seres como cigarras e andorinhas são indicadores para tais povos do
momento da primeira chuva, melhor momento para plantar, já que
indicam período constante de chuva depois de alguns dias. Um dos
entrevistados diz que Por causa do calor as árvores não se sentem bem, é
por isso que não estão florindo. Como vamos o tempo da nossa história
acontecer se já perdemos os sinais que marcam o tempo? Está mudando o
tempo da nossa história (PARA ONDE, 2015, 17 minutos). Sem
cigarras, andorinhas e flores não há indicadores de chuva, não há alimento,
252
não há sobrevivência, altera-se o tempo da história de um povo. Também
não se faz ritual completo de furação de orelhas das crianças, pois não há
pequi, necessário para o processo.
A devastação ambiental crescente que estamos vendo, para Krenak,
é consequência justamente da despersonalização da natureza: “Quando
despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus
sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós
liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial
e extrativista” (KRENAK, 2019b, p. 49). E, com isto, toda a força da Terra
é voltada para suprir a demanda humana de mercadorias, segurança e
consumo (KRENAK, 2019b, p. 50). A despersonalização pode ser
entendida nos termos de um processo, como apontado por Russell Means
no segundo capítulo, de retirar o sagrado da potência cotidiana da vida.
Como explica Imbassahy (2019, p. 12):
Ailton Krenak faz uma crítica contundente de alguns dos princípios
dominantes que nos impedem de enxergar toda multiplicidade de seres que
coabitam conosco a Terra. Enquanto no xamanismo há uma busca de ver o
sujeito por trás do que parece ser um objeto, no capitalismo o fundamental é
que tudo vire mercadoria, isto é, objetos sujeitos à exploração. [...] Com essa
despersonalização do mundo, o que antes eram diversos sujeitos se
transformam em apenas uma humanidade, que se concede o direito de explorar
uma natureza exterior, passiva, transformada em recursos naturais. Dessa
forma, a acumulação de objetos no Ocidente se faz mediante um
empobrecimento generalizado dos sujeitos que compõem o mundo. Seu
objetivo final parece ser a redução de toda diversidade à monocultura: uma
unidade abstrata que, no entanto, projeta um mundo assustadoramente real.
Basta contrapor um deserto verde (dominado por uma única espécie) e a
Floresta Amazônica; o português e as mais de 160 línguas diferentes faladas no
Brasil; as muitas centenas de povos que vivem no continente americano e uma
dúzia de Estados-nação; incontáveis esritos e deuses e um único Deus cristão.
253
O que está em disputa é qual mundo queremos habitar. (IMBASSAHY, 2019,
p. 12)
Enquanto o perspectivismo ameríndio procura perceber os/as/es
sujeitos/as/es que existem no que a ontologia hegemônica entende como
objeto de exploração, o capitalismo busca transformar tudo em objeto para
consumo. Nesse bojo, o próprio humano é entendido como objeto. O
perspectivismo é um chamado para perceber e experimentar a
multiplicidade do mundo, mas isto implica em repensar profundamente o
modo como as relações se constituem, rompendo com as ideologias de
superioridade e exclusividade humana.
Nesse sentido, Davi Kopenawa através de sua crítica ecopolítica
da razão pura, branca(VALENTIM, 2014, p. 18) afirma que aquilo que
é chamado pelos brancos de “meio ambiente” não tem relação com a
experiência cósmica dos Yanomamis, pois corresponde ao “que resta da
terra e da floresta feridas por suas máquinas. É o que resta de tudo o que
eles destruíram até agora. Não gosto dessa palavra meio. A terra não deve
ser recortada pelo meio” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 484-485).
Sobre o entendimento da ecologia, explica:
na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto
nós, os xapiri
19
, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento
e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o
que ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas antigas palavras, as
que Omama deu a nossos ancestrais. (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p.
480)
19 Os xapiris são os espíritos da floresta que atuam a partir do diálogo com os xamãs. Os Yanomamis
entendem que a atuação dos xapiris é essencial para evitar o fim do mundo (“queda do céu”).
254
Nesse sentido, a ecologia não é feita apenas por humanos, ela é
realizada por todos os seres e relações que compõem a floresta. Por isso que
Kopenawa afirma que os xamãs protegem a natureza por inteiro, defendem
“suas árvores, seus morros, suas montanhas e seus rios; seus peixes, animais,
espíritos xapiri e habitantes humanos” (KOPENAWA & ALBERT, 2015,
p. 484-485), pois “Se a retalharmos para proteger pedacinhos que não
passam da sobra do que foi devastado, não vai dar em nada de bom”
(KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 484-485). Contudo, o
perspectivismo fomenta o entendimento do ambiente não enquanto meio,
mas enquanto cosmos, o ambiente como uma sociedade de sociedades
cosmopolítica –, na qual os outros seres são vistos como povos e não como
recursos.
O perspectivismo e o xamanismo apontam para a comunicação com
outros seres. A importância dessa comunicação também implica em evitar
o fim do mundo, isto é, a “queda do céu”. Sobre o xamanismo comenta
Imbassahy (2019, p. 14):
a solução simplista para evitar que o céu caia, critica Ailton Krenak, é isolar
ainda mais a humanidade da natureza. Idealmente, haveria de um lado um
mundo onde todos falam a mesma língua e se entendem; do outro, uma
natureza pura, protegida e intocada, onde os seres humanos podem apenas
passear, mas não de fato interagir. Em contraposição a esse ideal, que na prática
cria bolhas de paz em um mundo cada vez mais caótico, os conhecimentos e
as poéticas cosmopolíticas dos xamãs dizem respeito às articulações específicas
entre seres muito diversos, em intensa comunicação. (IMBASSAHY, 2019, p.
14)
E como forma de “preservação, o que se promove é o aumento do
distanciamento entre humanidade e natureza. Tal abordagem, que pode ser
255
chamada de conservacionista, também defende a expulsão de comunidades
em nome da preservação. Assim como Tsing (2019, p. 238), s
rejeitamos generalizações sobre a destruição ambiental, especialmente
quando envolvem acusações contra grupos pobres e marginalizados”, pois
muitas vezes os habitantes locais sabem mais sobre a situação e formas de
preservação das florestas do que os cientistas e governos.
Até mesmo o discurso de preservação se dá de forma descolada e
instrumentalizada da humanidade: “Nesse sentido, a biodiversidade
adquire papel econômico passivo por sua capacidade de absorver carbono
no balanço das emissões de gases de efeito estufa e dos processos de
redução do aquecimento do planeta” (LEFF, 2009, p. 253). Tal perspectiva
reproduz a ideia da natureza como um objeto manipulável a serviço do ser
humano e desconsiderando as relações sociais e espirituais que se
estabelecem.
Portanto, é preciso refletir sobre o que está por trás de discursos
sobre sustentabilidade: “Recurso natural para quem? Desenvolvimento
sustentável para quê? O que é preciso sustentar?” (KRENAK, 2019b, p.
22). Diversas vezes o termo desenvolvimento sustentável é usado para
encobrir práticas destrutivas, e mesmo na melhor das hipóteses, costuma
ser associado à reciclagem e plantio de árvores sem um questionamento
profundo desse sistema destrutivo capitalista. Concordamos com a
afirmação de Chico Mendes de que “Ecologia sem luta de classes é
jardinagem”, não há sustentabilidade possível sem uma mudança política
profunda, sem destituir as grandes corporações de seu poder irrestrito de
ditar os rumos do planeta, sem oferecer justiça para os povos das florestas,
ribeirinhos, caiçaras, quilombolas, ou seja, sem questionar profundamente
a própria ideia de desenvolvimento e o sistema que a sustenta. o é
possível entender a relação humanidade/natureza como neutra, pois parte
256
de uma concepção específica de humanidade e de natureza e de como
devem ser a relação entre ambas. Toda ecologia é política assim como não
pode existir justiça alguma sem justiça ambiental.
O que chamamos de catástrofe ambiental, se relaciona
intrinsecamente com a piora das condições de vida dos grupos oprimidos.
Como destaca Alexandre Costa (2014, p. 10), É uma questão crucial para
a classe trabalhadora, pois mitigar e frear a crise climática é pré-condição
para que não herdemos da burguesia uma Terra em ruínas (COSTA,
2014, p. 10). Costa estabelece paralelos entre a crise ecológica e a violência,
como se segue:
crise ecológica e recrudescimento da violência organizada pelo Estado, mesmo
nos regimes burgueses ditos “democráticos”, estão umbilicalmente unidas,
como produto inevitável do crescimento capitalista (a primeira) e como único
meio possível para assegurá-lo (a segunda). Ou se detém a fúria expansionista
do capital (e isso implica em rever as próprias noções produtivistas-
desenvolvimentistas incrustadas em boa parte do pensamento de esquerda”),
ou secas e cacetetes, enchentes e balas de borracha, furacões devastadores e
repressão e massa se abaterão, ao longo deste século, com mais e mais
frequência sobre a terceira classe do Titanic. (COSTA, 2014, p. 13)
A referência à “terceira classe do Titanic” é devido à segregação
explícita e a desigualdade na divisão de botes salva-vidas durante o famoso
naufrágio. Infelizmente não precisamos ir tão longe para entender o que
isto significa. Além dos apontamentos de Antonio Bispo dos Santos
discutidos no segundo capítulo, o Brasil infelizmente oferece um enorme
número de casos desse tipo. Juliana Fausto traz tal dimensão a partir do
massacre de Pacheco Fernandes Dantas, ocorrido durante o processo de
construção de Brasília em 1959, no qual a polícia assassinou pelo menos
257
93 operários. Ao estabelecer paralelos com a descoberta de um novo gênero
da família de roedores encontrado durante a construção e também
assassinados, Fausto afirma queBrasília e o desenvolvimentismo não
comportam nenhuma espécie de candango. E, se desenvolvimento é o
nome do jogo que resultou no Antropoceno, então o massacre de
populações sub-humanas e não-humanas é sua moeda corrente
(FAUSTO, 2014, p. 02). Ela acrescenta:
muitos concordam hoje que estamos vivenciando a Sexta Grande Extinção,
também chamada de Extinção do Holoceno ou Extinção do Antropoceno.
Queimando fósseis antigos, não paramos de criar novos fósseis. Do ponto de
vista desses novos fósseis, dos que se extinguem para se tornar, por exemplo,
pedras, o Antropoceno, mais que uma época geológica, é sistema de governo:
regime de exceção. Subversivos pelo desacordo entre seu modo de vida e aquele
único aceito pelo poder que se impõe sobre eles, inumeráveis espécies animais
sucumbem diariamente, caçados direta ou indiretamente por exemplo, pela
precarização de seus habitats. São os desaparecidos do Antropoceno.
Desaparecidos políticos, criminosos radicais na monocultura civilizacional.
[...] a filosofia, que, em grande parte de sua história, pelo menos a majoritária,
se esforçou para retirar dos animais qualquer ponto de vista, culminando na
famosa teoria acerca de sua pobreza de mundo. Seguindo o escritor, podemos
nos perguntar se o mundo dos animais é pobre nele mesmo ou se é o mundo
configurado pelo anthropos que é cada vez mais pobre; este homem que fala e
forma mundos empresta seu nome a uma época cujo próprio é a pobreza
ontológica. [...] No Antropoceno, essa afirmação perde seu caráter
supostamente descritivo e aparece como uma tarefa que o configurador de
mundos tomou para si: aproximar cada vez mais os animais das pedras,
transformando-os em fósseis. (FAUSTO, 2014, p. 03-04)
O desenvolvimentismo enquanto política do Antropoceno articula
fascismo e especismo, ao mesmo tempo queimando e produzindo fósseis a
partir de genocídios humanos e não humanos, o que permite afirmar que
258
a civilização baseada na queima de combustíveis fósseis é também aquela
comprometida com a produção acelerada de novos fósseis” (FAUSTO,
2014, p. 3) através da sua política de eliminação de pessoas e seres ervas-
daninhas.
Além do fim dos sistemas de exploração, a sustentabilidade
também passa pela colaboração multiespécies, como explica Tsing:
sustentabilidade significativa requer o ressurgimento de múltiplas espécies, isto
é, a reconstrução de paisagens habitáveis através das ações de muitos
organismos. A maioria dos estudiosos da sustentabilidade concentra-se apenas
em planos e programas humanos. Em contraste, eu argumento que, onde os
modos de vida humanos se sustentam através de gerações, é porque eles se
alinharam à dinâmica do ressurgimento de múltiplas espécies. (TSING, 2019,
p. 225)
A sustentabilidade não existe se a pensarmos como um ato
humano, o perspectivismo oferece um caminho para perceber como a
ecologia depende de entender e colaborar com a perspectiva de muitos
outros seres. O xamanismo estimula a preservação da floresta por meio da
aproximação entre os diferentes seres que compõem o que é denominado
“natureza”, focando numa necessidade constante de comunicação.
Longe de se reduzir a prosaicos lugares provedores de comida, a floresta e os
campos de cultivo são teatros de uma sociabilidade em que, dia após dia, os
índios vêm agradar seres que somente a diversidade da aparência e a ausência
da linguagem distinguem na verdade dos humanos. (DESCOLA, 1999, p.
118)
259
Os povos originários trazem uma outra concepção de natureza, de
humanidade e de ecologia, pois “fazem parte daquela gigantesca minoria
de povos que jamais foram modernos, porque jamais tiveram uma
Natureza, e portanto jamais a perderam, nem tampouco precisaram se
libertar dela” (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 94-
95). E, nesse sentido, podemos falar de uma colonialidade da natureza
(ALIMONDA, 2011) que estrutura as opressões coloniais e o racismo
ambiental, isto é, quem tem direito à terra e qual deve ser a relação com
ela.
A natureza na perspectiva monocultural moderna envolve ao
menos dois equívocos fundamentais intrinsecamente interligados: a ideia
de que os humanos não são natureza e a compreensão da natureza
enquanto objeto, isto é, recurso de exploração. Vemos que a compreensão
que temos de natureza foi fabricada pela ontologia hegemônica encobrindo
e soterrando os aspectos sociais e cosmopolíticos que a permeiam.
É ignorado o potencial ambiental dos diferentes ecossistemas,
como, por exemplo, a aplicação de monoculturas para climas temperados
não permite aproveitar o metabolismo e funcionamento próprio desses
ambientes e das pessoas e seres que nele vivem. Na monocultura são
ignorados os potenciais ecológicos do ambiente, da cultura e da
criatividade humana que exige diversificar os estilos tecnológicos e
respeitar as práticas dos povos: “Em vez de aglutinar a integridade da
natureza e da cultura, engole, para globalizar racionalmente o planeta e o
mundo” (LEFF, 2009, p. 239). Por isso, Leff defende a construção de uma
nova forma de compreender a ecologia que acompanhe a produção de
novos saberes científicos que resgatem os saberes e práticas tradicionais:
260
para descobrir novos usos potenciais dos recursos naturais e encontrar melhores
formas de organização produtiva, que sirvam aos povos na defesa contra o
processo político-econômico do capital, que atenta constantemente contra o
potencial produtivo da riqueza natural dos seus territórios, contra suas
identidades culturais e contra suas condições de existência. (LEFF, 2009, p.
234).
Contudo, sustentabilidade coincide com a proposta de “ver o que
importa mesmo para as pessoas, os coletivos e as comunidades nas suas
ecologias” (KRENAK, 2019b, p. 24), de forma a integrar conhecimento e
experiência cotidiana.
Antônio Bispo dos Santos contrapõe o modelo de desenvolvimento
sustentável com o que ele denomina como biointeração. Ele explica que as
práticas voltadas para o desenvolvimento sustentável se baseiam na tríade
“reduzir, reutilizar e reciclar”, não estabelecendo uma crítica radical ao
“uso indiscriminado de recursos naturais finitos e não renováveis nos
processos de sintetização e de manufaturamento, característicos do
desenvolvimentismo” e mantendo a “necessidade de transformação do
orgânico em sintético como algo inquestionável que inevitavelmente levará
a humanidade a uma situação de miséria, fome e escassez generalizada
(SANTOS, 2015, p. 98). Um exemplo do problema desse pensamento é a
garrafa pet, “uma vez pet, sempre pet” (SANTOS, 2015, p. 101), ou seja,
sua reutilização ou os processos industriais de reciclagem acabam por
somar ao esgotamento dos recursos naturais e da poluição, não eliminando
o problema da produção de plástico.
Por outro lado, a biointeração se dá através de processos de reedição
da natureza, se baseando na tríade “extrair, utilizar e reeditar” (SANTOS,
2015, p. 102) na compreensão de que “tudo o que fazemos é fruto da
energia orgânica” (SANTOS, 2015, p. 101). Assim, não se movendo por
261
“sentimentos de manufaturamento e sintetização” (SANTOS, 2015, p.
102), aponta para a
importância de biointeragirmos com todos os elementos do universo de forma
integrada, a ponto de superarmos os processos expropriatórios do
desenvolvimentismo colonizador e o caráter falacioso dos processos de
sintetização e reciclagem do desenvolvimentismo (in)sustentável, pelo processo
de reedição dos recursos naturais pela lógica da biointeração” (SANTOS,
2015, p. 102).
O exemplo trazido por Santos é o cofo utilizado para guardar a
pesca, que pode ser feito a partir de vários tipos de palhas disponíveis no
bioma, além de se decomporem rapidamente quando descartados.
Ao contar sua história na comunidade Pequizeiro no vale do rio
Berlengas no Piauí, Santos nos oferece um exemplo mais profundo de
biointeração. Além da existência de “roças de todo mundo”, as pescas eram
coletivas envolvendo em diferentes tarefas toda a comunidade, de maneira
que coordenadas pelos mais velhos, algumas pessoas “remendavam
tarrafas, outras cortavam palhas para fazerem tapagens, outras retiravam
balseiros de dentro d'água, outras distribuíam cachaça, bolos e tira-gosto,
outras faziam café e assim por diante” (SANTOS, 2015, p. 82). Quem não
tinha material de pesca, colaborava de outras formas. Porém, a melhor
maneira de entender o que Santos (2015, p. 82) chama de biointeração é a
“estrutura orgânico social de uma casa de farinha”. As várias tarefas que
envolvem o fazer da farinha são divididas por todas as pessoas envolvidas
em agrupamentos que, em torno de rodas, incentivam brincadeiras,
proximidades, amores.
262
Depois de dar água aos animais que estavam nas roças, os rapazotes
também comparecem à casa de farinhada, onde provocados pelo jeito
maroto das cabrochas, desafiam-se a enfrentar o manejo da roda.
Como a roda localiza-se, estrategicamente, em uma posição
privilegiada, de lá se vê todos os movimentos que acontecem no
recinto, inclusive, os olhares interessados das meninas. Se os meninos
que estão na roda conseguirem cruzar o seu olhar com o olhar de uma
das cabrochas, logo elas lhe passam uma mensagem que, sem
dificuldades, é compreendida. A mensagem é um convite para, após
raspar e cevar a mandioca, juntos pegarem água na cacimba. [...] Tudo
isso acontece mediante poucas palavras, quase ninguém percebeu, mas
a menina já emitiu outra mensagem: à noite ele deve ajudá-la a lavar a
massa. E assim se lava a massa, se colhe a tapioca, se torra a farinha, se
faz o beiju; e assim se namora, marca noivado, e vive-se durante um
longo período, onde se faz muita força, mas toda essa força se
transforma em festa. (SANTOS, 2015, p. 83-84)
Nesta perspectiva, o trabalho não é um castigo pelo pecado original
por meio de uma relação com a terra exclusivamente para a produção de
alimentos, mas está envolto por espiritualidade e ancestralidade. Através
da descrição detalhada de Santos, é possível entender mais profundamente
o que Tsing chamou de cultivo por amor. Sobre isso escreveu Maria Sueli
Rodrigues de Souza (SOUZA apud SANTOS, 2015, p. 112):
se perguntarmos o que é biointeração, Bispo nos responde é a pescaria artesanal
orquestrada com sinfonia afinada de vários instrumentos que produzem sons
diferentes com instrumentos diferentes sem deixar de ocupar o seu lugar no
ritmo sincronizado; é a mandiocada ou farinhada também numa orquestra da
qual participam as notas do trabalho, do amor, da sedução, do convívio, da
partilha, do achar bom viver e fazer junto. Biointeração é guardar o peixe nas
águas, onde eles continuam crescendo e se reproduzindo, é viver, conviver e
263
aprender com a mata, com o chão, com as águas, com o vento, com a lua, com
o sol, com as pessoas, com os animais. É transformar o trabalho em vida, arte
e poesia. É transformar as divergências em diversidades. É retirar as notas
pesadas do castigo do trabalho para fazer fluir, confluir a interação, a
biointeração. (SOUZA apud SANTOS, 2015, p. 112)
Biointeração significa compreender que “a melhor maneira de
guardar o peixe é nas águas. E a melhor maneira de guardar os produtos
de todas as nossas expressões produtivas é distribuindo entre a vizinhança,
ou seja, como tudo que fazemos é produto da energia orgânica esse produto
deve ser reintegrado a essa mesma energia” (SANTOS, 2015, p. 85), pois
as populações tradicionais reconhecem que os recursos naturais pertencem
a todos/as/es. O pensamento plurista dos povos politeístas é regido pela
confluência, isto é, pela “lei que rege a relação de convivência entres os
elementos da natureza e nos ensina que nem tudo que se ajunta se mistura,
ou seja, nada é igual” (SANTOS, 2015, p. 89).
Biointeração envolve uma mudança radical de concepção acerca da
natureza como explica Grosfoguel comparando as cosmovisões
ocidentalocêntricas com as não ocidentais (2016, p. 129, tradução nossa):
O problema com o conceito de "natureza" é que segue sendo um conceito
colonial, porque a palavra está inscrita no projeto civilizatório da modernidade.
Por exemplo, em outras cosmogonias a palavra "natureza" não aparece, não
existe, porque a chamada "natureza" não é um objeto, mas um sujeito e faz
parte da vida em todas as suas formas (humanas e não humanas). Portanto, a
noção de natureza já é eurocêntrica, ocidentalocêntrica e antropocêntrica. É
um conceito muito problemático, porque implica a divio entre sujeito
(humano) e objeto (natureza), onde o sujeito (humano) é quem tem vida, e
todo o resto é "natureza" considerada como objetos inertes.
264
Consequentemente, [...] na visão de mundo dualista cartesiana
ocidentalocêntrica, o humano é concebido como externo à natureza e à
natureza como um meio para atingir um fim. Quando essa racionalidade é
aplicada na produção de tecnologia, como tem sido o caso durante os últimos
cinco séculos de modernidade, temos a racionalidade da destruição da vida
porque qualquer tecnologia que se construa a partir da noção de "natureza"
entendida dessa maneira dualista ocidentalocêntrica terá inscrita dentro de si
mesma a racionalidade da destruição da vida, uma vez que não tem em mente
a reprodução da vida.
[...] Pelo contrário, nas cosmovisões "não ocidentais" das epistemologias do sul
(Sousa Santos, 2010) que não participam da visão dualista de mundo, mas
que têm dentro de si a noção holística de diversidade dentro da unicidade (por
exemplo, a "Pachamama" dos indígenas andinos, o "Twaheed" no Islã, o
"Ubuntu" na África, etc.) há uma visão completamente diferente. Na visão
holística, não existe "natureza", mas sim o "cosmos" e todos estamos no
interior dele mesmo como formas de vida interdependentes que coexistem
entre si. [...] A vida humana é concebida no interior da ecologia planetária e,
portanto, se destrói seu ecossistema ou as outras formas de vida ao seu redor
destrói ti mesmo. De maneira que a ecologia e suas várias formas de vida e
existência não são um meio para outro fim, mas um fim em si mesmo.
Qualquer tecnologia que se contrói a partir desse princípio traz consigo a
racionalidade da reprodução da vida. (GROSFOGUEL, 2016, p. 129,
tradução nossa)
O conceito ocidentalocêntrico de natureza parte da própria lógica
extrativista de saque e desapropriação dos “recursos do sul global (o sul do
norte e o sul dentro do norte) em benefício de minorias demográficas do
planeta consideradas racialmente superiores, que compõem o norte global
(o norte do sul e norte dentro do sul) e que constituem as elites capitalistas
do sistema mundial” (GROSFOGUEL, 2016, p. 128, tradução nossa). A
cosmovisão extrativista da natureza, baseada no dualismo cartesiano de
fragmentar natureza e humanidade, é ecologicida e carrega consigo uma
racionalidade destrutiva de todas as formas de vida porque utiliza o cosmos
265
como meio, ignorando a reprodução da vida que lhe é intrínseca, além de
necessária para nosso futuro. Por outro lado, nas cosmovisões não
hegemônicas nem ao menos faz sentido falar de natureza por entender que
todos/as/es são parte constitutiva do cosmos e não podem existir de forma
independente dele. Nesse sentido holístico de várias tradições não
ocidentais, a destruição do outro significa a destruição de si mesmo. O que
diferencia as duas cosmovisões é a compreensão da natureza enquanto
meio concepção ocidentalocêntrica e o cosmos como um fim em si
mesmo concepções não ocidentalocêntrica . Contudo, é mais do que
uma diferença de concepção, pois ao observar o mundo vemos que não é
possível sobreviver com a destruição do ecossistema. Desse modo, a
cosmovisão dualista ocidentalocêntrica é na verdade uma ideologia de
alienação que não pode existir no mundo tal como ele é. Enquanto a
ontologia hegemônica é destrutiva, outras cosmologias têm em seu cerne a
reprodução de vida a partir de uma compreensão cósmica de sujeito como
parte de um sistema orgânico. Precisamos entender o próprio planeta
como um ser orgânico dinâmico, desconstruindo a visão da Terra como
uma coisa, bem como resgatar uma visão mais orgânica e integrada de nós
mesmos/as/es. Concordamos com Tsing (2019, p. 238) que
para apreciar os desafios do Antropoceno, no entanto, precisamos prestar mais
atenção às socialidades interespécies das quais todos nós dependemos.
Enquanto bloqueamos tudo o que não é humano, fazemos da sustentabilidade
um conceito mesquinho limitado; perdemos o rumo do trabalho comum que
é necessário para viver na Terra tanto para humanos quanto para não humanos.
(TSING, 2019, p. 238)
Para dar conta dos desafios que o mundo contemporâneo tem
apresentado, é necessário estender o que entendemos por “pessoas” a todos
266
os seres que de certo modo produzem e renovam a vida na Terra. A própria
agricultura, quando entendida para além da excepcionalidade humana,
aponta para a agência não humana. Por exemplo, o que chamamos de
agroecologia, e que em muito se assemelha às técnicas de agricultura
ancestrais, parte de uma interação entre os seres a fim de utilizar as técnicas
de não humanos, como, por exemplo, a forma de cultivo de pássaros ou a
fabricação do mel pelas abelhas. Os processos agroecológicos se pautam na
observação e conhecimento profundo das técnicas de outros seres, como
abelhas e pássaros que atuam na propagação de sementes. O que a
agroecologia faz é interagir com outros seres oferecendo condições
convidativas para eles e retribuindo seu trabalho. Assim, cria-se um
ambiente favorável para que todos/as/es humanos e não humanos possam
interagir, se alimentar e, consequentemente, aplicar as técnicas próprias de
forma a beneficiar o coletivo.
O perspectivismo também fornece outras perspectivas sobre uma
pandemia. O artigo “Nisun: A vingança do povo morcego e o que ele pode
nos ensinar sobre o novo coronavírusda antropóloga Els Lagrou traz um
percepção cosmopolítica sobre o vírus através do pensamento Huni Kuin.
Para esse povo, a maior parte das doenças que temos são decorrentes do
consumo de carne, “As pessoas adoecem porque a caça e os peixes, mas
também algumas plantas que consumimos e outros seres que agredimos ou
com os quais interagimos, se vingam e mandam seu nisun, dor de cabeça e
tonteira que pode resultar em doença e morte” (LAGROU, 2020, p. 2).
Como acrescenta Juliana Fausto (2020, n.p.),
no nosso [mundo], embora muitas vezes encubramos o fato, as doenças
também costumam estar ligadas a um (mau) convívio com eles. De acordo
com a OMS, “60% das doenças infecciosas emergentes no mundo são
267
zoonoses. Mais de 30 novos patógenos humanos foram descobertos nas últimas
3 décadas, 75% dos quais originários de animais”. (FAUSTO, 2020, n.p.)
Sobre a tese de que os responsáveis pelo Covid-19 foram os
morcegos, Lagrou (2020, p. 05) ressalta que
como os humanos, os morcegos sentem stress. Quando percebem seu habitat
danificado pelo desflorestamento ou quando amontoados vivos em grandes
feiras, juntos com outros animais, para serem sacrificados, o aumento do stress
pressiona seu sistema imunológico e pode fazer com que um vírus latente se
torne manifesto e mais contagioso. Não é o fato dos humanos comerem caça a
causa das epidemias. As epidemias são o resultado do desmatamento e da
extinção dos animais que antes eram seus hospedeiros simbióticos. As
epidemias são também o resultado de uma relação extrativista das grandes
cidades com as florestas. Elas surgem nas franjas das florestas ameaçadas, nos
interstícios da fricção interespécie e de lá são rapidamente transportadas para o
mundo inteiro através de caminhões, barcos e aviões. E não é somente a caça
cujo stress causa pandemias, outros animais também sofrem e causam doenças.
Estes são prisioneiros de outra área intersticial entre a floresta e a cidade, a área
rural do grande agronegócio alimentício, notória para o surgimento de novas
gripes virulentas que podem virar pandemias. É nas grandes criações
industrializadas de galinhas e porcos confinados que surgiram há alguns anos
a chamada ‘gripe suína’ e outras que foram um prenúncio do vírus que
observamos hoje. A grande rede que conecta humanos e não humanos é a causa
e a solução para o problema. (LAGROU, 2020, p. 05)
Na perspectiva trazida por Lagrou, o problema não é o fato de
humanos se alimentarem de outros animais, mas as condições a que são
submetidos seres tanto em sua comercialização como objeto, quanto pelo
turismo e desmatamento que os retira de seus nichos, tornando-os
legítimos refugiados, provocando estresse e alterando seus sistemas
imunológicos, o que favorece o surgimento de novas doenças. Nesse
268
sentido, podemos falar de “guerra epidêmica dos animais contra os
humanos” (VALENTIM, 2014, p. 7). O aspecto emaranhado entre a
existência da humanidade e a existência de outros seres, ao mesmo tempo
que é o problema, haja vista que a economia mundial se movimenta em
uma guerra entre povos e seres, é também a solução, pois a colaboração
pode fazer ressurgir a vida. A partir disso, Lagrou afirma que, para
encontrar soluções nesse viés, precisamos romper com a ontologia dualista
sujeito/objeto e caminhar no sentido de uma ontologia relacional.
Na sua videoconferência para o Colóquio “Os mil nomes de Gaia” (2014),
Donna Haraway apelou para uma consciência renovada de como todos os
seres, incluindo os humanos, são compostos de outros seres e emaranhados
numa malha densa de devir-com. Em vez de inter-relacionalidade, estamos
lidando com intra-relacionalidade; somos entidades compostas de relações,
entrecruzadas por outras agências e habitadas por subjetividades diferentes.
Somos múltiplos e divíduos em vez de indivíduos; somos fractais. Somos
habitados por bactérias e vírus saudáveis e nocivos que travam batalhas
intermináveis. Essas novas descobertas cientificas se aproximam cada vez mais
do que as filosofias ameríndias há tempos tentam nos ensinar. “A noção de
uma entidade somada ao meio ambiente não pode mais ser pensada […].
Temos o que os biólogos chamam de holobiontes, a coleção de entidades
tomadas em conjunto na sua relacionalidade que constroem uma entidade boa
o suficiente para sobreviver o dia”. [...] Não é o fato de comermos porcos,
morcegos, galinhas ou pangolins que causa epidemias mundiais, mas o modo
como a civilização mundial, que se alimenta do crescimento sem fim das
cidades sobre as florestas, as árvores e seus habitantes, parou de escutar a
revolta, não das coisas, mais dos animais, das plantas e de Gaia. Ou como diria
Ailton Krenak, as pessoas foram alienadas e arrancadas da terra que é viva e
com a qual é preciso dialogar, conviver. (LAGROU, 2020, p. 06)
No artigo “Contra quem se vingam os animais?” a filósofa Juliana
Fausto (2020) faz referência à Starhawk que em uma seção do seu curso
269
online Magical Activismconvidou os participantes a ouvirem o vírus.
Nessa tentativa de ouvir o vírus, Fausto defende que
se é que se trata de vingança, essa dos povos animais (e de seus donos,
ancestrais, espíritos) não é contra a humanidade em geral, senão contra o seu
modo zumbificado, que segue transformando tudo em si mesmo enquanto
invoca toda sorte de negacionismo. [...] Hoje, vivemos todos em um filme de
terror. Já passou da hora de a nossa política aprender a arte multiespecífica da
polifonia - e esta pode ser nossa última chance. (FAUSTO, 2020, n.p.)
Considerando a humanidade como uma entre muitas melodias
dessa polifonia que é o mundo, faz sentido falarmos em um pluriverso
rizomático, em justiça planetária multiespecífica. A Terra, que era vista
como mero objeto que os muito-humanos acreditavam dominar com
suas tecnologias, tem apresentado agências inesperadas que apontam para
um sistema menos propício à vida. É preciso considerar as respostas da
Terra às intervenções da humanidade. O tempo das catástrofes, como
entende Isabelle Stengers (2015), é o tempo da intrusão de Gaia, é a agência
da Terra viva que através do colapso responde implacável e brutalmente à
agência de alguns muito-humanosimpondo a necessidade de se repensar
a relação entre humanidade e natureza. O “progresso” traz pobreza,
violência, mortes, pandemias, entre outros. A modernidade se desenvolveu
ignorando tais problemas, mas estamos chegando ao limite de Gaia. Assim,
Gaia, “a simbiose vista do espaço” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p.
199), onde as coisas se transformam umas nas outras, expulsa e torna
impossível o mundo moderno, impõe a necessidade de transformação das
sociedades humanas excepcionalistas. Encarar o fim do mundo de outras
perspectivas exige tentar compreender a perspectiva do próprio planeta
270
como faz Stengers. Existem muitos outros agentes terranos e a relação com
eles é fundamental para a existência da vida no planeta.
Parece que o conhecimento como resultado de uma cultura de
erudição secular não é suficiente por si só para responder a esta intrusão.
Na próxima seção, apresentaremos de que modo as diferentes perspectivas
que vemos aqui permitem pensar outra relação com o conhecimento e,
consequentemente, com Gaia.
3.4 Ervas dos saberes
A árvore do conhecimento representa um pensamento hierárquico
que parte de um monismo perceptivo. As ervas dos saberes são
descentralizadas, não hierárquicas, se relacionam com outros povos
humanos e não humanos, negociam as suas existências, fazem alianças pela
vida, são plurais de perspectivas, não veem o mundo como uma
exclusividade sua e sim como arena de uma sociabilidade ampla de povos
e seres. Caminhando de uma percepção monocultural arborescente para o
perspectivismo herbal plurista, é possível perceber outras possibilidades para
o ensinar e o aprender. Para pensarmos uma perspectiva da aprendizagem
que não reproduza a monocultura, é interessante refletir sobre alguns
apontamentos que Sandra Benites faz em sua dissertação de mestrado
Viver na língua guarani nhandewa (mulher falando) e que nos permitem
conceituar um ensino e aprendizagem rizomáticos. Benites, que é Guarani
Nhandewa, está interessada na questão de “como praticar o micro teko
(individual) para o macro (coletivo) nos tekoha dos juruá
20
, onde o
20
Os juruá são os não indígenas.
271
universo destes é tão forte que se sobrepõe ao arandu das mulheres?”
(BENITES, 2018, p. 20), refletindo como isto impacta nos processos
educativos.
Em sua pesquisa, Benites classifica sua experiência na escola juruá,
“entre paredes e com pressão” (2018, p. 21), como um tempo dramático
(2018, p. 24):
Fui obrigada a ler e escrever numa língua que não significava nada para mim,
naquele tempo, como uma língua estrangeira. O método era o de encher a
lousa com palavras repetidas para nós copiar. A minha mão chegava a doer de
tanto copiar do quadro, mas o pior não era copiar. O pior era não saber nada
daquilo que eu estava copiando. Nós éramos crianças monolíngues em guarani,
copiando palavras inúteis. Esse método continua nas escolas guarani, continua
mondyi (assustando). (BENITES, 2018, p. 34)
Sua forma de aprender, própria da sua comunidade, “sem pressão
e sem paredes” (BENITES, 2018, p. 21), não era considerada, bem como
sua língua era ignorada, o que gerou um trauma na sua relação com as
letras: “Com medo, eu não conseguia escrever nada, porque minha letra
era horrível, por medo de ser castigada, mesmo sabendo que eu estava
errada por não copiar as atividades do quadro. O medo me travava toda,
não conseguia fazer nada” (BENITES, 2018, p. 21).
A história da criança Guarani Werá Kuaray contada por José R.
Bessa Freire (2017) no XXIV Congresso Internacional da Associação
Junguiana Do Brasil (AJB), nos revela a experiência indígena na escola.
Werá, que era falante do Guarani e se não se comunicava em português,
em sua primeira experiência escolar encontrou dificuldades para coisas
básicas como pedir água à professora. Diante da situação, sua primeira
272
professora montou um projeto no qual os/as estudantes tiveram a
oportunidade de aprender sobre o mundo Guarani através de cantos e
histórias, criando um ambiente de aprendizado a todos/as/es ao mesmo
tempo em que incluía Werá na escola. Assim, A diversidade, vista quase
sempre pela escola como obstáculo a escola adora o uniforme passou a ser
aqui um recurso pedagógico para avançar no conhecimento da aventura da
existência humana” (FREIRE, 2017, p. 04). No entanto, assim que precisou
mudar de cidade, Werá pode perceber que esta não seria a realidade de
todas as escolas.
José R. Bessa Freire conta a história de Werá Kuaray a partir de
quatro relatórios diferentes feitos por docentes. Na segunda escola:
a primeira recomendação da nova professora foi que o pai não falasse mais em
guarani com o filho. Quando Werá abria a boca, a professora exigia que falasse
“certo”, “normal”, “como todo mundo”, ou seja, em português.
O relatório de avaliação registra que o aluno é novo na Unidade Escolar nesse ano de
2013, é descendente de índios e veio de uma tribo onde a língua materna era o Guarani,
assim demonstra dificuldades em se fazer entender, pois fala muito enrolado e na língua
dele. Não compreende muitas atividades, não demonstra interesse. Abaixa a cabeça,
permanece horas olhando para o nada, rabisca a folha, ou deixa a folha parada sem fazer
nada. Até nas brincadeiras, pouco se mistura, muitos colegas não conseguem entender o
que ele fala. Há palavras que ele repete ou se comunica por gestos. Reconhece seu
primeiro nome, que escreve quando solicitado. Geralmente entrega as atividades
sem nome ou em branco, sem tê-las feito. Seus desenhos surgem de figuras ora
reconhecíveis, ora não ocupam adequadamente o espaço da folha. Conseguiu
identificar a vogal “A” e em tudo o que faz usa a letra descoberta. Ao ser solicitado
a recontar uma história ouvida, não se faz entender, tornando difícil a produção
oral. No ano de 2014, quando cursará o 1º. Ano do Ciclo Inicial, vai precisar de
um trabalho paralelo para a alfabetização, além de treinar a língua portuguesa
fora da escola para superar a dificuldade de relacionamento” (RELATÓRIO
2013). (FREIRE, 2017, p. 04-05, grifos do autor)
273
O modo próprio de Werá se comunicar é entendido como um “falar
enrolado”, “sem interesse”, “olhar para o nada”, “figuras que ocupam
inadequadamente a folha”, de maneira que o fato de falar em Guarani com sua
família é visto como um erro a ser corrigido. Em outra escola que estudou, no
município de Tanguá, de nome indígena, foi relatado que:
“encontra-se no nível pré-silábico, ainda não reconhece o alfabeto, precisa do
auxílio da professora para identificar letras e números, ainda não produz textos.
Gosta muito de pintar, prefere pintar com hidrocor, pois as cores são mais
vivas. Está sendo difícil avaliar o aluno devido à dificuldade de comunicação.
Ele apresentou poucos avanços. Não solicita ajuda da professora quando
necessário, não se comunica, não brinca com os colegas, se recusa a fazer as
tarefas em sala, se esconde debaixo da mesa e demonstra certa agressividade,
quebrando lápis”, embora “alguns dias chegue à sala alegre e demonstrando seu
afeto com abraços na professora, em outros chega mal humorado e se isola do
ambiente ao redor. Senta em sua cadeira e fica olhando para o teto ou entra
embaixo da mesa da TV e lá permanece até o fim da aula”. “Muitas vezes parece
se desligar da realidade, envolvido em seus pensamentos”. “Algumas vezes fala
de um jeito que não conseguimos entendê-lo, talvez na língua indígena”
(RELATÓRIOS, 2014). (FREIRE, 2017, p. 05-06)
Tal relatório levou Werá a ser diagnosticado como “autista”, o que
foi descartado por dois hospitais universitários. Como seus pais não
aceitaram o diagnóstico, a escola ameaçou denunciá-los ao Conselho
Tutelar. Ao ser visto como “anormal” era excluído do convívio da turma
juntamente com outra estudante com déficit cognitivo”, que era
acompanhada por uma mediadora. Quando a mediadora precisou de uma
licença, a escola recomendou que Werá ficasse em casa. Freire (2017, p. 06)
reflete que
274
não é um caso patológico, mas de tratamento inadequado para ultrapassar as
fronteiras das línguas. Quem padece de autismo pedagógico é a escola, que não
respeita os direitos linguísticos garantidos pela Constituição de 1988, se isola, agride
quando busca alfabetizar a criança numa língua que não é a dela e na qual não se
expressa oralmente com fluência. [...] Acontece que da mesma forma que Werá
guarani, existem milhões de brasileirinhos que chegam à escola, falando segundo
regras de variedades populares e são humilhados, porque se estabeleceu fronteiras
rígidas no jeito de falar. Dessa forma, as crianças são levadas a se envergonhar das
variedades consideradas “erradas”, um verdadeiro bullying coletivo. Com essa atitude
inquisitorial boicotam qualquer possibilidade de apropriação, nessas condições
adversas, da “certa variedade” considerada “variedade certa”. O respeito ao jeito de
falar do aluno é uma condição para criar um ambiente acolhedor e propício à
aprendizagem da norma dita culta. (FREIRE, 2017, p. 06)
A situação vivida por Werá Kuaray não é um caso isolado, não
apenas pelo grande número de famílias indígenas no Brasil, mas expressa
o que produz uma concepção de aprendizagem como reprodução que,
dessa forma, dificulta a aprendizagem. Os modos próprios de ser e se
comunicar das diferentes comunidades são vistos como erro no contexto
escolar. Por isso, Sandra Benites (2018, p. 33) entende que a “escola ainda
é um “sistema único”” pontuando as diferentes concepções do educar
juruá e do educar guarani:
a escola juruá me direcionou para caminhos invertidos. Mbo’e (ensinar, educar)
não é apenas contar o que está no papel; “educar” em Guarani é fazer juntos,
demonstrar, praticar e aprender fazendo”. O conceito de mbo’e é preparar para
a vida, explorar as competências de cada teko individual, oferecer ao aluno o
fortalecimento dos conhecimentos que já traz para a escola. As crianças não
vêm para a escola para serem instruídas, guiadas, direcionadas, como se
estivessem perdidas. Elas vêm para a escola para reforçar os conhecimentos do
seu povo, para fortalecer a sua identidade cultural, a sua língua materna e para
falar da sua própria história vivida. Hoje é também importante saber sobre a
história dos não indígenas, para entender juruá reko (o comportamento dos
275
juruá), mas o que eu percebo, depois de andar no meio dos juruá, é que educar
na visão do juruá é outra coisa. A palavra “educar” vem do latim educere, que
significa, literalmente, “conduzir para fora” ou “direcionar para fora”. O termo
em latim é composto pela união do prefixo ex, que significa “fora”, e pelo verbo
ducere, que quer dizer “conduzir” ou “levar”. Pela minha observação, não dá
para dialogar a partir dos sentidos de um único termo numa única língua, um
aspecto a partir da uma visão. Eu posso estar equivocada, mas na minha
experiência como educadora guarani a escola segue o conceito do latim. Não é
por acaso que o tempo todo estamos em choque com essa forma de educação.
Mesmo com essas dificuldades os pais e as crianças acreditam numa escola que
atendam seus estilos de vida nas comunidades com mais amoroso e menos
preconceituoso. Os pais querem que as crianças estudem, mas na grande
maioria das vezes eles não sabem o que os filhos passam na escola dentro da
aldeia, apesar das boas intenções. (BENITES, 2018, p. 33-34)
A partir do que traz Benites, podemos dizer que a educação
indígena não tem a ver com civilizar o outro. Educar em Guarani é fazer
juntos, fortalecer as identidades, possibilitar que os estudantes contem suas
histórias, não pressupõe um processo de abstração contínuo da realidade.
A educação formal é escolacentrista (ARROYO, 1987) e não enxerga o
conhecimento na vida cotidiana. Para os Guaranis, não há limites rígidos
e precisos entre a conversa e a transmissão de conhecimentos.
Benites também destaca diferenças entre a educação jur e a
Guarani no que diz respeito à avaliação. Ela nomeia a avaliação juruá como
um “avaliar com números” (BENITES, 2018, p. 36), de maneira que há
“avaliação sobre tudo, notas e números para dizer quem foi melhor”
(BENITES, 2018, p. 36). Ela aponta que tal processo avaliativo coloca
pavor nas crianças dizendo quem é capaz e incapaz pelo simples fato de
colocar um número com nota altíssima para um e para outro com nota
baixíssima” (BENITES, 2018, p. 36). Por outro lado, os indígenas veem
mais sentido na autoavaliação.
276
Para a avaliação no olhar guarani é mais importante a autoavaliação. Significa
omã’e idjehe (olhar para si), já que para os Guarani, de modo geral, o
conhecimento é do coletivo e avaliar o outro não é o mais importante. Quando
um Guarani se auto-avalia, não está considerando apenas a sua competência
individual. Para realizar uma avaliação de outra pessoa, preciso me autoavaliar
primeiro. Se numa aldeia uma pessoa faz alguma coisa que pode prejudicar o
outro, esse é um resultado que não foi construído por este indivíduo sozinho.
É um resultado que contém vários elementos desta comunidade. Por isso, ao
avaliar uma pessoa, nós não avaliamos só ela. Utilizamos os conselhos dos mais
velhos, reuniões, a questão familiar, etc. A autoavaliação é para medir seus
esforços pessoais, para saber até onde depende de uma pessoa para avançar.
Nós também nos autoavaliamos para poder cobrar do outro. Por isso, é
importante saber de seus próprios limites e como seus esforços pessoais podem
ajudar a coletividade. (BENITES, 2018, p. 37)
Na perspectiva Guarani, como Benites (2018, p. 62) verificou
através de seus diálogos como professora, “a escola deve ter como principal
objetivo ajudar no fortalecimento da identidade, na preservação da cultura,
no ensino e divulgação da cultura guarani”. Assim, a escola indígena não
anula as singularidades, as fomenta, permitindo a resistência e mecanismos
que possam transitar entre mundos Guarani e juruá, entendendo quem são
e lutando por seus direitos.
Ao comparar a avaliação com números e a autoavaliação, Benites
permite perceber como o sistema hegemônico padroniza modos de ser, isto
é, em Guarani, teko, como ela explica a seguir:
Teko significa “modo de ser”. Tekoha é onde se constrói esse modo de ser, cada
corpo é um território. Por isso, para nós existem vários teko. Existe teko das
crianças, teko das mulheres, teko dos homens, teko dos jovens, teko dos
velho(a)s, e assim por diante. Por isso nós Guarani sempre procuramos
respeitar teko do outro, mesmo que não sejam iguais, e mais para equilibrar o
movimento do lugar. O lugar em que nós nos movimentamos é movimentado
277
pelas pessoas que estão nele. Se as pessoas não tiverem em harmonia com os
outros, o lugar também não estará bem. (BENITES, 2018, p. 70-71)
Nessa perspectiva, os territórios são corpos em movimento em
constante busca por equilíbrio. Tekoha, comumente traduzido por
aldeia, significa o “lugar dos modos de ser”. A perspectiva Guarani
permite perceber como o equilíbrio de uma pessoa depende do que está ao
seu redor, de maneira que os diferentes teko se complementam uns aos
outros. A busca por equilíbrio nesse sentido, não se restringe a uma prática
individual e nem a um processo de padronização e anulação das diferenças
que tende a um ideal de comportamento. Além disso, tal perspectiva
aponta para o aspecto dinâmico dos modos de ser. Por que não pensar com
nossos estudantes o equilíbrio a partir da perspectiva Guarani, indo além
do equilíbrio individualista aristotélico? Aqui também podemos refletir
sobre a felicidade e como ela está relacionada à comunidade e não apenas
a estados individuais. Isto expressa o conceito de território-corpo,
articulador da Primeira Marcha das Mulheres Indígena (2019). As pessoas
são entendidas como extensão do território, de maneira que não há
existência sem coexistência no território. Assim, a noção de pessoa é
perpassada pelo território, a ancestralidade e o coletivo.
O mais interessante na filosofia de Benites é a sua preocupação em
evidenciar a diferença de perspectiva.
Diferentes narradores, com técnicas e conhecimentos distintos, produzem
versões de uma mesma narrativa. O narrador, a partir do seu processo de
formação, de sua aprendizagem e através da apropriação de certas técnicas,
contará as suas narrativas. Logo, existem vários narradores e versões diferentes
de uma mesma história, porque quem conta, narra a partir de sua perspectiva
278
e dos seus conhecimentos. Fala e narrativas tem poder de construir e
desconstruir o mundo, teko. (BENITES, 2018, p. 92)
Como o conhecimento dos juruá discutido na academia não trata
das especificidades a partir do teko das mulheres” (BENITES, 2018, p. 18),
é importante analisarmos mais amplamente os saberes, percebendo as
diferentes narrativas a partir de contextos diversos. Benites ressalta a
necessidade do conhecimento Guarani também o ser entendido de uma
maneira homogênea, trazendo como exemplo a história da figura feminina
de Nhandesy, que embora também faça parte da história de origem
Guarani, não é tão conhecida quanto a figura masculina de Nhanderu. Ela
destaca que as diferentes perspectivas dessa história de origem dizem
respeito a seus narradores, por isso, a história é diferente quando contada
por pessoas como a avó de Benites que destacava o abandono de Nhandesy
grávida por Nhanderu, o que levou ela a ser devorada por onças, ensinando
a necessidade do olhar cuidadoso com a mulher. Ao mesmo tempo, Benites
leva ao questionamento dos essencialismos decorrentes do olhar binário e
dualista moderno, que não percebe as diferentes perspectivas entre as
pessoas da própria comunidade acerca das histórias, bem como de povos
de diferentes territórios, mesmo que sejam também da mesma etnia. Há
diferentes narradores, com técnicas e conhecimentos distintos,
dependendo do seu processo de formação como narrador(a), da
apropriação das técnicas de ensino e aprendizagem. [...] Fala tem poder,
narrativa bem-intencionada e direcionada domina e se reproduz com
força” (BENITES, 2018, p. 19). Quando colocamos no papel uma única
versão das histórias, as empobrecemos, pois o lugar da pessoa e do território
muda seu sentido, na oralidade as palavras são vivas e se transformam
continuamente. O interessante é que no Guarani, com relação a graus de
279
parentesco, por exemplo, há diferentes palavras para quando são mulheres
ou homens falando, ressaltando as diferentes relações que envolvem a
comunidade e o parentesco. Por isso no título da sua dissertação, Benites
acrescenta “Mulher falando” ao final.
Isso tamm aponta a relevância do corpo no conhecimento,
Afinal o corpo não é apenas o corpo que se move, que fala, que pensa,
que ri, que chora, o corpo que interage com outro e com o mundo. É um
corpo que produz conhecimento nos seus tekoha a partir de seus teko em
movimento(BENITES, 2018, p. 73). Em sua dedicatória, ela acrescenta:
como minha avó dizia: cada pessoa é um mundo diferente, “as pessoas são
mundos diferentes”, por isso é importante saber ouvir” (BENITES, 2018,
p. V). Nesse sentido, transitar entre mundos é um projeto da educação
Guarani. Considerando as diferenças entre narradores/as, o processo de
ensino e aprendizagem pode respeitar a narração de cada pessoa
trabalhando em diálogo com suas percepções. Isso implica em ampliar o
diálogo e as linguagens, dando espaço para as diferentes formas de perceber
o mundo.
No que diz respeito a ampliar as linguagens, a perspectiva da
filósofa nigeriana Oyèrónke󰈨 Oyěwùmí traz alguns elementos a serem
considerados destacando as diferentes formas de perceber o mundo:
a razão pela qual o corpo tem tanta presença no Ocidente é que o mundo é
percebido principalmente pela visão. A diferenciação dos corpos humanos em
termos de sexo, cor da pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes
atribuídos ao “ver”. O olhar é um convite para diferenciar. Diferentes
abordagens para compreender a realidade, então, sugerem diferenças
epistemológicas entre as sociedades. Em relação à sociedade iorubá, que é o
foco deste livro, o corpo aparece com uma presença exacerbada na
conceituação ocidental da sociedade. O termo cosmovisão, que é usado no
280
Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, capta o privilégio
ocidental do visual. É eurocêntrico usá-lo para descrever culturas que podem
privilegiar outros sentidos. O termo “cosmopercepção” é uma maneira mais
inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais.
Neste estudo, portanto, “cosmovisão” só será aplicada para descrever o sentido
cultural ocidental e “cosmopercepção” será usada ao descrever os povos iorubás
ou outras culturas que podem privilegiar sentidos que não sejam o visual ou,
até mesmo, uma combinação de sentidos (OYWÙMÍ, 1997, p. 2-3, tradução
nossa).
Oywùmí questiona a supremacia da visão no Ocidente, que leva,
por exemplo, a entendermos a maneira particular de cada povo sobre sua
realidade como “cosmovisão”, desconsiderando outros sentidos que
determinam a relação do sujeito com seu mundo. Nesse sentido, tão
importante quanto o conteúdo é prestar atenção na lógica que governa
nossa percepção. Desde Aristóteles, a visão é entendida como um sentido
superior. Em seus estudos sobre as sociedades Iorubás, Oywùmí indica
outros sentidos mais relevantes para compreender tal realidade, Assim
como o privilégio do Ocidente do visual sobre os outros sentidos foi
claramente demonstrado, assim também o domínio do auditivo em iorubá
pode ser mostrado (OYWÙMÍ, 1997, p. 15, tradução nossa). A
supremacia da visão também pode ser considerada mais uma contribuição
da filosofia hegemônica. Uma percepção da realidade muito voltada para
a visão, como ressaltou a filósofa, é como um convite a diferenciar as
pessoas. Por isso, Oywùmí considera adequado falar em cosmopercepções
ao analisar sociedades não ocidentais como a Iorubá. Sobre as diferenças
entre sociedade ocidentais e Iorubás, ela acrescenta:
uma estrutura de pesquisa comparativa revela que uma grande diferença deriva
de qual dos sentidos é privilegiado na apreensão da realidade a visão no
281
Ocidente e uma multiplicidade de sentidos ancorados pela audição na
sociedade iorubá. A tonalidade da língua iorubá predispõe a uma apreensão da
realidade que não pode marginalizar o auditivo. Consequentemente, em
relação às sociedades ocidentais, há uma necessidade maior de uma
contextualização mais ampla, a fim de dar sentido ao mundo. Por exemplo,
adivinhação Ifá, que também é um sistema de conhecimento em iorubá, tem
componentes visuais e orais. Mais fundamentalmente, a distinção entre Yoruba
e o Ocidente simbolizada pelo foco em diferentes sentidos na apreensão da
realidade envolve mais do que percepção para os yorubás e, na verdade, para
muitas outras sociedades africanas, trata-se de uma presença particular no
mundo um mundo concebido como um todo no qual todas as coisas estão
ligadas entre si. Diz respeito aos muitos mundos em que os seres humanos
habitam; não privilegia o mundo físico sobre o metafísico. A concentração na
visão como o modo primário de compreender a realidade promove o que pode
ser visto sobre o que não é aparente ao olho; ele perde os outros níveis e as
nuances da existência. (OYWÙMÍ, 1997, p. 14)
A cosmopercepção parte de uma compreensão da realidade que não
se resume ao que pode ser visto, mas que envolve camadas complexas de
relações com o mundo, o que se relaciona com a própria estrutura da língua
e de suas filosofias. Isto leva a refletir que as línguas ocidentais têm um
foco tão grande na escrita que frequentemente lançam reformas
ortográficas tentando conformar a fala à escrita, o que reitera o aspecto
visual e a necessidade de padronização. A filósofa destaca que as
cosmopercepções apontam para os “muitos mundos em que os seres
humanos habitam” (1997, p. 14). Com isso, Oyěwùmí contribui para
evidenciar que até a forma de perceber o mundo está ancorada em
arcabouços conceituais delineados socialmente. A partir disso, cabe
repensar o uso do conceito de “perspectiva” neste texto, pois ainda está
atrelado à soberania da visão, o que torna mais interessante atentar para as
282
diferentes percepções, para além dos pontos de vista. Talvez faça mais
sentido entender tal noção de modo alargado como cosmoperspectivas
21
.
No mesmo sentido de ampliar o diálogo com povos humanos e
não humanos, a filósofa e educadora indígena Cristine Takuá chama a
atenção para a potência dos diálogos criativos com outros seres: “Essa
grande complexidade que existe na floresta dialoga há muitos séculos com
uma forte potência criativa de seres vegetais e animais que, assim como
nós, há muitos séculos resistem e criam fórmulas de continuar caminhando
neste planeta” (TAKUÁ, 2019, p. 01). Ela critica as universidades “que
de universal pouco tem” (TAKUÁ, 2019, p. 01) pela ausência do diálogo
criativo com seres vegetais e animais, “que escreve tanto e parece que
observa pouco a sutileza das diversas formas de transmissão de
conhecimento” (TAKUÁ, 2019, p. 02). Para explicar este ponto, a filósofa
recorre ao exemplo de dois seres muito importantes para os Guaranis: a
Takuá a taquara e a Ka’á a erva mate , fundamentais para
“conhecimentos e as filosofias complexas que habitam na vida dos povos
tradicionais ancestrais da Terra há muitos séculos” (TAKUÁ, 2019, p. 02).
Sobre a escola, Cristine Takuá (2019, p. 03) ressalta:
a instituição escolar que criaram, que antes não existia dentro das
comunidades, essa instituição está fazendo com que as crianças deixem de
sonhar. O tempo imposto pelas instituições hora de sair, hora para chegar,
hora de merendar faz com que as crianças percam seu fluxo natural de vida.
Então é essa atenção e cuidado que nós todos devemos ter com as crianças:
qual o objetivo da escola na nossa vida? Nas nossas sociedades não existia escola
e não existe hospício, creche, asilo nenhuma dessas formas de trancamento
ou unificação de transmitir conhecimento ou modelar as pessoas. E eu tenho
21
A Profa. Joana Tolentino nos alertou para este ponto.
283
observado que ao longo da história parece que as pessoas querem trazer essas
instituições para dentro dos saberes dos povos tradicionais.
As pessoas andam muito adoecidas, me parece. Adoecidas no sentido de um
vazio: como uma árvore que é um pau oco por dentro. Que ele só por fora é
pau, mas por dentro é oco. Parece-me que muitos estão ocos por dentro. Por
que, ao longo da história também, a monocultura da fé, a monocultura
alimentar, a monocultura mental, estão fazendo com que as pessoas se
unifiquem, que as pessoas percam o sentido de entender a própria fruição da
vida, a própria complexidade desses diálogos criativos que nos colocam em
outro lugar, que nos colocam na relação natural com outros seres. (TAKUÁ,
2019, p. 03)
A filósofa convida a refletir sobre o sentido das instituições como
forma de unificação de saberes e modos de ser em prol de uma
monocultura da fé, do alimento, da mente, do solo. Esse processo de
monoculturalização rompe com os processos de fruição da vida de cada
pessoa e das comunidades. Como consequência da unificação, as crianças
param de sonhar, por terem que acordar mais cedo do que estão
acostumadas. Considerando a centralidade do sonho na filosofia Guarani,
isto bloqueia as crianças no envolvimento com algo essencial para a
convivência na comunidade, que é o compartilhamento coletivo dos
sonhos. Takuá associa a imposição unificadora das instituições como a
principal responsável pelo adoecimento das pessoas. Como uma “árvore
oca por dentro”, ao nos deslocarmos do fluxo da vida próprio de cada teko,
produzimos um vazio. A árvore do conhecimento, nesse sentido, pode ser
entendida como uma árvore oca por dentro, que se distancia do mundo das
experiências e da pluralidade dos modos de ser, não importa o que
compõem cada pessoa e as redes que o envolvem.
A cosmopercepção atenta aos processos de fruição, que envolvem os
modos de ser tanto de humanos quanto não humanos na complexidade
284
que os enredam, mostra porque os “povos indígenas existem há séculos:
criando fórmulas, recriando fórmulas. Formas resilientes, sustentáveis,
regenerativas, de continuar este diálogo criativo” (TAKUÁ, 2019, p. 3-4).
Diante disso, a filósofa sugere que a regeneração de Gaia pode ser feita
através da educação, mas “Não essa educação ocidental, quadrada, de
instituição, mas, sim, uma educação sensível” (TAKUÁ, 2019, p. 4). A
pensadora fala em uma mudança profunda de hábitos que exige coragem.
Muitos ativismos, mas ativismos da boca pra fora. De nada adianta levantar
uma bandeira “viva amazônia” se continua alimentando o que está estuprando
a Amazônia. Então quando eu falo de mudança de hábito, e que isso dói como
trocar de pele, eu digo que já passou da hora da gente começar a ter coragem
de realmente fazer um equilíbrio eu chamo isso até de um certo pacto que
seria você conseguir equilibrar o sopro de amor que sai da nossa boca quando
a gente fala as nossas ideias, as nossas inquietações, os nossos sonhos
equilibrar esse sopro de palavra com o compasso dos nossos pés, da nossa
caminhada na Terra. Porque não adianta minha boca ir para lá e meu pé vir
para cá. Esse equilíbrio entre o que a gente fala e para onde a gente anda é o
que precisa nortear essa nossa coragem e compromisso ético com a gente
mesmo, com os nossos filhos e com todos os outros seres. [...] Quando nós
vamos conseguir refazer a caminhada e dialogar com esses seres que estão lá?
[...] A grande teia que envolve a vida, essa grande interação de relação entre os
seres animais e vegetais, ela foi totalmente desestruturada. Os seres humanos
romperam todas as formas de interações dessa teia. Como agora tecer e pegar
o fio dessa meada que se perdeu é um compromisso urgente de nós todos. Não
adianta mais escrever, não adianta mais formular. Tem que praticar agora,
todos juntos por mais difícil que seja. [...] Mas será que a ciência está
dialogando com os espíritos da floresta? Será que a ciência está entendendo de
que não adianta só escrever? Que tem que sentir, que tem que perceber, que
tem que interagir com todas as formas outras não humanas? (TAKUÁ, 2019,
p. 04-05)
285
Mudar de hábitos, assim como trocar de pele, significa ter coragem
de refazer nossas caminhadas (TAKUÁ, 2019, p. 4). Ela compara tal
processo com a amamentação do primeiro filho, que gera dor à mãe e exige
coragem para insistir em um hábito novo e necessário. O que Takuá chama
de uma educação sensível diz respeito às diferenças entre pessoas e
contextos, estimulando uma maior observação dos mundos que envolvem
a atuação docente, bem como uma observação de nós mesmos/as/es
enquanto pessoas.
Refletindo acerca do uso de tecnologias digitais, ela pergunta:
a tecnologia que vai se desenvolvendo, que vai engolindo todo mundo, por que
as pessoas permitem? Por que as pessoas querem tanto se comunicar com o
outro que está lá longe e não conseguem parar pra sentir “o que eu sonhei
hoje”? [...] Se a gente começar a ouvir os nossos sonhos eu acredito que é
possível a gente começar a se potencializar e tomar coragem de mudar de
hábitos. (TAKUÁ, 2019, p. 06)
Uma educação sensível pode fertilizar nossa atuação no mundo. A
filósofa mobiliza o conceito arandu, comumente traduzido por
“sabedoria”, mas que ela aponta ter um significado mais amplo e estar
próximo do que entendemos por “filósofo”, traduzindo-o como “a pessoa
que tenha sensibilidade de sentir a sua própria sombra” (TAKUÁ, 2019,
p. 06). Alcançar o arandu é um processo necessário para o mundo
complexo e enredado que vivemos. Takuá finaliza lembrando que somos
“só um grãozinho no meio dessa grande imensidão de saberes que existe
na floresta” (2019, p. 06) e nos convida a refletir: “qual a nossa relação
com seres sagrados? Com a água? Com o tabaco? Com todos os seres? Eu
deixo essa pergunta pra vocês (2019, p. 07).
286
A filósofa aponta para uma educação sensível com os seres criativos,
uma educação pelas plantas, que não cabe no “sistema único” escolar. Suas
reflexões partem de um pluriverso complexo de trocas e negociações,
diálogo que é necessário para adiar o fim do mundo. A partir de tais
contribuições, podemos pensar a aprendizagem na cosmoperspectiva das
ervas dos saberes através das conexões que nos compõem assim como
compõem o mundo que percebemos. Uma educação que fertiliza o
pensamento e a vida depende da cosmopercepção atenta para as conexões,
os rizomas que determinam tanto nossas formas de aprender quanto de
ensinar. Enquanto o modelo de ensino de filosofia hegemônico fomenta
entender uma perspectiva restrita como universal, o modelo de educação
filosófica que discutimos aqui convida a sentir a própria sombra,
apontando para a responsabilidade de estar nesse planeta, observando as
diferenças entre mundos do pluriverso rizomático em que vivemos.
Tal cosmopercepção possibilita entender que ensinar é fazer junto,
conectar-se com o/a/e outro/a/e, bem como entender a aprendizagem em
um sentido rizomático, no qual aprender é estabelecer conexões, dialogar,
negociar. Este modelo ensina a perceber conexões entre mundos. Ao
mesmo tempo a filosofia que o sustenta, como trazido pela filósofa Cristine
Takuá (2019), fomenta a busca pelo arandu, conscientizando para uma
ação que não seja daninha no mundo.
Especialmente no contexto da BNCC, a escola é um “sistema
único”, visto que parte de competências gerais tomadas como universais,
sem considerar as diferenças entre os grupos sociais e contextos que
envolvem as instituições de ensino. Ressaltamos que uma base comum
curricular, amparada em competências gerais, não atende às necessidades da
educação para as relações étnico-raciais, pois ao mesmo tempo não garante
as especificidades, como também não garante os saberes da tradição
287
hegemônica necessários para o diálogo intercultural. Nesse sentido, um
currículo que permite transitar entre mundos precisa contemplar de forma
intercultural tanto saberes específicos de cada contexto, como também os
saberes clássicos, apontando para suas articulações e disputas. Assim, os
saberes da tradição não são tratados como verdades universais, mas como
elementos da sociabilidade contemporânea e intercultural, possibilitando
para os diferentes grupos as ferramentas necessárias para a obtenção de seus
direitos, sem abrir mão de suas singularidades e heranças étnicas. Contudo,
se antes mesmo da BNCC a educação indígena já era uma luta constante
pelo respeito à diversidade, com ela ocorrerá um agravamento das
desigualdades.
A discussão desse capítulo nos mostrou que existem outras
perspectivas filosóficas que apontam para a pluralidade e uma relação mais
simbiótica entre os diversos seres, de maneira a não esgotar o que nos
fornece condições para a vida em todas as esferas. As filosofias que
discutimos, neste capítulo, nos apontam para a insustentabilidade da
ontologia narcisista hegemônica. Diante disso, que filosofias são possíveis
a partir de uma ontologia das diferenças e relacional? Que outros mundos
são possíveis pensar a partir da ampliação das categorias que sustentam o
mundo contemporâneo? No próximo capítulo, refletiremos sobre as
transformações que decorrem de uma virada ontológica na filosofia.
289
Capítulo 4
Nas bactérias e fungos do pensamento filosófico:
decomposição da alucinação narcisista
Pessoas que, quando anseiam por determinados conhecimentos, ao invés de (ou
apenas de) matricularem-se em uma escola formal de ensino, buscam-nos
utilizando-se de mediadores não humanos, como plantas, raízes, fungos ou cipós,
tecnologias da natureza há milênios à disposição do homem. Plantas, fungos, raízes
e cipós configuram-se, portanto, como mediadores do saber, entre tantos outros
mediadores desconhecidos ou silenciados. (ALBUQUERQUE, 2011, p. 116)
FIGURA 4INIMIGOS DA MONOCULTURA E DOS SERES CELESTIAIS
Fonte: Arquivo Pessoal de Rodrigo Pelloso Gelamo.
290
Apresentação
Dessoterrando outras cosmoperspectivas sobre o mundo, fica
evidente a insustentabilidade da ontologia hegemônica, o que exige
transformação profunda do paradigma dominante. A imposição do
pensamento moderno enquanto universal tem como consequências
diversas formas de violência e, também, o fim do mundo. Por isso, é
fundamental encararmos tais pressupostos para que possamos perceber
outros mundos possíveis e vislumbrarmos outros futuros. Neste capítulo,
experimentaremos uma virada no pensamento filosófico através das
reflexões postas pela ontologia ameríndia decompondo o narcisismo,
antropocentrismo, individualismo e o solipsismo da filosofia hegemônica.
Investigaremos as transformações que uma ontologia das diferenças aponta
para a filosofia, ampliando nossa concepção de pessoa e sua relação com o
mundo. Assim como as PANCs e Watu nos ensinaram a perceber o mundo
de outra forma, neste capítulo, nossos professores serão as bactérias e os
fungos, que nos permitem pensar a humanidade em interconexão com
outros seres, como com-posta por emaranhados multiespécies. Se há
possibilidades de adiar o fim do mundo, estas precisam passar pela
colaboração multiespécies como ensinam tais seres. Quando consideramos
outros/as/es sujeitos/as/es, humanos e não humanos, como mediadores do
conhecimento, aprendemos muito sobre o mundo em que vivemos, e,
inclusive, sobre s mesmos/as/es. Este capítulo é resultado de outra
compreensão da vida como um emaranhado permeado por nós com
humanos e não humanos que não são possíveis de serem desfeitos.
291
4.1 Nas costuras entre mundos
A filosofia ocidental se baseia em uma monocultura narcisista que
afirma sua percepção do mundo como universal. Como explica Valentim
(2018b, n.p.):
ao contrário de superar de todo o sobrenatural, com o banimento metafísico de
Deus, o pensamento moderno não fez senão redimensioná-lo, particularmente
no sentido da dominação do Homem sobre a natureza. O pensamento
moderno é sobrenatural, mágico, mítico à sua maneira. Seu mito fundador
consiste naquilo que Lévi-Strauss chamou de “o mito da dignidade exclusiva
da natureza humana”, o qual teria chancelado “todos os abusos”, ao mesmo
tempo no sentido do especismo e do racismo. De outro modo, à luz
da problemática ecológica contemporânea, poder-se-ia dizer que, transfigurado
monstruosamente em Homem, Deus tornou-se o agente por excelência
do estado de exceção/extinção que chamamos hoje de Antropoceno, que jamais
teria sido metafisicamente possível sem a grande instauração, peculiarmente
sobrenatural, da divisão moderna entre natureza e cultura. (VALENTIM,
2018b, n.p.)
A tradição filosófica ocidental se caracteriza por um pensamento
que promove a separação entre mundos, povos, pessoa/mundo,
humanidade/natureza, natureza/cultura, etc. A dignidade exclusiva da
natureza humana, apontada por Lévi-Strauss como algo que permeia a
filosofia hegemônica ocidental, é um afeto narcísico que desencadeia o
especismo e o racismo que caracterizam o “ciclo maldito” da modernidade,
a separar os humanos dos outros animais e segregar os humanos entre si”
como explica Valentim (2018c, n.p.). Por isso, há uma relação constitutiva
entre o fascismo contemporâneo e o Antropoceno, “Conforme podemos
testemunhar mundo afora, o fascismo é a política oficial
292
do Antropoceno (assim como o capitalismo, o seu sistema econômico)”
(VALENTIM, 2018b, n.p.). Portanto, “se o antropocentrismo constitui a
ontologia fundamental do Antropoceno, o fascismo é a sua política oficial:
a que o instaura e acelera, fechando por expansão frenética (destruição
exportada) o mundo “humano” sobre si mesmo e impelindo-o assim a sua
própria destruição” (VALENTIM, 2018a, p. 290). O desejo do mundo
único tem efeitos catastróficos para a ecopolítica do planeta, consumindo
povos e seres para sustentar as classes dominantes. De modo mais
aprofundado, Valentim (2014, p. 04-05) explica:
uma multiplicidade inumerável de mundos divergentes, todos eles
neutralizados em sua potência própria de mundanização pela “consciência
absoluta”, emancipada, do povo universal. Com efeito, se se considera o
discurso filosófico moderno em vista de seu impacto imanente sobre outros
povos, humanos e não-humanos, que ele desde sempre manteve excluídos e ao
mesmo tempo assujeitados à produção do sentido “em geral”, dificilmente se
escapa à evidência de que o pensamento transcendental consiste, sobretudo,
em um dispositivo espiritual de “aniquilação ontológica” de outrem. De
orientação declaradamente contrária à onto‐teo‐logia, a proposição moderna
exemplar genuinamente transcendental do isolamento metafísico do
homem(Heidegger, 1990, § 10, p. 172) é, de Kant a Heidegger, tacitamente
etno-eco‐cida.
Ora, a catástrofe etnocida dos povos (“o seu Antropoceno”, Danowski &
Viveiros de Castro, 2014, p. 138) é certamente mais antiga e tem sido bem
mais devastadora pelo menos até o momento presente que o atualmente
em curso “devir-louco generalizado das qualidades extensivas e intensivas que
expressam o sistema biogeofísico da Terra” (idem, 2014, p. 25). Dado o
vínculo essencial entre esses dois hiper‐eventos, mostra-se que, mais além da
indiferença estúpida (e facilmente averiguável) frente à emergência da
catástrofe, o espírito do povo cosmopolita revela, desde logo, uma potência em
si mesma catastrófica, que, embora seja imediatamente dissimulada em seu
próprio discurso, se faz, não obstante, intensamente manifesta “sob o ponto de
vista de Outrem”, gerando uma “imagem de si mesmo em que” esse espírito
293
insiste narcisicamente em “não se reconhece[r]”. Trata-se do Antropoceno
como “perfil e aparição” ou melhor, como imagem ou duplo sobrenatural
da modernidade. Se é verdade que, com a iminência da catástrofe ecológica,
“nosso mundo vai deixando de ser kantiano”, é certamente por força de uma
“inversão irônica e mortífera” (idem, p. 26), pela qual o esperado “reino dos
fins” se aproxima, cada vez mais, como deserto inóspito [...]. Começa‐se agora
a experimentar o mesmo desastre a que incontáveis outros, próximos e
distantes, já vinham sucumbindo e resistindo há culos, vítimas da baixa
antropofagiados modernos e seus inimigos íntimos. (VALENTIM, 2014, p.
04-05)
O povo autodenominado universal tem sua filosofia como um
dispositivo de aniquilação ontológica dos mundos divergentes, o que faz
de seu pensamento “tacitamente etno-eco‐cida”. O povo cosmopolita, e
não cosmopolítico, carrega uma potência catastrófica, que antes não
percebida pelo Narciso já que se direcionava a outros mundos, agora pode
destruir a sua própria gente. Destruir mundos humanos e não humanos é
a própria essência do povo dominante. Se “nosso mundo vai deixando de
ser kantiano” (VALENTIM, 2018a, p. 19), isto é, o/a/e sujeito/a/e começa
a se perceber intrinsecamente conectado com o “Grande fora”
(DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014), não é pela a
autocrítica do pensamento hegemônico, mas por seu mundo em catástrofe,
pela intrusão de Gaia (STENGERS, 2015) que obriga a repensar: “É, antes
de mais nada, à perversidade ecopolítica do pensamento que responde o
colapso mental do ambiente” (VALENTIM, 2018a, p. 290). No entanto,
a própria ideia de “intrusão de Gaia” só é nova para o povo universal da
mercadoria.
Se faz sentido caracterizar o tempo das catástrofes mediante aquela intrusão, é
porque se o toma sob o ponto de vista da humanidade moderna,
294
metafisicamente isolada. Desde a perspectiva dos povos da floresta, ele seria
melhor designado por “outra” intrusão, a do “povo da mercadoria” (Kopenawa
& Albert 2015: 406-420). Tal equívoco ontológico em torno ao elemento
intrusiva atesta que a catástrofe se efetiva de modos divergentes; mais ainda,
que não é nada estranho ao pensamento xamânico que Gaia tenha se tornado
a intrusa justo para os intrusos. [...] os chamados “povos sem história”
mostram-se bem mais capazes de conceber a multidimensionalidade
cosmopolítica, espectral, da transformação em curso uma hiper-historicidade,
além do Homem e, em certo sentido, do próprio Antropoceno, na qual
entropia e criação se tornam como que indiscerníveis. (VALENTIM, 2018a,
p. 288)
Valentim chama a atenção que a intrusão para os Yanomamis como
Kopenawa foi justamente do povo da mercadoria, que por “metafisicamente
isolado” percebe as catástrofes que cria como uma intrusão de Gaia, ou
sequer a percebe, e não como projeto de sua própria intrusão etno-eco‐
cida. As mudanças destrutivas pelas quais o planeta vem passando
questionam o modo de vida moderno e a existência de seu mundo único
universal. Por outro lado, o contato com filosofias como as ameríndias
aponta para outras possibilidades de viver. A ampliação de
cosmoperspectivas leva a uma mudança de paradigma que é chamada por
Viveiros de Castro (2012) de virada ontológica, transformando
profundamente a antropologia e, também, a filosofia. No mesmo sentido
em que a intrusão de Gaia não pegou de surpresa alguns povos nas bordas,
a virada ontológica também diz respeito a um tipo de filosofia, que se afirma
originária da Grécia Antiga e devota de um tipo específico de racionalidade
e ontologia. Não há virada alguma para outras filosofias milenares, como
a filosofia oriental, africana, ameríndia, entre outras.
No saber dominante, as diferenças entre os povos e grupos sociais
são vistas como divergências culturais. Isso é decorrência do trabalho
295
especialmente da antropologia que tem como um dos cernes buscar a
essência natural do ser humano através de análise comparativa entre povos
diferentes. No entanto, o contato com a cosmoperspectiva ameríndia e
outras, por suas divergências fundamentais com a concepção ocidental de
humanidade, levou a um questionamento sobre a existência de tal essência
humana, causando uma transformação da própria antropologia.
Inicialmente a cosmovisão ameríndia era vista apenas como objeto de
estudo, como um pensamento mítico, místico, exótico, não como
pensamento válido. No entanto, quando a antropologia cultural começa
a ser afetada profundamente pelo pensamento ameríndio de maneira a não
perceber mais seus próprios pressupostos como verdades absolutas, e
inclusive em alguns casos considerando mais válidos os pressupostos
ameríndios, a transformação é profunda e uma virada se dá no pensamento
antropológico.
Na abordagem tradicional, o/a/e antropólogo/a/e não entende a si
mesmo como objeto de estudo antropológico, de maneira que apenas os
não europeus o entendidos como portadores de um pensamento
singularizado. O pensamento moderno, por sua vez, é entendido como
universal e, assim, não cabe ser estudado por nenhuma antropologia.
Através desse processo de virada ontológica, compreende-se que o
pensamento moderno não é universal, de maneira que o contato com
outros povos faz mais sentido nos termos de uma antropologia simétrica
(LATOUR, 1994):
a simetrização é simplesmente uma operação descritiva que consiste em tornar
contínuas as diferenças entre todos os termos analíticos: a diferença entre a
“cultura” (ou “teoria”) do antropólogo e a “cultura” (ou “vida”) do nativo, em
especial, não é considerada como possuidora de qualquer privilégio ontológico
296
ou epistemológico sobre as diferenças “internas” a cada uma dessas “culturas”;
ela não é mais nem menos condicionante que as diferenças de ambos os lados
da fronteira discursiva. O que não é a mesma coisa que dizer que não há
diferenças essenciais entre nós e eles. (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.
164)
Assim, rompe-se com o hábito de reduzir os aspectos do mundo a
representações ou discursos, ou seja, como um problema epistemológico,
mudando o nível de análise e transformando a pluralidade em um
problema ontológico. Algumas vertentes atribuíram muito poder à
linguagem, ignorando outros aspectos da materialidade. Nesse sentido, a
antropologia clássica parte da ideia de cultura como diferentes
representações da realidade objetiva e universal, de maneira que as
diferenças são resultado de diferentes representações do universo. Por
outro lado, a antropologia ontológica reconhece a existência de múltiplos
mundos, de modo que as diferenças são decorrentes da existência e
participação em pluriversos, isto é, outras realidades. Na cosmoperspectiva
ameríndia, cada corpo é o lugar de uma multiplicidade de forças e
engajamento com o contexto, de maneira que não é a linguagem que
diferencia as espécies, mas seus corpos. O fundamental é a relacionalidade.
A virada ontológica parte do reconhecimento de mundo heterogêneos,
pluriversos.
Viveiros de Castro explica que a virada ontológica, como resultado
de uma “indigenização da modernidade” (VIVEIROS DE CASTRO,
2012, p. 161) na forma de Vacina antropofágica”, consiste em um
processo no qual “é o índio que virá (que eu vi) nos emancipar de nós
mesmos. Antes de sairmos a emancipar os outros (de nós mesmos),
emancipemo-nos nós mesmos, com a indispensável ajuda dos outros
(VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 163). O pensamento ameríndio
297
permite a emancipação do Homem moderno ao questionar os fundamentos
do seu mundo universal. Portanto, é uma “transformação à indígena” que
“abre um portal dimensional capaz de nos libertar de nossa própria célula
ou clausura cosmológica, com suas paredes decoradas de formas
substanciais e de essências imarcescíveis, onde ecoa há séculos a “filosofia
messiânica” da produção hominizante” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012,
p. 159). Podemos pensar a virada ontológica através também das filosofias
de matriz africana ou afro-brasileira, ou até mesmo a partir da filosofia
oriental. Talvez à antropologia a filosofia ameríndia tenha sido decisiva,
mas diversas outras obrigam o pensamento moderno a se rever
continuamente.
A filosofia ameríndia permite rasgar a interface que separa o “lado
de dentro” (o discurso antropológico) e o “lado de fora” (o discurso do
nativo) da relação de conhecimento(VIVEIROS DE CASTRO, 2012,
p. 158). Dessa forma, a relação com o conhecimento, restrita a uma
perspectiva antropo-euro-falo-ego-capital-logocêntrica moderna, precisa se
transformar para lidar com outros mundos e suas cosmoperspectivas, pensar
além do logos, ampliar a percepção para além do mundo moderno,
dessoterrar outros/as/es sujeitos/as/es. Esta virada não altera apenas a
metodologia de estudo da antropologia, mas significa uma transformação
da nossa antropologia, entenda-se, no modo de ser da nossa espécie, de
sua ontologia. A disciplina está em mudança não só porque o logos não é
mais o que foi, mas porque o anthropos não será mais o que é
(VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 168). Anthropos, o único ser racional,
o único humano do planeta, “o homem esclarecido, ocidental-europeu-
branco, ou quase...”, o único cidadão do mundo” (VALENTIM, 2014,
p. 2), não mais se sustenta nesse mundo de guerras e catástrofes. Nem o
logos nem o anthropos se sustentam nesse mundo em ruínas.
298
Isso implica também em um rompimento com a visão dual entre
natureza e cultura que determina as diferenças como divergência cultural.
Tal virada implica em compreender que naturezas-culturas termo que
aparece inicialmente com Bruno Latour em Jamais fomos modernos (1994)
o um complexo indissociável que determina mundos diferentes que não
podem ser entendidos apenas como divergências epistemológicas. Nesta
cosmoperspectiva, não há uma natureza universal compartilhada por toda
a humanidade, mas a diferença é ontológica, existem múltiplos mundos,
naturezas-culturas, que se constroem em correlação. Assim, a antropologia
tradicional que buscava uma essência do homem compreende que os povos
se autodeterminam antropologicamente.
A partir da filosofia ameríndia, não mais como objeto, mas como
sujeito que cria mundos, há um despertar para o pensamento multiespécies.
O perspectivismo ameríndio transborda todas as categorias ocidentais e
leva à compreensão de que se o pensamento moderno não é universal como
se autoafirma, o pensamento ameríndio também não pretende ser, pois o
mundo humano é permeado por muitos outros seres que também
constituem seus mundos e filosofias próprias, que também olham para
grupos humanos modernos ou ameríndios e os veem a partir de suas
próprias categorias. O mundo ameríndio é composto simetricamente por
humanos e não humanos. Se humanos olham para outros mundos e não
conseguem entendê-los, o mesmo ocorre com outros seres que nos olham
a partir de suas próprias cosmoperspectivas que só podemos conhecê-las em
relação. Não como uma coisa em si inacessível, mas como algo que se
constroem continuamente em relação, como cosmoperspectivas que nunca
são algo em si, mas sempre em relação. Com a virada ontológica,
compreender mundos humanos se torna muito pouco sobre o planeta que
vivemos.
299
Na ontologia perspectivista ameríndia, todo existente se define
exaustivamente como variante de um outro(VIVEIROS DE CASTRO,
2012, p. 159), de maneira que a “coisa” é sempre uma variação. As
transformações podem ser comparadas e ponderadas, mas não podem ser
mais vistas como ações de coisas, como verbos que modificam
substantivos/substâncias tais como culturas, essências, sujeitos pré-
relacionais(VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 162). Todos/as/es que
compõem o mundo “são o mundo, formando seu tecido perspectivo
último, e não apenas estão no mundo como dentro de um quadro neutro
que precedesse os pontos de vista(VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.
157). Nesse feixe de cosmoperspectivas, o homem dá a desmedida de todas
as coisas, ao mesmo tempo em que é medido e mediado por elas todas
(VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 157). O que somos depende das
relações, de como os outros nos veem.
A ontologia ameríndia possibilita ao anthropos ir além de si mesmo,
decompor a alucinação narcisista, pois nessa cosmoperspectiva existe muito
além do mundo moderno. O mundo humano é atravessado, e até mesmo
determinado, por muitos outros mundos tanto humanospovos e grupos
sociais soterrados pela ontologia narcisista quanto não humanos como
outros animais, plantas, fungos, bactérias, vírus, etc. Com a pandemia de
COVID-19, vemos o poder de agência de um vírus que está pautando
várias discussões e nos obrigando a olhar para as desigualdades múltiplas
que compõem as relações globais e locais. Não podemos pensar as
implicações apenas a partir da percepção humana ou de um determinado
tipo de humanidade, existem muitos outros/as/es agentes e a relação com
eles é fundamental para a existência da vida no planeta. Para pensar outros
mundos, é preciso reconhecer outros/as/es sujeitos/as/es. Entender que
existem outras agências é essencial para compreender os tempos em que
300
vivemos, o mundo é um composto entre múltiplas cosmoperspectivas
humanas e não humanas. O planeta, através da intrusão de coletivos
ameríndios ou de vírus, está questionando o excepcionalismo humano
moderno.
A filosofia ocidental é uma das principais propagadoras do
excepcionalismo humano que “exclui não humanos para fora do círculo
encantado de fazer mundo” (TSING, 2019, p. 261). O principal
representante dessa vertente é Heidegger. No sentido heideggeriano, o
mundo é constituído a partir da autorreferenciabilidade, como imagem e
semelhança do sujeito moderno, voltado para sua autoafirmação e negando
outras possibilidades de existência. Isto leva à:
sua famosa afirmação de que animais são pobres de mundo (Heidegger, 1995,
p.185). Essa declaração reduziria meu olhar do cervo a instinto; como um
animal, para Heidegger, o cervo possui apenas sua esfera sensorial herdada. Ele
não pode desenvolver agilidades ou fazer mundos; somente humanos são
fazedores de mundo. Considere ainda como isto é um reflexo de como
Heidegger define “mundo”, que para ele requer linguagem como razão, uma
propensão particularmente humana. Se definirmos mundo a partir de uma
aptidão de cervos, humanos seriam pobres de mundo. Heidegger é focado no
humano; o animal é efeito colateral. Mas observe como isto bloqueia a história
de assembleias de paisagens. O animal é instintivo, isto é, mecânico; não tem
história, pois história, para Heidegger, é feita no espaço significativo da
linguagem. O animal é a-histórico porque não vive com linguagem. Assim,
animais não têm projetos históricos para coordenar com humanos; a mise-en-
scêne da vida humana, a paisagem, precisa ser inteiramente feita por humanos.
Heidegger oferece uma afirmação excepcionalmente clara do sonho do
humano, que nos captura em seu encantamento, cegando-nos a outros.
(TSING, 2019, p. 261)
301
A ideia comum de que apenas seres humanos têm comportamentos
conscientes e que outros seres seriam “pobres de mundo” é mais um dos
pressupostos da filosofia ocidental. Tal pressuposto se pauta numa
concepção restrita de mundo, no caso ligada a uma concepção específica
de linguagem e razão. Como afirma Tsing, se outras percepções forem
consideradas as implicações se alteram significativamente. Partindo de
aptidões próprias dos cervos quem seria considerado “pobre de mundo” é
o humano. Heidegger, ao afirmar a universalidade de sua concepção de
mundo, soterra outros mundos existentes. Tal problema decorre da
universalização das aptidões próprias de um grupo como ideais, a própria
concepção de história relacionada intrinsecamente à linguagem incorre no
mesmo equívoco. Tsing associa “história” aos “rastros e sinais de humanos
e não humanos, a como estes criam paisagens” (2019, p. 94), entendendo
que uma concepção de história universal nega a presença da diversidade de
paisagens: mundos são feitos nas trajetórias cruzadas de muitas espécies
que vivem em comum. [...] Em paisagens multiespécies, pessoas sociais de
muitas espécies interagem, moldando as vidas uns dos outros de forma
variada” (TSING, 2019, p. 66).
A antropóloga traz para a discussão o estudo de “sociedades mais
que humanas,” questionando a concepção de oposição entre a sociedade e
natureza.
Como pode ter ocorrido a alguém que outras coisas vivas além dos humanos
não são sociais? Quanto mais pensamos sobre isso, mais ridícula se torna a
oposição entre a socialidade humana e a não humana. O que é não socialidade?
Se social significa “produzido em relações intrincadas com outros
significantes”, claramente outros seres vivos não humanos são totalmente
sociais com ou sem humanos. No entanto, uma oposição entre natureza e
302
sociedade tem sido bastante convencional nas humanidades e nas ciências
modernas. (TSING, 2019, p. 119)
Como chama a atenção Peter Farb no livro Terra Viva (1964),
quando olhamos para as sociedades mais que humanas, surpreendemo-
nos ao encontrar “colônias de formigas que plantam
22
, moldam e colhem
seu suprimento alimentar, num sistema de agricultura aperfeiçoado antes
do surgimento do primeiro homem sobre a terra” e “plantas, cada uma das
quais é capaz de desenvolver em poucos meses 7000 milhas de sistema
radicular; [...] plantas que, incapazes de prover seu alimento, são
abastecidas por sócios-cogumelos, aos quais, por seu turno, garantem
espaço vital”. Muitos desses seres são “sócios na luta pela vida” (FARB,
1964, p.1). A “socialidade mais que humana é o nosso mundo e também
o deles (TSING, 2019, p. 133), muitas vezes de maneira completamente
independente de nós.
Romper com o silêncio imposto a esses mundos não humanos leva
à reflexão sobre as possibilidades de compreensão dessas outras percepções.
Como podemos compreender sociedades mais que humanas? Tsing (2019,
p. 126-127) sugere olhar para as formas corporais:
os humanos nem sempre pensam em formas corporais como uma expressão de
socialidade [...] Nossas vidas sociais têm a ver com a forma como nos movemos
por aí e conhecemos outros. [...] Suas formas mostram suas biografias; é uma
história das relações sociais através das quais elas foram moldadas. Alan Rayner
22
As formigas conhecidas como saúvas são “formigas cultivadoras de cogumelos [...]. Elas preparam os
canteiros e semeiam o cogumelo; limpam e adubam e quando as colheitas são boas, preparam a terra para
novos canteiros. Colhem assim a recompensa que pode constituir o único alimento para uma próspera
cidade de 500.000 formigas. Milhões de anos antes que o homem se tornasse um trabalhador do solo elas
aperfeiçoavam a sua agricultura.” (FARB, 1964, p. 102)
303
(1997b), pensando em fungos, e Francis Hallé (2002), pensando em plantas,
são excelentes porta-vozes dessa perspectiva. Assim, por exemplo, uma árvore
com galhos inferiores mais grossos, provavelmente, cresceu sem muitos
vizinhos, mesmo se você a encontrar agora cercada por outras árvores. Se tivesse
crescido à sombra dos outros, esses ramos inferiores grossos não teriam se
desenvolvido. Uma árvore com vários troncos pode ter o fogo ou um machado
em sua biografia. Uma suave curva côncava perto de sua base é sinal de
talhadia: esse caule cresceu a partir de um tronco. [...] Sempre que estudamos
um acontecimento social, uma comunidade ou uma instituição, prestamos
atenção às associações: quem está incluído? Que tipos de relações de status eles
têm entre si? Toda vez que olhamos para a cultura material, a performance ou
até mesmo para o cotidiano da vida social, prestamos atenção à forma. De fato,
alguns dos locais para observarmos formas sociais são os corpos humanos
como em representações de gênero, religião, etnicidade, na moda ou tatuagem.
Nós sabemos ler as relações sociais através da forma. (TSING, 2019, p. 126-
127)
Concordamos com a pensadora que “A forma pode ser uma
materialização das relações sociais” (2019, p. 127). Ao final da citação
acima quando Tsing descreve o trabalho da antropologia, fica evidente
como a forma corporal é importante para entender a sociabilidade e o
pensamento de um determinado grupo, por isso, ela sugere que o mesmo
seja ampliado para a compreensão de outros seres. Quando a pensadora se
refere ao estudo de árvores é possível entender sua sociabilidade a partir da
forma de seu tronco e galhos, o que pode indicar se cresceu com muitas ou
poucas vizinhas ou mesmo se sofreu algum tipo de intervenção como o
fogo ou a violência de um machado. As formas corporais são indicativas
do pensamento de maneira até mais complexa que a linguagem, pois
muitas vezes o que dizemos diz pouco ou quase nada sobre o que
pensamos. A pluralidade de cosmoperspectivas exige uma diversificação das
linguagens.
304
A abordagem de Tsing se dedica a observar paisagens e assembleias
num sentido mais amplo do que comumente costumam ser empregados
tais termos. Por paisagens a antropóloga entende “reuniões em que muitos
seres vivos e também coisas não vitais, como rochas e água tomam
parte. Eles se encontram para negociar sobrevivência colaborativa” (2019,
p. 247-248): “Paisagens, então, são reuniões de modos de ser em formação.
Como os ecologistas argumentam, são unidades de heterogeneidade: uma
paisagem pode existir em qualquer escala desde que abranja padrões de
heterogeneidade. Há paisagens em uma folha e em um continente”
(TSING, 2019, p. 248). Contudo, paisagens no sentido que estamos
utilizando aqui é sempre um recorte multiespécie em uma determinada
escala que envolve muitas dimensões de relações e seres.
Quando se considera as relações sociais multiespécies estabelecidas
em uma paisagem, surge o que Tsing chama de assembleia. A assembleia
representa uma ampliação no conceito de “comunidade” utilizado na
biologia, pois são agrupamentos abertos e dinâmicos que não podem se
reduzir a uma compreensão fixa da relação entre seres, pois, em decorrência
de contextos de perturbações
23
e histórias, as relações se transformam
continuamente. Como explica Tsing (2019, p. 126), “Assembleias
significam justamente aqueles que encontramos reunidos: por exemplo, as
plantas que crescem em torno umas das outras em uma paisagem
particular”. Nesse sentido, podemos entender “assembleias como
conjuntos de coordenações através da diferença” (TSING, 2019, p. 151).
A antropóloga utiliza um exemplo musical para falar sobre sua
compreensão de assembleia:
23
“Perturbação é uma mudança relativamente rápida nas condições dos ecossistemas; não é
necessariamente ruim e não necessariamente humana”. (TSING, 2019, p. 226)
305
polifonia é música em que melodias autônomas se entrelaçam. [...] Estamos
acostumados a ouvir música com uma única perspectiva. Quando aprendi
polifonia, foi uma revelação na escuta, fui forçada a escolher melodias separadas
e simultâneas e ouvir momentos de harmonia e dissonância que elas criam
juntas. Esse tipo de percepção é exatamente o que é necessário para apreciar os
múltiplos ritmos e trajetórias da assembleia.
Para aqueles que não têm inclinação musical, pode ser útil imaginar a
assembleia polifônica em relação à agricultura. Desde o início das plantations a
agricultura comercial tem como objetivo segregar uma única cultura e
trabalhar em direção ao seu amadurecimento simultâneo para a colheita
coordenada. Mas outros tipos de agriculturas têm múltiplos ritmos. No cultivo
itinerante que estudei no Borneo indonésio, múltiplas culturas cresciam juntas
no mesmo campo e tinham calendários diferentes. Arroz, banana, inhame,
batata-doce, cana-de-açúcar, palmeiras e árvores frutíferas se misturavam, e os
agricultores precisavam atender variados cronogramas de maturação de cada
uma dessas culturas. Os ritmos eram sua relação com as colheitas humanas; se
somarmos outras relações, por exemplo, a de polinizadores ou outras plantas,
os ritmos se multiplicam. A assembleia polifônica é a reunião desses ritmos,
resultante de projetos de criação de mundo, humanos e não humanos.
