Abrigo ou Casa?
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Desenvolvimento moral de crianças
e adolescentes abrigados
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
Marília
2016
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
Copyright© 2016 Conselho Editorial
Diretor:
Dr. José Carlos Miguel
Vice-Diretor:
Dr. Marcelo Tavella Navega
Conselho Editorial
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Ficha catalográfi ca
Serviço de Biblioteca e Documentação – Unesp - campus de Marília
Editora afi liada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora Unesp
D682a
CDD 362.73
Dongo Montoya, Adrian Oscar.
Abrigo ou casa? : desenvolvimento moral de crianças e adolescentes
abrigados / Adrian Oscar Dongo Montoya, Carla Andressa Plácido
Ribeiro de França, Patrícia Unger Raphael Bataglia. – Marília :
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246 p.
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ISBN 978-85-7983-799-9 (digital)
ISBN 978-85-7983-798-2 (impresso)
DOI: https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-798-2
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Carla Andressa Plácido Ribeiro de. II. Bataglia, Patrícia Unger Raphael.
III. Título.
SUMÁRIO
Prefácio ......................................................................................................... 7
Introdução .................................................................................................... 13
CAPÍTULO 1
Contexto histórico dos serviços de acolhimento no Brasi
Serviços de acolhimento no Brasil - do passado ao presente ........................... 15
1.1 Evolução no tratamento à criança e ao adolescente acolhidos no
Brasil do período colonial até a sanção do ECA ...................................... 17
1.2 Situação dos serviços de acolhimentos no Brasil pós-ECA e a
preocupação com o desenvolvimento moral ............................................ 28
1.2.1 Autonomia e regras de convivência ................................................ 32
CAPÍTULO 2
O desenvolvimento moral segundo Piaget e as questões de educação
junto às crianças e adolescentes acolhidos ...................................................... 37
2.1 Desenvolvimento moral ................................................................... 38
2.2 A noção de justiça e a cooperação ...................................................... 41
2.3 Prática e consciência das regras .......................................................... 48
2.4 Educação moral e seus procedimentos ............................................... 53
2.5 Instituições de serviços de acolhimento como um ambiente
educativo ................................................................................................ 58
2.6 Características de um ambiente sociomoral em instituições de
acolhimento para crianças e adolescentes ................................................. 63
2.7 Diculdades de se estabelecer um ambiente sociomoral no âmbito
educacional ............................................................................................ 68
CAPÍTULO 3
Quando mudar é necessário: desaos e diculdades para constituir um ambiente
cooperativo em um abrigo institucional ......................................................... 73
3.1 Conhecendo a instituição ................................................................. 75
3.1.1 Sanção Expiatória versus Sanção por Reciprocidade ........................ 96
3.1.2 Justiça Retributiva versus Justiça Distributiva .................................. 101
3.2 Igualdade versus Autoridade .............................................................. 103
CAPÍTULO 4
O caminho da mudança Estratégia – planejamento e intervenção
Adultos e crianças/adolescentes envolvidos em práticas reexivas .................. 107
4.1 Primeiros passos em busca de mudanças............................................ 115
4.1.1 Em busca do (re) conhecimento do problema e (re) constituição de
práticas reetidas na rotina de abrigo institucional com os funcionários .. 115
4.1.1.1 De quem é a responsabilidade da educação ................................. 116
4.1.1.2 Respeito interpessoal no ambiente de abrigo ............................... 125
4.1.1.3 A insegurança (vulnerabilidade), a linguagem do educador e a
prática do rótulo ..................................................................................... 132
4.1.1.4 Diculdade na escolha da punição e o sentido das regras ............. 142
4.1.1.5 Aproximações e distanciamentos da formação continuada ........... 154
4.2 Do lúdico à realidade: crianças e adolescentes institucionalizadas e a
reexão de condutas morais do seu dia-a-dia ........................................... 160
4.2.1 Construção e aplicabilidade das regras do grupo ............................ 160
4.2.2 Individualidade: como percebo meus próprios sentimentos e como
gosto de ser tratado ................................................................................. 168
4.2.3 Alteridade: aceitando o outro em minha vida, exercitando a cooperação,
a solidariedade e o respeito ...................................................................... 170
4.2.4 As relações de grupo: resolução de conito e o exercício do diálogo 179
CAPÍTULO 5
Mudança para todos?
Avaliando o processo de intervenção .............................................................. 189
5.1 Considerações sobre o ambiente de abrigo na percepção dos
funcionários ............................................................................................ 189
5.1.1 Apreciação de sua própria função na instituição em relação às
crianças/adolescentes .............................................................................. 190
5.1.2 Reconhecimento de sua função em situações de conito interpessoal 193
5.1.3 Apreciação do ambiente da instituição como facilitador do
desenvolvimento moral .......................................................................... 197
5.1.4 Mudança no relacionamento entre funcionários após a intervenção 201
5.1.5 Mudança no relacionamento dos funcionários com as
crianças/adolescentes após a intervenção ................................................ 204
5.2 Considerações sobre o ambiente de abrigo na percepção das c
rianças/adolescentes acolhidas ................................................................. 207
5.2.1 Apreciação do abrigo ...................................................................... 208
5.2.2 Regras e conitos na instituição ..................................................... 210
5.2.3 Função da instituição ..................................................................... 212
5.3 Juízo moral das crianças/adolescentes ................................................ 215
5.3.1 Sanção Expiatória versus Sanção por Reciprocidade ........................ 215
5.3.2 Justiça retributiva versus justiça distributiva .................................... 217
5.3.3 Igualdade versus autoridade ............................................................ 221
5.4 Reexões sobre a intervenção ............................................................ 223
Considerações nais ..................................................................................... 229
Referências ................................................................................................... 236
Sobre os Autores ................................................................................. 243
PREFÁCIO
Desconheço escola ou instituição educativa que tem a intenção
de formar sujeitos acríticos, submissos ou heterônomos. Pelo contrário,
encontra-se presente o mesmo discurso e ideal de autonomia e ética em
todas elas. Esses ideais também estão presentes no Abrigo Institucional
em que a pesquisa relatada nesse livro foi realizada. Contudo, no cotidia-
no, esse Abrigo, assim como outros, enfrentava muitas diculdades nas
relações, na organização, funcionamento e estrutura que pareciam indicar
que, apesar das boas intenções, favorecer a construção da moralidade no
cotidiano de uma entidade educativa é algo muito complexo.
Antes de focarmos especicamente essa instituição, vale a pena
dirigir nossos olhares para o perl das crianças e adolescentes encontrados
em abrigos realizado por Silva (2004). Esse estudo mostra que a maioria
são meninos entre as idades de 7 a 15 anos, negros e pobres. Os prin-
cipais motivos apontados para o abrigamento são a carência de recursos
materiais da família; abandono pelos pais ou responsáveis e vivência de
rua e exploração no trabalho infantil, tráco ou mendicância. Mais de
80% das crianças e adolescentes abrigados têm família, sendo que a maior
parte delas mantém vínculo com seus familiares. Apenas uma minoria das
crianças encontradas nos abrigos, estava judicialmente em condição de ser
adotada. Em relação ao tempo de permanência, metade das crianças e dos
adolescentes vivia nas instituições há mais de dois anos, o que é um tempo
considerado demasiadamente longo, sobretudo quando se considera o ca-
ráter de provisoriedade da medida de abrigo.
As crianças abrigadas são excluídas da convivência com suas fa-
mílias, o que acarreta um sofrimento decorrente da ruptura na liação
primeva e em suas histórias de vida: “utuam entre vinculações efêmeras,
sem referências de seu passado e sem pontos xos e sólidos para seu as-
sentamento no presente que lhes possam servir de guia ou de novas filia-
https://doi.org/10.36311/2016.978-85-7983-798-2.p7-12
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.
ções” (PARREIRA; JUSTO, 2005, p.175). Sofrem continuamente a dor
da separação e insegurança quanto ao futuro. Estão assim em “condição de
trânsito e passagem na qual vive, impeditiva de constituições de vínculos
duradouros e sólidos que permitam uma suciente estabilidade e seguran-
ça para a prospecção do mundo”.
Devido as suas características e necessidades, defende-se uma for-
mação de alto nível para os prossionais que atuam com essas crianças,
que contribua para a promoção de relações afetivas empáticas e respeito-
sas. Contudo, em geral, não é isso que tem se encontrado. Barros (2007)
investigando as relações afetivas em casas abrigo relata a presença de “si-
tuações de hostilidade verbal e poucas ocorrências de carinho, palavras in-
centivadoras e contato físico. Ao mesmo tempo, notou-se que as crianças
buscavam incessantemente a atenção, o colo e o carinho de outros adultos
frequentadores do abrigo”. O autor preconiza o investimento na forma-

Os documentos ociais defendem a proposta de fazer do abrigo
um porto seguro, mesmo considerando sua provisoriedade: “um posto de
transição entre um direito negado – o de a criança viver plenamente o pre-
sente de seu presente – e a continuidade cidadã de seus cálculos de vida,
sem os sobressaltos que comprometam, desde logo, seu futuro” (FÁVERO;
VITALE; BAPTISTA, 2008). Essa instituição deveria ser a estrutura está-
vel e acolhedora para quem vive numa situação instavel. Apesar do avanço
legal presente nesses documentos que apontam uma perspectiva da de-
sinstitucionalização, ainda falta muito para que essas políticas se efetivem,
predominando ainda o assistencialismo.
Podemos considerar escolas e abrigos como contextos de desen-
volvimento, constituintes das interações neles estabelecida e também cons-
tituídos por elas. Essas interações são permeadas por valores e signicados.
Atentos à qualidade do ambiente sociomoral e, particularmen-
te, das interações sociais, os autores realizam uma pesquisa laboriosa em
um Abrigo Institucional que acolhe crianças e adolescentes em situação
de risco. Eles elaboraram um programa de diagnóstico e intervenção de-
senvolvido por aproximadamente três anos em uma instituição que teve
Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
como objetivo contribuir para a construção de um ambiente favorável ao
desenvolvimento moral dos abrigados.
Apesar dos desejos de autonomia e ética presentes nas intenções
dos educadores que lá atuavam, por meio de um cuidadoso diagnóstico
com observações e entrevistas, foi constatado pelos pesquisadores que am-
biente sociomoral da instituição era predominantemente coercitivo, em
que as relações eram principalmente pautadas no respeito unilateral e havia
constantemente a imposição de regras e sanções, o que favorecia a forma-
ção de pessoas acríticas e obedientes. Percebeu-se uma incoerência entre o
que alguns adultos gostariam de ensinar e o que realmente ensinavam, por
meio de suas condutas, dos procedimentos e das respostas que eram dadas
diante das situações cotidianas. Pareciam desconhecer os valores que pas-
savam de forma por meio do “currículo oculto”, no qual a educação moral
ocorria em todos os espaços da instituição em que as pessoas conviviam,
mas de modo irreetido. Os prossionais não se davam conta de que eram
agentes morais” por meio de suas atitudes, julgamentos e decisões.
A partir do diagnostico realizado em que identicou a presença de
práticas coercitivas implícitas, os pesquisadores elaboraram e implantaram
um programa de intervenção voltado para os prossionais da instituição
e também para as crianças e jovens. A intervenção visou contribuir para a
construção de um ambiente sociomoral cooperativo embasado no respeito
mútuo e também favorecer a elaboração e o cumprimento consciente de
regras de convivência.
Para tanto foram realizados encontros com os prossionais da
instituição fazendo com que temas relacionados à moralidade fosse um
dos componentes importantes da educação, sendo, dessa forma, alvo de
debates, de reexão e de formação. Assim, em conjunto com eles foram de-
nidas as ações que seriam implementadas na instituição, tais como trans-
formações no processo de elaboração e conteúdo das regras e sanções e na
qualidade da comunicação.
Compreendendo a importância de se abrirem espaços para que
haja a reexão sobre as ações, sobre os princípios e as normas, sobre os valo-
res e sentimentos que os movem, foram também criados espaços temporais
em que os pesquisadores, juntamente com as crianças e jovens abrigados,
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

trabalharam a moralidade e a convivência como objeto de reexão. Nesses
momentos foram discutidos temas como regras de convivência, expressão
de sentimentos, respeito a si e ao outro, alteridade, cooperação, relações de
grupo, resolução de conito e diálogo.
Os autores fundamentam sua proposta na teoria construtivista
piagetiana que defende a cooperação, as relações de respeito mútuo, a vida
social entre as próprias crianças e o autogoverno como necessários para
favorecer o desenvolvimento moral. De acordo com essa teoria, o emprego
da autoridade do educador, as lições de moral, os sistemas de encorajamen-
tos e as sanções punitivas incentivam a moral da obediência.
Evidencia-se ao longo da obra a busca em favorecer uma convi-
vência mais democrática, na qual o espaço é estruturado para que o res-
peito mútuo prevaleça nas relações entre a equipe pedagógica e entre os
abrigados, o autoritarismo dos adultos seja minimizado e existam opor-
tunidades para que os prossionais e as crianças e jovens exponham suas
ideias, necessidades e especicidades, vivenciando relações de cooperação.
Apesar das necessidades prementes de mudanças, os autores discutem as
resistências e diculdades de se estabelecer um ambiente sociomoral co-
operativo no âmbito educacional. Mostram quão imprescindível é que,
a organização da instituição e a qualidade das relações sociais sejam co-
erentes com os objetivos que se pretende atingir e com as especicidades
de desenvolvimento da criança e jovem. Expõem ainda que, no dia a dia
de uma instituição educativa, ocorre a vivência de constantes contradições
entre o que se deseja e o que realmente se pratica.
Redigida de maneira clara, trazendo situações concretas e sus-
citando inúmeras reexões, abordam estas e outras questões referentes a
busca por transformar qualitativamente um ambiente institucional. Um
livro que demonstra os esforços de pesquisadores para criar oportunidades
para que essas crianças e jovens possam se sentir pertencentes e valorizadas,
aprendendo a viver em uma sociedade democrática que envolve o reconhe-
cimento do outro, a coordenação pontos de vista distintos, a administração
não violenta de conitos, o estabelecimento de relações e a percepção da
necessidade das regras para se viver bem.
Professora Doutora Telma Pileggi Vinha

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
REFERÊNCIAS
BARROS, R. C; FIAMENGHI JR., G. A Interações afetivas de crianças abriga-
das: um estudo etnográco. Ciênc. Saúde Coletiva, v.12, n.5, p.1267-1276, 2007.
FÁVERO, E. T.; VITALE, M. A. F.; BAPTISTA, M. V. Famílias de crianças e
adolescentes abrigados: quem são, como vivem, o que pensam, o que desejam. São
Paulo: Paulus, 2008.
PARREIRA, S. M. P.; JUSTO, J. S. A criança abrigada: considerações acerca do
sentido da liação. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 10, n. 2, p. 175-180, mai/
ago. 2005.
SILVA, E. R. A. O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para-
crianças e adolescentes no Brasil. Brasília, 2004. Disponível em: <http://www.
ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=5481>. Acesso em: 15
jul. 2015.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.


INTRODUÇÃO
Este livro é resultado da reexão a respeito das possibilidades de
trabalho junto às crianças/adolescentes abrigadas de modo que suas neces-
sidades físicas, afetivas, educacionais e sociais sejam atendidas. Nessa dire-
ção, relataremos uma experiência de aproximadamente três anos que par-
tiu de observações no ambiente escolar levando a uma proposta de estudo
em um Abrigo Institucional que acolhe crianças/adolescentes em situação
de risco resultando em um trabalho de diagnóstico e intervenção que visou
à constituição de um ambiente favorável ao desenvolvimento moral dessas
crianças/adolescentes.
Depois dessa formulação, outras Emendas só têm rearmado a
preocupação com medidas de proteção e socioeducativas. A partir do ano
de 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), houve gran-
de avanço da legislação nacional, assegurando inclusive o desenvolvimento
moral como um direito da criança e do adolescente. Normatizações pos-
teriores ao ECA explicitamente reforçam a necessidade da autonomia da
criança, do adolescente e do jovem, ressaltando a importância de se traba-
lhar regras de convivência (direitos, deveres e sanções) e preparar o jovem
para o desligamento do serviço em instituições de acolhimento.
Esses três aspectos que constituem o Projeto Político Pedagógico
(PPP) dos serviços de abrigamento foram foco do estudo aqui relatado.
Especicamente, investigou-se se e como autonomia e constituição de re-
gras são trabalhadas e se de fato o ambiente constituído favorece o desen-
volvimento moral das crianças/adolescentes.
Este livro foi organizado além desta introdução em mais cinco
capítulos e considerações nais. No Capítulo 1 apresentamos o tema do
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

estudo, contextualizando historicamente o tratamento das crianças/adoles-
centes institucionalizadas no Brasil e a situação dos serviços de acolhimen-
to pós-ECA, como também a preocupação em atender ao direito constitu-
cional do desenvolvimento moral.
No Capítulo 2 buscamos explicitar, sob a perspectiva teórica pia-
getiana, o desenvolvimento moral, as questões de educação moral em indi-
víduos que vivem em instituições de acolhimento e a caracterização teórica
de um ambiente sociomoral.
No Capítulo 3 discutimos os desaos e as diculdades enfrenta-
das para iniciar um estudo de intervenção em que é necessário, sobretu-
do, a participação dos sujeitos do estudo como agentes de transformação.
Caracterizamos o ambiente da instituição e os participantes da investiga-
ção numa perspectiva de diagnóstico prévio à intervenção.
No Capítulo 4 demonstramos as estratégias de intervenção usa-
das neste estudo a partir, inclusive, do trabalho de envolvimento dos atores
da instituição. Apresentamos as atividades realizadas com adultos e crian-
ças/adolescentes reunidas por temas.
No Capítulo 5 analisamos os resultados obtidos com os parti-
cipantes (funcionários e crianças/adolescentes) destacando os efeitos do
trabalho realizado na instituição em busca da constituição de um ambiente
sociomoral cooperativo.
Nas considerações nais articulamos as contribuições e limitações
deste estudo para a discussão a respeito das condições de constituição de
um ambiente favorável ao desenvolvimento da autonomia das crianças/
adolescentes que vivem fora do convívio de sua família em serviços de
acolhimento, os quais já sofreram golpes afetivos e muitas vezes também
físicos, mentais e morais. Levantamos perspectivas futuras de trabalho nes-
se ambiente.

Capítulo 1
CONTEXTO HISTÓRICO DOS SERVIÇOS DE
ACOLHIMENTO NO BRASIL
SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO NO BRASIL - DO
PASSADO AO PRESENTE
Para o entendimento da evolução histórica dos serviços de aco-
lhimento em nosso país, faz-se necessária uma breve retomada do “sen-
timento de infância” (ARIÈS, 1981) que inuenciou o tratamento das
crianças no início do Brasil colônia e se transformou até os dias atuais. Isso
nos permite relacionar a mudança do conceito criança e adolescente e o
tratamento destes em serviços de acolhimento.
Segundo Ariès (1981), as mudanças ocorridas no sentimento de
infância se deveram às transformações nos modos de organização da so-
ciedade. Até o nal do século XIII, a caracterização de uma expressão par-
ticular da criança era inexistente. Nessa época, a criança era representada
como um adulto em miniatura. A infância, para os homens da época, em
particular os que viveram nos séculos X e XI, não apresentava interesse
algum, era desconhecida. A infância não passava de um período de transi-
ção, com curta duração e lembranças logo esquecidas. As pesquisas sobre
o sentimento de infância tornaram-se mais numerosas, a partir do m do
século XVI e durante o século XVII concomitantemente com a rearma-
ção da família nuclear (pai, mãe e lho).
Dois elementos caracterizavam o sentimento de infância: a “pa-
paricação” nos meios familiares e uma preocupação em relação à disciplina
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

e à racionalidade dos costumes. Este último sentimento passou para o seio
familiar (ARIÈS, 1981).
Surge também no século XVII, além da “paparicação” e da educa-
ção, um vínculo com um novo elemento, este caracterizado pela preocupa-
ção com a higiene e a saúde física. Naquele mesmo século, vários trabalhos
sobre o tema dos cuidados com as crianças foram editados e lançados,
sobretudo por médicos. A questão mais destacada por eles era a respeito
dos princípios educativos do século vigente, tendo três principais enfo-
ques: “[...] a prática dos hospícios de menores abandonados, a da criação
dos lhos por amas-de-leite, a da educação ‘articial’ das crianças ricas”.
(DONZELOT, 1980, p.15).
No primeiro enfoque, que se refere à prática dos “hospícios de
menores abandonados”, Donzelot ressalta os índices altíssimos de morta-
lidade das crianças recolhidas. Para recuperar o gasto com a criação dessas
crianças, o Estado as destinava, quando completassem idade própria, a
trabalhos como a colonização, a milícia e a marinha. Esses trabalhos eram
considerados próprios para essas crianças, por elas não possuírem laços fa-
miliares. Porém, cerca de noventa por cento delas morria antes de poderem
tornar-se “úteis ao Estado” (DONZELOT, 1980, p.16).
O segundo enfoque aponta como causa da mortalidade infantil
a diculdade de encontrar nutrizes, a má vontade e a incompetência da
administração dos encarregados de zelarem pelas crianças recolhidas. O
problema da primeira alimentação infantil também era estendido à popu-
lação em geral. Isso se deve ao fato de que mães muitas vezes ocupadas com
o trabalho (muitas eram esposas de comerciantes e de artesãos) delegavam
a amamentação de seus lhos para as nutrizes ou amas-de-leite.
Não era fácil encontrar as nutrizes. As mães mais ricas as conse-
guiam nas aldeias próximas, enquanto as mais pobres tinham que procurá-
-las mais longe. Essa distância e a ausência de contato entre as nutrizes
e os pais, pelo fato de que a relação entre eles se dava por intermédio de
agenciadores e agenciadoras, levava muitas vezes à prática de abandono
disfarçado por parte dos pais. Apesar das penas de prisão existentes na épo-
ca contra pais que não cumpriam seus deveres, as nutrizes tinham muita
diculdade de receber pagamento (DONZELOT, 1980).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Essa diculdade fazia com que as mais pobres se encarregassem
de alimentar várias crianças ao mesmo tempo. Às vezes, a morte de crian-
ças, que era muito comum, tornava-se lucro para elas, pois, com a ajuda
dos agenciadores (as), continuavam a receber dinheiro da mãe que não era
informada do falecimento de seu lho.
O terceiro enfoque, referente à educação “articial” das crianças
ricas, dava-se pela preocupação da possibilidade da transmissão dos maus
hábitos por meio da amamentação. “A educação dos lhos dos ricos padece
do fato de ser conada a serviçais que utilizam uma mistura de opressões
e de intimidades que são impróprias para assegurarem o desenvolvimento
dessas crianças”. (DONZELOT, 1980, p.18).
Diante desses três enfoques abordados é denunciada a irraciona-
lidade da administração dos hospícios e o pouco benefício que o Estado
obtém com a criação de crianças as quais raramente chegavam a uma idade
em que poderiam reembolsar os gastos que provocaram. Muitas crianças
que viviam nessas condições em hospícios de Portugal, no século XVI,
foram encaminhadas à colonização do Brasil (RAMOS, 1999).
1.1 EVOLUÇÃO NO TRATAMENTO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE ACOLHIDOS NO
BRASIL DO PERÍODO COLONIAL A A SANÇÃO DO ECA
No Brasil, o tratamento das crianças não foi muito diferente do
que ocorria por todo o mundo. Por volta do século XVI, período em que
se dava a colonização portuguesa, chegavam muitas embarcações cujos tri-
pulantes eram destinados a colonizar a nova terra, entre os quais havia
algumas crianças.
Essas crianças estavam lá em condições de grumetes, pajens, órfãs
do Rei (que eram enviadas ao Brasil para se casarem com os súditos da
coroa) ou como passageiros acompanhados pelos pais ou parentes que ali
estavam embarcados.
Em qualquer condição, eram os “miúdos” quem mais sofriam com o
difícil dia-a-dia em alto mar. A presença de mulheres era rara, e mui-
tas vezes, proibida a bordo, e o próprio ambiente nas naus acabava
por propiciar atos de sodomia que eram tolerados até pela Inquisição.
Grumetes e pajens eram obrigados a aceitar abusos sexuais de maru-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

jos rudes e violentos. Crianças, mesmo acompanhadas dos pais, eram
violadas por pedólos e as órfãs tinham que ser guardadas e vigiadas
cuidadosamente a m de manter-se virgens, pelo menos, até que che-
gassem à Colônia. (RAMOS, 1999, p.19).
Pais portugueses em busca de um futuro melhor para seus lhos
viam a esperança nas epopeias marítimas. Acreditavam que, enviando seus
lhos nessas embarcações, estes adquiririam experiências e fariam carrei-
ra na marinha. As crianças portuguesas que viviam na rua e as crianças
judias, estas raptadas de seus pais, também eram embarcadas com muita
frequência para servirem de grumetes, já que era escassa a mão-de-obra de
trabalhadores adultos.
Nessa época do século XVI, meninas de 15 anos eram considera-
das aptas para casar, e meninos de 9 anos prontos para o trabalho pesado.
Nas embarcações lusitanas, o cotidiano infantil era penoso. Os meninos
eram tratados como homens no que se referia ao trabalho, mas, ao mesmo
tempo, eram considerados pouco mais que animais. O universo adulto
teria que ser assimilado por eles, ainda que contra sua vontade. Sem forças,
perdiam a batalha, deixavam de ser crianças e sua inocência era aniquilada
(RAMOS, 1999).
Em terras brasileiras, a violência do colonizador acarretava sub-
missão e perda da identidade de todas as tribos indígenas, inclusive os
curumins, a partir da chegada dos jesuítas. Na tentativa de converter os
gentios” à fé cristã, e percebendo o quanto era difícil a conversão entre
os índios adultos, os jesuítas vindos ao Brasil com a Companhia de Jesus
utilizaram a evangelização das crianças, pois acreditavam que os meninos
índios, além de serem facilmente convertidos, serviriam igualmente como
um ecaz meio para a conversão de seus pais e dos adultos das aldeias em
geral (CHAMBOULEYRON, 1999).
Uma outra preocupação dos padres da Companhia de Jesus foi
o ensino das crianças: com o ensino das letras e o ensino dos bons costu-
mes cristãos portugueses, os padres almejavam que os jovens índios nunca
deixassem a fé cristã e, com isso, aconteceria uma certa “substituição de
geração” na sucessão de seus pais. A formação de novos cristãos era o obje-
tivo primordial dos jesuítas e, para que no futuro a criança indígena tivesse

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
uma vida segundo os costumes cristãos, os padres as instruíam para algum
ofício. O mais comum era o da tecelagem.
As atividades realizadas nas “ordens” eram diferenciadas de acor-
do com o lugar e circunstância onde estavam localizadas. No caso das al-
deias, os meninos não habitavam em casas especiais junto com os padres;
eles residiam em suas próprias casas, juntamente com seus pais. Os mis-
sionários que moravam nessas aldeias não eram obrigados a lecionar, com
isso optavam pela catequização. Assim, o ensino dos meninos brasileiros
era em forma de evangelização e o método mais usado era a memorização.
Deixavam de ensinar letras e ciências para evangelizar os pequenos índios.
Nessa época, os padres contavam com a colaboração dos órfãos vindos de
Portugal. Os meninos do Colégio de Jesus dos Meninos Órfãos de Lisboa
eram destinados ao Brasil para auxiliarem na catequização dos jovens ín-
dios, facilitando-a, porque aprendiam rapidamente a língua local e “[...]
atraíam as crianças com seus cantares”, como expressa o relato de Padre
Nóbrega (1551), segundo Chambouleyron (1999, p.64).
Devido à diculdade em manter os meninos vindos do Colégio
de Jesus dos Meninos Órfãos de Lisboa, fora criada a casa de meninos,
cuja instalação ocorreu diferentemente em cada região assim como suas
rotinas também aconteciam de acordo com a região em que a casa estava
localizada.
Além das crianças órfãs vindas de Portugal, o país tinha o com-
promisso de receber e cuidar das crianças órfãs e abandonadas nascidas no
país. No Brasil, a criança abandonada, desde a colônia até a crise do impé-
rio no nal do século XIX, era tratada pelos termos “exposta” e “enjeitada”.
Esses termos referem-se à maneira com que elas eram abandonadas. Havia
uma frequente prática de enjeitarem recém-nascidos, expondo-os em luga-
res em que provavelmente seriam recolhidos, como as igrejas e conventos
e, mais tarde, as “Rodas dos Expostos” (TRINDADE, 1999).
Criada na Idade Média como um instrumento destinado a pre-
servar o anonimato da caridade cristã às Santas Casas de Misericórdia, a
roda constituía-se de uma caixa cilíndrica que girava sobre um eixo verti-
cal. Ao ser girada, as doações eram transportadas do exterior para o interior
da instituição. Esse instrumento passou a ser empregado como meio de
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

mães abandonarem seus lhos. Essa prática levou à criação de rodas espe-
cícas para o acolhimento dessas crianças abandonadas, conhecidas como
“Rodas dos Expostos”. As Santas Casas de Misericórdia foram chamadas
de “Casa dos Expostos” ou “Casa dos Enjeitados” (TRINDADE, 1999).
Para Trindade (1999), enquanto a roda era a única saída para
mães com diculdades em manter seus lhos, era uma alternativa encon-
trada pelas mães escravas para salvarem seus lhos da escravidão, visto que,
no período da escravidão africana no território brasileiro, as crianças negras
escravas sofriam com a separação de seus familiares, a taxa de mortalidade
entre elas era altíssima, essas crianças eram consideradas como brinquedos
ou como animais de estimação. Eram patrimônios de seu senhor, sendo,
portanto, tratadas como tal, e mesmo com pouca idade eram colocadas no
trabalho. Por essa razão, mães escravas sacricavam-se em car sem seus
lhos, para possibilitar-lhes um futuro longe da escravidão.
Do século XVII ao XIX, as “Casas dos Expostos” exerciam assis-
tência à infância no Brasil. O serviço das rodas servia principalmente para
manter a honra de uma família que foi abalada por uma gravidez fora do
casamento. Com o recurso das rodas, as crianças bastardas teriam a chance
de sobreviver, diferentemente das práticas antigas de abandono, nas quais
as crianças eram expostas nos pátios das igrejas, das mansões particulares e
dos conventos e, muitas vezes, vinham a falecer antes de serem encontradas
e cuidadas. Essa nova alternativa ainda proporcionou, na relação Estado-
família, a preservação do respeito à vida e à honra familiar.
Segundo Trindade (1999), para os principais autores brasileiros de-
dicados ao tema, a roda estimulou o abandono de crianças, principalmente
quando se refere ao Brasil Colônia. Mesmo com grandes diculdades nos
estudos sobre as crianças e o abandono, muitas vezes devido à ausência de
registros e o não domínio da escrita, estudos comprovaram que houve um
grande aumento de abandono depois da “liberação” das rodas para recebe-
rem essas crianças, em nosso país, que muitas vezes ocorria como forma de
se livrar de um lho bastardo: “De protetora da honra, a Casa tornou-se
incentivo à libertinagem” (COSTA, 1989 apud TRINDADE, 1999).
Mais tarde se teve um grande aumento de crianças legítimas aban-
donadas, surgindo uma nova categoria de abandono, na qual a mãe seria

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
conhecida, registrando seu nome, sobrenome e endereço. Porém, confor-
me Trindade (1999), no ano de 1805 as crianças legítimas abandonadas
só eram aceitas se a mãe fosse doente ou incapaz de prover o aleitamento.
Mesmo com essa tentativa de amenizar o abandono, ainda se ob-
servava o frequente aumento do número de crianças nessa situação, porque
os pais dispostos a abandonar seus lhos legítimos sem os reaver, após o
término de seu aleitamento (que acontecia no dia do primeiro aniversário),
os enjeitavam sem fornecer as indicações, sendo as crianças chamadas ilegí-
timas ou de pais desconhecidos.
As casas dos expostos, em seu propósito de preservar a vida das
crianças abandonadas, eram verdadeiras concentrações de mortalidade in-
fantil em função da precariedade de suas instalações e da deciência de
nutrizes para o grande número de crianças a serem alimentadas. Essas
casas, que eram consideradas inicialmente como um lugar de abandono
temporário, tornaram-se lugares de abandono prolongado ou denitivo.
Trindade (1999) salienta que eram vistas como uma garantia de alimenta-
ção e moradia para um ser incapaz de produzir seu próprio sustento, além
de haver a possibilidade de mais tarde ser oferecido um dote para as meni-
nas casarem e uma prossionalização para os meninos.
Eram poucos os casos de roda de expostos que tiveram condi-
ções para abrigar os “expostos”; a maioria buscava colocar o bebê recém-
-chegado em casa de ama-de-leite, em que caria até completar três anos
de idade. No entanto, a “rodeira” procurava estimular a ama a car com
a criança por períodos mais longos, mediante pagamentos de pequenos
estipêndios. Assim, era permitido que essa ama explorasse o trabalho da
criança de forma remunerada, ou simplesmente em troca de casa e comida.
Segundo Marcilio (2006), esta era a prática mais comum.
Visto que as Santas Casas de Misericórdia não conseguiam manter
as crianças que voltavam das casas das amas, e estas só aceitavam car com elas
enquanto recebiam o estipêndio, muitas dessas crianças acabavam perambu-
lando pelas ruas, prostituindo-se ou vivendo de esmolas e pequenos furtos.
De acordo com Marcilio (2006), a medida encontrada pela Santa
Casa diante dessa situação foi buscar casas de famílias que pudessem rece-
ber as crianças como aprendizes, no caso dos meninos, trabalhando em al-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

gum ofício, e empregadas domésticas, no caso das meninas. Ainda quanto
aos meninos, havia a possibilidade de serem inseridos em Companhias de
Aprendizes Marinheiros ou de Aprendizes do Arsenal de Guerra.
Outras alternativas foram buscadas. A partir dos anos de 1860,
houve o surgimento de inúmeras instituições de proteção à infância de-
samparada. Começa uma nova fase de lantropia: antes com um caráter
apenas de caridade, passa a se constituir como um modelo assistencial fun-
damentado na ciência, no entanto, sem abandonar “[...] inteiramente os
preceitos religiosos”. (MARCILIO, 2006, p 78).
Com a chegada da República, no m do século XIX, houve um
período de grande transformação social, econômica e política. Com o m
da escravatura, assistiu-se a um aumento da miséria, principalmente nos
grandes centros urbanos, já que grande número de famílias de trabalhado-
res negros e pobres cou sem recursos para sua sobrevivência.
Nesse contexto, a preocupação com a qualidade de vida das crian-
ças foi ganhando destaque e importância, sobretudo das crianças oriundas
das famílias negras e pobres. Com esse novo modelo assistencial, foi atri-
buída à lantropia “[...] a tarefa de organizar a assistência dentro das novas
exigências sociais, políticas econômicas e morais, que nascem com o início
do século XX no Brasil”. (MARCILIO, 2006, p 78).
Santos (2008) enfatiza que no período republicano, especialmen-
te nas duas primeiras décadas, houve um aumento considerável da urba-
nização e da industrialização. Com a chegada maciça de mão-de-obra imi-
grante, como na cidade de São Paulo, tem-se uma profunda transformação
do quadro social da cidade. Paralelamente ao aumento da população, dá-se
igualmente um grande aumento da criminalidade. Com o intuito de “sal-
var a nação”, acredita-se que o Estado deve intervir na educação moral,
principalmente das crianças pobres e abandonadas. Muitas vezes, crianças,
quando pegas cometendo delitos ou vadiando, eram aprisionadas junta-
mente com adultos criminosos.
Preocupados com a situação dessas crianças, e não conseguindo
colocá-las em instituições religiosas ou particulares (estas ligadas à educa-
ção para o trabalho) por se tratar de crianças “infratoras”, o Estado, em
1902, com a Lei nº 844, cria o instituto disciplinar e a colônia correcional:

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
A Colônia Correcional destinaria-se ao enclausuramento e correção,
pelo trabalho, “dos vadios e vagabundos” condenados com base nos
artigos 375, 399 e 400 do Código Penal, e o Instituto Disciplinar des-
tinaria-se não só a todos os criminosos menores de 21 anos, como tam-
bém aos “pequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados, maiores
de nove e menores de 14 anos” que lá deveriam car até completarem
21 anos. (SANTOS, 2008, p.224).
No instituto disciplinar havia duas seções distintas e incomuni-
cáveis, de forma que os jovens eram separados em duas categorias: uma
recebia os maiores de nove e menores de 14 anos que haviam cometido
algum tipo de crime de modo consciente e também os maiores de 14 anos
processados por vadiagem e, em todos os casos, em cumprimento de sen-
tença expedida pelo juiz de Direito. Na outra seção, eram recebidas crian-
ças/adolescentes entre nove e 14 anos que não tivessem sido considerados
criminosos, como os “[...] pequenos mendigos, vadios, viciosos, abando-
nados”. Porém, segundo Santos (2008), o regime interno do instituto era
extremamente rígido, tendo uma longa jornada de trabalho, pouco ensino
formal (muitos jovens saíam de lá em estado de semianalfabetismo), não
eram permitidos momentos de lazer e, apesar da ausência de castigos físi-
cos, eram aplicados castigos severos em caso de delito, o que levava a inú-
meras fugas e pedidos dos pais ao juiz para retirada dos lhos.
A partir de 1921, como aponta Baptista (2006, p.28), com a Lei
nº 4.242, em seu artigo terceiro, é autorizada pelo governo a organização
do “[...] serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delin-
quente”. Citamos o referido artigo, com alguns de seus tópicos:
Art. 3º. Fica o Governo autorizado:
I. A organizar o serviço de assistência e proteção á infância abandonada
e delinquente, observadas as bases seguintes:
a) construir um abrigo para o recolhimento provisório dos menores de
ambos os sexos que forem encontrados abandonados ou que tenham
comettido qualquer crime ou contravenção;
b) fundar uma casa de preservação para os menores do sexo feminino,
onde lhes seja ministrada educação doméstica, moral e prossional.
[...]
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

f) providenciar para que os menores que estiverem cumprindo sen-
tença em qualquer estabelecimento, sejam transferidos para a casa de
reforma, immediatamente depois de sua installação;
g) adoptar todas as medidas e providencias que forem necessarias para
que essa assistencia se torne eetiva e real [...] (BRASIL, 1921).
Nesse contexto histórico, a grande preocupação vigente no iní-
cio do século XX no país era moralizar os centros urbanos e, para isso, as
elites e autoridades da época defendiam a ideia de salvar a nação por meio
da criança. Para isso, entendiam que crianças moralmente abandonadas
deveriam ser retiradas de suas famílias. Até então, o pátrio poder não era
questionado por nenhum órgão, razão pela qual medidas deveriam ser to-
madas para que o Estado pudesse intervir na educação dessas crianças ditas
moralmente abandonadas, como descreve Rizzini (2011, p.121):
A estratégia consistia em mudar a mentalidade; mostrar que a família
era passível de punição e que, ao cometer atrocidades contra as crian-
ças, comprometia a moralidade de seus lhos e, consequentemente, o
futuro do país. Portanto, o lho não era propriedade exclusiva da famí-
lia; a paternidade era um direito que poderia ser suspenso ou cassado.
Conforme Baptista (2006), o Decreto nº 16.272 de 1923 regula-
mentou a assistência e a proteção a “menores” tanto “abandonados quanto
delinquentes”, que deveriam ser destinados a um abrigo organizado, com o
m de recebê-los. Em 1927, com o Decreto nº 17.943-A, foi constituído o
Código de Menores, consolidando as leis de assistência e proteção a crianças/
adolescentes. Com esse Decreto, o Direito passa a ocupar um forte papel
no atendimento aos “menores”, já que determinava que os abrigos fossem
subordinados ao juiz de menores, não sendo este apenas responsável pelo
encaminhamento das crianças, mas também pelo provimento dos cargos.
A preocupação com a educação nessa época, segundo Rizzini
(2011), era voltada para questões de “moldar” o indivíduo, principalmente
a população pobre, porque não era de interesse da elite que essa população
atingisse consciência de seus direitos, preferindo manter a massa popula-
cional “arregimentada” sob moldes impostos pela demanda de produção
industrial capitalista.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Para atingir a reforma almejada entendia-se ser preciso sanear o país,
identicando-se na pobreza (no feio, no sujo, no negro, no vício, no
crime...) o foco para a ação moralizadora e civilizadora a ser empreen-
dida. Sob o comando da lantropia – expressão do amor à humanidade
característica da época – julgou-se estar combatendo os embriões da
desordem, através da imposição da assistência aos pobres. Percebeu-se
na intervenção do Estado a força necessária para a demanda criada de
restauração da ordem social. O pobre, estigmatizado como promotor
da desordem, é, sem resistência, o alvo natural da Justiça-assistência.
O mesmo destino estaria reservado à criança pobre, transmudada na
gura ameaçadora do menor-abandonado, delinquente, ou, por via das
dúvidas, sempre em perigo de o ser. (RIZZINI, 2011, p.151).
Ocorre na década de 1940 a implementação do Serviço de
Assistência aos Menores (SAM) como uma das estratégias do Estado Novo
com o propósito de estabelecer a ordem social. O SAM reforçou a institu-
cionalização e a internação dos lhos das famílias pobres, no entanto, não
havia preocupação com o trabalho socioeducativo, sendo alvo de muitas
críticas que levaram à conclusão de que esse sistema não era suciente
para acabar com a marginalização e a criminalidade, além de ter péssimas
condições de abrigamento (infraestrutura e higiene). No ano de 1964, é
baixado o Decreto-Lei intitulado Da Política Nacional do Bem-Estar do
Menor – FUNABEM (BRASIL, 1964). Deveriam ser internados nessas
unidades todos os “menores” que se encontravam em situação irregular,
tanto abandonados quanto “delinquentes”. Com o intuito de ensinarem
esses indivíduos a viverem em sociedade, retiram-nos dela.
Na perspectiva de Baptista (2006), a despeito de o artigo sexto desse
Decreto-Lei assegurar a prioridade aos programas de integração do “menor”
na comunidade, por meio de assistência à família, da colocação em família
substituta e da criação de abrigos ou adaptação dos que já existiam, de modo
que se aproximassem ao máximo de um lar (cando o internamento nos
casos em que não existissem instituições dessa espécie no lugar ou por ordem
judicial), observou-se que essas diretrizes não iriam se concretizar, pois o que
se tinha era uma “[...] estrutura altamente centralizadora da Funabem e da
permanência da priorização da internação como medida de segregação dos
menores marginalizados”. (BAPTISTA, 2006, p.31).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Em 1979, aprova-se um novo Código de Menores, a Lei nº
6.697, também voltada para crianças/adolescentes em “situação irregular”,
como se observa abaixo:
Art. 2ºPara os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular
o menor:
I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução
obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;
Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais
ou responsável;
III - em perigo moral, devido a:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons
costumes;
b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;
IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual
dos pais ou responsável;
V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar
ou comunitária;
VI - autor de infração penal. (BRASIL, 1979).
No Estado de São Paulo, havia, desde dezembro de 1927, uma
Secretaria da Promoção Social, sob responsabilidade da qual passa a estar
o Serviço Social de Menores. Mais tarde, é criada a Coordenadoria dos
Estabelecimentos Sociais do Estado (CESE), que estabelecia o atendimen-
to ao jovem, também sob a responsabilidade dessa Secretaria. Como, além
de administrar unidades destinadas a crianças/adolescentes, a CESE aten-
desse a outras categorias sociais, como mendigos, famílias carentes etc.,
houve uma sobrecarga nessa Coordenadoria. Em decorrência, no ano de
1974, criou-se a Fundação Paulista de Promoção Social do Menor (Pró-
Menor). Por ela, todas as unidades de atendimento às crianças/adolescen-
tes foram agrupadas. Para se adaptar à política federal para a área do me-
nor (Funabem), a Secretaria de Promoção Social mudou seu nome para
Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem/SP), sendo uma uni-
dade congênere da Funabem.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Por volta dos anos de 1980, com o processo de redemocratização
do país, ocorrem movimentos sociais para que as crianças/adolescentes po-
bres deixassem de ter o estigma de internação (connamento) e repressão.
Esses movimentos se tornaram fundamentais para a garantia de leis futu-
ramente conquistadas.
Foi-se elaborando gradualmente o paradigma de proteção integral
dos direitos da criança e do adolescente. Como retrata Baptista (2006), as
pressões desses movimentos sociais “[...] possibilitaram a inclusão de ar-
tigos especícos na Constituição Federal de 1988 (artigos 226 a 230)”.
Especicamos:
Art. 227.É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à crian-
ça, ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à prossionalização, à cultura, à dig-
nidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).
Na Emenda Constitucional nº 65, de 2010, incluiu-se ainda o
jovem como detentor desse direito. Depois da Constituição de 1988, o
Brasil participa e assina a Convenção sobre os Direitos da Criança, no
ano de 1990, que teve como base a Declaração Universal dos Direitos
da Criança, aprovada por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações
Unidas, em 20 de novembro de 1959.
Nesse mesmo ano, o Brasil já havia consolidado a Lei nº 8.069/90,
que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A princi-
pal diferença dessa Lei foi compreender toda e qualquer criança e adolescente
como sujeitos de direitos, tendo por proposta a proteção integral desses indiví-
duos, que agora são considerados como sujeitos em desenvolvimento. A ideia
de correção e punição passa a dar lugar à ideia de prevenção e proteção. As
instituições de acolhimento começam a receber como medida extrema e por
ordem judicial apenas crianças/adolescentes em situação de risco. Os adoles-
centes em conito com a lei são encaminhados para instituições especícas,
como, no caso do Estado de São Paulo, a Fundação Centro de Atendimento
Socioeducativo ao Adolescente(Fundação CASA, antiga Fundação Estadual
para o Bem-Estar do Menor – FEBEM advinda da FUNABEM).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Dessa forma, os serviços de acolhimento têm a função de esta-
belecer junto à legislação e ao Estado medidas protetivas e de garantia dos
direitos de crianças/adolescentes retirados judicialmente de sua família de
origem, por estarem em situação de risco. Já a atual Fundação Casa, insti-
tuição vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania,
tem a função primordial de aplicar medidas socioeducativas aos jovens de
12 a 21 anos incompletos, de acordo com as diretrizes e normas previstas no
ECA e no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)
1
.
Essas medidas socioeducativas são determinadas pelo Poder Judiciário e
aplicadas conforme o ato infracional e a idade dos adolescentes.
Uma das características marcantes do serviço de acolhimento é o
fato de sua estrutura física dever ter aspecto semelhante ao de uma residên-
cia e estar inserido na comunidade, em áreas residenciais. Por outro lado, a
Fundação CASA, de acordo com a própria instituição, deve ter seu aspecto
físico semelhante ao de escolas (em contraposição à imagem prisional dos
complexos da antiga Febem), tendo três pisos, com salas de aula e recrea-
ção, dormitórios, consultórios médico e odontológico e uma quadra po-
liesportiva. Essa determinação vale para os centros novos, porém, ainda há
instituições que abrigam a Fundação CASA e que não têm essa estrutura.
Podemos enfatizar que, a partir do ano de 1990, com o ECA, essa
divisão do atendimento diferenciado e em ambientes distintos para o aco-
lhimento das crianças/adolescentes em situação de risco, e para o regime
socioeducativo de adolescentes em conito com a Lei, foi um grande avan-
ço da legislação nacional, permitindo com isso a diferenciação da educação
desses dois grupos e, principalmente, da garantia de convivência social e
comunitária às crianças/adolescentes em situação de risco.
1.2 SITUAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ACOLHIMENTOS NO BRASIL PÓS-ECA E A
PREOCUPAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO MORAL
Vemos que a preocupação com a moralidade esteve bem presente,
ao longo da história do tratamento dado pela sociedade e pela legislação à
criança e ao adolescente. Por vezes atribuída como garantia para a conso-
lidação de uma sociedade de valores e moralmente estabelecida, particu-
1
Informações retiradas do site governamental da Fundação Casa: http://www.fundacaocasa.sp.gov.br.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
larmente com o marco da industrialização no país, no século XIX, outras
vezes como garantia do desenvolvimento individual de um ser em forma-
ção, presente inicialmente na Constituição de 1988 e mais bem abordada
no ECA, em 1990, devido ao reconhecimento da criança como pessoa
humana com atributos inerentes a um ser em formação.
A questão moralizadora nesse contexto histórico deixa de ser o
norte central da preocupação de educação não formal para a socialização
de crianças/adolescentes em situação de risco; nesse avanço, o principal
foco de preocupação é a proteção e a garantia de seus direitos. Para isso, o
estatuto citado não abarca somente a situação de risco infantojuvenil, mas
também a garantia de direitos para todas as crianças/adolescentes, diferen-
ciando-se do Código de Menores, que tratava de forma pejorativa o ter-
mo “menor”, classicando somente meninos e meninas “delinquentes” ou
abandonados moralmente”; no ECA, a proteção independe da condição
social, de sorte que tanto ricos como pobres são sujeitos de direitos.
Com esse reconhecimento e mudança na Lei brasileira, os ser-
viços de acolhimento para crianças/adolescentes em situação de risco ti-
veram que se adequar a um novo padrão que pudesse satisfazer todos os
seus direitos expressos no estatuto. Esses serviços são classicados segundo
suas características especícas de acolhimento, existindo quatro espécies:
Abrigo Institucional – abrigo no qual o quadro de funcionários inclui edu-
cadores/cuidadores que trabalham em turnos diários; Casa-Lar – abrigo
em que no quadro de funcionários há uma pessoa ou um casal, educador/
cuidador, que reside na instituição (uma casa que não é a sua); Família
Acolhedora – residência de famílias acolhedoras cadastradas para propiciar
o atendimento em ambiente familiar, garantindo atenção individualizada
e convivência comunitária; e República – destinada para o atendimento de
jovens que atingiram a maioridade em serviços de acolhimento e precisam
de apoio, durante um período de transição.
A justicativa para diferentes tipos de serviço de acolhimento se dá
pelo objetivo de responder adequadamente à particularidade de cada caso.
A escolha por um desses serviços deverá ser norteada para melhor atender às
necessidades da criança ou adolescente, ocorrendo a partir de uma análise
detalhada da situação em que se encontra, identicando, sobretudo, o seu
perl, a situação de sua família de origem e seu processo de desenvolvimento.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Contudo, há cidades em que não existe toda essa diversidade de serviços de
acolhimento, pois ela deve atender às necessidades locais.
Conforme as Orientações Técnicas: Serviço de Acolhimento
para Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2009), todos os serviços de aco-
lhimento, sendo de natureza público-estatal ou não-estatal, integram os
Serviços de Alta Complexidade do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS) e devem pautar-se nos pressupostos do ECA, do Plano Nacional
de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à
Convivência Familiar e Comunitária, da Política Nacional de Assistência
Social (PNAS); da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do
SUAS (NOB-RH/SUAS), da Norma Operacional Básica do SUAS (NOB/
SUAS) e no Projeto de Diretrizes das Nações Unidas sobre Emprego e
Condições Adequadas de Cuidados Alternativos com Crianças.
Dessa forma, esse documento deverá nortear a organização, no
Estado brasileiro, dos diversos serviços de acolhimento para crianças/
adolescentes que se encontram sob medida protetiva de abrigo (Art.101,
ECA), assim como das Repúblicas. No entanto, há uma ressalva no caso
em que o enquadramento desses parâmetros inferir perda de qualidade
no atendimento; nesses casos, será permitido optar por arranjos distintos,
quando estes representarem maior qualidade no atendimento ofertado se-
gundo a necessidade local.
Embora exista um norte geral para a organização, há também
uma especicidade de organização, quando se refere à diversidade de tipos
desses serviços, conforme suas classicações já citadas. Atentaremos aqui
para especicarmos as características do serviço de acolhimento Abrigo
Institucional, porque foi em um ambiente como esse que desenvolvemos o
estudo que deu origem a esse livro.
O Abrigo Institucional deve ter aspecto semelhante ao de uma
residência e estar inserido na comunidade, sem instalar placas indicativas
da natureza institucional e evitando igualmente nomenclaturas que reme-
tam a aspectos negativos, estigmatizando e despotencializando os usuários.
Deve-se dispor de um ambiente acolhedor, com condições institucionais
para o atendimento com padrões de dignidade. Nesse sentido, não se deve
distanciar excessivamente, do ponto de vista geográco e socioeconômico,

