Os Dilemas Atuais do Brasil
e da América Latina
F L C
J M C
A  S
(O)
O D A  B
  A L
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
Marília
2016
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
Copyright© 2016 Conselho Editorial
Diretor:
Dr. José Carlos Miguel
Vice-Diretor:
Dr. Marcelo Tavella Navega
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Ana Maria Portich
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Maria Rosangela de Oliveira
Neusa Maria Dal Ri
Rosane Michelli de Castro
Ficha catalográfi ca
Serviço de Biblioteca e Documentação – Unesp - campus de Marília
Editora afi liada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora Unesp
D576 Os Dilemas atuais do Brasil e da América Latina / Francisco Luiz
Corsi, José Marangoni Camargo, Agnaldo dos Santos (organi-

Acadêmica, 2016.
224p

Apoio:Capes
ISBN 978-85-7983-814-9 (impresso)
ISBN 978-85-7983-815-6 (digital)



III. Santos, Agnaldo dos.
CDD 330.981
DOI https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6
SUMÁRIO
Apresentação ......................................................................................... 7
América Latina e a Crise Capitalista Mundial do Ponto de Vista da
Teoria da Dependência
Adrián Sotelo VALENCIA ...................................................................... 15
As Dimensões da Crise do Capital e a Particularidade Brasileira no Início
do Século XXI
Adilson Marques GENNARI ................................................................... 31
Notas sobre a Política Econômica do Governo Dilma
Francisco Luiz CORSI ............................................................................ 45
Evolução Recente do Emprego e Distribuição da Renda no Brasil em
uma Conjuntura de Crise
José Marangoni CAMARGO .................................................................. 69
Ajuste Fiscal e Austeridade: Saída à Direita
Luís Antonio PAULINO ......................................................................... 83
A inserção internacional do Brasil em face conjuntura econômica e política
da América Latina: uma breve avaliação
Rodrigo Duarte Fernandes dos PASSOS ................................................... 109
Hechos y Desafíos de la Revolución Bolivariana: una mirada
jurídico-política
Jair PINHEIRO ..................................................................................... 121
Movimentos Migratórios como Dilema Contemporâneo: o Papel da Mulher
em Cidades Pequenas e Médias no Brasil
Silvia Aparecida de Sousa FERNANDES ................................................. 135
A entrada da Agroecologia na Agenda do MST: Estratégia para Além do
“Desenvolvimento Sustentável”?
Henrique Tahan NOVAES; João Henrique PIRES.................................... 145
Algumas Reexões sobre os Desaos à Tecnologia Social
numa Economia de Mercado
Agnaldo dos SANTOS ............................................................................ 161
O papel do Estado no Crescimento do Agronegócio e o Impacto na
Conjuntura dos Recursos Hídricos
André SCANTIMBURGO ..................................................................... 175
Capitalismo Retardatário e Pulsão Golpista: um Ensaio sobre
a Miséria Brasileira
Giovanni ALVES .................................................................................... 201
Sobre os Autores ................................................................................... 219
APRESENTAÇÃO
O presente livro abarca um conjunto de trabalhos debatidos
nas mesas-redondas do XV do Fórum de Conjuntura, que discutiu os im-
pactos da crise estrutural do capitalismo global na América Latina e as
alternativas de desenvolvimento socioeconômico para a região. Tema da
maior relevância no atual momento em que se observa uma onda con-
servadora no mundo. Em linhas gerais, o capital, embora abalado pela
crise, busca responder os graves problemas de valorização que enfrenta,
sobretudo devido à existência de uma massa enorme de capital ctício,
por meio da intensicação da exploração do trabalho. Isto signica apro-
fundar a precarização das condições de trabalho, reduzir os salários e as
aposentadorias, reduzir os gastos com programas sociais (educação, saú-
de, moradia, saneamento etc.), concentrar ainda mais a renda e cortar os
direitos sociais e trabalhistas. Apesar da resistência das classes populares,
que até o momento não têm logrado sucesso em sua luta, esta saída tem
sido implementada em toda parte sob a égide do neoliberalismo. Seja na
Europa, onde a Grécia é um caso exemplar, seja na América Latina; o
exemplo brasileiro é lapidar. Um golpe institucional derrubou um governo
constitucionalmente eleito e logo estabeleceu como meta principal o corte
de direitos sociais e trabalhistas em nome da estabilidade scal, que nada
mais é do que garantir as condições de valorização do capital rentista e de
rentabilidade e competitividade do capital. O golpe foi desfechado contra
os direitos civis e sociais de grande parte do povo brasileiro e, mais uma
vez, como em tantas vezes no passado, o ônus da crise será jogado nas con-
tas dos trabalhadores.
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p7-14
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)
Estas colocações não eximem o governo Dilma de uma severa aná-
lise crítica em virtude de seus inúmeros equívocos, como o de ser conivente
com a corrupção e de implementar um ajuste ortodoxo logo após a sua ree-
leição, contrariando seu discurso e os interesses de suas bases de sustentação;
apesar de seus acertos, como a redução dos juros e a exibilização das metas
de superávit primário e de inação, que desencadearam a fúria conservadora
dos rentistas e da grande imprensa, com largo apoio das classes médias, te-
merosas de perder sua posição social e contrariadas pela política scal, pela
política de cotas, pela desvalorização da moeda e pelo baixo retorno dos ser-
viços sociais. Está em curso uma feroz luta entre as diferentes frações das
classes dominantes pelos rumos da economia e da sociedade brasileira e isto
implica também denir os caminhos da inserção do Brasil no mundo multi-
polar que se congura com a crise estrutural de sobreacumulação.
Estas questões rascunhadas acima foram alvo das discussões do
XV Fórum de Análise de Conjuntura, embora o evento tenha ocorrido
antes do “desfecho” do golpe no Brasil e das eleições na Argentina e na
Venezuela. Ou seja, o evento, organizado pelo Grupo de Pesquisa Estudos
da Globalização e ocorrido entre 16 e 18 de novembro de 2015, na
Faculdade de Filosoa e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), abordou a conjuntura econômica e política dos principais paí-
ses da América Latina. Especial atenção foi dispensada ao Brasil, que vive
complexa crise econômica e política. Em termos mais gerais, os temas do
desemprego, do meio ambiente, da desigualdade social, do acesso aos ser-
viços públicos universais, das estratégias de desenvolvimento e inserção na
economia mundial, do grau de autonomia dos Estados nacionais de levar
a cabo políticas econômicas voltadas para o atendimento das demandas
sociais e o crescimento sustentado ante aos interesses nanceiros dominan-
tes, do esgarçamento das formas de vida, de fazer política e de organização
econômica foram os pontos discutidos no Fórum de Conjuntura.
O livro está organizado em 12 capítulos, que correspondem às
participações dos expositores nas mesas do evento. O capítulo de Adrián
Sotelo Valencia, “América Latina e a Crise Capitalista Mundial do Ponto
de Vista da Teoria da Dependência” discute os impactos da crise mundial
na América Latina. A economia capitalista mundial está passando por di-
culdades sérias e importantes nos últimos anos, especialmente após a crise
Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
estrutural e nanceira que abalou o mundo em 2008-2009. Segundo o
autor, a sua recuperação foi, até o momento, muito tímida. Dessa forma,
a crise, que é profunda, continua afetando praticamente todos os países e
sociedades. As recuperações esboçadas por alguns países são de fôlego cur-
to. Isto se explica essencialmente pelo fato de que para o sistema capitalista
é cada vez mais difícil produzir valor e mais-valia em escala suciente para
garantir a sua reprodução ampliada mantendo ou aumentando a taxa mé-
dia de lucro. Esse é o contexto em que a situação política e econômica da
América Latina precisa ser analisada.
O capítulo “As Dimensões da Crise do Capital e a Particularidade
Brasileira no Início do Século XXI”, de Adilson Marques Gennari, também
analisa a conjuntura da economia brasileira a partir de uma perspectiva
ampla, que tem como referência as profundas transformações em curso no
capitalismo. Segundo o referido autor, o processo de desenvolvimento do
capitalismo brasileiro neste começo do século XXI se caracteriza por conti-
nuidades e por rupturas. Este padrão estaria presente nos aspectos conjun-
turais e estruturais da sociedade e da economia brasileiras. As transforma-
ções em curso estariam articuladas diretamente com a forma de inserção
do Brasil no processo de globalização do capitalismo. Esta inserção seria
subordinada e caracterizada por um ciclo nanceiro inerentemente instável
que aprofundou a vulnerabilidade da economia brasileira. Resultados dessa
inserção seriam, entre outros pontos, a desindustrialização e a re-primari-
zação da economia. O processo de transferência de renda para os setores
populares, que resultou em redução signicativa da população abaixo da
linha da pobreza, estaria em risco em virtude dos limites das políticas eco-
nômicas implementadas no período e dos persistentes problemas estrutu-
rais, que indicam que não houve alteração na secular estrutura social de
concentração da propriedade e da renda.
O capítulo “Notas sobre a Política Econômica do Governo
Dilma”, escrito por Francisco Luiz Corsi, discute as razões do baixo de-
sempenho da economia brasileira entre 2011 e 2014 e da recessão aberta
em 2015. Parte da perspectiva segundo a qual a análise da economia bra-
sileira precisa abarcar o contexto mundial no qual está inserida. Tanto sua
fase de expansão recente (2003-2010), que coincide com o governo Lula,
quanto o baixo crescimento do primeiro mandato do governo Dilma e
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

a recessão em curso só são inteligíveis no bojo da evolução da economia
mundial, não obstante o desempenho da economia brasileira também de-
pender, em boa medida, das determinações internas e da luta de classes em
torno da denição dos seus rumos. Para o autor, a política econômica dos
governos Lula e Dilma se sustentava em dois pilares contraditórios. De um
lado, mantiveram a política macroeconômica neoliberal de FHC. De ou-
tro, adotaram medida voltadas para a expansão do mercado interno e para
a distribuição da renda. Esta situação sustentou-se no período de boom da
economia mundial. Quando da crise de 2008, as contradições aoraram e
o desfecho foi a recessão aberta em 2015.
O capítulo escrito por José Marangoni Camargo, “Evolução re-
cente do emprego e distribuição da renda no Brasil em uma conjuntura de
crise”, discute a evolução da economia brasileira no período recente, em um
contexto de crise econômica e os impactos sobre o emprego e a distribuição
da renda. No período 2003-2014, apesar das políticas de cunho neoliberal
terem sido mantidas em linhas gerais nos governos Lula da Silva e Dilma
Roussef, as taxas de crescimento médias superiores às duas décadas anterio-
res, geraram efeitos positivos sobre o mercado de trabalho. Adicionalmente,
a formulação de um conjunto de políticas sociais, como a recomposição
do valor real do salário mínimo e a concessão da bolsa família, possibili-
tou também um crescimento da renda dos segmentos mais baixos e uma
pequena desconcentração da renda, revertendo uma tendência de aumento
da desigualdade observada desde os anos 60. Já no cenário mais recente,
o desempenho medíocre da economia, com a redução acentuada das taxas
de crescimento econômico a partir de 2011 e queda em 2015 e 2016 têm
levado a uma rápida deterioração dos indicadores do mercado de trabalho,
com aumento signicativo das taxas de desemprego e redução das rendas do
trabalho, com sérios riscos de perdas das conquistas obtidas ao longo da últi-
ma década, como reexo do agravamento das condições econômicas do país.
Luís Antônio Paulino discute, em seu artigo “Ajuste scal e aus-
teridade: saída à Direita”, o quadro econômico vivido pelo Brasil desde o
início desta década, em particular a queda do crescimento e as escolhas do
Governo Dilma, entre o nal do primeiro mandato e o início do segun-
do. A manutenção de alguns instrumentos de política econômica que se
mostraram inecientes, somada à conjuntura internacional desfavorável,

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
criaram grandes impasses para o governo reeleito. A opção em adotar parte
do programa econômico derrotado em 2014, diante da redução dos inves-
timentos e das exigências de operadores do mercado, indicou o caminho
da austeridade scal, que na prática implica maiores sacrifícios para os
trabalhadores e nenhum para o topo da pirâmide social.
No capítulo “A inserção internacional do Brasil em face da conjun-
tura econômica e política da América Latina: uma breve avaliação”, Rodrigo
Duarte Fernandes dos Passos, a partir das categorias de hegemonia e “tra-
dução”, desenvolvimento desigual e combinado e a dialética da paz e da
guerra, faz uma reexão sobre a posição brasileira no contexto internacional.
Segundo o autor, o Brasil está inserido em limites conjunturais especícos do
movimento de “tradução” de longo alcance da hegemonia norte-americana,
além dos nexos desiguais e combinados com perspectiva da dialética da paz
e da guerra no além-fronteiras. Na perspectiva da política exterior brasileira
com relação ao mundo e à América Latina, o autor faz ressalvas quanto ao
papel de liderança e hegemonia brasileiro, na medida em que o Brasil não
é uma potência militar e do ponto de vista econômico, apesar da liderança
regional, o processo de desindustrialização da economia em curso e a espe-
cialização regressiva do país, como exportador de commodities, representam
obstáculos ao seu papel de liderança e hegemonia no continente.
Jair Pinheiro, em “Hechos y desafíos de la Revolución Bolivariana:
una mirada jurídico-política”, procura analisar os dilemas e as perspec-
tivas institucionais e políticas abertas pela Constituição bolivariana da
Venezuela, que convive com princípios legais tradicionais (“burgueses”)
e socialistas. Enquanto a democracia representativa tradicional é mantida,
com eleições periódicas e a passividade típica deste modelo, existe tam-
bém um Ministério das Comunas pautado pela democracia participativa
protagônica”, que procura envolver os trabalhadores na gestão do bem
comum. Esta tensão entre duas concepções distintas de Estado abre muitos
desaos, mas também grandes oportunidades para construir novas formas
de democracia naquele país e no próprio continente.
No artigo intitulado “Movimentos migratórios como dilema con-
temporâneo: o papel da mulher em cidades pequenas e médias no Brasil”,
Silvia Aparecida de Sousa Fernandes discute o papel da mulher migrante
no interior do estado de São Paulo, particularmente na região de Ribeirão
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Preto, no contexto do mundo do trabalho e das relações sociais que esta-
belece com seu grupo. A autora analisa o perl da migrante e as relações
que estabelece no lugar de chegada, no lugar de trabalho e nas relações de
vizinhança no bairro de residência. Muitas vezes, esses lugares de reprodu-
ção da vida são distintos e exigem o exercício de diferentes papéis e funções
sociais. Tendo como referência pesquisa de campo realizada em um bairro
do município de Serrana/SP, identica-se o perl do migrante na cidade
e discute-se a condição da mulher como migrante e os papéis sociais a
ela atribuídos. A pesquisa identicou que a maioria dos entrevistados tem
origem em uma única cidade do interior de Minas Gerais, Montalvânia,
o que, segundo a autora, indica que as redes sociais têm um papel signi-
cativo na denição do uxo migratório. Esses migrantes estão inseridos
em atividades econômicas que exigem menor qualicação, pois trabalham
majoritariamente na agroindústria canavieira ou com serviço doméstico.
Além disso, ao analisar apenas a participação feminina e os motivos da
migração, cou evidente a falta de autonomia das mulheres na opção pela
migração e na denição dos destinos do uxo migratório, pois armam ter
migrado para acompanhar seus maridos.
No capítulo escrito por Henrique Tahan Novaes e João Henrique
Pires, “A entrada da Agroecologia na agenda do MST: estratégia para além
do ‘desenvolvimento sustentável”, os autores mostram que a agroecologia
começou a ganhar força na América Latina a partir da década de 1980,
no contexto de “redemocratização”. Vários pesquisadores, extensionistas,
membros de ONGs e intelectuais de movimentos sociais vêm teorizando
sobre suas práticas e princípios, inclusive com a incorporação do tema na
agenda do MST, que a partir do ano 2000 assume a agroecologia como
matriz produtiva estratégica para as áreas de assentamento e acampamen-
tos sob sua inuência. Ela vem sendo vista como alternativa para fazer o
enfrentamento às condições destrutivas que a nanceirização da agricul-
tura gerou para diversos trabalhadores que se produzem e reproduzem no
campo. Mas segundo os autores, a expansão da agroecologia no Brasil en-
contra barreiras, na medida em que o debate sobre a questão agroecológica
e o seu avanço devem levar em consideração outras dimensões que não
apenas a ecológica.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
O artigo “Algumas reexões sobre os desaos à tecnologia social
numa economia de mercado”, de Agnaldo dos Santos, discute em formato
ensaístico alguns aspectos relativos ao desenvolvimento cientíco e tecno-
lógico à luz do discurso economicista e os problemas desta concepção para
as experiências de tecnologia social. Os gestores públicos e parte da co-
munidade de pesquisa no Brasil aceitam a premissa de que a universidade
deve desenvolver pesquisa “pragmática”, para ser aplicada imediatamente
pelo mercado, para garantir o desenvolvimento do país. Outra parte desta
comunidade, denunciando a instrumentalização da ciência pelo capital,
defende a total ruptura com este modelo. A questão seria saber, então,
como experimentos de tecnologia social e de economia solidária podem
utilizar tais saberes como “implantes pós-capitalistas” no tecido social, sem
cair em formas de niilismo.
“O papel do Estado no Crescimento do Agronegócio e o Impacto
na Conjuntura dos Recursos Hídricos”, de André Scantimburgo, proble-
matiza questões relativas ao uso e à sustentabilidade dos recursos hídricos
a partir da conjuntura atual, identicando nesse cenário o impacto gerado
pelo modelo agrícola brasileiro, que privilegia substancialmente o chamado
agronegócio. Procura, então, fazer uma análise crítica das políticas de gestão
de águas adotadas no Brasil desde os anos 1990, caracterizadas por um mo-
delo gerencial com excesso de tecnocracia e economicismo, no sentido de en-
tender quais as respostas dadas por essas políticas, de forma direta e indireta,
para o quadro preocupante de conjuntura dos recursos hídricos.
Ao nal, o capítulo escrito por Giovanni Alves, “Capitalismo re-
tardatário e pulsão golpista: um ensaio sobre a miséria brasileira” trata da
crise econômica e política brasileira que culminou no golpe que afastou a
presidente Dilma do governo. A partir de uma perspectiva histórica, que
busca apontar as raízes das mazelas de nossa sociedade, o autor escreve
um breve ensaio sobre o tema. De acordo com Alves, o projeto neode-
senvolvimentista de inclusão social não foi aceito pela oligarquia brasi-
leira, que sempre buscou preservar a ordem social, cultural e politica da
Casa Grande. O lulismo abriu espaços para o povo, o que não foi tolerado
pela burguesia brasileira e pela classe média. No Brasil, a herança colonial-
-escravista impede qualquer transformação mais profunda da sociedade.
A burguesia brasileira não está comprometida com um projeto de Nação
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

que inclua o povo. A tarefa que se coloca é romper com esse passado e isto
implica a democratização radical do Estado. Esta deve ser a tarefa política
da esquerda brasileira. Porém, a esquerda não está a altura dessa tarefa. O
PT não buscou romper com essa situação e uma certa esquerda socialista,
teleologicamente revolucionária”, é incapaz de romper com seu mundo de
abstrações e participar efetivamente da luta de classes. “O único interessa-
do no projeto de Nação é o povo brasileiro.
Boa leitura!
Os organizadores.

AMÉRICA LATINA E A CRISE CAPITALISTA MUNDIAL
DO PONTO DE VISTA DA TEORIA DA DEPENDÊNCIA
Adrián Sotelo VALENCIA
BREVES CONSIDERACIONES SOBRE LA VIGENCIA DE LA TEORÍA MARXISTA DE LA
DEPENDENCIA EN LA EXPLICACIÓN DE LA CRISIS ESTRUCTURAL DEL CAPITALISMO
CONTEMPORÁNEO
En el curso de la década de los años sesenta y en los setenta
del siglo pasado surgió en Brasil la teoría de la dependencia como una
especicidad que asumía el pensamiento latinoamericano para explicar
la problemática de la región en el contexto internacional.
1
Sin embargo,
dicha teoría no fue monolítica, sino que básicamente se expresó en las
dos corrientes principales aludidas.
2
La que negó rotundamente la teoría
y planteó la dependencia como una categoría coyuntural, con un método
que ponderaba el análisis sociopolítico
3
y la que reivindicó explícitamente
1
Véase: BAMBIRRA, Vania. Teoría de la dependencia: una anticrítica, ERA, México, 1978. Hay versión en in-
ternet: <http://www.rebelion.org/docs/55078.pdf>. Acceso en: 20 de agosto de 2007, y CARDOSO, Fernando
Henrique. Notas sobre el estado actual de los estudios de la dependencia, en Varios, Problemas del subdesarrollo
latinoamericano, Editorial Nuestro Tiempo, México, 1976, p. 90-125.
2
BLOMSTRÖM, Magnus y ENTE, Björn. La teoría del desarrollo en transición, FCE, México, 1990 y KAY,
Cristóbal, Latin American eories of Development and Underdevelopment. London, Routledge, 1989.
3
CARDOSO, Fernando Henrique. Notas sobre el estado actual, op. cit., p. 90-125 y con Enzo Faletto,
Dependencia y desarrollo en América Latina, Siglo XXI, México, 1979 (16.ª edición).
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
15-30
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

la necesidad de forjar una teoría de la dependencia, considerando a ésta
como un fenómeno y una problemática de carácter estructural inserta en el
modo capitalista de producción, que sólo se superaría superando, al mismo
tiempo, el sistema capitalista dependiente. La gura más sobresaliente de
esta postura es Ruy Mauro Marini, quien utilizó un método de análisis
fundado en El capital de Marx y en la teoría del imperialismo de Lenin.
4
Brasil se constituye en el punto de partida del surgimiento de
la TMD. El golpe militar de 1964 contra el gobierno constitucional de
Goulart, va a provocar que una serie de intelectuales salgan de Brasil.
Más adelante unos llegan al Chile de la UP y fundan el CESO en donde
conuyen intelectuales y académicos de América Latina y Europa como:
Gunder Frank, Bambirra, Marini, Dos Santos, etc., donde se concentra el
exilio proveniente de Brasil, Argentina, Paraguay, Haití, Centroamérica.
En Chile se desarrolla la TMD y se producen importantes
trabajos de autores y textos
5
sobre temas tan diversos como trasnacionales,
dependencia, desarrollo, educación. Además, este país representa una
importante etapa tanto teórica, política y estratégica de la formación del
pensamiento latinoamericano y de la TMD. Por último, continúa su
desarrollo y se consolida en México donde Marini forja grupos de estudiantes
y de académicos que producirán tesis, artículos y libros importantes bajo la
óptica de la dependencia.
En su vertiente marxista, la teoría de la dependencia va sostener, en
primer lugar, que el subdesarrollo, el atraso y las relaciones de dependencia
son un genuino producto del desarrollo del capitalismo mundial; no son
residuos de viejos modos de producción, como explicaban, por cierto, los
teóricos de los partidos comunistas, particularmente, los historiadores.
6
4
MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependencia, ERA, México, 1973.
5
CAPUTO, Orlando y PIZARRO, Roberto. Imperialismo, dependencia y relaciones económicas internaciona-
les, CESO, Santiago, 1971 y CÓRDOVA, Sergio Ramos. Chile, ¿una economía en transición?, Documento de
Trabajo, CESO, 1970. Este libro recibió un año después el Premio Ensayo Casa de las Américas, La Habana,
1972, en este mismo año el CESO publicó en versión mimeograada la Dialéctica de la dependencia de Marini y
otro ensayo en la misma forma: La acumulación capitalista dependiente y la superexplotación del trabajo.
6
Véase, por ejemplo, SEMO, Enrique. Historia del capitalismo en México. Los orígenes. 1521-1763, ERA,
México, 1983, 20.ª ed., que se ubica en esta perspectiva teórica. Este libro debería aludir, más que al desarrollo
del capitalismo, al “desarrollo del feudalismo” en México, ya que su tesis es que este país tuvo un modo de pro-
ducción de esa naturaleza y, por consiguiente, se tenía que vencer, primero, al elemento feudal, representado por
la república de españoles aliados de la corona, contra la República de indígenas registrándose una suerte de lucha

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
La TMD sostiene que el subdesarrollo es un producto del desarrollo
capitalista mundial: a mayor desarrollo, entonces, mayor dependencia,
es esto lo que dice Marini y otros autores como Frank. El desarrollo del
capitalismo genera más dependencia y la dependencia en el fondo implica
profundizar dicha relación, que al nal resulta en mayor dominación, en
el esquema centro-periferia, en el plano económico, incluso, en el político,
tecnológico y militar.
Desde una perspectiva teórico-metodológica Bambirra
7
indica tres
cuestiones de enorme importancia y trascendencia que constituyen verdaderas
tesis epistemológicas que debemos considerar para renovar la TMD y el
pensamiento de Marini para abordar los problemas contemporáneos de la
(neo) dependencia y el (neo) imperialismo en el siglo XXI.
1. En un nivel abstracto, correspondiente al modo de producción capitalis-
ta, no existe una teoría de la dependencia, puesto que esto, o sea, la teoría
general de la crítica y de las leyes del modo de producción capitalista, fue
hecho magistralmente por Marx, quien descubrió las leyes generales que
rigen el desarrollo, crisis y superación de ese modo de producción en
escala global como, por cierto, lo estamos viviendo hoy en día, con todas
las contradicciones y problemáticas que se expresan en la realidad del
mundo contemporáneo. Por lo tanto, se concluye que la teoría marxista
de la dependencia de ningún modo sustituye a la teoría del capitalismo
de Marx, sino que se retroalimentan mutuamente.
2. El segundo planteamiento contundente de la autora es que no existe,
como se llegó a creer y ponticar, una teoría del modo de producción
capitalista dependiente, porque esto es absurdo y no tiene asidero en la
teoría marxista de la dependencia.
3. Por último, la Teoría de la dependencia – subrayo teoría con mayúscu-
la para diferenciarla de la corriente del “enfoque” identicada anterior-
mente – se construye en el nivel intermedio de la formación económi-
co-social y, por supuesto, en su articulación subordinada con el modo
de producción capitalista global que en su expresión más concreta se
expresa en el mercado mundial capitalista.
para avanzar, después, al socialismo, para lo que era necesario superar el elemento más retardatario que provo-
caba subdesarrollo, pobreza, bajos salarios, servidumbre derivado de los modos de producción precapitalistas.
7
BAMBIRRA, Vania. Teoría de la dependencia: op. cit. p. 26 y ss.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

La formulación de Marini la TMD no se concibe fuera del marco
del marxismo; no se construye a nivel del concepto abstracto modo de
producción – donde Marx formuló sus leyes esenciales del desarrollo y
crisis del capitalismo, por lo que no se le debe sobreponer a Marx otra
u otras teorías – sino al nivel del concepto Formación Económica Social
Capitalista Dependiente. Como se desprende de lo anterior la TMD
no se ubica en la perspectiva del “enfoque”, sino que hace el objeto de
estudio a la misma dependencia en tanto categoría económica, política,
ontológica, global. Abarca el conjunto de los fenómenos contemporáneos
del capitalismo en que está inmiscuida América Latina y el Caribe en tanto
región periférica, dependiente y subdesarrollada, además de otras regiones
del mundo que se encuentran en esta misma condición.
De lo anterior planteamos que la TMD, desde el punto de vista
epistemológico, se construye en el contorno de la formación económico-
social capitalista dependiente: en un nivel de abstracción metodológico
más concreto, y no al nivel del modo de producción, puesto que en éste
es justamente donde actúan leyes generales descubiertas por Marx y la
teoría marxista en este nivel de abstracción: valor, plusvalía, acumulación,
composición orgánica del capital, tendencia a la caída de la tasa de ganancia,
ejército de desempleados, crisis, clases sociales y Estado.
Es en función de estas indicaciones teórico-metodológicas que se
debe ubicar en particular el pensamiento de Marini. En su obra primicia,
Dialéctica de la dependencia (Dd), formuló un esbozo, una introducción
general, para construir la TMD la cual se encuentra abierta para coadyuvar
a tan noble tarea como un pasaporte a las futuras generaciones de
intelectuales, estudiantes, académicos y colectivos que están investigando
y publicando en Europa, Argentina, Brasil o Estados Unidos desde esa
perspectiva crítica frente a las teorías dominantes de raigambre norte-
eurocentristas que se difundieron desde los centros de poder en los años
ochenta y noventa del siglo pasado a la luz de la crisis capitalista y de la
desintegración del bloque socialista y que, hoy, están en crisis sistémica.
8
8
Un ejemplo de esto es el del Fondo Monetario Internacional que, ante la quiebra de la rma norteamericana
Lehman Brothers en septiembre de 2008 que desencadenó la crisis capitalista que padecemos en la actualidad,
aludió en varias publicaciones y, por supuesto, desde su perspectiva ultraneoliberal a la intervención del Estado
lógicamente para “salvar al capitalismo” – y superar sus dicultades – de la debacle económica, mientras que
los más conspicuos representantes del capital cticio internacional reculan de sus leyes del mercado y recur-
ren también al socorro del Estado para salvar de la ruina, de la bancarrota, al capital cticio, mientras que se

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Son temas para actualizar críticamente la TMD y el pensamiento
de Marini – y no, para en su nombre, rechazarla – en esa ola de fenómenos
y de los límites a los que está llegando el capitalismo histórico, no digo
a su caída denitiva – que es deseable – sino a límites estructurales cuya
naturaleza es preciso indagar para crear nuevos conceptos y categorías
que nalmente construyan alternativas de futuro superiores, capaces de
trascender a este sistema monstruoso de esclavitud salarial y de miseria
sustentado en el modo capitalista de producción para contribuir a apresurar
su inminente decadencia histórica.
LA CRISIS CAPITALISTA
Es importante advertir que para solventar la supervivencia del
capitalismo como un todo es preciso que, por lo menos, mantenga una
tasa compuesta de crecimiento de 3% de acuerdo con el geógrafo marxista
David Harvey.
9
Se debe considerar, además, que el capitalismo histórico
trae aparejada una tendencia secular declinante desde la segunda guerra
mundial del siglo pasado: de arrojar una tasa promedio de crecimiento
superior a 6% entre 1945 y 1974, declinó a una tasa de 5% entre 1974-
1980; en la década de los ochenta dicha tasa fue de 3.4%, de 1.8% en la de
los noventa y en el año 2000 uctuó entre 0% y signo negativo.
10
Durante el período 2001-2011, como se aprecia en el cuadro
siguiente, el capitalismo mundial sólo creció a una tasa promedio anual de
1,9%, pero aún más baja para los llamados países desarrollados que lo hicieron
a sólo 0,1% durante el mismo período. Fue mejor el comportamiento para
los también llamados países en desarrollo, pero por la fuerte contribución
reestructura el capitalismo mediante “reformas estructurales” en Europa y se generalizan en todo el mundo,
que se encuentra al borde de la recesión y de la profundización de sus dicultades en los órdenes económi-
co, político, social y militar. Dicho en palabras de Gilberto Felisberto Vasconcellos, “Gurú del monetarismo
Milton Friedman puede ser considerado como el padrino de la actual crisis nanciera, pero ahora él dejó de
ser el economista del momento, pues lo que está avanzando en el escenario de la derecha imperialista hoy es
la necesidad de retornar a Keynes. Hasta el mismo Bill Gates y George Soros, frente a la crisis de las hipotecas
sub-prime, andan declarando que son keynesianos, lo que no signica que sean progresistas y avanzados, porque
el propio Keynes, la muñeca inglesa que en 1945 (Breton Woods) quería hacer de Inglaterra socia menor de
Estados Unidos, desde 1933 se dedicó a evitar el colapso del capitalismo…”, VASCONCELLOS, Gilberto
Felisberto. Gunder Frank. O enguiço das ciências sociais, op. cit., p. 23-24.
9
HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo, São Paulo, Boitempo Editorial, 2012, p. 109.
10
VERGOPOULOS, Kostas. Globalização: o m de um ciclo. Ensayo sobre a instabilidade internacional, Rio
de Janeiro, Contraponto, 2005, p. 73.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

de potencias como China e India. En los siguientes años el promedio el
de los primeros no mejoró las perspectivas de crecimiento (2,5% anual)
durante 2012-1015, al igual que el de los segundos (1,5%) durante el
mismo período, mientras que la India creció 5,4% y China, 7,4%. El caso
de Japón, cuna del toyotismo exible y de la desregulación del mundo del
trabajo, es dramático y pasó de un crecimiento negativo de -0,7% durante
2001-2011 a uno mediocre de 1% entre 2012 y 2015. Mientras tanto
Estados Unidos, la potencia del orbe, a pesar de los cantos de sirena de
los organismos hegemónicos nancieros y de los medios de comunicación
alienados en el sentido de que este país asumiría un auténtico dinamismo
en la economía mundial, sobre todo con la explosión de las técnicas de
la fractura hidráulica (fracking) para extraer petróleo, creció sólo 0,2%
durante 2001-2011 y 2,4% entre 2012 y 2015. Ambos casos, además del
promedio de la economía mundial, por debajo del crecimiento compuesto
histórico considerado por Harvey de 3% como mínimo.
Cuadro
1.
Regiones y países seleccionados: tasa de crecimiento del PIB,
2008-2015.
(En
porcentajes
)
2001-2011 2012 2013 2014 2015’
Revisión respecto a la
proyección de enero
2015
Mundo 1,9 2,4 2,5 2,6 2,8 -0.3
Países desarrollados 0,1 1,1 1,2 1,6 2,2 0.1
Estados Unidos 0,2 2,3 2,2 2,4 2,8 0
Japón -0,7 1,5 1,6 0 1,2 0
Zona del euro -0,2 0,8 -0,4 0,9 16, 0,3
Federación de Rusia 1,4 3,4 1,3 0,4 -3,0 -3,2
Países en desarrollo 5,6 4,8 4,7 4,4 4,4 -0,4
India 7,3 4,7 6,4 7,2 7,6 1.7
China 9,6 7,7 7,7 7,4 7,0 0
África meridional 3,3 3,4 3,2 2,5 2,9 -0,7
Fuente:
Co
mi
s
i
ó
n
Económica
para América
L
a
t
i
na
y el
Caribe
(
C
E
PAL)
,
sobre
la base
de
Na
c
1
o
n
e
s
Unidas
,
World
E
conom
i
c
Situation
and Prospects,
201
5.
Update as of
mid-2015, Nueva York,
2015
;
World economic
situation
and p
rospects, 2014, Nueva York,
20
14.
Proyecciones
de
mayo
de
20
1
5.
Por otro lado, los organismos nancieros internacionales del
sistema (FMI, BM. CEPAL, OCDE, BID) convienen en que América Latina
y el Caribe han dejado atrás el ciclo de crecimiento que experimentaron

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
durante el período de 2003-2012, cuando se registraron tasas de más
de 5% de crecimiento promedio anual, para ingresar en uno nuevo de
desaceleración y de graves dicultades económicas y sociales en el contexto
de la crisis y desaceleración de la economía capitalista mundial. Así, la
CEPAL pronostica que el crecimiento de la región en 2015 se contraerá
-0,3% y sólo crecerá 0,7% en 2016 afectando con mayor severidad a las
economías y países del Cono Sur,
11
en especial, de Brasil.
LA DESMEDIDA DEL VALOR COMO ACICATE DE LA CRISIS
Muchas son las teorías que se han levantado en torno a las causas
de este comportamiento de la economía capitalista mundial, y en las cuales
no vamos a reparar. Sólo indicamos que para nosotros se involucran los
ciclos de producción, circulación, intercambio y consumo y que el origen
de la crisis se deriva del fenómeno que hemos denominado: desmedida del
valor
12
que, en síntesis, signica que la constante reducción del tiempo
de trabajo socialmente necesario para la producción y reproducción de
las mercancías, incluyendo a la misma fuerza de trabajo, es cada vez más
insuciente tanto para continuar midiendo el valor global de las mercancías,
como para garantizar escalas crecientes y sostenibles de producción de
plusvalía. Esta hipótesis, nos permite concluir que la actual es una crisis
capitalista derivada de graves dicultades que tiene el capital social global
para producir esencialmente valor y plusvalía, lo que redunda, como está
ocurriendo hoy en día, en un proceso de creciente desdoblamiento del
capital a las esferas nanciero-especulativa, reforzando el régimen del
capital cticio productor de ganancias cticias.
13
La desmedida del valor constituye, así, el eje central de la crisis
contemporánea del capitalismo y del poderoso impulso al proceso de
proletarización y precarización del mundo del trabajo que ocurre hoy en
día prácticamente en todo el mundo.
11
CEPAL, Comunicado de prensa: “CEPAL pronostica que el crecimiento de la región en 2015 se contraerá
-0,3% y sólo crecerá 0,7% en 2016 <http://www.cepal.org/es/comunicados/cepal-pronostica-que-crecimiento-
-la-region-2015-se-contraera-03-crecera-07-2016>. Acceso en: 5 de octubre de 2015.
12
Tema que hemos desarrollado, entre otros, en nuestro libro: Crisis capitalista y desmedida del valor: un enfoque
desde los Grundrisse, coedición Editorial Itaca-UNAM-FCPYS, México, 2010.
13 CARCANHOLO, Reinaldo. Capital, essência e aparência, vol. 2, Expressão Popular, São Paulo, 2013, p.
139. Traducción nuestra.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

La desmedida del valor (dismeasure of value) es un fenómeno
contradictorio relativo a que mientras que el tiempo de trabajo socialmente
necesario, que es el fundamento de la producción capitalista y de la
plusvalía (trabajo abstracto) — y sin el cual este sistema no puede existir
por lo menos tal y como lo conocemos — continúa siendo el instrumento
determinante del valor, de medición del desarrollo de las fuerzas productivas
materiales de la sociedad y de la concomitante producción de la riqueza
social, va disminuyendo paulatinamente por la acción de estas mismas
fuerzas e impacta la reducción de la plusvalía (de donde depende la tasa
de ganancia) mientras aumenta la riqueza social (valores de uso) sobre
una base frágil que ya no es soportable por el sistema capitalista. Además,
como dice Bensaïd: “El valor está determinado por el tiempo de trabajo
socialmente necesario para la producción de la mercancía, tiempo él mismo
uctuante, exible como instrumento de medida que variará con el objeto
medido
14
, particularmente mediante el desarrollo fenomenal de las fuerzas
productivas materiales y cientícas de la sociedad.
En síntesis: la desmedida del valor es la contradicción agrante
entre el tiempo de trabajo socialmente necesario (valor de uso) y el excedente
no remunerado (valor de cambio) donde éste termina subordinando a
aquel, hasta producir una reducción signicativa de la plusvalía que hace
“indiferente” el desarrollo de las fuerzas productivas para el capital.
Para Marx esta desmedida del valor y, por ende, del capital, implica
una agrante contradicción entre la base de la producción burguesa y su
propio desarrollo histórico hoy en pleno desarrollo.
15
De lo anterior derivamos la siguiente hipótesis: por más que siga
aumentando la productividad, desarrollándose la revolución tecnológica
y ahorrado fuerza de trabajo mediante el aumento del ejército industrial
de reserva – como por cierto está ocurriendo como consecuencia de la
actual crisis mundial del modo de producción capitalista – la reducción del
tiempo de trabajo socialmente necesario para la producción de mercancías
y de la fuerza de trabajo (desmedida del valor) va perdiendo funcionalidad
14
BENSAÏD, Daniel. Marx intempestivo: grandezas y miserias de una aventura crítica, Ediciones Herramienta,
Buenos Aires, 2013, p. 134. Cursivas mías.
15
MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse) 1857-1858, vol. 2.,
SigloXXI Editores, México, 1980, p. 227.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
y volviéndose marginal y es cada vez más insignicante como medio para
producir valor y plusvalor aunque progresivamente esté aumentando en
la sociedad el volumen general de la riqueza física (valores de uso) en el
contexto del aumento exorbitante de la pobreza, del desempleo y de la
precariedad social del mundo del trabajo. Paralelamente la estrategia del
capital se dirige a aumentar el trabajo excedente en la sociedad a costa
de reducir, al mínimo, el necesario. Como dice Marx: “… disminuye,
pues, el tiempo de trabajo en la forma de tiempo de trabajo necesario,
para aumentarlo en la forma del trabajo excedente; pone por tanto, en
medida creciente, el trabajo excedente como condición — cuestión de
vida y de muerte — del necesario”.
16
Entoncesel sistema entra en crisis
orgánica, estructural y civilizatoria en virtud de sus constantes décits en
la producción de valor y de plusvalía.
Al respecto dice Giovanni Alves que:
El crecimiento de la productividad del trabajo en las últimas décadas,
debido a las innovaciones tecnológico-organizacionales del capital, sig-
nicó una tendencia a la disminución relativa del trabajo vivo en la
producción social, al interior de un orden mercantil dominado por una
acumulación nancierizada que preserva la obligación de trabajar”.
17
En esta línea de análisis
concebimos el capitalismo global como un
sistema caracterizado por crecientes dicultades que presenta la producción de
valor y de plusvalía a partir de la reducción del tiempo de trabajo socialmente
necesario en la determinación del valor de las mercancías y, por ende, en la
manera como incide en la acumulación y reproducción del capital y en la
formación de las tasas de ganancia (media y extraordinaria), considerando
que esta última es el verdadero motor del sistema.
Del mismo modo que cuando una cuerda ya no se puede estirar
al alcanzar el límite de su resistencia sin que se rompa, el tiempo de trabajo
– promedio, exacto, social y necesario – disminuye, pero lo hace cada vez
menos, marginalmente, debido, entre otros factores: a) al desplazamiento
de fuerza de trabajo que provoca el aumento de la composición orgánica
16
MARX, Karl. Grundrisse, op. cit., p. 229.
17
ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade. O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório,
Boitempo, Sao Paulo, 2011, p. 24-25. Traducción nuestra.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

del capital (la relación entre capital constante (medios de producción y
materias primas) y el capital variable (fuerza de trabajo); b) al desarrollo
tecnológico que, en sí, no crea valor ni, por ende, plusvalor, sino que sólo
lo transere al producto-mercancía, y, c) a la constante producción de
plusvalía relativa, articulada con la producción de plusvalía absoluta y a la
superexplotación de la fuerza de trabajo.
Uno de los efectos de estas dicultades es la reversión del capital
productivo, que no encuentra condiciones adecuadas a sus intereses de
rentabilidad en la producción, a la esfera nanciera y especulativa (capital
cticio) que, por ello mismo, se convierte en hegemónica dentro del ciclo
del capital y que Françoise Chesnais caracteriza de “régimen de dominio
nanciero.
18
Esta tesis coincide con la de Reinaldo Carcanholo cuando
caracteriza la crisis capitalista mundial como “…especulativa y parasitaria,
presidida de la insuciente capacidad del capital productivo para generar el
necesario excedente económico real con el n de atender las exigencias de
remuneración del llamado capital ‘nanciero’ y del capital en su conjunto.
Y esto presenta no sólo consecuencias en la relación intercapitalista, sino
también en la que existe entre el trabajo y el capital”.
19
De lo anterior derivamos la siguiente hipótesis: por más que siga
aumentando la productividad, desarrollándose la revolución tecnológica
y ahorrado fuerza de trabajo mediante el aumento del ejército industrial
de reserva – como por cierto está ocurriendo como consecuencia de la
actual crisis mundial del modo de producción capitalista – la reducción del
tiempo de trabajo socialmente necesario para la producción de mercancías
y de la fuerza de trabajo (desmedida del valor) va perdiendo funcionalidad
y volviéndose marginal y es cada vez más insignicante como medio para
producir valor y plusvalor aunque progresivamente esté aumentando en la
sociedad el volumen general promedio de la riqueza física (valores de uso)
en el contexto del aumento exorbitante de la pobreza, del desempleo y de
la precariedad.
18
CHESNAIS, Françoise. A sionomia das crises no regime de acumulação sob domináncia nanceira, Novos
Estudos, CEBRAP, n. 52, noviembre de 1993.
19
CARCANHOLO, Reinaldo. Capital, essência e aparência, vol. 2, Expressão Popular, São Paulo, 2013, p. 139.
Traducción nuestra.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Desde el punto de vista de la lucha de clases entonces la estrategia
que plantea el capital para “salir” de la crisis y contrarrestar los efectos
perniciosos de la desmedida del valor que al nal de cuentas es también
desmedida del capital, se desdobla en tres vertientes: a) por un lado, en
la tendencia a apropiarse del trabajo subjetivo del obrero colectivo en su
conjunto para convertir y materializar dicha subjetividad en producción
de plusvalía y, por ende, en nuevo capital; b) en segundo lugar, en una
pronunciada tendencia, que incluso se propaga en los países imperialistas
y en sus procesos productivos de trabajo, consistente en superexplotar a la
fuerza de trabajo y expropiar parte – o una proporción creciente – de su
fondo de consumo para convertirlo en fuente adicional de la acumulación,
lo que redunda en aumento de las tasas de plusvalía y de ganancia.
20
Ambos
procedimientos constituyen herramientas de la organización cientíca e
informacional del trabajo extremadamente funcional al sistema japonés:
el toyotismo. Por último, c) en la fenomenal precarización del trabajo que
ocurre vertiginosamente en la última década del siglo XX y en los primeros
tres lustros del XXI.
DEPENDENCIA Y CRISIS DEL PATRÓN DE ACUMULACIÓN DE CAPITAL
En los términos en que hemos denido la desmedida del valor
como causa profunda de la crisis estructural del sistema capitalista global,
América Latina se ve constreñida para desarrollar estrategias y posibilidades
para generar nuevos derroteros que la pudieran escudar frente a las
calamidades y contradicciones de esa crisis. Por el contrario, no escapa
a sus vicisitudes y en tanto región dependiente y subdesarrollada, a la
par, es corresposable – e interactúa – en sus ciclos depresivos y de relativo
crecimiento en determinadas coyunturas. Una fue la de la primera década
del 2000 con el auge del precio de las materias primas y de los alimentos y
otra es la actual de depresión de los mismos y de la contracción brutal de
la tasa promedio de crecimiento económico de la mayor parte de los países
de América Latina y del Caribe.
20
Para el tema de la extensión de la superexplotación del trabajo al mundo desarrollado, véase: MARINI, Ruy
Mauro. Proceso y tendencias de la globalización capitalista, en MARINI, Ruy Mauro y MILLÁN, Márgara, La
Teoría Social Latinoamericana, vol. 4, Cuestiones contemporáneas. Ediciones El Caballito, 1996, p. 49-68. Hay
versión en internet: <http://biblioteca.clacso.eu.ar/ar/libros/secret/critico/marini/08proceso.pdf>.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Ello no deja de tener consecuencias. El dinamismo que presentaron
las exportaciones de manufacturas en el caso de México y de Centroamérica
muy centradas en las maquiladoras y en el caso del primero en el petróleo, y
las de productos agrarios y mineros en los países primario-exportadores logró
paliar en alguna medida la crisis global del capital en un contexto histórico-
estructural a dos velocidades: la primera, inscrita en la coyuntura internacional
de incremento de los precios de las materias primas y los energéticos que
ocurrió entre 2002-2012, y la segunda, la actual, que muestra una importante
reducción de dichos precios y diculta enormemente la adopción de un
patrón de reproducción de capital especializado en la exportación de este tipo
de productos correspondiente a las economías reprimarizadas que también
experimentan fuertes dicultades debido a la depresión de los precios de las
commodities en las que sustentan su crecimiento y desarrollo, particularmente
en los países del Cono Sur latinoamericano.
Ante la profundidad de la crisis capitalista expresada a nivel
internacional por el desplome de los precios de las materias primas y de los
energéticos, el patrón de reproducción vigente en el país necesariamente
tiene que reestructurarse, ¿pero en qué dirección si el actual está agotado
y los reprimarizados con dicultades y pocas posibilidades de expandirse
en el mediano plazo? ¿Es posible que las políticas fundamentalistas
y monetaristas del neoliberalismo consigan sacar del bache en que se
encuentran sumergidas las economías latinoamericanas?
A nuestro juicio la profunda dependencia histórico-estructural
de nuestros países y sociedades, junto a las consecuencias fatales de la
desmedida del valor en sus patrones de acumulación y reproducción de
capital, es lo que explica en el fondo la estrechez de alternativas para superar
la crisis y aanzar alguna senda nueva de desarrollo y que, incluso, impone
límites aún a los llamados gobiernos progresistas de la región.
Al respecto Vania Bambirra, en un interesante libro originalmente
publicado en México inscrito en la teoría marxista de la dependencia y
recientemente reeditado por la Universidad de Santa Catarina
21
en su
Prefacio a la edición brasileña, arma que:
Muchos pensaron que el desmantelamiento del gobierno de Salvador
Allende conduciría al ocaso de la teoría que había inuenciado su pro-
21
BAMBIRRA, Vania. O capitalismo dependente latino-americano, IELA-Editora Insular, 2013.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
grama, sin embargo, no ocurrió así. La misma continúo oreciendo
como un marco teórico para la comprensión de la realidad de las so-
ciedades latinoamericanas, no sólo en las obras de sus elaboradores,
sus discípulos, como en las tesis y obras académicas, sino también en
la inuencia que ella ejerció sobre los liderazgos de los movimientos
revolucionarios, y continúa ejerciendo sobre los gobiernos progresistas
y socialistas que fueron electos y que están gobernando en varios países
del continente.
22
Y en seguida formula la siguiente pregunta: ¿por qué la ruptura de
la dependencia estructural no es parte de la orden del día de los gobiernos
progresistas latinoamericanos? Obviamente que está pensando en los
gobiernos de Venezuela, Bolivia y Ecuador pero también en el de Brasil.
Y nos invita a reexionar profundamente sobre ese tema esencial para el
cambio social y el futuro de los pueblos de América Latina. Aclara que el
camino al socialismo por la vía pacíca prácticamente en todo el mundo es
una posibilidad muy remota y casi excepcional. Sin embargo, y sin dar un
veredicto nal al respecto, nos comenta en ese prefacio que el fenómeno
de la emergencia de los gobiernos progresistas en América Latina ocurrió
en un contexto de crisis que ella considera como una crisis terminal del
sistema que puede conducir a una transición más o menos pacíca, aclara,
sin guerra civil o insurrección general. Obviamente que la autora se centra
principalmente en los casos de Bolivia y Venezuela que intentan interferir
en la política para acelerar el gran motor de la historia de la transformación
y del cambio social rumbo al socialismo, aunque este último concepto tiene
que ser profundamente discutido para denir su contenido y signicado.
También debemos considerar que el tema de la superación del
capitalismo en América Latina, frente a la crisis estructural que la agobia,
no puede prosperar si al mismo tiempo no se supera la dependencia, o, por
lo menos en una primera etapa, sus cimientos esenciales como el ciclo del
capital atado a los países hegemónicos del imperialismo, la superexplotación
de la fuerza de trabajo con sus secuelas de precariedad y exibilización y la
dependencia de las importaciones esenciales de los países avanzados.
22
BAMBIRRA, Vania. O capitalismo dependente, op. cit., p. 26.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

EL SOCIALISMO DEL SIGLO XXI: ¿POSIBILIDAD O ILUSIÓN?
De lo anterior podemos suponer que la TMD es capaz de aportar
elementos teórico metodológicos novedosos para explicar la esencialidad
de los fenómenos estructurales y político-sociales de la actualidad
latinoamericana que, obviamente, no existían en la época en que la autora
publicó ese espléndido libro que, al igual como ocurrió con otros autores,
como Marini, fue doblemente silenciado tanto por el régimen militar
como por los posteriores encabezados por los gobiernos civiles después de
la democratización que ocurrió en el continente luego de 1985.
23
Ciertamente que la teoría de la dependencia, en la vertiente
de Marini, ponderó la lucha social y el cambio mediante procesos
revolucionarios conducidos por sus respectivas vanguardias
24
, entendiendo,
sin embargo, que no todo proceso revolucionario conlleva indefectiblemente
una salida militar, aunque pueda en algún momento pasar por lo militar,
como pueden ser hoy los casos de Colombia, inmersa en un proceso de
negociaciones con el gobierno tendientes a rmar la paz con las FARC-EP;
o de Venezuela que, si bien conquistó el poder político mediante elecciones
por las fuerzas bolivarianas conducidas por el comandante Hugo Chávez
Frías, no ha estado exenta, como ocurre en la actualidad, de la violencia
por parte de la derecha organizada como muestran dos fallidos intentos
de golpe de Estado (11 de abril de 2002 y 12 de febrero de 2015) que
fueron efectivamente conjurados por el gobierno bolivariano encabezado
por el presidente Nicolás Maduro en contra de la derecha doméstica e
internacional articulada con los gobiernos de Estados Unidos, de España y
con los paramilitares colombianos.
En Venezuela no está dada, de ninguna manera, la salida al
Socialismo del Siglo XXI.
25
Estamos viendo las enormes dicultades por
las que atraviesa actualmente el proyecto bolivariano y su gobierno que, en
un contexto de intensa lucha de clases, la derecha maltrecha, como la llama
el presidente Maduro, y las clases dominantes opuestas a dicho proyecto
23
Para este tema véase: SALLES, Severo. Lucha de clases en Brasil (1960-2010), Peña Lillo-Ediciones Continente,
Buenos Aires, 2013.
24
Véase: MARINI, Ruy Mauro. Subdesarrollo y revolución, Siglo XXI, México, 1985, 12.ª ed.
25
Para el tema del Socialismo del Siglo XXI, véase: FRÍAS, Hugo Chávez. El socialismo del siglo XXI.
Cuadernos para el Debate, enero de 2011, disponible en: <https://www.google.com.mx/#q=ch%C3%A1vez+y
+el+socialismo+del+sigglo+XXI>.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
no vacilan, en ningún momento, en utilizar la violencia – por ejemplo
a través de las famosas guarimbas (disturbios callejeros, vandalismo
y bloqueos de calles y avenidas) – y la fuerza en todos los sentidos y
echando mano de todos los medios a su alcance para derrotar al gobierno
constitucional de Nicolás Maduro y reestablecer y defender sus intereses
con el apoyo norteamericano. Y lo mismo está ocurriendo en Ecuador
donde la embestida de la derecha se empeña en desprestigiar para derrocar
al gobierno de la Revolución Ciudadana a través de lo que Rafael Correa
denomina “golpe suave” con el pretexto de la propuesta ocial de la ley
de herencias y plusvalías que afecta los intereses de la poderosa oligarquía
enriquecida del país que representa menos del 2% de la población.
No hay que perder de vista que está en pleno desarrollo una
embestida brutal articulada de la derecha y la ultraderecha latinoamericana
contra todos los gobiernos considerados progresistas, de contenido y
vocación social comprometidos con proyectos, por lo pronto, alternativos
al neoliberalismo. Así, la solución pacíca o violenta no es un asunto
resuelto ni por el gobierno ni por el pueblo venezolano o por los otros
gobiernos: va a depender de la correlación de fuerzas y del desarrollo futuro
de los acontecimientos en esos países, a nivel de la región y – cada vez más
intrincado – en el internacional.
A mi parecer el ciclo de los gobiernos progresistas en América
Latina no está agotado, ni mucho menos, sino que permanece en una suerte
de encrucijada. En primer lugar debido al hecho de mantener el statu quo
caracterizado por la crisis económica, los embates inacionarios y de las
monedas locales, los constantes asedios de la derecha contra el gobierno
y la sociedad civil, la insuciencia de alimentos por diversas causas, los
problemas fronterizos como el que existe actualmente entre Colombia y
Venezuela y la disputa territorial de ésta con el gobierno de Guayana por
la posesión del territorio del Esequibo c
uya soberanía reclama el gobierno
bolivariano en base alAcuerdo de Ginebradel 17 de febrero de 1966.
26
En segundo lugar, considero que al no radicalizar los procesos
revolucionarios en curso tal vez en la dirección del llamado socialismo del siglo
26
Véase: ACUERDO DE GINEBRA del 17 de febrero de 1966, Ministerio del Poder Popular para Relaciones
Exteriores de la República Bolivariana de Venezuela, disponible en: <http://esequibo.mppre.gob.ve/index.php/
capitulo-v/15-articulos/35-el-acuerdo-de-ginebra-del-17-de-febrero-de-1966>.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

XXI – o de cualquier otra fórmula que esencialmente supere dicho estado de
cosas – y no se auspicie un salto cualitativo para construir una nueva economía
y sociedad cimentadas en la socialización de la propiedad privada de los
medios de producción, en la abolición de las relaciones de explotación entre el
trabajo y el capital y en el establecimiento de auténticas relaciones cooperativas
y solidarias entre las personas, se mantiene y reproduce un permanente
estado de tensión que pone en jaque la vigencia de los llamados gobiernos
progresistas que al mismo tiempo reanima y reproduce constantemente los
procesos contrarrevolucionarios comandados por las derechas de esos países
y del continente articuladas con el imperialismo internacional interesado en
reimponer su dominación en el conjunto de la región.
En suma el proceso de democratización que sería de signo
rupturista post-neoliberal– o primera del ciclo de los gobiernos progresistas
respecto de las democracias restringidas y gobernables – dependerá del
curso de los acontecimientos latinoamericanos e internacionales en el
futuro mediato e inmediato, así como de las luchas internas de clases
en esos países, y del fortalecimiento de los movimientos populares para
estimular a sus gobiernos a radicalizar el cambio económico-social. Pero
también podría constituir el preludio de una transición hacia un nuevo ciclo
histórico que marque un avance sustancial de esos países y sociedades hacia
la implementación de verdaderos procesos alternativos de construcción del
socialismo latinoamericano del siglo XXI.

AS DIMENSÕES DA CRISE DO CAPITAL
E A PARTICULARIDADE BRASILEIRA
NO INÍCIO DO SÉCULO XXI
Adilson Marques GENNARI
1 INTRODUÇÃO
Neste pequeno ensaio vamos tecer uma reexão sobre o signi-
cado da atual crise do capital. Para tanto, em primeiro lugar, abordaremos
sucintamente alguns aspectos teóricos da crise, embasados nas ideias clás-
sicas de Karl Marx. Em seguida, analisaremos alguns aspectos estruturais
ligados ao atual processo de globalização hegemônica, em que seguiremos
inicialmente os passos e reexões de Boaventura de Souza Santos e Istvan
Mészáros, e por m, trataremos de alguns elementos que julgamos cen-
trais da atual crise da particularidade brasileira e nestes buscamos reetir
junto com Francisco de Oliveira e Leda Paulani. Nosso objetivo é buscar
contribuir para o debate teórico no campo das ciências sociais, no sentido
de elucidar os complexos processos da crise atual que impactam profunda-
mente nossas vidas.
2 A CRISE DO CAPITAL E O ATUAL PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO CAPITALISTA
Segundo Santos (2002), a sociedade moderna experimenta atual-
mente sua quarta onda de globalização. Mas a globalização não é um proces-
so unívoco. Pode-se vericar a presença de pelo menos dois processos de glo-
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
31-44
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

balização simultâneos: o processo de globalização hegemônico e o processo
de globalização contra-hegemônico. O hegemônico está relacionado à busca
de hegemonia por parte do poder das corporações internacionais, dos países
hegemônicos, principalmente, os EUA e seu pensamento também buscam
hegemonizar-se: o pensamento neoliberal, com sua crença no mercado todo
poderoso e no indivíduo como ente fundamental da sociedade. Já o processo
de globalização contra-hegemônico busca alternativas ao poder hegemônico,
criando um debate e um movimento internacional em favor da diversidade
cultural, da defesa da ecologia, dos direitos e garantias sociais, da democracia
radical, dos direitos das mulheres e alguns chegam a almejar a transição para
outra sociabilidade, como é o caso do movimento eco-socialista e de tantas
outras organizações e coletivos de esquerda.
A virada do milênio representa um momento de grandes trans-
formações. Fatos marcantes como a queda do mudo de Berlim, ou o m
do Império português com a volta de Macau para a China, são ofuscados,
dada sua imersão em um universo de transformações estruturais cujas ori-
gens remontam aos anos 1970. Crise do sistema de Bretton Woods. Crise
do padrão de nanciamento da acumulação de capital. Crise da forma de
ser do capitalismo do pós-guerra. Crise da matriz produtiva baseada na
segunda revolução industrial e introdução das novas formas de produção
da nova acumulação molecular digital. A microeletrônica e a informática
distinguem-se das transformações tecnológicas anteriores, posto que inci-
dem sobre todo o tecido econômico e, crescentemente, sobre o tecido so-
cial. Assim, pôde se generalizar e ganhar o status de revolução tecnológica.
A crise atual do capital é a base, tanto do ideário neoliberal, quan-
to da busca de lucratividade pelos capitais globais. As ideias neoliberais
ganham a dimensão de ideário do processo de globalização, na medida
em que os capitais globais necessitam de exibilidade, desregulamentação
e destruição das amarras impostas pelos trabalhadores e seus sindicatos, a
imposição de limites ao livre uxo de capitais, a precarização e a superex-
ploração do trabalho. A crise geral, resultado da luta de classes e da con-
corrência entre os capitalistas, acaba por impor novos padrões tecnológicos
e novas formas de exploração que reinventam a tecnologia e as formas
de produzir. Inesperadamente, a busca por mais valia relativa e absoluta
reinventam a geograa mundial e colocam a China como a grande fábrica

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
do mundo. Assim, ao deslocar a força de trabalho necessária ao capital, a
Europa vê-se envolta a uma grande crise estrutural. O velho capital neces-
sita, de preferência, de força de trabalho superexplorável, ou seja, não lhe
apetece um Estado do Bem Estar Social incapaz de lhe garantir exuberan-
tes taxas de exploração. Assim, o capital reinventa a geograa econômica ao
deslocar-se prioritariamente para a China (com monumentais contingen-
tes populacionais aptos à superexploração) e a outros países do globo, que
apesar de secularmente engajados na acumulação de capitais, pelo menos
desde o período mercantilista, são agora denominados pelos disciplinados
economistas das agências de fomento e regulação por “emergentes”.
O que entendemos por globalização refere-se a fenômenos rela-
tivos à reordenação capitalista, que foi sendo desenvolvida com medidas
concretas de política econômica como uma determinada resposta à crise
estrutural capitalista da década de 1970. Segundo Chesnays (1997, p. 13-
14), a partir de 1978, a burguesia mundial, conduzida pelos norte-ameri-
canos e pelos britânicos, empreendeu em proveito próprio, com maiores
e menores graus de sucesso, a modicação internacional, e a partir daí,
no quadro de praticamente todos os países, das relações políticas entre
as classes. Começou então a desmantelar as instituições e estatutos que
materializavam o estado anterior das relações. As políticas de liberalização,
desregulamentação e privatização que os Estados capitalistas adotaram um
após o outro, desde o advento dos governos atcher em 1979 e Reagan
em 1980, devolveram ao capital a liberdade que havia perdido desde 1914,
para mover-se à vontade no plano internacional, entre países e continentes.
É um fato que a produção atual está subsumida à lógica do capi-
tal nanceiro, que conquistou liberdade de movimento global e trafega à
velocidade da luz” pelos chamados mercados. Mas aí não está o cerne da
questão ou a essência da mudança. Segundo Francisco de Oliveira (2006,
p. 274), o capitalismo atual se pauta por:
[...] um capital de imagens que torna a marca seu principal atout co-
mandado por uma digitalização e molecularização que mudou radical-
mente a linguagem e as referências do próprio cotidiano e permite uma
forma de capital que atua como virtual, isto é, capaz de extrair mais-va-
lia no momento do uso da força de trabalho, sem os constrangimentos
da era industrial, que criaram a virtualidade da classe que, nos termos
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

de ompson, requer, sempre, sua própria autoinvenção. É a forma
suprema do trabalho abstrato, anal, lograda pelo sistema capitalista.
Com efeito, no capital virtual, a mercadoria pode ser também
virtual, assim como o próprio ambiente de trabalho, ou seja, pode ser um
serviço”, um “efeito útil”, uma “marca”, uma “imagem”, cuja produção é
simultânea à realização. É assim que o capital virtual “abre mão” da fábrica
para a produção de valor (OLIVEIRA, 2006).
Para o sociólogo Bauman (1999), uma das consequências do pro-
cesso de globalização é o surgimento, de um lado, de uma nova classe su-
perior, rica e com mobilidade física e virtual, “os turistas”, que viajam tanto
a trabalho quanto para mero desfrute e consumo de cultura; e de outro
lado, o vagabundo, que representa o pobre, que se desloca, mas é sempre
indesejado. Isso ocorre impulsionado por mudanças nas tecnologias de in-
formação e suas consequências nas novas formas de ser do capital. Segundo
Bauman (1999, p. 102),
[...] uma vez liberado do espaço, o capital não precisa mais da mão de
obra itinerante (enquanto sua mais avançada e emancipada vanguarda
high-tech sequer precisa de mão de obra alguma, móvel ou xa). É
assim a pressão para derrubar as últimas barreiras para o movimento
do dinheiro anda de mãos dadas com a pressão para cavar novos fossos
e erigir novas muralhas (chamadas de lei de “imigração” ou de “nacio-
nalidade”) que barrem o movimento daqueles que em consequência
perdem, física ou espiritualmente, suas raízes. Sinal verde para os turis-
tas, sinal vermelho para os vagabundos. A localização forçada preserva
a seletividade natural dos efeitos globalizantes. Amplamente notada e
cada vez mais preocupante, a polarização do mundo e de sua população
não é interferência externa, estranha, perturbadora aos processos de
globalização – é efeito dele.
Já para o pensamento social crítico de Istvan Mészáros, o atu-
al processo de globalização capitalista aprofunda também as contradições
próprias à relação social “capital”. Segundo Mészáros (1997, p. 152)
[...] o capital necessita expandir-se apesar e em detrimento das condi-
ções necessárias para a vida humana, levando aos desastres ecológicos e
ao desemprego crônico, isto é, à destruição das condições básicas para
a reprodução do metabolismo social. [...] Um sistema de reprodução

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
não pode se autocondenar mais enfaticamente do que quando atin-
ge o ponto em que as pessoas se tornam supéruas ao seu modo de
funcionamento.
Na avaliação pioneira de Marx (1986, p. 107, grifo nosso), “[...]
no desenvolvimento das forças produtivas chega-se a uma fase onde sur-
gem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no quadro das relações
existentes, apenas causam estragos e não são mais forças produtivas, mas
forças destrutivas”.
Neste mesmo sentido, na reexão de Mészáros (1989, p. 29), deve-
mos ter em mente “[...] que a alienação dos meios de produção do produtor é,
simultaneamente, também a perversa metamorfose de tais meios de produção
em capital.” Neste sentido, toda a maquinaria do atual estágio do capitalismo
necessariamente serve mais a propósitos destrutivos do que a objetivos produ-
tivos. Além das guerras, verica-se um aumento na velocidade de obsolescên-
cia das mercadorias produzidas de modo que temos uma taxa decrescente de
uso de todos os bens produzidos nunca dantes vericada na história.
Posto isso, é preciso considerar que o atual processo histórico de
acumulação de capital tem por corolário o aumento colossal da velocidade
de rotação do capital, isto é, do tempo em que o dinheiro-capital se trans-
forma em mercadoria e, ao completar o ciclo, volta às mãos dos capitalistas
ou investidores.
Isto é causa e efeito do aumento da velocidade de inovações tec-
nológicas. Um dos aspectos perversos de tal movimento de inovações e re-
voluções técnicas é o fato da necessidade cada vez menor de trabalhadores
no processo produtivo em função da adoção de máquinas e processos mais
ecientes” para enfrentar a permanente concorrência e a luta de classes, e
vai, no processo (como na reexão de Marx), transformando a classe tra-
balhadora, crescentemente, em classe supérua, seja pela simples extinção
de cargos ou funções, seja pelo corte de custos, com a eliminação de postos
de trabalho.
Paradoxalmente, parte signicativa da população trabalhadora se
vê transformada em “supéruo” em relação às engrenagens supermodernas
de uma sociedade de alta tecnologia em que o capital se transformou em
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

imagem (DEBORD, 1997). Simultaneamente, o aumento da produtivi-
dade do trabalho e da rotação do capital que o acompanha, ao reduzir a
taxa de utilização das mercadorias produzidas, seja pelo lançamento de
novos produtos ou similares, seja pela planejada obsolescência dos mes-
mos, transforma crescentemente as mercadorias em dejetos ou entulho,
provocando o desmesurado aumento da destruição ambiental (KEMPF,
2009). Assim, naturalmente os seres humanos são vistos como “recursos
humanos” ou mão-de-obra, e a natureza como “recursos naturais” ines-
gotáveis para um processo irracional de produção de massas crescentes de
lucros para os acionistas das corporações de escopo.
Naturalmente, as populações pobres são as mais afetadas, pois a
um só tempo sofrem o impacto do aumento do desemprego estrutural e da
devastação ambiental, com a proliferação de doenças, a favelização urbana,
a falta d’água e de saneamento básico, além do crescimento das desigual-
dades sociais que atingem todo o globo. Nesse sentido, é possível inferir
que o surgimento da nova pobreza e a devastação ambiental são duas faces
do mesmo processo de produção destrutiva da nova fase do capitalismo
globalizado e reetem um momento histórico de crise civilizacional.
Assim, o Estado passa a ser pressuposto da acumulação de capital,
como na assertiva de Chico de Oliveira (1998). O Estado neoliberal, dife-
rente da retórica propalada por seus éis seguidores, não é alijado do pro-
cesso de acumulação do capital; ao contrário, desempenha função precípua
como agente articulador entre o espaço econômico sob seu domínio e o ca-
pital nanceiro internacionalizado. Atua como engrenagem na unicação
transnacional dos esquemas de valorização nanceira, ligando as frações do
capital global internacionalizado ao capital local - que garante sua base de
sustentação política - para garantir a reprodução ampliada. Desta maneira,
convergem os interesses dos blocos de capital privado local, internacional e
estatal, sempre garantidos pela capacidade mediadora do Estado.
O grande terreno no qual se busca garantir a convergência dos in-
teresses do capital é a política econômica levada a cabo pelos Estados na-
cionais, em seus termos monetário, scal e cambial. Pois, concomitante ao
processo de globalização das nanças que vem ocorrendo desde o último
quartel do século XX, houve certa homogeneização das políticas econômicas
de Estado, orquestradas pelas instituições liberais e pretensamente “multila-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
terais” – como o FMI e o Banco Mundial. Uma vez que o receituário designa
sempre os mesmos arranjos institucionais em torno de como os países devem
conduzir sua taxa de juros, de câmbio, sua política de comércio exterior ou
mesmo seus gastos, abre-se assim um “espaço mundial” homogêneo, que
garante ao capital livre circulação, mas acima de tudo garante a mobilidade
e o uxo do excedente econômico gerado globalmente.
O Estado neoliberal converte-se em fundamental ducto pelo qual
passa a mais valia mundial em direção às mãos do capital nanceiro ren-
tista. Sua forma fenomênica é a dívida pública gigantesca e sua política
econômica, orquestrada pelo FMI e Banco Mundial; é a chamada para
a geração de superávits primários, desregulamentação nanceira, câmbio
exível e outros itens que garantam a livre circulação do capital, mas fun-
damentalmente o uxo do excedente econômico gerado globalmente.
No coração da crise atual do capital está o interesse imperialista
concreto das corporações de escopo que a um só tempo são organizações
produtivas e nanceiras. Senão vejamos: aprendemos com o livro terceiro
da obra “O Capital” de Karl Marx que, as ações das corporações e os títulos
que circulam no mercado de capitais, representam, em última instância,
direitos sobre a mais valia futura. Isto explica a crescente importância que
as expectativas (dos agentes, do mercado ou simplesmente dos investidores
e especuladores) assumirão na história do capitalismo. Neste sentido, as
expectativas sobre a economia determinarão o preço das ações e dos títulos.
Daí, as contradições, os dilemas e os problemas na esfera produtiva, ou nos
chamados fundamentos da economia, alteram as expectativas e provocam
um ajuste ex ante no valor das ações e títulos.
As instituições bancárias e nanceiras se apropriam destes títulos
e ações e formam uma verdadeira aristocracia nanceira global. Capturam
os Estados nacionais porque se utilizam do mercado de títulos e papéis
emitidos pelos Estados, assim como fazem com outros títulos em outros
mercados. A desregulamentação nanceira global, levada a efeito, princi-
palmente desde os anos 1990, na esteira da onda neoliberal ou da globa-
lização hegemônica, como quer Santos (2002), criou derivativos e novos
produtos nanceiros que acabaram por amplicar a nanceirização e o
volume de capital nanceiro global. No início do século XXI a massa de
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

capital nanceiro representa aproximadamente dez vezes o total do todo o
PIB global. É uma hiperbolha nanceira.
O interessante relativamente novo é que as corporações de escopo
convertam parte do seu capital em carteira de títulos e, portanto, o antes
chamado capital produtivo se funde ao capital nanceiro e disto surgem,
tanto a nova corporação de escopo, quanto o próprio capital nanceiro,
uma vez que o próprio lucro das corporações incluem em seu montante
partes de juros e remunerações nanceiras, assim, as corporações do século
XXI se apropriam da mais valia de outra forma que as segmentadas empre-
sas de outrora. Lenin (1979) captou em seu “Imperialismo, fase superior
do capitalismo” a gênese deste processo. Hoje, encontramos sua maturida-
de, na qual o capital de uma só vez consegue capturar a mais valia, como
empresa, como banco e como sócio dos Estados Nacionais via dívidas pú-
blicas crescentes em todo o globo.
Assim, a crise é, no fundo, uma crise de superprodução de capital;
deste capital híbrido e totalizante. Esta nova crise assume a aparência de
uma crise nanceira, mas é de fato uma crise de superprodução de valor
que provoca, como dantes, uma tendência à queda na taxa de lucros e a
sua consequente necessidade de queimar capital. Tudo no sentido de que
o capital e seus representantes necessitam reestabelecer a taxa de lucro e as-
sim, a crise cria um aparente caos que tem como objetivo queimar parte do
capital e reestabelecer a taxa de exploração, mesmo que para isso tenha que
desindustrializar áreas inteiras do planeta e migrar para novos mercados
que disponibilizam matérias-primas e força de trabalho com taxas de ex-
ploração compatíveis com seus interesses de lucros. Neste sentido, as teses
clássicas de Rosa Luxemburg (1985) sobre a necessidade do imperialismo
nunca foram tão atuais.
3 AS DIMENSÕES DA CRISE DO CAPITAL E A PARTICULARIDADE BRASILEIRA NO
INÍCIO DO SÉCULO XXI
Não cabe neste trabalho aprofundar a questão teórica da crise do
capital, entretanto vale apontar que há uma dimensão teórico-estrutural
da crise, relativa à manifestação ontológica da classe capitalista explorada
por Marx no livro II de O capital (1980), em que há uma reexão sobre

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
as origens profundas e determinantes da crise do capitalismo e do capital,
expressas na obra fundamental de Marx, “O Capital”, qual seja: a causa e a
origem da crise é o próprio desequilíbrio causado pelos capitalistas em sua
busca ontológica por acumular mais valia (lucros, juros e renda da terra),
ou seja, o desequilíbrio estrutural causado pela ação dos capitalistas ao
instaurarem um processo de investimento e busca por excedente econômi-
co, para o qual, necessariamente, inserem no mercado mais valor do que
dele retiram no que tange à mercadoria, e concomitantemente, retiram
do mercado mais valor na forma dinheiro do que colocam. Assim, criam
um desequilíbrio estrutural na sociedade produtora de mercadorias, que
causa necessariamente um hiato crescente entre a chamada oferta agrega-
da e a demanda agregada, de modo que a crise aparecerá como uma crise
de superprodução ou uma crise de subconsumo, quando na verdade (na
essência) é uma crise de desproporção entre o valor que os capitalistas co-
locam no mercado e a massa de valor que dele retiram. Somente através
da existência deste “desequilíbrio” pode a burguesia, ou os detentores de
capital, se apropriar privadamente de parcelas da mais valia gerada coleti-
vamente pela classe trabalhadora. Eis todo o segredo da crise do capital e
do capitalismo, e de seu agente: a burguesia.
No Brasil, a ascensão do candidato do Partido dos Trabalhadores
à Presidência da República nas eleições de 2002 trouxe tanto esperanças
quanto decepções aos liados e simpatizantes do Partido. Entretanto, é
inquestionável que a partir deste momento houve uma inexão em al-
guns aspectos da realidade brasileira, como por exemplo, na área social:
o Programa Bolsa Família, que acabou por abarcar todos os considerados
miseráveis pelos parâmetros do Banco Mundial, ou seja, aqueles que vivem
com menos de um dólar por dia. O sucesso do plano chamou a atenção
dos políticos, tecnocratas e especialistas do mundo todo dado a abrangên-
cia que o Programa alcançou no Brasil, ou seja, cerca de um quarto da
população foi retirado da miséria com uma dispensa pública irrisória de
menos de meio por cento do PIB. Não cabem dúvidas quanto ao sucesso
do Programa, entretanto, cabe questionar e reetir sobre os alcances e li-
mites de programas focalizados que, no limite, não alteram as estruturas
econômicas e sociais vigentes, apesar de seu real impacto nos coecientes
de GINI e de IDH do país.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Os primeiros dois governos do PT não se destacaram somente
por isso, mas também pelo reajuste real do salário mínimo que somado aos
novos incluídos nos programas de previdência social, como os aposenta-
dos por idade avançada, resulta num impacto signicativo nos indicadores
sociais. Entretanto, ao contrário do que armam os adeptos do PT e do
chamado novo desenvolvimentismo, não houve mudanças estruturais reais
no período compreendido nos três governos do Partido dos Trabalhadores
em âmbito federal.
A questão fundamental é compreender a forma de inserção do
Brasil no processo de globalização, ou seja, a forma subordinada de inser-
ção do Brasil no novo ciclo nanceiro e tecnológico global. O Brasil acaba
de reproduzir as tradicionais formas de inserção cuja dinâmica principal
vem das decisões dos mandatários dos uxos internacionais do capital.
Um aspecto relevante no processo de desenvolvimento recente,
chamado por alguns economistas de “novo desenvolvimento” (BRESSER-
PEREIRA, 2012) foi a forma que o Brasil consumiu suas divisas de expor-
tação com um montante equivalente de importações, e as suas relações de
quase-dependência da acumulação de capital na China na forma de expor-
tação de produtos primários e semimanufaturados (foco na exportação de
commodities como carnes, minérios, soja, açúcar etc.), o que repõe a velha
sina de país de extração colonial que não consegue se livrar de esquemas
de acumulação ampliada de caráter subordinado aos polos hegemônicos.
Do ponto de vista conjuntural, a crise ganha algumas dimensões
que precisam ser consideradas, a saber: a) a evolução da conta “transações
correntes” do balanço de pagamentos, que assumiu uma trajetória de dé-
cits crescentes de 2008 a 2014, ou seja, desde a grande crise cujo epicentro
foram os Estados Unidos; b) o brutal aumento da dívida pública, cuja
remuneração empenha quase metade da arrecadação federal; c) a crise polí-
tica que se seguiu às descobertas dos esquemas de corrupção do “mensalão
e do “petrolão”, cuja derivada foram tanto as chamadas pautas-bomba,
quanto a não aprovação das medidas do ajuste scal proposto pelo execu-
tivo; e last but not least, a crise mundial com destaque para a crise chinesa,
mais especicamente o tipo de relação e inserção do Brasil no contexto da
globalização como grande fornecedor de commodities.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Nos braços do PSDB e controvertidamente do PT, o Brasil ga-
nhou um novo papel na divisão internacional do capital, caracterizado por
Paulani (2008, p. 131) da seguinte maneira:
Abraçando o projeto neoliberal, vendeu-se a ideia de que o Brasil pe-
garia o bonde da história pela via do comércio exterior. […] Mas o
Brasil entrou no bonde da história por outra porta e transformou-se
em plataforma de valorização nanceira internacional, bem em linha
com o espírito rentista e nancista dos dias que correm.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil – em razão dos interesses da classe dominante e suas velhas
e novas frações – não consegue se desvencilhar de sua miséria histórica, ou
seja, sua origem de colônia de exploração. Neste contexto, ou na sua par-
ticularidade, a industrialização, entendida geralmente como caminho para
a construção da modernidade capitalista, ou para a própria constituição e
conclusão do processo de construção da Nação, aqui, não passou de mais
um ciclo que se seguiu ao ciclo do açúcar, do ouro e do café. O novo ciclo, o
nanceiro, reproduz a tradição de subordinação estrutural ao grande capital
internacional, sempre como potência econômica rica, mas na condição de
sócio menor e subalterno. No atual ciclo, a subordinação é eminentemente
nanceira com uma estrutura reconvertida à exportadora de commodities su-
balterna ao ciclo industrial chinês e à globalização hegemônica.
Enm, em nossa reexão trabalhamos com a hipótese de que a
nova fração de classe burguesa (nanceira) que dá substância histórico-
-social ao Partido dos Trabalhadores, não pôde obter outro projeto para
a nação senão este, que, de um lado subordina o Brasil a um ciclo nan-
ceiro especulativo global e, de outro lado, cabe no máximo fazer algumas
concessões aos “de baixo” com o programa Bolsa Família (considerado um
exemplo pelo Banco Mundial e pela elite capitalista global). Daí o “beco
sem saída” da crise atual. Neste sentido, infelizmente o ano de 2015 de-
verá apresentar uma queda de aproximadamente 3% no PIB, com severas
consequências para a classe trabalhadora, e as perspectivas para 2016 não
são menos sombrias, tanto no campo econômico (com a recessão, perda do
grau de investimento, décit em transações correntes, desemprego, dívida
pública em elevação etc.), quanto no campo político (com a tentativa de
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

impedimento da Presidente democraticamente eleita Dilma Rousse do
cargo máximo da nação). Mas em fevereiro tem carnaval, e desta vez o
povo brasileiro, digo, as classes trabalhadoras, não irão apenas sambar e
dançar com nossa histórica alegria, posto que precisarão enfrentar grandes
desaos: barrar um golpe de direita e repensar os rumos para uma nova
sociabilidade que busque superar esta crise civilizacional.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar,
1999.
BRESSER-PEREIRA, L. C. Do antigo ao novo desenvolvimentismo na América
Latina. In: PRADO, L. C. D. (Org.) Desenvolvimento econômico em crise. Ensaios
em comemoração aos 80 anos de Maria da Conceição Tavares. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012.
CHESNAYS, F. Mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1997.
DEBORD, G. Sociedade Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
KEMPF, H. Para salvar o planeta, livrem-se do capitalismo. Lisboa: Ana P. Faria,
2009.
LENIN. V. I. Imperialismo, fase superior do capitalismo. In: Obras escolhidas de
V. I. Lenin em três tomos. Moscou: Progresso, 1979, vol. 3.
LUXEMBURG, R. A acumulação de capital. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
MARX, K. O capital, crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira S.A., 1980. [Livro segundo].
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1980.
MÉSZÁROS, I. Ir além do capital. In: COGGIOLA, O. Globalização e socialis-
mo, São Paulo: Xamã, 1997, 2002.
______. Produção destrutiva e Estado capitalista. São Paulo: Ensaio, 1989.
OLIVEIRA, F. Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imper-
feita. Petrópolis: Vozes, 1998.
OLIVEIRA, F. Neoliberalismo y sectores dominantes. In: BASUALDO, E. M.;
ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes: tendencias globales y experien-
cias nacionales. Buenos Aires: CLACSO, p. 274. 2006.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
PAULANI, L. Brasil delivery: servidão nanceira e estado de emergência econô-
mica. São Paulo: Boitempo, 2008.
SANTOS, B. S. Globalização e ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)


NOTAS SOBRE A POLÍTICA
ECONÔMICA DO GOVERNO DILMA
1
Francisco Luiz CORSI
1 INTRODUÇÃO
A economia brasileira não pode ser analisada fora do contexto
mundial no qual está inserida. Tanto sua fase de expansão recente (2003-
2010), que coincide com o governo Lula, quanto o baixo crescimento do
primeiro mandato do governo Dilma e a recessão atual estão intimamente
articulados às transformações em curso na economia mundial, embora o
desempenho da economia brasileira também dependa, em boa medida, das
determinações internas e da luta de classes em torno da denição dos seus
rumos. O objetivo das presentes notas é discutir o baixo desempenho da
economia entre 2011 e 2014 e as causas da recessão em 2015, que parece
projetar-se para os próximos anos. Desta forma, interessa aqui discutir o
período que se abre com a crise de sobreacumulação de capital em 2007.
Antes, porém, de abordar esse objetivo, cabem algumas considerações ge-
rais sobre a crise mundial.
A referida crise se manifesta pela existência de capacidade ociosa
em escala mundial de setores importantes (o siderúrgico, o eletrônico, o de
papel, o automobilístico, etc.); pelo alto nível de desemprego, particular-
1
O presente capítulo baseia-se amplamente em Corsi (2006; 2011; 2014; 2015a e 2015b). Consiste em um
aprofundamento dos textos sobre a política econômica apresentados nos Fóruns de Conjuntura realizados nos
últimos anos e em outros eventos da FFC-Unesp.
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
45-68
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

mente em alguns países desenvolvidos; pela existência de estoques de morosa
colocação no mercado; pelo acirramento da concorrência, pelo aprofunda-
mento do processo de centralização de capitais e, sobretudo, pela existência
de uma enorme soma de capital ctício, que Harvey (2011) estimava em
cerca de 600 trilhões de dólares para um PIB global em torno de 55 trilhões
de dólares. Capital que não consegue valorizar-se na produção e, desta ma-
neira, busca fazê-lo por meio da especulação com ações, títulos de dívidas
(particularmente as públicas), commodities e moedas. Os próprios capitais
valorizados dessa forma são, na sua maioria, reaplicados na valorização ctí-
cia, constituindo um mecanismo endógeno de expansão da especulação; ao
que se soma aos desvios de novos capitais que se formam na produção para a
esfera nanceira, pois estes não encontram condições consideradas normais
de rentabilidade na produção (CHESNAIS, 1996; 2005).
Fugiria dos limites destas notas discutir a natureza da crise
2
.
Contudo, cabe lembrar que sua raiz remonta a crise de sobreacumulação da
década de 1970, que, segundo Brenner (2003), teria se “cronicado”. Para
o referido autor, o excesso de capital não teria sido destruído e as condições
de rentabilidade recompostas, daí a exacerbada instabilidade da economia
mundial, o ritmo lento da acumulação de capital no centro do sistema, o in-
chaço da esfera nanceira e a crescente importância das bolhas especulativas
para o capitalismo nas últimas décadas. A dinâmica do capitalismo estaria
baseada nesta fase, grande parte em bolhas especulativas. Isto ocorreu não
obstante à reestruturação do modo de produção, levado a cabo pelos grandes
bancos, pelos fundos de investimento, pelas grandes empresas e pelos princi-
pais governos dos países desenvolvidos sob a égide das políticas neoliberais.
A reestruturação buscava, sobretudo, recuperar a rentabilidade do capital e
disciplinar a classe trabalhadora, em particular por meio da criação de um
exército industrial de reserva global (CORSI, 2006).
A reestruturação a partir da década de 1980 baseou-se no desmon-
te do Estado de bem-estar social, na abertura das economias nacionais, na
desregulamentação dos mercados nanceiros, na reestruturação produtiva,
na nova onda de inovações tecnológicas e na reconguração espacial da
acumulação de capital (CORSI, 2006). Nisto, de enorme importância foi
a abertura de novos espaços de acumulação na Ásia, em especial na China,
2
Existe uma considerável literatura sobre o tema. Ver a respeito, entre outros: Harvey (2011) e Chesnais (2012).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
e nas ex-repúblicas soviéticas. Abriu-se um espaço não-capitalista, que, em
pouco tempo, seria incorporado pelo capital. O capital buscou abrir novas
fronteiras de acumulação nas quais pudesse dispor de mão-de-obra barata,
qualicada e disciplinada. Um dos mecanismos de valorização do capital
que ganharam relevo, não só nessas áreas, mas em todo o sistema, foi o que
Harvey (2005) denominou de acumulação por espoliação. Esses processos
deram fôlego para o capital, ao contribuírem para a elevação taxa de lucro
3
.
Mas a formação de inúmeras bolhas especulativas indicava a fragilidade do
processo de valorização do capital. Fôlego que parece ter esmorecido com
a crise de 2007 e seus desdobramentos, entre eles a atual desaceleração da
economia chinesa.
Essas transformações criaram as condições para a hegemonia do
capital nanceiro (CHESNAIS, 1996) e para a ascensão de um novo polo
de acumulação de capital no Leste asiático (CORSI, 2011). A partir desse
período, as grandes corporações, por meio de empresas em rede, organiza-
ram cadeias globais de produção e distribuição, cujas fases encontram-se
dispersas geogracamente (BASUALDO; ARCEO, 2006). Neste processo
a região do Leste asiático recebeu enorme uxo de capitais
4
.
A reconguração espacial do capitalismo acarretou inúmeros des-
dobramentos na periferia capitalista. Alguns países asiáticos alcançaram
crescente importância na economia mundial e passaram por acelerados
processos de industrialização, tendo uma inserção dinâmica na economia
mundial. Enquanto a maioria da periferia viveu entre 1980 e 2003 em
uma fase de baixo crescimento e instabilidade. Este resultado se deveu a
inúmeras determinações geopolíticas, econômicas, sociais e políticas, que
não caberia aqui detalhar
5
. Para a compreensão da ascensão do Leste asi-
ático também é preciso levar em consideração os projetos de desenvolvi-
mento voltados para as exportações de manufaturados, o papel dos capi-
tais japoneses a partir dos anos 1980 e a política dos EUA voltada para a
contenção da URSS, o que contribuiu para o desenvolvimento regional,
3
Sobre o comportamento da taxa de lucro ver Chesnais (2005), Brenner (2003; 2006) e Katz (2012).
4
Ver a respeito em Carneiro (2002, p. 245).
5
Ver a respeito, entre outros: Arrighi (1997); Medeiros (1997); Palma (2004).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

sobretudo da Coreia do Sul, e para a reinserção chinesa na economia mun-
dial (MEDEIROS, 2008)
6
.
Os países da América Latina, que seguiram uma via de desen-
volvimento capitalista calcada no mercado interno e na substituição de
importações, entraram em uma fase de baixo crescimento, instabilidade,
crise inacionária, crise nas contas externas e retrocesso social por mais de
duas décadas (1980-2003). Sob a pressão da crise, dos EUA, do FMI, do
capital nanceiro global e de amplos setores internos das classes dominan-
tes, vários governos da região adotaram, com matizes nacionais, planos de
estabilização, abertura e desregulamentação de suas economias e amplo
processo privatização, inspirados no chamado Consenso de Washington,
o que aprofundou a inserção dependente e subordinada da região na
economia mundial. (CANO, 2000; BASUALDO; ARCEO, 2006).
Os países do Leste asiático, enquanto isso, projetam-se cada vez
mais no plano mundial
7
, em especial a China, que depois da crise asiática
de 1997 se tornou o centro da economia asiática. Apesar do fato da China
estar aparentemente no epicentro da atual fase da crise de sobreacumula-
ção de capital, este país buscou criar sua própria periferia, não apenas em
escala regional, mas também em termos globais. O peso cada vez maior
da China na economia mundial está alterando a divisão internacional do
trabalho. Neste processo, a América Latina, que está sendo atraída pela
força gravitacional da China, tende a inserir-se nesta divisão de trabalho de
maneira crescente como fornecedora de commodities e bens manufaturados
de baixo valor agregado (CORSI, 2011).
Essa tendência começou a delinear-se a partir da fase expansiva
2003-2007, justamente a partir do momento em que o acelerado cres-
6
Não obstante às peculiaridades, os projetos nacionais desses países, de modo geral, foram calcados nas exporta-
ções de produtos manufaturados, na rme coordenação e controle do Estado de variáveis-chave da economia (câm-
bio, taxa de juros, crédito) e dos setores estratégicos, no desenvolvimento de tecnologia e nos pesados investimentos
públicos e privados em educação e pesquisa. Esses países inserem-se de maneira dinâmica no processo de mundia-
lização do capital. A China, que vive um processo acelerado de transição para o capitalismo, pela sua relevância
mereceria uma discussão a parte, o que não é possível. Mas é preciso observar que a revolução Chinesa foi, sobre-
tudo, uma revolução nacional, pautada pelo objetivo de transformar a China em grande potência (CORSI, 2011).
7
Entretanto, a China evitou até o momento assumir uma postura de confronto direto em relação aos EUA.
Observa-se certa simbiose entre as economias do Leste asiático com a economia norte-americana. Esta atua
como provedora de demanda para todo o sistema, enquanto os superávits do resto do mundo nanciam
os crescentes décits dos EUA. A crise tende alterar essa situação. (ARRIGHI, 2008; MEDEIROS, 2008;
BELLUZZO, 2009).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
cimento chinês elevou os preços das commodities, que também subiram
devido à especulação. O resultado foi a melhora dos termos de intercâmbio
da América Latina, o que contribuiu para o bom desempenho da ativida-
de econômica e para a redução da vulnerabilidade externa da região no
período. A redução da vulnerabilidade externa abriu espaço para políticas
econômicas expansivas e reduziu a dependência dos capitais especulativos
8
.
É neste contexto que podemos entender o crescimento da economia bra-
sileira no governo Lula.
Este quadro sofreu amplas alterações a partir da crise aberta em
2007, que ganhou contornos dramáticos no segundo semestre de 2008
com a falência do banco de investimento Lehman Brothers, ao explicitar
as profundas e antigas contradições do processo de valorização de capital.
Vejamos isso mais de perto: Em 2001, o estouro da bolha especulativa com
ações na NASDAQ já indicava as bases frágeis da acumulação. Contudo,
a política anticíclica adotada principalmente pelos EUA, baseada na forte
ampliação do gasto público (em especial os gastos militares), na redução
dos juros e na ampliação do crédito (BRENNER, 2006, p. 128-133), evi-
tou, à época, uma profunda crise.
Em decorrência dessa política, entre 2001 e 2003, as taxas de
juros de longo prazo para os empréstimos hipotecários caíram de maneira
acentuada e continuaram a declinar mais lentamente até 2006. A queda
dos juros inou ainda mais o mercado imobiliário, que já estava aqueci-
do desde a década anterior, gerando uma imensa bolha, que também foi
impulsionada pela ampliação do chamado crédito subprime, de solvência
duvidosa. Os títulos com garantias hipotecárias e as suas múltiplas formas
de derivativos
9
, que sustentavam, em grande medida, a bolha norte-ameri-
cana, foram negociados em escala global, tornando-se importante canal de
valorização do capital ctício. A economia dos EUA recuperou-se a partir
do crescente endividamento das famílias, das empresas e do Estado e da
8
As economias latino-americanas no período 1980-2002 cresceram em média por ano 2,7%, sendo que o cres-
cimento per capita foi de 1%. Entre 2003 e 2008, a região cresceu em média 5,7% em virtude do incremento
das exportações, da redução da vulnerabilidade externa e das políticas econômicas expansivas e as medidas
distributivas da renda adotadas pelos governos de centro-esquerda, que foram eleitos no período. (PRADO,
2012; CANO, 2000).
9
Ver a respeito em Harvey (2011) e Chesnais (2012).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

contínua expansão da bolha imobiliária (BRENNER, 2006, p.128-130;
HARVEY, 2011).
A expansão da economia dos EUA foi acompanhada de crescen-
tes décits comerciais, que contribuíram para o crescimento da economia
mundial, sobretudo do Leste asiático. Paralelamente, as econômicas asiá-
ticas, em particular a chinesa, ganharam densidade e passaram elas mes-
mas a puxar o crescimento mundial. A convergência desses dois processos
deu origem à fase expansiva 2003-2007. O aumento da liquidez em escala
mundial e a elevação dos preços das commodities, devido a especulação e
ao crescimento chinês, estimularam o conjunto da periferia (BELLUZZO,
2009; CHESNAIS, 2012; HARVEY, 2011).
A inexão desse processo teve início com elevação dos juros nos
EUA, em 2006, com o objetivo de deter as pressões inacionárias e desin-
ar a bolha especulativa. Isto precipitou a crise. A inadimplência atingiu
milhões de famílias nos EUA, o que fez explodir a bolha. Em 2007, mui-
tos bancos e fundos de investimentos norte-americanos estavam à beira
da falência, fragilizados pela explosão na inadimplência, que colocou em
xeque as instituições nanciadoras da expansão imobiliária e toda a rede de
especulação articulada a essas operações de nanciamento em escala mun-
dial. Soma-se a isso a existência de outras bolhas imobiliárias na Espanha,
na Inglaterra e na Irlanda. Com a falência do Lehman Brothers, que ex-
plicitou a crise, a liquidez do sistema desapareceu, agravando a crise não
só para o sistema nanceiro, mas também para o mundo da produção,
paralisando a economia mundial. A crise se disseminou em escala global.
Paradoxalmente, não havia liquidez justamente em um momento em que
o volume de capital ctício era gigantesco. (HARVEY, 2011, p. 9-12).
Esta contradição foi enfrentada a partir da ação dos bancos cen-
trais dos países desenvolvidos e de alguns países emergentes, que garanti-
ram os depósitos, injetaram bilhões de dólares na economia para evitar o
colapso da liquidez, salvaram grandes empresas e bancos da bancarrota e
anunciaram planos de investimentos, em especial em infraestrutura. Isto
impediu a debacle nanceira (BELLUZZO, 2009). A principal ação dos
governos centrais foi inundar a economia mundial de moeda com o obje-
tivo de salvar o capital ctício e desvalorizar suas moedas para ganharem
competitividade em uma situação de forte acirramento da concorrência.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Esta foi a política seguida pelo Federal Reserve, logo no início da crise e,
mais tarde, acompanhada pelo Banco Central Europeu e japonês. Os ju-
ros caíram praticamente a zero, mas as economias não se recuperaram e
persiste uma tendência de baixo crescimento acompanhada de deação no
centro do sistema. O problema do excesso de capital parece estar longe de
ser resolvido.
Inicialmente concentrada nos EUA, no Japão e na União Europeia,
a crise se espalhou e perdura até os dias de hoje, afetando a periferia, que
parecia mais resistente a seus efeitos. Embora também determinada por
processo internos a desaceleração de vários países periféricos vincula-se, em
boa medida, ao esmorecimento do crescimento da economia chinesa, pois
o seu desempenho é fator importante no mercado mundial de commodities.
A China enfrenta queda de exportações, que tinham sido um dos princi-
pais motores de seu crescimento, excesso de capacidade ociosa em inúmeros
setores produtivos, superprodução no setor imobiliário e elevado endivida-
mento de instituições nanceiras e empresas. Estes problemas sugerem que a
acumulação de capital continuará desacelerando, pois a China, de um lado,
apresenta nítida sobreacumulação de capital e, de outro, não conseguiu até
o momento redirecionar o eixo de sua economia para seu imenso mercado
interno, apesar das medidas neste sentido adotadas desde o estouro da crise
mundial. As medidas direcionadas a incrementar o mercado interno, em
especial o setor de serviços, desvalorizar a moeda e ampliar a infraestrutura,
não surtiram o efeito esperado. É neste contexto que temos que entender os
impactos da crise de sobreacumulação na economia brasileira.
2 A POLÍTICA ECONÔMICA NO PERÍODO 2011-2015
Em linhas gerais, observa-se uma continuidade na política econô-
mica dos governos de Lula e Dilma, apesar desta, como veremos, ter busca-
do a partir do segundo semestre de 2011 alterar alguns pilares da política
neoliberal. Lula não alterou substancialmente a política macroeconômica
de seu antecessor Cardoso. Metas de inação, câmbio exível e superávits
primários continuaram a nortear a sua política econômica. Política que
implicava elevadas taxas de juros e tendência à valorização da moeda. Lula
também manteve a abertura nanceira e comercial da economia brasileira.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Este conjunto de medidas preservava, sobretudo, os interesses do capital
nanceiro nacional e global.
Depois de um breve período de ajuste, Lula adotou paralelamente
medidas destinadas a expandir o mercado interno, quais sejam: ampliação do
crédito (sobretudo para o setor imobiliário), majoração do gasto público, am-
pliação da infraestrutura por meio do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), ampliação da atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) no nanciamento de longo prazo a juros mais
baixos, adoção de políticas sociais focalizadas com objetivo de minorar a ques-
tão da miséria (em especial o programa Bolsa Família) e majoração do salário
mínimo (SICSÚ, 2013)
10
. Lula também adotou uma política externa que pri-
vilegiava as relações Sul-Sul, cabendo destacar a participação brasileira no gru-
po dos BRICS e a diversicação do comércio exterior. O objetivo dessa política
era garantir maior autonomia e projeção do país no cenário internacional.
Estas duas linhas de política econômica possuem um alto grau de
incompatibilidade. O plano real criou uma armadilha que inibe o crescimen-
to econômico
11
. A política de metas de inação, câmbio exível e superávits
10
Entre 2006 e 2012, o rendimento médio real do trabalho cresceu 3,5% ao ano. O Desemprego, que em 2002
atingia 11,6% da população economicamente ativa caiu para 5,5%, em 2012. Entre 2003 e 2012, o PIB per
capita cresceu 2,5% ao ano. A participação dos salários no PIB, em 2003 foi 46,26%, passando para 51,40%,
em 2009. Entre 1993 e 2002, a renda média subiu 14% e, entre 2003 e 2014, 58%. O número de miseráveis,
em 1995, era cerca de 22 milhões, subiu para 26 milhões, em 2002 e caiu para 8 milhões, em 2014. Neste mes-
mo intervalo de tempo, o número de pobres foi de 51 milhões, em 1995, de 61 milhões em 2003 e 25 milhões
em 2014. O Índice Gini, entre 1995 e 2011, caiu de 0,585 para 0,501, o que signicou um crescimento com
distribuição da renda no período do governo Lula. Outros resultados importantes foram: a redução da dívida
pública que representava em 2002, 60,40% do PIB e caiu, em 2012, para 35,1%, a manutenção do controle do
processo inacionário e a elevação substancial do nível das reservas internacionais do país. (SICSÚ, 2013, p. 57;
BARBOSA, 2013, p. 95-97; IPEA/DATA; IBGE).
11
“O projeto neoliberal, inspirado no chamado Consenso de Washington, ganhou consistência no governo
FHC, que adotou uma política de estabilização baseada em câmbio valorizado, associada à abertura e desregu-
lamentação da economia nacional e a redução do papel do Estado na economia, em especial por meio de amplo
programa de privatização das empresas estatais. Esta política controlou o processo inacionário, mas ao implicar
em deterioração das contas externas, exigia, em um contexto de instabilidade da economia mundial, a cons-
tante majoração das taxas de juros com o objetivo de atrair um uxo crescente de capitais externos, necessários
para fechar o balanço de pagamentos. Em virtude dos juros elevados, da valorização do câmbio e da abertura
da economia nacional, essa política resultou, entre outros pontos, baixo crescimento econômico, desemprego,
expansão da dívida pública, crescentes décits na balança comercial e insustentável vulnerabilidade externa. Esse
processo desembocou na crise cambial do nal dos anos 1990. FHC foi obrigado alterar sua política econômica
diante da crise. O câmbio xo foi abandonado. Em seu lugar foram introduzidas as metas de inação. O câm-
bio exível, associado à introdução de metas de inação e metas de superávit primário, continuou a garantir
os interesses do capital nanceiro. Qualquer pressão inacionária, que ameaçasse as metas, obrigava a elevação
dos juros e a obtenção de superávits primários robustos. O resultado dessa nova política continuou a ser, de um
lado, um crescimento medíocre, deterioração das contas públicas, vulnerabilidade externa e desemprego e, de
outro, polpuda remuneração ao capital nanceiro e a submissão da política econômica aos seus interesses. Para

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
primários, que substituiu a âncora cambial, associada à abertura nanceira e
comercial aprofundaram a dependência e a subordinação da economia bra-
sileira, que cou mais vulnerável e dependente dos instáveis uxos externos
de capital. A abertura comercial levou, entre outros aspectos, a desestrutura-
ção de cadeias produtivas, tornando o crescimento dependente de crescente
importação de insumos e bens de capital. Ao mesmo tempo em que a forte
entrada de capitais na forma de empréstimos, investimentos especulativos e
investimentos diretos, sobretudo no processo de privatização, aumentaram
de maneira acentuada as remessas de lucros e dividendos e o pagamento de
juros. Qualquer aceleração do crescimento tende a acentuar os desequilíbrios
das contas externas e a gerar pressões inacionárias. Nestas circunstâncias,
de acordo com a lógica da política econômica neoliberal, para equilibrar as
contas externas e controlar os preços, os juros devem ser majorados, con-
sequentemente o crescimento esmorecerá, acompanhado de valorização da
moeda, deterioração das contas públicas, desemprego e queda dos salários.
Para equilibrar o orçamento e garantir as condições de solvência do país para
os credores, o superávit primário também deve ser incrementado, o que por
sua vez também contribui para desacelerar a economia. A economia tende
a apresentar uma dinâmica de stop and go, acentuada pelas instabilidades do
capitalismo global, como foi característico do período Cardoso, que inviabi-
liza qualquer crescimento sustentado calcado no mercado interno (CORSI,
1999; 2015b; CARCANHOLO, 2012).
Entretanto, na fase expansiva da economia mundial (2003-2007)
essas duas linhas de política econômica puderam conviver graças à redução da
vulnerabilidade externa no curto prazo. O boom de commodities, que acarretou
em uma melhora dos termos de intercâmbio com efeitos positivos sobre a
renda e a capacidade de importar, somado à entrada signicativa de capitais
estrangeiros, em virtude da elevada liquidez internacional e das altas taxas de
juros no Brasil, reduziram a vulnerabilidade externa e dessa maneira possibi-
litaram a adoção de políticas expansivas, voltadas para ampliar o crédito e o
gasto público. A manutenção do câmbio valorizado contribuiu para segurar a
inação e para o aumento dos salários. Entre 2003 e 2008, a economia brasi-
leira cresceu 4,2% ao ano, baseada no incremento das exportações, na modesta
elevação dos investimentos e, sobretudo na expansão do consumo interno,
os setores rentistas, é fundamental assegurar a capacidade de o Estado pagar suas dívidas, dado que a dívida
pública consiste em principal sustentáculo da valorização do capital nanceiro” (CORSI, 2015b, p. 73-74).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

como pode ser observado na tabela abaixo. O acelerado crescimento também
contribuiu para diminuir a visibilidade dos processos de desindustrialização e
reprimarização das exportações
12
, que também decorrem, em parte, das políti-
cas neoliberais em um contexto de reconguração espacial do capitalismo, no
qual a América Latina, segundo mencionado acima, tende a inserir-se como
exportadora de bens primários, particularmente para a China
13
.
Tabela 1: Contribuições para o crescimento do PIB Brasil, 2002-2015 (da-
dos em % anual)
Estoques CT FBCF X M PIB
2002 1,32 2,16 -3,28 0,90 1,60 2,7
2003 0,83 -0,24 -1,66 1,97 0,20 1,1
2004 1,32 3,16 0,54 2,29 -1,61 5,7
2005 1,41 3,11 -1,79 1,53 -1,06 3,2
2006 1,47 3,65 0,25 0,76 -2,13 4,0
2007 1,48 4,69 1,32 0,89 -2,28 6,1
2008 1,29 4,04 1,62 0,07 -1,82 5,2
2009 -6,26 3,25 4,56 -1,25 1,02 -0,3
2010 1,3 5,15 3,90 1,26 -3,99 7,5
2011 -1,2 2,8 0,9 0,5 -0,4 2,7
2012 -0,9 2,5 -0,8 O,1 0,0 0,9
2013 -0,32 2,02 1,45 0,32 -1,17 2,3
2014 3,3 2,2 -4,4 -1,1 -1,0 0,1
CT – Consumo (Consumo das Famílias e do Governo)
FBCF – Formação Bruta de Capital Fixo
X – Exportações
M - Importações
Fonte: IPEA/DATA
12
Entre 2003 e 2008 e entre 2009 e 2013, o crescimento do PIB da indústria de transformação foi respectiva-
mente de 3,2% e 0,0%. O coeciente de exportação da indústria cresceu de 12,7% em 1996 para 15,6%, em
2012, depois de ter atingido a cifra de 21,6%, em 2004. O coeciente de penetração de importações passou de
14,1%, em 1996 (quando as importações já tinham apresentado forte crescimento desde 1994), para 19,3%,
em 2012, alcançando 21% em 2014. Em 1980, a participação da indústria de transformação no PIB era de
25,8%. Este número caiu para 17,9% em 2010 e atingiu 11%, em 2014. O ritmo de crescimento do PIB per
capita da indústria de transformação tem apresentado tendência à queda. Na última década cresceu em média
1,0% ao ano, enquanto que para o largo período 1900-2010 o crescimento dessa variável foi de 3,1% ao ano.
Entre 2003 e 2010, a taxa média anual real de crescimento do valor adicionado da indústria de transformação
foi de 2,7%, enquanto que para a mineração foi de 5,5% e para agropecuária foi de 3,2%. Neste período, o
crescimento médio anual do PIB foi de 4%. Esses processos foram acompanhados pela reprimarização da pauta
de exportações. Em 1980, a composição das exportações era a seguinte: produtos básicos 42,2% do total, pro-
dutos semimanufaturados 11,7% e manufaturados 44,8%. Em 2002, esses números eram respectivamente os
seguintes: 25,5%, 15,3% e 56,8%. Em 2010, os produtos básicos representavam 38,5%, os semimanufaturados
13,7% e os manufaturados 45,6% Em 2013, os básicos alcançaram 46,7%, semimanufaturados 12,6% e os
manufaturados 38,4%. (GONÇALVES, 2013, p. 82-92; CANO, 2014, p. 18-22; CORSI, 2015a).
13
O processo de desindustrialização, a reprimarizacão das exportações e a manutenção da vulnerabilidade externa
fragilizam a política externa de Lula ao enfraquecerem a economia nacional e acentuarem a sua inserção dependen-
te na economia mundial. A política externa que buscava ampliar a projeção brasileira tinha pés de barro.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
A manutenção das duas linhas de política econômica contempla-
va, ao mesmo tempo, diferentes interesses de classe. A classe trabalhadora e
frações da burguesia, ligadas às nanças, ao mercado interno e ao agrone-
gócio, se beneciaram o que possibilitou que Lula articulasse ampla aliança
de classe tácita e instável para sustentar o seu governo. O crescimento eco-
nômico era essencial para acomodar essa frágil coalizão de classes
14
.
A crise de sobreacumulação aberta em 2007 estreitou as possibi-
lidades de manutenção dessas duas linhas de política e, em pouco tempo,
as condições que permitiram essa estratégia de crescimento não mais exis-
tiam. Porém, isso não cou evidente de imediato. O governo reagiu à crise
global adotando ampla política anticíclica, baseada no incentivo ao con-
sumo, na ampliação do crédito, na isenção scal, no incremento do gasto
público e na lenta redução dos juros. Depois de recuar 0,3%, em 2009, o
PIB cresceu 7,5% no ano seguinte (IPEADATA).
A crise parecia superada. Entretanto, o primeiro sinal de pro-
blema foi a deterioração a partir de 2008 das transações correntes
15
, que
passaram a ser crescentemente decitárias, fruto da continuidade do cres-
cimento econômico, do m da fase expansiva do ciclo das commodities e
do incremento das remessas ao exterior em uma situação de crise mundial
14
Os trabalhadores almejavam expansão do emprego, dos salários e das políticas sociais. O capital nanceiro
defendia a manutenção da política macroeconômica neoliberal. Os industriais defendiam redução das taxas de
juros, dos salários e dos direitos trabalhistas e ampliação do crédito e da proteção contra a concorrência externa,
além da desvalorização da moeda. O agronegócio lutava por incentivos as exportações e ao crédito e por uma po-
lítica ambiental frouxa. Também eram contra a reforma agrária. O setor das grandes empresas de construção de-
fendia a ampliação do gasto público, do crédito e de incentivos para sua internacionalização. O governo utilizou
o BNDES para contemplar várias das reivindicações das frações das classes dominantes. Articular esses díspares
interesses não é tarefa fácil e o crescimento é fundamental para tanto. A política econômica de Lula buscou esse
objetivo. Contudo, denominar a sua política econômica de desenvolvimentista ou neodesenvolvimentista, como
fazem inúmeros autores, dentre eles Singer (2015), parece ser problemático, pois ela não visava completar o
processo de industrialização e não ambicionava a autonomia nacional e não se baseava em uma aliança de classes
articulada em torno do desenvolvimento do mercado interno, características salientes do desenvolvimentismo,
além dos contextos internos e externos atuais serem bem distintos dos do período 1930-1980.
15
Em 2003, o superávit comercial foi de US$ 24,79 bilhões, atingindo US$ 46,45 bilhões em 2006 e caindo
par US$ 24,83 bilhões, em 2008. Em 2010 o superávit foi de US$ 20,14 bilhões. Em 2012 o superávit foi de
19 bilhões e no ano seguinte de US$ 2,55 bilhões. Em 2014, a balança comercial apresentou saldo negativo de
US$ 4,05 bilhões. Com a forte desvalorização da moeda a partir de 2015 o saldo foi de US$ 19,69 bilhões. O
saldo nas transações correntes, em 2002, foi negativo em US$ 7,63 bilhões. Em 2003, o superávit foi de US$
4,18 bilhões, atingindo US$ 13,64 bilhões, em 2006. Em 2007, o saldo de transações correntes caiu para 1,5
bilhões de dólares. No ano seguinte, o décit foi de 28 bilhões, chegando a 54 bilhões de dólares em 2012, e
atingiu 81,37 bilhões de dólares, em 2013, parte desse montante teve que ser coberto por investimentos em
carteira, dado que os investimentos diretos foram da ordem de 64 bilhões de dólares. Em 2014 e 2015, os saldos
negativos foram respectivamente os seguintes US$ 90,9 bilhões e US$ 58,9 bilhões. A desvalorização da moeda
também foi responsável pela melhora da situação (IPEA/DATA).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

e câmbio valorizado
16
. O aumento da vulnerabilidade externa começou
a fragilizar o Brasil diante das pressões do capital nanceiro, apesar do
elevado nível das reservas, cerca de US$ 400 bilhões
17
. A contrapartida da
majoração das reservas foi a elevação da dívida pública, o que contribuiu
para fragilizar a situação nanceira do Estado. Outro sinal preocupante foi
a elevação da inação em 2010, que decorreu da desvalorização da moeda
(2009), da alta das commodities (segundo semestre 2010) e da elevação
dos preços dos alimentos e dos serviços
18
. Apesar de a moeda continuar
valorizada e os juros continuarem elevados, os preços tenderam a subir e a
encostar a meta de 6,5%, mas não havia sinal de crise inacionária como
começou a ser alardeado pela imprensa e pelos economistas neoliberais.
O governo Dilma, eleito neste contexto, tendo como referência a
política macroeconômica neoliberal, reagiu à situação dando continuidade
à política de caráter recessivo, baseada na majoração dos juros, que Lula
adotou, revertendo a sua política expansiva de 2009. A partir de meados de
2010, conforme a política de metas de inação. Dilma também restringiu
o crédito, aumentou o compulsório dos bancos, majorou o Imposto sobre
Operações Financeiras (IOF), sobre as operações de crédito pessoal, man-
teve a política cambial e conteve o gasto público. No entanto, não cortou
os gastos com os programas sociais (SICSÚ, 2013).
Esse conjunto de medidas e o agravamento da crise mundial le-
varam a economia a sofrer forte desaceleração. O PIB, em 2011, cresceu
2,73% (IPEADATA). Diante da perspectiva da economia entrar em re-
cessão e da necessidade de manter o crescimento, base fundamental de
sustentação do governo, Dilma reagiu e passou adotar medidas que indica-
16
A crise acarretou importante desvalorização da moeda. Entretanto, toda vez que o câmbio desvalorizou–se
pela ação do próprio mercado, o Banco Central permitiu que ele novamente voltasse a se valorizar, como nos
casos de 1999, 2002-2003 e 2008 (Nassif, 2015). Isto decorreu da política de metas e dos juros elevados. A
maior parte desses episódios de revalorização ocorreu no governo Lula, o que sugere o quanto ele permaneceu
el à política neoliberal.
17
Não obstante o Brasil dispor de um volume de reservas próximo dos 400 bilhões de dólares em 2013, o
problema da vulnerabilidade está longe de ser superado. Este montante é insuciente diante um passivo ex-
terno de cerca de 1,5 trilhões de dólares, sendo que 600 bilhões correspondem a investimentos em carteira
(GONÇALVES, 2013).
18
Em 2010, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) foi de 5,91%. No primeiro mandato de Dilma,
a inação média foi de 6,2%, contra 5,8% no governo Lula e 9,2% no governo de Fernando Henrique. A
inação encerrou 2014 em 6,4%. Portanto, dentro da margem superior da meta estipulada em 6,5%, mas com
tendência de alta. Em 2015, o IPCA foi de 10,71%. Estes dados não indicam que a alta dos preços esteja fora
de controle (IPEA/DATA; CORSI, 2014).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
vam que o governo, nalmente, tinha compreendido que não poderia mais
manter os dois pilares contraditórios que até então sustentavam a política
econômica. Começou aparentemente a desmontar a política neoliberal.
As principais medidas adotadas foram as seguintes: lenta redução da taxa
básica de juros (em outubro de 2012, a SELIC atingiu a cifra de 7,25%,
aproximando-se, em termos reais, das taxas vigentes na maioria dos demais
países
19
), utilização dos bancos públicos para forçar uma queda na taxa de
juros e ampliar o crédito, ampliação da ação do BNDES no nanciamen-
to dos investimentos, redução do compulsório e do IOF sobre o crédito
pessoal, ampliação do gasto público, introdução de várias medidas visando
estender a regulação estatal de setores considerados estratégicos, majoração
do salário mínimo, majoração dos auxílios relativos ao programa bolsa fa-
mília, desoneração scal e proteção para setores em diculdade devido à
acirrada concorrência externa
20
. Também começou a desvalorizar a moeda,
que, entre o segundo semestre de 2011 e 2013, perdeu 20% de seu valor.
Também passou implementar uma política anti-inacionária calcada no
controle de preços (CORSI, 2015a).
O objetivo dessas medidas era retomar o acelerado crescimento
por meio do incentivo ao consumo e ao investimento. Ao mesmo tempo,
reduzir o peso da dívida pública no PIB e inibir a entrada de capital es-
trangeiro que tanto pressionava a valorização do câmbio. Esta nova postura
convergia com algumas discussões nos meios acadêmicos norte-americanos
que passaram a defender a necessidade da exibilização das políticas neo-
liberais ante a gravidade da crise global (NASSIF, 2015). Com a chamada
nova matriz de política econômica os mentores dessa política pareciam
considerar ser possível manter a heterogênea e instável base de sustentação
do governo, apesar dela ferir os interesses do capital nanceiro.
Sem uma política de controle dos uxos de capital, a redução
paulatina dos juros e o pequeno aumento na taxação do capital estrangeiro
não se mostraram sucientes para imprimir acentuada desvalorização do
19
A SELIC, em janeiro de 2011, estava em 10,75%, subindo para 12,50% em agosto. A partir daí caiu até
outubro de 2012, permanecendo no patamar de 7,25% até abril do ano seguinte. Então passou a subir até o
nal de 2015, situando-se em 14,25%, em dezembro (IPEADATA).
20
Para proteger setores em diculdade devido à acirrada concorrência externa, o governo adotou as seguintes
medidas: medidas antidumping, maior rigor na scalização das importações, aumento de imposto sobre produ-
tos industrializados importados, preferência por produtos nacionais nas licitações púbicas e aumento de tarifas
(CORSI, 2014).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Real. Porém, era aparentemente isso mesmo que o governo almejava, pois
a política de controle dos preços administrados pelo Estado mostrava-se
incapaz de segurar a inação na ausência de um forte aumento da oferta,
que só poderia decorrer do incremento acentuado dos investimentos, que
não deslanchavam.
Entretanto, a tentativa de alterar a matriz da política econômi-
ca não se sustentou por muito tempo. Os objetivos esperados não foram
alcançados
21
e a situação tendeu a deteriorar-se, tanto do ponto de vista
econômico, quanto do político. Isto decorreu de um conjunto de determi-
nações. Aparentemente o governo pretendia aprofundar a exibilização da
política econômica neoliberal de forma muito gradual. Mas os problemas
acumulados exigiam uma ruptura mais radical, para a qual seria necessária
outra correlação de forças. O governo encontrava-se, portanto, em situa-
ção bastante difícil e sem muitas alternativas. Seria preciso romper com a
política de metas de inação, de superávit primário, de câmbio valorizado
e de juros altos, impor controles de capital, adotar agressiva política scal
progressiva, alterar a política de comércio exterior e a política externa e
ampliar a ação estatal na economia por meio da majoração dos investi-
mentos nas áreas de infraestrutura, educação, saúde, transporte, habitação
e proteção ao meio ambiente, além da reforma agrária.
As enormes diculdades enfrentadas pela política de Mantega se
deveram a uma série de fatores. Um fator importante para a contínua de-
saceleração da economia brasileira foi o esgotamento da política de puxar
o crescimento pelo incremento do consumo, em virtude dos limites do
endividamento das famílias e do fato da própria desaceleração também
acarretar um incremento mais lento do emprego e da renda. Em 2013, as
famílias comprometiam em média 22% de sua renda no pagamento de
dívidas, cifra considerada elevada. Mas cabe destacar a fraca resposta dos
investimentos aos estímulos adotados pelo governo para acelerar a acumu-
lação de capitais. O fraco desempenho dos investimentos decorria do câm-
bio valorizado
22
, das altas taxas de juros, dos inúmeros problemas de in-
21
A nova matriz de política econômica não logrou reverter as tendências de desaceleração da economia, de
elevação dos preços, de valorização da moeda, de ampliação da vulnerabilidade externa, de desindustrialização
e de reprimarização das exportações.
22
Segundo Oreiro (2014), a taxa real efetiva de câmbio, no nal de 2013, estava por volta de 25% valorizada em
comparação a taxa vigente em junho de 2004. Para Nassif (2015, p. 431), a valorização seria da ordem de 50%