Trabalhar com assembleias, então, requer a construção de hábitos de
observação. Essas são a chave para um envolvimento mais rico com o
“material” no qual os materiais interagem uns com os outros, assim como
conosco. (TSING, 2019, p. 152-153)
A música polifônica coloca o ouvinte numa participação ativa na
qual é preciso escolher qual melodia se quer ouvir, pois diferentes melodias
se sobrepõem. Aprendemos através do hábito a ouvir música de um
determinado jeito, de maneira que em diferentes culturas os sons
agradáveis e desagradáveis também se alteram, além de tais costumes
determinarem quais sons são reconhecíveis ao ouvido. Basta pensar na
música indiana, a qual soa “desafinada aos ouvidos ocidentais que estão
acostumados ao número inferior de notas da escala musical tonal. Da
mesma maneira, aprendemos a olhar de forma reduzida através das
306
plantations a nossa relação com plantas. Em seu estudo sobre cultivos
itinerantes na ilha de Bornéu, Tsing pode experienciar uma outra forma
de entender a agricultura que não visava a submeter as plantas ao ritmo
“universal” da cultura ocidental moderna, mas que justamente consistia
numa relação que era composta com diferentes ritmos, o que ela chama de
assembleia polifônica. Nessa cosmoperspectiva, “os humanos seriam um
entre vários agentes históricos. Todas as diversas trajetórias que causaram
algum impacto na paisagem seriam relevantes, quer sejam humanas ou
não. Juntas, elas comporiam os ritmos polifônicos da paisagem, isto é, a
atuação de múltiplas histórias conjuntas” (TSING, 2019, p. 130). Assim,
“Assembleias de paisagens surgem da justaposição de variados modos de
fazer mundos; nenhuma cosmologia singular pode ordenar uma paisagem
sozinha” (2019, p. 263). De maneira que “Muitos não humanos são
figuras relevantes, dos jaguares às garrafas de rapé dos xamãs” (TSING,
2019, p. 262).
Podemos afirmar que a ontologia ameríndia parte de um mundo
polifônico com muitas sociedades e agentes, além de compreender a
humanidade como um feixe dessa polifonia. O mundo ameríndio engloba
uma diversidade de agentes humanos e não humanos que assumem
diferentes posições relacionais de acordo com diferentes cosmoperspectivas.
Ao invés de uma ontologia da identidade, o pensamento ameríndio é
composto por uma ontologia da diferença sensível. Nesse sentido, o
mundo pode se alterar de acordo com as relações e a multiplicidade de
agentes, não apenas humanos. Assim, o mundo se constitui como
multiplicidade de percepções humanas e não humanas. Nenhum ser é algo
em si, mas se constitui no entrecruzamento de percepções, depende de
aspectos relacionais da forma como outros o percebem para se constituir,
307
se tornando múltiplo. Na filosofia ameríndia, o mundo humano é
atravessado por vários outros mundos humanos e não humanos.
Diante das reflexões desta seção, podemos entender que há dois
equívocos fundamentais do pensamento monocultural acerca do mundo:
a pressuposição da existência de um mundo único, sem considerar as
relações múltiplas que o compõem, e também a universalização de um tipo
de humanidade enquanto a única existente. Se desejamos viver neste
planeta, é necessário que comecemos a entendê-lo como é: polifônico,
múltiplo de percepções, povos e seres. Contudo, parece que as filosofias
hegemônicas se fundamentaram em tais equívocos, de maneira que
precisamos construir outras filosofias para os tempos urgentes que
vivemos. Precisamos de outras filosofias, pois a história da filosofia
ocidental hegemônica, “quase sempre preocupada com a conservação ou a
reforma de um mundo desde sempre insustentável” (VALENTIM, 2014,
p. 23), não tem oferecido muitos caminhos.
Estamos no tempo das metamorfoses, em que as certezas ruíram
junto com as condições que as suportaram durante séculos. A agência de
um planeta em colapso tem imposto mudanças de paradigma em todas as
esferas da sociedade moderna, fazendo proliferar transformações em todas
as áreas de conhecimentos. Uma dessas transformações obriga o
pensamento solipsista filosófico a se abrir para as transdisciplinaridades e
ao fora das academias através do reconhecimento de que é impossível fazer
filosofia significativamente sozinho ou apenas restrita a grupos afins,
exigindo a troca com outros mundos. A única saída é romper com o sujeito
solipsista e autorreferencial, compreendendo a multiplicidade que nos
compõe. Como a área que permite vislumbrar outros mundos, a filosofia
pode oferecer ferramentas para a passagem entre mundos, produzindo
308
continuidades nas relações divergentes e decompondo as separações que
sua tradição construiu.
Ainda que o Homem moderno se entenda como universal e mais
evoluído entre os seres, e também entre a própria humanidade, a
cosmoperspectiva ameríndia decompõe as ideologias que sustentam esta
superioridade. O mundo é composto por um feixe de cosmoperspectivas,
somos uma relação entre mundos. Enquanto a filosofia hegemônica se
caracteriza principalmente por um pensamento centrado na
universalidade, essência, substância, identidade, permanência, negando o
devir em todas as suas possibilidades, a filosofia ameríndia aponta para a
polifonia de mundos e seres. O pensamento ameríndio enquanto
cosmopolítica, ou ontologia política da diferença sensível(VIVEIROS
DE CASTRO, 2012, p. 158) consiste em uma ontologia imanente, não
hierárquica ou finalizada, nem baseada em princípios transcendentes.
Nesse sentido, aponta para um mundo que é possível dentro das
possibilidades desse planeta que vivemos, mais do que a ontologia antropo-
euro-falo-ego-capital-logocêntrica que implica em um mundo impossível, no
qual ou o planeta como um todo ou a humanidade deixará de existir. A
filosofia ocidental não percebe as polifonias dos mundos. Esse movimento
de virada ontológica na filosofia proporcionado pelo perspectivismo
ameríndio e por outras filosofias como as africanas e afro-brasileiras,
implica em uma transformação do que entendemos por mundo e,
consequentemente, por sujeito/a/e. O perspectivismo tem a ver com uma
nova compreensão do mundo em todas as suas dimensões, e, em essência,
a uma nova compreensão de nós mesmos/as/es, o que implica em
decompor o antropocentrismo.
Através dessa virada, é possível pensar outra relação de ensino e
aprendizagem, fomentando o filosofar como uma ponte entre mundos
309
humanos e não humanos. wanderson flor do nascimento (2020) ao trazer
para o debate os terreiros como espaços educativos fornece alguns
elementos para repensar a forma como a escola se relaciona com o
conhecimento. Para povos de ancestralidade africana e indígena, viver no
território brasileiro significa lidar com diferentes mundos, haja vista que o
mundo opressor tenta consumir suas percepções sobre a existência,
obrigando a busca pela resistência que tem nos terreiros um espaço
importante. Essa condição é entendida pelo autor enquanto a experiência
ocidental do entremundos” (FLOR DO NASCIMENTO, 2020, p. 417).
O filósofo (2020, p. 411) destaca que, por sua condição “entremundos”,
tais grupos sociais não pautam sua visão da tradição em uma imagem fixa
e estática de percepção do mundo, pois sua cosmopercepção visa proteger
os contextos essenciais da experiência que modificam e renovam as
estratégias de adaptação ao espaço e ao tempo e às necessidades dos povos”.
Diante de um mundo único que soterra diferenças, espaços como terreiros
buscam estratégias para lidar com as opressões, como é possível perceber
na relevância das mulheres nesses espaços e na relação de cuidado com o
que é chamado de natureza (FLOR DO NASCIMENTO, 2020, p. 418).
Em tal contexto,
a própria noção do aprender se desloca da posse de um determinado
conhecimento para a possibilidade de operar com o que se mostra à disposição
para agir diante de uma situação problema. Para utilizar uma metáfora
cartográfica, uma pessoa que sabe é aquela que sabe viajar de posse de um
mapa, e não aquela que tem ciência de todos os pontos do mapa, de suas
escalas, de seus níveis de representação" (FLOR DO NASCIMENTO, 2020,
p. 416).
310
Assim, nesse viés, aprender é movimentar saberes e faz mais sentido
falar em circulação de conhecimentos (FLOR DO NASCIMENTO,
2020, p. 417) e não apenas em transmissão, pois “as práticas de ensino e
aprendizagem nos terreiros se alicerçam sobre uma noção não estática de
educação, transmissão e tradição. E assumem um suposto básico das
imagens africanas sobre formação, a saber, que a formação é processo,
movimento, completamente relacional (FLOR DO NASCIMENTO,
2020, p. 419). A condição entremundos é um espaço intenso de circulação
de saberes e de criação de estratégias de resistência, que se baseia em outra
relação com o conhecimento. Se as instituições de ensino também podem
ser entendidas em algum sentido com um espaço entremundos, o que
precisa ser transformado para que se torne um espaço de circulação de
saberes e não apenas de reprodução?
Neste texto, estamos buscando repensar a escola como um espaço
de costura entremundos, que permite buscar saídas para os problemas
atuais. Para isso, o conhecimento, bem como o ensino como transmissão
e a aprendizagem como reprodução precisam ser ressignificados, pois no
sentido que apresentamos em nosso primeiro capítulo, tais concepções
acabam por transformar as instituições de ensino também em espaços
produtores de opressões. A partir de uma filosofia que reconhece a
pluralidade, é possível entender o filosofar como pontes entre saberes
potentes para construir lutas potentes e sociedades potentes. Questionar a
excepcionalidade de um tipo de humanidade implica em estar atento às
costuras entremundos, observando como tais costuras podem ser pontes
para outros mundos menos daninhos e mais férteis, o que refletiremos na
próxima seção.
311
4.2 Alianças entre mundos mais que humanos
No livroO que é a vida?” Lynn Margulis e Dorion Sagan (2002)
apresentam as dificuldades de responder tal questão de uma forma
objetiva. Isto faz com que Margulis e Sagan apresentem definições
diferentes, de certa forma complementares, ao final de cada capítulo,
pontuando cosmoperspectivas diversas. Em cada capítulo uma faceta
diferente é analisada, o movimento dos autores vai da cosmoperspectiva do
planeta “Gaia” até a cosmoperspectiva das bactérias “mestres da
biosfera” –, fungos – “a carne da terra” , protistas, animais e vegetais.
Em uma das primeiras definições, a vida “É a transmutação
astronomicamente local do ar, da água e do sol terrestres em células. A vida
[...] como música, carbono e energia, é um eixo rodopiante de seres que
crescem, fundem-se e morrem” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 66).
Portanto,
a vida é [...] a “presentificação” de químicas passadas, de um ambiente pretérito
da Terra primitiva que, em virtude da vida, persiste na Terra moderna. É a
encapsulação aquosa do espaço-tempo [...]. A vida é um eixo de crescente
sensibilidade e complexidade, num universo da matéria-mãe [...]. Preservando
o passado e estabelecendo uma diferença entre o passado e o presente, a vida
vincula o tempo, ampliando a complexidade e criando novos problemas para
si mesma. (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 97)
A vida é uma diferença entre o passado e o presente, uma
recombinação de elementos, um movimento dinâmico de recriação
contínua, no qual o passado está encapsulado no presente. Assim, “a vida
312
é um certo tipo de dejeto cósmico energizado pela luz solar” (MARGULIS
& SAGAN, 2002, p. 65). Nesse sentido,
a vida se assemelha a um fractal um padrão que se repete em escalas maiores
ou menores. [...] Os “fractais” da vida são as células, os arranjos celulares, os
organismos multicelulares, as comunidades de organismos e os ecossistemas de
comunidades. Repetido milhões de vezes, ao longo de bilhões de anos, os
processos biológicos levaram aos esplêndidos padrões tridimensionais vistos
nos organismos, nas colmeias, nas cidades e na vida planetária como um todo.
(MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 19-20)
Como fractais, a vida repete diferentemente seus padrões em
diversas escalas. Como apontam Margulis e Sagan, tais fractais consistem
em arranjos, comunidades que se organizam em vários níveis. A vida, como
música, é processo, não uma coisa que pode ser objetivamente definida, “A
vida se distingue não por seus componentes químicos, mas pelo
comportamento desses componentes. [...] a vida na Terra assemelha-se
mais a um verbo. Ela conserta, sustenta, recria e supera a si mesma”
(MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 28). Viver é soar como música no
compasso do presente.
Margulis e Sagan (2002) evidenciam a importância das bactérias
para a vida no planeta, pois “Para funcionar, a biosfera requer a diversidade
microbiana” (2002, p. 253). Descritas por eles como “as maiores
inventoras químicas da história da Terra”, ressaltam que “não são “meros
micróbios””, são seres “que vicejam há mais de 3,5 bilhões de anos”
(MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 69). São os primeiros seres a “brotarem
de nada além de sol, água e ar. E, sendo ainda os únicos seres aptos a
executar muitos truques metabólicos que nós, os animais, e até mesmo as
313
plantas não somos capazes de fazer [...]. Elas são os virtuoses da bioesfera”
(MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 69-70). Importantes para a
preservação do solo e a purificação da água, as bactérias são “mestras da
simbiose em geral” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 132),
“negociadoras de genes” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 106).
Margulis e Sagan ressaltam que a vida é bacteriana e que os
organismos vivos são de alguma forma descendentes das comunidades de
bactérias que se uniram para forma um novo tipo de célula, células
nucleadas. Nesse sentido, podemos dizer, como fazem Margulis e Sagan,
que as bactérias são nossas parentas. Por isso, os autores entendem que o
“medo das bactérias é, de certo modo, um medo da vida, medo de nós
mesmos num estágio anterior de evolução” (MARGULIS & SAGAN,
2002, p. 104). Contudo, “as bactérias são tão pouco “micróbios” quanto
são “ervas daninhas” as plantas que nos alimentam, nos vestem e nos
abrigam” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 70).
A concepção de sujeito moderno se pauta na compreensão do ser
humano como um indivíduo autônomo, especialmente por sua
racionalidade que permite agir de maneira mais livre que outros seres. Isso
parte de uma compreensão de que outros seres não pensam, não tem
consciência de suas ações ou, na melhor das hipóteses, afirmamos que eles
têm tais atributos através da aparente semelhança de seus comportamentos
com os nossos. Porém, um dos problemas centrais da filosofia da mente
aponta que a mesma dificuldade se apresenta quando fazemos afirmações
do tipo sobre humanos, de modo que só podemos afirmar que qualquer
outro humano pensa estabelecendo comparações a partir daquilo que nós
particularmente julgamos ser pensamento. O mesmo acontece quando
discutimos o problema da liberdade.
314
Para Immanuel Kant, de fato, a liberdade moral era contrastada com a
dinâmica sensitiva da natureza, que consistia em mera realização técnica. A
liberdade era a capacidade de transcender o chamado da natureza por meio da
atenção ao que deve ser feito. [...] A ideia de que a liberdade é essencialmente
um ato de vontade é um obstáculo para se aprender sobre outras formas de
liberdade. A liberdade se torna intencionalidade e planejamento. No entanto,
as ações humanas raramente são executadas a partir de um projeto. (TSING,
2019, p. 123-124)
Em geral, a filosofia ocidental hegemônica trata a liberdade como
um atributo exclusivamente humano e que outros seres agem apenas por
instinto. Porém, podemos questionar se, de fato, ocorre entre os humanos
todos os preceitos que foram apresentados como definição de “liberdade”
na história da filosofia, pois o comportamento humano frequentemente se
mostra longe do que entendemos por consciência, deliberação,
intencionalidade, planejamento e outros. Isto nos leva a desconfiar se este
conceito consiste em uma abstração da filosofia ocidental, de maneira que
a humanidade está muito mais próxima do que imaginamos da “mera
realização técnica” que atribui à natureza.
Elites euro-americanas frequentemente superestimam suas fuões cognitivas
ao colocar a ação em movimento. Raramente nós humanos nos movemos de
um plano para ação; na maior parte do tempo nós meramente fazemos o que
podemos e, em nosso melhor, aproveitamos a ocasião. Isso não significa que
nós agimos como autômatos. Mas as outras espécies também não o fazem.
Repensar a nós mesmos como trajetórias interativas pode nos fazer refletir
sobre como nós agimos conjuntamente com outras espécies para fazer o
mundo. [...] Alan Rayner (1997b), considera como formas de vida de todos os
tipos fazem suas vidas em indeterminação. In praise of plants, do botânico
Francis Halle (2002), oferece observações relacionadas sobre a indeterminação
de plantas como um modo de viver em liberdade. Comentários deste tipo não
se encaixam facilmente com correntes poderosas na filosofia ocidental. Mas
315
considere as limitações dessas correntes. Assim Immanuel Kant, vivendo sob
um regime repressivo, em que muitas formas de ação eram proibidas,
imaginava liberdade como a transcendência humana da natureza através da
razão. Raciocinar era um dos poucos tipos de ação que ele poderia realizar,
outras formas de ação eram bloqueadas. Sob outro regime, poderia ele ter
imaginado liberdade não apenas em pensamento passivo, mas em um sentido
mais completo de viver? (TSING, 2019, p. 76)
Ainda que o ser humano se veja como o único ser autônomo,
Tsing chama a atenção para a indeterminação de outros seres como as
plantas. Como ela comenta, no contexto de repressão vivenciado por Kant
é possível entender uma concepção transcendente de liberdade. Porém,
não pretendemos apontar que a humanidade não é livre, mas justamente
fazer o movimento de chamar a atenção que é tão livre quanto pode ser
qualquer outro ser que costuma ser associado por ela como “irracional”.
Será que agimos de maneira tão independente de outros seres como
acreditamos? Sobre isso, a antropóloga comenta:
considere uma comparação similar entre árvores e vilosidades intestinais: folhas
de árvores fazem “seres” fúngicos como bactérias intestinais fazem humanos.
Humanos e fungos ectomicorrízicos, ambos precisam de outras espécies para
conseguirem se alimentar. Nenhum deles é capaz de comer sozinho. Fungos e
humanos, cada um tem muitos tipos do que Donna Haraway (2007) chama
de “companheiros de mesa”, isso é, companheiros para comer e serem comidos.
Mas eles compartilharem um subconjunto dentro disso é o mais
extraordinário: uma associação obrigatória para comer que aproxima tão
intimamente os companheiros que é difícil saber onde um termina e o outro
começa. [...] Nós não podemos nos alimentar sem essas bactérias, assim como
os fungos não podem se alimentar sem as árvores. Nós evoluímos juntos; nós
vivemos para comer juntos. [...] Considere as implicações. Quem somos nós?
Noventa porcento das células em nossos corpos não têm uma assinatura
genética; elas são bactéria. No entanto elas estão conosco, e nós precisamos
delas. Nossos corpos vêm a ser através delas. Para além de nossos corpos, nós
316
não podemos sobreviver sem paisagens multiespécies. Nós nos tornamos quem
somos através de agregados multiespécies. Nós somos mais parecidos com
fungos micorrízicos do que imaginamos. Isso faz uma enorme diferença para
nossas teorias de ação “humana” no mundo. Como os humanos podem agir
como uma força autônoma se o nosso “nós” inclui outras espécies que fazem
de nós quem somos? Se nós não somos uma força autônoma, e a liberdade
seremos então escravos da compulsão natural? O que pode significar para um
agregado multiespécie atuar sobre o mundo? (TSING, 2019, p. 72-74)
Desse modo, até mesmo a suposta autonomia da humanidade
diante do mundo se desfaz porque o que nos compõe enquanto pessoas é
um agregado multiespécie e não um indivíduo isolado dos outros seres que
o rodeiam. Os seres humanos necessitam de mutualidade multiespécies
para sobreviver, de modo que não faz sentido pensar um mundo no qual
apenas a humanidade tem relevância. Ignorar outras espécies significa
ignorar uma parcela importante do mundo em que vivemos e da nossa
sobrevivência.
Os seres mais bem-sucedidos e abundantes do planeta são aqueles
que se associaram a outros através de negociações e alianças interespécies.
O vigor da simbiose como força evolutiva mina a ideia vigente da
individualidade como algo fixo, seguro e sagrado. O ser humano, em
particular, não é uno, mas compósito. Cada um de nós proporciona um belo
meio ambiente para bactérias, fungos, nematódeos, ácaros e outros seres que
vivem dentro e sobre nosso corpo. Nossos intestinos estão repletos de bactérias
e leveduras que fabricam vitaminas para s e nos ajudam a metabolizar nossos
alimentos. Os micróbios atrevidos de nossa gengiva assemelham-se a fregueses
de uma loja de departamentos na véspera de um feriado. Nossas células
carregadas de mitocôndrias evoluíram a partir de uma fusão de bactérias
fermentadoras e respirantes. Talvez os epiroquetas, que esmaeceram
simbioticamente a ponto de se tornarem quase impossíveis de detectar,
continuem a se agitar como undulipódios de nossas trompas de Falópio ou das
317
caudas dos espermatozoides. Seus remanescentes talvez se movimentem de
maneiras sutis, à medida que cresce o nosso cérebro repleto de microtúbulos.
“Nosso” corpo, na verdade, é uma propriedade conjunta dos descendentes de
diversos ancestrais. (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 245-246)
Não existe independência completa entre os seres vivos, pois estes
sempre dependem uns dos outros em alguma escala. Como ressaltam
Margulis e Sagan (2002, p. 133), “A simbiose produz novos indivíduos.
“Nós” não poderíamos sintetizar as vitaminas B ou K se não houvesse
bactérias em nosso intestino”. As alianças simbióticas convidam a repensar
a individualidade e a autonomia humana. Nesse sentido, poderíamos
entender a vida como uma rede de alianças entre mundos. A vida existe em
um contexto mais amplo do que um organismo individual:
a longo prazo, os seres orgânicos enfrentam os limites de sua própria
multiplicação. Não sobrevivem sozinhos, mas num contexto de vida global.
enxames de gafanhotos vorazes devoram monoculturas inteiras; aves marinhas
produtoras de guano defecam sais, deslocando o fosfato e o nitrato dos oceanos
para a terra firme. Reprodutores velozes começam como infestações ou
infecções, mas são domados. Qualquer população planetária exuberante,
qualquer “tumor” fora de controle, encontra sua economia. Todas as
populações em crescimento integram-se na biosfera ativa, ou então se
extinguem. (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 199-200)
A vida neste planeta é resultado de um movimento de sincronia
com outros seres, o próprio ser humano só existe por causa das virtuoses
bactérias, pois sua origem remonta a elas, mas também sua presentificação
só é possível em alianças com elas. Seres de diferentes ritmos e melodias
sincronizam harmonizando seus sons em prol da vida. Se o ser humano
318
dominante tem agido como se fosse o proprietário legítimo da economia
da Terra, inclusive eliminando outros humanos, não tardará para ser
eliminado por ela. Por isso, “A metamorfose contínua do planeta é o
resultado cumulativo de seus seres multifários. A humanidade não rege a
sinfonia senciente: com ou sem nós, a vida prosseguirá” (MARGULIS &
SAGAN, 2002, p. 251). Margulis e Sagan entendem a biosfera como uma
sinfonia senciente que não é regida pela humanidade, mas pelas
colaborações interespécies e na qual seres como bactérias e fungos têm uma
participação mais relevante do que o humano.
Os humanos não são especiais e independentes, mas parte de um continuum
de vida que circunda e abarca o globo. O Homo sapiens tende a dissipar calor e
a acelerar a organização. Como todas as outras formas biológicas, nossa espécie
não pode continuar a se expandir indefinidamente. Tampouco podemos
continuar a destruir outros seres, de quem dependemos, em última instância.
Devemos realmente começar a ouvir o resto da vida. Como uma linha
melódica única na ópera viva, somos repetitivos e persistentes. Podemos julgar-
nos criativos e originais, mas não estamos sozinhos nesses talentos. Quer o
admitamos ou não, somos apenas um tema da forma biológica orquestrada.
Com seu glorioso passado não humano e seu futuro incerto mas instigante,
essa vida, a nossa vida, está hoje tão inserida quanto sempre esteve no resto da
sinfonia senciente da Terra. (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 254)
As alianças simbióticas entre reinos” (MARGULIS & SAGAN,
2002, p. 129) discutidas nesta seção mostram que “Os ramos da árvore da
vida nem sempre divergem; às vezes se juntam e produzem estranhos frutos
novos” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 144).
A partir de tais cosmoperspectivas sobre a vida, refletimos sobre um
outro modo de filosofar mais conectado com os movimentos que envolvem
o viver neste planeta. Se a filosofia hegemônica pode ser entendida como
319
uma necropolítica por seus movimentos aniquiladores de outras ontologias,
propomos pensar o filosofar como um movimento em sintonia com outros
formas de vida. Para isso, tal filosofar precisa romper com o
antropocentrismo. A diferença dessa forma de filosofar pode ser entendida
por meio da diferenciação entre a Filosofia da Ecologia e a Filosofia
Ecológica. Como explicam as filósofas Maria Eunice Quilici Gonzalez e
Juliana Moroni (2011, p. 29-30), para os adeptos da Filosofia da Ecologia,
as questões ecológicas
devem ser abordadas sob uma ótica racional, antropocêntrica, exclusiva do ser
humano, devido à capacidade humana de discernimento moral, supostamente
não encontrada em outras espécies. [...] A abordagem antropocêntrica da
Filosofia da Ecologia, que utiliza a escala de valores exclusivamente humanos
para decidir e direcionar os rumos do planeta, se diferencia do viés
(necessariamente antropomórfico, mas não antropocêntrico) adotado pela
Filosofia Ecológica. Nesse viés, o estudo das múltiplas relações que se
estabelecem entre organismos e meio ambiente adquire um caráter naturalista,
que elege a vida, em suas várias dimensões, e a ação ambientalmente situada
como parâmetros centrais a partir dos quais se espera que possa emergir uma
visão sistêmica da natureza. (GONZALEZ & MORONI, 2011, p. 29-30)
Portanto, a abordagem da Filosofia da Ecologia utiliza como
referência valores exclusivamente humanos a partir de uma perspectiva
racional, colocando as questões ecológicas sob uma interpretação moral
humana. A Filosofia Ecológica, por sua vez, não entende o humano como
capaz de direcionar sozinho os rumos do planeta, focando em
compreender a dinâmica da vida nas relações entre os organismos e o
ambiente.
A Filosofia Ecológica emerge a partir da abordagem da Psicologia
Ecológica de James Gibson, da Epistemologia Ecológica de Gregory Bateson
320
e dos estudos da Teoria da Auto-Organização. Nesse viés, “a vida é
caracterizada como uma complexa rede dinâmica que se constitui por meio
de processos auto-organizados e se mantém através de ajustes, de
cooperação e embates entre as várias espécies de seres existentes
(GONZALEZ & MORONI, 2011, p. 31). Assim, a Filosofia Ecológica
atua no sentido de “explicitar os padrões informacionais que marcam a
interação dinâmica dos vários organismos com o ambiente que habitam”
(GONZALEZ & MORONI, 2011, p. 31). Nesse sentido, o ambiente não
é descrito por meio de variáveis neutras, mas a partir da inter-relações entre
os organismos e os seus ambientes. As filósofas elencam três principais
pressupostos da Filosofia Ecológica.
Em primeiro lugar, ela retira o homem do centro do universo e busca descobrir
o que parece ser o seu nicho natural na dinâmica da vida auto-organizada e
compartilhada por inúmeras formas significativas de existência. Um segundo
pressuposto é que, longe de ser a única espécie pensante, o ser humano possui
em comum com muitos outros seres vivos a habilidade de conceber, sentir e
perceber a dinâmica das relações informacionais, também conhecidas como
affordances” (GIBSON, 1979), as quais possibilitam a ação dos organismos
no meio ambiente. A terceira suposição fundamental da Filosofia Ecológica é
que a natureza não é uma máquina gigantesca, mas sim um sistema
informacional, dinâmico e qualitativo, que tem os seres vivos entre os seus
constituintes fundamentais. Nesse sistema, o acaso e os processos auto-
organizadores desempenham um papel importante no estabelecimento de
novidades e na preservação da vida. (GONZALEZ & MORONI, 2011, p. 29)
Dessa forma, a Filosofia Ecológica se contrapõe à visão
antropocêntrica sobre a natureza que acompanha as abordagens da
Filosofia da Ecologia. Um filosofar ecológico percebe o mundo para além
da humanidade, conectado com outros seres e suas formas de perceber o
321
mundo. A Filosofia Ecológica parte da compreensão da Terra como um
sistema vivo no qual “há tendência ao equilíbrio e à constância advêm da
unicidade e funcionalidade entre os elementos que o compõe, sem que haja
a necessidade da predominância de um elemento racional que controle ou
pretenda reger a dinâmica da vida” (GONZALEZ & MORONI, 2011, p.
34). Nesse viés, organismo e ambiente formam um sistema auto-
organizado, dinâmico e complexo que se constitui a partir de um processo
contínuo de mutualidade e reciprocidade, pois
apesar de possuírem estruturas e composições diferentes, animal e ambiente
têm um elo intrínseco entre as suas propriedades constitutivas (carbono,
luminosidade, temperatura, água, nutrientes, etc.), as quais são responsáveis
por sua união e manutenção. Nesse cenário ontológico e epistemológico,
organismo e ambiente constituem partes inseparáveis do ecossistema.
(GONZALEZ & MORONI, 2011, p. 31-32)
Nessa cosmoperspectiva, a percepção da informação disponível no
ambiente é resultado da coevolução organismo-ambiente, constituindo o
nicho ecológico que é compartilhado por seres humanos e mais que
humanos, compreendendo-se que o conhecimento perceptual evolui
juntamente com o ambiente. Os elementos que constituem o sistema que
cada organismo faz parte moldam como o mundo é percebido, de maneira
que o mundo próprio de cada ser implica em formas específicas de perceber
e agir no ambiente.
Como explica David Large (2011, p. 352), a reciprocidade
organismo-ambiente rompe com o dualismo, pois a mente é entendida em
termos ecológicos a partir da “descrição do ambiente ecológico como o que
está disponível para a mente, ou, se você preferir, o que está disponível para
322
se pensar”. Nesse viés, a consciência “surge da reciprocidade entre
organismos possuidores de mente e ambientes ecológicos nos quais estão
imersos” (LARGE, 2011, p. 353).
Consequentemente, uma cosmoperspectiva não antropocêntrica
leva a outra epistemologia.
Na perspectiva ecológica, o conhecimento não está limitado ao domínio
exclusivamente proposicional, que envolve fatores ligados à linguagem
humana. A linguagem é apenas um dos elementos constitutivos do
conhecimento que se espalha pelo ambiente através de gestos, olhares,
processos históricos, além dos hábitos de ação que propiciam as percepções
olfativas, visuais e auditivas dos seres vivos. Para exemplificar, podemos
identificar os gestos presentes no sorrir e chorar como conhecimento não
proposicional de certas espécies relativas às expressões de alegria e tristeza; ou,
o tipo de comunicação estabelecida entre os pássaros e a natureza que lhes
permite perceberem com antecipação a chegada do inverno e migrarem para
áreas mais quentes. Nessa perspectiva, a aquisição do conhecimento advém do
aprendizado que ocorre através da troca de informações entre os organismos e
o meio no plano da ação habilidosa. (GONZALEZ & MORONI, 2011, p.
31-32)
Entender o conhecimento como coevolutivo permite perceber
como fazemos mundos coletivamente e que nenhum ser é capaz de
determinar sozinho os rumos do que acontece ao seu redor. Se somos
compostos por muitos seres, que moldam e têm suas cosmopercepções
moldadas por seus mundos, faz mais sentido entender o conhecimento não
como o resultado de representações de uma razão isolada metafisicamente,
mas como um fazer coletivo e dinâmico contínuo de inter-ações em muitas
escalas. A abordagem da Filosofia Ecológica aponta para a comunicação
323
como uma estrutura informacional que possibilita a ação, não
necessariamente restrita à fala ou à escrita.
Concordamos com James Gibson (1979, p. 258, tradução nossa)
que “conhecer é uma extensão do perceber”. Nesse viés, não seria preciso
interpretar o mundo através de representações mediadas por uma razão, os
seres fazem parte dele de maneira que o significado emerge de processos
coevolutivos de longa duração. A ação no mundo gera disposições e é esta
experiência que permite detectar o significado e o conhecimento. A
epistemologia ecológica não se refere a formas de conhecer, mas está voltada
para práticas de conhecimento, de maneira que a percepção-ação dos
organismos no ambiente está intrinsecamente relacionada ao saber.
Contudo, a Filosofia Ecológica enquanto uma visão sistêmica
alternativa da natureza, que não concebe o ser humano de maneira isolada
do mundo e dos demais organismos, “procura re-situar o ser humano no
que parece ser o seu nicho natural, fornecendo subsídios para o estudo da
dinâmica de sua vida” (GONZALEZ & MORONI, 2011, p. 35). Assim,
convida a buscar os padrões que nos ligam a outros organismos, nos
situando em uma “rede compartilhada por inúmeras formas significativas
de existência” (GONZALEZ & MORONI, 2011, p. 35). Dessa forma, a
filosofia
busca reatar o elo perdido da sua corporeidade na complexa rede dinâmica da
vida. A esperança é que o abandono da ilusão de controlador central da
natureza, e a sua imersão nessa rede, possibilite a compreensão de problemas
ambientais cujas soluções parecem exigir novas formas de compreensão do
mundo a partir de múltiplas perspectivas unificadoras. Tais perspectivas
poderiam alterar espontaneamente hábitos auto-destrutivos que direcionam o
nosso comportamento e que nos impedem de fazer avaliações críticas acerca de
nossas ações no mundo. Essa visão sistêmica, que respeita a diversidade de
324
ações, poderia, quem sabe, nos recolocar na posição de seres do mundo da vida
e não apenas de seres no mundo da razão. (GONZALEZ & MORONI, 2011,
p. 35-36)
Situando o ser humano em seu lugar no cosmos, a abordagem
ecológica “o retira do centro do universo, integrando-o na dinâmica da
vida auto-organizada e compartilhada por inúmeras formas significativas
de existência” (GONZALEZ & MORONI, 2011, p. 26). Nesse sentido,
entendemos que a Filosofia Ecológica colabora para o rompimento com o
narcisismo e uma compreensão sensível e sistêmica tanto do conhecimento
quanto do ser.
O prefácio escrito por Niles Eldredge para o livro de Margulis e
Sagan foi intitulado de “Filosofias nunca sonhadas” (2002, p. 11) para se
referir às suas discussões sobre a vida. “Nunca” talvez seja uma palavra forte
neste caso, pois o xamanismo e outras filosofias não hegemônicas
estimulam o sonhar dessas outras filosofias mais que humanas, assim como
a abordagem da Filosofia Ecológica estimula a buscar tais conexões. Mas o
“nunca” talvez caiba bem com relação a filosofia hegemônica que estamos
discutindo aqui. Desse modo, “Quando nossa vida toca na de reinos
diferentes plantas floríferas e frutíferas, fungos recicladores e, às vezes,
alucinógenos, animais de criação de estimação, micróbios salutares e
transformadores do clima , quase todos sentimos o que significa estarmos
vivos” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 247).
Na próxima seção, para aprofundar na compreensão do mundo
como um sistema dinâmico, refletiremos sobre as alianças interespecíficas
com os fungos.
325
4.3 Nos micélios do fazer mundos
A filosofia ocidental hegemônica é um pensamento que expressa
um certo tipo de humanidade enquanto centro do universo baseada em
ideologias de superioridade. No entanto, as bactérias e os fungos nos
convidam a aprender com outras percepções. São percussores da vida no
planeta e estão entre os seres mais antigos que existem, isso é evidenciado
por fósseis
24
e também quando analisamos organismos vivos, os fungos são
os indivíduos mais velhos. A longevidade dos fungos torna evidente o
quanto dois mil anos não são nada na história do planeta em que vivemos.
Eles decompõem com uma velocidade admirável qualquer coisa que caia
no solo, assim como qualquer coisa que esquecemos na geladeira. Seu
sistema de reprodução lançando esporos no ar, faz com que eles estejam
presentes em praticamente tudo. Quando morrermos são eles que nos
consumirão, levando todos os nutrientes possíveis para o solo, por isso, são
essenciais para a fixação de carbono na terra, nos transformando também
em fungos.
Aqueles dentre nós que sucumbirem à morte programada e cujos restos mortais
não são devorados como carniça, nem tampouco incinerados, vão para o
submundo fúngico. As substâncias químicas de nosso corpo são devolvidas à
terra. Os fungos mantêm a reciclagem dos compostos da vida. [...] Essa é uma
lição difícil: a matéria de nosso corpo, nossa propriedade e nossa riqueza, não
nos pertence. Pertence à Terra, à biosfera, e, queiramos ou não, é para lá que
se destina, sempre. Os fungos ajudam-na a chegar lá. (MARGULIS &
SAGAN, 2002, p. 200)
24
“Os mais antigos fósseis vegetais bem conservados são de sílex córneo negro de uma pedreira de Rhynie,
um vilarejo da Escócia. [...] As plantas fossilizadas, como a Rhynia, têm raízes dilatadas, o que sugere que
os fungos já viviam em simbiose com raízes vegetais há 400 milhões de anos”. (MARGULIS & SAGAN,
2002, p. 213)
326
Isso nos leva a pensar: quem são os reais seres dominantes desse
planeta? Se olharmos o mundo para além do anthropos o que podemos
aprender? O que os fungos nos ensinam sobre o mundo?
É comum pensar que os fungos são mais parecidos com as plantas,
porém, a ideia de que são seres estáticos é falsa, pois emergem e se replicam
com muita velocidade, além da dinamicidade que é o próprio cerne de suas
vidas tanto para a reprodução quanto para a alimentação, o que notamos
no processo de decomposição. No entanto, este pensamento equivocado
sobre os fungos tem a ver com a sua forma de vida se dar nas frestas, ao
contrário das plantas que, embora também não sejam estáticas como se
imagina, utilizam de sua aparência como forma de sobrevivência e
reprodução. Os fungos estão por todos os lugares, e principalmente onde
menos imaginamos. Eles nos convidam a perceber além, olhar nas frestas
e aprender com elas.
A humanidade solipsista acredita que faz mundos sozinha, porém,
muitos mundos coexistem, e muito daquilo que julgamos uma ação
autônoma é a coordenação de mundos soterrados pela monocultura
moderna. Caminhar no sentido da convivência entre os seres é necessário
para reconstruir um mundo em ruínas. Nesse sentido, e por todos os
outros elencados acima, consideramos que os fungos, assim como as
bactérias, são professores do que significa viver neste planeta.
Se entendermos as árvores para além de suas raízes metafísicas e
enxergá-las na concretude do mundo, podemos visualizar linhas de fuga
anti-narcísicas para a contemporaneidade, transgredindo o mundo
exclusivamente humano. O olhar monocultural reduz a floresta a partes
isoladas, ignorando as diferentes relações e dimensões que a permeiam.
Quando pensamos nas florestas, muitas vezes focamos nas árvores e
327
inclusive achamos que plantá-las é suficiente para a sustentabilidade.
Porém, assim como há muitos saberes para além da árvore do conhecimento,
também há muitas outras partes das próprias raízes que não costumamos
perceber. As raízes das árvores são compostas por mais do que comumente
reparamos, as partes marrons na verdade são raízes antigas e que não mais
absorvem nutrientes funcionando como tubulações entre o tronco e os
pelos radiculares, estes últimos os reais responsáveis pela absorção. Além
deles, m função muito importante os fungos de micorrizasassociações
entre os fungos e as raízes das plantas que significam literalmente
“cogumelos-raízes” , inclusive em alguns casos substituindo os pelos
radiculares. Assim como na afirmação universal do pensamento árvore, os
que trabalham para a manutenção da saúde das plantas não são
reconhecidos: “Fungos são atores importantes na formação de paisagens; a
maioria de nós repara pouco neles e, dessa maneira, são bons
embaixadores dos muitos mundos ocultos que possibilitam
sustentabilidade dos meios de vida humanos” (TSING, 2019, p. 230).
Os fungos de micorrizas, organismos realmente fractais”
(MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 184), são os seres que mais nos levam
a pensar sobre as relações interespecíficas: “Se você procura um mundo de
companheiros mutuamente prósperos, considere os cogumelos. Cogumelos
são bem conhecidos como companheiros” (TSING, 2015, p. 182). Vários
tipos de fungos têm suas vidas baseadas no companheirismo
interespecífico, eles “nos levam para outro lugar: para as bordas
indisciplinadas e as costuras do espaço imperial, onde não se podem
ignorar as interdependências entre espécies que nos dão à vida na Terra.
Há muita história para contar aqui” (TSING, 2015, p. 178). Nesse
sentido, os fungos colaboram para pensar o Antropoceno e as possibilidades
do futuro da humanidade através da mutualidade multiespécies.
328
A parte mais visível dos cogumelos é o “chapéu” que corresponde
a seu órgão vegetativo, “No entanto, a vida do cogumelo se desenrola,
quase toda, no subsolo, na forma do maço de prolongamentos chamado
micélio [...]. Cada célula do micélio é uma subsidiária autônoma da
corporação. Ela própria se encarrega da química da sua nutrição e da
eliminação dos seus detritos” (FARB, 1964, p. 95). Assim como o rizoma,
o micélio que é o conjunto de filamentos (hifas) que compõem o corpo
de um fungo ou líquen também têm estruturas em redes, e por suas
interações com o ambiente são ainda mais interessantes para pensarmos
sistemas não hierárquicos. Devido sua estrutura, os micélios vêm se
destacando por sua longevidade relacionada a mutações genéticas, além do
uso para tratamento de diversas doenças, também têm um poder
impressionante de absorção de poluição e podem ser utilizados de material
para embalagens biodegradáveis e biotijolos. As espécies que estabelecem
maiores trocas colaborativas com o seu entorno tanto animal quanto
vegetal aumentam a sobrevivência tanto de si quanto do ecossistema. Além
de tudo isso, o que mais nos interessa sobre os micélios é sua capacidade
de atuar em redes que tem feito com que seja chamado de “internet da
natureza”.
Paul Stamets tem comparado as redes de fungos com a conexão
natural que aparece no filme Avatar, pois este emaranhado de pequenos
filamentos chamado de micélio ocupa praticamente todo o solo e conecta
muitas plantas, de modo que a maior parte das plantas terrestres
participam deste tipo de relação simbiótica. Os fungos colaboram na
extração de água, carboidratos, fósforo e nitrogênio do solo
compartilhando-os com diferentes plantas. Tsing (2015, p. 182) lembra
que o conceito de “simbiose” foi elaborado para o líquen aliança
simbiótica de um fungo com uma alga ou com uma cianobactéria. Como
329
os fungos não possuem clorofila e, portanto, não realizam fotossíntese,
necessitam da parceria com outros seres para sua sobrevivência, sua
existência depende “da generosidade alheia para se nutrir” (MARGULIS
& SAGAN, 2002, p. 191). Nessa parceria, o líquen é alimentado por seu
parceiro através da fotossíntese, enquanto fornece para ele abastecimento
de água e nutrientes para sobrevivência em condições extremas
transformando “minerais do solo, ao seu redor, disponíveis para seu
hospedeiro” (TSING, 2015, p. 182).
Por meio dos micélios, além de compartilhar nutrientes, os fungos
estabelecem a troca de informações entre plantas com o objetivo de
combater doenças e espécies invasoras. Há registros inclusive de pesquisas
que apontam que esta comunicação pode resultar na sabotagem de espécies
invasoras através da liberação de toxinas. Ren Sem Zeng, em um estudo de
2010, apontou que tomates que estavam em vasos diferentes, porém
interligados através da rede miceliana, demonstraram maior resistência a
uma doença após outro da rede ter sido contaminado 65 horas antes:
Acreditamos que os tomates conseguem 'espiar' o que está acontecendo
em outros lugares e aumentar sua resposta à doença contra uma potencial
patogenia (BBC, 2014, n.p.).
Outro fator relevante é apontado por Suzanne Simard que tem
demonstrado “que as plantas parecem trabalhar no sentido contrário ao
observado por Charles Darwin, de competição por recursos entre espécies.
Em muitos casos, espécies diferentes de plantas estão usando a rede para
trocar nutrientes e se ajudarem na sobrevivência” (BBC, 2014, n.p.). Por
isso, “Para vários cientistas, a internet dos fungos é um exemplo de uma
grande lição do mundo natural: organismos aparentemente isolados
podem estar, na verdade, conectados de alguma forma, e até depender uns
do outros” (BBC, 2014, n.p.). Os humanos do Antropoceno acreditam estar
330
isolados do mundo e competindo para a sobrevivência, mas os fungos nos
chamam a atenção para o modo como estamos interligados e
codependentes de outros/as/es.
Tsing explica que, em geral, existem dois modos principais de vida
fúngica características, classificando-os entre os que “caçam” e os que
“cultivam”:
meus fungos caçadores são decompositores. Eles localizam a presa vegetal e se
instalam para se deleitarem nela. Eles possibilitam a sucessão florestal ao abater
árvores estressadas e ao fornecer nutrientes para os recém-chegados. Meus
fungos agricultores formam conexões simbióticas, chamadas micorrizas, com
as raízes das árvores. Como os agricultores humanos, eles cuidam de suas
plantas, fornecendo-lhes água e nutrientes. Por sua vez, as plantas lhes
fornecem uma refeição com carboidratos. (TSING, 2019, p. 231)
Tsing deixa claro que essas não são essências restritivas ou
identidades fixas dos fungos, “como acontece com “caçadores” e
“agricultores” humanos, seus descendentes podem mudar” (2019, p. 231).
Em ambos os casos os fungos são essenciais, pois no que diz respeito ao seu
papel “caçador”, “Sem os fungos, a floresta estaria abarrotada de pilhas de
madeira morta, e outros organismos teriam uma base de nutrientes cada
vez menor. Assim, o papel dos fungos na renovação de ecossistemas torna
mais do que óbvio que os fungos são sempre companheiros de outras
espécies” (TSING, 2015, 184). Nesse sentido, como afirma Peter Farb
(1964), os fungos podem ser entendidos como os intestinos da Terra e são
os precursores da vida no solo tendo uma enorme importância para quase
todas as plantas: “são os micro-organismo mais espalhados no solo florestal
e têm a pesada incumbência de decompor as vastas quantidades de madeira
331
morta e folhas que todos os anos tombam ao solo. Em realidade, a maior
parte do húmus da floresta é fabricado pelos cogumelos” (FARB, 1964, p.
93). Além disso,
os fungos podem também perfurar pedras, tornando seus elementos minerais
disponíveis para o crescimento das plantas. Na longa história da Terra, os
fungos são responsáveis por enriquecer os solos e assim permitir que as plantas
evoluíssem. Há fungos que canalizam minerais das rochas para as plantas
(Money, 2002, p. 60). Há árvores capazes de crescer em solos pobres por causa
dos fungos que trazem fósforo, magnésio, cálcio e outros nutrientes às suas
raízes. (TSING, 2015, p. 183)
Diversas espécies de plantas e árvores dependem completamente
dessa relação simbiótica com fungos para existirem, assim como as árvores
de raízes curtas e os pinheiros: “As plantas-cadáver (Monotropa uniflora)
e outras plantas sem clorofila são mantidas exclusivamente dos nutrientes
que recebem dos fungos em suas raízes (Christensen, 1965, p. 50); muitas
orquídeas não podem nem mesmo germinar sem a assistência de fungos”
(TSING, 2015, p. 182). Essas parcerias são responsáveis pela saúde de
muitas comunidades botânicas, desempenhando uma função essencial na
ecologia de muitos habitats. Tal aspecto faz dos fungos “cultivadores”,
tornando-os responsáveis pela maior parte da vida de plantas e outros seres,
colhendo o que necessitam para a sobrevivência, muitas vezes através de
longas distâncias através da rede miceliana.
Margulis e Sagan (2002) colocam os fungos como seres de enorme
importância para o metabolismo global. Descritos como “os coletores de
lixo da biosfera” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 192) ou como “o
baixo-ventre da biosfera” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 191-192),
332
os fungos reciclam os mortos e redistribuem os elementos da biosfera
complementando o trabalho feitos pelas bactérias; assim, reciclam
carbono, nitrogênio e fósforo e fortalecem árvores e ervas: “Sem que os
fungos e bactérias decompusessem macromoléculas complexas, os
cadáveres de plantas e animais se acumulariam, com isso retirando fósforo
e nitrogênio de circulação” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 192).
Muitos movimentos acontecem no solo:
da próxima vez que você caminhar por uma floresta, olhe para baixo. Uma
cidade está sob seus pés. Se você fosse de alguma forma descer sob terra, você
se encontraria cercado ou cercada pela arquitetura de teias e filamentos. [...] As
teias micorrízicas conectam não apenas raízes e fungos, mas através de
filamentos fúngicos, árvores com árvores, conectando a floresta em
emaranhados.
Essa cidade é uma cena animada de ação e interação. Há muitas maneiras de
comer e compartilhar comida. Reconhecidamente, há caça: por exemplo,
alguns fungos enlaçam pequenos vermes chamados de nematóides para o
jantar. Mas esta é apenas a maneira mais bruta de ajustar a digestão. Os fungos
micorrízicos sugam para seu uso os açúcares que fornecem a energia das
árvores. Alguns desses úcares são redistribuídos através da rede de fungos de
árvore para árvore. Outros apoiam plantas dependentes, como micófilos
amantes de cogumelos, que usam rede para enviar energia para flores pálidas
ou coloridas (por exemplo, a planta-cadáver ou Indian pipe, e as orquídeas
Corallorhiza).