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
da realidade de origem das crianças/adolescentes acolhidas. Seu atendi-
mento deve ser personalizado e em pequenos grupos, com o número má-
ximo de 20 crianças e/ou adolescentes, de maneira a favorecer o convívio
familiar e comunitário das crianças/adolescentes atendidas, como também
a utilização dos equipamentos e serviços disponíveis na comunidade local.
Seu público-alvo deve ser crianças/adolescentes com idade entre
0 a 18 anos sob medida protetiva de abrigo, como descrito no Art. 101
do ECA. Para o acolhimento desse público, deve-se evitar fazer restrições
de acordo com especicações e atendimentos exclusivos, ou seja, adotar
medidas para o acolhimento como faixas etárias muito estreitas, por deter-
minado sexo, atender somente ou não atender crianças/adolescentes com
deciência ou que vivam com HIV/AIDS. Quando houver a necessidade
de atendimento especializado, este não deve prejudicar a convivência de
crianças/adolescentes com vínculos de parentesco (irmãos, primos etc.),
nem estabelecer motivo de discriminação ou segregação.
O espaço físico do abrigo deve ser adequado para agregar todos
os usuários e os educadores/cuidadores de maneira confortável, lembrando
sempre de evitar a instalação de equipamentos que estejam fora do padrão
socioeconômico da realidade de origem dos usuários. Quando houver esse
tipo de equipamento (como piscina, saunas, quadra poliesportiva, dentre
outros) em sua infraestrutura, aconselha-se que se busque gradativamente
disponibilizar esses equipamentos para o uso de crianças/adolescentes da co-
munidade, favorecendo o convívio comunitário. Todavia, deve-se observar a
preservação da privacidade e da segurança do espaço de moradia do abrigo.
Quanto ao funcionamento de atendimento à criança e ao adoles-
cente, as indicações feitas são gerais para todos os serviços de acolhimento,
independentemente das especicidades de suas estruturas; assim, deve-se
manter principalmente a garantia de proteção e preocupação com o desen-
volvimento das crianças/adolescentes. Para isso, cada serviço deve construir
um Projeto Político-Pedagógico (PPP) que preveja estratégias diferenciadas
para o atendimento a demandas especícas, mediante acompanhamento
de prossional especializado; para tanto, deve orientar a proposta de fun-
cionamento como um todo, não apenas quanto ao seu funcionamento
interno, mas também no que tange ao seu relacionamento com a rede
local, as famílias e a comunidade. Dessa forma, deve haver a articulação
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

com a política de saúde, de educação, esporte e cultura, garantindo o aten-
dimento local a essas crianças/adolescentes e a “[...] capacitação e apoio
necessário aos educadores/cuidadores e demais prossionais do serviço de
acolhimento”. (BRASIL, 2009, p.21). A elaboração do PPP precisa ser
uma tarefa a ser realizada coletivamente, de maneira que possa envolver
toda a equipe do serviço, as crianças, os adolescentes e suas famílias, e, após
sua elaboração, deve ser implantado e constantemente avaliado segundo a
prática do seu dia-a-dia.
Dentre os tópicos propostos a serem considerados na elaboração
do PPP, destacaremos dois que julgamos relevantes para a discussão desse
projeto: 1) Fortalecimento da autonomia da criança, do adolescente e do
jovem e preparação para desligamento do serviço; e 2) Regras de convivên-
cia (direitos, deveres e sanções).
1.2.1 A
UTONOMIA E REGRAS DE CONVIVÊNCIA
O desenvolvimento da autonomia da criança e do adolescente
acolhido é uma preocupação constante a ser administrada pelo serviço
de acolhimento, em vários pontos das Orientações Técnicas, e indica-
do para ser um dos tópicos trabalhados no PPP do abrigo. O conceito
de “autonomia”, apresentado ao longo do documento por nós discuti-
do, tem base no Dicionário de Termos Técnicos de Assistência Social (apud
BRASIL, 2009, p.95):
Capacidade e possibilidade de cidadão suprir suas necessidades vitais,
culturais, políticas e sociais, sob as condições de respeito às ideias indi-
viduais e coletivas, supondo uma relação com o mercado – onde parte
das necessidades deve ser adquirida – e com o Estado, responsável por
assegurar outra parte das necessidades. É a possibilidade de exercício de
sua liberdade, com reconhecimento de sua dignidade, e a possibilidade
de representar pública e partidariamente os seus interesses sem ser obs-
taculizado por ações de violação dos direitos humanos e políticos, ou
pelo cerceamento à sua expressão.
As Orientações Técnicas apregoam que a organização do ambien-
te de acolhimento deve proporcionar esse fortalecimento da autonomia
de forma gradativa, sempre respeitando o processo de desenvolvimento e

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
a aquisição de habilidades nas diferentes faixas etárias. Deve-se ter sempre
o cuidado de não confundir o desenvolvimento da autonomia com falta
de autoridade e limites, pois a liberdade precisa ser vista como parceira da
responsabilidade, já que uma não pode ser adquirida sem a outra.
Em termos práticos, as Orientações Técnicas armam que a crian-
ça e o adolescente devem ter a chance de participar da organização da roti-
na do serviço de acolhimento, por meio do desenvolvimento de atividades
tais como organização dos espaços de moradia, limpeza, programação das
atividades recreativas, culturais e sociais; ressalta ainda que essa participa-
ção pode ser por meio de assembleias, realizadas metodicamente, “[...] nas
quais crianças e adolescentes possam se colocar de modo protagonista”.
Outra prática das instituições de serviços de acolhimento deve ser
a preocupação em planejar ações que favoreçam a interação das crianças/
adolescentes entre si e com os contextos nos quais frequentam (escolas,
comunidade, instituições religiosas). O documento Orientações Técnicas
ainda alerta que o desenvolvimento da autonomia deve levar em consi-
deração a cultura de origem da criança e do adolescente, fortalecendo a
elaboração de projetos de vida individuais, assim como o desenvolvimento
saudável, até mesmo após o desligamento do serviço de acolhimento e a
entrada na vida adulta.
Quanto às Regras de convivência, o documento estabelece que,
a partir da entrada da criança ou adolescente no serviço de acolhimento, a
ela/ele deve ser, aos poucos, explicadas as regras de convívio do ambiente.
Desse modo, não é necessário que isso ocorra no primeiro momento do
acolhimento, quando muitos sentimentos e emoções estão envolvidos, mas
ser explicadas gradativamente.
Tais normas têm como objetivo organizar um ambiente seguro e pre-
visível, porém com exibilidade e espaço para o lúdico, o coletivo e
para a construção ou reconstrução de regras que incluam a participação
das crianças e adolescentes, de modo a facilitar seu desenvolvimento.
(BRASIL, 2009, p.44).
Fazendo a análise desses tópicos apontados e das Orientações
Técnicas em si, vimos que a questão do desenvolvimento moral aborda-
do no ECA não é trabalhada de forma direta, mas de forma tangenciada,
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

apregoando-se a autonomia como a liberdade de ação e a oportunidade de
agir e criar as regras de convivência. Entretanto, sabemos que a autonomia
moral vai mais além e, para que ela aconteça, é necessário um ambiente co-
operativo em que se estabeleçam relações de respeito mútuo, solidariedade,
igualdade e equidade, com base nos princípios universais. Assim, a “[...]
criança tem que desejar seguir a norma porque julga que aquilo é o melhor,
mesmo que vá contra um desejo individual e nem sempre seja agradável
respeitá-la”. (VINHA, 2000, p.244).
Aspectos da autonomia administrativa abordada nas Orientações
Técnicas, como o autocuidado, saber respeitar as ideias individuais e cole-
tivas, conhecer seus direitos e agir conforme eles, são itens fundamentais
para o desenvolvimento da autonomia moral, mas não garantem que ela
ocorra, já que ela efetivamente se dará conforme os valores e princípios
internos do indivíduo na relação com o outro, de sorte que a autonomia
moral exige, de cada um, uma reexão crítica, uma capacidade de tomar
decisão entre o certo e o errado, independentemente de recompensas ou
punições, pensando nas regras a que se submetem, do mesmo modo nas
quais ele elabora, sob a perspectiva dos princípios universais e vendo-as
como necessárias para a convivência em sociedade – em outras palavras, da
necessidade de como tratar o outro. No entanto, quando houver confron-
to entre dois princípios, o indivíduo autônomo saberá tomar sua decisão,
optando pelo bem maior ou mal menor.
Diante disso, apesar de reconhecermos o grande avanço legal a res-
peito do acolhimento de crianças/adolescentes, no Brasil, ainda vemos a ne-
cessidade de se atentar melhor para a questão do direito ao desenvolvimento
moral. Ao tratá-lo de maneira tangencial, corre-se o risco de ele ser mal in-
terpretado ou até mesmo esquecido. Assim como a educação moral se inicia
na família e mais tarde acontece juntamente aos outros centros sociais (como
a escola, a igreja etc.), as instituições de acolhimento necessitam igualmente
estabelecer uma educação moral efetiva, educação em valores morais, em sua
rotina com as crianças/adolescentes em situação de abrigos.
Não procuramos aqui uma educação doutrinária, como mencio-
nam Tardeli e Pasqualini (2011), referindo-se a um dos enfoques da edu-
cação de valores mais recorrente pesquisado por Schemelkes (2004 apud
TARDELI; PASQUALINI, 2011). Vimos a educação moral doutrinária

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
como a que era estabelecida e incentivada pela sociedade, no nal do sé-
culo XIX início do século XX, em que, na interpretação de Schemelkes,
há o esforço para transmitir os valores da sociedade da época, esperando
a obediência, menosprezando a capacidade crítica e o caráter autônomo
desses indivíduos.
Na verdade, almejamos uma educação moral em que se possa for-
mar o indivíduo, para que se torne um cidadão, ou seja, “[...] um membro
da coletividade que possa tomar para si as responsabilidades e desao de
criar leis e princípios de convivência com o outro e com o público e con-
duzir-se de acordo com eles”. (CARVALHO, 2002, p.159). Buscaremos
esclarecer melhor essa educação moral, no capítulo seguinte.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

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Capítulo 2
O DESENVOLVIMENTO MORAL SEGUNDO PIAGET
E
AS QUESTÕES DE EDUCAÇÃO JUNTO ÀS CRIANÇAS
E ADOLESCENTES ACOLHIDOS
Para Piaget (1932/1994), o desenvolvimento moral não é ape-
nas produto de uma atividade individual, mas também de relações sociais.
Desse modo, a educação moral torna-se fundamental para a formação mo-
ral do indivíduo.
Entendendo moral como a consciência do certo e do errado,
acreditamos que a decisão a ser escolhida em termos de “[...] qual o cami-
nho que quero seguir” (LA TAILLE, 2006) e o motivo dessa escolha são
direcionados segundo o nosso desenvolvimento moral. Mas, então, de que
maneira as relações interpessoais podem inuenciar o desenvolvimento
moral de um indivíduo? Que tipo de relacionamento interpessoal deve ser
construído para a formação de um sujeito autônomo?
É comum ouvirmos queixas em nossa sociedade atual de que as
crianças/adolescentes estão cada vez mais sem limites e sem valores morais.
Nesses discursos, há um jogo de acusações em que cada um atribui ao
outro a culpa e a falha na educação: a sociedade em geral culpa a família,
esta culpa a mídia, que culpa a escola, que por sua vez culpa o Governo e a
família. Nesse jogo de acusações mútuas, acaba havendo perda de respon-
sabilidade desses órgãos no papel de educação moral das crianças/adoles-
centes. No caso dos serviços de acolhimento de crianças/adolescentes em
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.
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situação de risco, isso não é diferente. Nesse sentido, e baseados na teoria
piagetiana, procuramos tratar neste capítulo do desenvolvimento moral da
criança e do papel do meio social (outras crianças, pais, professores, pro-
ssionais...) na formação moral, principalmente daquelas que vivem em
serviços de acolhimento por estarem em situação de risco social.
2.1 DESENVOLVIMENTO MORAL
Sabemos que as regras morais são essenciais para a vida em socie-
dade e, por esse motivo, toda sociedade faz uso delas. Apesar da diversidade
cultural, podem-se notar semelhanças nas regras morais no que diz respeito
à relevância da aplicação e do seu cumprimento, assim como a punição
àqueles que deixam de cumpri-las.
Segundo Piaget (1930/1996), a despeito da existência dessas leis
morais na vida em sociedade e a obrigatoriedade em segui-las, tais leis não
são passadas hereditariamente de geração a geração. Para que isso aconteça,
é necessário que a educação seja exercida pelo adulto para com a crian-
ça, ou do mais velho para com o mais novo. O que é transmitido pela
constituição psicobiológica do indivíduo são as capacidades, as tendências
afetivas e ativas, as raízes instintivas da sociabilidade, afeição, subordina-
ção, imitação, entre outras, que predispõem ao cumprimento de tais leis.
Porém, se os indivíduos fossem deixados livres, essas forças puramente ina-
tas permaneceriam anárquicas. Sendo assim, para que as realidades morais
se constituam, é relevante que os indivíduos estabeleçam relações uns com
os outros, pois é nessas relações entre os indivíduos que se xam as normas.
Portanto, para o autor, não há moral sem educação moral.
[...] na medida em que a elaboração das realidades espirituais depende
das relações que o indivíduo tem com seus semelhantes, não há uma
única moral e nem haverá tantos tipos de reações morais quanto as for-
mas de relações sociais ou interindividuais que ocorrem entre a criança
e seu meio ambiente. (PIAGET, 1930/1996, p.3).
Assim, a pressão exercida pelo adulto à “alma da criança” acar-
retará resultados diferentes do que a livre cooperação entre crianças e, de-
pendendo de como a educação moral utiliza uma ou outra dessas formas,

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
ela moldará as consciências e determinará comportamentos de modos
diferentes.
A pesquisa realizada por Piaget (1932/1994) sobre a relação entre
a coação adulta e o realismo moral se constituiu na tentativa de entender
a maneira como a criança concebe seus deveres e os valores morais em
geral. Para isso, analisou os julgamentos das crianças, obtidos por meio de
narrações de histórias concernentes ao desajeitamento infantil, ao roubo e
à mentira.
Sendo a moralidade um processo de construção do conhecimento
que se dá entre as pessoas e que se desenvolve na medida em que os valores
morais são construídos, o ambiente será decisivo. Cabe, por conseguinte,
compreender como se dá a educação moral e qual o ambiente adequado à
construção da moral da autonomia para a teoria piagetiana.
De fato, a moralidade em si não pode ser ensinada, porque ela
é constituída a partir das relações suscitadas tanto na interação do sujeito
com o meio em que vive quanto por meio das experiências com as pessoas
e situações (PIAGET, 1930/1996), de sorte que não há uma moral única.
Ou seja, relações baseadas na coação adulta ou na cooperação entre pares
levam a resultados muito diferentes, já que tais procedimentos construirão
consciências e determinarão comportamentos de modos diferentes.
Nos relacionamentos sociais, a criança poderá construir interior-
mente as leis morais exercidas por meio da educação do mais velho para
com ela. No entanto, as “[...] ordens morais, inicialmente, permanecem
quase necessariamente exteriores à criança, pelo menos durante os pri-
meiros anos”. (PIAGET, 1932/1994, p.151). Isso ocorre porque, segundo
Piaget, no desenvolvimento moral da criança, percebemos três tendências
diferentes e não estáticas: anomia, heteronomia e autonomia. Conforme o
autor, as tendências morais propriamente ditas são a heteronomia e a auto-
nomia, que caracterizam os dois tipos de moral existentes e que coexistem
na criança e muitas vezes ainda se encontram igualmente no adulto. No
entanto, há, durante o desenvolvimento da criança, à proporção que essas
duas morais são construídas, uma notável evolução de uma sobre a outra,
como uma relação de sucessão em que a criança passa do predomínio da
moral heterônoma para o predomínio da moral autônoma (PUIG, 1998a).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Desde o seu nascimento, a criança está sujeita a inúmeras regras,
como, por exemplo, de asseio, alimentação e morais. Contudo, como as
crianças pequenas ainda se encontram na condição da anomia (até por
volta dos 3 anos de idade), essas regras são exteriores a ela e, por ainda não
ter penetrado no universo moral (LA TAILLE, 2006), todas essas regras
serão para elas como as regras naturais que regem a natureza (frio, calor,
chuva, sol, dia, noite). Nessa perspectiva, mesmo os pais que optam por
uma educação baseada no respeito mútuo e na cooperação são, por muito
tempo, obrigados a sujeitar a criança a vários hábitos, sobre os quais ela
não consegue entender de imediato o sentido ou o motivo pelo qual os
está realizando. Somente com o seu desenvolvimento e, certamente, o seu
contato com o meio social, essas regras serão assimiladas e construídas in-
ternamente por elas.
Por volta dos três/quatro anos, a criança passa a se interessar pelas
regras sociais, pois frequentemente indaga sobre o que é certo ou errado,
o que pode e o que não pode ser feito. Isso demonstra que ela está come-
çando a adentrar no universo moral. Nesse processo, a criança necessita
tomar as regras que ainda são externas para si para que ela própria as do-
mine por um controle interno. De acordo com Piaget (1932 apud KAMII;
DEVRIES, 1991), isso só irá acontecer na medida em que a criança adotar
essas regras e as construir por sua livre vontade. Entretanto, infelizmente,
como ressaltam essas autoras, “[...] a maneira pela qual as crianças mais
aprendem as regras morais e sociais é através da obediência aos adultos
com a autoridade” (KAMII; DEVRIES, 1991, p. 28), o que caracteriza o
primeiro tipo de moral, a moral da coação.
Conforme Piaget (1932/1994), essa primeira moral advém da re-
lação de coação moral do adulto (a moral da regra exterior), em uma rela-
ção de respeito unilateral, que implica a desigualdade entre o que respeita
e o que é respeitado. Há simultaneamente um sentimento de respeito ao
mais velho e adulto e a prática das regras fazendo com que estas se tornem
uma realidade mística e transcendente, resultando na heteronomia e, conse-
quentemente, no realismo moral (moral do dever).
Já o segundo tipo de moral apresentado por Piaget, ao contrá-
rio do primeiro, ocorre com a relação de cooperação, respeito mútuo, em
que, no relacionamento, os indivíduos “[...] se consideram como iguais e

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
se respeitam reciprocamente”; nesta, as regras emanam da consciência do
sujeito, ou seja, o indivíduo não obedece a uma regra exterior a ele, mas
indaga sua procedência e sua veracidade. Essa moral resulta na autonomia.
Entre as duas morais, podemos distinguir uma fase de interiorização e de
generalização das regras e das ordens.
Assim, na coação moral, o “[...] bem, é obedecer a vontade do adul-
to” e o “[...] mal, é agir pela própria opinião”. Na fase intermediária, a crian-
ça não obedece apenas às ordens do adulto, mas à regra em si própria, “[...]
generalizada e aplicada de maneira original”. (PIAGET, 1932/1994, p.154-
5). Apresenta ainda algumas regras vindas de fora do indivíduo, sem ter uma
consciência própria dele, existindo assim uma semiautonomia. Para a moral
do bem, desenvolvida contrariamente à do dever, o bem pode ser concebido
como um produto da cooperação e o dever produto da relação de coação
moral. Desse modo, “[...] o respeito constitui o sentimento fundamental
que possibilita a aquisição das noções morais”. (PIAGET, 1930/1996, p.4).
Dessa forma, se se deseja que a criança constitua uma persona-
lidade autônoma apta à cooperação, à moral do respeito mútuo, deve-se
promover um ambiente social em que seja possível praticar essas relações
de cooperação e respeito mútuo, sobretudo entre iguais. Porém, se há o de-
sejo de, ao contrário, “[...] fazer da criança um ser submisso durante toda
sua existência à coação exterior”, sendo ela qual for, será suciente praticar
a relação unilateral (PIAGET, 1930/1996, p.9).
Todavia, como então a criança chegará à autonomia? Acontece a
“[...] autonomia moral, quando a consciência considera como necessário
um ideal, independente de qualquer pressão exterior”. (PIAGET, 1973,
p.79). A autonomia de fato acontecerá quando a criança descobrir que a
veracidade é necessária nas relações de simpatia e de respeito mútuo, de
tratar os outros como gostaria de ser tratado.
2.2 A NOÇÃO DE JUSTIÇA E A COOPERAÇÃO
Piaget (1932/1994) mostra como, no campo da justiça, há tam-
bém a oposição de duas morais, caracterizando dois tipos de justiça: a mo-
ral da autoridade, correspondendo à forma elementar da justiça retributiva,
e a moral do respeito mútuo, concernente à justiça distributiva. Na moral
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

da autoridade, vigora uma moral do dever e da obediência, é uma justiça
estreitamente ligada à relação entre os atos e a sua retribuição; dessa forma,
uma ação é injusta quando a sanção ou o mérito não tem proporção com
a falta ou com a boa ação. Já a moral do respeito mútuo é caracterizada
por uma moral do bem, da autonomia, em que há a ideia de justiça pela
igualdade; nesse caso, um ato é injusto quando há um tratamento desigual,
ou seja, beneciando um à custa do outro.
Portanto, segundo Piaget (1932/1994), no que se refere à justiça
retributiva, é preciso distinguir dois tipos de reação, um baseado na noção
de expiação, outro na de reciprocidade. Para as crianças menores, há um
predomínio do julgamento da sanção como sendo mais justa na medida
em que é mais severa, característica da sanção expiatória. Para as crianças
maiores, por outro lado, a sanção é em geral considerada mais justa à pro-
porção em que são “motivadas” – correspondentes à falta cometida, carac-
terística da sanção por reciprocidade.
No que concerne à sanção expiatória, Piaget (1932/1994, p.161)
entende que ela parece “[...] ir a par com a coação e com as regras de
autoridade”. Portanto, torna-se uma regra exterior imposta ao indivíduo.
As sanções expiatórias nada têm a ver com a falta cometida, isto é, por
essa sanção arbitrária uma mentira pode ser sancionada por um castigo
corporal ou até mesmo privações de lazer, a ela apenas importando que o
indivíduo seja punido com a mesma intensidade de sua falta. Esse tipo de
sanção é geralmente mais aceito entre as crianças menores, porém, apesar
de ser uma noção mais primitiva (no sentido de ser eliminada com maior
facilidade, no decorrer do desenvolvimento moral), ainda poderá ser en-
contrada entre muitos adultos, que de certa forma, em sua relação familiar
ou social, têm a sanção expiatória favorecida.
Assim, a criança não associa a sanção como uma maneira el de
corrigir a ruptura do elo social, ou até mesmo em fazer sentir a neces-
sidade de reciprocidade. Para Piaget, a criança simplesmente acredita na
vingança superior e do puro castigo, quer dizer, o adulto perante a circuns-
tância de ver as leis criadas por ele violadas pela criança se irrita e a pune,
e, nesse momento, essa irritação é tomada pelas crianças como justa. Há
também, para Piaget, o sentimento na criança de punição preventiva, ou
seja, a criança faltosa sendo bem punida nunca mais cometerá tal falta.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Nesse caso, a ideia de não punir completamente o culpado soa no espírito
da criança como injusto, por isso, ela acredita na sanção em função de seu
caráter penoso, equivalendo aqui à noção de expiação.
À moral de heteronomia e do dever puro corresponde, naturalmente, a
noção de expiação para aquele cuja lei moral consiste, unicamente, em
regras impostas pela vontade superior dos adultos e dos mais velhos,
é claro que a desobediência dos pequenos provoca a cólera dos gran-
des, e esta irritação se concretiza sob a forma de um sofrimento qual-
quer e “arbitrário” inigido ao culpado. Esta reação de adulto aparece
como legítima à criança, na medida em que houve ruptura da relação
de obediência e em que o sofrimento imposto é proporcional à falta
cometida. [...] À moral da autoridade e da cooperação corresponde
ao contrário, a sanção por reciprocidade [...] Vemos muito bem [...]
como a repreensão [...] pode ser acompanhada, no caso de cooperação,
de medidas materiais destinadas a marcar a ruptura do elo de reci-
procidade ou a fazer compreender a consequência dos atos. (PIAGET,
1932/1994, p.176-7).
Segundo Piaget, a passagem do primeiro para o segundo tipo de
justiça retributiva se dá pelo fato de haver uma evolução geral do respeito
unilateral para o respeito mútuo: “[...] é normal que, no campo da retri-
buição, os efeitos do respeito unilateral tendam a se atenuar com a idade”.
(1932/1994, p.179). Dessa maneira, a ideia de expiação vai perdendo seu
valor, e as sanções tendem a ser baseadas na lei de reciprocidade.
Assim, a sanção de reciprocidade vai “[...] a par com a cooperação e
as regras de igualdade”. (PIAGET, 1932/1994, p.161). Nela, a regra se torna
como algo construído pelo indivíduo, isto é, faz-se com que a criança enten-
da o que sua falta vai ocasionar em seu convívio com outrem, por exemplo,
não se deve mentir, porque a mentira faz perder a conança mútua. Por meio
dessa sanção por reciprocidade, o “[...] valor de uma punição não é mais me-
dido pela sua severidade”. (p.169), mas é permitido que a criança seja punida
com castigos condizentes às suas faltas, conduzindo à ruptura do elo social
pelo faltoso, uma vez que a criança, sentindo os efeitos de sua falta, sente a
necessidade de restabelecer ela própria as relações normais.
Diante de tais considerações, vê-se que o desenvolvimento da no-
ção de justiça de um indivíduo muito se enquadra com as relações presen-
tes no meio social em que ele convive. Sendo assim, revela-se que
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

[...] a autoridade adulta, se bem que constituindo, talvez, um momento
necessário na evolução moral da criança, não basta para construir o senso
de justiça. Este só se desenvolve na proporção dos progressos da coopera-
ção e do respeito mútuo, de início, cooperação entre crianças e adultos, na
medida em que a criança caminha para a adolescência e se considera, pelo
menos em íntimo, como igual ao adulto. (PIAGET, 1932/1994, p.239).
Podemos dizer que todo ato julgado culpado só o é pelo fato de
ser considerado impróprio para a sociedade que o julga. Em decorrência,
acreditando que o faltoso desrespeitou as regras reconhecidas pelo grupo e
perante essa situação, este será desligado do elo social. “O essencial é fazer
ao culpado alguma coisa análoga à que ele mesmo fez, de maneira que
compreenda o alcance dos seus atos; ou, ainda, puni-lo pela consequência
material direta de sua falta, onde isto é possível”. (PIAGET, 1932/1994,
p.169). Dessa maneira, a sanção teria a função de restabelecer esse elo, o
faltoso sendo punido voltaria a manter a ordem do grupo.
No entanto, veremos ainda que, com a evolução da noção de jus-
tiça, a criança perceberá que não há reciprocidade possível senão no bem.
Assim, toda forma de punição, mesmo aquela “motivada”, será inútil. O
ideal para ela, a partir desse momento, será fazer compreender ao culpado
em que sua ação é má e por que contraria as regras da cooperação.
Piaget (1932/1994) salienta que, na medida em que a criança
se desenvolve, a sanção expiatória parecer ir perdendo a importância, o
que ocorre na medida em que a cooperação vence a coação adulta. A esse
respeito, a cooperação, no campo da justiça, torna-se alvo de nosso estudo
acerca de seus efeitos positivos. Para tanto, analisaremos os possíveis coni-
tos entre a justiça distributiva ou igualitária e a justiça retributiva.
Com esse propósito, retomamos Piaget (1932/1994, p.200):
[...] as ideias igualitárias se impõem, em função da cooperação, e
constituem, assim, uma forma de justiça retributiva (a sanção por
reciprocidade é devida, justamente, aos progressos destas noções), se
opõe às formas primitivas de sanção e termina, mesmo, por fazer
que a igualdade tenha primazia sobre a retribuição, sempre que haja
conito entre elas.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Para Piaget, acontece frequentemente de pais ou professores favo-
recerem a criança obediente em detrimento das outras. Nesse sentido, essa
desigualdade de tratamento é justa do ponto de vista retributivo, porém, é
injusta do ponto de vista distributivo. Para explicitar melhor, daremos um
exemplo relacionado a uma história utilizada por Piaget em sua pesquisa,
como segue: “Uma mãe tinha duas lhas, uma obediente, outra desobe-
diente. Gostava mais daquela que obedecia e dava-lhe os maiores pedaços
de doce. O que você acha disso?” (PIAGET, 1932/1994, p.201). Mesmo
sendo classicada pelo autor como uma história singela, este arma que ela
permitiu, entre outras histórias contadas, a análise dos juízos das crianças
interrogadas, fazendo entender uma evolução em tais juízos.
É importante ressaltar que não podemos aqui ser sistemáticos na
questão do juízo das crianças associado à sua idade, já que na psicologia
moral não há estágios claros devido à multiplicidade de inuências possíveis.
Contudo, na pesquisa realizada por Piaget, ca evidente que a evolução das
reações obedece a uma lei relativamente constante, visto que nos pequenos a
sanção predomina sobre a igualdade, enquanto nos maiores acontece o opos-
to. Portanto, classicaremos aqui as duas grandes etapas do desenvolvimento
moral como juízo heterônomo (tendência heterônoma) e juízo autônomo
(tendência autônoma), lembrando que, embora haja claramente um índice
de evolução conforme a idade, ambos podem coexistir na criança.
Podemos dizer que, segundo Piaget, a atitude da criança é diferente
entre aquelas que dão a primazia à retribuição e entre as que reclamam a
igualdade completa. As primeiras “[...] tratam os atos e as sanções como sim-
ples dados para equacionar”, enquanto as últimas não simulam “[...] mais
uma lição moral, como aquelas que defendem a sanção”, mas sim, procuram
“[...] compreender a situação interiormente”, ou pela sua própria experiência
ou nas experiências observadas ao seu redor. “É neste sentido que podemos,
uma vez mais, opor a cooperação, fonte de compreensão mútua, à coação,
fonte de verbalismo moral.” (PIAGET, 1932/1994, p.203).
Desse modo, fazendo menção ao estudo anterior sobre a coação
adulta e o respeito mútuo, podemos supor que a primeira se refere às crian-
ças que colocam a justiça retributiva acima da justiça distributiva, ao passo
que a segunda constitui-se daquelas que acreditam na relação igualitária,
quer dizer, na justiça distributiva. Por conseguinte, se a sanção é evidente
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

nos primeiros anos das crianças, a igualdade acaba por vencê-la no proces-
so do desenvolvimento mental.
Assim sendo, essa evolução, em linhas gerais, pode ser dividida
em três grupos etários: o primeiro se estende até aproximadamente os sete-
-oito anos, em que a justiça está subordinada à autoridade adulta; o segun-
do compreende crianças entre oito e onze anos, mais ou menos, em que
ocorre o igualitarismo progressivo; e o terceiro se inicia por volta dos onze-
-doze anos, no qual se solidica a justiça puramente igualitária, correspon-
dente à justiça distributiva, vindo junto com as preocupações de equidade.
Mas, então, o que faria a criança passar por essa evolução? Ora,
de acordo com Piaget (1932/1994), na mera interação da criança com
adultos não há nenhuma relação, a princípio, de igualdade, todavia, na
medida em que as crianças convivem entre si, passam a sentir a necessidade
do igualitarismo que deve, pelo menos, desenvolver-se com o progresso da
cooperação entre crianças. Sendo assim, a ideia de igualdade se desenvolve
essencialmente por reação das crianças umas com as outras e, às vezes,
mesmo à custa do adulto.
Cabe-nos aqui vericar os possíveis conitos entre o sentimento
de justiça e a autoridade adulta quanto à idade e à forma com que este se
apresenta, na criança. Podemos perceber cotidianamente que, em se tra-
tando da convivência de adultos com crianças, há algum tipo de injustiça
ou desigualdade de tratamento por parte dos pais, quando, por exemplo,
estes se relacionam com mais de uma criança ao mesmo tempo. O que
ocorre, muitas vezes, é que os pais, quando dividem uma tarefa entre algu-
mas crianças, nem sempre o fazem com a devida igualdade, e ainda pode
se dar o descuido pelo sentimento íntimo de cada criança, não respeitando,
assim, seus interesses pessoais e consequentemente podendo acarretar nela
um sentimento de inferioridade ou até mesmo de revolta ou ciúmes.
Com efeito, a evolução do juízo se dá em função, principalmente,
da questão do caráter e da educação recebida. Contudo, feitas essas res-
salvas, temos, segundo Piaget, três grandes etapas no desenvolvimento da
justiça em relação com a autoridade adulta.
Na primeira etapa, a criança não diferencia a justiça da autorida-
de das leis; para ela, é justo fazer o que o adulto mandou. Durante essa eta-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
pa, é natural que a justiça retributiva prevaleça sobre a igualdade. Portanto,
para Piaget, essa primeira fase é caracterizada pela ausência de noção de
justiça distributiva, visto que esta implica certa autonomia e libertação em
relação à autoridade adulta. Entretanto, parece-nos real que há na relação
de reciprocidade, ainda que de forma bem primitiva, um pequeno indício
de igualitarismo desde as primeiras relações das crianças entre si.
Mas é verossímil que há algo muito primitivo na relação de reciprocida-
de, e encontramos germes de igualitarismo desde as primeiras relações
das crianças entre si. Apenas, enquanto predomina o respeito do adulto,
isto é, precisamente durante toda esta primeira etapa, tais germes não
poderiam dar lugar a manifestações reais, senão na medida em que não
criam conitos com a autoridade. [...] É duvidoso, pelo contrário, que
tal atitude possa subsistir muito tempo numa criança normal de dez ou
doze anos: para esta última, a justiça está baseada num sentimento au-
tônomo, superior às ordens recebidas. (PIAGET, 1932/1994, p.215).
A segunda etapa é caracterizada pelo desenvolvimento do igua-
litarismo, a ponto de este prevalecer sobre qualquer outra consideração.
Nesse caso, a justiça distributiva opõe-se, quando há conitos, à obediên-
cia, à sanção e até às razões mais sutis, as quais serão invocadas durante o
terceiro período.
Por m, na terceira etapa, “[...] o igualitarismo simples cede o pas-
so diante de uma noção mais renada da justiça” (PIAGET, 1932/1994,
p.216); chamaremos aqui de equidade o momento em que a criança passa
a acreditar na igualdade, tendo em vista, sobretudo, a situação particular de
cada um, isto é, o justo aqui nem sempre vai ser o igual, como, por exemplo,
na distribuição de tarefas entre crianças, em que o justo para elas não seria
dividir igualmente as tarefas, mas dividi-las segundo a condição que cada
um apresenta para executá-las, quando há, no grupo, crianças mais novas ou
mais fracas que as outras.
Com isso, conforme Piaget, a justiça igualitária desenvolve-se,
com a idade, à custa da submissão à autoridade adulta, e também na rela-
ção estabelecida entre a solidariedade entre crianças, na cooperação entre
iguais. Porém, não podemos esquecer que, acima do mecanismo dos deve-
res que derivam do respeito unilateral, o igualitarismo parece derivar dos
hábitos de reciprocidade e de cooperação próprios do respeito mútuo.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

2.3 PTICA E CONSCIÊNCIA DAS REGRAS
Piaget (1932/1994) relata uma pesquisa que efetuou sobre as re-
gras de um jogo (jogo de bolinhas), a m de entender como a criança
adquire ou constrói o respeito a essas regras, a tomada de consciência das
regras. Para isso, observou e interrogou crianças no momento em que pra-
ticavam tal jogo.
Concluiu que a criança percorre quatro estágios
2
concernentes à
prática do jogo:
Regras Motoras – a criança pequena, até por volta de 3 anos, joga
pela satisfação do ato de jogar; mesmo estando mais crianças jogan-
do, esta joga sozinha em um brincar individual, e essa brincadeira é
diferente do próprio jogo;
Estágio egocêntrico
3
– a criança, por volta de 3 a 6 anos, apesar de
começar a imitar a maneira que os maiores jogam, faz uso das regras,
mudando-as sempre que lhe convém, ainda jogando por si própria e
não combinando como irão jogar;
Cooperação nascente – por volta de 7 a 10 anos, as crianças empregam
as regras para se organizarem entre si, como uma espécie de controle
mútuo. A despeito de estarem começando a descobrir que as regras de-
vem ser as mesmas para todos, como uma necessidade de uir o jogo,
ainda não as combinam muito bem antes de começarem a jogar;
Interesse na regra por ela mesma – aproximadamente após os 11
anos, as crianças passam a combinar as regras com seus companheiros
antes de jogarem, buscando construí-las de forma justa para todos.
Já para a consciência das regras do jogo, o autor encontrou três
estágios, descritos a seguir:
Regra não coercitiva – crianças pequenas, até por volta de seus 3
anos, não mostram ainda uma compreensão das regras, não tendo
2
Estágios com idades prováveis e não estagnadas.
3
Entendemos por egocentrismo, como explica a teoria piagetiana, a indiferenciação entre o sujeito e o mundo,
que no campo social se dá pela indiferenciação entre o outro e o eu. Assim, no jogo, as crianças, mesmo quando
juntas, brincam individualmente com uma matéria social.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
consciência de sua obrigatoriedade que regula um certo modo de
jogar;
Regra sagrada e obrigatoriedade – isso acontece na criança no perío-
do aproximado de 4 a 8, 9 anos; para ela, a regra é como qualquer
outro fato da natureza, sendo imutável. As regras do jogo sempre
existiram e qualquer mudança seria inválida, como uma transgressão;
Consciência das regras – nesse período, a criança acredita que a regra
é construída pelo grupo e pode ser modicada, quando este sentir
necessidade. Para ela, a regra é necessária para que todos os jogadores
tenham a mesma condição de jogar. Aqui, a regra é fruto da atividade
racional e social.
Segundo Piaget, como já mencionamos, as crianças nascem sem
regras, num período chamado de anomia. Para que elas se desenvolvam
moralmente, é necessário haver uma educação moral que seja exercida pelo
adulto para com a criança ou do mais velho para com o mais novo. No
caso da consciência da regra do jogo, esta, para o autor, não está isolada do
conjunto da vida moral da criança.
Nesse primeiro momento, até por volta dos três anos, a criança
joga bolinhas como bem entende, procura simplesmente satisfazer seus
interesses motores ou sua fantasia simbólica, adquirindo hábitos que cons-
tituem espécies de regras individuais, como uma ritualização das condutas
gerais. Essas condutas podem ser observadas nos bebês antes mesmo de
apresentarem qualquer linguagem ou pressão moral exercida pelo adulto.
E, no conteúdo de cada ritual, de acordo com Piaget, é possível saber o
que é inventado pela criança, o que foi descoberto na natureza ou imposto
pelo adulto.
No entanto, a respeito da consciência da regra enquanto estrutu-
ra formal, não há essas diferenciações do ponto de vista do próprio sujeito,
porque, desde o início de sua vida, tudo exerce pressão para lhe impor a
noção de regularidade, como a lei física (dia, noite, quente, frio) e a lei mo-
ral, esta decorrente de outras regularidades (dormir, comer, tomar banho).
Nesse sentido, no primeiro estágio, devido ao fato de a criança
nunca ter visto alguém jogar, pode-se admitir que se trata de rituais pu-
ramente individuais, contudo, a experiência da criança até o momento
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

mostra a ela que, como todos os fatores apresentam uma regra (leis físicas,
leis morais), no contato com a bolinha (no caso do jogo de bolinha apre-
sentado por Piaget), ela supõe que a relação com esse novo objeto (assim
como os outros) também terá certas regras.
No segundo estágio da consciência da regra pela criança, a regra
é sagrada e mantém uma obrigatoriedade. Para a criança desse período, a
regra é como qualquer outro fato da natureza, sendo assim, imutável. Esse
estágio se inicia quando a criança, “[...] por imitação ou por contato ver-
bal”, se interessa em jogar conforme as regras recebidas do exterior.
Para entender a consciência da regra nesse estágio, Piaget a divide
em três grupos de análise, fazendo três principais perguntas: “[...] podemos
mudar as regras, as regras sempre foram o que são hoje e como começa-
ram?” (PIAGET, 1932/1994, p.52). Com esse interrogatório e observação
da prática do jogo, o autor pôde perceber que a criança, sobretudo no iní-
cio dessa fase, joga para si, buscando satisfazer seus desejos e, mesmo que
tentando imitar as regras dos maiores, não se preocupa quando essas são
infringidas; entretanto, ao mesmo tempo, ela mantém em seu íntimo um
respeito místico para com as regras, acreditando que são eternas, em fun-
ção da autoridade, sendo ela paterna, divina ou de outro adulto. Acreditam
que, ainda que essas regras pudessem ser modicadas, não teriam o mesmo
valor das apresentadas inicialmente.
Apesar da diferença entre a prática egocêntrica do jogo e a cons-
ciência da regra exprimida por seu respeito místico, o autor explica que não
há nenhuma contradição entre elas. Esse respeito é, segundo ele, o indício
de uma mentalidade moldada pela coação adulta. Dessa forma, a criança,
ao imitar os maiores na prática das regras, tem impressão de se submeter
a leis imutáveis. Nesse caso, a pressão dos maiores sobre os mais novos é
assimilada”, grande parte das vezes, com a pressão adulta.
A imitação da criança à prática das regras pelos mais velhos não
provoca uma cooperação na ação, pois, embora sejam todas crianças, os
mais velhos exercem coação sob os mais novos. Tem-se aqui, “[...] sim-
plesmente, uma espécie de mística, de sentimento difuso de participação
coletiva”, explicando o fato de não haver contradição entre a prática e a

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
consciência da criança, porque, como muitas místicas, esta “[...] combina
muito bem com o egocentrismo”. (PIAGET, 1932/1994, p.58).
Piaget (1932/1994) ressalta que a cooperação nasce somente en-
tre iguais. Somente com a cooperação entre iguais, pouco a pouco, vai ser
modicando a atitude prática da criança, ao ponto de fazer desaparecer
essa mística da autoridade.
A cooperação nascente (a partir dos sete, oito anos) não basta, de ime-
diato, para repetir a mística da autoridade e o m do presente estágio
(consciência da regra) se sobrepõe à metade do estágio (prática do jogo)
e à cooperação. (PIAGET, 1932/1994, p.59).
O terceiro estágio da consciência da regra ocorre por volta dos dez
anos, a partir da segunda metade do estágio da cooperação e durante todo
o estágio da codicação das regras. Há, nesse estágio, a união da cooperação
e da autonomia, que sucede a união anterior do egocentrismo e da coação,
de maneira que a consciência da regra se modica completamente; com a
sucessão da heteronomia pela autonomia, a criança interpreta a regra do jogo
não mais como algo externo, imutável e imposto pelos adultos, mas como
o resultado de uma convenção, isto é, ela é decidida livremente e é digna de
respeito, pois é mutuamente consentida. Há então o que Piaget chama de
três sintomas: primeiro, a criança aceita que se mudem as regras, desde que
todos do grupo aceitem e seja uma regra justa para todos e digna, mantendo
o jogo com o prazer do risco, por exemplo, e não com regras que o tornem
de ganho fácil; a criança não acredita que as regras feitas no passado sejam
as melhores e dignas de serem respeitadas acima de tudo, mas crê no valor
da experiência, desde que seja aprovada coletivamente; em segundo lugar, a
criança deixa de conceber as regras como eternas; e, em terceiro lugar, acre-
dita que as regras que moviam as primeiras crianças que começaram o jogo
de bolinhas foram inventadas por estas e não impostas por um adulto, sendo
estabelecidas por elas pouco a pouco, até chegarem às regras que conhece.
Daqui por diante, a regra é concebida como uma livre decisão das pró-
prias consciências. Não é mais coercitiva nem exterior: pode ser mo-
dicada e adaptada às tendências do grupo. Não constitui mais uma
verdade revelada, cujo caráter sagrado se prende às suas origens divinas
e à sua permanência histórica: é construção progressiva e autônoma.
(PIAGET, 1932/1994, p.64).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Nesse sentido, será na medida em que acontece essa sucessão da
heteronomia para a autonomia, no momento em que a regra de coopera-
ção sucede a regra de coação, que a regra se constitui como uma lei moral
efetiva, porque esta faz parte do sujeito que acredita na necessidade da
regra em existir para o bom andamento do jogo, e não como algo imposto
pelo mais velho, trazendo com isso a obrigatoriedade de ser seguida sem
modicações. Conforme Piaget, no caso do jogo das bolinhas, essa evolu-
ção é percebida até por volta dos onze, treze anos, pelo fato de que é apro-
ximadamente até essa idade que acontece o interesse pelo jogo, permitindo
que estes joguem entre iguais sem sofrerem pressão dos parceiros; se por-
ventura esse interesse ocorresse entre outras idades, como, por exemplo, até
por volta dos dezoito anos, essa evolução na consciência se estenderia mais.
Semelhantemente à tomada de consciência das regras do jogo, as
regras morais, segundo Piaget, também se constroem primeiramente no
campo da prática e depois para o campo da consciência interior. E isso será
constituído à proporção que a criança se relaciona com o outro.
O pensamento, de fato, está sempre atrasado em relação à ação, e a
cooperação deve ser praticada muito tempo antes que suas consequ-
ências possam ser plenamente manifestadas pela reexão. (PIAGET,
1932/1994, p.60).
A respeito dessa evolução, Piaget (1932/1994) concorda com a
tese apresentada por Bovet sobre a gênese da obrigação consciente, que
discute que “[...] o sentimento da obrigação só aparece quando a criança
aceita imposições de pessoas pelas quais demonstra respeito” (p.52). Para
essa teoria de Bovet, Piaget acrescenta as duas formas de respeito: “[...] ao
lado do respeito unilateral do menor pelo maior, um respeito mútuo de
igualdade entre eles”. Para Piaget (1932/1994, p.52), “[...] a regra coletiva,
em consequência, surgirá como produto tanto da aprovação recíproca de
dois indivíduos como da autoridade de um sobre o outro”.
Assim, para Piaget, a moralidade autônoma é resultante de um
processo de construção interior, que se dá por meio da interação que o su-
jeito estabelece com o meio social, dependendo precisamente da cooperação

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
progressiva, e não de acumulação de informações exteriores. Desse modo,
podemos armar que, para haver o desenvolvimento da autonomia moral,
é essencial o papel da educação moral fundamentada na autonomia e na
reciprocidade, educação esta capaz de favorecer um ambiente social em que
se possibilite à criança experienciar e manter um relacionamento interpessoal
baseado na solidariedade e cooperação, especialmente entre seus iguais.
2.4 EDUCAÇÃO MORAL E SEUS PROCEDIMENTOS
Entendendo a educação moral como desenvolvimento, podemos
apresentar brevemente a teoria de dois dos principais autores dessa ten-
dência: Piaget e Kohlberg. Como enfatiza Puig (1998a), cada um desses
autores formulará, a partir da ideia da educação moral como desenvolvi-
mento, uma proposta
4
concreta a respeito do caminho que o sujeito deve
percorrer, para alcançar o desenvolvimento moral.
Conforme já descrito, para Piaget (1930/1996), a nalidade da
educação moral se dá pela construção de personalidades autônomas capa-
zes de estabelecer uma relação de cooperação com outrem. No entanto,
segundo o autor, há diferentes procedimentos de educação moral que nem
sempre fazem alcançar a autonomia moral. Piaget classica três diferentes
técnicas de educação moral conforme seus procedimentos, apontando suas
fragilidades ou vantagens de sua implantação. O Quadro 1 resume as téc-
nicas de educação moral sintetizadas por Piaget.
Quadro 1- Técnicas de educação moral e subdivisões
As técnicas gerais da educação moral Subdivisões
Autoridade e liberdade absoluta
Uso exclusivo do respeito unilateral
Liberdade absoluta da criança
Os procedimentos verbais
Lição moral
Relatos ou comentários de convenções morais
Educação moral sem lugar de destaque
Partir somente do interesse das crianças
Os métodos “ativos Experiências morais
Fonte: Elaboração própria
4
Propostas não independentes, considerando as teorias de que cada autor partiu.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

A primeira técnica está fundamentada em apenas um dos dois ti-
pos de respeito, ou seja, essa educação moral se estabelece somente em um
ou outro extremo das relações: a autoridade ou a liberdade absoluta. Nessa
técnica, apresentam-se dois tipos de educação. A primeira delas se caracteriza
como a educação tradicional, em que a gura do adulto como autoridade
absoluta impõe suas regras para a criança obedecer, sob um ensino puramen-
te oral fundado no respeito ao adulto. Partindo do princípio de que existem
na criança duas morais, Piaget ressalta que o ensino baseado somente no
respeito unilateral negligencia a outra metade, prejudicando assim o alcance
da autonomia, não percebendo que a relação entre as crianças se assemelha
muito mais à moral adulta civilizada do que à educação empregada.
Por outro lado, como segundo tipo de educação moral desse mes-
mo procedimento, Piaget descreve o outro extremo da pedagogia moral
clássica, que é a liberdade absoluta da criança que foi implementada em
algumas escolas experimentais. Nelas, não havia nenhum tipo de coação
adulta e nenhuma recomendação sobre a maneira pela qual a criança de-
veria se conduzir junto a seus iguais ou com os mais velhos. O autor la-
menta a escassez de documentos publicados, que diculta as respostas para
o problema essencial que essa educação retrata: haverá a possibilidade de
a criança, mesmo de 3-4 anos, em presença somente de seus semelhantes,
chegar por si mesma ao respeito mútuo e à cooperação? E, ainda, ela se
adaptará à nossa sociedade adulta? Sabemos que o respeito unilateral é
espontâneo nos pequenos: apesar de ser superado, é importante para que o
desenvolvimento moral ocorra.
O respeito mútuo é uma espécie de forma limite de equilíbrio para a
qual tende o respeito unilateral, e pais e professores devem fazer tudo o
que for possível, segundo cremos, para converter-se em colaboradores
iguais à criança. Cremos, no entanto, que esta possibilidade depen-
de da própria criança, e pensamos que durante os primeiros anos um
elemento de autoridade fatalmente se mescla às relações que unem as
crianças aos adultos. (PIAGET, 1930/1996, p.14).
Piaget (1930/1996), quanto a esses procedimentos (uso somente
da autoridade ou somente da liberdade), arma que a verdade parece estar
entre eles, quer dizer, há a necessidade de uma educação que não negligencie
nem o respeito mútuo nem o respeito unilateral, por ambos serem essenciais

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
na constituição da vida moral da criança; com efeito, de acordo com ele, esse
é o objetivo que se busca com os procedimentos “ativos”, que descreveremos
adiante, na terceira técnica, e que é defendido por esse autor.
A segunda técnica de educação moral enfocada por Piaget é a dos
procedimentos verbais de educação moral, muitas vezes utilizada nas escolas
em geral e por moralistas, que acreditam que o discurso é uma medida ecaz
para educar a consciência. Na perspectiva do autor, essa técnica do ensino
da moral pela palavra se subdivide em quatro grupos, segundo suas varia-
ções, da mais verbal para a mais “ativa”. No primeiro grupo, temos a “lição
moral”, que nos leva a indagar se há compreensão da criança quanto à lição
e se esta muda em algo a própria vida da criança. No segundo grupo, estão
as convenções morais em forma de relatos ou comentários sobre grandes ou
pequenos exemplos, sendo eles históricos, literários, entre outros, tendo o
problema da ação de inculcar na criança o que lhe deseja ensinar por uma
relação unilateral. Piaget alerta que nos cabe a indagação se esse tipo de téc-
nica seria ecaz, caso essas histórias partissem de experiência ou interesse da
própria criança. No terceiro grupo, explicita os procedimentos que não dão
à moral um lugar especial, mas que criam espaços nas diferentes matérias
de ensino para estabelecer discussões e desenvolvimentos morais; a despeito
de esse procedimento parecer ecaz, no âmbito escolar, corre-se o risco de
cada professor preocupar-se com sua matéria, a educação moral ser deixada
para outro momento e acabar esquecida. No caso de instituições de acolhi-
mento, corre-se o risco de um educador/cuidador ou mesmo o seu auxiliar
delegar essa função a outro prossional da mesma categoria ou de categoria
superior, e a educação moral não ocorrer, com o intuito de promover o de-
senvolvimento, mas acabar reforçando o respeito unilateral ou até mesmo
estabelecendo uma liberdade sem limites. Por último, no quarto grupo, está
o procedimento de não se falar de moral a não ser pelo propósito de experi-
ências efetivas vividas pela criança, porém, essa técnica somente seria ecaz
para os ns desejados, se, enquanto os conitos interpessoais acontecessem,
as crianças os levassem à opinião do professor; caso contrário, partiria como
os outros ensinos verbais aqui descritos da autoridade do professor ou do
adulto, tendo sempre um fundo de respeito unilateral.
A terceira técnica descrita foi a dos métodos “ativos” de educação
moral. O procedimento dessa educação moral supõe que a criança possa
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

fazer experiências morais e, para isso, a escola ou “internato” deve consti-
tuir um meio próprio que favoreça essas experiências. Assim, a educação
moral não é constituída de uma matéria especíca, mas constitui “[...] um
aspecto particular da totalidade do sistema”. Nas atividades da educação
ativa, há o método de “trabalho em grupo”, ampliando a possibilidade de
permitir o relacionamento mútuo entre as próprias crianças; em acréscimo,
na escola “ativa”, há o esforço em colocar a criança em situações em que
possa experienciar diretamente as realidades espirituais e discutir por si
mesma, gradualmente, as leis constitutivas, formando uma sociedade real
sob organização das próprias crianças.
Elaborando, elas mesmas, as leis que regulamentarão a disciplina esco-
lar, elegendo, elas mesmas o governo que encarregar-se-á de executar
tais leis, e constituindo o poder judiciário que terá por função a repres-
são dos delitos, as crianças adquirirão a possibilidade de aprender, pela
experiência, o que é a obediência à regra, a adesão ao grupo social e a
responsabilidade individual. (PIAGET, 1930/1996, p.22).
Essa técnica implica xar procedimentos que propiciem à criança
descobrir por ela mesma as obrigações morais por meio de uma “experimen-
tação verdadeira” que envolve toda sua personalidade, ao contrário das ou-
tras técnicas que intuíam preparar a criança para a autonomia da consciência
com procedimentos fundados na heteronomia e no respeito unilateral.
Piaget ainda ressalta que há procedimentos de educação moral
segundo um ou outro de seus domínios, ou seja, traçam-se estratégias con-
forme um dos ns da educação moral que almejam ser alcançados pela
criança, como, por exemplo, a formação do caráter e o cultivo da bondade.
O autor enfatiza que são necessárias pesquisas de controle que propor-
cionem melhores respostas e vericações dessas experiências. Mas, o que
é fundamental na prática de procedimentos de educação moral deve ser
considerar a própria criança nesse processo, criar ambientes que favoreçam
experiências sociomorais e situações em que as crianças possam manifestar
suas opiniões e atitudes de iniciativa e de curiosidade, em que não haja
abuso de autoridade para impor valores que elas podem descobrir por si
mesmas (PIAGET, 1930/1996).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Outro autor que considerou a educação moral como desenvolvi-
mento foi Kohlberg, o qual, partindo dos estudos principalmente de Piaget
e Dewey, defendeu um dos procedimentos de educação moral chamado
comunidade justa”. Na teoria da comunidade justa, não deve existir um
exercício ecaz de autoridade sem a presença de uma comunidade em que
todos os membros têm o sentimento de pertencer (BIAGGIO, 2002). Desse
modo, educadores e crianças são membros iguais, tendo os mesmos direitos
e privilégios; nela, embora os educadores sejam autoridades, devem se esfor-
çar para não dar as regras unilateralmente, quando surge um problema na
comunidade. Destacaremos um dos trabalhos de Kohlberg em uma escola
alternativa, relatando um pouco dessa experiência e de seus procedimentos.
Na comunidade justa, ou democrática, implementada nessa es-
cola
5
, professores e alunos que decidiram fazer parte dessa comunidade
criavam, segundo a necessidade do grupo, as regras a serem seguidas e am-
bos os lados tinham o dever de se submeter às decisões. Para a dinâmica de
funcionamento da comunidade justa, eram realizadas reuniões semanais
entre todos os membros, com dois grandes propósitos: “[...] o fórum para
tomada de decisão democrática e o maior ritual para construção da comu-
nidade”. Todos os membros tinham o mesmo peso nos votos e as questões
eram decididas pela maioria dos votos. Antes da reunião da comunidade,
Kohlberg e a equipe (professores e alguns alunos voluntários) reuniam-se
para planejar a pauta da reunião e quais seriam os itens mais propícios
a uma discussão moral. Na véspera da reunião, havia a formação de pe-
quenos grupos entre professores e alunos para introduzir as questões que
precisavam ser resolvidas na reunião, o que era importante para, na reunião
comunitária, se promover uma discussão moral profunda.
A importância desse procedimento se dá pela dinâmica da ação
de todos como membros de um grupo, alcançada pela norma coletiva.
Assim, as “[...] normas coletivas de comunidade estão relacionadas com
o valor de comunidade de duas formas”. (BIAGGIO, 2002, p.58): ins-
trumental (meio de obter valor nal da comunidade – tornar-se uma co-
munidade real) e simbolicamente (a maneira que expressa o valor nal de
comunidade – capacidade de manifestar seu compromisso com a comu-
nidade). A atmosfera moral estabelecida na comunidade justa, segundo
5
Cluster School (64 alunos) – Escola alternativa da Cambridge High School.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

as evidências desse trabalho, pode levar ao desenvolvimento moral que,
consequentemente, inuencia na relação entre os estudantes e destes com
outrem (BIAGGIO, 2002).
2.5 INSTITUIÇÕES DE SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO COMO UM AMBIENTE EDUCATIVO
Os estudos de Piaget se mostram signicativos para se constituir
um ambiente adequado ao desenvolvimento moral, pois, se compreender-
mos como a criança constrói seu pensamento, como suas estruturas são
formadas nos âmbitos do desenvolvimento da inteligência, da moralida-
de e da personalidade, percebendo como se desenvolve a mente infantil e
como o meio social pode interferir nesse desenvolvimento, seremos capa-
zes de, enquanto educadores, instituir um ambiente que favoreça o desen-
volvimento integral do indivíduo orientado para a autonomia (intelectual
e moral).
Baseando-nos na teoria piagetiana, ao abordar os meios da educa-
ção moral (PIAGET 1930/1996), podemos dizer que, na educação moral
no âmbito das instituições educadoras (famílias, abrigos, escolas, igrejas,
mídia, entre outras), deve-se estar atento para não torná-la uma imposição
autoritária nem uma educação verbal.
O trabalho do educador na educação moral é, sem dúvida, um
longo e árduo caminho. Segundo Vinha (2000), como esse trabalho envol-
ve seres humanos, sua responsabilidade se torna muito grande, porque ele
não apenas exercerá inuências na formação do indivíduo, mas, sobretudo,
seu desempenho e sua postura serão decisivos para a futura autonomia
moral e intelectual daqueles. Por essa razão, Piaget (1930/1996) sustenta
que os procedimentos de educação moral devem levar em conta a pró-
pria criança; se assim for, conhecendo como sua mente se desenvolve, o
trabalho do educador se tornará mais efetivo e respeitador dos limites e
necessidades presentes no percurso do desenvolvimento da criança e, dessa
forma, será capaz de garantir que ela seja agente de seu desenvolvimento e
construtora de seu conhecimento.
Na pesquisa de Piaget, a criança descobre o verdadeiro sentido
das regras, toma consciência destas, quando começa a praticá-las em situ-
ações de cooperação, isto é, na relação entre iguais. Como as crianças que

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
somente cumprem as regras ditadas de maneira arbitrária poderão compre-
ender o espírito da regra?
Nem a autonomia da pessoa, que pressupõe esse pleno desenvolvimen-
to, nem a reciprocidade, que evoca esse respeito pelos direitos e pelas
liberdades de outrem, se poderão desenvolver em uma atmosfera de
autoridade e de opressão intelectuais e morais; ambas reclamam impe-
riosamente, pelo contrário, para sua própria formação, a experiência
vivida e a liberdade de pesquisa, fora das quais a aquisição de qualquer
valor humano permanece apenas uma ilusão. (PIAGET, 1980, p.71).
Lembremos que, no estudo do desenvolvimento da noção de jus-
tiça, Piaget (1932/1994) concluiu que o sentimento de justiça, embora
possa evidentemente ser reforçado pelos preceitos e exemplos práticos dos
adultos, é, em grande parte, independente dessas inuências, requerendo
apenas o respeito mútuo e a solidariedade entre crianças para se desen-
volver. Sendo assim, de modo geral, forma-se na consciência da criança a
noção de justo e injusto à custa do adulto e não por causa dele.
Para Buxarrais (1997), a educação moral consiste em criar con-
dições necessárias para que o indivíduo descubra e realize a escolha livre
e consciente de modelos e desejos. Nesse sentido, o papel do educador é
de facilitador e desequilibrador do processo de desenvolvimento moral
dos indivíduos em formação e tem como dever propiciar espaços para
reexões tanto individuais como coletivas destes, de sorte que possam ser
capazes de elaborar de forma racional e autônoma os princípios de valor,
e com eles enfrentar criticamente a realidade. Além disso, de aproximá-
-los a condutas e hábitos coerentes com os princípios e as normas que
tenham criados como seus, para que as relações com os outros estejam
norteadas por valores como “[...] a justiça, a solidariedade, o respeito e a
cooperação”. (BUXARRAIS, 1997).
Acreditamos, baseados na teoria piagetiana, que a vida moral se
desenvolve à proporção que os seres humanos se relacionam entre si, e que
a educação moral está associada a toda a atividade da criança, o que, para
Piaget, seria propiciado pelo “método ativo”. Esse método busca sempre
atingir dois pontos: o primeiro, de “[...] não impor pela autoridade aquilo
que a criança possa descobrir por si mesma”; e o segundo, que seria, em
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

consequência, “[...] criar um meio social especicamente infantil no qual a
criança possa fazer as experiências desejadas”. (PIAGET, 1930/1996, p.24).
Um exemplo disso é o esforço do adulto em não resolver o pro-
blema pela criança, dando soluções e respostas prontas, mas criar oportu-
nidades para as crianças tomarem decisões e conclusões. Vinha (2000) frisa
que, mesmo a criança não tendo capacidade de tomar grandes decisões, ela
é capaz de tomar pequenas decisões, as quais são fundamentais para que se
conquiste a autonomia; a autora salienta que a criança não terá liberdade
total, mas responsavelmente administrada, ou seja, a criança não escolhe o
que quer, mas o que prefere segundo as opções que existem.
Nessa perspectiva, o papel fundamental do educador/cuidador
não consiste no fazer pelas crianças, mas sim, com elas. Dessa forma, para
Vinha (2000), o educador vai delegando pequenas responsabilidades e ta-
refas que as crianças são capazes de realizar, supervisionando e estando
sempre atento ao que acontece e, quando necessário, auxiliando. Deve-se
encorajar a criança, sempre que possível, a encontrar sozinha solução para
seus próprios problemas, instigando-a a buscar qual a melhor saída para
resolvê-lo. Mesmo que a criança encontre uma solução que o educador não
acredita ser a melhor, é importante dar oportunidade para que ela resolva
os problemas por elas mesmas; ao mesmo tempo, é necessário que o profes-
sor aceite a proposta da criança; na execução, esta vai avaliar se foi ou não
uma boa solução: caso veja que não é uma solução boa, terá a possibilidade
de criar uma nova estratégia.
Cabe ao educador/cuidador facilitar a interação, de respeito mú-
tuo, das crianças entre si e com os objetos, tomando cuidado para não fazer
por elas aquilo que elas já são capazes de fazer sozinhas. Ele funcionará
como mediador, no processo de coordenação de pontos de vistas divergen-
tes. Permitindo às crianças tomarem decisões e resolverem seus problemas
sozinhas, estará demonstrando (VINHA, 2000) que cona nelas e de que
acredita que sejam capazes.
Nessa linha, temos o exemplo de uma pesquisa desenvolvida por
Kunreuther e Ferraz (2012) referente à educação ao ar livre, sob a perspec-
tiva teórica interacionista, em que se pretendia alcançar a aprendizagem de
valores morais dos jovens participantes por meio de curso em formato de

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
expedição, no qual alunos e instrutores se aventuram em um trajeto em
área remota da natureza, de forma autossuciente. Essa pesquisa chama-
-nos a atenção para o resultado concernente a um dos jovens sujeitos da
pesquisa. Esse jovem morava em um abrigo institucional e apresentou,
após sua experiência na investigação, mudança em seu comportamento
na instituição em que vivia. Dentre as situações vivenciadas na pesquisa
de Kunreuther e Ferraz (2012), houve o trabalho em grupo, debates sobre
justiça e solidariedade, além de reexões sobre valores e princípios como
coragem, esforço pessoal, disciplina, respeito e superação de limites
6
.
O jovem em situação de acolhimento, segundo a coordenadora do
abrigo (também participante da pesquisa), apresentou duas mudanças atitu-
dinais consideráveis: relação menos agressiva e mais respeitosa com as pessoas
ao seu redor, e maior iniciativa para realizar as tarefas necessárias ao início de
sua vida prossional. Uma das interpretações para essas mudanças, de acordo
com os autores, seria que, diante da responsabilidade atribuída a esse jovem
de realizar determinadas tarefas, despertou-se nele a necessidade de respeitar
as outras pessoas que também as realizam (como, ao ter que cozinhar, passa
a respeitar mais as cozinheiras); ainda pelo fato de ser responsabilizado por
tarefas, ganhou conança: “Ao se sentir bem-sucedido com as responsabili-
dades que lhe foram atribuídas, o aluno percebe-se capaz e passa a gostar de
atribuições e desaos”. (KUNREUTHER; FERRAZ, 2012, p.14).
Para Vinha (2000), um fator que pode impedir o encorajamento
do educador é o medo dos possíveis erros cometidos pelas crianças, to-
davia, ela orienta que o erro tem igualmente um papel importante nesse
processo, pois ele impulsionará um acerto futuro. Na opinião da autora,
evitar o erro seria evitar o aprendizado da criança.
Em um ambiente de discussões e tentativas de resolução demo-
crática de problemas, será muito comum surgir conitos, já que, em um
ambiente em que impera o respeito unilateral, cabe às crianças apenas obe-
decer às normas atribuídas pelo adulto, sem oportunidade de expressar sua
opinião, pouco interagindo uns com os outros, de sorte que o conito será
mínimo.
6
Esses resultados foram obtidos por meio de entrevistas e questionários semiestruturados, com base na própria
percepção dos alunos e dos educadores da instituição, com ênfase no desenvolvimento moral do indivíduo.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Os conitos sociais são fundamentalmente importantes para o
desenvolvimento moral da criança, porque, segundo Piaget (1932/1994),
esses conitos, como situações de desequilíbrio presentes nas relações prin-
cipalmente entre iguais, possibilitarão que a criança, na medida em que
pratica a cooperação entre seus pares, possa avançar da moral heterônoma
para a moral autônoma.
Ora, a crítica nasce da discussão e a discussão só é possível entre iguais:
portanto, só a cooperação realizará o que a coação intelectual é incapaz
de realizar. [...] Em suma, para socializar realmente o espírito, a coope-
ração é necessária, porque somente ela conseguirá liberar a criança da
mística da palavra adulta. (PIAGET, 1932/1994, p.298-299).
Sem o desequilíbrio, não é possível a descentração
7
, por essa ra-
zão, dizemos que os conitos sociais, no campo da moral, são tão impor-
tantes para que haja o desenvolvimento moral. A divergência de opiniões
entre iguais causa desequilíbrio: se “minha opinião” não é a única existente
e pode não ser a melhor, “tenho” que aprender a ouvir a opinião de outrem.
No relacionamento entre crianças, quando há conitos, há igualmente a
necessidade de se estabelecer novamente o elo, de forma que se necessita
considerar o ponto de vista de si e do outro, criar argumentos entendidos
por todos, cooperar, agir levando em conta os sentimentos, perspectivas e
ideias de si e do outro, havendo, nesse processo de descentração, o enfra-
quecimento do egocentrismo infantil em benecio da cooperação e conse-
quentemente da autonomia.
Ao mesmo tempo em que os conitos sociais são importantes
para o desenvolvimento moral das crianças, o papel do educador como
mediador desses conitos também se faz relevante. A pesquisa realizada
por Frick (2011) traz grandes contribuições nesse sentido. A autora fez
relação entre dois ambientes educativos, um com características coerciti-
vas e outro com características cooperativas, a m de identicar se havia
7
Entende-se por descentração a capacidade do sujeito de reversibilidade de suas ações e a de coordenar diferentes
pontos de vista; assim, em sua relação com outrem, ele não somente levará em conta o seu ponto de vista e seus
sentimentos, mas também considerará o ponto de vista do outro, que pode ser diferente do seu e igualmente válido.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
diferença na postura das professoras de cada ambiente, no que tange aos
conitos de seus alunos e na incidência do bullying
8
nos dois ambientes.
Frick (2011) constata que no ambiente coercitivo, em que predo-
mina o respeito unilateral, a professora resolvia os conitos de forma auto-
ritária; quanto à forma com que os alunos resolviam os conitos entre eles,
esta se caracterizou como comportamento predominantemente agressivo e
submisso. Concernente à questão do bullying, nesse ambiente, percebeu-
-se que os alunos se identicaram mais como possíveis alvos e autores de
bullying. Já no ambiente cooperativo, em que a professora fazia mais uso do
diálogo para resolver conitos, os alunos resolviam seus conitos, confor-
me as observações da pesquisadora, de maneira mais próxima ao assertivo,
todavia, em suas respostas nos questionários, predominou o comportamen-
to submisso de resolução e alguns assertivos
9
. Com relação ao bullying, os
alunos desse ambiente não se identicaram nem como possíveis alvos nem
como autores. Concluiu-se, por conseguinte, que a participação do professor
é fundamental para se estabelecer um ambiente sociomoral e no modo como
os conitos são resolvidos pelos alunos, inuenciando por sua vez com a
qualidade das relações interpessoais estabelecidas no ambiente educacional.
2.6 CARACTERÍSTICAS DE UM AMBIENTE SOCIOMORAL EM INSTITUIÇÕES DE
ACOLHIMENTO PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Embora a maioria da literatura que discute a respeito do ambien-
te sociomoral cooperativo trate desse tema no âmbito escolar, nada impede
de fazermos uma ponte nessa discussão com o ambiente em serviços de
acolhimento, que, sem dúvida, também exerce a função de educar moral-
mente as crianças/adolescentes que dele fazem uso, além de desempenhar
a função de lar para essas crianças, acarretando com isso a responsabilida-
de de educação própria da família. No caso de Abrigo Institucional, essa
educação teria a possibilidade de ser facilitada, já que nele se encontram
acolhidos grupos de crianças/adolescentes, havendo a possibilidade de re-
8
Bullying se dá por meio de ações negativas repetitivas entre os pares, como pressões, opressões, intimidações,
gozações, entre outras, que ocasiona no “alvo” angústia, depressão, tristeza, dentre outros sofrimentos.
9
o comportamento agressivo caracteriza-se pelo uso de formas coercitivas, como a violência ou o desrespeito
[...] comportamento assertivo envolve [...] os direitos de ambas as partes são respeitados [...] comportamento
submisso congura-se pelo não enfrentamento da situação”. (FRICK, 2011, p.22).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

lacionamento entre iguais, característica esta de um dos atributos essenciais
para o desenvolvimento moral.
Conforme Ribeiro (2008), o ambiente de abrigo pode ser, muitas
vezes, um ambiente repreensor e de controle, as regras são impostas e ne-
gociadas de maneira que as crianças/adolescentes cam, frequentemente,
condicionados a cumprirem tais regras ou obedecer a uma ordem pela
recompensa ou para evitar um castigo – e não por sua própria consciência.
Frequentemente acontece de algumas crianças, ao se sentirem pressiona-
das a essa obediência, agirem de forma contrária à ordem ou à regra, pela
necessidade de chamar atenção do adulto (carência), por protesto/indig-
nação ou simplesmente por não conseguir obedecer à regra ou à ordem
do adulto. Esses casos evidenciam ainda mais a necessidade de haver uma
postura adequada do educador/cuidador, para que aja de maneira a propi-
ciar momentos de discussão, reexão e prática de situações que favoreçam
a tomada de consciência das regras.
Ainda em relação a atos de “desobediência”, vale a pena focalizar
um pouco mais as atitudes de indignação das crianças/adolescentes e as me-
didas de solução do problema pelos adultos. La Taille (2006) arma que a
indignação é um sentimento moral que está presente na criança, a partir de
seu “despertar do senso moral”. A criança pode se sentir indignada, quando
não acha que uma regra ou um castigo é justo; a princípio, essa revolta será
apenas quando ela própria se sentir injustiçada; somente com a descentração
ela se indignará com injustiças cometidas contra outras pessoas. Muitas ve-
zes, essa indignação terá relação com a indisciplina, pela recusa de obedecer
a uma regra ou ordem, motivo pelo qual muitos educadores tendem a punir
a criança sem discutir o problema, ocasionando o aumento da indignação;
no entanto, quando a indignação tem presente conteúdo moral, torna-se rica
a discussão para resolver o problema gerador, proporcionando com ela um
ambiente de aprendizagem e desenvolvimento moral.
[...] o exercício do pensamento crítico na escola pode tomar a forma
de condutas de rebelião e criar situações de conito com os quais os
professores não estão sucientemente preparados para lidar. Além do
mais, nesse caso podemos nos perguntar se estamos diante de uma
indisciplina ou de uma consciência social em formação. É evidente
que, se quisermos que os alunos avancem no sentido da cidadania, é
necessário prepara-los para pensar e resolver conitos. Se eles não se

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
sentirem capazes de elaborar e participar na solução de problemas que,
em última instância, podem ir além dos problemas escolares, as condu-
tas de indisciplina serão inevitáveis. (PARRAT-DAYAN, 2011, p.22).
Em consequência, para se estabelecer um ambiente sociomoral,
necessita-se considerar a criança e o adolescente como sujeitos de seu pro-
cesso de desenvolvimento, garantindo-lhes espaço em que exercitem e ex-
perienciem situações de cooperação entre eles e que igualmente percebam
as situações de não cooperação e suas consequências. Estudos comprovam
que em ambiente coercitivo no qual é estabelecido, em predominância, o
respeito unilateral à regra e à autoridade, o desenvolvimento moral voltado
para a autonomia ca comprometido, enquanto em ambientes cooperati-
vos, com a atmosfera sociomoral construtivista, as crianças se mostram em
seu desenvolvimento mais avançadas (DEVRIES; ZAN, 1999).
Nessa mesma linha, Wrege (2012) cita várias pesquisas que com-
provam essa evidência e que propõem novas perspectivas para um ambien-
te cooperativo, como as escolas democráticas. A autora alude à sua própria
investigação, na qual se debruçou em conhecer o ambiente de uma escola
democrática e entender as diculdades encontradas por esta em implantar
tal sistema. Wrege ressalta que, com sua pesquisa, pôde conhecer e classi-
car a escola como um ambiente sociomoral. A escola por ela pesquisada,
apesar de ser considerada democrática (pois faz parte da Rede Nacional
de Educação Democrática), ainda encontra diculdades em implementar
junto aos alunos um ambiente em que estes possam ser protagonistas de
sua educação, porque nela ainda há momentos em que as decisões tomadas
partem exclusivamente do professor. Com esse resultado, a autora enfatiza
que, mesmo nas escolas que apresentam características de ambiente de-
mocrático, sempre haverá aspectos a ser discutidos e reelaborados para a
constituição real desse ambiente.
Acreditamos que, assim como a escola, os serviços de acolhimentos
podem construir um ambiente sociomoral cooperativo que, como destaca
Mantovani de Assis (2000), seja capaz de proporcionar à criança a opor-
tunidade de desenvolver plenamente sua personalidade, seja a construção
da inteligência, seja da moralidade, assim como de contribuir ecazmente
para a formação de um “[...] cidadão apto a cooperar, a ser solidário e capaz
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

de empreender transformações sociais e culturais”. ((MANTOVANI DE
ASSIS, 2000, p. 2).
Para Kamii e DeVries (1991), na teoria piagetiana, uma das im-
plicações pedagógicas (e é a que nos interessa para o ambiente de abrigo) é
o domínio socioemocional, que pensamos ser essencial para se estabelecer
um ambiente sociomoral. Para esse domínio, o educador deve:
1. Encorajar a criança a tornar-se cada vez mais autônoma em relação
aos adultos;
2. Encorajar as crianças a reagir com outras crianças e resolver os
conitos entre elas mesmas;
3. Encorajar a criança a ser independente e curiosa, a usar iniciativa
própria no objetivo de suas curiosidades, ter conança na habili-
dade de formar ideia própria das coisas, a exprimir suas ideias com
convicção e lutar construtivamente com medos e angústias e não
se desencorajar facilmente. (KAMII; DEVRIES, 1991, p.33).
Em ambiente de abrigo, esse encorajamento se torna fundamen-
tal para o futuro da criança e do adolescente quanto à sua vida fora da
instituição, pois essas crianças trazem consigo um ferimento em sua vida
emocional, devido aos traumas ocasionados por sua situação anterior ao
abrigamento. Não raro, tais traumas acarretam uma autoestima baixa, pre-
judicando a sua vontade de enfrentar os problemas, conitos e desejos de
forma construtiva, reagindo perante eles com violência, apatia, submis-
são etc., tornando fundamental o empenho do educador nesse processo.
Assim, cabe ao adulto se questionar quando deve exercer sua autoridade,
proporcionando o máximo possível de espaços de respeito mútuo, pro-
pondo alternativas que possibilitem à própria criança tomar decisões em
diferentes situações como, por exemplo, diante uma falta por ela cometida,
de uma necessidade de atitude ou até de atividades a serem realizadas. A
sanção deve ser evitada pelo educador, porém, quando esta for inevitável,
deve-se optar, sobretudo, pela sanção por reciprocidade, avaliando sempre
sua nalidade voltada para o desenvolvimento, e não como controle, puni-
ção, vingança ou mesmo para evitar reincidência da criança que cometeu
a falta ou de outra que presenciou (como forma de exemplo e de armar a
autoridade do adulto).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Segundo DeVries e Zan (1999), a atmosfera sociomoral se cons-
titui das relações interpessoais de um ambiente cujo primeiro princípio é
de que se cultive nessa atmosfera um contínuo respeito pelos outros, sendo
o relacionamento entre criança e educador, entre as próprias crianças, com
as atividades e com as regras. Acrescentaríamos aqui, no caso do ambiente
de abrigo, a necessidade dessa relação entre os educadores e com demais
prossionais.
Na atmosfera sociomoral construtivista defendida por DeVries
e Zan (1999) ressalta-se que os educadores devem respeitar as crianças,
garantindo seus diretos, sentimentos, ideias e opiniões:
Eles utilizam sua autoridade de modo seletivo e abstêm-se de usar po-
der desnecessariamente. Dessa forma, eles dão às crianças a oportu-
nidade de desenvolverem personalidades que tenham autoconança,
respeito por si mesmas e pelos outros e mentes ativas, criativas e inda-
gadoras. (DEVRIES; ZAN, 1999, p.14).
Para as autoras, uma maneira de se evitar o abuso da autoridade
do educador em uma educação construtivista é compartilhar a respon-
sabilidade de criar as regras entre o educador e as crianças, que, além de
reduzir a autoridade dele como adulto, o educador favorece a promoção de
autorregulação das crianças; elas ainda praticam a exposição de suas ideias
e “[...] têm a possibilidade de assumir o ponto de vista do grupo enquanto
comunidade inteira”. (DEVRIES; ZAN, 1999, p.14).
A criança participando da elaboração das regras em resposta a um
problema enfrentado em seu convívio, terá maior chance de tomar consci-
ência dessa regra do que se a recebesse pronta do adulto e, em momentos
de problemas semelhantes, o educador pode reportar-se às regras por elas
criadas, enfatizando que a autoridade moral presente naquele ambiente
não provém dele, mas das próprias crianças.
Uma maneira de se construir as regras com as crianças são as
assembleias, como as propostas por Kohlberg na “comunidade justa”; nas
assembleias, crianças/adolescentes podem se sentir inseridos e pertencentes
à “comunidade”, em um exercício democrático. Sua ocorrência deve ser
regular e geralmente semanal, possibilitando que as crianças/adolescentes
sejam ativos e participantes do que é público; nelas “[...] as regras são cons-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

tantemente elaboradas e revistas, os conitos são discutidos e é possível
que se pense em diferentes possibilidades de resolução”. (TOGNETTA;
VINHA, 2008, p.220).
A assembleia, segundo Tognetta e Vinha (2008), se torna um im-
portante instrumento capaz de vencer o bullying, entretanto, é necessário
car atento ao fato de que nela não se devem expor nomes, mas fatos, para
que não se torne um momento de expiação ou exposição. Paralelamente, as
assembleias têm apenas o poder legislativo, cabendo ao educador atribuir
a sanção devida a um faltoso, visto que os “[...] sujeitos heterônomos não
conseguem enxergar intenções e mesmo as particularidades de cada caso”.
(TOGNETTA; VINHA, 2008, p.23), evitando-se, com isso, castigos ex-
piatórios que nada contribuem para o desenvolvimento moral.
2.7 DIFICULDADES DE SE ESTABELECER UM AMBIENTE SOCIOMORAL NO ÂMBITO
EDUCACIONAL
Para Vinha (2000), existe um agravante no desempenho do edu-
cador para realizar um bom trabalho na educação moral chamado “desculpa
verdadeira”, que interfere desfavoravelmente no desempenho de seu traba-
lho, como a falta de recursos nanceiros e de tempo, comportamento agres-
sivo das crianças, descaso do poder público, entre outros. Contudo, segundo
a autora, esses fatos, apesar de tornarem a tarefa mais árdua, não devem ser
utilizados como uma desculpa para a não realização de um bom trabalho.
O educador deve ter consciência da importância de seu trabalho
ser bem constituído para a qualidade do desenvolvimento das crianças/
adolescentes. A autora relata que o simples gostar de crianças, ainda que
seja um pré-requisito, não é suciente para se trabalhar como educador,
porque, em face de tamanha responsabilidade de ser um agente promotor
de um ambiente adequado para o desenvolvimento intelectual e moral de
indivíduos, como em escolas e entidades de serviços de acolhimento, esse
prossional deverá ter uma formação prossional adequada, bem como
cursos de aperfeiçoamento/formação continuada.
Sabemos que essa condição ainda está precária em nossa socie-
dade, pois em muitas entidades de serviços de acolhimento, por exemplo,
o apoio nanceiro que recebem (do Governo ou de doações) mal dá para

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
pagar suas despesas básicas, não tendo, assim, recursos próprios para man-
ter cursos de preparo e aperfeiçoamento de seus funcionários; além disso,
o baixo salário dos funcionários dessas entidades, como de muitos profes-
sores, não permite que façam cursos por sua conta ou mesmo ter formação
básica. Porém, sua formação é fundamental para o bom desempenho de
seu trabalho, visto que somente conhecendo o processo de construção do
pensamento infantil, como se dá seu desenvolvimento, como a necessi-
dade de equilíbrio e desequilíbrio, o educador será capaz de respeitá-lo e
direcioná-lo em conformidade para um desenvolvimento harmônico.
Nas Orientações Técnicas de Serviços de Acolhimento (BRASIL,
2009), documento governamental discutido no capítulo anterior, ressalta-
-se a importância da formação da equipe que trabalha nessas instituições.
O preparo para trabalhar com crianças/adolescentes em situação de aco-
lhimento deve ser pré-requisito no momento do contrato, e, em sequên-
cia, a formação continuada desses prossionais. Para isso, acreditamos que
essa formação não deverá ser apenas por recursos próprios da entidade ou
do prossional, mas também ser oferecida pelo governo, como parte de
sua responsabilidade, que, além disso, deve disponibilizar um acompanha-
mento individual e em grupo de assistência psicológica a esses prossio-
nais, como defende Careta (2011).
A preocupação do curso de formação continuada do educador
não deve ser voltada a práticas isoladas, impostas por diretores ou supervi-
sores (estes devem atuar como mediadores e também participantes), tam-
pouco visar a uma receita para inovação ou melhora do sistema de ensino,
mas uma preocupação da equipe de trabalho da entidade (escolas, serviços
de acolhimento, núcleos educativos, entre outros) em reetir sobre o as-
sunto trabalhado, pensar e elaborar novas medidas em sua instituição, as
quais precisam estar em constante avaliação pela equipe, para suprir as di-
culdades de implantação. Assim, “[...] o foco do trabalho encontra-se na
formação de uma equipe de professores que, deixando de ser meros repro-
dutores individuais de receituário pedagógico, venham a ser seus autores
efetivos”. (CARVALHO, 2004, p.438).
Carvalho (2004) salienta que, para a formação continuada surtir
mudanças na instituição de ensino, é imprescindível a participação da equi-
pe ou pelo menos de cinco de seus integrantes, evitando-se atitudes isola-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

das que tornem mais difíceis novas implantações. A esse respeito, Vinha e
outros (2011) apresentam as diculdades de professores que participaram
de um curso de formação continuada sobre “[...] a implantação da justiça
restaurativa como um processo de resolução de conito na escola” (VINHA
e outros, 2011, p. 265). Houve, nas escolas pesquisadas, uma grande di-
culdade de implantação dos “círculos restaurativos
10
, vericando-se ape-
nas ações isoladas e não duradouras, para esses prossionais (tanto os que
participaram do curso, quanto os que não participaram). A diculdade se
deu pelos seguintes fatores: falta de apoio coletivo (direção, coordenação,
colegas); diculdade na divulgação efetiva do projeto para a comunidade
educativa; espaço físico inadequado da escola (falta de sala para realizar os
círculos); e o fato de a escola não considerar a Justiça Restaurativa como
parte do currículo. As autoras ainda identicaram que tal diculdade de
implantação “[...] perpassa por um sistema de ensino não democrático
(VINHA e outros, 2011, p. 286) e, dessa maneira, contribuiu para que
os outros prossionais não aderissem ao projeto ou houvesse um apoio
coletivo. Dessa forma, mesmo que a proposta do curso seja necessária,
segundo as autoras, essa necessidade deve ser sentida pela equipe, para não
ser encarada como algo imposto ou desnecessário. O professor, no decorrer
do curso, deverá participar ativamente, sendo desaado a reetir sobre sua
ação pedagógica que lhe solicite a tomada de consciência, ocorrendo em
um processo de dentro para fora, “[...] expondo-o a situações problemas e
trocas de experiências, visto que o juízo moral desenvolve-se à medida que
as pessoas se confrontam com os problemas sociais e experienciam coni-
tos morais” (VINHA e outros, 2011, p. 288).
Além de sua formação, sua postura será igualmente importante
para o bom desempenho de seu trabalho, pois, se o educador assumir a
postura de constantes lamentações, diante de tamanhas diculdades como
as já citadas, acreditando que não há nenhum problema com seu trabalho,
porque a culpa é sempre colocada em fatores externos,
[...] dicilmente, assumirão uma postura de prossionais reexivos,
atuantes e autônomos, pois estarão sempre isentando-se da necessária
10
Os círculos restaurativos em procedência à Justiça Restaurativa constituem um procedimento em que se
reúnem todas as partes envolvidas em um ato que causou ofensa, para “[...] decidir coletivamente como lidar
com as circunstâncias decorrentes desse ato e suas implicações para o futuro” (BRANCHER, 2006, apud
VINHA et. al, 2011, p.273).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
revisão interna, do reetir nas possibilidades de buscar alternativas viá-
veis. (VINHA, 2000, p.125).
Acreditamos que, para educadores/cuidadores educarem moral-
mente os abrigados, orientando-os para autonomia, a formação destes tam-
bém deve ter sido orientada para tal m, pois como podemos acreditar que
educadores heterônomos formarão indivíduos autônomos? Lukjanenko
(1995) comprova em sua pesquisa que professores com o nível de juízo
moral mais elevado proporcionam um ambiente mais “cooperativo” para
seus alunos do que os professores com o nível de juízo menos elevado.
Conrmando, assim, a necessidade de formação moral desses prossionais
da educação, Buxarrais (1997, p. 25) arma:
É necessário estabelecer uma preparação que proporcione um conhe-
cimento e gere uma atitude que conduza a valorizar a necessidade de
uma atualização permanente em função das trocas que se produzem,
a serem criadores de estratégias e métodos de intervenção, coopera-
ção, análises, reexões, a construir um estilo rigoroso e investigador.
(Tradução nossa).
Aiello (2011) realizou sua pesquisa em uma escola, a m de in-
vestigar se os professores haviam tido, em sua formação inicial, estudos
concernentes à educação moral, se nos horários de estudos coletivos re-
alizados na escola eram abordados temas com essa natureza e como isso
reetia em sua prática. Os resultados obtidos por Aiello (2011) foram de
que não houve, na formação-base nem na formação continuada (realizada
na própria escola) desses prossionais estudos referentes à educação moral.
Nas práticas desses docentes, foi observado que eles atuavam nessa área de
acordo com suas concepções, lidando com seus alunos de modo intencio-
nal, pela transmissão verbal, e não intencional, por meio de suas atitudes
cotidianas. Com isso, demonstrou-se que a moralidade não era encarada
como um dos componentes mais importantes da educação, não sendo,
assim, alvo de debates, reexão e formação.
Se a educação moral é constituída nas relações entre os indivíduos,
as instituições sociais em geral, ainda que se isentando dessa responsabilida-
de, estarão formando moralmente, visto que nelas estão presentes pessoas
de diferentes idades, credos, culturas, valores etc., que convivem durante
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

grande parte do dia. No entanto, qual será a qualidade dessa formação? Para
Carvalho (2002), nas ações éticas dos educadores é que se mostrará a ecá-
cia do ensino de valores, porque um professor justo será capaz de ensinar o
valor e o princípio da justiça a seus alunos, assim como sendo respeitoso e
exigindo respeito por parte dos alunos é, segundo o autor, que se ensina o
respeito, “[...] não como um conceito, mas como um princípio de conduta”.
Entretanto, Carvalho (2002) faz um alerta sobre essa educação, pois, assim
como os valores de respeito e justiça podem ser ensinados, os “vícios” tam-
bém o são, como o desrespeito, a intolerância e a injustiça.
Portanto, conforme Menin (1996), todas as instituições de en-
sino (a autora se refere especicamente a escolas, mas podemos também
incluir instituições educativas em geral), querendo ou não, atuam na for-
mação moral, mas nem todas conduzem essa formação em direção à au-
tonomia. Em acréscimo, contribuem para a perpetuação da heteronomia,
devido ao forte predomínio do respeito unilateral, já que não favorecem a
troca, mas a imposição.
Aprender a moral depende de descobri-la nas relações com os outros;
não aprendemos solidariedade ouvindo a respeito dela, nem hones-
tidade, nem corretude de ações, nem justiça em nosso julgamento
[...] Só sendo solidário com, honesto com, agindo sobre, julgando
alguém, é que aprendemos a fazer bem tais coisas; isso só se aprende
fazendo. (MENIN, 1996, p.62).
Podemos notar, como referem Shimizu e outros (2010), que há
experiências bem sucedidas trazidas por educadores que enfrentam o desa-
o de realizar um bom trabalho em educação moral e em valores, provan-
do que é possível que indivíduos aprendam a pensar sobre temas éticos e
morais, desenvolvendo a capacidade de raciocinar logicamente, agir de for-
ma que seu juízo seja capaz de mudar para melhor tanto a história pessoal,
como a coletiva. Isso é possível, graças a situações de trocas em relações de
reciprocidade em um ambiente cooperativo, no qual não se desvalorizam
os erros, mas, sobretudo, se aprende com eles.

Capítulo 3
QUANDO MUDAR É NECESSÁRIO: DESAFIOS E
DIFICULDADES PARA CONSTITUIR UM AMBIENTE
COOPERATIVO EM UM ABRIGO INSTITUCIONAL
As relações interpessoais nas rotinas dos abrigos são cruciais
para se entender como ocorre o desenvolvimento moral das crianças/ado-
lescentes institucionalizadas.
Ao mesmo tempo em que as crianças/adolescentes devem ser
atendidas em suas necessidades básicas como: moradia, alimentação, hi-
giene, educação escolar, lazer, entre outras; deve-se atentar para sua for-
mação enquanto cidadão, ou seja, o ensino não formal inerente às relações
interpessoais e a qualidade do ambiente que favorece tais relações são foco
primordial do trabalho nessas instituições.
É comum encontrar prossionais na instituição de acolhimento
que expressam grande interesse em atentar para o cumprimento das suas ta-
refas intrínsecas ao cargo que ocupam, visando aperfeiçoar a atenção e o cui-
dado com as crianças/adolescentes em situação de acolhimento. No entanto,
suas ações, muitas vezes, se tornam isoladas dos demais colegas de trabalho.
O resultado para esse tipo de conduta acaba prejudicando a rotina do abrigo,
por não apresentar um plano comum de educação não formal.
Nessa prática de educação, não é raro observar que as relações
estabelecidas junto às crianças/adolescentes, a m de promover sua edu-
cação integral fundam-se, sobretudo, em relações de respeito unilateral à
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

autoridade e às regras dadas. E assim, o cumprimento das regras, por parte
das crianças/adolescentes, torna-se movido principalmente por interesses
pessoais, ou seja, para evitar um castigo ou para ganhar algo oferecido.
Em uma instituição de acolhimento é inevitável estabelecer rela-
ções interpessoais entre seus membros, sendo elas entre as próprias crianças/
adolescentes, destas com os prossionais (independente de seu cargo na ins-
tituição) e entre os próprios prossionais. No entanto, nem sempre, essas
crianças/adolescentes ou mesmo os prossionais de abrigos, possuem espaço
social e coletivo onde possam agir e experienciar valores de respeito mútuo.
Assim, as relações entre eles, via de regra, não se pautam pelos laços de soli-
dariedade e cooperação, mas por uma relação, muitas vezes, de competição e
intolerância. Isso leva a prejuízos para ambos: o desenvolvimento moral das
crianças/adolescentes que ali residem, e as relações de trabalho na instituição.
Como previsto no Art. 3º da Lei nº 8.069 – Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA), de 13 de julho de 1990, é direito de toda criança
o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. Além disso,
tendo por base a teoria de Jean Piaget, de que a troca signicativa com o
meio é condição necessária ao próprio desenvolvimento infantil, tratar de
educação é em primeiro lugar reconhecer o papel indispensável dos fatores
sociais na formação do indivíduo (PIAGET, 1973, p.35). Por conseguinte,
cabe à família o desempenho do papel de educador tanto antes de a criança
ingressar na escola como a manutenção até sua maioridade. Na falta da
família, cabe ao Estado esse papel, conforme regulamentado pelo Art. 101º
do ECA, já citado.
Diante desses apontamentos iniciais, surge o seguinte problema:
Sendo a moralidade um processo de construção que se dá entre as pessoas
e que se desenvolve à medida que os valores morais são construídos, como
gerar um ambiente favorável à tomada de consciência das regras de con-
vivência que promova o desenvolvimento moral das crianças/adolescentes
institucionalizados?
Neste Capítulo relatamos um trabalho de diagnóstico junto aos
funcionários e crianças/adolescentes em um Abrigo Institucional, com o pro-
pósito de avaliar as condições para a proposta de construção de um ambiente
favorável à promoção do desenvolvimento moral das crianças/adolescentes

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
ali acolhidas, orientado para sua autonomia, de sorte a propiciar a promoção
de relações de cooperação e respeito mútuo entre os adultos, entre adultos e
crianças/adolescentes e entre as próprias crianças/adolescentes, favorecendo a
elaboração e o cumprimento consciente de regras de convivência pelas crian-
ças/adolescentes junto aos funcionários da instituição.
3.1 C
ONHECENDO A INSTITUIÇÃO
Para melhor situar o leitor, caracterizaremos a instituição anali-
sando-a conforme as sugestões atribuídas em documento ocial que trata
das orientações técnicas para serviços de acolhimento para crianças/ado-
lescentes (BRASIL, 2009). Em seguida, vamos examinar as relações in-
terpessoais e as estratégias de estabelecimento das regras, cumprimento e
resolução de conitos sociais presentes na instituição alvo deste estudo.
Tal instituição é um Abrigo Institucional situado no interior de
São Paulo/Brasil. Trata-se de uma entidade civil, sem ns lucrativos, de
cunho lantrópico vinculado à doutrina espírita, que tem como objetivo
acolher crianças/adolescentes de 2 a 18 anos incompletos, do sexo mascu-
lino, em situação de risco, abandono e violência doméstica, encaminhados
pelo Poder Judiciário.
As orientações técnicas fazem recomendação explícita com rela-
ção a não segregação de nenhuma natureza. Como vimos, o abrigo não
exclui crianças pelo critério etário, porém, há a segregação em relação ao
sexo havendo com isso a possibilidade de separação entre irmãos.
Devem ser evitadas especializações e atendimentos exclusivos - tais como
adotar faixas etárias muito estreitas, direcionar o atendimento apenas a
determinado sexo [...] O atendimento especializado, quando houver e
se justicar pela possibilidade de atenção diferenciada a vulnerabilidades
especícas, não deve prejudicar a convivência de crianças e adolescen-
tes com vínculos de parentesco (irmãos, primos, etc.), nem constituir-se
motivo de discriminação ou segregação. (BRASIL, 2009, p.63).
Muitos dos funcionários da instituição não são favoráveis ao
atendimento de ambos os sexos, porque alegam que seria uma responsa-
bilidade muito grande, principalmente em lidar com a sexualidade e gra-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

videz prematura, desconsiderando o fato de que esse assunto faz parte da
educação da criança/adolescente e que situações como essa são comuns em
qualquer lar.
A entidade proporciona às crianças/adolescentes: moradia, ali-
mentação, vestuário, educação, saúde, esporte, lazer, cursos, prossiona-
lização e orientação religiosa. O limite de atendimento se restringe a 30
crianças/adolescentes. Recebe apoio da Prefeitura local, como funcionários
e alimentação, uma verba federal e uma verba estadual, além de doações de
empresas e da comunidade.
Como os outros serviços de acolhimento, esse Abrigo Institucional
tem o papel de proteção integral e socioeducativa às crianças/adolescentes
que foram afastados de seus respectivos lares, por se encontrarem em situa-
ção de ameaça e/ou violação dos direitos, usando proteção especial tempo-
rária/abrigo, conforme preconizado pelo ECA (BRASIL, 1990).
As famílias das crianças/adolescentes em situação de abrigo tam-
bém recebem acompanhamento, sendo encaminhadas na questão do empre-
go, atendimento médico, tratamento de alcoolismo/drogadição, orientação
para a conclusão de seus estudos, para ingressarem em cursos prossiona-
lizantes, visando a melhorar a qualidade de vida. Esse acompanhamento é
feito por meio de visitas domiciliares e atendimentos realizados na entidade,
promovendo-se a preservação dos vínculos familiares e a promoção da rein-
tegração familiar, conforme o artigo 92 do ECA (BRASIL, 1990).
Para os adolescentes em situação de abrigo, há ainda o programa
de prossionalização. Estes são encaminhados para cursos e para o mer-
cado de trabalho, a m de que, quando desligados da instituição, tenham
uma prossão e estejam aptos a viverem independentes, na sociedade. Há
também um envolvimento com a comunidade, por meio da promoção de
palestras educativas, passeios, entre outras atividades.
Esse Abrigo funciona em um prédio de construção antiga, com
um estilo de um casarão, possuindo piso superior, inferior, pátio, campo
de futebol, piscina, quadra poliesportiva e horta. Todas as dependências
são usadas exclusivamente pelas crianças/adolescentes, exceto o campo de
futebol, que é frequentemente alugado para terceiros. Ele está localizado
em um bairro residencial e há escolas próximas, o que permite o acesso dos

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
pré-adolescentes e adolescentes à escola sem acompanhamento. Em sua
fachada, há o nome da instituição pintado na parede. Toda a propriedade é
murada e internamente há cercas divisórias separando suas dependências:
casa, horta, piscina, quadra e campo de futebol.
Mesmo que nas Orientações Técnicas (BRASIL, 2009), a suges-
tão para o acolhimento seja em casas pequenas, percebemos que a ade-
quação seria inviável ao local, já que a instituição possui prédio próprio
e, a despeito dessa capacidade, acolhe atualmente cerca de 11 crianças/
adolescentes, um número considerado razoável para uma casa de abrigo.
Um problema que notamos nessa estrutura é a manutenção do nome da
entidade em sua fachada e no transporte coletivo da instituição, porque,
como essa nomenclatura rotula a instituição e seus moradores, é aconse-
lhável não car exposta como é descrito: “Não devem ser instaladas placas
indicativas da natureza institucional do equipamento”. (BRASIL, 2009,
p.64). Os adolescentes evitam usar o transporte da instituição, justamente
para evitar essa identicação.
De modo a não se fazer maiores identicações e respeitar a iden-
tidade da criança/adolescente, não é prática do abrigo o uso de uniformes,
tanto na casa como em passeios e eventos. Essa prática pode ser considerada
adequada, já que a criança se sente livre para ser ela mesma, e não necessaria-
mente reconhecida pela instituição em que habita. Em uma festa promovida
para as crianças/adolescentes que vivem em serviços de acolhimento, que
pudemos acompanhar, a grande maioria das crianças/adolescentes de outras
instituições estava uniformizada, e pudemos perceber o quanto essa prática
é taxativa e discriminatória, mesmo que a intenção seja apenas a de facilitar
aos cuidadores a identicação de suas crianças/adolescentes.
Quanto aos equipamentos do abrigo, seu uso pelas crianças/ado-
lescentes só se dá por meio de supervisão de um adulto. Apesar de algu-
mas vezes ter sido mencionado o emprego e atividades na brinquedoteca,
durante nossas idas ao abrigo, não presenciamos nenhuma atividade nesse
local. O uso dos armários em que se guardam alguns pertences pessoais
também é supervisionado, eles são trancados a chaves e a criança somente
tem acesso a ele quando solicitado e acompanhado por um adulto que
abre o armário. Entendemos que essa prática evita situações conituosas e
preservação dos pertences, mas isso não tem auxiliado o desenvolvimento
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

da responsabilidade e respeito a si e ao outro, além da sensação de não
pertencimento em seu lar. Sobre isso, há uma crítica por parte de alguns
funcionários, como o Participante 1, quando diz: onde já se viu trancar
mochila em armário, na casa da gente não precisa disso, mas aqui precisa”.
Ainda que tenha essa crítica, justica a atitude, declarando que, se deixar
sem trancar, eles rasgam as folhas do caderno”. Percebemos a postura de evitar
a situação-problema, ao invés de administrá-la, trabalhando com as crian-
ças/adolescentes a valorização, o cuidado e o respeito.
As roupas diárias são coletivas (segundo a numeração da etique-
ta, podem ser usadas por qualquer um), enquanto as roupas de passeio e
uniformes de escola são individuais. Ainda que tenham suas roupas indi-
viduais, sabe-se que o uso de roupas coletivas não contribui para o desen-
volvimento do respeito de si, da responsabilidade e da personalidade, de
maneira que pudemos observar, algumas vezes, que crianças picotam suas
roupas com tesoura e, quando as questionamos, elas respondiam: “Não
tem nada, não, ou seja, “já que não é minha e não é de ninguém, não tem
problema”. Percebemos com isso o quão é importante a diferenciação da
individualidade e da coletividade, na educação moral, o sentimento de
valorização e o pertencimento ao grupo.
A organização de condições que favoreçam a formação da identidade
da criança e do adolescente implica o respeito a sua individualidade e
história de vida. O planejamento do atendimento no serviço deve pos-
sibilitar, portanto, espaços que preservem a intimidade e a privacidade,
inclusive, o uso de objetos que possibilitem à criança e ao adolescente
diferenciar ‘o meu, o seu e o nosso’. (BRASIL, 2009, p.21).
Como já mencionamos, a estrutura física da instituição é grande,
abrangendo dependências incomuns a casas e à realidade social das crian-
ças/adolescentes que nela residem. Uma possível solução para esse tipo de
situação é a utilização desses equipamentos disponíveis pela comunidade
(BRASIL, 2009), mas o abrigo estudado encontra diculdade para essa
disponibilização, por falta de funcionários para assegurar atividades com
segurança e por não receber apoio dessa natureza por órgãos do governo
competentes para isso, como, por exemplo, atividades esportivas no campo
de futebol, quadra e piscina.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
No que se refere à rotina da instituição, ela é pré-programada, no
entanto, exível conforme as necessidades apresentadas no dia-a-dia, como
eventos, comemorações, nais de semana e férias escolares.
Como há crianças/adolescentes que frequentam a escola em pe-
ríodos diferentes, sua rotina varia conforme seu horário na escola regular
e em atividades externas, como cursos de música. As principais atividades
apresentadas na rotina são: refeições, realização de tarefas escolares, recre-
ação, escola e descanso.
As atividades de recreação não exigem a participação de todas as
crianças/adolescentes, todavia, os que não quiserem participar devem per-
manecer no local com o educador/cuidador responsável por eles, naquele
momento.
Na rotina do abrigo estão presentes, em média, 11 funcionários
nos dias úteis e 4 funcionários nos nais de semana, sendo, em ambos os
casos, 1 funcionário presente no período noturno. A equipe prossional
apresenta diferença em seu horário de trabalho, assim, a equipe técnica e o
educador/cuidador trabalham na instituição com a carga horária média de
40 horas semanais (estando presentes nos dias úteis da semana), já o horá-
rio de trabalho dos auxiliares de educador/cuidador apresenta um esquema
de plantão organizado por meio de rodízio de 12 por 36 horas. Isto tem in-
terferido no funcionamento da rotina do abrigo e nos relacionamentos en-
tre os funcionários e crianças/adolescentes, pois alguns já mencionaram o
fato de haver avaliação por parte das crianças/adolescentes de seus plantões
(plantão de um ser melhor do que o do outro), gerando um desconforto
e insegurança por parte desses prossionais e a vontade de seu plantão ser
o melhor ou, no mínimo, ser aceito pelas crianças/adolescentes e não ter
problemas de comportamento. Pensamos que, no caso desse abrigo, o uso
de turnos estaria prejudicando o estreitamento do vínculo com as crianças/
adolescentes e abrindo margem à competição. Para esse tipo de situação, a
sugestão das Orientações Técnicas são as seguintes:
Para que o atendimento em serviços de abrigo institucional possibilite
à criança e ao adolescente constância e estabilidade na prestação dos
cuidados, vinculação com o educador/cuidador de referência e previ-
sibilidade da organização da rotina diária, os educadores/cuidadores
deverão trabalhar, preferencialmente, em turnos xos diários, de modo
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

a que o mesmo educador/cuidador desenvolva sempre determinadas
tarefas da rotina diária. (BRASIL, 2009, p.64).
Ainda quanto aos funcionários, pudemos constatar que, em ge-
ral, eles não participam de cursos de formação continuada para o trabalho
na instituição. Quando acontece algum curso, há um ou dois funcionários
que representam o abrigo, geralmente os Participantes 1 e 2. Há também,
raramente, capacitações promovidas por órgãos do governo municipal, na
própria entidade que envolve todos os funcionários; mesmo a proposta
de estes serem de capacitação prolongada, ocorrem uma única vez e não
têm continuidade. Sabemos que a formação continuada desses prossio-
nais é extremamente importante para o seu trabalho na instituição, com
momentos em que possam compartilhar suas dúvidas, angústias, apren-
der conteúdos teóricos que auxiliam em sua prática, momentos em que
dialogam com seus colegas de trabalho, em busca de novas estratégias de
intervenção na rotina, além de manterem apoio mútuo e solidariedade, no
que concerne aos problemas que cada um enfrenta em seu dia-a-dia na en-
tidade. Essa formação continuada, assim como a capacitação introdutória
e a capacitação prática (no caso do educador/cuidador), são indicações das
Orientações Técnicas (BRASIL, 2009, p.59-60), que abrangem os seguin-
tes itens a serem desenvolvidos:
Reuniões de equipe periódicas (discussão de casos, fechamento de
casos, construção de consensos, revisão/melhoria da metodologia)
Formação continuada sobre temas recorrentes do cotidiano, assim
como sobre temas já trabalhados na fase de capacitação inicial,
orientada pelas necessidades institucionais (promovida pela pró-
pria instituição e/ou cursos externos)
Estudos de caso
Supervisão institucional com prossional externo
Encontros diários de 15-20 minutos entre os prossionais dos di-
ferentes turnos para troca de informações
Grupo de escuta mútua
Espaço de escuta individual
Avaliação, orientação e apoio periódicos pela equipe técnica.
Outro fator que merece a nossa atenção é o tempo de permanên-
cia com que as crianças/adolescentes estão acolhidas. Segundo dados a nós

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
fornecidos, havia crianças com 6 anos de abrigo e adolescentes com 14 anos
de abrigo. Esse tempo é considerado elevado para a permanência de uma
criança/adolescente no abrigo. Apregoa-se que o tempo em abrigo deve ser
inferior ao período de dois anos, devendo a criança ser encaminhada para
reintegração familiar (família nuclear ou substituta), de maneira que a per-
manência por um período superior da criança e adolescente deve somente
ocorrer em “caráter extremamente excepcional” e ser “[...] fundamentada
em uma avaliação criteriosa acerca de sua necessidade pelos diversos órgãos
que acompanham o caso”. (BRASIL, 2009, p.12-13).
A partir desse último dado, podemos ser levados a pensar que
a longa permanência dessas crianças/adolescentes no abrigo favoreceu o
aumento do vínculo entre eles e funcionários, no entanto, não é isso que
podemos vericar nas relações interpessoais na rotina do abrigo. Não po-
demos dizer que não há vínculos afetivos, mas uma fragilidade nestes, que
tem prejudicado as relações. O vínculo afetivo faz-se importante para o
bom envolvimento social e o desenvolvimento moral.
[...] os encontros entre iguais ou entre adultos e jovens são um ele-
mento primordial da cultura moral, que permitem estabelecer vín-
culos pessoais imprescindíveis para sentir-se membro da coletivi-
dade e envolver-se em tudo aquilo ajuda a fazer-se [...]. (MARTÍN
GARCIA; PUIG, 2010, p.131).
Percebemos que o envolvimento tanto dos funcionários como
das crianças/adolescentes na rotina do abrigo se dá por sequências de ati-
vidades inerentes a cada função. As atividades desenvolvidas pelos fun-
cionários são atribuídas por um funcionário responsável à manutenção
de cada setor. As atividades desenvolvidas pelas crianças/adolescentes são
direcionadas por um educador/cuidador, nos casos de nais de semanas,
elas são direcionadas por um auxiliar de educador/cuidador. Pelo fato de
as atividades com as crianças/adolescentes serem pré-estabelecidas em sua
rotina, há cobranças e indignação quando alguma atividade, julgada por
eles como prazerosa, não ocorre; o resultado dessa cobrança é a explicação
de seu motivo pelo educador, e algumas vezes ela é renegociada.
As relações entre as crianças/adolescentes acontecem de forma
geral por competição, muitas vezes simples acontecimentos geram disputa
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

entre eles. Em uma de nossas observações, um grupo de crianças/adoles-
centes estava na “sala de estudo” fazendo a tarefa escolar, os que iam termi-
nando a tarefa começavam uma atividade de confecção de pulseiras junto
ao Participante 4; um dos meninos que sentara perto deste saiu de seu
lugar, quando retornou havia duas crianças sentadas nessa mesma cadeira,
então o menino que retornou começou a brigar e empurrar as crianças
que, a seu ver, estavam “tomando seu lugar”. Depois de muito empurra-
-empurra, o Participante 4 interveio, primeiro pedindo para que o menino
que havia saído se sentasse à mesa da tarefa, pois ele ainda não a tinha ter-
minado, mas o menino não quis ouvi-lo e, como continuasse a empurrar
os dois outros, o Participante 4 pediu para que os dois garotos saíssem e
deixassem o menino voltar a sentar-se naquela cadeira. E assim se deu a
solução do conito.
Nesse exemplo, o Participante 4 conduziu a resolução do conito
por ele mesmo, não intermediando para que os envolvidos chegassem a
uma solução, mas impôs sua solução sem mais questionamentos. Esse tipo
de intervenção faz com que a diculdade de relacionamento entre essas
crianças não seja superada nem haja o exercício do respeito mútuo.
Vericamos poucas relações de amizade entre crianças/adolescen-
tes, mesmo entre os próprios irmãos. Percebemos que, nas brincadeiras
livres, grande parte dos meninos brinca sozinho. Geralmente, quando há
um brinquedo coletivo, como jogo de tabuleiro, os adolescentes que estão
jogando lideram à sua maneira sobre os menores, e como muitas vezes os
maiores querem obter vantagens, os menores se revoltam e surgem brigas,
que são resolvidas frequentemente pelos funcionários. Um dos princípios
para o domínio socioemocional descrito por Kamii e DeVries (1991) é
o adulto encorajar a criança a interagir com outras crianças e resolver os
conitos entre elas mesmas, mas percebemos nas observações uma falta
de paciência por parte dos funcionários em lidar com essas situações e,
ao invés desse estímulo, acabam resolvendo eles próprios os conitos, não
colaborando com o desenvolvimento moral da criança, seu envolvimento
social e o relacionamento afetivo entre elas.
Durante nosso período de observação, observamos que há a pre-
dominância do respeito unilateral na relação estabelecida entre funcioná-
rios e crianças/adolescentes, no entanto, pudemos presenciar igualmente

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
relação de respeito mútuo, em que, mesmo havendo a presença de autori-
dade do adulto, houve o respeito pela criança, permitindo que estas pudes-
sem fazer escolhas, colocar o seu ponto de vista e a mediação construtiva de
resolução de conitos, especialmente em alguns momentos na prática do
Participante 3. A seguir, relataremos um exemplo dessa prática:
Em um dia em que as crianças/adolescentes estavam reunidos na sala
de vídeo para assistirem a um lme, o Participante 3 fez uma eleição
entre eles para escolher, dentre alguns lmes, qual gostariam de assistir.
Quando ele foi questionado por um dos meninos que teria que assistir a
um lme que não havia escolhido, ele explicou para a criança que nem
sempre dá para agradar a todos e o lme posto deveria ser o mais votado.
Esse funcionário não questionou se as crianças queriam assistir ou
não a um lme, mas, dentre os lmes que havia selecionado, qual seria o
escolhido. Em alguns momentos, não cabe à criança escolher qual atividade
irá fazer, como, por exemplo, se irá se alimentar ou não, se tomará banho
ou irá brincar, entretanto, há pequenas escolhas que a criança poderá fazer,
como na atitude do Participante 3. Esse é outro princípio do domínio socio-
emocional descrito por Kamii e DeVries (1991, p.33), o de “[...] encorajar
a criança a tornar-se cada vez mais autônoma em relação aos adultos”; o que
não quer dizer, como ressaltam as autoras, que a criança terá pleno domínio
e liberdade, mas, assim como a atitude descrita acima, pode-se proporcionar
meios de ela fazer pequenas escolhas. Contudo, “[...] os adultos devem exer-
cer sua autoridade para que possa promover um meio físico e psicológico
estável” para a criança (KAMII; DEVRIES, 1991, p.34).
Infelizmente, essa não é uma prática constante dos prossionais
da instituição. Em alguns nais de semana em que os responsáveis pelas
crianças eram os auxiliares de educador/cuidador, pudemos observar a ma-
neira com que alguns deles se relacionam com as crianças. Constatamos al-
guns momentos de mimo, sendo algumas vezes permissivos. Um exemplo
disso foi o fato de um pré-adolescente agir com desrespeito com um dos
funcionários; no começo, a atitude deste foi não ligar para o desrespeito,
depois, com a persistência do fato, esse funcionário lançou ameaças, de-
clarando que iria falar para outro funcionário e este tiraria alguma coisa
dele (como um passeio programado). Esse não foi um exemplo isolado,
porque, em outros momentos de nossas observações, vericamos relações
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

semelhantes a essa, como emitindo frases do tipo não vou me desgastar
com você. Com esses exemplos, percebemos que alguns funcionários não
acreditam que também desempenham no abrigo a função de educador e,
consequentemente, não agem e exercem sua autoridade como tal. Em con-
sequência, as crianças/adolescentes não os respeitam e tomam para si uma
liberdade não assistida, conrmando a opinião de Ramos e outros (2011,
p.308), atribuindo um dos fatores de indisciplina à não colaboração, por
parte do educador, para a superação do problema, de forma que “terceiri-
zam” os problemas a outros integrantes da equipe “[...] como se de fato o
problema não lhes pertencesse”.
Durante um período de nossa observação ocorreu a troca da di-
retoria do abrigo e, com isso, a instituição estava passando por um período
de transição comum a toda mudança. Nesse período de adaptação à nova
diretoria, observamos constantes angústias por parte de alguns funcionários,
alguns deles declararam que diretoria e funcionários não estavam se enten-
dendo, pois a diretoria está querendo implantar práticas que estão entrando em
conito com as dos funcionários. Queixaram-se de que com isso as crianças
estavam sentindo o clima conituoso e o ambiente da entidade turbulento,
elas estavam cando mais agressivas e desrespeitosas com os funcionários,
mesmo com aqueles que respeitavam mais. Pudemos presenciar exemplos
disso, em constantes cenas de desacato e insultos a funcionários.
Em uma roda de conversa entre o Participante 4 e crianças/ado-
lescentes, esse participante quis saber dos meninos o que estava acontecen-
do, no entanto, nenhum deles se pronunciou. Então, pedimos licença para
fazer uma pergunta a eles, mostramos nossa estranheza no comportamento
deles e perguntamos se eles saberiam dizer se havia algum motivo para
isso e qual seria. Enm, eles justicaram esse comportamento dizendo:
não é nós que quer, é o (aponta para baixo) que tenta a gente; voltamos a
questionar: mas vocês não têm forças para fazer o que vocês querem, ou ele
sempre manda em vocês? Então, uma das crianças respondeu: “um começa,
aí a gente pode fazer também. Infelizmente, nossa conversa teve que ser in-
terrompida, pois o horário estava curto e precisavam descer para a quadra;
pedimos para que eles pensassem em como isso poderia ser resolvido.
Com esse episódio, ca claro para nós que a desunião entre os
funcionários e entre funcionário e diretoria gera consequências desagra-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
dáveis para todos os integrantes da entidade. Como supracitado, Kamii e
DeVries (1991) armam que o adulto deve ser responsável em propiciar
um ambiente estável para que as crianças possam se desenvolver, porém,
nesse momento de transição, as crianças sentiam e presenciavam o clima
de desequilíbrio dos funcionários e, com isso, agiam com indisciplina e de-
safeto. Ao serem indagadas, as crianças passam a responsabilidade de suas
ações para “espíritos do mal”, isentando-se de qualquer culpa. Todavia, a
justicativa dessas crianças, embora nos pareça fantasiosa, foi uma repro-
dução do que estavam escutando recentemente, pois um dos adultos da
instituição declarava que o caso do desrespeito e de constantes crises de
rebeldia se dava às “perturbações espirituais”. Sem desejar entrar no mérito
religioso, questionamos essas crianças se eles não tinham forças para vencer
essa “força ruim”; percebendo que estavam se colocando como fracas, de-
cidem mudar o discurso, justicando o seu comportamento em reexo ao
comportamento do outro e, mais uma vez, se isentam da culpa e controle
da sua ação, atitude própria da tendência heterônoma, em que o sujeito é
constantemente governado exteriormente, diferentemente da autorregu-
lação, em que o indivíduo se esforça para “[...] dirigir por si mesmo sua
própria conduta”. (PUIG, 1998a, p.112). Essa roda de conversa seria um
momento muito valioso para criar um espaço de reexão e discussão com
as crianças/adolescentes, porém, não houve possibilidade de ocorrer tal
conversa em outro momento.
Quanto ao relacionamento entre os funcionários, apesar de ou-
virmos queixas de desrespeito e intolerância, não presenciamos, durante
nossas observações, esse tipo de situação. Presenciamos, outrossim, alguns
desentendimentos concernentes à dinâmica de ação nas atividades com as
crianças/adolescentes, como mudança repentina de horários ou impedi-
mento de cumprir alguma atividade planejada (sobretudo em idas à quadra
poliesportiva ou atividades com computador). Houve também momentos
em que não se entendiam quanto à mediação de conitos envolvendo as
crianças. Exemplicaremos esse caso relatando a seguinte situação:
Um dos membros da nova diretoria frequentemente se relacionava com
as crianças de maneira carinhosa. Em situações conituosas, tendia a
amenizar com carinhos e abraços; uma das situações em que ele estava
abraçando e fazendo carinho em uma das crianças, o Participante 4
informou que essa criança estava sendo extremamente desrespeitosa
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

com ele e com os colegas e, além disso, não estava cumprindo com
seus afazeres diários. Nesse momento, a criança começa a agredir ver-
balmente o participante, então esse membro disse para criança que em
alguns momentos devemos car de boca fechada e lavada com a água
puricadora de Chico Xavier, e começou a explicar para ela o que seria
essa água e o que ela faria.
Esse exemplo revela que a intenção de resolver o problema não foi
alcançada pelo Participante 4 e que ele se desautorizou ainda mais, diante
da criança, ao tentar transferi-lo ou compartilhá-lo. Não dizemos que não
podemos compartilhar os problemas enfrentados na dinâmica da rotina da
instituição, porém, esse funcionário escolheu fazer isso com a presença da
criança e de uma maneira acusatória. Caso ele quisesse compartilhar suas
angústias e trocar experiência, poderia tomar essa atitude em um momento
restrito ao relacionamento entre funcionários. Entretanto, caso quisesse
resolver o problema com a presença da criança, poderia rever a sua lingua-
gem e a maneira de abordar o assunto e, para isso, promover um momento
especíco para tratar daquela situação. A ideia é resolver o problema e não
criar uma situação com proporções tais que seja difícil de resolver. Por essa
razão, há a necessidade de formação continuada do prossional que traba-
lha em serviços de acolhimento; assim,
[...] é fundamental o acompanhamento sistemático do prossional,
incrementado com capacitações continuadas. As demandas de um
serviço de acolhimento exigem resolutividade, rapidez e mobilidade,
pois, com o passar do tempo [...] há grande probabilidade de se cair
na rotina, agindo sem reetir sobre o atendimento que está sendo re-
alizado. Além disso, os casos atendidos nesses serviços acabam afetan-
do de alguma forma emocionalmente os prossionais. Por toda esta
realidade, algumas atividades de acompanhamento são extremamente
importantes no sentido de melhorar o desempenho do prossional, a
qualidade do atendimento institucional e o bem-estar das crianças e
dos adolescentes acolhidos. (BRASIL, 2009, p.59).
Nesse período de observação, não notamos nenhuma construção
de regras com as crianças/adolescentes ou mesmo funcionários, e também
não havia nenhuma espécie de mural ou cartaz com regras formuladas.
Quando presenciamos alguma situação em que se pronunciasse alguma

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
alusão a regras, era com falas como: ele sabe que isso não deve fazer” ou “já
falamos muito sobre isso.
Os problemas entre as crianças/adolescentes são encarados por al-
guns funcionários como de difícil solução, razão pela qual muitos deles os
transferem para outros integrantes da equipe, e as medidas mais frequentes
para a resolução acontecem por retirada de algo agradável para a criança.
Exemplicaremos:
Certa vez, um dos garotos ao utilizar o banheiro, o sujou esfregando
fezes pela parede e porta; o funcionário responsável em lavar o ba-
nheiro levou o fato para o funcionário encarregado de supervisionar
os trabalhos da casa, o qual disse para o menino limpar o banheiro.
Outros garotos foram ajudá-lo e acabaram fazendo uma bagunça ainda
maior: o funcionário cou irritado e discutiu com os garotos. Um deles
(que estava ajudando) cou nervoso e não aceitou a repreensão, sendo
desrespeitoso com este funcionário. Como era próximo ao Natal, esse
funcionário ameaçou que esse garoto não iria ganhar o MP5 que ela
havia solicitado para todos. Então, o menino respondeu-lhe que não
queria o MP5, que havia pedido MP4. O funcionário cou muito cha-
teado pelo desrespeito do garoto, pois, segundo ele, estava sendo muito
difícil conseguir ganhar os presentes, e eles não demonstram nenhuma
gratidão por esse sacrifício.
Depois de alguns dias, tentamos conversar com esse funcionário sobre
o que tinha acontecido e qual seria a melhor atitude a ser tomada,
no entanto, ele nos disse que o problema já tinha sido resolvido, o
menino já havia lhe pedido desculpas e tudo estava bem. Levou-nos
até a “sala de aula” em que as crianças estavam e disse a elas a respeito
dos presentes que ele estava conseguindo para eles e o que ele esperava
deles. Desse modo, não conseguimos direcionar a conversa com ele
da maneira que esperávamos, mas não insistimos, porque acreditamos
que aquele não era um momento adequado, já que não demonstrava
interesse em estabelecer um diálogo.
Podemos constatar que, nessa situação, o problema inicial tomou
uma proporção ainda maior com as medidas de solução empregadas, des-
de a atitude do primeiro funcionário, que transferiu sua responsabilida-
de de interferir naquele momento para outro funcionário, da sanção sem
acompanhamento (lavar todo o banheiro), a revolta daquela criança que
se propôs ajudar o colega e sua consequência (car sem o presente). Em
acréscimo, o maior problema, na visão desse último funcionário, foi a “in-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

gratidão” do menino, que “não reconheceu” seu esforço em conseguir doa-
ções de brinquedos, “desrespeita-o” e se mostra satisfeito, acreditando que
o problema estava resolvido, porque essa criança lhe pedira “desculpas”.
Contudo, esse funcionário não percebeu que seu “ensinamento” somente
frisara a obediência como interesse e que, agindo dessa forma (obediência
externa), as crianças sempre obteriam vantagens. Vericamos, com isso, a
fragilidade emocional do funcionário e a necessidade de ser assistido quan-
to a sua vulnerabilidade no trabalho da instituição e, além disso, a necessi-
dade de formação continuada desses prossionais sobre o desenvolvimento
moral das crianças/adolescentes voltado para a autonomia e sua função
nesse desenvolvimento.
As analises até o momento se referem às observações sistemáticas
realizadas com o objetivo de diagnóstico. Para ampliar as conclusões a res-
peito de como se dão as relações interpessoais entre os atores da instituição
(crianças/adolescentes, funcionários e diretoria) que possam inuenciar na
construção da moralidade autônoma dos abrigados realizamos entrevistas
clínicas com as crianças/adolescentes e três reuniões com os funcionários
além de continuar com observações não sistemáticas ao longo de todo o pro-
cesso. Pudemos contar também com dados obtidos previamente em outro
estudo na mesma instituição que levantou por meio de entrevistas semiestru-
turadas com as crianças/adolescentes a visão que tinham do abrigo.
Relataremos em primeiro lugar os resultados obtidos junto aos
funcionários participantes desse estudo. Foram considerados participantes
aqueles funcionários que estiveram presentes em todas as etapas do estudo,
assim, contamos com 10 funcionários, sendo 07 do gênero feminino e 03
do gênero masculino. Contudo, nos relatos aqui apresentados, utilizamos
sempre o gênero masculino, referindo-nos ao participante. Isso generaliza
o relato e serve para a não identicação dos mesmos.
Nas três reuniões realizadas, os temas abordados foram respectiva-
mente: Autonomia e Heteronomia; Respeito Mútuo e Respeito Unilateral;
Justiça. Para todos os temas houve exposição do conteúdo e discussão entre
este e a rotina dos funcionários na instituição.
Os funcionários se mostraram interessados em conhecer o projeto
e participaram das discussões instigadas pelos temas. Em duas das reuni-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
ões, esteve presente um membro da diretoria da instituição; nessas reuniões,
a participação dos funcionários foi perceptivelmente mais discreta do que
nas reuniões em que ele não estava presente, evidenciando certo constran-
gimento por parte dos funcionários em expor seus pontos de vista e discutir
abertamente sobre os problemas enfrentados, diante da gura de autoridade.
Ele frequentemente se manifestava, discutindo o tema de maneira coercitiva
para com os funcionários. Essa situação nos permitiu questionar quais as
relações estabelecidas entre funcionários e diretoria. Tais relações devem ser
pensadas da mesma forma que as relações estabelecidas entre os prossionais
e crianças/adolescentes, segundo Vinha e outros (2011, p.294):
Da mesma forma que queremos que a escola ofereça esse ambiente
cooperativo favorável à construção da autonomia para nossas crianças
e jovens, é preciso que a escola questione sobre a qualidade da relação
que está sendo estabelecida com os prossionais em educação, ou seja,
estas estão sendo favoráveis ao desenvolvimento da autonomia do pró-
prio professor?
Em alguns momentos das reuniões, esse membro da diretoria tra-
zia dúvidas em relação a sua obrigação enquanto autoridade, para o fun-
cionamento da entidade, e de como ele poderia manter o respeito de outro
modo que não numa relação unilateral:
Mas se, por exemplo, eu mantiver esse respeito mútuo, muitos dos funcio-
nários vão interpretar isso como se eu fosse “frouxo”, muitos não respeitam
essa postura e interpretam de outra forma.
11
Essa fala demonstra que não foi realmente entendido o sentido
do respeito mútuo e como funciona, em um grupo democrático. Neste, o
líder não deixa de ter autoridade, no entanto,
[o] líder democrático ou participativo fomenta a participação e a to-
mada de decisões [...] Elas resultam de discussões propostas pelo líder
e levam em conta as opiniões do grupo [...] Isso não quer dizer que
renuncie à capacidade de inuir que é fundada na sua competência
(poder de expert), a sua habilidade para as relações (poder carismático)
ou inclusive, à possibilidade que tem de premiar (poder de recompen-
11
As falas dos participantes aparecerão sempre em itálico. Quando houver diálogo entre os autores e participantes,
a fala dos autores aparecerá em normal e a dos participantes em itálico.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

sa). Ele também utiliza o poder coercitivo, mas como exceção ou como
último recurso. (PARRAT-DAYAN, 2011, p.70-71).
Ao abordarmos a questão da mentira no desenvolvimento moral,
o Participante 2 mostrou-se claramente interessado nesse tema e sua pos-
tura era a de saber se ele estava agindo certo ou não, como se tivéssemos a
função de corrigir suas ações. Ele salienta: “Eu entendi o que vocês falaram
sobre a mentira, mas eu gostaria de aprender aqui hoje com vocês e mudar se
eu estiver errado”.
Sabemos que o exercício da autonomia “[...] exige uma reexão
crítica, um ato do pensamento sobre as regras a que nos submetemos
(MENIN, 1996, p.41). Nesse sentido, parece que não estava claro para o
grupo que o planejamento de um trabalho coletivo deveria sair do coleti-
vo e não de “professores que estão ali para ensinar”. Talvez o formato das
reuniões, como estudo e exposições de conteúdos, mesmo sendo fomenta-
das as discussões do grupo como uma “mesa redonda”, proporcionou para
alguns participantes a ideia de que estávamos ensinando condutas, o que
não era nossa intenção e constantemente os alertávamos com relação a isso.
Consideramos a participação de alguns funcionários extrema-
mente produtiva para o prosseguimento do estudo, pois havia o relato de
problemas condizentes ao desenvolvimento da autonomia, tanto das crian-
ças/adolescentes quanto dos próprios prossionais, vericados na rotina
do abrigo, ainda que frequentemente se reconhecessem como vítimas da
gestão da instituição, de falhas no comportamento de outros funcionários
(relacionamentos, falta de interesse na educação das crianças/adolescentes,
não cumprimentos das regras etc.) e das próprias crianças/ adolescentes.
Como o caso do Participante 8, que ressaltou o quão difícil é a educação
moral, porque, segundo ele, as crianças que vivem no abrigo, muitas vezes,
trazem valores de suas casas que são incompatíveis com o apregoado por
muitos dos funcionários, a exemplo da forma violenta com que resolvem
os conitos. Ele alega que é muito difícil mudar esses valores. Carvalho
(2002), porém, arma que as atitudes do educador são um forte instru-
mento para a educação moral e ética, não se ensinam valores falando so-
bre eles, mas agindo conforme tais valores. Ao mencionar que as crianças
trazem de suas casas condutas violentas e que por isso é difícil estabelecer

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
uma forma diferente de resolução de conitos, por exemplo, o Participante
8 desconsidera a importância de sua ação no processo de educação moral
das crianças.
No que se refere ao fato de os funcionários não estarem se enten-
dendo quanto ao estabelecimento da educação das crianças/adolescentes,
isso estava gerando um problema de comunicação que, de forma geral,
era reconhecido por todos, no entanto, era para eles de difícil solução.
Acreditamos que isso estava ocorrendo devido a uma diculdade em tomar
a iniciativa para resolver tal problema, o que consequentemente reetia
na educação das crianças. A opinião constante entre os funcionários era
de não falarem a “mesma linguagem”, e que isso seria fundamental para o
bom andamento do trabalho na instituição, como relata um deles:
Aí entra aqui, que o funcionário não fala a mesma linguagem [...] porque
o período crítico aqui dentro da entidade é das cinco às sete e meia da
tarde, da janta até sete e meia. Então tem funcionário aqui [...] que tem
pulso forte, tem plantão que não tem. Por quê? Porque esses que eles falam
que tem pulso forte, tem autoridade aqui dentro [...]. [A gente] tá pedindo,
tá pegando prato, tá pedindo [por] favor, tá levando pra lá, e [as crianças]
não obedece. Outro funcionário chega para a televisão, e diz para as crian-
ças: “oh, silêncio ou não vai ter lanche” todo mundo senta e ca quietinho,
ela virou as costas começa a anarquia, se ela car aqui tá tudo em paz, por
quê? Porque tem o que tirar. Outra chega, dá um tênis, dá um chocolate,
agrada, agora como a gente não tem o que tirar é só falar, pra ele tanto faz.
Por isso que não fala a mesma linguagem, eles vão obedecer aqueles que vai
favorecer a eles. (Participante 8).
Com a fala desse funcionário, podemos reetir sobre dois pontos
diferentes: o uso da mesma linguagem e a relação de respeito. Na questão
da linguagem, percebemos que, para os funcionários, deveria haver um
consenso na maneira de se educar as crianças, todavia, não se discute qual
a forma adequada de se estabelecer essa educação, de modo que, em mui-
tos momentos, vericamos que grande parte desses educadores é favorável
a falas que impõem sua autoridade. Com efeito, essa “mesma linguagem
pode ser classicada em três tipos diferentes, como esclarece Vinha (2000):
linguagem acusatória (quando atacamos alguém ou acusamos), linguagem
paternalista (estado superprotetor, não dá margem à ação do sujeito) e
linguagem descritiva (buscam-se apresentar os fatos como eles são, pro-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

curando interpretar os sentimentos, desejos, o que se está vendo ou, en-
tão, colocar um problema a ser resolvido). Nesse sentido, vemos não só a
necessidade de estabelecer entre os educadores uma “mesma linguagem”,
mas também de analisar a qualidade dessa linguagem e optar pela mais
adequada à educação moral.
[...] é importante ressaltar que essa coerência não se refere somente às
normas ou à postura de um mesmo educador, mas diz respeito também
a harmonia de ideias e atitudes dos adultos que são os responsáveis pela
educação da criança. (VINHA, 2000, p.268).
No que concerne ao respeito estabelecido em alguns momentos,
como presente na fala desse funcionário, há o uso excessivo da coação adul-
ta por parte de alguns funcionários e da negligência de autoridade por
parte de outros, pois estes, vendo que sua “ordem” não alcança a obedi-
ência, desistem ao se verem perdidos diante de situações de desrespeito,
além de crerem que isso acontece porque eles “[...] não têm o que dar nem
o que tirar”. Como já vimos, segundo Piaget (1930/1996), tanto a atitude
de coação quanto os procedimentos puramente verbais não alcançam a
autonomia moral, já que a primeira conserva a necessidade de sempre ser
governado pelo outro, enquanto os últimos não permitem experiência e
autocrítica. A própria fala desse participante retrata que nem um nem o
outro tipo de educação escolhida por eles está surtindo efeito, uma vez que
todo mundo senta e ca quietinho, ela virou as costas começa a anarquia, se
ela car aqui tá tudo em paz”. Para ele, essa “paz” ocorre porque aquele fun-
cionário “tem o que tirar” e ele não, no entanto, sabemos que, nessa relação
de respeito unilateral, com a ameaça ou a vingança do adulto, pode-se al-
cançar a obediência da criança em curto prazo, mas ela não será o bastante
para educar moralmente, de forma que se colabore para o desenvolvimento
da autonomia, como já mencionamos.
O líder autoritário ou autocrático concentra todo poder, é diretivo e
controlador [...] O líder permanece separado da vida do grupo e inter-
vém apenas para direcionar o trabalho ou fazer demonstrações quando
as crianças apresentam diculdades. Utiliza um sistema de prêmios e
castigos. Neste tipo de liderança valoriza-se a disciplina, a obediência
ao líder e a eciência [...] No caso do líder autoritário, a produtividade
do grupo é boa (ainda que uniforme, isto é, com uma redução das di-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
ferenças individuais) apenas quando o chefe está presente. (PARRAT-
DAYAN, 2011, p.70-72 grifo do autor).
Observamos, no decorrer das reuniões, que muitos dos funcioná-
rios não se identicam como educadores e, por essa razão, não têm uma
postura dessa ordem. Constatamos também a diculdade de alguns fun-
cionários construírem uma autocrítica, fazendo uso, frequentemente, de
falas defensivas ou apontando o que consideram atitudes erradas cometi-
das por outro funcionário.
Em uma das reuniões, antes do seu início, deu-se um caso de
desrespeito e violência de um pré-adolescente para com o Participante 6, o
qual cou muito aborrecido, a ponto de ele chegar chorando e querendo
desabafar. Outro funcionário igualmente relatou sua angústia concernente
à falta de respeito das crianças para com os funcionários. Colocou-se no
papel de vítima da situação, manifestando a vontade de agir como eles e
lamentando não poder fazê-lo, evidenciando uma confusão entre o papel
do educador e do educando:
Quando um menino xinga e a gente vai responder, alguém diz: “Calma!
Ele é revoltado”, Revoltado tá agente, porque eles xingam a gente de vários
nomes [...] (Funcionário).
12
Desse modo, torna-se evidente que, para trabalhar em serviços
de acolhimento, o funcionário deve ser capacitado e ter experiência em
atendimento à criança e ao adolescente, como bem sugerem as Orientações
Técnicas para Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes
(BRASIL, 2009); além desse preparo, sua postura dever ser adequada como
a de um educador, de sorte a não adotar o mesmo nível de comportamento
da criança ou do adolescente.
É necessário estabelecer uma preparação que proporcione um conhe-
cimento e gere uma atitude que conduza a avaliar a necessidade de
uma atualização permanente em função das mudanças que se produ-
zem, a ser criadores de estratégias e métodos de intervenção, coope-
12
Dentre os funcionários apenas dez foram chamados de participantes quando citamos suas falas por terem
estado presentes durante todo o período do estudo. Os demais, em suas falas, são chamados de funcionários.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

ração, análises, reexão, a construir um estilo rigoroso e investigador.
(BUXARRAIS, 1997, p.25, tradução nossa).
Nas declarações dos participantes, há muitos pontos que deve-
riam ser trabalhados para que as crianças/adolescentes possam ter parti-
cipação mais ativa na instituição e poderem se autogovernar, a começar
principalmente pela formação e orientação dos funcionários, que frequen-
temente se encontram fragilizados diante de certas situações, sem saber a
melhor maneira de enfrentá-las e resolvê-las.
Apesar dos esforços para discutir o conteúdo das reuniões da ma-
neira mais acessível possível, notamos que cava difícil para alguns funcio-
nários entendê-lo. Uma medida encontrada para haver melhor compreen-
são foi a utilização de exemplos práticos, entretanto, principalmente em
relação à questão da justiça retributiva e distributiva, ainda houve dicul-
dade de entendimento. Buscamos exemplos ocorridos no próprio abrigo,
por meio dos relatos dos funcionários, e indagamos qual foi a estratégia de
resolução: mesmo depois de investigarmos com eles qual seria a intervenção
mais adequada para estabelecer a educação moral voltada para autonomia,
grande parte dos funcionários armava acreditar na justiça retributiva, so-
bretudo na sanção expiatória como melhor forma de resolução. Mais uma
vez, aqui vimos sobressair a relação unilateral e a necessidade de estabelecer
o controle para obter os resultados esperados, mesmo que isso aconteça em
detrimento da justiça para as crianças não envolvidas no problema. Como
demonstra o seguinte exemplo:
O lanche que eles levavam para escola. A escola oferece o lanche, mas nós
dávamos para eles levarem, dávamos, porque eles estavam vendendo ou
trocando [...] por mais que foram orientados, por mais que a gente con-
versava, [...] a gente cava sabendo que eles vendiam ou trocavam, nós
acabamos com o lanche: ‘Se vocês querem comer lanche, vão comer o da
escola (Participante 1).
De fato, esse assunto é realmente muito delicado, porque sabe-
mos o quão difícil é pensarmos quais os melhores procedimentos a serem
tomados em face de uma infração cometida por um indivíduo. Em um
primeiro instante, podemos até apelar para a mais primitiva das sanções,

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
a sanção expiatória, a m de que, por meio dela, o infrator sinta “na pele”
a consequência de seu ato e não volte mais a cometê-lo ou, ainda, que os
outros, vendo o seu castigo, não queiram cometer a mesma falta. Contudo,
como educadores, não seria melhor sermos conscientes de que nossas estra-
tégias devem ser direcionadas para o aprendizado desse indivíduo, para que
ele não cometa mais tal falta por ter compreendido que ela não é adequada,
não sendo justa para si e para os outros?
Nas reuniões, foi frequente escutarmos que a orientação e a con-
versa não estão adiantando, conforme ressaltou um funcionário:
Eles aqui, eu acho que eles não tá sabendo o que o certo e o errado, eles
estão vivendo o jeito que eles querem sabe, por mais que você tenta falar
– ‘Isso tá errado, não faz isso’ – parece que não entra na cabeça deles, são
muito assim, sei lá, acho que meio rebelde sabe pra falar a verdade [...]
(Participante 10).
Notamos, nessa fala, assim como em outras ao longo dessas reuni-
ões, que há uma crença na prática da educação verbal e, ao mesmo tempo,
uma descrença na efetividade dessa prática, de sorte que, para compensá-
-la, lançam mão de sanções expiatórias como, por exemplo, retirar algo de
que eles gostem para fazer valer sua palavra de autoridade e fazer cumprir
as regras; no entanto, alguns dos participantes já perceberam que esses
castigos não estão surtindo o resultado esperado, conforme a seguinte fala:
Alguém chegar aqui e falar você vai car sem lanche’ [...] nossa, eles nem
ligam, não mexe mais”. Não obstante, mesmo conhecendo a não ecácia
dessa punição, essa atitude ainda era frequente na instituição, pois alega-
vam ser a única maneira de punir as crianças, já que não se pode educar
com a força física, prática esta defendida por alguns dos funcionários, os
quais enfatizavam constantemente que foram educados assim e que isso
nunca matou ninguém”, pelo contrário, “formou muito homem”. Esses fun-
cionários, centrados em sua maneira de entender a realidade, demonstram
não conceber outras atitudes para se educar, exceto as que vivenciaram ou
as que acreditam ser mais ecazes (mesmo constatando que não são), não
compreendendo com isso a possibilidade de exercer na rotina do abrigo
um grupo democrático, em que as crianças/adolescentes participem ativa-
mente, construindo as regras, discutindo sobre os problemas e pensando e
ajudando a escolher soluções e, quando houver a necessidade de punição,
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

preferir a sanção por reciprocidade ao invés da expiatória, como discute
Vinha (2000).
Com essas reuniões, conseguimos ter uma dimensão mais pro-
funda da situação da instituição, que, como a maioria delas, de forma ge-
ral, enfrenta situações difíceis referentes à educação moral.
Para o diagnóstico a respeito do desenvolvimento do juízo moral
concernente à noção de justiça das crianças/adolescentes desta instituição,
realizamos entrevistas clínicas individualmente. As crianças/adolescentes
foram interrogadas com quatro histórias que apresentavam, em seu conte-
údo, situações ocorridas na relação de crianças com adultos (ambos imagi-
nários). Foram investigados três diferentes aspectos: escolha entre sanção
expiatória ou sanção por reciprocidade e se acredita ou não na ecácia da
punição; opção pela justiça retributiva ou pela justiça distributiva; escolha
entre a igualdade e a autoridade adulta.
As crianças/adolescentes participantes deste estudo foram aquelas
com idade entre 06 e 15 anos de idade que permaneceram na instituição
durante todo o processo do projeto, totalizando 08 sujeitos. A proposta
inicial era ter como sujeitos crianças/adolescentes entre 06 e 12 anos, por
ser mais acessível o juízo moral nessa faixa etária e ser o período crítico do
desenvolvimento moral, mas, a pedido da instituição, incluímos os adoles-
centes de até 15 anos, não apresentando com isso nenhuma desvantagem
para o estudo. Nos relatos das falas dessas crianças/adolescentes zemos
uso de nomes ctícios, mantendo assim a preservação da identidade de
cada sujeito.
3.1.1 SANÇÃO EXPIATÓRIA VERSUS SANÇÃO POR RECIPROCIDADE
Para vericar o juízo das crianças/adolescentes nos aspectos da
punição e de sua ecácia, servimo-nos de uma história
13
em que fosse per-
mitido à criança/adolescente escolher espontaneamente uma punição para
o menino que desrespeitou uma regra e depois optar entre três punições
escolhidas pelo pai do menino, dentre as quais havia duas sanções por re-
ciprocidade e uma sanção expiatória. Almejávamos com isso, em primeiro
13
As histórias completas estão no Anexo 1.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
lugar, observar se a criança/adolescente escolheria de forma espontânea a
sanção por reciprocidade ou a sanção expiatória, ou, ainda, se seria favorá-
vel a não punição, resolvendo o problema de forma mais igualitária, como
por meio de conversa e explicações. Em segundo lugar, com as alternati-
vas de punições expostas, pretendíamos constatar se a criança/adolescente
mantinha sua escolha (pela sanção expiatória ou por reciprocidade) ou a
mudava, e qual seria sua explicação que justicasse tal opção.
Alguns exemplos da opção pela sanção expiatória:
Pôr de castigo. Que castigo? Ficar sem jogar bola, porque se tá jogando
bola, deve deixar sem jogar bola. O pai pensou em outras três castigos,
qual seria o melhor? Dar umas palmadas. Por que você acha essa me-
lhor? Pra ele aprender a não fazer mais aquilo. Qual a mais chata? Ficar
uma semana no escuro. (Tiago, 9 anos).
Embora saibamos que um dos tipos de sanção por reciprocidade
é “[...] privar a criança de uma coisa que ela tenha estragado” ou de que
tenha feito mau uso (KAMII; DEVRIES, 1991, p.32), percebemos que a
escolha de Tiago (9 anos), ao dizer espontaneamente que o menino deveria
car sem jogar bola, porque se tá jogando bola, deve deixar sem jogar bola”,
está provavelmente mais ligado ao fato de que ele acredita que o adulto
deve exercer o seu “poder” em relação à criança; sendo assim, essa seria uma
atitude punitiva e não por reciprocidade. Entendemos, por conseguinte,
porque Tiago, ao ter diante de si a possibilidade de escolher, dentre as san-
ções expostas a ele, a sanção por reciprocidade ou a sanção expiatória, ele
opta pela expiatória, em que o pai deveria “dar umas palmadase a justica
como ecaz para o menino “aprender a não fazer mais aquilo”.
Como exemplo da escolha pela sanção por reciprocidade, temos:
Falar com ele, não brigar com ele, só conversar pra não brincar de bola,
brincar lá fora. Poderia ser, mas o pai pensou em três castigos, qual
deles seria o melhor, o mais justo? 1, economizar o dinheiro pra pagar
outra lâmpada. Por que esse é o melhor? Pros adultos ter mais educação e
não bater nas crianças, só conversar. Qual você acha a mais chata? A 2ª,
dar palmadas. (Paulo, 9 anos).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Paulo (9 anos), em sua escolha espontânea e entre as alternati-
vas, optou pela sanção por reciprocidade. Sua fala parece demonstrar in-
satisfação no tratamento em relação às crianças, clamando por igualdade
expressada quando arma que os adultos deveriam “ter mais educação.
Argumentamos que “parece”, pelo fato de ele poder ter sido levado a dar
uma “pequena lição de moral” em quem estava aplicando o interrogatório
(PIAGET, 1932/1994, p.158), porque vericamos que em nenhuma ou-
tra história apresentada posteriormente ele tendeu para a igualdade, pelo
contrário, tendeu a favor da autoridade adulta, sendo justa sua punição, e
da obediência da criança a ela.
Entre os argumentos dados pelas crianças/adolescentes, houve
aqueles que não tiveram explicações: talvez por desinteresse em responder
ou porque o interrogado não conseguiu explicar sua escolha, de modo que
classicamos essas respostas como transição, semelhantes àquelas em que o
pensamento do interrogado mudou no decorrer de sua estruturação, mas
não deixou clara sua postura. Resposta de transição:
Não sei. O pai pensou em outros três castigos, qual deles seria o me-
lhor? Primeira. Por que ele é o melhor? Não sei. (Alex, 13 anos).
Ainda com essa mesma história, mas em sua parte b, propusemo-
-nos investigar se essas crianças/adolescentes sentem necessidade da puni-
ção para não haver reincidência da falta cometida.
Notamos aqui também três classicações diferentes nas respos-
tas dadas pelas crianças/adolescentes. Conforme já explicitado, a mais fre-
quente foi a que indica necessidade de sanção. Exemplos dessa categoria:
O que o pai conversou. [...] Porque o outro já tinha levado castigo. Então
você acha que se ele for castigado ele não vai fazer de novo? Eu acho.
Se você fosse o pai qual seria? (volta na resposta anterior e completa)
Depende do que ele fez, se for grave deve castigar, se não for tão grave ex-
plicar, mas se fazer de novo deve castigar. Qual o pai mais legal? O que
castiga. Qual o pai mais justo? O que conversa. Porque o pai que castiga
ele não vai fazer mais aquilo e com o pai que conversa ele pode fazer de
novo. (Tiago, 9 anos).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Podemos notar nessa resposta detalhes importantes a serem anali-
sados. Tiago (9 anos) acredita que o menino que cometeu a falta novamente
foi aquele para o qual o pai havia apenas explicado, já que, diferentemente
do outro garoto, ele ainda não havia sido castigado. Para Tiago, a explica-
ção pode ser uma medida favorável, se a falta não for muito grave, mas, se
a criança mesmo assim voltar a fazer, deverá ser castigada, ou seja, essa fala
está ligada à responsabilidade objetiva que, segundo Piaget (1932/1994),
aparece como um produto da coerção moral exercida pelo adulto; nesse
caso, a criança avalia a intensidade da falta pelas consequências materiais
ou pelo nível de raiva ou nervosismo do adulto e não pela intenção do ato.
Tiago, talvez fazendo confusão com a palavra “justo”, enfoca a ecácia que
tem a punição para a não reincidência, salientando que o menino que o pai
castigou não irá cometer mais a falta, enquanto, para “o pai que conversa
ele pode fazer de novo”.
Ao observarmos a rotina dessas crianças/adolescentes no abrigo
e nas reuniões de estudo junto aos funcionários, percebemos que há coin-
cidência na eleição das sanções expiatórias, o que nos leva a reetir se a
circunstância de o maior número das respostas serem direcionadas para a
necessidade de sanção estaria na postura de muitos dos educadores da ins-
tituição que, frequentemente, usam de ameaça de retirada de “algo bom
ou de recompensas para alcançar a obediência dessas crianças/adolescentes,
empregando constantemente a autoridade adulta e dicultando o desen-
volvimento da solidariedade e, com isso, o juízo mais apurado como da
justiça distributiva estudado no Capítulo 2.
Como exemplo para a categoria das respostas em que não se jul-
gou a necessidade de punição, temos:
Não sei não. O que o pai tinha castigado. Por que ele voltou a jogar?
Porque passou muito tempo, não sei. Qual o pai mais justo? O que ex-
plicou. Por quê? Porque não deu castigo e não bateu no lho. Você acha
que castigo resolve? Não. Por quê? Porque a criança ca muito nervosa e
começa a fazer tudo de novo. (Alex, 13 anos).
O que nos chama mais a atenção na resposta de Alex (13 anos)
é a sua explicação sobre por que o castigo não resolve para a reincidência;
ele diz que “a criança ca muito nervosa e começa a fazer tudo de novo”. A
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

explicação de Alex apresenta um fator comum, observado no abrigo e em
muitas escolas em que a criança ou adolescente não concorda com a puni-
ção que o adulto aplica a uma determinada falta e se indigna e, como pro-
testo ou para ser notado ou ouvido, ele se revolta e comete a mesma falta
novamente. Muitas vezes, essa indignação é classicada pelos adultos como
indisciplina ou rebeldia, todavia, os educadores não devem ignorá-la, pois
a indignação, segundo La Taille (2006), é um sentimento moral e, dessa
forma, uma prova que a criança/adolescente não está alheia ao universo
moral. Para o autor, mesmo a indignação ser ligada a uma rebeldia, a priori
não é negativo, porque essa criança/adolescente tem um valor moral que
deve ser discutido para investigar se ela tem causa e assim trabalhar, mas
o que vemos acontecer é a queixa do educador e a prática de rótulos em
crianças ou adolescentes que tomam a atitude observada por Alex.
Temos ainda a resposta que classicamos como de transição, visto
que, embora o interrogado tenha indicado como reincidente o menino que foi
punido, ele arma que os dois pais tomaram a atitude certa, de modo que não
ca claro seu juízo em relação à necessidade ou não da punição. Eis a resposta:
O que o pai castigou. Porque ele voltou a fazer isso? Porque não pode
quebrar. Qual o pai mais justo? Os dois fez certo. Se você fosse o pai qual
seria? Falava que não pode brincar. (Vinícius, 15 anos).
Ao analisarmos os conteúdos apresentados nos dados concernen-
tes à escolha dos diferentes tipos de sanções e sua ecácia, notamos que a
maioria das crianças/adolescentes, ao escolher espontaneamente uma pu-
nição, opinava preferencialmente pela sanção expiatória, a maneira mais
primária da noção de justiça. Em relação às opções entre as alternativas
oferecidas, as respostas de transição foram as mais escolhidas principal-
mente entre os adolescentes. Quanto à questão da necessidade da sanção
para evitar a reincidência da falta, percebemos que, na maioria das res-
postas, imperava a necessidade de haver punição, mesmo entre as crianças
mais velhas e adolescentes. Esses dados sugerem um predomínio da tran-
sição em relação ao interrogatório da parte A da História I, e predomínio
da tendência heterônoma no juízo das crianças/adolescentes em relação ao
interrogatório da parte B dessa mesma História.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
3.1.2 JUSTIÇA RETRIBUTIVA VERSUS JUSTIÇA DISTRIBUTIVA
Para vericar a noção de justiça dos interrogados, dispusemos de
duas histórias em que a justiça retributiva entra em conito com a justiça
distributiva. Utilizamos duas histórias para analisar situações distintas: a
primeira não envolve nenhuma falta e a gura do adulto é representada
pela mãe; na segunda, há uma falta cometida por uma criança, punida com
sanção expiatória, e a gura do adulto é representada por uma professora.
Alguns exemplos da opção pela justiça retributiva:
Legal. Ela está certa? Sim, porque os meninos têm que ser bem obediente,
porque senão Deus não perdoa as crianças que não são obedientes. (Paulo,
9 anos).
(Pensa) eu acho certo. Por quê? Porque a mãe gostava mais do obediente
que cava quieto e não fazia bagunça. Você acha justo? Eu acho. (Tomás,
14 anos).
Notamos que, nessas respostas, há um predomínio da autoridade
adulta no tratamento das crianças e a obrigatoriedade da obediência. Paulo
(9 anos) ainda enfoca que “os meninos têm que ser bem obediente, porque
senão Deus não perdoa as crianças que não são obedientes”, enfatizando ainda
mais a autoridade do adulto que, por sua vez, tem a “ajuda” divina caso
seja desobedecido. Tomás justica a justiça retributiva na afetividade: para
ele, o adulto pode gostar mais da criança que não lhe causa problemas e
privilegiá-la. Frequentemente, essas são as justicativas que muitos adultos
dão às crianças desobedientes, no entanto, na medida em que estas viven-
ciam a cooperação, sobretudo nas crianças mais velhas e adolescentes, elas
tendem a não achar justas tais ações e justicativas, ainda que não tenha
sido o que percebemos entre nossos interrogados.
Os dois próximos exemplos constituem respostas favoráveis à jus-
tiça distributiva:
Acho errado. Por quê? Porque se um é obediente e o outro bagunça, os dois
são igual, eles têm o mesmo sangue. Porque foi ela que criou os dois. O que
ela deveria fazer? Por o desobediente de castigo. E quando ela for repartir
o doce? Reparte igual. (Tiago, 9 anos).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Vemos nesse exemplo que a distribuição do doce deve ser feita
igualmente entre os irmãos, pois, como arma Tiago (9 anos), como mãe,
esse adulto deve tratar os dois lhos da mesma forma, mas ele não descar-
ta a justiça retributiva para o lho desobediente. Desse modo, Tiago, na
distribuição dos doces, é favorável à justiça distributiva, enquanto, para
solucionar o problema de desobediência, prefere a justiça retributiva.
Ainda em relação a essa história, houve interrogados que mudaram
o pensamento no decorrer das respostas, contudo, não consolidaram tal mu-
dança. Classicamos aqui essas respostas como de transição. Eis um exemplo:
Tem que dar igual. Por quê? Porque... ele é lho dela. O que ela deve
fazer com o desobediente. Colocar de castigo. E na hora de distribuir
os doces? Deixar sem. Por quê? Porque desobedeceu.(Otávio, 11 anos).
Para a história no contexto de sala de aula, em que a gura do
adulto está representada pela professora, observamos o seguinte exemplo
para resposta como a opção pela Justiça Retributiva:
Certo. Foi certo o que a professora fez? Sim. Por quê? Porque o outro
cou xingando, emburrado e não querendo ajudar os outros. O que você
faria se fosse a professora? A mesma coisa. (Alex, 13 anos).
Houve ainda uma resposta de transição que não aprova a atitude
da professora, no entanto opta também por um castigo e não deixa claro
sua posição na distribuição do ato, eis o exemplo:
Chato. Por quê? Porque ca na sala de aula de castigo. O que você faria?
Ficava sentado sem brincar. (David, 8 anos).
Ao compararmos os dados obtidos no interrogatório da História
II com os obtidos na História III, percebemos que apenas na História II
houve incidência de justiça distributiva, ainda que em pequena quanti-
dade, mas o que nos faz reetir é que, na História III
14
, mesmo com a
presença de uma sanção expiatória, quase todas as crianças/adolescentes
interrogadas foram favoráveis à atitude da professora, pela justiça retri-
14
A história apresentada para essa análise foi retirada e adaptada de uma situação real ocorrida no abrigo,
durante o estudo de diagnóstico.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
butiva. Podemos nos arriscar a explicar esse fato pela situação de abrigo
em que vivem, pois, nesse caso, é comum a criança/adolescente fantasiar
a gura de uma mãe ideal e o que espera de sua relação com os lhos; já
com a professora, notamos que eles reproduzem, muitas vezes, o que estão
acostumados a vivenciar no ambiente do abrigo e da escola. Apesar dessa
diferença, os dados indicam que em ambas as histórias há o predomínio da
tendência heterônoma no juízo tanto das crianças como dos adolescentes.
3.2 IGUALDADE VERSUS AUTORIDADE
Assim como a História II, a História IV traz a mãe como a -
gura do adulto. Pretendemos, com essa história, identicar se as crianças/
adolescentes são favoráveis à igualdade entre crianças acima da autoridade
adulta ou, de outra forma, preferem que a obediência ao adulto prevaleça.
Eis o exemplo de resposta que favorece a autoridade adulta acima
da igualdade:
Mandar ele fazer sozinho (Sérgio). Mas a mãe pediu para o Miguel fazer
sozinho, o que ele falou? Não sei não. Se fosse você o que você teria
falado? Eu fazia tudo bem, fazia sozinho. Por quê? Porque Miguel saiu.
Você acha justo fazer sozinho? o. E por que você faria? Porque minha
mãe falou. (Vinícius, 15 anos).
Podemos perceber nesse exemplo que a autoridade da mãe se so-
brepõe à igualdade entre os irmãos. Na resposta de Vinícius, mesmo ele
achando injusto apenas um realizar toda a tarefa sozinho, ainda assim,
acredita que a ordem deve ser obedecida pelo fato da mãe ter “falado”, ou
seja, por sua autoridade.
Apenas um dos interrogados favoreceu a igualdade acima da au-
toridade adulta:
Humhum, sim. Por que você acha que ele respondeu que sim? Só pra -
car adiantado, pra depois brincar. Você acha justo? o. Por quê? Porque
o outro cava brincando e o outro cava trabalhando. Por que ele fez
então? Só pra ajudar a mãe, pra ela não car triste pra não sofrer. Se você
fosse o Miguel? Fazia a mesma coisa. (Alex, 13 anos).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Na explicação de Alex (13 anos), não há apenas a obediência ao
adulto; ele, apesar de achar a ordem injusta, prefere a submissão ao que a
mãe está pedindo para ajudá-la “pra ela não car triste”. Piaget (1932/1994)
relata que esse tipo de resposta seria uma forma renada de igualdade, pois
ela não indica simplesmente uma igualdade pura, acima de tudo, mas uma
benevolência, a criança acha injusta a ordem, mas prefere se submeter para
não deixar a mãe triste, para ajudar a mãe, para evitar discussões.
Houve também crianças que mudaram seu pensamento no de-
correr da estruturação de sua resposta, mas não deixaram clara sua postura,
casos que classicamos como transição. Exemplo:
Não, porque ele tava com preguiça. É justo? É, porque ele tá certo porque
ele fez o que a mãe pediu. O que ele fez? Lavou e enxugou. Você acha
justo? Não, porque ele tinha que lavar e o outro enxugar. (David, 8 anos).
Ao analisarmos os dados gerais obtidos no interrogatório da
História IV podemos notar que há uma equivalência entre as escolhas pela
autoridade adulta e resposta de transição. O dado que nos chama mais
atenção é, sem dúvidas, a predominância da escolha pela autoridade adulta
entre os adolescentes, fase em que se esperaria um grau mais elaborado
de respostas. Podemos concluir com isso, que o ambiente em que vivem,
estaria dicultando o desenvolvimento de um juízo moral mais apurado,
mesmo entre os adolescentes.
Concluindo, vericamos que o desenvolvimento moral das crian-
ças/adolescentes, no aspecto da justiça, se caracterizava como predomi-
nantemente ligado à obediência à autoridade, ao respeito unilateral e a
não participação na elaboração de regras. No que tange à educação moral,
notaram-se práticas baseadas na autoridade e em procedimentos verbais,
sendo a sanção predominante a do tipo expiatória. O relacionamento en-
tre os funcionários não favorecia que se entendessem com relação às ações
educativas a serem estabelecidas por todos, o que levava a frequentes de-
sentendimentos e a uma postura derrotista frente às possibilidades de reso-
lução de conitos e problemas.
Com relação à visão das crianças em relação à função do abrigo,
na entrevista semiestruturada realizada em estudo anterior, a maioria dos

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
entrevistados
15
apreciava a instituição pelas condições de estudo formal que
lhes eram proporcionadas, como reforço escolar e aulas de inglês e informá-
tica. Sobre o que poderia ser melhorado na instituição, responderam que a
melhora consistiria em obter mais “presentes” e não haver brigas. E, quando
questionados sobre o que poderiam fazer para contribuir com a melhoria da
situação na instituição, apontaram que isso poderia se dar com a saída de
todos os outros, ou seja, que a instituição se tornasse seu próprio lar.
Com a avaliação dos resultados do diagnóstico, ambos os lados
do estudo, autores e instituição (representada pelos funcionários partici-
pantes do estudo) puderam constatar a necessidade de uma ação planejada,
em que todos os funcionários pudessem participar e compor uma equipe
disposta a constituir um ambiente que fosse favorável ao desenvolvimento
moral voltado para a autonomia das crianças/adolescentes em situação de
abrigo. Esse é o assunto do próximo capítulo.
15
Dentre os entrevistados no estudo de diagnóstico 5 permaneceram no abrigo e participaram deste estudo.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.


Capítulo 4
O CAMINHO DA MUDANÇA
ESTRATÉGIAPLANEJAMENTO E INTERVENÇÃO
ADULTOS E CRIANÇAS/ADOLESCENTES ENVOLVIDOS
EM PRÁTICAS REFLEXIVAS
Caminhante, são teus passos
o caminho e nada mais;
Caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar se faz caminho,
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se voltará a pisar.
Caminhante, não há caminho,
mas sulcos de escuma ao mar.
Antonio Machado
Poema XXIX de Provérbios y Cantares
Como construir um caminho de mudança sem envolvimento
dos atores que constituem o próprio ambiente? O trabalho do caminhante,
nesse caso, dos caminhantes, foi inicialmente o de trazer para o caminho a
necessidade de transformação. Isso foi feito por meio da proposta de qua-
tro reuniões com os funcionários da instituição. Em função de questões
que surgiram nesse momento novos rumos foram traçados. Vejamos, um
tema recorrente era a assunção de responsabilidade pela resolução de pro-
blemas, na maioria, administrativos, isto é, distante da competência dos
funcionários em resolvê-los, revelando a diculdade destes de se colocarem
como participantes no problema da instituição e se mostrarem agentes do
processo de mudança, atribuindo a esse momento a oportunidade de pen-
sarem e elaborarem ações a serem realizadas por eles mesmos. O que cou
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

claro, na fala de alguns funcionários, foi a necessidade de todos cumprirem
os futuros combinados para o planejamento funcionar, isso, no sentido
de que “não adianta eu fazer a minha parte se o outro não zer também
(funcionário ), demonstrando a preocupação da ação do outro e não da sua
própria. Ainda nesse sentido, um funcionário salienta: “Para isso precisaria
ter um cabeça” (funcionário); com isso, percebemos que alguns funcio-
nários apresentam necessidade de terem constante vigilância e assistência
para se sentirem amparados no trabalho e terem certeza de que todos estão
fazendo sua parte.
Além da necessidade de vigilância e de assistência, esse funcionário
ainda arma o medo existente nas relações entre os funcionários, eviden-
ciando uma relação unilateral entre as diferentes funções e a falta de coope-
ração: “[...] essa liberdade que eu estou tendo de falar com você eu não tenho
em falar com eles, porque você vai falar, eles não aceitam” (funcionário).
Acreditamos que, para se pensar em constituir um ambiente favorável para
o desenvolvimento moral de crianças/adolescentes em situação de abrigo, no
âmbito do trabalho desses prossionais, também deve haver a constituição
desse mesmo ambiente. O que notamos nessas falas é a predominância do
respeito unilateral entre os funcionários e, ainda, a crença da necessidade
desse respeito para o bom funcionamento do “sistema”, mas com a presença
de cooperação. Por conseguinte, permitimo-nos fazer a seguinte pergunta:
é possível ter cooperação em uma relação unilateral? Acreditamos que o pe-
dido desses funcionários seja para uma colaboração, mais no sentido pater-
nalista do que propriamente o de cooperação entre iguais, o que torna esses
prossionais dependentes da avaliação do outro para o desempenho de sua
função. Segundo Leme (2011, p.171), esse tipo de controle seria evitado, se
as normas e valores sociais estivessem internalizados; nesse caso, elas fariam
parte do “sistema motivacional das pessoas”, de modo que “[...] o controle
dos outros é substituído pelo autocontrole”.
Em uma das turmas, foi levantada a necessidade de haver maior
respeito nas relações não apenas entre crianças/adolescentes e adultos, mas
também entre adultos e crianças/adolescentes, evitando-se atitudes como
ameaças e intimidação. Isso evidencia que, apesar de ser uma fala de pou-
cos, há funcionários preocupados em estabelecer no ambiente do abrigo
uma relação de respeito mútuo, dando valor ao sentimento da criança/

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
adolescente como sujeito na relação interpessoal. Não obstante, na maioria
das falas, há a predominância de queixas de falta de respeito de criança/
adolescente para com os funcionários, colocando-os como vítimas daque-
les, e ainda a existência do desrespeito entre os próprios funcionários; essa
queixa é igualmente apresentada como vitimização do sujeito na relação,
como no exemplo a seguir:
[...] nós aqui dentro da entidade não falamos a mesma linguagem, ne-
nhum funcionário colabora com o outro, inclusive eu, [...] então se a gente
não falar a mesma linguagem a gente não vai ter controle nunca [...] se a
gente não tiver isso entre os funcionários [respeito entre os funcionários] nós
não vamos conseguir dominar essas crianças [...] eu peço desde o dia em que
eu entrei aqui para não jogar bola no salão [...] eu vou embora, deixam, e
eu co de ruim e você de bom? [...] Então eu espero que esse planejamento
de hoje a gente consiga realmente, primeiro, respeito entre nós funcionários,
para que a gente possa dirigir essas crianças. (Participante 2).
Vimos que, segundo a fala do Participante 2, o objetivo de se
buscar o respeito entre os funcionários seria para ter “controle”, “dominar”
e “dirigir” as crianças/adolescentes, e não para haver um ambiente demo-
crático e de cooperação. Na fala desse funcionário, há a preocupação de
como a sua imagem estaria sendo avaliada pelas crianças/adolescentes e pe-
los outros funcionários, além da necessidade de se estabelecer a autoridade
adulta como forma de alcançar a obediência estrita das crianças/ adolescen-
tes. Mas, qual seria o fator indispensável para se educar moralmente uma
criança/adolescente? Ser considerado por eles bom, por deixá-los fazer o
que quiserem, ou ruim, por dar-lhes limites, seria um parâmetro para ava-
liar essa educação? Negligenciar sua autoridade como educador em virtude
de desrespeito de outros funcionários seria plausível para se constituir um
ambiente cooperativo?
Segundo Piaget (1932-1994, p.239), “[...] a autoridade como tal
não poderia ser fonte de justiça”, pois o desenvolvimento desta supõe a
autonomia, porém, isso não signica que o adulto não inuencie no desen-
volvimento da justiça, “mesmo a distributiva”, inuência que irá ocorrer
no processo da prática da reciprocidade com a criança e quando ele educa
com o exemplo e não somente com as palavras.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Desse modo, vemos a importância de se estabelecer um ambien-
te de respeito mútuo entre os funcionários, não somente para a boa re-
lação entre eles, mas, sobretudo, como exemplo de relacionamento para
as crianças/adolescentes, pois os exemplos de relacionamento interpessoal
descritos pelos funcionários e que são frequentemente observados e vi-
venciados pelas crianças/adolescentes é o respeito unilateral. Há relatos de
desrespeito entre os funcionários e pelas regras, o uso de palavrões e fofocas
na presença de crianças/adolescentes. Sendo assim, esses fatos são tomados
como referência para as crianças/adolescentes de uma relação interpessoal
competitiva, em que os conitos não são resolvidos com reexão e cons-
ciência dos envolvidos, mas com a imposição ou simplesmente ignorados.
Na verdade, isso evidencia que os próprios adultos não estão sendo autô-
nomos e apresentam diculdade de cooperarem entre si e estabelecerem
uma relação de reciprocidade.
A moral da consciência autônoma não tende a submeter as personali-
dade (sic) a regras comuns em seu próprio conteúdo: limita-se a obri-
gar os indivíduos a “se situarem” uns em relação aos outros, sem que as
leis de perspectivas resultantes desta reciprocidade suprimam os pontos
de vista particulares. (PIAGET, 1932-1994, p.295).
Além desse tema sobre o respeito das crianças/adolescentes com
os funcionários, houve outro tema discutido por eles sobre o envolvimento
ativo das crianças/adolescentes como o de propiciar um espaço para estes
manifestarem seus interesses e resolução de problemas. Houve, diante des-
se tema, discordâncias entre as turmas em alguns pontos e consenso em
outros. Em uma turma se julgou necessário esse envolvimento, já na outra
os membros eram de opinião que as crianças não seriam capazes de partici-
par de atividades dessa natureza, como demonstra a fala abaixo:
Esse item das crianças darem opinião eu acho que ainda está muito cru [...]
porque eles vão por tudo o que eles querem do bom e do melhor, só que o
importante não está sendo cumprido, das obrigações, ter deveres e obriga-
ções e isso não está sendo claro para eles (Participante 2).
Essa fala evidencia, como em outras descritas anteriormente, que
alguns funcionários imaginam que as crianças precisam de constante vigi-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
lância e controle para desempenhar seus deveres na instituição, devido à
insegurança desses funcionários em lidar com os erros e os possíveis con-
itos gerados em atividades democráticas ou, ainda, por acreditarem que
as crianças/adolescentes não são capazes de lidar com a liberdade, porém,
esquecem que essa liberdade não quer dizer falta de limites, mas a possi-
bilidade de escolher e não determinar o que querem. Segundo Kamii e
DeVries (1991), “[...] se o conjunto de ‘deveres’ ou ‘proibições’ é deter-
minado pelos adultos, a criança não terá oportunidades sucientes para
construir suas próprias regras de conduta”, a possibilidade de as crianças/
adolescentes experienciarem situações em que eles pudessem expor suas
necessidades, sugestões ou problemas concernentes as relações sociais do
convívio na instituição seriam, a nosso ver, produtivas para o desenvolvi-
mento da autonomia, pois, para Piaget (1932-1994), a criança irá desen-
volver sua autonomia moral primeiramente nas ações em sua relação de
cooperação com seus pares para depois desenvolvê-la em sua consciência.
Em decorrência não devemos esperar o ambiente mudar, aguardando o
amadurecimento da criança para propor tais atividades, como acredita o
Participante 2, mas, pelo contrário, é a partir dessas atividades que se pos-
sibilitará a mudança no ambiente e o desenvolvimento moral da criança.
Para alguns funcionários, não é possível às crianças se reunirem
para discutir assuntos pertinentes ao convívio no abrigo, nem eleger um
representante para participar das reuniões junto aos funcionários, porque
não seriam capazes de manter entre crianças/adolescentes e funcionários
uma relação de cooperação para o desempenho dessa atividade. A compa-
ração que fazem é com a lei vigente em presídios ou Fundação Casa, em
que não ocorre a delação entre os internos, seria “a lei do mais forte e isso
não tem mudança” (Participante 1). Nesse sentido, algumas concepções
sobre a possibilidade de construção de um ambiente cooperativo cam cla-
ras: em primeiro lugar, a única possibilidade de participação das crianças/
adolescentes em situação de assembleia seria para delatar o que acontece
entre eles; outra concepção é de que, na assembleia, seriam tratados coni-
tos particulares e que isso não seria adequado para ser compartilhado com
crianças/adolescentes. Tais ideias são contrárias à concepção de assembleia
discutida por Puig (2000, apud LODI, 2004, p.16-17):
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Uma assembléia é um momento escolar organizado para que alunos
e alunas, professores e professoras possam falar de tudo que lhes pa-
reça pertinente para melhorar a convivência e o trabalho escolar [...]
Educadores e educadoras sabem que as assembleias são e servem para
tudo o que acabamos de expor, mas também as vêem como uma exce-
lente oportunidade para formar moralmente alunos e alunas. Sem que
se perca nenhuma de suas funções explícitas, as assembléias são mo-
mentos muito úteis como meio para construir capacidades psicomorais
e para transmitir atitudes e valores.
Na segunda reunião para planejar as ações, sentimos que a maio-
ria dos funcionários ainda não percebia a necessidade de mudança e, para
aqueles que eram conscientes de sua necessidade, ainda era difícil for-
mular estratégias que envolvessem todos os funcionários, já que somen-
te eram pensadas situações já ocorrentes e pontuais (certos trabalhos do
Participante 4).
O Participante 2 foi o que mais se pronunciou, demonstrando in-
segurança no projeto e descrença na possibilidade de mudança. Tentamos
pensar com o grupo ações em que as crianças/adolescentes pudessem ser
ativos, pensar nos problemas, discutir sobre eles e serem encorajados a to-
marem decisões no dia-a-dia, lembrando sempre que as mudanças não
ocorreriam instantaneamente, mas seriam fruto de um trabalho contínuo.
Quanto a isso, esse funcionário relata sobre a diculdade de se trabalhar
com os adolescentes:
Eles não sabem trabalhar em grupo, e a reunião que a gente faz aqui é
trabalhar em grupo, porque, pingue-pongue os grandes querem tomar con-
ta, e não vem dizer para mim que há mudança porque não há, os grandes
querem tomar o poder e a gente não tem como mudar, a cabeça dos grandes
é diferente, aí a gente vira as costas eles ó nos pequenos (sinal de bater) [...]
pra nós consertarmos aqui como outra instituição, no meu ver, teria que
começar tudo de novo a começar pelos funcionários [...] porque se os fun-
cionários não se posicionar nós não vamos mudar [...] no tempo que estou
aqui eu não consegui mudar uma cabeça de funcionário, da regra da casa,
não da personalidade de cada um [...] (Participante 2)
Esse funcionário demonstra, com essa fala, que nenhuma ação
acarretará mudança nas relações no abrigo, porque, segundo ele, não há

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
solução possível para uma melhora. Ele percebe que inculcar valores não
muda a cabeça nem de funcionários nem de crianças/adolescentes, mas
também não crê em nenhum outro tipo de procedimento para que se me-
lhorem as relações interpessoais na instituição, favorecendo o desenvolvi-
mento moral, como se o abrigo estivesse perdido. Vinha e outros (2011)
esclarecem que, para haver mudança na instituição, o educador deve sentir
que esta é necessária, ela não irá ocorrer por imposição ou modismo, mas
com a real compreensão, o compromisso e a aceitação do próprio educa-
dor, num processo de dentro para fora.
Quando o educador não acredita naquilo que está sendo estudado e,
autonomamente, não deseja trabalhar de acordo com tais princípios,
as mudanças ocorridas, quando há, são apenas de “fachada”, parciais e
superciais. (VINHA et al, 2011, p.290).
Relatando um ato de vandalismo de um adolescente, o mesmo
participante complementa:
[...] eu olhei pra cara dele, sinceramente, pode falar que eu estou errada, mas
me ensinem a trabalhar então, eu virei para a cara dele e falei: “Você não
tem é vergonha na cara, não é porque você está num abrigo que você acha
que é um coitado, ou você vai crescer como homem ou você vai deixar de ser
homem agora”, eu falei, porque é o momento da raiva por isso que eu quero
que seis horas vocês cam aqui todo dia [...] ele olhou bem para minha cara e
da risada [...] todos nós aqui somos capazes, mas eu estou dizendo um pouco
eu, agora o que eu vou falar – “me dá uma solução, por favor” – porque a
prática, gente, é a história da vida. (Participante 2).
O participante justica ter-se exaltado ao falar com o adolescen-
te, porque estava no momento da raiva e, ao mesmo tempo em que ele se
mostra duro para mudanças, ele pede por ensinamento e solução, retiran-
do de si a responsabilidade de pensar e reetir sobre qual seria a melhor so-
lução e atitude para enfrentar o problema, delegando-as a outrem. Mesmo
com essa postura de submissão, esse funcionário se mostra descrente de
que nós, como externos à realidade do abrigo (embora tendo realizado dois
estudos anteriores, na instituição), encontraríamos uma saída, não só pelo
problema de desrespeito das crianças/adolescentes, mas, especialmente,
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

pela diculdade de se trabalhar com os funcionários que, segundo ele, não
estão preocupados com o trabalho com as crianças/adolescentes.
Foi proposto que passássemos uma semana na instituição e que
somente depois desse período é que poderíamos voltar a conversar e pro-
por algum tipo de mudança. Para o funcionário citado, depois desse perío-
do, nossa visão mudaria, pois sentiríamos o quão difícil estava a situação na
instituição. Perante essa proposta, aceitamos passar cinco dias subsequen-
tes na entidade, observando sua rotina (manhã, tarde e algumas noites).
Depois desse período, em uma conversa informal com o funcionário que
propôs a observação, ele nos perguntou o que estávamos sentindo em rela-
ção ao funcionamento da instituição e se realmente pensávamos que seria
possível uma mudança; respondemos a ele que continuávamos acreditando
e que, para começar a haver mudança, seria importante que os envolvidos
no processo também acreditassem, porque, dessa maneira, teríamos entu-
siasmo para encabeçá-la. Esse funcionário disse então que a palavra certa
era “acreditar” e disse que estava pronto para começar a intervenção. No
entanto, devemos ressaltar que “[...] essa crença jamais deve ser um ato de
fé, mas sim, de investigação e reexão”. (VINHA et al., 2011, p.290).
Em busca da constituição de um ambiente sociomoral coopera-
tivo com o envolvimento de todos os participantes do abrigo utilizamos
estratégias distintas: planejamento, intervenção junto aos funcionários e
intervenção com as crianças/adolescentes.
Foram realizadas um total de quatro reuniões com o propósito
de denir as ações que seriam implementadas na instituição. A interven-
ção com os funcionários e crianças/adolescentes aconteceu com o uso de
estratégias diferentes. Com os funcionários, promovemos reuniões para
pensarmos juntos sobre os problemas enfrentados pela instituição, no que
diz respeito aos desaos em educar moralmente as crianças/adolescentes
em situação de abrigo e traçar estratégias para essa educação. Para isso, fez-
-se necessário que os funcionários pudessem vivenciar situações por meio
de dinâmicas que expressassem alguns problemas apontados por eles pró-
prios ou vericados nas observações e conversas com eles, de sorte que se
proporcionasse uma reexão real e uma possível tomada de consciência.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Com as crianças/adolescentes, a intervenção se deu por meio de
sessões de atividades. Essas atividades foram selecionadas no decorrer da
intervenção, conforme a necessidade apresentada pelo grupo e durante as
observações na instituição. Apesar de seus objetivos especícos, elas foram
projetadas e tematizadas de acordo com os objetivos traçados neste estudo.
Apresentaremos os resultados com os educadores/cuidadores
e crianças/adolescentes de acordo com as temáticas mais presentes, visto
que no decorrer das reuniões alguns problemas ou questões surgiam rei-
teradamente. Tomamos tais temas como subtítulos nos quais reunimos as
reexões e análises realizadas por nós a respeito delas. Consideramos que
essa forma traria maior contribuição para o entendimento do processo de
constituição do ambiente sociomoral cooperativo em abrigos institucio-
nais e dos problemas evidenciados na situação do que a mera apresentação
cronológica das reuniões.
4.1 P
RIMEIROS PASSOS EM BUSCA DE MUDANÇAS
Após conseguirmos conquistar essa crença nos funcionários da
instituição foi possível iniciarmos o processo de mudança com a interven-
ção junto aos funcionários, em seguida, com as crianças/adolescentes.
4.1.1 EM BUSCA DO (RE) CONHECIMENTO DO PROBLEMA E (RE) CONSTITUIÇÃO
DE PRÁTICAS REFLETIDAS NA ROTINA DE ABRIGO INSTITUCIONAL COM OS
FUNCIONÁRIOS
Os procedimentos de intervenção utilizados com os funcionários
do Abrigo Institucional estudado foram reuniões de ações. Essas reuniões
ocorreram em nove sessões quinzenais. Algumas sessões por razão de pe-
quenos imprevistos, como festas, feriados e férias, tiveram espaçamento de
tempo maior, no entanto, não ultrapassou mais do que vinte dias.
Norteamos cada reunião de maneira que os participantes pudes-
sem identicar os princípios que direcionam suas ações e o respeito em-
pregado por eles na rotina do abrigo; com a articulação da experiência e
da teoria, provocar desequilíbrios e repensar práticas a partir de princípios
como: justiça, respeito mútuo, igualdade.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

A escolha dos temas foi sendo feita de acordo com a necessidade
percebida ou declarada pelos funcionários, nas observações participantes e
também no decorrer das próprias reuniões de intervenção. Tomamos essa
medida para que os temas partissem de suas próprias crenças, sendo algo
signicativo para os funcionários e não algo imposto. Apresentaremos nes-
se momento os principais temas trabalhados, resultados obtidos e análises
realizadas.
4.1.1.1 DE QUEM É A RESPONSABILIDADE DA EDUCAÇÃO
Com a intenção de possibilitar a reexão dos funcionários da ins-
tituição a respeito da responsabilidade de cada um na educação das crian-
ças/adolescentes levamos para a discussão a fábula, “O rato e a ratoeira
16
,
uma alegoria que problematiza a atribuição de responsabilidade individual
no grupo versus a consciência de responsabilidade pelo coletivo. Após a
leitura desta fábula, iniciaram imediatamente comparações com a rotina
do abrigo. Em alguns momentos puderam se ver no problema, vezes como
integrantes e responsáveis para resolvê-lo, vezes como vítimas.
Quando eu estava lendo me veio de encontro com a instituição, a gente co-
meça já a pensar, e a verdade é que o mundo que a gente vive hoje ninguém
quer assumir problemas de ninguém. É aquela coisa: já basta o meu, vou
assumir o dela? Não, Deus me livre! E a gente por estar numa entidade de
abrigo, a gente tem as crianças. E que a gente, todos nós, convivemos com o
problema delas, que se repercute no comportamento deles, na agressividade,
rebeldia, tem horas que dá vontade de torcer o pescoço, não é? É normal,
[...] tem dia que você tem menos paciência, tem dia que você tem mais
paciência, e isso é normal, todos nós somos seres humanos! Então é bem isso
aqui, cada um com o seu problema, e no m todo mundo se envolve com o
problema. (Participante 1).
No relato apresentado, o participante relacionou a fábula com o
tipo de relação predominante na rotina da entidade, comparando o drama
enfrentado pelo rato com o problema enfrentado na instituição concer-
nente às crianças/adolescentes. Na realidade, se algum funcionário enfren-
ta um problema com alguma criança/adolescente ou se alguma delas está
16
Esse conto é atribuído a Esopo e pode ser encontrado por exemplo no site: http://pensador.uol.com.br/frase/
NzE1Mzc/

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
passando por algum problema, isso diz respeito a todos os funcionários, e
a não solução desse problema acarreta em consequência para todos, como
bem ilustra o resultado nal da fábula. Outro participante diz que, mesmo
quando não queremos nos envolver no problema com as crianças/adoles-
centes, no decorrer do dia isso será inevitável.
A oportunidade de pensar sobre sua função e desempenho na
instituição é de extrema importância para a iniciação de qualquer interven-
ção que promova novas práticas, pois somente quando nos vemos como
sujeitos do processo as mudanças serão reais, isto é, não serão impostas
pela autoridade, mas sentidas como necessárias pelos membros da equipe.
Entretanto, sabemos que no trabalho em equipe dicilmente todos senti-
rão a necessidade ao mesmo tempo, e isso acaba se tornando um empecilho
para os interessados, porque aqueles que não percebem tal necessidade não
se envolvem no projeto, deixando-o para os demais prossionais e tornan-
do o trabalho improdutivo e pontual. A esse respeito, Carvalho (2004,
p.440) descreve a necessidade que se tem em desmisticar que uma boa
equipe de trabalho é aquela constituída “[...] pelo conjunto de ‘precep-
tores’ isolados [...] cujos êxitos são conquistas individuais e cujo trabalho
pode se dar de forma individualizada”.
Observamos, nas atitudes e falas de alguns dos funcionários do
abrigo, que eles não se veem como verdadeiros educadores, que a responsa-
bilidade em educar as crianças/adolescentes é dos funcionários com função
especíca de educador/cuidador, enquanto eles, como auxiliares, poderiam
aconselhar ou fazer pequenas intervenções, mas não teriam a responsabili-
dade da educação. De acordo com Kamii e Devries (1991), se o trabalho
não incluir toda a equipe de prossionais, sua harmonia será prejudicada,
dicultando cada processo, pois o que adiantará, por exemplo, um educa-
dor trabalhar com as crianças a importância de se comer legumes e insistir
com elas acerca do seu consumo, durante as refeições, se em sua ausên-
cia outro prossional as ameaça, dizendo que se não comerem legumes
não irão tomar suco (exemplo extraído de uma experiência apresentada
na fala do Participante 2, durante uma das reuniões de planejamento).
Além disso, em se tratando de Abrigo Institucional, todos os prossionais
são considerados educadores, pois se tornam referência para as crianças/
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

adolescentes, tendo papel fundamental no processo de desenvolvimento
moral, emocional, dentre outros aspectos intrínsecos ao ser humano.
Podemos dizer que, assim como o trabalho desenvolvido em
grupo cooperativo entre crianças, em que estas devem utilizar habilidades
sociais e cognitivas, favorecendo o aprendizado da cidadania (PARRAT-
DAYAN, 2011), o trabalho cooperativo entre os adultos também propor-
cionará a estes uma melhor relação interpessoal de respeito mútuo. Para
haver realmente um trabalho cooperativo entre os funcionários da institui-
ção, estes devem não somente ajudar uns aos outros, nos trabalhos técnicos
ou com as crianças/adolescentes, mas nesse desempenho exercitar o diálo-
go, sabendo falar e ouvir e especialmente se colocando no lugar do outro e
sabendo tomar decisões.
Perguntamos ao grupo: como podemos auxiliar o funcionário
que está enfrentando um problema com uma criança, na tentativa de aju-
dá-lo a resolver? A atitude escolhida pelos participantes foi de, no caso de
desrespeito, fazer com que a criança respeite o funcionário, se porventura
o erro tiver sido cometido pelo funcionário, isso deve ser resolvido depois
com este, mas, na hora, deve-se cobrar o respeito da criança, porque, se-
gundo eles, não se pode tirar a autoridade de um funcionário na frente da
criança. Diante dessa visão, ocorreu-nos a seguinte questão: e o respeito do
funcionário com a criança, será que acontece nesse momento de resolução
de conito? De fato, o prossional não deve ser desautorizado, mas isso
não signica que a criança pode ser desrespeitada em prol da autoridade
do adulto. Uma solução para isso é a implementação de assembleias, nas
quais todos os envolvidos participariam com o propósito de resolver o pro-
blema. Nessas assembleias todos os presentes têm voz para expor o seu lado
no conito e juntos chegarem a uma resolução ou acordo, como propõe
Kohlberg (BIAGGIO, 2002) e é evidenciado na pesquisa de Izar (2011),
no caso do ambiente de abrigo.
Tratando deste tema, alguns participantes trouxeram a discus-
são a respeito da necessidade de “todos falarem a mesma linguagem”. O
Participante 3, por exemplo, relata: “[...] vamos supor que o ‘Participante 7’
fala assim – Tiago senta direito – aí eu chego lá e deixo ele sentar de qualquer
jeito, eu tô desrespeitando ele. Então, vimos que, para que se tenha o en-
trosamento na linguagem estabelecida no trabalho em uma instituição, é

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
necessário que haja diálogo entre a equipe de trabalho, não um diálogo de
imposição ou apenas de informação, mas um diálogo que permita trocas
e crescimento:
A convivência é sempre transpassada pela palavra, uma vez que, por
meio da linguagem, é possível elaborar uma compreensão conjunta
de tudo que afeta a coletividade e cada um dos seus membros. Isso
acontece porque a linguagem facilita a construção de soluções para os
conitos ou de projetos comuns e também porque, dialogando, cada
um se sente comprometido com aqueles com quem fala. (MARTÍN
GARCIA; PUIG, 2010, p.68).
É importante aqui ressaltar a relação entre a obtenção da obe-
diência e os métodos para alcança-la. Segundo Vinha (2000, p.262), é
natural que as crianças desobedeçam às regras, de sorte que o educador não
deve focar sua atenção no fato em si, “[...] mas sim nos procedimentos que
o adulto utiliza para tal”.
Um participante relata os horários nos quais acontece o maior
índice de tumulto e problemas com as crianças/adolescentes, que é o horá-
rio em que todos, crianças/adolescentes, estão reunidos e há somente dois
funcionários na instituição. Em relação a isso, outro participante relata:
[...] por que eles aprontam nesse horário? Porque [...] os outros funcionários
foram embora, - “Fiquei preso, estamos presos, todos presos, por que então
não vamos bagunçar? Agora vamos todos car à vontade” – aí é hora onde
eles aprontam. (Participante 7).
Em relação a esse horário, um participante se pronunciou:
[...] deu cinco horas, só vai car os funcionários [auxiliar de cuidador],
aí é essa hora que tem que ter união, que o Participante 5 tá olhando
as crianças, [...] se a gente tá por aqui tem que olhar também, então em
comparação pode falar – ah o Participante 5 tá aí, o Participante 8 tá
aí, que se vira, eu tô indo embora – deixa o pau torar; às vezes eu até tô
vendo a coisa errada, mas eu co quieto, mas isso aí é errado. [...] tem uns
horários, m de semana, às vezes na parte da tarde, [...] às vezes as crianças
tá jantando, tá uma [...] bagunça ali, às vezes tá o Participante 8, tá o
Participante 5, tá eu, tá olhando aquela bagunça e ninguém se interfere,
entendeu, então essa é uma hora que tem que todo mundo se unir e tem que
interferir. (Participante 10).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Fica claro que os participantes têm consciência do problema e
também de uma possível solução, no entanto, o problema continua ocor-
rendo. Perguntamo-nos por que o período do nal da tarde e começo da
noite é crítico, se durante a noite há apenas um funcionário para estar
com todas as crianças/adolescentes e esses conitos não são constantes.
Podemos nos arriscar a concluir que o problema real está na postura de
cada um em relação ao seu papel na instituição e na educação das crianças.
Quando nos sentimos responsáveis por algo, não é comum delegarmos ao
outro tal responsabilidade, mas a assumirmos.
Nos assuntos referentes às atitudes individuais de um funcionário
perante um conito com uma criança/adolescente, alguns participantes
apresentaram certa resistência em se orientarem para a resolução do pro-
blema sozinho, não se sentindo capazes de sanar pequenas questões.
Houve falas como a seguinte: “Mas diante disso que você tá fa-
lando, muitas vezes ele vai virar pra você e falar – você não manda em mim
(Funcionário 8). Conforme já relatamos, alguns funcionários não se veem
como educadores e, nesse sentido, eles próprios não acreditam que têm
autoridade para mediar uma situação conituosa; nesses momentos, é co-
mum ameaçarem as crianças, dizendo que contarão o fato a um funcioná-
rio especíco (que eles julgam ter maior autoridade). Em face dos exem-
plos contados por esses funcionários, tentamos juntamente com outros
funcionários participantes, encorajá-los, procurando que eles pudessem se
reconhecer como membros importantes na equipe de trabalho.
O desentendimento entre a equipe de funcionários se alia ao fato
de considerarem que crianças/adolescentes que vivem no abrigo se sentem
como autoridades na instituição. Quanto a isso, o Participante 1 comenta:
Eles [as crianças/adolescentes] usam a frase “quem manda aqui somos nós”,
porque eles têm a sensação de que eles mandam. Se o Participante 2 proibiu
o boné e eu ganhei, quem é que manda?
Diante desse relato, percebemos que a falta de harmonia da edu-
cação visível no abrigo tem gerado uma confusão no papel de autoridade.
Por vezes, alguns adultos se portam com autoritarismo, outros são extre-
mamente complacentes à custa desse autoritarismo e, assim, crianças/ado-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
lescentes criam um espaço de liberdade não assistida. Com esses fatores,
a autoridade e o limite cam fragilizados e quase esquecidos nas relações.
Carreras e outros (1998) enfatizam que, para a criança, o educador/a é o re-
presentante dos valores vigentes na sociedade, ele é para ela como um guia
de valores, mas para ser esse guia deve reconhecer e exercer sua autoridade.
Pareceu-nos claro que a questão se resume ao fato de que os fun-
cionários não assumem a postura de educadores, não exigindo o respeito a
si e desrespeitando as crianças/adolescentes. Isso leva ao clima de disputa
de autoridade ao invés de constituir uma relação de educador/educando.
Diante disso, propusemos uma discussão a partir do seguinte exemplo:
Tem mãe que diz para o lho: “Se você não comer a comida, eu vou
falar para o seu pai”. (Autores).
Alguns participantes se manifestaram:
Acontece muito isso. (Participante 3).
Isso é transferir responsabilidade, não quer assumir. (Participante 1).
Com esse e outros exemplos apresentados pelo grupo como da
história de uma novela, pudemos reetir como os problemas estão sendo
resolvidos na própria entidade e o porquê de alguns funcionários obterem
respeito pelas crianças e outros não. Acreditamos que isso ocorra, porque
a responsabilidade de educá-las e de intervir nos comportamentos indese-
jados está cando a cargo somente de alguns funcionários, de sorte que as
crianças/adolescentes obedecem somente àqueles que as repreendem e que
cobram uma postura adequada: mas será que essa obediência está acon-
tecendo pelo respeito e pela regra em si ou pela coação? Diante da fala
dos funcionários, parece que são válidas ambas as hipóteses, quer dizer,
dentre os funcionários que se veem como educadores, alguns conseguem
obediência e respeito predominantemente pela coação e outros, também
predominantemente pelo respeito mútuo.
O Participante 8 mostrou-se descrente que uma postura de edu-
cador iria resolver sua relação com as crianças/adolescentes:
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Você pode conversar, mas se ele vai car sentado é outra coisa [...] o que
acontece no passe
17
, até então os meninos sabiam que tinha a regra que
tinha que estar todo mundo no passe, aí, o que aconteceu com o pessoal do
passe? “Ah, você vem se você quiser, você não é obrigado”, agora, desde que
ele falou isso, como é que você vai obrigar que ele vá lá? (Participante 8).
Nós, enquanto pais, a gente obriga “você vai para a igreja”, qualquer reli-
gião que seja. (Participante 1).
[...] Antigamente não tinha essa bagunça, todo mundo cava quieto.
(Participante 8).
Segundo Kamii e Devries (1991), o fato de o educador não es-
tabelecer uma relação de respeito unilateral entre ele e a criança não quer
dizer que tudo lhe será permitido; dessa forma, não se utilizar do autorita-
rismo para obter a obediência de uma criança não signica que irá permitir
que ela o desrespeite ou que tome todas as decisões por conta própria. O
educador que assumir uma postura democrática num ambiente coopera-
tivo fará uso de sua autoridade moral e intelectual, porque “[...] existem
situações na qual os adultos precisam ser coersivos (sic), simplesmente,
porque são responsáveis pelo bem-estar da criança e sabe mais sobre saúde
e segurança”. (KAMII; DEVRIES, 1991, p. 33). No entanto, o exemplo
utilizado pelo Participante 8 se torna ainda mais delicado, por se tratar de
práticas religiosas. Dizemos dessa forma, pois, que diferentemente da edu-
cação religiosa familiar, no abrigo, cada criança/adolescente em seu con-
vívio familiar anterior ao abrigamento possivelmente já praticava alguma
religião e, embora a instituição tenha boas intenções em proporcionar edu-
cação religiosa às crianças/ adolescentes que nela vivem, devem respeitar a
origem religiosa de cada um. A proposta presente nas orientações técnicas
para os serviços de acolhimento (BRASIL, 2009) é de o abrigo proporcio-
nar acesso a atividades religiosas da própria religião da criança/adolescente,
como descreve:
Os antecedentes religiosos de crianças e adolescentes deverão ser res-
peitados tanto pelo serviço de acolhimento quanto por aqueles com os
quais venha a manter contato em razão de seu acolhimento. Nenhuma
criança ou adolescente deverá ser incentivado ou persuadido a mudar
sua orientação religiosa enquanto estiver sob cuidados em serviço de
acolhimento.
17
Rito religioso

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Visando a garantia do direito à liberdade de crença e culto religio-
so, assegurado no Art. 16 do ECA, os serviços de acolhimento devem
propiciar, ainda, que a criança e o adolescente possam satisfazer suas
necessidades de vida religiosa e espiritual. Nesse sentido, deve ser viabi-
lizado o acesso às atividades de sua religião, bem como o direito de não
participar de atos religiosos e recusar instrução ou orientação religiosa
que não lhe seja signicativa. (BRASIL, 2009, p.15).
A preocupação do Participante 8 não era exatamente a prática re-
ligiosa, mas a falta de controle das crianças/adolescentes que não queriam
dela participar, com a manutenção da ordem. Contudo, pelo exemplo, ob-
servamos ainda que, a favor desse controle e de ordem, alguns funcionários
estavam querendo obrigar as crianças/adolescentes a participar de atos reli-
giosos sem a sua vontade, contrariando a postura dos próprios ministran-
tes, que, segundo a fala do funcionário, entendia que elas/eles poderiam
participar se quisessem.
Também discutimos sobre o ambiente de abrigo como sendo
acolhedor e sobre a necessidade de a criança/adolescentes se sentir como
pertencente àquela casa e participante de suas atividades, abordando a ne-
cessidade de não permitir que esses momentos de interação da criança/
adolescente nas atividades da casa sejam premiados, mas vistos como uma
oportunidade de a criança se sentir útil, ter pequenas responsabilidades e
preservar o ambiente em que vive. Houve relatos como o que segue:
Aconteceu um fato essa semana agora, que eu falei assim “Quem que vai
limpar o refeitório para mim?” – ninguém respondeu, aí o David veio e fa-
lou assim, “Não, tia, deixa que eu limpo, que eu varro e que eu passo pano
na mesa”. Aí eu virei e falei assim, para todo mundo escutar: “Ah, então
David eu vou te dar um prêmio, porque você se pronticou a limpar”. Aí
eu ouvi aquilo que eu queria ouvir, todos falaram: “Ah, eu também quero
limpar”. Então, eu percebi que isso não é legal, eu z um teste e consegui
captar que não é legal, senão eles vão fazer tudo em troca de alguma coisa.
Então eu melhorei nisso, eu aprendi, porque eu fazia, eu era uma pessoa
que fazia isso [...] Mas o David foi tão legal, porque ele foi espontâneo,
não foi por troca de nada [...] dei, mas aí eu falei que não foi por troca, aí
eu falei com todos: “Eu queria ver até onde vocês iam” [...] Mas eu estou
aprendendo, já melhorei bastante a respeito disso. (Participante 2).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Esse participante traz à discussão sua reexão a propósito de sua
postura como educador na relação com as crianças. Em sua autocrítica, ele
percebe que sua ação não estava sendo educativa de responsabilidade, mas
gerando nas crianças valores como o de troca e interesse individual. Como
já frisamos, “[...] é impossível educar sem errar” (VINHA, 2000); por isso,
vemos como um resultado importante para nosso estudo o relato desse
participante, pois, em outras reuniões, este defendia a troca como uma
alternativa de educação para crianças que vivem em abrigo.
Em alguns momentos, surgiu a discussão da falta de limites das
crianças/adolescentes do abrigo; alguns funcionários, sobretudo os auxi-
liares de cuidador, ainda se mostravam inseguros em se reconhecer como
educadores e em agir dessa maneira. Esse assunto foi tratado desde nossa
primeira reunião de estudo, mas ainda não era um assunto totalmente su-
perado, como mostram os relatos:
Participante 5: Sabe o que eu acho que deveria fazer? O Participante 1
chamar eles em uma reunião e falar assim “Oh, quando vocês entrarem no
chuveiro, vou dar um prazo de quantos minutos”, para eles aprenderem.
Autores: [...] Vocês se sentem como educadores aqui dentro?
Participante 5: Eu me sinto, meia, mas me sinto.
Funcionário: Não é totalmente, porque ela não é uma babá.
Vemos que, para alguns funcionários, ser educador ainda corres-
ponde ao fato de exercerem uma função especíca: como auxiliares, eles
seriam “meio” educadores. Contudo, educar a criança em valores morais
é uma tarefa coletiva de toda a equipe de trabalho, sendo assim, todos,
independentemente de sua função no abrigo, tornam-se educadores por
“inteiro”, suas atitudes, intervenções e exemplos podem ser sucientes para
contribuir ou atrapalhar o procedimento de educação de toda a equipe,
como arma Kamii e DeVries (1991). Por essa razão, é imperiosa igual-
mente a comunicação e o entrosamento de toda a equipe de prossionais.
Um participante expõe:
Muitas vezes a gente acaba sendo como mentirosa aqui dentro. Eu estou me
sentindo insegura nas coisas que a gente vai tomar atitude com a criança e
a criança chega para o outro e fala uma coisa que não é real, então precisa
prestar muita atenção nisso [...] a comunicação é muito importante, a

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
sinceridade é muito importante, porque a criança precisa muito de você,
mas desde que você seja sincero, porque se você é sincera com a criança, ela
também vai te respeitar e vai ser sincera, e aqui não há isso. Não há uma
interação total, não há [...] tem funcionário que você vai falar alguma
coisa já emburra [...] cheguei ao ponto de falar para a diretoria que eu não
quero mais tomar conta de funcionário [...] (Participante 2).
A fragilidade de entrosamento e comunicação entre essa equipe
de funcionários está criando em alguns deles angústias e prejudicando o
desempenho de sua função e, principalmente, o trabalho educativo com as
crianças/adolescentes. Como seria possível criar um ambiente favorável ao
desenvolvimento da autonomia das crianças/adolescentes, se os próprios
funcionários não se entendem e não há, em muitos casos, o respeito mútuo
entre eles? É evidente que a hierarquia entre as funções sempre existirá e
é preciso, nesse meio educativo, que é uma entidade de serviço de acolhi-
mento; entretanto, é possível estabelecer cooperação entre elas, mesmo que
esta não seja plena, partindo do pressuposto de que “[...] nunca há coo-
peração absolutamente pura”, mesmo nas relações entre iguais (PIAGET,
1932-1994, p.79).
4.1.1.2 RESPEITO INTERPESSOAL NO AMBIENTE DE ABRIGO
Um de nossos objetivos foi reetir junto aos funcionários sobre a
qualidade dos relacionamentos que estabelecemos com as pessoas, princi-
palmente no ambiente de trabalho, assim como os motivos que nos levam
a nos relacionarmos melhor com uma pessoa do que com outra, além de
questões inerentes ao relacionamento interpessoal, como: anidade, de-
sapontamento, generosidade, valores, diálogo e a linguagem. Utilizamos
como recurso para estimular a discussão a “Dinâmica dos Bombons”, a
qual consistia em cada participante pegar o bombom preferido de uma
caixa. Depois de todos pegarem os bombons, deveriam trocar com outro
participante.
Na troca dos bombons, os participantes expressaram frases como
as seguintes: “Comer esse dai vai me dar uma azia; Tem coisas que a gente
tem que trocar na vida, gostando ou não a gente tem que trocar; “Eu gostei de
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

trocar, eu vou saborear um que eu nunca comi; “Eu tive que dar o da cor que
eu gostava e o maior [...] agora eu vou ter que car com esse pequeno.
As falas ditas pelos participantes e suas reações foram utilizadas
como base de comparação com situações que ocorrem no dia-a-dia, nas
relações interpessoais no trabalho na instituição, tanto nas relações entre os
funcionários como nas relações com as crianças/adolescentes.
Essa dinâmica levou os funcionários a comparar seus atos com os
bombons, de maneira que concluíram que o que é bom para um pode não
ser bom para o outro. Esse assunto os fez reetir a respeito da diculdade
de um relacionamento em que os envolvidos apresentam valores diferentes
e conitantes. O participante 10 relata:
Eu acho assim: dentro de uma equipe sempre tem alguém que não é acei-
tável, sempre tem um. Então a pessoa convive com aquilo ali, porque é o
dia-a-dia, então eu acho que eu tenho que fazer a minha parte de conviver
com todo mundo. Agora, tem aquela parte, que nem ela fala, que ninguém
é obrigado a gostar de ninguém, só que tem o respeito. A pessoa tem que
respeitar um com o outro e procurar viver numa equipe, se você quiser
continuar naquele lugar que está.
Esse participante percebeu que, para o convívio em uma equipe
de trabalho, é preciso que se estabeleçam valores como o respeito e a tole-
rância, já que, conforme Martín Garcia e Puig (2010), para fazer parte de
uma equipe é necessário aprender a relacionar-se com pessoas de personali-
dades diferentes. Na articulação de uma equipe, é comum haver conitos,
tanto prossionais como pessoais; para os autores, prever esses conitos
e não os ignorar é essencial para evitar que eles assumam uma proporção
indesejada ou alterem o trabalho de convivência da equipe. Os autores
ainda armam:
O conhecimento mútuo ajuda a prever alguns conitos e tirar proveito
das divergências [...] ter respeito pelos demais, certo nível de tolerância,
senso de humor e capacidade para relativizar alguns temas são aspectos
valiosos para administrar os conitos. (MARTÍN GARCIA; PUIG,
2010, p.110).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Tratando-se do respeito à opinião do outro, o Participante 2
ressalta:
Quantas vezes eu já discordei do Participante 7, hoje eu já olho, a gente já
conversa, vê, eu falei: “Participante 7, eu não estou te expondo [impondo],
você pensa” [...] Porque ela tem direito de pensar, ela tem direito de dar a
opinião dela, como eu também tenho a minha, mas primeiro eu já expus
o problema para ela, “você vai topar?”, “pensa”, porque não podemos ser
egoístas, o doce não é só meu, porque se eu comer o doce sozinha, escondida,
não está valendo a pena car na entidade. Eu penso assim.
Ao mesmo tempo em que o Participante 2 diz que se deve respei-
tar a opinião dos outros, em seu exemplo, ela expõe sua opinião e o pro-
blema, restando para o Participante 7 pensar e dizer se concorda ou não.
Sendo assim, com esse exemplo, não percebemos um trabalho em equipe
como o descrito por Martín Garcia e Puig (2010), pois o problema não foi
pensado em conjunto pelos participantes, mas por apenas um deles.
Segundo Martín Garcia e Puig (2010), para o respeito interpesso-
al é importante o conhecimento mútuo, de que se podem retirar vantagens
das diferenças, a criatividade em formular procedimentos educacionais
pode ser maior em uma equipe heterogênea do que em uma equipe em
que todos pensam da mesma maneira. No entanto, deve haver o cuidado
na formulação desses procedimentos, direcionando-os sempre pelos prin-
cípios universais (respeito, justiça, igualdade etc.) e não os xarem para a
obtenção do controle garantindo a ordem, a disciplina. No relacionamento
de uma equipe, é necessário haver respeito entre as partes, pois, como in-
divíduos, cada funcionário apresenta uma personalidade diferente e com
isso terá visões distintas diante de um problema. Para haver harmonia na
educação moral das crianças/adolescentes, é preciso implementar o diálogo
entre os funcionários, não simplesmente para dizer o que pensa ou opinar,
mas sobretudo para conhecer e entender o ponto de vista do outro e assim,
formularem juntos planos de ação para promover o desenvolvimento da
criança/adolescente em todos os aspectos. Um dos aspectos que emergiu
nas reuniões referente ao respeito interpessoal foi uma queixa de que as
crianças/adolescentes não conseguiam respeitar aos outros, aos pertences
alheios, seus próprios, como os da instituição. Diante disso, introduzimos
uma discussão a respeito de como o indivíduo desenvolve a autovaloriza-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

ção, a valorização de outrem e do patrimônio, e a contribuição do adulto,
nesse desenvolvimento. Para isso, levamos para discussão a poesia intitu-
lada “Pessoas são diferentes”, de Ruth Rocha (ROCHA; FLORA, 1996).
As primeiras contribuições dos participantes foram a identica-
ção de que todos os seres humanos são diferentes, no entanto, igualmente
dignos de serem respeitados em suas diferenças, conforme ressaltam as se-
guintes falas:
Eu tento tratar todo mundo igual independente, mas respeitando os limites
de cada um, as qualidades e os defeitos de cada um. (Participante 3).
Eles são diferentes, mas a gente tem que ter paciência e entender os dois.
(Participante 7).
[...] é difícil a gente ter no dia-a-dia essa visão igual de uma criança,
porque a gente acaba levando a nossa afetividade, aquela que a gente tem
mais facilidade para lidar [...] mas a gente tem que respeitar todo o ser
humano como igual. (Participante 4).
Os participantes pareciam ter convicção de que é necessário res-
peitar todos os seres humanos, mesmo com suas diferenças, mas também
demonstravam que isso não é uma tarefa fácil, quando relatam “[...] tem que
ter paciência”, “[...] a gente acaba levando a nossa afetividade”. Nesse sentido,
ao indagarmos o que a gente tende a fazer nessas situações, um participante
respondeu: “Colocar num bolo e tratar todo mundo igual” (Participante 1).
Não é novidade o reconhecimento das diferenças de características e per-
sonalidades dos seres humanos, contudo, a nossa discussão gira em torno
de qual é a nossa relação interpessoal considerando essas diferenças. Assim
como os participantes armam, é necessário agir com equidade em nossos
relacionamentos com os outros, exercitando o nível mais elevado da justiça
distributiva, como descreve Piaget (1932/1994), porém, eles mesmos res-
saltam que esse exercício não é fácil, pois exige habilidade e imparcialidade.
O problema ocorre quando as diferenças pessoais não são respei-
tadas ou quando elas são extremamente destacadas, como, por exemplo,
quando elogiamos uma criança em detrimento de outra:
A questão da beleza ca claro, aqui. Quando vêm as visitas o pessoal gosta
de paparicar o Paulo, porque é mais clarinho, tem aquele ar de coitadinho,
então ca muito claro. (Participante 4).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Chegou uma visita, outro dia, veio e queria pegar uma criança para levar,
viu o David, “Ai que menino lindo dos olhos verdes”, os outros caram
assim, sabe? (Funcionário).
Diante desses dois exemplos, percebemos a crítica desses parti-
cipantes em relação ao olhar de algumas pessoas que vêm visitar a insti-
tuição. A sensação é de que elas selecionam as crianças como estando em
vitrines”, sem respeitar os sentimentos das demais crianças e mesmo os
daquela que está em evidência. Nesse caso, o elogio da pessoa visitante
estaria supervalorizando uma criança e provocando ciúmes nas demais,
e provavelmente também gerando nestas o sentimento de inferioridade e
rejeição. Para Vinha (2000, p.528), “[...] o elogio é um remédio poderoso,
e por isso deve ser utilizado com parcimônia e conhecimento”.
Um dos participantes, quanto à questão do elogio, expõe:
O elogio é muito importante até um ponto, a gente não pode car elogian-
do muito não. Porque a pessoa se acha sabe. Eu até, quando uma pessoa
me elogia eu não me acho, porque eu penso assim, eu não posso car me
achando, pra que car me achando, eu z minha obrigação, a gente ca
contente, mas não pode car se achando. (Participante 6).
Esse participante percebeu que nem sempre o elogio faz “bem
para a pessoa elogiada, ele usa a expressão “a pessoa se acha”, não no senti-
do de autovalorização, mas de supervalorização advinda externamente. Ele
diz: “Eu z minha obrigação; desse modo, esse participante não vê o elogio
em exagero como positivo, porque, segundo ele, esse tipo de elogio não
permite à pessoa avaliar sua ação, mas se supervalorizar. Segundo Vinha
(2000), esse é o elogio valorativo, que pode acarretar para a pessoa um
aprisionamento à constante avaliação externa, ou seja, esse indivíduo, ao
receber o juízo de valor quanto à sua característica ou caráter – como, por
exemplo, Você é uma boa cozinheira, a comida estava uma delícia –, busca-
rá sempre fazer uma comida gostosa para agradar as pessoas e receber novos
elogios. Tratando-se de um indivíduo em formação, isso pode ser consi-
derado ainda mais preocupante, pois, em casos como esse, a criança não
aprenderá a se autoavaliar, mas a esperar do outro essa avaliação. De acordo
com Ginott (1989 apud VINHA, 2000), ao contrário do elogio valorativo,
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

que avalia a personalidade ou julga o caráter da pessoa, o elogio aprecia-
tivo descreve os esforços e a realização de uma pessoa e nossos sentimen-
tos sobre os mesmos, possibilitando que o indivíduo elogiado faça por ele
mesmo a avaliação de sua ação e, consequentemente, sua autovalorização.
Nenhuma criança desenvolverá um espírito crítico e autônomo, nem
uma autoestima realista e positiva, se car na dependência dos julga-
mentos do adulto, para saber sempre se o que fez é certo ou errado, ou
mesmo, para saber quem ela é. (VINHA, 2000, p.541).
Outra questão discutida a respeito de como o indivíduo de-
senvolve a autovalorização, a valorização de outrem e do patrimônio, e
a contribuição do adulto, nesse desenvolvimento envolveu os problemas
relacionados à individualidade e a coletividade de pertences das crianças/
adolescentes em situação de acolhimento. Quanto a isso, os funcionários
relataram que as crianças/adolescentes não tinham um local para guardar
seus pertences de modo que tivessem fácil acesso a eles. O armário exis-
tente era do tipo roupeiro para vestiário cava trancado e guardava alguns
pertences particulares aos quais as crianças/adolescentes não tinham aces-
so direto. Alguns dos funcionários eram favoráveis a construção de um
armário a que as crianças/adolescentes tivessem acesso, para guardarem
seus brinquedos individuais e algum outro pertence que pudessem buscar
quando assim desejassem. Outros funcionários enxergavam diculdades
em disponibilizar o acesso às crianças/adolescentes. Exemplicaremos al-
gumas das falas dos participantes:
Eu acho que seria importante ter um armário, eu citei até no dia dos doces
que eles ganham, parece que são meio robozinho assim, então ganhou tem
que comer na sexta-feira a noite porque senão no outro dia ou vai perder
[...] então eles não têm um lugar onde eles podem garantir que aquilo é
deles e está em segurança [...] então se tivesse um armário individual que
tivesse uma chave que NÃO casse na mão deles [...] eles destroem, porque
muitas vezes, eles sabem que aquilo não vai durar muito porque não tem
um lugar para guardar. (Participante 4).
Eles até tem objetos individuais, pessoais, só que cam trancados porque
uns destroem as coisas dos outros, até tem dentro do armário porta-retratos,
o Tomás já ganhou uma almofada da mãe dele, o outro ganhou uma foto,
ca tudo dentro do armário que ca trancado. Porque senão um destrói
as coisas dos outros [...] é um desrespeito total à privacidade do outro.
(Participante 1).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Eles não têm respeito nem por eles próprios, quanto mais com as coisas dos
outros. (Participante 3).
No Natal [...] nós não guardamos nenhum brinquedo, até radinho foi
dado para eles, tudo o que era brinquedo eu só guardei as roupas conforme
foi combinado, o que aconteceu? No dia seguinte, não tinha mais brinque-
do. (Participante 3).
Mas onde que eles poderiam guardar os brinquedos que ganharam?
(Autores).
Alguns levaram para casa, outros no dia seguinte antes de irem para casa já
trocaram, eles não têm interesse de guardar. (Participante 3).
Eles trocam, vendem [...] não dão valor. (Participante 1).
Antigamente era só o coletivo, e hoje eles têm o individual [...] O diretor da
época queria que casse tudo livre para eles, que eles tivessem participação
nas coisas, mas ele mesmo viu que isso não dava certo. (Participante 2).
A grande questão que percebemos, na fala desses funcionários, é a
diculdade que as crianças/adolescentes estão tendo em valorizar seus per-
tencem e os pertences dos outros segundo os critérios do adulto. A medida
que esses funcionários encontraram para evitar o “desrespeito com os per-
tences alheios e aos próprios” foi de trancar os armários e dar acesso restrito
às crianças/adolescentes com supervisão de um adulto. Porém, evitar que
uma determinada coisa aconteça permitirá que essas crianças/adolescentes
aprendam a respeitar seu patrimônio e o do outro? Pensamos que isso cria
um certo círculo vicioso em que não se atribui responsabilidade por não
se acreditar no potencial de construção da criança/adolescente e por outro
lado, tal capacidade não se constrói por falta de oportunização de situações
que lhe coloquem uma necessidade de construção.
Pudemos notar também nessas falas que eles têm seus armários
pessoais, mas alguns não se pronticam em guardar seus pertences. Qual o
sentido que eles veem em um armário a que não podem ter pleno acesso?
Qual o motivo de se sentirem obrigados a preservar seu patrimônio e o
patrimônio do outro? Vemos nisso uma situação até certo ponto perversa,
uma vez que o adulto cria uma regra para algo que não consegue resolver
e culpabiliza o outro (crianças/adolescentes) pela necessidade de criar tal
regra. Poderíamos pensar em várias formas de trabalhar o valor de si e a
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

necessidade que todos têm de manter algum nível de privacidade e inti-
midade e como isso deveria ser respeitado por todos (até porque é uma
necessidade de todos), mas a situação é “resolvida” criando uma “solução
instantânea” que é a regra de trancar o armário com chave.
As crianças/adolescentes do abrigo, segundo demonstra o
Participante 3, “[...] não têm respeito nem por eles próprios, quanto mais
com as coisas dos outros”. Pelas considerações acima, somente com o res-
peito mútuo é possível desenvolver a valorização consciente de si, do outro
e do patrimônio. Uma não acontece sem a outra, assim, uma criança/ado-
lescente somente respeitará o outro e os objetos (privado e público) inter-
namente, se vir signicado nesse respeito, e esse signicado apenas surge
quando há a descentração: ao se colocar no lugar do outro ou daquilo que
o representa, a pessoa torna-se capaz de valorizá-lo, o que igualmente só
fará sentido quando ela desenvolver sua própria valorização. Caso não haja
autovalorização, a valorização do outro e do patrimônio se tornam exterior
ao sujeito (somente o fazem para não sofrerem sanção ou para receberem
vantagens). Obviamente, para isso, também são necessários outros pré-
-requisitos, como a noção de individualidade e da coletividade, que se dará
no exercício da vida social.
4.1.1.3 A INSEGURANÇA (VULNERABILIDADE), A LINGUAGEM DO EDUCADOR E
A PRÁTICA DO RÓTULO
Com efeito, a maior queixa entre os funcionários do abrigo era o
fato de não falarem a mesma linguagem, por essa razão, sentimos a neces-
sidade de tratar deste assunto. Como esse tema era signicativo para eles,
procuramos formular uma estratégia de intervenção em que eles pudessem
tomar contato com diferentes tipos de linguagem e classicá-las, eles pró-
prios, indicando qual seria a mais adequada para empregar, mantendo uma
reexão constante no motivo de sua adequação. Como recurso para dispa-
rar uma discussão a respeito do tema, introduzimos uma pequena histó-
ria contada por Ginott (1989 apud VINHA, 2000) em que uma mulher
casada ao preparar o café da manhã se depara com várias situações adver-
sas, como seu lho chorar, telefone e campainha tocarem, não encontrar a
chave etc., com essas ocorrências a torrada queima. O autor então oferece

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
algumas possibilidades de resposta do marido dessa mulher. A primeira
delas é questionando sua capacidade de realizar tarefas simples de modo
acusatório, a segunda é de piedade e paternalista e a terceira é uma lingua-
gem descritiva e compreensiva. Pedimos que os participantes contassem se
eles haviam percebido em sua rotina algum exemplo de fala parecida com
as demonstradas na história. Poucos dos participantes se pronunciaram:
De a criança sentar errada na mesa. “Tiago não é assim, você está cansado
de ouvir que não é assim”. Aí ele tira e depois vira de novo. Aí a gente tem
que car repetindo. (Funcionário).
Eu acho que aqui tem muitos. O menino não pode entrar na cozinha ‘não,
porque já tem a cozinheira’, o menino não pode lavar o banheiro ‘não,
porque já tem a menina da limpeza’. (Participante 1).
Nos exemplos acima, mostram-se frases acusatórias e paternalis-
tas. Na primeira, como demonstra o participante, não se obtêm resultados
positivos, já que a criança volta a ter o comportamento indesejado. A fala
do Participante 1 ilustra a fase atual concernente a uma situação especíca
vivenciada pelo abrigo, que é o fato de as crianças/adolescentes não poderem
ter obrigações de realizar tarefas domésticas. Os próprios participantes creem
que essas tarefas seriam importantes para a formação da criança/adolescente,
mas, por decisão judicial, elas deixaram de ser uma prática na instituição.
Segundo o Participante 1, isso ocorre por interpretação da Lei, porque esta
em si não proíbe que a criança/adolescente cumpra tarefas domésticas: o que
não deve ocorrer é ela/ele realizar o trabalho no lugar do funcionário.
Porque dentro de uma entidade ca mais difícil ainda, porque quando
está na responsabilidade do pai se vê com bons olhos essas obrigações, agora,
numa entidade não é bem visto, porque tudo vai falar que a gente está
abusando da criança. (Participante 3).
Eles não são empregados, o trabalho é claro que o funcionário deve fazer,
mas deve haver colaboração, mas não pode! (Participante 1).
Sabemos que, no plano do desenvolvimento da criança, é neces-
sário que ela execute pequenas responsabilidades para se tornar responsá-
vel, aprenda que a organização, manutenção e preservação são itens im-
portantes para o exercício do respeito (de si, do próximo e do patrimônio).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Todavia, na instituição, assiste-se ao engessamento dessas práticas e, com
isso, interfere-se no desenvolvimento da criança, tanto em relação à práti-
ca, como ao exercício de tarefas de vida diária importantes para o convívio
em grupo e até mesmo sozinha, quanto ao emocional, como o pertenci-
mento, isto é, se sentir como pertencente àquela casa, não apenas inserida,
mas cooperando.
É possível também pensar o abrigo como um ambiente em que a ale-
gria e a brincadeira têm condição de aorar nas atividades cotidianas. A
experiência da criação e da participação ativa das crianças na dinâmica
diária do abrigo favorece a diminuição da tensão e a possibilidade de
expressão e comunicação descontraída entre elas e delas com os educa-
dores. (GUARÁ, 2006, p.65).
Para buscar estimular nas crianças/adolescentes a cooperação e o
entrosamento, nas atividades do abrigo, são xadas duas obrigações gerais:
arrumar a cama e retirar o próprio prato após as refeições. Nas atividades
com o Participante 4, as crianças/adolescentes são solicitadas a colaborar
com a organização do ambiente utilizado após as atividades, no entanto,
segundo a fala desse participante, em outras reuniões, dicilmente eles co-
laboram espontaneamente, prestando alguma ajuda somente após muitos
pedidos, o que leva a entender que a cooperação não é encarada pelas crian-
ças/adolescentes como uma necessidade intrínseca ao convívio em grupo.
Essa colaboração não está sendo signicativa para elas/eles, não constituin-
do mais do que uma obrigação de atender à ordem vinda do adulto.
Por essa razão, qualquer atividade com as crianças/adolescentes
deve ser conduzida usando-se uma linguagem adequada à sua real compre-
ensão. Embora uma atividade seja bem intencionada, se utilizarmos uma
linguagem acusativa, ameaçando ou sendo paternalista, dicilmente ela
será útil para o desenvolvimento da criança/adolescente.
Após os exemplos de tipos de linguagem exibidos pelos parti-
cipantes, entregamos ao grupo uma série de frases expressando diferen-
tes tipos de linguagens – Linguagem acusatória, Linguagem paternalis-
ta, Linguagem descritiva – e pedimos para que eles as organizassem em
dois diferentes grupos: as adequadas para serem ditas e as inadequadas.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Após isso, deveriam reclassicá-las segundo os três tipos de linguagens já
mencionados.
No momento da atividade, ouvimos de alguns participantes: “Tem
algumas aqui que eu falo [...] mas no fundo eu acho errado (Participante 3);
“Eu acho que não deve se falar [...] aí ele vai sempre querer ser o coitadinho
(Participante 6); “Intimida ainda mais a pessoa, eu acho [...] você não permite
a pessoa amadurecer e crescer” (Participante 1).
Com essa atividade, os participantes puderam se ver em diferen-
tes situações e reetir se o uso daqueles exemplos de frases era adequado ou
não em uma relação de ensino e respeito à criança/adolescente e também
no relacionamento com os colegas de trabalho. Como pudemos notar, em
falas como a do Participante 3, havia funcionários que identicavam suas
próprias falas nas frases por nós ilustradas e, mesmo que reconhecendo que
era frequente o seu uso, acreditavam que não era adequada para ser dita.
Isso evidencia a necessidade de estudos teóricos e de reetirmos sobre nossa
prática para formularmos estratégias de mudança naquilo que está inter-
ferindo negativamente no procedimento de ensino estabelecido, para que
possibilite tornar o ambiente de abrigo mais propício ao desenvolvimento
da autonomia moral. Como destaca Vinha (2000, p.30),
[...] sabemos ser impossível educar sem errar, o erro é encarado como
inevitável no processo educativo; necessário à construção do conheci-
mento. Todavia, consideramos que muitos erros podem ser evitados
com o estudo teórico e a reexão contínua sobre a prática.
Em alguns momentos da atividade, houve confusão na inter-
pretação das frases expostas, pois alguns participantes não estavam enten-
dendo a relação de seu conteúdo com o sujeito psicológico presente nela,
como no exemplo do Participante 4: “Acho que depende da situação, do
que está ocorrendo, porque, se a criança está subindo na janela, você vai falar,
nossa, você não me ouve, desce daí’[...] para não colocar em risco a criança.
É evidente que não devemos esperar que a criança aprenda tudo com a
experiência vivenciada, como, por exemplo, deixá-la cair da janela para que
saiba que não se deve subir em janelas, mas, no momento de sua interven-
ção, deve-se ser claro e objetivo, “janela não é lugar para se subir, ao invés
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

de partir para acusação mas você nunca me ouve”, preferindo colocar em
evidência a situação e não a criança.
As palavras que usamos fazem uma grande diferença. Uma coisa é o
que se está querendo dizer, e outra é o que o receptor compreende.
São dois elementos distintos. A maneira como nos dirigimos às pessoas
causa impressões em suas emoções, e faz diferença em seus sentimen-
tos. (VINHA, 2000, p.279).
Certos funcionários observaram que o uso de uma linguagem acu-
satória iria propagar ainda mais o comportamento indesejado que a crian-
ça/adolescente estava apresentando. Assim como na fala do Participante 1,
ilustrada acima, o Participante 4 declara: ela rotula a criança, você nomeia
a criança daquilo aí ca ‘você é chato’, aí o grupo dos meninos começam,
ah você é chato, o funcionário falou que você é chato’”. Então, esse tipo de
linguagem não estaria prejudicando somente a tomada de consciência da
criança/adolescente, mas sua socialização na instituição.
Quanto à escolha por um determinado tipo de linguagem em vez
de outro, um funcionário expõe:
Às vezes você tenta de mil e uma formas, já passou por essa fase de acusar,
já passou pela fase de explicar, já passou por mil e uma formas e você não
vê resultado de nada [...] é cansativo. (Participante 3).
Na verdade, em nossa função de educador, angustiamo-nos quan-
do nossa prática demora em ter os resultados esperados, esquecendo-nos
de que estamos lidando com seres humanos, passíveis dos mais diversos
tipos de sentimentos, personalidades, percepções, enm, são indivíduos.
Devemos ser pacientes e perseverantes em nossos princípios, visto que,
caso nos apressemos em busca de resultados instantâneos, contrariando
para isso nossos princípios e utilizando todos os diferentes tipos de lin-
guagem – se um dia uso uma linguagem descritiva, no outro a acuso e em
outro uso de paternalismo com ela – como isso será encarado pela criança/
adolescente? Isso equivale ao tipo de linguagem eleita por toda a equipe de
educadores, a necessidade de se constituir harmonia no procedimento edu-
cativo. Devemos ter ciência de que o desenvolvimento moral da criança/
adolescente não se dará instantaneamente, como frequentemente deseja-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
do, mas é um processo longitudinal que necessita de atenção e persistência
de todos os educadores envolvidos em propiciar a ela um espaço em que
possa praticar relações de cooperação e respeito mútuo.
Com o mesmo propósito, trabalhamos com uma outra técnica,
a “Dinâmica dos Rótulos”. O objetivo dessa dinâmica foi propiciar uma
situação em que os funcionários da instituição pudessem ser rotulados,
identicando quais sentimentos que os rótulos lhes trariam e como se sen-
tiriam na relação com os outros, tendo esses rótulos. Para isso, propusemos
uma dinâmica que consistia em xar em todos os participantes um rótulo,
de maneira que não fosse visível para o rotulado, mas somente para os de-
mais. Todos do grupo deveriam se relacionar de acordo com o que lessem
no rótulo dos demais. Os rótulos eram os seguintes: malcriado, malandro,
cruel, sensível, amoroso, inteligente, malicioso e dedicado.
Os funcionários participaram ativamente da dinâmica, porém,
houve muita diculdade em diferenciar a brincadeira proposta quanto
à realidade vivida, de forma que, em muitos momentos, falavam frases
como: “mas ela não é assim”; “ela deveria ser assim, mas falta alguma coisa
para se tornar isso”; “mesmo que ela quiser, ela não vai ser isso. Por essa razão,
nessas ocasiões, era difícil haver interação como proposto pela atividade,
surpreendendo-se medo em ser mal interpretado por parte de uns e não
aceito por outros. Repetíamos à turma que aquela atividade era como um
teatro em que eles estavam representando um papel, e não estávamos ques-
tionando se eles eram o que dizia o rótulo ou não. Entendido isso, conse-
guiram realizá-la bem.
Nesse primeiro momento da dinâmica, vericamos o quão frágil
era o entrosamento entre alguns funcionários da instituição, no sentido
de sentirem medo de participar da brincadeira e se relacionar conforme o
rótulo do colega de trabalho, ou não acreditar que este era digno de um
rótulo agradável. Dentre os que não tiveram diculdade de entrosamento,
notamos um dinamismo na atividade e criticidade, tanto com a percepção
de si perante a fala dos colegas, quanto com o julgamento do outro segun-
do o rótulo.
Houve falas como: Vixe!” (Participante 5); Você não me engana!”
(Participante 2); “Uma pessoa que escolhe o caminho errado!” (Participante
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

4); Você não pode continuar do jeito que é, tem que mudar” (Participante 6);
“Eu sou um monstro!” (Participante 2). Com essas frases, observamos como
o rótulo estigmatiza as pessoas nas relações interpessoais. Nesse caso, as
pessoas aderem a papéis de acusadoras ou de vítimas.
No segundo momento da dinâmica, propusemos que dois par-
ticipantes (um com o rótulo considerado “bom” e outro com o rótulo
considerado “ruim”) sorteassem uma dentre um conjunto de quatro fal-
tas, tais como: deixou o banheiro sujo, não arrumou a própria cama etc.
Deveriam, um de cada vez, colocar-se no lugar de quem havia cometido
essa falta e os demais deveriam se colocar no lugar de pais que comentas-
sem a falta. Ressalte-se que o rótulo deveria ser mantido. Feito isso, dis-
seram para o participante com rótulo “bom”: “Eu caria surpreso com ela
(Participante 10); “Propaganda enganosa (Participante 1); “Como eu tenho
esse rótulo eu dizia ‘qual é a tua?’” (Participante 2); e, para o participante
com rótulo “ruim”: “Eu já esperava (Participante 9); “Para ela eu castigo já
(Participante 10). Os participantes direcionaram a resolução do problema
segundo as características apresentadas nos rótulos e não pela falta em si,
não levando em conta que esse ato poderia enfatizar ainda mais o rótulo
e, quanto à educação moral, não estariam proporcionando a tomada de
consciência da criança/adolescente sobre seu ato, independentemente de
suas características marcadas pelo adulto. Para Piaget, o desenvolvimento
moral ocorre segundo a interação estabelecida do sujeito com o meio e
de uma construção interna, sua auto-organização (LA TAILLE, 2006); a
partir disso, La Taille (2006, p.15) arma:
O processo de construção dá-se na interação com o meio, e essa intera-
ção é mediada pelas ações do sujeito sobre esse meio. Se houver pouca
interação, haverá pouca construção, e se a interação deixar pouco espa-
ço às atividades estruturantes do sujeito, haverá pouca construção, ou
construção parcial.
Desse modo, podemos também concluir que toda vez que uma
intervenção diante de uma falta seja feita de modo que se puna o indiví-
duo pelo rótulo que lhe impõem, além de ser constantemente estigmati-
zado, interferindo em sua afetividade e relacionamento interpessoal, será
prejudicado o seu desenvolvimento moral, já que a punição recebida não

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
corresponderá a sua falta, podendo ser tolerada sem maiores explicações,
visto que ela/ele “nunca agiu dessa maneira”, ou expiatória, porque “já se
esperava” isso dela/dele.
Notamos que o Participante 2, ao longo da dinâmica, começou
a agir segundo o que seus colegas comentavam dele, como, no início da
atividade, dizia que estava se sentindo “um monstro”, nesse momento, ele
diz: “Como eu tenho esse rótulo, eu dizia ‘qual é a tua?’”. Se percebemos que,
nessa atividade, um adulto muda sua atitude em função de sua interação
com o grupo, o que se dirá de uma criança que, em sua relação, é constan-
temente tratada segundo os rótulos que lhe impõem?
Quando uma criança é chamada de feia, estúpida, burra ou desastrada,
há reações externas e internas em seu corpo [...] É importante mudar-
mos nossa maneira de “enxergar” a criança, retirando os rótulos que
colocamos em cada um, mostrando que ela pode ser tudo aquilo que
quiser vir a ser. (VINHA, 2000, p.290).
Diante dessa situação, percebemos o quanto o uso da linguagem
construtiva se faz importante na relação com o sujeito, o quão indesejadas
são suas atitudes em resposta às linguagens improdutivas, como a paterna-
lista e a acusativa.
No terceiro momento dessa atividade, pedimos para que os fun-
cionários se sentassem e relatassem o que estavam sentindo com o entrosa-
mento de seus colegas. Tivemos frases como:
Eu tô imaginando que não é coisa boa que tá nas minhas costas.
(Funcionário).
O Participante 7 vai sair daqui depressiva. (Participante 1).
[...] vai chegar uma hora que vai explodir. (Participante 7).
Eu me senti elogiado. (Participante 10).
Perante essas falas, vericamos que essa atividade fez com que
esses funcionários se sentissem mesmo dentro de uma situação real em que
se rotula e se é rotulado, sentindo-se incomodados, principalmente aqueles
que receberam um rótulo não agradável, cando à margem do grupo. O
Participante 2 relatou:
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Eu me senti mal, eu me senti, mas não sou eu, é o meu personagem. Eu não
gostaria de voltar nesse personagem que me puseram, porque eu senti no
olhar de cada um que eu sou uma bruxa.
Quando o Participante 2 vê o que está escrito em seu rótulo
(cruel) comenta:
[...] realmente aqui dentro do serviço eu sou a cruel [...] porque eu tenho
que cumprir a ordem da diretoria [...] eu me sinto péssima, porque eu não
gostaria dentro de um grupo, dentro de uma casa dessas me sentir dessa
forma. E realmente, por ordem ou não de cair, caiu numa pessoa certa da-
quilo que realmente acontece aqui dentro, então as pessoas me olham com
crueldade, sim [...] eu não queria que tivessem medo de mim, eu queria
que tivessem respeito por mim...
Mais uma vez, notamos, na fala desse participante, que a relação
entre alguns funcionários está fragilizada, não se encontrando nela cum-
plicidade e solidariedade para amenizar a vulnerabilidade própria do am-
biente de trabalho (lembrando que se trata de educadores/cuidadores e
auxiliares de educador/cuidador de crianças/adolescentes em situação de
risco social). Campos (2011) retrata que uma equipe de cuidadores ne-
cessita igualmente de cuidado, e que esse cuidado pode partir da própria
equipe de trabalho, na troca de experiência, angústias e, sobretudo, o apoio
ao enfrentar um problema ou um relacionamento difícil dentro da rotina:
A preocupação, o carinho que tínhamos com os pacientes, tínhamos tam-
bém entre nós. A possibilidade de nos expressarmos livremente, franca-
mente e a garantia de valor de cada um, que oferecíamos aos pacientes, era
também compartilhada e vivenciada entre nós. (CAMPOS, 2011, p.123).
No entanto, não conseguimos identicar essa cumplicidade no
relacionamento entre alguns funcionários do abrigo, porém, foram cons-
tantes as queixas de falta de entrosamento e falta de respeito entre eles.
Desse modo, cremos que a vulnerabilidade desses prossionais ca cada
vez mais acentuada, necessitando de cuidados. Além disso, pudemos notar
que o Participante 2 se sentiu incomodado ao perceber que um colega de
trabalho sentia “medo” dele, manifestando a vontade de que esse “medo

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
fosse, na verdade, “respeito”, evidenciando com isso a necessidade de inte-
ragir com os demais colegas com uma relação de reciprocidade. Todavia,
isso nos leva a questionar o porquê de esse colega sentir medo na relação
entre eles; possivelmente isso tenha sido constituído pela forma com que o
Participante 2 se impunha nessa relação e ainda pelo fato de haver notoria-
mente uma autoridade na hierarquia de suas funções.
Ainda nessa discussão entre alguns participantes, um funcionário
desabafou, dizendo-nos que se sentia rotulado e preso nesse rótulo em seu
trabalho na instituição, porque, segundo ele, é sempre usado na compa-
ração com os outros funcionários, sendo dito que com ele “as crianças se
comportam”. Tal situação o fazia se sentir incomodado diante dos colegas
de trabalho e aprisionado, com medo de errar. Com esse relato, obser-
vamos que um rótulo nunca pode ser bom, pois tanto quando o consi-
deramos ideal ou quando o desqualicamos, o indivíduo rotulado agirá
conforme o esperado e não se sentirá livre para fazer diferente, trazendo
consequências desagradáveis para o sujeito rotulado e para o grupo em que
ele convive. No caso desse funcionário, mesmo sabendo que naturalmente
seu trabalho é bem aceito, ele se sente frustrado com o desconforto dos
demais funcionários (que são comparados com ele), com a falta de liber-
dade de errar e, como bem sabemos, todos os seres humanos são passíveis
de erros e acertos.
Desse modo, partindo do pressuposto de que “[...] a identidade
pessoal só pode ser construída com base na relação que cada sujeito man-
tém com os demais” (MARTÍN GARCIA; PUIG, 2010, p.52), considera-
mos os rótulos também como prática que diculta o desenvolvimento da
autovalorização de um indivíduo. Quanto a isso, os participantes declaram:
[...] É normal, a gente acaba rotulando. (Participante 1).
Acho que não é por maldade, é por observar mesmo. A gente só não pode
levar isso adiante [...] isso já não sai assim nem como rótulo, já sai como
rotina [...] antes da gente colocar o rótulo, eu tenho certeza que a gente
tenta ajudar o máximo. (Participante 3).
A pessoa constrói muitas vezes o seu rótulo [...] então eu acho que exis-
te duas vertentes, a gente muitas vezes acaba colocando “ah, tinha que
ser aquele moleque chato”, mas tem o rótulo que você constrói também.
(Participante 1).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Está expressa a diculdade dos participantes se desvencilharem
dos rótulos. Percebemos o quanto os funcionários se envolveram e desqua-
licaram o uso dos rótulos durante a dinâmica, no entanto, em outro mo-
mento alguns alegaram que muitas vezes o seu uso é inevitável e espontâ-
neo, mesmo porque, segundo eles, antes de rotular, houve tentativas com o
objetivo de ajudar a pessoa na mudança de comportamento e não se obteve
sucesso. Ocorre aqui quase que uma culpabilização da vítima, ou seja, o
rótulo foi atribuído a ela em função de como ela se apresenta nas relações.
O Participante 1 acrescenta que as próprias pessoas podem se
autorrotular e, com isso, os outros a rotulam segundo o que lhes é passado
por ela própria. Entretanto, acreditamos que o que acontece nesse caso é,
na verdade, a construção de identidade do sujeito que, com suas carac-
terísticas, pode resultar em rótulos, mas estes são impostos pelos outros
e não por ele mesmo. Como descrito acima por Martín Garcia e Puig
(2010), a identidade de um indivíduo é construída socialmente, de forma
que, se essa identidade provoca com suas características ações indesejadas
para o convívio social, há a possibilidade de ser reelaborada, ao vê-la com
novos olhos, estabelecendo-se uma relação de respeito mútuo e linguagem
construtiva, mesmo quando se faz um elogio, “mostrando”, como já men-
cionado, “[...] que ela pode ser tudo aquilo que quiser vir a ser”, conforme
arma Vinha (2000, p 290).
4.1.1.4 DIFICULDADE NA ESCOLHA DA PUNIÇÃO E O SENTIDO DAS REGRAS
Um tema frequente foi a diculdade dos funcionários em encon-
trar uma punição adequada para ser aplicada no caso de descumprimen-
to de regras ou de conitos interpessoais. Grande parte dos funcionários
acredita que as crianças/adolescentes não têm valores como os deles, nesse
sentido, dicilmente será possível educá-los como “nossos lhos”. Alguns
participantes disseram o quanto é difícil lidar com os meninos em algu-
mas situações, para que entendam que devem respeitar os funcionários.
Relataram um exemplo ocorrido no dia anterior, em que um dos meninos
havia batido em um dos funcionários; a partir desse exemplo, transcorreu
uma discussão sobre a melhor maneira de puni-lo. Seguem os pontos prin-
cipais dessa discussão:

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Participante 1: [...] Muitas vezes a gente ca de mãos atadas, até os fun-
cionários fala: aí o que você vai fazer? A gente relata para o juiz. A gente
vai tirar o que ele mais gosta, o que muitas vezes não vai surtir efeito.
Porque muitas vezes no meu ponto de vista a criança pede pra levar um
tapa. Só que a gente não vai fazer isso [...] um psiquiatra já falou isso para
gente, que muitas vezes você tem que pegar a criança e dar aquele “chaco-
alhão” que a criança [acorda] porque ela não está te ouvindo, isso foi até
uma orientação de médicos que já passaram para a gente [...] só que aí essa
criança chegou ao ponto de agredir um funcionário aqui dentro, aí o que
fazer, como é que ca?
Participante 2: Assim, às vezes também, completando o que ela está fa-
lando, a atitude desse menino, a gente quer tirar as coisas, assim, não um
arroz, feijão, almoço e janta, isso é básico, mas tirar os privilégios. Por
que, que a gente tá tirando? Por ter acontecido [...] Mas, eu já vi colegas
de trabalho fazer o contrário. A ‘Participante 2’ saiu pela porta, eu dou.
E já aconteceu.
Participante 1: Aí não entende por que criança não obedece aos
funcionários.
Autores: [...] será que esse está sendo o melhor castigo para a criança?
Será que isso realmente vai resolver o problema? Será que não seria
possível pensar em outra alternativa?
Participante 2: Eu acho que, no momento, não. Porque com a convivência
no dia-a-dia, que me deixa doente, vamos supor, hoje eu falo: ‘Participante
6’, na janta você vai fazer lanche pra todo mundo com guaraná. Mas eu
quero que fulano de tal não tome o guaraná e nem o lanche, dá comida
normal, um suco se tiver, mas o guaraná e o lanche você não dá”. Isso dói
muito pra ele (para a criança), dói; porque você não tem outro método de
tirar, sinto muito, mas não tem.
Participante 10: Bom, mas eu posso ser sincero agora? [...] Eu acho que re-
volta ainda mais a criança. [...] A coisa mais doida, e eu me revoltei várias
vezes por causa disso, é você tirar, vamos supor, um doce, tá todo mundo
comendo um doce [...] eu vou sentir...
Autores: O que o senhor vai sentir? O senhor vai sentir vontade de
obedecer ou...
Participante 10: Não, eu vou obedecer, eu não ganhei, vou car quieto,
só que dentro de mim eu vou car sentido, aí se é uma pessoa normal, se é
uma pessoa que não toma remédio, que é “cabeça”, então pode até se con-
formar com aquilo ali, agora se é uma pessoa que depende de um remédio,
que depende de... aquela pessoa vai car revoltada por dentro, a próxima
vez que ele for agir ele vai agir com mais violência ainda.
Participante 2: [Mas] você tem que tirar alguma coisa que é de bom.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Participante 10: Tirar vamos supor uma diversão aí, sim, aí eu até con-
cordo, porque não é uma coisa que a pessoa vai sentir no paladar, vai sentir
o gosto.
Autores: Não seria a mesma coisa?
Participante 2: Alguma coisa você tem que tirar da criança, porque não
pode por a mão, você conversa, você explica, você passa para a coordenação
da criança, aí ela conversa, mas virou as costas [...]; [ele sentiu] a dor que
eu tirei do lanche, [mas] e a dor que ele chutou o funcionário?
Autores: Mas será que é a mesma coisa?
Participante 2: Ah, eu acho, os valores deles porque não é a mesma coisa
que o lho da gente, é muito diferente, o lho que está dentro da entidade é
diferente dos lhos nossos, e muitas vezes o funcionário acha que é a mesma
coisa, e não é [...] então se ele quer tanto aquele lanche que machuca ele,
porque que não respeita para ter o lanche? [...]
Autores: E se ele não tiver o lanche, aí ele não precisa respeitar o
funcionário?
Participante 2: Lógico que precisa, mas eu estou querendo dar um exemplo
disso, porque a mesma criança que chutou é a mesma criança que eu tirei
[...] se o lanche não é bom tirar, por quê? O que vamos tirar deles? Vai
passar a mão na cabeça, porque ele é institucionalizado? Não pode! [...]
mas se a gente junta nós os funcionários da instituição vê como a gente vai
tratar as crianças e todo mundo concordar vai ser uma beleza [...] por quê?
Porque nós vamos fazer a mesma coisa que todo mundo tá pensando, não
para fazer o que zeram comigo, empurrando a criança contra mim.
Podemos notar, nesses trechos da discussão, aspectos relevantes.
Os mais evidentes são: a falta de entrosamento entre os funcionários na
educação das crianças/adolescentes, acarretando com isso problemas nos
momentos em que se devem estabelecer limites para as crianças/adolescen-
tes, e a diculdade em formular estratégias de ensino quando há a neces-
sidade de sanção.
Devemos lembrar que o objetivo de promover a educação moral
é a construção da autonomia – a criança se descentrar, entender que, numa
relação, devemos respeitar e exigir o respeito, que as regras de um grupo
servem para o seu bom convívio social e são construídas para serem cum-
pridas independentemente de se obter vantagens pessoais ou punições –;

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
e não o contrário, permitindo que a criança permaneça em seu estado de
heteronomia.
A disciplina imposta de fora ou sufoca toda personalidade moral, ou en-
tão, pelo contrário, a prejudica mais do que lhe favorece a formação [...]
a criança obediente é por vezes um espírito submetido a um conformis-
mo exterior, mas que não se apercebe “de fato” nem do alcance real das
regras às quais obedece, nem da possibilidade de adaptá-las ou de cons-
truir novas regras em circunstâncias diferentes. (PIAGET, 1980, p.68).
O que nos parece, no debate dessa reunião, seria que os funcio-
nários, em geral, estavam preocupados em manter a ordem na rotina da
instituição e o respeito nas relações, e os procedimentos escolhidos para
alcançar esse objetivo eram ligados ao respeito unilateral e as punições
voltadas para a sanção expiatória. Alguns funcionários que se queixavam
pelo fato de que colegas de trabalho os desautorizavam perante a criança/
adolescente não cumpriam as regras da entidade, o que estava interferin-
do na imposição de limites das crianças/adolescentes. Realmente, como já
discutimos em itens anteriores, para se educar em valores, os prossionais
devem ser coerentes em suas condutas; para Macedo (1996), se há uma
regra, sua compreensão deve ser repetida em todas as circunstâncias, assim
como sua regulação e extensão precisam ser respeitadas por todos os que
estão submetidos a ela. Desse modo, esses funcionários têm razão em se
queixarem da falta de comprometimento de seus colegas, porém, os proce-
dimentos observados na relação desse grupo devem ser repensados quando
se trata de mudança nas relações, respeito mútuo e educação moral.
Reconhecemos que em alguns momentos, para se educar moral-
mente uma criança é necessário puni-la, já que a criança necessita de limi-
tes e de compreender as consequências de seus atos; sabemos que pensar
em como isso seria possível frequentemente nos parece complicado. Na
fala do Participante 1, a medida encontrada pela instituição é fazer um
relatório para o juiz e retirar o que ele mais gosta; para o Participante 2,
deve-se retirar algo de bom para a criança/adolescente sentir o seu erro;
o Participante 10 ressalva que retirar coisa de comer revolta ainda mais a
criança/adolescente, mas para ele seria tolerável retirar uma diversão. Em
consequência, a medida encontrada pela equipe para educar a criança/
adolescente que infringiu alguma regra ou desrespeitou algum funcionário
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

seria a retirada de alguma coisa de que ela/ele goste, mesmo que percebam
que essa medida não está mudando o comportamento da criança/adoles-
centes, como declara o Participante 1.
Percebemos ainda que essa medida, em alguns momentos, é usa-
da como vingança do adulto como na fala do Participante 2: “[ele sentiu] a
dor que eu tirei do lanche, [mas] e a dor que ele chutou o funcionário?”. Nesse
caso, a relação entre a falta cometida pela criança e a punição adotada é
arbitrária, porque “[...] o único cuidado é com a proporcionalidade entre o
sofrimento imposto pela sanção e a gravidade da falta cometida” (VINHA,
2000, p.369). Conforme exposto no Capítulo 2, para Piaget (1932/1994),
punição dessa natureza é concebida por quem tende a achar correto que os
faltosos devem sentir a punição com a mesma intensidade de sua falta. O
funcionário, como o adulto da relação, deveria aproveitar situações como
a exemplicada para levar a criança/adolescente a reetir sobre seus atos e
suas consequências; a melhor maneira para isso, de acordo com Piaget, é
por meio das sanções por reciprocidade, ou seja, sanções condizentes com
a falta cometida.
Essa “sanção” não tem como objetivo “expiar o débito”, e muito menos
ser dolorosa, mas sim educar, mostrar que houve a ruptura do elo de
solidariedade, fazendo com que o culpado compreenda o signicado
de sua falta. Todavia, para que essa sanção seja efetiva, a criança deve
valorizar o vínculo social e desejar sua restauração. A sanção por reci-
procidade auxilia na coordenação das diferentes perspectivas, permi-
tindo à criança colocar-se no lugar do outro ou perceber o ponto de
vista daquele que sofreu o efeito de sua ação. (VINHA, 2000, p.371).
Considerando a importância de discutirmos mais esse aspecto
da escolha de punições, levamos algumas histórias ctícias que ilustravam
situações em que crianças/adolescentes desobedeciam a ordens ou infrin-
giam regras, com três tipos de castigo para o grupo escolher o mais adequa-
do, sendo dois deles sanção expiatória e um deles sanção por reciprocidade.
Apresentamos as seguintes questões:
“Para que serve o castigo?”
“Qual deve ser minha preocupação, ao escolher uma sanção?”
“O que é uma sanção justa? O que está por trás de uma sanção justa?”

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Em alguns momentos, as respostas dos funcionários tendiam a
julgar a melhor sanção aquela que condiz com a falta cometida, em outros
momentos, esses mesmos funcionários pendiam suas respostas para a san-
ção expiatória, como no exemplo seguinte:
Acho que mediante o que ele apronta você vai ver uma coisa que seja con-
dizente com aquilo, você não vai, tipo assim, uma agressão física [...] que
nem o Paulo, o Paulo tem uma mania feia de car escarrando na pia do
banheiro, eu já falei pra ele que da próxima vez ele vai lavar [...] porque
ninguém é obrigado, [...] que ele lave dez, vinte vezes a porcaria que ele fez
lá, quem sabe assim não entra na cabeça dele que ali não é lugar de assuar
nariz de jogar sujeira ali.
[...] não digo surrar, mas eu acho que de vez em quando uns tapas faz bem,
sim. (Participante 3).
Acreditamos que, como nas reuniões de estudo e nas reuniões
de intervenção ocorreram discussões teóricas em que se defendia, quando
necessário, o uso de sanção por reciprocidade, alguns funcionários rela-
taram que esta seria a melhor forma de se educar moralmente, diante de
uma falta. Concluímos dessa forma, pois, quando esses funcionários se
reportavam às suas crenças sobre as punições em alguns momentos, nessa
reunião, demonstravam-se nostálgicos à educação de seus pais e avós, ale-
gando que antigamente era mais fácil educar, porque hoje em dia não se
pode bater nas crianças. O Participante 1 sustentou que umas palmadas
bem dadas é sempre bem-vinda, pois, segundo ele, “há hoje uma inversão de
valores, as pessoas estão achando que tudo traumatiza as crianças, e isso
não é verdade.
Apesar de esse participante ser favorável a palmadas (castigo cor-
poral), ele relata sanções por reciprocidade empregados em seus lhos:
Um dia, eu lembro um exemplo bem claro com minha lha, “Manoela!”,
adolescente é sempre assim “Já vou!” [...] aí nesse dia eu disse “Manoela,
vá colocar a mesa”, (responde) “ai, não vou” [...] eu coloquei a mesa e não
coloquei o prato dela. Hora que ela chegou à mesa falou: “Ué, cadê meu
prato?”, (resposta) “Venha pôr, você não pôs para os outros”, nunca mais.
(Participante 1).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Consideramos essa discussão difícil e delicada, visto que havia
diferentes maneiras de tratar do assunto e diculdade em pensar em no-
vas estratégias de educação desvinculadas da visão do passado, porque, em
suas falas, predominava a coação adulta. Outro problema foi a diculdade
concernente à história de vida da criança/adolescente em situação de aco-
lhimento. Para a maioria dos funcionários, essas crianças/adolescentes não
responderiam a uma educação de respeito mútuo, pela justiça distributiva
ou mesmo com sanções por reciprocidade, como evidencia a seguinte fala:
Os tipos de crianças que são atendidos aqui, a mãe se prostitui ou o pai já
enou uma faca nela. O pai está preso e é a avó que cuida, porque a mãe
abandonou [...] são essas histórias mirabolantes [...] isso é falência fami-
liar, não existe outro termo, é falência da família. Se ele não tem nenhuma
condição dentro da casa dele, que ele deveria ter respeito, o que dirá dentro
de um abrigo? Que aí é onde é muito mais perigoso, muito mais demorado
o seu resultado, você não tem vínculo com ninguém. (Participante 1).
Semelhante é a opinião de outros funcionários do abrigo. Eles acre-
ditam que é diferente educar seus lhos e educar as crianças da instituição. Se
pensarmos desse modo, deveríamos imaginar que diferentes procedimentos
teriam o mesmo m, ou seja, fazer uso da sanção por reciprocidade, justiça
distributiva e, com isso, o predomínio do respeito mútuo com um grupo de
crianças, e uso de sanção expiatória e fazer predominar o respeito unilateral
em outro, poderiam levar ambos ao desenvolvimento moral. Todavia, não
pensamos que isso seja possível. Como vimos, para Piaget (1932-1994), há
dois tipos de relações morais que conduzirão aos dois tipos de morais exis-
tentes: a coação leva à heteronomia e a cooperação à autonomia.
Quanto a isso, devemos levar em consideração a gênese do desen-
volvimento moral do indivíduo, quer dizer, desde sua tendência de anomia
(início de sua vida social), passando pela tendência heterônoma até a pre-
dominância da tendência autônoma. Para a criança adentrar no universo
moral, como estudado no Capítulo 2, ela necessita de um relacionamento
que gere o sentimento de obrigação e, com isso, os primeiros deveres acei-
tos e sentidos como obrigatórios. Para isso, Piaget (1980), arma que esse
relacionamento é composto pela primeira noção de respeito, a qual “[...]
começa com a mistura de afeição e de medo” (p.65). Dessa forma, o afeto
sozinho não será suciente para alcançar o respeito, assim como também

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
o medo sozinho acarretará um respeito simplesmente externo (para evitar
castigos ou obter recompensas). Nessa perspectiva, é de fundamental im-
portância que a criança pequena crie em si o sentimento de obrigação para
que, depois, esse primeiro respeito seja suscetível de assumir formas supe-
riores – o respeito mútuo. O respeito mútuo, segundo Piaget (1980), será
composto ainda pela mistura de afeição e medo, no entanto, esse medo
será apenas como temor de decair diante do olhar do outro; esse respeito
continua sendo fonte de obrigação, “[...] mas origina um novo tipo de
obrigações que não mais impõe propriamente regras preestabelecidas: o
próprio método propicia a sua elaboração”. (PIAGET, 1980, p.67).
Como relatou o Participante 1, no abrigo, é “[...] muito mais de-
morado o seu resultado, você não tem vínculo com ninguém; assim, um passo
importante a ser dado nessa instituição (como em outras que enfrentem
essa mesma situação) é a constituição de vínculos. O Participante 4 é da
seguinte opinião: “Você tem que trabalhar o emocional primeiro para depois
trabalhar a questão de regra e isso é muito complicado”. Mas será possível
desvincular esses dois processos? Temos consciência de que, em se tratando
de crianças em situação de acolhimento, considerando suas experiências de
vida anterior ao abrigo, em ambientes de extrema coerção e negligência,
elas terão diculdades de constituir vínculos sociais e afetivos em uma enti-
dade, entretanto, essa diculdade não pode ser usada como “desculpa ver-
dadeira” para não se estabelecer e constituir um ambiente diferente do en-
contrado em suas antigas casas. Se se almeja formar indivíduos autônomos,
isso não poderá ser diferente. Quanto a isso, um funcionário destacou:
Eu acho que o agrado para essa pessoa, inclusive pela convivência que a
gente tem, uma pessoa que quando já está num sistema assim, quanto mais
você agradar ele acha que você está com medo dele [...] agora se você falar
“PARA”, ele já toma aquele choque “Opa, eu vou parar de chutar” aí ele
passa a ter medo, inverte, aí ele passa a ter medo [...] se você avançar nele e
tentar segurar só aí você pode preparar que até tapa você toma. Então você
tem que dar um chega para lá bem alto para ele sentir. (Participante 10).
Para esse participante, a criança/adolescente precisa sentir medo
do adulto para saber que este é a autoridade, contudo, conforme já men-
cionamos, o medo sozinho ocasionará o respeito externo, ele pode parecer
ecaz por ser imediato, porém não estará proporcionando o respeito efe-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

tivo, o sentimento de obrigação que estenderá em si como a necessidade
de respeitar todos os seres humanos e, como indica o Participante 10, a
criança/adolescente estará respeitando somente aquelas pessoas pelas quais
sente medo.
Quando abordadas as punições por reciprocidade, um partici-
pante relata uma experiência vivenciada por ele, no abrigo:
Comigo aconteceu assim com o César, sexta-feira [...] “Ai, tia, abre aqui”,
[ela responde] “Agora não posso, estou limpando o refeitório, o que você
quer?”, “Ai, é que eu esqueci o meu brinquedo na bolsa” [...] terminei
tudo, ele esperou, foi na biblioteca abrir a bolsa, o que que o César pegou?
Um caderno e um estojo da escola [...] (o funcionário diz) “Não! cadê o
brinquedo que você ia pegar?”, “Ai, tia, mas é que eu tenho que fazer o
dever da escola”, “Não, dever da escola segunda-feira a professora está aqui
e ela vai fazer com você”, mas ele abraçou esse caderno e eu não fui nele
com violência para tomar, eu disse “Tudo bem César”, e ele foi saindo [...]
você vai, pode ir, só que a responsabilidade é toda sua, porque depois você
vai me jogar, que foi eu que abri a biblioteca, que foi eu quem te dei, isso
com certeza você vai falar, você sabe que o dever da escola você deve fazer
quando a professora estiver com vocês [...] da outra vez não vai acontecer
mais, porque você me machucou, eu não vou mais conar em você” [...]
como ele dormiu peguei e guardei na bolsa dele, aí no domingo ele veio me
cobrar [...] “guardei porque não é justo, eu falei para você” [...] quando foi
mais tarde ele queria que eu abrisse o roupeiro [...] “Não, você lembra que
eu falei para você sexta-feira, que eu perdi a conança em você, e eu não
vou abrir o roupeiro”. (Participante 7).
Esse participante demonstrou em sua fala que tenta em sua fun-
ção de educador punir as crianças/adolescentes com sanções por recipro-
cidade. Percebemos que alguns funcionários estavam buscando entender
o sentido da educação moral voltada para a autonomia, alguns deles rela-
tavam experiências de situações dessa natureza, tanto no abrigo como em
suas casas, mas ainda as consideramos pontuais, comparando com outros
relatos desses mesmos funcionários e dos demais. É verdade que, no exem-
plo supracitado, houve alguns pontos em que certas falas poderiam ser
repensadas, como “a responsabilidade é toda sua”, “isso com certeza você vai
falar”, “você me machucou”, embora possamos notar, em sua essência, a ten-
tativa de estabelecer com a criança um respeito mútuo, sendo condizente
com a sanção da criança.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
O tema sobre as regras na instituição e ao seu cumprimento era
frequente, de sorte que elaboramos uma dinâmica com o objetivo de criar
uma situação em que fosse possível aos funcionários reetir sobre o sen-
tido da constituição de regras, a necessidade de sua regularidade e quais
devem ser os princípios que as regem. Propusemos um jogo com o uso do
Tangram, que foi formulado com regras que dicultavam sua execução.
Todos participaram da atividade e se envolveram na brincadeira.
Alguns se manifestavam durante o jogo com frases do tipo: “É um sistema
militar?” (Participante 1); “Aí eu perco uma bala (Participante 10); “Ver e
não poder fazer é horrível” (Participante 2). Essas frases demonstravam o
quanto estavam desconfortáveis com as regras impostas.
Aproveitamos esse desconforto em face das regras do jogo e pro-
pusemos uma reexão do sentido dessas regras. A conclusão a que che-
garam foi de que elas não serviam para nada: “Para que car com a boca
aberta?” (Participante 9); “Cansativo [...] judia da gente (Participante 3);
“Essa regra atrapalhou (Participante 5). Com isso, pudemos reetir como
as regras da instituição estariam sendo encaradas pelas crianças/adolescen-
tes, qual o sentido de elas existirem. A partir desse exame, houve uma
reexão em conjunto sobre uma regra recentemente estabelecida, como se
verica em alguns trechos:
Participante 2: Por exemplo, eu e o Participante 4, EU z uma regra,
porque, vamos ver se eu estou errada, porque nós estávamos tendo um pro-
blema no banheiro, de cinco em cinco minutos os meninos vão para o
banheiro. Então eu estipulei assim, a gente vai fechar o banheiro, e na hora
do intervalo a gente abre para que eles tenham o controle de car na sala.
Eu pensei nisso, de controle, de eles carem mais, porque eles não têm para-
da [...] eu sinto que é falta de limites para eles terem uma regra, porque na
escola tem uma regra, aqui eles também tem que ter regra, não está tendo
regras aqui para eles. Eles estão fazendo o que eles bem entendem. [...] Eu
não vou mentir, eu achei para mim, para facilitar eles não saírem da sala, e
principalmente o banheiro também, porque aquela porta não foi colocada
à toa, estamos tendo problemas [...] Mas ao mesmo tempo eu co preocupa-
da, porque eu já acompanhei eles no banheiro e eles não fazem nada, eles
fazem a caca na parede para saírem correndo, e isso facilitou muito, porque
não teve mais caca no banheiro, não teve mais caca na parede, acabou [...]
Autores: (para o Participante 4) É um problema?
Participante 4: Então, na verdade, eu até coloquei para o Participante 2 o
que que acontece. É o Paulo e o César; o Paulo, porque qualquer barulho
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

de carro, qualquer coisa que acontece lá fora ele tem essa necessidade de sair
e aí, não que ele peça para mim, ele sai e daí a hora que ele está aqui fora a
desculpa que ele dá para as pessoas é que ele está aqui fora porque ele foi no
banheiro. Então eu falei, essas saídas não têm nada a ver com o banheiro
[...] Então essas saídas não têm relação com o banheiro, na verdade é a
válvula de escape que eles usam [...]
Participante 2: Isso me incomodou muito, eu não vou negar, não.
Autores: Como eram sempre os dois, e os outros, será que estariam
pagando um preço por eles?
Participante 2: Eu não sei, por isso é que estou sendo sincera.
Participante 4: Então, foi isso que eu coloquei para o Participante 2, falei
“Eu acho que a gente não pode prejudicar o grupo por conta dos dois”.
Lembra que eu coloquei isso? Eu falei da gente fazer uma chinha de ba-
nheiro e água, porque eles têm necessidade deles irem ao banheiro e beber
água, aí sai um de cada vez, sabendo-se que não está com a chinha é
porque está burlando alguma regra.
Para o Participante 2, as crianças/adolescentes deveriam ter regras
na instituição, para que elas tenham limites. Nesse sentido, ele constituiu
uma regra que a seu ver acabaria com um problema de idas frequentes ao
banheiro. Segundo esse participante, a regra foi pensada somente por ele
e repassada para o grupo de crianças/adolescentes. No entanto, segundo
Vinha (2000, p.246),
[...] as regras são acordos elaborados pelos integrantes do grupo que be-
neciam a todos, ordenando as relações. Esses acordos não são rígidos,
estáticos ou preestabelecidos, nem privilegiam alguns em detrimento
de outros.
Nesse caso, a única pessoa privilegiada seria o Participante 2, por-
que “[...] isso facilitou muito porque não teve mais caca no banheiro, não teve
mais caca na parede, acabou. Se almejarmos que as crianças/adolescentes
aprendam a dosar seus desejos, respeitar os horários, ter assiduidade, res-
peitar sua vez e a vez do outro, ter interesse em participar das atividades
etc., e estabelecemos uma regra que os controla, que evite que pensem,
que evita o erro, não estaríamos na verdade impedindo que eles desenvol-
vam as capacidades que esperamos? Macedo (1996), abordando o lugar do
erro nas leis e nas regras, arma que “[...] o erro pode ser um observável

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
para quem o julga, mas não necessariamente para quem o comete”. Assim,
como uma resposta julgada errada é algo externo, o erro se tornaria válido
a partir do momento em que não fosse considerado uma resposta, mas um
questionamento, como um problema que exige crítica e superação.
Não estamos sustentando que o educador não deve estabelecer li-
mites à criança e muito menos que não deve haver regras; pelo contrário,
para a criança entrar no universo moral e por sua tendência heterônoma, é
indispensável que ela saiba o que deve ou não deve fazer, contudo, para La
Taille (apud VINHA, 2000), esses limites não devem ser vistos como “[...]
algo ‘que não pode ser feito’, mas serem interpretados com um sentido posi-
tivo”, de forma a possibilitar ao indivíduo se situar em suas relações sociais,
auxiliando sua tomada de consciência de qual posição ocupa no grupo.
Com a preocupação em resolver o problema, o Participante 4
pensou em outra possibilidade de regra, que dessa vez não prejudicaria
as demais crianças/adolescentes; no entanto, ambos os participantes não
expuseram como alternativa levar o problema junto ao grupo de crian-
ça/adolescente para tentar resolvê-lo, constituindo com eles uma regra
signicativa.
Houve discussões nessa reunião a respeito do não cumprimento
das regras do próprio funcionário: a regra é cumprida 2 dias, no terceiro dia
já não é cumprida mais (Funcionário).
Ou o fato de confronto entre regras e ordens, como no caso de
um funcionário exigir que uma criança/adolescente cumpra uma regra e,
quando esta vai executá-la, outro funcionário exige o cumprimento de ou-
tra regra em detrimento da primeira.
Aí o César voltou e falou: “Então eu não sei quem eu obedeço porque
o funcionário mandou” [...] então eles ca na cabeça com o conito,
está lavando falam que não é para entrar, mas o funcionário autorizou.
(Participante 4).
Entendemos que, uma vez estabelecida, a regra deve ser cumpri-
da. Mesmo se sabendo que a regra tem a exibilidade de mudança confor-
me o grupo sinta necessidade de adequação, é igualmente necessário haver
regularidade e ser cumprida por todos que integram o grupo. Acreditamos
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

que, para que isso seja efetivo, os funcionários do abrigo devem estabelecer
diálogo uns com os outros e, em decorrência, exionar as regras de acordo
com a dinâmica da rotina na instituição.
Para alguns funcionários, além do problema de descumprimento
das regras entre eles, há o descumprimento de regras pelas crianças/ado-
lescentes, que, mesmo o funcionário exigindo o cumprimento da regra
e explicando seu sentido, a criança/adolescente não obedece e, com isso,
devem-se tomar medidas punitivas (segundo eles armam). Um partici-
pante expõe sua opinião:
Eu cresci ouvindo um ditado dos meus avós que ou você aprende por amor
ou aprende pela dor. Se você não aprender dentro da sua casa, você vai
aprender na rua e é aonde a cobrança é muito mais difícil. Tem crianças
que você vai tentar, tentar, tentar passar valores de respeito, de ser um bom
cidadão, de dali para frente ter uma família [...] muitas vezes você não vai
conseguir, porque envolve uma série de situações [...] então vai na questão
de cultura, valores que são familiares [...] se você vê que você está tentando
ensinar, tentando ensinar, e não entra, não aceita, não assimila, de alguma
forma você vai ter que conter esse menino, porque se ele não for contido
onde ele está, ele vai ser contido pela sociedade [...] eu sou da seguinte opi-
nião, um “psicotapa” na hora bem certa é fundamental [...] ninguém ca
traumatizado porque leva tapa. (Participante 1).
Nessa fala, o participante acredita que a instituição tem uma obri-
gação moral de educar a criança/adolescente e, caso isso não ocorra, a so-
ciedade irá fazê-lo. A questão não é duvidar da função de moralização da
instituição, mas pensar no que isso signica e em qual é a qualidade dessa
educação. Para o Participante 1, muitas vezes “passar valores” (educação ver-
bal) não resolve e, se a criança/adolescente não aceita, deve-se “conter esse
menino”, encontrando como medida ecaz a sanção expiatória, um “psicota-
pa”. No entanto, como ressaltam Ramos e outros (2011, p.327), o educador
deve “[...] buscar a formação de sujeitos autônomos, seja ele ‘difícil’ ou não”,
por isso a importância de se constituir um ambiente cooperativo.
4.1.1.5 APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS DA FORMAÇÃO CONTINUADA
Muitas vezes a diculdade em implantar novas condutas no meio
educativo pode levar alguns educadores a desistirem e voltarem a exercer

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
práticas antigas que interrompem a constituição do ambiente sociomoral
cooperativo que almejavam implantar. Um fator importante como descre-
vem Hersh; Paolitto e Reimer (2002), é a falta de consciência de que esse
trabalho requer paciência e o educador necessita esperar para começar a ver
o resultado, que muitas vezes é demorado. No entanto, a persistência dos
educadores é fundamental para que esse ambiente seja efetivado e promova
o desenvolvimento moral voltado para autonomia dos educandos. Essa an-
siedade foi notada nos funcionários ao longo das reuniões de intervenção.
Com o propósito de recuperação de tudo o que havíamos traba-
lhado (cooperação, iniciativa, relacionamento, linguagem, respeito, sen-
tido das regras, conitos, punição e valorização) zemos uma dinâmica
que consistia em uma resolução de problema em dupla: cada um dos in-
tegrantes deveria descascar e chupar uma bala, mas, um dos integrantes
teria que car com os braços imobilizados. Seguindo a dinâmica, as duplas
pensaram como poderiam resolver o problema, no entanto, a maioria dos
participantes pensava e agia individualmente. Outros, depois de tentativas
frustradas em solucionar o problema individual, combinaram com seu par-
ceiro de dupla uma maneira de resolverem o exercício, utilizando-se de di-
álogo e cooperação; houve ainda, em uma das duplas, o fato de um de seus
integrantes resolver sozinho o problema, “ajudando” o companheiro. No
momento da atividade, os participantes diziam frases como: “Gente não
vai dar”; “E agora?”. Mostravam-se ansiosos para resolver o tal problema,
mas se esqueciam de que não estavam sozinhos para resolvê-lo.
Depois que realizaram a dinâmica, indagamos aos participantes a
respeito da solução do problema e obtivemos respostas como: “Eu quis aju-
dar a colega!” (Participante 2); “Era para ajudar um ao outro” (Participante
9); “É o caso da ‘tadinha’, ‘tadinha, ela está imobilizada então eu vou ajudar’”
(Participante 9); “Não houve diálogo [...] faltou isso” (Participante 2).
Com essa dinâmica e com a discussão instigada por ela, pudemos
notar que os participantes recuperaram alguns assuntos trabalhados nas
reuniões anteriores, relembraram a importância de se estabelecer o diálogo
e a cooperação entre a equipe, contudo, como percebido na execução da
atividade, essa ainda não era uma prática da maioria deles.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Propusemos ainda, uma atividade em que os participantes pu-
dessem expressar o que signicou para eles essas reuniões e se houve al-
gum proveito, nas reexões por elas sugeridas. Para isso, dispusemos a eles
cartolinas, lápis de cor, canetas coloridas, revistas, colas e tesouras, para
formarem uma gura com essa representação.
As Fotos 1 e 2 ilustram os resultados dessa avaliação com os co-
mentários dos participantes.
Foto 1- Avaliação turma 1
Fonte: Elaborado pelos autores
Com essa turma, houve comentários como:
Eu vejo assim como uma união, é o meu ponto de vista, mas muitas vezes
para que isso aqui aconteça [tem que] mexer com as nossas ideias. É muito
bom porque além de se unir mexeu com as ideias de cada um. Mas ao mes-
mo tempo, que eu pouco participei, eu vejo isso como não união, “eu sou
mais e posso mais”; “eu sei tudo” [...] não sei se vocês concordam comigo [...]
muitas vezes para mim valeu, mas muitas vezes também me preocupou
muito. (Participante 2).
Eu achei que foi muito bom, porque tem muitas coisas que a gente já
aprendeu e já viu o temperamento das pessoas [risos] só pela reunião que
teve a gente já conhece o temperamento das pessoas, sabe o jeito da pessoa,
serviu para conhecer porque só vendo você não conhece. (Participante 9)

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Por que eu coloquei um jacaré? Porque o jacaré se sente um poderoso porque
ele tem uma boca grande, porque ele sabe tudo, mas ele também pode ser
caçado e morto. (Participante 2).
O que eu pensei o Participante 2 já colocou. (Participante 8).
O limão serve para bastante coisa [...] a pessoa é azeda, mas serve [risos]
é um tempero. Se uma pessoa vai fazer uma salada “hum, se tivesse um
limãozinho!” (Participante 9).
[...] ninguém pensa como o outro, por mais que seja unido, as diferenças
são grandes, eu penso de fazer de um jeito a pessoa pensa em fazer de outro,
nunca ninguém faz igual. (Participante 10).
Foto 2- Avaliação turma 2
Fonte: Elaborado pelos autores
A partir dessa representação houve o seguinte diálogo:
A minha parte fala a respeito dos funcionários. Cada um tem a sua raiva
dentro de si; a gente deve respeitar as experiências dos mais antigos, que tem
muito a nos ensinar e isso não signica que não podem aprender; todos tem
uma força muito grande dentro de si [...]; a gente tem que ter união; uma
coisa que o Participante 6 me ensinou e que eu vou levar para o resto da
vida, que é depois da tempestade sempre vem a calmaria; e quando a gente
não dá o devido respeito e o devido reconhecimento para o funcionário, seja
ele novo, seja ele antigo, a pessoa só se sente um lixo, é difícil aquele que não
sente. (Participante 3).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

As nossas crianças, são crianças assim, é um olhar de medo, de insegurança,
é “o que eu posso esperar?”, de pânico, descontente, então é bem o que a
gente vê nos olhos das nossas crianças sempre, todos os dias [...] o ideal seria
chegar a essa criança, a gente estar unido para poder trabalhar para chegar
numa criança feliz, contente, que tenha alegria. (Participante 4).
O que eu pensei aqui, foi o seguinte: é o ensinar para as crianças, que a
gente tem esse compromisso de ensinar, de orientar, de você criar jovens
para o futuro; que todas as prossões dentro de uma instituição são estri-
tamente necessárias, tem o seu devido valor [...]; para você construir um
mundo melhor ninguém trabalha sozinho, você sempre depende de outras
pessoas [...] ninguém consegue fazer tudo sozinho; o vencer em equipe que
é muito mais satisfatório do que eu sozinho; e que muitas pessoas deveriam
calar a boca e olharem para o próprio “rabo”. (Participante 1).
Eu quis dizer assim a atenção para as crianças, o cuidado. (Participante 6)
Aqui eu escrevi que a vida é um jogo e temos que lutar para a vitória [...]
a gente nunca desanimar, por pior que esteja nós estamos lutando, parece
que não vamos vencer, mas temos que lutar para vencer; é, no caso dos
meninos, porque é difícil lidar com eles. Aqui não podemos car [...] de
cara fechada, porque eles estão sempre preocupados com a gente [...] aqui
é a união [...] o socorro, a humildade e a caridade [...] alguém precisa de
um socorro a gente tem que mostrar o companherismo e mostrar alegria,
não car deprimido porque ajudou. Aqui mesmo na idade avançada [...]
eles estão sempre aprendendo, eles não sabem de tudo [...] e aqui também,
precisamos de alguém “não me deixe só” se tiver alguém triste, alguns dos
meninos [...] ou mesmo entre nós, não car julgando [...] aqui mostra os
ensinamentos com as crianças, a gente tem que ter paciência, os bons con-
selhos o bom senso para lidar com eles. (Participante 7)
Aqui é para ter mais cuidado e atenção para o que eles andam vendo na
internet, e ali é uma aula de respeito ao meio ambiente. (Funcionário).
Essa atividade teve grande participação dos funcionários, de sorte
que pudemos perceber que faziam grandes reexões e as expunham ao
grupo. Suas representações foram no sentido do convívio na instituição em
relação suas angústias, conitos, respeito, união, e o objetivo em favorecer
a educação não formal às crianças/adolescentes. Isso se fez ainda mais evi-
dente, ao examinarmos as guras coladas e explicadas por um funcionário
recém-contratado, que participou unicamente dessa reunião. Apesar de ele
estar a par do conteúdo das reuniões (exposto no momento da recupera-
ção), ele expressou com suas guras o cuidado que temos que ter com as

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
crianças na internet e a educação ambiental, temas não relacionados em
nossas reuniões o que evidencia que de fato os demais participantes foram
impactados pelos temas discutidos.
Além de avaliar o envolvimento dos funcionários nas reuniões de
intervenção, essa reunião de recuperação e avaliação nos proporcionou um
momento de reexão de nossa própria ação. Quanto a isso, podemos dizer
que nos esforçamos para instigar a discussão entre os funcionários concer-
nentes aos temas abordados e, nos momentos oportunos, zemos intro-
dução de teorias para o aprofundamento das discussões. Constatamos que
é importante a participação voluntária em reuniões dessa natureza, pois,
para Vinha e outros (2011), a formação continuada deve ser signicativa
para os participantes, a m de que gere mudanças efetivas.
Apesar de claramente termos notado que as reuniões instigaram a
reexão dos participantes, em alguns momentos de nossas discussões surgiam
falas arraigadas em um modelo de relação em que predominava o respeito uni-
lateral, o uso de sanções expiatórias e até um certo descrédito de que as coisas
pudessem ser diferentes. Como exemplo disso, o Participante 2 enfatiza:
[...] eu acho que para ele ter essa pipa, que eu acho que é normal como mi-
nha mãe me educou, para eu ter uma boneca eu preciso sofrer muito para
ter a boneca. Então eu penso assim, para ele ter essa pipa, esse esporte que
ele gosta tanto, ele também tem que conquistar. [...] Eu vou reetir nisso,
mas nesses anos todos, eu penso dessa forma.
Acreditamos que expor aos leitores a fala desse participante é im-
portante para reetirmos sobre nossa ação, que, assim como a postura dos
educadores, também deve ser de paciência, persistência e, como arma
Vinha (2000), é um longo e árduo caminho. Podemos avaliar que nove
reuniões de intervenção são pouco para mudar práticas que já vêm sendo
empregadas em muitos anos de trabalho desses prossionais. O que pode-
mos, e esperamos ter alcançado, é um início de reexões de suas práticas,
que observamos na fala desse participante, ao manifestar tal preocupação
– e também em falas de outros participantes.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

4.2 DO LÚDICO À REALIDADE: CRIANÇAS E ADOLESCENTES INSTITUCIONALIZADAS
E A REFLEXÃO DE CONDUTAS MORAIS DO SEU DIA-A-DIA
As atividades com as crianças/adolescentes tiveram início a partir
do interesse do Participante 4 em construir junto a elas regras de convivên-
cia. Segundo iollent (1997), esse tipo de situação é bastante frequente
e até mesmo esperado na pesquisa-ação, uma vez que o pesquisador está
em constante contato com o grupo pesquisado, recebendo devolutivas e
dando contribuições.
A pesquisa visa desvendar um leque aberto composto de possibilidades
de ação progressivamente descobertas, formuladas ou escolhidas pelos
grupos que participam ativamente no processo. As correspondentes de-
cisões não se tomam por “decreto”, mas em função de deliberações e da
conscientização dos atores. (THIOLLENT, 1997, p.25).
Encontramos, nesse convite, a oportunidade de estabelecermos
uma intervenção também com as crianças/adolescentes e, com isso, traba-
lhar com elas assuntos concernentes à educação moral, por meio de ativi-
dades em que pudéssemos propor situações que permitissem a elas viven-
ciar experiências, discutir a respeito de valores morais e provocar reexões
sobre atitudes de seu dia-a-dia.
Cada sessão de atividade foi desenvolvida com base no envol-
vimento e interesse da criança/adolescente. Nos casos em que houve no-
vos interesses a respeito do tema trabalhado, dávamos prosseguimento à
atividade em outra sessão. Será exposta aqui a descrição dessas atividades
e reexões a respeito. Como os dois grupos de crianças/adolescentes rea-
lizaram as sessões em datas diferentes, faremos a apresentação seguindo a
lógica dos temas trabalhados e não a ordem cronológica.
4.2.1 CONSTRUÇÃO E APLICABILIDADE DAS REGRAS DO GRUPO
O tema de construção e aplicabilidade das regras foi o que gerou
as atividades realizadas com crianças/adolescentes, na medida em que o
Participante 4 trouxe a demanda de trabalharmos regras de convivência. A
proposta desse participante era bem diretiva e até simples, na medida em
que se referia a construir um cartaz com regras do grupo. A partir disso,

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
realizamos várias propostas que compuseram as atividades com as crianças/
adolescentes.
Iniciamos as atividades com uma proposta que lhes proporcio-
nasse condições de pensar a respeito de seu grupo social e das relações
que estabelecem nele. Como arma Vinha (2003b, p.251), “[...] para se
viver em sociedade é necessário haver limites”; sendo assim, nos grupos
sociais entre crianças/adolescentes, esses “limites” também são necessários.
Sabemos que, principalmente na primeira infância, os adultos impõem
limites às crianças, mas, mesmo que isso não se dê de modo autoritário, a
percepção da coação é presente e importante para o início da vida social.
Apesar disso, a criança pode ser envolvida nesse processo de maneira que
esses limites possam ser construídos junto delas, especialmente no que rege
as relações entre elas.
As regras, em qualquer situação, têm que preservar e propiciar ao su-
jeito o respeito por si próprio e pelo outro [...] em geral, as regras
são acordos elaborados pelos integrantes do grupo que beneciam a
todos, ordenando as relações. Esses acordos não são rígidos, estáticos
ou pré-estabelecidos, nem privilegiam alguns em detrimento de outros.
(VINHA, 2003, p.252).
Antes de começarmos a proposta da atividade, as crianças/adoles-
centes se manifestaram contrariamente a ela, ainda que não soubessem do
que se tratava, armando que não queriam realizá-la, muito menos se tives-
sem que falar sobre família. Diante de tal manifestação, esclarecemos que a
atividade não era para falar sobre as famílias, mas que gostaríamos de saber
deles como é a vida em sociedade e quais seriam as coisas necessárias para
um bom convívio em grupo. Então, eles respondiam nossas indagações com
frases com conteúdos de bons costumes e regras de bom convívio, porém,
notamos que tanto os que respondiam quanto os que se recusavam não es-
tavam entendendo ou interessados na proposta, de sorte que utilizamos as
frases expostas por eles, para direcionar melhor nossa atividade.
Pudemos notar que apenas uma conversa não foi suciente para
chamar a atenção das crianças/adolescentes e incentivar o interesse delas
em participar da discussão; talvez essa atividade tivesse sido melhor ini-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

ciada caso usássemos algum texto/história e, a partir dele, instigássemos o
envolvimento de todos, como sugere Puig (2004).
Depois de exemplicar alguns tipos de grupos sociais e suas possí-
veis regras, perguntamos para as crianças/adolescentes se elas formavam um
grupo. Como a resposta foi positiva, continuamos perguntando se, como
grupo, elas teriam o poder de elaborar regras para o convívio entre elas e se
haveria a necessidade dessas regras. Novamente a resposta foi positiva, sugeri-
mos então, a construção de regras de convivência para aquele grupo. Porém,
elas/eles não se demonstravam interessados em participar da atividade.
Acreditamos que esse desinteresse ocorreu sobretudo pela manei-
ra com que a atividade foi iniciada e conduzida. As crianças/adolescentes
não estavam vendo sentido na proposta e assim não poderíamos dar pros-
seguimento à construção das regras, pois elas não teriam valor, ou seja,
como o próprio grupo não via a necessidade dessa constituição, não se
submeteria a ela a não ser pela imposição, e esse não era o propósito da
atividade. Abrimos então um diálogo com a turma. Relatamos que, diante
do desinteresse em elaborar suas próprias regras, talvez não fosse mesmo
o momento de realizarmos essa atividade, no entanto, se assim fosse, eles
deveriam continuar com as regras que fossem dadas prontas para eles.
Ouvindo isso, eles repensaram e não concordaram conosco.
Disseram que queriam construir as regras de seu grupo. Para nos certi-
carmos de que era um interesse da maioria, pedimos para que erguessem a
mão os que queriam realizar a atividade. Somente César não quis participar.
Dissemos a ele que aquele era um momento em que todos estavam pensando
em como melhorar o convívio, que ele poderia se sentir livre em não par-
ticipar, mas, como parte integrante do grupo, também caria sob as regras
que seriam elaboradas. Não querendo participar, César começou a atrapalhar
as demais crianças/adolescentes, sendo alvo de reclamações. Nessa situação,
podemos conversar com a criança que está perturbando as demais e propor
a ela alternativas para a solução do problema, como, por exemplo: “Toda a
turma quer construir as próprias regras de convivência; se você não quiser
participar também, poderá car com o grupo, mas se você quiser atrapalhar,
deverá se retirar. Você acha que é capaz de car sem incomodar os outros?”.
Dessa forma, não simplesmente excluiríamos momentaneamente a criança,
mas permitiríamos que ela agisse conforme sua escolha (entre as sugeridas)

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
e pensasse sobre a consequência natural dessa atitude. Para Vinha (2003a,
p.237), o educador “[...] deve ajudar a criança a controlar seus impulsos,
tornando-a apta para reetir sobre as consequências de seus atos”.
O conito como o que ocorreu com César faz parte das relações
interpessoais. Muitas vezes, os conitos são encarados pelos educadores
como algo indesejável, de modo que tentam ao máximo evita-los, porém,
segundo Vinha (2003a), eles são oportunidades para a aprendizagem. No
caso dessa atividade, o conito foi exposto para a turma e juntos traçamos
um melhor caminho para sua solução. Voltando à atividade de construção
das regras, pedimos para as crianças/adolescentes escolherem como gosta-
riam de manifestar sua opinião de quais regras sentiam a necessidade de
existir entre eles. A maioria escolheu a forma escrita; por isso, demos a cada
um uma folha de papel e lápis. Percebemos que o interesse maior na cons-
tituição das regras era do Participante 4 que nos fez a proposta, entretanto,
naquele momento, as crianças/adolescentes viram a oportunidade de eles
próprios pensarem e constituírem suas regras. Sabemos que cada regra é
instaurada por sua necessidade, mas, como aquelas crianças/adolescentes já
tinham experiência de vivência no grupo e dicilmente tiveram oportuni-
dade de pensar em regras segundo os problemas que já haviam acontecido
e que persistiam, não vimos maiores problemas em fazer daquela atividade
um momento de construção legislativa. É oportuno lembrar que cabe nes-
se momento apenas a construção das regras, cando as sanções somente
para ser pensadas e aplicadas quando houver falta. Assim,
[...] combina-se com a classe apenas as regras, pois, como vão contri-
buir para a organização do ambiente de trabalho, devem ser elaboradas
por todos, porém, a escolha da sanção diz respeito somente ao edu-
cador e à criança que cometeu a falta, não sendo problema do grupo.
(VINHA, 2000, p.256).
No momento da elaboração das regras, algumas crianças estavam
com diculdade em como escrevê-las. Propusemos, nesse sentido, que escre-
vessem coisas que gostariam que acontecessem e coisas que não gostariam
que acontecessem em seu convívio com as demais pessoas no grupo. Fazendo
isso, permitiu-se que as crianças/adolescentes se colocassem na relação com
os outros, possibilitando a discussão das regras por meio da reciprocidade.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Finalizando a escrita individual, zemos uma exposição de todas
para o grupo. Discutimos cada uma e selecionamos as que iriam para o
quadro de regras, dessa vez elaborando-as em formato de regras. Essa ela-
boração foi pensada e realizada pelas próprias crianças/adolescentes, com o
acompanhamento do Participante 4 e por nós. Ao acabarmos a discussão
e elaboração dessas regras, perguntamos se eles estavam sentindo falta de
alguma regra que seria boa de ser incluída; houve nova discussão e inclusão
de algumas outras regras.
Deu-se, nesse dia, um fato interessante, quando as crianças pre-
paravam a sala para ir almoçar: Otávio e Bruno começaram a brincar de
“lutinha”: lembramos a eles que haviam criado uma regra de não brincar
de lutar, porque eles não gostavam de ser agredidos nesse tipo de brincadei-
ra. Todavia, Bruno argumentou que a regra ainda não tinha sido colocada
na parede, razão pela qual não precisava ainda ser cumprida. Percebemos
assim que Bruno ainda não considerava as regras construídas como válidas,
porque faltava o registro. Quanto a isso, Vinha (2000) arma a importân-
cia do registro das regras, porque muitas crianças acreditam nas regras e em
sua validade quando estão escritas no papel, não tendo o mesmo valor as
escritas na lousa e apagadas ou as ditas oralmente.
O conteúdo das regras construídas pelas crianças/adolescentes
ultrapassou o ambiente de “sala de aula”, abarcando suas ações no âmbito
da instituição. Com isso, sentimos necessidade de incluir no trabalho os
adolescentes que não estavam presentes no dia. Questionamos esses adoles-
centes a respeito da convivência em grupo e eles ressaltaram a necessidade
do respeito uns pelos outros. Apresentamos as regras criadas pelas outras
crianças/adolescentes e as discutimos uma a uma, inquirindo se acredita-
vam ser importantes, o porquê e sua reciprocidade. Houve algumas brinca-
deiras quando as regras se referiam a coisas que costumavam praticar, mas
que não julgavam corretas. Eles validaram todas e disseram que acredita-
vam que estavam boas, fazendo ressalva apenas a uma das regras, que julga-
vam dever ser melhor elaborada, porque estava dando margem a algumas
infrações, de forma que a reelaboraram.
Percebemos que, assim como a posição queixosa dos adultos, as
crianças/adolescentes também tinham essa prática. Frequentemente, elas
se colocavam como vítimas na relação, justicando suas ações pelo com-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
portamento do outro, isto é, “se ele me bate, vou bater nele para ‘descontar’
e devolvo o golpe” – sendo atribuída uma sanção vingativa, que, segundo
Piaget (1932-1994), não quer dizer que seja uma sanção expiatória, mas
simplesmente indica uma exata reciprocidade. Notamos também que ha-
via muita diculdade de elas se colocarem no lugar do outro, nas discus-
sões sobre as regras, de sorte que, ao mesmo tempo em que gostavam de
brincar de “lutinha”, elas não gostavam de que o outro brincasse com elas
dessa mesma brincadeira, pois os machucava – diculdade de descentração
que ocorria igualmente com os mais velhos. Isso poderia ser explicado pelo
fato de que pouco se conversava, nos momentos de desentendimentos, e
seus conitos eram resolvidos frequentemente pela imposição de um adul-
to. Quando ocorre o contrário, como ressalta Vinha (2003a), o educador,
ao mediar o conito, permitindo que a criança controle seus impulsos e
possibilitando que ela reita sobre sua ação e suas consequências, também
estará promovendo a descentração e a reciprocidade, condições necessárias
para considerar as perspectivas e os sentimentos dos outros.
Após a elaboração das regras, procedemos a digitação e impressão
das mesmas. Pedimos que em duplas ou trios, as crianças/adolescentes les-
sem e discutissem se elas realmente comporiam o quadro de regras e, caso
encontrassem algo a ser modicado, eles poderiam fazer seus apontamen-
tos que discutiríamos sobre as mudanças. Eles leram e validaram as regras,
não apontaram nenhuma mudança e também não descartaram nenhuma
delas. Com a aprovação do grupo, o próximo passo na construção das re-
gras seria sua publicação.
A validação pelo grupo é necessária, visto que, “[...] é importante
que todos considerem a regra e a cumpram, pois isso garante a igualdade
de condições”. (VINHA, 2003b, p.253).
Com o objetivo de publicar e possibilitar a concretização das re-
gras propusemos que as organizássemos em folhas de EVA de forma que
cassem espaços para colar desenhos (feitos por todos) relacionados com
as regras. Para a proposta e planejamento das crianças/adolescentes, foram
disponibilizados dois cartazes, um cartaz para as atitudes que posso e ou-
tro para as atitudes que não posso fazer. As regras foram xadas de modo
que pudessem ser substituídas ou retiradas caso não zessem mais sentido.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Isso é importante para caracterizar que a regra não é absoluta, diferente do
princípio que a embasa.
O passo seguinte seria o de ilustrar as regras e completar os car-
tazes. Uma intercorrência se deu nesse momento, aliás, muito esclarece-
dora a respeito das relações estabelecidas na instituição. O Participante 2
relatou-nos que também havia elaborado algumas regras com as crianças/
adolescentes, as quais foram feitas por eles em grupos por idade, depois
reunidas e aprovadas por todos. Como ele achasse que deveríamos ver o ca-
derno com essas regras, sugerimos que ele também tomasse conhecimento
das regras elaboradas pelas crianças/adolescentes conosco. Ao ler ambas as
construções de regras, percebemos que muitas delas eram parecidas, algu-
mas se complementavam e outras eram diferentes, de modo que sugerimos
ao Participante 2 para conversarmos com eles e reunirmos as regras. Ele
concordou, solicitando uma cópia para anexar em vários pontos da entida-
de. Conforme ressalta Vinha (2000, p.274),
[...] o trabalho com a elaboração das regras pelo grupo jamais deve ser
visto como uma concessão dada às crianças, necessitando ser cuidado-
samente reetido pelos educadores. Esse estudo é também necessário
para evitar que [...] a elaboração das normas de convivência seja, na
verdade, somente mais um instrumento de manipulação disfarçada a
serviço da manutenção das relações de respeito unilateral..
Esse participante parece ter entendido a importância de se cons-
tituir as regras junto às crianças/adolescentes, no entanto, seu maior ob-
jetivo era usar das regras para obter a obediência, não pela regra, nem
por seus princípios (justiça, respeito, reciprocidade etc.), mas pela troca,
já que, junto da elaboração das regras, ele fez uma enquete das coisas que
as crianças/adolescentes queriam ter na instituição, prometendo a elas que
as teriam, caso cumprissem as regras. Como a atitude do Participante 2
contrariava nosso trabalho com as crianças/adolescentes, conversamos com
ele, discutindo nossa posição e proposta com elas, de que as regras devem
ser cumpridas por sua necessidade e não por punição ou recompensa. Ele,
por sua vez, nos colocou sua posição, identicando as crianças/adolescen-
tes da instituição como sendo diferentes das de nossa casa, razão pela qual,
segundo ele, elas somente cumpririam as regras se tivessem algo em troca,
mas que pagaria para ver se iria funcionar da maneira como estávamos

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
propondo. Com a atitude desse participante, podemos notar o quão difícil
é se desvencilhar das antigas práticas para dar lugar a novas atitudes que,
muitas vezes, vão demorar a surtir resultado (contrariando o efeito instan-
tâneo e passageiro da coação).
Reunimos as crianças/adolescentes, conversamos sobre a situação e
elas concordaram em agrupar as regras. Elas participaram, dando sugestões
de como poderiam ser refeitas algumas regras e como poderiam acrescentar
outras. Quando chegamos à discussão de duas regras sugeridas e escritas no
caderno por outra funcionária, observamos a necessidade de elas serem ava-
liadas para deni-las ou não como regras. Elas discutiram e colocaram os
seus pontos de vista, sobretudo em relação à regra que direcionava o bom
comportamento delas na hora do passe do domingo (prática religiosa). As
crianças/adolescentes condenciaram que muitas vezes não queriam parti-
cipar do passe e, por essa razão, não se comportavam bem. Diante disso,
lembramos a elas que, do mesmo modo como nas outras atividades em que
ninguém era obrigado a participar, também nessa deveríamos respeitar uns
aos outros, mas que, precisaríamos nos comportar adequadamente, mesmo
não participando dela; dessa forma, estariam respeitando tanto aqueles que
querem participar como a pessoa que a está dirigindo.
As crianças/adolescentes sugeriram fazer uma regra que se deveria
ter “bom comportamento” em todas as atividades; aventamos, por con-
seguinte, a possibilidade de discriminar algumas delas como ilustração.
O problema da regra sugerida pelo funcionário, visto pelas crianças/ado-
lescentes, não era a questão do comportamento, porém, de que elas não
queriam se sentir obrigados a participar, quando não sentiam vontade, dos
rituais religiosos. E, como já discutimos, essa vontade deve ser respeitada,
logo, a instituição não deve impor nenhuma espécie de prática religiosa às
crianças/adolescentes que nela residem (BRASIL, 2009).
Feito o acoplamento das regras, os meninos começaram a ilustrá-
-las. Todos participaram dessa atividade. Para cada regra, elas discutiam
como poderiam ilustrá-la e os desenhos expressavam muita criatividade.
Prontos, os EVAs foram colados em uma sala de atividades.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

4.2.2 INDIVIDUALIDADE: COMO PERCEBO MEUS PRÓPRIOS SENTIMENTOS E
COMO GOSTO DE SER TRATADO
Durante uma atividade de contação de história, lemos o conto
“El niño de cristal” (CARRERAS, 1998), que relata a vida de um menino
nascido invisível, cujo pensamento podia ser lido por todos. As crianças
caram muito interessadas na história e faziam muitas perguntas e aponta-
mentos, durante seu relato. Houve crianças que diziam não querer ser esse
menino, pois, segundo elas, deveria ser muito ruim as pessoas poderem
saber sempre o que estamos pensando. Vimos esse comentário muito opor-
tuno e importante para discutirmos; inserimos também na discussão qual a
importância de termos segredos e qual a importância da sinceridade. Esse
mesmo assunto surgiu em outro momento quando lemos o livro intitulado
“O reizinho e ele mesmo (TOGNETTA, 2010a). Como é um livro com
muitos escritos e guras ricas para discussão, optamos por discutir parte
por parte do livro, como se estivéssemos vivenciando junto ao “reizinho
aquela história. As crianças viram a capa e tentaram adivinhar o que o livro
traria. Depois da leitura de cada parte do livro, retomávamos e discutíamos
o que tinha acontecido, se acontece conosco, por que aconteceu e por que
acontece. No nal da leitura e discussão perguntamos para cada um se eles
se conheciam e pensamos no quanto isso é importante.
As crianças/adolescentes diziam, assim como o personagem, como
gostavam ou não de ser tratados. O Participante 4 interveio, sublinhando
que não era somente bom saber o que gostamos e o que não gostamos que
os outros nos façam, mas o que fazemos para os outros. Aproveitamos essa
fala para perguntar para as crianças/adolescentes quais as consequências de
nossas ações, quando fazemos para os outros coisas desagradáveis, e discu-
tir por que não devo fazer para o outro aquilo que não quero para mim
(reciprocidade, tema que também foi discutido).
O Participante 4 pediu permissão para Paulo para expor um
fato ocorrido na semana. Ele autorizou e o participante relatou. No mo-
mento de sua exposição, Paulo começou a chamá-lo de mentiroso, mas o
Participante 4 continuou expondo e armando que estava dizendo a ver-
dade. Perguntamos para Paulo o que ele havia dito; ele respondeu que não
se lembrava, porém, que não era o que o participante estava dizendo. Ele
se altera e sai da sala. Essa foi a forma de reagir uma vez que provavelmente

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
se sentiu como o menino de cristal da história anterior, viu-se exposto e
um momento de conversa coletiva que poderia ser muito produtivo para
expressão dos sentimentos na vida do grupo, tornou-se absolutamente
aversivo, quando o Participante 4 conduziu sua fala com palavras acusa-
tivas, despertando em Paulo a necessidade de se defender; como estava se
defendendo de um adulto, não conseguiu formular argumentos e decidiu
se retirar da sala. Vimos, com isso, a importância de estabelecermos falas
descritivas na condução de uma discussão, para que o problema seja expos-
to, e não os envolvidos, como orienta Vinha (2000).
Encerramos a discussão e começamos uma das atividades que o
livro sugere, para expressarmos nosso sentimento em algumas situações.
Enquanto as demais crianças/adolescentes faziam a atividade, Paulo, que
havia retornado para a sala, pede-nos uma folha de atividade para também
fazer. Orientamo-lo, juntamente com o César e Bruno, que apresentam
diculdade de leitura. Para os que já haviam terminado a primeira ativida-
de, entregamos e explicamos a segunda, que propunha a expressão do que
gosta e do que não gosta de fazer no ambiente da instituição e quando está
com seus amigos. Ambas as atividades eram de cunho pessoal e sua divul-
gação no grupo dependeria da vontade das crianças/adolescentes. Todos
participaram das atividades, demonstrando interesse, entretanto, algumas
as divulgavam entre si, enquanto outras preferiam mantê-las em segredo.
Para os adolescentes do período da tarde, realizamos igualmente
essa atividade com o mesmo objetivo. Durante a discussão do livro, eles ad-
mitiram que é difícil conversar, porque os outros não querem saber de falar,
já partem para briga ou cam retrucando e questionando como resolver o
problema, quando o outro não quer resolvê-lo. O nível de discussão entre
os adolescentes foi mais complexo do que com as crianças, porque eles mos-
traram interesse em entender como poderiam agir com as crianças, quando
estas os irritavam; contudo, queriam que tivéssemos a solução pronta, como
uma receita, não compreendendo que a resolução de um problema não é
algo fácil e muito menos que possa ser ensinado, mas que dependerá de cada
situação e das pessoas que estão se relacionando. Talvez o pedido dos adoles-
centes possa indicar os hábitos vivenciados na instituição, que valorizam a
transmissão de valores e a resolução dos conitos pelos adultos. Como ar-
mam DeVries e Zan (1998), são os adultos que determinam a natureza do
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

ambiente sociomoral. Se a intenção for formar indivíduos autônomos, faz-se
importante que os educadores ofereçam atividades que estimulem a intera-
ção entre as crianças/adolescentes, as quais são fundamentais para propiciar
sua descentração, de sorte que passam a considerar pontos de vista diferentes
do seu próprio e, assim, aprendem a cooperar entre si e, quando surgirem os
conitos, resolverem de maneira cooperativa.
O ambiente sócio-moral da criança é formado, em grande parte, de
incontáveis ações e reações do adulto para com a criança, que formam
o relacionamento adulto-criança. As relações com outras crianças
também contribuem para o ambiente sócio-moral, mas os adultos fre-
quentemente estabelecem os limites e possibilidades dessas relações.
(DEVRIES; ZAN, 1998, p.52).
Os adolescentes também zeram as atividades propostas pelo li-
vro e, como no período da manhã, houve aqueles que as compartilhavam e
os que as mantiveram em segredo. Percebemos que, nessas atividades, seria
oportuno realmente deixá-los à vontade para realizá-las, já que se tratava
de sentimentos pessoais.
Outro ponto que nos parece importante destacar é o
quanto a literatura pode ser meio para o trabalho com valores, senti-
mentos e nesse caso, com temas ligados ao relacionamento interpessoal.
No caso desse grupo com crianças/adolescentes abrigados foi agrante
o papel da literatura no sentido de abrir um canal de comunicação para
expressão de conteúdos pessoais que provavelmente não encontrariam
outra forma de ser trazido à tona.
4.2.3 ALTERIDADE: ACEITANDO O OUTRO EM MINHA VIDA, EXERCITANDO A
COOPERAÇÃO, A SOLIDARIEDADE E O RESPEITO
No trabalho com a música “Ciranda”, do grupo musical “Palavra
Cantada” (1996), vimos uma oportunidade de reexão a respeito da vida
em grupo. Elas gostaram muito da proposta e participaram da discussão,
trazendo elementos importantes para a vivência no próprio grupo.
Expusemos também dois clipes feitos por internautas de músicas
conhecidas e propusemos uma atividade em que eles iriam transformar a

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
música “Ciranda” em um clipe. Todas caram entusiasmadas com a pro-
posta e começamos a confecção do clipe. Para isso, junto com o Participante
4, pensamos em cada trecho da música para elaborar como o clipe se estru-
turaria. As crianças/adolescentes traziam propostas de desenhos, nós ano-
távamos na sequência da letra da música e, assim, começaram a desenhar.
No momento da preparação do clipe, notamos certa coopera-
ção entre algumas crianças/adolescentes, por meio de sugestões ou ajuda
na pintura ou desenho. Como o método ativo exposto por Piaget (1930-
1996), essa atividade permitiu que as crianças/adolescentes colaborassem
entre si no trabalho. Para Piaget (1930-1996), atividades em grupo favo-
recem a educação moral ativa e supõem que a criança/adolescente possa
fazer experiências morais. Sendo assim, o ambiente que ela está constitui
um meio próprio para tais experiências. Neste estudo, cabe ressaltar que o
abrigo deveria ser um meio próprio para essas experiências.
O que julgamos importante foi o envolvimento entre as crianças/
adolescentes, tanto na execução da atividade, quanto entre elas. Com isso,
acreditamos que, além de reexão, estávamos promovendo situações em
que eles pudessem vivenciar o respeito mútuo, cooperação e solidariedade,
já que o exercício lhes requeria elaboração coletiva.
Outra atividade proporcionada pela música foi a busca do tatu-
-bolinha, mencionado na música. Pudemos promover com isso uma si-
tuação em que as crianças/adolescentes pudessem explorar os jardins do
abrigo juntos e cooperar para a execução da atividade.
Como as crianças/adolescentes mencionaram que haviam visto,
no ambiente do abrigo, o tatu-bolinha de jardim, saímos em busca dele.
Durante a procura, os meninos permaneceram unidos e entusiasmados,
querendo encontrar o bichinho. Quando um tinha uma ideia de onde
poderia buscar, os outros o acompanhavam na procura. Porém, não conse-
guimos localizar nenhum tatu-bolinha, provavelmente por ser inverno; no
entanto, a atividade foi desempenhada, no que diz respeito ao envolvimen-
to das crianças/adolescentes e de sua diversão.
Piaget (1930-1996) ressalta que um procedimento fecundo de edu-
cação moral deve envolver a cooperação. De fato, observamos que a grande
vantagem em direcionar as atividades conforme os interesses e curiosidades
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

das crianças/adolescentes é que o resultado se torna graticante e signicati-
vo, mesmo que não seja totalmente contemplada a atividade (no caso de não
encontrarmos o tatu-bolinha). Enfatiza Piaget (1930-1996, p.22):
Se, realmente, o desenvolvimento moral da criança ocorre em função
do respeito mútuo, além do respeito unilateral [...] a cooperação no
trabalho escolar está apta a denir-se como o procedimento mais fe-
cundo de educação moral.
Ainda aproveitando o interesse pelo tatu-bolinha, realizamos
uma pesquisa sobre a diferença e a vida do tatu-bolinha e do tatu-bola,
para sabermos um pouco mais sobre os hábitos desses animais, como, por
exemplo, sua vida em grupo e a comparação com os nossos sentimentos,
nessa mesma relação. Levamos para as crianças/adolescentes textos e foto-
graas do tatu-bolinha e do tatu-bola, analisando as semelhanças e diferen-
ça entre eles. Nessa atividade, surgiram muitos comentários, as crianças/
adolescentes se mostraram muito interessadas e faziam perguntas sobre a
vida desses animais. Ressaltamos que uma característica comum entre os
dois animais é o fato de se enrolarem como uma bola, quando se sentem
ameaçados (embora o tatu-bolinha se enrole também para reter seu líqui-
do). Depois de discutirmos essa característica, propusemos passar para a
segunda atividade, em que eles viveriam uma situação diferente; pedimos
para que prestassem atenção em suas reações e sentimentos, durante sua
execução. A atividade era a seguinte: quatro deles iriam car vendados e os
outros quatro seriam os seus guias, iríamos dar uma volta pela instituição
nessas condições e, ao voltarmos, inverteríamos os papéis.
O Participante 4 sugeriu que fôssemos dar uma volta no quartei-
rão e começamos a nos preparar, vendando e discutindo quais seriam as
duplas (visto que há grande diferença de tamanho entre eles, para a segu-
rança de todos, seria melhor as alturas se equivalerem). Pelo fato de falta
de anidade entre eles, houve muita discussão para decidirem as duplas
e aceitarem as sugestões. Paulo não queria participar, caso não fosse com
Bruno, mas o Participante 4 não queria essa dupla, já que naquela semana
“Paulo estava perturbando sexualmente Bruno” (sic).
Em muitos momentos do estudo, foi manifestada pelos funcio-
nários da instituição a diculdade de trabalharem com a precocidade de

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
interesses sexuais com elementos inerentes à relação sexual adulta, pois não
há casos apenas de curiosidade infantil, mas interesse pela penetração e
certa agressão sexual. Vimos que esse não é um problema apenas ocorrido
nesse abrigo; em outras pesquisas realizadas em instituições de acolhimen-
to, como a de Carvalho (2008), aponta-se a mesma diculdade em se tra-
balhar esse assunto e enfrentar problemas dessa natureza. Acreditamos que
esse tipo de comportamento deveria ser mais bem investigado e certamente
seria possível traçar ações para a sua solução.
Na atividade proposta, Paulo não queria ir com ninguém, exceto
Bruno, e brigou com o Participante 4, que o deixou fora da atividade.
Nenhum dos meninos quisera ir com César, de sorte que o Participante 4 o
conduziu, David cou sem guia e foi conduzido por nós. Nossa intenção,
com essa atividade, era também criar um ambiente em que as crianças/
adolescentes pudessem estreitar o vínculo entre eles, porém, não podíamos
forçá-los e lamentamos a não participação de Paulo na atividade.
Como as crianças/adolescentes estavam agitados, o Participante 4
achou melhor não irmos para a rua, mas descer até a quadra poliesportiva,
e assim zemos. Otávio guiou Murilo, direcionando seus passos. Bruno
começou sendo guiado por Alex, contudo, devido ao medo, tirou a venda e
Alex passou a guiar Tiago, formando um trio de guia. Chegando à quadra,
todos deram uma volta por ela e depois zemos a troca de papéis. Demos
uma volta pela quadra e voltamos para o lugar de início. Percebemos que
as crianças/adolescentes se divertiam com a execução da atividade, uns se
mostrando responsáveis com os colegas, já outros provocando situações de
risco para o companheiro vendado.
Feita a atividade, sentamo-nos em círculo no pátio da institui-
ção, para reetirmos sobre ela. Primeiro, perguntamos a cada um: quando
estava na condição de cegos qual foi a sensação e o sentimento. Alguns
disseram que sentiram medo, justicando que não sabiam para onde o
companheiro os estava conduzindo; Bruno armou que foi por essa razão
que tirou a venda de seu olho. Murilo e Alex confessaram que olharam a
maioria do tempo, mas, quando não estavam olhando, também sentiram
medo. É comum as pessoas sentirem medo nessa atividade, pela inseguran-
ça de caminhar com os olhos vendados e precisarem conar plenamente
em seus guias; no caso dessas crianças/adolescentes, com sua história de
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

vida, acreditamos que tenha sido mais difícil conarem uns nos outros, até
porque a relação entre eles, na maior parte do tempo, é estabelecida por
meio de competição.
Os que não sentiram medo alegaram que estavam conando
em seu guia e, por essa razão, andaram normalmente, como foi o caso de
César, guiado pelo Participante 4, e David, guiado por nós, ou seja, cona-
vam na responsabilidade do adulto em os guiarem. Então nos arriscamos a
armar que, como essas crianças/adolescentes não experienciam relação de
cooperação entre eles, ca difícil estabelecerem conança uns nos outros,
o que ca claro quando comparamos com César e David, que estavam sob
a responsabilidade de um adulto e relataram sentir conantes na atividade.
Como arma Tognetta (2003, p.239), “[...] um ambiente cooperativo fa-
vorece relações de conança”. Desse modo, o fato de essas crianças viverem
em um ambiente em que predomina o respeito unilateral à autoridade
adulta e vivenciarem poucas ou nulas relações de cooperação entre iguais,
justica, ainda que parcialmente (pelos envolvimentos afetivos anteriores
ao abrigamento), a diculdade de estabelecerem relações de conança uns
com os outros, e mostrarem conança, quando se trata da relação com um
adulto, evidenciando uma visão da gerontocracia, existente mesmo que
alguns adultos tenham tido ações que descaracterizassem essa conança (já
que são crianças/adolescentes em situação de risco).
Perguntamos ainda sobre a situação contrária, isto é, qual o sen-
timento ao conduzir o outro. Em geral, não souberam explicar esse sen-
timento, mas César disse que, quando conduziu o companheiro, sentiu
obrigação de cuidar para que nada de mal acontecesse a ele. Conversamos
então que, para executarmos essa atividade sem sentir medo, era necessário
estabelecermos conança uns nos outros. Comparamos os sentimentos de
medo que sentiram nessa atividade com a reação de medo do tatu-bola e
do tatu-bolinha, além de diferenciarmos o que nós podemos fazer para
afastar o medo, como manter uma relação com os outros de conança, mas
que, para isso ser possível, precisamos dar e receber conança.
As crianças/adolescentes tinham muita diculdade em expressa-
rem sua opinião, principalmente quando se tratava de seus próprios senti-
mentos. Quando se tratava, por exemplo, de explorar a vida do tatu-boli-
nha, elas participavam e discutiam com maior entusiasmo, demonstrando

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
um interesse maior. É provável que isso ocorra pela vulnerabilidade de
sua situação, como crianças/adolescentes que vivem em serviços de acolhi-
mento e que sofreram com a negligência de seus pais anteriormente a esse
acolhimento. Nesse caso, notamos que assuntos que se mostravam diretos
à expressão de sentimentos próprios geravam desconança e desinteresse.
Depois da discussão, as crianças/adolescentes apresentaram inte-
resse em realizar a atividade novamente, para explorarem o que não tinham
explorado e o que constataram ser possível, durante a conversa, contudo,
como tempo estava avançando, o Participante 4 salientou que não seria
possível, pois teriam que terminar algumas atividades, evidenciando a pre-
ocupação tradicional com o cumprimento e a produção do conteúdo e não
percebendo o alcance da produtividade que poderia resultar da continui-
dade desse momento.
Em outro momento, essa mesma atividade foi proposta para três
outros adolescentes que não estiveram presentes nesse dia. Explicamos a
atividade e discutimos quem iria guiar quem; como estavam em três, tenta-
mos esquematizar com eles um modo de um guiar o outro, sem deixar nin-
guém de fora, visto que Vinícius costumava ser excluído, quando Tomás e
André estavam juntos. Assim, o Tomás guiou Vinícius, este guiou o André,
que guiou Tomás.
O exercício começou com Tomás guiando o Vinícius: ele não to-
mava o devido cuidado de indicar os obstáculos, fazendo o alerta muito em
cima da hora; na verdade, fez bastante brincadeira, mas o guiou. Depois foi
a vez de o Vinícius guiar André; enquanto guia, Vinícius provocou situações
em que colocava o colega em perigo, como, por exemplo, direcionar André
para o muro sem avisá-lo. Tomás tentou alertar, mas André acabou colidindo
com o muro. Depois da colisão, André, para se guiar, resolveu acreditar na
direção das vozes vindas entre nós e Tomás. Trocamos de dupla e foi a vez do
Tomás ser guiado pelo André, passeando com o colega por lugares diferen-
tes, mas sempre que havia obstáculos, ele o avisava para evitar sua queda. A
atitude desses três adolescentes pareceu-nos uma reprodução e diferenciação
de suas próprias ações, isto é, o primeiro não conduziu bem o segundo, que
descontou a atitude do primeiro e fez pior, na direção do terceiro, o qual, por
sua vez, indignado por sentir efeitos do descuido do segundo, guiou exem-
plarmente o primeiro. Entretanto, devemos também ressaltar que o primeiro
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

e o terceiro eram amigos, o que nos faz perguntar se a atitude do terceiro
seria diferente, caso não houvesse essa relação de amizade e cumplicidade, se
agiria com atitude semelhante ou pior da que teve o segundo.
Encerrada essa atividade, nós nos reunimos na sala para discutir
o que cada um sentiu enquanto “guia” e enquanto “cego”. A diculdade
maior, dita por eles, foi no papel de cego, pois não estavam enxergan-
do e não conavam no outro. André ressaltou que estava conando em
seu guia até colidir com o muro, declarou que Vinícius nunca poderia
guiar nenhum cego de verdade, na rua, que ele provocaria um acidente.
Aproveitamos essa fala para discutir o efeito de nossas ações na vida do ou-
tro e da atitude deste em nossa vida, como é difícil enfrentar um problema,
quando não podemos contar com ninguém nesses momentos de diculda-
de. Tomás e André discutiram com Vinícius, inconformados com sua ati-
tude, e este, por sua vez, demonstrou ter cado envergonhado, admitindo
não ter agido bem no papel de guia. Esse problema, durante a atividade,
permitiu que os adolescentes discutissem entre si a respeito de suas atitudes
e as consequências de seus atos, despertando sentimentos e elaboração de
argumentos necessários em uma discussão de ideias; no entanto, Vinícius
não deixa claro sua posição, apenas confessa sua culpa, possivelmente por
se sentir coagido por seus colegas.
Pudemos constatar que, na relação entre esses três adolescentes,
estava evidente a relação vertical expressa por André e Tomás para com
Vinícius, que se sentia constantemente coagido, especialmente por André.
Na discussão entre os três, Vinícius dicilmente justicava suas ações, ce-
dendo e concordando com os demais, de modo que não ocorria efetiva-
mente um diálogo, já que o elemento necessário para isso, a interação entre
os sujeitos, como discute Dongo-Montoya (1996), não está presente.
Para a atividade de nalização do clipe levamos um notebook para
a edição das guras/fotos e vinculação da música. As crianças/adolescentes
se envolveram na atividade e, com a supervisão e com nossa ajuda, edita-
ram o clipe. Houve uma participação direta no manuseio do computador
e também por meio de sugestões na edição.
No momento da escolha dos desenhos, algumas crianças não que-
riam que selecionássemos um desenho feito por César, pois achavam que

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
estava feio, mas, como presenciamos sua elaboração, vimos que este não foi
feito com desleixo: estava “feio”, no conceito dos garotos, por falta de ha-
bilidade. Argumentamos que, mesmo “feio” ou não, o clipe era produção
do grupo, de maneira que o desenho de cada um deveria ser respeitado e,
que se aquele desenho não fosse colocado, César não estaria representado
na produção do clipe. Explicamos que uns podem ter mais habilidades em
uma atividade e outros, mais habilidades em outra, e a inclusão do desenho
de César seria importante para seu sentimento de pertencimento ao grupo.
Depois de nalizada a edição o clipe foi postado na internet. O ende-
reço da postagem é: <https://www.youtube.com/watch?v=hnmdCtcx9_A>.
Elas demostraram orgulho ao ver a nalização do trabalho, mas
ainda criticavam o desenho feito por César, apelidando a menina do dese-
nho de “bruxa” e provando que nossa mediação na atividade anterior não
surtiu o efeito esperado, o respeito pelo outro. Percebemos que as crianças/
adolescentes sujeitos de nosso estudo expressam certa diculdade em se
relacionar com cooperação e respeito mútuo com seus iguais, ocorrendo
casos, por exemplo, de desdenho a produções alheias, estragando objetos
de outrem e os seus próprios; mas, como discutimos em uma das reuni-
ões com os funcionários, um dos principais motivos dessa ocorrência é
a carência do respeito de si próprio, dicilmente trabalhado nas relações
interpessoais da rotina no ambiente do abrigo.
As relações interpessoais são o contexto para a construção do self
pela criança, com sua consciência de si mesmo e auto-conhecimento
complexo. Na verdade, o ambiente sócio-moral colore cada aspecto do
desenvolvimento de uma criança. Ela é o contexto no qual as crianças
constroem suas idéias e sentimentos sobre si mesmas, sobre o mundo
das pessoas e o mundo dos objetos. (DEVRIES; ZAN, 1998, p.51).
Na atividade de leitura do livro “A história da menina e do medo
da menina” (TOGNETTA, 2011). O livro trata de uma menina que se
sentia diferente dos demais colegas da escola, era rejeitada e zombada por
eles, e sentia medo de tudo, principalmente medo do medo. Certo dia,
resolveu enfrentar o seu medo e começou a socializar com seus colegas,
descobrindo que todos nós temos medo, mas devemos saber lidar com ele
e não alimentá-lo, impedindo-o de car grande, sem controle.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Antes da leitura do livro, pedimos para que as crianças/adolescen-
te descrevessem as características da menina. A maioria delas, comentava
as características físicas da menina de maneira pejorativa, como “magrela”,
quatro zóio” (sic), entre outras. Diante de suas falas, indagamos a elas se
gostariam de ser tratados como estavam chamando a menina; responde-
ram que não gostariam que isso acontecesse. Percebemos que, para essas
crianças/adolescentes, era engraçado ofender as pessoas, ressaltando suas
diferenças, todavia, quando questionados, armavam não gostar de ser
ofendidos, dizendo que era “bom zombar os outros”, de modo a evidenciar
como era difícil se descentrarem e se colocarem na perspectiva do outro. A
atitude das crianças/adolescentes em caracterizar a menina da história de
forma pejorativa, merece maior investigação, porque o comportamento
delas, na conversa, pode indicar possíveis autores de bullying, como descre-
vem Tognetta e Vinha (2008, p.206):
Geralmente, o comportamento de intimidação e provocação constante
esconde alguém amargo, que aprendeu a resolver seus problemas de
falta de valor a si mesmo buscando rebaixar os outros.
Esse comportamento não foi apenas notado nessa atividade, mas
em vários momentos, como nas observações participantes. Utilizam nesse
caso, especialmente, ofensas às mães, caracterizando o outro pela imagem
da mãe, como, por exemplo, ao chamar o menino de “pinguinha”, quando
sua mãe é alcoólatra.
As crianças/adolescentes mostraram muito interesse na leitura
e discussão a respeito do medo de cada um e, embora não relatassem os
seus próprios medos, acharam interessante saber que todos podem ter
medo de alguma coisa, tendo as ilustrações do livro ajudado para desper-
tar esse interesse. Depois da leitura, zemos coletivamente uma atividade
indicada pelo livro, na qual havia quatro perguntas iniciadas com “Como
você se sentiria se...”. Os meninos em sua totalidade demonstravam se
sentir com raiva, quando se colocavam na questão e manifestavam a so-
lução dos problemas por meio da violência e revide, pois, segundo eles,
nem sempre a conversa “funciona” e, quando o outro não quer ouvir,
não resolve. Isso nos fez discutir o que deve acontecer para uma conversa
surtir efeito, proporcionando condições para que eles reetissem que to-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
dos os envolvidos no conito devem participar de sua resolução, a m de
que ela ocorra, ou seja, para resolver um problema por meio da conversa,
devemos saber expressar nossa opinião e saber ouvir a opinião do outro,
e assim chegar a um consenso por meio do respeito mútuo. É importante
diferenciar aqui o respeito mútuo, nessa ação, do consentimento mútuo
simplesmente, que pode não estar ligada a nenhum sentimento moral,
como arma Piaget (1932/1994).
Propusemos uma segunda atividade também sugerida no livro,
que era composta por um quadro de características com espaços a serem
preenchidos com pessoas conhecidas que apresentavam tais características.
O objetivo da atividade era perceber que todos são diferentes, mas, mes-
mo com essas diferenças, todos têm seu valor e devem ser respeitados. Os
nomes escolhidos para colocarem na tabela foram, em sua maioria, os pró-
prios nomes e os nomes dos colegas ou dos funcionários da instituição. No
momento dessa atividade, não interferimos, deixando-os livres para fazer
comentários, ocasião em que não houve referência negativa em relação às
características das pessoas, diferentemente do que acontecia em alguns mo-
mentos da discussão da história, como já relatamos. Tendiam a nomear as
características que julgavam apropriadas para as pessoas a que expressavam
maior afeto ou com o seu próprio nome.
4.2.4 AS RELAÇÕES DE GRUPO: RESOLUÇÃO DE CONFLITO E O EXERCÍCIO DO
DIÁLOGO
Vinha e outros (2011) aborda o tema conitos na escola como
sendo algo recorrente e que demanda grande parte do tempo e energia dos
membros da instituição no intuito de resolve-los. A forma de resolução
em geral é autocrática, no sentido de calar o conito ao invés de utiliza-lo
como um momento potencialmente construtivo. No abrigo essa situação
não é diferente e realizamos uma atividade com o objetivo de promover
uma situação em que as crianças/adolescentes pudessem resolver juntos
um problema de difícil execução, exercitar o diálogo entre elas e reetir
sobre possibilidades de ação, quando se enfrenta um problema. Para isso,
levamos para elas a dinâmica “Nó no círculo” e a estorinha “O conto da
Tartaruga” (CARRERAS, 1998) A atividade foi feita em um pátio em fren-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

te à instituição, em que havia espaço para sua realização. Formamos um
círculo e explicamos a dinâmica. Eles precisariam erguer as mãos para o
alto e segurar, com cada mão, a mão de um companheiro diferente e, ainda
segurando as mãos, colocá-las para baixo. