Cultura e Direitos Humanos
nas Relações Internacionais
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Vol. 1: Reexões sobre cultura
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
Marília
2016
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
Copyright© 2016 Conselho Editorial
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Ficha catalográfi ca
Serviço de Biblioteca e Documentação – Unesp - campus de Marília
Editora afi liada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora Unesp
C968 Cultura e direitos humanos nas relações internacionais / Rafael Salatini
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ra Acadêmica, 2016.
226p
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DOI https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-801-9
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cultura.
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SUMÁRIO
Apresentação
Rafael Salatini .................................................................................. 7
1.
Debate contemporâneo sobre o cosmopolitismo
Rafael Salatini .................................................................................. 11
2.
Regionalismo na América Latina no século XXI
Karina L. Pasquariello Mariano; Clarissa Correa Neto Ribeiro ............ 23
3.
Transbordamento do conito colombiano na área de fronteira
colombo-equatoriana: cultivos ilícitos, narcotráco, Plano Colômbia
Mónica Montana Martínez ............................................................... 41
4.
Gramsci e a hegemonia cultural no plano internacional
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos................................................... 65
5.
Gramsci e Cox: aproximações e dessemelhanças
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos................................................... 77
6.
Pensando criticamente a economia política global: apontamentos para
o estudo das potências médias emergentes
Leonardo Ramos ................................................................................ 89
7.
Contribuições da EPSM para estudos nas relações internacionais
Rosângela de Lima Vieira ................................................................... 107
8.
Minha casa é sua casa: a necessária hospitalidade grega na regulação
das relações internacionais
Cristina de Souza Agostini ................................................................. 119
9.
Terrorismo internacional no século XXI: percepção e denição
Fábio Metzger ................................................................................... 133
10.
Onde os fracos não têm vez: o Brasil e a América do Sul frente
ao terrorismo
Roberto Goulart Menezes .................................................................. 151
11.
A iranização do Islã e seus desdobramentos políticos e sociais
Renatho Costa ................................................................................... 169
12.
Diálogo em perigo: uma reexão sobre o sentido dos ambientes
comunicativos
Heloisa Pait ....................................................................................... 193
13.
Notas sobre antropologia: hermenêutica e pós-modernidade
Laércio Fidelis Dias ........................................................................... 209
Sobre os autores................................................................................ 223
APRESENTAÇÃO
Rafael Salatini
A Unesp oferece dois cursos de bacharelado em Relações
Internacionais, um na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (campus
de Franca) e outro na Faculdade de Filosoa e Ciências (campus de Marília),
que, em conjunto, são responsáveis pela tradição de organizar o evento aca-
dêmico-cientíco “Semana das Relações Internacionais da Unesp”, nos anos
pares sob a responsabilidade em Franca, e nos anos ímpares em Marília,
tendo sido as três últimas edições realizadas com as seguintes rubricas: “X
Semana de Relações Internacionais da Unesp: A Construção das Relações
Internacionais no Brasil do Século XXI” (2012, FCHS); “XI Semana de
Relações Internacionais da Unesp: Relações Internacionais Contemporâneas:
Novos Protagonistas e Novas Conjunturas” (2013, FFC); e “XII Semana de
Relações Internacionais da Unesp: Visões do sul: Crise e Transformações do
Sistema Internacional” (2014, FCHS). Em 2015, esteve sob a responsabi-
lidade do campus de Marília organizar a 13ª edição do evento, que rece-
beu a seguinte rubrica: “XIII Semana de Relações Internacionais da Unesp:
Cultura e direitos humanos nas relações internacionais”.
Segundo alguns dos grandes estudiosos das Relações
Internacionais, essa área de estudos é pautada inexoravelmente pela diver-
sidade teórica, o que depende de uma grande quantidade de fatores, que
incluem a grande interação entre o nacional e o internacional, as diversas
dimensões das relações internacionais, os diversos desenvolvimentos por
que passam as relações internacionais, os diversos elementos constitutivos
das relações internacionais e a relação da disciplina Relações Internacionais
com outras disciplinas, para listarmos apenas alguns aspectos fortemente
identificados pelos estudiosos da matéria. Costumeiramente dividida em
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-801-9.p7-10
Raal Salatini (Org.)
três “debates”, o “primeiro debate” tendo ocorrido entre os anos 1920-
1950, predominando as discussões jurídicas e políticas sobre as relações
internacionais, oferecidas pelos chamados teóricos idealistas e realistas, e o
segundo debate” tendo ocorrido entre os anos 1950-1960, predominando
as discussões políticas e econômicas, oferecidas pelos teóricos de correntes
como o neo-realismo, o behaviorismo, a teoria da interdependência, a teo-
ria dos jogos e a teoria da dependência econômica. Consideram-se os anos
1970 como referenciais para a superação da predominância das discussões
exclusivamente jurídico-político-econômicas pela oferta mais ampla de
discussões sobre as relações internacionais, em que temas como a cultura e
os direitos humanos passam a um plano de maior relevância, ladeando-se
com os tradicionais temas do poder, do direito e da economia.
O chamado “terceiro debate” – que nasce especialmente da crí-
tica epistemológica da predominância do positivismo nos “debates” ante-
riores – é composto por uma grande gama de correntes com forte matiz
culturalista (embora não exclusivamente) e especialmente dedicado aos
estudos dos grupos menos privilegiados das relações internacionais (em-
bora também não exclusivamente) frente ao tradicional estudo das grandes
potências internacionais e suas áreas de inuência política e econômica.
Nesse “debate” se incluem correntes explicativas como o feminismo, a te-
oria crítica, o construtivismo, a teoria da justiça, o pós-modernismo, a
tese do m da história, a tese do choque de civilizações, o multicultura-
lismo, etc., que trazem todas para o primeiro plano, cada corrente à sua
maneira e com sua própria linguagem conceitual, a cultura e os direitos
humanos. A título de exemplo, podemos mencionar a corrente multi-
culturalista e sua particular compreensão dos fenômenos internacionais
ligados à globalização e o crescente uxo transnacional de elementos
como as imigrações, tratados em contextos multilaterais, conitos étni-
cos e religiosos, desequilíbrios econômicos, questões ambientais, questões
sanitárias e de saúde pública, terrorismo, integração regional etc., incor-
porando fortemente temas associados à cultura e identidade como ques-
tões importantes no estudo das relações internacionais. O que enseja um
movimento generalizado de incremento das identidades particulares, no
bojo do qual diversas minorias, populações autóctones, grupos de migran-
tes e imigrantes, etc. manifestam seu desejo de reconhecimento cultural.
Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Nesse aspecto, a relação entre cultura e direitos humanos nas relações in-
ternacionais possui um caráter academicamente importante.
Desde a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948), renovando e rearmando os princípios da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789), os direitos humanos ganharam dimensão cla-
ramente internacional tornando-se um dos principais temas da ONU e da
concepção humanitária de relações internacionais. Nesse sentido, o tema dos
direitos humanos seria defendido em diversos instrumentos jurídicos inter-
nacionais, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), a
Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1986), a Convenção Europeia
de Direitos Humanos (1998), o Protocolo Adicional à Convenção Americana
de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1999), entre outros documentos mais especícos, como a Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção
contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes
(1984), etc. São inúmeros os documentos que atestam a importância interna-
cional crescente dos direitos humanos, tanto genérica quanto especicamente,
desenvolvendo uma ideia que já estava presente em alguns autores do século
XVI, como Bartolomeu de Las Casas, que armara: “As leis e as regras naturais
e os direitos dos homens são comuns a todas as nações, cristãs ou gentílicas, de
qualquer seita, lei, estado, cor e condição, sem qualquer diferença”.
Organizada em dois volumes, a produção acadêmica da “XIII
Semana de Relações Internacionais da Unesp: Cultura e direitos huma-
nos nas relações internacionais” inclui um volume dedicado ao tema da
cultura (o presente volume), intitulado Cultura e direitos humanos nas re-
lações internacionais, vol. I – Reexões sobre cultura, e um volume dedica-
do ao tema dos direitos humanos, intitulado Cultura e direitos humanos
nas relações internacionais, vol. II – Reexões sobre direitos humanos. Este
livro reúne textos que foram apresentados no evento, como os textos de
Karina L. Pasquariello Mariano (Unesp-Araraquara/San Tiago Dantas) e
Clarissa Correa Neto Ribeiro, de Mónica Montana Martínez (UFSM),
de Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos (Unesp-Marília/Unicamp), de
Leonardo Ramos (PUC-MG), de Fábio Metzger (Uniesp), de Roberto
Goulart Menezes (UnB), de Renatho Costa (Unipampa), e outros textos
de colaborados do evento, como Rafael Salatini (Unesp-Marília), Rodrigo
Raal Salatini (Org.)

Duarte Fernandes dos Passos (Unesp-Marília/Unicamp), Rosângela de
Lima Vieira (Unesp-Marília), Cristina de Souza Agostini (USJT), Heloisa
Pait (Unesp-Marília) e Laércio Fidelis Dias (Unesp-Marília).
A Comissão Cientíca do evento contou com Rafael Salatini
(Unesp-Marília), Marcelo Fernandes de Oliveira (Unesp-Marília), Laercio
Fidelis Dias (Unesp-Marília), Fábio Metzger (Uniesp) e Roberto Goulart
Menezes (UnB). E o evento como um todo contou com o apoio organi-
zacional e material do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas
(Unesp-Marília), do Departamento de Sociologia e Antropologia (Unesp-
Marília), do Conselho de Curso de Relações Internacionais (Unesp-Marília),
do Centro Acadêmico de Relações Internacionais (Unesp-Marília), do
Escritório de Pesquisa (Unesp-Marília), do STAEPE (Unesp-Marília), da
PROEx (Unesp), da AREx (Unesp), da Reitoria (Unesp) e da Marilan, e
do apoio nanceiro das agências de fomento CAPES, CNPq e Fapesp.
Agradecemos ainda pelo apoio de ampla Comissão de Apoio
Discente composta por discentes do curso de Bacharelado em Relações
Internacionais da Unesp-Marília: Alexandre Freitas da Silva, Amanda
Guimarães Germano Souza, Ana Luiza Garcia Lachner, Ana Paula Ramos
Alvarez Benetti, Anik Bonamini Chiarato, Bruna Nascimento Teixeira,
Carlos Henrique Dias Ribeiro, Carolina Giannella, Fernanda Machado
Romanello, Gabriel Ramires, Gabriela Ibara Tenório, Gabriela Zamignani
Carpi, Gabriella Dantas da Silva, Isabella Câmara Rocha Pereira, João
Victor Scomparim Soares, José Cesar Fagnani Júnior, José Fernando
Toledo Paniago, Juliana de Moura Fraquetto, Laís Carla Barbosa, Lara
Aguiar Fernandes, Laura Christiane Torres, Leonardo Afonso Roberto,
Letícia Martins de Osti, Lorena Gonzaga Lucchini Coutinho, Luana
Braga Mendonça, Lucas Miguel Gomes, Lucas Rafael Geraldini, Luisa
Sarto de Oliveira, Matheus de Freitas Cecílio, Nathalia Gasparini Andrade
Vieira, Nayara de Oliveira Wiira, Pamela Fernandes Alves, Poliana Garcia
Ribeiro, Priscila Milena Pereira Assis, Rafael Zuliani Iamonti, Raquel
Torrecilha Spiri, Renato Matheus Mendes Fakhoury, Rômulo da Silva
Santos, Silvia Araújo Giovanini, Victor Emanuel Pereira Machado, Victor
Yukio Katsumoto Fumoto, Wagner Arnoldo de Proença Antunes, e Yasmin
Vírginia Rustichelli da Silva.

1.
DEBATE CONTEMPORÂNEO
SOBRE O COSMOPOLITISMO
1
Rafael Salatini
Embora o cosmopolitismo não seja uma ideia exclusivamen-
te moderna, remontando ao pensamento estoicista antigo – presente em
Fílon de Alexandria, por exemplo, que escrevera: “O homem que se con-
forma com a lei é cidadão do mundo e dirige as suas ações segundo o
querer da natureza conforme o qual todo o mundo se governa” (De Mundi
Opicio, 3) –, o ideal do cosmopolitismo moderno nasce no nal do século
XVIII, especialmente no pensamento tardio de Immanuel Kant, desenvol-
vido em seus escritos produzidos entre os anos 1780 e 1790 (período em
que o lósofo ministrara seus cursos de direito natural na Universidade de
Königsberg), não se encontrando em nenhum outro pensador jusnaturalis-
ta, de Hobbes a Rousseau. Consiste, no pensamento kantiano, na ideia de
uma cidadania mundial, à qual qualquer indivíduo teria direito enquanto
partícipe de uma sociedade mundial (ou cosmopolita), que administraria,
para além das relações entre Estado e indivíduos e entre Estados e Estados,
as relações entre os Estados e os indivíduos estrangeiros. Kant descreve
pela primeira vez o ideal cosmopolita no artigo “Ideia de uma história
1
Este texto se baseia nos seguintes cursos que ministrei nos últimos anos: 1) minicurso “Cosmopolitismo na teoria
e na prática”, junto ao curso de Relações Internacionais da FADIR-UFGD, nos dias 25 e 26/10/2010; 2) aulas que
ministrei no curso de extensão “A losoa social e a losoa da linguagem de Jürgen Habermas”, junto ao curso
de Filosoa da FFC/Unesp-Marília, nos dias 21/10/2011 e 04/11/2011; e 3) curso de extensão “Cosmopolitismo
e racismo no pensamento de Paul Gilroy – Uma leitura de Entre campos (2004)”, junto ao curso de Relações
Internacionais da FFC/Unesp-Marília, entre os dias 27/09/2011 e 27/10/2011, na cidade de Marília-SP. O texto
foi apresentado no “GT 24 – Mundo em Transição: Novos Vértices de Poder, Instituições e Cooperação”, no “38º
Encontro Anual da ANPOCS”, realizado entre os dias 27 a 31/10/2014, na cidade de Caxambu-MG.
h
ttps://doi.org/10.36311/2020.978-85-7983-801-9.p11-21
Raal Salatini (Org.)

universal de um ponto de vista cosmopolita” (1784), no qual expõe as
nove proposições que embasam sua losoa da história (e com o qual tem
início, diga-se, toda a losoa da história no idealismo alemão). Na oitava
proposição do artigo, onde se apresenta o conteúdo da sociedade cosmo-
polita, fazendo-se referência a “um futuro grande corpo político, de que
o mundo precedente não pode ostentar exemplo algum”, podem-se ler as
seguintes palavras:
Embora este corpo político se encontre agora apenas ainda num proje-
to grosseiro, começa, no entanto, por assim dizer a suscitar já um sen-
timento em todos os membros, interessados na manutenção do todo;
isso alenta a esperança de que, após muitas revoluções transformadoras,
virá por m a realizar-se o que a Natureza apresenta como propósito
supremo: um estado de cidadania mundial como o seio em que se de-
senvolverão todas as disposições originárias do gênero humano.
Mais de dois século depois, mais especialmente nas últimas dé-
cadas, podemos dizer que o ideal do cosmopolitismo tornou-se objeto de
debate e teorização renovados entre diversos e distintos pensadores con-
temporâneos, especialmente aqueles de matriz kantiana (mas não exclusi-
vamente), que vão de Jürgen Habermas (rero-me ao chamado “segundo
Habermas”) a Seyla Benhabib, passando por um grande número de teó-
ricos de várias disciplinas, da sociologia ao direito, da losoa à ciência
política, como Jacques Derrida, David Held, Danilo Zolo, Ulrich Beck,
Giacomo Marramao, Kwame A. Appiah, etc. No seu conjunto, o debate
contemporâneo sobre o cosmopolitismo representa não apenas uma reno-
vação na teoria especíca do cosmopolitismo, mas também uma renovação
na teoria geral das questões internacionais, pertencente aos seus debates
mais atuais, oferecendo uma perspectiva a mais a partir da qual o fenôme-
no internacional, não necessariamente entendido como composto estrita-
mente pelas relações entre os Estados, pode ser intelectualmente observado
e cienticamente analisado.
No âmbito do debate sobre o cosmopolitismo contemporâneo,
diversas são as concepções apresentadas, nem sempre reproduzindo com
muita delidade o pensamento kantiano. Podemos dividir, sinteticamente,
essas concepções contemporâneas em pelo menos três grupos gerais: (a)
aquelas que descrevem uma teoria da cidadania internacional (ou dos di-

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
reitos individuais internacionais), mais el ao pensamento kantiano, entre
as quais se incluem as teorias de Habermas, Benhabib, etc.; (b) aquelas que
descrevem uma teoria da democracia internacional (mais próxima do que
Kant denominava de federalismo internacional), entre as quais se incluem
as teorias de Held, Zolo, etc.; e (c) aquelas que descrevem uma teoria rela-
tivista da cultura global, bastante distante do pensamento kantiano, entre
as quais se incluem as teorias de Beck, Appiah, Marramao, Derrida, etc.
Como exemplo das primeiras teorias (sobre a cidadania mundial),
podemos citar o lósofo alemão Jürgen Habermas, em sua segunda fase inte-
lectual, que se encontra entre aqueles discípulos de Kant que mais vivamente
buscaram retomar os ideais internacionais kantianos, desde o ideal da paz
perpétua – presente em seu ensaio “A ideia kantiana da paz perpétua” (1995)
até o ideal do cosmopolitismo – presente em vários textos publicados entre
as décadas de 1990 e 2000, coligidos em volumes como Direito e democracia
(1992, 1994), A inclusão do outro (1996), Era das transições (2001), O mundo
dividido (2006), Sobre a constituição da Europa (2011), etc., cuja temática
central é a União Europeia e seu signicado político.
O texto zero (um texto hoje clássico dentro da bibliograa que
discute o tema da cidadania) com que Habermas inicia seu discurso sobre
o cosmopolitismo é “Cidadania e identidade nacional” (1990), onde se
pode ler: “Somente uma cidadania democrática, que não se fecha num
sentido particularista, pode preparar o caminho para um status de cidadão
do mundo, que já começa a assumir contornos em comunicações políticas
de nível mundial”; continuando a seguir: “O estado de cidadão do mundo
deixou de ser uma simples quimera, mesmo que ainda estejamos muito
longe de atingi-lo. A cidadania em nível nacional e a cidadania em nível
mundial formam um continuum cujos contornos já podem ser vislumbra-
dos no horizonte”.
Habermas utiliza o princípio do cosmopolitismo, em grande par-
te, para contrapor sua concepção de União Europeia, cosmopolita, baseada
na integração dos povos europeus (e inspirada em Kant), a duas outras
concepções então em voga: a concepção neoliberal, baseada na integração
unicamente dos mercados europeus, e o euroceticismo, de fundamento
nacionalista (e inspirado em Schmitt).
Raal Salatini (Org.)

Outro exemplo dessa concepção de cosmopolitismo – exterior
ao debate intrínseco da União Europeia – se encontra na obra de Seyla
Benhabib, que escreve (num texto de 2011): “A difusão de normas cosmo-
politas que visam a proteger o ser humano enquanto tal, independente-
mente da sua liação nacional, mas antes como cidadão de uma sociedade
civil global, e a soberania popular mutuamente reforçam uma à outra ou-
tra”. Benhabib se preocupa especialmente com a situação geral da cidada-
nia dos estrangeiros, cada vez mais marcante no mundo contemporâneo, o
que inclui o tema dos refugiados, dos exilados, dos imigrantes, dos turistas,
etc., que se deslocam de um país a outro muitas vezes de forma absolu-
tamente involuntária (um tema que cou muito marcado pela discussão
arendtiana dos apátridas na Segunda Guerra Mundial).
Como exemplo das segundas teorias (sobre a democracia mun-
dial), podemos recorrer à teoria do cientista político David Held. Numa
conferência apresentada em 1990, abordando o tema da democratização
no âmbito do sistema internacional, baseada no velho princípio rousseau-
niano-kantiano da autonomia, Held apresenta o que denomina de “mode-
lo federal de autonomia democrática” (chamando a mesma ideia alhures
de “projeto cosmopolita”), em doze pontos, armando que “a autonomia
democrática [no âmbito internacional] requer, em princípio, uma moldura
em expansão, ou uma federação de Estados e agências democráticas, que
abranja as ramicações das decisões e torne essas decisões responsáveis”, e
especicando que se trata de uma dupla democratização: “o que está em
questão, em suma, é a democratização tanto do sistema de Estados quanto
dos quadros interligados da ordem civil internacional”. Justamente no últi-
mo ponto, Held conclui: “Semelhante teoria não requer a premissa de uma
ordem internacional cosmopolita harmoniosa, mas deve presumir que os
processos e práticas democráticas têm de articular-se à arena complexa da
política nacional e internacional”.
Outro exemplo dessas teorias foi desenvolvido por Danilo Zolo,
em Cosmopolis (1995, 1997 [versão em inglês, reelaborada e ampliada]),
onde se pode ler:
Em todas as ocasiões, no entanto, a tarefa de manutenção da paz, ape-
sar dos reiterados fracassos históricos, recaiu sobre um pequeno núcleo
de superpotências, enquanto a grande maioria dos outros países tem

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
consentido de um modo passivo com as ações empreendidas por elas.
Tem-se posto em prática, em suma, o que proponho denominar ‘o
modelo cosmopolita da Santa Aliança’; ou seja, a formação de uma
entidade política com aspirações a ser universal, pacíca, hierárqui-
ca, monocêntrica e, pela força das circunstâncias, eurocêntrica ou em
qualquer caso centrada no Ocidente
2
.
Partindo dessa concepção, Zolo distingue duas formas opostas de
cosmopolitismo (por conta das propostas de reforma da ONU): (a) o que
chama de cosmopolitismo autocrático, que “propõe reforçar a autoridade e o
poder coercitivo das Nações Unidas”; e (b) o que chama de cosmopolitismo
democrático, que “propõe a democratização da própria instituição [ONU]”.
Como exemplo das terceiras teorias (sobre a cultura global),
cito a teoria do lósofo anglo-ganense Kwame A. Appiah, em cujo artigo
“Patriotas cosmopolitas” (publicado nos anos 1990) – adiantando as ideias
que estariam presentes em sua premiada obra Na casa de meu pai (1993)
tenta defender e distinguir simultaneamente dois princípios intelectuais
básicos herdados de seu pai, o patriotismo e o cosmopolitismo, congrega-
dos justamente na expressão que dá título ao artigo, partindo da seguinte
conceituação: “o patriota cosmopolita pode entreter a possibilidade de um
mundo no qual todos são cosmopolitas enraizados, têm todos um lugar
seu, com suas peculiaridades culturais, mas sentem prazer em estar em ou-
tros, diferentes, lugares que são de outras, diferentes, pessoas”. Appiah não
sente constrangimento em conciliar o princípio universalista (tipicamente
kantiano) que subsidia o cosmopolitismo com o princípio relativista que
subsidia o patriotismo (mais próximo do pensamento rousseauniano, que
não era cosmopolita), sem, contudo, confundir ambos.
2
Ao nal, Zolo escreve novamente: “O exame das origens históricas das instituições internacionais que
apresentei neste livro revela a existência de uma continuidade estrutural entre a Santa Aliança, a Liga das Nações
e as Nações Unidas. Este elemento de continuidade se manifesta no que propus chamar de ‘modelo cosmopolita
Santa Aliança’: um modelo institucional hierárquico que impõe as táticas e aspirações hegemônicas de uma elite
reduzida de superpotências sobre a soberania do resto de países. O Conselho de Segurança das Nações Unidas,
sob o rme controle do diretório das potências vencedoras da última guerra mundial, representa esse modelo
de forma exemplar. Por um lado, a Carta das Nações Unidas, nega aos sujeitos da ordem jurídica internacional
a igualdade perante a lei, enquanto, por outro lado e ao mesmo tempo, a própria Carta contém em seu texto a
máxima expressão de uma teoria do estabelecimento paz que presume assegurar à humanidade uma paz estável
e universal mediante o uso sancionador de uma força superior”.
Raal Salatini (Org.)

Numa obra publicada posteriormente, denominada justamente
Cosmopolitismo (2006), Appiah precisaria a mesma divisão, armando,
mais propriamente, que “há duas linhas que se entrelaçam na noção de
cosmopolitismo”, quais sejam: “uma é a ideia de que temos obrigações para
com os outros, obrigações que vão para lá daqueles a quem estamos ligados
por laços de amizade ou gênero, ou até mesmo os laços mais formais de
uma cidadania partilhada”, enquanto “a outra é o encararmos seriamente
o valor não apenas da vida humana, mas das vidas humanas em particular,
o que signica interessarmo-nos nas práticas e crenças que lhes dão signi-
cado”, armando em seguida que “as pessoas são diferentes, o cosmopolita
tem noção disso, e há muito a aprender com as nossas diferenças”.
Ninguém teria diculdade em reconhecer a primeira linha como
uma exposição clara e lúcida do princípio universalista (que poderia ter
sido escrita por Kant) ao mesmo tempo em que se reconhece a segunda li-
nha como uma exposição igualmente clara e lúcida do princípio relativista
(que poderia ter sido escrita por Rousseau). Todavia, não se poderia dizer
que o lósofo anglo-africano não possua clara noção das diculdades teó-
ricas implicadas na defesa desse ideal duplo. Na mesma obra, arma que
“há ocasiões em que esses dois ideais – a preocupação universal e o respeito
pela diferença legítima – colidem” e, portanto, que “existe um motivo para
o qual o cosmopolitismo é o nome, não da resposta, mas do desao”.
Analiticamente próximo à concepção appiahana, embora axiologi-
camente oposta, é a concepção do cosmopolitismo presente no ensaio “Tras
Babel: Identidade, pertencimento e cosmopolitismo da diferença” (2009)
do lósofo italiano Giacomo Marramao, que descreve o mundo da seguinte
forma: “Um mundo que, na realidade, parece dominado pelos efeitos de-
tratores de uma bi-lógica, em virtude da qual à estrutura uniformizadora da
tecnoeconomia e do mercado global, corresponde uma diáspora crescente
das identidades, dos valores, das formas de vida”. Dessa compreensão do
mundo contemporâneo advém a seguinte opinião sobre o cosmopolitismo:
É aqui a decisiva razão que me levou, no curso de minhas reexões
dos últimos anos, a propor a fórmula do cosmopolitismo da diferença,
entendido como uma saída do paralisante dilema teórico entre uni-
versalismo de identidade (postulado das concepções de cidadania por
assimilação) e diferencialismo antiuniversalismo (postulado das versões
de multiculturalismo).

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Pertence a este grupo de teorias igualmente aquela exposta por
Ulrich Beck em A perspectiva cosmopolita (2004), em que se listam cinco
princípios inter-relacionados da perspectiva cosmopolita: (1) o princípio
da experiência e percepção interdependente de crise da sociedade mundial,
(2) o princípio do reconhecimento das diferenças e do caráter conitivo da
sociedade mundial, (3) o princípio da empatia e da mudança de perspecti-
va cosmopolitas, (4) o princípio da impossibilidade de viver em uma socie-
dade mundial sem fronteiras, e (5) o princípio da miscelânea de culturas e
tradições locais, nacionais, étnicas, religiosas e cosmopolitas. Arma Beck:
O que quer dizer, pois, a perspectiva cosmopolita? Quer dizer sentido do
mundo, sentido da ausência de fronteiras. Quer dizer uma perspectiva
cotidiana, historicamente desperta e reexiva, uma perspectiva dialógica
às ambivalências que existem no entorno caracterizado pelas diferencia-
ções em processo de desaparecimento e as contradições culturais.
Numa obra que publicou em sequência, com Edgard Grande,
intitulada A Europa cosmopolita (2004), Beck mantém – não sem fazer um
enorme balanço sobre as mais diversas concepções de cosmopolitismo – o
conceito sob a mesma tradição culturalista, armando: “O cosmopolitis-
mo combina a valoração positiva da diferença com os intentos de conceber
novas formas democráticas de organização política para além dos Estados
nacionais”. E, mais à frente, com maior precisão, armará que “empregare-
mos o conceito de uma forma muito concreta, a saber, como um conceito
cientíco-social, e para uma situação muito concreta: para uma forma es-
pecial de relação social com o culturalmente diferente”.
Por m, também podemos considerar, em alguma medida, per-
tencente a este grupo culturalista a noção de cosmopolitismo presente
em alguns textos de Jacques Derrida, produzidos especialmente nos anos
1990. Na conferência “O direito à losoa do ponto de vista cosmopolita
(1991), pronunciada na UNESCO, Derrida discute a dupla relação entre,
do ponto de vista interinstitucional, as universidades e instituições de pes-
quisa e as instituições internacionais, e, do ponto de vista interdisciplinar,
a losoa, artes e ciências e as humanidades, apontando justamente aquela
como uma instituição simultaneamente internacional e losóca.
Raal Salatini (Org.)

A UNESCO – arma – seria assim o lugar privilegiado, talvez no fun-
do [...] o único lugar para apresentar a questão que hoje nos reúne e
cuja autoridade traz de algum modo, em sua forma mesma, o selo dessa
instituição, recebendo dela em princípio quer sua resposta quer sua
responsabilidade, como se, para dizê-lo numa palavra, a UNESCO, e
nela por privilégio seu departamento de losoa, fosse, se assim posso
falar, a emanação singular de algo como a losoa, como “um direito à
losoa do ponto de vista cosmopolista”.
Defendendo uma losoa que, “sob seu nome grego e em sua
memória europeia”, na verdade “sempre foi bastarda, híbrida, enxertada,
multilinear, poliglota”, e argumentando que “o europocentrismo e o an-
tieuropocentrismo são sintomas da cultura missionária e colonial”, Derrida
arma que “um conceito do cosmopolitismo que fosse assim determinado
por essa oposição não só limitaria concretamente o desenvolvimento do
direito à losoa mas não daria conta sequer do que se passa na losoa”.
Com base nessa compreensão crítica da losoa, o lósofo francês então
apresenta três condições para a concretização do direito à losoa sob um
ponto de vista cosmopolita: (1) o reconhecimento das diversas tradições,
modelos e estilos nacionais e linguísticos existentes na história da losoa,
(2) o reconhecimento das diversas línguas que fazem parte da história da
losoa (assim como das línguas que podem a vir fazer ainda no futuro),
e (3) a superação dos modelos institucionais e pedagógicos onde se produz
e ensina losoa assim como dos imperativos técnicos e econômicos que
muitas vezes guiam essas instituições.
Em janeiro de 1996, duas outras conferências de Derrida foram
dedicadas ao tema do cosmopolitismo e publicadas conjuntamente com
o título Da hospitalidade: na primeira conferência, discute-se o tema do
estrangeiro na história da losoa, de Platão a Kant; na segunda, discutem-
-se as leis da hospitalidade desde as tragédias gregas (especialmente Édipo
em Colona, de Sófocles). (Desnecessário lembrar a importância dos temas
do estrangeiro e da hospitalidade nos textos cosmopolitas kantianos.) No
mesmo ano, Derrida escreveu ainda um texto intitulado “Cosmpolitas de
todos os países, mais um esforço!”, para ser lido no Primeiro Congresso das
Cidades-Refúgio, ocorrido em março de 1996, no Conselho da Europa,
em Estrasburgo, por iniciativa do Parlamento Internacional de Escritores

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
(do qual o autor fazia parte). Com inspiração cosmopolita, o autor assevera
desde o início que as cidades-refúgio “deverão antes ser o apelo audacioso
a uma verdadeira inovação na história do direito de asilo ou do dever de
hospitalidade”. Ao longo do texto, Derrida insistirá mais de uma vez no
carater inovador do expediente das cidades-refúgio – que denomina de
uma nova cosmopolítica” –, que se colocam como meio-termo entre uma
cidade autônoma (como as cidades antigas e medievais) e uma cidade cir-
cunscrita jurídica e politicamente pela soberania de um Estado territorial.
“Não se trata mais – arma – apenas de novos predicados para enriquecer o
velho tema chamado ‘cidade’. Não, nós sonhamos com um outro conceito,
com um outro direito, com uma outra política da cidade”.
A guisa de conclusão, podemos armar que, conquanto distintas
uma da outra, as três principais concepções que fazem parte da renovação
contemporânea do cosmopolitismo – ligados, como tentamos demonstrar,
à cidadania internacional, à democracia internacional e à cultura global
não são contrastantes entre si, mas certamente complementares, referindo-
-se, respectivamente, antes a três sujeitos que tendem cada vez mais e mais
a interagir simultaneamente no sistema internacionaional: os indivíduos,
os Estados e os povos. Como, sob qualquer perspectiva empiricamente
observável, nenhum desses sujeitos podem sobreviver sem os outros dois,
não me parece difícil ressalvar que a avanço de qualquer das três formas
de cosmopolitismo apresentados apenas poderá reforçar as outras duas e
não, como se poderia contrariamente argumentar, inibir. Os indivíduos
necessitam da proteção dos Estados e dos povos; os Estados são compostos
por indivíduos e por povos; e, las but not least, os povos são compostos por
indivíduos e necessitam da proteção dos Estados. Conceder direitos aos
primeiros, democratizar a relação entre os segundos e promover a mútua
compreensão entre os terceiros certamente consiste no tríplice papel do
cosmopolitismo contemporâneo.
Raal Salatini (Org.)

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Raal Salatini (Org.)


2.
REGIONALISMO NA AMÉRICA
LATINA NO SÉCULO XXI
1
Karina L. Pasquariello Mariano
Clarissa Correa Neto Ribeiro
O debate acadêmico sobre regionalismo esteve tradicionalmen-
te monopolizado pela perspectiva europeia, usada como parâmetro e re-
ferência do que deveria ser um projeto de integração regional. No início
do século XXI, no entanto, essa situação se alterou porque foi a partir da
América Latina que se construíram novas perspectivas sobre a integração
regional. Essa inovação resultou do questionamento realizado por vários
governos da região – com uma identidade político-ideológica de centro-
-esquerda – que consideravam insatisfatória a promoção de iniciativas de
integração regional com forte ênfase nas dimensões econômica e comercial.
Esses governos assumiram com um discurso crítico às políticas
adotadas por seus antecessores, apontando-as como causas da sucessão de
crises econômicas na virada do século. Além disso, a constatação do fraco
desempenho das economias latino-americanas culminou no questiona-
mento das estratégias nacionais adotadas que reduziram o papel do Estado
na economia e direcionaram os projetos de cooperação regional para uma
lógica quase que exclusiva de abertura comercial, abandonando a perspec-
tiva da promoção do desenvolvimento.
1
Este artigo articula algumas conclusões da pesquisa Regionalismo na América Latina no Século XXI desenvolvida
pela Rede de Estudos e Pesquisa sobre Política Externa e Regionalismo, nanciada pelo CNPq e coordenada pela
Profa. Karina Lilia Pasquariello Mariano.
https://doi.org/10.36311/2020.978-85-7983-801-9.p23-40
Raal Salatini (Org.)

A principal crítica desses governos em relação aos projetos inte-
gracionistas era que estes estariam modelados a partir da noção de “regio-
nalismo aberto”, cuja ideia central fundamenta-se na formação de blocos
econômicos em concordância com os objetivos de liberalização do comér-
cio mundial, evitando o surgimento de novas barreiras comerciais e, por-
tanto, propondo que as experiências regionais se ajustem à busca de maior
competitividade em um contexto de globalização (FUENTES, 1994;
CORAZZA, 2006). Com isso, a integração regional deixa de ser um me-
canismo de desenvolvimento regional, para se tornar um instrumento de
abertura comercial e de aumento de capacidade do Estado para responder
às novas demandas sociais, assim como lidar com a realidade das pressões
exercidas pelas relações transnacionais.
O desenvolvimento seria consequência do crescimento econômi-
co, resultante da liberalização comercial e não mais da intervenção ou di-
recionamento do Estado. Pressupunha-se que os problemas estruturais da
América Latina – pobreza, desigualdade, violência e subdesenvolvimento –
seriam superados à medida que esse processos de abertura dinamizassem as
economias nacionais e servissem como atração aos investimentos externos.
A partir dessa lógica, a regionalização caracterizava-se por proces-
sos de integração entre países com diferentes níveis de desenvolvimento e
com alta tolerância à questão das desigualdades e assimetrias, combinando-se
uma articulação entre a ideia de regionalismo aberto e baixa institucionali-
dade, priorizando a lógica intergovernamental, com instituições limitadas
ao objetivo de promover a integração econômica e comercial necessária para
uma melhor inserção no sistema internacional (MARIANO, 2013).
Esses novos governos latino-americanos assumiram um discurso
de retomada do papel do Estado na promoção de mudanças econômicas,
numa perspectiva neo-desenvolvimentista e considerada como “progres-
sistas”, a chamada Onda Rosa: Hugo Chávez na Venezuela; Luiz Inácio
Lula da Silva no Brasil; Nestor Kirchner na Argentina; Tabaré Vazquez
no Uruguai; Michelle Bachelet no Chile; Evo Morales na Bolívia; Daniel
Ortega na Nicarágua e Rafael Correa no Equador e Fernando Lugo no
Paraguai (AYERBE, 2008).

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
O reposicionamento desses governos diante dos processos de in-
tegração regional estimulou na região um debate em torno de qual seria a
concepção de regionalismo para esses países sul-americanos e se esta estaria
promovendo mudanças signicativas nos processos de integração regional
em andamento na América Latina. Na próxima seção resgatamos de forma
breve este debate, para em seguida analisar os desdobramentos dessas mu-
danças nas iniciativas integracionistas.
REGIONALISMO OU INTEGRAÇÃO?
Os conceitos regionalismo e integração são geralmente tratados
como sinônimos, mas possuem signicados bastante distintos. O primei-
ro está relacionado à ideia de pertencimento a um espaço geográco e à
articulação a partir de um referencial territorial, abarcando um conjunto
amplo de possibilidades de cooperação entre os atores, que não necessa-
riamente devem ser estatais. No caso da integração, é um conceito que
também se refere à cooperação entre atores, mas está carregado de um forte
simbolismo ligado à uma percepção de uma coesão.
Quando os atores defendem a integração, assumem implicita-
mente em seus discursos a aceitação de uma perda de autonomia e a defesa
de um maior comprometimento entre os participantes, porque a integra-
ção pressupõe a construção de uma nova institucionalidade ou arranjo
político. Enquanto o termo regionalismo é mais genérico e desprovido
dessa carga simbólica, indicando uma cooperação voltada para organizar
um espaço ou articular os atores dentro dele. Nesse sentido, a integração é
uma forma de regionalismo.
Por isso, quando os governos da Onda Rosa retomam a preocu-
pação com a cooperação regional, enfatizaram a necessidade de aprofundar
a integração entre eles, mais do que o fortalecimento do regionalismo na
América do Sul. Havia uma preocupação em reforçar a necessidade de um
aprofundamento nas relações entre eles, em defesa da promoção de uma
transformação social e econômica na região. Retomava-se o ideal do Estado
forte na economia, com instrumentos de provisão da segurança e coesão
social, ameaçadas pelas incertezas e instabilidade econômicas internacionais
(VIGEVANI; RAMANZINI JÚNIOR, 2010; VEIGA; RIOS, 2011).
Raal Salatini (Org.)

Embora tais governos defendessem essas mudanças como neces-
sidades imperiosas, apresentaram disparidades entre suas políticas e ideo-
logias. Ainda que fossem contrários ao arranjo neoliberal aplicado pelos
governos anteriores, algumas diretrizes desse modelo se perpetuaram na
região, marcada por governos com projetos políticos econômicos hetero-
gêneos, que mesclaram prerrogativas sociais, embasadas no nacionalismo,
com políticas econômicas ortodoxas (WEYLAND, 2004).
A principal crítica aos projetos de integração vigentes era de
que estes estavam presos à lógica do regionalismo aberto, ignorando os
temas relacionados às assimetrias estruturais entre os países-membros,
bem como desprezavam as preocupações com as dimensões produtivas e
de desenvolvimento, agora vistas como centrais nas agendas de política
externa desses países.
O século XXI, portanto, inaugura uma nova fase no regionalis-
mo sul-americano com o surgimento de processos que têm por princí-
pio questionar esse modelo de integração pautado na questão comercial.
Esse novo modelo foi chamado tanto de regionalismo pós-liberal, como de
pós-hegemônico (VEIGA; RIOS, 2007; CIENFUEGOS; SANAHUJA,
2010; RIGGIROZZI; TUSSIE, 2012).
Ambos os conceitos referem-se a um modelo de regionalismo com-
posto por uma agenda integrativa de cunho desenvolvimentista, resistente à
abertura comercial, assim como por uma agenda antiliberal, que propicia a
formação de coalizões entre países ideologicamente próximos. Sua hipótese
primordial é que a liberalização dos uxos de comércio e os investimentos
nos acordos comerciais, não são capazes de promover o desenvolvimento no
interior do processo, reduzem o espaço para implantação de políticas nacio-
nais desenvolvimentistas e dicultam a adoção de uma agenda de integração
voltada aos temas de desenvolvimento e equidade social.
Diante disso, o novo modelo integracionista pós-liberal propõe a
ampliação temática da agenda de integração, abrangendo assuntos econô-
micos não comerciais e temas não econômicos. Os novos temas são sele-
cionados segundo critérios diversicados, mas sempre relacionados com os
ideais do novo paradigma, como necessidade pelo desenvolvimento e pela
busca da equidade social, superação da pobreza e desigualdade, bem como

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
a incorporação de grupos sociais que foram excluídos dos modelos liberais
de integração (VEIGA; RIOS, 2007).
A nova perspectiva integracionista da América Latina deu origem
a novas experiências de integração regional, assim como promoveu mu-
danças importantes nos processos já existentes. Esses projetos representam
essa nova fase do regionalismo, marcado pela ampliação da agenda regio-
nal, com a inclusão de novos temas como: defesa, infraestrutura e nancia-
mento; mas, principalmente por buscar conciliar a questão do desenvolvi-
mento econômico e social aos instrumentos da integração regional.
Outra característica importante dessas novas experiências de
integração é a tentativa de compatibilizar as soberanias nacionais com
as instituições regionais. Esses processos estão associados ao retorno do
protagonismo do Estado, em detrimento dos atores privados da econo-
mia de mercado, destacados nos modelos integracionistas anteriores,
especialmente daqueles originados sob o marco do regionalismo aberto
(CIENFUEGOS; SANAHUJA, 2010; ALTMANN, 2011).
Contudo, após o lançamento dessas propostas pós-liberais houve
também uma retomada da guinada liberal, com o relançamento do regio-
nalismo aberto a partir na primeira década do século, levando os especialis-
tas a denominarem o período de pós-hegemônico (SERBÍN, 2011), uma
vez que não haveria mais um único modelo a ser seguido para o desenvol-
vimento das relações regionais.
A seguir apresentaremos essas experiências integracionistas e
como elas foram impactadas pelas novas concepções presentes a partir do
início do século XXI. Assim, o presente trabalho analisa processos regio-
nais vigentes na América do Sul na atualidade: Aliança Bolivariana para os
Povos de Nossa América (ALBA-TCP), Aliança do Pacíco, Comunidade
Andina (CAN), Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos
(CELAC), Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e a União das Nações
Sul-Americanas (UNASUL). A análise foi feita a partir de seus organo-
gramas institucionais, de modo a perceber quais são os canais disponíveis
para a participação social e de que maneira as diferentes ondas de regio-
nalismo inuenciaram na institucionalidade e abertura ao envolvimento
não-governamental.
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
OS PROJETOSPÓS-LIBERAIS
De todos os processos de integração regional em funcionamento
na América Latina, a ALBA-TCP é a iniciativa que melhor simboliza o
regionalismo pós-liberal. Originou-se como uma contestação à proposta
da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), que representava o es-
sencial da lógica do regionalismo aberto e foi veementemente refutada pelo
então presidente Hugo Chávez.
A proposta da ALBA surgiu no nal de 2001, durante a III
Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da Associação de Estados do
Caribe, como uma iniciativa de integração ampla que ultrapassaria os as-
pectos econômicos e se alinharia ao seu discurso bolivarista de uma uni-
cação regional. Sua institucionalização se deu em dezembro de 2004 a
partir da assinatura de protocolos de integração entre Cuba e Venezuela.
Esse processo se expandiu, tendo como impulso a proposta do
Tratado de Comércio dos Povos (TCP) que é um instrumento cambial de
2006, e que facilitou a entrada da Bolívia no mesmo ano. Os demais mem-
bros foram incorporados nos anos consecutivos: em 2007 a Nicarágua, em
2008 entraram Dominica e Honduras, e nalmente em 2009 se integram
ao bloco Equador, São Vicente e Granadinas, e Antígua e Barbuda.
A ALBA-TCP caracteriza-se por rejeitar a ideia de que o desen-
volvimento seria obtido a partir do estímulo do comércio entre os países,
defendendo a necessidade de uma forte regulação e coordenação estatal das
atividades econômicas. Também faz parte de seus princípios o reconheci-
mento das assimetrias entre os participantes e a preocupação em enfrentar
essa questão
2
, que tende a ser negligenciada dentro dos princípios do re-
gionalismo aberto.
Essa integração é permeada predominantemente por questões
políticas. O protagonismo crescente da Venezuela na região, junto aos ga-
nhos derivados da exportação de petróleo, contribuíram para o projeto
ganhar força entre países ideologicamente próximos, já que seus principais
objetivos baseavam-se em questões sociais, como a luta contra a pobreza e
a exclusão social. Imbuída de um espírito mais participativo e democráti-
2
Essa questão é particularmente importante no caso da PETROAMERICA que propõe a integração energética
entre os países, mas que na prática signicou acesso privilegiado e a baixo custo ao petróleo venezuelano.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
co, a ALBA buscou incorporar em sua organização institucional os atores
sociais, por meio de quatro Conselhos: Econômico, Social, Político e dos
Movimentos Sociais.
A existência dessas instâncias pressupõe a institucionalização de ca-
nais de discussão de temas de interesse social, que vão além das negociações
comerciais e que permitiriam o estabelecimento de espaços de deliberação e
participação social nessa cooperação regional. Contudo, quando analisamos
quem efetivamente participa dessas instâncias, verica-se que estas permane-
cem como espaços estritamente intergovernamentais, compostos por minis-
tros das áreas sociais, de política externa, cultura, economia etc.
A exceção é o Conselho dos Movimentos Sociais cuja nalidade é
articular os movimentos sociais dos países. Em princípio esta instância teria
uma autonomia em relação aos governos na proposição de uma agenda de
integração. Nos documentos analisados não há uma especicação de quais
são esses atores e de suas ações. O que se encontra são declarações realiza-
das durante as reuniões de Cúpula, mas estas não apresentam uma agenda
própria de discussão e basicamente são declarações de apoio aos governos
(especialmente ao venezuelano) e das políticas promovidas pela ALBA-TCP.
Quando procuramos informações efetivas sobre esses Conselhos
e Comissões vericamos que elas não estão disponíveis, assim como não
se indica quem são os representantes da sociedade que deles participam e
se estes efetivamente funcionam ou mantém uma atividade regular. Ainda
assim, por meio de documentos produzidos pelas reuniões de Cúpula da
ALBA-TCP é possível perceber que na grande maioria dos casos, quando
se abordam as ações dessas instâncias elas se referem geralmente a delibe-
rações de representantes governamentais, visando a elaboração de políticas
regionais de enfrentamento dos problemas sociais, sem encontrar menções
a atores sociais especícos que possam ter contribuído nessas ações.
Devido à liderança de Venezuela e Cuba nesse processo, percebe-
-se também que boa parte das ações propostas no âmbito social e cultural
podem ser consideradas como uma internacionalização de políticas sociais
domésticas desses países, ou a intensicação de estratégias previamente
aplicadas como no caso dos projetos na área de saúde com a participação
de médicos cubanos, programas de bolsas para estudantes universitários
Raal Salatini (Org.)

ou a criação de Missões Sociais regionais que seriam uma transposição do
projeto social venezuelano.
Um último aspecto a ser ressaltado é que a ALBA-TCP teve um
período de intensa atuação e proliferação de iniciativas regionais entre
2006 e 2012, mas com a morte do presidente Hugo Chávez e o aprofun-
damento da crise político-econômica da Venezuela houve uma retração
nesse processo, o que pode ser vericado inclusive pelos resultados efetivos
das reuniões de cúpula realizadas a partir do segundo semestre de 2013,
cujos únicos produtos concretos foram as Declarações presidenciais, nas
quais somente o tema da PETROCARIBE aparece como uma preocupa-
ção constante das discussões, acompanhado de posicionamentos sobre as
instabilidades políticas da região e a relação com os Estados Unidos.
Apesar da ALBA-TCP ser o processo de integração mais radical
dentro do espectro do pós-liberalismo, a experiência mais importante é
a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), resultante da iniciativa
brasileira, caracterizada por seu forte escopo político. Advém da iniciativa
brasileira dos anos 1990 de criação da ALCSA (Área de Livre Comércio
Sul-americana), passando pela tentativa de convergência da Comunidade
Andina (CAN) e do Mercosul na proposta da Comunidade Sul-americana
de Nações (CASA/CSN) de 2004. Sua criação em 2008, conformou-se
como uma catalisação de um projeto de socialização da região, favorecido
pela convergência de discursos e ideologias. A Unasul também visa facilitar
a relação entre os países pela sua exibilidade e pouca exigência no com-
prometimento comercial e econômico das nações envolvidas.
Dentre os esforços aplicados para o fomento da cooperação regio-
nal nas diversas áreas, pode-se dizer que a UNASUL inova ao propor o “in-
tercâmbio de informação e de experiências em matéria de defesa” (art. 3º,
alínea “s”). Ainda que de maneira modesta, o disposto em questão serviu
de base para a criação de um Conselho de Defesa Sul-Americano, que con-
tou com atuação protagônica do Brasil, buscando o desenvolvimento de
um mecanismo consultivo, com o objetivo de prevenir conitos e fomen-
tar a cooperação militar regional, além da integração das bases industriais
de defesa, e representa avanços na construção de mecanismos de fomento
da conança entre os países da América do Sul.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
O Conselho de Saúde foi criado na mesma data que o Conselho
de Defesa, tendo como objetivos a criação da Rede Sul-Americana de
Vigilância e Resposta em Saúde e o desenvolvimento de diversos progra-
mas nessa área, inclusive para gestão de recursos humanos em Saúde. Em
seu âmbito foi criado também o Instituto Sul-Americano de Governo em
Saúde (ISAGS), um centro de altos estudos e debate de políticas públicas
para o desenvolvimento da liderança em saúde nos países membros, com
sede no Rio de Janeiro
Em 2009 foram criados o Conselho Sul-Americano de
Desenvolvimento Social, que prevê em seus objetivos a criação de um
Observatório Social Sul-Americano; o Conselho Sul-Americano sobre
o Problema Mundial das Drogas, cujo Plano de Ação está centrado na
redução da demanda e no desenvolvimento alternativo, integral e susten-
tável; o Conselho de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN), que
lida com um tema fulcral para o desenvolvimento da integração física
entre os países da região.
O Tratado Constitutivo da UNASUL faz referência direta em
reiteradas ocasiões à participação social, mas não estabelece diretamente
mecanismos e espaços institucionalizados para essa participação. Em 2013
3
foi instituído o Foro de Participação Social da UNASUL, de caráter con-
sultivo, não-vinculante e cuja primeira edição ocorreu em agosto de 2014.
Através dessa primeira reunião estabeleceram-se equipes de trabalho para
um futuro aprofundamento e institucionalização da participação social no
processo de integração.
De todas as iniciativas de regionalismo pós-liberal, a que menos
avançou foi a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos
(CELAC), que resultou dos encontros do Grupo do Rio e da CALC,
(Cúpula da América Latina e Caribe sobre Integração e Desenvolvimento)
em fevereiro de 2010, participando deste mecanismo de concertação polí-
tica 33 países da região, incluindo Cuba.
Os discursos ociais ressaltam que o objetivo dessa iniciativa é o
desenvolvimento de uma comunidade que trabalhe a cooperação, a comple-
mentariedade, a solidariedade e a inclusão social entre as nações (ROMERO,
3
Cf. Declaração de Paramaribo, aprovada durante a VII Cúpula da UNASUL, em 30 de agosto de 2013.
Raal Salatini (Org.)