Enquanto isso, como um estômago de dentro para fora, os fungos secretam
enzimas no solo ao redor deles, digerindo material orgânico e até pedras, e
absorvendo nutrientes liberados no processo. Esses nutrientes também estão
disponíveis para as árvores e outras plantas, que os utilizam para produzir mais
açúcar para si mesmas e para a rede. (TSING, 2019, p. 43)
333
Embora em geral a humanidade afirme que tais movimentos são
simples e irrefletidos, são verdadeiras cidades do solo com uma enorme
complexidade de relações. Com as alianças simbióticas das micorrizas,
tanto fungos quanto plantas melhoram sua nutrição, além de se tornarem
mais resistentes a patógenos. Cogumelos de micorrizas, por exemplo,
acumulam metais pesados para proteger outras plantas da contaminação;
além disso, algumas espécies de fungos desenvolvem um tecido externo
como proteção denominado ectomicorriza, tal qual as trufas muitos dos
mais valorizados cogumelos culinários são micorrizas” (TSING, 2015, p.
183). Nesse sentido, os fungos:
formam uma sociedade com as raízes, substituindo os pelos em muitas árvores
da floresta, e também em muitas outras plantas [...]. Desde os tempos clássicos
que se conhece a associação das raízes com os cogumelos. Parece que já há dois
mil anos, Teofrasto, um entusiástico passeador dos bosques, havia
acompanhado alguns cogumelos, desde a sua implantação até às raízes dos
carvalhos. Os micorrizos têm sido encontrados em muitos fósseis primitivos;
acredita-se que as pré-coníferas, ancestrais dos pinheiros e dos abetos tiveram
semelhantes espécies de cogumelos-raízes. Eles têm sido vistos em todos os
solos, desde o Ártico aos trópicos, e mesmo nos cactos dos desertos. Um estudo
de 134 famílias de plantas, feito no Japão há alguns anos, revelou que 82 por
cento delas possuíam micorrizos. De fato, uma autoridade crê que não há na
terra, nos vegetais que crescem nos bosques, uma planta que não apresente um
micorrizo em alguma parte de suas extensões. (FARB, 1964, p. 88)
Resumidamente, micorrizas são importantes há muito tempo e são
presentes em diferentes ecossistemas. Como destaca Peter Farb (1964, p.
92), “as raízes-cogumelos têm superfícies absorventes muito maiores que
as dos pelos radiculares”, inclusive substituindo estes últimos. Tais relações
simbióticas são legítimas sociedades do solo. Fungos são muito mais
334
comuns em solos pobres de nutrientes e tendem a manifestar um
comportamento indiferente em épocas de fartura. Além disso, alguns
fungos são responsáveis por abrir caminho para outros seres,
os fungos participam da criação desses mundos florestais: alguns fungos
facilitam a disseminação de florestas, tornando possível o crescimento de
árvores em lugares que de outro modo seriam desencorajadores para as plantas.
Outros fungos facilitam a sucessão de um tipo de floresta para outro. (TSING,
2019, p. 126)
Margulis e Sagan consideram as micorrizas como cruciais para o
surgimento das primeiras florestas, pois “O tapete vegetal primevo, o
primeiro solo florestal, parece ter sido criado não somente pelas plantas,
mas por plantas e fungos agindo em conjunto” (MAGULIS & SAGAN,
2002, p. 190), de maneira que “o solo é sobretudo um fenômeno fúngico”
(MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 198). Isto coloca em xeque o preceito
heideggeriano de que só humanos fazem mundos.
Embora as micorrizas sejam essenciais para o desenvolvimento de
florestas e seres vivos como apontamos até aqui, Tsing também se dedica
a compreender os fungos decompositores “caçadores” nos seus termos
para mostrar os danos que as plantations causam. Nesse sentido, o primeiro
ponto a se considerar é a própria ideia de “praga”:
Iniciada no século XVII, a Revolução Industrial racionalizou paisagens para a
produção de ativos capitalistas. Muitos tipos de pragas nasceram dessa
racionalização. Pestes e patógenos, por exemplo, proliferaram e emergiram em
formas novas e mais virulentas a partir das monoculturas abarrotadas da
lavoura racionalizada. Pântanos foram drenados, e fertilizantes destruíram
ecologias específicas; tais perdas empoderaram certas formas de pragas. Estas
335
são paisagens ferais decorrentes da racionalização agrícola e industrial.
(TSING, 2019, p. 251)
Ecologias ferais são reações não projetadas às perturbações
humanas: “respostas não são necessariamente fruto de intenções humanas
[...] Sem atender a essa forma de ação, os humanistas reafirmam a
hegemonia do design e da consciência humana, afirmação que já fazia parte
do problema, tanto na teoria quanto na prática” (TSING, 2019, p. 16). O
reino feral traz a discussão sobre o Antropoceno e pode ser entendido como
uma expressão do mundo moderno. Um exemplo de seu trabalho que
colabora para compreender isto é a tali susu ou “vinha do leite”, árvore que
com o aumento da entrada de luz na floresta em consequência da atividade
madeireira, “criou sua própria monocultura” e oferece uma parábola do
nosso tempo (TSING, 2019, p. 14).
Pragas, pestes e patógenos surgem em proliferação em sua força mais
virulenta no contexto das monoculturas racionalizadas que os empoderam
a partir do anulamento das suas relações habituais e ecologias específicas.
Um exemplo trazido na pesquisa de Tsing ocorreu no Pará onde o fungo
Microcyclus ulei, que tem uma grande capacidade de infectar seringueiras,
foi o responsável pelo fim do projeto por trás da Fordlândia. O Microcyclus
tem pouca capacidade de disseminação na floresta diversificada porque
seus esporos assexuados têm vida curta. Como a “plantation é estruturada
para acelerar e sincronizar o fluxo de folhas jovens; o fungo, que infecta
apenas folhas jovens, é apanhado nesse novo regime de crescimento”
(TSING, 2019, p. 215). Assim, “A arquitetura da plantation promove não
apenas o crescimento da borracha, mas também proliferação da ferrugem
da folha da borracha” (TSING, 2019, p. 215).
336
Como explica melhor Tsing, o modelo de monocultivo moderno
“bloqueia o ressurgimento e gera uma proliferação incontrolável”
(TSING, 2019, p. 231).
O comércio de viveiros industriais é uma instância da reorganização do mundo
vivo em ativos, isto é, recursos para mais investimentos. Esse é o princípio por
trás do que estou chamando de plantation. As plantations disciplinam os
organismos como recursos, removendo-os de seus mundos de vida. Os
investidores simplificam as ecologias para padronizar seus produtos e
maximizar a velocidade a eficiência da replicação. Os organismos são
removidos de suas ecologias nativas para impedi-los de interagir com espécies
companheiras; eles são feitos para coordenar apenas com réplicas e com o
tempo do mercado.
A simplificação intencional das plantations priva os organismos de seus
parceiros ecológicos comuns, já que estes últimos são considerados corno
obstáculos à produção de ativos. Por um lado, então, organismos quase
idênticos são empacotados juntos; por outro lado, eles são alienados de todos
os outros. Essa é uma forma ecológica estranha e tem consequências não
apenas para os organismos ativos, mas também para seus predadores. Imagine
festa dos fungos “caçadores”: uma refeição sem fim de presas indefesas e
idênticas.
Plantations são incubadoras, então, para pragas e doenças, incluindo patógenos
fúngicos. As ecologias de plantation criam e disseminam microrganismos
virulentos. As plantations são investimentos de longa distância, e os mercados
distribuem seus produtos globalmente e com velocidade sem precedentes.
Através do comércio de viveiros industriais, por exemplo, o solo, com seus
microorganismos, é coletado de todo o mundo para ser transferido para
qualquer lugar. (TSING, 2019, p. 235-236)
Os seres que são entendidos como “praga” pela monocultura
desempenham importantes funções para a vida existir nos diferentes solos
que compõem. “Pragas”, nesse sentido apontado por Tsing, são
337
“organismos que assumem o controle após perturbações humanas” (2019,
p. 241), de modo que “A forma virulenta emergiu nessa interação de
muitos corpos e muitas espécies” (2019, p. 220). A grande proliferação que
ocorre em plantações é sinal de um desequilíbrio ecológico decorrente da
alienação dos seres de suas ecologias específicas e companheiros,
especialmente pela comercialização de réplicas/clones em viveiros
industriais que levam junto consigo fungos e bactérias para as quais os seres
de seus novos nichos ecológicos não têm resistência suficientes. Fungos
“caçadores” iniciam um movimento de proliferação em contextos cujas
legítimas “pragas” responsáveis são as perturbações humanas: “Tais
transformações nos levam refletir sobre os esforços da agricultura moderna
para desvincular-se do ressurgimento da floresta(TSING, 2019, p. 233),
tratando organismos vivos como recursos. Nesse contexto, alguns animais
não humanos e insetos também se tornam “pragas” e se proliferam
prejudicando as relações simbióticas. Assim, fungos sequestrados de seus
nichos ecológicos podem gerar devastação em outros contextos
prejudicando plantas nativas e outros seres vivos. Podemos pensar as
mesmas questões no que diz respeito à colonização:
a domesticação de plantas e animais traz pragas para as plantações e a pecuária,
de ratos a plantas que se escondem nos cereais, como a cevada no trigo. Há
também as pragas de áreas fronteiriças perturbadas, plantas e animais que
prosperam com perturbação humana. Há novas doenças para humanos e seus
animais domésticos, pois patógenos vêm e vão nas condições movimentadas da
vida doméstica. Exemplos disso são o sarampo e a varíola. Esses efeitos nocivos
surgem no mundo e permanecem conosco.
À conquista europeia do Novo Mundo oferece todo um outro catálogo de
pragas. À historiadora Virginia Anderson (2006) oferece o termo “criaturas de
império”, por meio do qual se refere ao rebanho trazido por colonos europeus
que, através de sua errância, alimentação e status de propriedade, ajudaram a
338
destruir os americanos nativos, humanos e não humanos. O termo pode se
estender para compreender toda série de espécies que viajam com
conquistadores humanos. Primeiro, há aqueles que se poderia chamar de
“tropas de choque”, isto é, aqueles que ajudam humanos invasores em seu
trabalho sangrento. No Novo Mundo, patógenos europeus fizeram esse
trabalho inicial, seguidos pelos rebanhos. Mas houve também o que se pode
descrever como “seguidores de acampamento”, a série de organismos
introduzidos de forma intencional e não intencional que tornaram a vida mais
difícil para nativos, humanos e não humanos. (TSING, 2019, p. 249-250)
As criaturas de império colaboraram para a dominação colonial,
pois assim como as plantas nativas que recebem os fungos sequestrados de
outros habitats, os ameríndios não tinham resistência para as doenças do
homem branco
25
. O ponto-chave para compreender a proliferação é a
velocidade dos sistemas de plantation.
A velocidade é importante. Os patógenos sempre atacaram as plantas; mas
quando esse processo acontece devagar, as paisagens se recuperam. A
velocidade de múltiplos ataques é algo novo e um produto do domínio da
forma plantation. O fato de os ataques acontecerem mesmo naquelas árvores
que resistiram à perturbação humana é particularmente assustador: a morte
dessas árvores ameaça a ressurgência da qual dependemos.
As plantations fazem mais do que espalhar patógenos; elas também os cultivam.
A proximidade de tantos corpos de ativos purificados e idênticos refeições
para patógenos aumenta as habilidades patogenéticas e às vezes as altera
completamente. No afluxo de muitos corpos, a reprodução fúngica pode
avançar com um novo vigor, fazendo uso de outras habilidades menores, como
formas alternativas de reprodução. Além disso, a economia da plantation
oferece oportunidades para patógenos fúngicos a fim de encontrar relações
próximas de outras regiões e descobrir novas presas. Nessa reunião farta e
25
Para saber um pouco sobre as estratégias propositais de uso de doenças como armas biológicas:
https://amazonia.org.br/2020/07/como-colonizadores-infectaram-milhares-de-indios-no-brasil-com-
presentes-e-promessas-falsas/
339
familiar, novas formas virulentas que saltam de uma presa para outra são
formadas. [...] É a abundância continua, jamais faltam novos pratos.
Em ecologias mais comuns, os patógenos tornam-se menos virulentos com o
passar do tempo, à medida que se ajustam à dinâmica populacional de suas
presas. Na plantation, no entanto, a oferta de corpos é constantemente
atualizada. Não há motivo para os patógenos reduzirem sua virulência.
Bem-vindo ao Antropoceno, no qual organismos alienados e desengajados,
incluindo seres humanos, multiplicam-se e espalham-se sem considerar os
arranjos de vida multiespécies. Tal proliferação não faz ajustes para habitantes
anteriores e não mostra sinais de limites. (TSING, 2019, p. 236)
As alienações são próprias do Antropoceno em todas as suas
dimensões. Tsing entende o cenário de proliferação como um “aviso a
todos nós”. Embora os fungos tenham recebido a fama de “inimigos da
civilização”, o que permite a destruição fúngica é justamente o banquete
de clones oferecido pelas plantations e a eliminação das condições de
controle de habitats diversificados. Nesse viés de análise, os fungos
“caçadores” são indicadores da condição humana: “a presença dos fungos
geralmente nos fala sobre as mudanças nas práticas de ser humano”
(TSING, 2015, 185). Enquanto os fungos micorrízicos são fundamentais
para a vida de muitos seres, os fungos patogênicos são responsáveis por
muitas extinções quando são fortalecidos pelas infraestruturas do
Antropoceno.
Observando a vida para além do Antropoceno, Tsing (2019, p. 23)
chama a atenção para a “perturbação lenta”, isto é,
340
ecossistemas antropogênicos
26
nos quais outras espécies podem viver [...] que
nutrem colaborações interespecíficas. Não são intocadas pela presença dos
humanos, o supremo invasor “daninho”. No entanto, sua biodiversidade é
comparativamente elevada. [...] lentidão é um sonho a encorajar, mais do que
um traço a objetificar. (TSING, 2019, p. 23)
A lentidão, em contraposição ao mundo aceleracionista moderno,
aponta para outras formas de se relacionar nas quais a perturbação humana
não é daninha para a biodiversidade. A maneira que ela sugere para
trabalhar no sentido de uma perturbação lenta é “narrar as histórias em
que a diversidade emerge” admitindo suas formas “animadas e, portanto,
contaminadas” (TSING, 2019, p. 24).
O Antropoceno é caracterizado por paisagens daninhas em que os
seres são submetidos a ruínas. Desse modo, “Fungos são espécies indicadoras
da condição humana” (TSING, 2015, 185). Assim, fungos nos levam a
repensar as sociedades humanas:
tal como as cidades humanas, essa cidade subterrânea é um local de transações
cosmopolitas. Infelizmente, os humanos ignoraram esse cosmopolitismo vivo.
Nós construímos nossas cidades através da destruição e simplificação,
derrubando florestas para substituí-as por plantações para cultivo de alimentos
ou para viver em asfalto e concreto.
Nas plantations do agronegócio, nós coagimos as plantas a crescerem sem ajuda
de outros seres, incluindo os fungos da terra. Substituímos os nutrientes
fornecidos pelos fungos por fertilizantes obtidos pela mineração e em indústrias
químicas, com suas trilhas de poluição e exploração. Cultivamos nossas
plantações para isolamento em estufas químicas, enfraquecendo-as como
26
Paisagens antropogênicas são “paisagens multiespécies nas quais os humanos desempenham um papel”
(TSING, 2019, p. 206) que não é de destruição simplesmente, mas de alguma forma oferecendo as
condições de existência de outros seres mesmo que não intencionalmente.
341
galinhas enjauladas e sem bico. Nós mutilamos e simplificamos as plantas
cultivadas até que elas não mais saibam como participar em mundos de
múltiplas espécies. Uma das muitas extinções que nossos projetos de
desenvolvimento buscam produzir é o cosmopolitismo da cidade subterrânea.
E quase ninguém percebe, porque tão poucos humanos sabem da existência
dessa cidade. (TSING, 2019, p. 44)
Fungos estabelecem “amizades cosmopolitas com árvores”
(TSING, 2019, p.77) e é justamente essa dimensão que é destruída a partir
das plantations e da própria lógica das cidades humanas. As cidades do solo
se mantêm a partir de alianças simbióticas cosmopolitas. Nesse sentido, a
observação das relações entre plantas e fungos apontam um caminho para
pensar as relações humanas com os demais seres e entre si.
Contudo, o que é visto como “daninho” para a monocultura
“pragas” significa justamente o maior potencial dos fungos.
Os fungos são inimigos da monocultura e dos monocultores. Desde que os
Estados antigos incentivaram a agricultura intensiva, houve muitas e variadas
pressões para padronizar os cultivares. Desde o século XIX, a agricultura
científica suplantou os esforços de padronização das primeiras domesticações.
Ela transformou a padronização em si no “padrão moderno”. Atualmente,
apenas a padronização permite aos agricultores comercializar sua produção.
Entretanto, a padronização torna as plantas vulneráveis a todo tipo de doença,
incluindo aquelas causadas por fungos, conhecidas como ferrugens e carvões.
Sem chances de desenvolver variedades resistentes, uma lavoura atacada pode
morrer toda de uma só vez. (TSING, 2015, p. 187-188)
A padronização como o próprio ideal moderno faz dos fungos
inimigos da monocultura porque as condições que esse tipo de cultivo
fomenta são perfeitas para sua proliferação. Tsing traz, como exemplo mais
342
famoso dessa situação, a peste da batata irlandesa. Através de incursões
militares, a colonização britânica confiscou e queimou lavouras de grãos,
destinando aos irlandeses as terras menos férteis, restando como
sobreviventes apenas as batatas, que, por sua vez, permitiram a
sobrevivência dos humanos desses territórios. Os irlandeses se tornaram
dependentes das batatas, o que delineou também as relações sociais: “As
famílias dos arrendatários, providos de batatas, casaram-se mais cedo e
tiveram mais filhos” (TSING, 2015, p. 188). Foram as batatas que
possibilitaram, mesmo com a economia sob controle colonial, que a
população crescesse em três milhões em 50 anos. Com isto, as batatas se
tornaram no século XVII a base da dieta irlandesa, gerando uma catástrofe
fúngica quando as áreas cultiváveis se ampliaram. Como os europeus
importaram apenas algumas das milhares de variedades que existem na
América do Sul, a monocultura cobrou seu preço.
A proliferação das chamadas “pragas” é consequência do próprio
modelo de produção. Não podemos esquecer que as “pragas” alimentam
um mercado muito lucrativo de sementes e venenos “milagrosos” para o
assassinato desses seres. E, nesse sentido, a padronização é sua fraqueza e
sua fortaleza. Só é possível comercializar a produção agrícola quem
corresponde aos padrões, a padronização se tornou a regra da agricultura.
A plantation é o principal alicerce do pensamento dominante e é sustentada
desde sempre por hierarquias entre os seres humanos e não humanos. As
plantations eliminaram o “amor” entre humanos e plantas e transformaram
o cultivo em forma de violência e dominação, especialmente quando
pensamos sua ligação com relações escravagistas.
Como pensar então relações antropogênicas com os fungos sem
promover cenários de proliferação? Os cogumelos matsutake oferecem
uma contribuição:
343
à floresta aberta de carvalhos cortados dá lugar a pinheiros, que sem a
perturbação humana não entrariam nessas florestas. O pinheiro, por sua vez,
cresce com cogumelos matsutake, que complementam os nutrientes das
árvores, pois também se alimentam das raízes. Os seres humanos apreciam os
corpos reprodutivos fúngicos como alimento gourmet. Essas coordenações
produzem uma floresta. Além disso, mostramos como eles são parte de
histórias contingentes, humanas e não humanas. Essas coordenações são
moldadas pela industrialização, guerra e urbanização, por um lado, e novas
espécies, mudanças climáticas e doenças, por outro. Os humanos são parte da
história, mas os humanos não fazem a história. Trabalhar com as coordenações
como um guia permite que vários protagonistas surjam no coração do
“material”. (TSING, 2019, p. 148-149)
Os matsutake são criaturas de florestas perturbadas porque “não
crescem onde os solos são ricos e cheios de nutrientes, mas onde geleiras,
vulcões, areia movediça ou atividades humanas privaram a terra de
húmus nutritivo. A maioria dos matsutake coletados comercialmente
cresce em florestas industriais ou florestas camponesas” (TSING, 2019, p.
199). Embora já sejam realizados estudos nesse sentido não houve sucesso
em cultivar matsutakes porque seu crescimento envolve “colaborações
entre muitas espécies, incluindo humanos” (TSING, 2019, p. 199): “O
matsutake resiste às condições da plantation. Eles exigem a diversidade da
dinâmica multiespécie da floresta” (TSING, 2019, p. 189). Por isso, Tsing
(2019, p. 199) defende uma teoria da “não escalabilidade para entender
como funcionam essas paisagens multiespécies. Em vez de ciência
escalável, o lugar para começar é a descrição crítica dos encontros
relacionais entre as diferenças”.
Nesse sentido, alguns tipos de cogumelos recebem colaborações
humanas além de outras espécies. O melhor exemplo disso que
encontramos foi a relação entre várias espécies de cogumelos e os
344
Yanomamis como pudemos aprender com a “Enciclopédia dos alimentos
Yanomami: cogumelos” (YANOMAMI
27
, 2016). A grande maioria dos
cogumelos comestíveis que fazem parte da alimentação Yanomami são
colhidos nas roças e capoeiras, um número menor de variedades emerge
nas florestas, sendo encontrados pelos caçadores da comunidade. O
surgimento de cogumelos nas florestas tem relação com as chuvas,
diminuindo em épocas mais secas, apenas nas roças e capoeiras podem ser
coletados o ano todo: “As técnicas de cultivo de mandioca usadas pelos
Sanöma
28
estão intimamente relacionadas à diversidade e à quantidade de
cogumelos coletados cotidianamente” (YANOMAMI, 2016, p. 17). Os
ciclos da agricultura Yanomami geram as condições para diferentes
cogumelos surgirem em cada etapa. Isto se deve à derrubada de árvores
necessária para o início das roças, são nesses troncos e madeiras mais
grossos que sobram que os cogumelos gostam de viver: “A principal fonte
de energia para os cogumelos são a celulose e a hemicelulose das madeiras.
O consumo desses polissacarídeos pelos cogumelos leva à degradação e ao
apodrecimento total das árvores derrubadas” (YANOMAMI, 2016, p. 19).
As roças são usadas pela comunidade por no máximo quatro anos,
dando origem às capoeiras quando abandonados para permitir o
ressurgimento da floresta e iniciando roças em outros locais, a fim de não
esgotar as capacidades da floresta. A madeira em composição que é deixada
é a principal fonte dos cogumelos comestíveis nesse contexto, por isso as
capoeiras são os locais mais importantes para seu surgimento. No entanto,
27
Como a publicação conta com vários autores, organizadores e tradutores que não têm seus nomes
divulgamos no trabalho, optamos por referenciar a autoria como “Yanomami”.
28
Os Sanöma fazem parte do povo Yanomami.
345
Enquanto há troncos em decomposição nessa área, mesmo quando a capoeira
vira floresta, os cogumelos continuam crescendo. Somente quando a floresta
se regenera completamente e a quantidade de troncos em decomposição
diminui, essa área passa a produzir muito menos cogumelos que nas roças e
capoeiras, ou seja, produz o mesmo que uma área de floresta não manejada.
(YANOMAMI, 2016, p. 19)
Assim, a diversidade se deve ao fato de que “Nas roças de capoeiras
coexistem troncos grossos, remanescentes da primeira derrubada e
colonizados por espécies de cogumelos de ciclos mais longos, e troncos de
árvores pioneiras, recém colonizados por espécies de cogumelos de ciclos
curtos” (YANOMAMI, 2016, p. 19). Desse modo, uma variedade enorme
de cogumelos depende da colaboração de Yanomamis para emergir.
Contudo, é com esse tipo de ação humana interespécie que podemos
aprender, inclusive sobre suas técnicas de agricultura que não destroem as
condições de reprodução da vida.
Um dos grandes ensinamentos promovidos pelos fungos é sua
capacidade assim como as ervas de se desenvolver nas costuras do
império, de maneira que os cogumelos mais valiosos crescem nas “margens
das zonas de cultivo” (TSING, 2015, p. 194). Eles inclusive preferem
campos abandonados, os limites entre os campos e florestas. Assim, “Esses
cogumelos ainda nos lembram dos prazeres da variedade que existe para
além do doméstico” (TSING, 2015, p. 194). Isso leva Tsing a comparar
cogumelos e ervas com piratas:
as ervas daninhas tomam as plantações toda vez que o veneno permite. Pode-
se ver as ervas daninhas se aproveitando do trabalho duro de fazer a plantação,
desde erradicar a flora original até fornecer água e fertilizantes. Ervas daninhas
aqui são “piratas” [...] colhendo as recompensas do trabalho nas plantações. O
matsutake é um tipo de erva daninha em florestas industriais. (2019, p. 194)
346
Os piratas ervas e fungos se aproveitam das frestas. Em um mundo
em ruínas, Tsing chama a atenção para as ocupações: “Ocupar é dedicar-se
ao trabalho de viver juntos, mesmo onde as probabilidades estejam contra
nós. É recusar e também se recuperar. Se quisermos viver, devemos
aprender a ocupar até os espaços mais degradados da vida na Terra
(TSING, 2019, p. 87).
Uma das principais características dos fungos é justamente sua
indeterminação e criatividade que pode ser entendida como uma
habilidade de resiliência. Fungos são indivíduos com “trajetórias interativas
contínuas em crescimento indeterminado. Sem nenhuma administração
central, eles são capazes de reconfigurar a si mesmos durante suas vidas de
forma a permitir que se adaptem a condições mutáveis” (TSING, 2019, p.
75).
Como você imagina a história da sua vida? Eu aposto que você pensa que tem
uma personalidade distintiva, como uma alma interior que expresse sua
biografia e todas as suas realizações. “É apenas quem eu sou”, você diz.
Considere o que você pode aprender com fungos, que fazem um curso de vida
não a partir de alguma essência pré-formada, mas a partir de todas as coisas
que nos tornamos. Você quer falar sobre liberdade? Considere os fungos.
(TSING, 2019, p. 75)
O sistema miceliano de replicação nos oferece uma forma muito
mais libertadora comparada ao nosso corpo em deterioração durante boa
parte da vida. Assim, são exemplos de resiliência e podem nos ensinar a
resistir em ruínas.
Contudo, o que os fungos nos inspiram a pensar sobre a
sobrevivência multiespécie no mundo em ruínas do Antropoceno? Não há
347
futuro para a humanidade sem companheirismo multiespécies. O devir
micélio tanto no seu modus micorriza quanto na proliferação aponta para
uma coordenação não hierárquica e que se aproveita das próprias ruínas
para destruir as condições massacrantes do mundo monocultural. Para
adiar o fim dos mundos humanos, é preciso olhar para as costuras e
conexões interespécies e atuar no sentido da parceria. Concordamos com
os pesquisadores citados no início dessa seção, quando olhamos para o
mundo quase invisível das sociedades do solo, a competição darwinista não
é o modus operandi e sim a cooperação decorrente da co-dependência
multiespécies.
No entanto, é importante entender que a parceria não é só
cooperação, a vida é também conflito. O micélio nos ensina formas de
organização contra-hegemônicas através da utilização das redes para a
distribuição de toxinas para plantas invasoras. Como destaca Peter Farb
(1964, p. 1), “A cooperação, tanto quanto o conflito, governa a vida no
solo”, nem no solo existem apenas plantas “amigas”. Os fungos nos
ensinam que, às vezes, é necessário proliferar e destruir as condições
monoculturais, o que nós enquanto humanos podemos fazer através da
organização social em redes não hierárquicas. As redes micelianas levam a
uma outra concepção de pessoa, que não pode ser pensada fora das
relações, o “estilo de vida dos fungos alerta-nos para a arbitrariedade de
nossas ideias de individualidade” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 199).
São as redes emaranhadas que permitem tanto a resistência quanto a
proliferação miceliana.
Nossa decomposição enquanto sujeito implica em nos vermos
como um pequeno fio de uma rede emaranhada de com-viventes, também
leva a uma outra compreensão da própria finitude, uma vez que algum dia
seremos decompostos em micélios. Quando olhamos para o planeta além
348
do anthropos, percebemos sujeitos micelianos em todas as suas dimensões,
que apontam a necessidade do viver com multiespécies para adiar o fim dos
mundos, tanto no que diz respeito à mutualidade quanto no que tange à
proliferação para eliminar as condições monoculturais impostas.
Tsing sugere que “devemos procurar nas ruínas da civilização o
conhecimento colaborativo” (TSING, 2019, p. 172), pois é nas ruínas da
perturbação humana que emergem ervas e pragas que expressam a grande
variedade da vida que não costumamos perceber e que prosperam mesmo
nas piores condições. Nas frestas “invisíveis”, estão os saberes e os seres
humanos e não humanos que podem colaborar com o ressurgimento
multiespécies e, consequentemente, com o futuro humano. Nesse sentido,
é preciso que a filosofia se deixe contaminar pela diversidade colaborativa
dos regimes de perturbação lenta em todas as esferas sociais. A antropóloga
entende as urgências do Antropoceno como uma forma de nos obrigar a
prestar atenção a essas formas de vida.
Muitos de nós somos pragas do Antropoceno. Pragas são criaturas de
perturbação; fazemos uso de oportunidades, impomo-nos sobre outros
e formamos colaborações com aqueles que nos permitem proliferar. A
tarefa-chave é descobrir que tipo de infestação viabiliza paisagens de
habitabilidade mais que humana. Isto requer história em muitas
escalas. (TSING, 2019, p. 265)
A humanidade só pode prolongar seus meios de subsistência
colaborando para a ressurgência multiespécies, isto é, com o trabalho de
muitos organismos que, negociando através de diferenças, forjam
assembleias de habitabilidade multiespécies em meio às perturbações”
(TSING, 226). Nesse sentido, “Se queremos saber algo sobre mudança
349
ambiental, precisamos saber sobre os mundos sociais que outras espécies
ajudam a construir” (TSING, 2019, p. 128). Diversas vezes, as análises
reproduzem uma compreensão na qual sociedades mais que humanas são
entendidas como extensões humanas. Tal conhecimento é fruto de
interação com esses outros mundos, observando as suas sociabilidades,
indo além de reflexões abstratas sobre suas cosmologias, o que implica em
rever o individualismo tanto no que diz respeito à produção de
conhecimento quanto no que tange à nossa atuação no mundo.
O que os fungos fazem para se alimentarem e se defenderem é o
que chamamos de resolução de problemas ou de “inteligência”, como
alguns cientistas apontam. A forma como eles resolvem problemas tem
muito a ensinar para as filosofias. A lógica da tradição ocidental é entender
a filosofia como um exercício mental-cognitivo, mas as urgências atuais
exigem movimentar mais do que o pensamento, e, nesse sentido, podemos
aprender muito com os fungos. A resolução de problemas dos fungos é
ação coletiva e colaborativa, dá-se a nível local, espalham-se até onde sua
atuação for necessária, sua atuação não é hierárquica, é descentralizada.
A partir desta cosmoperspectiva, repensamos o que é de fato
daninho para este mundo. Entendemos que daninho é extrair as filosofias
de um contexto no qual existem relações intrínsecas sociais,
interespecíficas, cosmopolíticas, e aplicá-las em um contexto diverso em
todos os sentidos. Assim como os fungos que são entendidos como pragas
que são retirados de seus companheiros interespecíficos e são colocados em
outro contexto para o qual as relações cosmopolíticas não são as mesmas
que os impediam de proliferar. Nesse sentido, entendemos a colonialidade
e a imperialidade na filosofia se transformaram em pragas no contexto
brasileiro, proliferaram sem condição de controle sobre suas implicações e
alienadas de suas alianças cosmopolíticas intrínsecas, pois analisamos
350
filosofias desconsiderando seus determinantes sociais. Uma filosofia que
pensa problemas parte do local e das redes micelianas que a envolvem.
A cosmopolítica fúngica fornece elementos para repensar a relação
com o ensino e aprendizagem de filosofia. Assim como os fungos de
micorriza atuam em colaboração com as plantas e outros seres, docentes
podem atuar de modo colaborativo com os saberes e seres ervas e pragas
que emergem nas frestas da monocultura e permitem vislumbrar outros
mundos menos daninhos. Os micélios, através de sua ação micorriza,
ensinam em como articular em redes a parceria com os saberes entendidos
como ervas. Essa parceria amplia as formas de resistência e resiliência diante
da realidade e fomenta a possibilidade de transformação dos sistemas
monoculturais. Do mesmo modo como os fungos micorrízicos,
acreditamos que o ensino de filosofia pode funcionar como percursor da
vida abrindo caminhos ao dessoterrar outras formas de viver. Assim,
podemos entender o ensino como compartilhamento em redes, como troca
entre percepções, como espaço de conexões e alianças entre os modos de
ser.
Podemos dizer que as plantations da educação eliminam a relação
de amor com a sabedoria, que está no cerne da própria compreensão do
que é filosofia. Do mesmo modo que os fungos isolados de suas relações
cosmopolíticas desaprendem a conviver, humanos estimulados a entender
o mundo a partir de uma monocultura, desaprendem a conviver com a
pluralidade.
Em nossa próxima seção, decomporemos o individualismo
repensando nossa ação nos mundos que nos compõem.
351
4.4 Devir simpoiético para uma cosmopercepção sobre o conhecimento
de si e do mundo
Como destaca a bióloga Donna Haraway, o companheirismo
interespecífico é a regra e não a exceção.
Através de seu alcance recíproco, através de suas “preensões”
29
ou alcances, os
seres constituem um ao outro e a eles mesmos. Os seres não pré-existem às suas
relações. As “preensões” têm consequências. O mundo é um nó em
movimento. O determinismo biológico e cultural são ambas instâncias da
concretude deslocada ou seja, o erro de, em primeiro lugar, tomando
abstrações categóricas provisórias e locais como “natureza” e “cultura” pelo
mundo e, em segundo lugar, confundindo potentes consequências como sendo
fundações pré-existentes. (HARAWAY, 2003, p. 05)
A concepção essencialista do ser moderno não se sustenta porque
“Naturezas, culturas, sujeitos e objetos não preexistem em suas
configurações entrelaçadas do mundo” (HARAWAY, 2019b, p. 21). O
companheirismo interespecífico diz respeito a seres-em-encontro, é um
devir-com multiespécies. Nesse viés, a história é feita de co-habitação e a ““a
relação” é a menor unidade possível de análise” (HARAWAY, 2003, p.
08).
Haraway acrescenta que é um erro entender a diversidade humana
como cultural e a diversidade animal como biológica porque ambas são co-
evolutivas. Os genomas humanos contêm registro molecular considerável
de patógenos das espécies com as quais estabelecemos companheirismo:
“Os sistemas imunes não são uma pequena parte das naturezaculturas; eles
29
Talvez a melhor tradução aqui seja “fricção”.
352
determinam aonde os organismos, incluindo as pessoas, podem viver e
com quem. A história da gripe é inimaginável sem o conceito de co-
evolução de seres humanos, porcos, galinhas e viroses” (HARAWAY,
2003, p. 13). É preciso perceber tanto pessoas quanto quaisquer outros
seres além do reducionismo biológico ou da singularidade cultural. Sobre
isso, Haraway (2003, p. 13) acrescenta:
como os organismos integram a informação ambiental e a genética em todos
os níveis, do muito pequeno até o muito grande, determina o que eles se
tornam. Não existe nenhum tempo ou lugar no qual a genética termina e o
ambiente começa e o determinismo genético é, na melhor das hipóteses, uma
palavra local para estreitas plasticidades do desenvolvimento ecológico.
(HARAWAY, 2003, p. 13)
Aqui é relevante trazer o exemplo do microorganismo Mixotricha
paradoxa que permeia diversas discussões feitas por Haraway. Como a
autora resumiu em uma entrevista:
utilizo a Mixotricha paradoxa como uma entidade que interroga a
individualidade e a coletividade ao mesmo tempo. Trata-se de um organismo
unicelular microscópico que vive no intestino posterior do cupim da Austrália
setentrional. Aquilo que conta como “ele” é complicado, pois ele vive em
simbiose obrigatória com outros cinco tipos de entidades. Cada uma tem um
nome taxonômico e cada uma se relaciona estreitamente com bactérias, pois
não possuem um núcleo celular. Elas possuem ácido nucléico, possuem DNA,
mas este não é organizado em um núcleo. Cada um destes cinco tipos de coisas
diferentes vive em ou sobre uma região diferente da célula. Por exemplo, um
vive nas interdigitações da superfície exterior da membrana celular. De modo
que você tem estas pequenas coisas que vivem nestas dobras da membrana
celular e outras que vivem dentro da célula. Mas elas não são, no sentido pleno,
parte da célula. Por outro lado, elas vivem em simbiose obrigatória. Ninguém
353
pode viver independentemente aqui. Isso é co-dependência pra valer! E, então,
a questão é ela é uma entidade ou seis? Mas seis tampouco está correto, pois
há aproximadamente um milhão das cinco entidades anucleadas para cada
célula mononuclear. Há múltiplas cópias. Então, quando é que um decide se
tornar dois? Quando é que este conjunto completo se divide de modo que
agora você tem dois conjuntos? E o que conta como Mixotricha? É somente a
célula nucleada ou é conjunto todo? Obviamente, esta é uma fabulosa metáfora
que é uma coisa real para interrogar nossas noções de um e de muitos.
(HARAWAY & GOODEVE, 2015, p. 52)
Em microscópio, é possível perceber que a Mixotricha paradoxa é
composta por seis tipos diferentes de criaturas, milhares de outros seres
compõem suas células e superfície de forma que não podem de modo
algum serem separados, vivendo em simbiose necessária e obrigatória.
Assim como o cupim depende da Mixotricha paradoxa para sobreviver,
pois sem ela não é capaz de digerir a celulose que é o componente principal
da sua alimentação, ela sequer pode existir sem esse aglomerado.
Mixotricha significa “fios misturados” e é em si um ser paradoxal que não
se encaixa na ontologia hegemônica do ser.
Isto leva a uma série de outros questionamentos fundamentais:
como alguém a encontra em primeiro lugar e qual era a sua aparência que
forma assumia quando foi descoberta? Em qual momento de sua existência
ela foi descoberta? E como os pesquisadores encontraram toda a sua
complexidade e ainda a viram como um todo em vez de uma série de entidades
diferentes?” (HARAWAY & GOODEVE, 2015, p. 5-6). Tais
questionamentos levam à intuição deque há todo tipo de coisas como a M.
paradoxa” (HARAWAY & GOODEVE, 2015, p. 6). A diversidade de
seres que co-existem no planeta são emaranhados multiespécies de tal
modo que é difícil delimitar onde começa um e termina o outro, nós
354
impossíveis de serem desatados. Concordamos com Haraway (2003, p. 20)
que
todo relacionamento ético, dentro ou entre espécies, é tricotado a partir do
forte fio de seda do alerta permanente da outridade-na-relação. Nós não somos
um, somos vários que co-existimos e co-habitamos, e o ser depende em
permanecermos juntos não mais como indivíduos, mas como multiplicidade.
A obrigação é perguntar quem está presente e quem está emergindo.
(HARAWAY, 2003, p. 20)
Tal cosmoperspectiva leva à compreensão de que somos um
emaranhado de seres. O termo “autopoiesis” foi elaborado pelos chilenos
Francisco Varela e Humberto Maturana para explicar a capacidade dos
seres se autoproduzirem. Em simbiose com as pesquisas de Beth Dempster,
Donna Haraway propõe o conceito “simpoiesis” (do grego sym que
significa juntos e poiesis que é criação/produção) para se referir ao gerar-com
que é próprio dos seres complexos:
simpoiesis é uma palavra simples, significa “gerar-com”. Nada se faz sozinho,
nada é realmente autopoiético ou autoorganizado. Como diz o “game
mundial” de computador iñupiat, os terráqueos não estão nunca sozinhos. Essa
é uma implicação radical da simpoiésis. Simpoiésis é uma palavra apropriada
para os sistemas históricos complexos, dinâmicos, receptivos, situados. É uma
palavra para configurar mundos de maneira conjunta, em companhia. A
simpoiésis abarca a autopoiésis, desdobrando-a e estendendo-a de uma maneira
generativa. (HARAWAY, 2019b, p. 49, tradução nossa)
Simpoiesis é um sistema de produção coletivo no qual o controle e
as informações são compartilhados com todos os seres que o compõem, é
355
um fazer-se-com contínuo. O que Haraway quer chamar a atenção com isto
é que não existem seres fechados em si e nem controlados a partir de uma
unidade autônoma central como a expressão autopoiésis evoca. Muitos
sistemas entendidos como autopoiéticos são na realidade simpoiéticos.
Também é relevante, neste viés, a discussão que Haraway faz sobre
holobiontes:
outra palavra para essas entidades simpoieticas é holobiontes ou,
etimologicamente “seres integrais” ou “seres sãos e salvos”. Sem dúvida, não é
o mesmo que Uno e Individual. Ao contrário, em nós poliespaciais e
politemporais, os holobiontes se mantêm unidos de maneira contingente e
dinâmica, envolvendo-se com outros holobiontes em padrões complexos. As
criaturas não precedem as suas relacionalidades, se geram mutuamente através
de uma involução semiótica-material, a partir de seres de emaranhados
anteriores. [...] Proponho holoentes como termo geral para substituir
“unidades” ou “seres”. Da mesma maneira que Margulis, utilizou holobionte
para nomear arranjos simbióticos, em qualquer escala espacial ou temporal,
mas similares a nós de diversas relacionalidades intra-ativas em sistemas
dinâmicos complexos do que a entidades de uma biologia formada por
unidades preexistentes delimitadas (genes, células, organismos, etc.) em
interações que somente podem ser concebidas como competitivas ou
cooperativas. Como ela, meu uso de holobionte não designa uma soma entre
hóspede e simbiontes, já que todos os jogadores são simbiontes entre si, em
diversos tipos de relacionalidades e com diferentes graus de abertura a
acoplamentos e arranjos com outros holobiontes. (HARAWAY, 2019b, p. 50,
tradução nossa)
A Mixotricha paradoxa é a criatura favorita de todas para explicar a
“individualidade” complexa, a simbiogênese e a simbiose. Formada por
pelo menos seis diferentes tipos taxonômicos de células com seus genomas
é “uma criatura emblemática de holobiontes”. Nesse sentido, é necessário
abandonar o “individualismo limitado, em seus vários sabores na ciência,
356
na política e na filosofia” (HARAWAY, 2019b, p. 15, tradução nossa).
Trata-se de retirar da invisibilidade os seres companheiros que temos e a
partir dessas alianças buscar soluções coletivas. Fazemos parte de um
holobioma emaranhado de holoentes diversos que com-vivem. Nada é
realmente Uno e indivisível nesse holobioma. Como aponta o pesquisador
Vitor Chiodi, no português a palavra “nós” tão evocada por Donna
Haraway ganha um sentido ainda mais complexo:
o português nos dá um jogo linguístico entre os nós que marcam o encontro
de dois ou mais fios e o pronome pessoal da primeira pessoa do plural algo
impossível na língua materna da autora. O encontro de linhas é o encontro de
espécies e esses encontros são criativos e construções coletivas. Fios de redes e
de jogos de barbantes (string-figures) só se encontram em nós. Não há “eu”
possível nos nós. Os nós são fazer-com (making-with) e são eles que interessam
àqueles que decidiram ficar com o problema (staying with the trouble). Fazer
nós é fazer-nos. Fazer nós é fazer parentes (kin). (CHIODI, 2017, n.p.)
O que somos é um fazer-com contínuo, nós emaranhados, com-
posto. Porém, ainda que tudo esteja conectado a algo, “Nada está
conectado a tudo” (HARAWAY, 2019b, p. 32, tradução nossa), ignorar
isto é não perceber a singularidade dos diversos contextos. Para que a
conexão não recaia em mais um mundo abstrato, Haraway propõe
tentacularizar a vida: “tentáculo” “vem do latim tentaculum, que significa
“antena”, e de tentare, “sentir”, “intentar”” (HARAWAY, 2019b, p. 32,
tradução nossa). Como explica Haraway (2019b, p. 33, tradução nossa):
os tentáculos não são figuras incorpóreas: são cnidários, aranhas, seres com
dedos como os humanos e os guaxinins, lulas, águas-vivas, espetacularidades
neuronais, entidades fibrosas, seres flagelados, tranças de miofibrilas, enredos
357
microbianos e fúngicos emaranhados e cobertos de feltros, trepadeiras
exploratórias, raízes inflamadas, seres com gavinhas que se estiram e trepam.
Os tentáculos são também redes e interconexões, bichos de TI, dentro e fora
da nuvem. A tentacularidade trata sobre a vida vivida através de linhas e que
riqueza de linhas e não em pontos nem em esferas. Os habitantes do mundo,
criaturas de todos os tipos, humanos e não humanos, são caminhantes”; as
gerações são como “uma série de caminhos entrelaçados”. (HARAWAY,
2019b, p. 33, tradução nossa)
Tentacularizar é se conectar, sentir, agir, pensar em redes orgânicas.
O pensamento tentacular se dá em sua organicidade, é finito,
contextualizado, pois nenhum tentáculo é capaz de se estender ou viver
infinitamente. As agências tentaculares envolvem muitas camadas, “trata-
se dos fungos fixando nitrogênio ao solo, dos fitoplânctons produzindo
oxigênio, das bactérias que abundam em todo ser multicelular,
desempenhando as mais diversas funções” (SILVA, 2019, n.p.).
Necessitamos de “uma história de vida menos binária, mais tentacular”
(HARAWAY, 2019b, p. 39, tradução nossa).
O que Haraway chama de Chthuluceno evoca as tarefas tentaculares
dos tempos urgentes que vivemos. O Chthuluceno não é uma era geológica
e nem pretende substituir o Antropoceno, “é uma palavra simples. É um
composto de duas raízes gregas (khthôn e kainos) que juntas nomeiam um
tipo de espaço-tempo para aprender a seguir com o problema de viver e
morrer com response-abilities em uma terra em ruínas” (HARAWAY,
2019b, p. 14, tradução nossa). Podemos dizer que o “Chthuluceno
consiste nos emaranhados de histórias que conectam seres, espaços e
tempos nos processos que fazem da Terra o que ela é” (COSTA, 2019, p.
93). Em grego chthonios significa “da terra ou do submundo”, o que está
abaixo da terra, nesse sentido, chthu diz respeito aos múltiplos potenciais
358
subterrâneos da Terra. Além da origem grega, a expressão chthu se
relaciona à espécie de aranha Pimoa Cthulhu, uma das representantes do
pensamento tentacular. Podemos estender o pensamento tentacular
também às gavinhas das trepadeiras e a muitos outros seres que atuam
micelianamente. Os chthonicos, filhos do Chthuluceno, não estão apenas
esperando o fim, mas buscando soluções coletivas, enraizando-se,
tentacularizando-se, micorrizando.
Esse fazer-com coletivo implica transformar as relações
profundamente. Para colaborar com a continuidade dos mundos, Haraway
sugere que rastreemos parentescos que possam potencializar nossa ação em
favor do ressurgimento multiespécies.
Renovar os poderes biodiversos da terra é o trabalho e o jogo simpoiético do
Chthuluceno. Concretamente, diferente do Antropoceno ou do Capitaloceno,
o Chthuluceno é feito a partir de histórias e práticas multiespécies em curso de
devir-com, em tempos que permanecem em risco, tempos precários em que o
mundo não está acabado e o céu não está caído, ainda... Estamos em risco
mútuo. Ao contrário dos dramas dominantes no discurso do Antropoceno e
do Capitaloceno, os seres humanos não são os únicos atores importantes no
Chthuluceno, com todos os outros seres capazes de reagir apenas. A ordem foi
reformulada: os seres humanos são de e estão com a terra, e os poderes bióticos
e abióticos desta terra são a história principal. [...] A diversidade dos corais e
das pessoas e povos está em risco, e de maneira recíproca. O florescimento será
cultivado como uma response-ability multiespécies, sem a arrogância dos seres
celestiais. (HARAWAY, 2019b, p. 46-47, tradução nossa)
Em tempos difíceis do Antropoceno o desespero é comum, mas
devemos ocupar nossos pensamentos para que possamos potencializar o
ressurgimento que ainda é possível, criando conexões, cultivar novas
relações aumentando a habilidade coletiva de lidar com os problemas
359
atuais e construindo formas de viver e morrer bem em tempos difíceis.
Precisamos pensar que humanidade cabe nesse mundo e como podemos
colaborar com a existência em todas as suas dimensões. Para evocar a
necessidade de se romper com as abstrações humanistas, Haraway propõe
que a humanidade olhe para outra faceta do que a compõe:
somos compostos, não pós-humanos; habitamos as humusidades, não as
humanidades. Filosófica e materialmente, sou uma compostista, não uma pós-
humanista. As criaturas humanas e não humanas devêm-com mutuamente,
se compõem e decompõem umas às outras, em cada escala e registro do tempo
e das coisas, em emaranhados simpoiéticos, em configurações e
desconfigurações de mundos terrenos ecológicos, evolutivos e do
desenvolvimento.
[...] As criaturas, incluídos os humanos, estão em presença uns dos outros; ou,
melhor, eles se alojam reciprocamente em seus mútuos tubos, dobras e
rachaduras; em seus interiores e exteriores, e não precisamente em um nem
outro. As decisões e transformações que são tão urgentes em nossos tempos
para reaprender ou para aprender pela primeira vez como devir menos
mortíferos, mais response-able, mais em sintonia, mais capazes de surpreender-
nos e de praticar as artes de viver e morrer bem em uma simbiosis
multiespécies, em simpoiesis e sinanimagênesis em um planeta em ruínas,
devem realizar-se sem garantias ou expectativas de harmonia com quem não
são um mesmo, e tampouco são “o outro” com certeza. Nem Uno nem Outro,
isso é o que somos e o que sempre temos sido. É tarefa de todos devirem
ontologicamente mais criativos e sensíveis. (HARAWAY, 2019b, p. 74-75,
tradução nossa)
Cultivar devires menos mortíferos passa por repensar a
humanidade em todas as suas esferas. Os modernos desenham um humano
excepcional, porém, pouco refletem sobre uma de suas importantes
funções para o planeta: gerar composto, se decompor. A humanidade
como húmus é a radicalidade da relação multiespécies. A arrogância do
360
Homo “essa auto-imagem fálica do mesmo” (HARAWAY, 2019b, p. 20,
tradução nossa) é o que gera o Antropoceno. Fazer composto significa
emaranhar-se, cultivar responsabilidades, estar presentes no que fazemos,
viver em consequência e com as consequências. O devir húmus diz respeito
a “entender de que maneira um mundo comum, os coletivos, se contrõem-
com de maneira recíproca, e não somente por humanos” (HARAWAY,
2019b, p. 38, tradução nossa).
A existência de um novo paradigma no qual a humanidade não se
constitui sem companheirismo interespecífico, exige “pensar fora do
conto fálico dos Humanos na História” (HARAWAY, 2019b, p. 37,
tradução nossa). Como é possível pensar para além do antropocentrismo e
dos saberes fálicos ocidentalocêntricos? Podemos pensar coletivamente
com outros humanos e não humanos? Haraway repete diversas vezes que
“devemos pensar” como um antídoto à “maldade da negligência”. Mas este
pensar não é um exercício teórico abstrato.
Diante dos tempos desafiadores que vivemos, o pensamento
filosófico por sua ligação com os problemas se mostra muito relevante. No
entanto, o foco nos problemas não necessariamente leva a uma ação,
elemento importante para que as filosofias não se restrinjam a abordagens
abstratas e distantes da realidade dos diferentes contextos. Haraway propõe
o Chthuluceno como saída diante dos horrores do Antropoceno e as duas
respostas mais simplistas que os acompanham.
A primeira é fácil de descrever e creio de descartar: trata-se da fé cômica
nas soluções tecnológicas, sejam seculares ou religiosas. De alguma forma, a
tecnologia virá em socorro de suas criaturas maliciosas, mas astutas ou, o que
seria o mesmo, Deus virá em socorro de suas criaturas desobedientes, mas
sempre esperançosas.
361
A segunda resposta, mais difícil de descartar, é provavelmente ainda mais
destrutiva: concretamente, uma posição em que o jogo acabou, onde é tarde
demais e não há sentido em tentar melhorar nada, ou pelo menos não há
sentido em ter confiança ativa recíproca em trabalhar e jogar por um mundo
de renascimento. Conheço pessoas da comunidade científica que manifestam
esse tipo de cinismo amargo, mesmo que elas mesmas trabalhem duro para
fazer uma diferença positiva para as pessoas e outras criaturas. Algumas pessoas
que se descrevem como críticos culturais ou progressistas em política também
pensam assim. Acredito que o estranho par de trabalhar e jogar para o
florescimento multiespécies com habilidade e persistentemente e, ao mesmo
tempo, manifestar uma atitude explícita de game over que pode e de fato faz
desencorajar outras pessoas (incluindo estudantes) é promovido por vários
tipos de futurismo. Um deles parece acreditar que as coisas realmente
importam apenas se funcionam. Ou, pior, que algo só importa se o que eu e
meus colegas especialistas fizermos funcionar para consertar as coisas.
(HARAWAY, 2019b, p. 15, tradução nossa)
Em outras palavras, podemos dizer que Haraway propõe o
Chthuluceno como forma de evitar as respostas simplistas aceleracionistas
sob a forma de “bom Antropoceno, que acreditam que a tecnologia irá
salvar o mundo, e também o derrotismo característico daqueles que
acreditam que não há saída para o mundo em ruínas que está posto.
Haraway considera queHá uma linha tênue entre reconhecer a vastidão
e seriedade dos problemas e sucumbir a um futurismo abstrato e seus afetos
de sublime desespero e suas políticas de sublime indiferença” (2019b, p.
15, tradução nossa). Por isso, a pensadora propõe ficar com o problema, não
sucumbir às respostas simplistas, assumir as responsabilidades que ele
exige:
ficar com o problema requer aprender a estar verdadeiramente presentes, não
como um eixo que desaparece entre passados horríveis ou edênicos e futuros
apocalípticos ou de salvação, mas como criaturas mortais entrelaçados em
362
miríades de configurações inacabadas de lugares, tempos, matérias,
significados. (HARAWAY, 2019b, p. 14, tradução nossa)
Estar verdadeiramente presentes não diz respeito simplesmente à
relação com o instante atual na mesma toada das auto-ajudas modernas.
Implica, nas palavras de Haraway, em tornar o “presente algo mais denso”,
envolvendo camadas da “nossa memória e nossa história”, e que “nos sirva
para viver de um modo menos daninho para o nosso ambiente”
(HARAWAY, 2019a, n.p.). Dessa forma, não faz sentido nos lamentarmos
sobre um futuro perdido nem oferecer soluções quase-mágicas universais,
mas “temos que pensar o que podemos fazer com os meios que temos”
(HARAWAY, 2019a, n.p.). Não há tempo a perder com futurismos, o que
for possível é necessário construir:
ficar com o problema requer gerar parentescos raros: nós necessitamos
reciprocamente de colaborações e combinações inesperadas, em pilhas de
composto quente. Devir-com de maneira recíproca ou não devir em absoluto.
Este tipo de semiótica material é sempre situada, em algum lugar e em nenhum
lugar, emaranhada e mundana. Sozinhos, de nossos modos distintos de
experiência e perícia, sabemos muito e pouco, e assim sucumbimos ao
desespero ou à esperança. Também não é uma atitude sensata. Nem o
desespero nem a esperança estão em sintonia com os sentidos, nem com a
matéria consciente, com a semiótica material ou com os mortais terráqueos em
densa co-presença. Nem a esperança nem o desespero podem nos ensinar a
tocar figuras de cordas com espécies companheiras”. (HARAWAY, 2019b, p.
15, tradução nossa)
O devir com é sempre situado e emaranhado ao contexto. As
urgências do mundo em que vivemos exigem que fiquemos com o
problema de forma coletiva com humanos e mais que humanos, por isso o
363
subtítulo do livro de Haraway afirma “como gerar parentes no
Chthuluceno”. Vivenciar o problema implica pensar e agir no presente,
suportar suas consequências conjuntamente, não falar pelos outros nem
determinar individualmente o que outros humanos e não humanos
viverão. O desespero e a esperança não têm muito a contribuir para a
construção de outras formas de viver e morrer bem. Como destaca
Haraway (2019b, p. 32, tradução nossa), “o excepcionalismo humano e o
individualismo limitado, esses antigos clichês da filosofia e da economia
política ocidentais” se tornaram impensáveis e inaptos para pensar-com,
que é uma exigência urgente de nosso tempo. Ficar com o problema passa
por não sucumbir às duas respostas simplistas acima, preservando a
complexidade do mundo e do pensamento, concordamos com Haraway
(2003, p. 25) que “A atenção à complexidade em camadas e distribuída
me ajuda a evitar tanto o determinismo pessimista quanto o idealismo
romântico”.
O “Chthuluceno é o espaço-tempo dos sinchthónicos, a
simbiogenéticos e simpoiéticos da terra, hoje submergidos e espremidos
em túneis, cavernas, restos, margens e rachaduras das águas, ventos e terras
em ruínas” (HARAWAY, 2019b, p. 57, tradução nossa). Todos esses seres
nas margens e bordas do planeta são “chthónicos” como os povos indígenas
que são fundamentais para as alianças desses tempos difíceis.
As criaturas evocadas no Chthuluceno “são seres da lama mais do
que do céu” (HARAWAY, 2019b, p. 20, tradução nossa). Pensar na
interligação entre lama e regeneração nos leva para os manguezais. Para
refletirmos sobre a teia que emaranha vidas marítimas, terrestres, humanas
e mais que humanas, uma das principais fontes é a obra de Josué de
364
Castro
30
(1967, p. 16) que diz que a primeira sociedade com que travou
conhecimento foi a sociedade dos caranguejos. O autor coloca os
habitantes humanos dos mangues como “irmãos de leite dos caranguejos”,
igualmente “filhos da lama” (1967, p. 16). Castro traz suas memórias do
manguezal para refletir acerca da fome e as dinâmicas que a produzem.
Sobre a cidade de Recife, ele reflete:
na verdade, foram os mangues os primeiros conquistadores desta terra. Foram
mesmo em grande parte os seus criadores. Toda esta vasta planície inundável
formada de ilhas, penínsulas, alagados e paus, fora em tempos idos uma grande
fossa, uma baía em semicírculo, cercada por uma cinta de colinas. Nela vindo
a desaguar, através da muralha dessas colinas, dois grandes rios o Capibaribe
e o Beberibe foram entulhando a fossa com materiais aluvionais: com a terra
arrancada de outras áreas distantes e trazida na enxurrada das suas águas. Pouco
a pouco foram surgindo, dentro da baía marinha, pequenas coroas lodosas,
formadas através da precipitação e deposição dos materiais trazidos dos rios. E
foi sobre estes bancos de solo ainda mal consolidados, mistura incerta de terra
e água, que se apressaram a proliferar os mangues esta estranha vegetação
capaz de viver dentro de água salgada, numa terra frouxa, constantemente
alagada. Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através
de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo
e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da
maré e ao sopro forte dos ventos alíseos, que arrepiam sua cabeleira verde, os
mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas raízes e seus braços numa
amorosa promiscuidade, e foram assim consolidando a sua vida e a vida do solo
frouxo das coroas de lodo donde brotaram. Com os depósitos aluvionais que
se foram acumulando na trama do labirinto de raízes dos mangues e debaixo
30
Sobre a obra de Josué de Castro, Carlos Walter Porto-Gonçalvez afirma: "Por antecipar uma abordagem
que mais tarde será conhecida como socioambiental, característica do pensamento ambiental latino-
americano, ainda que olvidado pela maioria daqueles que se apresentam como seus próceres. A abordagem
ecológica invocada por Josué de Castro está longe do ecologismo de Primeiro Mundo, na medida em que
recusa a distinção entre o natural e o social, entre natureza e cultura, entre o ambiental e o político. Josué
de Castro está entre aqueles que, no pós-guerra, dedicaram a vida para que a problemática da fome fosse
tornada numa perspectiva ecológica biológica, social, cultural e política e, ao mesmo tempo, vista
como um problema nacional e mundial." (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 207)
365
das suas copadas sombras verdes, foi progressivamente subindo o nível do solo
e alargando sua área sob a proteção desse denso engradado vegetal. Não há,
pois, a menor dúvida de que toda esta terra que hoje flutua à flor das águas, na
baía entulhada do Recife, foi uma criação dos mangues. Os mangues vieram
com os rios e, com os materiais por estes trazidos, foram os mangues
laboriosamente construindo seu próprio solo, batendo-se em luta constante
contra o mar. Vieram como se fossem tropas de ocupação e, em contato com
o mar, edificaram silenciosamente e progressivamente esta imensa baixada
aluvional hoje cortada por inúmeros braços de água dos rios e densamente
povoada de homens e caranguejos, seus habitantes e seus adoradores. Tendo
os mangues realizado esta obra ciclópica, não admira que, hoje, sejam eles
divinizados pelos habitantes desta área, embora não saibam os homens explicar
como o mangue realiza este milagre de criar terra como se fosse um deus. Mas
os homens veem, até hoje, crescer diante dos seus olhos as coroas lodosas e
transformarem-se, pela força construtora dos mangues, em ilhas verdejantes,
fervilhantes de vida. E veem, assombrados, proliferarem em torno das ilhas
maiores outras pequeninas, como que saídas durante a noite do seu próprio
ventre, em misteriosos partos da terra que o mangue milagrosamente ajuda.
(CASTRO, 1964, p. 14-15)
A vegetação dos mangues se agarra com “unhas e dentes” ao solo
para sobreviver, amparando-se em outras árvores para resistir às marés e
ventos e oferecendo amparo para outros seres que se protegem em suas
raízes. Assim, “os mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas raízes
e seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram assim consolidando
a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de lodo donde brotaram”
(CASTRO, 1967, p. 14). No labirinto de raízes dos mangues surge vida
e solo. Com suas “tropas de ocupação”, o mangue pariu Recife assim como
muitos outros mundos. Entre mundos marítimos e terrestres, os
manguezais são berços de muitas espécies aquáticas e terrestres, soterrando
sedimentos são ricos em nutrientes e matéria orgânica e fornecem
condições de vida para uma enorme diversidade, também capturam mais
gás carbônico do que florestas, além de purificar a água e adubar os
366
oceanos. A vegetação do mangue possui árvores com raízes aéreas para
captar oxigênio e resistir às constantes cheias, tais raízes funcionam como
filtros de sedimentos, fixam as terras impedindo a erosão e estabilizando a
costa. Da decomposição, emerge a vida através de uma teia alimentar
complexa.
O mangue, com sua considerável população de bactérias e fungos,
como um emaranhado de coexistências nos evoca a figura de tornar-se em
algum sentido humano-caranguejo. Suas raízes evidentes não escondem
interesses ocultos como na árvore do conhecimento, nem ignoram as
sociedades do solo e os mundos que o envolvem. Entre mundos aquáticos
e terrestres os mangues mostram sua resistência ao transformar os restos de
outros mundos, trazidos pelos mares, em alimento, vida, solo, mundos. A
“vegetação densa dos mangues com seus troncos retorcidos, com o
emaranhado de seus galhos rugosos e com a densa rede de suas raízes
perfurantes” como um “polvo, enfiando tentáculos” a tudo a sua volta
resiste e cria alianças com muitos outros modos de seres humanos e não
humanos (CASTRO, 1976, p. 13). Como evoca Chico Science, a potência
criadora dos mangues oferece possibilidades “Pra gente sair da lama e
enfrentar os urubu” (A cidade, 1994), produzir com-posto ressur-gente. A
partir dos ensinamentos dos mangues, somos convidados/as/es para nos
enlamearmos no mangue dos saberes que produz ressurgência através de
emaranhados da existência entre mundos.
Concordamos com Haraway que “O Chthuluceno, ainda
inacabado, deve coletar o lixo do Antropoceno, o extermínio do
Capitaloceno; cortar, desfiar e empilhar como um jardineiro louco,
tornando possível uma pilha de composto muito mais quente para o
passado, presente e futuro” (2019b, p. 47-48, tradução nossa). Ficar com
o problema implica em “criar camadas, tentar regenerar [...] aprender a
367
florescer na complexidade” (HARAWAY, 2019a, n.p.). Juntamente com
a simpoiésis, Haraway evoca a “simchthonia a coexistencia dos terrestres”
(HARAWAY, 2019, p. 136, tradução nossa). Como explica Costa,
simchthonia é um “neologismo que indica sintonia e simbiose com os seres
ctônicos que povoam seu Chthuluceno , que trata da “co-existência dos
seres terrestres”” (COSTA, 2019, p. 203-203). Assim como Haraway
entendemos que as urgências do presente exigem sintonizar com os seres
terranos em todas as esferas.
Até mesmo porque não adianta apenas parar o consumo, é preciso
fazer algo com todo o lixo que foi criado, além de termos “que nos virar
com pouco, teremos também que nos virar com os restos” (NODARI, 2014,
p. 7). Nesse viés, é relevante a proposta de uma nova compreensão sobre a
bricolagem a partir Lévi-Strauss, como explica Nodari (2014, p. 14-15),
ao intensificar aquilo que subsiste nas coisas, a bricoleur é um reciclador radical,
que não se limita a simplesmente devolver a utilidade às coisas, mas compor o
seu sentido: como aqueles personagens de ficções apocalípticas que mobilizam
os restos de um mundo devastado não apenas para novos fins, novos usos, mas
também para uma nova relação com as coisas, inclusive para uma nova estética
para um devir‐mundo por mais trash que seja”. (NODARI, 2014, p. 14-15)
A bricolagem, como uma nova composição não especializada a
partir de elementos inutilizados por algum motivo, ao mesmo tempo que
dá utilidade às coisas, também subverte seus sentidos próprios. Em um
mundo em ruínas, a bricolagem será necessária para compor um mundo a
partir de seus restos. Não há um mundo novo, mas um velho mundo a ser
recuperado. A ressurgência é um processo contínuo de recompor o solo e
a existência em Gaia.
368
A humanidade solipsista e narcisista moderna se acha autônoma,
emancipada, acima de todos os outros seres, entretanto, embora não
perceba, depende completamente da mutualidade multiespécies. A partir
dos debates deste capítulo, podemos entender a humanidade como uma
relação entre espécies, ampliando a compreensão das formas de ser no
mundo limitadas pela filosofia ocidental. Que humanidade existe nesta
ontologia das relações emaranhadas? São coletivos, com-postos,
emaranhados, múltiplos, plurais, micelianos, tentaculares. O ser humano
não é um indivíduo isolado, é um ser coletivo, diluído em redes, um
composto multiespécie que depende do coletivo nos planos nano, micro e
macro. Nada mais impensável do que um humano que se entende isolado
do mundo, das pessoas que o cercam e dos seres não humanos que formam
quem ele é dentro e fora do que se entende por um “organismo”. Nós
somos muitos nós, de maneira que em determinada escala somos a
paisagem de outros seres. Cabe refletir até mesmo se o que entendemos
por “espécie” se sustenta, pois dependendo da cosmoperspectiva de análise,
por exemplo, podemos ser da mesma espécie que um rio como Watu.
Qualquer tipo de transformação, ou de devir, só pode ser pensada em
termos de colaboração e não de competição.
Somos ensinados a ser como alienígenas no planeta Terra, que não
somos capazes de perceber quem somos sem as ficções que foram criadas
para nós. Quando consideramos os contextos coloniais isto se evidencia
pelo distanciamento de nossa própria história, que é vista como algo fora
de nós, do qual não fizemos parte. Os nascidos no Brasil em geral se
tornam duplamente alienígenas, não se veem na sua própria história, mas
também não se veem no próprio planeta, o que é compartilhado por todo
o mundo ocidentalocêntrico.
369
O mundo dominante também pode ser entendido em termos de
nós. Para Heleieth Saffioti, as opressões no Brasil formam um novelo, de
modo que um aspecto não pode ser associado do outro.
É difícil lidar com esta nova realidade, formada pelas três subestruturas: gênero,
classe social, raça/etnia, já que é presidida por uma lógica contraditória, distinta
das que regem cada contradição em separado. [...] O importante é analisar estas
contradições na condição de fundidas ou enoveladas ou enlaçadas em um nó.
Não se trata da figura de um nó górdio nem apertado, mas do nó frouxo,
deixando mobilidade para cada uma de suas componentes. Não que cada uma
dessas contradições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar
uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma
condiciona-se à nova realidade, presidida por uma lógica contraditória. [...]
novelo patriarcado-racismo-capitalismo historicamente constituída
(SAFFIOTI, 2004, p. 125).
Saffioti chama a atenção para a relação profundamente interligada
entre patriarcado, racismo e capitalismo que, “enoveladas ou enlaçadas em
um nó”, estruturam as bases da sociedade ocidental moderna. O novelo
patriarcado-racismo-capitalismo se emaranha dificultando a percepção da
própria realidade em sua complexidade. O que Saffioti entende como o
novelo patriarcado-racismo-capitalismo, entendemos como o novelo
antropo-euro-falo-ego-capital-logocêntrico. Tal ontologia é um novelo
porque a sociedade está ancorada em sua lógica que caminha
conjuntamente, de maneira que um de seus aspectos não se mantém sem
o outro. O que fizemos em nosso segundo capítulo foi desfazer tais nós.
Desfazer os novelos antropo-euro-falo-ego-logocêntrico para podermos
produzir outras com-posições, mais polifônicas, coordenando sons, ritmos
(temporalidades), melodias (singularidades), harmonias (coletividades).
Como evocam BNegão & Os Seletores de Frequência na música “Nós
370
(Ponto de Mutação)”, é preciso “Desatar os nós no pensamento, desatar os
nós na garganta”, tais novelos-vendas e mordaças que nos impedem de
perceber e expressar quem nós somos.
Se até aqui discutimos o narcisismo como o ato antopo-euro-falo-
ego-capital-logocêntrico de enxergar apenas a si mesmo, quando
consideramos a população brasileira e a distorção de sua auto-imagem
promovida pela colonialidade, se perceber é fundamental. Enquanto o
colonizar olha para o espelho e reafirma sua ideologia de superioridade, o
colonizado/a/e olha para o espelho e se enxerga em comparação com a
ontologia hegemônica, muitas vezes recusando quem é e distorcendo a
percepção de si mesmo/a/e. Assim como desatar nós possibilita perceber as
estruturas que enredam os/as/es brasileiros/as, espelhos podem ser armas
estratégicas
31
como ensina Oxum.
Oxum, inserida em todo seu conjunto mitológico de ancestralidade africana,
permite vislumbrar uma pedagogia transgressora, como aquela inspirada no
abebé de Oxum, que possibilita o reconhecimento do belo de si refletido no
espelho e também o estratégico domínio do ambiente que é co-habitado,
inclusive pelo opressor que intenciona estabelecer domínio pela força e pela
violência. (DIAS, 2020, p. 12)
Oxum carrega um espelho (abebé) que tem função não somente
de revelar aos seus olhos a própria beleza, mas permite refletir o perigo que
há atrás de si e provocar reações estratégicas e belicosas” (DIAS, 2020, p.
11), possibilitando também ver o inimigo que se aproxima pelas suas
costas. Portanto, um espelho do mundo, que mostra como ele realmente
é, para além do narcisismo dominante. Contudo, espelhos podem
31
Quem nos alertou para este ponto foi o Prof. wanderson flor do nascimento.
371
contribuir para um anti-narcisismo, desde que possibilitem enxergar as
diferenças e valorizá-las, multiplicar percepções. Para a parte da população
brasileira que é delegada à zona do não ser da ontologia hegemônica racista,
que tem sua imagem também sequestrada pelo colonizador, espelhos são
essenciais. Perceber o espelho para além da relação que o colonizador
estabelece com ele, é importante para que a lógica da ontologia
hegemônica seja colocada em xeque.
Existem dois equívocos fundamentais da compreensão hegemônica
de filosofia: entender a filosofia europeia enquanto única e universal e
como uma atividade abstrata que olha para o mundo como objeto de
forma analítica e neutra. Os dois equívocos são decorrentes de uma
filosofia que parte de uma compreensão deturpada da humanidade, que
ignora seus aspectos com-postos por emaranhados. A filosofia deve olhar
para tais emaranhados e decompor as abstrações ideológicas que inventam
um Homem isolado e superior, e praticar o filosofar situado como um
emaranhar-se ao contexto, às pessoas que nos rodeiam, aos diversos seres
que nos compõem e produzir com-posto, contribuir para o ressurgimento
multiespécies. A complexidade emaranhada do mundo nos constitui como
nós, de maneira que não podemos ser nada isoladamente. Neste capítulo,
propomos uma filosofia que participa da continuidade do mundo, que se
emaranha ao contexto e produz com-posto, de maneira que ao mesmo
tempo em que decompõe ideologias nos decompõe enquanto pessoas.
A ontologia ameríndia permite uma virada no pensamento
filosófico. Uma filosofia guiada por uma ontologia das diferenças fomenta
uma relação emaranhada com o mundo. Essa virada filosófica decompõe
os principais traços da ontologia hegemônica: narcisismo, solipsismo,
antropocentrismo e individualismo, colaborando com a simbiose com o
mundo em todas as suas dimensões. Como redes micélicas o conhecimento
372
se micorriza, tentaculariza, com suas raízes expostas como mangue,
criadoras de ressurgências.
A virada ontológica na filosofia se efetiva no abandono da
linguagem como paradigma do fenômeno humano (VIVEIROS DE
CASTRO, 2012, p. 167), rompendo com a virada linguística” que
converteu todas as questões ontológicas em questões epistemológicas"
(VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 166). Nesse sentido, consiste na
reontologização do que havia sido reduzido ao epistêmico e ao categorial.
Trata-se de repor no mundo o que havia sido posto no eu(VIVEIROS
DE CASTRO, 2012, p. 167). A indigenização da filosofia na forma de
virada ontológica também leva a uma outra concepção de pensamento que
rompa com o solipsismo: é preciso que sejamos capazes de, imitando ao
nosso modo os índios (que não é o modo deles), pensar o pensamento
como algo que, se passa pela cabeça, não nasce nem fica lá; ao contrário,
investe e exprime o corpo da cabeça aos pés(VIVEIROS DE CASTRO,
2012, p. 157). Assim, ao princípio solipsista e dualista do “penso, logo
existo”, contrapõem o pan-psiquismo perspectivista do “existe, logo
pensa”, que instaura o pensamento imediatamente no elemento da
alteridade e da relação, fazendo-o depender da realidade sensível do outro
(VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 168).
Um filosofar simpoiético senas frestas dos mundos mais que
humanos e em alianças entre mundos. Se uma filosofia que se pretende
universal incorre nos vários erros que já pontuamos, os debates que
trouxemos indicam que para evitar os excessos narcisistas é possível pensar
uma filosofia que emerge das redes que com-pomos. A aprendizagem
simpoiética diz respeito àquilo que podemos aprender com outros seres
professores. Durante o processo de escrita deste texto, experimentamos
aprender com diferentes seres, árvores, ervas, fungos, cipós, entre outros.
373
Observando as ervas encontrei entre azulejos a terramicina, potente
antibiótico, além de muito caruru, usado na culinária. Esse encontro
cotidiano com a vida nas frestas relembra o potencial da vida. Com os
fungos tive encontros com suas formas micorrizas, mas durante o processo
de escrita pude observar sua forma virulenta, o local onde moro convive
com uma doença fúngica que se tornou epidêmica.
O devir simpoiético implica em entender seres mais que humanos,
como plantas e fungos, como sujeitos/as do saber. Como ressalta
Albuquerque (2011, p. 77),
pensar as plantas como sujeitos do saber implica considerar a possibilidade da
produção desse saber centrar-se num ser não humano o que, em si mesmo,
configura-se com uma heresia epistemológica na medida em que viola as
clássicas distinções entre natureza e cultura que transformou as plantas em
meros objetos do saber, mas nunca em sujeitos do saber. (ALBUQUERQUE,
2011, p. 77)
Pensando sobre a ecologia de saberes, a filósofa, que é estudiosa do
Santo Daime¸ tem uma vasta pesquisa sobre os saberes proporcionados pela
ayahuasca, com a predominância de elementos da floresta, produzindo
uma compreensão sistêmica e não instrumental da natureza. Além da
floresta, as cosmoperspectivas da vida animal e vegetal parecem ter muita
importância nas visões da ayahuasca. Os saberes da ayahuasca são
compartilhados pelas plantas, e não por seres humanos como ocorre na
educação tradicional. Segundo Albuquerque (2011), com a propagação de
saberes ecológicos e que promovem uma conexão com a natureza, a
ecologia da ayahuasca pode colaborar na redução da degradação ambiental
bem como na superação dos abismos estabelecidos pelo paradigma
374
moderno, configurado na clássica distinção entre sujeito/objeto e
natureza/cultura.
Muitas cosmoperspectivas e mundos com-põem o planeta em que
vivemos. Se o mundo do povo universal está ruindo e o desabamento das
bases desse edifício antropo-euro-falo-ego-capital-logocêntrico é necessário
para que muitas vidas não sejam soterradas, não cabe a nós adiar o seu fim,
mas sim colaborar para que desabe mantendo o distanciamento suficiente
para não sermos atingidos por suas ruínas. Em outras palavras, podemos
dizer que este mundo universal dominante precisa acabar para que outros
mundos continuem existindo, haja vista que sua existência tem potencial
para produzir o colapso total do planeta. Precisamos de outras com-
posições planetárias para adiar o fim dos mundos que, embora também
finitos, trazem formas mais simpoiéticas de viver. Diante disso, como
podemos pensar um modelo de ensino de filosofia que colabore para um
pensamento potencializador da simbiose emaranhada do mundo
mantendo a sua complexidade? Como podemos pensar com outros
humanos e mais que humanos um futuro para o planeta? Como a filosofia
pode fomentar com-posições cosmopolíticas para os tempos urgentes que
vivemos? Em nosso quinto e último capítulo refletiremos mais
profundamente sobre os nós que com-põem o ensino de filosofia e quais
são os limites e possibilidades de com-posições cosmopolíticas nesses
espaços.
375
Capítulo 5
Nós do filosofar:
com-posões cosmopolíticas para adiar o fim dos mundos
O mundo é um nó em movimento.” (HARAWAY, 2003, p. 05)
Nunca nesse mundo se está sozinho” (Jorge Bem, Música “Domingo 23”, 1972)
FIGURA 5OS SABERES DA CASA
Fonte: Arquivo Pessoal de Iraceles Ishii.
376
Apresentação
Os emaranhados que cultivaremos nesse capítulo podem ser
entendidos a partir do devir de um cipó conhecido por jagube, mariri,
caapi, yagé, entre outros, cipó que, do mesmo modo como cresce
entrelaçadamente nas florestas, tem sua existência emaranhada nas de
grupos ameríndios e comunidades conhecidas como ayahuasqueiras. Nesse
sentido, o jagube é portador de uma ontologia enovelada, pois sua própria
estrutura é interpretada como s, cuja resistência e força que o
caracterizam seguram árvores e outros seres. Também o saber
compartilhado pelo cipó através da ayahuasca fornece percepções de nós,
coletividades, cosmoperspectivas amplas da existência enovelada aos devires
e mistérios da floresta. A própria ayahuasca é um nó, pois a bebida é feita
a partir da simbiose inseparável do jagube com a chacrona/rainha, já que
tais ensinamentos só são compartilhados quando as duas plantas estão
enoveladas na bebida. Contudo, podemos dizer que o jagube é enovelado
em seus aspectos nano, micro e macro-cosmopolíticos. O devir cipó
32
,
assim, está nos entremeios, meandros da vida, como um movimento entre,
rizomático, miceliano, sinuoso, serpenteante, espiralante, enovelado com
mundos vegetais e humanos.
Neste capítulo, emaranhar-nos-emos nos nós que com-põem o
ensino de filosofia em seus planos nano, micro e macro-cosmopolíticos
intensificando suas camadas enoveladas. Como jagube, o filosofar emerge
de nós do ser com seu contexto, com suas experiências, com suas
epistemologias, com suas sociedades, com o planeta. Nossa busca com este
32
O jagube se tornou a expressão da filosofia deste capítulo devido à contribuição, que agradecemos, do
Prof. Alonso Bezerra de Carvalho.
377
texto é investigar como o filosofar pode se emaranhar com as sabedorias da
Terra, o que chamaremos de ecosofia, fazendo emergir devires menos
daninhos e mais férteis para as urgências do aqui-agora.
5.1 Ecologias da existência: devir cipó
Em “As três ecologias” (1990), Féliz Guattari reflete que, ainda que
algumas sociedades estejam começando a tomar consciência sobre os
perigos mais evidentes da catástrofe ambiental, as formações políticas e as
instâncias executivas parecem incapazes de lidar com essa problemática
porque reduzem suas preocupações a uma perspectiva unicamente
tecnocrática acerca dos danos industriais. Concordamos com Guattari que
apenas uma articulação ético-política-estética “entre os três registros
ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade
humana)” (GUATTARI, 1990, p. 7), chamada por ele de ecosofia, pode
lidar adequadamente com os problemas que envolvem viver na Terra. Tais
problemas, criados pelos “sistemas de valor unidimensionalizantes do
Ocidente” (GUATTARI, 1990, p. 10), exigem uma transformação nas
maneiras de se relacionar com o planeta:
não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária
e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e
cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais.
Essa revolução deverá concernir, portanto, não só as relações de forças visíveis
em grande escala mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de
inteligência e de desejo. (GUATTARI, 1990, p. 08)
378
Com o sistema de valor hegemônico “Não somente as espécies
desaparecem, mas também as palavras, as frases, os gestos de solidariedade
humana” (GUATTARI, 1990, p. 27), portanto, recompor as potências de
viver neste planeta envolve uma revolução cosmopolítica na qual as várias
camadas se inter-relacionam. Entendemos que a articulação ético-política-
estética da ecosofia não pode ser apenas feita de sobreposições ou diálogos
entre subjetividades, mas que esse emaranhado, produzido entre elas,
precisa se constituir em uma outra subjetividade múltipla.
Em nossa percepção, a ecosofia poderia ser definida como o
processo dinâmico de aprender com as sabedorias de viver neste planeta.
Entender a filosofia em uma cosmoperspectiva ecosófica aponta para outra
forma de relação com Gaia mais conectada com suas sabedorias do que
com suas lógicas. Articular o que Guattari entende como os três registros
fundamentais da ecologia ambiente, sociedade e subjetividade diz
respeito à recomposição do que o homem moderno fez parecer
desconectado. Sem tal retomada ecosófica, a barbárie eco-ontológica se
banalizará cada dia mais:
se não houver uma rearticulação dos três registros fundamentais da ecologia,
podemos infelizmente pressagiar a escalada de todos os perigos: os do racismo,
do fanatismo religioso, dos cismas nacionalitários caindo em fechamentos
reacionários, os da exploração do trabalho das crianças, da opressão das
mulheres. (GUATTARI, 1990, p. 15-16)
Nas páginas que se seguem na forma de uma devir cipó,
procuraremos costurar cosmopercepções acerca de três dimensões que
consideramos ecosóficas: a ecologia da mente, ecologia dos saberes e sabores e a
eco-ontologia social e planetária. Três dimensões de um mesmo movimento
379
paradigmático ético-político-estético da ecosofia que visa a recom-por as
práticas sociais e individuais. Considerando que tais dimensões são apenas
facetas de uma mesma articulação emaranhada, que só aparece separada
como recurso estratégico deste texto, este capítulo se constituirá em uma
única seção com ênfase em cada momento em uma dessas ecologias.
5.1.1 s do pensamento: aspectos de uma possível ecologia da mente
Como vimos nos capítulos anteriores, a história da filosofia
ocidental se alicerça em uma concepção de pensamento como
metafisicamente isolado do mundo, de maneira que dificulta entendermos
tanto o que o mundo é quanto o que somos. Por isso, nesta seção, a partir
de uma ecologia da mente, discutiremos o que com-põe o pensamento
através de suas interconexões com o mundo.
Na tradição ocidental, o pensamento é propriedade de uma mente
separada do corpo, este último sendo regido por leis mecânicas. Nesse viés,
o conhecimento filosófico está associado a um processo de abstração
conceitual, como um processo mental de entender o mundo. Em nossa
percepção, compreender o trabalho filosófico-conceitual desta forma
implica em uma filosofia alienada e que (de)forma como entendemos o
mundo e a nós mesmos/as/es. Ao não tornar explícita a perspectiva do
pensamento e como esta emerge das experiências de um corpo em um
mundo, produz-se uma filosofia que, ao achar que pensa sobre tudo, pensa
pouco sobre a diversidade do mundo e não colabora para uma relação
conectada com os diferentes contextos, seus seres e problemas. O sujeito
solipsista emerge de uma epistemologia racionalista, na qual, através da
concepção de que todo conhecimento seguro advém do uso da razão e não
380
da experiência, restringe o sujeito a uma percepção narcisista de si e à
inferiorização de outros mundos. Tal perspectiva afirma a existência de
verdades representacionais e internas, entendendo que nem todas as
pessoas são capazes de alcançá-la. Nesse viés, a diversidade que nos compõe
é reduzida a fórmulas, de modo que o ser humano e a natureza, vistos como
separados, não são entendidos em suas relações sistêmicas.
Entender a mente, e também o filosofar, de forma antinarcisista
convida a perceber outras subjetividades. A “subjetividade capitalística se
esforça por gerar o mundo da infância, do amor, da arte, bem como tudo
o que é da ordem da angústia, da loucura, da dor, da morte, do sentimento
de estar perdido no cosmos” (GUATTARI, 1990, p. 33), e, dessa forma,
produz a percepção de desconexão em diversos sentidos, ao mesmo tempo
em que direciona os modos de ser válidos. Entender o ser de forma
interconectada implica em focar na dinâmica das relações e não na pessoa
de modo “isolado”, entendendo o ser como produto emergente das
relações com o ambiente e os seres que o compõem.
Na abordagem tradicional do conhecimento, este tende a ser
associado especialmente à visão, como discutimos um pouco com
Oywùmí no terceiro capítulo, e ao cérebro. Com o dualismo, há uma
tendência em associar a mente como uma propriedade interna de um
cérebro. A abordagem ecológica convida a perceber as relações que
envolvem o conhecimento, como explica David Large (2011, p. 354),
“Aceitar a abordagem ecológica equivale a renunciar a ideia de que a mente
é algo na cabeça com sua causa fora de si mesma. Você deveria, como o
slogan diz, perguntar não o que está dentro de sua cabeça mas dentro do
que está a sua cabeça”. Em certo sentido, perguntar-se dentro de que
estamos pode levar à Gaia ou a diversas outras paisagens possíveis.
381
No artigo “Os homens são como a planta: a metáfora e o universo do
processo mental” (2001), Gregory Bateson apresenta o silogismo planta que
aponta para uma compreensão mais interligada da vida no planeta. O
silogismo planta é formulado da seguinte forma:
“A planta morre.
Os homens morrem.
Os homens são plantas.” (BATESON, 2001, p. 42)
Bateson compara o silogismo planta com o silogismo aristotélico
conhecido como BARBARA “Os homens morrem. Sócrates é homem.
Sócrates morrerá.” se referindo a críticas que recebeu que o associavam
ao pensar próprio dos poetas. Bateson afirma que organiza a maior parte
de seus raciocínios da mesma forma que os poetas organizam os seus, isto
é, através de metáforas. Com os interesses voltados ao campo biológico,
Bateson (2001, p. 41) reflete que “Nunca ficou totalmente esclarecido se
a lógica poderia ser utilizada para a descrição de padrões e eventos
biológicos”. O autor acrescenta que, se a metáfora não é aceitável da
perspectiva lógica, “deve ser uma contribuição bastante útil para os
princípios da vida. A vida, provavelmente, nem sempre estará interessada
em saber o que é logicamente aceitável. Eu ficaria realmente surpreso se ela
estivesse” (2001, p. 42).
O silogismo planta, também conhecido como “A afirmação do
consequente”, foi estudado por E von Domarus que entendia essa forma
de raciocínio como própria dos esquizofrênicos e, diferentemente de
Bateson, entendia como algo a ser evitado. A diferença entre os dois
382
silogismos pode ser entendida nos termos explicados por Bateson a partir
da pesquisa de von Domarus (2001, p. 42):
o silogismo de Sócrates identifica-o como membro de uma classe, e o coloca
claramente na classe daqueles que vão morrer, ao passo que o silogismo
“planta” não está preocupado com a classificação nesses mesmos moldes. O
silogismo “planta” está interessado na equação dos predicados. Morre morre,
aquele que morre é semelhante àquela outra coisa que morre. (DOMARUS,
p. 42)
O que ele propõe é justamente a mudança de referencial. Se no
silogismo aristotélico é uma relação entre classes, no silogismo planta a
relação de sentido é feita por meio do predicado, no caso, através da
finitude comum expressa pela morte. Tal diferença também faz com que a
questão do sujeito não seja a mais importante, como destaca Bateson
(2001, p. 43):
vocês compreendem, se é verdade que o silogismo “planta” não exige sujeitos
como a matéria de sua construção e se é verdade que o silogismo Bárbara (o
silogismo de Sócrates) realmente exige sujeitos, então também é verdade que o
silogismo Bárbara nunca poderia ser útil em um número biológico, antes da
invenção da linguagem e da separação de sujeitos e predicados. Em outras
palavras, parece que até 100.000 anos atrás, talvez no máximo 1.000.000 de
anos, não havia silogismo do tipo Bárbara no mundo e havia somente aqueles
do tipo Bateson, e mesmo assim os organismos sobreviveram sem problemas.
Eles conseguiram organizar-se em sua embriologia, para ter dois olhos: um de
cada lado do nariz. Conseguiram se organizar em sua evolução. [...] Ficou
evidente que a metáfora não era apenas uma agradável poesia. Não era
tampouco uma lógica boa ou má. Mas era de fato a lógica sobre a qual o
universo biológico tinha sido construído; a característica principal, o fator
agregador deste mundo do processo mental. [...] espero ter ajudado a libertá-
los de pensar apenas em termos materiais e lógicos na sintaxe e na terminologia
383
mecânica, quando vocês estiverem tentando de fato pensar acerca dos seres
vivos. (BATESON, 2001, p. 43)
Nesse sentido, trata-se de buscar o comum, o que agrega os seres.
Assim, uma abordagem mecanicista do corpo e do planeta pode ser
insuficiente para compreender a poética da existência que não corresponde
às lógicas clássicas. Bateson enaltece as habilidades dos poetas para agregar
e fazer emergir vida. Talvez a poesia tenha muito a contribuir para as
urgências do presente. Nesse viés, consideramos as metáforas como
recursos férteis para a vida, que se ancoram em outras lógicas.
Gregory Bateson tinha uma grande preocupação com o modo
como a educação não se ocupava de questões essenciais para um convívio
adequado neste planeta: “O que há em nossa maneira de perceber, que nos
faz não enxergar as interdependências delicadas em um sistema ecológico,
que dão a ele sua integridade? Nós não as vemos, e, por esse motivo, nós
as quebramos” (BATESON APUD DEMARCHI et al., 2013, p. 270).
Buscando saber como os seres vivos estão conectados e o que torna nossa
percepção alheia como um alienígena? às interdependências que temos
com outros seres, Bateson entendia que os problemas que temos são
decorrência da distância entre a maneira como a natureza atua e a maneira
como a humanidade pensa: “Acredito que esse acúmulo massivo de
ameaças ao homem e seu sistema ecológico decorre de erros em nossos
hábitos de pensamento que estão enraizados em níveis profundos e
parcialmente inconscientes(BATESON, 1998, p. 330, tradução nossa).
Para ele, algumas maneiras de classificar os seres levam a desastres, por isso,
seu interesse pela ecologia das ideias ou da mente. Quando Bateson pergunta
sobre como nós podemos conhecer qualquer coisa inclui em nós “a estrela-
384
do-mar e as florestas de sequoias, o ovo segmentado e o senado dos Estados
Unidos” (1986, p. 12).
A partir de uma aula narrada em “Mente e natureza” (1986), na
qual levou para a sala um caranguejo, Bateson pergunta à turma o que
possibilita o reconhecer como um ser vivo, ou, elaborado de outro modo,
“Qual o padrão que liga todas as criaturas vivas?” (1986, p. 16). A partir
das respostas, Bateson aponta para as “relações similares entre as partes.
Nunca quantidades, sempre contornos, formas e relações” (1986, p. 17),
afirmando que a “anatomia do caranguejo é repetitiva e rítmica. Como a
música, ela é repetitiva com modulação” (1986, p. 18). A modulação
musical consiste em transpor um conjunto de sons para uma tonalidade
diferente, de maneira que a música é sempre entendida em suas relações,
assim, desde que mantidas as proporções entre os sons, mesmo em outra
tonalidade será possível reconhecer a música. Entender a vida como
modulação tem a ver com relações e proporções similares que se repetem
em diferentes estruturas e tons no planeta. Nesse viés, “Cada detalhe do
universo é visto como uma proposta de visão do todo” (BATESON, 1998,
p. 216, tradução nossa). Para uma forma mais conectada de perceber o
mundo que nos circunda, Bateson convida a buscar o comum, a perceber
o padrão que liga, entendendo a vida como modulações-diferenças de um
tema musical. Sobre isso, ele ressalta:
fomos treinados para pensar a respeito de padrões, com exceção dos da música,
como assuntos estáveis. É mais fácil e cômodo pensar assim, mas, naturalmente
absurdo. Na verdade, o caminho certo para começar a pensar sobre o padrão
que liga é pensar nele como primordialmente (seja lá o que isso significa) uma
dança de partes que interagem e só secundariamente restringida por vários
tipos de limites físicos e por aqueles limites que os organismos
caracteristicamente impõem. (BATESON, 1986, p. 21)
385
Concordamos com Bateson que a compreensão que temos da
música aponta para o movimento dinâmico mais do que em outras áreas,
por isso, consideramos adequado pensar a vida nos termos de uma dança.
Entender o padrão que liga como uma dança, cuja música se modula a
partir de diferentes cosmoperspectivas, possibilita perceber o movimento
dinâmico e interconectado da vida. Assim, propõe pensar a evolução não
“apenas como um conjunto de mudanças na adaptação” dos seres aos
contextos, mas como “uma constância na relação dos animais com o meio
ambiente” (BATESON, 1998, p. 237, tradução nossa), na qual “É
importante ver o enunciado ou ação particular como parte do subsistema
ecológico denominado contexto, e não como o produto ou efeito do que
resta do contexto após o elemento que desejamos explicar ter sido
amputado dele” (BATESON, 1998, p. 237, tradução nossa). Entender os
organismos como parte do sistema e não como algo apenas dentro de um
sistema, implica em entender a agência mútua de todos os seres que
coexistem a partir de um contexto. Assim, organismos e ambientes, em
suas relações de reciprocidade, se implicam e moldam mutuamente. Somos
agentes situados no mundo, bem como quaisquer outros seres, e não
podemos ser entendidos fora de um contexto ecológico, do mesmo modo
como qualquer outro ser também não. Para Bateson (1986, p. 25), “As
formas dos animais e plantas são transformações de mensagens”, de
maneira que os padrões significam informação relevante sobre o ambiente.
A partir disso, consideramos que a percepção de padrões pode ser
entendida como processos de tradução cósmica, assemelhando-se com o
que faz o xamã.
Quando olhamos para as conexões, outra percepção sobre a mente
emerge. Entre os critérios de mentalidade descritos por Bateson (1986, p.
99), a mente é apresentada como um agregado de partes ou componentes
386
que interagem acionados por diferença. A perspectiva ecológica de Bateson
retira a compreensão da mente do viés antropocêntrico, entendendo-a
como um sistema integrado entre organismo e ambiente, de maneira que
não é uma exclusividade humana. Toda mudança, nesse sentido, tem a ver
com a emergência de uma diferença que faz diferença em um sistema,
quebrando e instaurando novos hábitos.
Bateson rompe com a dualidade organismo-ambiente, entendendo
a mente como um composto relacional onde tudo se conecta, de maneira
que é a diferença que convida as partes à relação. O que é denominado
mente, neste viés, não coincide com indivíduo. Para Bateson, do mesmo
modo como “o mapa não é o território, e o nome não é a coisa designada”
(1986, p. 36), a mente não é o cérebro. Nesse sentido, não é a mente que
percebe, mas a percepção é um processo dinâmico e em constante
movimento que envolve os organismos e o ambiente. O conhecimento,
por sua vez, também seria o que emerge da informação significativa de um
contexto. A partir de uma ecologia da mente, Bateson aponta para a conexão
de mundos humanos e mais que humanos em uma unidade entre mente e
natureza, uma “continuidade entre os mundos da informação e da energia
(definidos por uma mesma ontologia da diferença)” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2010, p. 152).
Sobre este ponto, consideramos interessante a hipótese de Margulis
e Sagan (2002, p. 242-243):
o pensamento, como a vida, são a matéria e a energia fluindo; o corpo é seu
“outro lado”. Pensar e ser são a mesma coisa. Quando se aceita essa
continuidade fundamental entre corpo e a mente, o pensamento perde
qualquer diferença essencial de outros fenômenos fisiológicos e
comportamentais. Pensar, tal como excretar e ingerir, resulta de interações
387
vivas da química de um ser. O pensar do organismo é uma propriedade
emergente da fome, movimento, crescimento, associação, morte programada e
satisfação celulares. Antigos micróbios encarcerados, mas sadios, descobrem
alianças a ser feitas e comportamentos a praticar. Se o que se chama
pensamento resulta dessas interações celulares, talvez os organismos em
comunicação, todos eles pensando, possam levar a um processo maior do que
o pensar individual. (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 242-243)
A ideia não é reduzir o pensamento a fenômenos fisiológicos, mas
dar ao pensamento um lugar que faça sentido no planeta, não dentro de
um cérebro, mas como parte integrante de um sistema complexo e
dinâmico. Isto provoca a buscar um filosofar complexo e dinâmico em
reciprocidade com o os devires da Terra, um filosofar como um organismo.
Que possibilidades despertam para pensar o ensino de filosofia a partir
dessa cosmoperspectiva ecosófica?
Nora Bateson
33
, filha de Gregory Bateson, afirma que seu pai
gostava de “Celebrar como as coisas se juntam e como mudam e se movem
e aprendem” (DEMARCHI et al., 2013, p. 280). Ela traz algumas
reflexões importantes para entender o pensamento de Bateson sobre a
aprendizagem e a educação, ressaltando o movimento de aprendizado
constante nas relações com seu pai: alguns pais jogam beisebol com seus
filhos e ele gostava de jogar com ideias e ir para a natureza junto comigo,
olhar as salamandras ou a vida existente debaixo de um tronco de árvore e
falar sobre isso. [...] Ele valorizava as ideias e o pensamento das pessoas que
tinham outro contexto mental (DEMARCHI et al., 2013, p. 273).
Refletindo sobre como as relações de conhecimento se dão no âmbito da
33
As referências que se seguem foram retiradas de uma entrevista de Nora Bateson sobre o seu
documentário “An ecology of mind (2011) em que apresenta pontos-chaves do trabalho de seu pai.
388
família e contrapondo com a experiência que tinha com seu pai, Nora
Bateson comenta:
é interessante para mim ver que tantos adultos sentem que têm que se
comportar como se soubessem tudo o que as crianças deveriam querer
aprender. Para mim, isso parece muita hipocrisia. Se você quer que seus filhos
aprendam alguma coisa, a melhor maneira de fazer com que aprendam é
mostrar a eles que você está aprendendo, certo? Porém, de algum modo, nós
perdemos isto, ou nunca o tivemos, ou temos uma ideia de nossa autoridade e
respeito que se contrapõe a este tipo de comportamento. [...] Então, quando
as pessoas dizem: “escutem seus filhos”, a gente meio que tem um jeito de
escutar que não é realmente tão honesto, é condescendente, paternalista!
(DEMARCHI et al., 2013, p. 274-275)
Nora Bateson traz algumas observações relevantes para refletirmos
acerca das relações de conhecimento. Em geral, tanto nas relações
familiares quanto nas relações escolares, o conhecimento está muito
vinculado à questão da autoridade, de maneira que tanto os pais quanto
os/as/es docentes escutam filhos e estudantes de forma “paternalista”,
através de uma relação desigual, na qual o pensamento do/a/e outro/a/e
não é levado em conta verdadeiramente. Diferentemente, Nora Bateson
retrata o cotidiano com seu pai como um jogo de “pensar sobre as coisas
de maneiras diferentes e olhar as coisas a partir de diferentes ângulos. Na
escola, o objeto do jogo era descobrir o que o/a professor/a queria, e repeti-
lo(DEMARCHI et al., 2013, p. 276). Refletindo sobre a educação de
seus próprios filhos, Nora Bateson fala:
uma boa maneira de ver a educação é pensar que ali, dentro da visão holística,
existem linearidades. Dentro do não aprendizado ou pensamento existem
linearidades, só que não é a visão completa, do todo. Para mim, o importante
389
era que eles tivessem suficientemente a experiência de olhar para o todo, e que
então pudessem utilizar as partes, os pedaços, mas teriam um lugar maior para
colocá-los. Eles saberiam que o que estavam aprendendo na escola eram partes
de algo maior. (DEMARCHI et al., 2013, p. 277)
A fragmentação dos saberes levava Bateson a perceber a escola
como um espaço que poderia “estragar a mente” (BATESON apud
DEMARCHI et al., 2013, p. 276) de suas filhas, pois estimulava a
estabelecer fronteiras rígidas e não interconexões. Bateson como
exemplo as aulas de gramática que fragmentam palavras em classes ao invés
de apontar para as relações entre termos. Um predicado é uma palavra que
tem uma certa relação com substantivos e verbos e não apenas o nome de
algo fixo. Além disso, Nora Bateson destaca que Ele pensava que as
disciplinas e a separação das disciplinas eram algo monstruosamente brutal,
para toda a noção de como a vida funciona e como as coisas se organizam,
seja uma família, ou um lago, ou um sistema político ou uma floresta, ou
uma estrutura cultural” (DEMARCHI et al., 2013, p. 280-281).
Exemplificando, Nora Bateson comenta que se for pedido a uma
universidade para construir uma selva, o resultado serão departamentos
separados de répteis, pássaros, árvores e águas, não considerando o
contexto dinâmico e integrado.
A maneira como o ensino formal trata o conhecimento é contrária
aos processos que envolvem a vida no planeta. Ainda que o estudo e a
análise das partes sejam importantes, diversas vezes o que falta é que em
algum momento tais análises retornem para o contexto em que tais partes
se relacionam. Refletindo sobre o sistema formal de ensino, Nora Bateson
questiona:
390
que estamos ensinando a nossas crianças? Penso que ao invés de ensiná-las a
descobrir um leque de possíveis respostas, ensinamos a elas apenas como
descobrir a resposta certa. Estes limites não concedem espaço para o
aprendizado mútuo, amplamente integrado, que pode acontecer dentro de um
contexto de improvisação. Isto exige uma interdependência entre cultura,
natureza, família, amigos, trabalho, seu corpo, a biologia, etc, exigindo que
tudo isso se encaixe e se envolva reciprocamente. Como o envolvimento deve
ser integrado, são nossas percepções e classificações que nos impedem de nos
envolvermos no processo de improvisação.
Vejam só: isto, o que está ao nosso redor, vai continuar a evoluir e se processar,
com ou sem a nossa presença (risos). Então, tem a ver com nossa habilidade
para percebermos o que está ao nosso redor. Esta habilidade para percebermos
estes movimentos evolutivos faz parte daquela epistemologia que possibilita a
comunicação com as crianças, os cachorros, os peixes, os corais. Quero dizer,
enfim, que não deixemos de apreciar a beleza de todas essas formas de
comunicação. (DEMARCHI et al., 2013, p. 282)
Os apontamentos trazidos por Gregory e Nora Bateson convidam
a uma epistemologia orgânica e sistêmica que percebe as conexões entre os
seres e os saberes. Nesse sentido, a comunicação está vinculada a uma
percepção mais afinada e sintonizada com o contexto e não com processos
abstratos de uma mente metafisicamente isolada. A partir de tal
cosmoperspectiva, a comunicação pode ser mais integrada, não apenas com
crianças e estudantes em geral, mas também com os cachorros, peixes,
corais, caranguejos, árvores, ervas, fungos e bactérias.
Pensar um ensino sensível, através do que nos inspirou Benites e
Takuá, aponta para uma relação atenta com os seres que nos compõem e
com os outros mundos com que coexistimos. Nesse sentido, focar em
cosmopercepções é mais adequado para entender uma relação sensível com o
entrecruzamento de mundos próprio das escolas, com a diversidade
humana e mais que humana da vida. Nesse viés, a aula de filosofia pode se
391
transformar em um convite para perceber padrões, modulações,
frequências, diferenças e conexões da vida.
Alik Wunder nos dá um exemplo de uma possibilidade de perceber
outros padrões a partir de um olhar sensível para o contexto. Através de
seu trabalho com fotografia juntamente aos Kariri-Xocó, Wunder (2020,
p. 7) relata: “já conhecendo as fortes relações dos Kariri-Xocó com o
mundo vegetal, perguntei: “E se vocês fotografassem aquilo que as plantas
veem? E se nos mostrassem nas fotografias o mundo na perspectiva de visão
das plantas?””. Embora para o mundo ocidetalocêntrico tal atividade não
faça sentido, para os Kariri-Xocó, ela está de acordo com as relações que
estabelecem com o mundo vegetal, como Wunder (2020, p. 15) explica:
para os Kariri Xocó as árvores escutam sonhos, dão conselhos, castigam e
curam, deixam conhecer seu mundo vegetal em um modo de conversação
aberta... Há uma fronteira que se abre em momentos especiais: momentos de
necessidade, de doença, de crises, enquanto se fuma o pawi, no ritual... e no
ponto mais forte desta conversação, os cantos são dados pelas árvores como um
ensinamento que vão além do uso material para a realização de curas. Há uma
comunicação que se faz nesta zona fronteiriça, desta subjetividade ambivalente
gente-planta que se faz em sonho, em intuição, no momento que as linhas da
pintura corporal aparecem nos corpos... Os corpos são a todo tempo riscados
com a fruta do jenipapo e fazem do corpo um devir-planta, as marcas das
pinturas não significam, instauram devires na pele: o devir cobra, devir-
tartaruga, linhas que abrem zonas de vizinhança com outros reinos. Parece
haver nas várias expressões da arte Kariri-Xocó, na sua arte material, nos cantos
um devir vegetal que se dá nesta fronteira aberta entre o que chamamos de
humano e inumano. Os indígenas nos trazem imagens de uma natureza que
passa longe de ser apenas fonte de recursos. As ervas, as árvores e a floresta são
povoadas de intencionalidades, sujeitos, seres, espíritos que cuidam há milhares
de anos de tudo o que existe. Devires que proliferam alegria, germinam e
ramificam modos outros de estar no mundo, outras formas de pensar e criar.
(WUNDER, 2020, p. 15)
392
Para os Kariri-Xo, as plantas exercem ações potentes “em seus
processos de criação, em suas artes, em seus cantos, em suas práticas de
cura” (WUNDER, 2020, p. 09). Durante o processo de fotografar, “As
memórias também encontraram sons e cores para árvores, as árvores
cantaram música. Fomos nos juntando às árvores, escutando as folhas e
elas nos ouvindo atentas, o que contávamos delas” (WUNDER, 2020, p.
09). A partir desse exercício e das fotografias produzidas, Wunder aponta
para um devir-planta (2020, p. 08) no qual a percepção do mundo não
está restrita à visão.
A atividade proposta por Wunder estimula conexões e uma
percepção sensível. Podemos entender tanto a proposta de Bateson quanto
a de Wunder como experiências de sincronização entre mundos, nas quais
a observação atenta faz emergir conceitos e conexões agregadas às formas
de vida que nos rodeiam e permeiam. Entender o conhecimento como
uma ecologia organismos-ambiente na qual o que agrega e faz emergir a
vida é mais importante, implica em uma filosofia que se ocupa das
responsabilidades que nos envolvem. Ao contrário de competências gerais
vinculadas aos interesses dominantes, uma filosofia ecológica evoca nos
responsabilizarmos pelos contextos e cultivarmos os hábitos necessários
para agir de modo mais conectado com ele, sem ignorar os saberes
hegemônicos e contra-hegemônicos socialmente produzidos, que se
constituem de ferramentas potentes desde que tenhamos a compreensão
do contexto em que emergem.
A percepção da reciprocidade organismos-ambiente que coexistem
e co-evoluem está intrinsecamente relacionada a uma profunda
reciprocidade entre o modo de ser e estar no mundo, como explica
Grosfoguel (2016b, p. 137, tradução nossa):
393
a reciprocidade implica uma profunda revolução nos modos de vida. Viver no
princípio da reciprocidade implica uma troca justa nas relações entre seres
humanos e nas relações entre humanos e não humanos. Se a ecologia planetária
nos dá água, comida, ar etc. para a vida, o princípio da reciprocidade implica
em devolver ao cosmos a reprodução do que dele tiramos. Extrair sem retornar
é o princípio da destruição da vida. Extrair tomando o cuidado de reproduzir
a vida e devolver o que é extraído é um princípio cosmológico completamente
diferente. Isso implica uma consciência ecológica planetária que não existe sob
as estruturas de dominação da civilização ocidental. (GOSFOGUEL, 2016b,
p. 137, tradução nossa)
Grosfoguel entende tal reciprocidade ecológica, enquanto
princípio cosmológico diríamos cosmopolítico como a alternativa
descolonial, haja vista que a imposição do mundo globalizado explorador
é o próprio cerne da empresa colonial e seus processos de destruição do
mundo. Reciprocidade também implica em um mundo em que relações
sejam entendidas de modo situado. Em um viés semelhante, a indiana
Gayatri Chakravorty Spivak (2003) acredita que precisamos nos educar
para uma percepção menos globalizada e mais permeada por uma
planetariedade. A globalização é a
imposição do mesmo sistema de troca em todos os lugares. Na malha do capital
eletrônico, alcançamos aquela bola abstrata coberta por latitudes e longitudes,
recortada por linhas virtuais, outrora o equador e os trópicos e agora desenhada
pelas exigências dos Sistemas de Informação Geográfica. [...] O globo está em
nossos computadores. Ninguém mora lá. Isso nos permite pensar que podemos
ter como objetivo controlá-lo. (SPIVAK, 2003, p. 72-73, tradução nossa)
O mundo do globo é das corporações, no qual o foco são
especialmente as relações de mercado. Como reflete Alyne Costa (2019, p.
64) a partir do trabalho de Latour, a globalização deveria significar a
394
multiplicação de perspectivas, um aumento nas variedades, seres, pessoas,
etc. No entanto, globalizar implica em exatamente o contrário disso na
medida em que significa uma única visão, absolutamente provinciana,
proposta por apenas algumas pessoas, representando um número reduzido
de interesses, limitada a alguns instrumentos de medição, a alguns padrões
e formulários” (COSTA, 2019, p. 64).
Por outro lado, a planetariedade consiste na conjunção de seres que
se movimentam e se inter-relacionam localmente com negociações,
disputas e alianças simbióticas. A partir da planetariedade, Spivak evoca
outra forma de encarar nossa “casa” cósmica. Ao invés da universalidade
global, cultivar a comunalidade planetária na qual as diferenças e as relações
entre elas são importantes. O globo é uma versão desencantada do mundo,
a mesma que Russel Means e Ailton Krenak denunciam estar no cerne da
destruição do planeta. O próprio Bateson, por seu olhar encantado pela
natureza e seus organismos, teve seu pensamento associado ao misticismo
e à poesia como forma inútil para o pensamento lógico. A ciência
tradicional objetifica e desencanta o corpo e o mundo, faz do conhecimento
algo estático e que, por isso, pode produzir consequências desastrosas a
partir de iniciativas de controlar a dinamicidade da vida e do planeta.
Como saída para a ciência e as humanidades desencantadas, Luiz
Antonio Simas, Luiz Rufino e Rafael Haddock-Lobo
34
apontam para uma
filosofia popular brasileira que tem como filósofos/as/es Exu, Preto Velho,
Zé Pelintra, Maria Padilha, Pombas-giras, Jurema, malandros, sambas-
enredos, entre outros/as/es. Rufino (2019, p. 68) identifica o colonialismo
como um “projeto de mortandade” que desencadeou um processo
34
Os conceitos que se seguem foram retirados de três obras: Fogo no mato (2018) de Luiz Antonio Simas
e Luiz Rufino, Pedagogia das Encruzilhadas (2019) de Luiz Rufino e Arruaças: uma filosofia popular
brasileira (2020) de Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino e Rafael Haddock-Lobo.
395
esquizofrênico que produz desencante. O desencante pode ser entendido
como a percepção de isolamento, desconexão, desumanização, o processo
de tornar tudo em coisa na engrenagem capitalista, transformando as
pessoas em mortos-vivos. O estado de adoecimento decorrente do projeto
colonial que produz “desesperança e acomodação nos afetados por sua
lógica” é entendido pelos autores como um quebranto colonial, que leva a
um “total desmantelo e desconexão com a natureza, ou seja, com a própria
vida” (SIMAS et al., 2020, p. 33).
Os autores sugerem que narrar outras histórias é necessário para o
rompimento com essa lógica adoecedora, pois a “história única é um
processo de “aquebrantar a diversidade” (SIMAS et al., 2020, p. 36).
Sincopar e gingar essa história única pode abrir caminhos para esculhambar
“as pretensões do edifício de desenvolvimento desencantado” (SIMAS et
al., 2020, p. 77) do Ocidente. Tal edifício produz danos nas “diferentes
esferas da vida, no imaginário, nas subjetividades e na cognição” (SIMAS
et al., 2020, p. 170). Dessa forma, os modelos de educação que se baseiam
nesse edifício do desenvolvimento desencantado produzem adoecimento,
conformando as pessoas a sentirem o mundo em um tom único
“normatizado pelas gramáticas enfadonhas do desencanto” (SIMAS et al.,
2020, p. 32). Isso permite compreender tais modelos educacionais como
necropolíticas da existência e nos provoca a pensar: como a educação pode
dar vida e não morte a imaginários, subjetividades, epistemologias,
corpos, etc.? Na perspectiva expressa por Rufino (2019), a educação
precisa se voltar para a vitalização da existência, produzindo encantamento
e alargamento das possibilidades ao “recuperar sonhos, pintar outros
sentidos, alargar subjetividades e frear o desencanto” (SIMAS et al., 2020,
p. 97).
396
Ao narrarem outras histórias a partir de outros filosofares, os
autores apontam para outras possibilidades de conexões por meio das artes
das amarrações e cruzos conceituais das macumbas. Na cosmoperspectiva
trazida por eles, a macumba é ciência encantada e amarração de múltiplos
saberes (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 8), de maneira que o/a/e
macumbeiro/a/e é definido como aquele/a que:
admite as impurezas, contradições e rasuras como fundantes de uma maneira
encantada de se encarar e ler o mundo no alargamento das gramáticas. [...]
Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos
e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor
maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto, em meio às
doenças geradas pela retidão castradora do mundo como experiência singular
de morte. (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 03)
Nesse sentido, o/a/e macumbeiro/a/e rompe com as obsessões pela
pureza tanto da moral quanto das ideias. As macumbas emergem no
contexto da encruzilhada entre mundos imposta pelo colonialismo e a
modernidade ocidental. Desse modo, a ciência encantada das macumbas
possibilita percepções mais encantadas sobre o mundo e não dominadoras,
devido sua característica de emergir nas frestas. Como vimos com Saffioti,
o colonialismo atou muitos nós. Um dos mais bem atados foi o racismo.
Os povos sequestrados no continente africano, submetidos a esta
encruzilhada, produziram o que Simas e Rufino (2018) chamam de
culturas de síncope para romper com a apologia do mundo monológico e
racista. Tais culturas subvertem ritmos, rompem constâncias, acham
soluções imprevisíveis e criam maneiras imaginativas de se preencher o
vazio, com corpos, vozes, cantos” (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 15).
397
Nas frestas, fronteiras e vazios do mundo, as culturas de síncope
criam múltiplas maneiras de driblar as situações. Em música, a síncope é
um som emitido em um local inesperado do tempo. Entendendo que cada
música é naturalmente estruturada em um compasso com tempos fortes e
fracos que ditam seu ritmo, a síncope poderia ser definida como um som
forte em um tempo fraco da música, algo como um vazio preenchido por
um som surpreendente. Sem a síncope não existiria música brasileira tal
como conhecemos e nem jazz. Em geral, podemos considerar a síncope
como uma contribuição de matriz africana à música mundial, criando
ritmos inapreensíveis. Sendo inapreensíveis, explicações como a que
tentamos oferecer aqui são insuficientes para entender a síncope, bem
como as culturas de que estamos falando que não se submetem às
normatizações e explicações fixas.
Em meio às opressões, os povos de ancestralidade africana, vistos
desde sempre pelo homem moderno como gentes descartáveis, “sobras
viventes” (SIMAS & RUFINO, 2018, p.110), se transformaram em
supraviventes, isto é, sujeitos que “capazes de driblar a própria condição de
exclusão (as sobras viventes), deixaram de ser apenas reativos ao outro
(como sobreviventes) e foram além, inventando a vida como potência
(supraviventes)” (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 110). É no contexto dos
conflitos, negociações, disputas e alianças feitas nas encruzilhadas dos
mundos que emergem novas formas de viver para além do mundo
universal hegemônico.
Na cosmoperspectiva dos autores, as culturas de síncope são
possíveis devido a Exu, “que dá o tom dos sincopados que quebram as
instâncias normativas e nos propõem outros caminhos” (SIMAS &
RUFINO, 2019, p. 19). Exu é o “responsável pelas diferentes formas de
comunicação, é ele o tradutor e linguista do sistema mundo” (SIMAS &
398
RUFINO, 2018, p. 17). Assim como o xamã, Exu é tradutor cósmico.
Ele é o ser das encruzilhadas, “o lugar das incertezas, das veredas e do
espanto de se perceber que viver pressupõe o risco das escolhas” (SIMAS
& RUFINO, 2018, p. 20). Assim, a encruzilhada desconforta, Exu
encanta o mundo transformando todas as certezas em dúvida, por isso,
produz tanto medo para o pensamento hegemônico que busca demonizá-
lo de todas as formas. Exu, como o princípio polifônico e indisciplinável,
é o senhor dos caminhos, conferindo movimento e ritmo para as
existências. Ele é o movimento, “É ele a liga das existências, o devir”
(RUFINO, 2019, p. 130), “ao colidir com algo, se transforma em um
terceiro elemento, [...] um entre” (RUFINO, 2019, p. 53).
A encruzilhada nos ensina que não há somente um caminho; a
encruzilhada é campo de possibilidades(SIMAS & RUFINO, 2018, p.
117), contudo, se a encruzilhada significa dúvida, também significa um
campo de possibilidades inacabadas. Exu, um devir que nos remete ao
filosofar semeando dúvida, soterrando certezas e promovendo outras lógicas
“nos desafia, assim, a serpentear, como a cobra coral de três cores que lhe
pertence, as entranhas do mundo” (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 113).
Nesse sentido, as encruzilhadas são as frestas, síncopes, gingas e dobras dos
tempos, “Onde se opera o encante, opera o movimento contínuo e
inacabado da vida” (RUFINO, 2019, p. 68). Contudo, é relevante a
“credibilização da encruzilhada como disponibilidade conceitual que
aponta outras possibilidades de problematização da vida, da arte e dos
conhecimentos” (RUFINO, 2019, p. 66), ou seja, que traz outros
filosofares, outros problemas, outros conceitos, outras cosmopercepções
sobre a existência.
Nesse viés, Simas e Rufino propõem uma pedagogia das
encruzilhadas a partir de uma filosofia exúsiaca, ligada à arte das amarrações
399
entre os saberes praticados e os cruzos e rasuras conceituais como “táticas
fundamentadas nas culturas de síncope e que esculhambam as
normatizações” (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 9). Uma cosmoperspectiva
orientada pelo cruzo como encante conceitual aponta para o saber e o “ser
em cruzo contínuo” (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 99). Tal
cosmoperspectiva tem como ponto de partida “assumir suas potências e
inacabamentos teórico-metodológicos como fontes para repensar o
próprio campo, e também como possibilidade de pensar e de dialogar com
outros” (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 23). Quem determina um
conhecimento como superior confessa desconhecer os mistérios e segredos
da vida. Praticar o cruzo tem a ver com explorar as fronteiras, credibilizar
gramáticas produzidas por outros movimentos e reconhecer o
inacabamento da nossa própria percepção. Na epistemologia das macumbas,
a condição de não saber é necessária para o que virá a ser praticado. Essa
dinâmica se inscreve na perspectiva de uma forma de educação que é
compreendida como experiência, na bricolagem entre conhecimento, vida e
arte. O conhecimento é compreendido não como acúmulo de informação, mas
como experiência. Assim, o que se detém enquanto saber está sempre
inacabado e em aberto diante das circunstâncias e das formas de relação que
serão traçadas. [...] Os cruzos entre saberes e ignorâncias são fundamentais para
que os mesmos possam se manter abertos e expostos a outros movimentos,
encantando-se em novas experiências (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 35-36)
A pedagogia que emerge da encruzilhada é um saber sempre
inacabado, aberto às transformações, que se faz em um processo contínuo
de dúvida através de amarrações que emaranham e ressignificam sentidos,
tornando a existência encantada por enigmas. É no inacabamento e na
imprevisibilidade que se produzem os encantes, isto é, a prática/rito de
400
potencialização dos princípios que inferem mobilidade” (SIMAS &
RUFINO, 2018, p. 25). Lançar-se na encruzilhada da alteridade significa
vivenciar as diferenças, não apenas como compreensão, exigindo sair dos
nossos confortáveis sofás epistemológicos (SIMAS & RUFINO, 2018).
O conceito de amarração que permeia a ciência encantada das
macumbas traz mais uma dimensão em trançado pelos cruzos.
Amarração é o efeito de, através das mais diferentes formas de textualidade,
enunciar múltiplos entenderes em um único dizer. Assim, a amarração jamais
será normatizada, porque é inapreensível. Mesmo que o enigma lançado seja
desamarrado, esse feito só é possível através do lançamento de um novo
enigma, uma nova amarração. Ou seja, o seu desate é sempre provisório e
parcial, uma vez que a leitura que o desvenda pode vir a ser apenas parte da
construção do enigma e só é possível a partir de um novo verso enigmático que
se adicione ao elaborado anteriormente. Neste sentido, a noção de amarração,
assim como a macumba, compreende-se como um fenômeno polifônico,
ambivalente e inacabado. (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 09-10)
Desse modo, as amarrações são mistérios que motivam a ficar com
os problemas, continuar o movimento não binário e incorporado por
muitos sentidos possíveis. Ao desamarrarmos, atamos de outra maneira,
costurando redes de sentidos inacabados, e, assim, somos amarrados
também nos encantes do mundo. O encantamento que nos amarra
convida a decifrar o enigma, no qual novos pontos são amarrados. Do
mesmo modo, também se trata de reconhecer o inacabamento das
explicações que podemos oferecer sobre o mundo, sempre parciais e em
contínuos cruzos, que preserva o encantamento, que mantém dinâmicos os
problemas e as cosmopercepções que emergem deles.
401
Apresentando a Jurema
35
como ciência encantada que permite
fugir da lógica da verdade unívoca, os autores a diferenciam da ciência
dominante: “Enquanto o modo dominante é atado por rigores que o
obsidia com a tara por uma verdade única, a ciência da Jurema escapa para
as vias do encantamento. Ser encantado é, também, ser inapreensível a uma
lógica que reduza o fenômeno a uma única explicação” (SIMAS &
RUFINO, 2018, p. 80-81). Isto em certo sentido explica o medo do
transe, típico do saber hegemônico. O transe é “o movimento e cruzo por
outras perspectivas de mundo, outros princípios ônticos e epistêmicos”
(SIMAS & RUFINO, 2018, p. 101).
Todo e qualquer ato criativo só é possível a partir do transe como
disponibilidade de travessia. A razão intransigente é aquela que nega a
mobilidade e os cruzos das experiências e das tessituras de saber. Percebe
qualquer possibilidade fora de seu eixo como algo a ser combatido. Por isso, as
razões intransigentes são avessas ao transe como também o significam como
possessão, descontrole e irracionalidade. Contrário às mobilidades, esse modelo
de razão criva o transe como uma perda de domínio do ser, que para ser salvo
deve expulsar a experiência do movimento em troca da segurança da fixidez.
(SIMAS & RUFINO, 2018, p. 98-99)
A obsessão pelo controle e o medo do movimento podem ser
entendidos como cerne da demonização do transe nas culturas ocidentais.
No entanto, tal busca por controle é uma ilusão que não considera a
dinamicidade da vida e dos corpos no mundo. Os autores apresentam o
corpo também como uma encruzilhada porque “é o registro do ser no
mundo, e também do mundo no ser” (RUFINO, 2019, p. 136). Se para
“o modelo de saber que tem cabeças e corpos seguindo para caminhos
35
Com a Jurema é feita uma bebida sagrada que faz parte do culto do catimbó.
402
distintos, o corpo é meramente campo a ser disciplinado e normatizado
sobre a vigilância do pecado” (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 90-91), a
partir do devir associado à Maria Padilha, ao invés de expulsão, os autores
falam em libertar demônios. Simas e Rufino chamam de padilhamentos dos
corpos o que encanta e destrava os nós das sabedorias do corpo,
transgredindo a disciplinarização. Eles apontam que as concepções
moralizantes acerca da figura da Maria Padilha têm a ver com a monológica
ocidental e seu maniqueísmo, de maneira que o padilhamento dos corpos
significa um processo de encante das potências do corpo.
As macumbas amarram e encantam mundos, e por vir das frestas
não desencantam outros modos de ser, é um saber cruzado, não
dicotômico. Portanto, podemos entender as macumbas como uma rede
complexa de sabedorias cosmopolíticas que, a partir da cosmoperspectiva
da encruzilhada de mundos, permitem pensar uma relação ecológica entre
as diferenças, de modo não hierárquico e nem antropocêntrico: “Nos
saberes assentados nas macumbas brasileiras, ser bicho, gente, leito de rio,
pedreira ou variadas coisas ao mesmo tempo é uma questão de perspectiva.
Assim, de nenhuma forma uma possibilidade é excludente da outra”
(SIMAS & RUFINO, 2018, p. 28). As macumbas deslocam o ser humano
para a intersecção com outras presenças interligadas. A prática do cruzo
contribui para relações ecológicas/encruzadas entre as diversas práticas de
conhecimento produzidas e circuladas neste mundo. Entender as ecologias
como cruzamentos de percepções e saberes não fixos e interligados permite
a articulação entre ética, política e estética que estamos propondo neste
capítulo.
Rufino (2019, p. 40) defende entender a educação como o
intercruzamento de conhecimentos que coexistem no mundo”. Nessa
perspectiva, a educação é vista como uma amarração entre múltiplos
403
entenderes parciais sobre o mundo, desatando o “nó que nos enlaça
incutindo educação/cultura como modo de civilidade” (SIMAS &
RUFINO, 2018, p. 74) e propondo experiências cruzadas nas quais outras
possibilidades de existências emergem, “no cruzo das flechas atiradas por
outras sabedorias, produtoras de efeitos de cura, encanto, vigor e abertura
de caminhos” (SIMAS & RUFINO. 2018, p. 75). Como explicam Simas
e Rufino (2018, p. 76),
o projeto educacional normalmente foi pensado na “plantation Brasil” como
um ministério curricular da agenda política colonial, enquanto o projeto
cultural abarcado pela Nação seria o de um ministério dos modos civilizatórios
brancos-machos-cristãos, em detrimento do primitivismo animista-fetichista.
(SIMAS & RUFINO. 2018, p. 76)
Eles convidam a aprender com Gao, uma árvore de origem africana
que vive nas encruzilhadas entre a água e a secura. Gao floresce quando
tudo está cinza e se recolhe quando tudo floresce, ensinando a força e a
beleza da diferença como possibilidade de lidar com o acinzamento do
nosso mundo.
O excesso de explicações desencantou o mundo. A lógica
normativa e maniqueísta que nos é imposta, produz seres assombrados pelo
desencanto, incapazes de perceber os dribles e gingas das culturas. Os
autores nos convidam a sair dos sofás epistemológicos confortáveis “em que
morreremos tristes e conscientes da nossa suposta superioridade, e nos
lançando na encruzilhada da alteridade, menos como mecanismo de
compreensão e mais como vivência compartilhada” (SIMAS & RUFINO,
2018, p. 76-77).
404
Entender nosso continente como uma encruzilhada também pode
apontar uma vantagem. Se os dominadores não conhecem nossas filosofias,
mas nós somos obrigados/as/es a aprender as deles, ao cultivarmos as nossas
filosofias, um pluriverso de saberes em cruzo e possibilidades se abre,
ignorado pelo sujeito narcisista. Como afirmam os autores, a transgressão
do cânone “não é negá-lo, mas sim encantá-lo, cruzando-o a outras
perspectivas” (2018, p. 15). A partir disso, pensamos uma filosofia que se
faz nos entrecruzamentos encantados entre corpos e mundos e que não se
faz ao ouvir explicações e repeti-las.
Simas e Rufino trazem como exemplo um mestre convidado a
ensinar jongo em uma escola, a qual, embora tivesse um local de terra
adequado para o jongo, o mestre era empurrado frequentemente para
dentro da sala de aula: “como se faz um negócio que é redondo em um
lugar que é quadrado?” (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 73). Esta é a
pergunta que precisa ser feita: como criar conexões em um espaço
quadrado e que isola as pessoas? Como encantar esses espaços quadrados?
Como cipó serperteando entre suas frestas, é preciso criar linhas de fuga,
enfrentando os enigmas das carteiras epistemológicas nas quais somos
fragmentados/as/es e hierarquizados/as/es. Rufino (2020, p. 115-116)
define encantamento da seguinte forma:
encantamento como disponibilidade e atitude de inventar mundos. Nessa
levada, o encantamento está ligado ao exercício e ao efeito da descoberta do
diferente, respeito e aprendizagem com as coisas que nos afetam e tecem nossas
experiências. O encantamento estaria diretamente conectado a uma atitude
brincante e despretensiosa que expande possibilidades, pois faz música com as
imprevisibilidades que tanto aperreiam o modo adulto de ser. [...] cavar outras
formas de ser é cultivar o terreno para frutificação de outros sentidos e sonhos.
(RUFINO, 2020, p. 115-116)
405
Encantar-se é inventar mundos coletivamente, fazer música com
os sons disponíveis, é se responsabilizar pelo movimento que produz vida.
Uma filosofia que encanta o mundo é como a amarração, um dizer com
múltiplos entenderes que, por meio de problemas-enigmas, envolve e
encanta a inventar mundos. Conceitos amarrados produzem o encantado
movimento dinâmico da vida.
A filósofa Marília Mello Pisani (2020) nos levou para um texto do
zapatista Subcomandante Insurgente Marcos e uma reflexão acerca do
narcisismo. Ao andar pela Cidade do México, Marcos reflete que nesta
cidade “ninguém vê a ninguém” (2017, p. 53, tradução nossa).
“Esta cidade está doente”, escreve-me Durito, “está doente de solidão e medo.
É um grande coletivo de solidões. São muitas cidades, uma para cada um dos
que nela habitam. Não é uma soma de angústia (conhece alguma solidão que
não é angustiante?), mas de um poder; cada solidão se multiplica pelo número
de solidões que a rodeiam. É como se a solidão de cada um entrasse numa
daquelas “Casas dos Espelhos” que estão nas feiras da província. Cada solidão
é um espelho que reflete a outra solidão que, como um espelho, reflete nas
solidões”. [...] “Esta cidade está doente. Quando sua doença entrar em crise,
será sua cura. Essa solidão coletiva, multiplicada por milhões e potencializada,
acabará por se encontrar e encontrar o motivo de sua impotência. Então, e só
então, esta cidade perderá o cinza que a veste e será adornada com aquelas fitas
coloridas que abundam na província. Esta cidade vive um jogo de espelhos,
mas o jogo de espelhos é inútil e estéril se não houver um cristal como meta.
Basta entender e, como não sei quem disse, lute e comece a ser feliz...”
(MARCOS, 2017, p. 53-55, tradução nossa)
Em paralelo podemos refletir que a alucinação narcisista é um
espelho antropo-euro-falo-ego-capital-logocêntrico que distorce e desencanta
quem somos, diferentemente do abebé de Oxum que permite perceber a si
406
e ao outro que pode ser o inimigo à espreita . Os espelhos narcisistas
“são para ver deste lado e os cristais para ver o que está do outro lado”
(MARCOS, 2017, p. 53). Em observação a isto, o Subcomandante
Insurgente Marcos se pergunta “Que, imagem do real e do imaginário,
busca, em meio ao espelho, um cristal para romper” (MARCOS, 2017, p.
53). Tais reflexões provocam a transformar espelhos em cristais ou abebés,
que possibilitam perceber o outro, romper com o lado em que fomos
enquadrados. Quando investigamos sobre os nós que permeiam o
pensamento, vemos a necessidade de desmodernizar a maneira como
percebemos o mundo e a nós mesmos/as/es. Se ser sujeito é a navalha,
deixemos o sujeito um pouco de lado. O ser enquanto ser do pensamento
ocidental hegemônico não faz sentido nessa “lógica” poética e metafórica.
A ecologia mental pode ser entendida como uma amarração,
cruzamento entre mundos humanos e mais que humanos, ligando e
encantando os organismos. O que nos ata não é a lógica hegemônica. A
ecologia da mente significa entender o pensar para além da lógica
hegemônica, como uma poética da existência de corpos encantados, um
pensamento coletivo em redes mais que humanas. Nos termos que
refletimos aqui, uma ecosofia da mente tem a ver com entender o
pensamento de maneira não solipsista, mas também em entender a
percepção para além dos compartimentos disciplinares, suas lógicas e seus
desencantamentos. A perspectiva ecosófica aponta para conexões,
continuidades, emaranhados, paisagens polifônicas, amarrações, cruzos, e
não para solipsismos, compartimentos, áreas. Convida a refletir o que liga
os saberes e o que nos liga com a vida neste planeta e a cultivar hábitos que
possibilitem viver e morrer bem em tempos urgentes.
Compreender a vida neste planeta tem a ver com afinar a
percepção, construir “hábitos de observação” (TSING, 2019, p. 153),
407
trabalhar com assembleias polifônicas, “conjuntos de coordenações através
da diferença” (TSING, 2019, p. 151), na qual se reúnem ritmos e melodias
diversas que criam mundos mais que humanos em diferentes modulações.
O ensino de filosofia em uma cosmoperspectiva ecosófica se dá em
continuidade entre o mental, o ambiente e a sociedade, de modo que as
aulas são espaços de cultivo de outras percepções e modos de ser em
sociedade por meio de assembleias multiespecíficas em que somos
convidados/as/es a refletir sobre as relações que cultivamos. No sentido que
estamos propondo nesta seção, os nós dos pensamentos consistem nos elos
e costuras entre os organismos e seu ambiente.
5.1.2 Nós dos saberes: aspectos de uma possível ecologia das
epistemologias, sabores e filosofares
A partir da ecosofia, faz sentido entender o ensino de filosofia como
um espaço de recomposição das subjetividades, da sociedade e do
ambiente. O filosofar como um com-por com elementos heterogêneos, sem
fundi-los, mas mantendo suas singularidades e negociando diferenças,
pode ser experienciado através de processos de recom-posição de mundos.
Isso permite vislumbrar um ensino de filosofia ao mesmo tempo
compostista, que decompõe e regenera, e com-posicionista. Com-posição
porque tem perspectiva enunciada, que não se oculta, tem envolvimento,
engajamento, emaranhamento com o contexto, não oculta suas raízes.
Boaventura de Sousa Santos (2010) colabora para o que
discutiremos aqui, a partir de sua proposta de um pensamento ecológico
que não compactua com as fronteiras rígidas do pensamento moderno
408
ocidental, consequências do abismo entre os saberes europeus e os demais.
Santos nomeia tal pensamento como uma ecologia de saberes.
É uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de
conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em
interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua
autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o conhecimento é
interconhecimento. (SANTOS, 2010, p. 53)
O primeiro princípio de uma ecologia de saberes é a “copresença
radical” (SANTOS, 2010, p. 53), que significa entender diferentes saberes
em termos igualitários como contemporâneos, não reproduzindo
hierarquias do conhecimento por supostos níveis de desenvolvimento. A
segunda premissa que podemos extrair de uma ecologia de saberes é a
incompletude como ponto de partida.
Sendo infinita, a pluralidade de saberes existentes no mundo é inatingível
enquanto tal, já que cada saber só se dá conta dela parcialmente, a partir da sua
específica perspectiva. Mas, por outro lado, como cada saber só existe nessa
pluralidade infinita de saberes, nenhum deles se pode compreender a si próprio
sem se referir aos outros saberes. O saber só existe como pluralidade de saberes
tal como a ignorância só existe como pluralidade de ignorâncias. As
possibilidades e os limites de compreensão e de ação de cada saber só podem
ser conhecidos na medida em que cada saber se propuser uma comparação com
outros saberes. Essa comparação é sempre uma versão contraída da diversidade
epistemológica do mundo, já que esta é infinita. É, pois, uma comparação
limitada, mas é também o modo de pressionar ao extremo os limites e, de
algum modo, de os ultrapassar ou deslocar. Nessa comparação consiste o que
designo por ecologia de saberes. [...] Quanto menos um dado saber conhecer
os limites que conhece sobre os outros saberes, tanto menos conhece os seus
próprios limites e possibilidades. A comparação não é fácil, mas nela reside a
douta ignorância adequada ao nosso tempo. (SANTOS, 2010, p. 543)
409
Desse modo, um saber só pode ser analisado em condições situadas
e não abstratas. Como resume Santos (2002, p. 250), “Toda ignorância é
ignorante de um certo saber e todo saber é a superação de uma ignorância
particular”. Assim, todo saber é ignorante de algo assim como toda pessoa
é sabedora de algo, como explica Santos (2010, p. 56): “Na ecologia de
saberes cruzam-se conhecimentos e, portanto, também ignorâncias. Não
existe uma unidade de conhecimento, como não existe uma unidade de
ignorância. As formas de ignorância são tão heterogêneas e
interdependentes quanto as formas de conhecimento. Nos cruzos entre
saberes e ignorâncias, a “utopia do interconhecimento é aprender outros
conhecimentos sem esquecer os próprios (SANTOS, 2010, p. 56). Nessa
perspectiva, a ignorância pode ser uma condição desejada, como, por
exemplo, ensina Sócrates ou a filosofia exusíaca que discutimos na seção
anterior. Contudo, o interconhecimento é o que produz conhecimento,
que possibilita tomar conta do que envolve o próprio saber.
A partir da compreensão de que não existem saberes neutros, outra
premissa da ecologia de saberes, “Todos os conhecimentos são testemunhais
porque o que conhecem sobre o real (a sua dimensão ativa) se reflete
sempre no que dão a conhecer sobre o sujeito do conhecimento (a sua
dimensão subjetiva)” (SANTOS, 2010, p. 58). A ecologia de saberes
distingue a objetividade da neutralidade, pois todo saber emerge de uma
perspectiva ético-política.
Nesse viés, faz sentido falar em aprendizagem recíproca. Entender
o conhecimento científico como parte de uma ecologia de saberes significa
reconhecer suas contribuições, mas isso o pode impedir de reconhecer
outras intervenções no real tornadas possíveis por outras formas de
conhecimento” (SANTOS, 2010, p. 56-57). Em uma ecologia de saberes,
o conhecimento não é concebido em abstrato como uma representação do
410
real, mas o conhecimento é visto como intervenção no real, como práticas
de conhecimento “que possibilitam ou impedem certas intervenções no
mundo real” (SANTOS, 2010, p. 59). Como explica o autor, “Um
pragmatismo epistemológico é, acima de tudo, justificado pelo facto de as
experiências de vida dos oprimidos lhes serem inteligíveis por via de uma
epistemologia das consequências. No mundo em que vivem, as
consequências vêm sempre primeiro que as causas(SANTOS, 2010, p.
59-60). A partir disso, os saberes podem ser entendidos em suas
condições situadas através de um pragmatismo epistemológico no qual as
consequências importam. A medida do valor de um saber precisa ser
analisada de acordo com as suas contribuições para uma determinada
prática e não por seu grau de reconhecimento institucional. Entender o
saber em condições situadas exige a ampliação da compreensão espaço-
temporal.
Num regime de ecologia de saberes, a busca da intersubjetividade é tão
importante quanto complexa. Dado que diferentes práticas de conhecimento
têm lugar em diferentes escalas espaciais e de acordo com diferentes durações
e ritmos, a inter-subjetividade requer também a disposição para conhecer e agir
em escalas diferentes (interescalaridade) e articulando diferentes durações
locais (intertemporalidade). [...] Para ser bem-sucedida, a ecologia de saberes tem
de ser trans-escalar. [...] A coexistência de diferentes temporalidades ou
durações em diferentes práticas de conhecimento requer uma expansão da
moldura temporal. (SANTOS, 2010, p. 58-59)
Se os saberes emergem de diferentes experiências do tempo e do
espaço, a compreensão de um saber deve partir de seus próprios ritmos e
escalas, e não de uma concepção universal. Apenas um pensamento que
transita entre diferentes escalas pode perceber a pluralidade de saberes do
411
mundo, inclusive saberes mais que humanos. O filosofar, nesse sentido,
tem a ver com a expressão de cosmopercepções e se vincula “com formas de
perceber e agir no mundo, ligadas a uma percepção de ritmos” (GARCIA,
2015, p. 49). Nesse viés, o filosofar colabora para o afinamento da
percepção dessoterrando outras escalas e ritmos por meio de uma
cosmopercepção sensível “com seu respectivo conjunto de crenças e hábitos
através de um sistema de inferências que não é necessariamente discursivo”
(GARCIA, 2015, p. 49). Um ensino de filosofia, a partir de uma ecologia
de saberes, promove a sensibilidade de reconhecer diferentes filosofares,
bem como perceber os limites e possibilidades de seu próprio filosofar,
afinando a percepção sobre o ambiente.
A pergunta que mais ouvimos durante o processo de elaboração
desse texto foi acerca do relativismo. Na experiência docente, esta é uma
questão relevante porque os saberes não hegemônicos também são
atravessados por processos de hegemonia. No entanto, entendemos que o
limite que deve ser imposto a tais saberes é o mesmo que para qualquer
outro, ninguém pode se entender como portador/a/e de uma percepção
privilegiada que permite determinar univocamente tais limites. O que
geralmente fazemos no ensino tradicional é adotar, sem restrições, os
saberes dominantes e questionar o que diz respeito aos saberes populares.
Porém, a partir da perspectiva de uma ecologia de saberes, as escolas se
tornam um espaço de diálogo e construção entre os saberes. Pensar os
saberes em condições situadas tem a ver com analisar coletivamente seus
limites, refletindo sobre suas categorias próprias e condições de seu
surgimento e, principalmente, questionando as suas consequências para o
contexto analisado. Concordamos com João Arriscado Nunes (2010, p.
279) que
412
reconhecer a validade e dignidade de todos os saberes implica que nenhum
saber poderá ser desqualificado antes de ter sido posta à prova a sua pertinência
e validade em condições situadas [...] sem considerar as condições situadas de
sua produção e mobilização e as suas consequências. (NUNES, 2010, p. 279)
A partir das contribuições da boliviana Silvia Rivera Cusicanqui
(2010; 2018), podemos dizer que o pensamento hegemônico estabelece
uma relação antiética entre a realidade e a interpretação, pois olha para os
outros humanos e não humanos com um gesto objetivante e racionalizador
que dificulta perceber a heterogeneidade. Cusicanqui (2010, p. 19,
tradução nossa) afirma que “Há no colonialismo uma função muito
peculiar para as palavras: elas não designam, e sim encobrem”. Ela reflete
que o primeiro gesto colonial nas Américas consistiu em “transformar a
palavra em uma coisa enganosa” (2018, p. 154, tradução nossa). A palavra
encobridora é uma ferramenta de poder. Assim, o que pensamos é
desconectado da experiência para se conformar a uma epistemologia
universal, que nos faz tentar encaixar o mundo em tais preceitos, muitas
vezes manipulando o próprio corpo ou o mundo que nos cerca, ao invés
de rever os conceitos que afetam a maneira como percebemos o mundo.
No contexto contemporâneo, diversas palavras funcionam como
encobridoras da realidade, inclusive algumas apropriadas dos movimentos
sociais ou que se afirmam em supostos objetivos descolonizadores, como
trouxemos na análise sobre a BNCC e os esvaziamento de conceito da luta
pela educação democrática. Cusicanqui denomina tais expressões de
palavras mágicas porque tem a magia de silenciar nossas inquietudes e
ignorar nossas perguntas” (CUSICANQUI, 2018, p. 41, tradução nossa),
o que é prejudicial, já que formular perguntas é o mais importante no
processo de descolonização e também para o filosofar. O que essas palavras
413
mágicas fazem é estabelecer novas formas de dominação, ocultando ações
dominadoras. É preciso que sempre perguntemos: De onde surgem? Por
que existem? O que queremos dizer com elas? Por isso, ela propõe escutar
a palavra aqui-agora no continuum vivido das urgências do presente,
realidade fatídica da heterogeneidade, de modo que toda palavra emerja de
gestos, práticas, ações. Cusicanqui aponta a importância do vivido como
matéria do conhecimento. Em geral, há uma ansiedade muito grande em
buscar novos conceitos, no entanto, o que Cusicanqui chama a atenção é
que os conceitos devem ser resultados de ações, de maneira que é necessário
primeiramente se organizar para construí-los coletivamente. A partir de
outras perspectivas, outros conceitos serão necessários, como nos ensinou
Lélia Gonzalez com sua proposta ladinoamefricana.
Criar conceitos coletivamente e que não se coloquem como
universais também tem a ver com o que Julieta Paredes chama de estratégia
semântica de disputa.
Entendemos por relações semânticas aquelas que têm a ver com os aspectos
hierárquicos do significado, o sentido ou interpretação dos signos, sejam
linguísticos como símbolos, palavras, expressões ou representações
formalizadas. Não é uma questão de voluntarismo: há uma colonização da
linguagem, é um fato. Portanto, não se trata de fechar os olhos e dizer que o
colonialismo não vai “nos comer”. Nos fagocitam desde as academias.
(PAREDES, 2019a, p. 82)
Refletindo sobre a proposta do Feminismo Comunitário, que
emerge a partir de coletivos que ela compõe, Paredes explica a opção pelo
uso do termo feminismo, bastante marcado pelas demandas das mulheres
brancas e europeias, como uma estratégia conceitual. Conceitos elaborados
414
através da cosmoperspectiva indígena foram exotizados e, por isso, anulados
do debate. Assim, em prol de se incluírem no debate das mulheres
oprimidas, recriar o feminismo consiste em uma estratégia semântica de
disputa. Dessa maneira, elaborar conceitos também pode ser entendido
como um processo de criar pontes. Como ressalta Paredes (2019a, p. 75),
Nomear, conceituar, criando argumentos, fazendo os nossos discursos e
desmistificando a gestão da palavra escrita é uma tarefa profundamente
revolucionária, a de acreditar em nós e por nós”. Conceituar de maneira
estratégica também significa estar dispostos/as/es a rever qualquer
identidade que se fixa. Outro exemplo no mesmo sentido é o uso do termo
quilombola como uma identidade portadora de direitos, como destacamos
com Antonio Bispo dos Santos no terceiro capítulo. Contudo, elaborar
conceitos coletivamente é transformar a palavra em um modo de atuar no
mundo.
Cusicanqui considera que há uma “fetichização dos conceitos”
fomentada pela separação teoria/prática e entre pensar/fazer. Ela defende
que é preciso rejeitar os binarismos modernos em todas as relações que se
pretendem descoloniais, pois “descolonizar é fazer” (CUSICANQUI,
2018, p. 151, tradução nossa). Embora existam importantes processos de
recolonização a partir do logos, há brechas no âmbito corporal, de modo
que Cusicanqui aponta fazer teoria com as entranhas, despertar as memórias
do corpo que evidenciam a realidade. O que ela propõe é um pensar
situado no tempo/espaço do aqui-agora, um gesto epistemológico. Para que
sejam potentes os pensamentos produzidos, a palavra deve partir de um
movimento desencobridor que consiste em uma tarefa coletiva. O que
Cusicanqui quer dizer com tais escritos é evidente em seus gestos. Em sua
conferência no evento Os Mil Nomes De Gaia, realizado em 2014 no Rio
de Janeiro, quando Cusicanqui se referiu à coca fez o gesto de colocar um
415
pedaço de sua folha na boca, de certa forma demonstrando a importância
da cosmoperspectiva própria da coca no discurso sobre ela.
Um saber que emerge da ação e comprometido com uma ecologia
das práticas é um saber que se reinventa e produz conexões no aqui-agora.
Isso nos remete a um exemplo trazido por Célia Xacriabá (CORREA,
2018, p. 188). Em 2015, Dona Libertina e Lurdes Xakriabá foram
convidadas pela UFMG para ministrar um curso para estudantes de
Arquitetura. Enquanto ensinavam o modo tradicional Xakriabá de
construção de casas em barro e madeira, explicando que a durabilidade de
tais casas varia entre quatro a seis anos, dependendo “da lua que é tirada a
madeira e que é retirado o barro” (CORREA, 2018, p. 188), a seguinte
situação ocorreu:
um aluno disse que estava impressionado com a habilidade delas, com a rapidez
e conhecimento que tinham sobre todo o processo, então perguntou a elas se
não gostariam que os alunos de Arquitetura ajudassem a desenvolver uma
técnica para que a casa tivesse mais durabilidade, ou que durasse uma vida toda,
explicando que lamentava porque era uma pena uma casa daquela tão bonita
se desfazer com quatro a seis anos. Ela respondeu: Não meu filho, essa proposta
sua é muito perigosa, porque a casa ela precisa se desfazer de quatro a seis anos
para que eu possa continuar ensinando para meus filhos e para meus netos, se
a casa durar a vida toda, coloca em risco o ensinamento, a transmissão deste
conhecimento. (CORREA, 2018, p. 188)
Tal situação possibilita um ensinamento profundo sobre o que
envolve um conhecimento que é elaborado “não apenas pela mente, pelo
movimento da mão e do corpo” (CORREA, 2018, p. 189). A finitude da
casa faz com que sejam cultivadas as relações de convivência entre as
pessoas, as relações de respeito e troca de saberes entre as gerações, mas
416
também faz com que as relações que envolvem a preservação do barro e da
madeira se renovem no cotidiano. Além disso, depois de seis anos, o barro
pode mudar assim como as pessoas. O trabalho de refazer a casa, como
algo que se repete diferentemente, promove diversos níveis de trocas
durante anos e também o respeito e uma consciência sobre a preservação
da natureza e dos saberes. Apontando para a vida, o saber de Dona
Libertina e Lurdes Xakriaencanta e cruza a tradição de modo dinâmico.
No mesmo sentido, entendemos o estudo da tradição como uma ação
dinâmica, algo que se faz com foco nos problemas, no qual a tradição se
reinventa a partir dos muitos s que a compõem. Através de tal viés, o
estudo da tradição está mais próximo da ação de fazer uma casa de barro
do saber do que um edifício do conhecimento.
Um filosofar em ação, que se faz com o movimento da mão e do
corpo, tem a ver com movimentos de sincronização com o contexto. Em
geral, como apontamos no primeiro capítulo, nas instituições de ensino os
problemas costumam ser ignorados ou silenciados para forjar um falso
mundo perfeito que está longe de ser o que representa qualquer instituição
em nossa sociedade. Uma filosofia em ação se aproveita das frestas das
instituições e seus problemas, partindo do que afeta estudantes e
funcionários, de maneira a colocar a mão no barro para buscar alternativas.
Nesse viés, é interessante que as diferentes facetas que envolvem o
cotidiano escolar, e especialmente seus espaços de decisão, sejam abertos à
participação de todas as pessoas das instituições, estudantes, funcionários
e comunidade. Isto significa ir além do ensino da diversidade “para avançar
na consolidação de uma prática que vivencia a diversidade” (SILVA, 2015,
p. 474). Não é preciso forjar tal relação intercultural porque, como
destacou Silva (2015, p. 474), “toda convivência com o outro corresponde
a uma vivência intercultural”. Dessa forma, os problemas que emergem
417
das relações entre os/a/es sujeitos/as/es das instituições e em suas frestas
ignoradas serão a fonte de um filosofar que emerge dos cruzos entre
mundos, proporcionando aprendizado constante sobre como podemos
lidar com as diferenças. Nesse sentido, problemas e conflitos não são vistos
como disfunções, mas como parte importante de um sistema, já que
mobilizam as mudanças necessárias.
Por outro lado, vivenciar a diferença também tem a ver com as
experiências de sincronização com mundos mais que humanos e o olhar
atento a esses seres nas instituições, de maneira que práticas que envolvem
cuidado com plantas e animais não humanos podem ser fonte de filosofar
na perspectiva ecosófica. Um filosofar com as entranhas, comprometido com
a ecologia das práticas, aponta para um pensamento que emerge daquilo
que afeta, mas também uma filosofia que lança um olhar sensível para os
diferentes seres, um filosofar que leva em consideração as frequências das
bactérias que ocupam nossas entranhas.
No primeiro episódio de uma série de documentários sobre a
diversidade musical no Rio Grande do Sul elaborado pelo Projeto Gema,
vemos o seguinte depoimento de Vherá Poty da Aldeia Mbya Guarani
Tekoa Guaviraty Porã em Santa Maria (RS):
a gente não chama isso de música, [...] a gente chama isso de conselhos
entoados ou palavras entoadas. [...] A gente chama de Mborai que significa o
som da vida. Na verdade é o som que compõe o crescimento das crianças, então
cada criança tem a sua própria melodia da vida. E isso são questões que é muito
profundo para nós. As práticas cotidianas é bem coletiva. Mas nós temos duas
linhas de práticas musicais, de danças. Tem as músicas, os cantos, danças, que
são mais de jovens e tem outras que é coletiva de todo mundo. A música com
o coletivo cantada faz com que as crianças, as pessoas, se aproximem, tenham
esse afeto de carinho porque a palavra cantada já é um carinho transmitido.
Cantos, instrumentos, tudo isso é uma coisa só, não está nada separado. Não
418
tem como aprender várias coisas se não aprender outras coisas que são
relacionadas. Dançar é instrumento. Cantar é um instrumento. A gente mesmo
não consegue cantar se não tiver dançando. É como se fôssemos nós, você,
quando fala de braço, está falando de braço, mas a quem pertence esse braço,
você é uma pessoa. Com os instrumentos também a relação é assim, cada um
é cada um, mas ao mesmo tempo ele compõem um ser. Então instrumento a
gente entende dessa forma, a gente não entende que uma só pode ser tocada.
A gente entende que tudo tem que ser tocado ao mesmo tempo junto
sincronizado porque daí ela ganha vida. Educação é aprender tudo, ninguém
se torna tipo específico para tal coisa. Porque a partir do momento que a gente
pensar que cada um tem que aprender uma coisa para ficar naquilo a gente
torna as pessoas individuais. (PROJETO GEMA, 2016, 1:20 minutos)
Todas as aldeias têm hoje um grupo de cantos e danças que faz esse papel de
mediar através das apresentações. Os nossos cantos, nossas danças, nossos
instrumentos, é o nosso modo de se comunicar com a cidade, então essa é a
nossa linguagem, essa é a nossa importância. Se eu vou falar da minha vida eu
vou falar de nossos cantos, vou falar de nossas músicas porque tudo se baseia
na sonoridade. A nossa vida, o mais profundo respeito entre as pessoas, a
educação ela surge da música, do som da vida. (PROJETO GEMA, 2016, 5:09
minutos)
Vherá Poty traz o Mborai, um dos modos de canto-dança Guarani,
como uma forma de educação que ensina o som da vida. A partir de práticas
coletivas, com todos/as/es da comunidade ou restrita a grupos de jovens ou
crianças, ao mesmo tempo em que se aprende a cantar-dançar
indissociáveis se aprende os diferentes ritmos e melodias da comunidade,
expressos em modos de ser diversos. Cada um com sua singularidade, isto
é, melodia própria, aprendendo a sincronizar no coletivo, respeitando e
pareando os ritmos e melodias próprias dos outros. Tal forma de educação
que transmite carinho convida a compor o coletivo, um Mborai, palavra
entoada de ensinamentos, só é possível junto. Se o que falamos/entoamos
419
produz ação no mundo, a proposta Guarani nos provoca a entender o uso
da palavra cantada como um ato de responsabilidade.
Em minha experiência como musicista, voltada especialmente para
música de improviso, me conecto um pouco com o que apontou Vherá
Poty. Tocar música instrumental é como um diálogo não verbal, que faz
mais sentido quanto mais ouvimos e dialogamos com os sons que dividem
aquele momento conosco. Sobre isso, Nora Bateson traz um aspecto
interessante:
a improvisação não é aleatória. Ela exige uma incrível disciplina, ocorrendo
somente quando se conhece as formas tão verdadeira e profundamente, a tal
ponto de não precisar mais pensar sobre elas. Apenas quando essas formas
puderem ficar abaixo do nível do pensamento, ou seja, quando estiverem
internalizadas, aí sim, torna-se possível se libertar da regra, surgindo, então, a
improvisação. O segundo ensinamento sobre a improvisação [...] é que ela
exige uma profunda confiança. Se você for um músico de Jazz e for tocar um
solo improvisado, a confiança que você precisa ter, nos outros membros da
banda, de que vão manter a base e permitir que isto aconteça, tem que ser
enorme, porque se você não confiar neles, você não poderá executar o solo. O
terceiro elemento consiste em um tipo de escuta muito diferente. É um modo
completamente diferente de se relacionar por meio de uma forma de
comunicação. E mais ainda, esta forma de escuta é, na verdade, aprendizado.
É mais ou menos o que estávamos falando no início dessa conversa, sobre a
maneira como Gregory trabalhava com crianças, ou com qualquer pessoa, ou
com cachorros, com aquários de peixes e tantos outros seres viventes.
(DEMARCHI ET AL, 281-282)
Improvisar demanda muito estudo sobre padrões e práticas até o
ponto de que se tornem hábitos incorporados. Improvisar demanda
confiança e escuta, uma sintonia fina que faz dos sons e melodias
individuais uma com-posição coletiva harmônica. A perspectiva Guarani
420
desperta para entender a própria vida como este modo de improviso, no
qual a com-vivência com o/a/e outro/a/e também demanda estudo, hábito
e confiança, o que chamamos aqui de sincronização. O estudo e prática da
coexistência com outros seres humanos e mais que humanos resultam em
sintonias entre organismo que se implicam reciprocamente. Tal improvisar
na aula de filosofia pode ser entendido como o desenrolar dos problemas
e conexões, mas também com o ouvir atento a todos/as/es humanos e mais
que humanos sem distinções etárias ou hierárquicas.
Se podemos entender o Antropoceno como uma “dança civilizada,
da técnica, do controle do planeta” (KRENAK, 2019b, 69-70), o Mborai
pode ser entendido como uma educação-dança anti-civilizaria, que
ensina o bem viver, palavra entoada que promove o encantamento da vida.
Ouvir o som da vida faz muito sentido para o que nos fez refletir Margulis
e Sagan no quarto capítulo apresentando a vida como “sinfonia senciente
da Terra” (MARGULIS & SAGAN, 2002, p. 254), na qual muitos seres
entoam suas melodias e ritmos. O som da vida pode ser entendido no
âmbito dos diferentes modos de ser, mas também no âmbito mais que
humano, na qual outros ritmos e frequências ditam as relações de vida. É
preciso aprender com esses sons para que a nossa vida sincronize com essa
harmonia cósmica, ouvindo nossa própria melodia, as melodias que nós
ajudamos a compor, bem como as que nos compõem. Um ensino de
filosofia ecológico convida à sincronização com os sons da vida.
O binarismo dos sistemas de valor monológicos ocidentais faz com
que a percepção da realidade se torne um processo de dissolução de
contradições, o que reflete nas formas como nos relacionamos e lidamos
com perspectivas divergentes. Guattari considera que
421
Tornou-se igualmente imperativo encarar seus efeitos no domínio da ecologia
mental, no seio da vida cotidiana individual, doméstica, conjugal, de
vizinhança, de criação e de ética pessoal. Longe de buscar um consenso
cretinizante e infantilizante, a questão será, no futuro, a de cultivar o dissenso
e a produção singular de existência. (GUATTARI, 1990, p. 32)
Nesse sentido, “A eco-lógica não mais impõe resolver os
contrários” (GUATTARI, 1990, p. 34). Cuzicanqui (2018, p. 153,
tradução nossa) colabora para entendermos como conviver e habitar com
a contradição, fazer dela uma espécie de visão radiográfica que permita
descobrir as estruturas que subjazem a superfície. Cuzicanqui relaciona o
conceito de ch'ixi com o de duplo vínculo (“double bind”) de Gregory
Bateson. Interessado em compreender a esquizofrenia, Bateson propõe o
conceito de duplo vínculo para se referir a situações de conflito nas quais
dois comandos antagônicos, mas que não podem ser ignorados, levando o
sujeito a um dilema insolúvel, pois qualquer dos comandos que for
obedecido anulará o outro. Dialogando com Spivak, Cusicanqui
denomina de epistemologia ch'ixi o reconhecimento desta dobra e a
capacidade de vivê-la criativamente(2018, p. 31, tradução nossa). Para
compreender o que Cusicanqui quer chamar a atenção com sua
epistemologia ch’ixi, é preciso compreender primeiramente o significado da
palavra ch’ixi:
o significado da palavra ch'ixi simplesmente designa um tipo de tonalidade
cinza em aymara. É uma cor que, pela distância, parece cinza, mas ao nos
aproximarmos percebemos que é feito de pinhos de cores opostas: manchas
pretas e brancas entrelaçadas. Um cinza mosqueado que, como tecido ou marca
corporal, distingue certas figuras o k'usillu ou certas entidades a serpente
nas quais se manifesta o poder de cruzar fronteiras e incorporar
422
reverberadamente pólos opostos. Também certas pedras são ch'ixi, andesita,
granito, que têm texturas coloridas intercaladas em pequenos pontos.
Aprendi a palavra ch'ixi com o escultor aymara Víctor Zapana, que me explicou
quais animais saem dessas pedras e porque são animais poderosos. Ele então
me disse ch'ixinakax utxiwa, isto é, existem enfaticamente entidades ch'ixis,
que são poderosas porque são indeterminadas, porque não são nem pretas nem
brancas, são ambas ao mesmo tempo. A serpente vem de cima e ao mesmo
tempo de baixo; é masculina e feminina; não pertence ao céu nem à terra, mas
habita ambos os espaços, como chuva ou como um rio subterrâneo, como um
raio ou minha veia. Don Victor também mencionou que esses são os animais
que nos servem para nos defender da maldade de nossos inimigos. E com
tecido ch'ixi é feito o q'urawaa arma andina que ainda é usada nas barreiras
de estradas nas terras altas , porque o q'urawa também é ch'iqa ch'ankha, é
feito de fios trançados; muitos objetos rituais são feitos de lã trançada.
Essas alegorias me inspiram a perguntar por que devemos transformar todas as
contradições em um dilema paralisante? Por que temos que enfrentá-la como
uma oposição irredutível? Isso ou aquilo. Na verdade, estamos caminhando
por um terreno onde as duas coisas estão interligadas e não é necessário optar
estritamente por uma ou outra. [...] A disjunção compreendida e vivenciada
tem nos permitido abrir-nos a muitas formas de (re)conhecer situações
complexas e nelas orientar-nos, nem sempre de um modo conciliador. Não é
uma busca de pactos ou compromissos, porque há coisas que não se pode
conciliar. Existe uma bússola ética da qual já falei, e tem a ver com a
planetariedade, solidariedade, reconhecimento das diferenças, e respeito e uma
série de elementos relacionados ao que Marx chamou de “preconceito da
igualdade” e Jacotot de igualdade de inteligências”. (CUSICANQUI, 2018,
p. 79-80, tradução nossa)
Cusicanqui se apoia no conceito de ch’ixi, um mesclar entre
opostos que se expressam em tecidos, pedras, animais não humanos e
humanos, que, embora de longe possa parecer homogêneo, designa
compostos que não se fundem. Nesse sentido, a autora se opõe a visões
essencialistas de identidade apontando-as como um “processo de
cercamento e territorialização da etnicidade” (CUSICANQUI, 2018, p.
423
127, tradução nossa). Cusicanqui compreende a identidade como “um
tecido de intercâmbios” (CUSICANQUI, 2018, p. 126, tradução nossa):
ch'ixi é um devir. Se trata de nos liberarmos da esquizofrenia coletiva, porque
teremos sempre que estar nos dilemas de um ou de outro, ou somos pura
modernidade ou pura tradição. Talvez sejamos as duas coisas..., mas as duas
coisas não fundidas, porque esse fundido privilegia a um só lado.
(CUSICANQUI, 2018, p. 153, tradução nossa)
Portanto, a epistemologia ch’ixi não significa mesclar, é uma
dialética sem hibridização ou fusão. Assim, o devir ch’ixi “nos salva de cair
no double bind esquizofrênico, na paralizante aporia do conflito”
(CUSICANQUI, 2018, p. 83, tradução nossa). Ch’ixi, como força
criativa, é desordenado, algo como “uma reverberação” (CUSICANQUI,
2018, p. 134, tradução nossa), uma “desordem de sons da qual sempre é
possível o renascer da singularidade de uma melodia(CUSICANQUI,
2018, p. 133, tradução nossa). Para sair do dilema sufocante do duplo
vínculo, Cusicanqui propõe uma forma intermediária, uma zona de
contato na qual opostos se entrelaçam sem se fundir de forma orgânica e
reverberante. As diferenças irredutíveis com-vivem de maneira que “o
selvagem revive o civilizado; o feminino se opõe e complementa o
masculino; a tecelagem incorpora a guerra” (CUSICANQUI, 2018, p. 56,
tradução nossa). O que ela chama de gesto ch’ixi consiste no
“reconhecimento da fissura colonial, da ruptura interna que significou o
double bind colonial” (2018, p. 81, tradução nossa). Cusicanqui reflete
sobre os dilemas mais difíceis que envolvem a epistemologia ch’ixi:
424
como assumir cotidianamente a contradição entre comunidade e pessoa
individual? Como assumir o particular-universal, o jiwasa, o nós como quarta
pessoa do singular? O problema não é como superar essa contradição e sim
como conviver com ela, como habitar nela. Para mim isto se faz possível através
da alegoria: por uma poiesis autoconsciente capaz de criar condições de pleno
respeito à pessoa individual sem, portanto, minar ou diminuir a força do
comum. E é este tipo de comunidade, ou de comunalidadeque propomos
para alimentar novas formas de organização, novas linguagens de politicidade.
Uma comunidade onde não se trabalhe com maiorias e minorias, onde a
margem de manobra seja maior para o indivíduo e para a indivídua em termos
de desenvolver o que cada qual pode como potência, mas também em termos
de escolha estética. Essa é uma meta descolonizadora bem prática.
Incorporando das vozes normalmente dissidentes das mulheres e das crianças,
por exemplo, nessa voz comunitária. (CUSICANQUI, 2018, p. 151-152,
tradução nossa)
Ao refletir sobre os dilemas e negociações entre o pessoal e a
comunalidade, Cusicanqui evoca a expressão jiwasa como a quarta pessoa
do singular. Em Ayamara, assim como no Guarani, existem dois termos
para “nós”. Como é explicado por Cusicanqui, o primeiro, nanaka, é o
pronome excludente no qual a expressão nós não inclui o interlocutor,
mas apenas aquele que enuncia e os seus. Quando o pronome nós é
usado incluindo o ouvinte a expressão é jiwasa, assim envolvendo o
interlocutor e formando uma singularidade(CUSICANQUI, 2018, p.
82, tradução nossa). Também existe jiwasananaka que corresponde ao
plural da quarta pessoa gramatical e “inclui a todo mundo, inclusive quem
não está presente [...] algo próximo a um nós-humano” (CUSICANQUI,
2018, p. 82, tradução nossa). O uso de tais expressões aponta para um
modo de enunciar no qual as diferenças são importantes, mas também para
uma perspectiva na qual pode ser concebida algum tipo de pessoa coletiva.
O dilema particular-universal, nesse sentido, pode se dar como um
425
processo contínuo no qual a partir do comum se faz um com-posto ch’ixi
sem ignorar as diferenças.
A proposta de Cusicanqui nos lembra o conceito de confluência de
Antonio Bispo dos Santos (2015, p. 89), que afirma que nem tudo que se
junta se mistura. Ch’ixi como uma encruzilhada é um espaço de
possibilidades. O devir cipó que evocamos neste capítulo é ch’ixi pois,
embora seja composto de emaranhados muitas vezes indissociáveis, não se
funde, é do céu e da terra, serpenteia. Em diversos grupos o devir cipó da
ayahuasca é associado aos mistérios das serpentes.
A “cosmopolítica global, que se acha em [...] perigosa situação de
duplo vínculo, um double bind civilizacional pré-psicótico” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2010, p. 152) nos faz acreditar que toda contradição exige
uma síntese. A epistemologia ch’ixi é um convite para um outro mundo
possível.
Nas premissas de uma bússola ética e da igualdade de inteligências e poderes
cognitivos - certamente expressáveis em uma diversidade de linguagens e
epistemes poderia talvez ser tecida uma epistemologia ch'ixi de caráter
planetário que nos habitará em nossas tarefas comuns como espécie humana,
mas ao mesmo tempo nos enraizará ainda mais em nossas comunidades e
territórios locais, em nossas bioregiões para construir redes de sentido e
ecologias de saberes que também sejam ecologias de sabores, com o
“compartilhamento” no lugar da competição (para dizer Jaime Luna 2013),
como gesto vital e a mistura linguística como tática de tradução. Em outras
palavras, para criar um território habitável. (CUSICANQUI, 2018, p. 81,
tradução nossa)
O conhecimento é uma relação intersubjetiva, às vezes entre
diferenças irredutíveis que precisam com-viver. Aprender a lidar com a
426
dualidade particular-universal e suas contradições é essencial para as
negociações urgentes do presente. Nesse sentido, Cusicanqui nos convida
a “liberar energias cognitivas e criativas através de práticas em comum
(CUSICANQUI, 2018, p. 74, tradução nossa). Trata-se de uma “ecologia
de sabores”, na qual a percepção é estimulada e não apenas a cognição. Ela
lembra que até mesmo o que chamamos de relações de mercado são
interações humanas, de maneira que é preciso desmercantilizar e
desprivatizar recursos, conhecimentos e significados.
Considerando as ecologias de saberes e sabores, como podemos
pensar o ensino de filosofia a partir de tais perspectivas? Pensar instituições
que potencializem, e que não adoeçam quem as compõem, exige outra
concepção de relações, de avaliação e de conhecimento que sejam mais
integradas à sociedade e à natureza.
Para conectar o filosofar com o contexto, entendemos como
essencial que o currículo parta de problemas. Nesse caso, o movimento
dinâmico é estimulado, levando diferentes pessoas a pensarem nas
reverberações de tais problemáticas em seus contextos, bem como provoca
a busca autônoma e coletiva por respostas. A tarefa docente, nesse viés, é
de perceber problemas do comum que possibilitam um pensamento
coletivo, no qual diversas percepções se cruzam e dialogam liberando as
potencialidades. Desse modo, a aula pode se tornar um espaço de
negociação entre as diferenças, possibilitando experienciar disputas e
alianças. Assim como os antropólogos ontológicos, O que podemos, e
devemos, no mínimo e no máximo, é pensar com eles, levar, em suma, seu
pensamento a sério a diferença de seu pensamento a sério. É apenas pela
acolhida integral dessa diferença e dessas singularidades que se poderá
imaginar construir o comum(VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p.
164). Contudo, propomos um ensino simétrico, polifônico, com vozes
427
dissonantes e diferentes ritmos de aprendizagem. A partir da escola como
uma fronteira entre mundos, entendê-la como um espaço para com-vergir
pessoas, para pensar sobre os problemas das comunidades através de
comunalidades e não de universalidade. Assim, o objetivo do ensino não é
domesticar, fazer com que os outros pensem como nós, nem pensar como
eles, mas pensar com. Porém, é importante destacar que os saberes
hegemônicos não devem ser descartados, mas incluídos como
possibilidades de pensamento sobre problemas, evidenciado seus contextos
sociais e consequências, assim como quaisquer outros saberes. A filosofia
ch’ixi é composta pelos opostos que possibilitam transitar entre diferentes
mundos, não restringindo nem a um contexto universal e nem local.
Dessa maneira, a atuação docente, como um/a/e agente das redes
de saberes que constituem a comunidade das instituições de ensino,
consiste na mediação e viagem entre mundos, levando as diferenças a sério,
de modo a permitir com que emerjam e (trans)formem as pessoas
envolvidas. Nesse sentido, todos/as/es são aprendizes e professores/as de
alguma coisa. Isso não pode ser compreendido nos termos de uma
precarização do ensino, pois as especificidades são mantidas, assim como
um/a/e docente de filosofia não pode se sentir especialista em tudo,
ninguém mais da rede pode se julgar o mesmo. Cada um tem as suas
especificidades, de acordo com o contexto em que vive e a sua história, e,
portanto, pode ensinar sobre os mundos que ajuda a construir do mesmo
modo que tem muito a aprender sobre outros mundos, que podem levar a
repensar o seu próprio num contínuo processo de aprendizagem inter-
relacional.
Neste sentido, entendemos que o espaço das aulas de filosofia,
voltando-se para o cultivo dos problemas, fará emergir coletivamente
novos conceitos. Em nossa prática docente poderíamos trazer, como
428
exemplo, duas práticas que têm produzidos os movimentos que aqui
discutimos. Costumamos iniciar as aulas de filosofia pedindo que
estudantes façam questões que gostariam de saber a resposta, nesses
momentos nenhuma pergunta é de fato respondida, mas dialogamos sobre
todas sem exceção, até mesmo aquelas que são recebidas com risadas ou
que poderiam ser entendidas como “besteiras” por alguns . Tal proposta,
em diferentes contextos em que a aplicamos, teve como resposta imediata
estudantes dizendo que não tinham o que perguntar. Diante disso, sempre
os provocamos sobre o que faz esquecermos as questões que nos
interessam, por que as deixamos de lado, haja vista que ninguém sabe tudo.
Por isso, consideramos esse momento essencial para um resgate da potência
de pensar o mundo de cada um, inclusive a nossa, que é revivificada pelas
surpreendentes contribuições que emergem desse diálogo sobre perguntas.
Outra experiência que nos faz pensar o que escrevemos neste texto,
consiste em um diálogo sobre o que é daninho e o que é fértil no contexto
em que nos encontramos. Tal pergunta produz reflexões sobre o contexto
social, mas também sobre o contexto escolar e as opressões e
potencialidades que o envolvem. Tal experiência pode apontar indícios
para o caminhar conjunto das aulas de filosofia. A partir disso, faz sentido,
para nós, propormos filosofias de intervenção coeltivas nos contextos
escolares, convidando estudantes a projetarem ações para a escola como
um todo ou para a comunidade, levando-os a descobrir de que modos
podem colaborar com o contexto local em que estão. Percebemos que tais
ações diminuem a imobilidade e as angústias das urgências
contemporâneas fazendo com que estudantes possam criar formas de
transformar o que os/as afeta. As atividades que realizamos nesse sentido
eram coletivas, envolviam a turma toda em uma única tarefa a ser decidida
429
por todos/as/es, estimulando os/as estudantes a colaborarem uns com os
outros/as/es.
Diante disso, avaliar mensurando não cabe. Por isso, tendemos a
nos basear em autoavaliações ou avaliações coletivas, nas quais a nota não
é o mais importante. Também consideramos essencial que as atividades
realizadas não encarcerem os modos de expressão, mas ao mesmo tempo
em que conscientizam para a escrita como uma importante ferramenta de
atuação no mundo contemporâneo, mantenham como possibilidade
outras linguagens como desenho, vídeo, podcast, etc., permitindo outros
sabores sobre os saberes.
Tais processos aqui descritos consistem em movimentos de
sincronização com o contexto, nos quais percepções são dessoterradas,
diferenças são negociadas, onde soam outras melodias e singularidades. O
ressurgimento de mundos, subjetividades, histórias, virá do envolvimento
e não do desenvolvimento.
Guattari (1990, p. 33) sugere que “É no conjunto dessas frentes
emaranhadas e heterogêneas que, parece-me deverão articular-se às novas
práticas ecológicas, cujo objetivo será o de tornar processualmente ativas
singularidades isoladas. Para isso, docentes precisam deixar a posição de
colonizadores/as/es típica de autoridades do saber que se pautam em
cânones antro-euro-falo-ego-logo-capital-logocêntricos. Docentes-
colonizadores/as/es soterram e encobrem outras perspectivas, não
constrõem o comum do encontro com estudantes. No sentido que
propomos aqui, a aula de filosofia é uma assembleia na qual são
coordenadas as diferenças, nos cruzamentos de saberes, sem síntese, em prol
da ressurgência local.
430
5.1.3 Nós dos mundos: aspectos de uma possível eco-ontologia social e
planetária
As urgências do aqui-agora evidenciam a necessidade de
reconstruirmos as relações humanas em todos os níveis através de uma
ecologia social (GUATTARI, 1990, p. 32) e, no sentido apresentado por
Spivak e Cusicanqui, planetária. Como destaca Guattari (1990, p. 48-49),
Não se trata aqui de propor um modelo de sociedade pronto para usar,
mas tão-somente de assumir o conjunto de componentes ecosóficos cujo
objetivo será, em particular, a instauração de novos sistemas de
valorização”. Nesse sentido, o ensino de filosofia pode colaborar para que
outros sistemas de valores sejam considerados. Tais “Novas bolsasde
valores (GUATTARI, 1990, p. 50) que levem em conta “a
“rentabilidade” social, estética, os valores de desejo, etc.” (GUATTARI,
1990, p. 49) têm mais a ver com as bolsas de que falam Ursula K. Le Guin
e Donna Haraway.
A partir do argumento de Elizabeth Fisher, Ursula K. Le Guin em
The Carrier Bag Theory of Fiction(1986) ressalta que a humanidade é
mais coletora do que caçadora, de maneira que a primeira ferramenta,
provavelmente, foi um recipiente para carregar frutas, vegetais, objetos
sagrados, filhos, etc., isto é, algo como uma sacola ou bolsa. Partindo dessa
hipótese, Le Guin traz implicações sobre a literatura, descentralizando a
figura individualista do herói.
Le Guin argumenta que histórias de caça e morte permitiram aos leitores
imaginar que o heroísmo individual é o que importa em uma história. Ao invés
disso, ela propõe que contar histórias é juntar coisas de significado e valor
diverso, mais como catadores do que caçadores esperando por sua grande caça.
431
Nesse modo de contar história, histórias nunca terminam, pois lideram o
caminho para novas histórias (TSING, 2015, p. 287, tradução nossa).
Diante dos desafios postos, não precisamos do herói, “o único
fazedor de mundos” (HARAWAY, 2019, p. 37, tradução nossa),
precisamos de narrativas com outras paisagens de mundos mais que
humanos, que mostrem o fazer mundo como um emaranhado coletivo,
que tragam à tona outras percepções como a história contada por um
fungo no livro de Anna Tsing (2019) – e possibilitem escapar dos perigos
da história única.
O interesse de Le Guin por histórias não narradas de coletividades
que semeiam, colhem, compartilham e contam histórias sobre a vida
inspirou Donna Haraway em sua “bolsa de sementes para terraformar com
alteridades terranas” (2019, p. 87, tradução nossa). Tal bolsa, enquanto
um recipiente para coletar a vida através de sementes e histórias, pode
carregar variadas alternativas para os tempos difíceis. Os recipientes, assim,
dão a pensar:
a suave curva da concha que contém apenas um pouco de água, somente
algumas sementes para dar e receber, sugere histórias de devir-com, de indução
recíproca, de espécies companheiras cuja trabalho de viver e morrer não é o fim
da história, o fim da configuração dos mundos. Com uma concha e uma rede,
devir humano, devir húmus, devir terrano, adquire outra forma: a forma
serpenteante, sinuosa, do devir-com. (HARAWAY, 2019, p. 88, tradução
nossa)
Haraway fala de recipientes que apontam para um devir-com, que
assim como ch’ixi e o devir cipó, serpenteiam a existência. Essa bolsa que
432
carrega sementes para terraformar também está cheia de problemas
(HARAWAY, 2019, p. 89), que não possibilitam entender tais histórias
como soluções, incentivando a continuar a “coleta”. Para Haraway (2019,
p. 92, tradução nossa), a “simpoiesis é uma bolsa para a continuidade, um
jogo para devir-com, para seguir com o problema e herdar os danos e
conquistas de histórias naturoculturais coloniais e pós-coloniais na história
de uma recuperação ainda possível” (HARAWAY, 2019, p. 92, tradução
nossa). O que importa é “que histórias criam mundos” (HARAWAY,
2019, p. 20, tradução nossa) menos daninhos e mais férteis.
Como ressalta Cusicanqui (2018, p. 81, tradução nossa), estamos
em uma época na qual não há mais tempo para o lamento, é preciso
transformá-lo em celebração dos saberes e modos de ser que possibilitam
aos povos subalternos sobreviver até hoje: Celebração que não é narcisista,
mas um agradecimento humilde à pacha que também sobrevive junto
conosco. E esse conosco esse ampliando e interconectando de múltiplas
maneiras para alimentar sua(nossa) vida”.
No mesmo movimento, entendemos o ensino de filosofia como
uma bolsaque pode ser suporte para histórias e ferramentas adequadas
aos desafios do nosso tempo, construída coletivamente com nossas
próprias mãos, como o cofo de Antonio Bispo dos Santos, em que possamos
carregar as histórias da vida nesse planeta, semeando-a, de maneira que tais
histórias e ferramentas, como quaisquer outras, possam ser decompostas e
substituídas por outras cosmopercepções sobre a existência. Um filosofar no
qual o essencial são as criações e sincronizações coletivas e não apenas a
repetição de um rol fechado de conteúdos.
Os homens modernos se julgam os legítimos sabedores das
verdades do mundo, os únicos portadores do conhecimento objetivo e
433
definitivo sobre a Terra, do qual outros grupos sociais teriam apenas
representações distorcidas, se autodenominando os detentores do direito
exclusivo de explorar todos os outros humanos e mais que humanos e de
todas as barbáries eco-políticas subjacentes. Alyne Costa chama a atenção
para os “modos próprios de outras ontologias conceberem os entes que
habitam o mundo” (COSTA, 2019, p. 06). Para ela, a pluralidade
ontológica, “o reconhecimento de que a Terra se dá e é pensada de muitos
modos” (COSTA, 2019, p. 17), exige que ela seja entendida através desse
feixe de cosmoperspectivas, até mesmo porque foi a imposição de uma
perspectiva única que produziu a guerra de mundos de que fala Latour e
cujo pior sintoma é a crise ecológica. Como ela explica:
apesar de ser única, a Terra não é a mesma para todos: sua unicidade não
presume qualquer univocidade. Se podemos falar em uma única Terra, é
apenas no sentido de que é possível, mediante um procedimento de
tradução/comparação, colocar em continuidade os variados mundos, isto é, as
variadas versões do Mundo expressas pelas distintas cosmologias existentes.
(COSTA, 2019, p. 17-18)
Costa chama a atenção para a multiplicidade eco-ontológica, um
mundo com diversas camadas de existência, as quais não podem ser
entendidas como um mosaico com várias versões lado a lado, pois não são
apenas parte de um mundo universal, são diferentes formas de expressão
dessa comunalidade que é Terra. O “Mundo” é, portanto, um “conjunto
de mundos” (COSTA, 2019, p. 56). Para perceber Gaia como uma casa
comum, precisamos tratar as diferentes ontologias de maneira simétrica,
isto é, reconhecendo a “coexistência de realidades constituídas de maneiras
distintas, sem que qualquer uma delas possa ser considerada mais legítima
que as outras” (COSTA, 2019, p. 43). Entre percepções divergentes sobre
434
a Terra, Costa dialoga com os devires terranos, pessoas e povos que veem a
Terra e seus seres como aliados na existência e não apenas recursos a
explorar.
Considerando a multiplicidade eco-ontológica, qualquer
cosmopolítica precisa se dar em negociações entre mundos. Como ressalta
Haraway (2019, p. 21, tradução nossa), “Eu nós como descendentes
das histórias coloniais e imperiais, temos que reaprender a conjugar
mundos com conexões parciais e não com ideias universais ou
particulares”. É sobre alianças e conexões parciais que Haraway fala com a
sua proposta de response-ability. O neologismo de Haraway tem um duplo
sentido, ao mesmo tempo cultivar potencialidades de resposta e cultivar
hábitos menos daninhos e mais responsáveis com a nossa casa cósmica. A
response-ability é situada e emaranhada no contexto, não determina
princípios universalmente válidos, e inclui além de agências humanas
soterradas, mais que humanas, Gaia, entre outros/as/es. Response-ability
significa construir outras potencialidades, exige o cultivo. Nesse sentido, o
ensino de filosofia com o cultivo de problemas que emerjam das diferenças
pode promover experiências de responder com responsabilidade aos
desafios de coexistir nessa pluralidade ontológica. O que somos é um
conjunto de hábitos que nos compõe e que produzem nossa percepção,
cultivar hábitos significa experienciar outros movimentos situados no aqui-
agora.
O sentido de response-ability que trazemos para nossa proposta se
relaciona com o cultivo da ação criativa a partir de ferramentas
interculturais diversas, explicitando o contexto das disputas e
consequências que as envolvem. Assim, busca a ampliação e não a redução
dos direitos de aprendizagem, um afinamento da percepção para outras
histórias, por meio de um composto teoria/prática que se articula pela
435
experiência. Se, por um lado, a garantia da pluralidade é importante para
a articulação com as demandas locais como pontuamos no primeiro
capítulo, por outro lado, no “Mundo” em que vivemos não é possível
ignorar as histórias dominantes, entender suas implicações faz parte da
responsabilidade do nosso tempo, inclusive para a compreensão das
origens desse mundo em colapso. A história dominante precisa ser contada,
não na perspectiva do herói, mas através de uma interculturalidade crítica,
com os cruzos e atravessamentos de outras histórias soterradas. Por isso, a
bolsaque propomos é grande e parte de um sentido de “utilidade” muito
mais amplo do que a ontologia hegemônica. O eixo principal é a vida no
planeta, não o mercado de trabalho, ou os interesses colonizadores. A
pergunta-guia é de que formas essa história dominante se relaciona com as
histórias locais? Interessa ampliar a ão aprendendo com as histórias de
resistências locais diante dos problemas criados pela ontologia hegemônica.
Como aponta Haraway (HARAWAY et al., 2016, p. 561, tradução
nossa), Temos o hábito mental de muito rapidamente buscar uma teoria
de tudo, e precisamos deixar de cultivar esse hábito” e cultivar outros que
produzam movimentos mais integrados à Gaia. Em geral, lidamos com os
problemas buscando respostas rápidas e soluções definitivas. Ficar com o
problema tem a ver com acolher as divergências deixando as dissonâncias
proliferarem” (COSTA, 2019, p. 67), abrir “espaço para que outros
elementos se agreguem, para que novos possíveis sejam vislumbrados”
(COSTA, 2019, p. 67), de maneira que “as soluções, que sob um
pensamento monolítico consistiam numa mera reprodução de consensos
pré (e mal) estabelecidos, se convertem na produção de novos sentidos,
relações, formas de existir e de conceber essa comunalidade não
universalista do mundo” (COSTA, 2019, p. 67). Trocar a pressa do
436
consenso pelo acolhimento da divergência é um hábito a ser cultivado para
fazer brotar a potencialidade de reagir com responsabilidade.
Se a crise atual pode ser entendida como um processo de
desincronização entre os ritmos do planeta e os modos de vida do humano
moderno, o desafio atual é buscar modos de sincronizar com a ecosofia da
Terra. Não significa cultivar utopias para mudar o mundo, mas mudar
junto com Gaia, a moradia comum de todos os seres terrestres, que se
transforma o tempo todo. E, a partir disso, compor com as diferenças e com
Gaia. Nesse sentido, o ensino de filosofia é comprometido com uma
ecologia das práticas.
O olhar atento e sensível à coexistência emaranhada nos oferece
caminhos para vivermos juntos/as/es. Se a ressurgência é um processo
contínuo – nunca por acabar de recomposição do solo e da existência em
suas múltiplas dimensões na Terra, “Todos nós devemos nos tornar mais
ontologicamente inventivos e sensíveis dentro do pretensioso holobioma
que a Terra acabou sendo, seja chamada de Gaia ou Mil Outros Nomes”
(HARAWAY, 2016, p. 98, tradução nossa). A sincronização no mundo
tentacular articula-se com aliados de todos os tipos ontológicos, diz
respeito à potência de perceber e agir de maneira sensível à ecosofia. Se a
Terra tem múltiplas cosmoperspectivas, a vida que emerge dela exige
alianças simbióticas e negociações.
A filosofia ocidental hegemônica tornou a política “uma prática
exclusiva aos seres humanos (os únicos dotados de logos) e tomada
sobretudo no registro do poder estatal (soberania para governar,
autoridade para decidir, leis para impor obrigações e direitos etc.)
(COSTA, 2019, p. 40). Se na filosofia hegemônica a política emerge
quando se estabelece a separação entre natureza e cultura, a cosmopolítica
437
aponta a necessidade de habitarmos a política com todos os seres da Terra.
A política terrana, bem como a filosofia terrana, portanto, é uma
cosmopolítica na qual Gaia também é agente.
Contudo, como negociar diante da multiplicidade eco-ontológica?
Em resposta a essa necessidade ““tradução” se transforma em uma palavra
mágica. Não se trata de um debate sobre diferenças, mas, sim, sobre estar
em diferentes posições para enxergá-las, ou, mesmo, identificá-las. O
debate ainda é sobre igualdade” (BALLESTRIN, 2017a, p. 1051).
Viveiros de Castro (2004) entende a tradução como uma
equivocação controlada, pois a tradução entre diferentes ontologias será
sempre necessariamente equívoca. A equivocação coloca a tarefa de se
comunicar como um movimento em que enfatizamos as diferenças. Se as
categorias têm outros referentes em outros contextos, o processo de
tradução tem a ver com indicar tais diferenças e buscar conexões parciais.
As categorias equívocas são, portanto, parciais e cosmopoliticamente
motivadas. Ao focar nas diferenças, mantemos a incomensurabilidade dos
mundos heterogêneos do pluriverso. Assim, não se trata de um processo
de tradução do outro, mas de através do diálogo nos colocarmos enquanto
objetos a serem movimentados por outras percepções. Contudo, a
tradução é um processo de abertura à/ao outra/o/e, um processo de
deslocamento de si.
Nesse sentido, como propõe Alyne Costa, a tradução é um
processo de sintonização das divergências (COSTA, 2019), um processo de
descrição das equivocações estabelecendo continuidades em meio às
diferenças. Como ela explica:
438
o que propomos aqui é que essa tradução, passagem ou transformação entre
contextos se dá nos moldes da sintonização de uma frequência de onda num
aparelho de rádio. Do mesmo modo em que a sintonização (a sintonia fina) de
uma estação AM ou FM demanda que outras ondas captadas simultaneamente
pela antena do aparelho receptor sejam neutralizadas com vistas a fazer ressoar
uma determinada frequência ou faixa de frequência particular (a da estação
desejada), a conversão entre perspectivas de ontologias distintas demanda
sermos capazes de sintonizar, em meio às equivocações pelas quais elas se
expressam, uma frequência particular em que a ressonância pode ser produzida.
Essa imagem da sintonização interessa sobretudo para ressaltar as frágeis
condições da tradução: uma vez obtida a sintonia, outras equivocações podem
interferir em sua estabilidade, e mesmo a ressonância produzida pode perder a
força diante de transformações nos contextos dos elementos sintonizados. A
passagem de uma cosmologia a outra, assim, se dá por um procedimento
precário de estabilização provisória de equivocações que fazem as vezes de
variantes uma da outra. (COSTA, 2019, p. 60-61)
O que Alyne Costa chama de sintonização das divergências é “o
processo de tradução capaz de produzir sua unidade; no lugar da
univocidade, a equivocação” (2019, p. 42). Para ela, a “equivocação
controlada é também seu compromisso político: o de admitir o outro
como um agente teórico, enunciador de sua própria filosofia, a qual, em
contato com a filosofia do antropólogo, pode curto-circuitar os
fundamentos deste último” (COSTA, 2019, p. 44). Assim, “o modo de
existência dos seres é a variação, a sintonização de perspectivas pertencentes
a cosmologias distintas, da qual a construção do comum depende, redefine
os seres como variantes uns dos outros” (COSTA, 2019, p. 61). Nesse viés,
as singularidades podem ser entendidas em termos de “faixas de
frequência”. No entanto, é importante compreender que as
“recomposições possíveis são sempre parciais porque, diante da voracidade
da destruição que nos cerca, não há razão para cultivar sonhos
439
salvacionistas, para esperar solucionar o problema de uma vez por todas”
(COSTA, 2019, p. 222).
Em nossa percepção, tal processo de tradução também envolve
mais que humanos. A tradução no âmbito de outros seres tem a ver com
observação e outras linguagens, outras formas de diálogo, como vimos com
Tsing e as assembleias polifônicas. Até porque “mundos são feitos nas
trajetórias cruzadas de muitas espécies que vivem em comum” (TSING,
2019, p. 66).
A cosmopolítica tem a ver com as alianças e não com consensos ou
univocidades como no cosmopolitismo kantiano. Nesse sentido, são
sempre negociações arriscadas, por isso, Haraway propõe uma bolsana
qual possamos carregar diversas iniciativas situadas no contexto. Só temos
um planeta, não dá para abrirmos mão das negociações, assim como para
viver não é possível abrir mão das alianças simbióticas. Enquanto a
modernidade é o mundo em uma frequência única, negligenciando a
multiplicidade eco-ontológica, a sintonização das divergências diz respeito
a estar atento às frequências sonoras dos seres, percebendo as composições
polifônicas que fazem o Mundo”. A política do Antropoceno envolve
negociações com a população em geral, com outros povos, outros seres,
com Gaia, com vírus, em diferentes escalas, modulações e frequências dos
mundos, dos seres, dos modos de vida, etc. Unidade sem univocidade.
Pensar, ser, estar no plural não é um mero detalhe.
Contudo, para que tais negociações e alianças sejam simétricas é
preciso entender todos/as/es como agentes, e não como objeto de
pensamento, fugindo de uma relação binária sujeito/objeto tão presente na
produção de conhecimento e entendendo a tradução mais como diálogo
do que com um conjunto de regras. Os povos vítimas da colonização
440
sempre foram vistos como recurso, sua terra, as pessoas, os seres do seu
território, a sua cultura e conhecimento, tudo isto é visto como recurso de
exploração para manter o sistema hegemônico. Como explica Leanne
Betasamosake Simpson (2012, n.p., tradução nossa)
36
.
Extração e assimilação andam juntas. O colonialismo e o capitalismo baseiam-
se na extração e assimilação. Minha terra é vista como um recurso. Meus
parentes nos mundos vegetal e animal são vistos como recursos. Minha cultura
e conhecimento são um recurso. Meu corpo é um recurso e meus filhos são
um recurso, porque eles têm o potencial de crescer, manter e sustentar o
sistema de extração-assimilação. O ato de extração remove todos os
relacionamentos que dão sentido ao que está sendo extraído. Extrair é tomar.
Na verdade, extrair é roubar é tomar sem consentimento, sem pensamento,
cuidado ou mesmo conhecimento dos impactos que a extração tem sobre os
outros seres vivos naquele ambiente. Isso sempre fez parte do colonialismo e
conquista. O colonialismo sempre extraiu os indígenas extração de
conhecimento indígena, mulheres indígenas, povos indígenas.
[...] Quando houve um esforço para trazer o conhecimento tradicional para o
pensamento ambiental após Nosso Futuro Comum, [um relatório emitido pela
Comissão Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento] no final dos anos 80, foi uma abordagem muito extrativista:
“Tomemos qualquer ensinamento que vocês possam ter que nos sirva fora de
seu contexto, longe de seus especialistas, de seu idioma, e integre-o nessa
mentalidade assimilacionista”. É a ideia de que o conhecimento tradicional e
os povos indígenas têm algum tipo de segredo de como viver na terra de uma
maneira não exploradora que a sociedade em geral precisa se apropriar. Mas a
mentalidade extrativista não é sobre ter uma conversa, dialogar e trazer
conhecimento indígena sobre os termos dos povos indígenas. Trata-se de
extrair quaisquer ideias que os cientistas ou ambientalistas considerassem boas
e assimilá-las. [...] coloque no papel higiênico e venda para as pessoas. Existe
uma extração intelectual, uma extração cognitiva e também uma física. A
36
Nossa referência é uma entrevista que ela concedeu à Naomi Klein em 2012 disponível em
https://www.yesmagazine.org/social-justice/2013/03/06/dancing-the-world-into-being-a-conversation-
with-idle-no-more-leanne-simpson/
441
máquina que promove o extrativismo é enorme em termos de TV, filmes e
cultura popular. (SIMPSON, 2012, n.p., tradução nossa)
O extrativismo epistêmico (GROSFOGUEL, 2016) consiste em
tratar o outro em geral grupos sociais invisibilizados tanto humanos
quanto mais que humanos como recurso através da continuidade das
formas de saque coloniais roubo de seus territórios e exploração por
meio do roubo de seus saberes, descontextualizando-os e falando por eles,
retirando a sua dimensão radical para usá-los a serviço de interesses
hegemônicos. Dessa forma, há a apropriação de saberes de povos e seres
em luta há séculos, sem compromisso político com suas pautas e
movimentos sociais, assimilando e ressignificando tais saberes a partir de
lógicas ocidentalocêntricas. Nesse processo, a dimensão radical de tais
filosofias é ignorada para usar seus saberes à serviço do mercado, ou para a
venda de produtos“coloque no papel higiênico e venda para as pessoas”
(SIMPSON, 2012, n.p., tradução nossa) patentes, direitos autorais;
publicação de artigos ou como capital simbólico para obter prestígio.
Quando dialogamos com tais filosofias sem refletir sobre as relações
cosmopolíticas que as permeiam e sem compromisso com suas demandas,
não contribuímos para as mudanças estruturais necessárias para a
descolonização, mantendo tais filosofias e povos no lugar de objetos.
Trata-se de romper com um entendimento do filosofar como uma
atividade individualista e que olha para a realidade como se tivesse distante
dela. Também significa romper com a perspectiva culturalista que
descontextualiza os saberes não hegemônicos aplicando-os em um
contexto diverso de modo romantizado, sem levar em conta que há
relações de opressão também nesses territórios. Nesse sentido, as relações
de podero tão importantes quanto as geográficas e precisam ser pensadas
442
de modo articulado. Como afirma Simpson (SIMPSON, 2012, n.p.,
tradução nossa), o que falta é:
responsabilidade. Porque eu acho que quando as pessoas extraem coisas, elas
estão pegando e correndo e estão usando isso apenas para o seu próprio bem.
O que está faltando é a responsabilidade. Se você não está desenvolvendo um
relacionamento com as pessoas, não está retribuindo, não está esperando o
impacto da extração. Você está se mudando para outro lugar.
A alternativa é profunda reciprocidade. É respeito, é relacionamento, é
responsabilidade e é local. Se você for forçado a permanecer no raio de 80
quilômetros, experimentará os impactos do comportamento extrativista. A
única maneira de se proteger disso é quando você recebe sua comida de todo o
mundo ou de algum outro lugar. Portanto, quanto mais distância e mais
globalização, mais protegido eu estou dos impactos negativos do
comportamento extrativista.
Então, acho que é uma mudança de mentalidade de ver os povos indígenas
como um recurso a ser extraído para nos ver como povos e nações inteligentes,
articulados, relevantes, vivos, que respiram. Eu acho que isso exige que
indivíduos, comunidades e pessoas desenvolvam relacionamentos justos,
significativos e autênticos conosco. Temos muitas ideias sobre como viver
suavemente em nosso território, de uma maneira que temos jurisdições e
nações separadas, mas em um território compartilhado. Eu acho que há uma
responsabilidade por parte da comunidade e da sociedade convencionais de
descobrir uma maneira de viver de maneira mais sustentável e de se extrair do
pensamento extrativista. E assumindo seu próprio trabalho e responsabilidade
para descobrir como viver com responsabilidade e prestar contas às próximas
sete gerações de pessoas. Para mim, essa é uma mudança que a sociedade
canadense precisa assumir, essa é sua responsabilidade. Nossa responsabilidade
é continuar a recuperar esse conhecimento, recuperar essas práticas, recuperar
as histórias e filosofias e reconstruir nossas nações de dentro para fora. Se cada
grupo estivesse realizando seu trabalho de maneira responsável, acho que não
ficaríamos presos nessas caixas. (SIMPSON, 2012, n.p., tradução nossa)
443
Assim como Simpson, entendemos que o extrativismo epistêmico
gera um enorme impacto, pois, quando os saberes são retirados de seus
contextos de forma irresponsável, não sabemos para quais fins podem ser
utilizados. Compreendemos a importância dessa responsabilidade indicada
por Simpson ao ouvir o relato
37
de uma jovem quilombola que contava ter
recebido de modo muito acolhedor em sua comunidade um grupo de
pesquisadores e, após algum tempo, quando uma empresa fazia uma
investida extrativista em seu território, descobriu na internet um mapa do
local desenvolvido por tais pesquisadores e que estava sendo utilizado pela
empresa. Quando apenas extraímos o que nos interessa da vida de outras
pessoas sem buscar compreender as relações políticas que os envolvem,
corremos o risco de colaborar com a sua destruição. Nesse sentido, é
preciso que percebamos os diferentes saberes a partir das relações de poder
que os assolam de forma politizada e não alienada. A mudança precisa ir
além da linguagem, ainda que ela seja importante. Como aponta
Cusicanqui, a descolonização ainda é uma utopia que só poderá existir a
partir de uma luta anticolonial e não através de um “multiculturalismo
teórico, racializado e exotizante das academias” (2010, p. 65). Caso
contrário, se perpetuará a lógica extrativista de fornecimento de matérias-
primas do Sul para o Norte global.
Como afirma Simpson (2012, n.p., tradução nossa), é necessário
reciprocidade no diálogo intercultural. A descolonização profunda
significa perceber os povos do Sul global como agentes da própria história,
que pensam e produzem saberes válidos e modos próprios de existência e,
portanto, que falam e pensam por si mesmos. Caso contrário, nossas aulas
podem servir de instrumentos para mais extrativismo de seus territórios,
37
Tal relato ocorreu em um debate do IV Colóquio Internacional Diálogos Sul-Sul, realizado em Belém
(PA) em 2019.
444
oferecendo ferramentas para intenções exploratórias sobre tais povos.
Mesma relação que precisa se estabelecer com os saberes dos/as/es
estudantes, entendendo-os como agentes e portadores de voz e pensamento
próprio.
Dessa forma, a ecologia das práticas implica em romper com o
distanciamento com o objeto de estudo ao mesmo tempo em que devemos
estar vivenciando, de fato, os problemas que estudamos para que tenhamos
clareza das consequências dos saberes que produzimos. Assim, um filosofar
responsável significa uma profunda mudança nas nossas ações para não
recairmos num discurso “despolitizado da alteridade” (CUSICANQUI,
2010, p. 64, tradução nossa). Como explica Cusicanqui (2010, p. 62,
tradução nossa):
não pode haver discurso da descolonização, uma teoria da descolonização, sem
uma prática descolonizadora. O discurso do multiculturalismo e o discurso da
hibridez [...] encobrem e renovam práticas colonização e subalternização
eficazes. Sua função é suplantar as populações indígenas como sujeitos da
história, converter suas lutas e demandas em ingredientes de uma reengenharia
cultural e estatal capaz de submetê-los a sua vontade neutralizadora. Uma
“mudança para que nada mude” que dá reconhecimento retórico.
(CUSICANQUI, 2010, p. 62, tradução nossa)
Em outras palavras, significa alterar profundamente a forma com
que produzimos e nos relacionamos com os saberes, a fim de não perpetuar
uma “versão logocêntrica e nominalista da descolonização”
(CUSICANQUI, 2010, p. 64, tradução nossa), isto é, uma “mudança para
que nada mude”. Contudo, um filosofar não hegemônico não pode ser
feito na mesma lógica alheia à vida própria da metodologia hegemônica da
filosofia acadêmica no Brasil. Implica em estarmos atentos/as/es tanto para
445
as relações estruturais e sistêmicas que nos envolvem quanto as que
envolvem os saberes que estudamos para além do que está escrito em um
texto. O que as filosofias não hegemônicas nos ensinam é justamente a não
objetificar. Estudar tais filosofias profundamente significa repensar as
categorias que sustentam o que entendemos do mundo, do conhecimento
e da própria filosofia.
Portanto, pensar desde o nosso território não é suficiente porque
precisamos estar atentos/as/es à colonialidade interna e o papel que
desempenhamos nela, que só pode ser entendido de uma perspectiva ampla
sobre o contexto, considerando suas relações cosmopolíticas e não restritas
a uma experiência singular com o mundo. É um pensar além de nós
mesmos/as/es, filosofar-com. Não um pensar sobre outras perspectivas,
significa construir filosofias junto com outras percepções. O mundo não se
resume a uma experiência singular dele, logo, não é possível pensar a
realidade que vivemos a partir de uma filosofia individualista, pois é
necessário ouvirmos outras vozes além da nossa, percebermos outras
frequências.
Para não cometer o mesmo equívoco, o processo de escuta é
fundamental em um território cujo imaginário social é encobridor da
realidade. Em nosso caso, isso passa por um reconhecimento da nossa
condição enquanto formada por um racismo estrutural que nos privilegia
e que só pode ser descontruído buscando reparação. Precisamos analisar o
mundo nos incluindo nele e não de forma descolada e abstrata. A filosofia
só pode colaborar com os mundos contemporâneos em uma nova
percepção, que não se encerra na abstração, que não é universalista e que
se movimenta a partir da ação por meio de gestos desencobridores
(CUSICANQUI, 2018).
446
A partir disso, pensamos o ensino de filosofia como um contexto
suscetível às sintonizações, no qual os problemas emergem do comum para
os muitos mundos que compõem Gaia, no qual docentes são
mediadores/as de novas com-posições, novas histórias para produzir
mundos menos daninhos e mais férteis. Exercitar a tradução entre mundos
no ensino de filosofia permite outra sociedade que vê fronteiras e não as
ignora. A aula de filosofia como espaço para viajar entre mundo, cultivar
response-abilities de sintonização das divergências e alianças simbióticas.
Nesse viés, o ensino e a aprendizagem são processos recíprocos e
coletivos, nos quais os problemas reais do cotidiano são comunalidades.
Assim, o ensino de filosofia possibilitaria experienciar alianças contra o
negacionismo dos tempos em que vivemos e que atinge profundamente
todas as iniciativas de uma compreensão de mundo ecológica. Inclusive
contra o negacionismo da própria filosofia, vista como uma área inútil. O
que está em jogo aqui é uma outra forma de perceber o próprio planeta em
sua pluralidade ontológica. E se o mundo não é unívoco, a filosofia muito
menos, de maneira que a multiplicidade de filosofares e suas formas de
expressão precisa ser ponto de partida.
O negacionismo nestes tempos urgentes tem sido estratégia das
elites para ganhar tempo, haja vista que neste modelo é evidente que não
há mais mundo para todos/as/es. O sistema de produção não faz mais
sentido. Embora o conhecimento científico tenha diversas contribuições,
a força dos movimentos negacionistas no cenário atual aponta para outras
formas de entendê-lo. Concordamos com Bateson que a ciência é um
“método de percepção” (1986, p. 36). Ainda que muitos entendam que tal
perspectiva descredibiliza o saber científico, entendemos que justamente
este é seu valor. Entender como o conhecimento científico é produzido,
enquanto um saber eminentemente político e intencionado, torna-o ainda
447
mais confiável, desde que esta área esteja preocupada com as mediações e
diálogos com outras percepções. Compartilhamos do pensamento
daqueles que entendem a necessidade do pragmatismo na informação para
que ela possa despertar desejos, mobilizar as pessoas a se engajarem com
tais saberes, pois o mundo cotidiano tem mostrado que o acesso à
informação não é suficiente para que uma diferença faça diferença.
Mobilizar as pessoas em prol do conhecimento é essencial para uma
política de alianças.
As perspectivas feministas da ciência visam a romper com a suposta
universalidade da percepção. Haraway (1995, p. 31) destaca que a
“objetividade não pode ter a ver com a visão fixa quando o tema de que
trata é a história do mundo”, pois o próprio mundo é dinâmico. A ciência
no sentido hegemônico, como uma forma única de entender o mundo, é
denominada por Haraway como um “truque de deus”, pois afirma ver
tudo sem dizer de que lugares parte, como o olho onipresente que a tudo
vê de lugar nenhum, uma visão infinita que não especifica suas mediações
inclusive tecnológicas, matemáticas, etc. e, consequentemente, não
assume as responsabilidades sobre o que vê. Nesse sentido, podemos dizer
que todas as ciências no viés hegemônico têm seus “truques de deus”. No
entanto, a autora ressalta (HARAWAY, 1995, p. 24):
o relativismo e a totalização são, ambos, "truques de deus", prometendo,
igualmente e inteiramente, visão de toda parte e de nenhum lugar, mitos
comuns na retórica em torno da Ciência. Mas é precisamente na política e na
epistemologia das perspectivas parciais que está a possibilidade de uma
avaliação crítica objetiva, firme e racional. (HARAWAY, 1995, p. 24)
448
Ou seja, se para recusar os “truques de deus” alguns se inclinam ao
relativismo, os mecanismos permanecem os mesmos. Para assumir a
responsabilidade sobre aprendemos a ver, Haraway (1995, p. 25) convoca
a perguntar: “Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?”.
Haraway afirma que o feminismo ama outra ciência, “a ciência e a
política da interpretação, da tradução, do gaguejar e do parcialmente
compreendido” (HARAWAY, 1995, p. 31). Assim, a partir das percepções
feministas, ela propõe entender a objetividade como racionalidade
posicionada. Haraway afirma que a “alternativa ao relativismo são saberes
parciais, localizáveis, críticos, apoiados na possibilidade de redes de
conexão, chamadas de solidariedade em política e de conversas
compartilhadas em epistemologia” (HARAWAY,1995, p. 23). Para ela, é
justamente na parcialidade dos saberes que está a possibilidade de uma
avaliação objetiva e racional, pois o eu cognoscente é sempre parcial em
todas as suas formas, nunca acabado, de maneira que o tomar por imparcial
é uma irracionalidade, uma distorção dos fatos. Portanto, um
conhecimento racional que “não tem a pretensão do descompromisso: de
pertencer a todos os lugares e, portanto, a nenhum, de estar livre da
interpretação, da representação, de ser inteiramente auto-contido ou
inteiramente formalizável” (HARAWAY, 1995, p. 32).
O eu cognoscente supostamente imparcial não se responsabiliza
pelos conhecimentos que produz. O mais relevante da perspectiva de
Haraway é chamar a atenção para a reponsabilidade: “Posicionar-se
implica em responsabilidade por nossas práticas capacitadoras”
(HARAWAY, 1995, p. 27). Por isso, quando buscamos uma ciência com
outra perspectiva sobre a objetividade, a “questão não deveria ser
relativismo e sim posição” (HARAWAY, 1995, p. 28). Se trata de
“políticas e epistemologias da objetividade corporificada e, portanto,
449
responsável” (HARAWAY, 1995, p. 29). Nesse sentido, a parcialidade,
exposta e evidenciada, sempre desde algum lugar, é “a condição de ser
ouvido nas propostas a fazer de conhecimento racional” (HARAWAY,
1995, p. 30). Assim, a ciência pode ser entendida como uma “junção de
visões parciais e de vozes vacilantes numa posição coletiva de sujeito que
promete uma visão de meios de corporificação finita continuada, de viver
dentro de limites e contradições, isto é, visões desde algum lugar
(HARAWAY, 1995, p. 33-34).
Além disso, os “Saberes localizados requerem que o objeto do
conhecimento seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou
um terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um escravo do
senhor que encerra a dialética apenas na sua agência e em sua autoridade
de conhecimento objetivo” (HARAWAY, 1995, p. 36). Em um certo
sentido, podemos dizer que a racionalidade posicionada tem a ver com
manter o encantamento do mundo, compreendendo a agência dos
próprios objetos de pesquisa, tal como a compreensão que estamos
trazendo aqui de Gaia. Contudo, a “Objetividade não diz respeito a des-
engajamento, trata de um estruturar mútuo e comumente desigual, trata-
se de assumir riscos num mundo no qual nóssomos permanentemente
mortais, isto é, não detemos o controle final” (HARAWAY, 1995, p.
41).
Nesse sentido, assumir uma racionalidade posicionada significa
expor a posição parcial sem esconder o que motiva a ação. Exige algum
tipo de cálculo, mas que “não está terminado quando a análise do melhor
custo-benefício do dia está feita(HARAWAY, 2011, p. 53), também não
está terminado quando as melhores regras são seguidas ao pé da letra, de
maneira que nunca estamos quites com nossas responsabilidades. Assim,
“Os cálculos razões são obrigatórios e radicalmente insuficientes para
450
a mundanidade de espécies companheiras” (HARAWAY, 2011, p. 53),
pois “a pretensão de ter Razão Suficiente é uma perigosa fantasia enraizada
nos dualismos e concretudes mal colocadas do humanismo religioso e
secular” (HARAWAY, 2011, p. 53).
Nesse viés, entendemos que atuar como docente é fazer
negociações e alianças. Em minha prática isto ocorre em diversas camadas.
Uma delas tem a ver com as alianças possíveis e parciais com docentes e
funcionários, nas quais possamos tensionar caminhos mais plurais para as
instituições, negociações arriscadas considerando que as instituições estão
tomadas em seus espaços de decisão por percepções unívocas. Nesse
sentido, responsabilizamo-nos pelos espaços institucionais, ocupando as
frestas dos possíveis espaços de decisão. Fazer alianças também está ligado
a aulas coletivas com docentes de outras áreas do saber, nas quais não é
possível fugir da constatação de que docentes também aprendem, de
maneira que tal exemplo pode ser um convite para o aprender coletivo, o
que também permite uma compreensão do conhecimento não disciplinar.
No entanto, é importante ressaltar que a interdisciplinaridade que
defendemos mantém as especificidades de cada área do conhecimento e
dos saberes canônicos, partindo de uma compreensão crítica dos saberes
como construções histórico-sociais. Tais alianças são necessárias, pois
compreender o ensino como uma prática individualista, na qual apenas a
nossa prática individual deve ser o foco, é muito pouco, especialmente
porque é possível que em boa parte das outras aulas estudantes possam
estar sendo soterrados/as/es. Assim, quaisquer práticas isoladas na 1h30
semanal que temos não passará de um mero respiro que não contribui
para uma mudança profunda de mentalidade.
A valorização de aulas coletivas me acompanha há alguns anos,
tendo tido seu momento inicial com a oportunidade de atuar no Programa
451
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Entre 2010 e 2011
como bolsista, acompanhando docentes como Genivaldo de Souza Santos,
pessoa essencial em nossa formação, pude ampliar as concepções que tinha
de ensino e de filosofia, especialmente porque semanalmente as percepções
eram compartilhadas no Grupo de Pesquisa e Estudos de Ensino de Filosofia
(Enfilo), no qual tais debates ocorriam, mas também vivências coletivas
nas quais criei alianças duradouras e que ainda me fornecem muito a
pensar e sentir. Além disso, de 2016 a 2018, tive a oportunidade de atuar
como professora-supervisora do PIBID, o que decompôs todas as práticas
de ensino que havia me habituado a fazer. Ouvir graduandos/as que me
acompanhavam, bem como elaborar as aulas e avaliar coletivamente, me
possibilitou perceber muitos outros mundos da minha prática de ensino
de filosofia. Lembro-me nitidamente de que, após a discussão de um filme
sugerido por um bolsista com uma turma de segundo ano do ensino
médio, e que gerou diversas dificuldades um estudante se recusou a
assistir por ser evangélico, houve muita bagunça durante a exibição, e ao
final não considerei que haviam entendido a mensagem do filme
corretamente , o graduando em questão apresentou outra percepção. Ele
pontuou diversos avanços durante o debate para os quais eu não havia dado
o devido valor quando expus para ele minhas impressões sobre a aula.
Nesse momento, percebi que estava muito presa às minhas expectativas
sobre os/as/es estudantes e que não conseguia perceber o que acontecia para
além disso. Este momento mudou radicalmente a maneira como me
relaciono com os/as/es estudantes e como elaboro meus planos de ensino,
evidenciando a necessidade de des-idealização dos/as/es estudantes como
discutimos no primeiro capítulo. Por tudo isso, considero o PIBID como
uma importante aliança em minha composição como professora.
452
Parece que o maior desafio não está em entender saberes de
maneira conectada, mas em entender pessoas de maneira integrada, de
modo a compreender os problemas que emergem não como algo a excluir,
mas como parte dos processos de aprendizagem. A instituição que
trabalhamos foi uma fazenda pertencente a José de Sousa Breves inclusive
a rua em que a escola se localiza recebeu seu nome , que, como
comprovam documentos, traficava escravizados/as/es mesmo após a
abolição. Tal contexto é perceptível em todos os espaços, está na escadaria
que leva ao prédio da diretoria chamado decastelinho” e nos porões
existentes embaixo das salas de aula. Uma educação responsável neste
contexto tem a ver com ressignificar esta memória, de maneira que o
ensino se volta para a reparação desse passado.
Outra camada de negociação, a qual consideramos das mais
importantes, são os espaços proporcionados pelos núcleos, nos quais
servidores e estudantes atuam conjuntamente em prol de interesses
comuns. Minha atuação se dá coletivamente com outros servidores e
discentes através do Núcleo de estudos afro-brasileiros e indígenas (NEABI)
e do Núcleo de estudos de gênero e diversidade sexual (NUGEDS), alianças
essenciais no contexto em que me localizo e importantes espaços de
aprendizagem para todos/as/es envolvidos/as/es.
Entendemos que, para tornar possíveis as percepções trazidas neste
texto, é desejável uma nova compreensão da formação docente. Assim
como docentes que tiveram seus filosofares silenciados durante a formação
reproduzem filosofias alienadas, docentes formados por processos
opressores têm maiores chances de reproduzir os mesmos processos por
terem suas potencialidades silenciadas e soterradas. A formação deveria ser
um espaço para descobrir tais potencialidades. Contudo, sugerimos uma
formação mais ecosófica para outras bolsas e amarrações de saberes mais
453
férteis. Nesse viés se aponta para outra concepção de formação que não
está restrita apenas aos currículos e abordagens teóricas, vinculada à
extensão e pesquisa tanto na universidade quanto na educação básica.
Como destaca Guattari (1990, p. 54),
novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação
com o outro, com o estrangeiro, com o estranho [...] e exatamente na
articulação: da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante,
do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo
a saída das crises maiores de nossa época. (GUATTARI, 1990, p. 54)
Contudo, as diversas facetas ecológicas aqui apresentadas são
camadas de uma articulação que tem o foco nas práticas e suas
consequências. Assim, concordamos com Guattari (1990, p. 54), que os
“indivíduos devem se tornar a um só tempo solidários e cada vez mais
diferentes. (O mesmo se passa com a ressingularização das escolas, das
prefeituras, do urbanismo etc)”.
Um filosofar-cipó se constitui então de um filosofar-com, no qual o
mundo é um nó em movimento e a filosofia precisa com-por essa
amarração ecosófica. O filosofar-com consiste em cultivar hábitos e
potencialidades mais responsáveis através de oportunidades nas
instituições de ensino de perceber, pensar e fazer-com a partir das
comunalidades. Um filosofar-com humanos e não humanos em prol da
ressurgência multiespécies, produzindo com-posto, vivenciando e ficando
com os problemas coletivamente. Um ensino de filosofia que fomente o
filosofar-com, buscando soluções coletivas, incentivando resistências e
resiliências ao colaborar com outros mundos através de negociações e
alianças. O devir cipó, enovelado nos mundos humanos e mais que
454
humanos, é um convite para experienciar a percepção de pessoa coletiva e
outros filosofares, na qual muitos nós nos compõem em um Mundoque
pode ser entendido como um em constante movimento.
A filosofia que defendemos é popular, não está dentro de um cogito,
está nas salas de aula, nos corredores das instituições de ensino, nas ruas,
nos terreiros, e segue o movimento da vida. Se o “Mundoem que vivemos
é necropolítico, é preciso traçar estratégias cosmopolíticas de vida. Nossa
proposta convida a com-por bolsas que carregam outras histórias para a
vida, que acompanhem os movimentos dinâmicos através de um filosofar-
com vitalizado pelas urgências do aqui-agora.
455
Considerações Finais
Educação deve gerar gente feliz, escrevendo, batendo tambor, dando pirueta,
imitando bicho, fazendo ciência e gingando com gana de viver. (SIMAS &
RUFINO, 2018, p. 15).
Quero terminar este texto com o autor que me fez descobrir o
prazer de escrever: Paulo Leminski. O livro Catatau: um romance-ideia
(1975) de Paulo Leminski imagina uma situação que, embora nunca tenha
acontecido, não seria impossível. Leminski imagina Descartes em Recife
em 1640 como parte do grupo de intelectuais trazidos por Maurício de
Nassau, do qual o filósofo foi fidalgo. No romance, Cartésio/Descartes
pode ser entendido como aquele que traria o pensamento racional ao
Brasil, pois “Para o europeu, o Brasil soava absurdo, absurdo que era
preciso exorcizar a golpes de lógica, tecnologia, mitologia, repressões”
(LEMINSKI, 2012, p. 193). Na obra, Cartésio está embaixo de uma
árvore com uma luneta e fumando um cachimbo de maconha, local onde
uma preguiça defeca em sua cabeça, delira com os sustos que lhe causam
os animais que os cercam e os sabores das frutas. Enquanto a luneta lhe
produz confusões e incompreensões sobre o mundo, a erva o aproxima ao
mesmo tempo que proporciona uma brisa na qual Cartésio supõe que o
problema é o Brasil por não caber em sua teoria. Entre outras situações,
Cartésio se metamorfoseia em bicho.
456
O livro começa com a seguinte afirmação de Leminski (2012, p.
09): “Me nego a ministrar clareiras para a inteligência deste catatau que,
por oito anos, agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se”. Vinte e
três anos depois, em um pós-fácio intitulado “Descordenadas Artesianas”,
Leminski (2012, p. 190) definiu o romance como uma “ego-trip”
decorrente do “fracasso da lógica cartesiana branca no calor”. A perspectiva
cartesiana Reduz a multiplicidade do universo ao âmbito de um ego só
(LEMINSKI, 2012, p. 192). Como Leminski confessa, a ausência de
explicação da primeira edição diz respeito à proposta de tornar o próprio
livro uma expressão de um método anticartesiano. O texto não dá
explicações, assim como Cartésio não recebe as explicações que procura
durante toda a obra para entender o contexto em que está. Como destaca
Leminski (2012, p. 191), A multiplicidade de leituras do Catatau já traz
inscrita na própria multiplicidade de sentidos de que é portador seu
próprio nome, uma das palavras mais polissêmicas do idioma”, de maneira
que catatau pode ser entendido como um conceito perspectivista que
carrega diversos sentidos.
Pautado em alguns postulados da cibernética e definindo
informação como “expectativa frustrada” (2012, p. 192), Leminski explora
diversas formas de romper com a explicação própria da gica cartesiana.
O que personifica o caos é o monstro Occam, “um ser puramente lógico-
semiótico [...] É um orixá asteca-iorubá encarnando num texto
seiscentista” (LEMINSKI, 2012, p. 191), “um princípio de perturbação
da ordem, um agente subversivo, uma estática: o monstro é a
personificação (prosopopeia) do conceito cibernético de ruído”
(LEMINSKI, 2012, p. 193). Occam, encarnando o próprio caos, aparece
para destruir as certezas de Cartésio. Dessa forma, Leminski subverte o
princípio lógico da navalha de Ockham. Frustrando as expectativas do
457
pensamento claro e distinto, a obra de Leminski nos convida a perceber
que pensamento é susto como aparece da primeira versão-conto do texto.
Assim como Cartésio, o leitor tem suas expectativas frustradas com uma
obra que rompe com os princípios lógicos e promove uma experiência na
qual não é possível prever os caminhos do texto.
Em um certo sentido, a escrita desse texto se conecta com tal
propósito já que é resultado de muitas brisas como a do Catatau, pois os
caminhos que percorremos colocaram em dúvida as bases que
estruturavam nosso edifício do conhecimento, produzindo diversas ego-
trips durante o percurso. Muitos dos/as pensadores/as que aparecem nessas
páginas foram monstros Occam para nós. Nosso texto também carece de
algumas explicações que nos foram requisitadas durante sua elaboração,
podendo ser entendido mais como brisas artesianas do que meditações
metafísicas. Se a explicação desencanta o mundo e o corpo, queremos
encantá-lo através de filosofias que produzam linhas de fuga, viver e morrer
bem, metamorfosear em bicho, planta, fungo, cipó, experienciar
potencialidades em devires que possibilitem a cura nossa e da Terra.
O processo pelo qual passamos com este texto se assemelha com as
transformações que o conhecimento passou nas últimas décadas. Cada
capítulo compõe uma camada deste processo. Primeiramente parti dos
incômodos decorrentes de minhas experiências enquanto professora e
filósofa, refletindo acerca das bases do ensino de filosofia no Brasil e das
políticas de silenciamento que cerceiam a educação formal e afastam a
filosofia dos problemas do cotidiano. No segundo movimento, fui levada
a investigar as raízes da ontologia monocultural que sustenta tal edifício do
conhecimento, compreendendo suas causas e como as opressões são um
novelo antropo-euro-falo-ego-capital-logocêntrico indissociável. Tal
ontologia está no cerne da produção do mundo em colapso que vivemos e
458
seu delineamento está intrinsecamente enovelado com o a história da
filosofia ocidental hegemônica. Através da árvore do conhecimento, “oca por
dentro”, me deparei com uma filosofia que produz opressões e fim de
mundos e senti a responsabilidade de desconstruí-la para outros mundos
possíveis. Após isto, olhei para as frestas ervas-daninhas desse saber
hegemônico, buscando alternativas para o ensino de filosofia lidar com as
urgências do presente. Outras filosofias que emergem de pessoas nas
margens e de plantas e bichos encantaram minhas percepções sobre a
existência, convidando-me a um mundo menos daninho. A partir disso,
outras possibilidades de entender a filosofia me apareceram, experienciei
uma virada ontológica, decompondo com bactérias e fungos professores o
narcisismo, antropocentrismo, individualismo e solipsismo que
fundamentam a perspectiva hegemônica. Por fim, tal virada fez tudo que
eu olhava parecer emaranhados e, através desses nós entre mundos e seres,
sugeri caminhos para um ensino de filosofia que esteja emaranhado como
cipó aos saberes da Terra. Dessa forma, tentei deixar a filosofia menos oca,
mais emaranhada ao contexto, e, consequentemente, também me tornar
menos oca de sentidos da existência. Uma filosofia que emerge do mangue
dos saberes, que produz ressurgência em sintonia com os mundos
subterrâneos da lama.
Quando iniciei a pesquisa, tinha como objetivo apenas pensar uma
filosofia a partir dos aprendizados e saberes que se encontram nas bordas
da monocultura como forma de proporcionar uma vida mais plural e
menos exploratória em todos os sentidos. No entanto, no momento em
que comecei a aprender com tais saberes, percebi que eles poderiam
oferecer uma alternativa para o mundo em ruínas que vivemos e, assim,
poderiam ensinar muito mais do que pensar diferente. Eles estavam
mostrando o caminho para o futuro da humanidade, questão que é urgente
459
para a contemporaneidade. A partir daí, passei a perceber outros mundos
e a aprender com perceptivas mais que humanas, vivenciando a virada
ontológica no cotidiano.
O próprio fazer deste texto me trouxe experiências que apontaram
para os s dos saberes. Primeiramente porque em vários momentos
compartilhei tais ideias com estudantes, atuando como professora de
cursos de educação integrada, tive um espaço propício para tais diálogos.
Além disso, meu orientador promoveu um espaço coletivo de colaboração
entre as pesquisas através do grupo Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o
Ensino de filosofia (ENFILO). Nas reuniões, lemos e discutimos os
trabalhos uns dos outros, debates que foram essenciais para os caminhos
que seguiram este texto. Esse formato não hierárquico me possibilitou
vivenciar experiências de pensamento coletivo, nas quais as redes estão tão
emaranhadas que escrever no plural deixa de ser apenas uma formalidade
acadêmica. Dessa forma, conforme líamos uns aos outros, nos
misturávamos um pouco mais, e ideias que eu havia inserido, logo em
sequência, eram aprofundadas por outros/as companheiros/as. Assim, os
conceitos aqui expostos brotaram a partir de relações em redes com alianças
humanas, mas também mais que humanas, as quais, a partir de nossas
entranhas, deram muito a pensar. Olhar para as diferenças como
potencialidades exige refletir sobre os limites e possibilidades do diálogo
intercultural, mas também do diálogo interespecífico. As perspectivas e
devires aqui evocados convidam a perceber conexões.
Contrariando as narrativas oficiais da filosofia, entendemos que, se
o filosofar se faz em contato com o mundo, e obviamente este está cheio
de pessoas diferentes de nós, animais não humanos, plantas, fungos,
bactérias, vírus, etc., é preciso um pensamento mais que humano. Isso não
implica em ignorar os filósofos da tradição, mas em entender o seu
460
pensamento como contribuições no contexto de uma ecologia na qual
nenhum saber pode ser entendido como unívoco, pois partem de um
contexto com relações cosmopolíticas e sociais próprias e que devem ser
analisadas não como fórmulas para nossa realidade, mas como ferramentas.
Quando olhamos para o mundo em uma perspectiva ecológica para além
das ideologias de superioridade que fomos ensinados/as/es superioridade
europeia, humana, masculina, branca, etc. –, a primeira constatação é que
não existe vida sem coexistência, reciprocidade e colaboração humana e
mais que humana. Nem mesmo uma árvore existe sem colaboração
interespecífica com as sociedades do solo. Como lembram Margulis e
Sagan (2002, p. 198), nem mesmo estas páginas seriam possíveis sem a
colaboração de fungos que nutrem árvores que se tornam papéis. Tais
perspectivas nos levaram a pensar a vida como a arte polifônica
multiespecífica, na qual o cantar e dançar significam sincronizar e
sintonizar modos de ser e frequências.
Este texto foi, então, um processo de cultivo de uma relação
ecosófica cotidiana, observando as frestas e percebendo outros modos de
ser. Existem muitos mundos para além do hegemônico, esperamos
contribuir com o ensino de filosofia para que o céu caia sobre este edifício
do conhecimento e outros céus possam emergir. Na perspectiva de
Kopenawa, a floresta é o velho céu que caiu sobre seus ancestrais, o novo
céu formou-se depois, o que nos dá esperança de que outros céus menos
antropocêntricos possam se formar.
A filosofia, enquanto uma área do saber que se ocupa de
compreender e pensar linhas de fuga para os problemas, especialmente no
contexto do nosso continente, não pode se abster da reflexão sobre a crise
ecológica que está no cerne da história do nosso território e que coloca em
461
risco a permanência da espécie humana no planeta e principalmente para
os povos que sempre foram subjugados aos interesses das elites dominantes.
As reflexões deste texto partem de um questionamento sobre o que
é daninho e o que é fértil para esse mundo de crises. Percebemos durante o
processo de pesquisa que aquilo que se constitui do potencial nativo de
cada contexto é tratado como daninho ou praga fazendo com que o poder
dominante invista em destruí-los. No entanto, os saberes que
compartilhamos aqui nos ensinaram que daninho é o processo de
despolitizar conhecimentos e alienar pessoas para seus próprios problemas
através de ideologias dominantes. Assim, o que precisamos fazer é nos
conectar com o mundo que nos cerca, aprender com ele e colaborar com
suas lutas. Isto passa por perceber esse mundo que nos rodeia e as relações
políticas que o permeiam em todas as suas dimensões: pessoas, plantas,
fungos, animais não humanos, bactérias, vírus, etc.. Nesse sentido, nosso
texto é composto por um emaranhado de sensações, problemas, ideias,
pessoas, espécies, que só pode ser decomposto como húmus.
Nosso texto é um convite para, através da filosofia do
perspectivismo, com-pormos o mundo e aprender sobre a vida por meio da
colaboração multiespécies. Se existe um futuro humano neste planeta, este
passa por uma percepção mais sensível às reciprocidades organismos-
ambiente. Por sua responsabilidade no delineamento desse projeto
monocultural de destruição da vida, consideramos que o ensino de filosofia
tem a obrigação de atuar na sua desconstrução.
Se a filosofia hegemônica se faz abstraindo o contexto, a filosofia
que exercitamos neste trabalho faz justamente o contrário: decompõe as
abstrações emaranhando-se ao contexto. Por isso, nosso texto é
singularizado e torna evidente quem é a pessoa que o escreveu, que não
462
consegue ser fiel a nenhum autor/a/e e promove uma bricolagem que
subverte palavras em outros devires. Emaranhando-se em nosso contexto,
sentimo-nos afetados a falar sobre a pandemia de Covid-19 que emergiu
no último ano de elaboração do texto, mas que não pôde de modo algum
ser ignorada. Durante esse período nos chocamos ao perceber nos eventos
e debates que participamos que a maior parte das pesquisas na área da
filosofia não se alterou com o contexto, o que nos levou a refletir: o que
quer dizer uma pesquisa em filosofia não sofrer nenhum impacto de uma
pandemia que matou um enorme número de pessoas, que parou o mundo
como nunca imaginamos que fosse possível, que desestabilizou as bases da
sociedade em que vivemos? Assim, nosso texto não se incomoda em ser
parcial e limitado a um período histórico, pois não se pretende universal,
mas parte do contexto que nos afetou durante sua elaboração. Isso também
explica por que, ao invés dos conceitos clássicos da filosofia, optamos por
conceitos-metáfora que, por serem devires em constante movimento
dinâmico, não obedecem à lógica abstrata universal. Conceitos que, por se
basearem em devires orgânicos de árvores, ervas, bactérias, fungos, cipós e
mangues, convidam a observar o mundo e não a abstraí-lo. Consideramos
tais conceitos-metáfora menos daninhos e mais férteis para as urgências do
aqui-agora.
Talvez sejam estranhos para quem lê os caminhos escolhidos neste
texto, por isso, gostaria de explicitar que eles se apresentam tal qual me
apareceram, e peço desculpas por ocupá-lo/a/e com alguns trechos que
podem soar apenas como lamentações, com páginas que podem ser
desnecessárias ou que cometam equívocos e generalizações. O texto
começa com uma revolta, e não poderia ignorá-la já que seria difícil que os
movimentos que se seguiram acontecessem sem esta raiva inicial que pode
incomodar quem lê os dois primeiros capítulos. Mas entendo que no
463
contexto em que eu atuo, estes dois capítulos podem produzir identificação
e ser um convite para pessoas que compartilham em alguma medida do
meu processo, proporcionando uma experiência do sensível que convida a
um percurso de “entrar na floresta” como me chamou a atenção o Prof.
Alonso Bezerra de Carvalho. Quis evidenciar meu próprio percurso com o
tema discutido, pensando que isto pode ser compartilhado por outras
pessoas, provavelmente por aquelas que podem se identificar com o texto
e aproveitá-lo em algum sentido. Contudo, posso dizer que comecei
trazendo a minha casa, evidenciando de onde estou partindo e das
percepções que me afetaram, para caminhar para outras casas, de outras
pessoas, outros povos, outros seres, até chegar a uma casa compartilhada e
planetária.
Além disso, me preocupei durante o processo de escrita sobre as
consequências dos conceitos e debates aqui trazidos, o que está relacionado
com a concepção de responsabilidade que permeia o texto. Em um
contexto em que a principal estratégia da classe dominante é distorcer e
esvaziar conceitos importantes para a luta contra a barbárie, pensei bastante
sobre as diferentes maneiras em que isto poderia ser feito com a proposta
que está nessas páginas. Como me alertaram em alguns momentos, o
conceito de response-ability de Haraway oferecia o risco de ser associado à
ideia de competências que aparece na BNCC. Por isso, procurei enunciar
quais os sentidos em que esse conceito se integra à minha proposta, talvez
um pouco diferente do que propôs a autora, mas espero que as palavras
tenham sido suficientes para expressar que da forma como ele me afetou
não pode ser apropriado por projetos de precarização como o da BNCC
ou afins. Também por isso os dois primeiros capítulos de apresentação do
problema estão nesse texto, para deixar explícito de onde parti e como a
proposta que aparece nos outros capítulos é contra opressões eurocêntricas,
464
racistas, misóginas, LGBTfóbicas, antropocêntricas, de classe,
monoculturais em todos os sentidos. Espero que estas reflexões iniciais
sejam suficientes para que não ocorram distorções do que propomos neste
texto. Tal proposta teve como objetivo principal conectar o ensino de
filosofia com os problemas contemporâneos, incluindo as estratégias de
distorção nesse contexto, e não reduzir o ensino a utilitarismos e
precarizações da educação.
As lacunas que ficaram, mesmo as que a banca de defesa apontou,
são consequência da minha insuficiência diante de tais pontos, problemas
com os quais ficarei e que continuarão comigo por algum tempo ainda.
Entre as lacunas, gostaria de acrescentar algo sobre uma que se relaciona
com o papel do silêncio em uma sociedade em que a palavra está banalizada
em alguns locais. Um vírus
38
me fez pensar sobre como o silêncio pode ser
estratégia de resistência, fazendo com que a ação silenciosa seja eficiente
em uma sociedade negacionista e ancorada em uma percepção explícita
para a estruturação das crenças. Por outro lado, o silêncio dos seres de que
falei neste texto, entre eles/as ervas, fungos e bactérias, domesticam a
humanidade, de modo que o silêncio pode contribuir para mudanças e isto
não pode ser ignorado. No mesmo sentido, penso sobre a resiliência,
muitas vezes no silêncio, que é interpretado por alguns como aceitação ou
alienação, se reage diante de uma força opressora com a qual nenhuma
palavra será suficiente. Este silêncio que incomodou os jesuítas e ainda hoje
incomoda sujeitos narcisistas, e que difere profundamente de um processo
de silenciamento imposto por outras formas de violência, é uma opção e
arma estratégica, que é adotada em vários contextos.
38
A Profa. Maria Eunice Quilici Gonzalez, importante pessoa para meu processo de formação, que
chamou a atenção para este ponto.
465
Termino esse texto refletindo sobre o papel do silêncio em minha
vida, que anda consumida por excessos de palavras que não são ouvidas, e
quais palavras valem a pena estrategicamente de serem ditas. Parece que,
em alguns momentos, é preciso ser silencioso/a/e, no mesmo sentido da
música “4:33” de John Cage, na qual o silêncio do compositor significa o
som vindo da plateia que evidencia outros devires. O que a música de Cage
expressa na realidade não é um silêncio, algo da ordem do impossível, mas
outros sons, que fazem perceber outras frequências, mas também entender
a limitação da percepção humana para outras frequências, algo que não
entendo como impossível, mas que talvez exija outras cosmopercepções e um
afinamento da sensibilidade. Para além disso, o silêncio também questiona
o tempo que investimos com “as ferramentas do mestre”, como dizia
Audre Lorde, já que, com muito debate, várias conquistas foram
conseguidas no âmbito legislativo no Brasil no decorrer da história, mas o
silêncio das classes dominantes diante delas, diversas vezes resulta na
ausência de responsabilização dos culpados e na ausência de reparação e do
investimento necessário para a efetivação de tais conquistas. Também é um
exemplo nesse sentido a BNCC que, embora muita gente competente
tenha se envolvido nos debates e se dedicado a propostas, só foram ouvidos
empresários das plantations da educação, o que nos mostra que ter a
oportunidade de falar nem sempre é uma vitória contra o silenciamento.
Se comecei com o autor que me inspirou a escrever, quero finalizar
este texto com o pensador que me fez ter vontade de filosofar: Antonio
Trajano de Menezes Arruda. Ele foi um dos filósofos mais importantes
para minha trajetória, o qual me ensinou que não podíamos nos deixar
dominar pela inércia do hábito (ARRUDA, 2011, p. 05). Cultivar hábitos
dinâmicos, devires mais responsáveis e que não sejam daninhos, é o
caminho que apontamos para o ensino de filosofia com estas páginas. Não
466
oferecemos uma metodologia nem as explicações suficientes, mas possíveis
caminhos em uma filosofia-cipó emaranhada. Diante de tudo que
expusemos aqui, consideramos que não se trata de evitar o fim do mundo
atual, mas de construir outros mundos possíveis que considerem os limites
e potencialidades do planeta e das pessoas. Deixamos, aqui, o convite para
que quem lê se pergunte que mundos quer ajudar a construir hoje aqui-
agora.
467
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Sobre a Autora
Amanda Veloso possui Licenciatura (2012), Bacharelado (2014) e
Mestrado (2016) em Filosofia pela UNESP/Marília, Especialização em
Ensino de Filosofia pela UFSCar (2015) e Doutorado (2021) em
Educação pela UNESP/Marília na linha de Filosofia e História da
Educação no Brasil. É professora de Filosofia do Instituto Federal do Rio
de Janeiro (campus Pinheiral) desde 2018 e atua na educação básica desde
2013. Faz parte do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de filosofia
(ENFILO) da UNESP/Marília, do Grupo Interdisciplinar de Pesquisas e
Práticas em Educação (GIPPEd), do Núcleo de estudos afro-brasileiros e
indígenas (NEABI) e do Núcleo de estudos de gênero e diversidade sexual
(NUGEDS) do IFRJ/Pinheiral, e do Fórum de Educação de Jovens e Adultos
(FEJA) do IFRJ. Suas pesquisas estão voltadas para a busca de formas de
descolonização da vida através da filosofia e da educação filosófica.
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno – CRB 8/8211
Normalização
Kamila Gonçalves
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
O livro apresenta uma dura crítica
ao cânone e à tradição de um ensino de -
losoa que, historicamente, tem fomentado
o epistemicídio, silenciando, desqualicando
e invisibilizando saberes não eurocentrados,
brancos e heteropatriarcais e, com isso, hie-
rarquizando e excluindo seres, saberes, sabo-
res e losofares, na linguagem própria que a
obra cria e fomenta. Esse contexto alimenta
a colonialidade na qual vivemos, em espe-
cial no território brasileiro, com as marcas
que permanecem mesmo após a dissolução
dos processos de efetiva colonização, man-
tendo a dependência e a exclusão de gênero,
raça, classe e sexualidade. A partir da leitu-
ra e apropriação do texto de Amanda Ve-
loso, outros caminhos e possibilidades para
o ensino de losoa podem ser abertos, em
especial na experiência atual de reformas da
educação básica, que fragilizam a presença e
a manutenção da losoa, seus conhecimen-
tos e as habilidades que desenvolve com as/
os educandas/os em fase de formação.
O livro adota metáforas que aproxi-
mam o ensino de losoa à natureza, trazen-
do a importância de um sentir-pensar inte-
grado, esgarçando as hierarquizações entre
os seres, explodindo qualquer viabilidade
para o projeto colonial-capitalista-indus-
trial-heteropatriarcal-urbanizado da moder-
nidade europeia e sua pretensão de domínio
via racionalidade instrumental. Ao contrá-
rio, o texto valoriza o solo, as raízes, fungos,
bactérias, ervas, cipós e seus nós nós que
estruturam o conhecimento, nós que trazem
a emergência dos sujeitos coletivos.
A obra A losoa e seu ensino podem
colaborar para adiar o m do mundo? faz-nos
olhar crítica e propositivamente a docência
e o ensino e a aprendizagem da losoa, em
especial na educação básica, colocando em
xeque a nossa prática. Ao confrontá-la com
o que de mais relevante na vida e suas po-
tências, este livro nos oferece caminhos vi-
tais para outros modos de fazeres e saberes
losócos que nutram o mundo e a diversi-
dade de existências.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0798/2018
Processo Nº 23038.000985/2018-89
O livro tem como hipótese que o ensino de losoa precisa ser repensado
para lidar com os tempos urgentes que vivemos, rompendo com a aborda-
gem eurocêntrica e com a concepção de humanidade racional que alicerça o
fascismo e o especismo que destroem as condições de vida no planeta. Com
uma perspectiva losóca ecológica defende-se uma compreensão do ensi-
no de losoa de forma emaranhada ao contexto e os seres que, como nós,
compõem o ambiente, tendo como professores/as da vida o solo, as árvores, as
ervas, as bactérias, os fungos, os microrganismos e os mangues. Um losofar-
-com conectado com os devires da vida no planeta através de linhas de fuga
das ideologias de superioridade de um tipo de humanidade, aprendendo com
as sabedorias da terra na forma de uma ecosoa que articula ética, política e
estética como dimensões de uma mesma percepção sobre a existência.
A FILOSOFIA E SEU
ENSINO PODEM
COLABORAR PARA
ADIAR O FIM DO
MUNDO?
JOANA TOLENTINO BATISTA
Amanda Veloso
A FILOSOFIA E SEU ENSINO PODEM COLABORAR PARA
ADIAR O FIM DO MUNDO?