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
fraestrutura e da acirrada concorrência dos produtos importados. Ademais,
em um contexto de baixo crescimento da produtividade, a partir de 2010
o setor industrial premido pelo aumento dos salários, que tenderam a subir
mais que a produtividade, não pode repassar esta elevação de custos para
os preços, devido à valorização da moeda, que permitiu o acirramento da
concorrência com os produtos importados, que ganharam maior espaço no
mercado interno, o que resultou em queda da taxa de lucro da indústria,
inibindo o investimento
23
. Também foram importantes a persistência da
crise internacional e a diculdade do Estado deslanchar os investimentos
para superar os gargalos da economia. Os recursos, correspondentes às sig-
nicativas isenções scais, que deveriam ter estimulado os investimentos,
não o zeram na proporção esperada e deveriam ter sido investidos pelo
próprio Estado. As alterações no marco regulatório, ao diminuírem a ren-
tabilidade das concessões estatais, inibiram os investimentos em infraes-
trutura. Os empresários também não concordaram com as alterações na
regulamentação do setor energético.
A tentativa de alterar a política macroeconômica neoliberal, em
um contexto de baixo crescimento, rompeu a frágil e instável aliança de
classes que sustentavam o governo. Os setores rentistas, aproveitando a
fragilização do governo e não aceitando a perda de terreno na condução da
política econômica, especialmente no que dizia respeito à política de juros,
passaram à ofensiva e buscaram encurralar o governo com o objetivo de
recompor a política macroeconômica neoliberal. Juros elevados, controle
férreo da inação, robusto superávit primário e câmbio valorizado são va-
riáveis que estes setores não podem abrir mão, pois são fundamentais para
a valorização do capital ctício, que tem na dívida pública um de seus mais
importantes espaços de valorização. A burguesia industrial, que em parte
também é rentista, descontente com a queda dos lucros, com a perda de
mercado e com a crescente tentativa do governo de enrijecer a regulamen-
tação da economia, passou a apoiar a ofensiva capitaneada pelo capital
no mesmo período, apesar da desvalorização nominal do câmbio no governo Dilma. De acordo com este autor,
em relação ao ano de 1994, a valorização do real seria ainda maior, pois seria necessário considerar a desvalori-
zação do dólar vis a vis a maioria das demais moedas a partir da política monetária frouxa adotada pelo Federal
Reserve para combater a crise de 2007. Um dos motivos da inação permanecer colada na meta no primeiro
mandato de Dilma reside na pequena desvalorização do real no período.
23
Sobrea evolução da produtividade e dos salários no período ver Carvalho (2015).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

nanceiro, que conta com irrestrito apoio da grande imprensa
24
e que con-
verge com a estratégia política do capital de buscar sair da crise global de
superacumulação pela direita e de jogar, como sempre, o ônus da crise nas
costas dos trabalhadores. Parte do agronegócio, devido a posicionamentos
políticos extremamente conservadores e ao fato de também ser rentista,
apoiou esta ofensiva, apesar do governo Dilma não ter uma política de
reforma agrária e uma rígida política ambiental. Esta ofensiva também
contou com o apoio de amplos setores das classes médias da larga tradição
política conservadora, que sentiram sua posição social pressionada pela as-
censão de setores populares, pela crescente carga tributária e pela política
de cotas. Neste contexto, os setores das classes dominantes mais articulados
ao governo, como as grandes empresas de construção, caram isolados.
O governo Dilma aparentemente avaliou de forma errônea que
os abundantes incentivos scais, a redução dos juros e o aceno com a des-
valorização da moeda poderiam manter o apoio da burguesia industrial e
de amplos setores do agronegócio. Dessa forma, o governo entrou em atri-
to com a maioria das frações da classe dominante, o que reetiu no paula-
tino esfacelamento de sua base de sustentação no Congresso. As medidas
favoráveis não compensavam as perdas decorrentes do baixo crescimento,
que derivava, em parte, da própria incapacidade do governo romper de
maneira mais profunda com as políticas neoliberais, o que não seria acei-
to pelo conjunto das classes dominantes
25
. Imerso em contradições, cujo
enfretamento exigiria uma radicalização à esquerda, que não estava e não
24
A grande imprensa intensicou as críticas ao governo, que seria incapaz de conter a pretensa crise inacionária.
Ela e os economistas neoliberais passaram a defender uma rígida política ortodoxa, cujo núcleo era a obtenção
de superávits primários elevados a qualquer custo. Seria fundamental conter o excesso de demanda, que seria o
fator principal da inação. Para isso, o gasto público deveria ser contido, especialmente os gastos sociais. Muitos
defendiam que os direitos sociais estabelecidos pela Constituição de 1988 eram incompatíveis com as reais
condições econômicas do país.
25
-






-





Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
está no horizonte político desse governo, em outra correlação de forças, o
governo logo sinalizou que abandonaria a chamada nova matriz de política
econômica, mas aparentemente já era tarde.
Neste momento, expressando o crescente descontentamento so-
cial, desencadeou-se uma onda de movimentos muito heterogêneos reivin-
dicando melhorias nos transportes urbanos, na educação e na saúde, o que
indicava, entre outros aspectos, os limites das políticas sociais focalizadas.
Desencadeados por setores de esquerda, os movimentos foram engrossados
por outros setores, em especial das classes médias, que tinham como mote
principal o m da corrupção generalizada no setor público. Esses movi-
mentos rapidamente foram canalizados pela direita e passaram a expressar
o descontentamento das classes médias. Inados pela grande impressa, en-
curralaram o governo
26
.
Neste contexto, pressionado por todos os lados, o governo Dilma,
mesmo antes de ser envolvido em inúmeras denúncias de corrupção liga-
das à operação “Lava Jato”, cedeu às pressões conservadoras e abandonou
sua breve e tímida tentativa de superação da política macroeconômica neo-
liberal. O Banco Central, a partir de abril de 2013, intensicou a elevação
dos juros com o objetivo de deter o processo inacionário. Nota-se que
essa alteração começou a ser implementada também antes do processo elei-
toral de 2014.
Apesar da sinalização de retorno à ortodoxia, em vista às eleições
presidenciais que se aproximavam, o discurso de Dilma durante a cam-
panha indicava que a crise seria enfrentada de forma alternativa ao ajuste
recessivo proposto pelos neoliberais, que defendiam a necessidade urgente
de retomar a ortodoxia para enfrentar os graves problemas da economia.
Esta postura foi de grande relevância para a vitória de Dilma no pleito de
nal de 2014.
O governo Dilma, embora vitorioso nas eleições, rapidamente as-
sumiu as bandeiras de seus adversários e montou um ministério conservador
para levar a cabo o ajuste recessivo. Provavelmente esperava recompor sua
base de sustentação retomando os dois pilares da política econômica do iní-
cio do governo Lula. Contudo, o contexto interno e o externo eram outros
26
Sobre os movimentos sociais desencadeados em 2013 ver, entre outros, Singer (2015).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

e a história não se repetiria. Ao seguir esse caminho, Dilma praticamente
fechou a alternativa de buscar um amplo apoio popular contra a austeridade,
que talvez propiciasse uma base mais sólida de sustentação ao governo.
O símbolo dessa linha política foi a nomeação de Joaquim
Levy, indicado diretamente pelo capital nanceiro, para o Ministério da
Fazenda. Levy, de imediato, implementou uma política ortodoxa calca-
da fundamentalmente em dois pontos, a saber: o aumento dos juros e o
ajuste scal. A proposta inicial propunha alcançar um superávit primário
de 1,2% do PIB
27
, que seria obtido por meio do incremento de impostos,
do corte de despesas de custeio, do corte de investimentos públicos e do
corte de direitos sociais
28
. A taxa SELIC, que em dezembro de 2014 estava
em 11,75% ao ano, rapidamente foi majorada para 14,25%, em julho de
2015 (IPEADATA). A justicativa para o aumento foi a necessidade de
combater a inação de demanda, que estaria fora de controle e levá-la para
o centro da meta, até o nal de 2016. Mas a elevação acentuada dos preços
nesses meses não decorria do excesso de demanda, mas sim da própria po-
lítica de Levy de liberar o aumento dos preços até então controlados pelo
Estado, como o da gasolina, o que tornou mais evidente que a inação
era de custos, além de apresentar um componente inercial. Em 2015, os
gastos de consumo e investimento estavam em franca queda. Da mesma
forma, justicou-se a urgência do ajuste scal, pois o excesso de gastos
públicos elevaria a demanda. Ademais, o ajuste também seria importante
para acalmar os credores internos e externos, ao contribuir para manter a
relação dívida pública/PIB em patamares por eles considerados aceitáveis,
demonstrando que o país teria condições pagar seus compromissos. Com
isso esperava-se a melhora das expectativas e que as agências internacionais
classicadoras de risco mantivessem o grau de investimento para o Brasil,
o que facilitaria o nanciamento público e privado no exterior e a entrada
de aplicações em carteira no país. Enm, o objetivo dessa política era en-
frentar os desequilíbrios da economia brasileira por meio de forte recessão.
27
Ao longo do ano, o governo, em virtude da recessão e da impossibilidade de alcançar o superávit primário
prometido, anunciou a redução do superávit primário para 0,15% do PIB, causando forte reação negativa dos
rentistas e das correntes ortodoxas. Em seguida passou a prever um décit primário de 0,9% do PIB para 2015.
Porém, para acalmar os rentistas, voltou atrás e enviou para o Congresso uma proposta de orçamento prevendo
um pequeno superávit primário para 2016.
28
Caso a taxa básica de juros, que rege boa parte da remuneração dos títulos públicos, fosse reduzida para 10%, a
economia com o pagamento da dívida pública seria próxima ao montante dos cortes previstos para alcançar o ajuste
scal, pois a cada queda de 1% nos juros o governo economiza 15 bilhões de reais com o pagamento da dívida.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
O remédio amargo, no entanto, possibilitaria o equilíbrio simultâneo das
contas públicas, das contas externas e da inação.
O resultado dessa política foi desastroso. Jogou o país em profun-
da recessão, mas nem de longe alcançamos o equilíbrio das contas públicas,
dos preços e das contas externas. O PIB, em 2015, sofreu uma retração
de 3,8% e as projeções indicam que os próximos anos não serão muito
diferentes. Até o ano anterior, a trajetória era de baixo crescimento. A po-
lítica de Levy precipitou a crise. As taxas médias de desemprego de 2014 e
2015 foram respectivamente de 4,8% e 6,8% da PEA. A renda do trabalho
estagnou. Neste período, a dívida pública aumentou, em decorrência da
elevação dos juros. A relação dívida pública bruta/PIB, em 2014, fechou o
ano em 59% e hoje se encontra por 65%. Algumas projeções indicam que
ultrapassará os 70% ainda este ano. O pagamento de juros representa hoje
cerca de 9% do PIB e esse número tende a crescer com a atual política, que
claramente favorece os interesses rentistas
29
. A inação não esmoreceu. O
IPCA fechou o ano passado em 10,67%. As agências de risco rebaixaram
o Brasil, apesar de a política adotada seguir a cartinha que elas mesmas
defendem
30
. Tudo indica que a melhora da balança comercial em virtude
da forte desvalorização da moeda não será suciente para recuperar a ati-
vidade econômica, pois a economia mundial continua apresentando baixo
crescimento e o efeito substitutivo de importações decorrente da alteração
dos preços relativos é bem menor que no passado, devido à desestruturação
das cadeias produtivas. Contudo, a diminuição do décit em transações
correntes aumenta a resistência do Brasil às pressões do capital nanceiro,
embora isso não seja suciente para reverter a situação.
Esse desempenho da economia foi o fator principal da demis-
são de Levy. O ajuste scal mostrou-se inalcançável, tanto é que em 2015
vericou-se um décit primário de 1,88% do PIB, apesar dos esforços
do governo em estabilizar as contas públicas, cortando gastos de custeio,
investimentos e direitos sociais. No lugar de Levy foi nomeado Nelson
29
Em 1994, o dispêndio com juros da dívida pública foi de 27 bilhões de reais, saltando para 500 bilhões em
2015 (IPEA/DATA).
30
Um dos principais parâmetros utilizados por essas agências para classicar o risco de um país consiste na
relação dívida pública/PIB. Outras variáveis são as seguintes: ritmo de crescimento do PIB, nível do superávit
primário e situação do Balanço de Pagamentos, em especial das transações correntes. Porém, a política recessiva
diminui o PIB e aumenta da dívida em virtude da elevação dos juros.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Barbosa, considerado um keynesiano. Isto não signicou uma alteração
de estratégia, mas apenas uma postura mais branda. Diante da diculdade
em alcançar o ajuste scal, Barbosa, depois de alterar as metas várias vezes,
xou como objetivo para 2016 um superávit primário de 0,5% do PIB,
que para ser alcançado dependerá da improvável aprovação pelo Congresso
de novos impostos. O Banco Central ante a forte recessão e as diculdades
cada vez maiores enfrentadas pela economia mundial, contrariando as ex-
pectativas do setor nanceiro, tem mantido estável a elevada taxa de juros.
O governo também passou acenar com reformas ditas estruturais para es-
tabilizar as contas públicas, a principal delas é a da previdência
31
. Também
tem esboçado uma política de ampliação do crédito.
Os resultados desastrosos da política de austeridade indicam a
sua insustentabilidade, mas o governo insiste nesta linha de política eco-
nômica, talvez esperando acomodar os interesses do capital. Entretanto, ao
mantê-la, o governo Dilma se afasta de grande parte dos setores populares,
o que torna difícil uma ampla mobilização dos trabalhadores para barrar o
golpe de Estado em curso contra a ordem democrática e os direitos sociais
e civis. Mesmo assim, a base de sustentação de Dilma no Congresso se
esfarelou. Abre-se nitidamente a possibilidade de uma saída à direita, em
consonância com o encaminhamento da crise sobreacumulção do capita-
lismo global, que até o momento tem sido conservador.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fase expansiva do capitalismo global possibilitou ao governo
Lula compatibilizar a política macroeconômica neoliberal com uma polí-
tica voltada para o mercado interno e para enfrentar os problemas decor-
31
Questão muito mal discutida pelo governo e pela grande imprensa. Aparece como uma tábua de salvação.
As discussões, até o momento, não levam em conta que milhões de trabalhadores que recebem aposentadorias,
particularmente os aposentados rurais, deveriam ser considerados na rubrica de seguridade social, pois recebem
o benefício sem que tenham contribuído. Sem essas despesas o sistema seria sustentável. A Constituição do país
determina que uma série de impostos como a COFINS, deveria nanciar a seguridade social, mas esses impostos
têm sua nalidade desviada para o nanciamento de outros itens. Além disso, não é possível discutir a questão
sem levarmos em conta o incremento da produtividade observado nas últimas décadas, derivado das novas
tecnologias, que provavelmente compensa em parte o envelhecimento da população. Em 2014, o pagamento de
juros e amortizações da dívida pública consumia 45,11% das receitas do governo federal. Os gastos correspon-
dentes à previdência foram de 21,76%. Neste número estão computados os gastos classicados como referentes
à previdência, mas que são na verdade relativos à seguridade social. Os neoliberais propõem o ajuste neste item
e nada falam da urgente necessidade de reduzir os pagamentos referentes à dívida pública.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
rentes da histórica desigualdade social. A redução momentânea da vulne-
rabilidade externa, a melhora dos termos de intercâmbio e o incremento
das exportações abriram espaço para várias medidas expansivas e políticas
sociais focalizadas. Entre 2003 e 2010, a economia brasileira cresceu sus-
tentada, sobretudo no consumo, acompanhada de melhora na distribuição
da renda e redução da miséria. O crescimento relativamente acelerado obs-
cureceu, no entanto, o fato da economia brasileira, no contexto de recon-
guração da economia mundial, em especial em virtude da ascensão da
China, estar se fragilizando ao inserir-se cada vez mais como exportadora
de produtos primários e manufaturados de baixo valor agregado. Processo
evidente na desindustrialização e na reprimarização das exportações.
A crise de sobreacumulação, explicitada em 2008, pôs m a essa
fase e trouxe à tona inúmeros problemas, apesar da política anticíclica ado-
tada por Lula ter neutralizado os efeitos imediatos da crise. A economia en-
trou, entretanto, em uma fase de baixo crescimento. O crescimento puxa-
do pelo consumo mostrava seus limites e a aliança política que sustentava o
governo começou a se desfazer. O governo Dilma aparentemente percebeu
que seria difícil continuar com a política de Lula e buscou implementar
uma nova matriz de política econômica, que fracassou sobretudo devido à
diculdade, impossibilidade, ou ainda falta de convicção e vontade polí-
tica, dada a correlação de forças vigente, de imprimir uma rápida ruptura
com a política neoliberal. Enfrentando muitas contradições, o governo já
em abril de 2013 buscou sinalizar um retorno à ortodoxia, embora tenha
mantido um discurso mais à esquerda.
Esta opção apareceria claramente após a vitória eleitoral de 2014.
O governo Dilma ao optar pela política ortodoxa se afastou de grande
parte dos setores populares. Ao mesmo tempo, sua base de sustentação no
Congresso desmoronou. O governo enfrenta acirrada oposição da esmaga-
dora maioria da classe dominante e das classes médias. Independentemente
de Dilma permanecer à frente do governo, a saída da crise que se dese-
nha parece tender para a direita, em consonância com o encaminhamento
da crise estrutural do capitalismo global, que até o momento tem sido
conservador.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

REFERÊNCIAS
ARRIGHI, G. O longo século XX. São Paulo: Unesp, 1997.
______. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São
Paulo: Boitempo 2008.
BARBOSA, N. Dez anos de política econômica. In: SADER, E. (Org.) 10 anos
de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo, 2013.
BASUALDO, E.; ARCEO, E. Neoliberalismo y setores dominantes: tendencias glo-
bales y experiências nacionales. Buenos Aires: CLACSO, 2006.
BELLUZZO, L. G. Os antecedentes da tormenta: origens da crise global. São
Paulo: Ed. Unesp, 2009.
BRENNER, R. O boom e a bolha: os Estados Unidos na economia mundial. Rio
de Janeiro: Record, 2003.
______. Novo boom ou nova bolha? A trajetória da economia norte-americana.
In: SADER, Eder (Org.). Contragolpes. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 90-120.
CARNEIRO, R. O desenvolvimento em crise. São Paulo: Unesp, 2002.
CANO, W. Soberania e política econômica na América Latina. São Paulo: Ed.
Unesp, 2000.
______. (Des)industrialização e subdesenvolvimento. Campinas: IE-UNICAMP,
Texto para Discussão, n. 244, 2014.
CARCANHOLO, R. D. Inserção externa e vulnerabilidade da economia brasi-
leira no governo Lula. In: KATZ, C. (Org.). La crisis capitalista mundial y América
latina: lecturas de economia política. Buenos Aires: CLACSO, 2012.
CARVALHO, L. M. O papel das políticas anticíclicas e o agravamento dos de-
sequilíbrios macroeconômicos (2009-2013). In: RIBEIRO, J. S. P. ; BASTOS,
E. K. X. (Org.). Economia brasileira no período 1987-2013. Brasília: IPEA, 2015.
CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
______. (Org.). A nança mundializada. São Paulo: Boitempo, 2005.
______. Dívidas impagáveis. Lisboa: Círculo, 2012.
CORSI, F. L. O Plano Real: um balanço crítico. Cadernos da FFC. (Unesp).
Marília, v. 8, p. 13-27, 1999.
______. Economia do capitalismo global: um balanço crítico do período recente.
In: ALVES, G.; GONZALES, J. L.; BATISTA, R. L. (Org.). Trabalho e educação:
contradição do capitalismo global. Maringá: Massoni, 2006, p. 17-46.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
______. Crise e reconguração do capitalismo global: a ascensão do Leste asi-
ático. In: PIRES, M. C.; Paulino, L. A. (Org.). As relações entre China e América
Latina num contexto de crise: estratégia, intercâmbios e potencialidades. São Paulo,
LCTE, 2011. p. 109-130.
______. As razões do baixo crescimento e os limites do governo Dilma. In:
CORSI, F. L.; CAMARGO, J. M.; SANTOS, A.; VIEIRA, R. L.(Org.) Economia
e sociedade: o Brasil e a América Latina na conjuntura de crise do capitalismo glo-
bal. Marília, São Paulo: Ocina Universitária/Cultura Acadêmica, 2014.
______. A conjuntura econômica no governo Dilma (2011-2014). In: CORSI,
F. L.; CAMARGO, J. M.; SANTOS, A. (Org.). A Conjuntura política e econô-
mica brasileira e argentina. São Paulo, Marília: Ocina Universitária/Cultura
Acadêmica, 2015a.
______. A reestruturação do capitalismo global e seus impactos na economia
brasileira. In: SIMONETTI, M. C. L. (Org.) Territórios, movimentos sociais e
políticas de reforma agrária no Brasil. São Paulo, Marília: Ocina Universitária/
Cultura acadêmica, 2015b, p. 69-82.
GONÇALVES, R. Desenvolvimento às avessas. Rio de Janeiro: LTC, 2013.
HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005.
______. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
IBGE. Séries históricas e estatísticas. Disponível em: <http://seriesestatisticas.ibge.
gov.br/>. Acesso em: 02 fev. 2016.
IPEADATA. Ipeadata. Disponível em: <www.ipeadata.gov.br>. Acesso em: 02
fev. 2016.
KATZ, C. (Org.) La crisis capitalista mundial y América Latina: lecturas de eco-
nomia política. Buenos Aires: CLACSO, 2012.
MEDEIROS, C. A Globalização e a inserção diferenciada da Ásia e da América
Latina. In: TAVARES, M. C.; FIORI, J. L.(Org.) Poder e dinheiro: uma economia
política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 279-346.
______. Desenvolvimento econômico e ascensão nacional: rupturas e transição
na Rússia e na China. In: FIORI, J. L.; MEDEIROS, C. A.; SERRANO, F. L. P.
O mito do colapso do poder americano. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 173-272.
NASSIF, A. As armadilhas do tripé da política macroeconômica brasileira. Revista
de Economia Política, v. 35, n. 3(140), p. 426-443, jul.-set., 2015.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

OREIRO, J. L. A armadilha juros-câmbio: a continuidade do desequilíbrio ma-
croeconômico brasileiro, 2014. Disponível em: <https://jlcoreiro.wordpress.
com/2014/04/04/a-armadilha-juros-cambio-a-continuidade-do-desequilibrio-
-macroeconomico-brasileiro/>. Acesso em: 29 dez. 2015.
PALMA, G. Gansos voadores e patos vulneráveis: a diferença da liderança do
Japão e dos Estados Unidos, no desenvolvimento do Sudeste Asiático e da
América Latina. In: FIORI, J. L. (Org.). O poder americano. Petrópolis: Vozes,
2004. p. 393-454.
PRADO, A. El dessarrolo en América Latina después de la crisis nanceira de 2008.
Campinas: Unicamp, 2012. Disponível em: <http://www3.eco.unicamp.br/pu-
blicacoes>. Acesso em: 1 set. 2014.
SICSÚ, J. Dez anos que abalaram o Brasil. Rio de Janeiro: Geração, 2013.
SINGER, A. O ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma
Rousse (2011-2014). Novos Estudos. CEBRAP, n. 102, 2015, p. 42-71.

EVOLUÇÃO RECENTE DO EMPREGO E
DISTRIBUIÇÃO DA RENDA NO BRASIL EM
UMA CONJUNTURA DE CRISE
José Marangoni CAMARGO
O presente artigo discute a evolução da economia brasileira no
período recente, em um contexto de crise e os impactos sobre o emprego
e a distribuição de renda. No período de 2003-2014, apesar de terem sido
mantidas as políticas de cunho neoliberal, em linhas gerais, nos governos
Lula da Silva e Dilma Roussef, o cenário externo mais favorável até 2008
e mesmo depois da eclosão da crise econômica e nanceira mundial neste
ano, que nos afetou com menos intensidade que nos países centrais, pos-
sibilitou taxas de crescimento médias superiores às duas décadas anterio-
res, com efeitos positivos sobre o mercado de trabalho. Internamente, a
formulação de um conjunto de políticas sociais, como a recomposição do
valor real do salário mínimo e a concessão da bolsa família, possibilitaram
também um crescimento da renda dos segmentos mais baixos e uma pe-
quena desconcentração da renda, revertendo uma tendência de aumento
da desigualdade observada desde os anos 60. Já no cenário mais recente, o
desempenho medíocre da economia, com a redução acentuada das taxas de
crescimento econômico a partir de 2011, na medida em que as condições
macroeconômicas para uma expansão autossustentável não foram criadas,
aponta para um esgotamento das políticas de melhoria da distribuição de
renda. Os indicadores do mercado de trabalho para 2015 e início de 2016,
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
69-82
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

por sua vez, mostram uma rápida deterioração, com sérios riscos de per-
da das conquistas obtidas ao longo da última década, como reexo do
agravamento das condições econômicas do país.
Entre 2007 e 2011, a economia brasileira cresceu em média 4,3%
ao ano, desempenho este que foi um pouco superior ao da América Latina,
enquanto os países centrais apresentaram uma taxa de expansão de apenas
0,5% ao ano neste período. Nessa conjuntura, a economia brasileira teve
um comportamento que pode ser considerado satisfatório em uma con-
juntura internacional desfavorável. A evolução da economia brasileira na
última década foi bem superior ao vericado nos dois decênios anteriores.
Na primeira década deste milênio, o crescimento do PIB foi de 3,6% ao
ano em média, o dobro do vericado na década de 80 e 50% maior do que
o observado nos anos 90 (Gráco 1).
Gráco 1 - Variação média anual PIB brasileiro no período de 1981-2010
,
,
,
,
,
,
,
- - -
Variação do PIB %
Fonte: IBGE (2016b)
Esse desempenho da economia brasileira no período recente
possibilitou a melhoria de alguns indicadores socioeconômicos, como o
comportamento do mercado de trabalho, que continuou a apresentar uma
evolução favorável. As taxas de desemprego medidas pelo IBGE (2016b)
tiveram uma nítida tendência de declínio a partir de 2004, quando caí-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
ram de 8,9% da população economicamente ativa (PEA) neste ano para
6,5% em 2013, segundo a Pesquisa mensal de emprego (PME) realizada
pelo mesmo órgão. O grau de formalização da força de trabalho, ou seja,
o percentual das ocupações com carteira de trabalho assinada, também se
recuperou no período, mesmo em 2009, aumentando sua participação na
ocupação total. Entre 2006 e 2011, os trabalhadores com carteira de tra-
balho assinada nas regiões metropolitanas passaram de 53,4% para 61,2%
do total neste último ano. Entre 2003 e 2014, foram criados 20 milhões de
empregos formais, reduzindo o grau de informalidade do mercado de tra-
balho, ao contrário do vericado na década de 90, quando cresceu signi-
cativamente a precarização das condições de trabalho, através do aumento
das ocupações por conta própria ou sem registro (gráco 2). O percentual
de pobres e miseráveis por sua vez, declinou de um total de 51% da popu-
lação brasileira em 2003 para 17,5% em 2015.
Gráco 2 - Número de postos de trabalho formais (1995-2014)
,
,

,
,
,
,
,
,
,
,






          
Número de Empregos (em milhões)
Ano
Fonte: MTE/RAIS
O mercado de trabalho no Brasil apresentou uma forte recupe-
ração na década passada. O crescimento econômico mais expressivo da
economia brasileira entre 2003 e 2013 teve impactos positivos sobre o
mercado de trabalho, com indicadores mais favoráveis sobre o emprego e
a distribuição de renda. Apesar de os governos Lula e Dilma terem man-
tido em linhas gerais a política macroeconômica anterior, com metas de
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

obtenção de superávits primários e de inação, taxas de juros elevadas e
taxa de câmbio apreciada, o cenário externo mais favorável até a eclosão da
crise econômica e nanceira mundial em 2007/2008 e um longo ciclo de
valorização das commodities no comércio internacional possibilitaram uma
melhoria nas contas externas e diminuíram a vulnerabilidade externa do
país, o que permitiu taxas de crescimento mais expressivas. Internamente,
os governos de Lula e Dilma adotaram um conjunto de políticas expan-
sivas que possibilitaram um padrão de crescimento apoiadas no merca-
do interno, como os programas de transferência de renda, habitacionais
(como o programa Minha casa, minha vida), recuperação gradativa do va-
lor real do salário mínimo e a ampliação do crédito doméstico (CORSI;
CAMARGO, 2014; BARBOSA; AMORIM, 2013).
Com taxas de crescimento econômico mais robustas, o mercado de
trabalho registrou grande dinamismo no período, o que possibilitou ampliar
o grau de formalização do trabalho. Apesar de 90% das novas vagas assalaria-
das criadas serem de até dois salários mínimos, o rendimento médio real do
trabalho principal cresceu, passando de R$986 em 2004 para R$1.210 em
2009 e R$1.573 em 2013. O bom desempenho do mercado de trabalho no
período contribuiu para uma redução da desigualdade de renda da popula-
ção. O Índice de Gini diminuiu de 0,585 em 1995, para 0,521 em 2009 e
0,490 em 2014 (Gráco 3). Além disso, a participação dos 50% mais pobres
na renda total cresceu de 14% em 1999 para 17,7% em 2010 e 18,8% em
2014, enquanto que a fatia dos 10% mais ricos passou de 46,8% para 40,9%
nesse período (Tabela 1). A renda dos 10% mais ricos, que era mais de 22
vezes superior aos dos 40% mais pobres, passou para 15 vezes em 2013. A
evolução da participação da renda do trabalho na renda nacional também
cresceu de 39,1% em 2003, para 43,6% em 2010, depois de quatro déca-
das seguidas de contínuo declínio. O desemprego por sua vez, diminuiu de
10,5% do total da PEA para 7,8% em 2008 e 6,5% em 2013, explicada em
parte por um menor crescimento da PEA. O comportamento mais favorável
do mercado de trabalho, com expansão considerável do emprego formal e
dos rendimentos do trabalho, conjugado a uma política de valorização do
salário mínimo e de outras políticas sociais como o Bolsa família, e a expan-
são do crédito foram fundamentais para alavancar o padrão de acumulação
sustentados, sobretudo, na ampliação do consumo.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Grá co 3 - Índice de Gini (1995-2014)
,
,
,
,
,
,
,
,
,
         
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
Índice de Gini
Ano
Fonte: IBGE (2016a)
Tabela 1 - Distribuição pessoal de renda (%) 1960 -2014
EXTRATOS
ANO
1960 1970 1980 1990 1999 2010 2014
50% mais pobres 17,7 14,9 14,2 11,2 14,0 17,7 18,9
40% médios 42,7 38,4 38,1 39,1 39,2 37,8 40,2
10% mais ricos 39,6 46,7 47,7 49,7 46,8 44,5 40,9
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
5% mais ricos 27,7 34,1 34,9 35,8 33,4 32,4 28,9
1% mais rico 12,1 14,7 14,7 14,6 13,1 13,8 11,7
Fonte: IBGE, Censos Demográ cos e PNADs
A partir de 2011, a economia brasileira entra em uma rota de
instabilidade, marcada por taxas mais baixas de crescimento econômico e
taxas de in ação mais elevadas (Grá co 4). Apesar do cenário econômico
mais adverso, os indicadores do mercado de trabalho apresentaram ainda
uma evolução relativamente favorável até 2013.
Os dados disponíveis sobre a distribuição de renda indicam, por-
tanto, um processo de redução das desigualdades de renda, puxados pelo
crescimento econômico mais signi cativo, especialmente até 2008, e pelas
políticas de transferência de renda aos segmentos mais vulneráveis da socie-
 (O.)

dade brasileira. Contribuiu também, de forma expressiva para a tendência de
menor concentração de renda, a continuidade da recuperação do valor real
do salário mínimo, que no início de 2016 encontra-se em um patamar quase
20% maior que o veri cado em 2010 e quase 130% superior ao observado
em 1995, quando este atingiu o seu menor valor real desde que foi criado
em 1940 (Grá co 5). Segundo o DIEESE (2016), os impactos decorrentes
da elevação do salário mínimo são expressivos, bene ciando quase 50 mi-
lhões de pessoas que têm rendimento referenciado a esse piso. No tocante
ao emprego, apesar do cenário econômico menos favorável, os indicadores
do mercado de trabalho apresentam ainda um comportamento positivo até
2014, com taxas de desemprego relativamente reduzidas e a tendência de
aumento do grau de formalização da força de trabalho, em parte explicada
pela redução do ritmo de crescimento da população economicamente ativa.
Auxilia também, para a manutenção das taxas de desemprego em patamares
relativamente baixos até esse período, o crescimento dos rendimentos do
trabalho e as políticas de transferência de renda que possibilitaram a elevação
da escolaridade e a entrada tardia do contingente de jovens no mercado de
trabalho (HORIE; PELATIERE; MARCOLINO, 2014).
Grá co 4 - Variação anual do PIB Brasil (2011- 2015)
-
-
-
-
2011 2012 2013 2014 2015
Variação do PIB (%)
Ano
Fonte: IBGE (2016a)

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
É preciso considerar, no entanto, que, em que pese os avanços
obtidos na redução da desigualdade de renda no país a partir da década de
2000, resultante da combinação de um comportamento mais favorável do
mercado de trabalho e da ampliação das políticas sociais levadas a cabo pelo
Estado, o quadro distributivo no Brasil continua sendo marcado por fortes
desigualdades. Os ganhos salariais ao longo dos anos 2000 representam, em
grande medida, uma recuperação do poder de compra dos salários veri cados
no início da década, corroídos até 2004 (SUMMA, 2014). Além disso, vá-
rias pesquisas apontam uma desigualdade ainda maior no tocante à proprie-
dade (CALIXTRE, 2014; MEDEIROS; CASTRO, 2014), a permanência
de uma estrutura tributária regressiva do país, e ainda elevado grau de infor-
malidade do mercado de trabalho, de maneira que as desigualdades de renda
continuam muito altas, além da permanência das disparidades no tocante
ao acesso ao emprego, educação e saúde, transporte público e habitação de
melhor qualidade (BARBOSA; AMORIM, 2014).
Grá co 5 - Evolução do salário mínimo real médio anual em reais de 01
jan. 2016





           
870,88
795,29
629,05
414,39
383,73
414,4
464,6
498,3
653,35
752,78
832,37
880
Slário Mínimo (R$)
Ano
Fonte: DIEESE
Além disso, o esgotamento do modelo de crescimento, centrado
no consumo de bens duráveis, e do aumento do crédito ao consumidor
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

levaram a uma redução das taxas de crescimento econômico no Governo
Dilma, que exigiam a reorientação das políticas econômicas para explorar
outras frentes de expansão como a ampliação dos investimentos na infra-
estrutura econômica e social, necessários para eliminar gargalos de oferta
na logística e ampliar a oferta de bens de consumo público e coletivo, a ex-
ploração de recursos naturais, particularmente no setor de petróleo e gás e
o estímulo ao setor nacional de máquinas e equipamentos para atender aos
investimentos nas outras frentes. No entanto, em um contexto de altas ta-
xas de juros, especialmente a partir de 2013, e de valorização cambial, leva-
ram a uma a desaceleração da demanda e o aumento de importações, com
queda da produção industrial e dos investimentos (que caem de 19,5% do
PIB em 2010 para 17,9% em 2014) que não responderam aos incentivos
via desonerações scais e elevação dos níveis de utilização da capacidade
ociosa (BASTOS, 2015). A economia brasileira, que já vinha apresentando
uma desaceleração do crescimento na atual década, cresce apenas 0,3% em
2014, causando impactos sobre o quadro distributivo, com uma tendência
de estagnação da desigualdade de renda no país.
Apesar da piora de algumas variáveis econômicas a partir de 2014,
não havia indicações de uma deterioração signicativa dos fundamentos
econômicos, como a visão neoliberal e a grande mídia propalavam. A taxa
de inação neste ano, de 6,4%, esteve dentro da meta e com comporta-
mento semelhante ao dos últimos anos. Do ponto de vista scal, entre
2004 e 2013, os superávits primários foram em média de 3% anuais do
PIB, sendo negativo em 2014, de -0,6% do PIB, resultante da política de
desonerações scais, do esgotamento do ciclo de consumo, da redução dos
investimentos e da estagnação econômica, impactada pelo cenário externo
desfavorável e do aumento da taxa de juros a partir do início de 2013, o
que levou também a um aumento do décit nominal. Ainda assim, os
níveis da dívida pública líquida ou bruta apresentavam patamares relati-
vamente baixos para os padrões internacionais. Os indicadores de desem-
penho da economia, da inação, dos décits scais, do setor externo e do
mercado de trabalho sinalizavam para o m de um ciclo de crescimento,
não para uma profunda crise (FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2015).
Assim, para alguns analistas, como Bastos (2015) e os da Fundação
Perseu Abramo (2015), nada justicaria a “virada neoliberal” e a adoção de

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
políticas de cunho ortodoxo a partir do início do segundo governo Dilma.
Na realidade, segundo estes autores, a deterioração econômica vericada
em 2014 foi muito mais reexo das incertezas políticas em ano de eleições
presidenciais e do quadro internacional adverso, do que resultado de deci-
sões equivocadas de política econômica, taxada de “nova matriz econômi-
ca”. Com a ajuda da grande mídia, a visão liberal, defendendo um ajuste
da economia e das contas públicas, passou a ser dominante, impondo uma
agenda marcada pela austeridade scal e monetária, via corte de gastos, ele-
vação dos impostos e aumento da taxa básica de juros. Esta última, depois
de ter se reduzido de 12,5% em julho de 2012, para 7,25% em outubro
deste ano, entrou em rota ascendente desde então, chegando 14,25% em
julho de 2015 e vem mantendo este patamar nos últimos meses.
Segundo a Fundação Perseu Abramo (2015), os primeiros resul-
tados da implementação dessa política se traduziram em queda acentuada
na taxa de crescimento da economia, de -3,8% em 2015, e com previsão
de redução de mais de 3% do PIB neste ano, aumento do desemprego,
declínio da renda real do trabalhador e aumento das taxas de inação no
ano passado, que alcançou 11%, segundo o IPCA do IBGE. Além disso, o
discurso encampado, inclusive pelo Banco Central, de que o crescimento
econômico só retornará pela retomada da conança empresarial, o que por
sua vez dependeria da queda da inação e do ajuste das contas públicas, di-
cilmente se concretizará em um horizonte de curto prazo. Isso porque, na
medida em que o aumento dos preços em 2015 teve um caráter muito mais
corretivo” do que de demanda, ao se corrigir de uma vez as defasagens das
tarifas públicas, como os preços da energia, a queda da inação tem exigido
um brutal aumento das taxas de juros, com impacto devastador sobre a
dívida pública e forte desaceleração do mercado do trabalho, com rápido
aumento do desemprego e redução do salário real. Ao mesmo tempo, com
a signicativa redução do nível de atividade econômica a partir de 2015,
as receitas tributárias também caíram e o ajuste recessivo tem levado a um
aumento da dívida pública, em vez do contrário, como disseminado pelo
discurso neoliberal. O aumento dos juros da dívida pública, além de elevar
o décit nominal (em torno de 8% do PIB em 2015) e o endividamento
bruto (de 59,8% do PIB em 2104 para 66,2% no nal de 2015), tem
causado efeitos fortemente negativos sobre a atividade econômica e con-
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

sumido parcelas crescentes do orçamento público. Os gastos com juros da
dívida pública superaram um trilhão de reais entre 2009 e 2013 e mais de
500 bilhões em 2015, o que representa cinco vezes o orçamento da saúde
e da educação (BELLUZZO; GALÍPOLO, 2016).
A crise econômica, resultante do ajuste recessivo e as perspectivas
desalentadoras para este ano, apontam para um aumento signicativo das
taxas de desemprego e o rebaixamento dos salários. Em 2015, mais de 1,5
milhão de postos de trabalho com carteira de trabalho assinada desapare-
ceram (Gráco 5). Neste ano, mais de 1,1 milhão de postos de trabalho
formais já foram perdidos. Já em 2014, tinham sido criadas apenas 150
mil novas vagas, enquanto em 2010 foram gerados mais de 2.130 mil pos-
tos de trabalho com carteira (5.400 mil novas vagas entre 2010 e 2013).
Como decorrência do menor dinamismo do mercado formal de trabalho,
aumentou a informalidade e o trabalho por conta própria como válvula
de escape para o maior índice de desemprego. Atividades de trabalho au-
tônomo como pedreiros, serventes e camelôs cresceram 5,2% em 2015 e
o emprego doméstico, em retração nos últimos anos, voltou a crescer no
ano passado, com uma expansão de 6,2%. Em agosto de 2015, 19,8% da
população ocupada, segundo a PME/IBGE, se enquadrava nesta moda-
lidade, a maior desde dezembro de 2006. A taxa de desemprego, por sua
vez, que vinha declinando desde o início da pesquisa da PNAD Contínua
nesse processo no início de 2012, de 7,5% no segundo trimestre deste
ano, para 6,8% no mesmo período em 2014 e começa a crescer no início
de 2015, para 7,9% no primeiro trimestre daquele ano e alcançou quase
11% da PEA no primeiro trimestre deste ano (Tabela 2). Este aumento
do número de desocupados é formado em parte por jovens que antes es-
tavam dedicados exclusivamente aos estudos e que entram no mercado de
trabalho para complementar o orçamento doméstico, além daqueles que
perderam seus empregos. Os dados da PNAD Contínua mostram também
queda de 3,2% do rendimento médio real no primeiro trimestre deste ano
em relação ao mesmo período do ano passado. No tocante à desigualdade
de renda, apesar do Índice de Gini ter diminuído em 2014 em relação ao
ano anterior (de 0,495 para 0,490), houve aumento na região Sudeste, a
mais rica do país, de 0,475 para 0,478, o que não ocorria desde 2005. Esta
tendência deve ter se repetido em 2015 e deve ocorrer neste ano, como re-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
sultado do aprofundamento da crise econômica, elevação da in ação, me-
nor crescimento do salário mínimo e do aumento do desemprego. Ou seja,
os custos do ajuste têm incidido, sobretudo sobre os mais pobres, através
da desvalorização dos salários e um acelerado crescimento do desemprego,
o que pode frear a in ação, mas com pesados custos sociais e econômicos.
Grá co 6 - Geração líquida de postos de trabalho formal
-..
-..
-..
-.
.
..
..
..












Empregos Formais
Ano
Criação de postos
de trabalho
formais
Fonte: MTE/CAGED
Tabela 2 - Taxa de desemprego e rendimento real dos ocupados em todos
os trabalhos (2012-2016)
Período Taxa de Desemprego Rendimento Real (R$)
Abr./mai./jun. 2012 7,5 1.917
Abr./mai./jun. 2013 7,4 1.988
Abr./mai./jun. 2014 6,8 1.961
Jan./fev./mar. 2015 7,9 2.031
Abr./mai./jun. 2015 8,3 2.021
Jul./ago./set. 2015 8,9 1.987
Out./nov./dez. 2015 9,0 1.961
Jan./fev./mar. 2016 10,9 1.966
Fonte: PNAD Contínua/IBGE
 (O.)

Os efeitos da crise econômica sobre a renda do trabalho e empre-
go também podem ser constatados quando se observa que pela primeira
vez desde 2007, o número de trabalhadores que recebeu o décimo terceiro
salário caiu em 2015. O número de pessoas que receberam o 13.º salário
em 2015 foi 0,3% inferior ao calculado em 2014, em grande parte pela
redução do estoque de empregos no setor formal da economia (grá co
6). Outro indicador que revela a deterioração das condições do mercado
de trabalho, segundo o DIEESE, é que em quase metade das negociações
coletivas em 2015, analisadas pelo órgão os reajustes salariais  caram iguais
ou inferiores ao INPC, pior desempenho das negociações coletivas de re-
ajuste salarial desde 2004 (DIEESE, 2016). Como já apontava Dedecca
(2013), sem um ritmo maior de crescimento econômico, um maior pata-
mar dos investimentos produtivos e o esgotamento das políticas de trans-
ferência de renda, aumentam os desa os para superar o quadro de elevada
desigualdade que ainda persiste no país, especialmente no panorama de
profunda recessão pelo qual passa o país.
Grá co 7 - Trabalhadores do mercado formal que receberam 13.º salário
.
.
.
.
.
.
        
.
.
.
.
.
.
.
.
.
Número de Trabalhadors (em milhoes)
Ano
Fonte: DIEESE (2015)
A superação da pobreza e da desigualdade exige uma combinação
de políticas sincronizadas (macroeconômica, de competitividade e comer-
cial) que parecem ter sido abandonadas em função dos interesses domi-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
nantes do capital nanceiro e da implementação de políticas neoliberais
que tendem a levar a economia brasileira a um novo ciclo de estagnação
econômica. Ou, como coloca Bastos (2015) em seu ensaio “Austeridade
para quem?”, a questão é quem vai pagar a conta, e com a hegemonia da
opção conservadora, esta opção mais uma vez, por enquanto, está sendo
paga pelos segmentos mais vulneráveis da sociedade brasileira, preservando
a riqueza nanceira em vez de apostar em uma estratégia que privilegiasse
a retomada do crescimento econômico, como defendem os economistas
da Fundação Perseu Abramo (2015), o que possibilitaria ampliar as recei-
tas, reduzir gastos com juros, além da necessidade de realização de uma
reforma tributária progressiva, revisão de incentivos scais e combate à
sonegação e evasão de receitas.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, A. F.; AMORIN, R. L. C. Desaos para o enfrentamento da desi-
gualdade no Brasil. In: FAGNANI, R.; FONSECA, A. (Org.), Políticas sociais, de-
senvolvimento e cidadania. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2014, p. 29-50.
BASTOS, P. P. Z. Austeridade para quem? a crise global do capitalismo neoliberal
e as alternativas para o Brasil. Campinas, IE/Unicamp [Texto para Discussão] n.
257, 2015.
BELLUZZO, L. G.; GALÍPOLO, G. Juros de amor. Tendências/Debates. Folha
de São Paulo. 14 Jan. 2016. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/
opiniao/2016/01/1729277-juros-de-amor.shtml>. Acesso em 30 ago. 2016.
CORSI, F. L.; CAMARGO, J. M. Crescimento econômico, distribuição de renda e
movimentos sociais no Brasil: 2003-2013. Lisboa, Atas do Primeiro Congresso da
Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa,
2015, p. 1315-1324.
DEDECCA, C. S. Uma breve nota sobre a complexidade ao desao da redu-
ção da desigualdade e da pobreza segundo a PNAD de 2012. Campinas, Rede
Desenvolvimentista, [Texto para Discussão] n. 14, 2013.
DIEESE. R$173 bilhões devem ser injetados na economia a título de 13.º salário.
São Paulo, Nota à Imprensa, 2015.
______. Balanço das negociações dos reajustes salariais de 2015. São Paulo, Estudos
e pesquisas n.80, 2016a.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

DIEESE. Política de valorização do salário mínimo: salário mínimo de 2016 é
xado em R$880,00. São Paulo, Nota Técnica n.153, 2016b.
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Mudar para sair da crise: alternativas para o
Brasil voltar a crescer. São Paulo, v. 1, 2015.
HORIE, L.; PELATIERE, P.T.; MARCOLINO, A. O mercado de trabalho brasi-
leiro recente. São Paulo, Teoria e Debate. n. 123, 2014.
IBGE. Índice de Gini da distribuição do rendimento mensal dos domicílios com
rendimento. Séries históricas e estatísticas, 2016a. Disponível em: < http://serie-
sestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=6&op=0&vcodigo=FED103&t=indice-
-gini-distribuicao-rendimento-mensal-domicilios>. Acesso em: 30 ago. 2016.
______. Produto interno bruto: valores. Séries históricas e estatísticas, 2016b.
Disponível em> <http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=1&op=1&
vcodigo=SCN51&t=produto-interno-bruto-pibbrvalores-real>. Acesso em: 30
Ago. 2016.
IEDI. Comércio exterior de bens da indústria de transformação: exportando menos,
importando bem mais. São Paulo, Carta IEDI n. 608, 2014.
MEDEIROS, M.; SOUZA, P. H. F.; CASTRO, F.A. O topo da distribuição de
renda no Brasil: primeiras estimativas com dados tributários e comparação com
pesquisas domiciliares, 2006-2012. Brasília, UNB. 2014. Disponível em: <http//
ssm.com/asbtract=2479685>. Acesso em: 09 jun. 2014.

AJUSTE FISCAL E AUSTERIDADE:
SAÍDA À DIREITA
Luís Antonio PAULINO
INTRODUÇÃO
Entre 2004 e 2014, a economia brasileira cresceu em média 4%
ao ano e a taxa de desemprego caiu de 11,4% para 4,8%. A formalização
do emprego cresceu, no mesmo período, de 58% para 68% e o salário real,
em 2014, era 35% mais elevado do que em 2004 (BARBOZA; FRANCA,
2016). Segundo o Banco Mundial, o Brasil foi o mais bem-sucedido país
da América Latina na luta pela erradicação da pobreza. Em seu último rela-
tório, o banco destaca que o número de brasileiros vivendo com menos de
2,5 dólares por dia caiu de 10% para 4%, entre 2001 e 2013. Tudo parecia
indicar que o Brasil havia nalmente deixado para trás a triste sina do stop
and go do modelo econômico concentrador de renda das últimas décadas
e começado a trilhar, ao lado de outras economias emergentes, um novo
caminho rumo ao desenvolvimento com distribuição de renda. Parecia que
a um só tempo, diminuíam as diferenças entre países ricos e países pobres
e as diferenças entre ricos e pobres nos países em desenvolvimento. Muitos
falaram em “grande convergência” na economia mundial, na medida em
que a renda per capita nos países em desenvolvimento passou a crescer
mais rapidamente que nos países ricos. A conservadora revista britânica
e Economist, por exemplo, na edição de novembro de 2009, estampando
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
83-108
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

um Cristo Redentor como um foguete decolando na capa, previa que em
algum momento após a década de 2014, o Brasil se tornaria a quinta maior
economia do mundo.
Mas entre a taça e os lábios há certa distância. Não tardou para que
os efeitos da crise de 2008, dos quais o Brasil havia escapado inicialmente, ao
adotar políticas anticíclicas de estímulo ao consumo e à produção, nalmen-
te atingissem os países em desenvolvimento. O elemento externo detonador
da crise, no caso do Brasil, foi a queda no preço internacional das commodi-
ties minerais e agrícolas. O preço do minério de ferro, principal produto de
exportação do Brasil, caiu de US$150/tonelada, no momento de auge, para
US$38 no nal de 2015. O mesmo ocorreu com o preço de outras commo-
dities minerais e agrícolas que o país exporta como aço, soja e petróleo, resul-
tado do aumento internacional da oferta e da queda mundial no consumo.
O receio de elevação dos juros nos Estados Unidos, depois de quase uma
década de políticas monetárias expansionistas (quantitative easing) e de taxas
de juros próximas de zero, trouxeram turbulência no mercado nanceiro,
provocando acentuada desvalorização do Real e elevação da taxa de inação.
Com receita tributária em queda, inação em alta e pouca margem para
reduzir gastos, a Presidente Dilma Rousse foi reeleita no nal de 2014 por
uma pequena diferença de votos, prometendo manter os gastos sociais que
a oposição conservadora dizia não caberem mais no orçamento do governo.
Diante de um clima geral de desconança do empresariado, em parte cau-
sado pela indecisão do governo em relação a que caminho a seguir, a taxa de
investimento privado despencou e taxa de desemprego subiu, alcançando,
no nal de 2015, 8,2%. Com a inação em alta, o salário real, em janeiro
de 2016, era 7,5% mais baixo do que em janeiro de 2014. Em 2015, o cres-
cimento do Produto Interno Bruto (PIB) foi negativo em 4% e as previsões
são o que o mesmo se repita em 2016, podendo, assim, a economia brasileira
encolher 8% em apenas dois anos, levando o país à pior recessão da sua his-
tória. Incapaz de convencer a opinião pública de que em uma economia sem
moeda conversível, o risco de default do governo é zero, uma vez que, por
denição, um governo não pode se tornar insolvente na moeda em que ele
mesmo emite, as discussões sobre o superávit primário passaram a dominar
o debate econômico (RESENDE, 2009). O décit primário do governo
central bateu novo recorde em fevereiro de 2016, alcançando R$125,139

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
bilhões ou 2,11% PIB. O décit nominal alcançou R$638,572 bilhões ou
10,75% do PIB, com os encargos da dívida pública consumindo R$513,433
bilhões, ou 8,64% do PIB (CAMPOS; RIBEIRO, 2016). Em um cenário
de juros altos, com a taxa Selic em 14,25% ao ano, crescimento negativo da
economia e incapacidade de gerar superávits primários, a trajetória do endi-
vidamento público seguiu em alta. Embora a dívida líquida do setor público
permaneça em torno dos menores níveis históricos – 36,8% do PIB, ou R$
2,186 trilhões – a dívida bruta bateu nova máxima histórica ao superar R$4
trilhões, o que corresponde a 67,6% do PIB, podendo chegar, em 2017, a
80,5% do PIB, segundo previsão do FMI, ante a média de 45,4% dos países
emergentes. Na verdade, nada disso seria um grande problema, haja vista
que países como Japão e Itália, com moedas conversíveis, apresentam níveis
de endividamento do setor público superior a 100% e nem por isso cau-
sam pânico entre credores nacionais e internacionais e nem precisam pagar
14,25% de juros para vender seus títulos. Se o país conseguir manter a ina-
ção dentro de limites razoáveis e o seu balanço de pagamentos equilibrado,
o tamanho do décit público é o menor dos problemas. O problema como
veremos adiante, no caso do Brasil, é que por trás desta (falsa) discussão so-
bre o décit público está outro problema: a serviço de quem está o Estado?
COMO CHEGAMOS À CRISE?
Escrever sobre conjuntura é sempre arriscado. Como já armou
o historiador Eric Hobsbawn, quem escreve sobre acontecimentos recen-
tes sempre corre o risco de ter os calcanhares mordidos pela história. Não
creio, entretanto, estar fazendo juízo apressado ao armar que a atual crise
brasileira não pode ser dissociada da crise econômica global iniciada em
2008 e até hoje não superada e que qualquer governo que tivesse sido eleito
em novembro de 2014 teria necessariamente de enfrentar.
Talvez o que imprima tons mais carregados para a crise que o
Brasil atravessa seja a extrema diculdade de se encontrar alternativas ime-
diatas de saída, uma vez que a correlação de forças políticas extremamente
polarizadas não permite saída nem à esquerda, nem à direita, levando o
país a um impasse. No início da década de 1990, vivemos a crise da hipe-
rinação, só foi possível encontrar uma saída mais ou menos duradoura
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

quando foi eleito um governo conservador que bancou uma saída à direita
que encontrou um “pagador em última instância” que assumiu de forma
denitiva o custo do ajuste: os salários.
Mesmo no período 2002/2003, quando a economia apresentou
forte turbulência por ocasião da mudança de governo e eleição do presi-
dente Lula, só um compromisso claro com a agenda conservadora – metas
de inação, superávit primário e câmbio exível – evitou a eclosão de uma
nova crise. Por conta de circunstâncias externas únicas, que discutiremos a
seguir, aquele foi um raro momento em que foi possível realizar melhoras
na condição de vida dos mais pobres sem mexer com o interesse dos ricos,
o que em teoria econômica é chamado de “critério de Pareto”. Entretanto,
conforme arma Chang (2015, p. 117): “Na vida real, infelizmente, há
poucas mudanças que não prejudicam alguém; assim, o critério de Pareto
se torna, na verdade, uma receita para manter o status quo e deixar as coisas
caminharem sozinhas – ou seja, o laissez-faire”.
Qualquer crise traz embutido, em última instância, um conito
distributivo, sem a solução da qual a crise tende a se prolongar indenida-
mente. Tão logo se encontre alguém que pague a conta, a crise geralmente
arrefece. Em entrevista recente ao jornal Valor Econômico, o mais renomado
gestor de recursos brasileiro, Luis Stuhlberger, do fundo Verde foi direto ao
ponto: “Como rompe o ciclo? Com profundas reformas econômicas, revisão
do estado de bem-estar social, reforma do mercado de trabalho, profunda
revisão no gasto social estabelecido pela Constituição, maior abertura comer-
cial, governança nas estatais” (SEABRA; BELLOTO, 2016).
Qualquer um que se debruce sobre a história econômica recente e
não veja a economia como uma ciência pura despojada de dimensões polí-
ticas e históricas, guiada por decisões racionais de indivíduos que desejam
sempre o máximo prazer com o mínimo de esforço, há de constatar que
independentemente da vontade dos indivíduos e até mesmo das classes
sociais a que esses indivíduos pertençam, a economia capitalista se movi-
menta em ciclos.
Antes do advento do capitalismo, o crescimento da renda per
capita era extremamente lento. Segundo, Chang (2015, p. 56), “Entre os
anos 1000 e 1500, a Idade Média, a renda per capita na Europa Ocidental

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
cresceu a 0,12% ao ano”. Outras áreas do mundo, como a Ásia e a Europa
Oriental, inclusive a Rússia, tiveram taxas ainda menores: 0,04% ao ano
(CHANG, 2015, p. 57). Diante de um crescimento tão lento, a economia
funcionava de maneira estacionária na qual não ocorriam grandes oscila-
ções, que não fossem aquelas provocadas por fatores externos, como guer-
ras, epidemias ou desastres naturais.
Com o advento do capitalismo, essas taxas de crescimento tive-
ram um salto surpreendente, permitindo que elevações da renda per capita
que antes demoravam séculos para ocorrer, agora acontecessem em poucas
décadas. Com um crescimento anual de 11%, entre 2002 e 2008, a China,
por exemplo, apresentou no período de seis anos um progresso material
que na Europa medieval levaria 83 anos para ocorrer (CHANG, 2015, p.
57). Em compensação, a economia capitalista entrou em uma espécie de
montanha russa em que ciclos de prosperidade e expansão são sistematica-
mente seguidos por períodos de penúria e contração da atividade econô-
mica e do emprego.
Os elementos detonadores da crise variam de um lugar para ou-
tro, de uma época para outra, mas o roteiro das crises é quase sempre o
mesmo: períodos de expansão da atividade econômica, com aumento do
investimento e do consumo, apoiado no aumento da renda, dos lucros e,
sobretudo, do crédito, seguidos por períodos de contração, com redução
da taxa de lucro e da renda, aumento do desemprego, da inadimplência e
restrição ao crédito, geralmente associado a crises bancárias. No período de
expansão, quem mais ganha, geralmente, são os bancos, que criam moeda
e ganham fortunas com as diferenças entre os custos de captação e de em-
préstimo, o chamado spread bancário, que no Brasil é o maior do mundo:
34%. Quando a crise chega, são esses mesmos bancos os primeiros a pe-
dir socorro, para evitar “crises sistêmicas”. A saída da crise pode ser mais
ou menos demorada, dependendo da combinação de remédios adotada.
Geralmente há três saídas possíveis: inação, desvalorização ou deação.
Na primeira, os custos são repassados para os credores, uma vez que os de-
vedores veem o valor real de suas dívidas encolherem; na segunda, os custos
são repassados para o exterior, pelo aumento das exportações e redução do
valor em dólares dos ativos possuídos por estrangeiros no país e; na tercei-
ra, o custo é repassado para os tomadores de empréstimos e devedores em
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

geral que veem o tamanho real de suas dívidas crescer frente à queda dos
preços e dos salários. Como, em geral, os credores são em menor núme-
ro que os devedores e, geralmente, são os mesmos bancos que ganharam
muito antes da crise, é natural que a solução preferida pelo “mercado” seja
a terceira, ou seja, a deação. Mesmo sendo a saída mais lenta e dolorosa,
com altos custos sociais em termos de desemprego e queda na renda, é a
única saída que garante que os créditos dos bancos junto aos tomadores
de empréstimos não se transformem em fumaça. É normal, portanto, que
em momentos de crise, a palavra que mais se ouça, sobretudo da boca dos
banqueiros, seja “austeridade”.
Pouco antes da crise de 2008, alguns economistas achavam que
com os novos desenvolvimentos da teoria macroeconômica, os ciclos -
nalmente teriam sido nalmente domados. Robert Lucas, ganhador do
Prêmio Nobel de Economia de 1995, escreveu em 2003: “[e] central
problem of depression prevention has beem solved, for all practical purposes
(RODRIK, 2015, p. 134). Doce ilusão...
A mais recente crise mundial, iniciada em 2008, nos Estados
Unidos, não fugiu à regra. A partir de meados da última década do século
XX, a economia mundial expandiu-se rapidamente com base em um ciclo
de inovações, sobretudo nas áreas de informática, tecnologia de informa-
ções, comunicações e transportes, tendo como centro dinâmico os Estados
Unidos. Foi um período de expansão de toda a economia mundial.
A expansão do consumo nos Estados Unidos alimentou os inves-
timentos e exportações da China, que alimentou a demanda por commodi-
ties da América Latina. Diante da redução das margens de lucro, resultado
do acirramento da concorrência pelo domínio de fatias maiores do merca-
do, grandes massas de capitais procuraram formas alternativas de valoriza-
ção que, no caso especíco desta crise, resultou em uma bolha especulativa
no mercado imobiliário norte-americano e outras bolhas especulativas nos
mercados imobiliários e de commodities internacionais.
Quando a bolha explodiu, em 2007, iniciou-se o processo inver-
so. A contração do consumo nos Estados Unidos derrubou as exportações
e o crescimento da China que, por sua vez, derrubou os preços das commo-
dities da América Latina. A crise se propagou por toda a economia mun-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
dial, na forma de sucessivas crises de endividamento, na medida em que
as dívidas contraídas por empresas e por governos no período de expansão
não tinham mais como ser pagas ou renanciadas.
Após abalar a economia dos Estados Unidos, deixando milhões de
pessoas endividadas e desempregadas, a segunda onda de choque atingiu
a União Europeia, sobretudo os países com economias mais frágeis, como
Irlanda, Itália, Espanha, Portugal e Grécia – os PIIGS – provocando efeitos
igualmente devastadores. Na Espanha e na Grécia, a taxa de desemprego
atingiu 25%. A terceira onda atingiu os países em desenvolvimento, inclu-
sive o Brasil. A economia chinesa, que vinha crescendo a taxas próximas
de 10% nos últimos 30 anos, viu seu crescimento reduzido a pouco mais
da metade desse valor, e foi obrigada a mudar rapidamente seu modelo de
desenvolvimento. Em 2015, a economia da China cresceu 6,9%, a menor
taxa dos últimos 25 anos, sendo que o setor que mais contribuiu para o cres-
cimento foi o setor de serviços. No primeiro trimestre de 2016, a China cres-
ceu 6,7% em relação aos doze meses anteriores, sendo que o setor de serviços
cresceu 7,6%, respondendo por 56,9% do crescimento total (ZHIMING;
YANFEI, 2016). A economia da Rússia também entrou em crise. O PIB
russo apresentou um índice negativo de 3,7%, em 2015, com a perspectiva
de repetir o mesmo desempenho negativo em 2016. No caso do Brasil, a
economia ainda cresceu cerca de 2% em 2013, mas a partir daí entrou numa
espiral decrescente, resultando num crescimento negativo de cerca de 4% em
2015, com perspectiva de encolher novamente em 2016, podendo acumular
um crescimento negativo em torno de 8% num período de dois anos.
O QUE DE ESPECÍFICO NA CRISE BRASILEIRA?
Se não é possível entender a crise brasileira sem levar em conta
as circunstâncias internacionais nas quais está inserida, também é preciso
reconhecer que a maneira como cada país reage à crise depende também
das circunstâncias internas. A crise mundial coloca uma série de ameaças,
e eventualmente de oportunidades, para cada país. Como cada um reage
à crise e é mais ou menos afetado por ela, vai depender das suas próprias
forças e fraquezas. Por isso, os impactos da crise global são diferentes em
cada país. O que para um pode ser um resfriado, para outro pode ser uma
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

pneumonia mortal. A crise é como uma doença que contamina diferentes
grupos de pessoas. Alguns, com a saúde mais frágil, não resistem e mor-
rem; outros em melhores condições de saúde, resistem e se recuperam.
A recuperação pode ser rápida para uns, mais lenta para outros. Podem
não deixar sequelas em alguns, mas comprometer denitivamente a saúde
de outros. A analogia não é a mais adequada, pois não há como um país
morrer” e nada é denitivo em economia e política. Mas fato é que o grau
de sofrimento e o tempo de recuperação podem variar bastante de um país
para o outro, dependo de como esteja, se mais ou menos preparado para
enfrentar a crise e, sobretudo, dos remédios administrados.
Depois das turbulências de 2002/2003, provocadas por descon-
anças do mercado em relação à ascensão ao poder de um governo de
esquerda, a economia brasileira entrou, graças a circunstâncias únicas que
talvez não mais se repitam, em uma rota de forte expansão que durou pelo
até 2009. O crescimento mundial, até a eclosão da crise, em 2008, foi
sustentado por duas poderosas forças: a expansão do consumo nos Estados
Unidos e o rápido crescimento da China.
Nos Estados Unidos, o crescimento foi sustentado pela forte ex-
pansão do consumo e do setor imobiliário. A valorização dos imóveis, ali-
mentada pela farta oferta de crédito, levou à formação de uma bolha especu-
lativa que ao explodir, em 2008, levou o sistema bancário norte-americano
à beira da falência. Pessoas sem nenhum histórico de crédito, os chamados
subprime, podiam adquirir diversos imóveis, cujas hipotecas eram empacota-
das em produtos nanceiros sosticados pelos bancos de investimento norte-
-americanos e vendidas com avaliação Triple A dada pelas agências de risco
– as mesmas que agora rebaixam a avaliação dos títulos soberanos do Brasil –
alimentando um processo especulativo em que hipotecas eram resgatas com
novas hipotecas e o consumo das famílias se expandia com base nessa falsa
sensação de riqueza. Também contribui para a expansão do crédito, o fato
da China e outros países que exportavam para os Estados Unidos reciclarem
seus superávits comerciais, adquirindo títulos do Tesouro americano ajudan-
do, assim, a nanciar a baixo custo essa orgia de consumo.
O crescimento da China, a segunda turbina a impulsionar o cres-
cimento da economia mundial nesse período, foi alimentado principal-
mente pela expansão das exportações de bens manufaturados, em grande

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
parte para os Estados Unidos, e pelos investimentos internos em infraes-
trutura e habitação, e pelo aumento do consumo interno decorrente do
rápido processo de urbanização da China. A economia chinesa já vinha
crescendo a taxas próximas de 10% ao ano, há três décadas, resultado do
processo de reforma e abertura iniciado em 1978, mas que ganhou gran-
de impulso na primeira década do século XXI, quando a China entrou
para a Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, e conseguiu
inserir-se estrategicamente nas cadeias globais de produção das principais
indústrias de montagem, tornando-se a “fábrica do mundo”. Pequenas vi-
las de pescadores na costa leste, com Shenzen e Yiwu, se tornaram em
poucos anos metrópoles com milhões de habitantes atraindo trabalhadores
de todo o interior da China. Investimentos em infraestrutura e empreen-
dimentos habitacionais multiplicarem-se por todo o país, transformando a
China em um gigantesco canteiro de obras. A necessidade de importação
de matérias-primas para sustentar esse crescimento vertiginoso levou ao
ciclo inédito de valorização de commodities.
Essas duas poderosas turbinas zeram a econômica mundial de-
colar e sustentar seu voo por quase uma década. Mesmo quando em 2008,
com o estouro da bolha imobiliária, os Estados Unidos e em seguida a
Europa tiveram suas economias em declínio, a China continuou a sus-
tentar o crescimento mundial por mais alguns anos, até que ela própria
sentisse os impactos da crise a partir de 2012 e fosse obrigada a mudar seu
modelo de crescimento.
Esse período de expansão da economia mundial reetiu-se no
Brasil de duas formas: pelo aumento dos preços e das quantidades expor-
tadas das commodities minerais e agrícolas e pelo aumento do investimento
direto estrangeiro. Esse ciclo de alta das commodities melhorou de formas
signicativas as relações de troca do Brasil, levando alguns economistas a
pôr em dúvida se a tendência secular de deterioração dos termos de tro-
ca apontada pelos economistas da escola estruturalista latino-americana
como uma das causas do subdesenvolvimento latino-americano conti-
nuava válida. A entrada de investimento direto estrangeiro, inicialmente
para nanciar empreendimentos relacionados à produção e exportação de
commodities e exploração do petróleo do pré-sal, mas também para nan-
ciar investimentos industriais e no setor de serviços, contribuiu para criar
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

um forte clima de otimismo em relação ao Brasil. A imagem do Cristo
Redentor decolando na capa da revista e Economist na edição de novem-
bro de 2009 é emblemática e demonstra o clima de otimismo do mundo
em relação ao Brasil:
China may be leading the world economy out of recession but Brazil is also
on a roll. It did not avoid the downturn, but was among the last in and
the rst out. Its economy is growing again at an annualised rate of 5%.
It should pick up more speed over the next few years as big new deep-sea
oilelds come on stream, and as Asian countries still hunger for food and
minerals from Brazil’s vast and bountiful land. Forecasts vary, but some-
time in the decade after 2014 – rather sooner than Goldman Sachs envi-
saged—Brazil is likely to become the world’s fth-largest economy, over-
taking Britain and France. By 2025 São Paulo will be its fth-wealthiest
city, according to PwC, a consultancy.
Esse ciclo das commodities reetiu sobre a economia brasileira de
diferentes formas. A balança comercial passou a apresentar superávits cres-
centes, mesmo com o aumento de importações de bens manufaturados e
insumos industriais.
Uma das consequências da forte entrada de divisas provenientes
da exportação de commodities e da entrada do investimento direto estran-
geiro foi a valorização cambial. A taxa de câmbio nominal que, em 2003,
havia subido para R$3,07, atingiu, em 2008, o valor de R$1,84/dólar, ba-
rateando as importações e outros gastos no exterior. Diversos economistas
passaram a suspeitar de que o Brasil estaria sendo acometido pela chamada
“Doença Holandesa”, ou seja, um processo de desindustrialização prema-
turo provocado pela perda de competividade da indústria decorrente da
valorização excessiva do Real frente ao dólar. Segundo Bresser-Pereira,
A doença holandesa é uma falha de mercado que atinge todos os países
em desenvolvimento que dispõem de recursos abundantes e baratos.
Esses recursos dão origem a uma “renda ricardiana”, ou seja, uma ren-
da que não decorre da produção mais eciente, mas de diferenciais de
produtividade originados nos recursos naturais do país. Quando um
país sofre da doença holandesa, a taxa de câmbio que equilibra sua
conta corrente é mais apreciada que a “taxa de câmbio de equilíbrio in-
dustrial”, ou seja, do que a taxa de câmbio que torna viável a produção
de bens comercializáveis que empregam tecnologia no estado da arte.
Dependendo da gravidade da doença holandesa, ela pode inviabilizar

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
completamente a indústria de um país, o que ocorre com muitos pro-
dutores de petróleo. (Bresser-Pereira, 2010, p. 8).
Os sinais do processo de desindustrialização e de reprimarização
das exportações brasileiras estavam evidenciados nas mudanças da pauta de
exportações do país. Em 2009, pela primeira vez em 30 anos, a exportação
de commodities superou a exportação de manufaturas.
Muitos críticos acusaram o governo de estar praticando o que
chamaram de “populismo cambial”, ou seja, promover articialmente a
elevação do poder de compra dos salários por meio da redução de preços
dos bens de consumo decorrente da valorização da taxa de câmbio.
De fato, durante período 2003-2010, a renda do trabalho expan-
diu-se rapidamente. Provavelmente foi a primeira vez na história do país
em que um ciclo de expansão da economia contribuiu para melhorar as
condições sociais da população e melhorar a distribuição de renda, dado
que em todos os ciclos anteriores, sobretudo durante o chamado “milagre
econômico” da década de 1970, o resultado do crescimento foi o aumento
da concentração de renda.
Duas iniciativas tomadas no governo Lula foram decisivas para a
melhoria da distribuição de renda: os programas de redução da pobreza e o
aumento real do salário mínimo. Depois da criação do Programa Fome Zero
em 2003, a estratégia de combate à pobreza foi aperfeiçoada e diversas ações
foram integradas no Programa Bolsa Família. O número de famílias bene-
ciadas aumentou de forma acelerada e, em 2005, o Bolsa Família já trans-
feria 0,3% do PIB e beneciava 8,7 milhões de famílias (BRASIL, 2010).
Ao mesmo tempo, teve início a política de recuperação do salário mínimo,
visando recuperar as perdas do período de inação alta. O aumento real do
salário mínimo, na média anual, foi de 3,72% em 2004, e de 6,96% no ano
seguinte. Em 2006, o reajuste atingiu 16,7%, o maior percentual do perío-
do. Com base na Lei n.º 12.382, de 25 de fevereiro de 2011, que estabeleceu
a política de longo prazo para o valor mensal mínimo recebido, o cálculo
do aumento passou a ser feito pela regra de que, a cada ano, o aumento do
salário mínimo corresponderá à variação do PIB do ano retrasado mais a
inação média do ano anterior medida pelo Índice Nacional de Preços ao
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Consumidor (INPC). Um subproduto da política de valorização do salário
mínimo foi a elevação no pagamento dos benefícios previdenciários, aumen-
tando a renda disponível para a maioria dos aposentados e pensionistas do
INSS (BRASIL, 2010). Outros mecanismos também ajudaram a desenvol-
ver o mercado doméstico. Entre eles, destacam-se a criação do crédito con-
signado e reestruturação da folha de pagamentos do governo federal. Em
2006, houve aumentos salariais para as carreiras típicas de Estado, além da
ampliação de contratações por concurso público e substituição de terceiri-
zados. Com essas medidas, o gasto com pessoal subiu de 4,3% (2005) pra
4,5% do PIB em 2008 (BRASIL, 2010, p. 14).
A partir de 2006, o governo federal passou a aumentar seus inves-
timentos e a criar mecanismos para que as empresas também pudessem am-
pliar seus negócios. Em 2007, as despesas federais de investimento em infra-
estrutura foram consolidadas no Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC) com investimentos previstos para o período 2007-2010 de R$504
bilhões, divididos em energia (R$275 bilhões), infraestrutura social
(R$171 bilhões) e logística (R$58 bilhões), o que permitiu que o investi-
mento em capital xo no Brasil aumentasse de 15,4% do PIB, em 2003,
para 19%, em 2008. Para esse aumento dos investimentos também foram
decisivos os empréstimos do BNDES que aumentaram de R$33,5 bilhões,
em 2003, para R$90,9 bilhões, em 2009. O PAC promoveu também de-
sonerações tributárias para incentivar o investimento privado e alavancar
o crescimento do mercado de massas no Brasil, que aconteceu principal-
mente na construção residencial e no setor de bens de consumo duráveis.
Em 2008, o lançamento da Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP)
levou a novas desonerações, com aproveitamento mais rápido de créditos
tributários para investimentos e redução do IPI, além de outros incentivos
tributários especícos, que beneciaram setores com a construção pesada e
empresas de alta tecnologia, como de semicondutores e de computadores
(BRASIL, 2010, p. 16).
Destaque-se também que o mercado de crédito acompanhou a
aceleração da economia. O volume de crédito “livre”, que não é dirigido
para uma atividade especíca, duplicou entre dezembro de 2005 e dezem-
bro de 2008. O crédito habitacional cresceu 73% entre 2006 e 2008 e o
crédito agrícola expandiu-se de forma pronunciada. O Plano Safra aumen-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
tou de R$54 bilhões no período 2006-2006 para R$78 bilhões em 2008-
2009 (BRASIL, 2010, p. 17).
Com o agravamento da crise internacional no nal de 2008, o mer-
cado brasileiro sentiu a rápida e acentuada contração na oferta de crédito e
ocorreu um grande uxo de saída de capitais do país. Houve retração do co-
mércio global, afetando as exportações brasileiras. Com a redução da conança
dos consumidores e das empresas, a demanda doméstica caiu e o país enfren-
tou dois semestres consecutivos de queda no PIB (BRASIL, 2010, p. 18).
É importante destacar que todas essas medidas não signicaram,
no período 2003-2010, uma redução expressiva do superávit primário,
que passou de 2,5% do PIB no triênio 2003-2006 para 2,3% em 2006-
2008 (BRASIL, 2010). Da mesma forma, a dívida bruta do setor público,
que estava em 48% do PIB no nal de 2005, continuou a recuar e caiu
para 37,34% no PIB, em 2008 (BRASIL, 2010, p. 18).
O governo brasileiro reagiu à crise tomando medidas emergen-
ciais com o objetivo de reduzir seus efeitos sobre o país, sobretudo sobre
a renda das famílias. Uma das medidas mais importantes foi o aumento
da transferência de renda para as famílias que passou de 6,9% do PIB, em
2002, para 8,6% do PIB, em 2008, e 9,3% do PIB, em 2009. O salário
mínimo foi aumentado em 12%, em 2009. Apesar da crise, não houve
corte nos investimentos: a União investiu o equivalente a 1% do PIB e a
Petrobrás, 2% (BRASIL, 2010, p. 18). A política de desonerações tributá-
rias foi expandida, o que gerou aumento da renda disponível às empresas.
O cronograma de reajustes salariais e contratações para o serviço público
não foi alterado em 2009. O governo federal tomou medidas para expan-
dir a liquidez da economia, restabelecer as condições de crédito. Houve
redução dos depósitos compulsórios do sistema bancário e o governo dis-
ponibilizou 3,3% do PIB ao BNDES, o que possibilitou oferta de linhas
especiais de crédito de curto prazo ao setor produtivo. Os bancos públicos
– Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal – aumentaram a oferta de
crédito em 33% entre setembro de 2008 e julho de 2009 (BRASIL, 2010,
p. 19). Em janeiro de 2009, o Banco Central deu início à paulatina redu-
ção da taxa básica de juros, que recuou dos 13,75% vigentes em setembro
de 2008 para 8,75% em meados de 2009. Mas o principal instrumento
do Governo Federal para estimular a recuperação econômica foi a redução
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

temporária de impostos. Essas reduções começaram no nal de 2008, com
a redução das alíquotas de IPI para o setor automotivo e foram estendidas
em 2009 para outros setores: bens de consumo duráveis, construção, bens
de capital, motocicletas, móveis e alimentos. Outra medida tomada foi o
lançamento do Programa Minha Casa, Minha Vida, com o objetivo de
promover a construção de um milhão de novas residências, com um sub-
sídio total equivalente a 1,2% do PIB. Esse conjunto de medidas permitiu
que, apesar a crise, o PIB crescesse 5,1% e se mantivesse estável em 2009
com um crescimento de 0,2% (BRASIL, 2010, p. 19). Em 2010, o PIB
brasileiro cresceu 7,6%, a maior alta desde 1985 (BRASIL, 2010, p. 20).
O balanço da economia brasileira no período 2003-2010 apon-
tava para a consolidação de um novo modelo de desenvolvimento econô-
mico, apoiado no tripé estabilidade econômica, crescimento com geração
de empregos e distribuição de renda. O que ocorreu a partir de 2011,
quando a presidente Dilma Rousse assumia seu primeiro mandato, e viria
mostrar que as bases desse novo modelo não eram tão robustas quanto se
imaginava e, sobretudo, que os conitos distributivos, que a implementa-
ção de tal modelo implicava, não encontrariam respaldo social suciente
dos segmentos melhor situados na ainda extremamente desigual escala de
distribuição de renda da sociedade brasileira.
Para os críticos do governo Dilma, a causa principal da derrocada
da economia brasileira a partir de 2014, estaria no abandono da fórmula de
sucesso implementada, a partir de 1999, no governo Fernando Henrique
Cardoso e seguida no primeiro governo Lula, baseada no tripé metas de
inação, superávit primário e câmbio utuante. Segundo Oreiro (2013):
Nos últimos meses diversos analistas têm entoado um réquiem para o
tripé macroeconômico (metas de inação, superávit primário e câm-
bio utuante), vigente no país desde 1999. Argumenta-se que embora
não tenha sido formalmente anunciado, na prática o governo Dilma
Rousse teria abandonado o regime de metas de inação em favor de
um regime de meta de taxa de juros, substituído a (sic) livre utuação
da taxa de câmbio por um regime de câmbio administrado e sepultado
o compromisso com a obtenção de metas de superávit primário por
intermédio da assim chamada “contabilidade criativa”. O abandono
do tripé seria o responsável por um aumento do grau de discriciona-
riedade (para não dizer irresponsabilidade) na condução da política
macroeconômica, o que estaria se traduzindo na redução da taxa de

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
crescimento da economia brasileira em função dos efeitos que o au-
mento da incerteza macroeconômica tem sobre a decisão de investi-
mento em capital xo.
Giambiagi e Schwartsman (2014) e Giambiagi e Pinheiro (2012),
economistas liberais extremamente críticos da gestão macroeconômica do
governo Dilma, atribuem os problemas ao aumento das despesas primárias
do governo e seu ao viés intervencionista. Segundo Giambiagi e Pinheiro
(2012, p. 15), “[o] Brasil vive há três décadas numa espécie de ‘mundo da
fantasia’, em que a economia, em geral, e o gasto público, em particular,
são conduzidos como se não tivessem limites”. Na mesa linha, Giambiagi
e Schwartsman (2014, p. 239) armam:
[o] que está acontecendo no Brasil nos últimos anos é uma decorrên-
cia natural de (más) escolhas feitas no passado. A ênfase excessiva no
consumo, o intervencionismo exacerbado, o descaso com os sinais de
aumento da pressão inacionária, o desleixo scal, o abuso da “conta-
bilidade criativa” etc. só poderiam ter tido com consequência o estada
de coisas que estamos assistindo [...].
O denominador comum de todas as visões críticas ao governo
é o abandono por parte do governo do Partido dos Trabalhadores (PT)
da orientação da política macroeconômica estabelecida pelo governo do
presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e seguida parcial-
mente no primeiro governo Lula (2003-2006), baseado no tripé metas de
inação, superávit primário, câmbio utuante em favor de uma política
de inspiração keynesiana que procurava combinar queda nos juros, alta do
dólar e política scal anticíclica que cou conhecida como “nova matriz
macroeconômica”. Todos são igualmente críticos à Constituição de 1988
que teria criado um estado de bem-estar social no Brasil que não cabe
dentro do orçamento do governo e que só pode ser mantido à custa do
endividamento crescente do Estado, uma vez que a carga tributária atual
de 36% do PIB atingiu um patamar além do qual a aprovação de qualquer
aumento tornou-se cada vez mais inviável e custosa no Congresso.
No que diz respeito a esse último aspecto, um exemplo frequente-
mente citado pelos críticos da política scal do governo é a questão da previ-
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

dência social. Quando a Constituição de 1988 foi promulgada, ampliando o
acesso à Previdência Social, a despesa com aposentadorias representava 2,5%
do PIB. Atualmente, o INSS gasta com o pagamento de benefícios, cerca de
7,5% do PIB. As reformas aprovadas em 2003 e regulamentadas em 2012,
estabelecendo um teto único para aposentadorias nos setores públicos e pri-
vado, além do qual a complementação deve ser feita por meio de fundos
fechados de previdência com base da contribuição individual dos trabalha-
dores já representou, em perspectiva, um corte importante nessas despesas
no futuro, mas não altera substancialmente a situação atual.
AUSTERIDADE E AJUSTE FISCAL: A SAÍDA À DIREITA PARA A CRISE
Se pudéssemos resumir os termos do debate atual em torno
das possíveis saídas para a crise poderíamos alinhar as diferentes propos-
tas em torno de duas escolas de pensamento econômico: a neoliberal e a
keynesiana.
A visão neoliberal, como vimos acima, atribui a crise “à ênfase
excessiva no consumo” e “ao desleixo scal”, ou seja, ao aumento do décit
público. É uma maneira estranha de ver a crise, pois é como se alguém
que saísse de casa para adquirir um carro ou uma geladeira estivesse con-
tribuindo para a queda do PIB. A respeito desse paradoxo há um famoso
debate entre o economista inglês Richard Kahn e Hayek, na Universidade
de Cambridge, relatado pela contemporânea de Keynes, Joan Robinson
no qual R. F. Kahn pergunta a Hayek, “Se eu sair amanhã e comprar um
casaco novo, isso vai aumentar o desemprego?”, ao que responde Hayek:
“Sim... mas seria necessária uma longa discussão matemática para explicar
o porquê”. (BLYTH, 2013, p. 144).
De acordo com esse modo peculiar de ver as coisas, a origem da
crise está, em parte, no aumento da oferta de crédito por parte do setor
bancário estatal (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES),
que levou a um aumento de consumo, sem o correspondente aumento da
oferta. Parte desse aumento de consumo teria sido atendida pelo aumento
das importações, tornadas mais baratas pela valorização da taxa de câmbio
provocada pelo aumento dos preços internacionais das commodities mine-
rais e agrícolas que o Brasil exporta. A esse fato, alguns críticos do gover-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
no atribuíram o nome de “populismo cambial”. Só não explicam como o
governo poderia evitar a valorização do câmbio, se eles próprios defendem
que uma das virtudes do modelo macroeconômico vitorioso que o governo
teria abandonado era exatamente o câmbio exível.
Os esforços do governo para manter o câmbio minimamente
competitivo, aumentando o volume de reservas a mais de US$375 bilhões
contribuem diretamente para o aumento da dívida pública, uma vez que a
diferença entre a remuneração dos títulos do Tesouro americano, adquiri-
dos com as reservas em dólar, e dos títulos do Tesouro brasileiro, que o go-
verno emite para comprar essas reservas impacta diretamente no aumento
do décit público. Se considerarmos, por exemplo, que as reservas estejam
aplicadas em título do Tesouro dos Estados Unidos com vencimento de 20
anos, que pagam em torno de 2% ao ano e o que o governo brasileiro emite
títulos indexados à taxa Selic, que está em 14,25% ao ano, para retirar de
circulação os reais equivalentes ao valor das reservas adquiridas, o custo
anual de manutenção dessas reservas seria de aproximadamente US$45
bilhões ou R$170 bilhões, quase 3% do PIB.
A outro motivo da crise, o “desleixo scal” e o “intervencionismo
exacerbado estariam, de um lado, associados à insistência do governo em
manter e expandir um estado de bem estar social “que não cabe no orça-
mento” e, de outro, às inúmeras inciativas tomadas pelo governo, seja na
forma de isenções scais, seja na forma de crédito subsidiado, com o ob-
jetivo de estimular o investimento produtivo privado e reduzir o custo de
produção das empresas domésticas, visando aumentar sua competitividade.
Os principais ícones desse “desleixo e intervencionismo” seriam,
além do já citado gasto previdenciário, os inúmeros programas sociais do
governo que listamos resumidamente abaixo conforme levantamento feito
por Nascimento (2013):
Bolsa Família: criado em 2003, é a principal ação do governo federal
para a redução da miséria. Atende atualmente mais de 13 milhões de
famílias com renda per capita inferior a R$140 por mês e/ou que tenham
em sua composição gestantes, crianças ou adolescentes de entre 0 e 17
anos. Para receber o benefício, é preciso atender a vários requisitos, entre
eles, manter os lhos na escola. O valor pago a cada grupo familiar varia
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

de R$70 a R$306, no máximo. A estimativa de custo desse programa
para os cofres públicos, em 2015, foi de R$27 bilhões, ou 0,5% do PIB.
Brasil Carinhoso: trata-se de um complemento ao Programa Bolsa
Família, visando reduzir a extrema pobreza entre grupos familiares
com crianças e adolescentes até 15 anos. As famílias beneciadas pelo
programa podem receber até R$235 mensais. Ao todo, 16,4 milhões
de brasileiros deveriam ser beneciados pela iniciativa.
Rede Cegonha: criado em 2011, a Rede Cegonha foi o primeiro gran-
de programa social criado pela presidenta Dilma Rousse. Consiste em
um sistema de monitoramento universal das gestantes para a preven-
ção da mortalidade materna no país. As gestantes têm direito a auxílio
nanceiro para o deslocamento às consultas de pré-natal e à unidade
de saúde onde será realizado o parto. O objetivo é ampliar o acesso de
atendimento obstétrico às mulheres de baixa renda, além de humanizar
a assistência oferecida nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS).
Minha Casa, Minha Vida: o programa foi criado em 2009, ainda du-
rante o governo Lula, com base no nanciamento habitacional urbano
e também rural. Há duas modalidades de atendimento: o primeiro
para famílias com renda até R$ 1,6 mil, enquanto o segundo contem-
pla grupos familiares com renda de até R$ 5 mil. A primeira etapa
do programa resultou na entrega de mais de 1 milhão de moradias. A
segunda fase, ainda mais ambiciosa, pretendia entregar mais 2 milhões
de casas e apartamentos até 2014.
Luz para Todos: o governo federal lançou o programa em novembro de
2003. O objetivo é levar energia elétrica a todos os domicílios rurais do
país. O programa foi desenvolvido pelo Ministério das Minas e Energia,
que na época era comandado por Dilma Rousse, hoje presidenta da
República. A meta da primeira fase de atender 10 milhões de pessoas
estava prevista para ser alcançada em 2008, mas só o foi no ano seguinte.
Em 2012, a União anunciou que mais 14,4 milhões de moradores rurais
de todo o Brasil já eram contemplados com eletricidade em suas casas.
Prouni: criado em 2004, o Programa Universidade para Todos (Prouni)
concede bolsas de estudo, parciais ou integrais, a estudantes de baixa
renda. São direcionadas a cursos de graduação e sequenciais, em ins-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
tituições privadas de educação superior. Em contrapartida, o governo
federal oferece isenção de alguns tributos às entidades de ensino que
participem do Programa. São contemplados estudantes da rede pública
de ensino ou que tenham estudado na rede particular como bolsistas
integrais. É preciso ainda ser de uma família com renda per capita fa-
miliar máxima de três salários mínimos e obter boas notas no Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM). Mais de 1 milhão de estudantes,
sendo 67% com bolsas integrais, já foram atendidos.
Pronatec: semelhante ao Prouni, o Programa Nacional de Acesso ao
Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) foi criado pelo Governo Federal
em 2011. O objetivo é ampliar a oferta de cursos de educação pros-
sional e tecnológica. Além da criação de cursos técnicos gratuitos, o
projeto também inclui a concessão de bolsas para estudantes matricu-
lados no Ensino Médio. As vagas gratuitas são destinadas a pessoas de
baixa renda, com prioridade para estudantes e trabalhadores.
Viver sem Limite: com o nome ocial de Plano Nacional dos Direitos
da Pessoa com Deciência, trata-se de um megaprojeto, que reúne
ações de 15 ministérios e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa
com Deciência (CONADE). Criado em 2011, tem como objetivo
melhorar a vida dos cerca de 45,6 milhões de brasileiros – segundo o
Censo 2010 – que possuem algum tipo de deciência. O Viver sem
Limite envolve todas as unidades da federação e previa um investimen-
to total de R$ 7,6 bilhões até 2014.
Saúde Não Tem Preço: Também criado em 2011, o programa oferece
acesso gratuito a medicamentos para hipertensão e diabetes, bene-
ciando 33 milhões de hipertensos e 7,5 milhões de diabéticos. De acor-
do com dados do governo federal, a iniciativa garante uma economia
de até 12% por mês para famílias de baixa renda.
Crack, é possível vencer: criado em 2011, é a maior e mais impor-
tante ação de combate ao consumo de drogas já criada no Brasil. O
programa é baseado em três ações: aumentar a oferta de tratamento
de saúde e atenção aos usuários, enfrentar o tráco de drogas e as or-
ganizações criminosas e ampliar atividades de prevenção por meio da
educação, informação e capacitação. O plano prevê o investimento de
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

R$3,92 bilhões com atuação articulada entre governo federal, estados
e municípios.
Além de ações de assistência a famílias carentes, o governo federal
lançou inúmeros planos e programas de incentivo ao ensino, pesquisa e
produção. Os principais são:
Plano Brasil Maior (PBM): criado em 2011, o Plano Brasil Maior reúne
um conjunto articulado de medidas de apoio à competitividade do setor
produtivo brasileiro. Esse conjunto de medidas visam prioritariamente
(i) redução dos custos dos fatores de produção e oferta de crédito para
investimentos; (ii) desenvolvimento das cadeias produtivas, indução do
desenvolvimento tecnológico e qualicação prossional; (iii) promoção
das exportações e defesa do mercado interno. Um dos seus principais
programas é a desoneração da folha de pagamento cuja renúncia scal
para o período 2011-2014 estava estimada em R$ 42 bilhões.
- Ciência Sem Fronteiras: criado em 2011, busca incentivar a pesquisa
cientíca brasileira. É um esforço conjunto dos Ministérios da Ciência,
Tecnologia e Inovação (MCTI) e do Ministério da Educação (MEC).
O objetivo era o de conceder, até 2015, 101 mil bolsas para promover
intercâmbio de estudos brasileiros em universidades do exterior.
Pronaf: o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf) tem com principal objetivo a destinação de nancia-
mentos a juros baixos e parcelas acessíveis, que estimulem a geração de
renda e o melhor uso da mão de obra familiar no meio rural.
O montante global de gastos sociais no orçamento do governo fe-
deral, em 2015, foi estimado em R$ 59,7 bilhões de reais, o que equivale 1%
do PIB. Somados os 7,5% do PIB correspondentes às transferências do regime
geral da previdência temos um gasto total com programas sociais de transferên-
cia de renda na ordem 8,5% do PIB, ou seja, um pouco menos do que o Brasil
gastou, em 2015, com os encargos da dívida que foi 8,64% do PIB.
É nesse ponto em que as visões neoliberal e keynesiana entram
em conito. De acordo com a visão neoliberal, o gasto público com um
estado de bem estar social que não cabe no orçamento levou a um crescen-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
te endividamento, que para ser nanciado precisa de juros mais altos para
atrair a poupança disponível que de outra forma poderia estar nanciando
o investimento privado. De acordo com essa visão, não faz sentido tentar
resolver a crise com mais gastos púbicos. Anal, você não pode resolver um
problema de dívida fazendo mais dívida. Seria como tentar apagar o fogo
com gasolina. Desse modo, a saída só poder ser uma: austeridade. Reduzir
os gastos privados e o gasto público, reduzir salários e aumentar a pou-
pança para aumentar a conança dos agentes econômicos e retomar assim
um novo ciclo de investimentos em bases mais sólidas, purgando todos os
excessos provocados pelo ciclo de crédito fácil e irresponsabilidade scal do
governo. Esta visão se baseia na ideia de que poupança gera investimento,
que gera empregos que, ao nal, gera consumo. A solução, de acordo com
esse modo de ver as coisas, não é começar pelo m, aumentando o consu-
mo, seja privado ou público. Ao contrário, a ideia é aumentar em primeiro
lugar a poupança por meio de uma política de austeridade. Austeridade
seria, assim, a política de cortar o orçamento do Estado para promover o
crescimento econômico. Segundo Blyth (2013, p. 2):
Austerity is a form of voluntary deation in which the economy adjusts
through the reduction of wages, prices, and public spending to restores
competitiveness, which is (supposedly) best achieved by cutting the states
budget, debts, and decits. Doing so, its advocates believe, will inspire
“business condence” since the government will neither be “crowding-out”
the market for investment by sucking up all the available capital through
the issuance of debt, nor adding the nation’s already “too big” debt.
Pode-se até pensar em cortar impostos, desde que seja dos mais
ricos, que têm maior propensão a poupar e não dos mais pobres que gastarão
com consumo cada centavo que tiverem a mais no bolso. Esta é a base da po-
lítica econômica do lado da oferta (suply-side economics) aplicada pelo gover-
no Reagan nos Estados Unidos e por Margareth atcher, na Inglaterra, na
virada neoliberal no nal dos anos 1970 e que a Alemanha tenta hoje impor
aos países em crise da União Europeia, sobretudo à Grécia. Essa política traz
vários problemas. O primeiro é que, como cou demonstrado amplamente
na Crise de 1930 e, mais recentemente, na crise europeia, é que ela não fun-
ciona. Como arma Blyth (2013, p. 3 – explicações do autor):
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

So PIIGS [Portugal, Irlanda, Itália, Grécia, Espanha] cut their budgets as
their economies shrank, their debt loads get bigger not smaller, and unsurpri-
singly, their interest payments shot up. Portuguese net debt to GDP increased
from 62 percent in 2006 to 108 percent in 2012, while the interest that pays
for Portugal’s ten-year bond went from 4.5 percent in May 2009 to 14,7
percent in January 2012. Ireland’s net debt-to-GDP ratio of 24.8 percent
in 2007 rose to 106.4 percent in 2012, while its ten-year bonds went from
4 percent in 2007 to peak of 14 percent in 2011. e poster child of the
Eurozone crisis and austerity policy, Greece saw its debt to GDP rise from
106 percent in 2007 to 170 percent in 2012 despite successive rounds of aus-
terity cuts and bondholders taking 75 percent loss on their holding in 2011.
Greeces ten-year bond currently pays 13 percent, down from a high of 18.5
percent in November 2012. Austerity clearly is not working if “not working”
means reducing the debt and promoting growth.
A impossibilidade de políticas de austeridade levarem à auto-
correção das crises econômicas já foi demonstrada pelo insuspeito Irving
Fisher, um dos mais importantes economistas monetários do período da
Depressão nos Estados Unidos. Segundo Blyth (2013, p. 150):
Irving Fisher, analyzed how, much to his dismay, depressions do in fact “ri-
ght themselves” owing to a phenomenon called debt deation. Simply put,
as the economy deates, debts increase as income shrink, making it harder
to pay o the more the economy craters. is, in turn, causes consumption
to shrink, which in the aggregate down further and makes the debt to be
paid back all the greater.
Mas se a história tem demonstrado que políticas de austeridade
são incapazes de garantir a retomada do crescimento nos países em crise,
por que a insistência nesse caminho por partes dos economistas neoliberais?
A resposta é simples: as políticas de austeridade são a única forma
de garantir o pagamento dos juros dos títulos da dívida pública em mãos
dos bancos e dos grandes investidores. Como arma Blyth (2013, p. 7):
Austerity is not just the price of saving the banks. Its the price that banks want
someone else to pay.
Se por políticas de austeridade se entende o corte do orçamen-
to do governo com objetivo de gerar superávits primários para garantir o
pagamento dos juros da dívida pública é evidente que as pessoas nas fai-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
xas inferiores de distribuição de renda que dependem mais dos gastos do
governo serão mais prejudicas do que aquelas situadas nas camadas mais
ricas, pois essas dependem menos dos serviços oferecidos pelo governo.
Além disso, essas camadas mais ricas são, de forma geral, credoras do go-
verno, pois detêm de forma direta ou indireta, via fundos de investimen-
tos, os títulos da dívida pública do governo que recebem os elevados juros
que continuarão a ser pagos em dia, graças aos cortes no gasto púbico.
Desse modo, se de um lado, perdem pouco com os cortes no orçamento,
pois dependem pouco dos serviços públicos, ganham muito com os juros
altos que remuneram os títulos da dívida pública de que são possuidoras.
No caso do Brasil esse debate pode ser resumido ao binômio juros
x salários e benefícios sociais. O governo gasta parte dos impostos que arre-
cada para pagar os juros para os detentores de títulos da dívida pública, em
geral os grandes bancos e grandes investidores que procuram refúgio nesses
papéis para valorização de seu capital em uma conjuntura em escasseiam
oportunidades de investimentos produtivos rentáveis. Outra parte dos im-
postos o governo gasta em programas de transferência de renda, sobretudo
a previdência social e os programas sociais (como o Bolsa família). O ajuste
precisa ser feito cortando em um desses lados: ou corta-se a renda do ca-
pital, ou corta-se a renda do trabalho. Esse é o dilema no qual está metido
o governo no momento atual: ao mesmo tempo em que mantém uma
das taxas de juros mais altas do mundo, vê-se na contingência de aprovar
reformas estruturais que apontam para redução dos direitos sociais.
O que podemos nos perguntar é como o governo caiu nessa ar-
madilha, uma “chave de braço” que lhe foi aplicada pelo capital nanceiro,
deixando-o praticamente sem saída. Teria sido possível evitar a crise? Se a
resposta for não, a questão é: o que o governo poderia ter feito e não fez
para que ela não fosse tão devastadora?
Quanto à primeira pergunta, penso que não. A economia brasileira
representa uma pequena fração da economia mundial; nossas exportações
representam algo em torno de 3% das exportações mundiais, se tanto. Se
nem a China com todo seu aparato político e econômico não conseguiu
evitar que a crise global derrubasse sua taxa de crescimento em pelo menos
3% ao ano, por que o Brasil, uma economia muito mais aberta que a da
China, pelo menos no que diz respeito ao uxo de capitais, não seria im-
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

pactado pela crise? País nenhum é uma ilha. Mesmo tendo uma fraca in-
serção nas cadeias globais de produção devido às características estruturais
de sua indústria, o Brasil é uma economia altamente internacionalizada.
Resta, nalmente, responder à segunda questão: o que poderia
ter feito e não se fez para evitar que as coisas chegassem ao ponto que
chegaram?
Para ser coerente com o que expusemos até aqui, não vejo outra
resposta que não seja não ter permitido que as taxas de juros alcançassem os
níveis que alcançaram. É estranho que em um quadro global de economia
estagnada ou em recessão, com taxas de juro zeradas ou negativas nos
Estados Unidos, União Europeia e no Japão, o Brasil continue a pagar
uma taxa de juros sobre os títulos da dívida pública de 14,5% ao ano.
Alegar que tais níveis de juros são necessários para o controle inacionário
não faz sentido em um quadro recessivo tão brutal como o brasileiro. Não
tivesse o Brasil de gastar mais de 8,5% do PIB com juros da dívida pública,
a situação scal seria muito menos dramática. Se a saída é a austeridade,
talvez devêssemos começar por aí: cortando os juros.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, R.; FRANCA, M. Adeus PME, olá Pnad Contínua. Valor Econômico,
06 abr. 2016, p. A10, 2016.
BLYTH, M. Austerity: the history of a dangerous idea. New York: Oxford
University Press, 2013.
BRASIL. Brasil 2003-2010, 2010. Disponível em: <http://www.balancodegoverno.
presidencia.gov.br/sintese-politica/sintese-politica-versao-impressa>. Acesso em: 07
abr. 2016.
BRESSER-PEREIRA, L.C.; MARCONI, N. Existe doença holandesa no Brasil?
In: BRESSER-PEREIRA, L.C. (Org.) Doença holandesa e industria. São Paulo:
FEV, 2010.
CAMPOS, E.; RIBEIRO, A. Décit primário do setor público atinge 2,11% do
PIB em fevereiro. Valor Econômico. 31 mar. 2016, p. A2, 2016.
CHANG, H. Economia: modo de usar, um guia prático dos principais conceitos
econômicos. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2015.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
EL PAIS. Brasil lidera a redução da pobreza extrema, segundo o Banco
Mundial. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/23/politi-
ca/1429790575_591974.html>. Acesso em: 06 abr. 2016.
GIAMBIAGI, F.; PINHEIRO, A. C. Além da Euforia: riscos e lacunas do modelo
brasileiro de desenvolvimento. São Paulo: Campus, 2012.
GIAMBIAGI, F.; SCHWARTSMAN, A. Complacência: entenda por que o Brasil
cresce menos do que pode. São Paulo: Campus, 2014.
NASCIMENTO, F. Quais são os programas sociais vigentes no Brasil?, 2013.
Disponível em: <http://www.ehow.com.br/quais-programas-sociais-vigentes-bra-
sil-slide-show_41113/#pg=5>. Acesso em: 08 abr. 2016.
OREIRO, J. L. Em busca de um novo modelo macroeconômico. Valor Econômico,
07 fev. 2013. Disponível em: <https://jlcoreiro.wordpress.com/tag/tripe-macroe-
conomico/>. Acesso em: 07 abr. 2016.
REZENDE, F. C. e nature of government nance in Brazil. International
Journal of Political Economy. v. 38. n. 1, Spring 2009, p. 81-104.
RODRIK, D. Economic Rules: the rights and wrongs of the dismal science. New
York: W.W. Norton & Company, 2015.
SEABRA, L.; BELLOTO, A. Stuhlberger: no fundo do peço tem um alçapão.
Valor Econômico, 15 fev. 2016, p. D1.
THE ECONOMIST. Brazil takes o. nov. 12th 200a. Dsiponível em:<http://
www.economist.com/node/14845197>. Acesso em:23 set.2016.
ZHIMING, X.; YANFEI, W. Economy stabilizing, data show. China Daily, 16
abr. 2014.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)


A INSERÇÃO INTERNACIONAL DO BRASIL EM
FACE CONJUNTURA ECONÔMICA E POLÍTICA DA
AMÉRICA LATINA: UMA BREVE AVALIAÇÃO
Rodrigo Duarte Fernandes dos PASSOS
1 INTRODUÇÃO
O objetivo desta reexão é alcançar uma breve e introdutória
resposta à seguinte indagação: como situar o Brasil internacionalmente em
face à conjuntura política e econômica da América Latina? A hipótese a
ser argumentada ao longo deste texto sugere que o Brasil está inserido
em limites conjunturais especícos do movimento de “tradução” de longo
alcance da hegemonia norte-americana, com todas as conseqüências que
isto envolve do ponto de vista da relação de forças envolvendo os diferentes
grupos e estratos sociais no plano nacional e internacional, além dos nexos
desiguais e combinados com perspectiva da dialética da paz e da guerra no
além-fronteiras.
Tal hipótese implica em aprofundar a compreensão das categorias
de hegemonia e “tradução”, relação de forças além de outras premissas que
auxiliam o seu esclarecimento que serão também explicitadas ao longo da
minha argumentação, a saber, os já mencionados nexos desiguais e combi-
nados e a dialética da paz e da guerra.
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p7-14
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
109-120
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

As premissas referidas são listadas a seguir:
Uma primeira remete à dialética de guerra e paz de um mundo
marcado pela observação armada em termos da signicativa existência de
armas convencionais e nucleares, em conformidade com a elaboração e
atualização histórica a partir das teses de um clássico da guerra, o general
prussiano Carl von Clausewitz (1984).
Uma segunda remete a uma formulação presente na obra de Marx
(MARX e ENGELS, 2005) e naquelas de vários outros cânones do marxismo,
entre os quais Leon Trotsky (1977). O líder revolucionário russo a chamou
de desenvolvimento desigual e combinado, ponto que incide sobre todas as
dimensões da vida social, aí inclusas as questões nacionais e internacionais.
A terceira premissa aponta para a perspectiva gramsciana das ca-
tegorias de hegemonia em suas várias possibilidades como concretização
histórica completa ou incompleta, além das categorias de relação de força
e “tradução”. A análise histórica e termos das relações de força implicam
na necessidade de uma distinção entre os fenômenos de curto alcance,
conjunturais, e os de longo alcance, orgânicos, conforme a própria termi-
nologia de Antonio Gramsci (1975).
Todas essas premissas que estão por trás da hipótese central pos-
suem vínculos entre si e não se constituem em momentos estanques, com-
partimentalizados do argumento. São integrados entre si de forma orgâ-
nica, sem querer com isso sugerir qualquer justaposição de categorias de
forma eclética entre tais autores. Pretende-se apenas aproximar formula-
ções semelhantes, que possuem elementos comuns entre si, sem considerar
equivocadamente que estes autores possuam aparatos teóricos totalmen-
te idênticos. A separação de caráter meramente metodológico entre eles
orienta os diferentes momentos de exposição do texto que seguirá a ordem
da enunciação das premissas.
2 A DIALÉTICA DA PAZ E DA GUERRA A OBSERVAÇÃO ARMADA EM UM MUNDO
DE ARMAS CONVENCIONAIS E NUCLEARES: O BRASIL E SEU PODER MILITAR
Clausewitz (1984), general prussiano que legou Da Guerra, uma
das mais importantes obras clássicas sobre o tema do seu título, sustentava

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
que a despeito das enormes diferenças entre paz e guerra, elas têm em co-
mum a política. No que tange à política, não há uma descontinuidade ou
continuidade absoluta sobre onde começa e termina a guerra. Por outras
palavras, não há uma quantidade ou parâmetro que envolva o meio pecu-
liar ao fenômeno militar, a violência, que distinga a guerra da paz. Tanto a
violência extremada e encarniçada dos diferentes conitos em distintos pe-
ríodos históricos, quanto a observação armada numa situação de aparente
paz podem congurar a ocorrência da guerra. Em um mundo com arsenais
convencionais e nucleares de maior ou menor envergadura, a dialética paz
e guerra nunca deixou de ser relevante como categoria analítica, sempre
com a maior ressalva possível das particularidades históricas em contexto e
período mais amplo. Anal, ainda conforme o dizer de Clausewitz, a guer-
ra é um verdadeiro camaleão, um fenômeno histórico que se adapta para
cada particularidade de sua manifestação (CLAUSEWITZ, 1984, p. 89).
Insere-se tal introdução para avaliar o Brasil na conjuntura latino-
-americana em termos da consideração de suas forças armadas, seu poder
militar e sua inserção em uma eventual consideração de poder de uma
potência de nível médio no plano regional.
Pode-se perguntar sobre o porquê de avaliar o Brasil em termos de
seu poder militar e suas forças armadas em uma reexão conjuntural sobre
a América Latina. Foi o já mencionado general Clausewitz que formulou
sobre o entendimento das questões relacionadas à guerra e ao poder militar
como parte da compreensão das questões históricas, econômicas e sociais
das distintas sociedades. Não poderia ser diferente no caso brasileiro.
O desmonte do Estado brasileiro em setores vitais se coaduna di-
reta e indiretamente com a lógica hegemônica neoliberal e historicamente
pouco substantiva do nosso poder militar e nossas Forças Armadas.
Desde o regime militar, nossas únicas duas tropas prossionais e
de pronto emprego são as mesmas: a Brigada Paraquedista e os Fuzileiros
Navais. Isto não se modicou na conjuntura atual, relacionada à redemo-
cratização em 1985 e a subsequente criação do Ministério da Defesa. Tais
novidades não trouxeram o esperado m do serviço militar obrigatório e
a prossionalização das Forças Armadas como um salto de qualidade que
poderia reestruturar seu perl.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Antes, pelo contrário, a assim chamada “opinião pública” – co-
movida pelo trágico aumento da criminalidade e violência – sucumbe ao
canto da sereia” das doutrinas militares norte-americanas divulgadas em
suas academias que oferecem cursos para ociais estrangeiros sobre a ne-
cessidade das Forças Armadas de outros países se prepararem para as novas
ameaças do pós-Guerra Fria identicadas como catástrofes ambientais e
humanitárias, narcotráco, crime em geral e combate ao terrorismo. Por
outras palavras e sem que os discursos ociais assim se expressem, “reade-
quar” as Forças Armadas para tais objetivos subentende que seu escopo
e missão sejam rebaixados ao papel de polícia, dado que todas as “amea-
ças” elencadas são competências das polícias e das demais forças públicas
1
.
Incluir as Forças Armadas em tais missões é a senha para rebaixar e anular
a justicativa de sua modernização e reaparelhamento de forma mais subs-
tantiva, circunscrevendo sua atuação como polícia e força assistencialista,
ponto que já é visível não somente nas intervenções ocorridas nos morros
e localidades assoladas pelo crime no Rio de Janeiro e em outras iniciativas
relacionadas a políticas públicas, como também na atuação como “força de
paz” no Haiti para atender anseio da potência hegemônica de lidar com
conitos de menor envergadura, apelo e baixo uso de poder coercitivo
2
.
Tudo isto é muito conveniente à hegemonia norte-americana: uma super-
potência com enorme superioridade militar convencional e nuclear, com
uma gigantesca e díspar superioridade em relação aos demais Estados.
A constatação do sucateamento das nossas Forças Armadas e de
nosso poder militar convencional é parte óbvia do quadro desenhado aci-
ma. Não há estrutura adequada sequer para a sustentação em níveis subs-
tantivos do serviço militar obrigatório. O programa de compra de novos
caças para a Força Aérea parece ter chegado aos seus momentos nais com
a aquisição dos suecos Gripen, mas se arrasta desde o governo Fernando
Henrique Cardoso, com inúmeros adiamentos. O nosso porta-aviões, o
“São Paulo”, é um vaso de guerra adquirido da França e de fabricação dos
anos 1950. Tem seu nome original “Foch” e cará inoperante muito em
breve. O projeto de construção pela Marinha de um submarino nuclear se
arrasta desde os anos 1970 com um orçamento cada vez mais minguado e
1
Sobre o caráter não militar do terrorismo, consultar HOWARD (2002) e PASSOS (2003).
2
Uma análise mais aprofundada sobre a força de paz brasileira no Haiti e papel da maioria das forças de paz da
ONU e outras organizações internacionais é abordada em PASSOS (2015).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
não parece ter um desfecho favorável no horizonte. Registre-se ainda que o
Brasil renunciou formalmente à produção de sua arma atômica em 1998,
com a adesão ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear, resignando-se e
submetendo-se às discriminatórias e constrangedoras cláusulas da Agência
Internacional de Energia Atômica que favorecem única e exclusivamente
à ótica das potências nucleares publicamente reconhecidas dos anos 1960,
período em que o referido tratado foi elaborado e estabelecido.
A reexão do Brasil como potência média ou regional latino-
-americana ou ainda sul-americana não se separa das questões relacionadas
à política e à diplomacia, ainda resgatando os ensinamentos de Clausewitz
sobre o nexo entre guerra e paz e guerra e política. Mais adiante será explo-
rado neste artigo o nexo desta avaliação com o pleito de reconhecimento do
papel do Brasil no âmbito global como líder e país relevante. Para concluir
esta breve linha de raciocínio sobre o poder militar brasileiro, enuncia-se
trecho bastante a propósito de uma reexão do Professor Oliveiros Silva
Ferreira (s.d.), sem jamais querer sugerir que o investimento em educação
no Brasil seja menos relevante que o congênere nas Forças Armadas e que
o Brasil deva sustentar uma posição expansionista e belicista. O trecho
se insere na lógica da avaliação da hegemonia neoliberal norte-americana
que se desdobra, entre outros pontos, no desmonte de setores relevantes
do Estado brasileiro, que inclui nossas universidades e escolas públicas.
Porém, sem Forças Armadas com substantivo poder militar não há Estado
que faça jus a tal condição, como sustentou Oliveiros Silva Ferreira (s.d.):
Se soubéssemos um pouco de história, saberíamos também que o
General de Gaulle, em Argel, em 1943, perguntou a um assessor seu,
um intelectual sem dúvida, por onde se deveria começar a reconstru-
ção do Estado francês. Ao assessor, que respondeu “pela educação”, o
General retrucou: “Pelo Exército”!
3 O DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E COMBINADO NOS PLANOS NACIONAL E
INTERNACIONAL: VÁRIOS ASPECTOS DA CONJUNTURA BRASILEIRA DIANTE DA
AMÉRICA LATINA
O senso comum da assim chamada “globalização” homogeneíza
todos os fenômenos nacionais e internacionais como se zessem parte de
um único e inevitável processo de encadeamento dos fenômenos contem-
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

porâneos destinados a um nivelamento de cunho liberal. Tal avaliação não
poderia ser mais simplista e sintomática de uma avaliação desprovida das
diferentes temporalidades, dos diversos ritmos de transformação de todas
as dimensões de produção da vida em todo o sistema internacional e no
interior de seus respectivos Estados, em perspectiva de totalidade.
Este é o sentido historicista da categoria de desenvolvimento
desigual e combinado de Leon Trotsky (1977) ao enunciar os diferentes
ritmos de transformação da vida na sua análise das condições históricas
relacionadas à Revolução Russa de outubro de 1917. Em outras palavras,
a enunciação de tal categoria não possui uma lógica imanente, aplicável
somente ao contexto especíco no qual foi empregada, mas sim nas dife-
rentes possibilidades de análise histórica.
Uma eventual avaliação de uma posição privilegiada de liderança
e proeminência econômica e política do Brasil na América Latina é, muitas
vezes, enviesada de forma que se ignore tais ritmos diferentes que a catego-
ria de desenvolvimento desigual e combinado enseja. Se o país está entre
as doze principais economias do mundo, algo muito desigual acompanha
tal posicionamento.
Muito mais amplo que uma perspectiva de expansão dos interesses
econômicos do grande capital das empresas ditas brasileiras (uma vez que se
associam ao grande capital internacional de forma direta e indireta, não mais
se congurando historicamente há algum tempo, por exemplo, uma burgue-
sia nacional) no âmbito latino-americano, o crescimento dos uxos econô-
micos brasileiros com vizinhos e países próximos assimetricamente despro-
vidos de pujança econômica acoberta a crescente fragilidade da economia
nacional, cada vez mais desindustrializada, importadora de produtos indus-
trializados principalmente chineses, e exportadora de commodities agrícolas.
A suposta magnitude e elevação da condição econômica brasileira a
um patamar superior depois da crise dos principais Estados da União Europeia
não condiz com a ausência da superação dos graves problemas sociais no que
diz respeito à enorme concentração fundiária, enorme concentração de renda,
gigantescas discrepâncias de desenvolvimento regional e péssimos indicadores
sociais e, sua piora recente, para um país que se proclamava no âmbito do dis-
curso social como sem pobreza e como pátria educadora.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
A manutenção de diretrizes macroeconômicas de cunho monetari-
zante e neoliberal desde o advento do Plano Real é um dado jamais enfren-
tado por aqueles que se apressam em avaliações relacionadas a problemas
históricos e crônicos – como a corrupção governamental amplamente difun-
dida –, mas que não explicam isoladamente a magnitude das diculdades
econômicas brasileiras, relacionadas também à proeminência absoluta do ca-
pital nanceiro e a uma alta política de juros, que repercute sobre o aumento
da dívida pública e crescente a necessidade de recursos para pagá-las.
Concomitantemente, registre-se ainda que de modo difuso e não
uniforme, o crescimento do inconformismo de vários setores e frações de
classe subalternas frente a tudo isto. O ponto culminante de tal inconfor-
mismo foram as manifestações de junho de 2013. Tal como enunciado
na tese do desenvolvimento desigual e combinado, a grande mobilização
então constatada não se traduziu em uma ruptura mais substantiva, sendo
Dilma Roussef reconduzida a mais um mandato presidencial.
Todos os pontos arrolados mostram um descompasso típico de
todos os processos conjunturais e históricos. No caso brasileiro, isso ca
evidente: os nossos indicadores sociais e econômicos não acompanham a
nossa proeminência econômica e política no âmbito latino-americano e
uma suposta posição de destaque no cenário internacional como locus de
poder médio ou regional, ainda que tudo isto possa ser passível de contun-
dentes ressalvas e críticas.
Tudo isto enseja um questionamento que nos leva ao último pon-
to relacionado às premissas anteriormente enunciadas: todos os pontos que
constituem o objeto deste texto se constituem em problemas de caráter
conjuntural – de breve e pontual duração – ou de caráter orgânico, de
perspectiva histórica de maior duração? Isto nos leva a elementos relevantes
para avaliação sob uma ótica gramsciana, foco do nosso próximo tópico.
4 HEGEMONIA, TRADUÇÃO E RELAÇÃO DE FORÇAS
A hegemonia no sentido gramsciano (GRAMSCI, 1975), como
categoria analítica, envolve uma avaliação de uma verdadeira concepção de
mundo dirigente através da sociedade civil – o conjunto estrutural das re-
lações sociais – de uma classe, ou fração de classe ou grupo, ltrada através
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

das estruturas sociais aspectos da cultura, ideologia, ética, política, econo-
mia, gênero, etnicidade, dentre vários outros aspectos em diversos escopos
e alcances com o predomínio da força sobre o consenso. Ela encerra formas
completas e incompletas situadas historicamente que conferem enorme
complexidade à sua compreensão em termos de uma totalidade social.
Ressalte-se que hegemonia não é sinônimo de dominação, unanimidade,
homegeneidade, coesão. Toda ação e conito político são atravessados por
tal noção, não sendo cabível a alusão a uma “contra-hegemonia” expres-
são jamais enunciada por Gramsci tampouco discutida por ele em termos
de um dos seus recursos metodológicos. Neste caso especíco, refere-se à
tradução”, a ressignicação histórica, social e cultural de conceitos e cate-
gorias de uma forma não mecânica. O ponto aqui é justamente a avaliação
de uma pertinência histórica de ressignicação da categoria de hegemonia.
A ressignicação em questão feita por Gramsci na sua abordagem
de hegemonia remete a uma forma incompleta na qual predomina a força,
e exercida não através da sociedade civil e sim pelo Estado: a revolução
passiva. Trata-se de uma “revolução sem revolução”, um processo de mo-
dernização e transformação conservadora que, por vezes, coopta parte dos
grupos e classes subalternos sem dar-lhes voz e poder, atendendo parcial-
mente suas demandas. Ocorrem em contexto de guerras, revoluções, subs-
tituição e rearranjo das classes dominantes antigas por novas. Trata-se de
uma categoria também de enorme complexidade, utilizada por Gramsci na
análise de diferentes contextos históricos. De modo bastante embrionário
e assistemático, Gramsci sugeriu que tal categoria poderia ser o mote de
uma análise da maioria dos processos históricos após a Revolução Francesa,
bem como a formação de novos Estados após sua libertação como colônias.
Desdobrando desta tese geral, a nascente e incompleta hegemonia
norte-americana nos 1920 e 1930 analisada por Gramsci se constitui uma
revolução passiva. O seu conteúdo se desdobra do fordismo muito mais
do que um modo de gestão, mas um verdadeiro modo de vida pautado
pela produção e consumo em massa, disciplina da vida social para tal, bens
como salários mais elevados à custa de menor poder sindical, maior produ-
tividade, um papel submisso e rebaixado da mulher. Estas diretrizes pauta-
ram inúmeros aspectos das relações sociais e do poder norte-americano no
exterior, sendo recepcionadas e traduzidas de diversas formas em distintos

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Estados e regiões do globo à medida que a hegemonia norte-americana
tomava mais vulto. Anal, de modo semelhante ao raciocínio de Trotsky
sobre o desenvolvimento desigual e combinado, Gramsci sustentou que
o capitalismo é um fenômeno econômico histórico mundial e seu desen-
volvimento desigual signica que as nações individualmente não podem
estar no mesmo nível de desenvolvimento econômico ao mesmo tempo
(GRAMSCI, 1919 apud MORTON, 2007, p. 1, tradução do autor)
3
.
A tradução da hegemonia norte-americana para a sociedade
brasileira e demais sociedades da América Latina também é um ponto
a ser considerado no processo histórico dos séculos XX e XXI. Deve ser
acrescentado a tal processo de hegemonia incompleta a sua manifestação
como processo histórico nas sociedades latino-americanas, com maiores e
menores diferenças, talvez tendo como um de seus núcleos comuns (mas
não necessariamente exclusivos) os recentes processos dos governos ditos
de “esquerda” e “centro-esquerda” em diferentes países, que promoveram
reformas inseridas em contexto limitado, essencialmente conservador. As
gestões de Dilma e principalmente Lula estariam inseridas nesta lógica,
com uma ênfase em algumas concessões sociais em termos de ampliação
de crédito (no inicio dos anos Lula, beneciando somente em última ins-
tância o capital nanceiro), um menor arrocho salarial (embora signica-
tivamente existente), alguns pequenos investimentos públicos e cooptação
e passivização de alguns setores populares sem dar-lhes poder e voz. Tal
análise se inseriria naquilo que Adam Morton (2011) e Giorgio Baratta
(2004) chamaram de “revolução passiva permanente” a partir da sugestão
de Gramsci de que tal categoria poderia vir a ser uma chave recorrente
de análise histórica. Todos estes pontos de análise pouco desenvolvidos,
inclusive a própria crise mundial que afeta o Brasil e a América Latina,
apontam para aspectos não conjunturais e sim orgânicos, de longa duração
dos processos históricos que tangenciam a complexa categoria de hegemo-
nia gramsciana. A hegemonia como uma categoria histórica, contraditória
e repleta de possibilidades, enseja distinguir um processo conjuntural (de
maior brevidade) e um processo orgânico. Aponta para a necessidade de
fazer uma completa análise da relação de forças das classes e de todo o pro-
cesso histórico em que possamos distinguir como os embates hegemônicos
3
Capitalism is a world historical phenomenon and its uneven development means that individual nations cannot
be at the same level of economic development at the same time”. (GRAMSCI, 1919 apud MORTON, 2007, p. 1).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

estão congurados. No caso brasileiro, há vários indícios de um processo
hegemônico incompleto dado o caráter histórico e fortemente autoritário,
o forte papel do Estado e das frações de classes que dão a diretiva no seu
aparato no processo histórico – uma forte associação consciente entre se-
tores do imperialismo, das novas e velhas classes dominantes, conforme já
demonstrou Florestan Fernandes – para a modernização de cunho conser-
vador pela qual o país passou em distintos períodos (2006).
Sob pena de abraçarmos um fetiche sobre as conquistas e ganhos
do Brasil e da América Latina nos últimos anos de suposta “esquerda” e de
um pretenso papel de liderança e potência média e regional do Brasil neste
processo, sugere-se que há a necessidade de uma análise menos apressada
sobre estes aspectos. Não há espaço e tempo nesta reexão para isto, mas
podem-se apontar alguns caminhos iniciais, que é o escopo deste ensaio.
Na perspectiva da política exterior brasileira com relação ao mun-
do e à América Latina, ressalvas precisam ser feitas àquelas considerações
sobre o papel de liderança e hegemonia brasileiras. Uma potência não é re-
conhecida só nas cartas diplomáticas, já advertia Gramsci (1975), mas sim
pela sua liderança e poder preferencialmente sem depender de aliados nas
situações de guerra. Gramsci, como leitor de vários autores que travaram
contato com a obra de Clausewitz, entendeu o sentido por vezes exten-
sivo de aspectos da guerra à política. Neste sentido, diplomacia e guerra
conectam-se em alguns pontos, inclusive para saber os limites do que é
efetivamente uma potência. O fetiche do Brasil como candidato natural
a uma vaga permanente do Conselho de Segurança da ONU esbarra em
pontos importantes. A saber, a ausência de uma liderança credenciada para
tal, já que nem a Argentina legitima tal anseio. O Brasil não é uma potên-
cia militar, conforme já foi explanado acima. Nossa posição econômica só
nos coloca em relativa vantagem na América Latina, mas parece cada vez
mais apontar para uma clássica posição de fornecedor de matérias-primas
e importador de manufaturas, dada a nossa crescente desindustrialização
presente no processo histórico mais recente.
Feitas tais ponderações, passar-se-á às considerações nais.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se demonstrar ao longo deste ensaio alguns elementos
embrionários da inserção conjuntural e histórica brasileira na América
Latina em termos da dialética guerra e paz, do desenvolvimento desigual e
combinado e da acepção gramsciana da hegemonia.
É sabido que os vários pontos aqui enunciados demandam aná-
lises e demonstrações mais aprofundadas, até para que se possa, inclusive,
saber do valor heurístico da categoria de hegemonia na acepção gramsciana
em suas formas completas e incompletas. Mas deve-se ir além também com
as formulações inspiradas em Clausewitz e Trosky. Para concluir, no sen-
tido de ressaltar a importância da continuidade da crítica, do debate e da
investigação, cito o lósofo eodor Adorno em carta a Walter Benjamim:
“[...] nossos melhores pensamentos são aqueles que nunca conseguimos
pensar por inteiro.” (ADORNO apud GATTI, 2008, p. 95).
REFERÊNCIAS
BARATTA, G. As rosas e os cadernos: o pensamento dialógico de Antonio Gramsci.
Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
CLAUSEWITZ, C. On war. Princeton: Princeton University, 1984.
FERREIRA, O. S. Ao leitor, s.d. Disponível em: <
www.heitordepaola.com/impri-
mir_materia.asp?id_materia=1558>. Acesso em 05 mar. 2016.
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação socioló-
gica, São Paulo: Globo, 2006.
GATTI, L. F. eodor W. Adorno: indústria cultural e crítica da cultura. In:
NOBRE, M. (Org.). Curso Livre de Teoria Crítica, Campinas: Papirus, 2008, pp.
73-97.
GRAMSCI, A. Quaderni del darcere. Torino: Einaudi, 1975.
HOWARD, M. What´s in a name? how to ght terrorism. Foreign Aairs, v. 81,
n.1, 2002, p. 8-13.
MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo, 2005.
MORTON, A. D. Revolution and state in modern Mexico: the political economy
of uneven development, Plymouth: Rowman & Littleeld, 2011.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

______. Unravelling Gramsci: hegemony and passive revolution in the global po-
litical economy. London: Pluto, 2007.
PASSOS, R. D. F. As missões de paz sob a ótica de uma nova divisão internacio-
nal do trabalho na área da segurança. Brazilian Journal of International Relations,
v. 4, 2015, p. 236-272.
______. O Império da lei ou a lei do império? guerra versus legalidade na nova
ordem mundial. Prisma Jurídico, v. 2, 2003, p. 85-104.
TROTSKY, L. A história da Revolução Russa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

HECHOS Y DESAFÍOS DE LA REVOLUCIÓN
BOLIVARIANA: UNA MIRADA JURÍDICO-POLÍTICA
Jair PINHEIRO
Se sostiene en éste ensayo la hipótesis de que los consejos
comunales son embriones de un Estado de nuevo tipo, cuyos rasgos
fundamentales constituyen la sustitución de la gura de la soberanía
representada por la soberanía popular ejercida directamente y, por ende,
de la gura abstracta del sujeto de derecho de la ideología jurídica burguesa
por la gura concreta del individuo productor.
Esto supone un punto de arranque, un parangón que me permita
decir que los consejos comunales son embriones de un Estado de nuevo
tipo. Este parangón es el Estado capitalista, cuya matriz es la misma en
todos los países donde se lo encuentra, aunque se lo presente en grados
diferentes de desarrollo en cada uno de ellos según la lucha política de clases
que allí se libra entre las clases dominantes pre-capitalistas y capitalistas y
entre el bloque en el poder conformado por éstas y las clases trabajadoras.
Esta matriz consiste de dos elementos típicos: el derecho igualitario y
los criterios de organización del aparato del Estado, es decir, el derecho
igualitario que reconoce a los productores directos (no propietarios de
los medios de producción) como sujetos de derecho y la organización del
aparato de Estado según criterios burocráticos de competencia, jerarquía y
racionalidad técnica, lo cual permite el ingreso de individuos pertenecientes
a las clases dominadas a las funciones administrativas del Estado.
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
121-134
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Llamamos capitalista a éste Estado porque él, y sólo él, permite
el establecimiento de relaciones sociales de producción capitalistas y su
reproducción, es decir, una relación social de producción basada en la venta
libre de la fuerza de trabajo al capitalista por el trabajador; relación cuyo
objeto es la ganancia para el capitalista y la supervivencia para el trabajador.
Históricamente, para que esto ocurriera fue necesaria la separación de los
productores directos de los medios de producción, pues el reconocimiento
de los productores directos como sujetos de derecho (capacidad de actos
de voluntad) sin apartarlos de los medios de producción los volverían
propietarios. Esta es la libertad jurídica, nadie está obligado a nada sino en
virtud de la ley, es también ésta libertad negativa el mecanismo que oculta
al trabajador su explotación o, si no le oculta, le infunde la ilusión de que
el Estado puede establecer un balance entre capital y trabajo a través de la
aplicación justa del derecho.
Sea lo que sea, la relación matricial que resultó históricamente de
éste Estado con los individuos es la relación del ciudadano con el Estado,
matriz que hace del Estado un proveedor de servicios (jurídico-políticos,
económicos y/o sociales) correspondientes de las modalidades particulares
de su función general de cohesión social (POULANTZAS, 1968). Así, el
trabajador es ciudadano público a cada elección, luego de las elecciones
él vuelve a su casa en tanto que ciudadano privado, consumidor de los
servicios del Estado y si a él no le gustaron los servicios proveídos por
los funcionarios electos, puede elegir a otros en las elecciones siguientes.
Esta es la democracia burguesa, los trabajadores pueden participar en las
elecciones de los funcionarios que van a administrar el Estado, pero no
participar del proceso decisorio, incluso porque la gestión de la fuerza de
trabajo y de la moneda (distribución de la riqueza social) (BRUNHOFF,
1985) forma la mayor parte de los asuntos del Estado y, por consiguiente, es
la clave de la dominación del trabajo por el capital mediada por el Estado.
A diferencia de los trabajadores, los capitalistas (a quienes también
les sirven los servicios del Estado) son ciudadanos políticos todos los días,
participan de foros ociales y extraociales para decidir sobre las políticas
de Estado, para ellos la fecha de las elecciones es sólo el día enmarcado en
el calendario para elegir el funcionario que va a coordinar la formulación

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
de éstas políticas. Si a ellos no les gustaron los servicios prestados por el
funcionario, lo despiden por medios legales o ilegales.
Sin embargo, lo que podría desenmascarar el carácter clasista del
Estado resulta natural a la mirada del pueblo, pues si el capitalista posee
el capital, qué se le asigne también una función de liderazgo en la política
porque la prosperidad de sus negocios brinda a todos mejores condiciones.
Cabe, entonces, un interrogante: ¿por qué se les parece natural al trabajador
el liderazgo del capitalista?
Una cita de Marx, quien dijo que los hombres forman consciencia
de su mundo objetivo por la ideología sirve aquí como contestación, es decir,
consolidada la revolución burguesa, tras décadas de luchas en contra las
potencias pre-capitalistas, cuando el derecho burgués de venta libre de fuerza
de trabajo se les reveló a los trabajadores una arma ideológica poderosa, les
pareció posible sacar provecho de la nueva situación a condición del Estado
garantizar la aplicación justa del derecho igualitario. De ahí que las luchas de
los trabajadores bajo el capitalismo temprano se volvieron luchas por derecho,
el que pronto mostró sus límites e impulsó la lucha por el socialismo, aunque
ésta lucha siga ritmos distintos según la historia de cada pueblo.
Contrario al que he dicho hasta aquí, en Venezuela los consejos
comunales visan a concretar lo que la Constitución Bolivariana de la
República de Venezuela (artículos 5
1
, 62, 70 y 184) denió como democracia
participativa protagónica, en la cual los trabajadores hacen cargo de su
destino. Estaba claro desde el principio que esta concepción de democracia
exigía también, mejor dicho, presuponía el cambio de las relaciones sociales
de producción, es decir, para que la participación de hecho sea protagónica,
los instrumentos económicos de reproducción de la sociedad no pueden
quedarse en las manos de unos pocos, como en la sociedad capitalista.
De ahí el conjunto de leyes que conforman el Estado comunal y
que tienen como su base elemental e imprescindible los consejos comunales.
Este conjunto de leyes diseñan órganos y procedimientos que suponen la
transferencia de poder del Estado capitalista al Estado comunal a la vez la
1
Artículo 5. La soberanía reside intransferiblemente en el pueblo, quien la ejerce directamente en la forma pre-
vista en esta Constitución y en la ley, e indirectamente, mediante el sufragio, por los órganos que ejercen el Poder
Público. Los órganos del Estado emana de la soberanía popular y a ella está sometidos.” Ésta cita integral es de
gran importancia, pues además de ser el principio fundamental de la Constitución Bolivariana, que la estructura
toda ella, los críticos del régimen lo ignoran y tratan de criticarlo en vista de la constitución liberal que conciben.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

asignación y/o transferencia de los medios de producción a la comunidad
2
.
Esta transferencia de poder decisorio y medios de producción constituye
el cambio de la forma social, el paso del modo de producción capitalista
al socialismo; al n y al cabo la sustitución de las relaciones sociales de
producción capitalista, basadas en la venta de la fuerza de trabajo, por
relaciones sociales de producción socialistas basadas en el trabajo colectivo
y comunitario (en colaboración, no en competencia) para la satisfacción
de las necesidades sociales
3
.
Esta concepción requiere de la comunidad la toma a sus manos
de la responsabilidad de desarrollarse, lo que supone el desarrollo de
sus propios recursos y la coordinación de éste desarrollo con medios
de producción que están más allá de la comunidad, pero que también
tengan ellos la comprensión de que forman parte del Estado comunal
4
, la
comunidad en sentido más amplio. Con ello, los consejos de trabajadores
y la gerencia de economía social de las empresas estatales se vuelven parte
complementaria y necesaria de las comunas para que su esfuerzo productivo
tenga una vinculación económica efectiva y ecaz con los medios de mayor
envergadura a nivel estadal o nacional.
Además de eso, esa complementariedad entre comunas y consejos
de trabajadores tiene una importancia política y cultural muy grande, pues a
raíz de la evolución de la economía capitalista, que ahorra y terceriza fuerza
de trabajo, hay una población de trabajadores en los barrios que sostienen
un estilo de vida aislado por desempleo permanente o empleo precario,
lo cual vuelve más difícil su experiencia organizativa. La organización de
esta población de trabajadores precarios y/o desempleados permanentes
constituye uno de los más grandes desafíos a la izquierda, pues la paradoja
es que esta franja marginada de la sociedad capitalista vive aislada en
cuanto a toda forma asociativa, lo cual representa la forma más acabada del
individualismo liberal, la mónada encerrada sobre sí misma que sostiene
con el exterior sólo relaciones instrumentales conforme a sus intereses
particulares, manteniendo con intereses de otros individuos particulares
sólo conexión funcional (jamás solidaria).
2
Artículos 1, 2, 3 y 4 de la Ley Orgánica de los Consejos Comunales.
3
Artículo 8, sobre todo su ítem 8 de la Ley Orgánica del Poder Popular.
4
Artículos 25, 319, 497 e 498 de la Ley Orgánica del Trabajo, las Trabajadoras y los Trabajadores; y los artículos
4, 6 y todo el capítulo III de la Ley Orgánica del Sistema Económico Comunal.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Con ello, el proceso de la lucha de clases siguió dos rumbos
distintos. Por una parte, la lucha de los trabajadores ha sido mayoritariamente
una lucha por derechos bajo el capitalismo, la cual ha sacado victorias, pero
también sufrido derrotas, por otra parte, la lucha por el socialismo sigue
presente en formas y grados variados en cada país, pero bajo condiciones
que les exigen a los luchadores nuevas elaboraciones teóricas que ofrezcan
a los trabajadores una arma ideológica como fue el derecho burgués en
contra a las potencias pre-capitalistas.
Tales condiciones generales de la lucha por el socialismo se
caracterizan, entonces, por la credibilidad que las masas populares asignan
al derecho burgués y por el derrocamiento de las condiciones generales de
acumulación. La primera condición vuelve a las masas pasivas y, la segunda, las
desarticula y las desorganiza, dejándolas sin lazos de solidaridad que las reúna
bajo un proyecto colectivo. La Revolución Bolivariana se enfrenta a estos retos,
los cuales hacen surgir unos puntos débiles que seguidamente les presento.
PUNTOS DÉBILES
Se los entienden puntos débiles no fallas individuales y/o colectivas,
que siempre se verica en el quehacer humano, pero las ambigüedades y
contradicciones inherentes a los procesos revolucionarios a causa de que
se lo busca construir el nuevo bajo las condiciones heredadas del viejo
5
.
Mencionaré los cuatro que, a mi entender, tienen mayor incidencia en el
proceso venezolano.
1. Ligación oja con el Ministerio para las Comunas, como se los
pobladores estuvieron listos para emprender la participación
protagónica, es decir, hay en la legislación un cierto voluntarismo,
pues se los establece procedimientos y se hace referencia a los valores
morales que sirven de guía a la participación protagónica, pero la
vinculación material de los actores de la participación a los órganos
de participación es muy oja o bien en las cosas de la vida cotidiana
o bien a través de la ley de contraloría. Si uno no quiere participar
de la vida comunitaria, su vida sigue la misma; si a otro se le ocurre
5
La crisis es cuando el viejo está muerto, pero que al nuevo no se lo ha logrado nacer todavía, en el ínterin
surgen varios síntomas mórbidos. Gramsci, citado de memoria.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

participar no le queda mecanismo que haga aquél otro sentir los
efectos de tal participación.
2. Los órganos del Estado comunal mantienen con el Estado capitalista
(vamos llamarlo burocrático con motivo de resaltar el aspecto que
interesa al análisis) una relación complementaria. Aquí hay dos
riesgos para el poder popular: 1) el gobierno nacional maneja un
monto de recursos que le permite revertir o sabotear los avances del
poder popular a través de mecanismos institucionales del Estado
burocrático y/o vínculos políticos clientelista; 2) éste gobierno
es electo por sufragio universal, un procedimiento de formación
de voluntad colectiva que hace apelo a la ciudadanía en abstracto,
generando una representación asimismo abstracta del bien común
6
,
lo cual entra en choque con los procedimientos de formación de la
voluntad colectiva propios de los órganos del poder popular que
descansa sobre necesidades muy concretas.
Con ello, en caso de cambio de gobierno o de pérdida de
mayoría en la Asamblea Nacional habrá una crisis de legitimidad
7
, pues
se afrontarán en las calles y en las instituciones dos voluntades colectivas
derivadas de procesos distintos de conformación, posibilidad que se
vuelve todavía más gravosa en la medida en que la Ley Orgánica del Poder
Popular contiene una ambigüedad jurídica en los artículos 23 y 24 que
consiste en la distinción entre poder público y poder popular; distinción
6
La crítica fácil a esta representación del bien común es que ella es abstracta, pero la paradoja es que su fuerza
ideológica se desprende de la abstracción misma, que le permite a ella presentarse como por encima de los intereses
particulares, mientras tanto la voluntad colectiva formada por los órganos del poder popular se queda presa fácil
de la crítica de representar a intereses particulares justamente porque tiene como su contenido necesidades muy
concretas. A mi juicio, el desafío de la lucha político-ideológica aquí es doble: por una parte, demonstrar que el
bien común representado abstractamente corresponde a los intereses de ganancia de los capitalistas, por otra parte,
formular los intereses comunes de la nación basados en los procedimientos de los órganos del poder popular.
7
Apenas había concluido éste artículo, se concretó los comicios 6D en los cuales la MUD – Mesa de Unidad
Democrática – una agregación de los partidos opositores de la Revolución Bolivariana, obtuvo 112 de las 167
sillas de la Asamblea Nacional. Desde aquél entonces, el presidente de la AN ha tomado medidas basadas en el
principio de la legitimación por el individuo abstracto (el elector sin rostro ni arraigo social) en vista de fustigar
al gobierno para promover su pretendida caída; mientas que el gobierno ha buscado percatarse de los efectos
de la derrota electoral estimulando a la organización popular, promoviendo cambios que se hace rato se los
reclamaban los movimientos populares. Con ello, se enfrentan en Venezuela hoy dos modelos de democracia:
uno basado en el elector abstracto llamado a escoger entre candidatos quién pueda ofrecerle mejores servicios
políticos, asimismo basados en criterios abstractos, el otro basado en el poder popular según establece el artículo
5 de la Constitución. Por ahora, los sucesos conrman el pronóstico de crisis política derivada de la coexistencia
de dos procesos distintos de conformación de la voluntad colectiva, pero un análisis más adecuado y comprehen-
sivo de la coyuntura desatada por la derrota electoral del chavismo amerita un artículo sólo dedicado a ello.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
hecha con términos que signican relación de jerarquía entre el primero y
el segundo, en el artículo 23, mientras el artículo 24 establece que “Todos
los órganos, entes e instancias del Poder Público guiarán sus actuaciones
por el principio de gobernar obedeciendo, en relación con los mandatos
de los ciudadanos, ciudadanas y de las organizaciones del Poder Popular,
de acuerdo a lo establecido en la Constitución de la República y las leyes”.
Aunque la Ley Orgánica para Gestión de Competencia y Otras
Atribuciones del Poder Popular dena los conceptos y mecanismos de
transferencia de las competencias del Poder Público a las organizaciones
del Poder Popular
8
, estableciendo la gestión comunitaria en tanto que
democracia participativa protagónica, sigue habiendo la contradicción
entre el Poder Público y el Poder Popular debido a que uno y otro son
productos de procedimientos contradictorios de formación de la voluntad
colectiva. Volveré a ésta cuestión en la sesión nal.
En estas circunstancias, la armación de que “Jamás volverán a
ser gobierno los representantes de esa oligarquía” y de “esa burguesía que
entregó la patria a los intereses de un imperio”, como aseguró el alcalde
de Caracas y dirigente del Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV),
Jorge Rodríguez
9
es, sin duda, una frase fuerte que tiene como móvil la
movilización de la militancia, pero lejos de expresar la situación de hecho,
como lo ha demostrado las elecciones de abril de 2013, una situación que
pude se repetir en 2016 una vez que la MUD puede recolectar rmas para
uno referendo revocatorio.
Pese a esas consideraciones críticas, hay un conjunto variado de
iniciativas, movimientos y órganos cuya coordinación, combinada con
una política de transferencia de competencia del Estado (en los niveles de
alcaldía, gobernación y federal) pueden reforzar la capacidad del Estado
8 Artículo 5, […]. 3. Transferencia de competencias: Proceso mediante el cual las entidades político territoriales
restituyen al Pueblo Soberano, a través de las comunidades organizadas y las organizaciones de base del
Poder Popular, aquellos servicios, actividades, bienes y recursos que pueden ser asumidos, gestionados y
administrados por el pueblo organizado, de acuerdo a lo establecido en el artículo 14 de la Ley Orgánica del
Consejo Federal de Gobierno, en concordancia con el artículo 184 de la Constitución de la República
Bolivariana de Venezuela. Sin que ello obste para que, por cuenta propia, cualquier entidad político territorial
restituya al Pueblo Soberano la gestión y administración de servicios, actividades, bienes y recursos, de acuerdo
a lo establecido en el correspondiente Plan Regional de Desarrollo y previa autorización de la Secretaría del
Consejo Federal de Gobierno.
9
Correo de Orinoco, jueves 17 de julio de 2014.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

comunal (en germen) de resistir a la posibilidad de acaparamiento del
poder político por el Estado burocrático.
3. En el diseño del Estado comunal no está denido como se concreta la
democracia participativa protagónica en el nivel federativo. ¿Sería un
consejo de comunas? ¿Sería un parlamento, es decir, una Asamblea
Nacional? Cada una de esas alternativas tiene sus riesgos. Un consejo
de comunas conlleva asignar un grande monto de recursos a pocas
manos, lo cual puede dar lugar a la burocratización, convirtiendo los
órganos de base del poder popular en instancias de homologación
de las decisiones del consejo superior. Una Asamblea Nacional
conformada solamente por el sufragio universal pone los problemas
ya mencionados del choque entre dos procedimientos distintos de
conformación de la voluntad colectiva, lo que da poder a los diputados
para anular las decisiones de los órganos del poder popular.
4. El arraigo de la cultura política burguesa, aquella que escinde
el ciudadano en ciudadano público en el día de las elecciones y
ciudadano privado para todos los demás hace de la resistencia a asumir
corresponsabilidad una traba para la organización y desarrollo de los
consejos comunales. Luego de más de un siglo de desarrollo del Estado
según la matriz ya mencionada arriba, la gente se quedó acostumbrada
a ceñirse a su quehacer privado, sólo esperando del Estado que le brinde
con unos servicios que favorezcan éste quehacer
10
. En estas condiciones
la tendencia es que la participación sea restringida a las pocas personas
más activas, corriendo el riesgo de se la reproducir en nivel local a la
matriz del Estado proveedor de servicios.
La participación restricta en estas condiciones da lugar a que
se reproduzca las prácticas políticas clientelares, pues los voceros pueden
verse aislados, por una parte, sin apoyo activo de la comunidad y, por otra,
pendientes de los trámites del Estado burocrático para volver efectivo el
plan de desarrollo comunal, debido al hecho de que la transferencia de
competencias a los órganos del poder popular no se completó todavía;
10
Periódico Últimas Noticias Lunes, 30 de junio de 2014. Piden evaluar gestión de las comunas: “Todos los
días aumenta el número de comunas registradas en el país, así lo reeja la página web del ministerio del Poder
Popular para las Comunas y los Movimientos Sociales, que hoy contabiliza 684 organizaciones. Sin embargo,
esto no necesariamente signica que todas esas comunas funcionen”, aseguró Pedro Sandoval, líder social del 23
de Enero e integrante del V Consejo de Lectores de Últimas Noticias, cuyo tema es el poder popular.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
además de la resistencia de los burócratas a completarlas. En tales
condiciones los antiguos voceros de los partidos de la IV República se
mueven con más desinhibición que los voceros de los órganos del poder
popular, se estableciendo entonces una competencia política en los barrios
por el apoyo popular.
A guisa de cierre de la reexión propuesta:
Entre los puntos débiles apuntados, quizá el más importante
porque articula los otros sea la contradicción entre el Poder Público
y los órganos del Poder Popular. Para reanudarlo se debe considerar la
identidad del Estado capitalista (o burocrático para el objeto de la reexión
propuesta) con el Poder Público. Esta identidad no está asentada en la
pretensión de uno cualquiera que así sea, sino que en el funcionamiento
del Poder Público desde el aparato heredado del Estado capitalista, tanto
la estructura administrativa como los conceptos jurídicos bajo los cuales se
les interpela a los ciudadanos (¿o trabajadores?) en vista de la conformación
de la voluntad colectiva.
Si, como dijo Poulantzas (2008), el Estado es una relación,
mejor dicho, una relación social de dominación institucionalizada, el más
importante para la crítica del Estado capitalista y, por ende, para el análisis
de la transición al socialismo, es la comprensión y la crítica de los conceptos
de ésta relación, es decir, los conceptos que estructuran la relación Estado,
entre los cuales destaco dos: sujeto de derecho y representación popular
(ciudadana). Decir que tales conceptos estructuran la relación Estado implica
que los individuos actúan como sus soportes o, si se preere, que el estatuto
jurídico (sujeto de derecho) bajo el cual los individuos se reconocen en tanto
que iguales para el quehacer cotidiano se les atribuye el Estado.
Sin embargo, el Estado no saca tal concepto de la nada. La
inteligencia del derecho se la encuentra fuera de él, como lo advirtió
Marx; Engels (2007). Las relaciones sociales capitalistas de producción,
caracterizadas por la generalización de las operaciones de compraventa, exige
considerar a todos como individuos libres cambistas para poder cambiar sus
propiedades libremente en el mercado, lo que hizo la Revolución Burguesa
luego de apartar los trabajadores de los medios de producción, como
señalado más arriba; por lo tanto, como sujetos de derecho todos y cada
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

uno se apropian de la mercancía del otro mediante un acto de voluntad
común a ambos, como lo señaló Marx (1988). Se queda claro, entonces,
que el atributo de cambista de mercancía es el fundamento de la igualdad
jurídica (KASHIURA, 2009), es decir, del concepto de sujeto de derecho,
siendo la fuerza de trabajo la sola mercancía del trabajador.
Con ello, aunque la relación de dominación entre propietarios e
no propietarios de los medios de producción siga existiendo, ella resultó
borrada (o mejor dicho, naturalizada) por la ideología jurídica que considera
a todos iguales libres cambistas, abstraída la desigualdad económica entre
propietarios e no propietarios de los medios de producción. Mientras tanto,
es a ésta categoría sujeto de derecho que interpela el proceso electoral de la
democracia burguesa, en vista de conformar la voluntad colectiva en tanto
que representación popular de individuos libres cambistas interesados en
medidas de gobierno favorables a las condiciones de venta de su mercancía.
Por supuesto, a esto núcleo de interés se añade una retórica de identidad
nacional necesaria a la legitimación a través de la subsunción de los libres
cambistas a la idea de comunidad conformada por el pueblo-nación,
aunque la nación esté escindida por los intereses materiales que oponen las
clases dominantes a las dominadas.
Luego de hacer la crítica de los conceptos de sujeto de derecho y
de representación popular (ciudadana), creo poder claricar la naturaleza
de la contradicción entre el Poder Público y los órganos del Poder Popular
en tanto que dos procesos distintos de conformar la voluntad colectiva.
Si uno somete a la legislación del Poder Popular al ejercicio de
análisis deductivo para extraer su concepto central, se detecta un cambio de
contenido del concepto de sujeto de derecho, pero un cambio subyacente,
no denido conceptualmente, aunque sin ello no se pueda operar los
cambios establecidos por tal legislación. El contenido operativo, pero no
denido, es el individuo productor insertado en relaciones sociales que
lo constituyen en cuanto tal. Esta deducción se extrae de los términos de
la legislación que no hacen referencia a individuos libre cambistas, sino
que a individuos que, al ponerse al servicio de la comunidad haciendo
cargo de las tareas de desarrollo comunitario, se reconocen mutuamente
productores de la vida comunitaria para el bienestar individual y colectivo.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Se ocurre este cambio porque hay una incompatibilidad de fondo
entre el concepto constitucional de democracia participativa protagónica,
que requiere del individuo un cometido integral con la producción y
reproducción social para su efectividad, y el de sujeto de derecho (tal como
lo entiende la ideología jurídica burguesa) cuyo atributo que lo dene es
ser librecambista en la esfera privada, dejando a los políticos profesionales
la tarea de administrar la producción y reproducción social como servicio
prestado a los electores-clientes.
Esto parece evidente, tanto que se ha avanzado la organización de
los órganos del Poder Popular sin necesidad de explicitarlo en el texto de
la ley (quizá no se deba hacerlo hasta alcanzar la claridad conceptual por la
práctica). Lo que no resulta evidente es que la gura jurídica interpelada en
el proceso electoral no es la misma que en el proceso de organización de los
órganos de Poder Popular. Mientras una es llamada a elegir quien les prestará
servicios (económico y/o jurídico-político) en conformidad con relaciones
mercantiles, la otra es convocada a hacer cargo del trabajo colectivo de
producción del bienestar individual y colectivo. Tratase, por lo tanto, de
dos modos distintos de conformación de la voluntad colectiva derivados
de las distintas guras jurídicas interpeladas. Esta contradicción puede
manifestarse en tres maneras distintas, al menos las que pudo detectar en mis
investigaciones, pero que se articulan en las pugnas políticas: 1) resistencia
a hacer cargo del trabajo colectivo a raíz de la costumbre de dejar el público
a los políticos, 2) resistencia de los burócratas a transferir competencias a
los órganos del Poder Popular por se vieren amenazados en la garantía de
sus intereses corporativos y 3) como mencionado más arriba, la pugna entre
órganos de poder político basados en los dos modos distintos y concurrentes
de legitimación de las políticas de Estado, lo que probablemente resultará en
profunda crisis institucional e inestabilidad del régimen.
La primera tiene que ver con el punto débil cuatro mencionado
en la sesión anterior y, además de lo que se dijo allí, se puede acrecentar el
hecho de que debido al estadio “en construcción” de los órganos del Poder
Popular, ellos no le ofrecen al pueblo la misma sensación de seguridad en
cuanto a la efectividad de las acciones que promueven al igual que el Estado
capitalista (burocrático), es decir, en la vida cotidiana de los barrios el
militante metido en el quehacer de la movilización y organización popular
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

se enfrenta a la desconanza que sobre su trabajo arrojan burócratas,
concejales, alcaldes y otras autoridades y/o personas opositoras del proyecto
del Estado comunal, aunque éste cuadro se venga cambiando con el avance
de los consejos comunales.
La segunda tiene que ver con el hecho de que el aparato
administrativo del Estado se rige por las reglas burocráticas, las cuales
excluyen de las actividades asignadas al Estado todos quienes no sean
sus funcionarios, a condición (alegada por la teoría liberal y por el
periodismo) de garantizar el principio de la impersonalidad, el que hace
surgir dos problemas complementarios: a) se vuelve necesario denunciar
éste principio abstracto de impersonalidad en tanto que exclusión de los
pobladores de los negocios del Estado, mientras todos los días en todos
los países capitalistas los periódicos informan sobre las conversaciones
(incluso charlas o chismes en vista de unas ventajas) de los capitalistas con
autoridades gubernamentales para tratar de los negocios del Estado, y b)
se vuelve necesario fortalecer el poder del Consejo Federal de Gobierno de
supervisar la transferencia de competencia del Poder Público a los órganos
del Poder Popular, el que conlleva el riesgo de burocratizarlo.
La tercera, cuyo contenido fue desarrollado más arriba,
constituye la arena de la pelea de la derecha porque allí ella se encuentra
en su ambiente propio: el de la abstracción. Si uno quiere comprender
el poder de convencimiento ideológico del discurso burgués, se debe
tomar en consideración que el Estado capitalista estatuye los individuos
(propietarios y no propietarios de los medios de producción) en tanto que
sujetos de derecho, aislándolos de sus luchas económicas, “En efecto, se
supone que éste Estado representa el interés general, la voluntad general
y la unidad política del pueblo y de la nación. Se encuentra presente
allí las características de la representatividad, del interés general, de la
opinión pública, del sufragio universal, de las libertades políticas, luego, la
presencia del conjunto normativo institucional de la democracia política.”
(POULANTZAS, 1968, p. 301-302), es decir, el Estado capitalista no
representa directamente a los intereses burgueses, sino que mediados por la
representación de los intereses comunes de individuos librecambistas. Por
ello, la función económica del Estado puede ser presentada como simple
intervención técnica de gestión del interés público, mientras los capitalistas

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
se riñen los unos con los otros por sacar mejor provecho de las condiciones
generales de explotación de los trabajadores y, zonzo entre ellos (y a la
vez cómplices) se quedan los gobiernos constreñidos por la evaluación de
sus competencias. Aunque así marchen las democracias burguesas, esta
marcha sostiene el fetiche del Estado que consiste en esperar de su gestión
competente la solución para los problemas sociales.
En este punto se encuentra la paradoja de la democracia
burguesa que es su debilidad y a la vez su fuerza. La debilidad consiste en
la imposibilidad de la democracia burguesa hacer cargo de las demandas
populares debido a su cometido estructural con los intereses burgueses,
pero en la medida que el Estado no representa directamente los intereses
burgueses, sino que los intereses generales del pueblo-nación constituido por
individuos librecambistas, la frustración que resulta de esta imposibilidad
se vuelve apatía por falta de quien amerita la conanza popular. En buena
medida, lo que hacen los políticos profesionales hoy es producir soluciones
abstractas (bajo la forma de propaganda) para problemas concretos en vista
de la victoria electoral, a la cual se sigue más frustración y apatía, pero así se
perpetúa la democracia burguesa como un callejón sin salida; claro, hasta
que las fuerzas populares logren ofrecer una.
Estas características de la democracia representativa (burguesa)
ponen de relieve las potencialidades de los problemas que pueden surgir
de esta tercera manera de manifestarse la contradicción, el que la derecha
viene explotando a través de las guarimbas.
Por otra parte, para retomar el hilo de la reexión a guisa de
conclusión, si como dicho más arriba, tanto una asamblea de representación
ciudadana como un consejo nacional conformado por voceros elegidos
desde abajo en forma piramidal comportan riesgos, se puede plantear para
la reexión teórica a la luz de la práctica en desarrollo, una combinación de
las dos formas institucionales como una manera de superar la contradicción,
es decir, un parlamento constituido por diputados elegidos por el sufragio
universal y por voceros elegidos por los órganos del poder popular.
Por supuesto, estos apuntes están lejos de se ver como un análisis
exhaustivo, son sólo cuestiones para la reexión, incluso porque escribir sobre
un proceso en desarrollo conlleva siempre el riesgo de se quedar tras los hechos.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

REFERÊNCIAS
BRUNHOFF, S. Estado e Capital: uma análise da política econômica. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1985.
KASHIURA, C. N. Crítica da igualdade jurídica:contribuição ao pensamento
jurídico marxista. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, K. O capital. v. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
POULANTZAS, N. O Estado capitalista: uma resposta a Miliband e Laclau. In:
Crítica Marxista, n. 27, Campinas, SP, 2008.
______. Pouvoir politique et classes sociales. Paris: Maspero, 1968.
SAES, D. Estado e democracia: ensaios teóricos. Campinas, SP: IFCH/UNICAMP,
1998.

MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS COMO DILEMA
CONTEMPORÂNEO: O PAPEL DA MULHER EM
CIDADES PEQUENAS E MÉDIAS NO BRASIL
Silvia Aparecida de Sousa FERNANDES
INTRODUÇÃO
Entre os dilemas históricos da América Latina estão os processos
migratórios. Os movimentos migratórios são investigados por pesquisadores
de diferentes campos do conhecimento nas Ciências Humanas: as Ciências
Sociais, Geograa, Demograa, Economia e História se debruçam sobre este
objeto de estudo. Os deslocamentos internos ao país, os uxos internacionais,
seus fatores e as condições de vida do migrante são temas amplamente conside-
rados nas análises. Contudo, são poucos os trabalhos que abordam a condição
da mulher migrante ou que destacam a questão de gênero na análise. Reetir
sobre os processos migratórios na contemporaneidade e sobre os dilemas da
América Latina implica reconhecer as diferenças de culturais, de gênero e de
trabalho. E o objetivo deste trabalho é discutir o papel da mulher migrante no
interior do estado de São Paulo, mais particularmente na região de Ribeirão
Preto, no contexto do mundo do trabalho e das relações sociais que estabelece
com seu grupo. Analisa-se o perl da migrante e as relações que estabelece no
lugar de chegada, no lugar de trabalho e nas relações de vizinhança no bairro
de residência. Muitas vezes esses lugares de reprodução da vida são distintos
e exigem o exercício de diferentes papéis e funções sociais. Para isso toma-
-se como referência pesquisa de campo realizada em um bairro do municí-
pio de Serrana-SP, em comparação com dados de migração no Estado de São
Paulo e no Brasil. Para elaboração desse texto, foi realizada revisão da litera-
tura e análise de dados de pesquisas divulgadas pela Associação Brasileira de
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
135-144
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Estudos Populacionais (ABEP); Núcleo de Estudos Populacionais (NEPO)
da Unicamp; Fundação Sistema Econômico de Análise de Dados Estatísticos
(SEADE) e Fundação Instituto Brasileiro de Geograa e Estatística (IBGE).
O texto apresenta inicialmente o panorama da migração interna no Brasil no
século XX e os aportes teóricos que auxiliarão a análise. Em seguida, identica
o perl do migrante na cidade de Serrana e discute a condição da mulher como
migrante e os papéis sociais a ela atribuídos.
BREVE HISTÓRICO DA MIGRAÇÃO NO BRASIL
Historicamente, há no Brasil um intenso processo migratório,
seja interno ou externo. Até as primeiras décadas do século XX, predomi-
naram os uxos internacionais, tendo os países europeus como origem e a
cidade de São Paulo, como destino predominante. Vários autores, dentre
eles Cano (1981), Ribeiro e Silva (2005) apontam a importância dos imi-
grantes italianos, espanhóis e portugueses na substituição da mão-de-obra
escrava nas lavouras cafeeiras do interior do Estado de São Paulo e no pro-
cesso de concentração industrial na cidade de São Paulo.
As migrações internacionais declinaram no intervalo entre as duas gran-
des guerras, em conseqüência das restrições estabelecidas pelos países de
origem. [...] As primeiras restrições à imigração estrangeira surgiram,
no Brasil, a partir de 1930, culminando com a xação de cotas pelas
Constituições de 1934 e 1937. (PACHECO; PATARRA, 1997, p. 451)
A partir de 1930, intensicaram-se os uxos migratórios inter-
nos, devido às mudanças econômicas, sociais e políticas que o país viveu no
período, relegando a um segundo plano as migrações internacionais. Num
primeiro momento, dirigiram-se preponderantemente para São Paulo, cujo
crescimento industrial e expansão da agricultura serviram como fatores de
atração populacional. Esse uxo mantém-se hegemônico até a década de
60, quando outros núcleos de origem e destino passam a ser signicativos.
SANTOS (1994) analisou os dados do Censo demográco de 1970, 1980
e 1991 e identicou mudanças nas principais áreas de origem e destino de
migrantes no Brasil no período. A autora arma que o Nordeste continua
sendo a principal área de “expulsão” populacional, em especial de trabalha-
dores rurais que buscam trabalho em outras regiões do país. Contudo, além

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
do destino a São Paulo, os estados da região Norte, notadamente Rondônia,
Roraima, Pará e Tocantins, também se transformaram em promissores des-
tinos migratórios. Os estados da região Norte e Centro-Oeste também são
os locais procurados pelos emigrantes das regiões Sul e Sudeste, responsáveis
por novos núcleos de colonização e expansão agrícola nessas regiões.
A partir da década de 1980 é possível identicar também a mi-
gração de retorno dos nordestinos provenientes principalmente da região
Sudeste para as capitais nordestinas, em especial Fortaleza/CE, Salvador/
BA, Recife/PE e Natal/RN (RIBEIRO; SILVA, 2005).
ery e Mello (2008, p. 1004) ao analisar a importância das mi-
grações apresentam três critérios para análise dos uxos migratórios: os
saldos migratórios, os deslocamentos de longa distância e a proporção dos
migrantes na composição da população. Com base nos dados do Censo
Demográco e Contagem de População, os autores analisaram o saldo mi-
gratório para os períodos 1970-1980 e 1991-1996 nos 27 estados brasi-
leiros e concluem que é possível identicar uma reorientação dos uxos
migratórios no período analisado. Enquanto no primeiro período é intensa
a busca pelo estado de São Paulo por mineiros, baianos, pernambucanos e
paranaenses, no segundo período os uxos são menos evidentes e caracteri-
zados por deslocamentos de curta distância entre os estados vizinhos. Mas
quando observam os números absolutos de migração por estado, consta-
tam que o Estado de São Paulo continua sendo o que acolhe maior número
de migrantes, com 2,5 milhões de pessoas em 2000.
Ao analisar as tendências dos uxos migratórios internos no
Brasil, com base nos dados do Censo Demográco de 1991 e de Contagem
Populacional do IBGE para o ano de 1996, Ribeiro e Silva (2005) conr-
mam a tendência de que os estados nordestinos conguram-se como áre-
as de expulsão populacional, principalmente de trabalhadores com baixa
qualicação e desempregados. Enquanto Maranhão, Bahia e Pernambuco,
constituem-se as principais áreas de origem dos migrantes, São Paulo, Goiás,
Distrito Federal, Espírito Santo e Pará conguram-se como os principais
destinos dos uxos migratórios. Nos estados da região Sudeste, as principais
áreas de atração populacional são as regiões metropolitanas e municípios ao
entorno das mesmas. Ainda assim, os autores identicam como destino dos
uxos migratórios as cidades do interior paulista e mineiro:
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Em se tratando dos municípios com sedes de porte médio, cumpre des-
tacar aqueles localizados no interior paulista, seguindo principalmente
o eixo Campinas-Ribeirão Preto, decorrentes do processo de descentra-
lização industrial, além da oferta de trabalho no setor de serviços; e o
Triângulo Mineiro, especialmente Uberlândia e Uberaba, com ativida-
des agroindustriais atuando como fator importante no direcionamento
dos deslocamentos populacionais. (RIBEIRO; SILVA, 2005, p. 413)
Como apontado pelos autores, a procura por esses destinos mi-
gratórios ocorre devido à oferta no mercado de trabalho. São regiões de in-
tensa atividade agroindustrial, o que permite a ocupação de trabalhadores
com baixa qualicação técnica e/ou escolarização.
Além disso, é possível apontar como outro fator de atração para
a região, a existência de redes sociais de migrantes, tal como apresentado
por Haesbaert (2004; 2005). As redes permitem não somente a ocupação
funcional mais rápida, como também servem como fator de ressocialização
e reterritorialização do migrante.
[...] a característica mais importante das redes é seu efeito concomi-
tantemente territorializador e desterritorializador, o que faz com que
os uxos que por elas circulam tenham um efeito que pode ser ora de
sustentação, mais “interno” ou “construtor de territórios”, ora de deses-
truturação, mais “externo” ou desarticulador de territórios. Assim, as
redes são mais ou menos desterritorializadoras, dependendo de diver-
sos fatores, incluindo seu caráter estratégico-funcional ou simbólico-
-expressivo – pois territorializar-se é sempre uma conjugação (diferen-
ciada) entre função e símbolo, ação concreta e valorização simbólica
(HAESBAERT, 2004, p. 294).
As redes sociais são, portanto, um importante fator na denição
dos destinos dos grupos migratórios, uma vez que a presença de um grupo
de iguais pode auxiliar o estabelecimento do migrante no local de destino,
propiciando menor impacto durante o período de adaptação e oferecendo
informações que podem facilitar a inserção no mercado de trabalho. Nessa
mesma perspectiva Salles et al, (2013) apresentam uma coletânea em, qur
o tema é discutido a partir de estudos migratórios nacionais e institucio-
nais em São Paulo.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Como abordaremos no próximo item, na região de Ribeirão
Preto e em Serrana, em particular, consideramos que ambos os fatores con-
tribuem para a formação do uxo migratório observado.
PERFIL DA MULHER MIGRANTE
Para discutir o papel da mulher migrante na agroindústria ca-
navieira, nos pautamos nos dados apresentados por Nogueira (2009). A
pesquisa realizada por esta autora, contou com coleta de dados por meio da
aplicação de questionários que visavam identicar o perl do migrante, lo-
cal de trabalho e tempo de residência no município de Serrana, interior do
estado de São Paulo. Foram aplicados 38 questionários entre os moradores
do bairro Chavans, tradicionalmente ocupado por migrantes naquela cida-
de. O critério de seleção foi a abordagem de uma a cada três residências do
bairro, seguindo os procedimentos de denição de amostragem sistemá-
tica, conforme apontado por Gil (1991). Sempre que identicado como
migrante, o residente abordado passava a responder às questões.
Do total de sujeitos participantes da pesquisa, destaca-se o número de
mulheres 66% (27 em número absoluto), sendo 34% homens (13 em número
absoluto). Quanto à idade, vale destacar que 37% têm entre 21 e 30 anos,
21% entre 31 e 40 anos e 21% entre 51 e 60 anos. Isso representa que 97%, ou
seja, 37 entrevistados estão na faixa designada de População Economicamente
Ativa. São, portanto, pessoas aptas a inserir-se no mundo do trabalho, que já
exercem ou podem exercer funções economicamente produtivas.
Essas mulheres e homens migrantes residem no município de
Serrana há pelo menos dois anos ou mais, sendo assim distribuídos: 5%
residem há menos de 2 anos no município, 8% residem na cidade entre
2 a 5 anos, 16% entre 5 anos e 1 mês a 10 anos e a grande maioria, 71%,
residem há mais de 10 anos em Serrana.
Quanto perguntado sobre o município de origem, o que se des-
taca é Montalvânia, em Minas Gerais, com 54% (21 sujeitos). Além de
Montalvânia, destacam-se outros três municípios com participação per-
centual bem menos signicativa: São Raimundo Nonato/PI, Cocos/BA e
Surubins/PE, que são municípios de origem de dois entrevistados (5%). Os
demais municípios citados, com ocorrência de um sujeito (3%) são: Feira
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

de Santana e Coribe/BA, Canto do Buriti/PI, Fortaleza/CE, Arapiraca/AL,
Ribeirão Preto, Porto Ferreira, Sertãozinho, Cravinhos, Igarapava e São
Caetano/SP. Nota-se que são oito municípios da região Nordeste do país,
que totalizam 27% dos entrevistados e sete municípios da região Sudeste,
com 73%, com destacada participação de Montalvânia/MG e dos municí-
pios do interior do estado de São Paulo, mais especicamente da região de
Ribeirão Preto, onde se localiza o município de Serrana.
Esses dados corroboram as armações feitas por Haesbaert
(2005) que, ao analisar a dinâmica migratória, aponta para a formação
de redes regionais de migração no interior dos estados nacionais, que per-
mite a reterritorialização do migrante ao novo território. Para este autor,
a desterritorialização vivida pelo migrante ao sair de seu local de origem,
se recongura ao encontrar no novo território grupos identitários, num
movimento de reterritorialização ou de reconquista da identidade, conso-
lidando as redes regionais de migração.
O autor destaca que a força identitária mantida entre os grupos
de migrantes é um dos principais fatores responsáveis pela manutenção da
coesão do grupo, quando longe de seu território de origem (HAESBAERT,
2005, p. 40). No caso do grupo de migrantes em estudo neste texto, é pos-
sível armar que, a despeito da mesma região de origem, a desterritorializa-
ção dos migrantes no município de Serrana é mais nítida do que o processo
de reterritotialização, na medida em que o migrante procura não revelar
a sua região de origem ou tem “vergonha” de manifestar a sua identidade
regional, como apontado por Nogueira (2009, p. 30).
A pesquisa de campo revelou que a maioria dos migrantes que moram
no bairro Chavans são mineiros, do município de Montalvânia, predo-
minentemente. Esse dado nos chamou atenção, pois no cotidiano, os
moradores quando abordados, não gostam de ser identicados como
sendo de Montalvânia. Percebeu-se também que trabalham em usinas,
no corte da cana de açúcar e em outras funções de menor qualicação
e pouca remuneração.
Os dados apresentados por Nogueira (2009) ainda permitem a
discussão sobre a inserção no mundo do trabalho. 71% armam que exer-
cem atividades remuneradas e quando perguntado sobre o local de traba-
lho, as respostas remeteram a um conjunto de atividades econômicas que

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
exigem baixa qualicação como empregada doméstica (19%, 5 pessoas em
número absoluto); usinas (29%, 8 pessoas em número absoluto); comér-
cio (19%, 5 pessoas); indústrias (11%, 3 pessoas). Dentre as atividades de
comércio, foram citados o trabalho em bares, lojas diversas e farmácia. O
trabalho nas usinas corresponde ao trabalho no corte de cana-de-açúcar ou
em atividades como copeira, faxineira. As atividades de serviço foram pou-
co representativas, apenas uma armou trabalhar em uma creche (4%);
uma no setor de saúde (4%) e duas no setor de transportes (7%).
A questão que mais chama a atenção no que se refere à migração
feminina corresponde aos motivos que levam à migração. Quando pergun-
tado sobre os motivos da migração, Nogueira (2009, p. 29) arma:
[...] muitos disseram que vieram à procura de serviços e uma vida me-
lhor, chegando a Serrana, foram trabalhar na Usina da Pedra e Usina
Nova União. Outros, devido ao pai já estar trabalhando nas usinas, vieram
também, escolhendo Serrana por ser uma cidade tranquila. [...] algumas
mulheres vieram devido aos esposos já estarem com emprego xo, outros
por causa de parentes e conhecidos já estarem morando na cidade. Os
questionários mostraram que os migrantes vêm até mesmo para acompa-
nhar a mãe em tratamentos médicos e acabam cando, vendendo o seu
pedaço de terra no seu lugar de origem e se xando no município. Um dos
entrevistados relatou que veio para Serrana devido ao irmão ter sofrido um
acidente, e no local de origem não haver recursos próximos para cuidado.
Nota-se que são diversos os motivos que levaram os moradores do
bairro Chavans a migrar. Contudo, a nosso ver, todas as respostas podem ser
reunidas em dois grupos: a) os que vieram por motivos econômico-nanceiros
e procuraram Serrana devido à rede social já existente na cidade e à oferta de
empregos; b) os que acompanharam familiares já instalados na cidade ou que
vieram juntos para se xar com eles em um novo município de domicílio.
Neste segundo grupo destacam-se as mulheres que acompanham seus maridos.
Quando se compara o percentual de mulheres (66%) e casados
(71%) que responderam ao questionário com as prossões exercidas como
domésticas (19%) ou no trabalho na agroindústria canavieira (29%), ca
evidente que além de não terem autonomia na denição do local de mi-
gração, as mulheres são obrigadas a inserir-se no mercado de trabalho no
local de destino para ajudar na composição da renda familiar, embora não
sejam elas próprias chefes de família.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Fusco (1999, p. 337) em pesquisa realizada sobre migração inter-
nacional, identicou diferença signicativa nas razões que levam mulheres
e homens a migrar para outro país. Na análise dos dados sobre migração da
cidade de Governador Valadares para Boston, nos EUA, o autor constatou
que “Os motivos de trabalho representam 90,5% para os homens e 66,8%
para as mulheres. Em contrapartida, se o motivo “acompanhar a família
representa a opção de apenas 2,6% dos homens, tem para as mulheres o
peso proporcional de 19,8%”.
Em pesquisa sobre os condicionantes da migração interna nos
estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco, com base nos dados
do Censo demográco de 1991, Chaves (2005, p. 5) identicou que a mi-
gração feminina ocorre predominantemente entre casadas e solteiras. Para
o estado de São Paulo, os percentuais de mulheres migrantes solteiras são
de 36,6% enquanto as que se declararam casadas são 37,5%. A maior parte
das mulheres são lhas de migrantes (36,0%) ou cônjuges (26,7%), ou
seja, acompanharam os pais ou o marido em processo migratório. Apenas
6,9% das mulheres são chefes de família.
Esses dados corroboram a pesquisa realizada por Nogueira (2009)
em que as entrevistadas apontaram como motivo para a migração acompa-
nhar o marido. Nota-se, com isso, a escassa autonomia da mulher na de-
nição dos uxos migratórios e mesmo na prossão que exercerá no local de
destino, pois, devido à baixa qualicação prossional, acabam exercendo a
função produtiva no corte da cana ou como empregada doméstica.
Em entrevista realizada em nossa pesquisa de campo, em janeiro
de 2015, pudemos identicar armações semelhantes entre as entrevista-
das. No relato de Ribeiro (2015) a entrevistada arma:
Esta é a segunda vez que venho pra Serrana. A primeira vez que vim
morar aqui, foi junto com meu marido. Só eu e ele, os meus dois -
lhos caram com minha família em Teresina. Fiquei seis meses e voltei.
Depois de dois anos, vim pela segunda vez com os lhos e quei por
aqui junto com meu marido. Trabalho em Ribeirão de empregada. Vim
pro Chavans porque já tinha um primo que morava aqui no bairro.
Mais uma vez, é possível armar que a condição do migrante no
município de Serrana rearma os condicionantes dos migrantes no Brasil

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
como um todo e no estado de São Paulo em particular. Chaves (2005, p.
11) arma que:
Nos deslocamentos de longa distância o Sudeste apresenta participa-
ção signicativa de empregadas domésticas, especialmente no Rio de
Janeiro, que se inserem de forma quase sistemática em domicílios de
chefes não migrantes. Em São Paulo, com mais peso do que essa cate-
goria encontram-se as migrantes solteiras, parentes do chefe, especial-
mente na condição de irmãs ou cunhadas. [...] Conrma-se então que
o emprego doméstico é uma possibilidade importante para as mulheres
nordestinas migrarem. Além disso, como o comportamento da migra-
ção dessa categoria é semelhante para separadas e solteiras, verica-se,
para essas mulheres que assim se inserem, que a condição de emprega-
da doméstica se sobrepõe a seu estado conjugal.
A análise conduz, portanto, a uma reprodução das relações sociais
e de classe, considerando que as funções produtivas e a condição de tra-
balhadora doméstica se apresentam como condicionalidade da situação da
mulher migrante. Embora Chaves (2005) tenha investigado a condição da
migração em grandes cidades, ao investigarmos 10 anos depois a condição
da mulher migrante em uma pequena cidade do interior paulista, a mesma
condição é encontrada. Neste aspecto é possível armar que a migração em
território nacional, ou seja, as migrações internas se colocam como um dos
dilemas contemporâneos das cidades brasileiras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar a migração no município de Serrana, por meio de
questionário aplicado aos moradores do bairro Chavans, percebemos que
a maioria dos entrevistados tem origem em uma única cidade do interior
de Minas Gerais, Montalvânia, o que permite armar que as redes so-
ciais têm um papel signicativo na denição do uxo migratório. Esses
migrantes estão inseridos em atividades econômicas que exigem menor
qualicação, pois trabalham majoritariamente na agroindústria canavieira
ou como empregada doméstica. Isso corrobora as análises feitas por autores
que apontam o desempenho econômico, a disponibilidade de empregos e
oferta no mercado de trabalho em uma região como decisivos na denição
do destino dos uxos migratórios.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Por outro lado, ao analisar apenas a participação feminina e os
motivos da migração, cou evidente a falta de autonomia das mulheres na
opção pela migração e na denição dos destinos do uxo migratório, pois
armam ter migrado para acompanhar seus maridos ou buscar trabalho.
REFERÊNCIAS
CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo. 2 ed. São Paulo: T.A.
Queiroz, 1981.
CHAVES, M. F. G. Migração feminina: familiar ou autônoma? Observações sobre
as mulheres que migram solteiras e separadas. Anais... XIV Encontro Nacional de
Estudos Populacionais, ABEP, Caxambu, 2004, p. 1-17. Disponível em: <http://
www.abep.nepo.unicamp.br/site_eventos_abep/PDF/ABEP2004_713.pdf>. Acesso
em: 15 set. 2010.
FUSCO, W. Redes sociais na migração internacional. O caso de Governador Valadares.
Anais. 2. Encontro Nacional sobre Migração. Ouro Preto, 1999, p. 317-341. Disponível
em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/outros/2EncNacSobreMigracao/
Anais2ENSMigracaoOuroPreto1999p317a341.pdf>.Acesso em 15 out. 2010.
GIL, A.C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1991.
HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do m dos Territórios à multiterri-
torialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
HAESBAERT, R. Migração e desterritorialização. In: PÓVOA NETO, H.;
FERREIRA, A. P. Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos mi-
gratórios. Rio de Janeiro: Revan, 2005, p. 35-46.
NOGUEIRA, J. B. N. Migração na cidade de Serrana: identicação do perl do mi-
grante no bairro Chavans. Editora/instituição. Ribeirão Preto, 2009.
PACHECO, C. A.; PATARRA, N. Movimentos migratórios nos 80: no-
vos padrões?, Anais... 1. Encontro nacional sobre migração. Curitiba, 1997,
p. 445-462. Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/
outros/1EncNacSobreMigracao/AnaisENSMigracaocuritiba1997p445a462.pdf >.
Acesso em: 10 out. 2010.
RIBEIRO, M. A.; SILVA, J. K.T. Tendência na redistribuição espacial das migra-
ções brasileiras no período 1991-1996. In: PÓVOA NETO, H.; FERREIRA, A.
P. Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migratórios. Rio de
Janeiro: Revan, 2005, p. 411-421.
SALLES, M. R. R.et al. (Org.). Imigrantes internacionais no pós-segunda guerra mun-
dial. Campinas/São Paulo: NEPO/UNIFESP, 2013.
SANTOS, R. C. B. Migração no Brasil. São Paulo: Contexto, 1994.
THERY, H.; MELLO, N. A. Atlas do Brasil: disparidades e dinâmicas do território. 2
ed. São Paulo: Editora da USP/Imprensa Ocial do Estado de São Paulo, 2008.

A ENTRADA DA AGROECOLOGIA NA AGENDA
DO MST: ESTRATÉGIA PARA ALÉM DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL”?
Henrique Tahan NOVAES
João Henrique PIRES
INTRODUÇÃO
A agroecologia começa a ganhar força no cenário latino-america-
no a partir da década de 1980 no contexto de “redemocratização”. Desde en-
tão, vários pesquisadores, extensionistas, membros de ONGs e intelectuais
de movimentos sociais vêm teorizando sobre suas práticas e princípios. Ela
vem sendo assumida como alternativa para fazer o enfrentamento às con-
dições destrutivas que a nanceirização da agricultura gerou para diversos
trabalhadores e trabalhadores que produzem e se reproduzem no campo.
Stephen Gliessman (2002), Francisco Caporal e José Costabeber
(2004), Eduardo Sevilla Guzmán (2011) e Miguel Altieri (2012) compre-
enderam que a agroecologia não se constitui num discurso unilinear, mas na
interação articulada entre o saber codicado por pesquisadores e cientistas
em diálogo com os saberes tácitos das comunidades rurais e tradicionais.
A agroecologia não é um conceito estático e mecânico, visto que
ela se constitui na diversidade dos movimentos sociais do campo e das
orestas, nas ações práticas e formulações teóricas que estão em constante
processo de transformação decorrentes da diversidade das características
políticas, sociais e culturais de cada comunidade.
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
145-160
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Do ponto de vista do capital, a agroecologia signica uma espécie
de ecocapitalismo, com algumas pitadas de proteção à natureza e de mer-
cados lucrativos em função do apelo à saúde.
Em virtude desta diversidade de experiências, a interação, o diálo-
go – e em alguma medida o conito entre os saberes tradicionais e o saber
técnico-cientíco, entre pesquisadores extensionistas, movimentos sociais
do campo e da oresta, é imprescindível estabelecer as bases epistemológi-
cas e práticas para sustentar a experiência agroecológica dos movimentos
sociais na América Latina (NOVAES, 2012).
A complexa diversidade que compõe as populações da América
Latina, bem como a história de resistência e de luta contra a espoliação
imposta por um capitalismo dependente e uma modernização consentida
no campo, tem possibilitado um rico debate sobre a agroecologia. Dezenas
de organizações, particularmente as constituídas por trabalhadores rurais,
comunidades originárias e das orestas ampliaram o debate e reforçaram
alternativas de agricultura rumo à transição agroecológica
1
.
Entre essas organizações está o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), que a partir do ano 2000 assume a agroecologia
como matriz produtiva estratégica para as áreas de assentamento e acam-
pamentos sob sua inuência. Esta posição é reforçada em 2001, quando
o Movimento lança a cartilha Construindo o caminho na qual estabelece a
necessidade de que “[...] os assentados e assentadas se qualiquem e do-
minem os princípios e as práticas agroecológicas, buscando construir um
novo modelo de produção, que nos ajude na edicação de um novo ser so-
cial” (MST, 2001, p. 90). Este capítulo pretende debater a entrada da agro-
ecologia na agenda do MST, seus antecedentes históricos e as dimensões
da agroecologia desenvolvidas pelos intelectuais agroecológicos do MST.
1
Destaca-se La Vía Campesina um movimento internacional composto por cerca de 164 organizações em 73
países da África, Ásia, Europa e América. Em total representa cerca de 200 milhões de pessoas entre camponeses,
camponesas, pequenos e médios produtores, povos sem-terra, indígenas, migrantes e trabalhadores agrícolas de
todo o mundo. É um movimento autônomo pluralista e multicultural sem nenhuma liação política e econô-
mica de qualquer tipo. Para mais informações acesse: http://viacampesina.org/es/

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Apesar de o ano 2000 representar o marco referencial da inserção
da agroecologia no MST, desde a década de 1980
2
, já existia um debate
entre os militantes do Movimento sobre a necessidade de uma matriz al-
ternativa, de organização socioprodutiva, para os Sem Terra.
Após suas primeiras conquistas, o MST começa a buscar alterna-
tivas para potencializar a produção das famílias e formar sujeitos com uma
visão diferenciada da relação ser humano-ambiente nas áreas de assenta-
mento. Assim, se desenvolveu no início da década de 1990, as diretrizes
para o Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA) e as Cooperativas de
Produção Agropecuárias (CPAs)
3
.
Mesmo avançando com debates e ações sobre a perspectiva social
da cooperação, o MST enfrentou vários obstáculos decorrentes das contra-
dições existentes entre as concepções de gestão das cooperativas coletivas
e a concepção de cooperação na lógica competitiva do mercado capitalista,
o que acarretou no endividamento e decadência de várias cooperativas,
já com as primeiras ofensivas do governo Fernando Henrique Cardoso
(NOVAES, PIRES e SILVA, 2015).
Sobre as diculdades enfrentadas pelo MST na década de 1990,
podemos citar, além das particularidades externas, a baixa formação técnica e
a falta de conhecimento sobre o desenvolvimento das cooperativas e sobre as
novas formas de produção propostas. Segundo Ricardo Borsatto e Maristela
Carmo (2013, p. 658), as concepções teóricas que norteavam o MST:
[…] baseavam-se nas interpretações ortodoxas dos escritos de Marx,
Kautsky e Lênin, bem como nas experiências soviéticas e cubanas de co-
2
A agroecologia é assumida enquanto matriz produtiva no MST em seu 4. Congresso Nacional realizado no
ano 2000. Contudo, Guhur (2010), Mohr (2014), Borsatto e Carmo (2013) destacam que no Caderno de
Formação n. 10 (MST, 1986, p. 25-28) há um capítulo intitulado “o uso de tecnologias alternativas” abordan-
do o domínio das corporações multinacionais sobre o pacote tecnológico da Revolução Verde e a necessidade de
construir alternativas ao modelo dependente e degradante do modelo hegemônico.
3
João Bernardo (2012) descreve que “[...] foram organizadas mais de 40 Cooperativas de Produção Agropecuária
(CPAs) no país, muitas inteiramente coletivistas, verdadeiras ilhas socialistas não só quanto à organização do
trabalho, mas também quanto a certos aspectos da vida doméstica como, por exemplo, o uso de refeitórios e
creches. Entre as principais ideias que marcaram a linha de orientação política para a cooperação do MST nesse
período, tal como Alexandre Ribas sistematiza as duas ilustram bem a forma como a questão era considerada:
1) Passar da produção de subsistência para a produção de mercadorias. Isso signicava acúmulo de capital para
investimentos em produtos agroindustriais. 2) Estabelecer uma fase de transição entre o camponês-artesão e o
operário. Transformar a “consciência camponesa” em “consciência operária
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

letivização da agricultura, que em sua maioria não se mostraram satisfa-
tórias na realidade dos assentamentos brasileiros. Isso, em conjunto com
outros fatores, abriu espaços políticos para a emergência de um novo
discurso, no qual o saber camponês e a questão ambiental ganharam rele-
vo, emergindo como consequência um discurso em bases agroecológicas.
Em meio a esse quadro, Dominique Guhur (2010)
4
– uma das
intelectuais do MST, defensora da agroecologia – aponta que o MST é um
movimento “de seu tempo”, pois depara-se com novas demandas e lutas
que crescem nos últimos anos, tal qual a questão ambiental, enfrentando
abertamente os limites e contradições das alternativas que propõem para
superar os desaos.
É neste enfrentamento que o IV Congresso Nacional do MST
delibera a questão agroecológica como bandeira de luta, em torno do que
cou conhecido como Projeto Popular.
A ENTRADA DA AGROECOLOGIA NA AGENDA DO MST
No texto Linhas políticas rearmadas no IV Congresso Nacional do
MST (MST, 2000), o modelo de agricultura hegemônico baseado na “trans-
ferência tecnológica, na utilização de sementes transgênicas, no uso de agro-
tóxicos, na exportação de commodities e no monopólio do uso da terra por
cooperações multinacionais” é apresentado como uma prática que deve ser
combatida. Mesmo que tardiamente, o MST percebeu que os “frutos” da
“Revolução Verde” não poderiam ser colhidos pelos movimentos sociais.
No IV Congresso também foi apresentado o documento Nossos
compromissos com a terra e com a vida, composto de dez pontos, entre os quais
destacamos “evitar a monocultura e o uso de agrotóxicos” (MORISAWA,
2001, p. 238).
Guhur (2010) ressalta que tal posicionamento, exigiu uma re-
formulação na proposta produtiva, como também na própria organiza-
ção do movimento. Após um período de crise, deagrado pelos próprios
limites internos do MST e pelas ações do governo federal que afetaram o
4
Dominique Guhur é formada em Agronomia pela Universidade Estadual de Maringá e uma das coordenado-
ras da Escola Milton Santos (MST/PR).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Movimento, o SCA acabou sendo extinto e em seu lugar foi criado o Setor
de Produção, Cooperação e Meio Ambiente (SPCMA).
A questão ambiental passa a ser fundamental nos debates do
Movimento e a agroecologia começa a ser uma alternativa produtiva estra-
tégica na proposta de um Projeto Popular.
Ricardo Borsatto e Maristela Carmo (2013) descrevem que já na
Proposta de Reforma Agrária do MST em 1995 (MST, 2005) é possível
identicar a elaboração de propostas para a construção de um novo mo-
delo produtivo para os assentados. Para a elaboração dessa nova proposta:
A obra de Chayanov contribuiu de forma fundamental para a con-
formação do arcabouço teórico da Agroecologia (CAPORAL e
COSTABEBER, 2004). Da concepção chayanoviana são retirados
conceitos sobre os quais se assentam as propostas metodológicas da
Agroecologia, tais como o agricultor, visto não mais como um mero
objeto de análise, mas como um sujeito criando sua própria existên-
cia; a noção de economia moral camponesa; a abordagem de baixo
para cima para a elaboração de propostas de desenvolvimento; o uso
de análises multidisciplinares da agronomia social; a lógica econômica
não capitalista dos camponeses; a compreensão do balanço trabalho-
-consumo; o conceito de grau de autoexploração; o subjetivismo dos
camponeses nas tomadas de decisões e o conceito de ótimos diferen-
ciais (BORSATTO; CARMO, 2013, p. 658)
5
.
A reorientação do MST se deu, entre outros, pelos seguintes fa-
tores: a) a reforma neoliberal do Estado brasileiro, que pôs m às políticas
setoriais de preços mínimos e abriu os mercados; b) o m do Programa
Especial de Crédito para a Reforma Agrária (PROCERA) e c) a formação
da Via Campesina.
Para Picolotto e Piccin, “Os dois primeiros fatores dicultaram
a continuidade das estratégias produtivas até então desenvolvidas pelo
Movimento, enquanto o terceiro ampliou o leque de relações institu-
cionais do MST” (PICOLOTTO; PICCIN, 2008, apud BORSATTO;
CARMO, 2013, p. 656).
5
Para uma compreensão mais ampla sobre a obra de Alexander Chayanov, ver o livro: Chayanov e o Campesinato
organizado por Horácio Martins de Carvalho e publicado pela Editora Expressão popular em 2014.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Nessa reorientação, o trabalhador e trabalhadora do campo dei-
xam de ser meros objetos de mobilização em uma massa revolucionária
e passam a sujeitos históricos, com conhecimento e valores morais consi-
derados essenciais para a construção de uma sociedade mais justa, susten-
tável e melhor. Por este motivo, as metodologias de Assistência Técnica e
Extensão Rural (ATER) passam a valorizar o saber camponês que é agrega-
do aos processos de formação do Movimento (TONÁ; GUHUR, 2009);
(BORSATTO; CARMO, 2013).
A agroecologia quando assumida pelo MST, além de fazer refe-
rência a uma matriz produtiva de menor degradação ambiental e de reco-
nhecimento dos saberes tradicionais, envolve um intenso questionamento
e enfrentamento às políticas e técnicas agrícolas adotadas pelo agronegó-
cio, fortemente mecanizada, com utilização de sementes transgênicas vol-
tada para a exportação, acumulação de capital e dependente de complexos
agroindustriais oligopolizados, não contribuindo com o avanço da luta por
reforma agrária (BORSATTO; CARMO, 2013).
O MST considera que a agroecologia é um dos caminhos para
combater as novas congurações do capitalismo no campo delineadas pelo
agronegócio. Isso pode ser visto nos ataques frontais às grandes corpora-
ções. No ato de encerramento da II Jornada Paranaense de Agroecologia em
2003, o MST promoveu um protesto contra o centro de pesquisa e produ-
ção de sementes de soja e milho transgênicos da transnacional Monsanto,
localizada na área rural do município de Ponta Grossa.
A área foi então ocupada por famílias Sem Terra de acampamentos da
região, e convertida no Centro Chico Mendes de Agroecologia, pelo
período de 18 meses (prazo ao nal do qual as famílias foram despeja-
das), com diversas atividades de experimentação, produção de semente
e formação em agroecologia. De acordo com Gonçalves (2008), esse
fato abalou as relações entre as entidades promotoras das Jornadas,
causando a retirada de algumas delas, por não apoiarem o caráter de
luta contra o capital que o evento havia assumido, e também por se
sentirem desprestigiadas na organização. Tratava-se de um momento
político importante, uma vez que, embora os cultivos transgênicos esti-
vessem se expandindo no país, de maneira clandestina, não havia ainda
uma decisão denitiva do Governo Federal a respeito. A ocupação da
multinacional Syngenta Seeds, também no Paraná, e do viveiro de mu-
das da Aracruz Celulose, no Rio Grande do Sul, em 2006, seguiram
nessa mesma linha (GUHUR, 2010, p. 145).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
As observações de Dominique Guhur (2010) nas linhas acima
nos ajudam a esclarecer que as ações do MST no campo da agroecolo-
gia não podem ser consideradas como ações meramente “ambientais”, do
tipo “protejamos a natureza”. Há nessas ações um confronto direto com
as Corporações capitalistas: produtoras de transgênicos, acumuladoras de
capital, estrangeiras, espoliadoras de terra e do trabalho do povo.
Na nova conformação da exploração da terra no Brasil, o agro-
negócio é o modelo hegemônico, preservando elementos fundamentais do
latifúndio e consolidando uma aliança entre fundos de pensão, os bancos,
os grandes proprietários de terra e as empresas industriais transnacionais
que controlam insumos, os preços, o comércio das mercadorias, a mídia
burguesa e o aparato de Estado (PIRES, 2016).
As mudanças impostas pelo agronegócio, a partir da década de
1990, apresentaram uma reestruturação da exploração do campo. Portanto,
na reorientação do MST. Nos anos 2000 o MST cunha o termo Reforma
Agrária Popular. Para o MST:
Essa proposta de reforma agrária reete parte dos anseios da classe tra-
balhadora brasileira para construir uma nova sociedade igualitária, so-
lidária, humanista e ecologicamente sustentável. Desta forma, as pro-
postas de medidas necessárias devem fazer parte de um amplo processo
de mudança na sociedade e, fundamentalmente, da alteração da atual
estrutura de organização da produção e da relação do ser humano com
a natureza, de modo que todo o processo de organização e desenvol-
vimento da produção no campo aponte para a superação da explora-
ção, da dominação política, da alienação ideológica e da destruição da
natureza. Isso signica valorizar e garantir trabalho as pessoas como
condição à emancipação humana e a construção da dignidade e da
igualdade entre todos e no estabelecimento de relações harmônicas do
ser humano com a natureza (MST, 2013, p. 149).
Para a proposta da Reforma Agrária Popular a agroecologia é a
matriz tecnológica assumida como alternativa para a organização sócio-
-produtiva das famílias assentadas e acampadas porque representa um
meio de aumentar a produtividade do trabalho e das áreas, em equilíbrio
com a natureza, com possibilidades de enfrentar e combater o agronegócio
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

e a propriedade privada e intelectual decorrente do registro das patentes de
sementes, animais, recursos naturais e biodiversidade (MST, 2013)
6
.
Para Gonçalves (2008) o que mobiliza o MST é a negação do pa-
drão de desenvolvimento agrícola existente no país, colocando em evidên-
cia a necessidade da preservação e reconstrução da agricultura camponesa
pela via da reforma agrária, além de propor formas de gestão e participação
do campesinato em sistemas cooperativados e agroecológicos de produção.
Nilciney Toná e Dominique Guhur (2012) observam que se
encontra em gestação uma concepção mais recente e ampliada de agro-
ecologia, que tem como pilar político os movimentos sociais populares
do campo
7
. Essa vertente não vê a agroecologia como uma solução me-
ramente tecnológica e ambiental para as crises estruturais e conjunturais
do modelo econômico e agrícola. A agroecologia, como observado pela
Via Campesina e pelo MST, é entendida como parte da estratégia de luta
e de enfrentamento ao agronegócio, à exploração dos trabalhadores e à
degradação da natureza. Nessa concepção a agroecologia inclui o cuidado
e a defesa da vida, a produção de alimentos, a consciência política e orga-
nizacional (TONÁ; GUHUR, 2012).
O MST considera que a mudança na racionalidade social, eco-
lógica e, sobretudo, política e técnica das famílias ajuda a superar a nova
dinâmica do capitalismo no campo, baseado em relações de dominação ex-
tremamente severas, como a presença das sementes transgênicas e as articu-
lações entre os capitais transnacionais agrocomerciais (químico, alimentar
e nanceiro) (GONÇALVES, 2008).
Apesar da ênfase que o programa Reforma Agrária Popular dá a
agroecologia, Nilsa Luzzi (2007, p. 130) descreve que a incorporação desta
matriz produtiva:
[...] pelos assentados não é uma questão simples, envolve vários fatores
e as mudanças nem sempre têm a rapidez desejada. A apropriação do
tema pelas lideranças do MST ocorre de forma muito mais acelerada
do que vem ocorrendo nos assentamentos, na prática dos assentados.
Embora o MST esteja investindo fortemente em formação e capaci-
6
Baseando nos em Florestan Fernandes, acreditamos que não é mais possível uma Reforma Agrária Popular no
Brasil. Deve ser construída uma Revolução Agrária Popular.
7
Nilciney Toná também é um dos intelectuais do MST defensores da agroecologia. Formado em Agronomia
pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), é um dos coordenadores da Escola Milton Santos (MST – PR).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
tação em agroecologia, a mudança ainda é bastante lenta. A ideologia
modernizadora continua exercendo forte poder de inuência entre os
assentados e, por que não dizer, em várias lideranças.
Entretanto, mesmo não tendo força suciente para fazer a tran-
sição radical para a agroecologia, o MST demonstra força para fazer a luta
contra o agronegócio, em especial, realizando campanhas permanentes
contra o uso de agrotóxicos e defendendo que as sementes, ao invés de ser
monopólio de poucas corporações
8
, sejam patrimônio dos povos a serviço
da humanidade (DREMINSKI, 2015).
A campanha permanente contra o uso de agrotóxicos, para além
de questionar as mazelas do uso dos defensivos químicos, seja para a saúde
humana (com inúmeros casos registrados de contaminação, tanto de tra-
balhadores como de consumidores), seja pela poluição e depravação dos
recursos naturais, exige a adequação do sistema produtivo sobre bases mais
limpas, ligadas aos princípios da agroecologia
9
.
Nessa empreitada em busca da democratização e não mercan-
tilização das sementes, como também da luta contra o uso de agrotóxi-
cos, destacamos as ações exercidas pelas mulheres que compõem a Via
Campesina. Pinassi e Mafort (2012) apresentam um trabalho com várias
ações de mulheres da Via Campesina que buscam denunciar os efeitos
nocivos do consumo de alimentos produzidos sob a base de sementes ge-
neticamente modicadas e do uso de agrotóxicos.
O protagonismo que as mulheres vêm assumindo na reorientação
da organização sócio-produtiva para a agroecologia é tão importante quan-
to as ações de enfrentamento ao patriarcalismo nas estruturas internas das
8
Luiz Carlos Machado e Luiz Carlos Machado Filho (2014) descreveram que a biotecnologia e a transgenia, tal
qual vem sendo utilizada na produção agrícola se desenvolve sobre bases técnicas reducionistas que promovem
monoculturas e produzem severa erosão genética e laminar. Destaca que além de padronizar a produção de ali-
mentos vegetais em 15 espécies que respondem por 90% dos alimentos produzidos, sobre a base de quatro cul-
turas (trigo, arroz, milho e soja) que respondem por 70% da produção e do consumo mundial, assim, são pro-
cedimentos que eliminam a diversidade biológica, impedindo o melhoramento genético natural das populações.
9
Os documentários O Veneno Está na Mesa 1 e 2 de Silvio Tendler nos apresentam uma bela crítica à Revolução
Verde. No primeiro lme, as estruturas e contradições do modelo convencional da “Revolução Verde” relata-se a base
das sementes transgênicas e da necessidade do uso de defensivos para esse modelo de produção coloca na mesa de
cada brasileiro 5,4 litros de agrotóxicos. E no segundo, apresenta as experiências de produção agroecológica como
alternativa ao modelo contaminante, apresenta ainda alguns avanços em relação as politicas públicas. Contudo
chama a atenção os desaos impostos pelas corporações que vem monopolizando a cadeia produtiva dos alimentos.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

organizações da classe trabalhadora. “Essas mulheres impõem, enm que
pensemos urgentemente numa alternativa radical ao sistema, uma alter-
nativa que se constitua no reino da liberdade e da igualdade substantiva
(PINASSI; MAFORT, 2012, p. 155).
Podemos levantar a hipótese de que a luta pela agroecologia re-
laciona-se ao que Mészáros (2002) chama de igualdade substantiva e pro-
dução destrutiva.
Se o capital promove a igualdade formal, os movimentos sociais
anticapital podem estar lutando pela construção da igualdade substantiva
de gênero, etnia, geração e, principalmente, pela superação da exploração
de classe. Não é por mero acaso que as mulheres do MST organizam lutas
pela independência econômica, não subordinação ao marido, envolvendo-
-se, ao mesmo tempo, com questões de classe, de gênero e ambientais,
numa interessante imbricação (PINASSI; MAFORT, 2012)
10
.
Assim, observa-se que o papel da mulher no MST contribui no
avanço do debate sobre a agroecologia, somando-se à ação dos demais
produtores, técnicos extensionistas e mesmo de consumidores, que jun-
tos, compõem uma parcela signicativa de cidadãos que se articulam em
defesa da produção agroecológica, a exemplo da Articulação Nacional
para Agroecologia (ANA) e Associação Brasileira de Agroecologia (ABA)
(PIRES, 2016).
No campo de ação de luta no âmbito das ações marginais e sim-
bólicas do Estado capitalista brasileiro destaca-se a Política Nacional de
Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), o Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE),
que mais ou menos dentro dos limites do Estado vem reconhecendo a ne-
cessidade do desenvolvimento de práticas orgânicas e agroecológicas. Não
custa reforçar que a criação destas ações, se por um lado impulsionou a
vida de muitos assentamentos, por outro signica uma não política de
reforma agrária à medida que o lulismo bloqueou qualquer possibilidade de
10
Algumas vertentes do marxismo ainda separam o trabalho produtivo do trabalho improdutivo e doméstico.
Neste caso, todo o trabalho doméstico/reprodutivo, majoritariamente feminino, era ocultado. Para este debate,
ver Vasconcellos (2015).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
reforma agrária e de criação das condições gerais de produção e reprodução
dos assentamentos rurais
11
.
Porém, em meio à complexidade e disputa pela matriz agroeco-
lógica, não se pode ignorar que existem várias organizações que seguem a
cartilha ecodesenvolvimentista de organizações internacionais como o FMI
e Banco Mundial, ligando-se à área de forma oportunista e/ou reformista,
com a nalidade de desenvolver mercados verdes, com discurso de susten-
tabilidade e valoração do produto. Tal fato é ilustrativo de que existem,
pelo menos, duas vertentes ligadas à agroecologia, uma relacionada aos
mercados verdes, orientados pela lógica capitalista e outra, mais à esquerda,
relacionada às bandeiras do MST, que em alguma medida não dissociam as
bases estruturais da produção de uma reexão sobre as questões sociais, tais
como: juventude campesina, gênero, luta de classes, dentre outros.
Para Toná e Guhur, adeptos da segunda vertente:
Neste contexto, a agroecologia não se restringe ao desenvolvimento de
experiências de agricultores de base ecológica, ressaltando processos de
organização social que se orientam pela luta política e transformação
social, indo além da luta econômica imediata e corporativa e das ações
localizadas, e por vezes assistencialistas, junto aos agricultores. De fato,
a agroecologia possui uma especicidade que referencia a construção
de outro projeto de campo. Entretanto, tal projeto de campo é incom-
patível com o sistema capitalista e depende, em última instância, de sua
superação. (TONÁ; GUHUR, 2012, p. 63).
O fato da agroecologia ser construída e debatida em diálogo com
uma diversidade de atores vem gerando perspectivas críticas de conheci-
mento e novas estratégias de mediação dos saberes, a exemplo da Tecnologia
Social (TS) (DAGNINO, 2013), que contribui, segundo Caldart et al.,
2002; Kolling et al. (1999) e Almeida et al.(2008) para dinamizar a edu-
cação do campo.
A TS, ao questionar o mito da neutralidade da ciência e o deter-
minismo tecnológico, busca desconstruir a crença na solução dos especia-
listas e coloca a tecnologia como construção coletiva com e pelos atores,
11
O lulismo mudou o cenário das lutas no campo brasileiro, ao reverter as taxas de desemprego, bolsa família,
cotas em Universidades Públicas, Prouni, aumento do salário mínimo acima da inação, dentre outros. Com
isso as ocupações de terra caíram drasticamente.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

abrindo a possibilidade de gerar soluções sociotécnicas a partir das relações
sociais vivenciadas (FONSECA, 2009).
Em relação à educação do campo Caldart (2009, p. 44) descreve que:
Na rearmação da importância da democratização do conhecimento, do
acesso da classe trabalhadora ao conhecimento historicamente acumu-
lado, ou produzido na luta de classes, a Educação do campo traz junto
uma problematização mais radical sobre o próprio modo de produção
do conhecimento, como crítica ao mito da ciência moderna, ao cog-
nitivismo, à racionalidade burguesa insensata; como exigência de um
vínculo mais orgânico entre conhecimentos e valores, conhecimento e
totalidade do processo formativo. A democratização exigida, pois, não
é somente do acesso, mas também da produção do conhecimento, im-
plicando outras lógicas de produção e superando a visão hierarquizada
do conhecimento própria da modernidade capitalista. As questões hoje
da construção de um novo projeto/modelo de agricultura, por exemplo,
não implicam somente o acesso dos trabalhadores do campo a uma ci-
ência e a tecnologias existentes. Exatamente porque elas não são neutras.
Foram produzidas desde uma determinada lógica, que é a da reprodução
do capital e não a do trabalho. Esta ciência e estas tecnologias não devem
ser ignoradas, mas precisam ser superadas, o que requer outra lógica de
pensamento, de produção do conhecimento (CALDART, 2009, p. 44).
Enio Guterres (2006) explica que a agroecologia no Brasil desen-
volve-se de forma restrita, ou mesmo não se desenvolve, porque a maio-
ria das instituições de ensino e até mesmo movimentos sociais abordam
a questão agroecológica sem levar em consideração outras dimensões que
não a ecológica, esbarrando em ações próximas a corrente do “desenvolvi-
mento sustentável”
12
.
Guterres (2006) também salienta que não existe assistência téc-
nica suciente para acompanhar todos os sujeitos que iniciam o processo
de transição agroecológica. Evidentemente, pois em nossas pesquisas de
campo é possível perceber que os técnicos raramente aparecem nos assen-
tamentos, quando aparecem, rapidamente desaparecem. São mal remu-
nerados, em geral terceirizados e frutos de uma política de destruição da
Assistência Técnica e Extensão Rural.
12
Para saber mais sobre os limites do “desenvolvimento sustentável”, ver as contribuições de Mészáros (2011),
Foster (2010) e Lowy (2006).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Cabe ressaltar que no nal do século XX e início do século XXI,
surgiram muitos cursos de agroecologia formais no cenário nacional. Até
o nal de 2013, identicaram-se 136 cursos em funcionamento, sendo
108 de nível técnico, 24 de nível superior e 4 de pós-graduação stricto
sensu, sendo a maioria desses cursos, 44 localizados na região nordeste do
país (BALLA et al. 2014; PIRES, 2016). A partir de 2015 começamos a
contribuir como coordenadores do Curso Técnico em Agroecologia, fruto
da parceria com o MST do Centro-Oeste Paulista (NOVAES et al., 2015).
Estes números são aparentemente grandes, mas do nosso ponto
de vista relativamente muito pequenos em função dos desaos de uma
verdadeira transição socialista, que teria como fundamento a economia
comunal, a desmercantilização completa da sociedade, a utilização ade-
quada dos recursos naturais e o autogoverno pelos produtores livremente
associados e a educação para além do capital.
REFERÊNCIAS
ALTIERI, M. Agroecologia: bases cientícas para uma agricultura sustentável. 3.
ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
BALLA, J. V. Q. et al. Panorama dos cursos de agroecologia no Brasil. Revista
Brasileira de Agroecologia. v. 9(2), n. 3-14, 2014.
BERNARDO, J. MST e agroecologia: uma mutação decisiva. Passa Palavra, 2012.
Disponível em: <http://passapalavra.info/2012/03/97517>. Acessado em 30 nov.
2014.
BORSATTO, R. S.; CARMO, M. S. A construção do discurso agroecológico no
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. RESR, Piracicaba/SP, v. 51, n.
4, p. 645-660, Out./Dez. 2013.
CALDART, R. S.;et al. Educação do Campo: identidade e políticas públicas. Por
uma educação do campo. São Paulo: Anca, 2002.
CALDART, R. S. Educação do campo: notas para uma análise de percurso.
Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro: EPSJV. v. 7, n. 1, p. 35-64,
mar./jun. 2009.
CAPORAL, F. COSTABEBER, J. A. Agroecologia e extensão rural: contribuições
para o desenvolvimento rural sustentável. Porto Alegre, 2004.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

DAGNINO, R. (Org.) Tecnologia social: ferramenta para construir outra socieda-
de. Campinas: Komedi, 2010.
DREMINSKI, J. A proteção jurídica e comunitária das sementes crioulas e seus
conhecimentos tradicionais associados . In: MAZIN, A. D. et al. (Org.). Questão
agrária, cooperação e agroecologia. 1ed. São Paulo: Outras Expressões, 2015, v. 2,
p. 421-488.
FONSECA, R. Tecnologia e democracia. In: OTTERLOO, A. et. al. Tecnologias
sociais: caminhos para a sustentabilidade. Brasilia/DF, 2009.
FOSTER, J. B. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010. [Tradução: Maria Teresa Machado]
GLIESSMAN, S. R. Agroecología: procesos ecológicos en agricultura sostenible.
Turrialba: Catie, 2002.
GONÇALVES, S. Campesinato, resistência e emancipação: o modelo agroecoló-
gico adotado pelo MST no Estado do Paraná. 2008. 311 f. Tese (Doutorado em
Geograa) – Universidade Estadual Paulista, Campus de Presidente Prudente,
2008.
GUHUR, D. M. P. Contribuições do diálogo de saberes à educação prossional em
Agroecologia no MST: desaos da educação do campo na construção do proje-
to popular, 2010. 267 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Estadual de Maringá, 2010.
GUTERRES, I. (Org.). Agroecologia militante: contribuições de Enio Guterres.
São Paulo: Expressão Popular, 2006.
KOLLING, E. et al. Por uma educação básica do campo. Brasília: Universidade de
Brasília, 1999.
LOWY, M. Ecossocialismo. São Paulo: Cortez, 2006.
LUZZI, N. O debate agroecológico no Brasil: uma construção a partir de diferen-
tes atores sociais. 2007. 182 p. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007.
MACHADO, L. C. P.; MACHADO FILHO, L. C. P. A dialética da agroecologia:
contribuição para um mundo com alimentos sem venenos. São Paulo: Expressão
Popular, 2014.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. 1. ed. São
Paulo: Boitempo, 2002.
MOHR, M. F. A formação em agroecologia no MST/SC: um olhar sobre os egressos
da Escola 25 de Maio de Fraiburgo/SC. 2014. 137 f. Dissertação (Mestrado em

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Desenvolvimento rural e sociedade) – Universidade Federal de Santa Catarina,
2014.
MORISAWA, M. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão
Popular, 2001.
NOVAES, H. T. Reatando um o interrompido: a relação universidade movimen-
tos sociais na América Latina. São Paulo: Expressão Popular-Fapesp, 2012.
NOVAES, H. T. et al. A economia política da “revolução verde”, a agroecolo-
gia e as escolas de agroecologia do MST. In: NOVAES, H. T.; MAZIN, A. D.;
SANTOS, L. (Org.). Questão agrária, cooperação e agroecologia. 1 ed. São Paulo:
Outras Expressões, 2015, v. 1, p. 209-230.
TONÁ, N.; GUHUR, D. M. P. Agroecologia. In: CALDART, R. S.; PEREIRA,
I. B.; ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO, G. (Org.) Dicionário da Educação do
Campo. Rio de Janeiro/São Paulo. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio.
Expressão Popular, 2012, p.59-67.
PINASSI, M. O.; MAFORT, K. Os agrotóxicos e a reprodução do capital na
perspectiva feminista da Via Campesina In: RODRIGUES, F. C.; NOVAES, H.
T.; BATISTA, E. L. (Org.) Movimentos sociais, Trabalho associado e Educação para
além do capital. São Paulo: Outras expressões, 2012.
PIRES, J. H. S. Uma análise da proposta de formação técnica para o processo de
transição agroecológica na Escola “José Gomes da Silva”, MST-PR. 2016. 120f.
Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Estadual Paulista, 2016.
SEVILLA GUZMÁN, E. Sobre los orígenes de la agroecología en el pensamiento
marxista y libertario. La Paz: Plural Editores, 2011.
TONÁ, N.; GUHUR, D. M. P. O diálogo de saberes na promoção da agroeco-
logia na base dos movimentos sociais populares. Rev. Bras. de Agroecologia, v. 4, n.
2, p. 3322-3325, nov. 2009.
______.; ______. Agroecologia. In: CALDART, R. S. et al. (Org.) Dicionário
da Educação do Campo. Rio de Janeiro/São Paulo. Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio. Expressão Popular, 2012, p.59-67.
VASCONCELLOS, B. M. Mulheres Rurais, trabalho associado e agroecologia.
In: NOVAES, H. T. et al. (Org.). Questão agrária, cooperação e agroecologia. 1ed.
São Paulo: Outras Expressões, 2015, v. 1, p. 341-370.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)


ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS
DESAFIOS À TECNOLOGIA SOCIAL
NUMA ECONOMIA DE MERCADO
1
Agnaldo dos SANTOS
O amplo espectro de estudos e teorias que procuram compre-
ender o papel da ciência e da tecnologia, nos campos da epistemologia e
das ciências humanas, indica a verdadeira “imersão” que ambas experimen-
tam ao serem engendradas e produzidas no tecido social. Mas cou restrita
às páginas da história do pensamento ocidental a tese de uma neutralidade
do fazer tecnocientíco
2
? Ou ela está mais presente do que nunca, inuen-
ciando inclusive a disputa por experimentos no campo cientíco-tecno-
lógico, que passam, inclusive, pela possibilidade de modalidades de tran-
sações econômicas não-mercantis? A pergunta não é meramente retórica,
pois as direções que as agendas de pesquisas podem tomar colocarão em
destaque os “usos sociais” da ciência e as formas de construir sociabilidades
que prescindam da (pretensa) racionalidade da economia de mercado.
Colocando a questão em termos mais claros: só existe um tipo de
dinâmica no fazer cientíco? Sua relação com a economia deve ser exclu-
1
Este texto é uma transcrição aproximada da intervenção do autor na mesa “Tecnologia e Política no Brasil e
na América Latina” do XV Fórum de Análise de Conjuntura, com os professores Renato Dagnino e Henrique
Tahan Novaes.
2
Os trabalhos sobre losoa da ciência e sociologia do conhecimento constituem uma das grandes tradições
no campo das Humanidades, passando por autores como Karl Popper, omas Khun, Ilya Prigogine, Pierre
Bourdieu, Bruno Latour e outros. Não entraremos aqui especicamente neste debate sobre “neutralidade” no
campo cientíco, cujo balanço e problematização são bem apresentados por Dagnino (2008).
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
161-174
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

sivamente de submissão aos ditames mercantis? Podem parecer questiona-
mentos ingênuos, mas quem conhece a política de ciência e tecnologia que
prevalece hoje – não só no Brasil – sabe que aí não há nada de ingênuo.
Boa parte dos nanciamentos de pesquisas e, por extensão, da gestão pú-
blica responsável pela área, é guiada pela premissa de que ciência e tecnolo-
gia devem ser “úteis” para a economia, logo, os recursos nanceiros devem
ser “bem aplicados”. Traduzindo: devem transferir para o setor empresarial
privado conhecimento e soluções para lhes garantir crescimento econômi-
co, o que hipoteticamente garantiria um transbordamento de benefícios
para o conjunto da sociedade. Consequência do argumento: investir recur-
sos em pesquisas fora do eixo “universidade-empresa” seria desperdício de
dinheiro público, porque sem isso não haveria retorno à sociedade.
Em linhas gerais, estes seriam os argumentos do mainstream, tan-
to no mundo acadêmico quanto no político (passando, claro, pela mídia).
Ocorre que, ao tentar refutar esta tese, seus adversários correm o risco
de cair na armadilha lançada pelos positivistas redivivos: negar todo co-
nhecimento produzido pelo mundo ocidental-moderno e pregar, como o
anarquista Suvarin, do livro Germinal de Émile Zola, que tudo que existe
deve explodir para começar do zero, num novo mundo. Nestes termos, a
tecnologia social só seria possível se rompesse completamente com a lógi-
ca do capital? Ou, rompendo progressivamente, poderá superar dialetica-
mente a tecnociência mercantilizada desde seus usos no mundo atual, em
experimentos sociais “implantados” na economia de mercado?
O LUDDISMO E AVERSÃO AO MOINHO SATÂNICO
Existe ampla literatura sobre a relação da classe trabalhadora com
o advento de novas tecnologias, quase sempre poupadoras de mão-de-obra.
A disseminação da economia industrial veio, portanto, de braços dados
com a utilização da ciência para ns da reprodução ampliada do capital,
nos termos de Marx em O Capital. Ao mesmo tempo que demandava força
de trabalho, a grande indústria aumentava a composição orgânica do ca-
pital quando os custos com o assalariamento eram considerados elevados.
Desta forma, as massas de antigos camponeses que passavam pela proleta-
rização encontrariam na tecnologia um perigo à sua própria sobrevivência,

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
daí a emergência de movimentos espontâneos de resistência às máquinas
no início da Revolução Industrial. Ocorre que tal movimento, conheci-
do como “luddismo” ou “luddita”, passou a designar de forma genérica o
comportamento arredio dos trabalhadores às novas tecnologias defendidas
pelo empresariado, que não tardaram a classicar tal resistência de “obscu-
rantista”. Desde então, a luta política entre defensores e críticos das novas
tecnologias foi colocada em termos binários: ser “a favor” ou “contra” o
progresso cientíco e tecnológico.
Tal dicotomia tende a trazer muitos equívocos interpretativos,
sendo o principal o de que os trabalhadores seriam necessariamente corpo-
rativistas e presos ao passado, muito em função de sua ignorância e desin-
formação. Se tomamos autores como Hobsbawm (2011) e Polanyi (2000),
podemos nos municiar de outra perspectiva: os trabalhadores só reagem
negativamente às mudanças tecnológicas quando sua própria sobrevivên-
cia está em risco, e não por uma posição ontologicamente dada ou ainda
por mera falta de ilustração. Tomando as teses schumpeterianas, a inovação
tecnológica é uma estratégia empresarial que leva à uma “destruição cria-
dora” de forma aleatória e não centralizada; mas com isso leva à bancarrota
não só rmas concorrentes, mas também enormes contingentes proletá-
rios. Marx já havia chamado a atenção para o fato de inovações tecnológi-
cas serem amplamente adotadas no processo produtivo somente onde há
escassez de mão-de-obra (como nos Estados Unidos de meados do século
XIX), ao passo que num contexto de abundância de força de trabalho a
adoção de tais maquinários poderia ser postergada.
Temos então que o tão propalado “obscurantismo” teria mais que
ver com um movimento de autodefesa dos trabalhadores do que apenas
preconceito ou ignorância. Não por outro motivo, Polanyi chamava a in-
dústria moderna de moinho satânico, verdadeira máquina de triturar gente,
e que desde então, a engenhosidade e a novidade passaram a ser vistas com
desconança por amplas parcelas da população. As promessas de conforto
e bem-estar eram contrastadas com o aumento da jornada e da intensidade
do trabalho fabril; tempos depois, os impactos para a natureza e o meio
ambiente, logo para a sobrevivência da espécie humana, também coloca-
riam em suspeita o projeto prometeico da tecnociência. Mas então surge
uma questão: o conhecimento cientíco e tecnológico já tomou rumos
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

diversos daqueles orientados pelos interesses do capital? Foi mero decalque
do que o mercado já engendrara, ou apresentou idiossincrasias?
ALGUNS ASPECTOS DA TECNOCIÊNCIA NO CHAMADO SOCIALISMO REAL
A experiência soviética, nos seus pouco mais de setenta anos du-
rante o século XX, levou a altos patamares a tendência já observada por
Max Weber de uma modernidade burocrática. Os processos de planica-
ção e centralização político-econômicas garantiram não só uma rápida
industrialização – imprescindível no contexto da II Guerra Mundial – como
também decisões geopolíticas que seriam de difícil execução em democracias
liberais parlamentares. Em 1961, a URSS realizou um experimento nuclear
que colocou o mundo em estado de alerta: havia testado sua bomba RDS-
220, ou “Bomba Tsar”, equivalente a 3.300 bombas de Hiroshima, numa
região inabitável do Círculo Polar Ártico. E ela seria ainda mais potente, de
acordo com o discurso de Nikita Kruschev no 22.º Congresso do Partido
Comunista da URSS; sua potência fora reduzida de 100 megatons para 50
megatons, por recomendação dos cientistas russos, pois a radioatividade
atingiria partes da URSS e da Europa. A intenção do dirigente soviético não
era usá-la em conitos militares, mas tentar forçar os EUA e o Ocidente a
brecar a corrida armamentista nuclear, o que de fato passou a ocorrer a partir
de acordos rmados já em meados daquela década
3
.
A construção deste artefato bélico, o mais potente já desenvol-
vido, demonstra como projetos alternativos ao capital encontram muita
diculdade de romper com a assim chamada “ciência burguesa”: mesmo
com todos os problemas amplamente apontados pela literatura especiali-
zada, a URSS buscava ser um contraponto ao desenvolvimento capitalista,
ainda que usando o conhecimento nele engendrado. Também naquele ano
de 1961, saíram na frente da corrida espacial ao colocar Iuri Gagarin em
órbita ao redor da Terra. Tais conquistas foram possíveis, entre outras coi-
sas, devido à utilização do conhecimento de cientistas alemães que fugiram
do regime nazista na década de 1930 e se refugiaram no campo soviético,
além dos amplos investimentos que os dirigentes comunistas promoveram
nas ciências e na engenharia.
3
Disponível em <http://super.abril.com.br/historia/a-bomba-do-m-do-mundo>. Acesso em: 05 fev. 2016.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Aqui surge de imediato uma questão: teria sido possível aos re-
gimes anticapitalistas que se formaram a partir de 1917 abdicarem do
conhecimento cientíco e tecnológico acumulado no Ocidente desde a
ascensão da modernidade? Seria possível desprezar, por exemplo, o cálcu-
lo diferencial criado por Leibniz e Newton no século XVIII, ou ainda o
Teorema de Pitágoras, desenvolvido na Antiguidade? Ou se tratava de dar
outras utilizações para tais conhecimentos?
É possível conjecturar que, em condições ideais, sem guerras ci-
vis, sem o cerco e o boicote dos países hostis ao regime bolchevique, outras
manifestações e fazeres no campo cientíco e tecnológico tivessem ganha-
do destaque. E temos pistas destas possibilidades: as manifestações artís-
ticas (literatura, cinema, artes plásticas) tiveram uma “era de ouro”, com
experimentações e vanguardas típicas de um otimismo vinculado aos tem-
pos revolucionários, que foram, contudo, sendo sufocadas com o fortaleci-
mento do stalinismo
4
. Também era possível vericar outro caminho para a
inventividade e para a inovação quando constatamos que a engenharia no
campo socialista, até por força de uma produtividade menor e diculdade
de acesso a matérias-primas devido ao relativo isolamento econômico, de-
senvolvia produtos e equipamentos com durabilidade muito maior do que
seus congêneres ocidentais. Exemplos disso foram geladeiras e lâmpadas
desenvolvidas na Alemanha Oriental nos anos 1970 que não seguiam os
parâmetros da obsolescência programada e, portanto, poderiam durar por
anos e até décadas. Com o m do regime socialista e a unicação do país,
tais produtos foram colocados em museus. O curioso é que, debatendo
com seus colegas ocidentais, que diziam que eles estavam colocando seus
empregos em risco com tais produtos, os engenheiros orientais diziam que
era exatamente o oposto: seriam premiados pelo governo por desenvolve-
rem tecnologias poupadoras de insumo e energia
5
.
Mas sabemos que as contingências histórias os levaram a tentar
emular o conhecimento e as tecnologias ocidentais, inclusive desde a sua
criação: Lênin defendeu a adoção do sistema taylorista-fordista nas fábricas
soviéticas para poder garantir o rápido desenvolvimento econômico
6
; além
4
Vide Fabris (2005).
5
Mais detalhes, vide o documentário espanhol “A História secreta da obsolescência programada”. Disponível
em <https://www.youtube.com/watch?v=lvEpHaTdimc>. Acesso em: 05 fev. 2016.
6
Vide Moraes Neto (2009).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

disso, cunhou a máxima que “socialismo é igual sovietes mais eletrica-
ção”, num esforço de propaganda da superioridade do regime. É digno de
nota também que, nos momentos que tentou romper com a assim chama-
da “ciência burguesa”, trilhou caminhos nebulosos, como os experimentos
genéticos de Trom Lysenko durante o governo de Stálin, que rejeitava
as teses mendelianas de hereditariedade e buscava ressuscitar as ideias dos
caracteres adquiridos de Lamarck
7
.
Olhando em retrospectiva, ca fácil apontar os erros e os cami-
nhos equivocados adotados pelos dirigentes comunistas ao longo do século
passado. Mas seria importante vericar o quanto estas escolhas fugiram da
análise marxista e o quanto elas guardavam dos pressupostos do fundador
do socialismo moderno.
DOSOCIALISMO CIENTÍFICOAOSOCIALISMO UTÓPICO
O Manifesto do Partido Comunista é reconhecido como uma das
mais fortes odes à modernidade, a despeito de seu ataque fulminante à
sociedade burguesa. Fiel à abordagem dialética, que será amadurecida pelo
lósofo de Trier anos depois em O Capital, o texto de Marx e Engels bus-
cou demonstrar de forma propagandística e literária que o desenvolvimen-
to acelerado e caótico da economia de mercado engendrava as condições
de sua superação, formando uma imensa classe trabalhadora apartada de
seus meios de produção e uma diminuta classe proprietária disposta a le-
var a concentração de capital aos seus limites. Esta contradição principal
vinha acompanhada de outras, como o fato de que a ciência e a tecnologia,
sendo forças produtivas do capital, subvertiam as bases econômicas que o
próprio capitalismo buscava assentar. A diminuição do espaço-tempo ge-
rada pelos meios de comunicação e de transporte
8
(muito antes da Teoria
da Relatividade de Einstein discuti-la em notação matemática) carregavam
um enorme potencial político de organização do proletariado.
7
Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Trom_Lysenko>. Acesso em: 05 fev. 2016.
8
“Com seu domínio de classe de um escasso século, a burguesia criou forças de produção mais massivas e
mais colossais do que todas as gerações passadas juntas. Subjugação das forças naturais, maquinaria, aplicação
da química à indústria e à lavoura, navegação a vapor, caminhos-de-ferro, telégrafos elétricos, arroteamento de
continentes inteiros, criação da navegabilidade dos rios, populações inteiras brotando do solo – que século ante-
rior teve ao menos um pressentimento de que estas forças de produção estavam adormecidas no seio do trabalho
social?” (MARX; ENGELS, 1982, p. 111).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Este fascínio que a ciência moderna, como força produtiva do
capital, despertava em Marx não parece ter desaparecido na sua obra de
maturidade, ainda que tratada de forma mais matizada e sosticada. Isso
porque este autor depositava esperança numa ruptura no sentido dialético
de superação
9
, não de mero crash com o passado. As disputas políticas
e a luta de classes seriam fundamentais para a construção e reorientação
do conhecimento desenvolvido ao longo de eras, como, aliás, o próprio
capitalismo o zera em relação aos saberes pré-modernos.
Muita tinta foi gasta para atacar um suposto “economicismo” ou
determinismo tecnológico em Marx, e algumas passagens em sua obra de
fato podem induzir a esta interpretação
10
. É bom lembrar que a sua leitura
e crítica das teses hegelianas foram potencializadas pelo desenvolvimento
da Teoria da Evolução de Darwin anos depois, e isso ca visível em diver-
sas passagens de O Capital
11
. Sempre existe a possibilidade de discordar de
algumas de suas premissas ou do conjunto da obra, mas é importante ter
em mente que Marx não defendia um “ano zero” de uma sociedade pós-
-capitalista a partir do nada. Daí sua defesa, tão questionada por anarquis-
tas e demais libertários, de uma fase de transição onde o Estado seria um
importante elemento de desmonte do tecido social burguês. Isto signica
que ele também deveria jogar papel decisivo nas deliberações relativas à ci-
ência e tecnologia, como parece que a URSS tentou em alguns momentos
de sua história. Surge então uma tentação conjectural: e se outras correntes
no movimento trabalhista e operário tivessem prosperado? Haveria espaço
para uma tecnologia social anticapitalista desde o seu nascedouro?
O famoso texto de Friedrich Engels, Do Socialismo Utópico ao
Socialismo Cientíco
12
contribui em grande medida (mesmo que essa não
fosse a intenção do autor) para certo menosprezo que o movimento ope-
rário e comunista passou a ter das primeiras experiências de disputa dos
trabalhadores contra o capital. É bem verdade que o trágico desfecho da
Comuna de Paris, em que correntes não-marxistas eram maioria, também
contribuiu para uma crítica mais incisiva às experiências de organização
9
Uma boa dica desta perspectiva é a forma como ele trata a tecnologia no capítulo “Maquinaria e Grande
Indústria”. Vide Marx (2013).
10
Vide Harvey (2013).
11
Vide Foster (2014) e Santos (2016).
12
Vide Engels (1985).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

horizontal que foram sendo criadas desde, pelo menos, a Conspiração dos
Iguais de Charles Babeuf na Revolução Francesa. É interessante perceber
como uma gura como Robert Owen, que à sua época fora reconhecido
como excelente administrador, acabou marginalizado tanto por seus anti-
gos pares empresariais como pela esquerda.
Polanyi percebeu que o movimento cooperativista inglês, que ha-
via se transformado numa alternativa “prática” dos trabalhadores após a
derrota do cartismo, tinha bem pouco de “utópico” quando buscava me-
lhorar não só a renda dos trabalhadores, mas também a qualidade dos
produtos produzidos, das suas habitações etc. Isso implica dizer que a for-
ma de autogestão destas empresas possibilitava aos seus trabalhadores, que
eram também gestores, encontrarem as melhores alternativas tecnológicas
para produzir e para garantir a qualidade desejada. Foi a derrota destas
experiências, menos por sua incapacidade estritamente técnica e mais pela
pressão empresarial, utilizando inclusive o Estado para combater tais ex-
perimentos, que fortaleceu a crença na necessidade de um corpo político
vanguardista, monolítico e centralizado, para fazer a disputa política em
condições adversas, capturar o Estado e reorientá-lo, conforme procurou
demonstrar Lênin em seu O Estado e a Revolução
13
.
Mas o fracasso também dessa via revolucionária, no nal do sé-
culo passado, leva alguns autores e militantes políticos a revalorizarem o
tal “socialismo utópico”, agora conhecido como economia solidária. Entre
os diversos propagandistas desta bandeira, talvez o mais conhecido e atu-
ante seja o professor da USP Paul Singer, desde 2003 titular da Secretaria
Nacional de Economia Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho
e Emprego. Suas principais teses estão resumidas no livro Uma Utopia
Militante
14
, em que sugere que as cooperativas seriam verdadeiros “im-
plantes socialistas” no tecido socioeconômico capitalista. De acordo com o
autor, do mesmo modo que a economia de mercado foi se desenvolvendo
no interior da sociedade medieval europeia, também o socialismo (ou eco-
nomia solidária) deveria ser um empreendimento tocado nos interstícios
da economia de mercado, sendo uma das frentes de disputa dos traba-
lhadores ante o capital. Concordando com Polanyi, Singer destaca que o
13
Vide Lênin (1983).
14
Vide Singer (1998).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Estado foi fundamental para a viabilização da economia de mercado, e da
mesma forma as cooperativas e demais formas econômicas solidárias não
poderiam prescindir da disputa do fundo público.
O próprio Singer lembra que o embate com as formas econô-
micas mercantis cria muitas armadilhas ao movimento cooperativista.
Um dos exemplos que ele sempre lembra é o da Mondragon Corporation,
uma empresa criada sob a forma de cooperativa na região do País Basco
(Espanha) e que, para sobreviver frente à concorrência, se viu na contin-
gência de crescer e se expandir, transformando-se num complexo multina-
cional. Isso levou a conitos entre os cooperados do “chão de fábrica” e os
alocados na gestão, levando inclusive à curiosa situação de um sindicato de
trabalhadores cooperados criado para negociar com o sta administrativo,
em tese tão donos da empresa como os demais trabalhadores. Mesmo pos-
suindo um discurso sintonizado com os princípios cooperativistas (livre
adesão, gestão democrática etc.), e enfatizando que a cultura da inovação é
facilitada pelo conhecimento compartilhado, pela cooperação e pelo inter-
-relacionamento de todos os cooperados
15
, a necessidade de disputar mer-
cado com as demais empresas conduz a uma postura não muito distinta da
de uma empresa convencional, ainda que mantendo sua forma coopera-
da
16
. Isso não deveria, conforme seus defensores, criar ceticismo quanto à
proposta de uma economia solidária e de um desenvolvimento tecnológico
orientado para as necessidades sociais: exatamente por ser um modelo em
disputa, necessita estabelecer alianças políticas tanto nas vias institucionais
quanto nos demais espaços políticos da sociedade.
TECNOLOGIA SOCIAL, ECONOMIA SOLIDÁRIA E GESTÃO PÚBLICA
De fato, a viabilidade de desenvolver conhecimento cientíco e
tecnológico desde as necessidades da população (e não das grandes corpo-
rações capitalistas) está necessariamente ligada ao compartilhamento de
informações e à tomada coletiva de decisões. Uma sociedade centrada na
propriedade privada dos meios de produção e na forte verticalização do po-
der político, mesmo que lastreado por eleições gerais, dá pouco espaço para
15
Disponível em: <http://www.mondragon-corporation.com/eng/corporate-responsibility/innovation-mo-
del/>. Acesso em: 05 fev. 2016.
16
Vide Sampaio et al. (2012).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

iniciativas desta natureza. Temos então que a luta pelo aperfeiçoamento da
democracia, por meio da implementação e fortalecimento de canais parti-
cipativos da população na gestão pública, deve ser um dos caminhos que os
defensores da economia solidária e da tecnologia social precisam percorrer.
Não é uma tarefa simples. Pautada pela Plataforma Nacional pela
Reforma do Sistema Político
17
, a luta dos movimentos e entidades sociais
para aumentar a dimensão participativa da democracia brasileira vem encon-
trando muita diculdade para sensibilizar o Congresso Nacional. Boa parte
dos analistas políticos acredita que a democracia representativa restrita está
em crise já há algumas décadas no mundo todo, e o caso brasileiro é bastan-
te paradigmático: forte inuência econômica nas campanhas eleitorais via
nanciamento privado, baixa representatividade dos partidos, absenteísmo
e alta descrença no sistema político, entre outros. Além das questões mais
conjunturais (crise política interna acompanhada por uma crise econômica
mundial), uma parte signicativa desta descrença no Brasil hoje ocorre tam-
bém em função da forma como o aparato estatal é organizado, de forma a
excluir a população das tomadas de decisões mais importantes.
As lutas sociais que garantiram a redemocratização do Brasil nos
anos 1980 culminaram na Constituição Federal de 1988, que indicou
pela primeira vez numa Carta Magna brasileira o instituto da democracia
participativa, cuja principal experiência são as conferências e os conselhos
de políticas públicas na Saúde, Assistência Social e demais áreas, sob res-
ponsabilidade do poder público. Outras experiências, como o Orçamento
Participativo
18
e mesas de negociação tripartite no setor público
19
, consti-
tuíram-se como políticas de governo de gestões que buscavam ampliar a
participação cidadã, com alguns êxitos e fracassos ao longo das últimas três
décadas. O que estas experiências demonstraram até agora, é que o Estado
brasileiro (nos seus diversos níveis e poderes) é extremamente refratário ao
conhecimento popular”, usando quase sempre o discurso da meritocracia
e da competência para afastar os cidadãos das decisões mais importantes.
A linguagem jurídica utilizada, os trâmites burocratizados para acesso às
informações, o baixo investimento em formação para instâncias partici-
17
Disponível em <http://www.reformapolitica.org.br/>. Acesso em: 05 fev. 2016.
18
Sobre o OP como luta pelo fundo público e os seus dilemas, ver Dutra e Benevides (2001) e Vitale (2004).
19
Um exemplo de iniciativa deste tipo, com uma mesa de negociações composta por sindicatos de trabalhado-
res, governo e representantes dos usuários na área da saúde, foi descrito por Braga (1998).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
pativas (como os conselhos de saúde, escolar etc.) reforçam esta distância
entre gestores e população
20
.
Da mesma forma que estudos em antropologia e etnociência já
demonstraram em outros contextos, como o da bioprospecção
21
, a popula-
ção local possui informações e conhecimentos que poderiam ser utilizados
para maximizar os recursos públicos, já que eles conhecem melhor as ne-
cessidades locais do que gestores deslocados de outros bairros ou cidades.
Os esforços de descentralização política em grandes municípios, como a
autonomia nanceira de subprefeituras, poderiam abrir espaço para a uti-
lização de tais conhecimentos imersos no cotidiano, e a capacitação para a
democracia participativa vai ao encontro da capacitação para a autogestão
em cooperativas, que poderiam numa situação ótima eleger produtos e
técnicas mais voltadas às suas necessidades
22
.
Porém, mais uma vez, os impasses se apresentam. Reforçar a de-
mocracia participativa e investir na economia solidária e na tecnologia so-
cial dela gerada implica a disputa pelo fundo público, logo a disputa pelo
Estado e a reorientação de prioridades. Mas como fazer essa disputa com a
profunda descrença na política institucional em todos os cantos do plane-
ta? É provável que circunstâncias excepcionais conduzam o debate público
a mudanças drásticas no sistema político e na própria dinâmica econômi-
ca. O caos urbano decorrente da especulação imobiliária e na preferência
pelo transporte individual já começa a cobrar sua fatura em metrópoles in-
transitáveis, com uma ocupação desordenada e ausência de infraestrutura
adequada. A concentração fundiária e a modelagem do mundo rural pelo
agronegócio aumentam o impacto ambiental pelo uso intensivo de agrotó-
xicos e sementes transgênicas que retiram grande parte da autonomia dos
agricultores. O próprio aquecimento global indica que a viabilidade da
espécie humana no planeta passará pela mudança radical da forma como
produzimos e reproduzimos nossa vida material. Mesmo sendo um tema
extremamente polêmico, a tese do decrescimento econômico postulada
20
Chauí (2011) já havia apontado como o autoritarismo social e a lógica neoliberal utilizam-se do discurso
competente para inviabilizar uma democracia substantiva.
21
Sobre a questão dos saberes tradicionais usados na bioprospecção, e o dilemas da partilha econômica dos
resultados desta atividade, consultar Trigueiro (2009).
22
Experiências signicativas nesta direção são apontadas em Singer e Kruppa (2004) e Costa e Dias (2013).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

por movimentos anticapitalistas
23
sugere que a arena pública precisa ser
reativada para tomar tais decisões: crescer ou reduzir o crescimento eco-
nômico? O que produzir e como produzir? Quem deve liderar a redução
do crescimento econômico e quem poderá usufruir temporariamente uma
moratória” para continuar crescendo até garantir uma melhor distribui-
ção dos ganhos de produtividade?
Não são perguntas fáceis de responder, e certamente com o atual
contorno da hegemonia política neoliberal fazer tais perguntas já soa como
algo utópico. Mas para aqueles que acreditam na economia solidária e na
tecnologia social, somente este caminho – que alguns acreditam ser pós-
-capitalista – teria condições de dar respostas a estas questões, exatamente
por que o conhecimento e sabedoria aí mobilizados seriam coletivos, não
exclusividade daqueles que querem manter o status quo.
REFERÊNCIAS
BRAGA, D. G. Conitos, eciência e democracia na gestão pública. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 1998.
CHAUÍ, M. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São
Paulo: Cortez, 2011.
COSTA, A. B.; DIAS, R. B. Políticas públicas e tecnologia social: algumas lições
das experiências em desenvolvimento no Brasil. In: COSTA, A. B. Tecnologia
social e políticas públicas. São Paulo/Brasília: Instituto Polis/Fundação Banco do
Brasil, 2013.
DAGNINO, R. Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico. Campinas:
Editora Unicamp, 2008.
DUTRA, O.; BENEVIDES, M. V. Orçamento participativo e socialismo. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo cientíco. In: MARX, K.;
ENGELS, F. Obras Escolhidas: tomo III. Moscou/Lisboa: Edições Progresso/
Edições Avante, 1985.
FABRIS, A. Entre arte e propaganda: fotograa e fotomontagem na vanguar-
da soviética. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 13, n. 1, p. 99-132,jun.
23
Vide Latouche (2009).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0101-47142005000100004>. Acesso em: 05 fev. 2016.
FOSTER, J. B. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. 4. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014.
HARVEY, D. Para entender o Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
HOBSBAWM, E. A era das revoluções: 1789-1848. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2009.
LÊNIN, V. I. O estado e a revolução. São Paulo: Hucitec, 1983.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. In: MARX, K.;
ENGELS, F. Obras Escolhidas: Tomo I. Moscou/Lisboa: Edições Progresso/
Edições Avante, 1982.
MARX. K. O Capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
MORAES NETO, B. R. Processo de trabalho e eciência produtiva: Smith,
Marx, Taylor e Lênin. Estudos econômicos. v. 39, n. 3, São Paulo: FEA-USP, 2009.
POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Rio de
Janeiro: Campus, 2000.
SAMPAIO, C. A. C. et al. Revisitando a experiência de cooperativismo de
Mondragon a partir da perspectiva da ecossocioeconomia. Desenvolvimento e
Meio Ambiente. n. 25, p. 153-165, jan./jun. 2012, Editora UFPR.
SANTOS, A. Breves reexões sobre natureza e crescimento na tradição marxista
e o desao do decrescimento. Mouro: Revista Marxista. Ano 7, n. 10, jan. 2016.
SINGER, P. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis, Vozes, 1998.
SINGER, P.; KRUPPA, S. M. P. Senaes e a economia solidária: democracia e par-
ticipação ampliando as exigências de novas tecnologias sociais. In: LASSANCE
JR., A. E. et al. Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004.
TRIGUEIRO, M. G. S. Sociologia da tecnologia: bioprospecção e legitimação.
São Paulo, Editora Centauro, 2009
VITALE, D. Orçamento Participativo: avaliação da política municipal (2001-2002).
São Paulo, Instituto Pólis/PUC, 2004. Disponível em: <http://polis.org.br/publica-
coes/orcamento-participativo-em-sao-paulo-2001-2002/>. Acesso em 25 fev. 2016.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)


O PAPEL DO ESTADO NO CRESCIMENTO
DO AGRONEGÓCIO E O IMPACTO NA
CONJUNTURA DOS RECURSOS HÍDRICOS
André SCANTIMBURGO
A imensa quantidade de reservas hídricas existentes no Brasil com
aquíferos, rios, lagos e manguezais, fez com que desde os tempos da colônia
esse recurso natural constituísse um dos elementos básicos fundamentais
para as atividades produtivas aqui realizadas. Tal fator possibilitou não
somente que grandes extensões territoriais fossem destinadas para agro-
pecuária, como também fosse possibilitado o uso intensivo da água na
mineração, geração de energia hidroelétrica e no consumo industrial para
os mais variados ns.
A disponibilidade hídrica em grande quantidade em várias regi-
ões do país certamente moldou a cultura da sociedade com a água, estabe-
lecendo por muito tempo um senso comum de abundância que levou ao
seu desperdício e degradação, em especial a partir da forma de uso dos se-
tores produtivos que são os maiores consumidores. Se por um lado a água
nunca foi um grande problema para a economia da maior parte do país,
não se pode dizer o mesmo em relação a aspectos sociais, seja no meio rural
ou urbano. Se em regiões como o semiárido nordestino grande parte da
população historicamente não teve acesso aos recursos
1
; no meio urbano
quase 50% das cidades ainda carecem de serviços de tratamento de esgoto,
1
Nos últimos anos, o movimento Articulação do Semiárido (ASA) em parceria com o governo federal vem
desenvolvendo o Programa 1 Milhão de cisternas, oferecendo assistência e recursos para construção de cisternas
para captação da água da chuva. Está ação vem atenuando minimamente os impactos perversos da falta d’água
para as populações do semiárido, mas não foca no combate à desigualdade no acesso aos açudes e principais
fontes d’água da região.
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
175-200
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

e parte da população ainda convive com problemas de abastecimento, si-
tuação esta, que denota um cenário de desigualdades no acesso a este bem
vital (IBGE, 2010, p. 45).
A exploração intensicada dos corpos d’água para atender a de-
manda do desenvolvimento econômico, juntamente de um modelo de
gestão das águas questionável, tem contribuído para um cenário atual de
degradação ambiental e escassez desse recurso outrora considerado abun-
dante. A concepção predominante por parte dos gestores de que a água
é essencialmente um recurso dotado de valor econômico a ser utilizado
como insumo nos setores produtivos, tem encontrado seus limites nas cri-
ses hídricas contemporâneas a ponto das políticas atuais não serem capazes
de dar respostas convincentes para o cenário de degradação ambiental e
desigualdade de acesso aos recursos hídricos. Junte-se a isto um cenário
atual de mudanças climáticas e aquecimento global, ocasionados em gran-
de medida pelo desmatamento em regiões de oresta.
2
As políticas agrícolas voltadas essencialmente para o mercado
de commodities vêm ao longo do tempo impondo ao campo brasileiro
uma estratégia cada vez mais homogênea na produção, caracterizada
pela utilização de alta tecnologia, uso de insumos agrícolas e agrotóxicos,
ocupação e concentração de imensas áreas de terras aráveis, além do
elevado consumo de recursos hídricos, não somente na irrigação, como
também na produção de semielaborados. Para possibilitar sua expansão,
o agronegócio
3
concentra a maior parte dos créditos do governo voltados
para agricultura, devido, em grande medida, ao peso considerável dos seus
produtos na balança comercial.
Por outro lado, os problemas ambientais e sociais no que se rela-
ciona à degradação do patrimônio natural e cultural do país, e, sobretudo,
2
No nal de 2014, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) publicou o estudo O Futuro Climático da
Amazônia, comandado pelo pesquisador Antônio Donato Nobre. O trabalho relata que mesmo que fosse cessa-
da imediatamente a degradação da oresta, tal atitude já não seria suciente para manter as funções climáticas
do bioma amazônico. O relatório destaca a relação entre o desmatamento da Amazônia e a estiagem nas demais
regiões do Brasil, e aponta o papel indispensável da oresta para manutenção da umidade do ar que está em
movimento e que é responsável por levar chuvas para áreas internas do continente. Segundo o estudo, as árvores
transferem grandes volumes de água do solo para a atmosfera através da transpiração, fenômeno que faz com que
a oresta não somente mantenha o ar úmido no seu entorno, mas que também exporte “rios aéreos de vapor
proporcionando as abundantes chuvas em regiões distantes que hoje se encontram tão escassas.
3
Associação do grande capital agroindustrial com a grande propriedade fundiária na busca por lucro e renda
da terra (DELGADO, 2005).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
os impactos negativos sobre os recursos hídricos, seja pelo uso excessivo de
água na irrigação, comprometendo as bacias hidrográcas, ou pela conta-
minação dos corpos d’água por agrotóxicos
4
, fazem parte das consequên-
cias indesejáveis trazidas pelas estratégias utilizadas no agronegócio e de-
nunciadas por movimentos sociais e ambientalistas.
Nesse sentindo, levando em consideração um cenário atual de
consideráveis desigualdades sociais no acesso aos serviços básicos de abas-
tecimento e saneamento, que apresentam atualmente quadros de escassez
ampliados, inclusive para regiões outrora pouco afetadas, além de constata-
ções cada vez maiores de degradação de bacias hidrográcas e concentração
cada vez maior do uso das águas, o objetivo deste capítulo é problematizar
questões acerca do uso e da sustentabilidade dos recursos hídricos a partir da
conjuntura atual, identicando nesse cenário o impacto gerado pelo modelo
agrícola brasileiro, que privilegia substancialmente o chamado agronegócio.
Enm, busca-se ainda debater rapidamente as políticas de gestão
de águas adotadas no Brasil desde os anos 1990, caracterizadas por um mo-
delo gerencial com excesso de tecnocracia e economicismo, no sentido de
entender quais as respostas dadas por essas políticas, de forma direta e indi-
reta, para a conjuntura preocupante dos recursos hídricos aqui apresentada.
Nossa metodologia parte do entendimento de que o tema am-
biental, nesse caso especíco, relacionado às águas, deve ser analisado a
partir de uma perspectiva que leve em consideração as contradições sociais,
políticas e naturais que se apresentam a partir das dinâmicas de acumula-
ção e circulação de capital, de modo a expor como esses processos inuem
nas desigualdades políticas e sociais ligadas ao acesso aos recursos naturais,
bem como, as possibilidades de superação desses cenários.
Parte-se então da análise metodológica interdisciplinar da
Ecologia Política que tem como objeto central de estudo os conitos so-
cioambientais, entendidos como embates que envolvem atores sociais que
pensam a relação do ser humano com a natureza a partir de lógicas dife-
4
Um fator preocupante que afeta a qualidade das águas no meio rural é a poluição constatada pela presença
de fósforo nos corpos d’água, elemento químico responsável pela eutrozação dos mananciais. Segundo a ANA
(2014), sua presença reete os impactos do desmatamento e das atividades agropecuárias. De acordo com infor-
mações disponibilizadas pela agência, é perceptível que as regiões de avanço da fronteira agrícola, como Mato
Grosso, Tocantins, vários estados do nordeste e Minas Gerais, apresentem concentração de fósforo nas águas
superiores a 0,10 mg/L, quantidade considerada elevada.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

rentes e assim possuem concepções de projetos de sociedades que divergem
a respeito da utilização e da signicação dos espaços e do uso dos recursos
naturais. Nas palavras de Zhouri:
O conito eclode quando o sentido e a utilização de um espaço ambien-
tal por um determinado grupo ocorrem em detrimento dos signicados
e usos que outros segmentos sociais possam fazer de seu território, para,
com isso, assegurar a reprodução do seu modo de vida. Entendemos,
pois, que projetos industriais homogeneizadores do espaço, tais como
hidroelétricas, mineração, monoculturas de soja, eucalipto, cana-de-açú-
car, entre outros são geradores de injustiças ambientais, na medida em
que, ao serem implementados, imputam riscos e danos às camadas mais
vulneráveis da sociedade. Os conitos daí decorrentes denunciam con-
tradições, nas quais as vítimas das injustiças ambientais não só não são
verdadeiramente excluídas do chamado desenvolvimento, mas assumem
todo o ônus dele resultante. (ZHOURI, 2008, p. 268)
É necessário, assim, identicar na conjuntura de recursos hídri-
cos, que os impactos e os problemas ambientais que se fazem presentes,
embora frutos do uso coletivo das águas por parte de toda sociedade, não
permite a partir de uma análise mais detida responsabilizar todos os atores
sociais de forma equânime. A relação com a água se coloca de forma dife-
rente entre as classes sociais e nesse sentido, Ioris (2010, p. 214) destaca o
equívoco presente na forma como a legislação brasileira de recursos hídri-
cos trata a questão:
[...] é falaciosa qualquer equivalência de tratamento entre indivíduos e
classes sociais desiguais, como ca implícito na legislação brasileira de
recursos hídricos, obviamente inspirada nos ideais rousseaunianos de
liberdades universais. Como alertado por Marx e Engels, a concepção
liberal de sociedade civil nada mais é do que o resultado da consolida-
ção da propriedade privada e da desintegração de regimes coletivistas
de produção. Tal observação [...] tem repercussões extremamente atu-
ais, quando se verica que muitas políticas públicas contemporâneas
aprofundam a reicação e privatização de recursos que são, antes de
tudo, bens essencialmente coletivos (IORIS, 2010, p. 214)
Segundo Ioris (2010), a atual Política Nacional de Recursos
Hídricos (PNRH) e seus instrumentos de implementação têm optado des-
de sua criação por um tratamento que se postula como equivalente para

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
situações desiguais, privilegiando uma gestão que se pauta, sobretudo, por
uma concepção técnica e economicista dos recursos hídricos, valendo-se nes-
se sentido de uma pretensa postura neutra ao tratar questões que envolvem
problemas políticos e sociais. A Agência Nacional de Águas (ANA), órgão fe-
deral responsável pela outorga do uso dos recursos hídricos em corpos d’água
de domínio da União, foi criada no início dos anos 2000 com a nalidade de
ser gestora e scalizadora do uso das águas, não cando sob sua responsabi-
lidade a concessão dos serviços públicos, mas apenas o controle da alocação
dos recursos hídricos através da outorga e algumas ações direcionadas no
campo de mapeamento de informações hidrológicas e georreferenciamento.
No caso, o principal órgão de gestão das águas em âmbito federal
não possui como função ser empreendedora dos serviços de abastecimento,
saneamento, irrigação, ou de qualquer tipo de obra, mas detém a respon-
sabilidade de scalizar a viabilidade técnica dos mais variados empreendi-
mentos hídricos, bem como apoiar programas que julgue ecientes dentro
do que instrumentalmente considera ser uma gestão sustentável das águas.
Evidentemente que a atuação da ANA ocorre normalmente em
conjunto com as políticas adotadas pelo governo. Dessa forma, a partir do
momento que as atenções na agricultura estão voltadas para uma políti-
ca que favorece um modelo que usa água em larga escala, não apenas na
irrigação, mas também na produção de semielaborados, visando o mercado
externo, a ANA vem atuando no sentido de realizar um trabalho técnico
com a nalidade de analisar a capacidade hidrológica de vazão e captação
das águas, estando longe de sua atenção aspectos que levem em conside-
ração elementos sociais que possam questionar seu processo de outorga.
A ANA respalda suas ações a partir de um discurso de neutra-
lidade e independência em relação aos diversos segmentos da sociedade,
adotando uma linguagem economicista e hidrológica que aparenta ignorar
o equívoco contraditório que há entre acumulação de capital e sustentabi-
lidade. Renato Dagnino (2008), ao questionar a neutralidade da ciência e
o determinismo tecnológico, faz análises pertinentes, nos fornecendo ele-
mentos que ajudam a desconstruir a suposta isenção e superioridade das
avaliações e decisões técnicas, apontando para fatores pouco esclarecidos
quando tais discursos são adquiridos e tomados como paradigmas.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

As referências à neutralidade da técnica, conforme é possível
perceber no discurso utilizado pelas agências reguladoras, e neste caso es-
pecíco pela ANA, é construído a partir de uma avaliação positivista da
realidade que indica apenas uma possibilidade de desenvolvimento, seja no
campo da tecnologia ou mesmo da economia e dessa forma, invalida toda
gama de possibilidades de tratar a questão da água a partir de outras lógicas
que não vinculadas às perspectivas que se fazem hegemônicas em função
do poder político e econômico.
Esse é um ponto problemático, pois quando se aponta apenas
para um caminho possível as contradições são tratadas como um problema
menor. Conforme destaca Dagnino (2008, p. 39-40), quando se defende
uma determinada técnica a partir de um único meio, as diferenças geográ-
cas, culturais, entre outras, cam em um plano secundário subsumidas
numa preocupação marginal com a adaptação. Porém, muitas vezes são
colocados no teor de políticas regulatórias dessa natureza alguns instru-
mentos considerados democráticos e participativos, conforme é o caso dos
comitês de bacia hidrográca. A questão é que nem sempre esses instru-
mentos têm o poder de decisão, ou mesmo a pluralidade de participação
social, conforme é presente do discurso ocial.
De acordo com a legislação brasileira de águas, as discussões a res-
peito da viabilidade socioambiental dos projetos, bem como as decisões a
respeito dos possíveis impactos para a diversidade social, natural e cultural,
que envolvem o uso dos recursos hídricos, devem car restritas aos órgãos
ambientais e debatidos nos comitês de bacias hidrográcas, conforme pre-
vê a lei 9.433/97. Por consequência, acaba ocorrendo uma falsa impressão
de que os caminhos tomados no setor são frutos de um consenso a partir
de uma diversidade de opiniões e concepções previamente debatidas, mes-
mo quando os comitês estão fragilizados e carecendo de representativida-
de. Segundo Ioris (2010):
[...] o processo de implantação dos comitês e instrumentos de gestão
depende quase sempre do apoio nanceiro e aprovação política por
parte do órgão hegemônico do sistema, a Agência Nacional de águas
(ANA). Formalmente, os comitês estabeleceram uma arena democrá-
tica e descentralizadora, mas na prática têm constituído mecanismos
rígidos, hierarquizados e que servem aos grupos com maior força po-
lítica. [...] As decisões mais estratégicas e com maior impacto sobre os

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
recursos hídricos continuam nas mãos de outras instâncias políticas,
notadamente a equipe econômica do governo, como aconteceu no caso
da transposição do rio São Francisco em 2005 e das novas hidrelétricas
no rio Madeira em 2007. [...] (IORIS, 2010, p. 238)
Conrmando-se a fragilidade dos instrumentos de participação
social presentes na legislação de águas, conforme descreve Ioris (2010), a
gestão adotada no Brasil a partir da PNRH, com suas regulações técnicas
ambientais, aparenta não congurar um grande empecilho para o uso in-
tensivo e excessivo dos recursos hídricos nos setores produtivos, especial-
mente para os mais tradicionais voltados para bens primários. A concessão
de outorga do uso da água por parte da ANA, por exemplo, não necessita
passar por nenhuma audiência pública, fato que a torna uma ação mera-
mente instrumental.
5
Com a nova geopolítica dos recursos territoriais que se congura
a partir da ascensão neoliberal, o Brasil parece retomar seu papel históri-
co na divisão internacional do trabalho, centralizando suas exportações
no setor primário. Isso faz com que a água se torne um elemento que
impulsiona essa estratégia, seja de forma direta ou indireta na produção
agrícola, na mineração ou na geração de energia. Embora exista hoje uma
discussão a respeito da reprimarização ou não da economia, é evidente o
peso das commodities nas exportações brasileiras, com apoio amplo do go-
verno, ao passo que os bens de maior valor agregado vêm perdendo força
6
.
Conforme demonstra estudo de Camargo (2011), as exportações do setor
primário praticamente quadruplicaram entre 2000 e 2010.
De acordo com dados do Banco Central (2012), as commodities
foram fundamentais para o desempenho favorável da balança comercial
brasileira entre os anos de 2006 e 2011, fator que permitiu que mesmo
num período marcado pelo impacto da crise econômica mundial que ex-
5
Legalmente, o processo de outorga deve seguir as recomendações do Plano de Recursos Hídricos elaborado
pelas bacias hidrográcas e aprovados nos comitês.
6
De acordo com Paulino (2011) “[...] o Brasil foi, dentre as principais economias emergentes, a que apresentou
menor crescimento no valor adicionado da indústria de transformação, enquanto a China, a Índia e Coreia
foram os países que mais aumentaram, conrmando assim a tendência [...] de que a China e a Índia se espe-
cializam na produção de manufaturas para os mercados globais e o Brasil vai se conformando com o papel de
fornecedor de matérias-primas”.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

plodiu em 2008, as exportações apresentassem superávit comercial.
7
O
Banco Central (2012, p. 77) destaca que esses resultados ocorreram fun-
damentalmente devido a elevação dos preços das commodities no mercado
internacional, o que se traduziu em aumento de produtos básicos no qua-
dro de exportações brasileiras: “De 2006 a 2011, a participação dos seis
principais grupos de commodities exportadas no total das vendas externas
cresceu de 28,4% para 47,1% [...], contribuindo para que se observassem
elevados superávits comerciais”.
Somente o complexo da soja foi responsável por uma elevação
de 15 bilhões de dólares nas receitas de exportação, cando atrás somente
do minério de ferro. Outros produtos vinculados ao agronegócio também
tiveram resultados expressivos nesse período. As exportações de carnes so-
maram US$12,5 bilhões em 2011; 77,7% superior ao valor registrado em
2006. As exportações de açúcar de cana, em bruto, somaram US$11,5
bilhões em 2011, 193,4% maiores que as registradas em 2006. As exporta-
ções de café totalizaram US$7,6 bilhões em 2011, representando aumento
de 162,7% em relação ao valor de 2006 (BANCO CENTRAL, 2012).
Esse bom momento do agronegócio tornou o Brasil um dos prin-
cipais fornecedores de produtos agropecuários para o mundo. De acordo
com o Ministério da Agricultura (2010), o país é o primeiro em exportação
de suco de laranja, café e açúcar; o segundo em soja, carne bovina, tabaco,
cana de açúcar e etanol; o terceiro em aves; e o quarto em milho e carne
suína. Em comparação com o ano de 1960, o Ministério da Agricultura
(2010) arma que o Brasil aumentou sua produção de grãos ao longo dos
anos chegando a mais de 774% no ano de 2010, ocupando uma área de
47,5 milhões de hectares, mais que o dobro de 50 anos atrás. Na pecuária
houve aumento de mais de 251% na criação de gado e 39% na área utili-
zada para essa atividade. A projeção para o ano de 2021 é um aumento de
26,8% na pecuária e 23% na produção de grãos.
Além dos aspectos naturais, um dos fatores que possibilitou essa
expansão, permitindo que os empresários do setor agroindustrial pudessem
aproveitar o momento de alta do preço das commodities no mercado inter-
7
O Banco Central (2012) salienta, no entanto, que o único ano que não apresentou crescimento contínuo e
expressivo das exportações de commodities foi 2009, em razão do impacto da crise econômica que se intensicou
a partir de 2008.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
nacional, foram, em grande medida, as políticas adotadas pelos governos
do presidente Lula e da presidenta Dilma, focadas no aumento da disponi-
bilização do volume de crédito para o setor ao longo da última década. De
acordo com dados do Ministério da Agricultura (2013, p. 25) a oferta de
crédito rural praticamente quintuplicou entre 2003 e 2013, passando de
27 bilhões na safra 2013/14 para 136 bilhões na safra 2013/14, conforme
pode ser observado no gráco abaixo.
Gráco 1 - Evolução do nanciamento rural
A estratégia do governo foi rearmada no Plano Plurianual 2012-
2015, fortalecendo seu compromisso com o agronegócio e estipulando como
metas, além de aumentar os recursos para crédito rural, expandir o número
de contratos para agricultura de médio e grande porte. Fazendo uma breve
análise, mesmo os recursos do governo destinados à agricultura familiar no
Plano Safra 2015/16 tendo aumentado 20% em relação ao ano anterior,
contabilizando R$ 28 bilhões
8
, o número ainda é bem inferior se comparado
com a agricultura empresarial de médio e grande porte que ultrapassou a
marca dos 180 bilhões. Mesmo o governo impondo atualmente um severo
ajuste scal que incidiu cortes orçamentários em setores como saúde e edu-
cação, o Plano Agrícola e Pecuário anunciado pela ministra da agricultura
8
Disponível em: <http://www.mda.gov.br/plano_safra/credito_pronaf.html> Acesso em: 14 jun. 2015.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Kátia Abreu no último mês de junho, prevê recursos de 187 bilhões para
o biênio 2015/2016 para nanciar o agronegócio, no caso, também 20%
a mais em relação ao período de safra anterior.
9
Fica evidente que o Estado
brasileiro tem papel fundamental na expansão do agronegócio.
Dessa forma, a combinação de fatores como demanda externa
por commodities e as condições naturais favoráveis apresentadas pelo país,
atraem a atenção do capital especulativo que obtém amplo respaldo nan-
ceiro do governo. Além de grandes extensões de terras aráveis, aqui se con-
centram 13% das águas superciais do planeta localizadas em sua maior
parte na Bacia Hidrográca Amazônica, considerada a maior do mundo.
O país apresenta ainda um grande potencial em águas subterrâneas con-
centrando em seu território a maior parte do Aquífero Guarani nas regiões
sul, sudeste e centro-oeste, além de um elevado índice de precipitação
10
.
Este grande volume de águas vem possibilitando a ampliação
da agricultura irrigada de forma considerável, especialmente em culturas
voltadas para a produção de cana e soja, duas das principais responsáveis
pela elevada porcentagem do potencial de irrigação. A Food and agriculture
organizaion (FAO) coloca o Brasil como um dos quatro países com maior
área potencial de irrigação do mundo, com uma estimativa nacional de 29
milhões de hectares, sendo que desse total, o país utiliza 19,6%, ou seja,
5,8 milhões hectares (ANA, 2013). Esse potencial de irrigação vem servin-
do de justicativa para expansão da fronteira agrícola, especialmente para
as regiões das bacias hidrográcas do centro-oeste, norte e nordeste.
9
Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/pap> Acesso em:14 jun. 2015.
10
De acordo com informações da ANA (2009), a Amazônia e a as bacias do Tocantins-Araguaia contam com
56% da área total de drenagem do Brasil. O rio Amazonas é o maior do mundo em volume e comprimento. O
rio São Francisco é o maior rio totalmente dentro do Brasil, uindo por mais de 1.609km para o norte antes que
se direcionar para o leste em direção ao oceano Atlântico. O sistema do rio Paraná-Paraguai drena a porção sudo-
este do estado de Minas Gerais. Dois Estados mais ao sul do Brasil são drenados através do rio Uruguai, também
no rio Prata. Os recursos hídricos subterrâneos não estão distribuídos uniformemente sobre o país. Há áreas de
escassez e outras com abundância relativa. Há cidades com disponibilidade signicativa de água, tais como os
abrangidos pelo Aquífero Guarani e aquíferos sedimentares, em geral, e outras com baixa disponibilidade, como
os de rochas cristalinas na parte semiárida do Brasil. No semiárido nordeste do Brasil, onde a água de poços é a
única fonte de abastecimento disponível, em muitas pequenas comunidades, os poços têm uxos muito baixos.
Os melhores aquíferos estão localizados em terras sedimentares que ocupam 48% da área do Brasil e têm um
grande potencial para as águas subterrâneas, devido às suas condições climáticas favoráveis. Os recursos hídricos
subterrâneos internos renováveis no país estão estimados em 645,6 km³/ano. Águas subterrâneas exploráveis
Anual responsável por 129,1km³. O volume de água subterrânea armazenada no Brasil em menos de 1.000 m
de profundidade e com boa qualidade para o ser humano usar é estimado em 112.000 km³.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Atualmente o setor agrícola é o maior usuário de recursos hídri-
cos, tanto no que se refere à retirada total de água das bacias hidrográcas,
quanto no que se refere à água realmente consumida
11
. De acordo com
o relatório de conjuntura dos recursos hídricos divulgado pela ANA em
2013, a retirada de água para irrigação correspondia em 2010 a 54% no
comparativo com outros setores. É mais do que o dobro no usado para
abastecimento urbano e o triplo do utilizado na indústria.
Tabela 1: Uso da água no Brasil: vazão retirada em 2010
Finalidade Vazão Total Porcentagem
Abastecimento Urbano 522 m³/s 22%
Abastecimento Rural 34,5 m³/s 1%
Irrigação 1.270 m³/s 54%
Indústria 395 m³/s 17%
Dessedentação Animal 151,5 m³/s 6%
Total 2.373 m³/s 100%
Fonte: ANA (2013, organizada pelo autor).
Nesse mesmo relatório se observa a constatação de um aumento
considerável da retirada de águas em todas as bacias hidrográcas a partir
de uma análise comparativa entre 2006 e 2010, em que se observou um
aumento de 29%, sendo o uso da água para irrigação o principal responsá-
vel, passando de 866 m³/s para 1.270 m³/s. No entanto, os índices da água
realmente consumida teve um aumento de 18% em quatro anos, e nesse
sentido a irrigação representa o maior índice disparado, chegando a 72%
em 2010, conforme pode ser observado nos grácos comparativos abaixo.
11
A ANA analisa o total de água retirada das bacias hidrográcas e o total consumido. Nem toda água retirada
é consumida. Muitas análises levam em consideração apenas o total de água consumido. Aqui, optamos por
demonstrar os dados relativos tanto em ralação à retirada quanto ao consumo.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Gráco 2: Distribuição das vazões de retirada e de consumo para diferentes
usos: 2006 versus 2010.
Fonte: ANA (2013)
O uso da água para produção agrícola nos últimos anos é o prin-
cipal responsável direto pelo aumento do consumo da água no país, ree-
tindo internamente os mesmos percentuais divulgados pela ONU quanto
aos índices mundiais.
Gráco 3: Água retirada por setor nos continentes
Fonte: e United Nations, 2012.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Uma rápida análise dos dados acima resume de certa forma, a
geopolítica territorial do setor produtivo. Conforme pode ser observado,
o uso da água na agricultura é maior nos países da América Latina, Ásia
e África ao passo que nos países da América do Norte e na Europa o con-
sumo é mais elevado no setor industrial. Ribeiro (2008) complementa os
dados apresentados no gráco acima, especicando que os países de renda
mais elevada utilizam quase 60% da água na indústria e 30% na agricultu-
ra, enquanto que os países de renda média e baixa utilizam apenas 10% na
indústria e 82% na agricultura. O consumo domiciliar nos países de renda
elevada também é maior chegando a 11%, enquanto nos países de renda
média e baixa é de 8%.
Seguindo essa tendência, o aumento do uso da água na irrigação
é uma característica de mais da metade das regiões hidrográcas brasileiras.
A região da bacia hidrográca do Paraná é a que mais registrou aumento
na vazão de água retirada entre 2006 e 2010, totalizando 50% a mais
em quatro anos. Somente o setor de irrigação aumentou seu consumo em
quase 200%
12
. Outras regiões que registraram aumento do consumo de
água e que merecem destaque são do Tocantins, Araguaia e São Francisco
onde, segundo a ANA (2013), as demandas para irrigação cresceram mais
de 75% no período analisado. Das doze regiões hidrográcas brasileiras,
em sete predominam a retirada de água para irrigação na comparação com
os demais usos
13
.
O potencial de irrigação do país também aumentou gradativa-
mente nas últimas décadas. Em 1970, a área cultivada irrigada compreen-
dia 2,3%, tendo sido aumentada para somente 3,8% em 1985. Dez anos
12
Um dos motivos colocados pela ANA (2013) para justicar o aumento no consumo de água se deu em função
da melhoria da qualidade da informação da região, principalmente devido a elaboração do Plano da Bacia do
rio Parnaíba.
13
Nas bacias Atlântico Nordeste Oriental, Atlântico Sul, São Francisco, Tocantins-Araguaia e Uruguai, ocorre,
segundo a ANA (2013, p. 92), o predomínio (mais de 60% da demanda total) das vazões de retirada para
irrigação, em relação aos demais usos; grande demanda para irrigação por inundação (arroz inundado) nas
regiões Atlântico Sul e Uruguai; Polo de Barreiras (produção de soja) e perímetros irrigados para fruticultura
(irrigação por pivô central) em Juazeiro e Petrolina, na região do São Francisco; Zona canavieira e perímetros
irrigados para fruticultura, na AH Atlântico Nordeste Oriental; Projeto Formoso, Pium e Urubu na região de
Tocantins-Araguaia. Nas bacias Atlântico Leste e Paraná, Predomínio (mais de 60% da demanda total) das va-
zões de retirada para Irrigação, em relação aos demais usos; grande demanda para irrigação por inundação (arroz
inundado) nas regiões Atlântico Sul e Uruguai; Polo de Barreiras (produção de soja) e perímetros irrigados para
fruticultura (irrigação por pivô central) em Juazeiro e Petrolina, na região do São Francisco; Zona canavieira e
perímetros irrigados para fruticultura, na AH Atlântico Nordeste Oriental; Projeto Formoso, Pium e Urubu na
região de Tocantins-Araguaia.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

depois, em 1995, a área irrigada cultivada correspondia a 6%, e em 2012
a 8,3% (ANA, 2013). A ANA justica a elevação desse índice a partir dos
anos 1980 devido aos programas que foram criados naquela década que
fortaleceram, sobretudo, a inciativa privada, responsável por mais de 90%
das áreas irrigadas no país:
O salto vericado a partir da década de 1980 relaciona-se com im-
portantes programas criados neste período: Programa Nacional para
Aproveitamento Racional de Várzeas Irrigáveis – Provárzeas (1981),
Programa de Financiamento de Equipamentos de Irrigação – Pror
(1982), Programa Nacional de Irrigação – Proni (1986) e Programa de
Irrigação do Nordeste – Proine (1986). Em conjunto, estes programas
forneceram marcos tanto para o investimento direto do setor público
em obras coletivas de grande impacto regional quanto, principalmen-
te, para estimular a iniciativa privada, que atualmente responde por
96,6% das áreas irrigadas. (ANA, 2013, p. 95)
Nesse sentido, considerando a nova política proposta pelo gover-
no federal para o setor, aprovada em 2013
14
e as projeções de crescimento
da agricultura empresarial para os próximos anos, a tendência de expan-
são das áreas irrigadas no Brasil tende a aumentar e consequentemente o
uso consultivo da água também. Some-se a este cenário a possibilidade de
avanço da fronteira agrícola nas regiões da oresta amazônica, facilitadas
especialmente a partir do segundo mandato do presidente Luis Inácio Lula
da Silva, que sancionou a medida provisória 458 voltada para a regulariza-
ção de terras na Amazônia Legal
15
.
14
O Programa Mais Irrigação foi lançado pelo Ministério da Integração Nacional em 2012, prevendo na época
investimentos de 10 bilhões de reais, sendo 3 bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento e 7 bilhões
da iniciativa privada. O discurso do governo federal é a necessidade de valorizar o agricultor familiar através
do desenvolvimento da economia regional. Contudo, o Programa prevê incluir o médio e o pequeno produtor
em cadeias produtivas voltadas para produção de biocombustíveis, fruticultura e grãos. Dividido em quatro
eixos o programa previa na época atrair investimentos do setor privado através de concessões de áreas agrícolas
envolvendo 16 estados – Alagoas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas
Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Sergipe e Tocantins.
15
Esta medida provisória aprovada possibilitou que posseiros pudessem formalizar legalmente as terras ocu-
padas na Amazônia. A partir da sanção dessa Medida Provisória, terras com menos de 100 hectares podem ser
doadas aos posseiros; terras com até 400 hectares pagam um valor abaixo do valor de mercado e áreas com até
1,5 mil hectares pagam nas terras o valor de mercado. A justicativa do governo foi a necessidade de facilitar o
trabalho de scalização ambiental a partir da regularização dessas terras. Muitas críticas foram feitas a essa MP,
como pode ser observado em artigo escrito pelo geógrafo da USP Ariovaldo Umbelino para o jornal Le Monde
Diplomatique em 2011 com o título: “
Tragédia e farsa: a compra de terras por estrangeiros”. Disponível em
<http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1004>.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Segundo dados do Ministério da Agricultura sobre projeções rea-
lizadas em 2012 para o setor agrícola no período 2011/2012 a 2021/2022
existe a expectativa de que a área plantada no país salte de 64,9 milhões
de hectares para 71,9 milhões de hectares em 2022, com esse aumento
concentrado em soja – 4,7 milhões de hectares –, e cana de açúcar – 1,9
milhões de hectares. A projeção para produção de grãos é um aumento
de 21,1%, com expansão de área de 9%, impulsionada não apenas pela
exportação, mas também pelo mercado interno, congurando uma dupla
pressão sobre o aumento da produção nacional. Consequentemente, caso
essa expectativa para expansão de áreas plantadas se conrme, especial-
mente nas culturas irrigadas, ocorrerá um reexo disso na ocupação de no-
vos territórios e aumento no consumo de água, impactando bacias hidro-
grácas e populações locais como camponeses, quilombolas e indígenas.
No que se refere às áreas plantadas, o estudo do Ministério da
Agricultura indica um aumento elevado, em especial nas regiões norte,
centro-oeste e nordeste:
Mato Grosso deve continuar liderando a expansão da produção de soja
e milho no país com aumentos previstos na produção superiores a 20%
para esses dois produtos. A região denominada MATOPIBA, por estar
situada nos estados brasileiros de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia,
deverá apresentar aumento elevado da produção de grãos assim como
sua área deve apresentar também aumento expressivo. As projeções
indicam para essa região deverá produzir próximo de 20 milhões de
toneladas de grãos em 2022 (aumento de 27,6%) e uma área plantada
de grãos entre 7 e 10 milhões de hectares ao nal do período das pro-
jeções. (MAPA, 2012, p. 38).
A região denominada MATOPIBA, destacada acima, é colocada
como principal área de expansão da fronteira agrícola no país por uma
série de fatores, em especial por reunir características naturais que favore-
cem a agricultura empresarial moderna devido a grande disponibilidade
de água, clima propício com dias longos e elevada intensidade solar, além
de possuir terras planas e extensas, abrangendo quatro bacias hidrográ-
cas – Tocantins/Araguaia, São Francisco, Atlântico Nordeste Ocidental e
Parnaíba (MAPA, 2012).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Conforme colocado acima, as bacias hidrográcas do Tocantins/
Araguaia e do São Francisco registraram segundo o último Relatório de
conjuntura de recursos hídricos da ANA um aumento considerável no
consumo de água impulsionado, sobretudo, pela irrigação. São regiões que
vem expandindo cada vez mais culturas irrigadas como soja, milho, arroz,
cana-de-açúcar e fruticultura, com amplo apoio do governo federal.
No Tocantins, estado de origem da atual ministra da agricultura
Kátia Abreu, o potencial de agricultura irrigada ultrapassa os quatro mi-
lhões de hectares, aspecto que historicamente atraiu o interesse do capital
agrícola. Os investimentos federais no setor de irrigação, bem como em
infraestrutura hidroviária, ferroviária e rodoviária, obtiveram a disponibili-
zação de grande volume de recursos federais nos últimos anos. Em janeiro
de 2015, o Ministério da Integração Nacional liberou cerca de 116 mi-
lhões para a reconstrução do projeto de irrigação do rio formoso
16
que tem
como foco principal recuperar as estruturas das barragens construídas no
nal da década de 1970.
Na região da bacia hidrográca do São Francisco ocorre uma das
principais atividades agrícolas do nordeste, a fruticultura, especializada em
frutas que normalmente são cultivadas em climas mais amenos como os da
região sul. Aproveitando a demanda do mercado externo, muito em função
da logística da região do Vale do rio São Francisco, a fruticultura irrigada
vem se consolidando como a principal atividade agrícola empresarial da re-
gião do semiárido. Contudo, Ribeiro (2008) alerta que tal prática vem se
constituindo como um exemplo do uso insustentável dos recursos hídricos.
A fruticultura exportadora praticada no nordeste brasileiro é um exem-
plo de emprego insustentável dos recursos hídricos. Frutas exóticas
foram introduzidas em meio ao sertão, onde se encontra baixa plu-
viosidade e elevada insolação, sob alegação de que podem ser vendidas
no mercado externo a preços mais competitivos devido às distâncias
menores da Europa e dos EUA se comparadas às tradicionais regiões
16
De acordo com a Portaria n.º 267 de 31 de dezembro de 2014, no artigo 3.º “O total dos recursos nanceiros
necessários para a execução do objeto são neste ato, xados em R$ 116.388.888,89 (cento e dezesseis
milhões, trezentos e oitenta e oito mil, oitocentos e oitenta e oito reais e oitenta e nove centavos), sendo R$
104.750.000,00 (cento e quatro milhões e setecentos e cinquenta mil reais), previstos no programa de trabalho
20.607.2013.1P91.0017, Fonte 0100, Natureza da Despesa 44.30.42, a serem transferidos pela Unidade
Gestora Responsável – UGR 530022, em estrita observância ao cronograma de desembolso e R$ 11.638.888,89
(onze milhões, seiscentos e trinta e oito mil, oitocentos e oitenta e oito reais e oitenta e nove centavos), à conta
das dotações orçamentárias do Governo do Estado.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
produtoras dessas frutas no Brasil. Mamão, melão e mesmo uvas pas-
saram a ser cultivadas com grande sucesso comercial. Porém, não estão
sendo computados os custos ambientais, em especial o volume de água
usado na produção. (RIBEIRO, 2008, p. 41).
Seguindo a lógica da agricultura empresarial no Brasil, a fruti-
cultura foi impulsionada em grande medida devido aos investimentos do
Estado na modernização das práticas de irrigação e disponibilização de
crédito, principalmente com empréstimos disponibilizados pelo Banco do
Nordeste, que mantém uma linha de crédito especíca para esse tipo de
nanciamento com juros que variam de 5 a 8,5% ao ano e se destinam
para produtores rurais, cooperativas e associações.
17
Segundo dados do Portal Brasil da presidência da república, so-
mente no ano de 2010, o Banco do Nordeste investiu 240 milhões de
reais na fruticultura da região, principalmente nos estados da Bahia,
Pernambuco e Ceará.
18
Há um potencial ainda maior de crescimento dessa
atividade, sobretudo com o Projeto de transposição do Rio São Francisco
incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) lançado pelo
governo do presidente Lula em 2007.
Nas regiões que englobam o oeste de São Paulo, Leste do Mato
Grosso do Sul, Noroeste do Paraná, Triângulo Mineiro e Sul do sudoeste
de Goiás, denominadas por omaz Jr. (2010) como Polígono do Agro-
hidronegócio, forma pela qual se consolida a expansão da agropecuária
capitalista no Brasil, são contempladas diferentes formas do agronegócio
como a soja, o milho, o eucalipto e a cana-de-açúcar. São regiões que tam-
bém disponibilizam as melhores terras e água em grande escala, elementos
essenciais para a efetivação do capital no campo.
Assim, a água é agregada ao novo cenário de disputas de domínio
por novos territórios e nesse sentido, o agronegócio vai à busca de assegurar
o acesso tanto a terra quanto aos recursos hídricos, consolidando o concei-
to de Agro-hidronegócio.
17
Disponível em: <http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/Produtos_e_Servicos/Cresce_Nordeste/gerados/
cresce_nordeste_fruticultura.asp>. Acesso em: Out. 2013.
18
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/ciencia-e-tecnologia/2011/01/banco-do-nordeste-investiu-r-240-
-milhoes-em-fruticultura-na-regiao>. Acesso em: Out. 2013.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

O capital tem à disposição elementos imprescindíveis para a marcha ex-
pansionista dos seus negócios. Além de contar com os favorecimentos
dos investimentos públicos e também privados, e por isso disputa apoios,
cabe colocar em evidência que os bons resultados/retornos obtidos são
complementados/potenciados pelo acesso às melhores terras (planas, fér-
teis, localização favorável e logística de transportes adequada). Mas não
somente, pois o sucesso do empreendimento como um todo requer a ga-
rantia de acesso a água, seja supercial (grandes rios, reservatórios de hi-
drelétricas, lagos), por meio de intervenções, via de regra, represamentos
de cursos d’água, seja subterrânea, sobretudo os aquíferos Caiuá-Bauru e
Serra Geral, no Centro-Sul do País, índices pluviométricos satisfatórios
e com regularidade adequada às demandas do ciclo vegetativo da planta
(cana-de-açúcar, soja, etc.) (THOMAZ JR., 2010, p. 94).
Outro aspecto destacado por omaz Jr. sobre o avanço do
agronegócio no campo – através de investimentos públicos, grilagens, e
inúmeras práticas históricas quinhentistas adotadas pela burguesia para
concentrar territórios gerando assim conitos territoriais na disputa por
terra/água – é que o mesmo vem inuenciando a subida dos preços dos
alimentos devido à diminuição das áreas destinadas ao plantio de culturas
básicas do dia a dia do brasileiro.
De acordo com os números apresentados naquele momento
por omaz Jr. (2010, p. 96) a partir de informações do Ministério da
Agricultura e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), 23 mi-
lhões de hectares são ocupados no Brasil por soja, 16 milhões com milho
e 9,2 milhões com cana-de-açúcar. Enquanto isso, 3 milhões de hectares
são destinados para arroz e 4,2 milhões de hectares para feijão. Ou seja, a
maior parte das terras férteis e do volume de água é direcionada com apoio
do Estado para atender os interesses de mercado das empresas do setor de
agronegócio, ao passo que privilegiam a produção de commodities.
Ao mesmo tempo em que se consolida no Brasil um modelo de
produção agrícola que se benecia da exploração demasiada dos recursos
hídricos como ferramenta de acumulação de capital, as secas estão se tor-
nando corriqueiras nos últimos anos, com o índice de chuvas diminuin-
do de forma signicativa, conforme pode ser observado no relatório de
Conjuntura de Recursos Hídricos lançado em 2013 com referência aos
índices de 2012. De acordo com os dados abaixo, pela primeira vez na

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
história não houve aumento no índice de chuvas em nenhuma região hi-
drográca do país.
Quadro 1: Precipitação média das regiões hidrográcas entre 2009 e 2012
Fonte: ANA (2013).
Embora o ano de 2009 tenha excedido a média histórica em
15%, em 2012, além de a chuva ter sofrido grande redução, cinco regiões
hidrográcas obtiveram valores muito aquém do que se esperava ao se levar
em consideração os anos anteriores, prejudicando a reposição natural em
rios, lagos e aquíferos, e ameaçando as regiões que historicamente são mais
atingidas pela seca (ANA, 2013).
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Concomitante a esse cenário, a Comissão Pastoral da Terra (CPT)
apresenta dados que indicam que os conitos pelo uso da água tiveram au-
mento expressivo na última década. Desde 2002, a CPT vem registrando
em separado os conitos pela água no meio rural, devido a um conjunto de
fatores que já naquela época indicavam potencial “crise da água” tanto em
âmbito internacional, quanto nacional. Historicamente, a CPT já registra-
va nas suas publicações conitos originados das construções de barragens
para as usinas hidrelétricas, Contudo, dado o avanço do agronegócio e sua
sede por recursos hídricos, bem como os grandes empreendimentos vol-
tados para novas hidroelétricas na região norte, a CPT vem especicando
nas suas publicações os que são originários diretamente da disputa pelo uso
dos recursos hídricos.
As análises demonstram um cenário de evolução dos conitos
por água entre 2005 e 2014, curiosamente o mesmo período de grandes
investimentos e expansão do agronegócio e de obras hidroelétricas de gran-
de porte. Conforme é possível notar no gráco abaixo, 2014 registrou o
maior índice de conitos no país, ou seja, praticamente faltando pouco
para atingir quase o dobro do que os vericados em 2005. A CPT (2014)
arma ainda que esses conitos atingem atualmente mais de 42.000 fa-
mílias, sendo que ao todo, durante os últimos 10 anos, mais de 320.000
famílias estiveram envolvidas em conitos pela água.
Gráco 4 - Número de conitos pela água 2005-2014
Fonte: Comissão Pastoral da Terra (2012) apud Camargo (2014).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
A CPT tipica os conitos em três categorias: (1) apropriação
particular – quando um proprietário faz um barramento de uma fonte,
promove o desvio de um curso d´água e restringe o acesso de outros; (2)
barragens e açudes – ocasionados pela construção de hidroelétricas que
não cumprem procedimentos legais e expropriam pequenos proprietários,
assentados, posseiros, ribeirinhos, indígenas, pescadores e quilombolas; (3)
Conitos relacionados ao uso e preservação – ligados à destruição de ma-
tas ciliares, à poluição das águas por diferentes atividades como o uso de
agrotóxicos, pesca predatória e cobrança pelo uso da água. Assim, no nal
de 2014 a CPT registrava no país 86 conitos por apropriação particular,
325 por barragens e açudes e 346 envolvendo casos de uso e preservação.
Todos contabilizados a partir de 2005.
Os dados demonstram que a maioria dos conitos se dá em torno
do uso e preservação das águas, no caso, os relacionados com atividades do
agronegócio, seguido de perto pelos problemas ocasionados pelas barra-
gens de hidroelétricas. De acordo com a CPT apud Camargo (2012), esses
conitos opõem de um lado as populações que ocupam espaços desejados
pelo capital, ou seja, indígenas, quilombolas, posseiros, ribeirinhos, pesca-
dores e posseiros; e de outro lado, os governos federal e estaduais, fazen-
deiros, empreiteiras, mineradoras e empresários de ramos diversos. A CPT
chama a atenção ainda para o fato de que esses conitos aconteceram em
2014 em 16 estados brasileiros e estão espalhados praticamente por todo
o território nacional.
Percebe-se que ao mesmo tempo em que houve um avanço do
agronegócio e de outros grandes empreendimentos nanciados pelo go-
verno nesses últimos 10 anos, o índice pela demanda da água aumentou,
como também se elevou o número de conitos pelo seu uso. Embora o
foco aqui sejam os impactos do meio rural, do agronegócio em especíco,
os problemas relacionados ao acesso aos recursos hídricos tomaram gran-
des proporções também no meio urbano, conforme pode ser observado na
crise de abastecimento na grande São Paulo que tem os serviços de água e
esgoto geridos por uma empresa estadual de capital aberto – Sabesp.
Sendo assim, deveríamos nos questionar quais as respostas que a
nova Política de Águas promulgada no Brasil no nal dos anos 1990 vem
oferecendo no sentido de contornar tais problemas. Ao que tudo indica,
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

dado o cenário de avanço desenfreado de setores econômicos sobre os re-
cursos hídricos e o aumento no número de conitos sociais vinculados à
agua nos últimos anos, essas respostas estão sendo pouco convincentes ao
passo que encontram seus limites nas suas próprias origens que são neoli-
berais na essência, sobretudo ao terem absorvido recomendações do Banco
Mundial e adotado conceitos de governança e gestão pautados por princí-
pios instrumentais econômicos.
19
Embora passasse a apresentar um discurso de democratização,
descentralização e participação popular, a PNRH coloca muita ênfase na
água somente como um bem econômico, conforme pode ser notado no
seu principal instrumento de gestão que é a cobrança pelo uso da água. Tais
medidas facilitam que a água continue submetida a processos de mercanti-
lização e privatização através de seu uso em grandes projetos de barragens
e no seu uso indiscriminado para atender os interesses do modelo agrícola
predominante. A água no meio rural continuou servindo de insumo direto
e indireto de acumulação de capital, no entanto, com o poder público e
capitalistas adotando agora um discurso ideológico de sustentabilidade.
Ioris (2005) arma que apesar da existência de uma nova estru-
tura institucional pautada em técnicos e agências, as mudanças vericadas
até agora no tratamento das questões relacionadas aos recursos hídricos
são apenas marginais, dado que essa nova estrutura mantém seus esforços
concentrados no controle técnico-econômico da água e assim não pro-
duz ações e respostas em longo prazo para os problemas socioambientais
criados pelo próprio desenvolvimento econômico. Ioris indica que nem
mesmo os canais aparentemente democráticos de representação como os
comitês de bacia são capazes de inverter essa lógica.
Podendo se congurar como um espaço em disputa pelos dife-
rentes atores sociais, os comitês de bacia hidrográca, considerados teo-
ricamente no âmbito da implantação da PNRH como um parlamento
das águas aberto a participação democrática e popular nas decisões dos
caminhos a serem seguidos em cada bacia, se concretizaram a passos lentos,
normalmente implantados de cima para baixo a partir de ações do poder
19
Em pesquisa realizada durante o mestrado, demonstramos a inuência do Banco Mundial na Política
Nacional de recursos Hídricos e a tendência de mercantilização das águas como consequência. O estudo pode
ser consultado em Scantimburgo (2013).

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
público. No caso, até o presente momento estão em funcionamento nove
comitês de bacia hidrográca em rios interestaduais – Bacia do Rio Paraíba
do Sul; Bacia do Rio Paranapanema; Bacia dos Rios Piracicaba Capivari e
Jundiaí; Bacia do Rio Grande; Bacia do Rio São Francisco; Bacia do Rio
Piranha Açu; Bacia do Rio Verde Grande; Bacia do Rio Doce.
20
Na região norte, palco dos principais conitos pelo uso da água,
sobretudo devido ao avanço da fronteira agrícola e das barragens para cons-
trução de hidroelétricas, não houve a criação de nenhum Comitê interesta-
dual de bacia. Na região, existem poucos comitês estaduais em apenas dois
estados. No Amazonas foi criado em 2006 o Comitê de Bacia Hidrográca
do Rio Tarumã, e no estado do Tocantins, a partir de 2011, foram cria-
dos quatro comitês de Bacia Hidrográca: Manuel Alves da Natividade; Rio
Formoso do Araguaia; Entorno do Lago Palmas; e dos Rios Lontra e Corda.
21
Não que a existência de Comitês de Bacia signique realmente
que as decisões acerca dos recursos hídricos sejam realmente tomadas por
decisões que envolva ampla participação popular e democrática, ou que
neles resida a solução para problemas de poluição, degradação e acesso sus-
tentável e justo à água. As experiências relatadas por pesquisas acerca dos
comitês que se encontram em funcionamento apontam para situações que
sugere falta de representatividade, conitos e concentração das decisões
segundo demandas de grandes usuários e do poder público, conforme in-
dicam trabalhos de Ioris (2008) no comitê da Bacia do Rio Paraíba do Sul,
e de Santos e Medeiros (2009) no comitê da bacia do Rio São Francisco.
O fato é que a pouca efetivação dos comitês em regiões de conitos pelo
uso da água, conforme ocorre no norte do país, sugere que nem mesmo
instrumentos que possibilitam um mínimo de participação da sociedade
nos destinos dos recursos hídricos foram efetivados. Ou seja, nem os ins-
trumentos que se valem do argumento de que as decisões acerca dos desti-
nos da água são tomadas de forma participativa e democrática estão sendo
consolidados nas regiões em que mais ocorrem conitos.
20
http://www.cbh.gov.br/#not-interestaduais
21
http://www.cbh.gov.br/#not-estaduais
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

CONCLUSÃO
Concluindo, o que se pode observar a partir do impacto do agro-
negócio na conjuntura dos recursos hídricos é a conrmação das consta-
tações de Ioris (2005), quando arma que a nova política de águas tem
preservado e ampliado os privilégios econômicos historicamente estabele-
cidos no setor hídrico, pois ela nega a vinculação de melhoria da gestão das
águas, com a necessidade de mudanças político-econômicas mais amplas.
A tentativa de se levar a cabo uma política de gestão que dissocia a agenda
dos recursos hídricos das relações estruturais de poder constitui um me-
canismo de apoio a formas de minimização de conitos e acumulação de
capital, estabelecendo de acordo com Ioris (2005) uma estrutura que não
busca responder a problemas ambientais e sociais de forma profunda.
Assim, dado as fragilidades e contradições presentes na estrutu-
ra institucional que rege os recursos hídricos, e um crescimento cada vez
maior de setores ligados ao uso intensivo da água, conforme ocorre com o
agronegócio, que conta com amplo apoio nanceiro e político do governo;
e levando em consideração uma conjuntura atual que apresenta quadros
de escassez, degradação e conitos pelo uso da água, o cenário que se dese-
nha para o futuro é preocupante do ponto de vista da sustentabilidade dos
recursos hídricos e principalmente da justiça socioambiental. Nesse mo-
mento, nada indica que ocorrerão mudanças signicativas que ultrapassem
as medidas regulatórias superciais que se fazem presentes no que se refere
ao controle, degradação e consumo elevado da água no setor agropecuário,
seja a curto ou longo prazo.
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS. Conjuntura dos Recursos Hídricos no
Brasil. Brasília: ANA, 2009.
______. Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil. Brasília: ANA, 2013.
______. Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil. Brasília: ANA, 2014.
BANCO CENTRAL DO BRASIL. O desempenho das exportações brasileiras
de commodities: uma perspectiva regional (2006-2011). In: Boletim Regional do
Banco Central do Brasil, 2012. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/pec/bole-
timregional/port/2012/01/br201201b1p.pdf>. Acesso em: 4 set. 2015.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
BRASIL. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Portaria n.º 267, de 15 de dezembro
de 2014. Disponível em: <http://www.fazenda.df.gov.br/aplicacoes/legislacao/
legislacao/TelaSaidaDocumento.cfm?txtNumero=267&txtAno=2014&txtTipo=
7&txtParte=>. Acesso em: 4 set. 2015.
CAMARGO, J. M. Pauta de exportações do Brasil: evidência de reprimarização
da economia? In: CAMARGO, J. M.; SANTOS, A.; SIMONETTI, M. C. L.
Múltiplas faces da crise econômica e nanceira mundial. Bauru, SP: Canal 6 editora,
2011.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Conitos no campo: Brasil
2014. Goiânia:CPT Brasil, 2014. Disponível em: <htto://www.mpma.mp.br/
arquivos/CAOPDH/Caderno_conitos_no_campo_2014_cpt.pdf> Acesso em:
4 set 2015.
DAGNINO, R. Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico. Campinas:
Editora Unicamp, 2008.
DELGADO, G. C. A questão agrária no Brasil: 1950-2003. In: JACCOUD, L.
(Org.). Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Brasília: IPEA,
2005, p. 51-90.
IORIS, A.A.R. Água, Cobrança e Commodity: a geograa dos recursos hídricos
no Brasil. Terra Livre, v. 25, n. 121-137, 2005.
______. Os limites políticos de uma reforma incompleta: a implementação da
Lei dos recursos hídricos na bacia do Paraíba do Sul. Revista Brasileira de Estudos
Urbanos e Regionais, v. 10(1), n. 61-85, 2008.
______. Da foz às nascentes: análise histórica e apropriação econômica dos re-
cursos hídricos no Brasil. In: ALMEIDA, A. W. B. et al. Capitalismo globalizado e
recursos territoriais. Lamparina: Rio de Janeiro, 2010, p. 211-255.
SANTOS, M. E. P.; MEDEIROS, Y. D. P. Participação social no gerenciamento
dos recursos hídricos: a bacia do São Francisco. In: RIBEIRO, W. C. Governança
da água no Brasil: uma visão interdisciplinar. São Paulo: Annablume, 2009.
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA PECUÁRIA E ABASTECIMENTO.
Projeções do Agronegócio Brasil 2011/12 a 2021/22. Brasília: MAPA, 2012.
______. Plano Anuário 2013/2014. Secretária de Política Agrícola, Brasília:
MAPA, 2013. Disponível em <http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/le/acs/
PAP20132014-web.pdf>. Acesso em: 4 set. 2015.
______. Agronegócio Brasileiro em Números. Brasília: MAPA, 2010. Disponível
em <http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/le/Sala%20de%20Imprensa/
Publica%C3%A7%C3%B5es/gracos_portugues_corrigido2.pdf> . Acesso em:
4 set. 2015.
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

NOBRE, A. D. O futuro climático da Amazônia: relatório de avaliação cientíca.
São José dos Campos, SP: ARA: CCST-INPE: INPA, 2014.
PAULINO, L. A. O debate atual sobre desindustrialização no Brasil. Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História:ANPUH: São Paulo, jul. 2011. Disponível em:
<http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1299878632_ARQUIVO_
LUIS_ANTONIO_PAULINO_COMPLETO.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2015.
RIBEIRO, W. C. Geograa política da água. São Paulo: Annablume, 2008.
THE UNITED NATIONS. e united nations world water: managing water
under uncertainty and risk. Paris: United Nations Educational, Scientic and
Cultural Organization, 2012.
SCANTIMBURGO, A. L. O Banco Mundial e a política nacional de recursos hí-
dricos. São Paulo: Cultura Acadêmica, Editora Unesp, 2013.
THOMAZ JR, A. O Agrohidronegócio no centro das disputas territoriais e de
classe no Brasil do século XXI. In: Campo-Território: revista de geograa agrária,
v.5, n.10, p. 92-122, ago. 2010.
ZHOURI, A. Desenvolvimento e conitos socioambientais. In: COSTA LIMA, M.
(Org.). Dinâmica do capitalismo pós-Guerra Fria: cultura tecnológica, espaço e
desenvolvimento. São Paulo: Editora Unesp, 2008, p. 267-280.

CAPITALISMO RETARDATÁRIO E PULSÃO GOLPISTA:
UM ENSAIO SOBRE A MISÉRIA BRASILEIRA
Giovanni ALVES
“Nessa casa, os morto é que comanda os vivo
A gente é que nem os boi: roda, roda e nunca sai do lugar”
1
O processo de ruptura da institucionalidade democrática ocor-
rida no Brasil em 2016 é a culminação do longo movimento histórico
de reação às políticas dos governos neodesenvolvimentas desde que Luís
Inácio Lula da Silva foi eleito em 2002. Quando assumiu a Presidência da
República, o Partido dos Trabalhadores (PT) passou a ser alvo de ofensivas
de setores conservadores e reacionários da sociedade brasileira. Do Mensalão
à Operação Lava-Jato, presenciamos o espírito perfomático do golpismo
na articulação do Poder Judiciário com a Grande Mídia hegemônica, de-
claradamente anti-PT e vinculada à direita neoliberal (PSDB). Enquanto
vivíamos numa conjuntura de crescimento da economia brasileira por con-
ta do ciclo de valorização das commodities e crescimento espetacular da
China (2003-2010), o Presidente Lula manteve a coalização política da
governabilidade no Congresso Nacional. Naquela conjuntura histórica, o
lulismo como refoirmismo de baixa intensidade, tinha sua ecácia política.
1
Abril despedaçado (2001), Direção: Walter Salles Jr.
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-815-6.p
201-218
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

Renegou a luta de classes e criou o mito do progresso social sem atentar
contra a ordem oligarquica. Portanto, enquanto vigorou o presidencialis-
mo de coalização (PT-PMDB) nas condições históricas do crescimento da
economia com inclusão social, o projeto neodesenvolvimentista sustentou-
-se, iludindo-se com o reformismo fraco e a conciliação de classe do lulismo
Paz e Amor. Apesar de ter espírito, o movimento do golpe como pulsão
histórica não adquiriu corpo. Lula conseguiu se reeleger em 2006; e eleger
a sucessora Dilma Rousse em 2010. O lulismo, signo contraditório da
politica do neodesenvolvimentismo, demonstrou ainda possuir fôlego para
reeleger Dilma Roussef em 2014. Mas o tempo histórico mudou.
A ressaca da crise do capitalismo global de 2008/2009, depois da
profunda crise nanceira que abateu o modo de produção capitalista no
núcleo orgânico do sistema do capital (EUA, União Européia e Japão); e
depois, se disseminou pelo sistema-mundo (os ditos “países emergentes”),
alterou a conjuntura da economia na década de 2010. O ofensiva neoli-
beral assumiu uma dimensão global. Na União Europeia, as políticas de
austeridade neoliberal demonstraram que o capital nanceiro possui capa-
cidade política para dobrar governos – inclusive governos socialistas (por
exemplo, François Holland, na França e Alexis Tsipras, na Grécia).
A Presidenta Dilma Rousse, eleita em 2010, iniciou seu governo
numa conjuntura de crise da economia global. Com a desaceleração da
China, esgotou-se o ciclo das commodities. Em dez anos de neodesenvol-
vimentismo, o Brasil, por conta da apreciação cambial herdada da gestão
Henrique Meireles no Ministério da Fazenda do primeiro governo Lula
(2003-2006), tornou-se uma economia desindustrializada e de pauta ex-
portadora baseada em commodities (agronegócio, mineração e petróleo). A
persistência da crise da União Europeia, a desaceleração brusca da China e
a queda dos preços das commodities, em um cenário de profunda crise do
capitalismo global, colocaram imensas diculdades para o projeto neode-
senvolvimenta brasileiro na primeira metade da década de 2010, principal-
mente no plano scal da gestão pública, expondo, deste modo, os limites
do neodesenvolvimentismo.
A Presidenta Dilma Rousse, eleita em 2010, demonstrou ser pou-
co afeita à negociação política. Mulher dura na conversação com o público e
com aliados da direita do PMDB, mas corajosa na intencionalidade política,

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
começou seu primeiro governo adotando políticas de confronto com setores
rentistas que constituíam o núcleo duro do bloco do poder do Estado neo-
liberal no Brasil. Foi a gota d’água. Por exemplo, em 2012, Dilma reduziu a
taxa básica de juros da economia (Selic) e sinalizou com gastos públicos. Com
Guido Mantega no Ministério da Fazenda, Dilma prosseguiu a política an-
ticíclica adotada pelo governo Lula em 2009-2010, verdadeiro terror para os
economistas neoliberais que cultuam a Responsabilidade Fiscal. Entretanto,
como salientamos acima, a conjuntura mundial era outra: a desaceleração
da China e o m dos ciclos de commodities debilitaram as nanças públicas,
impondo limites às politicas anticíclicas adotadas pelo Ministro da Fazenda
Guido Mantega em 2009, que transformaram a crise nanceira de 2008 no
Brasil apenas uma “marolinha”.
Num cenário de desaceleração da economia brasileira, aumento
da inação e juros em queda, a burguesia brasileira, de espinha-dorsal pre-
dominantemente rentista, especulativa e parasitária, exigiu, nos bastidores
do Palácio do Planalto, em 2012, mudanças na gestão da economia. Os
empresários unidos em torno da Federação da Indústria do Estado de São
Paulo (FIESP) e Federação dos Bancos Brasileiros (FEBRABAN) pleitea-
vam naquele momento, mudanças drásticas na política econômica: redução
de gastos públicos, cortes em Programas Sociais, redução de direitos tra-
balhistas e aumento dos juros para combater inação. Era a pauta-bomba
da burguesia brasileira para sair da crise do capitalismo brasileiro. Enm,
a burguesia brasilera, rentista no seu âmago oligárquico, lançou no centro
do palco do neodeenvolvimentismo, num cenário de aprofundamento da
crise, a luta de classes. Entretanto, como “animais políticos”, Dilma e Lula
se recusaram a promover, de imediato, a virada neoliberal da economia às
vesperas das eleições de 2014, pois obviamente seria um suicídio político.
A conciliação de classes tinha limites. Mas, logo após vencer as eleições de
2014, Dilma Rousse, pressionada pelo imperativo da governabilidade e
visando acalmar o bloco de poder neoliberal no seio do Estado brasileiro,
indicou para Ministro da Fazenda, o neoliberal ortdoxo Joaquim Lévy,
homem do Bradesco, e que zera parte da equipe de Henrique Meirelles
no primeiro governo Lula, com o objetivo de promover o ajuste scal.
Entretanto, o tempo histórico era outro – não estavamos em 2003, mas
sim em 2013; o “núcleo duro” da grande burguesia brasileira, imbuída de
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

consciência de classe oligárquica, verdadeiros donos do Poder, decidiu não
mais querer o PT no governo.
Em 2013, o bloco de poder da República, incrustado no Estado
neoliberal, forma histórica do Estado político do capital, que acolheu du-
rante dez anos os governos neodesenvolvimentistas, rearticulou-se, deli-
berando não querer mais a Presidência da República sob o comando do
PT. O economista Márcio Pochmann sintetizou numa frase, a tragédia
do lulismo: “Os ricos não nos querem mais”. Golpear o PT no governo e
na sociedade civil foi uma decisão suprema das oligarquias que compõem
o bloco de poder no Brasil; e que historicamente controlam há séculos, o
sistema de produção e reprodução social (industriais, nancistas, os donos
da Mídia e o Poder Judiciário); e o sistema de representação política (o
sistema político oligárquico).
Desde a derrota de Lula da Frente Brasil Popular nas eleições
presidenciais de 1989, a direita brasileira – a direita ideológica neoliberal
(PSDB e DEM); e a centro-direita siológica e maosa, representada pelo
PMDB e partidos-satélites (que representavam, há pouco, a base aliada do
Palácio do Planalto como avalistas da governabilidade) – voltou a se articu-
lar como partido-guardião da ordem oligárquica no Brasil, os verdadeiros
donos do Poder. De fato, a partir do ano de 2013, começou o corrosão e
fratura da base de sustentação política do governo do PT no Congresso
Nacional. Para começar, ocorreu o rompimento do PSB, que lançou can-
didato próprio nas eleições à Presidência da República (Eduardo Campos);
e, aos poucos, vericamos o afastamento progressivo de parlamentares do
PMDB da base governista. Por exemplo, depois das jornadas de julho de
2013, Dilma propôs a Reforma Política, incomodando o PMDB, partido
do vice-presidente da República, Michel Temer.
Na verdade, ocorreu, pouco a pouco, um processo de cooptação
da centro-direita siológica e maosa do PMDB e partidos-satélites, que
compunham a base aliada do governo, pela direita ideológica neoliberal
(PSDB e DEM), que comandava, na época, a Operação Lava-Jato, opera-
ção judicial sucessora do Mensalão no STF; e também a ofensiva midiática
da Grande Imprensa, tendo como articuladora-mor, a TV Globo. Depois
de conquistar a sociedade civil, com o poder midiático (de)formando e
manipulando a opinião pública, a direita ideológica neoliberal conquistou

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
enm, a sociedade política (o Congresso Nacional) e o aparelho de Estado
(o Poder Judiciário, PGR, MPF e PF). A “guerra de posição”, conduzida
pela direita ideológica neoliberal, teve mais ecácia política no momento
histórico da crise da economia brasileira – sem desprezar também os a-
grantes erros táticos do governo Dilma no xadrez político. Parafraseando
Lula, diriamos que “nunca na história desse país” um governo errou tan-
to em tão pouco tempo (indicações desastrosas para pastas ministeriais,
adoção de ajuste scal neoliberal rompendo com o discurso de campanha
da candidadta Dilma, inoperância do Ministro da Justiça no âmbito dos
vazamentos da Operação Lava-Jato pela Polícia Federal, etc).
Portanto, o ano de 2013 foi o annus horribilis dos governos neo-
desenvolvimentistas. O calor das manifestações de massa expôs os limites
do neodesenvolvimentismo; e fez o “ovo da serpente” quebrar-se; e de lá
saíram as víboras do fascismo social e político que se disseminaram pelo
país. Foi pura ilusão (ou idiotia política) vangloriar as jornadas de junho de
2013 como fez certa esquerda revolucionária. Naquele momento histórico
de disputa na sociedade civil, a direita ideológica neoliberal comandou a
pauta das ruas; e lançou efetivamente a cruzada dos “coxinhas”, a classe
média indignada e inquieta, que culpou o governo Dilma e o PT pela cor-
rupção no país. Foi assim que, ensaiou-se em 2013, a rearticulação do bloco
de poder oligárquico capaz de implodir a arquitetura política do lulismo.
A trágica vitória de Dilma em 2014 – vitória de Pirro – ocorreu
sob a crise profunda da institicionalidade política e imensas diculdades
na economia brasileira, provocadas pelo boicote de investidores e pela
ofensiva midiática, disseminando o caos. Havia uma perfeita orquestração
do golpismo. O governo e o PT, paralisados e assim tudo, besticados.
Naquele momento, fechou-se o cerco ao projeto do neodesenvolvimentis-
mo pelas “víboras” da oligarquia do país, que encontraram a oportunidade
histórica decisiva para realizar em pleno século XXI, a pulsão golpista que
caracteriza a miséria da política brasileira. A derrota inesperada da direita
neoliberal, representada pelo PSDB em 2014, acirrou os ânimos da reação
conservadora. Mas o verdadeiro golpe foi a eleição da maioria política con-
servadora e reacionária no Congresso Nacional, sob a liderança do PMDB
e aliados do Deputado Eduardo Cunha. Naquele momento, o espírito gol-
pista encontrou o corpo político monstruoso – verdadeiro Frankenstein – da
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

maioria política conduzida por Eduardo Cunha no Congresso Nacional.
Em torno de si, Eduardo Cunha, com a conivência ativa do vice-presidente
Michel Temer, construiu uma maioria política, em sua maior parte indicia-
dos por corrupção, dispostos a romper com a base de sustentação do go-
verno, e se compor pragmaticamente com a direita ideológica neoliberal,
tábua de salvação de bandidos e canalhas da República oligárquica.
Da articulação política que deu corpo ao espírito reacionário da
oposição neoliberal, surgiu a ambição do PMDB e seus cálculos políticos.
Os capi do PMDB, encurralado pelas investigações da Operação Lava-
Jato, viram-se pressionados, no jogo do toma-lá-dá-cá da política brasi-
leira, a sedimentar a articulação sinistra da Direita neoliberal com a Direita
siológica e corrupta. Era ironicamente, a “ponte para o futuro” – título
do Programa reacionário do PMDB renascido como força de oposição
ao governo do PT. No senso do oportunismo, a constelação maosa do
PMDB e os partidos-satélites foram obrigados a aderir ao golpe almejado
pela oposição ideológica neoliberal em troca da impunidade de seus capi,
verdadeira quadrilha que tomou de assalto o Palácio do Planalto (Vice-
presidente Michel Temer, Senador Renan Calheiros e Deputado Eduardo
Cunha, todos indiciados por corrupção). A articulação golpista visando
estuprar a Constituição Federal foi realizada às claras, dentro do aparelho
de Estado brasileiro, contando inclusive com a conivência ativa e passiva do
Supremo Tribunal Federal (STF). Enm, Procuradoria Geral da República,
Ministério Público Federal, Supremo Tribunal Federal, e inclusive a Polícia
Federal, tornaram-se instâncias de desestabilização ao statu quo do governo
Dilma. A conspiração corria às claras na Triste República.
Enm, a Operação Lava-Jato, na pessoa do Juiz Sérgio Moro, teve
a gloriosa função histórica de ser o aríete de provocação para que a direita -
siologica e maosa, incrustada no PMDB e partidos-satélites, se aliasse prag-
maticamente, com a direita ideológica neoliberal, compondo, deste modo,
a maioria política sob a condução do Deputado Eduardo Cunha (PMDB),
ártice da paralisia política do governo Dilma. Com a plena aprovação dos
supostos guardiães da Constituição Federal (os Ministros do STF), a maioria
política de direita no Congresso Nacional teve “sinal verde” para encaminhar
um processo de impeachment da Presidência da República, processo de impe-
dimento espúrio no mérito, tendo em vista que, ele não possuiu fundamento

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
jurídico, na medida em que a Presidenta da República não cometeu crime
de responsabilidade. Mais uma vez, como em 1964, o STF colaborou com
o estupro da Constituição Federal da qual diz ser guardião. Esta é a natureza
do golpe de 2016 – juridico-parlamentar e midiático.
Quando em 2011, a atual embaixadora norte-americana no Brasil,
Liliana Ayalde declarou “Ter amigos na Suprema Corte é ouro puro”, ela
sinalizou a nova estratégia imperial para controlar o processo político nas
sociedades democráticas. Antes, a subversão da ordem democrática ocorria
utilizando um componente do aparelho de Estado (as Forças Armadas);
hoje, é o Poder Judiciário, um dos Poderes da República. A mídia e a mo-
bilização nas ruas ou mesmo oparlamento, por si só, não seriam sucientes
para consumar o Golpe. Enm, a CIA adequou sua estratégia de luta às
novas condições históricas do capitalismo manipulatório. A ideologia do
Direito tornou-se uma poderosa arma em sociedades complexas em que a
luta de classes se agudiza. O fenômeno da judicialização das relações sociais
e da própria política encontra como complemento manipulatório, a poli-
tização da Justiça. Mas não é uma politização qualquer, e sim a politização
encoberta pela excepcionalidade hermenêutica da Moralidade togada. Tal
como a Mídia manipula a Notícia, o Ministro do Supremo manipula a Lei
de acordo com a conveniência do status quo. Por isso não interessa demo-
cratizar o Poder Judiciário. Nem os Meios de Comunicação de Massa. Eles
precisam ser permeáveis às forças da oligarquia dominante. Consumado, o
Golpe de 2016 no Brasil, que teve como experimento preliminar o Golpe
paraguaio, tornou-se um interessante objeto de estudo da ciência política,
verdadeira lição histórica sobre como deve atuar o imperialismo quando
não consegue depor pelo voto governos indesejáveis para Washington.
O novo arco do poder (a aliança política PMDB-PSDB) signi-
cou o grande feito histórico da República oligárquica que ressurgiu das
cinzas do lulismo, que acreditou construir um projeto de inclusão social
num país de pulsão histórica golpista. Como Caixa de Pandora, o lulismo
disseminou na sociedade brasileira, o inadmissível na ordem oligárquica:
a cultura dos direitos sociais, não apenas do povo brasileiro que trabalha,
mas das minorias e maiorias discriminadas: mulheres, negros, pobres, ho-
mossexuais e transexuais. O desnudamento do Estado neoliberal, oculto
desde o governo FHC, expôs de modo candente, a imoralidade da miséria
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

política brasileira. O signo contraditório do lulismo foi sustentar governos
neodesenvolvimentistas comprometidos com a inclusão social no interior
do Estado neoliberal. A reação do bloco de poder burguês, incrustado no
Estado neoliberal, adquiriu maior proporção nas condições de crise da
economia brasileira em 2013, tornando-se fulminante, tanto no plano da
sociedade civil, quanto no plano da sociedade política.
Por exemplo, na sociedade politica, o espírito golpista adquiriu
um corpo monstruoso na maioria política do Congresso Nacional, eleito em
2014, com uma composição reacionária e conservadora, e que escolheu o
Deputado Eduardo Cunha para presidí-lo. O sistema político arcaico per-
mitiu que grandes empresas nanciasem candidatos comprometidos com
a espoliação do fundo público e dos direitos sociais e trabalhistas do povo
brasileiro. Na sociedade civil, o espírito golpista assumiu seu corpo mons-
truoso nos movimentos sociais de direita, tal como o MBL (Movimento
Brasil Livre), que, nanciado por grandes empresários, articulou-se com
ruralistas e evangélicos para defender pautas neoliberais, reacionais e con-
servadoras. As “víboras” da reação conservadora se multiplicaram pela so-
ciedade civil. O discurso do ódio de classe assumiu dimensões inéditas na
história do Brasil. O Partido da Imprensa Golpista (PIG), tendo como
vanguarda midiática a TV Globo, utilizou-se do discurso de combate
sensacionalista à corrupção, seduzindo uma “classe média” historicamen-
te idiota na política, e liberal na visão de mundo, e que, com a crise da
economia brasileira, proletarizou-se em suas condições de vida e trabalho,
atribuindo, como “bode expiatório” da sua desgraça existencial, Dilma e
o corrupto PT. A irracionalidade social foi engendrada no seio da miséria
espirital do neodesenvolvimentismo. A inquietação social das camadas mé-
dias, seduzidas pelo discurso liberal anticorrupção, pavimentou o caminho
da reação golpista da direita ideológica neoliberal, articulada no plano in-
ternacional com a ofensiva imperialista de derrubar governos “populistas
na América Latina contrários à política externa de Washington. Enm, a
pulsão golpista no Brasil possui um vínculo orgânico com a cadeia secular
de dominação imperialista na América Latina.

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
1 O PERCURSO HISTÓRICO DA MISÉRIA POLÍTICA NO BRASIL
O que expomos acima foi o mundo da contingência política da
Triste República brasileira. As raízes profundas da reação conservadora e rea-
cionária estão na incapacidade candente do projeto político do PT de romper
com o Estado neoliberal de cariz oligárquico-político, herdado dos governos
neoliberais e da Ditadura Militar. Tanto os militares, quantos os governos
Collor e FHC, apenas atualizaram a tara oligarquico-politico do Estado bra-
sileiro, dando-lhe um verniz moderno. O Estado democrático de Direito
da Constituição-Cidadã de 1988 foi mais um promessa de civilização que
uma realidade efetiva de um sistema político deformado historicamente
pelo clientelismo e corrupção dos nanciamentos privados para campa-
nhas políticas. A Reforma do Estado de 1998 no governo FHC, não tinha
como objetivo democratizar o Estado brasileiro, mas sim, modernizá-lo de
acordo com a lógica gerencial. A democratização do Estado brasileiro não
era um valor para governos neoliberais, mais preocupados com gerencia-
lismo e Responsabilidade Fiscal. Entretanto, existe uma razão histórica de
fundo que explica o novo golpe de 2016: a vigência histórica na sociedade
brasileira daquilo que podemos denominar de “pulsão histórica do gol-
pismo” que caracteriza, de modo particular, a miséria política secular do
capitalismo retardatário brasileiro.
Em primeiro lugar, a pulsão histórica do golpismo na política bra-
sileira visa deter a entrada em cena do povo brasileiro no palco da história
da Nação. É um traço indelével da tradição histórica oligárquica que marca
a política brasileira. A pulsão histórica do golpismo na política brasileira
está arraigada profundamente na alma dos “donos do Poder”, como diria
Raymndo Faoro. O Brasil é um país de capitalismo retardatário, com in-
dustrialização hipertardia e formação colonial-escravista de via prussiana.
A burguesia brasileira, ontogeneticamente oligárquica, nunca colocou para
si o Projeto de Nação ou inclusão social dos pobres e miseráveis na eco-
nomia de mercado e no Estado democrático com direitos sociais – o que
expõe a estupidez política (ou ingenuidade medíocre) da conciliação de
classe de cariz social-democrata assumida pela direção hegemônica do PT.
Os ricos nunca iriam romper, de modo republicano, com o passado oligár-
quico. A pulsão golpista contra governos democrático-populares iria se ma-
nifestar, mais cedo ou mais tarde. Eis a nosso lastro histórico que teimamos
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

em esquecer, mas cujo passado persiste em voltar, tal como o espectro que
persegue Hamlet na peça clássica de William Shakespeare.
O Brasil nasceu em 21 de abril de 1500. Nasceu com a mo-
dernidade histórica do capital, incluindo-se, desse modo, naquela épo-
ca, no circuito do capitalismo comercial como produtor de commodities.
Exportávamos o Pau-Brasil. Portugal massacrou os povos indígenas, escra-
vizando-os, e depois incorporou-os à produção de mercadorias da plan-
tation. Entretanto, a inadaptação indígena ao trabalho escravo, levou os
colonizadores da Metrópole a trazerem escravos da África. A colonização
de Portugal era uma máquina burocrática de espoliar recursos naturais
do Brasil, principalmenete o ouro das Minas Gerais. No século XVIII,
Portugal foi um império colonial decandente, politicamente subordinado
ao Império Inglês. A Inglaterra, Rainha dos Mares, foi o país capitalista
que deu origem à Revolução Industrial. O ouro extraído das Minas Gerais
nanciou a Revolução Industrial na Inglaterra. A sanha colonizadora de
Portugal reprimiu com morte qualquer movimento de independência po-
lítica do Brasil. Inspirado nas revoluções burguesas na França e nos Estados
Unidos da América, o alferes Joaquim José da Silva Xavier – o Tiradentes
–, conspirou nas Minas Gerais contra a opressão portuguesa. Foi traído
e condenado à morte, tendo seu corpo esquartejado e as partes do corpo
distribuídas pelas cidades das Minas Gerais para desestimular movimentos
insurreicionais contra a dominação portuguesa.
Em 1810, Napoleão Bonaparte fez com que o Rei de Portugal,
D. João VI, viesse com a familia real e a corte portuguesa para o Brasil,
criando laços com a vasta Colônia. Foi preciso um conito familiar no
seio do poder dinástico de Portugal para que o Brasil fosse declarado in-
dependente em 7 de setembro de 1822. D. Pedro I, que tinha cado no
Rio de Janeiro após D. João VI e a Corte portuguesa terem retornado
para Portugal, proclamou a Independência do Brasil e outorgou a primeira
Constituição Brasileira em 1824. O audacioso Príncipe do Brasil incomo-
dou as oligarquias brasileiras, os proprietários dos latifúndios, os donos do
Brasil. Eles queriam limitar os poderes do imperador. O vasto território
brasileiro era um território de oligarquias regionais, latifundiários e chefes
políticos locais, que não aceitavam a intromissão do Poder Central no Rio
de Janeiro, capital do Império. O primeiro reinado de D. Pedro I foi tu-

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
multuado por revoltas regionais, lutas políticas internas. Pressionado pelas
oligarquias, que comandavam a insatisfação popular, D. Pedro I renuncia
e vai para Portugal, deixando como herdeiro do Trono brasileiro, o lho
pequeno de 5 anos, Dom Pedro II, tutelado por José Bonifácio, homem
de conança das oligarquias. D. Pedro II tornou-se homem de conança
do Poder oligárquico, político medíocre, que se manteve como Imperador
enquanto consentisse com a ordem oligárquico-escravista.
O Brasil como Nação Imperial nasceu amesquinhado pelo escravis-
mo, modo de trabalho no Brasil em pleno século XIX; e pela visão paroquial
dos interesses locais. A Lei de Terras de 1850 impediu o acesso à propriedade
de terra pela vasta população de homens livres, obrigados a permanecer à
sombra das oligarquias locais. Homens livres, padres, comerciantes, juízes,
bacharéis e ans, tinham como ambição visceral, frequentar o alpendre ou
a sala de estar da Casa Grande; se tivesem sorte, podiam se casar com a lha
do latifundiário. O terror das “camadas médias” de homens livres, brasileiros
que se encontravam entre os escravos e indígenas, e os proprietários latifun-
diários, era pertencer à Senzala. O anseio ontogenético da “classe média
brasileira foi adentrar à Casa Grande. Aos poucos, sedimentou-se no Brasil,
uma estrutura de classes rígida, caracterizada pela concentração da proprie-
dade em imensos latifúndios em torno da qual girava o simulacro de socieda-
de civil e sociedade política – isto é, o próprio Estado brasileiro. Os donos do
Poder, latifundiários nunca tiveram visão da coisa pública. O Estado brasilei-
ro nasceu patrimonialista, tutelado pelos proprietários latifundiários, indus-
triais, nancistas, comerciantes e oligarquias políticas em torno da qual cir-
culavam a burocracia pública, a Igreja Católica e os intelectuais tradicionais.
Enm, os intelectuais de cultura bacharelesca e provinciana, a classe média
tradicional vivia à sombra do Poder, dando legitimidade político-ideológica
e jurídica à ordem oligárquica.
No século XIX, o Estado brasileiro, tal como o povo brasileiro,
era cativo dos donos das terras, fazendeiros que possuíam o mando local e o
poder de vida e morte nas localidades. O Brasil era um país agrário. A abo-
lição da escravatura não ocorreu por motivos humanitários, mas sim por
razões contábeis – manter escravos dava mais prejuízo que lucro aos donos
da Casa Grande. A Proclamação da República em 1889 ocorreu devido à
crise da economia escravista e a inapetência do Império em administrar a
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

velha ordem oligárquico-burguesa. Entretanto, tal como a Independência
do Brasil, o povo assistiu besticado à Proclamação da República pelo
Marechal Deodoro da Fonseca, que manteve intacto o sistema de poder
oligárquico local. Como diria Tomasso di Lampedusa na obra-prima “O
Leopardo”, “tudo deve mudar para que tudo que como está”.
A República Velha, fundada em 1889, teve um verniz liberal-con-
servador. Entretanto, o liberalismo no Brasil sempre foi um liberalismo
fora de lugar”. A República Velha, das oligarquias de Minas e São Paulo
revezando-se no Poder, durou até 1930. A crise da economia capitalista de
1929 abalou a economia cafeeira no Brasil e provocou a crise das estruturas
do poder político oligárquico. A insatisfação com a ordem oligárquica da
República Velha cresceu na década de 1920. O movimento tenentista, im-
buído do idealismo modernizador em pleno século XX, estava na vanguar-
da da luta pela Nova República. A massa do povo, “capado e recapado”,
como diria Capistrano de Abreu, mais uma vez, assistiu besticado as mo-
vimentação de luta das “camadas médias”, insatisfeitas e inquietas com as
velhas oligarquias locais. O Brasil era um país capitalista onde fazendeiros
urbanizados tinham se tornado burgueses industriais, que preservavam o
espírito da Casa Grande. Embora tivessem libertado os escravos em 1888,
o imaginário oligárquico da burguesia brasileira discriminava e temia o
povo brasileiro. Para eles, o Brasil não era uma Nação, mas uma imensa
Senzala onde não se admitiam direitos sociais. A democracia sem povo era
o ideal oligárquico do liberalismo “fora de lugar”.
Na República Velha (1889-1930), nunca tivemos democracia po-
lítica. Democracia nunca foi considerada um valor civilizatório pelas elites
burguesas e agrárias no Brasil. A democracia política reduzia-se ao ritual de
sucessão presidencial, sendo composta por instituições republicanas aliena-
das do povo brasileiro. A res publica no Brasil odiava o povo brasileiro. O
cinismo era o ethos sentimental das elites oligárquicas brasileiras. As insti-
tuições republicanas eram apenas “para inglês ver”. O sistema de poder oli-
gárquico mantinha o controle e a repressão violenta de movimentos sociais
de massa que ousassem colocar no palco da história, a vontade política do
povo brasileiro. Com a Revolução de 1930, alterou-se o modus operandi
da política brasileira, com a entrada em cena do Estado forte na pessoa de
Getúlio Vargas, oligarca esclarecido, que cumpriu aquilo que o governador

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Antonio Carlos proclamou: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”.
O novo agente social, o Estado-Leviatã, o projeto (sempre inacabado) de
Estado-Nação, conciliador e modernizador, fazia a mediação do controle
oligárquico, incluindo nele, o controle da burocracia político-estatal, re-
presentante do novo espírito da modernidade urbano-industrial no Brasil.
A modernidade brasileira começou com Getúlio Vargas na dé-
cada de 1930, chefe político da oligarquia gaúcha de visão nacionalista.
Vargas representou o zeitgeist do tempo histórico no Brasil. Diante da dé-
bil burguesia brasileira, amesquinhada em sua cultura oligárquica de cariz
escravista, Vargas vislumbrou a função histórica do Estado forte para in-
dustrializar o arremedo de Nação. Mas Vargas era um espírito conciliador.
Não pretendia romper com o sistema oligárquico. Na verdade, Getúlio
Vargas preservou a ordem oligárquica, dando-lhe um lugar na moderni-
dade possível do capitalista retardatário brasileiro. O Estado forte seria
o “representante” pelo alto, dos interesses em si, do proletariado urbano
industrial ascendente politicamente e das novas camadas médias que cres-
ceram com a urbanização. Era preciso tutelar o proletariado, para evitar
que ele se autoconstituísse como sujeito histórico de classe. A seu modo,
Getúlio Vargas operou a “revolução passiva” (Gramsci), atualizando a fra-
se de Tomaso de Lampedusa em um patamar civilizatório superior: “tudo
deve mudar para que tudo que como está”. Entretanto, Vargas foi além, pois
criou o Estado como um novo Leviatã, um novo agente social centraliza-
dor, capaz de impulsionar a modernização brasileira, fazendo o que a bur-
guesia mediocre e acanhada, descompromissada com o projeto de nação
moderna, era incapaz de fazer. Assim, o Estado Varguista, como agente da
modernização capitalista, operou como um substitutivo à classe burguesa,
sendo, ao mesmo tempo, mediador dos interesses das frações da burguesia
brasileira e latifundiários. Vargas fez a mediação da nova ordem oligár-
quica, demarcando um lugar para os direitos trabalhistas do proletariado
urbano (CLT), mas não no campo, loci do poder oligárquico agrário; e
investindo no desenvolvimento industrial da Nação. Getúlio Vargas evitou
enfrentar as oligarquias da terra, mas “conciliou pelo alto” para preservar o
projeto de Nação capitalista à la brasileira.
Entretanto, em 1950, o Projeto de Nação de Vargas, nasceu
trágico, pois não interessava mais às oligarquias industriais, nanceiras e
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

agrárias, aliadas do imperialismo norte-americano no plano geopolítico,
apoiá-lo. O projeto populista que idealizava um Estado forte, de vies na-
cionalista, com apoio popular, incomodava profundamente a burguesia li-
beral de cariz oligárquico. Esse projeto de inclusão social dos pobres “chei-
rava a povo”. Esta burguesia liberal, politicamente golpista por natureza,
representada pela UDN, exercia naquela época, tal como hoje, hegemonia
cultural sobre as “classes médias” tradicionais, e inclusive novas classes mé-
dias, com o discurso de combate à corrupção. Como dissemos acima, o
cinismo é o ethos sentimental do burguês brasileiro, citoyen aburguesado
que combate a corrupção, mas sustenta a ordem oligárquica secular, cor-
rompida pelo patrimonialismo dos donos do Poder e do Dinheiro.
Enm, a política no Brasil sempre teve a dimensão farsesca. O
Brasil é um país de tradição política golpista, lastro político originário do
mandonismo do poder local oligárquico. O golpismo, como o autoritaris-
mo, é um ingrediente visceral da cultura política e social brasileira. Faz
parte da pulsão histórica da política brasileira, em que oligarquias políti-
cas regionais se perpetuam no campo e na cidade, atualizando a estrutura
de classe e o poder político de extração colonial-escravista. O golpismo
é o modus operandi da política oligárquica que o republicanismo do PT
não conseguiu decifrar. Foi devorado pelo Estado neoliberal oligárquico-
-burguês. Há séculos, à sombra do poder oligárquico, viviam e vivem os
homens livres e as camadas médias, políticos, intelectuais e bacharéis, juí-
zes e jornalistas a serviço dos donos do Poder e do Dinheiro.
Portanto, a tradição golpista no Brasil pode ser considerada a
expressão performática do poder oligárquico que se mantém intacto no
Brasil desde a Colônia e o Impérío. Na verdade, a Revolução de 1930
não alterou a estrutura fundiária que sustentava as oligarquias regionais, e
nem suprimiu os donos do Poder oriundos do Império e República Velha.
No pós-guerra, o populismo incomodou a tradição histórica autocrático-
-oligárquica da política brasileira. Após a 2.ª Guerra Mundial, animada
pela Guerra Fria, a pulsão histórica do golpismo no Brasil foi ativada pelo
avanço do populismo, com a classe operária ascendente e o povo brasileiro
exigindo entrar na cena histórica rompendo com o mandonismo local.
Getúlio Vargas, apoiado pelos trabalhistas, e Goulart, pelos trabalhistas
e comunistas, inquietavam o sistema político oligárquico brasileiro, que

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
mantinha laços com os liberais conservadores do PSD e os liberais reacio-
nários da UDN. Era para ter ocorrido o Golpe Militar em 1954, mas ele
foi adiado devido o suicidio de Vargas. Ele ocorreu dez anos depois, com
a deposição de João Goulart em 1964. Consumou-se a pulsão golpista e o
sistema oligárquico representado no Estado autocrático-burguês militar-
-bonapartista vigorou por vinte anos (1964-1984).
A democratização da sociedade e do Estado brasileiro, aborta-
da em 1964, renasceu em 1988 com a promessa da Constituição-Cidadã.
Mas a redemocratização, concertada e transada com os militares e as oligar-
quias políticas, incorporou a dimensão farsesca do capitalismo retardatário
no Brasil, sendo a Constituição Federal de 1988 – essa que se quer abolir
com o golpe de 2016 – a promessa civilizatória que nasceu da conden-
sação material da luta de classes da década de 1980 e que, tragicamente
– como tudo neste país – nunca se cumpriu efetivamente. Enm, o si-
tema político do Estado brasileiro criou dispositivos de auto-preservação
do espírito oligárquico na República lastreada na materialidade social e
histórica da concentração fundiária e do poder acumulado da burguesia
nanceiro-industrial com seu sistema Midiático hegemônico, formador
de opinião pública e manipulação social. O bloco de poder oligárquico-
-burguês incrustado no Estado brasileiro impediu a efetiva democratziação
da sociedade brasileira. Na década de 1990, às vesperas do século XXI, as
oligarquias regionais continuavam fazendo o jogo da política institucional.
Por exemplo, Antonio Carlos Magalhães, no PFL, aliado do PSDB; e José
Sarney do PMDB, partido da centro-direita siológica e corrompida, eram
– e ainda são – peças imprescindíveis para a vigência do sistema político
oligárquico brasileiro. A redemocratização brasileira foi uma farsa – farsa
cínica e grotesca – que deixou intacto no âmago da pulsão histórica brasi-
leira, o golpismo das oligarquias políticas, elite política e social, proprietá-
rias de terras, indústrias e bancos. A nova lógica do capitalismo neoliberal
apenas atualiza, de modo grotesco, a tragédia histórica brasileira. Portanto,
o Estado neoliberal, constituído a partir de 1990, com Collor e FHC, foi
uma mera atualização histórica do Estado oligárquico-político que carac-
terizou a República Federativa do Brasil. Os governos neodesenvolvimen-
tistas não ousaram suprimí-lo, reformá-lo, mas apenas modernizá-lo. O
PT conviveu, cultivou e iludiu-se com o Franskenstein da Casa-Grande. A
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

pulsão golpista das elites políticas burguesas no Brasil foi preservada como
o Fantasma da Ópera da Triste República dos Trópicos.
2 AS LEIS HISTÓRICAS DA MISÉRIA BRASILEIRA
Diante da longa narrativa histórica do Brasil, podemos a título de
conclusão, e a partir do caráter heurístico dado pela crise política e social do
governo Dilma, impedida inconstitucionalmente, vítima do golpe político-
-jurídico de 2016, podemos expor de modo sintético o que consideramos
como sendo as três leis históricas da pulsão reacionária que comanda o me-
tabolismo político e social da história brasiliera. A reposição em 2016, com
vigor inaudito do espírito golpista da burguesia brasileira (industrial, nancei-
ra e agrária), aliada à “classe média” liberal, conservadora e rentista, incrus-
tada no aparelho de Estado, obrigou-nos a reetir de modo crítico, sobre
a miséria política brasileira. O projeto neodesenvolvimentista de inclusão
social, desde que o ex-operário sindicalista Luís Inácio Lula da Silva chegou
ao Palácio do Planalto, incomodou a lógica oligárquica brasileira, que quis
preservar a ordem social, cultural e política da Casa Grande. Apesar dos ape-
los do lulismo, os ricos nunca aceitaram Lula e suas criações políticas que
cheiravam a povo”. O lulismo libertou de modo inadvertdo forças sociais
que a burguesia brasileira e sua “classe média”, cativa da miséria oligárquica,
nunca aceitaram. No Brasil, o espectro do passado colonial-escravista, oli-
gárquico-político, comanda os vivos, repondo, em nome do ethos senhorial,
arrogante, cínico e golpista, a miséria política brasileira, que se traduziu nas
leis históricas da pulsão reacionária que dilacera a Triste República brasileira:
1. Como capitalismo retardatário de extração colonial-escravista, capita-
lismo de via prussiana e formação social oligárquica, o Brasil está con-
denado a repor historicamente o arcaico tal como o espírito dos mortos
comandando os vivos.
2. O arcaico da pulsão golpista e do ethos senhorial no Brasil, ethos arro-
gante e cínico das elites burguesas da Casa Grande, articula-se sempre
com o moderno da civilização do capital, principalmente hoje em sua
etapa de capitalismo global.
3. O pêndulo histórico no Brasil opera um movimento sinistro entre a
tragédia e a farsa. Como disse o velho Marx no “18 Brumário de Luis

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
Bonaparte”, “a história se repete, primeiro, como tragédia e depois, como
farsa”. Entretanto, nas condições do apodrecimento das promessas civili-
zatórias da ordem burguesa hipertardia no Brasil, a farsa da história bra-
sileira adquiriu em pleno século XXI, a dimensão do grotesco. Como País
do Futuro da civilização sem futuro do capital, o Brasil é um território
privilegiado do capitalismo global no século XXI, pois nele encontramos
a síntese plena da tragédia civilizatória como farsa grotesca.
Estas leis históricas nos aprisionam, constituindo a miséria bra-
sileira. A tarefa política para romper com nosso destino histórico é a luta
plena e intensa pela democratização radical do Estado brasileiro. Esta deve
ser a tarefa política da esquerda brasileira. Entretanto, a esquerda brasileira
herdou a miséria oligárquica da Triste República dos Trópicos: por um
lado, a esquerda liberal-social do PT, nunca se habilitou efetivamente para
romper com o Estado neoliberal; pelo contrário, procurou se acomodar
no interior dele, visando um “lugar ao sol” na ordem oligárquica. Por ou-
tro lado, uma certa esquerda socialista, teleologicamente revolucionária,
incapaz de entender o território nacional-popular, desprezou o valor da
democratização radical como tarefa política para o caminho para o socialis-
mo, mantendo-se higienicamente distante do Estado brasileiro e das dis-
putas institucionais, desconhecendo seu complexo territorial pantanoso e
sinuoso, sem problematizá-lo como “montanha que se deve conquistar
(Mészáros). Esta esquerda socialista, com uma visão restrita de Estado,
restringiu-se às lutas sociais e populares, miticando-as; e tornando-se, ao
mesmo tempo, incapaz de hegemonia social e cultural, desprezou a luta
política no sentido da democratização do aparelho do Estado. Nesse caso,
a miséria política signicou a disputa pela Presidência da República ou o
parlamento. Faltou a virtu da hegemonia cultural deixada à mercê da mídia
oligárquica que imbeciliza o povo brasileiro. Enm, concluindo, podemos
dizer que o Brasil é um país de capitalismo hipertardio que nunca possuiu
uma burguesia comprometida com projeto de Nação. Talvez alguns bur-
gueses esclarecidos, mas nunca uma burguesia como classe ou fração de
classe efetivamente comprometida com a democratização radical. A de-
mocratização radical deve ser tarefa de um governo popular-democrático
que consiga acumular forças sociais para o enfrentamento social, político e
cultural no interior do Estado como condensação material da correlação de
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

forças sociais e de classes. Temos hoje um longo percurso histórico que não
permite mais nos iludirmos com a Casa Grande, sob pena de repetirmos o
passado. O único interessado no projeto de Nação é o povo brasileiro, alvo
de intensa manipulação social que visa bloqueá-lo como sujeito histórico
em si e para si. O problema do Brasil não é o décit democrático, mas sim
a equação sinistra do atraso político que nos condena às leis históricas da
pulsão golpista da miséria brasileira.

SOBRE OS AUTORES
ADRIÁN SOTELO VALENCIA
Sociólogo, pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos, da Faculdade
de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México
(Cela/Unam).
ADILSON MARQUES GENNARI
Possui Bacharelado e Mestrado em Economia pela PUC-SP, área de Estado e Políticas
Públicas (1990) e doutorado em Ciências Sociais pelo IFCH - UNICAMP, área de
Desenvolvimento e Pensamento Social (1997). Realizou visiting research fellow junto
a Universidade de Sussex - UK (2005). Em 2010 desenvolveu projeto de pós-douto-
rado junto à Universidade de Coimbra - UC. Atualmente é professor e pesquisador
da Unesp - Universidade Estadual Paulista - Campus de Araraquara. É autor de &
quot; Réquiem ao Capitalismo Nacional & quot; (São Paulo: Cultura Acadêmica/
FCL/Unesp, 1999), & quot; História do Pensamento Econômico&quot; (Editora
Saraiva, 2009) em coautoria com Roberson de Oliveira e &quot; Políticas públicas
e desigualdades sociais: debates e práticas no Brasil e em Portugal&quot; (2012) em
coautoria com Cristina Albuquerque (Universidade de Coimbra). A partir de uma
perspectiva multidisciplinar, coordena o projeto de pesquisa & quot; Investigação
acerca dos fatores potencialmente causadores da variação da pobreza na América
Latina &quot; no âmbito do Grupo de Pesquisa em História Econômica e Social
Contemporânea - GPHEC - FCL - Unesp.
AGNALDO DOS SANTOS
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento
de Ciências Políticas e Econômicas, do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais e pesquisador do Grupo de Pesquisa e Estudos da Globalização (GPEG)
da Faculdade de Filosoa e Ciências de Marília, Universidade Estadual Paulista.
Autor dos livros Juventude metalúrgica e sindicato: ABC Paulista, 1999-2001
(Agbook - Edição do Autor, 2010) e Entre o cercamento e a dádiva: inovação,
cooperação e abordagem aberta em biotecnologia (Blucher Acadêmico, 2011).
E-mail: agnaldo@marilia.unesp.br
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

ANDRÉ SCANTIMBURGO
Doutorando e Mestre em Ciências Sociais na linha de Relações Internacionais
e Desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Estadual Paulista - Unesp, campus de Marília/SP.
FRANCISCO LUIZ CORSI
Possui graduação em Ciências Sociais e Economia pela Universidade de São Paulo.
É mestre em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas e doutor
em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Fez pós-doutorado no
Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é Professor
Assistente Doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem ex-
periência na área de Economia, com ênfase em História Econômica. Atuando princi-
palmente nos seguintes temas: Estado Novo, Política Externa, Nacionalismo, Projeto
Nacional, Economia Brasileira. E-mail: corsi@marilia.unesp.br
GIOVANNI ALVES
Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, livre-docente em Sociologia e pro-
fessor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq, com bolsa-pro-
dutividade em pesquisa, e coordenador-geral da Rede de Estudos do Trabalho
(RET), do Projeto Tela Crítica (www.projetocinetrabalho.org) e do projeto
CineTrabalho (www.projetocinetrabalho.org). É um dos líderes do Grupo de
Pesquisa CNPq “Estudos da Globalização”. É autor de vários livros e artigos so-
bre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do
trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial,
2000), Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo
manipulatório (Boitempo Editorial, 2011), Dimensões da precarização do trabalho
(Editora Praxis, 2013) e Trabalho e neodesenvolvimentismo (Editora Praxis, 2014).
E-mail: giovanni.alves@uol.com.br
HENRIQUE TAHAN NOVAES
Possui graduação em Ciências Econômicas pela Unesp - Araraquara (2001) e
mestrado (2005) e doutorado (2010) em Política Cientíca e Tecnológica pela
Unicamp. No mestrado estudou o Processo de Adequação Sóciotécnica nas Fábricas
Recuperadas brasileiras e argentinas, com nanciamento da Fapesp. Sua dissertação
resultou no Livro - O fetiche da tecnologia - a experiência das fábricas recuperadas -
(Expressão Popular/Fapesp, 2007. E 2010, 2a Edição). No doutorado, também com
bolsa FAPESP, estudou - a relação universidade-movimentos sociais na América
Latina: habitação popular, agroecologia e fábricas recuperadas. Tem experiência em
Mundo do Trabalho Associado, Escolas de Movimentos Sociais e relação universi-
dade-movimentos sociais. Foi coordenador (2008-2010) e sempre foi professor do
Curso de Especialização - Economia Solidária e Tecnologia Social na América Latina

Os dilemas atuais do Brasil e da América Latina
(Unicamp) , Professor do Curso de Extensão -Estado e Políticas Públicas (Unicamp).
Coordenador do Curso e Aperfeiçoamento &quot;Movimentos Sociais e Crises
Contemporâneas à luz dos clássicos do Materialismo Crítico&quot; (3a Edição).
Membro dos grupos de Pesquisa Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos
(IBEC-São Paulo), Grupo de Análise de Política de Inovação (GAPI-Unicamp) e
Organizações e Democracia (Unesp-Marília). É Docente da Faculdade de Filosoa
e Ciências da Unesp Marília, desde fev. de 2011 e professor do Programa de Pós
Graduação em Educação desde fevereiro de 2013.
JAIR PINHEIRO
Doutor em Ciências Sociais: Política, pela PUC-SP, professor assistente doutor do
Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da FFC/Unesp/Marília. Autor
de diversos artigos sobre movimentos populares urbanos e sobre direito e marxismo,
é pesquisador dos grupos de pesquisa NEILS – Núcleo de Estudos de Ideologias e
Lutas Sociais e do CPMT – Cultura e Política do Mundo do Trabalho.
JO HENRIQUE PIRES
Mestre em Educação na Unesp Marília. Foi coordenador da Escola “José Gomes
da Silva”, MST – PR. bobpires2@yahoo.com.br
JOSÉ MARANGONI CAMARGO
Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de
Campinas (1981), mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo
(1988) e doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de
Campinas (2007). Atualmente é Professor Doutor Assistente da Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e Membro de corpo editorial da Aurora
(Unesp - Marília) e do grupo de pesquisa Estudos da globalização. Tem experiên-
cia na área de Economia. Atuando principalmente nos seguintes temas: Emprego,
Agricultura Paulista, Modernização, Agroindústria e Comércio Internacional de
Produtos Agroindustriais. E-mail: jmaraga@uol.com.br
LUÍS ANTONIO PAULINO
Professor da Universidade Estadual Paulista - Unesp, na Faculdade de Filosoa
e Ciências -FFC/Marília, nos cursos de graduação em Relações Internacionais
e e pós-gradução em Ciências Sociais. Possui graduação em Engenharia pela
Faculdade de Engenharia Industrial - FEI (1977), mestrado em Economia e
Finanças Públicas pela Fundação Getúlio Vargas - FGV (1992) e doutorado em
Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (1998). É diretor
do Instituto Confúcio na Unesp e membro do Conselho da Matriz do Instituto
Confúcio, em Pequim, e do Conselho Assessor do Centro Regional dos Institutos
Confúcio para a América Latina, em Santiago do Chile. É &quot;short term
Ci, F.L.; Caag, J.M.; Sa, A. (Org.)

consultant&quot; do Banco Mundial, na área de desenvolvimento regional, con-
sultor cultural do governo da cidade de Jining, na China, e supervisor convidado
da Universidade de Hubei, Wuhan, China. Foi assessor especial do Ministério
da Fazenda(2003), secretário-adjunto da Secretaria de Coordenação Política e
Assuntos Institucionais da Presidência da Repúlbica (2004-2005) e Chefe das
Assessorias do Ministério do Esporte (2012-2014). Trabalhou na Fundação
Estadual de Análise de Dados - Seade como analísta senior na área de economia e
desenvolvimento regional (1994-2006).
RODRIGO DUARTE FERNANDES DOS PASSOS
Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Docente do
Departamento de Ciências Políticas e Econômicas e do Programa de Pós-
Graduação de Ciências Sociais da FFC-Unesp de Marília. Professor Colaborador
do Programa de Pós-Graduação da Unicamp. É co-líder do Grupo de Pesquisa
“Marxismo e Pensamento Político”, cadastrado no CNPq. E-mail: rodrigopas-
sos@uol.com.br
SILVIA APARECIDA DE SOUSA FERNANDES
Possui graduação geograa pela Universidade Estadual Paulista, mestrado
em geograa pela Universidade e doutorado em Sociologia pela Universidade
Estadual Paulista. Atualmente é professora do Departamento de Ciências
Políticas e Econômicas, na Unesp. É docente do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Territorial da América Latina e Caribe – Territorial, Cátedra
da Unesco de Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial. Integra os
grupos de pesquisa Estudos da globalização; Ensino de Ciência do Sistema Terra
e formação de professores; ELO - grupo de Estudos da Localidade, Centro de
Estudos e Pesquisas Agrárias e Ambientais. Tem experiência nas áreas de geogra-
a e Educação. É membro do corpo editorial do periódico Plures Humanidades
(CUML Ribeirão Preto) e membro do conselho consultivo dos seguintes peri-
ódicos: Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos - RIDH (Unesp Bauru/São
Paulo), Revista Contemporânea de Educação (FE/UFRJ), Revista Espaço Acadêmico
(UEM) e outros periódicos cientícos. E-mail: silvia-sousa@uol.com.br

SOBRE O LIVRO
Formato 16X23cm
Tipologia Adobe Garamond Pro
Papel Polén soft 85g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Acabamento Grampeado e colado
Tiragem 300
Catalogação Telma Jaqueline Dias Silveira - CRB- 8/7867
Revisão/
Normalização: Karenina Machado
Assessoria Técnica Maria Rosangela de Oliveira - CRB-8/4073
Capa Edevaldo D. Santos
Diagramação Edevaldo D. Santos
Produção gráca: Giancarlo Malheiro Silva
2016
Impressão e acabamento
Gráca Campus
Unesp -Marília - SP