2012). É uma nova tentativa de buscar a autonomia na região a partir de
uma aposta de integração latino-americana que exclui os Estados Unidos e
o Canadá e visa ser um mecanismo político de unidade e interação entre os
países da região (NIVIA-RUIZ; PIETRO-CARDOSO, 2014).
A CELAC caracteriza-se cada vez mais como uma diplomacia de
Cúpulas, um foro baseado no consenso, articulador para a convergência de
ações e interesses da região, sem vistas à institucionalização do mecanismo,
de modo a evitar o engessamento dos países-membros. Além disso, apesar
do discurso social e a inserção no movimento regionalista pós-liberal, a
CELAC não prevê a participação cidadã em nenhuma de suas instâncias.
OS PROJETOS DO REGIONALISMOABERTO
O processo de integração sul-americano mais identicado com
a proposta do regionalismo aberto é o MERCOSUL e sua estrutura ins-
titucional reete a lógica desse momento: ênfase nas questões comerciais,
intergovernamentalismo e preocupação com a participação social. Existem
apenas dois tipos de órgãos nesse processo: os decisórios que estão sob o es-
trito controle dos governos e os consultivos, nos quais participam represen-
tantes do Estado, do empresariado, dos trabalhadores e da sociedade civil.
As instâncias decisórias são o Conselho do Mercado Comum
(CMC), o Grupo Mercado Comum (GMC) e a Comissão de Comércio.
Esses órgãos estão encarregados de uma agenda bastante ampla e variada,
que é negociada pelos representantes dos governos. Apesar de não prever
nenhum mecanismo de participação social direta, setores especializados da
sociedade civil são chamados a participar destas instâncias, segundo crité-
rios de cada país-membro, o que aproxima diferentes grupos de interesses
para a realização de um trabalho mais técnico e especializado.
Além disso, duas instâncias representam, de fato, meios de par-
ticipação social institucionalizada no MERCOSUL, o Fórum Consultivo
Econômico Social (FCES) e o Parlamento (Parlasul). O primeiro foi es-
tabelecido pelo Protocolo de Ouro Preto (1994) e funciona como órgão
auxiliar consultivo. Participam do mesmo representantes empresariais, tra-
balhadores e de outras instâncias, respeitando-se a paridade, mas nota-se

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
a ausência de uma atuação proeminente da esfera social, uma vez que não
atinge todos os substratos sociais.
Já o Parlasul foi constituído como órgão autônomo em 2006,
substituindo a Comissão Parlamentar Conjunta criada em 1994. Sua im-
plantação está relacionada com a inuência das mudanças políticas na re-
gião, fazendo parte das novas perspectivas de integração dos governos da
Onda Rosa, pois quando assumiram o poder em 2003, os governos de
Néstor Kirchner e Luíz Inácio Lula da Silva pactuaram o relançamento do
MERCOSUL em novas bases, alinhadas com a perspectiva que convencio-
namos chamar de regionalismo pós-liberal. Nesse sentido, constituíram-
-se como reexos dessa nova etapa da integração, o Parlasul juntamente
com a institucionalização do Tribunal Permanente de Revisão que é o sis-
tema de solução de controvérsias entre os membros do bloco; o Centro
MERCOSUL de Promoção do Estado de Direito, responsável por analisar
e reforçar o desenvolvimento do Estado e da democracia no MERCOSUL;
e o Tribunal Administrativo Trabalhista, criado para lidar diretamente com
os servidores do processo de integração regional.
Outro importante mecanismo a ser mencionado neste redirecio-
namento da integração no Cone Sul, é o Fundo de Convergência Estrutural
do MERCOSUL (FOCEM) que tem por nalidade aprofundar o proces-
so de integração, reduzir as dessimetrias e incentivar a competitividade e
estimular a coesão social entre os Estados-parte. O FOCEM é o principal
exemplo desse redirecionamento da integração porque trabalha ao mesmo
tempo o enfrentamento do problema das assimetrias entre os países e se co-
loca como um instrumento para a promoção do desenvolvimento regional.
Dos processos de integração anteriores aos anos 2000, podemos
armar que o MERCOSUL é o que mais foi inuenciado pela onda do
regionalismo pós-liberal, tendo sofrido uma reformulação institucional e
uma signicativa ampliação de sua agenda. É interessante apontar que se
considerarmos os propósitos iniciais do projeto de integração, deveríamos
pressupor que a Comunidade Andina (CAN) estaria mais propensa a esse
redirecionamento. Inicialmente quando foi criada em 1969 pelo Acordo
de Cartagena (entre Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru), chamou-
-se de Pacto Andino e propunha-se à formação de um sistema de integra-
ção e cooperação para o desenvolvimento econômico, colocando-se como
Raal Salatini (Org.)

desao enfrentar o problema dos desequilíbrios entre seus membros e a
necessidade de instituições de fomento, dando origem ao Fundo Andino
de Reservas (FAR) e à Corporação Andina de Fomento (CAF).
Ainda que centrado nos aspectos econômicos e comerciais, o
Pacto Andino apresentava uma preocupação com aspectos que seriam pos-
teriormente retomados pelo regionalismo pós-liberal, especialmente em
compreender a integração regional como um instrumento de promoção
do desenvolvimento a partir da coordenação de políticas e ações estatais. A
grande diferença com o momento atual é em relação à institucionalidade:
os processos iniciados a partir dos anos 2000 caracterizam-se por um baixo
grau de institucionalização, priorizando lógicas informais ou estritamente
intergovernamentais, enquanto em sua origem a CAN mostrou preocu-
pação em montar uma estrutura burocrática supranacional capaz de im-
pulsionar o processo de integração e com certa autonomia em relação aos
governos nacionais, que é o Sistema Andino de Integração (SAI).
Ao longo dos anos 1970 o Pacto Andino vivenciou um período
de crise e estagnação, que só foi superado na década seguinte com um
novo impulso integracionista entre seus membros, conincidindo com o
período de ascensão do regionalismo aberto. Foi dentro desse movimento
de relançamento que o bloco alterou seu nome para Comunidade Andina,
numa sinalização de que o projeto pretendia avançar no sentido do apro-
fundamento da integração.
Atualmente, o Sistema Andino de Integração é composto três ti-
pos de órgãos e instituições:
Intergovernamentais: Conselho Presidencial Andino, Conselho Andino
de Ministros das Relações Exteriores, Comissão da Comunidade Andina;
Comunitários: Tribunal de Justiça Andino, Parlamento Andino,
Secretaria Geral, Banco de Desenvolvimento da América Latina,
Fundo Latino Americano de Reservas, Convênio Hipólito Unanue, e
a Universidade Andina Simón Bolívar;
E instâncias de participação da sociedade civil: Conselhos Consultivos
dos Povos Indígenas, dos Trabalhadores e Empregadores, e da Mesa
Andina para a Defesa dos Direitos do Consumidor.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
No tocante à participação social podemos identicar duas ins-
tâncias principais: o Parlamento Andino (Parlandino) e os Conselhos
Consultivos de trabalhadores e empresários. Ambos com caráter estrita-
mente consultivo, o que signica uma participação indireta nas decisões.
O Parlamento Andino é o órgão deliberante do Sistema de Integração.
Com sede em Bogotá (Colômbia), este órgão representa os povos da
Comunidade Andina, são eles quem elegem seus representantes através
do voto universal e direto. A representação neste parlamento é igualitária
entre os países-membros: cinco representantes por Estado. Suas principais
prerrogativas concentram-se na harmonização das legislações dos países
membros e com o ordenamento jurídico estabelecido pela Comunidade
Andina, e do programa de cooperação e coordenação entre os parlamenta-
res da CAN com os demais países latino-americanos.
Apesar da longevidade deste processo de integração e da com-
plexa estrutura institucional construída, a CAN não conseguiu aumentar
a interdependência econômica entre os seus membros e nem promover
conjuntamente um processo de desenvolvimento regional. De todos os
processos, este é atualmente o que enfrenta um maior esvaziamento por-
que seus integrantes estão priorizando outras lógicas. Bolívia e Ecuador
estão pleiteando a sua entrada no MERCOSUL, o que signicaria uma
saída da CAN. Enquanto Peru e Colômbia parecem voltar suas forças para
o projeto da Aliança do Pacíco.
Diferentemente dos projetos integracionistas mencionados até o
momento, a Aliança do Pacíco é um projeto de cooperação comercial
entre Chile, Colômbia, México e Peru. Foi instituída em 2012, com a
pretensão de consolidar uma área de livre comércio entre os países, for-
talecendo tanto a troca comercial entre eles, como a inserção econômica
destes países em outras plataformas multilaterais. Ao mesmo tempo, seus
membros demonstram clara insatisfação com esse regionalismo pós-liberal.
É o projeto que retoma os princípios do regionalismo aberto,
propondo como objetivo nal o estabelecimento de um bloco com livre-
-circulação de bens, serviços, capitais e pessoas, o que caracterizaria a cons-
tituição de um mercado comum. Não há referências nos documentos a
uma intenção de estabelecer uma institucionalidade regional com autono-
Raal Salatini (Org.)

mia em relação aos governos para gerenciar esse processo, mantendo toda
a estrutura estabelecida como estritamente intergovernamental.
A única instância de participação da sociedade é o Conselho
Empresarial da Aliança do Pacíco (CEAP), cujo objetivo é discutir os
aspectos comerciais e econômicos desse processo de integração, contando
para isso com o apoio do Comitê de Expertos que analisam temas sugeri-
dos pelos setores empresariais e elaboram propostas que são encaminhadas
aos representantes dos governos.
O CEAP é um grupo constituído em paralelo à institucionalida-
de da Aliança (não consta no seu organograma ocial), mas que está forte-
mente articulado com ela, tendo reuniões formais dentro de suas cúpulas.
Esta representação empresarial visa dar suporte à iniciativa governamental
de integração, ao mesmo tempo em que preocupa-se com inuir na agenda
de negociações e tornar-se o elemento dinamizador do processo.
CONCLUSÕES
De certa forma, o regionalismo pós-liberal resgata alguns elemen-
tos presentes na primeira onda integracionista (como as questões de pros-
peridade e identidade regional), adaptando-os ao novo contexto e à reali-
dade dos países latino-americanos. Portanto, como efeito destas mudanças
no panorama político, o regionalismo na América Latina a partir dos anos
2000 também sofre modicações importantes de concepção. A principal
delas diz respeito à tentativa de criar um regionalismo mais orientado pelo
Estado do que pelo Mercado, desdobrando-se em dois movimentos distin-
tos: alterar as estruturas existentes e criar novas estruturas regionais.
No primeiro caso, essa estratégia encontra limitações porque
grande parte das instituições dos processos mais consolidados foram cons-
truídas como resultado do tipo de regionalismo desenvolvido na década
anterior e, portanto, foram concebidas a partir da ideia de regionalismo
aberto. As modicações implementadas não foram sucientes para alterar
signicativamente as lógicas desses processos e propiciar respostas satisfa-
tórias aos novos anseios.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Os governos optaram por criar novas iniciativas integracionis-
tas – consideradas heterogêneas – como resposta à crise da liberalização
comercial. É dentro desse novo contexto que surgiram os projetos de in-
tegração como a UNASUL e a ALBA-TCP, desenvolvidos no marco do
regionalismo pós-liberal” (VEIGA; RIOS, 2007), pós-comercial ou pós-
-hegemônico (SERBÍN, 2011). Este novo conceito expressa uma nova or-
dem de prioridades regionais, e uma agenda deslocada à esquerda do eixo
do poder político.
A principal característica é a crítica ao paradigma liberal, em que
se basearam tanto as iniciativas de integração latino-americana nos anos
1990, quanto as políticas econômicas domésticas dos países da região.
Seguindo esta lógica, esses processos modicam a agenda integracionista e
trabalham melhor as questões relacionadas ao aprofundamento, aceitando
discutir os problemas das assimetrias e os custos de seu enfrentamento.
Ainda assim, esse novo modelo de regionalismo mesmo reinse-
rindo o Estado como instrumento de promoção da integração e do desen-
volvimento, e ampliando a agenda de integração regional, não enfrentou
uma questão central que é a concessão de maior autonomia às instâncias
regionais, como aponta o Quadro 1. Sem essa autonomia, os processos de
integração cam subordinados às lógicas e interesses dos governos nacio-
nais o que aumenta as incertezas e instabilidades dentro dos blocos.
Processo Regional Modelo de integração
Complexidade
Institucional
Participação social
ALBA-TCP
Regionalismo
pós-hegemônico
Baixa e estritamente
intergovernamental
Previsão de participa-
ção direta- inoperante
Aliança do Pacíco
Regionalismo pós hege-
mônico - liberal
Baixa e estritamente
intergovernamental
Não prevê
CAN Regionalismo fechado
Alta, mesclando instân-
cias intergovernamen-
tais e supranacionais
Participação
consultiva
CELAC
Regionalismo pós
hegemônico
Baixa e estritamente
intergovernamental
Não prevê
MERCOSUL Regionalismo aberto
Alta e estritamente
intergovernamental
Participação consulti-
va e setorial
UNASUL
Regionalismo pós
hegemônico
Baixa e estritamente
intergovernamental
Participação
consultiva
Quadro 1: Características da Integração na América Latina
Fonte: MARIANO; RIBEIRO, 2015.
Raal Salatini (Org.)

A agenda dos projetos de integração relacionados com o regio-
nalismo pós-liberal pressupõe a existência de uma institucionalidade mais
complexa, porque aborda temas como políticas sociais que exigiriam a ne-
cessidade de maior convergência e articulação política. Além disso, no caso
da ALBA-TCP especicamente há um compromisso em garantir a livre
circulação de pessoas entre os países, o que leva à necessidade de harmo-
nizar políticas e, consequentemente, à necessidade de maior instituciona-
lidade regional.
Inversamente ao esperado, todos os processos estabelecidos a par-
tir dos anos 2000 apresentam como característica uma baixa instituciona-
lidade, priorizando lógicas mais informais, mantendo as negociações sob
o estrito controle dos governos, sob o argumento de que este modelo de
negociação garantiria maior agilidade decisória e menor burocratização e
custos. No entanto, as mudanças políticas que estão ocorrendo hoje na
América do Sul lançam dúvidas sobre a continuidade dessas propostas ou
de suas atuais agendas.
Na ausência de estruturas com mais autonomia, um mecanismos
que poderia garantir uma certa continuidade a esses projetos de integração
pós-liberal seriam os espaços de participação social, se estes tivessem um ca-
ráter mais deliberativo e pudessem inuir na agenda das negociações. No
entanto, eles são restritos e marginalizados do processo decisório em todos os
processos analisados. A exceção encontrada é no caso do Aliança do Pacíco
na qual há um forte envolvimento informal do empresariado. Neste caso,
não há uma preocupação em inuir na agenda da integração, pois a partici-
pação empresarial está voltada estritamente para a maximização das oportu-
nidades de negócios oferecidas pelos governos com esse processo.
Os dois projetos que apresentam uma maior complexidade
institucional (CAN e MERCOSUL) foram instituídos em outros ciclos
de regionalismo. Partem, portanto, de lógicas diferenciadas: enquanto
a CAN se inicia com uma perspectiva protecionista e voltada para uma
institucionalidade mais autônoma (supranacional), o MERCOSUL ca-
racteriza-se pela preocupação com a inserção comercial internacional e a
intergovernamentalidade.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Houve entre os dois uma convergência de estratégias na última dé-
cada: ambos passaram uma reformulação de suas estratégias com o primei-
ro assimilando a lógica do regionalismo aberto, enquanto o MERCOSUL
passou por um processo de ampliação e de proposta de aprofundamento
sob inuência da onda de regionalismo pós-liberal.
No entanto, as propostas de aprofundamento nesses casos tendem
a retomar compromissos anteriormente assumidos, mas não cumpridos, e
à ampliação institucional de caráter consultivo, com pouca inuência so-
bre os processos decisórios. Em suma, há uma participação social formal
nos processos de integração latino-americanos que é marginal e irrelevante
para a denição dos rumos tomados por esses processos.
Diante dessa realidade, a contribuição das propostas do regiona-
lismo pós-liberal foram importantes para estabelecer novas perspectivas em
relação ao que devem ser os processos de integração regional, especialmen-
te para países em desenvolvimento, chamando a atenção para uma agenda
de negociação que se desvincula da abertura comercial e da adequação às
pressões do sistema internacional.
Porém, não conseguiram estabelecer estratégias e mecanismos
capazes de garantir a sua continuidade, porque permaneceram presas à
percepção de que bastariam as vontades políticas dos governos para levar
adiante esses processos. Com a possibilidade do m da chamada Onda
Rosa, aumentam as incertezas sobre a continuidade desses projetos de in-
tegração e, principalmente, de sua agenda inovadora.
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
3.
TRANSBORDAMENTO DO CONFLITO COLOMBIANO
NA ÁREA DE FRONTEIRA COLOMBO-EQUATORIANA:
CULTIVOS ILÍCITOS, NARCOTRÁFICO,
PLANO COLÔMBIA
Mónica Montana Martínez
Este artigo objetiva sintetizar parte do mini-curso ministrado na
Universidade Estadual de Marília, em agosto de 2015, onde foram aborda-
dos temas relativos à produção de cultivos ilícitos, o narcotráco nas áreas
de fronteira andino-amazônicas e o impacto do Plano Colômbia, especi-
camente na fronteira entre Equador e Colômbia. Espaço onde as aspersões
aéreas realizadas pelo Estado colombiano para combater os plantios ilícitos
resultou no estabelecimento de um processo jurídico internacional inédito
na América do Sul, realçando os efeitos transnacionais do uso do glifosa-
to nas aspersões e a importância de serem discutidas questões relativas à
segurança humana. Procura-se elucidar aqui as circunstâncias em que o
processo se produziu, no marco do Plano Colômbia.
1 A TRADIÇÃO CULTURAL E AS PLANTÕES DE COCA
O ancestral cultivo da planta de coca, o qual se desenvolve nas
regiões de oresta de altitude e de nevoeiro (GEOAMAZÔNIA, 2008,
p. 83), passou a ser considerado um delicado e crescente problema no
contexto amazônico. O aumento signicativo desses cultivos em nais da
década de 1970 e a atuação de diversas organizações paralelas ao poder do
https://doi.org/10.36311/2020.978-85-7983-801-9.p41-64
Raal Salatini (Org.)

Estado, começaram a mostrar uma dinâmica societal inquietante na região
amazônica que exigia atenta vigilância dos Estados.
Junto à expansão dos cultivos de coca, somaram-se outras cultu-
ras, como a papoula, ambas destinadas à fabricação de entorpecentes. Além
disso, a atuação do crime organizado e do narcotráco nas áreas de fronteira
dos países andino-amazônicos, bem como a presença e atuação violenta de
grupos subversivos no espaço amazônico colocaram em pauta novas e velhas
discussões a respeito da segurança regional e da segurança humana
1
.
O aumento dos cultivos ilícitos e do narcotráco em países pro-
dutores de coca, como Bolívia, Colômbia e Peru, teve signicativas reper-
cussões sociais, ambientais e de segurança (no seu conceito tradicional), as
quais têm gerado sérias preocupações tanto em nível local como regional,
tanto pelos impactos transnacionais dessas dinâmicas, quanto pela sempre
temida ameaça de intervenção dos Estados Unidos na região.
No caso do conito interno colombiano, sua associação a grupos
terroristas e ao narcotráco potencializa essas ameaças. Com isso, um olhar
atento do governo norte-americano na América do Sul se fez presente.
As tensões diplomáticas entre Equador e Colômbia, na primeira
década do século 21, vincularam um delicado quadro de realidades socie-
tais e políticas, revelando vários problemas locais de efeito transnacional.
Nesse sentido, as estratégias de combate aos cultivos ilícitos, ao narcotrá-
co e ao terrorismo, temas que a seguir serão tratados, mostraram uma
complexidade capaz de colocar em risco a paz na região.
À seriedade dos problemas que enfrenta Colômbia – associados à
violência, a grupos insurgentes, ao terrorismo, ao narcotráco e aos cultivos
ilícitos –, deve somar-se a necessária mudança de percepção ambiental e de se-
gurança humana. Assuntos que o país terá que incluir na sua agenda doméstica
para não enfrentar novos processos judiciais na Corte Suprema Internacional.
1
Que o enfoque do tradicional conceito de segurança nacional – baseado na preocupação estratégico militar
de preparação para a guerra tradicional – se ampliou com o m da Guerra Fria devido ao surgimento de novos
desaos no contexto internacional. Assim, a luta pela corrida armamentista passou a não ser mais o principal
meio para garantir a segurança dos Estados. Ameaças provindas de problemas ambientais e ecológicos, assim
como do narcotráco, do terrorismo, da pobreza, das doenças endêmicas como Aids, das migrações, entre
outras, colocaram ao descoberto que problemas de caráter transnacional deveriam ser percebidos com maior
atenção. Dessa forma, surgindo uma reexão acerca das tradicionais denições de segurança (VILLA, 2001;
MONTANA, 2012; QUEIROZ, 2012).

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
As aspersões aéreas realizadas pelo Estado colombiano na área de
fronteira com Equador, para combater os plantios ilícitos, resultaram no es-
tabelecimento de um processo jurídico internacional na Corte Internacional
de Haia. Um caso inédito, com viés ambiental, que merece ser tratado ora
em sua particularidade, mas, sobretudo, no marco de um contexto multidi-
mensional por sua estreita relação com assuntos de segurança humana.
Elucidar as circunstâncias em que este processo se produziu é o
objetivo central deste artigo. Busca-se descrever o cenário regional e as
principais dinâmicas mundiais em que o Plano Colômbia foi concebido.
2 VULNERABILIDADE DAS FRONTEIRAS AMAZÔNICAS
Equador e Colômbia dois países andino-amazônicos cujas rela-
ções diplomáticas tradicionalmente foram pacícas, viram-se envolvidos
recentemente numa série de controvérsias as quais deixaram principalmen-
te ao descoberto problemas muito sérios que se alastram, há décadas, na
Amazônia Continental e que são agravados pela existência de forças parale-
las ao poder do Estado, cujos negócios transitam pelas redes do narcotrá-
co. Some-se a isso, a falta de percepção de que os problemas locais afetam a
região como um todo e que a pouca articulação política dos países vizinhos
e a corrupção, termina por induzir o fortalecimento do crime organizado,
da violência, da insegurança humana e da insegurança ambiental na região;
além de colocar em risco a paz regional.
O enfoque do tradicional conceito de segurança nacional – basea-
do na preocupação estratégico militar de preparação para a guerra tradicio-
nal – se ampliou com o m da Guerra Fria devido ao surgimento de novos
desaos no contexto internacional. Assim, a luta pela corrida armamentista
passou a não ser mais o principal meio para garantir a segurança dos Estados.
Ameaças provindas de problemas ambientais e ecológicos, assim
como do narcotráco, do terrorismo, da pobreza, das doenças endêmicas
como AIDS, das migrações, entre outras, colocaram ao descoberto que
problemas de caráter transnacional deveriam ser percebidos com maior
atenção por parte dos Estados, surgindo uma reexão mais ampla acerca
das tradicionais denições de segurança.
Raal Salatini (Org.)

Os novos desaos do contexto internacional trouxeram conceitos
mais abrangentes, como o conceito de segurança humana. A segurança hu-
mana compreende conforme Elliott (1998, p. 61) duas dimensões: a pri-
meira entende que o conceito de segurança humana não parece se encaixar
mais no conceito convencional de Estado, nem de fronteira e nem da inte-
gridade territorial. Isso implica que não é ao Estado, mas aos indivíduos e
às comunidades aos que se deve garantir a segurança. O autor sugere ainda
que mesmo o Estado que não convive com ameaças externas ou instabi-
lidades internas deve garantir a segurança da sua população. Proteger os
indivíduos e as comunidades das consequências da deterioração ambiental
(neste caso) é, pois, considerado um aspecto de segurança. Assim a existên-
cia de comunidades e indivíduos afetados ou fragilizados (econômica, so-
cial, política ou ambientalmente) constitui uma fonte de enfraquecimento
dos níveis de segurança do Estado.
A implantação do Plano Colômbia, a instabilidade interna viven-
ciada pela República colombiana e os diferentes ilícitos na área de fronteira
vinculados ao narcotráco e às narco-guerrilhas foram minando as relações
cordiais entre Equador e Colômbia desde o ano 2000, encontrando um
ponto crítico no ano 2008, época em que ocorreram dois graves conitos
2
,
que, na nossa visão, estão intimamente correlacionados através dos atores
que nele intervieram e nas dinâmicas que há décadas acontecem no espaço
amazônico. Para entender melhor essas relações vejamos alguns dos para-
doxos amazônicos e posteriormente, o contexto em que o Plano Colômbia
foi concebido.
2
Em primeira instância, o uso do letal glifosato nas aspersões aéreas deu início às controvérsias sobre a
pertinência dos métodos colombianos para erradicar os cultivos ilícitos no país, afetando a saúde da população
equatoriana, os rios, os solos, as plantações e os animais daquelas populações na área de fronteira. Igualmente
estava o fato de serem muitas dessas populações grupos indígenas e ribeirinhos dependentes da pesca e da caça.
Em segunda instância, um assunto relevante desse caso é sua relação com a segurança humana, já que além
dos aspectos ambientais traz à tona a migração de populações para escapar da violência imposta pela guerrilha,
narcotracantes, paramilitares ou do próprio Estado – ao combater a insurgência ou os ilícitos, agravando a
situação na área de fronteira entre os dois países.

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3 O FLAGELO DA POBREZA, OS CULTIVOS ILÍCITOS, O NARCOTRÁFICO E AS
NARCO-GUERRILHAS
No cenário internacional, a Amazônia Continental
3
é conheci-
da como uma região com notável destaque ecológico e ambiental. Poucas
vezes é considerada com um espaço de rica diversidade étnica, cultural e
linguística, prevalecendo uma visão de vazio amazônico ou de vazio de-
mográco. O fato dos próprios países amazônicos estarem de costas para
essas áreas, alimenta tal visão. Salvo localizadas exceções
4
, persiste entre os
países uma visão periférica sobre suas áreas amazônicas. O resultado dis-
so tem sido erros nas políticas públicas, baixo investimento na saúde, na
educação, na segurança, em obras de infra-estrutura, na preservação hidro-
ambiental; além de resultados signicativos na promoção de um desenvol-
vimento realmente sustentável. Paradoxalmente, nessas carências emergem
diversas atividades ilícitas e forças transnacionais capazes de afetar as rela-
ções societais e ambientais.
A existência de grandes sistemas naturais, abundante riqueza bio-
lógica, mineral, orestal e hídrica, contrasta com a pobreza, quase genera-
lizada, da sua população. Os baixos índices de desenvolvimento humano
nas regiões amazônicas são evidentes se comparados ao resto de seus países
(ARAGÓN, 2005; GEOAMAZÔNIA, 2008). O desemprego e o analfa-
betismo são comuns na maior parte dos Estados Amazônicos.
As atividades econômicas não diferem muito, concentram-se no
extrativismo (vegetal e mineral) e a agropecuária. Como se sabe, os lucros
dessas atividades não chegam até a população, devido a isso, paralelamen-
te, são realizadas atividades clandestinas (contrabando de gemas, biopirata-
ria, cultivos ilícitos, tráco de armas, pessoas e entorpecentes).
Nesse espaço regional, de dimensões continentais, com uma su-
perfície total de 13.598.187 km², isolado geogracamente por enormes
rios e orestas, prevalecem condições de isolamento não apenas físicos,
3
Tomando por base os critérios bioma amazônico, a Amazônia Continental está constituída pelos Estados de
Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela e pelo Departamento Ultramarinho
da França.
4
Dos países amazônicos, o Brasil continua a ser o Estado que mais estimula a ocupação do seu espaço ama-
zônico, que corresponde a 67% do seu território nacional. O Projeto Calha Norte direciona-se nesse sentido e
vários programas visualizam o desenvolvimento da Amazônia, nos moldes do PAC. Iniciativas, que também tem
cobrado ao Brasil diversas críticas pelos impactos negativos sobre a ambiência amazônica.
Raal Salatini (Org.)

mas político. Essas condições e características tornam, por sua vez, vulne-
ráveis as fronteiras
5
, permitindo que na imensidão amazônica coexista um
variado número de atores, além dos Estados nacionais
6
, atuando com ns
lícitos e ilícitos. Por outro lado, a incipiente presença do Estado contrasta
com a atuação de robustas organizações criminosas que impõem violência
e terror, atuando para além das fronteiras e dedicadas entre outras ativida-
des ilícitas ao narcotráco
7
.
A insurgência armada, caso especico de Colômbia e Peru, au-
menta os índices da violência em seus Estados. Em tais circunstâncias, alte-
rações culturais e sociais ocorrem, afetando à população (grupos indígenas,
ribeirinhos, castanheiros e coletores de sementes, entre outros povoadores),
assim como modicações ambientais e econômicas de difícil quanticação,
tanto local como transfronteiriçamente. Sem esquecer, dos impactos nega-
tivos na segurança humana e na segurança dos Estados, devido à atuação
difusa de atores entre as fronteiras, vinculados através do crime organizado.
A interligação desses problemas com a segurança regional e suas
consequências societais atingem de forma diversa as localidades e a região
como um todo e, em maior grau as populações locais. Apesar disso, os pro-
blemas na Amazônia e suas dinâmicas não têm sido abordados de forma
integrada e cooperativa pelos países fronteiriços. Contrariamente, as orga-
nizações criminosas vêm operando em redes sosticadas com altos níveis
de articulação e cooperação.
5
O vazio demográco, conjugado com o acirramento dos conitos indígenas e fundiários, é uma constante
preocupação do Estado brasileiro. Teme-se que esse vazio venha a favorecer a prática de atividades ilegais nas zo-
nas de fronteira, tornando-as mais vulneráveis interna e externamente, tal como se expõe no Relatório Pressões
sobre a Amazônia, pág. 27.
6
As relações internacionais se tecem entre Estados, Forças Transnacionais e Organizações Internacionais
Governamentais. As Forças Transnacionais (FTs) representam uxos privados múltiplos ligados à sociedade
civil (comunicações, transportes, nanças e pessoas) que afetam a política dos Estados tanto positiva quanto
negativamente (PECEQUILLO, 2010, p. 26). Nesse grupo, porém, também estão as organizações criminosas
e os chamados grupos paralelos ao poder do Estado. Cabe destacar que as Organizações Não-Governamentais
(ONGs), as Multinacionais (ou Companhias Multinacionais ou Transnacionais, os Grupos Diversos da
sociedade civil e, por m, a Opinião Pública Internacional representam as (FTs). As Organizações Internacionais
Governamentais (OIGs) referem-se aos grupos políticos formados por Estados que surgem como espaços de
negociação diplomática e construção de consensos, estabelecendo relações diretas entre os Estados que facilitem
a mediação de suas relações, a cooperação e a perseguição de objetivos comuns.
7
Uma lista bastante detalhada de atividades e negócios ilícitos é apresentada por Procópio (2007, p. 206). O autor
faz referência, por exemplo, às extrações ilegais de ouro e pedras preciosas entre as quais diamantes, muitos deles
extraídos de áreas indígenas. Indica um crescimento no contrabando de todo tipo de gemas, aumento no tráco
de pessoas, armas, e drogas. Junto a isso, destaca a corrupção nas áreas de fronteira dos países amazônicos e faz
menção também à incipiente presença do Estado, em meio à formação de redes criminosas altamente sosticadas.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Assim, resulta evidente observar que sob formas diversas a
Amazônia Continental constituiu-se em um espaço no qual ora interagem,
ora confrontam-se, de um lado, os Estados Nacionais, ciosos de sua sobera-
nia, e uma extensa gama de atores domésticos e internacionais para os quais
a região é, antes de tudo, ou tão somente, um espaço de oportunidades para
a realização de interesses em variados campos: do econômico, de onde pro-
vêm impulsos e processos cada vez mais vigorosos para o acesso a recursos, à
segurança, onde ressaltam, como principais desaos, a escassa presença dos
Estados (VAZ, 2005, p. 7). Deriva desse último aspecto, uma intrincada ma-
lha de problemas locais e regionais, através dos cultivos ilícitos, do narcotrá-
co e da atuação de guerrilhas e redes criminosas, onde a segurança humana
e a segurança estatal e regional constantemente estão sendo minadas.
4 COLÔMBIA: ENTRE A ESPADA E A PAREDE
Colômbia há mais de seis décadas suporta o agelo da violência
urbana e rural. Guerrilhas, narcotráco, terrorismo, forças paramilitares e
corrupção. Esses são alguns dos ingredientes do coquetel que vitima a mi-
lhões de colombianos numa mistura de vários tipos de conitos e violência
e vários tipos de atores que fragilizam o Estado colombiano.
A atuação e o envolvimento da guerrilha com o narcotráco, sua
presença e domínio numa porção extensa da Amazônia colombiana, a in-
capacidade por parte do Estado para lidar com esses atores e o incremento
de cultivos ilícitos na Amazônia colombiana, veio a fortalecer e justicar
programas bilaterais entre a Casa Branca e o Palácio de Nariño, para com-
bater alguns desses problemas.
Durante as décadas de 1970-1980 houve um gradativo incre-
mento de cultivos ilícitos (coca, papoula, maconha) na Bolívia, Colômbia
e Peru vericando-se nos dois últimos países extensas áreas com planta-
ções de coca, inclusive em terras indígenas. Estudos de Pizarro (2006);
Geoamazônia (2008) e Viecco (2008) coincidem em armar que nessa
época houve um aumento dos cultivos ilícitos, nesses países, dando espe-
cial destaque a Colômbia, país que se tornou o maior fornecedor de entor-
pecentes que ingressavam aos Estados Unidos da América.
Raal Salatini (Org.)

Os EUA, ator relevante no combate ao uso de entorpecentes e
narcotráco passaram a ocupar-se de reforçar internamente seu aparato
de repressão aos narcóticos; política que vinha sendo desenvolvida desde
1973, época em que foi criada a Drug Enforcement Agency Administration
(DEA) (CASTRO, 2009).
Para Tena (2000, p. 15) a DEA, “acumulou as funções de cuidar
da política antidrogas dentro do próprio país e das ações contra o narco-
tráco no exterior”. Era evidente que o problema dos narcóticos passou
a ser considerado um assunto de segurança nacional, ocupando lugar de
destaque nas políticas domésticas norte-americanas, nessa e nas décadas
seguintes, razão pela qual Estados Unidos passou a se xar de forma mais
acentuada no Estado colombiano. País que, além de ser produtor de coca e
outros plantios ilegais, mostrava destemidas redes de narcotracantes atu-
antes em várias áreas da Colômbia. Ao mesmo tempo, o país era cenário
de conitos internos provocados pela insurgência armada
8
, o terrorismo
9
e
a atuação diversicadas de redes criminosas, cujos negócios transitavam de
forma direta ou indireta pelo narcotráco (PIZARRO, 2006).
Podemos considerar que nos anos de 1980, durante o governo
de Ronald Reagan, a política de combate às drogas foi ganhando cada
vez “mais relevância na agenda interna e externa norte-americana, sobre-
tudo no que diz respeito ao seu relacionamento com a América Latina
(SANTOS, 2006, p. 180). Assim, sendo a Colômbia a fonte primária da
cocaína que entrava nos Estados Unidos e palco de um conito interno,
irregular, prolongado e com raízes ideológicas, começaram a se elaborar
estratégias de combate a esses problemas e atores paralelos ao poder do
Estado. A estratégia andina, por exemplo, se encaminhou nesse sentido,
abrangendo também a Bolívia e o Peru (PIZARRO, 2006).
8
Isto porque, no início da década de 1980, tal como destacado por Santos (2006, p. 171) quando ainda estava
em causa o combate ao comunismo, a administração Reagan procurou associar o tráco de drogas proveniente
da América Latina a grupos comunistas e terroristas que conspiravam contra a saúde, a higiene, a moral, os
valores, a segurança e o poder norte-americano. As supostas ligações entre grupos guerrilheiros comunistas e
o narcotráco, foram amplamente manipuladas de forma retórica e propagandista para criar um clima entre a
população que justicasse um envolvimento mais efetivo dos EUA na luta contra aquilo que foi convencionado
pela diplomacia norte-americana como “narco-terrorismo”.
9
Em 1982, foi aprovada a Defense Autorization Act, que permitiu o exército norte-americano participar da luta
contra as drogas. Em abril de 1986, o governo Reagan incorporou à doutrina de segurança nacional a National
Security Decision Directive (NSDD), que estabelecia a aliança entre terrorismo de esquerda e narcotráco como
uma ameaça letal para a segurança nacional dos EUA (SANTOS, 2006, p. 171).

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Durante o governo Bush, a mesma linha se manteve. Os proble-
mas relacionados com os entorpecentes e o narcotráco eram encarados
como graves ameaças nacionais
10
. Apesar dos esforços colombianos por er-
radicar e/ou controlar esses problemas internos, as décadas de 1980 e 1990
terminaram com episódios violentos devido a inúmeros combates entre
os atores à margem da lei e o Estado. Adicionalmente, na década de 1990
e na primeira década do novo século, os plantios de coca e outras plantas
alucinógenas aumentaram de forma considerável na região amazônica e,
os cartéis da droga iniciaram uma brutal onda de violência para evitar as
negociações de extradição.
Assim, em lugar de ser atacado e reprimido o problema do consu-
mo nos Estados Unidos, passou-se a pressionar a Colômbia pelos escassos
resultados conseguidos no combate à erradicação manual dos plantios ilí-
citos e ao narcotráco. Por outro lado, há que lembrar que na Colômbia,
apesar da declarada guerra aos narcotracantes nos anos de 1980, as áreas
com cultivos ilícitos continuaram a aumentar, num processo de hibridação
com as forças insurgentes atuantes no país. Estudos do Geoamazônia (2008,
p. 83) vericaram que na Colômbia a área cultivada de 15.600 hectares de
coca em 1985, passou para 85.750 hectares em 2005. Isso signica, confor-
me os estudos dessa entidade, que a superfície cultivada com coca no país
cresceu 4,5 vezes ao longo de 19 anos. Esse período de tempo coincide com
a consolidação e xação de grupos guerrilheiros na Amazônia colombiana
11
.
Uma promiscua relação que surgiu entre o crime organizado e a insurgência,
encontrando nos cultivos ilícitos e no narcotráco novos meios de nancia-
mento para a luta armada no país, além das extorsões e dos sequestros.
Nessa direção, um dado interessante é apresentado por Vieco
(2001), indicando que até o nal de 1980 os cultivos de coca e a expansão da
10
Conforme destacado por Martins Filho (2006, p. 16), num discurso de 1989, Bush declarou que “a mais
grave ameaça doméstica que nossa nação enfrenta hoje são as drogas”. Cabe mencionar que foi nesse contexto
que posteriormente foi anunciada a Iniciativa Andina, política que pretendia reduzir o montante de drogas
que entravam nos Estados Unidos. Para alguns estudiosos, essa iniciativa marcou o início de signicativo for-
necimento de recursos aos países daquela área e selou a reorientação do interesse central dos Estados Unidos na
América Latina – do comunismo na América Central para a guerra contra as drogas na Região Andina, tal como
salientado por Martins Filho (2006, p. 16-17).
11
Sabe-se que com a exploração mineira, iniciada no início da década dos anos de 1980, nos estados de
Guainía (Serranía de Naquén, rio Guainía, rio Inírida) e Vaupés (Taraira), a presença guerrilheira tornou-se
mais estável e beligerante com as tomas do corregimento de Mirití, Amazonas e de Mitú, comenzando-se assim
a sentar as bases para o ulterior desenvolvimento do conito social colombiano (VIECO, 2001).
Raal Salatini (Org.)

área sob o domínio das guerrilhas na Amazônia oriental colombiana cresceu
e se estendeu até os estados de Guianía e Vaupés; posteriormente, atingindo
o estado de Amazonas em menor escala. Já na década de 1990, conforme
aquele autor, essa dinâmica e seus conitos chegaram à última fronteira, que
era o estado do Amazonas vinculado às atividades ilícitas da guerrilha, que na
época, controlavam quase 75% do espaço territorial colombiano.
Constatando o fato e incorporando um novo ator, importante no
contexto do conito armado, Pizarro (2006, p. 146) arma que “os movi-
mentos guerrilheiros e grupos paramilitares incorporaram-se na década de
1980 ao complexo mundo do narcotráco, desempenhando papeis dife-
renciados de acordo com as diversas etapas da cadeia produtiva do narco-
tráco”. Pizarro (2006, p. 129) destaca também que as guerrilhas, a partir
de 1980, passaram de um estado de crescimento vegetativo a um processo
de expansão exponencial, isto relacionado “à dupla dinâmica de extorsão
dos produtores de coca, petróleo, ouro, banana e também, de modo cada
vez mais intenso, ao vínculo direto com as diversas etapas produtivas pre-
sentes no narcotráco”.
Através de sistemas de monitoramento foi detectado o cresci-
mento das plantações de coca na tríplice fronteira entre Colômbia, Peru e
Equador. Em tal dimensão, o Departamento de Putumayo, fronteira com
os dois países, foi considerado uma área crítica de expansão das planta-
ções. A localização e operação da guerrilha nessa área, tal como expõem
as pesquisas de Vieco e Pizarro, está diretamente associada à expansão dos
cultivos ilícitos e à propagação da violência contra as populações locais. As
quais eram desapropriadas das suas terras de forma violenta ou incorpora-
das à cadeia produtiva ou às atividades subversivas. Assim, a atuação cada
vez mais ousada e violenta do narcotráco; a presença de grupos armados
à margem da lei em áreas de fronteira amazônicas, os ataques terroristas e
a intensa onda de violência vivenciada no país, tendo como pano de fundo
os acordos de extradição de narcotracantes para os Estados Unidos, incre-
mentaram a observância daquele país não apenas na Colômbia, mas sobre
o resto da América do Sul.
Essa situação se acentuou após os ataques do onze de setembro de
2001. De fato, na primeira década do século XXI, inuenciada pelas mu-
danças da ordem internacional e pelos efeitos dos ataques terroristas de 11

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
de setembro a Nova York e a Washington, em 2001, se intensicou a aten-
ção sobre América do Sul, seus problemas e suas fronteiras. Nessa direção,
Colômbia voltou a ser foco das atenções, quando em 2003, as forças insur-
gentes colombianas (FARC e o ELN) foram elevadas pelo Departamento
de Estado Americano à categoria de organizações terroristas. A esse nível
também foram elevadas as organizações paramilitares, comumente chama-
das de “Autodefesas”.
Nesse quadro complexo de atores e conitos internos, a Colômbia
passou a ser amplamente pressionada
12
e, nesse pano de fundo, embora su-
cintamente apresentado, nasce o Plano Colômbia. Proposta que entre outras
questões estratégicas passou a incluir uma multiplicidade de ações, que com-
preendiam ajuda especica a projetos de aspersão de plantios ilícitos, atividades
de inteligência e apoio a operações de interdição terrestre, aérea e ribeirinha.
Implicando também no fortalecimento das forças armadas colombianas
13
.
Mesmo com uma situação que justicava o apoio norte-ameri-
cano à república colombiana, o Plano Colômbia não foi visto com bons
olhos pelos países da América do Sul, tanto por questões relacionadas com
o trato soberano de cada país a seus conitos internos, como pelas conse-
quências imprevistas da ingerência de atores externos à região, sabidamen-
te, os Estados Unidos de América.
A Amazônia colombiana, peruana e boliviana, pelos diversos ato-
res e dinâmicas vinculadas a ilícitos, a saber, grupos subversivos, parami-
litares e narcoguerrilha, passaram a ser uma área de atenção especial. De
12
Embora existindo um evidente nexo entre atores transnacionais e problemas locais no caso colombiano,
essas dinâmicas aconteceram num contexto mundial de transformações. Nesse sentido são esclarecedoras as
armações de Santos (2006, p. 170) citando Vélez Quero (2003) quando faz a seguinte armação: “Vários
países foram acusados pelos EUA de serem os responsáveis pelo alto consumo de drogas no país, incapazes
de eliminar a economia ilegal gerada pela política de combate às drogas dentro do seu próprio país os norte-
-americanos começaram a pressionar os países produtores de substâncias alucinógenas para que adotassem uma
legislação antidrogas semelhante à dos EUA”. Essa visão torna-se interessante na medida em que as políticas
norte-americanas se estabeleceram em um Estado amplamente fragilizado pelos conitos internos. Os resultados
obtidos de combate ao narcotráco estão muito longe de serem os esperados pelo governo americano, cando na
Colômbia os maiores e piores efeitos enquanto o negócio das drogas prospera, tendo como maior consumidor os
Estados Unidos. ência norte-americana na região. Conforme salientado por Santos (2006, p. 171) no período
do entre-guerras, a resistência européia e a intransigência norte-americana nas negociações impediram a ecácia
de tratados internacionais de combate aos narcóticos. “Porém, cada vez mais cava claro que o crescente poder
norte-americano no sistema internacional faria, cedo ou tarde, predominar o seu modelo de combate às drogas”.
13
No caso peruano, conforme Jazadji (2012), o recrudescimento da plantação de coca é atribuído a despreparo
e corrupção das forças policiais e à transmutação em narcotracantes de remanescentes da guerrilha Sendero
Luminoso.
Raal Salatini (Org.)

modo que, as áreas de fronteira com a Colômbia tornavam-se cada vez
mais vulneráveis à ingerência norte-americana, fato que causou descon-
forto regional quando anunciado o Plano Colômbia, preocupando espe-
cialmente a países como Brasil e Venezuela, que viam com desconança a
ingerência de países externos em problemas locais.
Assim, associada à defesa da Amazônia, proliferaram as percep-
ções brasileiras sobre a ameaça de ingerência, enquanto cou evidente que
os países vizinhos da Colômbia, com relativo peso regional, isolaram o país
com seus problemas
14
, minimizando a importância das forças transnacio-
nais atuantes em suas fronteiras e a gravidade das possíveis consequências
societais, até que foi assinado o Plano Colômbia. Contudo, cabe reconhe-
cer também que, tal como salienta Santos (2006, p. 170) os esforços dos
EUA no sentido de internacionalizar a sua política de combate às drogas
nunca estiveram relacionados somente a um problema de saúde pública
mundial, mas também a objetivos diplomáticos, geopolíticos e comerciais.
Para Santos (2006, p. 170) daí decorre a Diplomacia das Drogas, con-
duzida por estrategistas de relações exteriores dos EUA. Não é à toa que,
em vários momentos do século XX e início do XXI, o Departamento de
Estado norte-americano procurou associar o tema do tráco de drogas com
a criminalidade, o comunismo e o terrorismo, justicando assim possíveis
intervenções externas estratégicas.
Nesse sentido cabe destacar que, embora o Plano Colômbia te-
nha sido apresentado à opinião pública como um programa antinarcóticos
e não como uma estratégia contra-insurgente, é evidente, como destaca
Pizarro (2006, p. 150), que por trás da intenção de debilitar o narcotráco,
ocultava-se a idéia de enfraquecer as forças guerrilheiras e paramilitares.
Os acontecimentos do 11 de setembro permitiram ao governo Bush pro-
clamar abertamente o que antes era secreto: o caráter contra-insurgente e
contra-paramilitar da ajuda norte-americana.
14
A esse respeito, Procópio (2007, p. 209) arma que: “o silêncio obsequioso do pragmatismo circunstancial de algumas
das diplomacias amazônicas une a inação”. Diante dos numerosos e crescentes exemplos de intervenção externa no
cenário da luta contra as drogas, o agir conforme as circunstâncias do presente, sem olhar para o passado ou para o futuro,
prepara terreno para intervenções em nome do que mais sensibilizar a opinião pública internacional.
Para Procópio (2009, p. 22), “Los temores políticos a atacar aliados corruptos por médio de la eliminación de fuentes
de renta que utilizan dinero lavado tornaron impotentes las políticas de combate a las drogas. A pesar de décadas de
resultados magros, el problema del crimen organizado aún es tratado de manera bilateral, es decir, cada caso um caso. Se
niega una visión de conjunto a una desgracia que afecta a todos”.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
5 O PLANO COLÔMBIA: SEUS EFEITOS NA ÁREA DE FRONTEIRA COM EQUADOR
A implantação do Plano Colômbia em 2000 e a instabilidade in-
terna vivenciada pela república colombiana foram situações que afetaram
negativamente e de formas diversas as relações entre Equador e Colômbia.
Em primeira instância, o uso do letal glifosato, utilizado nas aspersões aé-
reas deu início às controvérsias sobre a pertinência dos métodos colombia-
nos para erradicar os cultivos ilícitos no país, na medida em que afetava
transnacionalmente a saúde da população equatoriana, danicava os rios,
os solos, as plantações e os animais daquelas populações na área de fron-
teira. Igualmente estava o fato de serem muitas dessas populações grupos
indígenas e ribeirinhos dependentes da pesca e da caça, que, ao ser afetados
pelo tóxico implicava em ameaças concretas à sua saúde e sobrevivência.
Em segunda instância, a migração de grupos guerrilheiros para
território equatoriano, devido ao combate intensivo das áreas de plantação
da coca, e as pressões militares, no combate ao narcotráco e às narcoguer-
rilhas, foram ações que deterioraram as relações cordiais entre os países
andiano-amazônicos, desde 2001. A isso somava-se o fato de as incursões
militares colombianas serem realizadas sem autorização expressa das auto-
ridades equatorianas.
Por outro lado, a interferência de atores como o presiden-
te da Venezuela, naquele momento, Hugo Chávez, foram agravando
drasticamente as relações entre os países, como será abordado a seguir.
Adicionalmente, as diferenças políticas entre os presidentes Uribe e Correa,
acirradas por Chávez manifestando apoio público aos movimentos subver-
sivos colombianos, explicitamente às FARC, e as críticas à implantação do
Plano Colômbia, detonaram no ano 2008 graves tensões não apenas entre
Colômbia e Equador, mas entre a Colômbia e a Venezuela, até que Uribe
saiu do poder.
O ano de 2007 terminou com evidentes tensões entre Equador e
Colômbia. De uma parte, estava o assunto delicado das aspersões com gli-
fosato e, do outro, a incursão guerrilheira no território equatoriano. Além
disso, começaram naquele período, mútuos e agressivos ataques entre os
dois representantes do governo, atiçadas pelo presidente Hugo Chávez,
com respeito às acusações que fazia o governo colombiano, de que Equador
Raal Salatini (Org.)

e Venezuela estavam oferecendo cobertura à expansão de uma mal que car-
comia não somente a Colômbia, mas aos países vizinhos: o narcotráco e
as narcoguerrilhas.
O presidente Uribe, em diversas oportunidades, respondeu aos
ataques verbais de Chávez e de Correa dando avisos de que, a qualquer
custo, iria combater os insurgentes e o narcotráco. Uma vez que, sabia da
presença de células subversivas nas áreas de fronteira com esses países, sem
que houvesse cooperação no controle militar das mesmas. Foi assim, que,
na madrugada de 1º de março de 2008 seus anúncios foram cumpridos,
quando foi bombardeada uma base clandestina das FARC, instalada na
província equatoriana de Sucumbios (área de fronteira).
A incursão de forças militares e efetivos policias colombianos, para
recolher os corpos de dois subversivos mortos na operação militar, detona-
ram o primeiro grave conito, dada a visível violação do espaço aéreo e ter-
ritorial equatoriano. Posteriormente, Equador instaurou a demanda contra
Colômbia pelos efeitos transnacionais do uso do glifosato na área de frontei-
ra, trinta dias após, o evento de Sucumbios, perante a Corte Internacional
de Haia. Com esse recurso Equador buscou conforme exposto pela Chaceler
equatoriana Maria Isabel Salvador três objetivos chaves:
(1) O reconhecimento da Corte de Haia de que Colômbia vio-
lou a soberania e a integridade territorial do Equador com sua prática de
aspersões aéreas ilegais e os consequentes danos à população e à ambiência
equatorianas; (2) pretende-se que o Tribunal (que é o órgão judicial princi-
pal das nações Unidas) ordene a Colômbia abster-se de executar aspersões
a uma distância de dez quilômetros desde a fronteira. (3) Pagamento de
indenização pelos danos já causados.
6 TENSÕES DIPLOMÁTICAS PELO USO DO GLIFOSATO
A Amazônia colombiana compreende 42% do território nacio-
nal. É formada por oito estados
15
e alguns deles fazem fronteira com Brasil,
Equador e Peru. Essa região colombiana se caracteriza por ser a zona menos
populosa do país. Isso de deve em boa parte à presença de forças paralelas
15
Putumayo, Caquetá, Guaviare, Guainía, Vaupés, Amazonas, Meta e Vichada.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
ao poder do Estado
16
, às precárias condições de vida e à os altos índices de
violência e insegurança na região
17
. Aos problemas de expansão de cultivos
ilícitos nessa região se somaram aqueles derivados do processamento da
cocaína e da multiplicação de laboratórios, a comando das narcoguerrilhas
e de outros atores à margem da lei, vinculados às diferentes redes do narco-
tráco na região (VIECO, 2001; PIZARRO, 2006; PROCÓPIO, 2009).
O estado de Putumayo estabelece limite internacional com
Equador e Peru. Nele, se chegou a concentrar 50% da coca produzida no
país (MONTEIRO, 2008); desse modo, as aspersões aéreas com herbici-
das, entre eles o glifosato
18
, foram altamente utilizadas junto a procedimen-
tos de erradicação manual no marco do Plano Colômbia, que, como se
sabe, concentrou diversas estratégias nessa área, incluindo maior presença
militar. Desde 2000, as aspersões se zeram cada vez mais frequentes em
aquele estado, tendo como argumento que a erradicação manual por tra-
tar-se de áreas extensas com plantios ilícitos inviabilizava bons resultados
de erradicação das roças de coca.
Adicionalmente, por ser uma área sob comando das FARC, eram
cada vez mais intensos os ataques às forças repressivas do governo para
impedir a destruição dos plantios ilícitos. A localização de Putumayo, na
fronteira internacional da Colômbia com o Equador e o Peru, tornava-
-se inquietante para seus vizinhos, toda vez que de uma intervenção de
tamanha magnitude poderiam esperar-se resultados societais e ambientais
imprevisíveis. Nessa direção, Montana (2012, p. 200) arma que entre
os impactos societais produzidos pelo combate e erradicação dos plantios
ilícitos de forma localizada está também a mudança de operações de um
16
Nesses estados atuam em áreas demarcadas as FARC e o ELN (entre outras forças insugentes); as AUC,
narcotracantes e o crime comum.
17
De uma parte, falta de infra-estruturas físicas e pela outra, maior presença do Estado. Conforme Pizarro
(2006, p. 69), “é possível estabelecer uma relação causal entre as carências da população em termos de neces-
sidades básicas insatisfeitas; ausência do Estado; e a presença guerrilheira”. Ver a esse respeito os estudos de
CUBIDES et al., 1998. Também os estudos de ECHANDIA, 1999.
18
O Glifosato (N-fosfonometil-glicina) é um herbicida de amplo espectro, aplicado após a planta ter emergido do
solo (pos-emergente) e é de ação não-seletiva. O Glifosato, conforme pesquisas toxicológicas, tem baixa toxicidade
para mamíferos que não inibem a enzima acetilcolinesterase. Os solventes usados em formulações comerciais, no
entanto, podem alterar as propriedades toxicológicas. O glifosato é um produto registrado em mais de 100 países
e pode ser vendido em combinação com outros herbicidas. (<http://ltc.nutes.ufrj.br/toxicologia/mXII.glifo.htm>.
Acesso em: mar. 2012). O princípio ativo do glifosato, empregado no fumigar com o herbicida Roundup, produ-
zido pela Monsantos, para o extermínio das plantações de coca causam irritação da pele e nos olhos.
Raal Salatini (Org.)

lugar a outro e de um país a outro
19
, o que signica dizer, riscos ambientais
e de segurança para a população local ou transfronteiriça.
Os relatos a seguir evidenciam um conjunto de situações locais
altamente complexas; não apenas derivadas da implantação do Plano
Colômbia, que efetivamente teve repercussões negativas no Equador, mas
porque mostram o isolamento colombiano na luta de seus problemas in-
ternos. Indicando, por sua vez, que a luta antinarcóticos e as promessas de
repressão aos ilícitos transnacionais, comuns no cenário amazônico, jamais
cresceram como esforço conjunto e multilateral que permita abrir cami-
nhos para estratégias integradas e cooperativas de segurança na Amazônia,
com todas as implicações que isso tem no âmbito regional.
A república equatoriana se viu afetada pelas estratégias do Plano
Colômbia em três dimensões principais. Devido à aplicação de herbici-
das tóxicos no combate às plantações de coca, bem como pela migração
da insurgência armada ao território equatoriano e de populações locais
que fugiam da violência, e devido à violação do espaço aéreo e terrestre
equatoriano ou durante as aspersões ou em ações militares de combate à
insurgência armada.
Os movimentos sociais, as ONGs e as comunidades epistêmicas
tiveram um papel fundamental para trazer à tona a insegurança ambiental
e humana, que os métodos colombianos impunham, em ambos os países.
Desde que começaram as aspersões, em aéreas de fronteira, esses atores
deram passo a uma série de denuncias sobre mudanças na saúde da po-
pulação local e até de óbito de pessoas, ao longo do tempo que as asper-
sões duraram, sendo apontada como causa dos óbitos intoxicação quími-
ca. Igualmente foram constatadas irritações na pele e olhos de pacientes
que tiveram contato com herbicidas ligados com glifosato (MONTANA,
2012). As denuncias começaram em 2001 e, somaram-se estudos acadê-
micos de universidades equatorianas, que conrmaram problemas em ani-
mais e na ambiência (solo, ar, águas superciais e subterrâneas) associados
ao uso do glifosato (MONTANA, 2012).
De 2001 a 2008 houve conforme, Montana (2012, p. 284-286),
notável articulação de movimentos sociais e ambientalistas, bem como, dos
19
Fato agravado pelas condições naturais do espaço amazônico e pela escassa presença do Estado.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
meios acadêmicos e de ONGs equatorianas, comprometidas com os direi-
tos humanos e particularmente com direitos indigenistas, contrárias ao uso
do glifosato. Da mesma forma, houve intensa troca de informações entre
atores desse tipo na Colômbia e entre os dois países. Essa dinâmica foi fun-
damental, conforme destacado por Montana (2012, p. 206), para que no
Equador se exercessem pressões para que esses assuntos chegassem ao nível
de discussão política interestatal, ora pelas consequências sobre a saúde hu-
mana, animal e da ambiência, ora pelos efeitos colaterais dos mecanismos
de combate aos cultivos ilícitos, ao narcotráco e à narcoguerrilha.
Com respeito a esses atores, é válido mencionar o Programa Andino
para la Democracia y los Derechos Humanos de la Unión Europea en Colombia,
na medida em que apresentaram diversas bases cientícas contra o uso do
glifosato, de forma articulada com grupos epistêmicos de reconhecidos cen-
tros acadêmicos colombianos. A Defensoría del Pueblo del Ecuador, alicerçada
em um estudo cientíco realizado em 10 mulheres equatorianas e 12 colom-
bianas, entregue ao governo do Equador, apresentou provas de que o uso de
glifosato tem sérias consequências sobre a saúde, relacionadas com o câncer
e a malformação de crianças indígenas. A área de estudo abrange localidades
próximas ao rio San Miguel e, no estudo, a incidência desses fenômenos foi
associada ao inicio das aspersões (MONTANA, 2012).
Outros estudos realizados no rio Putumayo, também revelaram
alterações no ecossistema aquático e terrestre, além de plantações queima-
das pelo efeito do glifosato. No meio aquático os resíduos de herbicidas se
mostraram altamente destrutivos, tendo como consequência a perda das
espécies mais sensíveis a seu efeito, o que, consequentemente, foi associa-
do às possibilidades de se causarem desequilíbrios nos ecossistemas. Com
esses estudos preliminares se iniciaram as controvérsias entre o Equador
e a Colômbia acerca da periculosidade e dos efeitos de herbicidas liga-
dos ao glifosato. Posteriormente, estudos mais sosticados, solicitados pela
Defensoría del Pueblo del Ecuador, foram realizados numa amostra maior de
mulheres e crianças, em estudos sanguíneos. Esses informes vieram a dar
suporte para que o presidente Correa tenta-se uma solução diplomática
ante o presidente Uribe.
Coincidindo com a posição norte-americana, Colômbia argumen-
tou, ante os primeiros manifestos de Equador, que o uso de herbicidas liga-
Raal Salatini (Org.)

dos ao glifosato não teriam impactos severos e nem permanentes, passando
a defender seu uso por ser inofensivo à saúde humana. Assim, com as duas
nações imbuídas de perspectivas opostas, ao longo de pelo menos 6 anos,
tentar resolver essa questão por via diplomática não rendeu uma solução
para o problema levantado por Equador. As pressões internas no Equador
pelas ONGs e grupos ambientalistas, por causa dessas questões, continua-
ram a provocar esforços diplomáticos para que os dois países tentassem um
acordo para pôr m às aspersões com glifosato numa faixa não inferior a 10
km da fronteira entre Colômbia e Equador. Esse foi o pedido que fez Rafael
Correia em 2003. A grave situação de instabilidade interna vivenciada pela
Colômbia, na área de fronteira, reetiu-se negativamente no relacionamento
com o país vizinho, que, além das reclamações pelos efeitos das aspersões,
queixava-se da violação do espaço aéreo equatoriano, quando as aeronaves
contratadas pela Colômbia lançavam os herbicidas
20
, daí a solicitação de
Correa para que se respeitasse pelo menos 10 Km de distância.
Assim, ao nal de 2003, Equador e Colômbia acordaram em es-
tabelecer uma comissão cientíca e técnica, formada especialmente para
investigar os efeitos das aspersões no Equador. As delegações também não
conseguiram chegar a um acordo quanto aos efeitos desse tipo de asper-
sões, e o Equador seguiu promovendo denúncias a respeito dos efeitos
nocivos das ações colombianas. Nesse estágio de insucesso começou o ano
2004. Nesta altura, Correa também reclamou do aumento de migrantes
colombianos para o território equatoriano, por causa da violência. Além
disso, protestou das incursões militares realizadas por ordem do governo de
Uribe sem autorização expressa das autoridades equatorianas.
Devido a essas pressões, em dezembro de 2005, o governo co-
lombiano pronunciou-se a favor de cessar as aspersões aéreas em áreas com
distância menor do que 10 km da fronteira. Assim, a pedido do gover-
no equatoriano, as aspersões com glifosato foram suspensas nas áreas co-
lombianas limítrofes com o Equador em janeiro de 2006, mas de forma
temporária, já que em dezembro desse mesmo ano, Colômbia veio a ser
pressionada pelos Estados Unidos
21
por maiores resultados para combater
20
As aeronaves da DAINCO eram dirigidas por pilotos norte-americanos e a violação mencionada por Equador
referia-se à curva que a aeronave faz para retornar ao espaço aéreo colombiano.
21
Isso pode estar relacionado com o fato de que, desde a criação do Plano Colômbia, os EUA já destinaram
cerca de US$ 5 bilhões ao país andino para o combate ao cultivo ilegal da coca, e a tracantes, guerrilheiros e

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
o narcotráco, e em razão do aumento dos cultivos ilícitos, a Colômbia
voltou a lançar seus herbicidas, incluindo glifosato, como mecanismo de
combate às plantações de coca. Cabe destacar que, naquele ano, apesar dos
esforços colombianos para erradicar manualmente os cultivos da planta,
conforme a Casa de Nariño (2008), registrou-se no país um aumento de
26% desses cultivos naquela área.
Colômbia, de acordo com Monteiro (2008), manteve-se a maior
produtora mundial de coca entre 2004 e 2005. Esses dados conferem com as
estatísticas sobre o aumento dos cultivos ilícitos na Amazônia colombiana,
do Geoamazônia (2008), que indicaram, também, grande aumento no des-
matamento para a plantação dessa cultura para países como Peru e Bolívia.
Colômbia retomou o método de combate aos cultivos ilícitos
mediante as aspersões aéreas com glifosato. Mas, o não atendimento de se
respeitar 10 km de distância da fronteira e nem a suspensão do método de
aspersões ocasionou a demanda de Equador na Corte Interamericana de
Direitos Humanos, fundamentada nos malefícios causados pelos herbici-
das misturados com glifosato à população, à produção agrícola da fronteira
equatoriana e aos sistemas aquáticos. A deterioração das relações cordiais
entre os presidentes Uribe e Correa de 2003 a 2008 seguiu uma linha
ascendente.
Em abril de 2007, a Comisión Cientíca Ecuatoriana divulgou o
relatório El Sistema de Aspersiones Aéreas del Plan Colombia y Sus Impactos
sobre el Ecosistema y la Salud en la Frontera Ecuatoriana
22
, visando contra-
por-se à argumentação do governo colombiano que subestimava a pericu-
losidade de herbicidas ligados ao glifosato. Com base nesse relatório, nova-
mente Equador pediu pela segunda vez que o governo preservasse a faixa
dos 10 km a partir do limite internacional. E o presidente Correa vinha
exigindo um compromisso por escrito do presidente colombiano a sus-
pensão denitiva das aspersões naquela faixa de fronteira. Ante os pedidos
de Correa, em 28 de maio de 2007, o ministro das relações exteriores da
Colômbia, Fernando Araújo Perdomo, armou em uma reunião entre os
países, que a Colômbia não estava em uma posição de fazer compromissos
paramilitares, que fornecem cerca de 90% de toda a cocaína consumida aos estadunidenses.
22
Ver relatório disponível em: <http://www.indepaz.org.co/wp-content/uploads/2015/05/
InformeComisionEcuatorianaaspersionaerea_julio-07.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2015.
Raal Salatini (Org.)

com relação ao tema das aspersões, tampouco de predizer o que deveria ser
decidido no futuro, em relação ao tema.
Diante disso, o Equador informou à Colômbia, em nota diplo-
mática, expedida em 27 de julho de 2007, que considerava esgotado o
processo de diálogo, já que não havia perspectivas de êxito. Colômbia ar-
gumentou que na época foram incrementados programas de erradicação
manual, mas considerou inadequado adquirir um compromisso sem limite
de tempo, principalmente devido aos riscos e os custos em matéria de segu-
rança e de vidas humanas que têm signicado os programas de erradicação
manual, já postos em prática na área de conito e em geral na Amazônia
23
.
Entretanto, houve um reconhecimento por parte da Colômbia de estar
afetando a saúde da população equatoriana, conrmando ao Equador o
pagamento de indenizações, assim que apresentassem provas concretas e
irrefutáveis que ligassem os efeitos nocivos das aspersões com danos am-
bientais transfronteiriços ou na população equatoriana.
Colômbia justicou a impossibilidade de intensicar programas
de erradicação manual da coca, uma vez que as áreas com cultivos ilícitos
são extensas e a erradicação manual não apresentaria os resultados espe-
rados. Adicionalmente, foi argumentado que os programas desse tipo so-
mente incrementaram a violência na região; aludindo-se à periculosidade
dessa medida para as forças militares, policiais e para a população civil,
uma vez que, em diversas ocasiões, as FARC atacaram tanto militares como
civis, tendo sido contabilizados pelo governo colombiano vários ataques da
guerrilha, que se incrementaram desde 2004, ano em que as aspersões aére-
as foram menos frequentes. Esse ano de 2007 também testemunhou mú-
tuas e agressivas acusações entre os dois representantes do governo devido
a suas posições políticas divergentes, as quais eram atiçadas pelo apoio que
o presidente Hugo Chávez manifestava às FARC, criticando abertamente
os métodos do Plano Colômbia.
Com o m das tentativas diplomáticas, uma demanda contra a
Colômbia foi apresentada pelo embaixador Diego Cordovéz, perante a
23
Além dos 40 casos registrados pelo governo colombiano de ataques das FARC desde território equatoriano,
foi lembrado que os atos terroristas se incrementaram em nais de 2007 e começos de 2008 porque as FARC
ativavam minas anti-pessoais contra os militares que protegiam os erradicadores manuais de coca em território
colombiano, elevando as cifras de mortes na área. Pronunciamento ocial da Casa de Nariño, em Bogotá, em
31 de março de 2008.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Corte Internacional da Haia, em 31 de março de 2008. Segundo manifes-
tou tempo depois
24
, tratar-se-ia de um processo inédito, que pretendia de-
fender os direitos de populações indígenas equatorianas e o ambiente como
um todo integrado. No processo contra Colômbia, Equador pediu que a
Corte obrigasse a esse país a pôr m, denitivamente, às aspersões em áreas
que o pudessem afetar, com base nos princípios do Direito Internacional,
alicerçado, segundo o qual o Direito Internacional proíbe que um Estado
provoque dano à população de um Estado vizinho, sobre tudo, dentro do
território desse último.
Nessa perspectiva, este caso de Colômbia e Equador é um pro-
cesso especial que interliga diversas consequências hidro-sócioambientais,
deixando um precedente jurídico positivo que destaca relações conexas de
forma muito estreita com aspectos que permeiam ameaças à segurança hu-
mana em ampla dimensão. Tal como se depreende das explanações apre-
sentadas anteriormente.
O processo instaurado pelo Equador, argumentando dano trans-
fronteiriço, ocasionado pelas aspersões aéreas, é uma mostra da evolução
da preocupação com esses tipos de conitos, principalmente, pelas ONGs
ambientalistas e indigenistas. Seu ineditismo poderá converter-se num íco-
ne em matéria jurídica ambiental e de direitos humanos na América do
Sul, uma vez que estão elencados à segurança humana e ambiental.
Em 2009, no mês de maio, os países envolvidos apresentaram
o memorial, na Corte de Haia, contendo todas as provas para o caso ser
julgado. Conforme o embaixador Cordovez, existem provas técnicas que
demonstram que o espaço aéreo do Equador foi violado repetidas vezes
pelas naves que aplicavam o glifosato. Além disso, os relatórios cientícos
apresentam sucientes provas da sua periculosidade para os ecossistemas
aquáticos, terrestres e para a população, arma Cordovez.
Em 2014 o Equador e a Colômbia chegaram a um acordo, nali-
zando o processo instaurado na Corte da Haia. O Estado colombiano pa-
gou indenização pelos danos causados a Equador, sendo o caso encerrado.
De modo a concluir, todo esse processo representa uma intrin-
cada malha de problemas domésticos, com consequências regionais. Os
24
Entrevista de Diego Cordovez concedida à Radio Nederland Servicio Español em março de 2009.
Raal Salatini (Org.)

fenômenos vinculados ao narcotráco, a guerrilha e aos cultivos ilícitos,
além de impactar a segurança dos Estados, lesa de forma signicativa a
segurança humana e ambiental.
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Raal Salatini (Org.)


4.
GRAMSCI E A HEGEMONIA CULTURAL
NO PLANO INTERNACIONAL
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
1 INTRODUÇÃO
A 
samento de Antonio Gramsci é sempre um dado recorrente no senso

munista sardo uma abordagem enfaticamente situada na cultura como


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principal foco deste artigo.
O artigo se propõe a discutir em caráter introdutório o tema em
dois momentos antes de apontar considerações nais conclusivas: o pe-
ríodo pré-carcerário e o período carcerário. Em todas as etapas do texto,
buscar-se-á mostrar como a hegemonia cultural em sua manifestação inter-
Raal Salatini (Org.)

nacional tem um enorme alcance e potencial analítico na pouco sistemáti-
ca e inconclusa obra gramsciana.
Antes de prosseguir, faz-se necessária a denição da categoria em
pauta. Ao contrário do que é normalmente sugerido por um certo sen-
so comum acadêmico, a categoria de hegemonia na ótica gramsciana não
pode ser reduzida a uma forma dual em termos de hegemonia e contra-he-
gemonia ou hegemonia e ausência de hegemonia (GRAMSCI, 1975). A
hegemonia é verdadeira concepção de mundo dominante e principalmente
dirigente abrangendo inúmeros aspectos de menor ou maior magnitude
e amplitude, uma categoria de múltiplas dimensões, moral, intelectual,
ético-política, econômica, social etc. em termos de força e principalmen-
te consenso (nas formas completas de hegemonia) de um grupo social,
classe ou fração de classe sobre outros grupos e classes, com o predomínio
deste último nas suas formas mais completas, que ltra através das estru-
turas sociais elementos referentes a cultura, etnicidade, gênero, classe e
ideologia (GRAMSCI, 1975; MORTON, 2007, p. 114)
1
. A construção e
transmissão da hegemonia se dão no que Gramsci denominou de aparatos
privados de construção da mesma. No âmbito da sociedade civil (o lócus da
construção do conjunto das relações sociais e dos conitos, organicamente
ligada ao Estado na acepção gramsciana) é que se manifesta a hegemonia.
A hegemonia não é dual porque toda ação almeja a hegemonia mesmo
sem exercê-la. A partir disto é justicado o porquê de todo ação e em-
bate políticos serem aspirantes à hegemonia, não congurando sentido,
portanto, na caracterização de uma “contra-hegemonia” ou “ausência de
hegemonia”. O fato de não haver tanto no período pré-prisional, quanto
1
O fato de Gramsci jamais ter referido em sua obra a categorias hoje usadas no meio acadêmico como
etnicidade e gênero não é a rigor um impedimento para o entendimento de que possa existir um nexo entre
as categorias mencionadas e o conceito de hegemonia. Tal compreensão é justicada metodologicamente
por meio de uma categoria de importância central para Gramsci, a saber, designada metaforicamente como
tradutibilidade” ou “traducibilidade” ou simplesmente “tradução”. Tal como no ato de verter de uma língua
para outra, um signicado, em vários casos, nunca pode ser transposto literalmente, estritamente sob pena de
tal mecanicismo não conferir sentido. Considerando que o sentido da obra gramsciana é dotado, antes de mais
nada, de um historicismo absoluto em consonância com uma “tradução”, uma ressignicação adequada às
particularidades históricas, sociais, culturais etc. no âmbito de uma totalidade, entende-se ser cabível situar o
nexo entre hegemonia, gênero e etnicidade. Tal raciocínio cumpre, assim, um papel de adequação às discussões,
transformações e atualizações históricas de conceitos e categorias. A eventualidade de tratar de uma “contra-
hegemonia” teria que ser trabalhada e justicada em termos semelhantes de forma a justicar seu emprego,
muito embora tal possibilidade seja totalmente ignorada pelos intérpretes de Gramsci que fazem uso de tal
conceito. A popularização da noção de contra-hegemonia se deveu, muito provavelmente, a Raymond Williams
(1977) justamente na sua discussão sobre temas da cultura e da literatura.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
na etapa do cárcere uma referência a uma “contra-hegemonia” é denota-
tiva, ao menos em parte, do raciocínio aqui empreendido. Em sua obra
carcerária, Gramsci admite também formas incompletas de manifestação
concreta e histórica da hegemonia, como a categoria de revolução passiva,
na qual predomina a força e não o consenso expresso pelo Estado em um
conjunto de complexos e distintos processos que poderíamos resumir gros-
seiramente como “modernizações conservadoras”.
A rigor, não se separa, a não ser metodologicamente, a hegemonia
em sua feição nacional daquela existente no plano internacional. Há um
nexo orgânico entre estes dois níveis da mesma forma como a questão cul-
tural não se desvincula das outras dimensões que compõem tal categoria.
Para concluir este tópico introdutório, algumas palavras do au-
tor italiano em pauta sobre a cultura, por ele assim denida (GRAMSCI,
1917 apud DIAS, 2007, p. 68):
[D]ou à cultura este signicado: exercício do pensamento, aquisição
de idéias gerais, hábito de conectar causas e efeitos. Para mim, todos
já são cultos, porque todos pensam, todos conectam causas e efeitos.
Mas o são empiricamente [...] não organicamente. E assim como sei
que a cultura é também um conceito basilar do socialismo, porque
integra e concretiza o vago conceito de liberdade do pensamento, assim
gostaria também que ele fosse vivicado por outro. Pelo de organiza-
ção. Organizemos a cultura, assim como buscamos organizar toda a
atividade prática.
Gramsci vincula a cultura ao devir concreto, prático, muito em-
bora sua abordagem de tal conceito também verse especicamente sobre
as manifestações culturais artísticas, conforme poder-se-á constatar mais
adiante no presente texto.
2 O PERÍODO PRÉ-CARCERÁRIO
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como categoria analítica componente do arsenal teórico gramsciano
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Raal Salatini (Org.)

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Fernandes Dias (2000, p. 16), enunciaram posições distintas.
Coutinho entende ser a categoria em questão uma particulari-
dade da elaboração gramsciana muito próxima do seu período carcerário,
não havendo pertinência em situá-la de forma alguma no período anterior,
ponto com o qual Dias discorda totalmente. Dias sustenta que a despeito
da não enunciação sistemática e expressa do conceito de hegemonia no
período pré-carcerário, o raciocínio a ela referente aparece em aspectos
da intervenção militante e da ensaística reexão teórica de Gramsci já em
1916, faltando-lhe apenas a denominação de “hegemonia”. O presente
texto endossa a tese de Edmundo Dias. Existem na elaboração gramsciana
do período pré-carcerário inúmeros elementos que podem ser remetidos a
uma concepção dirigente de mundo mais ampla em vários aspectos, entre
eles, a cultura em sua manifestação no plano internacional. Corrobora tal
perspectiva a análise de Boothman (2008, p. 202-203), segundo o qual
havia a constatação de uma hegemonia linguística italiana em cidades pró-
ximas ao Mar Adriático então pertencentes ao Império Austro-Húngaro.
Além disto, Boothman menciona artigos e debates no Critica Sociale, prin-
cipal órgão de discussão teórica do Partido Socialista Italiano, nos anos de
1916 e 1917 (PSI)
2
, sobre os temas das guerras hegemônicas e as relações
ítalo-sérvias pela hegemonia no Mar Adriático.
A título de demonstração disto, é relevante mencionar que em
relevante escrito no qual Gramsci polemiza com seus companheiros do
Partido Socialista em 1916, Tasca e Bordiga, já aparece o tema da constru-
ção hegemônica também de forma indireta, tratando a luta militar como
embate no campo da cultura. No trecho reproduzido abaixo, Gramsci tra-
ta, entre outros temas, da luta no campo da hegemonia cultural envolven-
do as idéias da Revolução Francesa:
Foi ele mesmo uma magníca revolução, mediante a qual, como ob-
serva agudamente De Sanctis em sua Storia della letteratura italiana,
formou-se em toda a Europa uma consciência unitária, uma inter-
nacional espiritual burguesa, sensível em todas os seus elementos às
dores e às desgraças comuns, e que foi a melhor preparação para a
2
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
Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
sangrenta revolta que depois teve lugar na França. Na Itália, na França,
na Alemanha, discutiam-se as mesmas coisas, as mesmas instituições,
os mesmos princípios. Toda nova comédia de Voltaire, todo novo
pamphlet era a centelha que passava pelos os já tensos entre Estado e
Estado, entre região e região, encontrando por toda parte e ao mesmo
tempo os mesmos defensores e os mesmos opositores. As baionetas de
Napoleão encontravam o caminho já preparado por um exército invi-
sível de livros, de opúsculos, que vinham de Paris como enxames desde
a primeira metade do século XVIII e que haviam preparado homens e
instituições para a necessária renovação. (GRAMSCI, 2004, p. 59-60).
A própria formação do jovem Gramsci, fortemente marcada pe-
las inuências e posteriores reelaborações das idéias do lósofo napolitano
neohegeliano Benedetto Crocce com as quais travou contato. A repercus-
são européia de suas idéias põe a perspectiva da hegemonia cultural em
contexto internacional. O trecho abaixo, extraído de estudo de Daniela
Mussi (2015, p. 16) sobre o tema da cultura na trajetória gramsciana, elu-
cida tais considerações:
As ideias que orientavam esta reforma cultural de Croce tiveram enor-
me difusão no início do século XX, sendo absorvidas e discutidas, di-
reta ou indiretamente, no contexto intelectual europeu [...] Na Itália,
sua obra constituiu a base para a formação de gerações inteiras de inte-
lectuais, interessados na crítica ao positivismo e na armação de uma
relação orgânica entre história e losoa, entre cultura e pensamento.
Entre os jovens que tomavam contato com este movimento neoidea-
lista nos anos 1910 e especialmente no contexto da guerra, estas ideias
não poderiam não ser também um convite a um tipo de engajamento
político-cultural, um estímulo para a fundação de círculos de debates,
periódicos e para a inserção nos debates nacionais e internacionais.
A atividade de Gramsci como redator da imprensa socialista ita-
liana no período pré-carcerário foi fortemente identicada com a educação
cultural, a formação educativa em termos literários, culturais e artísticos
dos operários italianos, como parte daquilo que viria a conceber futura-
mente nos cadernos carcerários como a reforma moral e intelectual neces-
sária para a construção de uma nova hegemonia nos marcos da sociedade
integral, o eufemismo alusiva à sociedade socialista para fugir à censura
carcerária (FIORI, 1979).
Raal Salatini (Org.)

Em suma, face ao exposto acima, é possível observar alguns
elementos, dentre vários, sobre o tema da hegemonia cultural no além-
-fronteiras. Os embates hegemônicos no campo da cultura acompanham
aqueles que se ao nas múltiplas perspectivas que compõem a noção de
hegemonia, todas elas vinculadas organicamente entre si.
3 O PERÍODO CARCERÁRIO

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1) Tópicos de cultura. É ainda possível, no mundo moderno, a hegemo-
nia cultural de uma nação sobre as outras? Ou o mundo já está de tal
modo unicado em sua estrutura econômico-social que um país, mes-
mo podendo ter “cronologicamente” a iniciativa de uma inovação, não
pode porém conservar o monopólio político dela e, portanto, servir-
-se desse monopólio como base de hegemonia? Então, que signicado
pode ter hoje o nacionalismo? Não será ele possível apenas como “im-
perialismo” econômico-nanceiro, e não mais como “primado civil”
ou hegemonia político-intelectual?
2) Rótulos “neolalismo”. O neolalismo como evento indivídual pato-
lógico. Mas ele pode usar a palavra em um sentido metafórico, para
indicar uma variedade de eventos culturais, artísticos, intelectuais?
Quais são todas as escolas artísticas e literárias, se não eventos cultu-
rais do neolalismo? Em tempos de crise, temos a mais extensa lista de
eventos do neolalismo. Linguagem e línguas. Toda expressão tem uma
“linguagem” historicamente determinada, cada atividade intelectual e
moral: que a linguagem é o que também é chamado de “técnica” e
também estrutura. Se um escritor iria começar a escrever numa língua
3
A distinção entre textos “A”, “B” e “C” em conformidade com a organização dos textos carcerários de Gramsci
organizados pela equipe de pesquisadores coordenada por Valentino Gerratana e contemplada na edição crítica
italiana dos cadernos carcerários (GRAMSCI, 1975) diz respeito, respectivamente, a textos de primeira redação,
textos de redação única e textos gramscianos de segunda redação com alterações ou não.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
pessoalmente arbitrária (ou seja, tornar-se um “neolalista” no sentido
patológico da palavra) e foi imitado por outros, ele fala uma “Babel” de
línguas. A mesma impressão que você não testar para a linguagem (fo-
lha) de música, pictórico, plástico etc. Este ponto tem de ser conside-
rado e meditado. Do ponto de vista da história da cultura e, portanto,
também a “criação” cultural (não deve ser confundida com a “criação
artística”, mas em vez de abordar o “político” – e, de fato, nesse sentido,
podemos falar de uma “política cultural”) entre a arte literária e outras
artes (gurativas e de música ou orquestra) há uma diferença que deve
ser denida e claricada por isso, teoricamente justicada e compreen-
sível. O termo “verbal” tem uma cultura nacional-popular estritamen-
te; um poema de Goethe, no original, pode ser entendido e apreciado
apenas por um alemão; Dante pode car entendido e revivido apenas
por um etc. italiano capturado. Uma estátua de Michelangelo, uma
canção Musical de Verdi, um ballet russo, uma pintura por Raphael
etc. pode ser entendida quase imediatamente por qualquer cidadão do
mundo, nem mesmo cosmopolita, mesmo se não passar o círculo es-
treito de uma província de seu país. No entanto, esta é assim apenas
em aparência, supercialmente. A emoção artística que um japonês ou
um julgamento perante um painel de Raphael ou ouvir uma música
de Verdi é uma emoção artística; o mesmo ou japonesa Sami não não
podia car indiferente e sem brilho que escuta a recitar um poema
de Dante, de Goethe, de Shelley; portanto, há uma profunda dife-
rença entre a expressão “verbal”, e as artes gurativas, musicais etc.
No entanto, a emoção artística do japonês ou do laponiano ante uma
pintura de Raphael ou diante de um trecho de música de Verdi não
será da mesma intensidade e calor da emoção artística de uma italiana
mediana e muito menos do que um italiano culto. Que é adjacente
ou melhor a expressão de um “cosmopolita” da linguagem da música,
pintura etc., “internacional”, há uma estreita substância cultural mais
profunda, mais “nacional-popular”. Não é suciente: o grau dessa “lin-
guagem” é diferente: há um grau “nacional-popular” (e muitas vezes
antes disso um grau provincial-dialeto-folk), então um grau em uma
civilização” especíca, que pode ser determinada pela religião (para o
exame piedoso cristão, mas é dividido em católicos e protestantes e or-
todoxos etc.), e também, no mundo moderno, de uma certa “corrente
político-cultural”. Durante a guerra, por exemplo, um orador inglês,
francês, russo, não podia falar para um público italiano em sua língua
e ser compreendido sobre a devastação alemã na Bélgica: se o público
simpatizava com o orador, se essa é a sua maneira de pensar que coinci-
diu com a do orador, o público ouviu atentamente e “seguiu” o orador,
você pode dizer que o “compreendesse”. É verdade que a oratória não é
o único elemento da “palavra”: há o gesto, o tom de voz, etc., que é um
elemento musical que se comunica o leitmotiv de sentimento predomi-
nante, a paixão e o elemento principal “orquestral” no sentido amplo,
Raal Salatini (Org.)

que articula e articula a onda sentimental e passional. Para uma cultura
política das massas estas observações são essenciais são fundamentais.
Essa é a razão para o “sucesso” do cinema internacional moderno e,
em primeiro lugar, o “melodrama” em particular da música em geral.
(GRAMSCI, 1975, Q9, §132, p. 1192-1194, tradução nossa).
4

concisa:
Hegemonia político-cultural. É ainda possível, no mundo moderno, a he-
gemonia cultural de uma nação sobre as outras? Ou o mundo já está
de tal modo unicado em sua estrutura econômico-social que um país,
mesmo podendo ter “cronologicamente” a iniciativa de uma inovação,
não pode porém conservar o monopólio político dela e, portanto, servir-
-se desse monopólio como base de hegemonia? Então, que signicado
pode ter hoje o nacionalismo? Não será ele possível apenas como “impe-
rialismo” econômico-nanceiro, e não mais como “primado” civil ou he-
gemonia político-intelectual? (GRAMSCI, 1975, Q13, §26, p. 1618).
5
A discussão das semelhanças e diferenças dos trechos suscita enor-
me gama de temas.
Nos dois parágrafos reproduzidos, Gramsci problematiza se existe
um único tempo, um único grau de desenvolvimento das forças da vida
ou uma certa homogeneização neste aspecto de modo a possibilitar uma
hegemonia cultural de um Estado sobre outros. Gramsci ainda questiona
se o monopólio de uma inovação técnica pode ser a base de uma hegemo-
nia. Questiona também o papel do nacionalismo e seu alcance em vista do
imperialismo de natureza econômica e nanceira e da hegemonia política
e intelectual. Com uma sutil diferença de aspas no m dos trechos compa-
rados
6
, está é a discussão comum a ambos.
4
“Q” e “§” aludem respectivamente a “caderno” e “parágrafo”, tal como é normalmente mencionado nos
estudos gramscianos para facilitar a referência do leitor às passagens especícas do opus carcerário.
5
A tradução deste trecho foi extraída de um dos volumes da edição brasileira dos cadernos carcerários
gramscianos organizada e traduzida por Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio
Nogueira (GRAMSCI, 2000, p. 75-76).
6
Assim escrito: “primado civil” no texto “A” (parágrafo 132 do caderno 9) e primado “civil” (parágrafo 26 do
caderno 13).

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
No texto de primeira redação, Gramsci questiona o alcance da
língua e da linguagem, das formas de expressão orais, gestuais e artísticas,
concluindo como o cinema e a música são ecientes para além daquilo que
é conhecido no âmbito nacional em termos de certas manifestações artísti-
cas especícas. Certamente, fragmentaria e pouco sistematicamente mente
iniciou uma reexão sobre o alcance dos meios de comunicação no plano
internacional para a avaliação da hegemonia no âmbito internacional, visto
que, como pôde ser visto na redação, a sua elaboração não avançou além
do trecho aqui reproduzido.
A propósito do tema da hegemonia cultural, registre-se um fato
importante na vida de Gramsci por ocasião da escrita destes trechos. O
provável ano comum à elaboração dos dois trechos, 1932, registra uma
carta datada de 2 de maio a sua cunhada, Tania Schucht. Encontramos nela
o seguinte trecho sobre o tema em pauta (GRAMSCI, 2005, p. 194-195):
Pode-se dizer concretamente que Croce, na atividade histórico-polí-
tica, acentua unicamente aquele momento que, na política, se chama
de “hegemonia”, do consenso, da direção cultural, para distingui-lo do
momento da força, da coerção, da intervenção legislativa e estatal ou
policial. Na verdade, não se compreende por que Croce acredita que
esta formulação da teoria da história seja capaz de liquidar denitiva-
mente toda e qualquer losoa da práxis
7
. O fato é que, mesmo no
período em que Croce elaborava este seu suposto porrete, a losoa
da práxis, em seus maiores teóricos modernos, era trabalhada no mes-
mo sentido e, deste fato, o momento da “hegemonia”, ou da direção
cultural era sistematicamente revalorizado, em oposição às concepções
mecanicistas e fatalistas do economicismo. Tornou-se até possível ar-
mar que o traço essencial da losoa da práxis mais moderna consiste,
precisamente, no conceito histórico-político de “hegemonia”. Parece-
me, por isso, que Croce não esteja up-to-date em relação ás pesquisas e à
bibliograa de seus estudos preferidos ou tenha perdido sua capacidade
de orientação crítica. Ao que parece, suas informações se baseiam espe-
cialmente no famigerado livro de um jornalista vienense, Fülöp-Miller.
Este ponto deve ser desenvolvido extensa e analiticamente, mas então
seria necessário um ensaio muito longo.
Gramsci, conforme escrito anteriormente, assimilou criticamen-
te Croce. Mas soube entender também o seu inuente alcance papel de
liquidação do marxismo. E Gramsci associa a hegemonia à direção cultural
7
Esclarece-se aqui ser este o eufemismo usado por Gramsci para referir ao marxismo e fugir à censura carcerária.
Raal Salatini (Org.)

e seu caráter histórico-político ao papel do marxismo no sentido de reva-
lorizar tal direção. O prisioneiro de Mussolini reconhece alguns limites da
formulação croceana mas reconhece a necessidade de elaborar um texto
mais longo dedicado a tal temática. Mais um ponto que denota a pouco
sistemática elaboração de Gramsci no cárcere sobre o tema da hegemonia
cultural, reconhecendo o seu amplo alcance e nexo e, portanto, reconhe-
cendo implicitamente o seu papel nacional e internacional. Passemos às
considerações nais deste texto.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se apresentar uma discussão introdutória sobre a hege-
monia cultural no plano internacional em passagens período pré-carcerá-
rio e carcerário da obra de Antonio Gramsci.
Buscou-se demonstrar como a hegemonia cultural está congura-
da como uma categoria que não se restringe à cultura e funde no plano na-
cional e internacional seu alcance e perspectiva analítica. Ao mesmo tem-
po, buscou-se mostrar como algumas referências que Gramsci faz ao tema
em pauta não são desenvolvidas, continuadas e aprofundadas, mostrando
o caráter pouco sistemático de sua obra também neste tema especíco.
Dado o grande alcance deste tema, entende-se que sua análise
merece um espaço em reexões ulteriores.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
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Paulo: Xamã, 2000.
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FRANCIONI, G. L´Ocina Gramsciana: ipotesi sulla strutura del “Quaderni
del carcere”. Nápoles: Bibliopolis, 1984.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
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______. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. v. 3.
______. Socialismo e cultura. In: ______. Escritos políticos (1910-1920). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. 1, p. 56-61.
______. Cartas do Cárcere (volume 2: 1931-1937). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
MORTON, A. D. Unravelling Gramsci: hegemony and passive revolution in the
global political economy. London: Pluto, 2007.
MUSSI, D. Intelectuais e rebeldes: política e cultura em Antonio Gramsci e Piero
Gobetti. 2015. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Instituto de Filosoa e
Ciências Humanas, Universidades Estadual de Campinas, Campinas, 2015.
WILLIAMS, R. Marxism and literature. Oxford: Oxford University, 1977.
Raal Salatini (Org.)


5.
GRAMSCI E COX: APROXIMAÇÕES
E
DESSEMELHANÇAS
1
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
1 INTRODUÇÃO
O pensamento de Antonio Gramsci (1891-1937) é evocado
em ampla miríade de temas a respeito de suas inuências e repercussões nas
humanidades. Entre eles, é possível elencar o tema de sua abordagem sobre
o nexo entre cultura e política, lembrando em particular o foco do autor
referido sobre a cultura italiana.
A particularidade italiana da própria língua de Gramsci no tocan-
te, inclusive, ao estudo mais detalhado de sua obra no âmbito da edição
crítica de seus cadernos carcerários organizada por uma equipe de pesqui-
sadores coordenada por Valentino Gerratana (GRAMSCI, 1975), parece
ser um obstáculo para uma visão mais acurada sobre seu pensamento.
Isto é extensivo àquele autor considerado o principal expoente
da interpretação gramsciana nas Relações Internacionais, o cientista po-
lítico canadense Robert W. Cox. Neste sentido, toma-se como indagação
central deste texto: quais as aproximações e dessemelhanças entre Antonio
Gramsci e Robert W. Cox? No mesmo diapasão da advertência inicial já
1
Este texto integra pesquisa que contou com nanciamento do CNPq (processo 162679-2013-1) e da Fapesp
(processo 2015/07867-5).
Raal Salatini (Org.)

enunciada, a hipótese norteadora deste texto sustenta que as aproximações
entre Gramsci e Cox são muito menores do que um certo senso comum
acadêmico sustenta.
O raciocínio percorrerá sumariamente as seguintes etapas: um
primeiro tópico sumário tratando das aproximações, notadamente referen-
te às noções de hegemonia e de sociedade civil. Demonstrar-se-á sumaria-
mente que o categorial gramsciano é, de modo geral e em termos textuais,
familiar a Cox. Todavia, será apresentada a forma de apropriação de tal
categorial como ensejo para discutir as dessemelhanças. Em outro tópico
sucinto, as dessemelhanças apontarão para diferenças substantivas sobre
o estatuto epistemológico gramsciano e o signicado e uso das categorias
gramscianas por Cox. Nas considerações nais, os principais argumentos
serão resumidos e desdobrados para propostas de outras investigações.
2 APROXIMAÇÕES ENTRE GRAMSCI E COX
As referências a Gramsci por parte de Cox no contexto de sua
teoria crítica das Relações Internacionais remetem com frequência às cate-
gorias de hegemonia e sociedade civil (COX, 1981, 1983). Dada a nature-
za sumária da explanação, denem-se as categorias respectivamente como
uma perspectiva de direção moral e intelectual de coletividades e o con-
junto das relações sociais apartadas do Estado em contexto de participação
democrática. Ressalte-se que tais denições tentam contemplar o modo
como Cox lida com tais categorias.
Entre outros pontos, a periodização coxiana da história aponta
a existência de uma hegemonia britânica, um intervalo sem hegemonia e
um período correspondente à hegemonia norte-americana (COX, 1983).
Por sua vez, a sociedade civil é relatada como o conjunto de entes
e eventos à parte do Estado, em conotação com a ideia de participação de-
mocrática nas instituições e em diversos mecanismos decisórios do Estado.
A unidade orgânica entre Estado e a sociedade civil contemplada na de-
nição gramsciana parece ter sido incorporada no texto seminal de Cox so-
bre a teoria crítica das Relações Internacionais quando trata da tradicional
abordagem que separa os dois planos, negligenciando ponto fundamental
de compreensão do além-fronteiras (COX, 1981, p. 126). Todavia, não é

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
este o sentido recorrente dado por Cox a tal categoria no restante de sua
obra. Além da perspectiva participativa aludida neste parágrafo, a socie-
dade civil aparece na sua dimensão internacional para se referir a organi-
zações, movimentos sociais e reivindicativos do além-fronteiras. No que
tange aos movimentos sociais, Cox não se vê na condição de intelectual
orgânico no sentido gramsciano de qualquer um deles.
Além da própria aplicação da categoria de hegemonia no plano in-
ternacional, também é encontrada na mesma dimensão o conceito de bloco
histórico. Será demonstrado a seguir o quão problemática é tal apreensão de
categorias de origem gramsciana, ao menos no que se refere à sua aparência.
Cox também aborda as categorias de guerra de posição e guerra
de movimento, entendendo ser a perspectiva gramsciana inclinada pela
primeira e não pela segunda na luta pela hegemonia nas sociedades ociden-
tais, diferentemente das sociedades orientais. Por outras palavras, a guerra
de movimento é a forma política como Gramsci se referiu às sociedades
orientais como a da Rússia, na qual o contexto revolucionário de outubro
de 1917 proporcionou a tomada do poder em termos de um assalto frontal
ao aparelho estatal. Por sua vez, a guerra de posição diz respeito a uma luta
paulatina, de ponto a ponto, na luta pela hegemonia, aspecto característico
das sociedades ocidentais.
Em perspectiva que Cox dene como histórica, Cox busca articu-
lar todos estes conceitos em perspectiva de transformação, mudança, o que
parece aproximar-se bastante da abordagem do comunista italiano.
Conclui-se que a nomenclatura associada a Gramsci é aparente
nos seus textos. Todavia, tal uso é livre e pouco acurado. Tal ponto será
demonstrado sumariamente a seguir.
3 DESSEMELHANÇAS ENTRE COX E GRAMSCI
A denição da teoria crítica das Relações Internacionais enseja um
primeiro e signicativo distanciamento de Cox (1981) em relação a Gramsci
no que tange ao estatuto epistemológico de ambos. Todo um conjunto de
comentadores (DEVETAK, 2005, p. 138-139; HALLIDAY, 1999, p. 67;
JAHN, 1998, p. 616-617; MORTON, 2003, p. 153-154; PUGH, 2004,
Raal Salatini (Org.)

p. 40) analisa o empréstimo de Cox em relação a Horkheimer (1991) quan-
do o lósofo alemão diferencia teoria tradicional e teoria crítica quando o
cientista político canadense diferencia teoria crítica e teoria problem-solving
de modo bastante semelhante. Cox acrescenta como agravante várias cate-
gorias de Gramsci ao seu construto teorético sem provavelmente entender as
consequências teóricas em termos de ecletismo epistemológico que isto gera.
Explique-se: por exemplo, na medida em que Cox trabalha com a categoria
gramsciana de hegemonia, ela implica em postura diferente daquela que Cox
usa para diferenciar sua teoria crítica de outras abordagens. A teoria crítica
de Horkheimer tem uma posição essencialmente dual para diferenciar teoria
crítica e teoria tradicional. Para o lósofo alemão, a teoria tradicional está
essencialmente associada ao modo como se raciocina nas ciências da natu-
reza e isto é aplicado às humanidades. A teoria crítica não se baseia em tal
lógica e incorpora uma perspectiva histórica e totalizante em termos de um
nexo entre teoria e práxis. Tal dualismo não é compartilhado por Gramsci, a
despeito de ser também um autor marxista
2
.
Para Gramsci, a superação de uma hegemonia por outra em ter-
mos de construção de um conhecimento crítico toma o conhecimento
tradicional, dentro de certos limites, como ponto de partida (GRAMSCI,
1975, p. 1385-1386). O horizonte gramsciano de reexão enseja a cons-
trução de uma nova hegemonia que proporcione, em seu corolário, a plena
reconciliação entre teoria e prática em processo catártico (de superação de
uma concepção de mundo por outra) de um novo momento ético-político
em favor dos grupos e classes subalternas.
Em sentido semelhante, a perspectiva da categoria de hegemonia
nada tem de dual, em que pese a apropriação coxiana tenda para tal enqua-
dramento. Conforme já anteriormente escrito, Cox entende a existência
de períodos com ou sem hegemonia. Também enuncia os conceitos de
hegemonia e contra-hegemonia (COX, 1983) em que chega até a formular
uma alternativa contra-hegemônica aos Estados Unidos em termos de uma
coalizão terceiro-mundista (COX, 1981, p. 150-151). De forma alterna-
tiva, arma-se que Gramsci associa todo processo histórico e político a
um embate de concepções hegemônicas, mesmo aquelas que não exerçam
tal hegemonia no momento do conito. Portanto, de forma alternativa,
2
Ver mais a respeito em Passos (2013).

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
todo processo político envolve hegemonia, ainda que não concretizada em
perspectiva completa, com o predomínio do consenso. As formas incom-
pletas, coercitivas da hegemonia – expressa, por exemplo no que Gramsci
denominou em sua obra de “revolução passiva
3
” – não são reconhecidas
por Cox. O autor canadense ignora o nexo orgânico entre hegemonia e
revolução passiva, armando que ambas são excludentes entre si. Quando
há revolução passiva, não há hegemonia. Quando há hegemonia, não há
revolução passiva. Portanto, um dualismo que não é compatível com o
historicismo absoluto atinente ás inúmeras possibilidades de manifestação
concreta da hegemonia.
Outro ponto que distancia Cox e Gramsci diz respeito ao modo
como cada um trata a categoria de sociedade civil. Cox vê tal noção em
perspectiva tipicamente liberal, associando o conceito a práticas políticas
democráticas e liberais no âmbito de associações civis e instituições políti-
cas (COX, 1999a, p. 209-236). Menciona que tal categoria gramsciana, no
âmbito da ênfase no consenso, estaria muito mais próxima de Tocqueville
do que de Hegel e Marx (COX, 1999b, p. 7). Cox não considera o sentido
distinto desta noção em Gramsci. A sociedade civil é concebida em termos
de unidade orgânica com o Estado, sendo aceitável sua separação apenas
de uma perspectiva metodológica (GRAMSCI, 1975). Portanto, ela não
se assemelharia a uma perspectiva tradicional liberal em que se encontra
apartado do Estado, tampouco associada somente à participação e ao con-
senso. Ao contrário, como unidade orgânica e dialética, articula força e
consenso, consenso e força. Neste ponto, enaltece-se a centralidade dada
por Gramsci ao centauro maquiaveliano. Em sendo inseparável a parte
humana da parte férica, o mesmo pode ser dito com relação a consenso e
força, força e consenso. Todas se articulam no Estado e na sociedade civil,
na sociedade civil e no Estado
4
.
A apropriação da categoria de sociedade civil por Cox também
incide na sua aplicação no além-fronteiras. A sociedade civil internacio-
3
Trata-se de uma categoria muito complexa encontrada na obra carcerária gramsciana em três diferentes
contextos: O Risorgimento italiano (a unicação italiana) do século XIX, o fascismo italiano e a nascente
hegemonia norte-americana. Grosso modo, pode ser denida como um processo hegemônico incompleto sem a
construção do consenso através da sociedade civil pelas classes dominantes em que prevalece o Estado, a coerção,
de modo a produzir uma espécie de “modernização conservadora”.
4
Para aprofundar mais a respeito de tal linha de raciocínio, consulte-se Bianchi (2007, p. 17-198).
Raal Salatini (Org.)

nal ou transnacional é denida como o conjunto dos movimentos sociais
atuantes no além-fronteiras ou em escala global ou mesmo o conjunto das
organizações internacionais.
Gramsci não faz uso da categoria de sociedade civil internacional
ou transnacional em sua obra carcerária ou pré-carcerária. Um problema
decorrente de tal aplicação no plano internacional diz respeito à unidade
orgânica entre Estado e sociedade civil e é completamente ignorado por
Cox. A saber, tal unidade orgânica conguraria também conguraria um
Estado internacional ou transnacional conjuntamente com uma sociedade
civil internacional ou transnacional. Contudo, tal perspectiva não é con-
templada na reexão de Cox.
Em linha de raciocínio semelhante, aparece a categoria de bloco
histórico aplicada ao além-fronteiras (COX, 1987). Originariamente, a
categoria de bloco histórico é denida por Gramsci como uma articulação
orgânica entre estrutura e superestrutura, política e economia no conjunto
dos processos históricos. A metáfora marxiana de estrutura e superestrutura
para aludir ao conjunto dos aspectos atinentes respectivamente ao Estado e
às relações sociais, políticas e econômicas da base da sociedade é usada por
Gramsci para referir-se ao plano interno de um Estado. Assim, diculdade
teórico-prática semelhante se impõe ao extrapolar uma categoria pensada
originalmente para análise da totalidade do plano interno do Estado e sua
aplicação mecânica no âmbito internacional. Por outras palavras, como
justicar uma superestrutura internacional associada também a um Estado
internacional? Tal problema também não é enfrentado por Cox.
A própria elaboração original da categoria de bloco histórico por
Gramsci enseja um recurso metodológico ignorado por Cox: a “tradução”,
tradutibilidade” ou “traducibilidade” (GRAMSCI, 1975). Gramsci tra-
duziu a categoria em questão de Georges Sorel, originalmente concebida
como “bloco de imagens históricas”. Neste sentido, Gramsci a assimilou e
ressignicou criticamente de modo a compatibilizá-la com sua perspectiva
marxista e de historicismo absoluto.
A tradução gramsciana é uma ressiginicação de caráter não me-
cânico, voltadas para a unicidade e particularidade dos processos históricos,
sociais e culturais em análise, bem como as categorias analíticas empregadas.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Uma das vantagens de tal recurso recorrente na obra gramsciana é evitar-se
o ecletismo, dado que o comunista italiano recorreu a muitos autores para
elaboração de seu pensamento. Outro ponto importante é a adaptação da
denição das categorias à mudança histórica que lhes permeia, fazendo jus
ao seu historicismo absoluto que é peculiar ao seu pensamento.
A ausência de grande conhecimento da obra carcerária e anterior
à prisão é sem dúvida o ponto que elucida uma leitura muito pouco acu-
rada e muito paroquial por Cox, sem elucidar a “tradução” como uma as
principais categorias metodológicas de Gramsci. Entende-se que a despeito
de citar Gramsci, Cox não consegue se livrar da referência originária de sua
trajetória acadêmica, identicada, entre outros, com os parâmetros hege-
mônicos do realismo e do liberalismo das Relações Internacionais. A pers-
pectiva de “contra-hegemonia”, jamais usada por Gramsci e popularizada
provavelmente pelo uso pioneiro de Raymond Williams (1977), poderia
ser objeto de uma justicativa e elaboração para uma aplicação em termos
de uma tradução. O ponto para o qual se enfatiza não pretende apresentar
Gramsci como um profeta ou escriba de obra sagrada e dogmática e sim
como um autor que abriu caminho para uma perspectiva rigorosa e criativa
do marxismo atenta, inclusive, às particularidades da cultura italiana.
A vulgar denição abraçada pelo senso comum e por Cox de in-
telectual orgânico como mentor e líder de partidos políticos e movimentos
sociais também poderia ser objeto de uma tradução caso fosse pensada no
âmbito da particularidade e do conjunto do processo histórico dos séculos
XX e XXI. O intelectual orgânico não ocupa necessariamente a posição su-
gerida pelo senso comum. É, antes, de mais nada, um organizador da cul-
tura e do modo de vida de uma época e contribui de modo acentuado para
a reprodução da concepção de mundo vigente em tal contexto. O funda-
dor da montadora norte-americana Ford, Henry Ford, desempenhou pa-
pel decisivo como intelectual orgânico na concepção e transbordamento de
seu modelo de gestão para uma verdadeira concepção de mundo calcada na
disciplina sexual e de consumo, no proibicionismo alcoólico, na visão sub-
serviente da mulher, no salário maior como pretexto para extração do exce-
dente em termos de mais-valia e pulverização dos sindicatos em entidades
menores e mais enfraquecidas com vistas a tudo o que fosse adequado para
a poupança e o conseqüente consumo em massa. Tal perspectiva fruti-
Raal Salatini (Org.)

cou de modo pujante no período pós-Segunda Guerra Mundial. Ainda no
tocante ao intelectual orgânico, as diferentes classes sociais, grupos, elites
e suas respectivas frações podem ter seus intelectuais orgânicos, inclusive
os grupos e classes subalternas, sem que eles sejam necessariamente líderes
políticos ou algo semelhante.
No esteio dos embates hegemônicos nos quais há o importan-
te papel desempenhado pelos intelectuais orgânicos, há o ensejo para a
discussão relativa ao tema do par categorial gramsciano guerra de posi-
ção e guerra de movimento. Tal par é característico da unidade orgânica
que marca o modo de raciocínio, o caminho metodológico gramsciano.
Portanto, separar a unidade orgânica entre ambas é apenas mais um recur-
so metodológico do pensamento gramsciano
5
. Entretanto, tal separação é
tomada como precípua por Cox. Ele insiste em suposta posição gramsciana
de que seria preferível a luta política calcada na ocupação de espaços grada-
tivos no seio da sociedade civil (COX, 1999b, p. 8), como uma luta polí-
tica expressa pela metáfora da guerra de posição. Há elementos sucientes
nos cadernos carcerários gramscianos para refutar tal apreensão destas cate-
gorias por Cox. A alternância entre ambas no mesmo processo histórico é
uma possibilidade aventada por Gramsci. Optar por uma ou outra ou por
ambas dependerá da particularidade e da unicidade do processo histórico
em pauta, ponto coerente com o historicismo absoluto de Gramsci.
Além disso, Cox corrobora mais uma leitura esquemática incoeren-
te com o pensamento do prisioneiro do fascismo. “Oriente” e “Ocidente
não são categorias empregadas nas análises sobre as distintas sociedades civis
de modo estrito ou eurocêntrico. Elas são metáforas destinadas a designar,
respectivamente, sociedades civis menos e mais complexas, sem qualquer
conotação evolucionista. A Itália contemporânea de Gramsci era simultanea-
mente “Oriente” (com o sul e as ilhas empobrecidas e agrárias) e “Ocidente
(com o norte urbano, desenvolvido e industrializado). O Japão do m do
século XIX e início do século XX podia ser considerado “Ocidente”. O Brasil
pode ser visto como “Oriente” e “Ocidente” ao mesmo tempo.
Gramsci debateu em sua trajetória contra várias interpretações
marxistas fatalistas, evolucionistas e positivistas. Seria incoerente com sua
5
Para maiores detalhes a respeito, consulte-se Passos (2015).

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
trajetória que defendesse, de forma semelhante á interpretação coxiana, um
esquematismo identicado com uma fórmula única de guerra de posição,
isto é, de uma luta política de conquista de posições na sociedade civil, dado
de realidade connado ao mundo ocidental em perspectiva eurocêntrica.
Uma vez feita tal explanação, passar-se-á às considerações nais.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É evidente que não há uma interpretação “verdadeira” de
Gramsci. Pode-se discutir e argumentar a respeito de diferentes apropria-
ções. Entretanto, não há como desconsiderar as “paróquias” a partir das
quais Cox efetua suas leituras e aplicações a respeito de Gramsci.
Advogou-se ao longo deste texto que o intento interpretativo co-
xiano diverge muito das formulações originárias gramscianas, a despeito
de existir uma leitura hegemônica que associa o cientista político cana-
dense como o intérprete do prisioneiro do fascismo no campo teórico das
Relações Internacionais.
Mostrou-se acima como há fortes indícios não somente de uma
leitura e conhecimento limitados da obra pré-carcerária e carcerária de
Gramsci. Mais do que isso, é evidente que Cox manuseia as categorias
gramscianas sem conseguir superar essencialmente suas “paróquias” inte-
lectuais originais em termos acadêmicos: os campos hegemônicos realista e
liberal, marcados respectivamente pelo estadocentrismo e por uma leitura
fragmentadora, incoerente com a linha totalizante presente na articulação
orgânica entre vários conceitos efetuada por Gramsci. Interno e interna-
cional são aspectos organicamente ligados, assim como Estádo e Sociedade
Civil, “Oriente e Ocidente”, hegemonia e revolução passiva, guerra de po-
sição e guerra de movimento.
Ao escrever que Gramsci não teve muito a formular sobre as
Relações internacionais, Cox (1983) ignora um ponto fundamental do
pensador italiano. A saber, os limites não sistemáticos de uma teoria e de
uma ação remetem necessariamente a um todo orgânico. Mesmo que tais
formulações não sejam expressamente enunciadas, elas fazem parte de um
todo teórico-prático. Assim deve ser visto o nexo e formulação de articula-
Raal Salatini (Org.)

ção entre o interno e o internacional em Gramsci. Sua obra fragmentária e
não sistemática, particularmente aquela do cárcere, remete a um conjunto
de reexões e intervenções que podem e devem ser desenvolvidas. Para
fazer uso de uma metáfora e parafraseando Alvaro Bianchi (2007), para
muito além da “nova prisão” realista e liberal na qual Cox “encarcerou
novamente Gramsci”, os desaos de elaboração e intervenção a partir da
formulação internacionalista do comunista italiano ensejam muitas possi-
bilidades e enorme potencial.
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

6.
PENSANDO CRITICAMENTE A ECONOMIA
POLÍTICA GLOBAL: APONTAMENTOS PARA
O ESTUDO DAS POTÊNCIAS MÉDIAS EMERGENTES
1
Leonardo Ramos
INTRODUÇÃO
Várias transformações ocorridas nas últimas décadas têm chama-
do a atenção de bancos de investimento, jornais e academia para a emergên-
cia de determinados Estados na economia política global. Em tal processo de
emergência estes vêm desenvolvendo articulações distintas (BRICS, IBAS,
G20 agrícola, articulações no G20 nanceiro, etc.), o que aumenta o desta-
que dado a eles. Neste processo, várias tentativas têm sido feitas no intuito
de classicar e analisar tais Estados e seu respectivo impacto na economia
política global: emerging middle powers (JORDAAN, 2003), intermediate
states (LIMA; HIRST, 2006) e would-begreat powers (HURRELL, 2006) são
alguns exemplos. Não obstante, em um contexto de crises e indenições,
abordagens críticas se mostram extremamente relevantes, em especial no
que concerne às reais potencialidades de mudança qualitativa da realidade
(COX, 1996). É neste sentido que o presente capítulo busca se inserir neste
debate. A ideia aqui é apresentar e articular a potencialidade de duas aborda-
gens e, em especial, de dois conceitos a estas associados para o entendimento
das potências médias emergentes e de seu papel na economia política global
1
Versão prévia deste capítulo foi publicada em Austral: Brazilian Journal of Strategy & International Relations,
v. 2, n. 3, 2013.
Raal Salatini (Org.)

contemporânea: sistema-mundo – e a ideia de semiperiferia; e neogramscia-
na – e a ideia de transnacionalização do Estado. A hipótese neste ponto é que
a ideia de transnacionalização do Estado poderia complementar a ideia de
semiperiferia levando, assim, a um melhor entendimento das novas congu-
rações da economia política global.
Assim, em primeiro lugar buscar-se-á apresentar o conceito de
semiperiferia, em especial a partir da maneira pela qual este é pensado
na análise do sistema-mundo (ASM). Feito isso, em segundo lugar será
apresentado o conceito de internacionalização do Estado e, em seguida,
o surgimento de uma fração transnacional da classe capitalista. Ambas as
questões são fundamentais para contextualizar o surgimento e o potencial
analítico da ideia de transnacionalizaçãodo Estado, em especial com rela-
ção ao atual contexto de globalização. Por m, serão feitas algumas con-
siderações nais acerca das potencialidades e limites bem como possíveis
linhas de pesquisa decorrentes das questões apresentadas.
SISTEMA-MUNDO E A IDEIA DE SEMIPERFERIA
Desde a segunda metade dos anos 1970 a ASM se consolidou como
uma alternativa para lidar com as questões de hierarquização na economia
política global. Tal abordagem emerge como crítica à teoria da moderniza-
ção, enfatizando duas questões fundamentais: (i) os limites do estadocentris-
mo – ou a crítica à ideia de que os Estados sejam as unidades operacionais da
sociedade; (ii) a crítica à ideia de “lei geral de desenvolvimento”, ou seja, de
que haveria estágios pelos quais sociedades atrasadas passariam até atingir a
situação dos Estados desenvolvidos (MARIUTTI, 2004).
Neste sentido, sistema-mundo seria um sistema social “[...] que
possui limites, estruturas, grupos associados, regras de legitimação e coe-
rência.” (WALLERSTEIN, 1990, p. 337). Tal sistema é dinâmico, uma
vez que sua própria existência deriva dos grupos que o compõem, cujas
interações o mantém unido por tensão ou o dilaceram uma vez que tais
grupos buscam constantemente remodelá-lo para seu próprio benefício.
Assim, em última instância o que faz do sistema-mundo um sistema social
é o facto (sic) de a vida no seu seio ser em grande medida autocontida,
e de a dinâmica do seu desenvolvimento ser em grande medida interna

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
(WALLERSTEIN, 1990, p. 337). Em última instância, o próprio sistema
é a unidade de análise (BREWER, 1990; MARIUTTI, 2004).
Historicamente existiram apenas duas formas de sistemas-mundo:
em primeiro lugar, impérios-mundo, onde há apenas um sistema político
sobre a maior parte da área do sistema-mundo; e em segundo lugar, eco-
nomias-mundo, que seriam sistemas-mundo que não são englobados por
uma entidade política unitária. Antes da era moderna havia dois caminhos
possíveis para as economias-mundo: primeiro, transformar-se em impérios-
-mundo a partir do desenvolvimento de uma estrutura política capaz de
abarcá-la ou sendo anexada por um império-mundo em expansão; segundo,
desintegrar. A grande peculiaridade do sistema-mundo moderno é o fato de
que “[...] uma economia-mundo tenha sobrevivido durante 500 anos e no
entanto não tenha chegado a transformar-se em império-mundo – peculiari-
dade que é o segredo da sua força.” (WALLERSTEIN, 1990, p. 338).
Tal peculiaridade – e força – diz respeito ao aspecto político do
capitalismo, que se desenvolveu pelo fato da economia-mundo conter em
seus limites não um, mas múltiplos sistemas políticos. Apenas o sistema-
-mundo moderno desenvolveu uma estrutura política composta por uni-
dades políticas autônomas, Estados ditos “soberanos” em uma delimitada
área geográca, estrutura política esta que garante a continuidade de uma
lógica de mercado parcialmente livre – que é a condição sinequa non para
a acumulação do capital em escala sistêmica (ARRIGHI, 1996). Assim,
a economia-mundo capitalista e o sistema moderno de Estados não são
inovações históricas separadas que se articulam: ambos se desenvolveram
simultaneamente, sendo a existência de um dependente da existência do
outro (WALLERSTEIN,1996b).
Consequentemente, os capitalistas ganham uma capacidade de
articulação e mobilidade que tem uma base estrutural, o que possibilitou
a expansão econômica e geográca constante do sistema mundial moder-
no para além de suas fronteiras europeias iniciais. Neste processo, foram
incorporados novas áreas e povos em sua divisão do trabalho até que, por
volta do nal do século XIX, seus processos de acumulação e reprodução
cobriam todo o mundo, sendo assim o primeiro sistema-mundo na histó-
ria a atingir esta condição – apesar da distribuição desigual de seus frutos
(WALLERSTEIN, 1990; 1996b; 2004a).
Raal Salatini (Org.)

Tal distribuição desigual deriva de uma das características deni-
doras de um sistema-mundo, a saber, sua divisão do trabalho. Assim, é pos-
sível perceber a existência de “[...] um todo espaço-temporal (grifo do autor)
cujo escopo espacial coincide com o eixo da divisão social do trabalho que
integra as suas partes constituintes.” (MARIUTTI, 2004, p. 97). As ati-
vidades mais lucrativas tendem a se concentrar geogracamente em certas
áreas reduzidas da economia-mundo, chamadas de centro. Já as atividades
de menor lucratividade tendem a ser mais dispersas geogracamente, na
periferia. Neste sentido, a divisão do trabalho que ocorre na economia-
-mundo capitalista diz respeito a uma hierarquia de tarefas que dependem
de níveis distintos de qualicação e capitalização, o que tem impacto sig-
nicativo na lucratividade e, por conseguinte, implicam a transferência
de mais-valia da periferia para o centro. Contudo, há um elemento que
complexica este processo, a saber, a semiperiferia. Trata-se de
[...] um elemento estrutural necessário numa economia-mundo. [...]
São pontos colectores (sic) de qualicações vitais, com freqüência poli-
ticamente impopulares. Estas áreas intermédias desviam parcialmente
as pressões políticas que os grupos localizados primariamente nas áreas
periféricas poderiam noutro caso dirigir contra os estados do centro
e os grupos que operam no interior e através dos seus aparelhos de
Estado. Por outro lado, os interesses localizados basicamente na semi-
periferia acham-se no exterior da arena política dos estados do centro,
e é-lhes difícil prosseguir os seus ns através de coligações políticas que
poderiam estar abertas para eles se estivessem na mesma arena política.
(WALLERSTEIN, 1990, p. 339).
Assim, a semiperiferia, na medida em que atua, ao mesmo tempo,
como área periférica com relação ao centro e como área central em relação à
periferia, pode contribuir para a perpetuação do sistema-mundo moderno
reduzindo a tensão existente entre os extremos. Além disso, também poder
exercer um papel dinamizador, pois em períodos de contração econômica,
alguns Estados semiperiféricos podem obter vantagens e, em função de
sua constituição híbrida, ameaçar o centro do sistema (WALLERSTEIN,
1996b; MARIUTTI, 2004). Neste sentido, são Estados marcados por cer-
tas instabilidades: em termos políticos, pode-se falar em alguns casos de
estruturas estatais frágeis; em termos sociais, de estruturas desiguais em

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
processos de urbanização, marcadas por intensos uxos migratórios, por
exemplo (cf. inter alia CHASE-DUNN, 1989).
A ideia de semiperiferia surge a partir de uma constatação em-
pírica, ou seja, a identicação de que há países que, tendo em vista dados
como PIB per capita, se encontram entre os países centrais avançados e
a periferia subdesenvolvida. Contudo, com o passar do tempo o termo
adquiriu signicado analítico tendo em vista as dinâmicas das relações cen-
tro-periferia (RADICE, 2009). Embora sejam termos de origem e conse-
quências geográcas, centro e periferia (e semiperiferia) não são conceitos
utilizados em termos espaciais em primeiro lugar, mas sim em termos re-
lacionais (ARRIGHI; DRANGEL, 1986; WALLERSTEIN, 2004a). Ou
seja, a relação entre centro e periferia se destaca por ser uma relação entre
capital mundial e trabalho mundial, entre atividades de alta lucratividade
e atividades de baixa lucratividade. Assim, na medida em que se dá a in-
tegração entre tais tipos de atividades há a transferência de excedente de
atividades produtivas periféricas para atividades centrais, o que acarreta em
uma distribuição desigual do valor da produção mundial” (ARIENTI;
FILOMENO, 2007, p. 109) – não apenas dos trabalhadores para os pro-
prietários mas também dos proprietários da periferia para os proprietários
do centro (WALLERSTEIN, 1996b, 2004a).
De acordo com Wallerstein
2
(2004a, p. x), “[...] proponentes da
análise do sistema-mundo tem falado sobre a globalização muito antes de a
palavra ter sido inventada; não como algo novo, mas como algo inerente ao
moderno sistema-mundo desde o século XVI”. Embora em um primeiro
momento tal armação possa ser vista como meritória, por identicar a
globalização como algo real, por outro lado alguns problemas emergem.
Primeiro, a identicação da globalização como um fenômeno que data
do século XVI empobrece o conceito pois o esvazia de qualquer potencial
heurístico. Além disso, para a ASM, o capitalismo data do século XVI, e
tem permanecido essencialmente o mesmo, sem mudanças signicativas,
desde então. Em última instância, para tal perspectiva, o capitalismo é,
basicamente, “um sistema estático de exploração” (BREWER, 1990, p.
18). Neste sentido, além de destacar a centralidade dos Estados e sua per-
manência nos processos concernentes às dinâmicas de expansão do capita-
2
Cf. também WALLERSTEIN, 2004b, p. 53-76.
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
lismo mundial desde a formação do sistema-mundo moderno – bem como
a persistência da estrutura centro-periferia da economia política global –,
a ASM vê a globalização como algo que já existe desde sempre, sem alte-
rações fundamentais ou relevantes desta tendência com relação aos pro-
cessos contemporâneos (ARRIGHI, 2005). Além disso, por se concentrar
principalmente nos ciclos do sistema e da crise sistêmica, a ASM acaba por
desenvolver uma leitura do real que, em certa medida, alija a subjetividade
da história, trazendo uma leitura limitada acerca das relações de poder em
um contexto de globalização.
Nota-se, assim, que tal conceituação de semiperiferia comparti-
lha certa distinção analítica entre economia e política, o que leva ao desen-
volvimento de duas estruturas conceituais analiticamente independentes
(RADICE, 2009). Uma vez que se agregue a tal problema críticas como a
de Laclau (1977), por exemplo, ao reducionismo presente em abordagens
sistêmicas como a ASM, notam-se alguns dos principais problemas das
denições convencionais de semiperiferia: reducionismo, determinismo e
estadocentrismo. Neste sentido, principalmente em um contexto de cres-
cente transnacionalização do capital concomitante à crescente relevância
das potências médias emergentes, faz-se necessário romper com a onto-
logia do sistema-mundo na busca por um melhor entendimento de tais
países e de seu comportamento no âmbito global.
O CONTEXTO DA EMERGÊNCIA: INTERNACIONALIZAÇÃO DO ESTADO, PAX
AMERICANA E GLOBALIZAÇÃO
A intensicação dos processos de globalização tem colocado pro-
blemas para as classicações estadocêntricas da relação centro-periferia e,
por derivação, para as interpretações a respeito da semiperiferia (WORTH,
2009). Neste sentido, a despeito da pertinência inicial de tal conceito,
cumpre oportuno dar um passo além na busca por elementos de inspiração
crítica para entender o comportamento das potências médias emergentes.
E neste ponto as abordagens neogramscianas podem ser de grande valia.
Central em tais abordagens é a percepção dos impactos que a
intensicação de determinados processos de internacionalização da produ-
ção exerce no âmbito da política. Cox chamou isso de internacionalização

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
do Estado, processo este fundamental para o entendimento dos mecanis-
mos usados para a manutenção da hegemonia no período da pax ameri-
cana bem como para o entendimento do contexto que emerge a partir da
intensicação dos processos de globalização.
A internacionalização do Estado seria “[...] um processo global pelo
qual as políticas e as práticas nacionais têm sido ajustadas às exigências da
economia mundial.” (COX, 1987, p. 253). Fundamental neste ponto é o
fato de que os Estados tem se tornado parte de uma estrutura política com-
plexa emergente em escala internacional
3
. Assim duas questões se destacam:
primeiro, o Estado não desaparece neste processo:com a emergência do “glo-
bal”, um novo âmbito de interações sociais surge sem, contudo, que isso
implique a subsunção ou até mesmo a hierarquização dos demais âmbitos.
Segundo, tal internacionalização não ocorre de maneira homogênea pelo
mundo. Na verdade, o destaque dado ao “momento nacional” contribui para
que se percebam as “articulações interescalares” (MORTON, 2007, p. 138)
existentes entre os âmbitos nacional e internacional; ou seja, é fundamental
neste ponto perceber as dinâmicas espaciais da dialética da globalização.
Nota-se então um processo de transformação das estruturas po-
líticas estatais, que ocorre a partir de novos alinhamentos das relações de
poder entre os grupos domésticos e destes com grupos de outros Estados
em um processo mais amplo de construção de um bloco histórico para
além dos limites do Estado nacional. Há, assim, a formação de certo con-
senso interestatal intimamente relacionado às necessidades da economia
mundial, cuja participação é hierarquicamente estruturada a partir dos
contornos estabelecidos no bloco histórico dominante. A partir daí, as es-
truturas internas dos Estados partícipes deste processo são ajustadas a m
de traduzir tal consenso em políticas públicas nacionais.
Durante a pax americana prevalece uma ordem mundial hege-
mônica na qual predomina, nos Estados industriais avançados, uma forma
de Estado na qual este prestava contas tanto às instituições da economia
mundial – FMI e Banco Mundial, por exemplo – quanto à opinião pú-
blica doméstica. Era o “liberalismo incrustado” (RUGGIE, 1982) ou a
possibilidade de se combinar livre comércio no âmbito internacional com
3
De acordo com Cox, tal processo deve ser visto como uma nébuleuse, ou seja, como “algo que não possui uma
estrutura institucional impositiva e xa” (COX, 2002, p. 33). Nesse sentido, cf. também COX, 1996.
Raal Salatini (Org.)

intervenção estatal no âmbito doméstico a m de garantir a estabilidade.
Nesta mudança do centro de gravidade da economia nacional para a eco-
nomia mundial, o Estado permanecia como responsável pela estabilidade
em ambos os âmbitos.
Tal processo político internacionalizado associado à internacio-
nalização do Estado pressupunha uma estrutura de poder na qual agências
e elementos componentes do governo estadunidense tinham uma posição
de destaque. Contudo, tal estrutura de poder não operava apenas no sen-
tido “de cima para baixo” nem era de exclusividade dos Estados nacionais.
Como todo processo de construção de uma hegemonia, pressupunha uma
identicação por parte dos subordinados, o que remete à dimensão do
consenso e aos próprios processos de negociação e barganha que ocorrem
entre dominantes e subordinados – dentro dos limites estabelecidos no
bloco histórico em questão. Neste sentido, o processo de internacionali-
zação do Estado deve ser entendido de maneira dialética, não como algo
inexorável mas como uma tendência que, como tal, gera contradições e
movimentos de oposição.
A ordem mundial hegemônica estabelecida pela pax americana,
na qual tal processo de internacionalização do Estado se desenvolveu, “[...]
foi fundada por um país no qual a hegemonia social tem sido estabelecida
e no qual tal hegemonia foi sucientemente expansiva para se projetar em
uma escala mundial.” (COX, 1987, p. 266). Neste mesmo processo, o
modo fordista de produção assim como determinada forma de Estado se
tornaram os modelos mundiais, sendo tanto exportados quanto emulados
alhures. Em outras palavras, tal ordem mundial hegemônica estava intima-
mente relacionada à
Projeção em uma escala global [d]aquelas instituições e práticas que
já haviam sido desenvolvidas nos Estados Unidos, tais como a organi-
zação industrial fordista de produção/consumo, democracia eleitoral,
políticas limitadas de bem-estar social e políticas econômicas gover-
namentais voltadas para estímulo das atividades econômicas privadas.
(AGNEW, 2005, p. 124).
Uma vez que hegemonias não surgem por acaso mas são delibe-
radamente construídas, nota-se por detrás da pax americana uma visão de

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
hegemonia, herdeira do sucesso do New Deale associado ao internaciona-
lismo econômico através do qual grupos sociais estadunidenses buscavam
estimular a demanda através do consumo de massa. Perceber essas questões
é fundamental, pois elas expressam exatamente a relevância da dimensão
espacial no processo de construção de uma hegemonia: “[...] o lugar que
vem exercer a hegemonia importa, assim, para o conteúdo e para a forma
que a hegemonia assume” (AGNEW, 2005, p. 9).
Esta hegemonia possuía determinadas particularidades. Sua geo-
graa do poder derivava do poder em rede há muito “cultivado na socieda-
de de mercado americana” (AGNEW, 2005, p. 61), e a partir e mediante
tais particularidades, levou a uma crescente internacionalização da produ-
ção e das nanças, o que gerou consequências signicativas, com destaque
para a própria erosão dos princípios norteadores da ordem mundial no
período da pax americana. Neste processo, “o modelo econômico-cultural
dos Estados Unidos e sua posição global hegemônica” (AGNEW, 2005, p.
61) foram fundamentais, sendo possível perceber uma crescente integração
dos processos de produção não mais apenas em uma escala internacional
mas global através de determinados processos de articulação das corpo-
rações transnacionais em diferentes localizações territoriais. Tal questão é
fundamental uma vez que é “[...] esta organização da produção e das -
nanças em um nível transnacional [que] distingue fundamentalmente a
globalização do período da Pax Americana.” (MORTON, 2007, p.124).
DA INTERNACIONALIZAÇÃO PARA A TRANSNACIONALIZAÇÃO DO ESTADO
A incorporação da globalização como categoria analítica leva não
apenas ao surgimento do conceito de internacionalização do Estado por
Cox mas também outros autores a desenvolverem tal conceito com o in-
tuito de melhor compreender sua aplicação assim como seu real potencial
heurístico. Neste sentido, Stephen Gill contribuiu para o entendimento
desse processo como parte do caráter cambiante da hegemonia mundial
centrada nos Estados Unidos, em especial no que diz respeito à sua análise
do papel da Comissão Trilateral (GILL, 1990). Assim como Cox, Gill vê a
reestruturação global da produção em linhas pós-fordistas ocorrendo den-
tro de um contexto de mudança estrutural nos anos 1970. É neste período
Raal Salatini (Org.)

que há, segundo Gill, uma transição de um bloco histórico internacional-
para um bloco histórico liberal transnacional.
A partir do pós-II Guerra Mundial – em especial a partir do nal
da década de 1960 – nota-se um rápido processo de internacionalização da
produção, ao ponto de cerca de 30% dos trabalhadores da área da OCDE
serem empregados por companhias transnacionais e uma série de outros
trabalhadores serem dependentes da produção transnacional e do comér-
cio internacional para sua sobrevivência (GILL, 1990). Concomitante a
este processo nota-se também uma signicativa integração dos mercados
de capital e de câmbio em escala global. Neste contexto, tanto os governos
nacionais quanto os trabalhadores são cada vez mais constrangidos pelos
recursos de poder e pela crescente mobilidade do capital transnacional
(GILL; LAW, 1989). Neste processo há a mobilização da emergente fração
transnacional da classe capitalista que passa a desenvolver uma consciên-
cia e uma solidariedade que se expressam, por exemplo, em organizações
internacionais, instituições nanceiras internacionais e conselhos privados
de relações internacionais. Assim, tal fração passa, cada vez mais, a ocupar
o centro de um emergente bloco histórico liberal transnacional, que conta
com uma liderança mais ampla que a hegemonia transatlântica do período
anterior e com uma menor incorporação dos setores trabalhistas. A partir
de tais questões acerca da transição dos blocos históricos Gill contribui
para a tese coxiana da internacionalização do Estado e, além disso, através
do desenvolvimento do conceito detransnacionalização do Estado tal au-
tor buscou, a partir de uma mudança semântica, chamar a atenção para a
relevância dos atores transnacionais:
[...] um processo por meio do qual as políticas estatais e os arranjos ins-
titucionais são condicionados e mudados pelo poder e pela mobilidade
das frações transnacionais do capital. Nos anos 1970 e 1980 isso deu
um crescente peso para certas partes do governo, como os ministérios
da nança e da economia. (GILL, 1990, p. 94).
Tal supremacia é organizada em âmbito global mediante dois
processos fundamentais: o novo constitucionalismo e o neoliberalismo
disciplinar, concomitante à difusão da civilização de mercado. O neoli-
beralismo disciplinar seria a expressão de uma contra-revolução do capital

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
em escala mundial ocorrida nos anos 1990, que reconstitui o Estado e
o capital assim como intensica as hierarquias sociais associadas com as
relações de classe, raça e gênero em escala mundial. Tal revolução envolve
especicamente a extensão dos processos de “comodicação” e alienação
baseados na intensicação da disciplina do capital nas relações sociais. Ou
seja, é uma forma concreta de poder estrutural e comportamental combi-
nando o poder estrutural do capital com o “poder capilar” e o “panopti-
cismo” (GILL, 2003). Este neoliberalismo disciplinar é institucionalizado
via reestruturação do Estado e instituições internacionais, envolvendo a
imposição de novas estruturas legais e políticas constitucionais ou quase-
-constitucionais, o que é chamado por Gill de novo constitucionalismo,
“[...]o projeto político de fazer do liberalismo transnacional, e se possível
do capitalismo democrático liberal, o único modelo para o desenvolvimen-
to futuro.” (GILL, 2003, p. 131-132). Ligada a esse projeto se encontra a
tentativa de disseminação global do que seria uma civilização de mercado
baseada em uma ideologia do progresso capitalista.
O conceito de transnacionalização do Estado permite perceber
a dialética existente entre territorialidade e globalização. Neste sentido, o
processo de estruturação das relações sociais do capitalismo deve necessa-
riamente ser entendido em associação com o “[...] papel (cambiante) do
Estado na reprodução social e espacial do capital.” (LACHER, 2006, p.
12). Ou seja, é fundamental ter em mente a contradição que é inerente,
no processo de desenvolvimento das relações sociais capitalistas, entre os
espaços de acumulação e os espaços de governança.
Consequentemente, tal conceito serve como antídoto à ideia de
“homoeciência do capitalismo” – suposição de que a difusão e o impacto
do capitalismo ao redor do mundo se dariam de uma forma uniforme,
a despeito das “[...] contradições do desenvolvimento desigual expresso
através das relações variadas do capital nos distintos processos de formação
estatal.” (MORTON, 2007, p. 147). Contudo, as contradições do desen-
volvimento desigual são expressão das lutas de classe que ocorrem através
das diversas escalas espaciais, do âmbito local ao global passando necessa-
riamente pelo estatal.
Em outras palavras, dizer que “[...] os processos e as formações
globais atuais podem, e logram, desestabilizar a hierarquia de escalas cen-
Raal Salatini (Org.)

tradas no Estado nação.” (SASSEN, 2007, p. 24) não signica dizer que
novas escalas do nível global sobrepujem velhas escalas do nível nacional. A
partir de tais considerações, percebe-se que uma apreciação mais profícua
do conceito de transnacionalização do Estado é fundamental para que se
evite tanto a “cilada territorial” (AGNEW, 2005) – e a negação do global a
ela associada – quanto o globalismo: ambas perspectivas padecem de uma
ontologia rasa na medida em que negam o global ou o estatal como uma
escala espacial ainda signicativa no processo de acumulação do capital.
Isso ajuda a iluminar o entendimento acerca dos processos de neoliberali-
zação, que se por um lado se apresentam a partir de uma dimensão sistêmi-
ca, por outro tem se expressado historicamente a partir da reconstituição
descontínua, desigual e contraditória das relações entre o global e nacio-
nal. Em outras palavras, os processos de neoliberalização tem, ao mesmo
tempo, levado à expansão do neoliberalismo pelo mundo e intensicado
o desenvolvimento desigual das formas regulatórias através dos lugares,
territórios e escalas”; em suma, tem levado a uma “produção sistêmica de
diferenciação geoinstitucional” (BRENNER et al., 2010, p. 3).
Há, assim, a necessidade de se perceber como o processo de acu-
mulação do capital se dá através de relações sociais multi-escalares, nas
quais o Estado deve ser visto não como ponto dominante mas como ponto
nodal. O espaço geográco é “um conjunto indissociável de sistemas de
objetos e sistemas de ações”, sistemas estes que variam conforme as épocas.
Se for assim, então “[...] os objetos que constituem o espaço geográco
atual são intencionalmente concebidos para o exercício de certas nalida-
des, intencionalmente fabricados e intencionalmente localizados. A ordem
espacial resultante é, assim, intencional.” (SANTOS, 2004, p. 332).
CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS LIMITES DA EMERGÊNCIA?
Se por um lado percebe-se a existência de um processo que tem
impacto signicativo na forma de organização das relações sociais no espaço,
por outro tal fenômeno induz, através de um processo de internalização de
determinados processos, modos e ideologias, a reprodução do capital den-
tro de Estados distintos. Assim, o que se nota a partir da emergência da
globalização não é o m ou a retirada do Estado, e sim uma reestruturação

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
das diferentes formas de Estado mediante a internalização, nos Estados, de
“[...] novas congurações de forças sociais expressas por uma luta de classes
entre frações distintas (nacional e transnacional) do capital e do trabalho.
(MORTON, 2007, p. 133).Ou seja, um dos elementos fundamentais neste
ponto é o fato de que, através de uma perspectiva neogramsciana – mediante
o conceito de transnacionalização do Estado – é possível perceber como “o
global pode [...] se constituir dentro do nacional” e como “[...] o Estado tem
na verdade ganhado poder porque tem que executar o trabalho de implemen-
tar as políticas necessárias para a economia corporativa global.” (SASSEN,
2008, p. 63). Ou seja, tal conceito é fundamental no entendimento da eco-
nomia política global contemporânea na medida em que contribui signica-
tivamente para a compreensão dos processos de desnacionalização.
A partir do que foi colocado, nota-se que as abordagens neogra-
mscianas e os conceitos a elas articulados possuem um potencial heurístico
signicativo para lidar com as transformações que vem ocorrendo no âm-
bito da economia política global nas últimas décadas. Não obstante, pouco
tem sido dito, a partir de tal abordagem, acerca das respostas dadas pelas
potências médias emergentes a tais transformações. Poucas são as análi-
ses acerca de tais processos de “emergência” e sua relação com as normas
e regras da ordem mundial vigente: articulações/coalizões como BRICS,
IBAS, por exemplo; o papel de algumas dessas articulações em fóruns mais
amplos como o G20 nanceiro ou no âmbito da ONU são questões que
demandam uma maior atenção a partir de uma perspectiva crítica.
Há certos aspectos da mudança sistêmica associada à emergência
das novas potências médias que são frequentemente ignorados; em especial,
o fato de que tais processos ocorrem em um contexto histórico-estrutural
de uma ordem mundial capitalista caracterizada pelo aprofundamento dos
processos de transnacionalização do capital. Neste sentido, mesmo que se
parta do princípio que a ideia de semiperiferia era pertinente quando de
sua elaboração no contexto da ASM, os processos de transnacionalização
do capital alteraram signicativamente o papel dos países semiperiféricos
na economia política global: com as mudanças nos uxos de investimento
e informação, a distinção entre Estados com base na ênfase em recursos
ou indústria se torna cada vez mais difícil, o que coloca a semiperiferia –
Raal Salatini (Org.)

enquanto momento de equilíbrio e mediação – em uma situação cada vez
mais uida (WORTH, 2009).
Ora, a ideia de semiperiferia é algo profícuo na medida em que
contribui para o entendimento do potencial de mudança e de inuência
que tais Estados intermediários podem ter na ordem internacional sem
perder de vista a dimensão do poder estrutural do capital. Em especial, tais
questões são relevantes como crítica às leituras hiperglobalistas que emer-
gem a partir dos anos 1990. Já o conceito de transnacionalização do Estado
é relevantepois indica as complexidades de inserção internacional em um
contexto de globalização neoliberal. Ou seja, complementa a ideia de se-
miperiferia na medida em que esclarece determinadas articulações existen-
tes entre os Estados semiperiféricos e o capital transnacional, inserindo as
questões de classe nos debates bem como esclarecendo como se dão deter-
minados processos da dialética global-nacional – ou, em outros termos,
como o Estado permanece central nos processos de desnacionalização.
Ao mesmo tempo em que apresenta uma profícua articulação en-
tre o nacional e o internacional, dando importantes pistas para a reexão
sobre o global, Gramsci traz uma importante crítica ao estadocentrismo
não vendo o Estado como uma coisa em si, como algo absoluto em um
sentido fetichizado (GRAMSCI, 2002b, p. 279-280, Q8§130 e p. 332-
333, Q15§13; 2002c, p. 349-351, Q1§150). Pelo contrário, este é visto
como uma forma de relações sociais nas quais distinções metodológicas – e
não orgânicas – podem ser feitas entre as dimensões relacionadas aos fe-
nômenos do consenso e da coerção. Tal questão é pertinente pois abre um
espaço para se pensar as mudanças contemporâneas do Estado, ou seja, seu
processo de desnacionalização, articuladas à emergência do global.
Neste processo uma questão fundamental que surge diz respeito
ao verdadeiro potencial de transformação apresentado por tais potências
médias emergentes. A ideia de transnacionalização do Estado joga luz so-
bre tal questão, mas não de maneira conclusiva. Desta forma, um conceito
fundamental que requer uma discussão posterior é o de revolução passiva,
que ajudaria a entender de que maneira tais Estados não apenas se inserem
na ordem mas também como suas ações e articulações se relacionam com
o ordenamento vigente. Assim, uma agenda para pesquisas futuras sobre
as potências médias emergentes diz respeito ao(s) modelo(s) de desenvol-

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
vimento por estas apresentado e em que medida este(s) é(são) realmente
alternativo(s) ao modelo vigente. Tal questão demandaria uma análise dos
complexos sociedade civil/Estado das potências médias emergentes e suas
articulações dentro do processo de transnacionalização do Estado desta-
cando a relevância destes países na estrutura capitalista de produção – o
que apontaria, mais uma vez, para a pertinência dos conceitos aqui apre-
sentados para o entendimento das potências médias emergentes na ordem
mundial contemporânea.
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
7.
CONTRIBUIÇÕES DA EPSM PARA
ESTUDOS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
1
Rosângela de Lima Vieira
INTRODUÇÃO
Os estudos de Relações Internacionais vêm ganhando relevância,
enquanto área do conhecimento acadêmico, dada a realidade das relações
globalizadas e complexas do mundo contemporâneo. Enquanto objeto ma-
terial de estudo, caracteriza-se por apresentar fronteiras abertas a contribui-
ções de diversas ciências. O presente texto objetiva realizar novas conside-
rações sobre a natureza especíca desta área do conhecimento, a partir da
abordagem sistêmica da Economia Política dos Sistemas-Mundo (EPSM).
Essa abordagem apresenta importantes subsídios de ordem
metodológica para uma análise inovadora sobre a natureza das Relações
Internacionais, levando em conta que a complexidade visível do cotidiano
exige novas abordagens que propiciem um exame mais global das RI, bem
como de suas articulações e particularidades.
Para tal tarefa, desenvolveremos aqui duas contribuições metodo-
lógicas da EPSM para os estudos das RI: a abordagem histórica num recor-
te de longa duração e um olhar necessariamente interdisciplinar; também
demonstraremos que tais inovações permitem resultados qualitativamente
diferenciados de temas essenciais para as Relações Internacionais, como,
por exemplo, o papel do Estado.
1
Uma versão preliminar desse texto foi apresentada no 5º Encontro Nacional da Associação Brasileira de
Relações Internacionais ocorrido de 29 a 31 de julho de 2015 – PUC / Belo Horizonte-MG.
Raal Salatini (Org.)

1 CONTRIBUIÇÕES METODOLÓGICAS DA EPSM
A Economia Política dos Sistemas-Mundo é uma abordagem das
Ciências Sociais constituída a partir de
[...] quatro princípios metodológicos [que] foram desenvolvidos no pro-
cesso de criação coletiva da ASM: as Ciências Sociais deveriam ser his-
tóricas, a unidade de análise deveria ser o sistema mundial (em lugar da
economia/estado/sociedade nacional), a temporalidade de referência de-
veria ser a longue durée braudeliana e o enfoque necessariamente unidis-
ciplinar [...] Não é difícil perceber o quanto esta proposta desaava cada
disciplina em particular e o conjunto delas. (VIEIRA et al., 2012, p. 8).
1.1 A ABORDAGEM HISTÓRICA DE LONGA DURAÇÃO BRAUDELIANA E AS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Por que a abordagem histórica tem contribuições especícas para
os estudos da área das Relações Internacionais? Porque sendo as RI um ob-
jeto de estudo propriamente interdisciplinar, a análise de questões a partir
do processo histórico permite fugir das teorias a priori de interpretação dos
fatos históricos e buscar as relações e interconexões com as demais ciências,
como realizou o historiador Fernand Braudel
2
, em sua obra. Ele apresentou
análises históricas a partir de pesquisas empíricas.
Quando nos reportamos à Economia Política dos Sistemas-Mundo,
temos como referência três pesquisadores fundamentais dessa perspecti-
va: o historiador Fernand Braudel, e os sociólogos Immanuel Wallerstein
e Giovanni Arrighi. Em conjunto, suas obras construíram as bases dessa
abordagem da história do capitalismo, tendo como metodologia uma análise
histórica de longa duração dos temas em foco e, por princípio, um conceito
de capitalismo como o conjunto de estratégias para garantir taxas de lucro
excepcionais, desde a passagem do século XV para o XVI.
2
O historiador Fernand Braudel tem contribuições fundamentais para a área de história e para as demais
ciências humanas, dentre elas se destacam as de caráter metodológicos, principalmente a concepção das
múltiplas temporalidades; além disso, por causa de sua inovadora postura metodológica ele ofereceu novos
conhecimentos históricos, que podemos exemplicar com sua análise do capitalismo no período do século XV
ao XVIII. A interdisciplinaridade de Braudel é fundamental em suas obras. Sobretudo a geograa e a economia
são constituintes de sua análise histórica. No caso da obra “Civilização Material, Economia e Capitalismo” seu
estudo do período dos séculos XV ao XVIII ganha em qualidade exatamente por traçar a gênese do capitalismo
por tecer suas interpretações a partir do conjunto das ciências humanas. A esse respeito vale lembrarmos “Todas
as ciências do homem, inclusive a história, estão contaminadas umas pelas outras. Falam a mesma linguagem ou
podem falá-la.” (BRAUDEL, 1992, p. 54).

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
As obras de F. Braudel foram fundamentais para a EPSM e suas
contribuições são de duas vertentes: uma metodológica e outra de conteú-
do. Quanto à primeira, o historiador francês foi quem criou a metodologia
para a análise das múltiplas temporalidades e diferentes durações tempo-
rais. Ele cunhou o arcabouço tripartite temporal: de “curta duração” –
identicada com o factual e de mudanças superciais, o tempo individual;
a “média duração” – que se caracteriza pela duração de uma conjuntura, o
período de algumas décadas, o tempo social; e a “longa duração” – período
multissecular necessário para mudanças profundas e para a formação de
novas estruturas históricas, tempo de mudanças lentas.
Braudel observou ainda que a relação dialética entre os fatos, con-
junturas e estruturas históricas é fundamental na compreensão dos proces-
sos históricos e de suas articulações que facilitam ou dicultam as mudan-
ças e as permanências históricas. Trata-se de uma observação da velocidade
das mudanças: daquelas de uidez semelhante à luz de um vaga-lume até a
lentidão que induz à percepção do “quase imóvel” na história.
A título de exemplo, poderíamos analisar os Tratados de 1810 en-
tre a Inglaterra e Portugal. Foram dois acordos: de Comércio e Navegação;
e de Aliança e Amizade. A formalização de ambos são fatos e, portanto,
fenômeno de curta duração. Em conjunto estabeleceram as regras para o
comércio entre as duas nações e normatizaram as taxas alfandegárias pre-
ferenciais para os produtos ingleses a serem pagos pela colônia. Tais fatos
também fazem parte da Era Napoleônica, que por sua vez insere-se na
conjuntura histórica da disputa pela hegemonia mundial entre França e
Inglaterra. Contudo, ao observarmos a relação entre o fato e a conjuntu-
ra, notamos que a assinatura dos acordos instaurou uma nova conjuntura
para a economia colonial e para o império britânico. Num corte temporal
ainda mais longo, chega-se a uma estrutura histórica de longa duração: a
dependência da colônia portuguesa e depois da nação recém implantada
em relação aos interesses britânicos. A análise, a partir das durações tempo-
rais, revela o processo de construção da hegemonia britânica no século XIX
e a condição de subalternidade de Portugal e consequentemente do Brasil
contribuindo para a armação do poder inglês.
A segunda contribuição de Braudel – o conceito de capitalismo
–, deduzida de sua postura metodológica inovadora, resultou de suas pes-
Raal Salatini (Org.)

quisas do período dos séculos XV ao XVIII que lhe permitiram apreender
a gênese do capitalismo. Para ele a economia apresenta três níveis distintos
e que não devem ser confundidos: a economia de subsistência, a economia
de mercado e o capitalismo.
Tal distinção entre mercado e capitalismo tem como principal elemen-
to a liberdade de ação. Enquanto a economia de mercado obedece à lei
da oferta e procura; o capitalismo distingue-se exatamente pela capa-
cidade de fugir às utuações do mercado. O capitalismo caracteriza-se
pelo arbítrio da escolha, pela formação de monopólios e outras estraté-
gias que lhe permitem estar acima da “lei de mercado” e assim, assegu-
rando lucros extraordinários. (VIEIRA, 2010, p. 3-4).
Resultou daí sua conceituação de capitalismo como um conjunto
de estratégias antimercado, ou seja, a busca de taxas de lucro superiores
àquelas obtidas no nível da economia de mercado.
Os aspectos metodológicos e essa conceituação de capitalismo são
fundamentais para a EPSM. Tanto I. Wallerstein como G. Arrighi partem
desses elementos na constituição de suas obras. Assim, o capitalismo, estu-
dado na longa duração histórica desses últimos cinco séculos, tornou-se a
base para a construção da abordagem sistêmica.
A análise do capitalismo histórico deve, portanto, ser entendida
na perspectiva sistêmica. Nesse sentido há de ressaltar que o uso dessa ex-
pressão se dá pelo nível de autonomia e pelo funcionamento seguindo sua
própria lógica; também por possuir limites temporais, ou seja, tem começo
e m – caso contrário, não seriam históricos; e por último, percebermos
que todos os sistemas históricos expressam limites espaciais que podem
se alterar conforme sua lógica de ação. Veremos mais adiante como esta
postura teórico-metodológica pode oferecer novas bases para uma análise
inovadora das RI no contexto contemporâneo.
1.2 A INTERDISCIPLINARIDADE: UMA EXIGÊNCIA NOS ESTUDOS DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
A necessidade de alçar as Relações Internacionais, enquanto área
especíca de pesquisa, e não apenas como um tema das Ciências Políticas,

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
deu-se exatamente pela realidade complexa das questões de ordem inter-
nacional exigir, para muitos, uma observação multidisciplinar
3
, dado seu
próprio perl.
Basicamente isto se deve a duas ordens de fatores. Em primeiro lugar
é forçoso reconhecer que o processo de formação do sistema mundial
através da transformação da economia mundo capitalista em um sis-
tema global completou-se apenas durante o século XX. Por outra par-
te, apenas no século XX, completou-se o processo de descolonização
que formou um sistema inter-estatal [sic] global que atualmente gira
em torno de 200 Estados. O estudo desta complexa realidade, suas
instituições e inter-conexões exigiu um esforço teórico-conceitual que
não podia car restrito às disciplinas do século XIX. Utilizando várias
construções elaboradas em outras áreas e adaptando-as ao estudo de
RI, surgiu, portanto, um campo autônomo e fecundo, que ainda se
desenvolve e procura atingir maturidade. (VOIGT, 2007, p. 103).
Contudo, a complexidade das próprias relações internacionais
não é esgotada pelas abordagens multidisciplinares. Uma observação mais
densa do processo histórico aponta que a ótica multidisciplinar ainda não
é suciente para se alcançar o enredamento e as articulações em que se dão
os fatos de ordem internacional.
Encontramos então aí uma especicidade em que a perspectiva
interdisciplinar – e não apenas a multidisciplinar – se impõe necessaria-
mente. Isso signica que não basta colocar em diálogo de justaposição a
ciência política, a história, o direito, a economia, e a geograa por exem-
plo. Estamos armando que a área das Relações Internacionais é essencial-
mente interdisciplinar por sua ‘natureza’ não prescindir de um olhar que
exige a convergência de múltiplos elementos. Ou seja, trata-se de uma área
eminentemente relacional.
É justamente esta uma das contribuições da EPSM, pois ela se
arma e busca incessantemente a abordagem interdisciplinar, como vimos.
E como a área das RI constitui-se num todo complexo e multidimensional,
sua análise somente pode ocorrer numa perspectiva interdisciplinar. Assim,
o objeto de estudo, das Relações Internacionais é, em si, interdisciplinar.
3
Vale sempre lembrar a distinção entre uma abordagem “multidisciplinar” e a “interdisciplinar”. Essa se distingue
da multidisciplinar, pelo fato de não ser a simples somatória de vários ângulos diferentes, mas de assumir o próprio
objeto de estudo como um todo, com pressupostos teóricos e metodológicos comuns a várias áreas do conhecimento.
Raal Salatini (Org.)

Aliás, Wallerstein, ao referir-se aos limites dos paradigmas do
século XIX, sugere um degrau acima e recomenda a unidisciplinaridade
como fundamento metodológico para o que ele nomeia como “ciências
históricas”. “A análise dos sistemas-mundo conclamava a uma reforma-
tação drástica do marco intelectual das ciências sociais, convocando para
uma reorganização unidisciplinar.” (WALLERSTEIN, 2012, p. 27).
Essa posição decorre exatamente por ele analisar o capitalismo
como um sistema social histórico, Wallerstein arma:
A expressão “sistema histórico” não costuma ser usada nas ciências
sociais. Na verdade, em geral a maioria dos cientistas sociais a consi-
deraria anômala. Os que enfatizam o histórico minimizam em larga
medida ou negam o sistêmico. Os que enfatizam o sistêmico normal-
mente ignoram o histórico. Não que, na qualidade de questão abstrata,
não se reconheça a importância de reconciliar essa dicotomia [...] na
prática tem havido forte pressão institucional para seguir numa ou na
outra direção daquilo que, no nal do século XIX, foi chamado de o
Methodenstreit entre as formas idiográca e nomotética de saber aca-
dêmico no domínio da vida social. (WALLERSTEIN, 2006, p. 265).
Wallerstein procurou resolver a dicotomia entre histórico e sis-
têmico observando a realidade social enquanto sucessão de mudanças e
permanências interagindo simultaneamente sobre estruturas históricas de
longa duração, como indicado por Braudel.
A proposta de Wallerstein tem, portanto, muito a oferecer à área
das Relações Internacionais. Pois a base dessas relações é esse sistema social
histórico, ou seja, o sistema-mundo capitalista constitui-se na estrutura
histórica das Relações Internacionais. E sua análise exige uma ótica abran-
gente que a EPSM apresenta.
2 O PAPEL DO ESTADO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NA PERSPECTIVA DA EPSM
Para demonstrar a contribuição inovadora da abordagem da
EPSM para análise das relações internacionais, apresentamos como amos-
tra, considerações sobre o papel do Estado neste contexto.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
As abordagens clássicas da área de Relações Internacionais – re-
alismo, liberalismo e suas variantes – possuem pressupostos diferentes ao
que tange o papel do Estado. Para o Realismo, o Estado possui “[...] duas
funções precisas: manter a paz dentro das suas fronteiras e a segurança dos
seus cidadãos em relação a agressões externas.” (NOGUEIRA; MESSARI,
2005, p. 24). E o poder de cada Estado é denido “[...] em comparação
com os demais com os quais compete.” (NOGUEIRA; MESSARI, 2005,
p. 29). Para os autores dessa vertente, o Estado tem a primazia de ser o su-
jeito nas RI. “Os realistas consideram que o Estado é um ator unitário e ra-
cional, o que signica que o Estado age de maneira uniforme e homogênea
e em defesa do interesse nacional.” (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 25,
grifo dos autores). Já os autores liberais, olvidadas as diferentes vertentes,
destacam outros sujeitos nas RI, como o mercado livre, e as instituições
internacionais. E segundo Nogueira e Messari,
Nos últimos 20 anos, fortaleceu-se o senso comum de que o ordena-
mento do sistema internacional passa, necessariamente, pelo fortaleci-
mento de instituições, pelo crescimento do comércio internacional e
pela difusão de valores liberais. Da mesma forma, é forte a convicção
em torno da ideia de governança global, ou seja, de que é necessário
construir estruturas de autoridade de alcance mundial, mesmo que isso
represente uma redução da autonomia dos Estados. (2005, p. 102).
Para Wallerstein, os Estados surgem dentro de um conjunto, o
sistema interestatal, na mesma conjuntura da gênese do capitalismo his-
tórico. O sistema capitalista requer uma relação muito particular entre
os produtores econômicos (cadeias mercantis) e os que detêm o poder
político (Estados nacionais) (WALLERSTEIN, 2010, p. 32-35). Como
exemplicamos anteriormente, os Tratados de 1810 entre a Inglaterra e
Portugal, ilustram também esse aspecto da relação entre os elementos de
ordem política e os econômicos. A Inglaterra utilizou de seus dotes polí-
ticos e militares para exigir a assinatura dos acordos. Mas a quem de fato
estes interessavam? No início do século XIX, a Inglaterra vivia um cume
industrial, o qual determinava uma urgente ampliação do mercado con-
sumidor para seus produtos. Assim assinar acordos econômicos que in-
cluíram taxas alfandegárias benécas proporcionou à burguesia industrial
inglesa um próspero mercado a ser abastecido.
Raal Salatini (Org.)

O capitalismo, como analisa Braudel, caracteriza-se por grandes
transações comerciais e nanceiras, em que o capital é dotado de mobi-
lidade e exibilidade, com uma liberdade de escolha que está acima das
regras da economia de mercado. O esforço capitalista é, portanto, para
ultrapassar fronteiras e limites do próprio mercado – nem sempre ocorren-
do de forma linear e progressiva – atingindo assim suas metas globais de
maximização de lucros (VIEIRA, 2006, p. 107). Braudel encara a emer-
gência e a expansão do capitalismo como absolutamente dependentes do
poder estatal. “O capitalismo só triunfa quando se identica com o Estado,
quando é o Estado.” (BRAUDEL, 1985, p. 70).
Para os capitalistas, Estados soberanos são importantes por vários
aspectos:
1] Os estados impõem as regras sobre a troca das mercadorias, do ca-
pital e do trabalho, e em que condições podem cruzar suas fronteiras.
2] Criam as leis concernentes aos direitos de propriedade dos estados.
3] Criam as regras concernentes ao emprego e à compensação dos em-
pregados. 4] Decidem os custos que as companhias devem assumir. 5]
Decidem que tipo de processos econômicos devem ser monopolizados,
e até que ponto. 6] Cobram impostos. 7] Por último, quando as com-
panhias estabelecidas dentro de suas fronteiras vierem as ser afetadas,
podem usar seu poder no exterior para inuenciar as decisões de outros
estados. (WALLERSTEIN, 2010, p. 68).
Observa-se, então a importância fundamental do Estado para a
acumulação de capitais. E “A relação entre os estados com as empresas é a
chave para o entendimento do funcionamento de uma economia-mundo
capitalista.” (WALLERSTEIN, 2010, p. 69). Apesar do discurso ideoló-
gico de não interferência, os empresários recorrem ao Estado para atingir
seus objetivos. Como vimos no caso dos Tratados de 1810, a diplomacia
britânica negociou os acordos em benefício dos capitalistas compatriotas.
Também é o Estado que oculta as trocas desiguais, ou seja, a pró-
pria estrutura da economia-mundo capitalista, na separação aparente entre
a área econômica e a área política.
[...] os processos de acumulação do capitalismo levaram à sua concen-
tração geográca [...]; visto que a troca desigual responsável por ela fora
possível graças à existência de um sistema interestatal composto por

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
estados hierarquizados; e visto que as máquinas estatais tinham poder
de alterar as operações do sistema [...] (WALLERSTEIN,1985, p. 51).
Também cabem aos Estados soberanos as facilidades para a trans-
nacionalidade das cadeias mercantis. Outra característica da economia-mun-
do capitalista é a coincidência da concentração de capitais no centro com
estados fortes, pois a importância do Estado também é observável na criação
de vantagens monopolistas. Assim, pode-se armar que cabe aos Estados a
interferência nas cadeias mercantis, na regulação ou ausência dela nas ques-
tões relativas ao trabalho e ao capital em geral. Ou seja, cabe aos Estados “A
homogeneidade nacional no interior duma heterogeneidade internacional
é a fórmula duma economia-mundo.” (WALLERSTEIN, [197-?], p. 343).
E o equilíbrio de poder é consequência da rivalidade interestatal, pois
esta garante que não haja um Estado que possa alcançar seus objetivos na arena
internacional sem o aceite de vários outros membros. No moderno sistema-
-mundo capitalista, isso ocorre porque os Estados centrais têm buscado uma
hegemonia; sendo, portanto, capazes por algum tempo “[...] de estabelecer as
regras do jogo no sistema interestatal, em dominar a economia-mundo (na
produção, comércio e nanças), em obter seus objetivos políticos com o uso
mínimo da força militar [...]” (WALLERSTEIN, 2010, p. 83).
O que impulsionou a prodigiosa expansão da economia mundial capi-
talista nos últimos quinhentos anos, [...] não foi a concorrência entre
os Estados como tal, mas essa concorrência aliada a uma concentra-
ção cada vez maior do poder capitalista no sistema mundial como um
todo. (ARRIGHI, 1996, p. 13).
Paralelamente a esse processo ocorreu a hierarquização do siste-
ma-mundo capitalista em centro / periferia / semiperiferia.
Os estados fortes servem os interesses de alguns grupos e prejudicam
os de outros. No entanto do ponto de vista do sistema mundial como
um todo, se tem que existir uma multidão de entidades políticas (isto
é, se o sistema não é um império-mundo), então não pode dar-se o
caso de que todas estas entidades, sejam igualmente fortes. Porque
se o fossem, estariam em condições de bloquear o funcionamento
efectivo [sic] de entidades econômicas transnacionais cujo centro es-
tivesse noutro estado. [...] Isto implica então que a economia-mundo
Raal Salatini (Org.)

desenvolve um modelo em que as estruturas do Estado são relativa-
mente fortes nas áreas do centro e relativamente fracas na periferia.
(WALLERSTEIN, [197-?], p. 343-344).
E também:
Os estados, como temos realçado, existem dentro do quadro de um
sistema interestatal, e sua força relativa não é apenas o grau em que
podem exercer sua autoridade no interior com também o grau em que
podem manter suas cabeças no alto no competitivo meio do sistema-
-mundo. (WALLERSTEIN, 2010, p. 80).
Os Estados mais fortes vinculam-se com os mais débeis, pressio-
nando-os para que mantenham suas fronteiras abertas ao uxo dos fatores
de produção úteis às empresas centrais, para que se adaptem às suas necessi-
dades políticas e para que aceitem suas práticas culturais, mas que não ajam
com reciprocidade em nenhum dos casos (WALLERSTEIN, 2010, p. 80).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso aqui desenvolvido buscou demonstrar que as posturas
metodológicas da EPSM – sobretudo duas delas: a abordagem histórica
de longa duração e a postura interdisciplinar – proporcionam um olhar
inovador das RI, em que a imbricação entre o Estado e os interesses do
grande capital é elemento fundamental para a compreensão da realidade
capitalista.
Assim, para a EPSM, as esferas política e econômica, ou seja, o
Estado e as cadeias mercantis são indissociáveis. E, no sistema capitalista,
cabe aos Estados o papel de facilitar a implementação de estruturas econô-
micas, políticas, sociais e culturais para o desenvolvimento do capitalismo.
São dois subsistemas articulados.
Portanto, nas análises no campo das Relações Internacionais,
pendermos somente a uma dessas esferas a condição de protagonismo his-
tórico apresenta-se insuciente. Ambas condicionam e determinam as rela-
ções interestatais. E deste modo as Relações Internacionais, enquanto área
de estudo, não pode prescindir de observar as relações entre a economia e a

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
política. Também somente a partir dessa intersecção se pode compreender
a relação entre local e o global. E é por isso que a EPSM tem contribuições
imprescindíveis para os estudos nas Relações Internacionais.
A abordagem da EPSM nos oferece uma compreensão abran-
gente do mundo em que vivemos, de suas contradições e principalmen-
te de sua dimensão relacional. Especicamente no campo das Relações
Internacionais a EPSM revela novas possibilidades de pesquisas.
REFERÊNCIAS
ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo.
Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Ed. UNESP,
1996.
BRAUDEL, F. A dinâmica do capitalismo. Tradução Carlos da Veiga Ferreira.
Lisboa: Editorial Teorema, 1985.
______ . Escritos sobre a história. Tradução J. Guinsburg e Teresa C. S. Mota. São
Paulo: Ed. Perspectiva, 1992.
______. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. Tradução
Telma Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
NOGUEIRA, J. P.; MESSARI, N. Teoria das Relações Internacionais: correntes e
debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
VIEIRA, P.; VIEIRA, R. L.; FILOMENO, F. A. (Org.). O Brasil e o capitalismo
histórico: passado e presente na análise dos sistemas-mundo. São Paulo: Cultura
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VIEIRA, R. L. A globalização econômica: diferentes leituras de um processo his-
tórico. Revista do Instituto histórico e Geográco Brasileiro, Rio de Janeiro, ano
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______. O arquétipo do capitalismo: uma construção. 2010. Disponível em:
<http://www.gpepsm.ufsc.br/html/arquivos/o_arquetipo_do_capitalismo_%20
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VOIGT, M. R. A análise dos sistemas-mundo e a política internacional: uma
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Florianópolis, v. 10, n. 2, p. 101-118, jul./dez. 2007.
WALLERSTEIN, I. O capitalismo histórico. Tradução Denise Bottmann. São
Paulo: Brasiliense, 1985.
Raal Salatini (Org.)

______. Impensar a ciência social: os limites dos paradigmas do século XIX.
Tradução Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. Aparecida: Idéias & Letras, 2006.
______. Análisis de sistemas-mundo: una introducción. Tradução Carlos Daniel
Schroeder. México: Siglo XXI, 2010.
______. A análise dos sistemas-mundo como movimento do saber. In: VIEIRA,
P.; VIEIRA, R. L. ; FILOMENO, F. A. (Org.). O Brasil e o capitalismo histórico:
passado e presente na análise dos sistemas-mundo. São Paulo: Cultura Acadêmica,
2012. p. 17-28.
______. O moderno sistema-mundo. Tradução Carlos Leite, Fátima Martins e Joel
Lisboa. Porto: Afrontamento, [197-?]. v. 1.

8.
MINHA CASA É SUA CASA: A NECESSÁRIA
HOSPITALIDADE GREGA NA REGULAÇÃO DAS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Cristina de Souza Agostini
Em um mundo sem instituições internacionais de regulação
das relações de políticas externas, a segurança dos indivíduos durante seus
deslocamentos geográcos está sujeita a regras particulares estipuladas de
acordo com costumes locais. De fato, tais costumes, por um lado, podem
ser ancestrais e não passíveis de julgamento em relação à sua legalidade,
mas, de outro lado, embora não sujeitos à categorização legal, pois são
reetores de uma cultura que deve ser preservada para a preservação do
próprio povo que a instituiu, algumas práticas culturais das mais diferentes
sociedades podem colocar em risco aqueles que, independentemente das
motivações, decidem sair para fora de seus muros locais em direção ao
conhecimento do outro.
Viajar em um mundo em que instituições reconhecidas como re-
guladoras das relações entre habitantes locais e estrangeiros são inexistentes
signica conviver com o outro apoiado em contratos estabelecidos privada-
mente que assegurem a possibilidade das viagens e mesmo das trocas co-
merciais indispensáveis à subsistência. Assim, como garantir que o viajante
retornará à sua casa originária? De que modo assegurar que o antrião não
saqueie e torne escravo o hóspede que vem em paz? Como fazer com que
o hóspede respeite o antrião e não se aproveite da hospitalidade que lhe
Raal Salatini (Org.)

fora conferida para sequestrar sua esposa e apossar-se de seus bens? Essas
são questões inerentes a um mundo no qual o campo do desconhecido é
innitamente maior que o do conhecido e em que a justiça é estabelecida
em acordo direto entre homens.
Portanto, é visando compreender de que modo a hospitalidade gre-
ga se consagra como instituição fundamental para as relações entre diferentes
comunidades que articularei, em um primeiro momento, minha argumen-
tação. Na ausência de uma organização tal como a ONU, por exemplo, ou
de acordos estabelecidos acerca da garantia dos Direitos Humanos, apreen-
demos por meio das narrativas homéricas e do teatro ático, por exemplo,
que a instituição hospitaleira encontra sua origem e legitimação na própria
divindade. Com efeito, é o divino e, portanto, algo que não está atrelado à
arbitrariedade ou vontades humanas que garante a segurança da convivência
entre antriões e estrangeiros. Assim, é acerca da fundamental importância
dessa instituição, no mundo antigo, que pretendo tratar a m de demonstrar
como, na ausência de leis universais que assegurem os direitos de habitantes
locais e de estrangeiros, os gregos se valem do âmbito deídico garantidor
da justiça universal para estruturar tal relação. Em um segundo momento,
discutirei de que modo podemos pensar a argumentação que justica a es-
cravidão natural e condena a que se estabelece contra a natureza, elaborada
por Aristóteles, na Política, na esteira de uma teoria que, em última instância,
fundamenta a necessária garantia de salvaguarda dos homens, sejam locais
ou estrangeiros, gregos ou bárbaros.
A HOSPITALIDADE ENQUANTO INSTITUIÇÃO SAGRADA
Após entrar em acordo com seu pai, Zeus, acerca da ajuda que
os deuses dispensariam para o retorno à Ítaca do muito-astucioso Odisseu,
Atena, prontamente, desce à terra para colocar em marcha o plano divi-
no que começará pela sábia orientação que a deusa conferirá ao lho do
Laertida, Telêmaco. Assim, não enquanto divindade, mas em corpo de va-
rão guerreiro aliado de Odisseu, a deusa coloca-se frente à casa do lho de
Laerte e aguarda ser recebida.
Nisso (Telêmaco) reetia, sentado entre os pretendentes, e viu Atena.
Foi logo ao pórtico, indignado no ânimo
Por um hóspede tardar nos portões. Parado perto,

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Apertou-lhe a mão direita, tomou a lança brônzea
E, falando, dirigiu-lhe palavras plumadas:
“Saudação, estranho, por nós serás acolhido. Depois,
Após tomar parte no jantar, enunciarás o que precisas”.
Assim falou, tomou a frente, e seguiu-o Palas Atena.
(HOMERO, Odisseia, Canto I. vv. 118-125).
Atena tal qual um aliado é recebida por Telêmaco sem delongas
ou perguntas. Após lavar-se e comer é que, então, ela se apresenta como
Mentes, lho de Anquíalo, do povo táo (vv. 180-81) para que, assim,
articule um discurso capaz de direcionar o lho de Odisseu na missão
que visa a reintrodução do rei de Ítaca em solo pátrio. Com efeito, tendo
persuadido Telêmaco a assumir as rédeas da busca pelo pai e lhe insuado
ânimo, a deusa regressa à morada deídica olímpica.
No Canto X, ainda da Odisseia homérica, na narrativa que o he-
rói faz ao povo feácio acerca de muitas de suas peripécias, vislumbramos os
acontecimentos que antecedem a famosa transformação dos companheiros
de Odisseu em porcos pela maga Circe. Ora, antes de aportarem à ilha
Aiaie, o herói desembarca na ilha utuante de Eolo.
Mês inteiro hospedou-me e perguntava de tudo,
De Ílion, das argivas naus e do retorno dos aqueus;
E eu tudo a ele, ponto por ponto, contei.
Mas quando também eu pedi a viagem e roguei
Ser conduzido, não negou e preparou a condução.
Deu-me saco de couro, que tirara de boi nove-anos,
Onde prendeu as rotas dos ventos uivantes.
(HOMERO, Odisseia, Canto X. vv. 14-20).
Iguais a esses, são inúmeros outros eventos que permeiam a epo-
peia de Homero. No mundo representado pela Ilíada e pela Odisseia, a
hospitalidade não é apenas um favor que pode ou não ser feito, mas é uma
instituição sagrada.
Em outro registro, a saber, em um escólio às Fenícias, de Eurípides,
temos uma importante variante do mito da família de Édipo, persona-
gem caro ao ideário grego, cuja versão consagrada pela contemporanei-
dade é aquela da tragédia de Sófocles, Édipo rei. Nesse escólio, Pisandro
Raal Salatini (Org.)

atrela à conduta de Laio, pai de Édipo, a mácula que permeará a vida dos
Labdácias. Segundo o escoliasta, quando o rei de Tebas, Lábdaco, faleceu,
seu herdeiro, Laio, ainda era muito jovem para assumir o trono e, assim, a
regência fora entregue a um parente próximo, Lico. Com efeito, este fora
assassinado por dois irmãos usurpadores: Zeto e Anon. Laio, então, fugiu
para o reinado de Pélope, na Élida, e foi recebido conforme todos os pre-
ceitos da hospitalidade. Junto a Pélope, Laio teve proteção, tendo sido in-
troduzido à família real tal como se fosse mais um lho legítimo. E, assim,
convivendo com Crisipo, lho de Pélope, nutriu por ele imensa amizade:
compartilhavam a mesma mesa, os mesmos divertimentos e ensinamentos.
Até que um dia, tomado por ilícita paixão, Laio violenta o jovem Crisipo.
Este, por sua vez, “por vergonha, se matou com a própria espada” (GUAL,
2012, p. 80). Ora, Laio, então, volta para Tebas a m de se tornar rei da
cidade, uma vez que Zeto e Anon haviam morrido. No entanto, sabendo
que o jovem que fora acolhido na condição de hóspede cometera crime
contra seu lho Crisipo, de um lado, Pélope lança funesta praga contra
Laio, praga essa que se estendia à sua descendência e, de outro lado, uma
vez que os tebanos receberam Laio fazendo vista grossa para a criminali-
dade do ato cometido contra a casa de Pélope, Hera envia a Esnge como
punição, pois se sentira ultrajada pelos cidadãos de Tebas que desprezaram
a aplicação da justiça.
Como salienta Carlos García Gual,
a afronta criminal não estaria tanto na paixão homossexual que im-
pulsiona Laio, mas em uma agressão que vai contra as normas da hos-
pitalidade, pois o exilado monarca tebano havia sido acolhido como
hóspede pelo rei argivo Pélope, e na violência caluniosa que exerce Laio
sobre o jovem príncipe. Essa agressão e ultraje, causa da morte do jo-
vem Crisipo, provocam a maldição que pesará sobre Laio e sua estirpe.
A conduta de Laio supõe um crime ímpio que o mancha e que recai
sobre ele e sua descendência. (GUAL, 2012, p. 81-82).
Assim, podemos dizer que Laio é criminoso, sobretudo, por ter
violado o respeito à hospitalidade que, para os gregos, era uma instituição
presidida pelo próprio Zeus.
Ora, na Grécia Antiga, termos como hóspede, antrião, estra-
nho e estrangeiro são expressos pela mesma palavra: xenos. Daí, então, a

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
origem do vocábulo - a cada dia mais atual no cenário das relações polí-
ticas e de disputas internacionais- xenofobia, que expressa a aversão pe-
los estrangeiros. No entanto, o léxico grego antigo unica no mesmo vo-
cábulo concepções que, para nós, são assaz distintas, como “antrião” e
“hóspede”/“estrangeiro” demonstrando por meio da linguagem que tais
posições na estrutura de um lar ou da sociedade são, por denição, relativas
e dependentes dos momentos e localidades nos quais ocorrem. Em outros
termos, a xenia grega elabora-se sobre o fato de que o estrangeiro assim o
é porque está fora dos limites da comunidade a que pertence naquele mo-
mento e, portanto, torna-se hóspede, na medida em que é abrigado por de-
terminado período por antriões locais. Quando ele volta para sua morada
de origem, obviamente, não é mais estrangeiro, mas potencial antrião
que retribuirá a hospitalidade conferida a quem lhe acolheu durante sua
estadia fora de casa. Logo, qualquer estrangeiro é um potencial hóspede
e, consequentemente, potencial antrião. É porque se estabelece sobre o
dinamismo dessas relações que a semântica da xenia é, portanto, dinâmica.
“Não é de surpreender que, numa cultura arcaica, pré-alfabetiza-
da, onde não havia instituições internacionais ou normas reconhecidas, o
comportamento correto em relação a estranhos fosse considerado obriga-
ção sagrada” (MARTIN, 2014, p. 49), e aquele que desrespeitasse as nor-
mas da xenia, de fato, desrespeitava os próprios deuses e, sobretudo, o pai
de deuses e homens, Zeus, que, entre outros títulos, era conhecido como
Xenios: patrono da hospitalidade, disposto a vingar-se dos males cometidos
contra os estrangeiros.
Nesse contexto, torna-se mais compreensível o porquê o moti-
vo da Guerra de Troia, presente na epopeia homérica, atrele-se à fuga de
Helena com Páris. Com efeito, quando a fuga do casal ocorre, o troia-
no estava sendo hospedado por Menelau, marido de Helena, em Esparta.
Assim, ele estava sob a égide da instituição que, como vimos, é sagrada para
os gregos, a xenia. Nesse sentido, o crime do hóspede vai muito além de
uma querela passional como, em nossa contemporaneidade, poderíamos
pensar. De fato, ao levar para Troia, Helena, esposa de seu antrião, Páris
viola preceitos divinos, alterando, desse modo, a ordem natural. Logo, uma
guerra é iniciada para vingar o delito que fere a xenia e restabelecer a justiça
e equilíbrio “na intersecção dos níveis social e cósmico” (MARTIN, 2014,
Raal Salatini (Org.)

p. 50), não se tratando, de modo simplista, da reação privada de um mari-
do traído que decide mover céus e terra para demonstrar a posse que detém
sobre sua mulher enquanto propriedade, uma vez que ferir os preceitos de
hospitalidade implica em cometer um crime contra a única instituição que
garante a salvaguarda de todos os estrangeiros, logo, de todos os integran-
tes de diversas pequenas comunidades. Assim, a convocação de Menelau
para a guerra consiste na reação cabível para que a segurança de todos, fora
dos muros de suas comunidades originárias, seja novamente resguardada:
é preciso que a paz ordeira e a tranquilidade de hóspedes e antriões sejam
restabelecidas. É preciso que os deslocamentos comerciais, rituais ou artís-
ticos possam desenrolar-se para a supressão das necessidades dos homens.
A Guerra de Troia é o exemplo mítico das consequências catastrócas a que
estão sujeitos aqueles que desrespeitam a necessária e sagrada reciprocidade
que permeia a semântica da xenia.
Tendo em mente a importância da hospitalidade grega para a
segurança de indivíduos que não dispõem de instituições internacionais
que garantam sua integridade em território estrangeiro, passemos, assim,
ao segundo momento desse texto que visa compreender de que modo a
argumentação losóca de Aristóteles além de ter servido para legitimar
desde a escravização dos indígenas americanos até a estruturação de uma
economia em que desenvolvimento e ética andam de mãos dadas, de fato,
nos auxilia a vislumbrar que a preocupação com a segurança dos homens
em solo estranho era urgente para o pensamento losóco grego.
ARISTÓTELES E A POSTERIDADE
Entre 1550 e 1551, em Valladolid, Espanha, 14 teólogos reuni-
ram-se em torno do imperador Carlos V a m de debaterem a seguinte
questão: era justo promover uma guerra contra os índios a m de sub-
metê-los à conversão cristã? Com efeito, o célebre encontro ocorrido na
cidade espanhola teve como centro do embate os argumentos do Bispo
Bartolomeu de Las Casas e do Cônego Juan Ginés de Sepúlveda. O pri-
meiro mostrava-se contrário à ideia de que os povos americanos indígenas
fossem inferiores e bárbaros e, portanto, ele opunha-se à ideia de que tais
povos deveriam ser escravizados e forçados por meio da violência a con-

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
verterem-se ao cristianismo, bem como, contrário à ideia de que a explo-
ração econômica indígena estava de acordo com a legalidade. Já Sepúlveda
argumenta que os índios eram seres naturalmente inferiores, com costu-
mes bárbaros e, portanto, deveriam sujeitar-se ao domínio dos espanhóis:
homens superiores, civilizados e cristãos. Nesse sentido, um dos focos da
estruturação argumentativa do cônego residia em, a partir do postulado de
que há uma conformidade natural em que o perfeito domina o imperfeito,
procurar demonstrar que o inferior deve ser dominado pelo superior e,
assim, a única atitude naturalmente justa que os povos americanos pode-
riam adotar seria a de aceitar a sujeição à Coroa Espanhola. O corolário
do posicionamento de Sepúlveda consiste, então, em admitir a justiça da
guerra contra os povos considerados bárbaros, forçando-os a se submeter
à ordem natural do cosmo, caso eles se recusassem a admitir o domínio da
cristandade civilizatória.
Ora, a posição de Sepúlveda acerca da inferioridade indígena e
da legitimidade de uma guerra que subjugue os povos bárbaros que não
aceitarem a justiça e natureza da dominação de um povo superior, de certo
modo, encontra suas raízes na Política, de Aristóteles.
Em seu percurso acadêmico, Sepúlveda foi assaz interessado pela
losoa aristotélica, traduzindo algumas obras do Estagirita, bem como
o Comentário à Metafísica de Aristóteles, de Alexandre de Afrodísia. Com
efeito, a fama do teólogo relacionada à tradução dos textos aristotélicos
foi responsável pelo convite feito pelo papa Clemente VII, pouco antes
de morrer, para que integrasse a Corte Pontica como tradutor ocial
de Aristóteles. Assim, podemos dizer que o conhecimento de Sepúlveda
acerca dos textos do lósofo grego constituiu base importante para as ar-
gumentações que ele desenvolveu em favor da subjugação dos indígenas
americanos nos textos Demócrates Segundo ou Das justas causas da guerra
contra os índios e Apologia, textos esses apresentados durante a reunião de
Valladolid. Portanto, vemos como o texto do lósofo é utilizado em um
contexto e, por que não dizer, para uma nalidade completamente dife-
rente daquela que ele próprio tinha em mente quando concebeu sua argu-
mentação losóca.
De fato, a pretensa legitimação da dominação dos povos da
América fundamentada, em grande medida, pela losoa aristotélica
Raal Salatini (Org.)

mostra-se como grande esforço teórico e intelectual da interpretação do
texto do Estagirita no sentido de demonstrar a justiça e, portanto, em
tal contexto, o acordo dos preceitos cristãos com os interesses pessoais
de determinados grupos. Tais interesses resvalavam, em última instância,
na instauração, de modo inconteste, da subjugação dos indígenas aos es-
panhóis, na medida em que, segundo o argumento, os primeiros seriam
destituídos naturalmente das condições humanas essenciais para visarem
uma vida virtuosa e, portanto, necessário era que fossem conduzidos de
modo justo por aqueles que possuíam a faculdade deliberativa, a saber, os
conquistadores espanhóis. Assim, o que Sepúlveda faz com a autoridade
da base aristotélico-escolástica é, precisamente, fundamentar em terreno
rme a legitimidade da guerra para a conversão dos povos “bárbaros” que
se negarem de bom grado e pacicamente a submeter-se aos cristãos es-
panhóis que, por natureza, têm o dever de direcionar os “selvagens” pelas
veredas da verdadeira virtude cristã.
Em 1998, o economista Amartya Sen ganhou o prêmio Nobel
de Economia por suas contribuições à teoria da decisão social e do Welfare
State. Com efeito, um dos pontos fundamentais do pensamento do econo-
mista indiano reside no fato de atrelar ao desenvolvimento a importância
da liberdade dos indivíduos em relação às suas escolhas para o exercício da
cidadania. Com efeito, a partir do estudo, retomada e reinterpretação da
Ética aristotélica, Amartya Sen concebe a indispensabilidade da ética para a
economia, uma vez que o desenvolvimento econômico de um país não está
ligado, por um lado, apenas a seu enriquecimento: países podem dispor de
muitas riquezas, ter um mercado de consumo interno e externo aquecidos
e, ao mesmo tempo, apresentarem altíssimos índices de pobreza. Contudo,
por outro lado, não somente a garantia de direitos sociais básicos basta
para o desenvolvimento: antes é a liberdade que os indivíduos têm em fa-
zer escolhas, bem como o campo aberto de oportunidades que promovem
o desenvolvimento. Em outros termos, as instituições não devem cercear
nem oprimir as vontades dos cidadãos, mas cooperarem para a ampliação
de suas potencialidades que resultarão no verdadeiro desenvolvimento.
Sepúlveda e Amartya Sen são dois dentre inúmeros outros autores
que se valem da losoa de Aristóteles para sustentar argumentos que dizem
respeito a seus próprios posicionamentos acerca de questões delimitadas em

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
diferentes situações contextuais. Por meio deles, vemos de modo emblemáti-
co como a atualização do pensamento de um mesmo lósofo pode destinar-
-se a objetivos tão diferentes. Logo, é na retomada dos textos antigos com
o pressuposto e intuito da perene atualização que o perigo da criação de
ideologias e doutrinas capazes de arrebanhar numerosos indivíduos sedentos
de embasamento para seus próprios interesses ou preconceitos se faz. Assim,
passemos ao texto de Aristóteles, deixando de lado o uso que dele nosso
presente e nossas demandas atuais podem fazer, para pensar acerca da legiti-
mação da escravidão natural com vistas a compreender de que modo o ló-
sofo, em certo sentido, desenvolve uma argumentação de acordo com uma
chave que assegura a salvaguarda de todos os gregos em terras estrangeiras e,
portanto, de que maneira, na esteira de Homero, o texto aristotélico concebe
as relações internacionais entre gregos sob a égide da necessária liberdade e
respeito, a despeito de suas comunidades originárias.
ARISTÓTELES E A FUNDAMENTAÇÃO DA ESCRAVIDÃO
No Primeiro Livro da Política, em 1254 a 17-19, Aristóteles in-
vestiga se “existem ou não homens que, por natureza, tenham índole de
escravo, e se é melhor ou mais justo serem assim, ou se, pelo contrário,
toda a escravidão é contrária à natureza”. Ora, o plano do lósofo consiste
em considerar se a escravidão natural é um fato e caso seja, investigar se é
melhor e justo (beltion kai dikaion) que escravos por natureza sejam es-
cravizados, ou então, se toda a escravidão existente é contrária à natureza
(para phusin) e, portanto, injusta.
Para Aristóteles, a natureza é um grande guia para a conduta hu-
mana, pois nada do que ela faz é casual, mas segue a necessidade de uma
ordem. Nesse sentido, por exemplo, é que a fala deve ser compreendida:
como a demonstração de que nada do que ocorre segundo a natureza é
por acaso, mas necessário e, portanto, indispensável para compreendermos
nossa natural posição em relação aos outros homens, bem como no que diz
respeito aos outros animais. Ora, dentre todos os seres animados, o homem
é o único a falar porque sua sociabilidade é plena. Muito mais que outros
animais também gregários, como abelhas ou formigas, a vida humana
pode ser considerada completamente realizável quando acontece em meio
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
a outros homens. Com efeito, a fala sinaliza para a natural e necessária co-
municação dos sentimentos de justiça e injustiça que só é possível em meio
a outros seres receptivos ao discurso que se articula por meio de palavras e,
portanto, que exige daquele que fala o uso da razão: faculdade que dene,
por excelência, o homem. Desse modo, o argumento da necessidade natural
implica na conclusão aristotélica de que qualquer busca humana por um
modo de vida solitário vai na contracorrente da natureza, uma vez que a
expressão da racionalidade por meio da fala seria inviabilizada por uma
escolha antinatural e, assim, injusta na medida em que a justiça consiste
em seguir a necessidade naturalmente ordeira.
Nesse sentido, caso a escravidão natural seja demonstrada, logo,
ela será necessária e justa, contribuindo para o bem tanto do senhor quan-
to e, sobretudo, do escravo. Vejamos.
É um escravo por natureza aquele que pode pertencer a outro (e é
esta a razão por que pertence de fato) e também aquele que participa
da razão o suciente para a apreender sem, contudo, a possuir; os
animais distintos do homem nem sequer são capazes de participar da
forma sensitiva da razão; apenas obedecem passivamente às impressões.
Quanto à utilidade, escravos e animais domésticos pouco diferem;
prestam ambos auxílio ao corpo, na medida de nossas necessidades.
(ARISTÓTELES, Política 1254 b 20-25).
A denição aristotélica da escravidão natural reside em destituir
do escravo a posse da racionalidade. Em outros termos, dizer que o escravo
natural não tem razão signica armar a possibilidade da existência de um
“homem” incapaz de escolher e, portanto, impossibilitado de tomar deci-
sões em decorrência de sua própria natureza. No entanto, tal “homem” é
capaz de participar da razão de outrem sem compreendê-la. Com efeito, para
Aristóteles, o indivíduo que naturalmente e, então, de modo justo, deve ser
escravizado é aquele que necessita do direcionamento de outro homem, pois
ele mesmo não possui os meios intelectuais para dirigir sua vida. Logo, o
escravo natural é um “homem” inteiramente perdido em meio aos demais, e
que sem o auxílio da razão de outro homem perece à míngua pela impossi-
bilidade de qualquer tomada de decisão. Assim, Aristóteles legitima a escra-
vidão natural sobre a base da incapacidade de sobrevivência do escravo sem
um senhor que lhe utilize como ferramenta animada. Tal relação despótica

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
ncada na justiça natural consiste em “convergência de interesse e amizade
(philia) recíprocas entre o senhor e o escravo que merecem o respectivo esta-
tuto por natureza” (ARISTÓTELES, Política, 1255 b 12-14).
Vemos, então, que a escravidão legitimada pela argumentação
aristotélica requer, em primeiro lugar, a existência de um escravo que é
denido em decorrência de sua total insuciência deliberativa. Havendo
no mundo o escravo, a escravidão consistirá na única alternativa capaz de
garantir sua sobrevivência. Uma vez que o escravo não tem aptidão intelec-
tiva para resistir à escravidão, esta será sua salvaguarda na medida em que
lhe assegura alimento, abrigo e vestuário em troca de trabalhos que se di-
rigem ao corpo. Como o senhor precisa do escravo para realizar ações que
seu corpo não está talhado para fazer, a reciprocidade de interesse e amiza-
de conduzem a relação, pois o escravo ocupa o papel de corpo do senhor,
perfazendo com ele uma espécie de unidade em que o prejuízo contra um
necessariamente resultaria em malefício para o outro.
Nesse sentido, a avaliação acerca da justiça da escravidão deve ter
como parâmetro essencial a premissa da necessidade: o escravo que, por um
lado, necessita ser escravizado, pois tal condição é sua única opção de vida
e, por outro lado, o senhor que necessita de um escravo para que incorpore
o papel de parte animada de seu corpo.Logo, qualquer outro tipo de escra-
vidão será por convenção e, portanto, injusta.
Ora, desse modo, a prática escravocrata oriunda das guerras, ao
fazer de homens livres, escravos, contraria a natureza que estabelece tais
distinções, resvalando na violência e injustiça.
A causa das guerras pode não ser justa e ninguém pode reconhecer como
escravo, de maneira alguma, a quem não o merece ser. Por outro lado,
pode suceder que os considerados de mais nobre nascimento se tornem
escravos e descendentes de escravos, caso sejam capturados e vendidos.
Por esta razão, esses autores não admitem descrever os gregos como es-
cravos, mas apenas os bárbaros. E mesmo assim, quando referem isso,
apenas visam o escravo por natureza, de que já tratamos: com efeito, é
forçoso reconhecer que alguns são escravos em qualquer parte, enquanto
outros em nenhuma. Isto também se aplica aos de nascimento nobre: os
gregos olham-se entre si como de nascimento nobre não apenas na sua
terra mas em toda a parte; aos bárbaros, consideram-nos nobres apenas
nas suas terras. (ARISTÓTELES, Política, 1255 a 24-34).
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
Esse trecho é emblemático na discussão empreendida por
Aristóteles sobre a escravidão no contexto bélico, pois demonstra que a
guerra não pode ser considerada uma justicativa legítima para a escravi-
dão, mas somente convencional. Com efeito, a teoria da escravidão justa
nos dá elementos para pensarmos em uma argumentação aristotélica que
se elabora visando sustentar a impossibilidade daquilo que se pretendia
demonstrar. As condições que justicam a escravidão são de difícil satis-
fação. Com efeito, é primordial a existência de um “homem” que não é
homem, mas similar a um animal, sem ser animal. O escravo não tem
racionalidade, mas dela consegue participar na medida em que é capaz de
somente obedecer ao senhor. Mesmo que tentemos encaixar a categoria de
escravo em uma situação de não letramento, isso não é ainda suciente
para cumprir a condição estruturada por Aristóteles, pois o não letrado
pode vir a ser letrado, enquanto o escravo não pode vir a ser senhor.
Aliás, ser ou não letrado será atributo indiferente quando o que está em
questão é decidir-se sobre aspectos essenciais da vida diária, algo que o
escravo não está apto a fazer.
Desse modo, uma das chaves para a leitura da teoria da escravidão
aristotélica, penso, está, precisamente, em ter como o condutor de análise a
impossibilidade da escravidão nas diferentes poleis gregas. Assim, o Estagirita
assegura aos helenos a garantia de que seus deslocamentos no território cuja
língua funciona como um dos elementos de identidade, a despeito das guer-
ras, não poderão ter como resultado um legítimo despotismo. Aliás, diria
que o texto de Aristóteles é capaz de nos levar mais longe ainda quando
se refere à escravidão dos bárbaros. Se de um lado, os gregos não se veem
como escravos devido à pretensa nobreza de suas origens, de outro lado, os
bárbaros a serem considerados escravos, pelos gregos, são aqueles que, por
natureza, assim o são. De outro modo, signica dizer que mesmo dentre os
bárbaros só podem ser feitos escravos aqueles que não apresentam a facul-
dade deliberativa e, portanto, mesmo nesse caso, a escravidão funcionaria
como garantia de sobrevivência para os povos não gregos.
Nesse sentido, se de um lado, a hospitalidade do contexto ho-
mérico funda-se na supremacia de Zeus Xenios, por outro lado, a teoria
aristotélica da escravidão justa prescinde da divindade, encontrando na

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
própria natureza humana o elemento que separa o senhor do escravo. Para
Aristóteles, esse elemento é precisamente aquele que dene o homem, a
saber, a marca natural que faz dele necessariamente animal político: o logos.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Política. Edição bilíngue. Tradução António Campelo Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes. Lisboa: [s.n.], 1998.
GOMES, R. Com que direito?: análise do debate entre Las Casas e Sepúlveda-
Valladolid, 1550 e 1551. 2006. Dissertação (Mestrado)- Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.
GUAL, C. G. Enigmático Edipo: mito y tragédia. Madri: Fondo de Cultura
Económica, 2012.
HOMERO. Odisseia. Tradução Christian Werner. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
MARTIN, R. Apresentação. Tradução José Rubens Siqueira. In: HOMERO.
Odisseia. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 7-58.
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

9.
TERRORISMO INTERNACIONAL NO
SÉCULO
XXI: PERCEPÇÃO E DEFINIÇÃO
Fábio Metzger
Antes de falar sobre terrorismo, é necessário compreender o papel
do signicado da palavra “terror”. Se recorrermos ao signicado dos velhos
verbetes de dicionários de um mundo onde ainda se vivia em plena Guerra
Fria
1
, podemos encontrar: “1. Qualidade de terrível. 2. Grave perturbação,
trazida por perigo imediato, real, ou não; medo, pavor. 3 Pessoa ou coisa que
aterroriza. 4. Regime político de arbitrariedades.” (HOUAISS et al., 1988,
p. 1019). Ou o conceito de “terrorismo”, assim denido. “1. Sistema de go-
vernar por meio do terror. 2. Conjunto de ações violentas contra o poder es-
tabelecido, cometidas por grupos revolucionários.” (HOUAISS et al., 1988,
p. 1019). É importante notar que são diversas as denições, e se formos nos
ater a todas, não será possível pensar o tema com propriedade. Por isso, va-
mos excluir o primeiro tópico do verbete “terror”.
Se partirmos do pressuposto que um ato de terror puro e sim-
ples está mais adequado à denição do segundo tópico sobre “terror”
(HOUAISS et al., 1988, p. 1019), já podemos ter um bom ponto de parti-
da. Compreendamos o que um ato de terror é capaz de gerar em um indi-
víduo ou sociedade: perturbação pela sensação de um perigo imediato que
1
Período (1945-1989), que a Geopolítica Mundial esteve dividida entre dois blocos, um pró-capitalista, lidera-
do pelos EUA, e outro, pró-socialista, sob o comando da URSS.
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
pode ser, ou não, real, e que gera, anal, medo e pavor. Nem vamos nos
alongar mais profundamente: ao longo da História, desde que o primeiro ser
humano pretendeu gerar essas formas de sensações em indivíduos e socie-
dades inteiras, já poderíamos falar sobre terror e terrorismo. Esse desejo de
gerar no outros temores, tirando dele a capacidade de sentir-se seguro é algo
que está para além dos estudos das sociedades. Basta que entremos no meio
de uma grande e desconhecida oresta, para sentirmos essa mesma sensação,
sabendo que isso não terá sido o produto de um ser humano, mas sim de um
animal selvagem, mais forte e apto ao seu meio de sobrevivência. Em pen-
sando que o ser humano tem dentro de si esse componente selvagem, não
será surpreendente que ele gere a semelhante sensação de terror, principal-
mente, quando ambos estão tomados pelo medo, e um deles está mais apto
a agir. No entanto: o que nos faz falar sobre esse assunto apenas nos últimos
226 anos, e não ao longo de toda a história da humanidade?
Podemos partir de uma hipótese simples e objetiva: a percepção
do que é terror no senso comum só ganhou linguagem corrente, a partir do
governo revolucionário de Robespierre na França, após uma grande repres-
são neste país (1793-1794), com milhares de mortes e o medo daquelas
pessoas que foram alvos da revolução, e também as que lutaram em nome
dela, sendo, a partir de então, perseguidas por não concordarem com os
seus rumos. Em ns do século XVIII, a percepção da ideia de terror estava
ligada aos métodos de um governante com relação ao Estado que coman-
dava (ou seja, mais de acordo com a ideia do terceiro tópico do verbete).
Quando falamos de percepção, estamos indo além de um con-
ceito objetivo. Há aqui uma grande subjetividade. E se formos avançar
ao longo dos séculos XIX e XX, poderemos observar que a ideia de terror
pôde ser captada, fosse através daqueles que se utilizaram do Estado, ou
então de grupos que contra ele se insurgiram. É aqui que o verbete “ter-
rorismo” ganhou mais efetividade. É possível notar aqui que, mais do que
uma percepção, desenvolveu-se a construção de uma linguagem, que saiu
das relações sociais entre seres vivos, e entrou denitivamente para a po-
lítica, enquanto exercício do poder consciente dentro de uma sociedade e
entre sociedades diferentes.
Dessa subjetividade, foi possível, aos sistemas de poder hegemô-
nicos, construir suas próprias denições acerca do terrorismo; enquanto

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
grupos anti-hegemônicos acusavam de terroristas os governantes de atua-
ção despótica. Os discursos acerca do terror e do terrorismo foram sendo
apropriados pelos mais variados atores dentro do sistema internacional de
Estados, e no interior de cada uma das sociedades civis quando estas se
sentiam verdadeiramente ameaçadas.
Fosse pela defesa de causas nacionalistas progressistas ou então
pela reivindicação de um sistema contrário ao capitalismo (o socialismo),
grupos armados atacavam Estados Nacionais soberanos conservadores. Na
via contrária, grupos armados de motivação fundamentalista religiosa e/
ou nacionalistas reacionários ameaçavam Estados soberanos socialistas.
Dentro do Estado de direito democrático, cava fácil detectar que esses
grupos eram identicados como agentes do terror
2
. Dentro do Estado de
direito autocrático, entretanto, diante dos métodos utilizados pelos respec-
tivos governos, a sensação de terror só fazia sentido, na medida em que a
propaganda do regime vigente era eciente para denunciar a ameaça inter-
na. De outro modo, esses grupos poderiam ser associados a combatentes
de libertação nacional.
Durante a Guerra Fria, havia uma lógica binária de combate a
grupos pró ou anticapitalistas. Pró ou antissocialistas. Causas nacionais e
ideológicas estavam diretamente ligadas ao confronto maior dos dois gran-
des atores, os EUA e a URSS, além de seus aliados estratégicos. Com o
m da URSS, grande parte dessa lógica perdeu o sentido, e alguns dos
principais atores que estavam do lado capitalista, passaram a focar em uma
visão da antimodernidade. Dentro de uma questão que era inerente à se-
quência do m da Guerra Fria. De um lado, os vencedores do embate,
que se propunham a manter a agenda com as práticas do capitalismo, e as
ideias e os valores da democracia liberal
3
. De outro, um crescente grupo
que questionava, dentro ou fora do sistema capitalista os resultados da
modernidade inerentes à defesa dessas práticas, ideias e valores, evocando
um discurso conservador. Notemos que esse viés de grupos conservadores
não necessariamente violaria os termos da democracia liberal ou do sistema
capitalista. No debate entre liberais e conservadores nos EUA, essas ques-
2
Por exemplo, as Brigadas Vermelhas na Itália, atuantes ao longo dos anos 1970.
3
Para constar, Trotsky, ainda defensor da URSS pré-stalinista, portanto plenamente marxista-leninista, e em
plena guerra civil dos bolcheviques contra os mencheviques, considerava a democracia, tal como fora construída
em seus tempos uma “metafísica” (TROTSKY, 1969, p. 38-43).
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
tões se dão dentro de procedimentos institucionais. Existe uma série de
grupos da direita conservadora cristãos, judaicos, muçulmanos e de outras
crenças atuando dentro de sistemas democráticos, e ascendendo dentro
deles, a partir do estabelecimento de uma clara agenda com pautas morais.
A questão real é: até que ponto esses grupos majoritariamente pacícos
atuam dentro das regras do jogo democrático. E a partir de que momento,
um grupo minoritário começa a se descolar dos restantes, e estabelecer o
terror e o terrorismo como métodos da política.
Nesse sentido, cabe armar que, no vácuo da liderança soviética,
o conservadorismo político passou a ser um norte para organizações mais
extremistas. E a partir daí, especialmente grupos terroristas cristãos, ju-
daicos e muçulmanos, entre outros, começaram a ter atuação, desaando
poderes estabelecidos. Destaca-se, nesse caso, uma possibilidade: a mo-
dernidade do século XXI, de hegemonia ocidental, pode ter bem maior
rejeição no mundo muçulmano. Especialmente em países cujo regime é
autocrático. Levando em conta que as duas maiores religiões do mundo
são o cristianismo e o Islã. Que regimes democráticos são mais comuns em
países de matriz cristã. E que nesses países, minorias muçulmanas, muitas
vezes, não estão plenamente integradas ou assistidas pelo restante da socie-
dade. É possível vericar que estamos acompanhando o crescimento das
práticas terroristas de organizações islâmicas em maiores proporções?
COMPREENDENDO A QUESTÃO BÁSICA DE TERROR”: UM HISTÓRICO DO
SÉCULO XX
Antes de qualquer resposta nesses termos, não dá para associarmos
um rótulo de “terrorismo islâmico”; ou então “terrorismo cristão”, pura e
simplesmente. O risco de se realizar essa forma de procedimento é o de as-
sociar automática uma prática que está vinculada a quaisquer agrupamentos
humanos em direção a um, especíco. O que pode dar margem à ideia de
discriminação. O que se necessita aqui é compreender como esse mecanismo
de se fazer política pode afetar mais a determinados agrupamentos do que a
outros. Nesse sentido, podemos compreender a ideia do terror enquanto um
método associado à política. Não enquanto forma e substância de uma po-
lítica institucional. Mas como instrumento para se atingir determinado m.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Quando se desenvolve esse conceito, não podemos falar de so-
mente de uma denição completamente fechada. Não há um conceito
sobre terrorismo tal como os historiadores ou teóricos da guerra clássicos,
como Clausewitz bem a deniram. Mas uma variedade de formas de ter-
rorismos, e motivações ideológicas que podem variar, de acordo com as
circunstâncias, seja do ponto de vista religioso, ou então da política secular
(LAQUEUR, 2003, p. 7-10).
Desta forma, podemos analisar, na transição do século XIX para o
XX, como no processo revolucionário que fez desmoronar a Rússia czarista, e
erguer-se a URSS, terrorismo pôde servir como justicativa para algumas de
suas lideranças mais eminentes. Especicamente, podemos falar do líder e um
dos formadores do Exército Vermelho, Leon Trotsky, que explicava, sem ne-
nhuma cerimônia, o quanto o terrorismo era um mero método de intimidação:
A Guerra, como a Revolução, baseiam-se na intimidação. Uma guerra
vitoriosa só extermina, regra geral, uma parte ínma do exército venci-
do, mas desmoraliza os restantes e domina a sua vontade. A revolução
age do mesmo modo: mata umas tantas pessoas, aterroriza milhares.
Neste sentido, o terror vermelho não se diferencia em princípio da
insurreição armada, da qual é apenas a continuação. Só pode condenar
moralmente’ o terror governamental da classe revolucionária aquele
que, em princípio, condenar (em palavra) a violência em geral. Para
isso será preciso ser um Quaker hipócrita. (TROSTKSY, 1969, p. 60).
Trotsky critica a forma seletiva como Kautski condena o terror bol-
chevique, sendo ele defensor, no passado, da Comuna de Paris (TROSTKSY,
1969, p. 54), e justica, desde as revoluções inglesas no século XVII até os
embates nos EUA e na França no XVIII a existe desse método como for-
ma de ação, colocando o terrorismo como inerente à guerra e à revolução
(TROSTKSY, 1969, p. 49-53). É possível ver, nesse caso, que a democracia
liberal já estaria sendo, enquanto instrumento de dominação de classes, por
si só, uma grande miragem a ser combatida, por agrupamentos obstinados,
que preferiam, se tornar uma vanguarda minoritária buscando a sua ideia de
justiça, a romper com uma hegemonia majoritária, que consideravam injusta
(e nesse sentido, Trotsky estava claramente se contraponto ao revisionismo
socialdemocrata de Kautski, um ex-revolucionário, convertido às regras de-
mocráticas do jogo político).
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
Que que bem claro que o terrorismo não se trata de uma mo-
tivação de pensamento especíca de um pensador marxista-leninista. Ao
longo do século XIX, diversas foram as manifestações e ações de terroris-
mo, por parte de anarquistas e nacionalistas, especialmente os russos anti-
-Czar, e os irlandeses pró-independência. Essas manifestações e a ações, no
entanto, não visavam grandes massas de populações, mas sim lideranças
que conduziam um regime hostil a elas (LAQUEUR, 2003, p. 25). possí-
vel identicar motivações ideológicas diferentes das de Trotsky. De modo
que a noção da ideia de terror varia de local para local, de circunstância
para circunstância. O caso de Trotsky, por exemplo, coincide com os na-
cionalistas russos no espaço. No tempo, entretanto, observamos uma bem
maior degradação institucional da monarquia imperial russa.
Não basta apenas um retrato isolado dessa situação para apon-
tarmos “inimigos da democracia”, ou “terroristas” de más (ou boas, de-
pendendo do ponto de vista) intenções. É preciso compreender qual é
o ambiente em que esse método prospera. E como essas pessoas se veem
agindo e atuando. A Rússia pré-revolucionária era uma sociedade extraor-
dinariamente disfuncional e atrasada, e oferecia terreno fértil para ações
de grupos radicais contra a família real que comanda o seu império, de
natureza autocrática e extremamente opressora. Se, nesse caso, a resposta se
deu pela formação de ideologias nacionalistas e materialistas não religiosas,
isso se dá, em um contexto muito peculiar, onde, primeiro, o nacionalis-
mo, e depois, o socialismo marxista ainda era uma crença a ser testada,
não apenas no campo das ideias, como também no da prática. O período
histórico da virada dos séculos XIX e XX, com a I Guerra Mundial, teve
nos nacionalismos capitalistas, como fonte de confrontos sangrentos que
eliminavam populações inteiras, e sem apresentar respostas alternativas ao
nal deste embate dos anos 1920. O socialismo de caráter internaciona-
lista era uma nova resposta, e a tática do terrorismo, um instrumento para
encurtar o caminho da conquista do poder, especialmente nos países mais
atrasados. A questão aqui que nos interessa é quando o terror passa a ser
empregado por outras ideologias.
Ao longo do século XX, tivemos a utilização do terrorismo como
forma e motivação de movimentos de libertação nacional, especialmente
após a II Guerra Mundial, quando algumas das nações que reivindica-

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
vam um Estado básico, não puderam proclamá-los. Então, não se vendo
representadas no âmbito institucional das Nações Unidas ou de outros
órgãos multilaterais, movimentos nacionais referentes a essas populações
começaram a agir. Alguns desses movimentos tiveram sucesso completo,
principalmente, quando falávamos de colonizadores que tinham data mar-
cada para sair do local (os britânicos contra os grupos extremistas judaicos
no antigo mandato da Palestina; os franceses contra a Frente de Libertação
Nacional na Argélia). Outros puderam ascender ao poder, em forma de
partilha com os seus antigos inimigos (o IRA, com o seu braço político
o Sinn Fein na Irlanda do Norte; o Congresso Nacional Africano, que
teve de ceder ao poder econômico dos brancos, na nova África do Sul
multirracial). Outros tantos têm cado isolados, diante de cooptações in-
ternas de suas sociedades e o endurecimento dos Estados Nacionais que os
enfrentam (a OLP, perante o Estado de Israel, distante de ter a Palestina
como país soberano; o ETA, isolado e deslegitimado, perante a monarquia
da Espanha, que mantém, a despeito de fortes contestações, a sua matriz
de controle). Existem também aquelas formas de organizações terroristas
de fundo racista de extrema-direita, pregando um nacionalismo intoleran-
te. Como, por exemplo, o dos grupos supremacistas brancos dos Estados
Unidos. Tais grupos tiveram ascensão grande especialmente a partir dos
anos 1980, com o manifesto/novela “Turner Diaries” (“Diários de Turner”
em tradução livre)
4
, que serviu de inspiração para ações como o famoso
atentado contra o prédio público federal em Oklahoma City em 1995,
quando 168 pessoas perderam as suas vidas. Essas organizações foram se-
veramente combatidas e isoladas pelo governo dos EUA, embora a trans-
missão de suas ideias permaneça sendo transmitida entre os seus aderentes.
A RELIGIÃO COMO UM NOVO IMPULSO: DO FINAL DO XX AO INÍCIO DO XXI
Se o apelo das narrativas nacionalistas não servia como resultado,
tampouco a devoção a um modo alternativo ao capitalismo, um indivíduo
que adere ao terrorismo como método pode utilizar como outra alavanca
ideológica os motivos do desconhecido. Se a nação como território de-
nido e o socialismo como modo de produção não oferecem resultados,
4
Publicado em 1978.
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
discursos com promessas de um mundo para além daquele que vivemos
podem ser mais convincentes para um terrorista moderno. Utilizando a
denição mais clara: se alguém deseja chegar ao poder democraticamente,
será necessário um longo processo de educação e amadurecimento, onde
o debate político exige do cidadão abrir mão de parte de suas convicções.
E mesmo depois de conquistado o poder, ele não poderá governar pura e
simplesmente conforme as suas convicções: terá responsabilidade perante
o restante da nação, e isso o obrigará a negociar, inclusive consigo mesmo,
um compromisso, que poderá, inclusive, ser para a posteridade. Quem
utiliza o método do terror, ao contrário, tem pressa para chegar ao poder.
Tem imensas diculdades em fazer concessões aos diferentes. Quanto mais
a si mesmo. Sua ação política parte de si e de seus próximos. E o seu com-
promisso, portanto, parte daquilo que ele imagina ser o justo, uma vez que
o que ele enxerga no mundo em que vive é, mais do que injusto, insupor-
tável. Na ausência de alternativas, o discurso da religião, portanto, bastante
atraente. Na impossibilidade de haver alternativas terrenas, a solução está
em um além bem mais poderoso do que a ação humana e mundana.
O terrorismo em nome da religião pode ser gerado por diversas
fontes. Por exemplo, a sensação de alienação, que um cidadão ou conjunto
deles vive em determinada sociedade (STERN, 2004, p. 9-28), tornando-se
mais vulneráveis a discursos apocalípticos ou de recompensa de vida após a
morte. Diversos sentimentos de um indivíduo podem ser capitalizados em
sua história pessoal, como a sensação de ter sido humilhado na infância por
outros colegas, e assim, a recusa à realidade se torna um instrumento fácil
para dirigi-lo a grupos suscetíveis a esses discursos. E onde as práticas de
terror e terrorismo são um prato cheio. A construção ideológica, a partir da
religião revelada, em suas interpretações mais literais é um recurso bem cor-
rente para essas pessoas, que se aglutinam, muitas vezes em seitas, e no limite,
em organizações eminentemente terroristas. A sensação de humilhação de
todo um povo, em determinadas condições, pode potencializar ainda mais
essa forma de organização, disseminando-a por todo o seu tecido social, e
expandindo interpretações distorcidas sobre a religião histórica praticada no
local (STERN, 2004, p. 29-55). E quanto maior a presença de lideranças e
seguidores nesse tecido, mas a prática se dissemina. O que dizer de regiões
onde os Estados estão ausentes ou estão em colapso?

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
MOTIVAÇÕES PARA UM TERRORISTA
Se formos tentar compreender as razões que levam alguém a ade-
rir a uma organização terrorista, ou a adotar o terrorismo como forma de
ação política, não haverá uma razão especíca, mas sim um conjunto delas
que possam convergir, de maneira que ele possa agir com os seus propósi-
tos e seus métodos. Poderíamos considerar, por exemplo, as más condições
sociais de todo um povo. É certo que esse é um fator, que contribuiu e co-
laborou em alguns casos. Entretanto, é necessário lembrar que existe uma
série de países onde a maior parte de suas populações vive abaixo da linha
de pobreza, e nem por isso, instalaram-se organizações criminosas, quiçá
terroristas. Então essa é uma possível razão para o surgimento de organiza-
ções terroristas. Mas não é suciente para que elas se efetivem.
Por outro lado, podemos também citar casos de países onde pre-
valece um Estado de Direito autocrático. Possivelmente, a falta de demo-
cracia é um fator que estimula entre diversos dissidentes dos regimes po-
líticos autoritários, o uso de ferramentas de métodos terroristas. Podemos
nos lembrar de casos emblemáticos: o Afeganistão, a Argélia em períodos
de guerra, a Rússia czarista, as diversas autocracias muçulmanas onde pros-
peraram células da Al-Qaeda, etc. No entanto, em regimes como Cuba e
Coreia do Norte, não temos atualmente o conhecimento da presença de
nenhuma organização terrorista. E, por outro lado, países desenvolvidos,
como a antiga Alemanha Ocidental e a Itália viveram nos anos 1970, em
pleno Estado de Direito democrático, o mal estar em ter que conviver com
organizações terroristas de extrema-esquerda, como a Fração do Exército
Vermelho, no primeiro caso, e as Brigadas Vermelhas, no segundo.
É possível que existam componentes geopolíticos que promovam
um recrutamento de populações inteiras para que elas possam aderir a
grupos terroristas. E nesse sentido, o nanciamento de países interessados
pode ser um fator. No entanto, se não tivéssemos países com grandes fra-
gilidades institucionais, tal situação não prosperaria. E mesmo assim, pre-
cisamos levar em contar o quão importante essas regiões são as principais
potências regionais e mundiais. E aqui, mais uma vez o Afeganistão pode
nos servir de exemplo. Além da Colômbia, com as FARC e outros grupos
similares, o Líbano, com o Hezbollah, e o Kosovo, com o ELK (Exército
de Libertação do Kosovo). Duramte a Guerra Fria, o Khmer Vermelho
Raal Salatini (Org.)

foi uma organização cujo fator de desestabilização foi notória, diante da
disputa China x URSS x EUA. Hoje, a mudança conjuntural mudou com-
pletamente a disposição dessa região.
Por outro lado, pode existir também um componente interfron-
teiriço que gere disputas entre países já estabelecidos, e aqueles que rei-
vindicam um Estado básico. Podemos citar os casos de Israel e Palestina;
Marrocos e República Sarauí; Angola e Cabinda; Turquia (além de Síria,
Iraque e Irã) e Curdistão; Índia (além do Paquistão e China) e Caxemira.
São casos em que, em algum momento histórico, foi dado no direito in-
ternacional alguma sustentação para a autodeterminação dos povos desses
Estados que não nasceram de fato. E diante da intransigência dos demais,
e o apoio externos de outros países, o método terrorismo passou a ser,
em algum momento, validado, ainda que não fosse um recurso aprovado
majoritariamente por essas populações. Mas, e quando, existem situações
semelhantes com grandes implicações geopolíticas, e não prosperam or-
ganizações terroristas? Por exemplo, no Tibete, em relação à China? Ou a
Índia colonial em relação à Grã Bretanha? Nesses casos, argumentar-se-ia:
a resistência não violenta foi uma opção das lideranças locais. No entanto,
também foi uma questão de cálculo político, que quaisquer um dos ou-
tros casos poderiam ter também optado. E quando se trata de países sem
nenhum respaldo no direito internacional, e que, mesmo assim, possui
adesões a organizações terroristas, como a Chechênia em relação à Rússia,
ou o Boko Haram, em relação à Nigéria?
Saindo do âmbito coletivo dos povos, e entrando no individu-
al. Já pudemos notar que o terrorismo não é uma questão simplesmente
material. Mas pode ser de ausência espiritual de pessoas que se percebem
não pertencentes a alguma sociedade, ainda que estejam bem material-
mente. Saindo das fronteiras do Mundo Árabe, como explicar a ação dos
19 jovens que participaram dos atentados de 11 de setembro de 2001? A
maior parte deles vivia na Europa e nos EUA. Nenhum deles estava viven-
do uma situação de grande necessidade material. Sua grande questão era
basicamente existencial. Levavam consigo valores de sociedades islâmicas
autoritárias, e não estavam recebendo a devida atenção dos países que os
acolheram. Deslocados, alienados, discriminados, qual seria o sentido de
pertencimento deles? Não há dúvida de que a maior parte das populações

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
muçulmanas dos países da Europa Ocidental e da América do Norte não
compartilha dos valores desses jovens. No entanto, o quão integradas essas
populações realmente estão? Qual era a situação delas em seus respectivos
país de origem, e o que os Estados ocidentais poderiam fazer para melhor
integrá-los e fazerem eles pertencentes a algo que alguns, em quantidades
signicativas, não creem? Em tempos em que os Estados de Bem Estar
Social estão sendo enxugados, onde crises monetárias e nanceiras atingem
essas grandes potências, esse talvez seja o primeiro problema a se resolver,
não excluindo o combate ao terror. Pois, na verdade, o terrorismo já ul-
trapassou a sua condição de chaga intranacional e tornou-se um problema
globalizado. Quando assistimos a grandes levas de refugiados fugidos de
países dominados por organizações terroristas migrando para a Europa e
outros países, há que se perguntar: não está faltando uma percepção mais
ampla do que seja o terrorismo, no que diz respeito, não apenas à segu-
rança coletiva, mas também a uma sensação de Bem Estar Social comum
a todos os países? Esse não entendimento dá margem a toda espécie de
formação de personalidades distorcidas, dispostas a se sujeitar a organiza-
ções, se não terroristas, no mínimo, de discursos extremistas, o que já não
é um bom começo. Se a globalização cria a possibilidade de conquistarmos
a tecnologia como Bem Comum, ela também pode proporcionar as suas
próprias contradições internas, que são um grande risco para a segurança
do planeta. De um lado, a questão da relação do ser humano com a na-
tureza, que aqui não estamos a tratar. De outro, do ser humano consigo
mesmo. E é desse assunto de que tratamos quando falamos da percepção
do terrorismo nos tempos atuais.
ENTRE O 11 DE SETEMBRO DE 2001 E O SURGIMENTO DO ISIS
Se no século XIX e primeira parte do XX, a ideia de terrorismo
dizia respeito a uma forma de ação política muito mais voltada para lide-
ranças políticas, no primeiro estágio, e mais adiante a alvos beligerantes, já
no período em que a Al-Qaeda estava organizada, já identicávamos ter-
roristas que visavam alvos generalizados, com civis claramente incluídos. A
Al-Qaeda já apontava os seus sinais, quando fez os ataques nas embaixadas
dos EUA no Quênia e na Tanzânia, em 7 de agosto de 1998, matando mais
de 200 pessoas. Nesse período, já assistíamos, no Oriente Médio e no Sul
Raal Salatini (Org.)

da Ásia, grupos fundamentalistas de diversas conssões e ideologias ado-
tando táticas semelhantes. Mas jamais na escala que foi atingida naquela
data. Organizações palestinas contra Israel, como o Hamas, as Brigadas
dos Mártires de Al-Aqsa e outras; chehenas contra a Rússia. Tâmeis contra
a Índia e o Sri Lanka; Supremacistas brancas e cristãs contra o governo dos
EUA; bascos do ETA contra a Espanha. Muitas vezes, atentados a bombas,
homens-bombas, sequestros de avião e outras formas de intimidação. Em
momento algum, no entanto, havia um adversário/inimigo que se orga-
nizasse de forma claramente tão além de uma fronteira nacional. A Al
Qaeda não é palestina, nem síria, tampouco egípcia, paquistanesa, afegã
ou saudita. Ela é internacional e islâmica. Está, sim, relacionada, enquanto
forma de oposição, com o jogo geopolítico dos EUA com a Arábia Saudita;
e as relações íntimas entre o governo norte-americano e o reino árabe. Mas
não apenas com essa relação: também pesa nela as relações privilegiadas do
Ocidente com o Paquistão, o Egito e outros países que sustentam uma or-
dem de controle das fontes de energia estratégicas mundiais, especialmente
o petróleo e o gás natural, além de rotas fundamentais do transporte desses
produtos (canais, oleodutos e gasodutos). No entanto, essa oposição é mais
ampla do que se aparenta: ela vai contra a República Islâmica do Irã (ramo
xiita do Islã) e os seus interesses particulares no Oriente Médio. Por para-
doxal que seja atualmente a inimizade do Irã com os EUA se interrompe
em determinadas linhas de coexistência, perante o interesse maior: comba-
ter o extremismo islâmico, que saiu do controle dos países sunitas, e se tor-
nou, ele mesmo, uma forma de terrorismo global.Nesse sentido, as alianças
dos EUA são muito claras, e envolvem governos europeus ocidentais e
de cultura ocidental que, em algum momento, já foram alvo de ataques
extremistas: França, Grã-Bretanha, Espanha, Austrália. Além de Holanda,
Itália, Alemanha e outros. Sem contar países do Oriente pró-EUA, como o
Japão, e do Leste Europeu, como Polônia, República Tcheca, Hungria, etc.
Essa aliança resultou em uma série de gestões que ultrapassavam o
direito internacional, tal como aquele compreendido pelas Nações Unidas.
E passou a ser o direito internacional de acordo com as nações hegemôni-
cas que assumiram o papel de invadir o Iraque, a m de derrubar o regime
totalitário de Saddam Hussein, em 2003. Mal sabiam que, a partir daquele
momento, estavam diante de um novíssimo xadrez político, mais compli-

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
cado do que parecia se supor. Três porções populacionais que alimentavam
grandes rivalidades internas: os xiitas, maioria da população, por décadas
oprimida violentamente por Saddam Hussein, um sunita secular, e que
naturalmente foram se aproximando do Irã. Os curdos, que historicamen-
te lutam há décadas pelo direito de ter um Estado básico, conquistaram a
autonomia política interna, mas passaram a se deparar com um incômodo
vizinho, a Turquia; onde a minoria curda ocupa cerca de 40% de seu ter-
ritório. E os sunitas, que ao assistir o Estado de Saddam Hussein ser des-
mantelado, passaram a se ver sub-representados, e a resistir internamente,
diante dos sunitas, agora majoritários.
As revoltas árabes de 2010 derrubaram diversos regimes e gover-
nos: na Tunísia, na Líbia, no Egito e no Iêmen. Em outros, aconteceram
reformas importantes: Argélia, Marrocos, Jordânia, Bahrein (nesse caso,
não sem antes uma forte repressão do exército saudita) e Arábia Saudita (a
passos tímidos, diga-se de passagem). Nos casos iemenita e líbio, mesmo
com a queda do regime, o que se sucedeu foi a divisão interna do Estado,
tornando-se assim países desestruturados, sem uma autoridade central cla-
ra, dominados pela violência de subgrupos, alguns leigos, outros funda-
mentalistas, e no caso do Iêmen, também uma organização pró-Irã, em
nome dos 45% de xiitas que compõem a sua população. A Síria, por sua
vez, estourou uma grande revolta, equivalente às dos demais países, e colo-
cou à prova o regime de Bashar Al-Assad. Esse, no entanto, jamais cedeu,
ou foi decisivamente ameaçado, ao contrário do ex-líder líbio Muammar
Kadda. O apoio da Rússia, com uma base militar na cidade mediterrâ-
nea de Tartus, e o Irã, a partir da aliança com o Hezbollah libanês e as
organizações xiitas iraquianas, neutralizaram boa parte do movimento pró-
-democracia e os isolou. Foi onde, com o apoio, principalmente da Arábia
Saudita e do Qatar, que cresceu o antigo braço da Al Qaeda na Síria, e
também no Iraque, dessa vez, no entanto, com uma organização que saiu
do controle de todos os líderes originais. Os representantes dos sunitas no
Iraque e na Síria conseguiram unir suas forças sob a liderança de Abu Bakr
Al-Baghdadi. Este conseguiu aglutinar forças políticas em cidades de maio-
ria sunita na Síria e no Iraque. E mudou o conceito da ideia de terrorismo.
Agora o terrorismo simplesmente se incorpora dentro de um
Estado. Al-Baghdadi se autoproclamou Califa, e utilizou as redes sociais
Raal Salatini (Org.)

para legitimar a sua posição, perante muçulmanos sunitas, algo que nem
mesmo Bin Laden, o antigo líder da Al Qaeda cogitou fazê-lo. Aproveitou
o fato de dominar um território rico em petróleo e com oleodutos e gaso-
dutos estratégicos, e organizou uma economia própria, convidando sunitas
de todo o mundo para juntar-se à sua causa. O agora Estado Islâmico do
Iraque e da Síria (ISIS) tornou-se uma espécie de “alternativa” para aqueles
que não se identicam com os governantes opressores de seus países ou
então com os governos ocidentais nas diásporas. Auto-sustentável, o ISIS,
reconstituiu a forma de provocar a sensação de terror dentre as populações
que deseja visar enquanto inimigas, pelo menos no estrangeiro. Não se tra-
ta mais de fazer ataques indiscriminados. Mas sim de utilizar essas mesmas
redes sociais para exibir as mais cruéis formas de execuções de soldados ou
civis inimigos, a m de espetacularizar a morte e gerar temor para indiví-
duos comuns (NAPOLEONI, 2015).
Nesse sentido, o método de gerar deixa de ser o ataque generali-
zado a vidas civis. Passa a ser a forma como se executa a vida de alguém os
atentados ao semanário satírico francês Charlie Hebdo está nesse contexto
(SORRISSEAU, 2015). Basta apontarmos o uxo de imigrações Europa-
ISIS, a m, de um lado a combater pelo exército de Al-Baghdadi, e de outro,
de expressar medo e choque dentro das sociedades democrático-liberais eu-
ropeias. O ataque ao Charlie não foi um acaso. Foi uma forma de capitalizar
um sentimento difuso de inferioridade de parte da população muçulmana
francesa que não se sente, de fato, integrada, para justicar o ataque a um
veículo claramente anticlerical. Um anticlericalismo que é especicamen-
te francês. Mas que não é necessariamente islamofóbico (SORRISSEAU,
2015). Dentro do mesmo veículo, existem ataques satíricos a outras religi-
ões, incluídos aqui o judaísmo e o cristianismo. Sem, no entanto, receber,
nenhuma resposta mais violenta ou agressiva das comunidades locais. Se,
de um lado, é facilmente percebido o sentimento de violência à identidade
de um povo ou comunidade quando se faz humor sem sutilezas e de natu-
reza ofensiva, por outro, há que se perguntar: a liberdade de expressão e os
seus limites podem ser pautados por uma organização que se assume como
Estado, e pratica abertamente o terrorismo? Ou é resultado de um verda-
deiro e aberto debate nacional que, foi, de fato, maculado, por um ato de

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
violência extrema que, mais do que atacar o semanário, acabou por atingir
posteriormente um mercado kosher judaico de Paris?
Vamos nos lembrar de um fato que temos observado: o Estado
Islâmico não obedece a uma fronteira regular. Ele pode parecer, de repente,
em alguma cidade Líbia, no deserto do Sinai, no Egito, em uma unidade
da federação na Nigéria. E assim por diante. Sua natureza é, antes de terri-
torial, ideológica. E essa é uma questão que não pode ser ignorada. Há ris-
cos muitos maiores na presença do ISIS, um Estado com base estabelecida
do que com a Al-Qaeda, uma rede, capaz de cooptar Estados. A Al-Qaeda
posiciona na variabilidade de geometria de alianças dentro de Estados fa-
lidos. O ISIS já ocupa ele mesmo a posição de uma área sem Estado, e se
assume ele mesmo soberano dotado de grande capacidade de captação de
recursos nanceiros, o que lhe confere uma vantagem estratégica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A percepção do que entendemos como “terrorismo” já pode ir
para além da simples denição de um dicionário. Está no nosso dia-a-dia.
De 1988, quando aqui denimos o conceito de “terror” e “terrorismo
até hoje, podemos notar que é uma questão que vai além de um conceito
preciso. As Nações Unidas buscaram também dar formas a essa denição:
Atos criminosos pretendidos ou calculados para provocar um estado de
terror no público em geral, num grupo de pessoas ou em indivíduos
para ns políticos são injusticáveis em qualquer circunstância, inde-
pendentemente das considerações de ordem política, losóca, ideoló-
gica, racial, étnica, religiosa ou de qualquer outra natureza que possam
ser invocadas para justicá-los. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 1995, Resolução 49/60, parágrafo 3).
Nessa denição cabe qualquer organização, desde que convenien-
te a uma determinada parte, que diretamente interessada. Pode ser um
Estado beligerante, ou então um que, se não se encaixa nessa denição, está
diretamente ligado a negócios com outro país ou conjunto de países direta-
mente envolvidos em conitos regionais. Assim, os Estados Nacionais e as
organizações internacionais ainda não conseguiram fazer efeito da questão
do terrorismo como problema de segurança coletiva internacional de facto,
Raal Salatini (Org.)

apenas de jure. Fica claro que existe aqui uma diferença entre o que cada
Estado deseja, e o que a realidade global se impõe. E pensar em um espírito
público em nível mundial e não excludente ainda é algo a se desenvolver.
Enquanto isso, o terrorismo ganha formas renovadas, e quando combati-
do e debelado, constrói novas ressurreições. O terreno em que terroristas
jogam é de grande vantagem a favor deles, justamente por não prosperar
apenas um único fator, mas sim um conjunto deles, sejam eles políticos,
ideológicos, religiosos, culturais, históricos e geográcos.
No entanto, talvez nem o conjunto desses fatores talvez seja su-
ciente. Existem alguns estudiosos que buscaram compreender o perl padrão
de um terrorista, a partir de questões que não sejam apenas objetivas. Dentro
dos estudos psicanalíticos e biomédicos, buscaram-se casos em que foram
apontadas experiências na infância, tendências genéticas, níveis hormonais
alterados, etc., para tentar buscar esse perl, correlacionando-os com os fa-
tos objetivos. E mesmo assim, não se chegou a uma conclusão denitiva
(LAQUEUR, 2003, p. 23). É certo que na participação de atos de terror e
terrorismo, existem atores intelectuais e materiais. E que dentre esses atores,
há uma grande quantidade de pessoas com personalidades sociopatas e psi-
copatas. Mas isso é algo inerente também ao caso de crimes hediondos. Algo
que a Criminologia pode auxiliar. Por isso, quando pensamos o terrorismo
nas Relações Internacionais, é preciso também buscar a interdisciplinarida-
de. E mesmo assim, não será um terreno simples de atravessar. Coloquemos
em perspectiva que a presença de sociopatas e psicopatas não se distribui
mais ou menos em um setor ou camada de determinada sociedade. Ou mais
em uma do que em outra. Essa presença parece uma constante, e a sociopatia
a e psicopatia somente se manifestam, se a ocasião for favorável a indivíduos
com tal personalidade. Por isso, a questão diz respeito à forma como as so-
ciedades se organizam, e como elas são capazes de evitar tais ocasiões. Se isso
serve ao ladrão, ao assassino e ao estelionatário, entre outros criminosos, por
que também não serviria para o terrorista?
REFERÊNCIAS
HOUAISS, Antonio et al. Dicionário Melhoramentos da língua portuguesa: edi-
ção especial para Encyclopaedia Britannica do Brasil. São Paulo: Melhoramentos,
1988.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
LAQUEUR, Walter. No end to war: terrorism in the twenty-rst century. New
York: Continuum, 2003.
NAPOLEONI, Loretta. A Fênix Islamista: o Estado Islâmico e a reconguração
do Oriente Médio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. A ONU e o terrorismo. Nações
Unidas no Brasil. 1995. Disponível em: <http://nacoesunidas.org/acao/terroris-
mo/>. Acesso em: 28 set. 2015.
SORRISSEAU, Laurent. Entrevista. [2015]. Programa Roda Viva.
Apresentador: Augusto Nunes et al. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=Wzr5DO7nnsQ>. Acesso em: 28 set. 2015.
STERN, Jessica. Terror em nome de Deus: por que os militantes religiosos matam.
São Paulo: Barcarolla, 2004.
TROTSKY, Leon. Terrorismo e comunismo: o anti Kautski. Rio de Janeiro: Ed.
Saga, 1969.
Raal Salatini (Org.)
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
10.
ONDE OS FRACOS O TÊM VEZ: O BRASIL E A
AMÉRICA DO SUL FRENTE AO TERRORISMO
Roberto Goulart Menezes
INTRODUÇÃO
Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 o terrorismo foi
alçado ao centro da agenda internacional, convertendo-se em uma prio-
ridade na pauta de segurança das grandes potências militares. E, como
assinalou Buzan, “Alega-se que os eventos de 11 de setembro mudaram o
mundo das relações internacionais mais uma vez” (2002, p. 234).
O então presidente George Bush havia tomado posse apenas oito
meses antes dos atentados e sua política externa dava prosseguimento ao
unilateralismo adotado no segundo mandato do seu antecessor, William
Clinton (1993-2001). No entanto, Bush diferenciava-se dele ao adotar “uma
política de engajamento seletivo: seu objetivo era o de promover o interes-
se nacional dos Estados Unidos, não o de remodelar o mundo” (CRUZ,
2011, p. 23). A nova agenda de Washington, ao canalizar seus esforços para
o campo da segurança e defesa, pôs no limbo a cooperação internacional, o
desenvolvimento, o meio ambiente, entre outros temas multilaterais.
Para Martins, a plataforma política vitoriosa nas eleições norte-
-americanas de 2000 já trazia os elementos que se intensicaram nos pós-
-atentados: “Ao contrário do que em geral se arma, não foram os indefensá-
Raal Salatini (Org.)

veis atentados de 11 de setembro que mudaram o mundo, mas a ascensão de
Bush e seus mentores ao governo dos Estados Unidos” (2003, p. 31).
Com a vitória de Barak Obama em 2008 parecia que a “herança
maldita” legada por Bush e sua “guerra global ao terror” seria desmontada:
prisão de Guatanamo, Guerra no Iraque, Guerra no Afeganistão, entre
outras. Além do legado de graves violações de direitos humanos perpre-
tados em nome do combate ao terrorismo. Dos escombros da mal fadada
invasão do Iraque e da guerra civil na Síria originou-se outra ameaça ainda
mais violenta e mais aterradora e que opera em associação com a Al Qaeda:
o chamado “Estado Islâmico” – ISIS (COCKBURN, 2015). A política
externa dos Estados Unidos preconizada por Obama parecia mirar o ca-
minho do multiraletalismo e a construção de um “mundo multipolar”.
Essas e outras promessas do novo governo foram parcialmente implemen-
tadas, mas sem alterar signicativamente a rota seguida pelo establishment
norte-americano no combate ao terror. De acordo com Anderson, “Dois
anos após sua [re]eleição em 2008, o governo de Obama havia criado nada
menos que 63 novas agências de combate ao terrorismo” (2015, p. 121).
Note-se que o amplo e sosticado esquema de espionagem comandado
pela NSA e revelado por Edward Snowden, ex-funcionário da agência,
mostrou que os interesses dos Estados Unidos iam muito além do campo
da segurança e defesa: o país utiliza um amplo sistema de vigilância global.
As atividades de espionagem dos Estados Unidos estenderam-se ao campo
da diplomacia, como demonstram as revelações acerca do grampo nos te-
lefones da presidente Dilma Rousse e da Petrobrás em 2013.
Como sabemos, nenhuma área do globo está livre das ações per-
petradas pelas 271 organizações terroristas, mas a América Latina, em es-
pecial a America do Sul, não tem sido um dos alvos preferenciais delas.
Uma rápida olhada pelo mapa dos atentados mostra que a Ásia, Europa
e os Estados Unidos têm sido os alvos prioritários dos terroristas
1
. Na
América do Sul, o atentado terrorista contra a Amia em julho 1994, na
cidade de Buenos, o maior na região desde o m da guerra fria, deixou 85
mortos e dezenas de feridos.
1
De acordo com O Global Terrorism database (GTD), da Universidade de Maryland entre 1994-2002
ocorrem 2543 “eventos terroristas” na América do Sul e entre 2003-2011 o número caiu para 830. Os eventos
classicados, bem como a natureza e origem de cada uma das organizações terroristas, são amplos e de certo
modo ambíguos. Para uma análise desses dados, ver MELLO E SOUZA; MORAES, 2014.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Assim, o objetivo deste capítulo é analisar a inserção internacio-
nal do Brasil na ordem internacional contemporânea após os atentados
de 11 de setembro com ênfase na contribuição que o País tem dado na
construção de uma ordem multipolar e seus reexos na América do Sul.
1 BUSH II E O PODER GLOBAL DOS ESTADOS UNIDOS
As gestões de George Walker Bush (2001-2009) operaram uma
reformulação ultraconservadora na política externa dos Estados Unidos,
sendo o unilateralismo seu traço principal, materializado na estratégia de
segurança nacional dos Estados Unidos denominada “Doutrina Bush” (se-
tembro de 2002). Balizada no mais puro realismo político, ela recolocou
a guerra em posição de destaque norteada pelo princípio da guerra pre-
ventiva (AYERBE, 2006). Essa tendência se acentuou após os atentados
perpetrados contra as torres do World Trade Center (Nova Iorque) e o
Pentágono (Washington) em 11 de setembro de 2001 e gerou mais tensões
nas relações internacionais.
O objetivo principal da Doutrina Bush era armar a supremacia
do poder global dos Estados Unidos e impedir a ascensão de possíveis po-
tências que desaassem a sua liderança. Ela consubstanciava “Um projeto
explícito de poder global, unipolar e quase-imperial” (FIORI, 2007, p.
9). O Iraque foi a sua primeira vítima. A deagração da guerra em 2003,
à revelia do Conselho de Segurança (ONU) e do direito internacional,
visava à demonstração de força internacional frente a um país derrotado,
e o controle sobre as ricas jazidas petrolíferas do Iraque. Embora o então
presidente buscasse justicar a invasão do Iraque armando que era para
levar democracia e prosperidade ao país.
O discurso e a prática neoconservadora da administração de Bush
Jr. guardou estreita relação com o período Reagan (1981-1989) e suas se-
melhanças não são desprezíveis, a começar pelo obstinação com que ambos
defenderam o “livre mercado” e suas ações unilaterais perante o mundo.
A expressão “eixo do mal” empregada por Bush para se referir aos regimes
e governos hostis à política externa dos Estados Unidos, alude à expres-
são “império do mal” utilizada por Reagan para caracterizar a ex-União
Soviética no contexto da Iniciativa de Defesa Estratégica em 1983. Assim,
Raal Salatini (Org.)

guardadas as proporções, a tônica da estratégia neoconservadora do go-
verno Bush Jr. era, a exemplo de Reagan, impor uma hegemonia global
sem contestações. Os Estados Unidos, detentores de um poderio militar,
tecnológico, cultural, econômico e político jamais desfrutado por nenhu-
ma outra grande potência em toda a história da humanidade, ensaiaram a
estratégia de um novo poder imperial.
Mostras do unilateralismo da política externa de Bush já haviam
sido dadas mesmo antes dos atentados de 11 de setembro. Em março de
2001 o próprio presidente anunciou publicamente a rejeição dos compro-
missos com Protocolo de Kyoto em defesa da competitividade da econo-
mia norte-americana. Sua gestão também deu às costas ao Tribunal Penal
Internacional Permanente (TPIP), a Convenção sobre Armas Biológicas
e ao Tratado para banir as minas terrestres, entre outros compromissos
multilaterais, além de tentar impor nas Nações Unidas e na Organização
para a Proibição das Armas químicas (OPAQ), o endosso as suas medidas
unilaterais. A derrubada violenta do regime iraquiano de Saddam Hussein
(2003), sob o álibi de que o então regime de Bagdá possuía armas de des-
truição em massa e mantinha estreitas relações com organizações terro-
ristas (como a Al Qaeda), não convenceu a opinião pública internacional
nem a maioria dos governos das Nações Unidas
2
.
O neoconservadorismo e a reação unilateral dos Estados Unidos
acentuaram-se ainda mais com os atentados de 2001 (AYERBE, 2006),
mas já estavam anunciados desde o principio do governo Bush. Os atenta-
dos, de certo modo, forçaram sua administração à necessidade de formular
o desenho de sua política externa. Porém, poucos meses depois do mundo
prestar solidariedade aos Estados Unidos, a insistência nas políticas uni-
laterais do governo Bush solapou grande parte do apoio conquistado até
então e colocou novas variáveis no debate sobre a sionomia da ordem
internacional pós-guerra fria.
2
Em seu premiado livro, Wright escreve: “Em 1990, Bin Laden alertou para o perigo que o tirano assassiano
do Iraque, Sadam Hussein, representava para a Arábia Saudita. Foi tratado como uma cassandra. [...] Mesmo
assim, Bin Laden prosseguiu a campanha solitária contra Saddam e seu partido secular, o Bath” e adiante o
autor descreve a tentativa de membros do comando da Al Qaeda de convencer Bin Laden a trocar o Afeganistão
pelo Iraque em 1998 (quando ele “emitiu sua fatwa contra os Estados Unidos”), ele “opôs-se à ideia, pois não
queria dever favores ao tirano iraquiano” (2007, p. 177, 326).

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Contudo, mesmo àquela altura a caracterização da ordem inter-
nacional como unipolar já encontrava discordâncias entre os críticos da
política externa dos Estados Unidos. Para Guimarães (2006), a liderança
estratégica de Washington no sistema internacional não implica que uma
ordem de outra natureza não esteja no horizonte das relações internacio-
nais contemporâneas. Ainda que tenha imposto obstáculos ao desenvol-
vimento de uma ordem internacional de tipo diferente, é possível que, a
partir da formação de novas coalizões, países intermediários como o Brasil
e demais polos emergentes de poder, atuem na busca de um equilíbrio
maior no sistema internacional.
Em linhas gerais, o unilateralismo enunciado pela Doutrina Bush
ao atacar o multilateralismo e as instituições onde se busca exercê-lo, tra-
balhava contra a multipolaridade. A cisão que se deu no seio da União
Europeia, quando França e Alemanha cerram leira contra o uso da força
no Iraque, confrontando à estratégia dos Estados Unidos demonstrava o
desgaste, entre seus aliados europeus, da opção pela guerra como meio
de resolução de conitos. O Brasil somou-se aos países que insistiam na
diplomacia via Nações Unidas. O hard power dava a tônica da política ex-
terna de Bush Jr., descartando uma hegemonia global com ares de Estado
cosmopolita e baseado no soft power.
A noção de soft power (poder brando) para analisar as ações dos
Estados Unidos nas relações internacionais foi cunhado por Joseph Nye Jr.
ainda no nal dos anos 1980. Ex-secretário-adjunto da Defesa no governo
Clinton, Nye dene como poder brando a habilidade de um ator para per-
suadir outros a fazer o que ele deseja sem o emprego da força ou coerção,
ou seja, sem recorrer ao poder bruto (hard power). Na década seguinte, Nye
desenvolveu com mais precisão seu conceito de poder brando, num contexto
internacional de profundas transformações e no qual os Estados Unidos já
guravam na condição de única superpotência global (2002, 2004).
A análise conceitual de Nye Jr desenvolve-se à luz da hegemo-
nia norte- americana e do modo como os Estados Unidos prosseguem no
século XXI. Na introdução de seu livro o Paradoxo do poder america-
no (2002), nos deparamos com a seguinte indagação: “Seremos capazes
[Estados Unidos] de utilizar sabiamente a nossa liderança, neste começo de
século, para construir um arcabouço a longo prazo?” (p. 21).
Raal Salatini (Org.)

Esse horizonte era ainda menos claro em meados da década de 1970,
quando teve lugar o debate acerca do declínio do poderio americano. Como
um dos debatedores Nye Jr., juntamente com Robert Keohane, formulou o
conceito de interdependência complexa como contraponto as teses defendidas
por autores realistas no tocante à compreensão do papel dos Estados Unidos
na ordem internacional. Naquele momento, o prestigio e a liderança interna-
cionais de Washington estavam abalados pela crise do petróleo, pela derrota na
guerra do Vietnã, pelo m do padrão ouro-dólar, entre outros.
Em linhas gerais, o poder brando nos remete a um ambiente in-
ternacional no qual o multilateralismo, a cooperação e as instituições libe-
rais são predominantes na vertente do internacionalismo liberal. Por outro
lado, ainda que o autor ressalve que as duas formas de exercício do poder
sejam complementares, podemos entender o poder bruto como um cená-
rio mais caracterizado pelos traços do realismo político, ou seja, do uso da
força no lugar da diplomacia, do conito e de um ambiente mais hostil à
hegemonia ou supremacia dos Estados Unidos (MENEZES, 2011).
Assim, para Nye Jr., dado que a força não resolve todos os con-
itos, há outras maneiras de um dado ator (A) inuir no comportamento
de outro(s) (B, C...) para levá- lo(s) a agir (em) de modo a satisfazer (em)
os interesses de A. Essa concepção de poder é exercida de modo indireto.
Segundo o autor, “Na política mundial, é possível que um país obtenha
os resultados que quer porque os outros desejam acompanhá-lo, admi-
rando os seus valores, imitando-lhe o exemplo, aspirando ao seu nível de
prosperidade e liberdade” (2002, p. 36). O poder brando, de acordo com
ele, pretende “levar os outros a querer o que você quer [...] Ele coopta as
pessoas em vez de coagi-las” (2002, p. 36; 2004).
No poder brando tão importante quanto a cooptação, é a atração
do modo de vida exercida sobre terceiros e a admiração, segundo o autor,
que as instituições dos Estados Unidos despertam. O poder brando “Não é
simplesmente sinônimo de inuência, embora seja uma fonte de inuência.
[...] O poder brando é mais que persuasão ou que a capacidade de mover as
pessoas pela argumentação. É a capacidade de seduzir e atrair” (2002, p. 37).
Essa maneira de operacionalizar a categoria poder, subdividindo-
-a em duas dimensões, considera as características intangíveis do poder por

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
permitir incluir e dar mais relevo à cultura, à ideologia e aos valores supos-
tamente mais fortes no poder de atração da sociedade norte-americana – o
que facilitaria a difusão de seus valores, visão de mundo, estilos de vida e
interesses por meio de sua política externa. O pano de fundo no qual o
autor elabora sua análise é o da globalização econômica e informacional.
E de certo modo guarda alguma relação com o conceito de hegemonia de
inspiração crítica, ainda que não o reivindique ou se lie a essa perspectiva.
Contudo, conforme Ayerbe (2006), não se trata de concepções
antagônicas – poder brando ou duro – quando se analisa a atuação inter-
nacional dos Estados Unidos, seja em um governo republicano ou demo-
crata. Para o autor,
A atuação internacional dos Estados Unidos tem uma dimensão essen-
cialmente estrutural. As diferenças entre unilateralismo republicano e
o multilateralismo democrata, entre os defensores do poder brando e
os do poder duro, as abordagens cosmopolitas, imperiais ou nacionais,
realistas, liberais ou institucionais referem-se mais aos meios que os ns
da política externa (2006, p. 77).
Ao realçar a dimensão estrutural da atuação dos Estados Unidos
nas relações internacionais – podemos aqui mencionar o conceito de poder
estrutural desenvolvido por Susan Strange, que
Confere o poder de decidir como as coisas deverão ser feitas, o poder
de conformar os marcos nos quais os Estados se relacionam entre si, se
relacionam com as pessoas ou com as empresas e corporações. O poder
relativo de uma parte em uma dada relação é maior, se também determi-
na as estruturas que envolvem essa relação. (1988, p. 25, tradução nossa).
2 O BRASIL E O SISTEMA INTERNACIONAL APÓS 11 DE SETEMBRO
Em um cenário marcado pela arbitrariedade e acirramento da von-
tade hegemônica dos Estados Unidos, a política externa brasileira na era
Cardoso apostou timidamente na multipolaridade emergente. No entanto,
os atentados e toda sua violência colocaram a América Latina ainda mais à
margem. Na administração de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), a
inserção internacional do Brasil guiou-se pelos princípios do otimismo libe-
ral. Ainda que o Brasil não tenha adotado o “realismo periférico”, que pro-
Raal Salatini (Org.)

põe uma atitude subserviente e adesista à potência dominante, e nem alme-
jado “relações carnais”, conforme expressou um dos ministros das Relações
Exteriores do governo de Carlos S. Menem (1989-1999), as relações com os
Estados Unidos foram pautadas pela não confrontação. A ênfase estava na
autonomia pela participação” e caracteriza-se pela busca de credibilidade.
O comportamento esperado “dos países periféricos colaborati-
vos”, segundo Guimarães (2006), é o de sempre se submeterem aos in-
teresses do hegemon. Na véspera dos atentados, os ministros das relações
exteriores dos países membros da Organização dos Estados Americanos
encontravam-se reunidos em Lima (Peru). Em função da gravidade dos
acontecimentos, o m dos trabalhos fora antecipado. O então Ministro
das Relações Exteriores Celso Lafer propôs que o Tratado Interamericano
de Ajuda Mútua e Recíproca (TIAR) de 1947, e praticamente enterrado na
Guerra das Malvinas (1982), quando os Estados Unidos caram ao lado da
Grã-Bretanha, fosse utilizado para fazer frente aos atentados nos Estados
Unidos, causando certo estranhamento e desconforto em parte dos países
da região presentes na Cúpula.
Com a Reunião de Brasília (2000), o governo Cardoso adotou
um discurso diplomático autonomista. A crise no Mercosul e a desvaloriza-
ção do real em 1999, somados aos avanços da agenda de negociações para
a formação da Área de Livre Comércio das Américas, foram as principais
razões dessa iniciativa da diplomacia brasileira à época. O ex-presidente
almejava o resgate do conceito de América do Sul ensaiado pelo projeto da
ALCSA em 1993. No nal da gestão Cardoso, a diplomacia brasileira pas-
sou a conceber um novo desenho geopolítico regional, pondo em marcha
o conceito de América do Sul e que será aprofundado e dotado de um forte
viés político na gestão Lula da Silva.
Um dos principais efeitos geopolíticos oriundos dos atentados de
11 de setembro foi a extensão de uma zona cinzenta sobre as relações inter-
nacionais. Após os ataques militares ao Afeganistão iniciados em outubro
de 2011, o Brasil adotou uma postura de cautela a m de não endossar e
aderir à lógica de combate ao terror posta em prática pelos Estados Unidos.
Assim, “Ainda que mantendo distância militar e diplomática da chamada
Guerra Global contra o Terror, [o Brasil] mostrou-se disposto a colaborar

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
com o esforço norte-americano” (MELLO E SOUZA; MORAES, 2014,
p. 21), sem abdicar de sua autonomia.
A autonomia política é um dos objetivos permanentes da política
externa de qualquer Estado-nação no sistema internacional contemporâ-
neo. De acordo com Russell e Tokatlian (2002), o conceito de autono-
mia política signica a defesa e a ampliação dos espaços de liberdade dos
Estados-nação na ordem internacional e possui uma pluralidade de signi-
cados. Três formas são correntes nas relações internacionais: 1) como um
dos princípios do modelo westfaliano, que assegura a independência de
cada Estado no sistema internacional; 2) como uma condição, na qual um
Estado exerce sua autonomia ao tomar suas decisões sem interferências ex-
ternas ou de grupos internos especícos; 3) como um dos interesses nacio-
nais objetivos dos Estados (RUSSELL; TOKATLIAN, 2002, p. 161-162).
De acordo com os autores, a globalização e o m da Guerra Fria
no plano internacional e a democratização e a integração no plano regio-
nal alteraram profundamente o contexto para a ação dos Estados latino
americanos, dotando a autonomia política de novas feições. Considerando
esse novo cenário, Russell e Toklatian apresentam a noção de autonomia
relacional, isto é, “La capacidad y disposición de un país para tomar deci-
siones con otros por voluntad propia y para hacer frente en forma conjunta
a situaciones y procesos ocurridos dentro y fuera de sus fronteras” (2002,
p. 176). Essa concepção da autonomia política, orienta-se no plano teó-
rico pelas formulações do construtivismo e da teoria crítica, em oposição
aos postulados da teoria realista e neo-realista que privilegiam o conito.
Assim, a autonomia relacional não se baseia no alto ou baixo nível de con-
frontação, mas na capacidade de formular e executar políticas que favore-
çam o interesse nacional (2002, p. 181).
Pensar a autonomia política relacional como prática implica em
participar mais ativamente na formulação de normas e regras internacio-
nais a m de facilitar a governabilidade global processada nos organis-
mos multilaterais e nos diversos regimes internacionais. Logo, o objetivo
maior seria a busca e a construção de um multilateralismo de tipo novo
(RUSSELL; TOKATLIAN, 2002).
Raal Salatini (Org.)

Na história da política externa brasileira, a noção da “autonomia
pela distância” norteou a atuação internacional do País durante quase toda
a Guerra Fria e se estendeu até meados dos anos 1980. Autonomia e uni-
versalização são os dois conceitos chaves da Política Externa Independente
e conformaram um novo paradigma da política externa desde o início dos
anos 1960 (FONSECA JR., 1998).
A estratégia do globalismo/universalismo como paradigma da polí-
tica externa buscou ampliar o espaço de exercício da autonomia brasileira me-
diante a multiplicação dos vínculos econômicos e políticos do País, orientado
pela busca do seu desenvolvimento econômico. Com o golpe militar de 1964,
a lógica da “autonomia pela distância” fora interrompida até ser recuperada
mais fortemente com o “pragmatismo responsável” do governo Geisel a partir
de 1974 e manteve-se até a primeira metade do governo Sarney, quando co-
meçou a perder força. A transição do sistema internacional na virada dos anos
1980, os desaos postos pelo esgotamento da ordem da guerra fria, o papel
dos Estados Unidos como única superpotência e o fenômeno da globalização
econômica e nanceira, formaram a moldura sob a qual se deram os ajustes, as
mudanças e as transformações da política externa do País.
A chegada do governo Collor de Mello (1990-1992) impôs uma
mudança signicativa no paradigma globalista da política externa brasilei-
ra ao ensaiar laços mais estreitos nas relações com os Estados Unidos. Em
sua primeira fase, a diplomacia de F. Collor preferiu acalentar as supostas
esperanças em um mundo regido pelos Estados Unidos de modo unipolar
e almejava, de certo modo, fazer das relações com Washington o eixo pri-
mordial da atuação externa brasileira.
A gestão Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), guiou-se
pela “a autonomia pela participação ou integração” (CARDOSO, 2006).
De acordo com Gelson Fonseca Jr., formulador da ideia, esse paradigma
está referenciado em um mundo caracterizado pelo multilateralismo no
qual “o Brasil tinha que entrar no processo para discutir e tentar mudar
as regras que estavam se formando” (Entrevista ao autor, 2010). Nesse
sentido, a adesão aos regimes internacionais orientados pela lógica da
autonomia pela participação” reete a percepção da política externa do
governo Cardoso de um ordenamento internacional mais voltado para a
cooperação.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
3 O GOVERNO LULA E A ERA BUSH: INTERESSE NACIONAL E ORDEM MUNDIAL
As relações Brasil-Estados Unidos no governo Lula da Silva man-
tiveram-se dentro dos moldes da noção de “divergência limitada” e, como
demonstra o histórico das relações bilaterais ao longo do século XX, ocu-
pam lugar crucial na política externa brasileira (LIMA; HIRST, 2006). A
estratégia do Brasil de Lula da Silva foi a de estabelecer relações maduras
com a hiperpotência, pois, “A chegada de um dirigente sindical, líder de
um partido de esquerda, à presidência de um país relevante da América
Latina poderia evidentemente provocar alguma inquietação em um gover-
no republicano, de corte conservador, e que estava sem clara política para
a região” (GARCIA, 2013, p.55).
De acordo com o então secretário-geral do Itamaraty, as relações
com os Estados Unidos, orientaram-se por uma visão da realidade inter-
nacional calcada na defesa dos interesses nacionais e na recusa das hege-
monias de todos os tipos, sem com isso adotar uma postura anti Estados
Unidos (GUIMARÃES, 2006).
A vertente autonomista combina o objetivo de projeção interna-
cional com a permanência do maior grau de exibilidade, liberdade da po-
lítica externa e diversicação nas relações externas. Nela, os resultados da
liberalização comercial são vistos com reticência e a adesão aos regimes inter-
nacionais é encarada de modo crítico. No horizonte, essa vertente vislumbra
inuir no jogo de poder internacional por meio da elaboração de arranjos ou
coalizões com Estados-nação de perl aproximado ao seu (SOUZA, 2009).
A diplomacia brasileira avaliava que tal como a ALCA vinha sen-
do negociada não interessava ao Brasil. Em pouco tempo a ALCA seria
esvaziada e engavetada. O fracasso da Cúpula de Miami praticamente en-
terrou as negociações da ALCA e representou uma vitória das nações que a
todo custo resistiam a sua conclusão tal como vinha sendo negociada. Na
Cúpula de Mar del Plata (2005), ela foi rejeitada pela Venezuela, Brasil e
demais países do Mercosul.
Sem desistir do seu projeto estratégico de integrar as economias
da região a partir de seus interesses econômicos, políticos e comerciais, os
Estados Unidos voltaram-se para a elaboração de acordos bilaterais com o
Chile (2003), Peru (2005), Colômbia (2006), entre outros. E mais recente-
Raal Salatini (Org.)

mente a Aliança do Pacíco formada por Peru, Chile, México e Colômbia,
reaviva o regionalismo aberto e fortemente orientado pela liberalização co-
mercial (MENEZES, 2014).
No plano global, o governo Lula da Silva valorizou o multila-
teralismo (reforma do processo decisório da ONU, não-proliferação), o
desenvolvimento de uma política comercial mais armativa com atuação
sobretudo nas negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC)
e parcerias estratégicas no âmbito Sul-Sul com países semi-periféricos gran-
des (África do Sul, China, Índia, Rússia entre outros).
Nesse contexto, o Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul
(IBAS) instituído pela Declaração de Brasília (junho de 2003), apenas três
meses após a deagração da Guerra no Iraque, tendo como eixo a coopera-
ção para o desnevolvimento. Na perspectiva da política externa brasileira,
a instituição de coalizões do tipo IBAS contribui para uma ordem interna-
cional multipolar. Os três integrantes partilham de algumas características
em comum: situam-se na periferia do capitalismo (“países intermediários”);
possuem economias dinâmicas e exercem papel de relevo em suas respecti-
vas regiões. Mesmo não apresentando comportamento uniforme perante aos
desaos no sistema internacional, esse mecanismo de associação em coalizão
busca abrir novos espaços de atuação para os seus integrantes.
De acordo com Hurrell (2006), os países agrupados sob o acrôni-
mo BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), orientam-se pela “Transição de
uma visão pluralista tradicional da sociedade internacional em direção a uma
visão caracterizada por maior solidarismo” (p. 4). Assim, segundo o autor,
esses países “interagem de maneira problemática com os complexos proces-
sos de liberalização política e econômica e – mais importante – contestam os
limites e o caráter dessa liberalização” (idem). Para Hurrell, os países do Brics
adotam predominantemente a estratégia de balanceamento das relações in-
ternacionais, ainda que em certos momentos pontuais o comportamento
seja de acomodação pragmática. No entanto, para ele, “é muito menos claro
o quanto qualquer um desses países avançou como produtor das ideias que
moldarão as concepções de ordem global no futuro” (2009, p. 28).

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
4 A PACIFICAÇÃO DA AMÉRICA DO SUL: O ATUAL PROCESSO DE PAZ COLOMBIANO
O possível êxito do processo negociador para pôr m ao conito
na Colômbia fará da América do Sul uma das áreas mais pacicadas do
globo e abrirá novas oportunidades econômicas, políticas na agenda de
integração regional
3
. A decisão do presidente colombiano Juan Manoel
Santos, durante seu primeiro mandato, de iniciar as negociações com as
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARCS), em novembro de
2012 em Havana (Cuba), representou um giro na política interna do país
e colocou em campos opostos Santos e o ex-presidente Álvaro Uribe, seu
ex-aliado e padrinho político. Em 2014, a decisão do presidente Santos de
negociar com as FARCS quase lhe custou à reeleição.
Nas gestões Uribe (2002-2010), a militarização do conito inten-
sicou-se com a ampliação do Plano Colômbia. Seu governo foi o único de
toda a América do Sul a apoiar a invasão do Iraque, além de negociar um
polêmico plano de instalação de oito bases militares norte-americanas no
território colombiano, vetado pela suprema corte do país. A “guerra global
ao terror” de Bush caía como uma luva para a política de enfretamento das
FARCS do governo Uribe. Assim como nos Estados Unidos, em nome do
combate ao terror foram comentidas graves violações dos direitos huma-
nos: torturas, massacres, encarceramentos sem julgamento.
Em 2002, os Estados Unidos incluíram as FARCS na lista de orga-
nizações terroristas, decisão acompanhada pela União Européia e Canadá.
A pressão para que o Brasil também seguisse a decisão de Washington foi
grande. No início de 2003, a então Ministra da Defesa colombiana Marta
Lucía Ramírez reiterava a urgência dos países vizinhos tratarem as FARCS
como a mais pura expressão do terrorismo”. O clima que antencedeu a
invasao do Iraque era tenso e o Brasil buscou manter-se distante da lógica
da “guerra ao terror global” e não cedeu às pressões. A principal razão, de
acordo com o assessor da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia,
é que “o Brasil não qualica as forças insurgentes colombianas devido a
3
Em um estudo intitulado Custos econômicos e sociais na Colômbia publicado em 2014 um grupo de
pesquisadores colombianos arma que se o processo de paz realmente for assinado e implementado os
investimentos estrangeiros aumentarão, o risco-país caíra e os investimentos privados dos colombianos
aumentará e contribuirá para aumentar o crescimento econômico e reduzir a pobreza.
Raal Salatini (Org.)

que, eventualmente, se veria impedido de ser mediador em um possível
processo de paz
4
.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso chegou a oferecer a
cidade de Manaus como espaço neutro para um possível processo negocia-
dor entre o governo Colombiano e as FARCS e o Exército de Libertação
Nacional (ELN). A oferta foi renovada pelos presidentes Lula da Silva e
Dilma Rousse, o que demonstra o interesse da diplomacia brasileira na
busca de uma solução negociada para o conito de cinco décadas que dei-
xou 220 mil mortos e 6 milhões de pessoas atingidas (parte delas desloca-
das de guerra), além de milhares de crianças-soldados. Paralela às negocia-
ções do Estado colombiano com as FARCS em Havana sob a mediação de
Cuba e Noruega, o Brasil abrigou negociações secretas entre autoridades
colombianas e lideranças do ELN em 2014, conforme noticiado pela im-
prensa brasileira (ADGHIRNI, 2015).
O anúncio em novembro de 2015 pelos negociadores em Cuba
de que os dois lados haviam chegado a um acordo em relação ao tema
mais delicado, o da justiça no pós-conito, demonstra até o momento,
disposição em pôr m a uma guerra civil que dilacerou parte do país. No
nal de janeiro de 2016, o Conselho de Segurança da ONU aprovou re-
solução criando uma missão política especial para supervisionar e monito-
rar o cessar-fogo bilateral entre o Governo da Colômbia e a guerrilha das
FARC (LAFUENTE, 2016). Todos os observadores serão da Comunidade
de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Além de aançar
as negociações do processo de paz, essa resolução reconhece o papel fun-
damental das instituições regionais na garantia da paz e da democracia na
região. O envolvimento do Brasil e demais países da América do Sul com a
pacicação da Colômbia pode fortalecer a integração regional.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisamos a posição do Brasil frente ao combate ao terrorismo
e sua recusa em aderir a lógica da “guerra global ao terror”. Após os aten-
tados de 11 de setembro, o Brasil buscou distanciar-se da agenda de segu-
4
BBC. FARC: Colombia y Brasil en desacuerdo. Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/latin_ame-
rica/newsid_2782000/2782299.stm>. Acesso em: 10 ago. 2015.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
rança das grandes potencias militares, em especial os Estados Unidos, mas
contribuiu com medidas de combate ao terror através da participação em
organismos e grupos destinados a identicar e bloquear fontes de nan-
ciamento das organizações terroristas. Em síntese, o País sempre defendeu
a arena multilateral como melhor meio de enfrentamento ao agelo do
terrorismo.
Os Estados Unidos sentem que a ordem internacional trouxe no-
vos desaos para a sua posição de país líder. O unilateralismo da Doutrina
Bush cedeu espaço lentamente para a retomada da agenda multilateral de
Barack Obama, embora o fracasso retumbante no Iraque tenha se estendido
até 2011. Ademais a emergência de novos pólos de poder, destacadamente a
China, com sua pujança econômica e taxas elevadas de crescimento do seu
PIB representam imenso desao no médio prazo para os Estados Unidos.
Juntamente com China, Índia, Rússia e África do Sul, o Brasil
reúne-se no fórum Brics. O papel da China e dos novos pólos de poder na
ordem internacional mudou substancialmente e o caminho da multipola-
ridade ganhou mais força. Já não parecem possíveis ações unilaterais dos
Estados Unidos sem o consentimento ou apoio dos antigos aliados e dos
novos atores internacionais.
A noção de soft power apesar de sugerir uma dominação (no sen-
tido weberiano de consentimento), quando transposta para o plano inter-
nacional assume a imagem do brilho da espada, isto é, uma das feições da
espada. No fundo, soft ou hard esses termos se referem mais aos meios que
aos ns da política externa dos Estados Unidos. O 11 de setembro assinalou
uma mudança não tanto da parte dos Estados Unidos perante as relações
internacionais, mas sim uma transformação da conjuntura internacional
que desaa a suposta condição imperial de Washington. Some-e a isso que
a crise econômica internacional debilitou ainda mais essa possibilidade.
Ao Brasil interessa uma América do Sul pacicada, democrática
e, se possível, integrada, respeitando os direitos humanos e com desenvol-
vimento econômico e social. Por sua vez, o processo de paz na Colômbia
sinaliza para a toda a região que o multilateralismo e o diálogo são os ele-
mentos-chave para superar suas mazelas históricas e não sucumbir à barbárie
imposta por lógicas como a da “guerra ao terror” e seus desdobramentos. Os
Raal Salatini (Org.)

fracos” sabem que sem a construção de uma ordem multipolar e multila-
teral o terreno das relações internacionais seguirá povoado por aqueles que
concebem a paz e os direitos humanos como um horizonte apenas utópico.
REFERÊNCIAS
ADGHIRNI, S. Brasil abrigou negociações entre guerrilha ELN e Colômbia,
mas recuou. Folha de S. Paulo, 9 out. 2015.
ANDERSON, P. A política externa norte-americana e seus teóricos. São Paulo:
Boitempo, 2015.
AYERBE, L. F. O poder estadunidense. In: ______. Ordem, poder e conito. São
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Raal Salatini (Org.)


11.
A IRANIZAÇÃO DO ISLÃ E SEUS
DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS
Renatho Costa
Em pesquisa
1
realizada durante o ano de 2011, no Irã, foram
feitas diversas entrevistas com lideranças religiosas e políticas do país, assim
como acadêmicos. O intuito da pesquisa era analisar a percepção que os
aiatolás ligados ao governo ainda detinham sobre o sistema do wilayat al-
-faqih
2
, após mais de três décadas de sua implantação no país. No entanto,
durante este mesmo período, também foi mantido contato com diversos
centros de estudos religiosos na cidade de Qom e houve a convivência
com vários estudantes de religião matriculados nestas instituições. Desta
experiência, alguns aspectos foram suscitados e desenvolvidos em trabalhos
posteriores, contudo, um deles ainda não tinha sido analisado, qual seja, a
“iranização do xiismo” em curso no país.
E, nesse sentido, este artigo procura abordar o processo em que se
deu a iranização do xiismo – desde o período em que os aiatolás passaram
a contestar o fato de serem governados por não clérigos – e qual seria sua
1
Durante o ano de 2011, fui convidado pela Al-Mustafa International University, de Qom, Irã, a permanecer
no país como pesquisador e realizar as pesquisas necessárias para o doutoramento. Na ocasião, a instituição
ofereceu condições materiais e técnicas para o desenvolvimento de toda a pesquisa que resultou na tese de
doutorado apresentada à FFLCH-USP, intitulada “A inuência dos ulemás xiitas nas transformações políticas
ocorridas no Irã durante o século XX – o wilayat al-faqih e o pragmatismo dos aiatolás como inviabilizadores
na expansão da Revolução Islâmica”.
2
De modo simplicado, pode-se dizer que o wilayat al-faqih congura-se em um sistema de governo no qual
o governante máximo é uma autoridade religiosa, no caso do Irã, o Supremo Líder. Atualmente este posto é
ocupado pelo Aiatolá Ali Hoseyni Khamenei.
Raal Salatini (Org.)

implicação nos dias de hoje. Para tanto, parte-se de uma análise histórica
acerca da gradual inserção dos clérigos nos meios políticos até a concretiza-
ção da Revolução Islâmica, em 1979. E, de modo complementar, utilizam-
-se elementos relacionados às constatações oriundas da pesquisa realizada
no Irã em 2011 e das entrevistas feitas na ocasião.
Apesar do período de tempo transcorrido, de 2011 a 2015, as
considerações apontadas pelos entrevistados e obtidas in loco ainda con-
tinuam relevantes devido ao fato de que apesar de a crise econômica ter
comprometido o país, o projeto de iranização manteve-se em atividade,
apenas sendo destinado recursos mais modestos.
O INÍCIO
O processo de islamização da Pérsia deu-se gradualmente a partir
do século VII, no entanto, a efetivação da religião islâmica sob a vertente
xiita somente ocorreu no início do século XVI, com a dinastia Safávida
3
no
poder AXWORTHY, 2008). Este processo de assimilação do xiismo não
ocorreu de modo pacíco, até porque, inclusive no interior da Pérsia o sunis-
mo perdurou por muitos séculos e alguns eruditos permaneceram seguindo
esta vertente do Islã até que o xiismo se tornasse a religião ocial safávida.
Apesar de o Islã não propor uma divisão formal entre os pode-
res temporal e o espiritual, historicamente, conforme expõem Mackey
(2008) e Abrahamian (1993), os ulemás
4
aceitaram que o império fosse
governado por um líder não religioso que defendesse o xiismo e respeitas-
se seus princípios ao invés de entrarem em choque pelo poder. Em certa
medida, este “arranjo institucional” legitimava o governante não clérigo
3
“It is uncertain just when the Safavids turned Shi’a; in the religious context of that time and place, the
question is somewhat articial. Shi’a notions were just one part of an eclectic mix. By the end of the fteenth
century a new Safavid leader, Esma’il, was able to expand Safavid inuence at the expense of the Aq-Qoyunlo,
who had been weakened by disputes over the dynastic succession”. (AXWORTHY, 2008, p. 131)
4
O conceito de ulemás (tradução de ulamā) é mais comumente utilizado para descrever o corpo de clérigos
muçulmanos com amplo conhecimento em ciências islâmicas. No entanto, a adoção do termo varia de acordo
com o segmento religioso, mas neste artigoé utilizado o entendimento xiita, ou seja, refere-se os clérigos que
possuem altos padrões de conhecimento acerca da religião, congurando-se, assim, no mais alto cargo da
estrutura hierárquica xiita, exceto com a instauração do wilayat al-faqih que concebeu o Líder Supremo a
supremacia sobre os ulemás.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
e fazia com que as lideranças religiosas tivessem participação indireta no
governo
5
.
À parte os desentendimentos que ocorreram em diversos níveis
entre governantes e lideranças religiosas, o fato preponderante é que o im-
pério persa estabilizou-se sob o governo dos xás, contudo, gradualmen-
te, com mais efetividade a partir do século XIX, as potências estrangeiras
passaram a buscar maior inuência na região para atender seus interesses
geopolíticos e econômicos.
Se, por um lado, a delimitação de suas fronteiras com o Império
Otomano fora efetivada – ainda que tenha havido atritos –, por outro, as
presenças russa e britânica foram se ampliando em território persa e cada
vez mais concretizou-se a disputa geopolítica conhecida por “O Grande
Jogo
6
. O resultado objetivo dessa disputa pela inuência na Pérsia foi o
enfraquecimento dos governantes a partir do apoio a movimentos internos
e cooptação do próprio xá, que passou a estabelecer padrões ocidentais
para o país islâmico.
Ainda, no intuito de aproximar-se do modelo europeu, o xá persa
necessitava empenhar cada vez mais as riquezas de seu país e esse modelo
de submissão às potências estrangeiras estimulouo surgimento de um mo-
vimento nacionalista liderado pela maior autoridade religiosa da época, o
Grande Aiatolá Mirza Mohammed Hassan Husseini Shirazi. O imbróglio
teve início com a concessão do monopólio da comercialização do taba-
co (1891), que, conforme expunha o acordo assinado pelo xá, somente a
companhia britânica poderia comprá-lo, vendê-lo e exportá-lo, sem qual-
quer competição interna.
Como este acordo afetava parcela substancial da população – in-
clusive plantadores e comerciantes –, o aiatolá Shirazi decretou a proibição
do consumo do tabaco. Pautando-se por princípios religiosos, entendia
que o monopólio signicava restrição de liberdade da população e que a
concessão a um país não-muçulmano se congurava numa violação ao Islã.
5
O nível de inuência dos clérigos no governo variou durante as diversas dinastias que governaram a Pérsia/
Irã, também de acordo com a percepção do monarca que encontra-se no poder e a situação política da região.
Contudo, é fato que a legitimação do exercício do poder do monarca– não integrante do clero –pelos clérigos
gerou um sistema de dependência mútua.
6
Termo que foi cunhado para expor a disputa entre os impérios russo e britânico pela inuência na região
asiática.
Raal Salatini (Org.)

O movimento obteve sucesso e o acordo foi suspenso, contudo,
muito mais do que somente ter havido esta vitória contra o xá, conforme
Keddie (1966) aponta, a percepção de que seria possível enfrentar o gover-
no e mesmo as potências, tornou-se real.
e protest against the tobacco concession was the rst successful mass
movement in modern Iranian history, and led to defeat of the govern-
ment and triumph of the protesters in their demand for a total cancel-
lation of the concession. is success undoubtedly gave courage to the
conscious opponents of the government and foreign encroachments,
and led many to see for the rst time that it was possible to defeat the
government, even on a matter involving European interests. (p. 1).
Esta importante ruptura empoderou substancialmente os clérigos.
E, se em um primeiro momento não houve o interesse efetivo do aiatolá
Shirazi em questionar a legitimidade de osxás governarem, gradualmente a
presença política das lideranças religiosas fez-se presente nos movimentos
políticos que passaram a tomar conta da vida iraniana no século XX. Seja
na Revolução Constitucional
7
(1905-1911), ou mesmo nos processos que
desencadeariam o m da monarquia no Irã, no nal da década de 1970, a
oposição ao xá se tornou mais frequente.
A ascensão da dinastia Pahlavi em 1925, atendendo aos interesses
britânicos, somente provocou um maior atrito entre governo e alguns seg-
mentos religiosos. A razão principal estava na maneira com que o Xá Reza
Khan Pahlavi percebia a religião xiita e no modo que propôs superar o
subdesenvolvimento dos iranianos. Espelhado nos processos de moderni-
zação que a Turquia vivenciava, o monarca iraniano passou a implementar
no Irã reformas que, de fato, buscavam mudar as características de um país
agrário para outro industrial. No entanto, a proposta de mudança do xá
era muito mais profunda e afetou elementos culturais islâmicos, tais como
a imposição de vestimentas ocidentais em detrimentos das tradicionais,
criação de escolas mistas, dentre outras (MACKEY, 2008).
7
A Revolução Constitucional fora algo inédito no Oriente Médio, haja vista congurar-se em um movimento
que contou com baixa mobilização militar e levou a população, em sua grande maioria, a mobilizar-se contra o
modelo deocidentalização instituído pela monarquia Qajar (desde o início do século XIX com Abbas Mirza), o qual,
apesar de ambicionar trazer o desenvolvimento técnico-cientíco ao Irã, também favorecia as grandes potências
em detrimento de seu povo. Também foi de fundamental importância a participação das lideranças religiosas para
reforçar os princípios religiosos xiitas na constituição (HAIRI, 1977; ESPOSITO; 2005; MACKEY, 2008.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
O resultado desta política foi a insatisfação cada vez maior dos
clérigos mais conservadores, contudo, o xá não tinha interesse em abrir
mão de sua visão de modernização e, para tanto, passou a agir com muita
violência contra qualquer um que se posicionasse contrário ao caminho
que o Irã adora. É importante salientar que o processo de modernização
proposto pelo xá, apesar de ser entendido como algo que visava atender a
todos o país, não tinha essa real dimensão e a assimetria também era objeto
de questionamento, haja vista, em certas localidades como na cidade de
Abadan – onde estava localizada a renaria de petróleo –, os aspectos re-
lacionados ao bem-estar social tiveram forte incremento, entretanto, para
outras regiões sem esta característica econômico-estratégica, apenas coube-
ram acatar as medidas ocidentalizantes que o xá havia estabelecido.
Assim, a política de ocidentalização do xá passou a ser apresenta-
da à população, pelos clérigos, como um ato de violência contra a cultura
islâmica. A proibição do uso do véu, apesar de ter consigo agradar uma
parcela da sociedade, desagradou outra muito maior, formada a partir dos
costumes e tradições religiosas.
Nesse sentido, a tentativa de anular o segmento religioso de qual-
quer inuência política também se apresentou como uma opção equivocada,
haja vista a população manter uma relação muito próxima com as mesquitas
e escolas. E, ainda que o xá tenha conseguido reduzir o poder econômico
dos clérigos, não foi o suciente para anular sua presença. Por conseguinte,
ações autoritárias contra lideranças em Qom e Mashhad somente reforçaram
o discurso dos clérigos contra o rumo que o xá pretendia dar ao país.
É fato que dentro da vertente xiita nem todos os aiatolás parti-
ciparam ativamente de ações contra o governo do xá, havia um segmento
conhecido como quietista cujo posicionamento político não fazia parte de
sua atuação pública. O entendimento primordial destes aiatolás era de que
os religiosos não deveriam se posicionar nestes embates, apesar de continu-
arem defendendo os valores islâmicos e serem contrários a muitas medidas
implantadas com a modernização.
A situação do xá Reza Khan Pahlavi começou a modicar-se,
substancialmente, quando teve início a Segunda Guerra Mundial. O xá já
vinha se aproximando da Alemanha no intuito de inserir um terceiro ator no
Raal Salatini (Org.)

cenário político regional para ter mais condições de barganha com a União
Soviética e Grã-Bretanha (FROMKIN, 2008), no entanto, conforme des-
tacam Demant (2004) e Hourani (2001), o modelo nazifascista também
seria apreciado pelo xá. Por outro lado, este posicionamento ideológico é
contestado por Axworthy (2008) e Afkhami (2009), pois, de acordo com
os autores, o xá Reza agira contra vários movimentos que tentavam surgir
no Irã, sejam eles comunistas, pré-fascista, pró-marxista, etc., assim, a atu-
ação do xá estaria mais focada numa visão pragmática do que ideológica.
e shah had deliberately bought the weapons he needed for his armed
forces from companies in small states, Skoda and Brno in Czechoslovakia
and Bofors in Sweden, to minimize foreign domination. Contrary to
subsequent British and Russia propaganda, he disliked Hitler and ab-
horred Mussolini. He believed Mussolini has ambitions in the East and
would probably prevail on Hitler to help him invade the countries of the
Middle East, including Iran. (AFKHAMI, 2009, p. 62).
Entretanto, com base nos sinais políticos que o Irã indicava, mes-
mo perante sua declaração de neutralidade com o início da guerra, União
Soviética e Grã-Bretanha optaram por invadir o país, em 1941, para que
não viesse a car sob o julgo alemão. E, a insustentabilidade da manuten-
ção do xá no governo fez com que abdicasse do trono em favor de seu lho,
Mohammad Reza.
O EMBATE MAIS PROFUNDO
Inicialmente houve certa dúvida – por parte das potências – acer-
ca da manutenção dos Pahlavi à frente do governo iraniano, porém, a me-
lhor opção recaiu sob o pouco expressivo lho de Reza. Até porque, duran-
te o período em que a guerra se estendeu, as potências passaram a intervir
no país de maneira estratégica e a gura de Mohammad Reza tinha um
valor institucional importante, haja vista manter o país unicado.
Graças a essa percepção das forças estrangeiras, tornou-se viável
ao xá iniciar um processo gradual de reatar as relações com os ulemás.
Também, é importante salientar que apesar de o xá concordar com muitos
dos projetos modernizadores que seu pai implementara, optou por criar
uma estratégia conciliadora e recuar em aspectos especícos para conquis-

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
tar alguns segmentos sociais, principalmente os clérigos. Conforme Milani
expõe, além de o xá reimpor a obrigação do uso do véu, em público, pelas
mulheres, também devolveu a autonomia nanceira aos clérigos e adequou
o sistema educacional de modo que voltasse a privilegiar o ensino religioso.
e Ayatollah second demand (a primeira foi o retorno do uso do véu)
was a reversal of Reza Shahs policy of putting religious endowments
(vagf) under government control. e management of these proper-
ties, according to the Prime Minister’s letter, was to be returned to
those stipulated in the endowment letter – in most cases the clergy. In
agreement to the Ayatollahs third demand, the government to make
classes on Islamic theology and ethics a mandatory part of the curric-
ulum in Iranian schools. e clergy were put in charge of determining
the content of these classes. Ayatollah Gomi also demanded the closing
of coeducational schools around the country that had arisen toward
the end of the Reza Shah period. Every one of the Ayatollah’s major
demand was, on the order of the Shah, accepted by the government and
became policy. (MILANI, 2011, p. 102, grifos nossos).
Para a grande maioria dos clérigos, a mudança de procedimento
do novo xá representava o restabelecimento das boas relações entre o mo-
narca e a fé, as quais, de certa maneira, tinham sido rompidas anteriormen-
te com o decreto de suas medidas modernizadoras. Mas essa tranquilidade
seria alterada com o crescimento do movimento nacionalista no país e a
ruptura no interior do corpo de ulemás.
Ainda, a tentativa do xá de evitar a inuência britânica na região,
após a Segunda Guerra Mundial, se congurava em um grande desao,
assim como eliminar a presença soviética no norte do país. Uma das possi-
bilidades vislumbrada pelo monarca foi se aproximar dos clérigos e criticar
com veemência os privilégios adquiridos pela renaria Anglo-Iranian Oil
Company (AIOC) no país, que, por sua vez, gerava repulsa por parte da
população e das lideranças nacionalistas.
Assim, levantando como bandeira a inuência perversa dos es-
trangeiros no Irã, um nome destoou dentre os clérigos, qual seja, do aiatolá
Seyyed Abol-Ghasem Mostafavi Kashani. Ele não tinha a mesma erudição,
tampouco ocupava o mesmo nível hierárquico do aiatolá Borujerdi – con-
siderado a maior autoridade do xiismo no período –, contudo, conseguiu
agregar cada vez mais adeptos para sua causa nacionalista. Ainda, quando
Raal Salatini (Org.)

Borujerdi, em 1949, reuniu o clero para ocializar a postura do quietis-
mo acerca da questão do petróleo britânico, Kashani foi a voz destoante.
Suscitando a fatwa do aiatolá Shirazi, que legitimou a Revolta do Tabaco,
Kashani não tinha dúvida de que Islã e política deveriam caminhar juntos,
inclusive governando o Estado, e não mais como ocorrera até então.
Desse modo, os movimentos políticos que o Irã vivenciou duran-
te a década de 1950 tiveram forte participação dos clérigos. Exemplo deste
empoderamento, pode-se destacar o caso da AIOC que, sem condições
para suportar a oposição das ruas, dos políticos e dos religiosos, foi nacio-
nalizada em 1951. Ainda, de acordo com Milani (2011, p. 154), apesar
de o aiatolá Kashani ter participado do processo que levou Mohammad
Mossadegh ao poder, sua delidade aos pressupostos religiosos pode ser
questionada, haja vista a clérigo ter mantido “suas possibilidades abertas
ao negociar com o xá e com os britânicos – secretamente – outras possibi-
lidades de desfecho para o caso.
Convinced that he [Kashani] had restored Mossadeq to power, in the
months after July 21, Kashani became even more brazen in dictating
policy to the government. He wanted women to be forced to wear
Islamic covering when entering government oces; he demanded the
right to name certain ministers and veto others; nally, he wanted the
government to increase pressure on the Baha’i – a nineteenth century
faith that emerged from Iran and whose followers became the bane of
Shiite clergy. (MILANI, 2011, p. 154).
O posicionamento de Mossadegh diante dos fatos se, por um
lado, fez com que ele obtivesse o apoio que pretendia para iniciar seu pro-
jeto de governo, por outro, chamou a atenção dos clérigos para um risco
ainda maior de secularização do Estado. Ou seja, para assumir o cargo de
primeiro-ministro, Mossadegh exigiu que o Majlis (Congresso) lhe con-
cedesse poderes extras, inclusive com a sujeição das forças armadas a ele.
Era uma concessão perigosa para parte dos clérigos que via com receio o
posicionamento político de Mossadegh, contudo, a conjuntura favorável
ao futuro primeiro-ministro silenciou temporariamente os religiosos. O
panorama político era tão favorável a Mossadegh que a demanda apresen-
tada pelo aiatolá Kashani foi rejeitada quase que completamente, fato esse
que propiciou a progressiva perda de apoio dos clérigos.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Os desdobramentos históricos que zeram com que Mossadegh
perdesse sua inuência política no país estão ligados ao receio da seculari-
zação do Estado, no entanto, também têm raízes na atuação estaduniden-
se, que percebia o Irã como uma região de potencial interesse geopolítico.
Assim, em que pese o receio por parte do clero, o projeto de Mossadegh foi
efetivamente frustrado pela operação acobertada dos Estados Unidos
8
no
país para depô-lo do cargo e restaurar o poder do xá.
XIISMO VERSUS OCIDENTALISMO
A retomada do poder pelo xá Reza teve um efeito singular para o
destino do Irã. Sentindo-se mais poderoso, adotou o entendimento de que
a população iraniana o preferira à liderança nacionalista de Mossadegh.
Com isso, gradualmente o país passou a vivenciar um processo de centrali-
zação do poder nas mãos do monarca e ampliação das redes de inteligência
e repressão para tolher qualquer tentativa de golpe contra seu governo.
Nesse sentido, a liderança xiita que ganhara cada vez maior des-
taque no cenário nacional – aiatolá Ruhollah Musavi Khomeini – tornou-
-se foco de atenção do xá Reza. De fato, Khomeini já apontava para um
posicionamento mais crítico desde sua primeira obra, de 1942, “Segredos
Revelados” (Kashf al-Asrar). Nela externava sua preocupação com a socie-
dade iraniana e o sistema de ideias ocidentais que invadira o país e gradu-
almente tentava guiá-lo para a secularização.
Khomeini fazia parte da ala “mais radical” dos ulemás irania-
nos e, com as primeiras reformas que o xá começara a promover em
1962 – que se congurariam na “Revolução Branca” –, dentre suas crí-
ticas, atacava a maneira com que os recursos nanceiros chegariam às
8
O risco de o Irã entrar para a órbita do comunismo fez com que o presidente estadunidense Eisenhower
desse a ordem para que fosse propagada uma ação para derrubar Mossadegh do poder. O Golpe de Estado
seria executado pelos homens da CIA, de dentro do Irã. Isso porque, apesar de os EUA não terem apoiado
nanceiramente o governo de Mossadegh, a imagem do país não havia mudado substancialmente. Os Estados
Unidos ainda gozavam de respeito dos iranianos, pois não eram entendidos como uma potência colonizadora
no molde britânico.Inicialmente havia a proposta dos Estados Unidos de minar qualquer apoio popular a
Mossadegh e, para tanto, o agente da CIA, Kermit Roosevelt, obteve os contatos de antigos colaboradores
britânicos e passou a nanciar pequenos movimentos e passeatas contra Mossadegh e em favor do xá – a ação
do golpe de estado passaria a ser conhecida por “Operação Ajax”. Também, uma questão estratégica e que
faria diferença no embate pelo poder diz respeito ao alinhamento das Forças Armadas. Gradualmente houve a
ruptura com o governo de Mossadegh e retorno da lealdade ao xá. (KINZER, 2004; FISK, 2007).
Raal Salatini (Org.)

cooperativas agrícolas, ou seja, seriam provenientes dos EUA e tinham o
intuito de controlar a produção e comercialização agrícola. Desse modo,
esta atitude prejudicaria os interesses dos tradicionais bazaarie feriria a
Constituição (HIRO, 1985, p. 43).
Além da chamada “ala radical”, outros dois grupos de clérigos sur-
giram em resposta às ações do xá, quais sejam, os conservadores – herdeiros
do posicionamento não-político do aiatolá Borujerdi –, e os centristas, que
estavam descontentes com o posicionamento anterior de Borujerdi, mas
não faziam muita coisa para alterá-lo.
Leaving aside the small pro-Shah minority among them, the ulema
fell roughly into three categories: conservative, centrist and radical.
e conservatives [...] [were led by] Ayatollahs Muhammad Reza
Golpaygani, Shehab al-Din Marashi-Naja and Muhammad Kazem
Shariotmadari. […] e centrists [...] tended to concentrated [their
criticism] on the educational and social aspects of the Shia institutions.
[And] their best known spokemen were Ayatollahs Murtaza Motahhari
and Muhammad Husseini Beheshti. […] In Qom the radical view-
point was now being articulated by HojatalislamRuhollah Mousavi
Khomeini. (HIRO, 1985, p. 43).
Assim, com a exposição que o xá buscava no Ocidente, inclusive
sendo capa de revistas dos Estados Unidos – as quais elogiavam o desenvol-
vimento do Irã e tratavam o monarca como uma pessoa benevolente e que
zelava por seus súditos –, o ulemá deixou o quietismo providencial para as-
sumir uma atuação mais enfática. Inclusive devido ao fato de que em 1963
o xá deu início a sua “Revolução Branca”. Segundo Mackey (2008, p. 227),
[...] a Revolução Branca era pouco mais do que a busca brilhante do
xá pela aprovação ocidental. Na verdade, nenhuma retórica superior e
nenhuma das cerimônias públicas, nas quais estavam presentes o xá e o
camponês, discutiam as causas do descontentamento popular em relação
à regra do regime autoritário de Pahlavi, relacionada à ausência de justiça
social. Tal como um melodrama ruim, algumas das mudanças introdu-
zidas pelo programa de reforma do xá, na verdade, aumentaram, em vez
de diminuírem, a oposição ao regime Pahlavi.
A proposta da Revolução Branca era ambiciosa e abrangia 19 me-
tas que e seriam desenvolvidas em etapas – introduzidas num período de

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
15 anos, mas as 6 primeiras ainda em 1962. De modo prático e objetivo,
o projeto do xá subvertia toda a estrutura tradicional de poder já enraíza
na sociedade iraniana e ainda tentava reduzir a inuência dos ulemás na
sociedade. Com isso, a reação de Khomeini e seu grupo foi cada vez mais
intensa.
Essa atuação a partir de pronunciamentos públicos e participa-
ção em protestos gerava insegurança ao monarca iraniano, no entanto, a
importância que Khomeini alcançara neste processo inviabilizava qualquer
tipo de ação que pudesse vir a silenciá-lo. A percepção era de que a morte
de Khomeini poderia desencadear a insatisfação coletiva ou mesmo criar
um mártir, o que geraria tensão ainda maior.
Assim, ainda que o governo do xá tenha ampliado a repressão
contra os religiosos que se posicionavam contrários às reformas trazidas
pela Revolução Branca – inclusive autorizando o ataque à cidade de Qom
–, a vida de Khomeini foi preservada e a consequência maior foi a conti-
nuidade das críticas e denúncias contra o xá e sua relação com os Estados
Unidos. No entanto, em 1964, sem conseguir controlar os posicionamen-
tos de Khomeini e sua inuência cada vez maior junto à população, o
xá Reza resolveu expulsá-lo do Irã. Inicialmente Khomeini instalara-se na
Turquia, mas menos de um ano depois, rumou para Najaf, Iraque – uma
das cidades mais importantes para o xiismo. Com o exílio de Khomeini, os
movimentos internos no Irã perderam intensidade, até porque a repressão
do xá, com o uso de sua polícia política (SAVAK), alcançou níveis que
dicultavam qualquer tipo de mobilização.
Com a vitória do modelo ocidentalizante imposto pelo xá ao Irã,
a saída para os clérigos foi manter uma oposição pontual, contudo, sem
a efetividade anterior. Entretanto, foi em Najaf que a Revolução Islâmica
passou a ser mais bem planejada. Foi no ciclo de palestras realizada por
Khomeini a jovens estudantes de religião, em 1970, que o aiatolá expôs a
necessidade de instauração do wilayt al-faqih para restaurar a ordem no Irã
e acabar com a opressão.
Na obra Islamic government: Governance of the jurist – coletânea
das palestras que ocorreram em Najaf –, não somente Khomeini expõe
que a adoção deste modelo de governo não somente restauraria a ordem
Raal Salatini (Org.)

no Irã, como o apresenta como legítimo, haja vista ter sido estabelecido no
período do profeta, mas subjugado em períodos posteriores.
O período de exílio de Khomeini foi extremamente produtivo para
a construção das bases teóricas que sustentariam a Revolução Islâmica no
Irã, e, potencializado pelo distanciamento que o xá Reza Pahlavi adotou da
população iraniana quando passou a focar em seu projeto de transformar
o país numa grande potência da região até o ano 2000 (MILANI, 2011).
Com isso, o investimento no setor militar superou o de qualquer outro país
do Oriente Médio, por outro lado, a qualidade de vida da população média
e pobre no país decaiu consideravelmente. Havia, em meados da década de
1970, a percepção por grande parte dos iranianos de que os estrangeiros ti-
nham muito mais vantagens do que os nacionais. Conforme Mackey (2008)
expõe, Teerã era uma cidade que os estadunidenses gostavam muito de viver,
pois, além de suas características ocidentais, proporcionava facilidades para
negócios, investimentos e enriquecimento rápido aos estrangeiros.
Sob o símbolo da mudança necessária – a deposição da monar-
quia e, consequentemente, do xá –, ocorreu a Revolução no Irã com o
apoio de praticamente toda a população (FOUCAULT, 1978). No entan-
to, o período pós-revolução apresentou-se como signicativo, haja vista os
clérigos terem conquistado o poder e iniciado a implantação do wilayat
al-faqih, ainda que não fosse do interesse de todos que apoiaram o processo
revolucionário.
De certa maneira, o caminho que levou à instauração da República
Islâmica do Irã não foi ausente de ações punitiva e perseguições a grupos
que não congregavam da criação de um sistema de governo religioso no
país. Porém, sequer houve a possibilidade de experimentação efetiva do
modelo do wilayat al-faqih, haja vista o Irã já ser catapultado a uma guerra
contra o Iraque que lhe absorveu oito anos de luta e instabilidade (1980-
88). Estabelecia-se, assim, a vitória dos religiosos contra um governo ali-
nhado ao ocidente, contudo, concomitantemente, expunha-se a diculda-
de de raticar a efetividade do modelo do governo do wilayat al-faqih para
a população, uma vez que os boicotes tornaram-se frequentes com exclusão
do Irã do sistema internacional – capitaneada pelos Estados Unidos.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
SOFT POWER IRANIANO OUIRANIZAÇÃODO XIISMO
Mesmo diante do boicote imposto ao Irã, a postura do governo
foi investir no desenvolvimento do sistema do wilayat al-faqih para fa-
zer com que os clérigos preservassem seu status no país. Ainda, partindo
do pressuposto de que há uma hierarquização no xiismo, apesar de esta
estrutura não constar no Corão, a formação de religiosos tornou-se um
elemento primordial.
Com isso, a cidade de Qom passou a receber uma importância
que não tinha durante o governo do xá. Além dos investimentos na me-
lhoria da qualidade de vida da população – que reverteria, futuramente,
na dessalinização da água e melhora na infraestrutura pública – os investi-
mentos tinham a intenção de fazer com que Qom se tornasse a principal
formadora de clérigos e difusora do xiismo. Anteriormente este papel era
exercido por Najaf, no entanto, com o governo secular de Saddam Hussein
e posteriores invasões estadunidenses ao país (1991 e 2003), gradualmente
os clérigos migraram para Qom e instalaram universidades, madrassas e
fundações lantrópicas.
De modo pragmático, o desenvolvimento de Qom foi patro-
cinado pela valorização do petróleo e a perspectiva dos clérigos de que
deveriam fortalecer a estrutura da religião no país. A própria Al-Mustafa
International University é uma instituição sólida que migrou para a estru-
tura de universidade no intuito de atender aos interesses do governo ado-
tando, com isso, o modelo internacional de ensino superior, no entanto,
sem perder o foco em sua nalidade principal que é formar religiosos que
possam propagar o Islã xiita pelo mundo. Desse modo, recebe constante-
mente alunos de todas as nacionalidades e nancia sua formação.
Os candidatos a estudantes da instituição de ensino superior, ao
chegarem em Qom são conduzidos à instituição Imã Mahdi, que propor-
ciona o aprendizado da língua persa (ou farsi). Espera-se que o aprendi-
zado leve em torno de seis meses, no entanto, algumas pessoas de línguas
latinas têm mais diculdade no processo de aprendizagem e levam até um
ano. Todas as atividades que compõem o aprendizado da língua persa se
dão a partir do ensino do Islã e de elementos da cultura iraniana.
Raal Salatini (Org.)

É importante salientar que há universidades e madrassas para
iranianos e para estrangeiros. Apesar de não haver impedimentos formais
para um estrangeiro estudar nas instituições “para iranianos”, esta intera-
ção não ocorre. E, ao detectar este fato foi feito o questionamento a alguns
professores e religiosos, contudo, a resposta mais constante era de que os
estrangeiros não tinham nível suciente de compreensão da língua persa
para frequentarem as instituições “para iranianos” ou, simplesmente, não
queriam.
De fato, a assimilação da língua persa e do entendimento do xiis-
mo iraniano é o objetivo principal dos clérigos, inclusive, para sua difusão
nos moldes do soft power proposto por Joseph Nye Jr. –, porém, não há
o interesse de introduzir estrangeiros na estrutura de poder do xiismo. Os
formandos nas universidades religiosas devem retornar aos seus países e
continuar na difusão da fé e da liderança do Irã frente ao xiismo, não se
espera que se forme em Qom um aiatolá estrangeiro que venha a se tornar
o Supremo Líder do Irã ou quiçá, de toda a comunidade islâmica.
Inclusive, a questão acerca do papel do Líder Supremo frente à
comunidade xiita no âmbito local – Irã – ou mundial foi objeto de debate
com os aiatolás por ocasião da pesquisa realizada no país. Com este ques-
tionamento, buscava-se compreender o entendimento que os iranianos
tinham acerca do sistema de governo do wilayat al-faqihe se percebiam
que deveriam irradiá-lo para outras localidades, assumindo um papel de
protagonismo.
A questão proposta foi: o Profeta Mohammad foi o líder de todos
os muçulmanos, por analogia, com a implantação do wilayat al-faqih, por
Khomeini, o Supremo Líder iraniano responderia pela liderança da comu-
nidade muçulmana em todo o mundo?

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Shahroudi
9
(2011) expõe que para tornar-se o Líder Supremo,
com base no modelo do wilayat al-faqih, é necessário que o marja
10
seja
escolhido através de votação por seus pares, e, nesse sentido, não há limitação
para que cada país escolha o seu líder. Até porque, segundo ao aiatolá,
[...] as pessoas que zerem a revolução em seu país terão todo o direito
de escolher quem melhor lhes convier. Com isso, caso todos os países
do mundo façam suas revoluções e estabeleçam o wilayat al-faqih ne-
les, teremos um governo sem fronteiras. Qualquer entendimento di-
ferente desse só ocorre porque não há a compreensão da religião xiita.
(SHAHROUDI, 2011).
Não fugindo dessa linha argumentativa, Garomi
11
expõe que
Existe um consenso de sábios que elege o Líder Supremo e, onde quer
que ele esteja instaurado, terá a possibilidade de deliberar sobre a es-
colha de sua liderança. As lideranças escolhidas têm de governar de
acordo com as regras do país, então, se houver o entendimento de que
9
Aiatolá Shahroudi foi chefe do Poder Judiciário até 2009 e, atualmente ocupa o cargo de membro do Conselho
de Guardiães. Durante o período em que foi Chefe do Judiciário entrou em atrito direto com o então presidente,
Khatami, devido às supostas perseguições que os parlamentares estavam sofrendo quando se pronunciavam no
Majlis. De posições bastante enfáticas, Shahroudi é uma personalidade de muita inuência, sendo cotado por
alguns iranianos para ser o provável substituto de Khamenei. Para entrevistá-lo, em seu escritório, houve a neces-
sidade de passar pelo maior sistema de segurança que presenciei no Irã. Além de revistas convencionais, também
foi necessário passar por detector de metais. Os equipamentos para a entrevistas foram conscados e somente
entregues na sala em que transcorreria a entrevista. Shahroudi foi o mais formal de todos durante a entrevista,
entretanto, não hesitou em responder quaisquer das perguntas. Sempre havia um assessor ao seu lado, mas ele
não interviu em qualquer momento.
10
Literalmente signica a “fonte da imitação”, a quem se deve seguir. Trata-se de uma autoridade do mais alto
escalão da comunidade dos xiitas do Duodécimo que executa a xaria. O termo é normalmente aplicado entre
os quatro e oito juristas do mais alto escalão (aiatolá) no nível local ou nacional.Na escala mundial o título é
aplicado a apenas um ou dois juristas. A posição é informalmente adquirida e depende dos padrões de lealdade
e delidade percebidospelo jurista por seus pares e pela comunidade de éis. Dois grandes aiatolás alcançaram
esse status depois de 1970, os aiatolás Khomeini e al-Qasim Abu al-Khoi (OXFORD ISLAMIC STUDIES
ONLINE, adaptado).
11
O aiatolá Garomi, além de ser considerado um grande jurisconsulto, esteve com Khomeini durante o processo
de construção da Revolução e, durante as entrevistas – foram duas –, sempre que era feita qualquer menção a um
entendimento distorcido sobre os propósitos do primeiro Líder Supremo do Irã, tratava da questão com muita
objetividade e “dizia que o que Khomeini queria dizer é...”. Normalmente, para fundamentar suas respostas,
Garomi recorreu às fontes religiosas. Também é importante salientar que Garomi é internacionalmente
conhecido por uma prática mística do xiismo, qual seja, o Estekhareh. De acordo com sua explicação, quando
alguém vive um processo de dúvida acerca de determinada situação e não consegue escolher qual seria a melhor
opção a ser adotada, ela procura o aiatolá Garomi e, num ato de abrir o Corão, é apresentada qual deve ser a
melhor opção a ser adotada. Normalmente, ao nal da oração da noite Garomi permanece no salão de orações e
atende as pessoas. Muitas vezes não há nem a necessidade de expor ao aiatolá seu anseio, basta olhar para Garomi
que ele entende qual deve ser o problema e busca auxiliar a pessoa através do Corão. Também é possível fazer a
consulta através do telefone e, durante as entrevistas com o aiatolá algumas vezes ele as interrompeu para atender
alguém cuja necessidade era tida como “urgente”.
Raal Salatini (Org.)

um brasileiro possa exercer o wilayat al-faqihno Brasil [desde que tenha
havido sua islamização] e ele for referendado por seus pares, terá todo o
direito. Assim, o aiatolá Khamenei não pode ser considerado um líder
[político] dos xiitas fora do Irã. (GAROMI, 2011).
Apesar da objetividade com que a questão é abordada por Garomi,
a questão subsidiária e que foi exposta anteriormente, diz respeito ao fato
de que a grande maioria dos religiosos é formada em Qom e os estrangeiros
frequentam escolas diferentes dos iranianos. Assim, até que ponto há real
interesse em permitir que outros países tenham jurisconsultos próprios,
que deixem de seguir os iranianos?
Shahroudi (2011) ratica o entendimento de Garomi sobre
a questão e arma ser um grande equívoco das pessoas, fora do xiismo,
perceberem o Supremo Líder do Irã como uma liderança universal, ele
tem suas atribuições políticas apenas dentro do país, e, para raticar sua
argumentação, salienta que a Constituição iraniana
12
é clara ao tratar das
atribuições do Líder. A ummah, complementa Garomi, de fato, “não tem
fronteiras, mas somente no sentido de que qualquer pessoa que acredite
em Allah e no profeta Mohammad possa se tornar muçulmana, assim, essa
regra vale para o mundo inteiro. Sem fronteiras para a religião, mas nos
aspectos políticos existem limitações.” (GAROMI, 2011).
Desse modo, não se pode confundir o papel do aiatolá Khamenei
como jurisconsulto –nesse caso ele tem seguidores pelo mundo inteiro –
com seu papel de governante, Líder Supremo da Revolução Islâmica, cuja
jurisdição restringe-se ao Irã (SHAHROUDI, 2011).
Um exemplo dessa distinção entre as atribuições de Khamenei pode ser
percebido no caso do Hezbollah
13
, do Líbano, em que a grande maioria
12
Artigo 5º, “Durante o tempo em que o 12º Imam (que Deus acelere sua reaparição) estiver oculto, a direção
dos negócios e a chea do povo da República Islâmica do Irã ser da responsabilidade de um jurisprudente
justo e piedoso, conhecedor de sua época, corajoso, ecaz e hábil a quem a maioria do povo conhece e aceita
ser seu Líder. Caso o jurisprudente não tenha tal maioria, um Conselho Dirigente, ou Conselho de Direção
consistindo de jurisprudentes que reúnam as qualicações acima, assumirá a mesma responsabilidade.” (apud
AL-KHAZRAJI, 2005, p. 69, grifos nossos).
13
Nesse exemplo exposto pelo aiatolá Shahroudi existe um elemento polêmico, pois há um posicionamento
político iraniano, do próprio aiatolá Khamenei, contra a existência do Estado de Israel e, por sua vez, é acatado
pelo Hezbollah. Nesse caso, qualquer proposta de alinhamento político libanês ou aproximação do governo
israelense será repudiada pelo Hezbollah. Mas não, necessariamente, por razões políticas, e, sim, por aspectos
religiosos. A proximidade entre Hezbollah e Irã aponta para questões que transcendem o simples alinhamento
religioso, muitas questões políticas ditadas pelo Irã reetem no Líbano.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
dos membros desse grupo segue o aiatolá Khamenei como juriscon-
sulto, no entanto, não quer dizer que se o aiatolá Khamenei der uma
ordem política eles terão de acatar. Evidentemente que não, pois estão
dentro do Líbano e devem seguir as leis do governo instituído no país.
(SHAHROUDI, 2011).
Hadavi
14
, complementarmente, apresenta outro exemplo para
justicar a diferença na atuação do Líder Supremo,
Quando uma pessoa aceita viver em um país que não é muçulmano, ela
tem de seguir aquelas leis. Se, por exemplo, uma pessoa é estrangeira e
recebe um visto ou assume a nacionalidade do país, subentende-se que
ela irá se submeter àquelas leis. Desse modo, não será possível seguir
todas as leis do Líder Supremo, pois essa pessoa estará sob o regime
de outro sistema de leis. Contudo, não quer dizer que o muçulmano
tenha de aceitar em sua plenitude essas leis, por exemplo, se ele for
proibido de fazer suas orações seria um caso em que as leis islâmicas
devem prevalecer [exceto se representar um risco e ele for obrigado a
lançar mão da taqiyyah
15
, um procedimento doutrinário aceitável pelos
xiitas]. (HADAVI, 2011).
Yazdi
16
, assumindo um entendimento distinto dos demais aiato-
lás, expõe que
[...] os ulemás atenderam à demanda da população, dentro do possível,
em toda a história do xiismo. Assim, Khamenei é o líder de todos os
xiitas no mundo, porque os Imãs são para todos os xiitas e, como Líder
Supremo ele os representa. Não haveria razão para termos mais de um,
seria ilógico. (YAZDI, 2011, grifos nossos).
14
AiatoláHadavié um clérigoconsiderado moderado,suas interpretaçõessobre aShariaencaixam-se entre
a percepção dos clérigoslinha-durado Irã– ora no poder – e os reformadoresiranianosque almejam maior
liberdade político-socialeinterpretaçõesmenos radicais do Islã. Hadavi é um aiatolá que tem grande acesso ao
cenário internacional e constantemente participa de eventos de grande envergadura tanto no Oriente Médio
quanto na Europa. Foi o único aiatolá que falava inglês, por isso, não houve a necessidade de tradutor. Em alguns
aspectos o ponto de vista de Hadavi aproxima-se da perspectiva do ex-presidente iraniano Mohammad Khatami
sobre a abertura do Irã para o Ocidente, contudo, como pode ser constatado no transcorrer da entrevista,
Hadavi ratica a importância da manutenção do wilayat al-faqih para a manutenção dos “ganhos obtidos com
a Revolução”, enquanto Khatami é mais crítico nesse aspecto.
15
Procedimento aceitável pela doutrina xiita que permite que seus éis possam esconder-se de seus algozes,
inclusive não agindo de acordo com os pressupostos religiosos.
16
Yazdi é considerado um aiatolá conservador e, durante a entrevista esse aspecto cou bastante evidente.
Mesmo expondo pontos de vista que talvez pudessem ser mal-entendidos pelo Ocidente, não hesitou em
responder as questões que foram formuladas. Inclusive, em algumas circunstâncias para demonstrar os aspectos
corretos” do Islã, questionou a razão pela qual o Brasil teria aceito a união entre pessoas de mesmo sexo. Essa
questão, para ele, não encontra justicativa nas leis divinas.
Raal Salatini (Org.)

Apesar de entender a gura do Líder Supremo como uma au-
toridade universal, Yazdi pondera acerca da diculdade de aplicação do
conceito,
Para um marja não há fronteiras para os seus seguidores em questões
religiosas, assim, em qualquer lugar que estejam podem acatar as deter-
minações expressas por seu líder. Contudo, no que tange aos aspectos
políticos, a regra deveria ser a mesma, mas existem problemas devido ao
fato de que há xiitas que vivem em outros países, e, acatar uma determi-
nação política contrária ao Estado poderia gerar problemas para eles
17
.
Assim, o Líder Supremo, como um sábio que é, acaba limitando sua
atuação, para não colocar os xiitas em perigo. Mas, teoricamente falando,
como não há fronteiras para o wilayat al-faqih, o atual aiatolá Khamenei
é o líder de toda a nação xiita, e o próximo que o suceder deverá seguir os
mesmos preceitos, pois é a vontade de Deus. (YAZDI, 2011).
Gharavian
18
(2011), conciliando as perspectivas anteriores, en-
tende que há dois aspectos para serem analisados no intuito de entender a
dimensão da liderança suprema exposta no wilayat al-faqih, quais sejam,
uma que seria a prática e a outra a teórica. Com relação ao aspecto teórico,
pode-se dizer que os xiitas entendem que o ideal seria que todos vivessem
unicados pela religião e, sendo assim, haveria o estabelecimento do wilayat
al-faqih e a eleição de um Líder Supremo para todos xiitas. Entretanto, na
prática, não é possível atribuir a liderança do wilayat al-faqiha todos os
xiitas do mundo. “Ocorre que, quando dizemos que a liderança do Líder
Supremo engloba todas as nações [no sentido de estado nacional], estamos
expressando um ideal, uma teoria.” (GHARAVIAN, 2011).
Ainda, com relação à legitimidade de governos que vierem a sur-
gir e a implantação do wilayat al-faqih, Hadavi (2011) expõe que, uma vez
que adotarem esse sistema, a liderança do Líder Supremo será frente à sua
nação (estado nacional).
É importante deixar claro que todas essas características exigidas para
que uma pessoa exerça a função de Líder estão dispostas e formalmente
presentes na constituição iraniana [artigo 5º]. E, evidentemente, quan-
17
Como exemplo, Yazdi expõe a diculdade de os xiitas professarem sua fé na Arábia Saudita devido à
perseguição que sofrem dos wahabbitas. Inclusive, são proibidos de proferirem suas súplicas durante o hajj.
18
Aiatolá Gharavian é considerado um dos maiores especialistas em wilayat al-faqihe, sua entrevista foi
concedida em sua escola, onde ministra aulas para poucos estudantes de conhecimento mais aprofundado sobre
o tema. Logo após ministrar uma aula para dois de seus alunos, ele disponibilizou-se a responder as questões.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
do se faz isso, subtende-se que seu limite de atuação é dentro das fron-
teiras do país. Muitas vezes, o que faz com que as pessoas entendam
que o Líder Supremo do Irã também seja o líder de todos os xiitas é o
fato de que, como disse anteriormente, a ummah não tem fronteiras.
(HADAVI, 2011).
Para raticar os valores defendidos pelo país e distanciar o sistema
do wilayat al-faqih de um instrumento para implantação de um regime
ditatorial, Hadavi expõe que
Constituição iraniana, apesar de ser composta de vários elementos que
contemplam a doutrina xiita, ela deixa claro que o Líder Supremo é do
país e não algum tipo de governante com poder fora de suas fronteiras.
É uma constituição como as demais de outros Estados e que foi feita
a partir dos princípios de sua nação, mas que não pretende ter caráter
universal. Cada estado que, eventualmente vier a fazer sua revolução es-
tabelecerá sua constituição, e cada um deles escolherá os procedimentos
que devem ser adotados para a escolha de seu líder. (HADAVI, 2011).
Enquanto claramente se apresenta uma semi-convergência para o
entendimento de que existe a atuação dupla do Líder Supremo do Irã, ou
seja, suas disposições têm caráter universal quando versam sobre religião e
caráter nacional quando deliberam sobre política, ainda assim cabe proble-
matizar a universalidade das questões religiosas que poderiam interferir no
“interesse nacional” de outro estado.
Gharavian (2011) não descarta essa possibilidade porque muitas
questões, para os xiitas, são de cunho político e religioso concomitante-
mente. Como no caso do hijab,pois, para ele, sua obrigatoriedade envolve
um entendimento religioso e político, por isso, mesmo em outros lugares
do mundo os xiitas devem usá-lo. Outras questões, segundo Gharavian,
são mais simples, como leis de tráfego, nesse caso, não há nenhum aspecto
religioso. Desse modo, Gharavian rearma que para evitar os conitos, os
seguidores do aiatolá Khamenei no exterior devem segui-lo apenas nas de-
terminações religiosas, quanto aos aspectos políticos, devem seguir os seus
próprios governantes.
No que tange ao caráter democrático do sistema iraniano, outro
aspecto muito contestado internacionalmente, para Hadavi, num primeiro
Raal Salatini (Org.)

momento há de se denir o que se entende por democracia, se o entendi-
mento for de
[...] um governo do povo, então, pode-se dizer que em um especíco
aspecto, o wilayat al-faqih pode ser considerado democrático. E qual
seria? O povo participa das eleições e é livre para tomar suas decisões.
Agora, evidentemente que para se tornar o Líder Supremo é necessário
que a pessoa detenha algumas características que a qualique como
alguém detentor de profundo saber islâmico, então, não pode ser qual-
quer um. E, nesse sentido difere do entendimento de alguns países
sobre o que vem a ser democracia. (HADAVI, 2011).
Hadavi entende que o Irã tem um modelo de democracia que
atende aos princípios islâmicos, haja vista cada país escolher as característi-
cas que seu governante deve ter a partir de seus princípios. Assim, o Irã não
difere em nada nesse procedimento. Para raticar a clareza e transparência
do processo de escolha, novamente, Hadavi (2011) enfatiza que “todos [os
procedimentos] estão expostos em nossa Constituição e estão fundamen-
tados no que os muçulmanos entendem ser o correto”.
Hadavi acrescenta que muitas vezes há interpretações radicais
acerca do conceito de democracia, tal qual: “todos têm o direito de fazer
o que bem entenderem, podem eleger quem quiserem... sem buscar qual-
quer tipo de qualicação”. Apesar de discordar, salienta que no Irã, com
exceção do faqih, em outras instâncias do poder o povo tem liberdade para
fazer sua escolha. A única limitação para quem quer se candidatar em um
pleito eleitoral, conforme Garomi (2011) também apontou, é que ela con-
corde com os princípios da Revolução, caso contrário, para Hadavi (2011)
seria uma atitude ilógica”.
A construção do wilayat al-faqih, sem dúvida, proporciona aos clé-
rigos a prerrogativa de governar o Estado. Por sua vez, quanto mais estrangei-
ros estudarem no Irã e tiverem contato com este sistema de governo, maior
será a probabilidade de eles aceitarem sua liderança. Por isso que a difusão do
xiismo iraniano pelo mundo tem a intenção de legitimar sua liderança. Seja
ela pautada em princípios religiosos ou pragmatismo político.
Se, mesmo durante o período em que o Irã sofreu forte impacto
econômico com os embargos impostos pelos Estados Unidos, a política

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
de difundir uma imagem do xiismo iraniano não deixou de receber inves-
timentos, é de se esperar que na atual conjuntura – com a reinserção do
Irã no cenário internacional –, as políticas de incentivo para estrangeiros
estudarem no país sejam ampliadas.
De certo modo, a política iraniana de difusão do Islã xiita não diver-
ge muito dos modelos de bolsas de estudos que países como Estados Unidos,
França, Alemanha e Grã-Bretanha oferecem a outros povos no intuito de
propagar os conhecimentos cientíco e cultural. Ocorre que, no caso do Irã,
além destes elementos, há uma ênfase maior na formação religiosa, fato que,
na prática, não se congura em nenhum procedimento condenável.
Por sua vez, não é possível armar que as pessoas formadas pelas
universidades iranianas tenham assimilado completamente os ditames da
religião e aceito a liderança iraniana sob a comunidade xiita mundial, no
entanto, é possível constatar que os investimentos para a difusão do xiismo
em todos os continentes nunca deixaram de existir e, inclusive, há clérigos
em Qom e Teerã que coordenam a destinação de recursos – provenientes
das arrecadação do imposto religioso – para diversas fundações no exterior.
Assim, ao seu modo, o Irã se utiliza do soft power para construir
o xiismo à iraniana ou promover a iranização do xiismo. O resultado desse
processo ainda requer maior atenção e pesquisas mais especícas, no en-
tanto, a relevância de Qom e outros elementos suscitados no transcorrer
deste artigo demonstram que o Irã assumiu a difusão do xiismo como uma
política para raticar seu protagonismo no mundo islâmico.
O próprio modelo de governo do wilayat al-faqih, apesar da di-
vergência acerca de sua amplitude – conforme exposto nas entrevistas – é
defendido plenamente por todos os aiatolás. Com isso, preserva-se o status
quo dos clérigos e abre a possibilidade para que o modelo de República
Islâmica possa ser implantado em sua plenitude, haja vista ter reduzido a
pressão internacional contra o Irã.
Raal Salatini (Org.)
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Raal Salatini (Org.)
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
12.
DIÁLOGO EM PERIGO: UMA REFLEXÃO
SOBRE O SENTIDO DOS AMBIENTES
COMUNICATIVOS
Heloisa Pait
1 AMBIVALÊNCIA QUANTO AOS MEIOS
Anos atrás a Rede Globo, que estava querendo aprofundar seu
contato com o meio acadêmico, pediu-me que convidasse alguns professo-
res para irem visitar o Projac no Rio de Janeiro. Numa reunião prévia, em
São Paulo, que organizei para nos conhecermos, uma colega fez um dis-
curso adorniano inamado, que respondi lembrando que íamos encontrar
pessoas reais e uma comunidade inteira de prossionais não podia ter seu
trabalho reduzido a cinzas por conta de um autor que nunca os conheceu.
Ela concordou, mas fui ao Rio um pouco apreensiva com o encontro, que
ao nal, adianto ao leitor, não deu em nada. A certo ponto, andando de
um prédio a outro do complexo, arregalei os olhos com a professora sacan-
do descaradamente uma máquina fotográca da bolsa e clicando nas es-
trelas globais que calmamente seguiam para o trabalho. Eu já tinha muitas
críticas ao pensamento de Adorno, vindas de leituras sobre a riqueza da re-
cepção dos meios de comunicação, mas agora quando o revisito a imagem
da fascinada professora sempre se interpõe, digamos, entre eu e o texto.
Desde aquela visita a internet penetrou no Brasil de modo avas-
salador; temos no bolso celulares com câmaras embutidas que nos permi-
Raal Salatini (Org.)
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tem registrar e publicar encontros com celebridades, amigos e anônimos a
qualquer instante. Mas a relação ambivalente que temos com os meios de
comunicação não só se manteve mas até se desdobrou, se espalhou sobre
nós mesmos. Quase dez anos depois, numa conversa com outra colega
durante uma greve universitária, falávamos sobre as posições dos docentes
manifestadas numa lista de discussão, que ela estava acompanhando em
detalhes e eu um pouco mais à distância. A certa altura, novamente para
minha surpresa, minha colega armou que não era certo que discutíssemos
a greve numa lista de emails. Por que não, perguntei, se os argumentos
foram se moderando e sosticando ao longo do thread? Era assunto para
uma assembleia de professores, ela respondeu apenas.
Podemos ver a novela e auferir algum prazer com isso mesmo
preservando nossa fé em Adorno; basta compartimentar as coisas. Já uma
lista de discussão se torna inútil se assumirmos a postura de que há algo de
nocivo nela. O amor e ódio a algo chamado de “Rede Globo” ou “indús-
tria cultural” é dirigido para fora de nós, mesmo que a televisão não seja
exatamente externa, como mostra Paolo Carpignano com seu conceito de
televisualidade como um espaço a ser habitado (CARPIGNANO, 1999).
Já o amor e ódio à internet é algo que se dirige, por causa da natureza do
meio, a nossas próprias práticas comunicativas, apresentando desaos tan-
to éticos quanto de pesquisa.
Como estudar os usos dos meios de comunicação se o próprio
usar está em xeque? E como dialogar se desacreditamos os próprios meios
pelos quais esse diálogo pode se dar? Uma melhor compreensão sobre os
desaos que o diálogo enfrenta em sociedades com intenso dinamismo
de formas comunicativas é importante para construirmos sociedades mais
democráticas, justas e principalmente capazes de lidar com seus conitos
internos e externos de modo simbólico e não violento. No Brasil, especial-
mente, essa compreensão pode evitar que velhos problemas de coordena-
ção quedem sem solução, agravando tensões sociais, apenas por falta de es-
paços adequados onde se possa lidar com conitos relativamente simples.
Além dessa introdução, esse artigo tem duas partes e uma conclu-
são. Na primeira parte, reetimos sobre a complexa relação entre comuni-
cação e cultura, através de um resgate do tema nas teorias da comunicação
e também das reexões sobre dinâmicas de grupo feitas pelo psicanalista

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Wilfred Bion; ainda nessa parte resgatamos as idéias de Faoro sobre o pa-
trimonialismo brasileiro, que pode ser visto com um tipo particular de
organização de grupo. Na segunda parte, analisamos três experiências espe-
cícas onde a relação com os meios prejudicou seu pleno uso, quais sejam:
a introdução da plataforma Elgg numa Universidade de São Paulo, uma
proposta de plataforma de apoio à relação de representação política feita
a um deputado federal brasileiro e uma experiência usando a plataforma
educacional Moodle. Estas experiências, a que tivemos acesso direto, ser-
vem para iluminar aspectos pré-simbólicos também presentes em processos
mais amplos que exigem a escuta e o entendimento. Concluímos o artigo
com uma comparação das críticas aos meios feitas no Brasil com as feitas
nos Estados Unidos, onde não tendem a ter um caráter tão abrangente.
2 MEIOS DE COMUNICAÇÃO E CULTURA: UMA RELAÇÃO COMPLEXA
A
. UM SPECTRUM
Se a relação entre meios de comunicação e culturas é o objeto dos
estudos dos meios, podemos imaginar um spectrum de teorias, dependendo
do pólo da relação que privilegiam e da intensidade com que o fazem. Mas
de modo geral quem dá o dinamismo dessa relação, independentemente
de onde os autores se encontram no spectrum, são os meios de comunica-
ção, o que cria um ponto cego em nossas análises, como iremos mostrar
com alguns exemplos concretos de choques na introdução de novos meios.
Passeemos primeiro por esse espectro.
Num extremo está a crítica avassaladora de eodor Adorno à
cultura de massa, que passa pelo pensamento feito um trator, sem tornar
possível qualquer resistência (ADORNO; HORKHEIMER, 1986). Sua
teoria, claro, poderia ser vista como a descrição de um fenômeno a convi-
ver com outros distintos no plano real. No outro extremo, está a sociologia
mais tradicional, que apenas acrescenta os meios a análises já prontas do
fenômeno social ou que vê a sociologia da comunicação como apenas mais
uma sociologia especíca e não como algo constitutivo do social. Ao meio,
as teorias mais inspiradoras, que problematizam a relação entre meios e so-
ciedade, trazendo questões interessantes para a pesquisa. Vejamos, do pólo
mais mediático ao mais social.
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
Para Marshall McLuhan, um autor complexo e sosticado, a in-
trodução de novos meios provoca um rearranjo das relações sociais, mas sem
encurralar a ação (McLUHAN, 1996). Miriam Hansen, inspirada numa
certa versão da Escola de Frankfurt, dá atenção aos meios mas o conceito-
-chave que usa – experiência – permite que enxerguemos a constituição de
novos públicos em torno destes (HANSEN, 1994). Raymond Williams
vê, talvez como Harold Innis, parceiro de MacLuhan, o próprio desenvol-
vimento tecnológico como produto social, mas sua apropriação da Escola
de Birmingham, ao menos nos Estados Unidos, se deu mais como uma
teoria da recepção sosticada que como uma tentativa de equilibrar tecno-
logia e cultura na análise dos meios (WILLIAMS, 2003). Para Elihu Katz,
os meios de massa criam condições para a constituição de uma comunica-
ção pública (especialmente nacional), mas isso se dá através da participação
ativa das pessoas em suas relações sociais (KATZ; LAZARSFELD, 1955;
KATZ, 1996). E nalmente, temos as próprias teorias de recepção, como
a de Michel de Certeau, que acertadamente privilegiam o papel ativo do
receptor, ênfase necessária quando estamos tratando dos indivíduos e não
de grandes tendências (CERTEAU, 2000).
Claro que uma análise detalhada de cada autor citado nesse spec-
trum mostraria nuances, detalhes, ponderações. Entretanto, podemos dizer
de modo genérico que mesmo para os autores que dão peso aos indivíduos
e culturas na relação com os meios, são esses últimos que dão as cartas. Os
meios propõem e as pessoas resistem, acomodam-se ou reinventam, tendo
mais ou menos poder para isso. O meio em si não é o objeto da disputa –
ele é dado de antemão e a disputa se dá nele. O meio, como diz McLuhan,
é a mensagem, mas é em larga medida em torno da última que se dá a ba-
talha, para esses autores. E o meio em si mesmo? Que conitos apresenta às
culturas? Quais os signicados atribuídos aos meios em si – meios enquan-
to suportes comunicativos, enquanto proxies da própria comunicação en-
tre as pessoas? Nesse artigo, tentamos enxergar tensões geradas por novos
meios de comunicação nesse ponto cego, onde os meios em si são objetos
de tensão, antes que a linguagem possa expressar conitos.
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Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
B. PENSANDO GRUPOS E CULTURAS
Para compreender essa relação que ocorre, digamos, dentro dos
meios, e não apenas sobre eles, vamos fazer uso nesse artigo de alguns
conceitos do psicanalista britânico Wilfred Bion. Ele é pouco usado nas
ciências sociais, apesar de propor uma combinação rara entre análise de
processos psíquicos e interações sociais que outros psicanalistas não forne-
ceram tão adequadamente (FRENCH; SIMPSON, 2010). Bion, a partir
da prática, busca entender o que está em jogo no grupo, que é distinto do
que se expressa numa análise individual (BION, 1975). Para ele, as rela-
ções internas aos grupos se dão em vários níveis simultaneamente: há os
desejos mais profundos dos membros do grupo, que geram uma espécie
de acordo tácito nem sempre produtivo, e além disso o que os sociólogos
chamariam de cultura política: uma fôrma visível para as relações grupais
e especialmente entre líderes e seguidores. O jogo entre o mecanismo mais
básico e o mais explícito é que dá a dinâmica do grupo, e ao analista cabe
a difícil tarefa de enxergar ambos os níveis.
Também de Bion usaremos a reexão sobre o pensar, que é para
ele não apenas uma ato cognitivo mas uma expressão de relações humanas
(BION, 1999; SPILLIUS, 1991). Pensar é algo sempre dirigido ao outro,
como amar ou odiar. Bion identica, seguindo Melanie Klein, diculda-
des de compreensão que advêm de problemas nas relações com outros e
acabam limitando a capacidade de lidar com a realidade e agir de modo
produtivo. Não se trata aqui de algum décit de capacidade cognitiva, mas
de negação da realidade e do aprendizado por diculdade em tolerar a
própria compreensão; isso é causado pelo que os psicanalistas chamam de
ataque ao elo de ligação, ou seja, ataque às próprias formas comunicativas,
psíquicas e afetivas que nos ligam às pessoas.
Mas quais seriam esses desejos e receios mais profundos, que
operam sem que tenhamos muito acesso a eles, apenas vislumbrando-os
ocasionalmente? O analista deve estar aberto para identicar os desejos no
grupo que desembocam na demanda de um líder que os prepare para a bri-
ga com um inimigo externo imaginário, que se dedique à perpetuação pura
e simples do grupo ou que – isso seria o ideal – que os inspire a atividades
produtivas de modo democrático. Esses modelos grupais, não é difícil de
ver, têm relação com as culturas políticas mais amplas onde os grupos se
Raal Salatini (Org.)

inserem, e de modo muito breve descreveremos aqui o modelo com o que
trabalhamos nesse artigo para tratar da cultura política brasileira.
Podemos, por exemplo, traçar modelos de sociabilidade nacionais
pensando no homem cordial de Sergio Buarque de Holanda ou nas for-
mas hierárquicas identicadas por Roberto DaMatta (DaMATTA, 1982;
HOLANDA, 2003). Nesse artigo, fazemos uso do modelo proposto por
Raymundo Faoro, extraído de sua exaustiva análise histórica da política bra-
sileira (FAORO, 1975). Fernando Henrique Cardoso, em artigo recente
nesse momento de revival do pensamento de Faoro, alerta para o risco de se
ver nele a comprovação do papel propulsor do Estado na sociedade brasilei-
ra, mas acredito que Faoro pinta um quadro de um Brasil dicotômico, com
uma sociedade abafada por um Estado menos repressor ou hostil à sociedade
que tentacular, onipresente (CARDOSO, 2013). Ambas culturas, a liberal,
presente na sociedade, e a estamental, presente no Estado, são modernas e
vieram para car, para Faoro (SCHWARTZMAN, 1988). Interpenetram-se
em instituições, mercados e atitudes individuais, pois é exatamente esse o
objetivo da ação patrimonial: imiscuir-se na sociedade sem destruí-la .
Para Faoro, o Estado patrimonial não é no presente, como o foi
no passado português, um pólo dinâmico; ele apenas identica ações so-
ciais emergentes e trata logo de lhes regular para delas extrair ganho, frean-
do na verdade um desenvolvimento mais pleno. Poder público, para ele, é
algo bem diferente do poder gerado pela organização coletiva, como é para
Hannah Arendt, ou o poder legal que apenas regra as ações individuais sem
lhes tolher, no sentido liberal do termo (ARENDT, 2004). Poder público
é o poder que limita, sufoca e vigia a ação social, do qual dependemos de
modo infantilizado, constantemente pedindo permissões, e contra o qual
nos revoltamos de modo violento ou “por debaixo dos panos”, e mais ra-
ramente de modo altivo e propositivo – ainda que sejamos capazes disso,
dado o alto grau de sosticação das nossas organizações sociais.
Nosso discurso político tradicional fala de dicotomias outras: de-
sigualdades sociais e regionais, as questões racial e de gênero e, um pouco
menos em voga, o conito com as nossas sucessivas “metrópoles”. Mas a
tensão entre cultura liberal e estamental começa apenas agora a ser recu-
perada no debate; em larga medida ela é o elefante na sala sobre quem
ninguém quer falar. Essa tensão molda nossas ações mas não nosso esforço

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
interpretativo, que se apóia em dicotomias mais visíveis e menos impor-
tantes. Dado esse pano de fundo, nos debruçaremos agora sobre três expe-
riências um tanto particulares, mas que podem no futuro sugerir pesqui-
sas empíricas de maior vulto, onde um conito silencioso e improdutivo
se deu em torno da introdução de novos meios de comunicação e tendo
como pano de fundo essa cultura política.
3 TRÊS EXPERIÊNCIAS
C
. STOA: UM ESPO PROTEGIDO
Stoa é uma palavra grega, denida na Wikipédia como “pórtico
coberto, comumente destinado ao uso público”; foi esse termo que a USP
usou para dar nome à sua rede social. O nome é apropriadíssimo: um local
público porém protegido, acessível porém demarcado, que está em torno
do edifício e serviria como elo entre a cidade e as atividades principais que
ocorrem no interior do edifício. O Stoa seria então um lugar onde a socie-
dade como um todo poderia entrever o que ocorre na USP e a comunidade
desta universidade poderia, ainda dentro dela, falar também sobre ensino e
pesquisa mas especialmente sobre assuntos outros. Até onde sei, o Stoa hoje
não é um espaço vivo, e provavelmente o momento em que se decidiu que
ele não vingaria foi quando da expulsão de Everton Zanella do ambiente.
O aair é descrito pelo próprio Everton em seu blog e por uma
jornalista no Jornal do Campus (ALVARENGA, 2009; RIBEIRO, 2009).
Em linhas gerais, o ex-aluno, que participou ativamente da implementação
do Stoa na USP, teve sua conta apagada por ter feito uma brincadeira que a
reitora não gostou. A decisão não passou pela deliberação de um conselho de
ética que pesasse liberdade de expressão e valores colegiais; foi uma canetada.
Tentemos enxergar o fato com alguma objetividade, no sentido que Georg
Simmel dá ao termo: a capacidade de olhar uma situação por pontos de vista
múltiplos (SIMMEL, 1987). As brincadeiras de Everton – uma notícia de
1º de abril que dava conta de negociações sobre a privatização da USP prece-
dida por um bolão de apostas sobre a data de início de uma greve anunciada
foram percebidas como ataques à reitoria da universidade e tiveram retri-
buição adequada a essa percepção, deixando o jovem desnorteado. O debate
sobre a expulsão também foi censurado no Stoa.
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Nada haveria de errado em instaurar um código de ética para a
participação na plataforma, que contivesse regras de conduta adicionais
ao que exige a lei nacional. Anal, os participantes estariam dentro do
ambiente universitário e para que esse ambiente fosse protegido das in-
tempéries, como um pórtico, aqueles participantes aceitariam algumas res-
trições. Mas escorraçar o arquiteto do pórtico mostra algo distinto, e que
obviamente foi percebido pelos participantes como um inabalável desejo
de controle. De um lado, ataques; de outro, controles, reais ou percebidos
conforme conversarmos com uns e outros. Acredito que aqui estejamos fa-
lando de algo distinto do equilíbrio entre liberdade de expressão e respeito
à pessoa ou mesmo à instituição, pois nenhuma das brincadeiras tinha um
alvo pessoal ou desmerecia a universidade; tratavam apenas da constância
das greves e da qualidade dos serviços universitários.
O que houve foi um choque entre denições distintas do espaço
Stoa enquanto lugar para a comunicação da comunidade universitária. O
espaço era visto pelos gestores universitários como um anco desprotegido
e pelos participantes como um fosso medieval, e as brincadeiras apenas
serviram de pára-raios para esse choque. Num conito não explícito, não
conversado e não negociado, a vítima é o pórtico em si, que passa a não
ter serventia para a comunidade. Expectativas de parte do público e dos
gestores transpõem-se no espaço, denindo-o e dando sentido a priori à
comunicação concreta que lá acontece, especialmente nos assuntos de ca-
ráter público ou sensíveis. Nessa comunicação travada, não apenas o diá-
logo não acontece como o próprio local do diálogo é destroçado. E nisso
a USP não não se destaca de outras instituições; na minha universidade
mesmo, quando propus um Stoa a resposta de funcionários simpáticos à
idéia foi que dicilmente um reitor incentivaria a construção de um espaço
onde críticas a ele mesmo pudessem ter ressonância. O aspecto positivo
deste local protegido na sociabilidade dos campi, que traria competição a
discursos muito ideológicos e possivelmente racionalização do debate, não
pareceu entrar no cálculo decisório.
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Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
D. UM GABINETE VIRTUAL
No início de 2012 me interessei pela idéia de construir um ga-
binete virtual que poderia ser oferecido por representantes legislativos e
visitado por seu eleitorado, com vistas a reforçar a relação representativa
tão necessária à democracia e tão questionada, na prática, por escândalos
de corrupção e indiferença quanto aos processos legislativos por parte do
eleitor. O gabinete serviria a deputados que quisessem expor os valores que
norteiam suas ações – quem eles são – e suas ações – o que fazem concre-
tamente no âmbito legislativo e como líderes políticos. Eu partia do pres-
suposto que dar sentido à ação legislativa seria de interesse de eleitores, que
não têm uma idéia clara do que acontece nas casas legislativas brasileiras, e
dos próprios representantes, que muitas vezes sentem que falam às traças.
A mim essa idéia parecia mais que simples. Parecia óbvia. Com
facilidade de acesso à internet, por que não usar plataforma digitais na co-
municação política? Cheguei a apresentar a idéia num evento acadêmico e
para um deputado federal, mas a idéia, como no jogo Batalha Naval, deu
água. Com os protestos de junho de 2013, senti-me culpada: talvez se eu
tivesse explicado melhor minhas idéias ou levado a cabo a coisa sozinha e
lançado na web, essa plataforma poderia ter se tornado local de diálogo
durante aquele período e depois tivesse sido “ocupada”, servindo de ponte
tão desejada entre Estado e sociedade.
Deixando a proposta de lado e passando a reetir sobre a questão
da representação na era digital, percebi que os desaos para uma platafor-
ma dessas iam além da questão técnica. De acordo com Karol Castanheira
(CASTANHEIRA, 2012), que examinou o uso da internet na campanha
presidencial de Marina Silva, a tendência em usar os novos meios como
mecanismos unidirecionais é muito forte. O Twitter é usado para apitar
mensagens prontas, e não para criar um diálogo uido que o microblog
poderia possibilitar. A força do hábito dos assessores parlamentares, que
de toda forma são mais tradicionais assessores de imprensa que assessores
técnicos em busca de projeção do mandato e de suas próprias idéias, po-
dem ser fatores conservadores, mas não acredito que sejam determinantes,
imaginando-se sempre, claro, políticos sem máculas a serem escondidas.
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O medo de perder poder por parte dos políticos poderia ter algo a
ver com a recusa em adotar novas formas comunicativas? Não faz sentido.
Congregar pessoas traz poder, no sentido arendtiano do termo. O antrião
de um espaço comunicativo pode não ter suas propostas sempre vencedo-
ras, mas ele sempre terá crédito pela ação, que é o que importa ao líder. É
ele que vai ter feito a coisa acontecer. Não acredito que minha proposta, ou
outras que circulam por aí, tenham dado em nada por conta deste medo.
Políticos são gente esperta e veriam a possibilidade de ganhos em pular
para novas formas comunicativas ao invés de continuar alimentando a pró-
pria dependência, incômoda, de jornalistas e órgãos de imprensa.
Em países de tradição liberal uma plataforma digital desse tipo se-
ria menos relevante, pois já há mecanismos tradicionais de representação,
tais como o voto distrital e canais diretos de comunicação efetivos, mas no
Brasil, onde as falhas das instituições democráticas acabam sendo compensa-
das por meios informais de comunicação, a necessidade de atualizar a relação
de representação com os novos meios é premente. E, dado o número de pro-
postas que já estão na mesa – E-democracia, projeto Câmara Virtual, Adote
um Vereador, etc., – é questão de tempo até alguma delas ser adotada de fato.
Agora, quanto a um gabinete virtual mesmo, com a proposta que
delineei acima, um local de diálogo e reconhecimento – o primeiro que
abrir suas portas vai levar todas as pedras acumuladas nas mãos da popu-
lação. Além do escrutínio normal, contra o qual já criou mecanismos de
defesa, o representante terá que lidar com frustrações acumuladas que não
lhe dizem respeito. A imprensa ltra as críticas com a ética jornalística que
impede que imprimamos no papel o que nos vêm à telha. Já o Twitter é
sentido pelos internautas como um lugar público, no sentido que Roberto
DaMatta dá ao termo: lugar onde nalmente se faz o que se bem entende,
e não lugar cívico, compartilhado (DaMATTA, 1988). E nesse o da na-
valha vai se encontrar o futuro gabinete virtual.
A internet não será, num primeiro momento, um lugar de diá-
logo e união em torno do bem comum, mas sim um lugar improdutivo e
desagradável. A construção de novos espaços de representação vai portan-
to precisar de homens verdadeiramente corajosos, que queiram assumir o
novo poder que a internet lhes dá. Digo “novo poder” pois a relação de re-
presentação sempre será assimétrica, a despeito dos desejos dos ativistas da

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
internet. Recusando-se a assumir esse novo papel, escondendo-se atrás dos
meios tradicionais, os líderes políticos não estão só retardando mudanças,
mas também fragilizando a democracia que precisa de cidadãos e líderes
ocupando de fato seus lugares.
Em outras palavras, não se trata de perder poder – de conceder
poder às ruas, ou ao internauta, ou algo que o valha. Mas o contrário disso:
assumir uma posição de poder num novo ambiente comunicativo. E isso
sim é que lhes causa paúra.
E. LAGARTEANDO
Uso o ambiente educacional Moodle como apoio a minhas au-
las de graduação e pós desde 2004, em geral com excelentes resultados.
Alunos que a princípio se sentem desconfortáveis com o meio ao nal se
rendem a ele, por terem podido conhecer melhor os trabalhos dos colegas
e às vezes até mesmo os próprios colegas de sala. Mesmo que os debates
não ocorram na própria plataforma, o fato de terem os textos dos autores e
dos colegas online facilita a comunicação fora da sala de aula. Já ouvi que o
Moodle foi a melhor coisa do curso, como se o ambiente dialógico tivesse
sido criado pela plataforma do australiano Martin Dougiamas, e não por
eles mesmos com a minha orientação.
Em geral meus cursos são bastante exigentes e interativos e mui-
tas vezes os alunos se ressentem com isso. A exposição que o Moodle exige
pode deixar alguns alunos ressabiados e, quanto ao curso em si, minha
visão pragmática de teorias pode deixar alunos acostumados com visões
ideológicas um pouco “sem chão”, como disse uma aluna, sentimento que
se dissolve quando eles vêem que a execução da própria pesquisa lhes dá
mais segurança que dogmas rígidos, refutáveis com argumentos ou evidên-
cias uma vez que se sai da bolha acadêmica. Entretanto, essas são coisas em
geral acomodadas em aula sem grandes problemas.
O curso que descrevo abaixo deu-se numa situação atípica, logo
após uma longa greve estudantil entremeada de paralisações de funcioná-
rios e docentes onde explodiram antigos conitos que perduraram ao longo
do curso, em uma instituição que resiste tenazmente à mudança ao mesmo
tempo em que se frustra por ela não acontecer. Nesse ambiente, parte dos
Raal Salatini (Org.)
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alunos se posicionou de modo contrário ao curso. Difícil saber ao certo a
razão daquela intensidade: pressões políticas vinda de fora da sala de aula;
meu encaminhamento do curso; rejeição de alunos que perderiam status
frente aos colegas devido à transparência das discussões; legítima apreensão
com relação à exposição no Moodle; ou diculdades dos alunos quanto à
pesquisa empírica, acostumados a discussões meramente teóricas; tudo po-
deria ter contribuído um pouco. Quanto ao desgosto com plataformas na
internet em geral, podemos descartar; os alunos são ávidos participantes do
Facebook e a própria greve teve sua comunicação nessa rede social.
Na sala de aula, o ambiente foi aceito sem problemas, mas uma
reivindicação ácida, anônima e burocrática apareceu no próprio Moodle,
de forma geral contrária à plataforma, depois que, de acordo com um co-
lega que acompanha manifestações estudantis na internet, os alunos se or-
ganizaram no Facebook. Isso pode parecer bizarro ao leitor, pois o Moodle
é uma plataforma antiga, mas peço que coloque de lado sua surpresa e
busque ver nesse conito algo que ilumine nossos desaos comunicativos
mais amplos. O fato é que nem a sala de aula nem o próprio ambiente
online foram vistos como espaços legítimos de diálogo. As demandas (ou
mesmo esclarecimentos) eram fáceis de acomodar, mas a acomodação não
levava a nada. Cada acordo parecia levar a novos conitos, talvez vindos de
pressões de fora da aula mas também parte de uma dinâmica comunicativa
interna, que é o que interessa aqui.
Eu não sentia estar ocupando um espaço público – espaço da visi-
bilidade, segundo Arendt – onde algum entendimento poderia se dar; pare-
cia estar pisando em areia movediça, a cada movimento me atolando mais,
apesar de que o curso, em si, corria bem, com trabalhos interessantes sendo
propostos e discussões inteligentes acontecendo em sala e online. Numa das
conversas sobre o curso propostas em aula, perguntei anal o que eles pro-
punham. Uma aluna armou que a essas alturas não havia nada a fazer e
que nos restava aguardar o m do curso; outro disse que a questão era uma
intransponível falta de sintonia entre a professora e a classe. Diante dessa
barreira, z a chamada e encerrei a aula uma hora mais cedo. Psiquicamente,
abandonei a turma, acatando a versão apresentada: não há nada a fazer.
Para minha surpresa, parte dos alunos permaneceu em sala for-
mando um pequeno círculo ao meu redor, até o nal da aula, tirando dúvi-

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
das num ambiente amigável e produtivo, com respeito por mim e interesse
pelos trabalhos dos colegas. “Você deveria ter feito um círculo na aula,
professora!”, um deles disse, mas não era isso que eu havia proposto desde
o início? Numa aula de pós-graduação, relatei esse episódio que também
inspirou surpresa aos alunos; as interpretações que se seguem são em larga
medida produto daquela reexão coletiva.
Havia o desejo de “conversar em círculo” com uma pessoa mais
experiente, compartilhado por alunos e pela professora. Na prática, isso se
deu: o Moodle foi usado, dei orientações e os trabalhos correm bem. Mas
a experiência foi desagradável. É impossível saber se o aprendizado foi de
fato “esvaziado”, usando um termo de Bion e Melanie Klein, ou se apenas
foi relatado como obrigação vazia por pressões do grupo. De minha parte,
senti-me atacada injustamente: não sou eu que mostro bancos de dados
estrangeiros, técnicas de pesquisa na internet e outros modernismos úteis
a quem quer se tornar pesquisador? Da parte dos alunos, pelo que auferi,
eles se sentiam cobrados e desorientados, vigiados e inquiridos.
O Moodle não é neutro, e nem detentor de uma ideologia que de-
termina as relações feitas através dele. Ele é engolfado na teia de signicados
pré-existentes na cultura local, e é essa teia que vai determinar se ele poderá
ou não ser usado de modo produtivo, no sentido de Bion. Nesse caso, ele
não se constituiu como “mesa”, no sentido de Arendt: linguagem, coisa que
nos aproxima mantendo nossas particularidades. O Facebook, empresa ame-
ricana voltada ao lucro, não padece da mesma sorte mesmo que mais distan-
te da ideologia professada pelos alunos que o pobre Moodle de fonte aberta e
sem ns lucrativos. O Moodle é ocial. É da universidade e é da professora;
ele está contaminado por relações de poder importantes para aquela comu-
nidade, enquanto o Facebook é alienígena, isento desses conitos.
No Moodle se projetam relações patrimonialistas; no Facebook
se organizam protestos. Sobre mim se projetava a gura do censor e cada
diálogo proposto era sentido pelos alunos, provavelmente, como uma ar-
madilha adicional. Apenas no momento em que “terminei a aula” a gura
fantasmagórica do dono do poder foi embora e a aula pôde começar de
verdade, não apenas como sucessão de tarefas das quais nos desincumbi-
mos, mas como relação de aprendizado.
Raal Salatini (Org.)

4 OCUPANDO LUGARES
Nos Estados Unidos, a crítica aos novos meios de comunicação é
muito forte. Quanto ao uso dos meios, há pesquisas sérias mostrando que
podemos estar limitando nossa capacidade cognitiva com multi-tasking. A
imprensa escrita, quando comete um erro de sérias consequências, como
no caso Judith Miller, faz um profundo auto-exame. O ativismo jovem
na internet é fortíssimo, sendo o exemplo mais dramático disso a vida do
jovem Aaron Swartz. O medo do controle estatal sobre as vidas privadas
também é algo muito presente na sociedade americana, como mostra a res-
posta às revelações de Snowden. Entretanto, essas críticas não questionam
os meios em si. O desgosto com a política de direitos autorais e privacidade
do Facebook, por exemplo, levou jovens à criação da rede social Diaspora.
De forma geral, identicação de problemas com os meios de comunicação
leva à construção de novos espaços comunicativos ou à reforma dos atuais.
O que descrevemos nesse artigo é distinto. Trata-se de um ataque
aos meios, semelhante ao ataque ao elo de ligação descrito pelos psicana-
listas: um ataque às formas comunicativas em si mesmas, que carregam
signicados negativos para os que as usam: obrigação e ataque, e não liber-
dade e colaboração, ou diálogo e prazer. O trabalho, na concepção de Bion
a colaboração para objetivos benécos para o grupo – dá-se com muita
diculdade nesses espaços. O problema não é que eles possam ser lugares
de conito; isso é parte do espaço público. O problema é que muitas vezes
eles mesmos não servem nem para o conito, por estarem marcados pelo
poder ocial e o que isso signica. Os convidados ao espaço comunicativo
são alvo de um controle indevido e injusticado, enquanto os antriões do
espaço são atacados como se responsáveis não apenas por aquele espaço,
mas por todas as injustiças em torno dele; mesmo que os controles e ata-
ques não sejam reais, a percepção deles afeta a sociabilidade.
Onde o poder ocial está ausente, aí temos o contrário disso:
uma apropriação acrítica dos meios e seus conteúdos e um consumismo
voraz (fácil de satirizar (G17, 2013), pois o que conta aí é o alívio. Alívio
por estarmos longe do improdutivo jogo patrimonial de controle e rebel-
dia. Nos três casos que descrevemos, os diversos atores poderiam ter se
comportado de outro modo e os ambientes e regras de conduta poderiam
ser modicados. Mas a situação pareceu a todos uma armadilha a ser evi-

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
tada, e não um lugar de diálogo a ser ocupado. Esse está longe de ser um
resultado necessário, mas mostra as diculdades que temos que enfrentar
na construção de espaços públicos mediados no Brasil que sejam democrá-
ticos, pujantes e produtivos, mesmo e especialmente quando eles buscam
acolher o diálogo com o poder instituído.
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
13.
NOTAS SOBRE ANTROPOLOGIA:
HERMENÊUTICA E PÓS-MODERNIDADE
1
Laércio Fidelis Dias
1 APRESENTAÇÃO
Este artigo será apresentado a partir de duas unidades temáticas:
a primeira, denominada hermenêutica e antropologia interpretativa e, a
segunda, antropologia pós-moderna. O objetivo do artigo é apresentar al-
guns textos Geertz (1988, 1989, 1998), Cliord (1988), Caldeira (1988),
Marcus e Fisher (1986), Fisher (1985) que tratam dessas duas unidades
temáticas, através de pequenas sinopses. Mas, ao mesmo tempo, propor
uma reexão e, tanto quanto possível, problematizar as questões e os temas
levantados pela leitura desses trabalhos. Assim, para atender tal exigência,
entrementes às breves apresentações dos objetivos dos trabalhos, é realizada
uma leitura vertical, que consiste em eleger um tema que permita pôr em
diálogo os diferentes textos e escolas de pensamento. Colocar em diálogo
não signica fazer comparações, não raro esdrúxulas, dizendo o que há em
um e não há noutro texto. Ao dispensar comparações miúdas e isoladas
1
Este artigo foi originalmente escrito como uma aula, apresentada durante a disciplina Antropologia - problemas
de Antropologia Contemporânea, ministrada no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosoa,
Letras e Ciências Humanas da USP pela ProfªDrª Margarida Maria Moura, em 2000. Esta aula foi parte dos
requisitos obrigatórios das atividades do estágio de monitoria realizado durante o mestrado, cursado no mesmo
Departamento. Posteriormente, em 2005, uma versão mais enxuta da que é apresentada aqui foi publicada
naREMark: Revista Brasileira de Marketing, São Paulo, v. 4, n.1, p. 39-58, com o título de “Diálogo entre
antropologia interpretativa e pós-modernidade”. A versão que compõe esta coletânea é um texto ligeiramente
ampliado em relação ao publicado na REMark, e mais próximo do texto original.
Raal Salatini (Org.)

entre os diferentes textos, é necessário, então, erguer o grau de abstração
com o qual se examinava a bibliograa. Pode parecer bastante renado, e
mesmo erudito, falar em erguer o grau de abstração com o qual se examina
a bibliograa. Mas, na verdade, tal suspensão quer dizer algo quase óbvio,
porque os dois conjuntos de textos que compõem as duas unidades temá-
ticas, inicialmente, articulavam-se entre si, mais abstratamente, através do
próprio título das unidades: hermenêutica e antropologia interpretativa, e,
antropologia pós-moderna.
O tema que conduz a leitura vertical mencionada anteriormente é o
modelo clássico de etnograa estabelecido a partir da década de 20 do século
XX. Essa questão parece apropriada porque possibilita fornecer um panorama
amplo da antropologia clássica, antropologia interpretativa e antropologia pós-
-moderna. Assim sendo, o tema modelo clássico de etnograa será o el da
balança que irá conduzir o diálogo entre a bibliograa selecionada.
2 DEFININDO CONCEITOS
O que é antropologia interpretativa, hermenêutica e
pós-modernidade?
A antropologia interpretativa poderia ser, fundamentalmente, ca-
racterizada por duas atitudes metodológicas que balizam a antropologia
praticada por Geertz: 1) tomar os fenômenos sociais como passíveis de
interpretação, uma vez que a realidade social não pode ser apreendida,
signicativamente, por meio de leis, cabendo, então, ao antropólogo inter-
pretar a realidade, e não explicá-la; 2) tomar os fenômenos culturais como
símbolos interpretáveis, dos quais se é possível apreender o sentido, e não
demonstrá-lo enquanto códigos e leis. Esses dois pressupostos encontram-
-se claramente formulados, respectivamente, em O saber local, no primeiro
ensaio denominado “Mistura de gêneros: a reconguração do pensamento
social”, e no primeiro capítulo de A interpretação das culturas, denominado
“Descrição densa: Por uma teoria interpretativa da cultura”.
O termo hermenêutica pode, num sentido mais amplo, ser con-
siderado como o equivalente à interpretação. Num sentido mais preciso,
refere-se à tradição losóca alemã do século XlX, de orientação anti-posi-
tivista, cujo representante mais exponencial é Dilthey, para quem a experi-

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
ência etnográca pode ser vista como a construção de um universo comum
de signicados no interior de maneiras intuitivas de sentir, perceber e con-
jeturar. É uma atividade que faz uso de pistas, interpretações, gestos tendo
em vista elaborações de interpretações consistentes. Assim, cabe ao herme-
neuta social, compreender o sentido das ações sociais. Weber (1991), soci-
ólogo e historiador alemão, recebeu forte inuência da tradição losóca
hermenêutica. Nota-se essa inuência, logo no primeiro parágrafo do capí-
tulo denominado “Conceitos sociológicos fundamentais”, de seu trabalho
clássico intitulado Economia e sociedade. É pertinente destacar esse pará-
grafo porque, como se verá mais adiante, a noção de descrição densa de
Geertz(1989), tem bastante a ver com as caracterizações de Weber acerca
da natureza do objeto e da análise sociológicos. Diz Weber (1991, p. 3-4):
Sociologia (no sentido aqui entendido desta palavra empregada com
signicados diversos) signica: uma ciência que pretende compreender
interpretativamente a ação social e assim explicá-la casualmente em seu
curso e em seus efeitos. Por “ação”, entende-se, neste caso, um compor-
tamento humano (tanto faz tratar-se de um fazer externo ou interno,
de omitir ou permitir) sempre que e na medida em que o agente ou os
agentes o relacionem com o seu sentido subjetivo. Ação “social”, por
sua vez, signica uma ação que, quanto a seu sentido visado pelo agen-
te ou os agentes, se refere ao comportamento de outros, orientando-se
por este em seu curso. Sentido é o sentido subjetivamente visado: a) na
realidade alfa, num caso historicamente dado, por um agente, ou beta,
em média ou aproximadamente, construído pelo agente ou pelos agen-
tes, ou b) num tipo puro conceitualmente, construído pelo agente ou
pelos agentes concebidos como típicos. Não se trata, de modo algum,
de um sentido objetivamente correto ou de um sentido verdadeiro ob-
tido por indagação metafísica. Nisso reside a diferença entre as ciências
empíricas da ação, a Sociologia e a História, e todas as ciências dog-
máticas, a Jurisprudência, a Lógica, a Ética e Estética, que pretendem
investigar em seus objetos o sentido correto e válido.
A noção de pós-modernidade em antropologia, que se encontra
no texto de Caldeira (1988, p. 133), poderia ser sintetizada nos seguintes
termos: o antropólogo pós-moderno tende a rejeitar descrições holísticas.
Ele prefere interrogar-se sobre os limites de sua capacidade de conhecer
o outro. Procura expor no texto as suas dúvidas, o caminho que o levou
a interpretação, que é sempre parcial. Em Marcus e Fisher (1986), en-
Raal Salatini (Org.)

contrar-se uma caracterização bastante apropriada do que vem a ser pós-
-modernidade em antropologia. Escrevem os autores que a maioria das
culturas locais, espalhadas pelo mundo, são produtos de histórias de apro-
priações, resistências e acomodações. Neste sentido, a tarefa principal da
antropologia pós-moderna é fazer uma revisão dos critérios que até então
têm fundamentado a descrição etnográca, critérios estes assentados numa
concepção de unidade cultural auto-suciente, homogênea, num certo
sentido, ahistórica, e propor uma noção de situação cultural como um
uxo constante, como um estado de suscetibilidade histórica inescapável,
sujeita a processos mais amplos de inuência tanto no nível local quanto
global. O artigo de Marcus (1991, p. 199-200) coloca como problemática
central da pós-modernidade na pesquisa histórica e social, a questão da
formação da identidade, ou, a questão de quem, ou o que controla e dene
a identidade dos indivíduos, grupos sociais, nações e culturas. Questão
esta posta a partir da desconstrução dos artifícios estruturantes do realis-
mo etnográco presentes nas monograas clássicas, que, como exemplos,
poderiam ser mencionados os trabalhos de Malinowski, Radclie-Brown,
Evans-Pritchard, entre outros.
3 MODELO CLÁSSICO DE ETNOGRAFIA E A CRÍTICA PÓS-MODERNA
Caracterizadas as noções de hermenêutica, antropologia interpre-
tativa e pós-modernidade, o pano de fundo sobre o qual o artigo irá de se
desenrolar está armado. Mas a intenção é pôr todos os textos em diálogo
tendo como referência o modelo clássico de etnograa. Assim sendo, é
preciso também denir o que se entende por modelo clássico de etnograa.
O artigo de Caldeira (1988) e de Cliord (1998) possuem
boas caracterizações do modelo clássico de monograa inaugurado por
Malinowski. No caso de Cliord (1998), o autor caracteriza o modelo
clássico de monograa para tentar compreender como a antropologia trou-
xe legitimidade cientíca para o conhecimento que produz na forma de
textos. Caldeira (1988), por sua vez, retoma os aspectos fundamentais das
monograas clássicas para depois apresentar as críticas dos autores pós-
-modernos, essencialmente norte-americanos.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Vejamos, então, brevemente, que modelo de monograa é esse.
Caldeira (1988, p.136), apoiando-se em Cliord, esclarece que a gura
do antropológo-cientista era o prossional em trabalho de campo, cuja
imagem distinguia-se da do antropólogo de gabinete, do missionário e do
agente colonial, porque trabalhava segundo regras especícas e legitimava
seus textos evocando a experiência que tinha de uma outra cultura. O
modo marcante de autoridade do trabalho de campo moderno está inscri-
to na seguinte frase: “Você está lá, porque eu estive lá”.
Cliord (1998, p.30-32) é ainda mais enfático. O autor enumera
as seis características básicas que fundamentam a autoridade cientíca das
monograas clássicas:
1. a primeira refere-se à necessidade do etnólogo receber treinamento nas téc-
nicas de pesquisa e nos modelos analíticos mais atuais (no caso da época);
2. evitar intérpretes e aprender minimamente a língua nativa;
3. observação participante como norma primordial do trabalho de campo
4. o uso de modelos teóricos analíticos facilitam a pesquisa porque orien-
tam a observação do etnólogo para questões mais precisas como: estru-
tura social, parentesco, ritual e assim por diante;
5. ao focalizar a análise em certas questões, o etnólogo tem como pressu-
posto que o todo pode ser observado pela parte. Isto é, na medida em
que as culturas formam totalidades e as suas várias partes constituin-
tes encontram-se interligadas, uma certa instituição, como Kula, por
exemplo, nada mais é que um epifenômeno, na esfera micro, do todo;
6. o desdobrar desse pressuposto são as abordagens sincrônicas. De todo
modo, é importante destacar que as abordagens sincrônicas presentes
nas primeiras monograas antropológicas, especicamente Malinowski
e Radclie-Brown, estavam ligadas também a uma crítica aos métodos
de conjectura histórica empregados por difusionistas e evolucionistas
do século XlX.
Segundo Cliord (1998, p.22), o contexto histórico que vai aba-
lar profundamente a forma clássica de fazer antropologia, inaugurada por
Malinowski, refere-se ao colapso do poder colonial na década de 50 do
século XX e os ecos deste processo na teoria cultural nas duas décadas
Raal Salatini (Org.)

posteriores. Após a mudança de perspectiva a partir da qual a Europa e os
Estados Unidos vêem os movimentos negros, depois da crise de consciên-
cia da antropologia com relação ao seu status liberal dentro de uma ordem
colonial, e na medida em que o mundo ocidental não pode mais represen-
tar ele mesmo como ponto-de-vista exclusivo de conhecimento antropo-
lógico do outro, é preciso pensar num mundo de etnograas, no plural,
ou seja, de conhecimento sobre o outro a partir de perspectivas múltiplas.
Além disso, acrescenta o autor, a expansão da comunicação e da inuência
intercultural conduz as pessoas a interpretarem o outro, bem como elas
mesmas. Tudo em meio a uma freqüente e disforme variedade de idiomas,
denominado de heteroglossia.
Em síntese, segundo Cliord (1998, p.23), as mudanças pelas
quais o mundo vem passando, mencionadas anteriormente, conduz a antro-
pologia a uma crise de representação. O desao, então, é escapar de textos
antropológicos que fazem uso reducionista de dicotomias e essencialismos, e
evitar representar em termos de retratos abstratos e ahistóricos a alteridade.
4 ANTROPOLOGIA HERMENÊUTICA DE GEERTZ
O próprio Cliord (1998, p.37-38) admite que a antropologia
interpretativa vem criticar a ingenuidade da autoridade da experiência, tal
qual formulada nas monograas clássicas. Acrescentaria também os traba-
lhos de Sahlins (1990), especicamente Ilhas de histórias.Neste livro autor
trabalha com a relação entre estrutura e história, redenindo de forma
complementar os termos. O conceito de “estruturas performáticas” é es-
pecialmente importante, na medida em que Sahlins (1990) persiste em
encontrar ordenação nas categorias de pensamento que informam as ações
individuais, por mais aleatórias que elas possam parecer.
Dando continuidade ao raciocínio de Cliord (1998), a interpre-
tação baseada no modelo lológico de leitura de texto, proposta pela an-
tropologia interpretativa, emergiu como alternativa promissora para des-
miticar muito do que, anteriormente, tinha sido transmitido, sem muito
exame, acerca da construção das narrativas, da observação e das descrições
etnográcas. A antropologia interpretativa contribuiu para ampliar a visi-

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
bilidade dos processos de criação através dos quais os “objetos” culturais
são elaborados e tratados como signicativos.
O que vem a ser “modelo lológico de leitura de texto”? Geertz
(1989, p.321) escreve: “a cultura de um povo é um conjunto de textos,
eles mesmos conjuntos, que o antropólogo tenta ler por sobre os ombros
daqueles a quem eles [textos] pertencem”. Assim, a aplicação do modelo
lológico de leitura de texto em antropologia interpretativa, equivale a
equiparar a cultura a um texto, e a sua interpretação, à leitura. É exa-
tamente por isso que uma das principais fontes de contribuições para a
análise dos fenômenos culturais, nas últimas décadas, especialmente na de
90, têm vindo de autores ligados à crítica literária. Como exemplo, poderia
mencionar o hindu-britânico HomiBhabha (1998).
A textualização ou a noção de cultura como texto, pré-requisito
da análise proposta pela antropologia interpretativa de Geertz (1989), pos-
sibilita apreender os processos pelos quais comportamentos não-escritos,
discursos, crenças, tradições orais e rituais são reunidos como um corpo
signicativo, que se distingui do discurso imediato e da situação de perfor-
mance, ou, em poucas palavras, dos dados empíricos. Isto é necessário por-
que o mundo, ou a realidade social, não pode se apreendida diretamente.
A sua apreensão é feita a partir das partes e por mediação de conceitos. E
as partes devem ser conceitualmente separadas do uxo da experiência em
que ocorrem. Assim, a textualização fornece um senso de sentido através
de um movimento circular de ida e volta que, ao mesmo tempo, isola e
contextualiza um fato ou um evento da e na realidade mais ampla que o
cerca. É uma idéia já implícita, mas talvez não seja demais enfatizar. Tomar
a cultura como texto signica concebê-la como um sistema, como um
conjunto de partes coordenado entre si. Possivelmente, assim, que ainda
mais claro porque Geertz (1989, 1998) intitula alguns de seus artigos ou
ensaios de: “A arte como sistema cultural”, “O senso comum como sistema
cultural”, “A religião como sistema cultural”, entre outros.
5 A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS EM SEUS PRÓPRIOSTERMOS
Mas pensar a cultura como texto e textualização como mediação
conceptual necessária para a compreensão das culturas incita uma pequena
Raal Salatini (Org.)

digressão. O papel epistemológico que a textualização cumpre na antropolo-
gia interpretativa equivaleria ao mesmo papel que o conceito de tipos ideais
desempenham na sociologia de Weber (1991). Por causa da inuência de
Kant, principalmente através de autores que no início do século XlX caram
conhecidos como neo-kantianos, Weber (1991) assume que entre o sujeito
que conhece e o objeto de conhecimento há um espaço que só pode ser
transposto por mediadores epistemológicos, representados, em seu caso, pelo
conceito de tipos ideais. No caso de Geertz (1989), uma vez que, conforme
alertado anteriormente, este autor recebe grande inuência da losoa her-
menêutica de Dilthey, que por seu turno insere-se num contexto losóco
mais amplo designado de neo-kantinismo, pela concepção de cultura como
texto, ou simplesmente por textualização, como prefere Cliord (1998).
Mas, então, para seguir adiante, vejamos como a interpretação da
cultura, esse conjunto de textos, é levada a cabo pela antropologia inter-
pretativa. Para tanto, basta ler com cuidado o capítulo 1 de A interpretação
das culturas de Geertz (1989), denominado “Uma descrição densa: Por
uma teoria interpretativa da cultura”. A idéia básica do artigo é de que o
antropólogo não pode retratar uma cultura apenas anotando fatos. É pre-
ciso que os fenômenos sejam interpretados, tendo em vista a compreensão
de seus signicados. Um dos exemplos de que se vale Geertz (1989) para
desenvolver o seu argumento é o piscar de olhar. Inicialmente, um piscar
de olhos pode signicar um tique involuntário proveniente de uma desor-
dem neurológica, de cansaço ou nervosismo. Uma piscadela pode ser um
sinal intencional com vários signicados possíveis: ngimento ou algum
tipo de código entre duas ou mais pessoas. Uma cultura é composta de
um número virtualmente innito dessas mensagens ou sinais, e a tarefa do
antropólogo é interpretá-las. Idealmente, a interpretação antropológica de-
veria ser tão complexa e criativamente imaginada como a própria cultura.
Mas como os críticos literários não têm a intenção de que um dia esgotarão
inteiramente os signicados de Hamlet, os antropólogos deveriam perder
as esperanças de um dia encontrar verdades absolutas acerca das culturas
que estudam. A questão determinante numa descrição densa e, portanto,
na interpretação antropológica, consiste em saber separar as piscadelas dos
tiques nervosos, e as piscadelas verdadeiras das imitadas (p. 27), bem como
as realidades políticas e econômicas às quais estão submetidos os homens.

Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
Em textos posteriores Works andlives: e anthropologist as author,
Geertz (1988, p. 141) aproximou a antropologia não só da crítica literária
como da literatura. Escreve o autor, como a literatura, a etnograa envol-
ve “contar histórias, delinear imagens, inventar simbolismos, desenvolver
tropos”. A antropologia não seria nada além que uma escrita imaginativa
sobre pessoas reais em lugares reais e épocas reais”.
O artigo “Um jogo absorvente: Notas sobre a briga de galos bali-
nesa” parece um excelente exemplo da aplicação das características funda-
mentais da descrição densa, a saber, registrar o uxo do discurso social e
interpretá-lo de forma tal a salvar o que foi dito e observado em formas
pesquisáveis (GEERTZ, 1989, p. 31). O início do artigo relata como Geertz
e sua mulher ganharam a conança dos balineses, que em geral arredios.
Geertz, sua mulher e alguns aldeões estavam assistindo a uma briga de galos
quando a polícia deu uma batida no local e o casal americano fugiu com os
balineses. Impressionados com o fato dos cientistas não terem procurado tra-
tamento privilegiado da polícia, os moradores da vila acabaram os aceitando.
Com as credenciais de membro da aldeia, Geertz passou a regis-
trar e a analisar a obsessão banilesa pelas brigas de galos. A conclusão é a de
que o esporte sangrento, em que os galos armados de esporas aadas como
lâminas lutam até a morte, espelhavam e, portanto, exorcizavam, em certo
sentido apenas, o medo do povo balinês em relação às forças obscuras sub-
jacentes à calmaria aparente de sua sociedade. Assim, escreve Geertz (1989,
p.311), a briga de galos capta temas como morte, masculinidade, raiva,
orgulho, perda, benecência, oportunidade e os ordena numa estrutura
globalizante. Depois os apresenta de maneira tal que alivia uma visão par-
ticular de sua natureza essencial. A briga de galos, como imagem, cção,
modelo, metáfora, é um meio de expressão, cuja função não é aliviar as
paixões sociais, tampouco exacerbá-las, (embora em sua forma de brincar
com fogo ela faça um pouco de cada coisa), mas exibi-las em meio a penas,
ao sangue, às multidões e ao dinheiro.
Para retomar a idéia de sistema, contida na noção de cultura
como texto, faço menção aos textos de Geertz (1989, 1998) que enfatizam
a cultura como sistema: “A arte como sistema cultural” e “A religião como
sistema cultural”. Um sistema é um conjunto de partes coordenadas, assim
pressupõe certo grau de coerência, caso contrário não seria chamado de sis-
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tema. De todo modo, a compreensão que um antropólogo procura ter dos
aspectos religiosos e estéticos de certa cultura não deve se traduzir, segundo
Geertz (1989, p.28), numa procura frenética por coerência cristalina, per-
feita, que mantém pouca, ou nenhuma, relação com fatos empíricos aos
quais se referem, ou se lhes deveria referir.
Para começar a examinar o que signica tomar “A arte como um
sistema cultural”, recorro a um trecho do artigo sobre a briga de galos.
Como qualquer forma de arte – e é justamente com isso que estamos
lidando, anal de contas – a briga de galos torna compreensível a ex-
periência comum, cotidiana, apresentando em termos de atos e objetos
dois quais foram removidas e reduzidas (ou aumentadas se preferirem)
as conseqüências práticas ao nível da simples aparência, onde seu sig-
nicado pode ser articulado de forma mais poderosa e percebido com
mais exatidão. (GEERTZ, 1989, p.310-311).
O que se depreende dessa passagem é que a arte é uma maneira de
tornar compreensível certa experiência comum. Mas qual? Se se considera,
então, as passagens seguintes do ensaio de Geertz sobre a arte, a questão se
resolve. Escreve Geertz (1998, p.150): “Os sinais ou elementos simbólicos,
que compõem um sistema semiótico, aqui designado de estético, têm co-
nexão ideacional, não mecânica com a sociedade em que se apresentam.
Um pouco mais adiante continua Geertz (1998, p. 165):
A capacidade de uma pintura (ou de poemas, melodias, edifícios, vasos,
peças teatrais, ou estátuas) fazer sentido varia de um povo para outro,
assim como de indivíduo para outro, é, como todas as outras capacidades
plenamente humanas, um produto da experiência coletiva que vai bem
mais além dessa própria experiência. O mesmo se aplica à capacidade de
criar essa sensibilidade onde não existia. A participação no sistema parti-
cular que chamamos de arte só se torna possível através da participação
no sistema que geram de formas simbólicas que chamamos de cultura,
pois o primeiro sistema nada mais é que um setor do segundo.
Dos quatro excertos anteriores, extrai-se uma caracterização do
vem a ser a arte como um sistema cultural. Como sistema cultural, a arte
consiste na produção de certos “objetos”, tais como poemas, melodias, edi-
fícios, vasos, peças teatrais ou estátuas capazes de despertar naqueles que
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Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
a produzem e nos que os apreciam certo tipo de sensibilidade qualicada
como estética. Esta sensibilidade refere-se à capacidade de perceber, ou
seja, avaliar como belo tais objetos quando apresentados aos sentidos. A
possibilidade da experiência do belo, isto é, os critérios através dos quais
diferentes pessoas e diferentes culturas o experimentam está inscrita no
sistema cultural mais amplo do qual a arte é apenas um subsistema.
Em relação à religião, Geertz (1989, p. 104-105) parece mais di-
dático. O autor caracteriza a religião como:
(1) um sistema de símbolos signicantes que atua para (2) estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos ho-
mens a través da (3) formulação de conceitos de uma ordem de exis-
tência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade
que (5) as disposições parecem singularmente realistas”. Essa denição
e pontuada de em cinco diferentes pontos: 1º) em relação ao sistema
de símbolo; 2º) em relação estabelecimentos de disposições; 3º) em
relação a formulação de conceitos de existência geral; 4º) em relação
ao revestimento dessas formulações numa aura fatual; 5º) percepção de
tais formulações como reais.
6 CRÍTICA PÓS-MODERNA DA ANTROPOLOGIA HERMENÊUTICA
Resta, ainda, a crítica pós-moderna dirigida à antropologia inter-
pretativa de Geertz cujo foco é o uso de modelos cognitivos para análise
da cultura. Segundo Fisher (1985), tomar a cultura como um sistema sim-
bólico, algo parecido com a linguagem, produz uma homogeneização do
conhecimento cultural, conduzindo o conhecimento dos que estão sendo
estudados à conceptualização; e a cultura, por natureza, não é organizada
ou sistematizada.
A cultura pode até ser vista como um conjunto de símbolos, en-
tretanto, a sugestão da pós-modernidade é conceituá-la como um con-
junto de símbolos em processo, num movimento contínuo de mudança e
transformação, em oposição à antropologia interpretativa que vê a cultura
como uma estrutura de signos, algo parecido com um texto. Fisher (1985),
como antropólogo crítico comenta o seu próprio trabalho, dizendo que
antropologia pós-moderna aspira ser:
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a) dinâmica, mais interessada em mudança cultural do que em formas
culturais como meros textos;
b) politicamente democrática e tentar produzir textos etnográcos que
sejam ricos o suciente para dizerem alguma coisa ao povo descrito
(e não apenas para a comunidade antropológica ou o público leitor
ocidental), e terem bastante sentido para despertarem o seu interesse;
c) objetiva, no sentido de captar as formas públicas do discurso que
sejam impressões idiossincráticas, mas que possam ser conrmadas
por outros observadores e participantes, levando, portanto, a aten-
ção tanto para os modos da comunicação utilizados pela cultura em
questão como para as formas de construção do texto que se apresen-
tam ao observador.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo procurou analisar o modelo clássico de monograa,
o espaço destacado que o estudo do presente etnográco ocupou neste
modelo e as críticas das escolas posteriores: antropologia interpretativa e
antropologia pós-moderna.
Uma das principais conseqüências do modelo clássico de mono-
graa diz respeito à forma secundária com que a história, compreendida
como uma categoria de análise, é tratada nos trabalhos antropológicos.
2
A história assume signicação, na medida em que revela elementos para
a composição de uma realidade anterior aos agentes sociais que se lhes
impõem. Seja essa realidade um sistema-funcional ou uma estrutura, os
agentes sociais em relação a ela aparecem de forma passiva e determinada.
Contudo, a partir dos anos de 1980, com a antropologia pós-
-moderna, ocorre uma retomada da importância da dimensão histórica na
investigação dos processos sociais vivenciados pelos povos. A recuperação
da historicidade constitui uma forma de enxergar os povos não-ocidentais,
2
Sobre essa questão consultar o texto clássico de Lévi-Strauss (1985, p.34), em que o autor distingue a análise
histórica da etnológica. Segundo o autor, a diferença entre as duas disciplinas é, sobretudo, de perspectiva: a
história organizaria os seus dados a partir das expressões conscientes, enquanto que a etnologia organizaria os
seus em relação às expressões inconscientes da vida social. Mais adiante, Lévi-Strauss (1985, p.37) acrescenta que
a importância da história para a etnologia é auxiliá-la destacando a estrutura subjacente a formulações múltiplas
e permanentes através de uma sucessão de acontecimentos.
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Cultura e direitos humanos nas relações internacionais
Vol.1: Reflexões sobre cultura
como indígenas e africanos, também como agentes dos processos sociais.
São povos cujas sociedades têm formação étnica bastante heterogênea e se
constroem no uxo da totalidade dos processos pelos quais os indivíduos
experimentam, interpretam e criam mudanças dentro de suas ordens so-
ciais. Desse modo, a antropologia aceita o desao de compreender socie-
dades com processos históricos caracterizados por intenso contato e con-
vivências interétnicos, nos quais se incorporam etnias e tradições culturais
das mais diversas procedências.
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
SOBRE OS AUTORES
Clarissa Correa Neto Ribeiro é mestranda no Programa de Pós-Graduação em
Relações Internacionais San Tiago Dantas.
Cristina de Souza Agostini é doutora em Filosoa pela USP e professora da
Universidade São Judas Tadeu.
Fábio Metzger é doutor em Ciência Política pela USP e professor da UNIESP
(Caieiras).
Heloisa Pait é doutora em Sociologia pelo New School for Social Research e
professora de Sociologia da Comunicação da Unesp (Marília). Consultar: heloi-
sapait.wordpress.com.
Karina L. Pasquariello Mariano é doutora em Ciências Sociais pela Unicamp,
pesquisadora Produtividade em Pesquisa 2do CNPq, professora da Unesp
(Araraquara) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San
Tiago Dantas.
Laercio Fidelis Dias é doutor em Antropologia Social pela USP e professor da
Unesp (Marília).
Leonardo César Souza Ramos é doutor em Relações Internacionais pela PUC-
RJ e professor da PUC-MG.
Raal Salatini (Org.)

Mónica Montana Martínez Ribas é doutora em Relações Internacionais e
Desenvolvimento Regional pela UnB e trabalha na Revista InterAção (UFSM).
Rafael Salatini é doutor em Ciência Política pela USP, pós-doutorando em
Sociologia pela USP e professor da Unesp (Marília).
Renatho Costa é doutor em História Social pela USP e professor da Unipampa.
Roberto Goulart Menezes é doutor em Ciência Política pela USP e professor
da UnB.
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos é doutor em Ciência Política pela USP,
pós-doutorando em Economia pela Unicamp e professor da Unesp (Marília).
Rosângela de Lima Vieira é doutora em História pela Unesp, pós-doutora em
Economia pela UFSC e professora da Unesp (Marília).

SOBRE O LIVRO
Formato 16X23cm
Tipologia Adobe Garamond Pro
Papel Polén soft 85g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Acabamento Grampeado e colado
Tiragem 300
Catalogação Telma Jaqueline Dias Silveira - CRB- 8/7867
Normalização Maria Luzinete Euclides
Assessoria Técnica Maria Rosangela de Oliveira - CRB-8/4073
Capa Edevaldo D. Santos
Diagramação Edevaldo D. Santos
2016
Impressão e acabamento
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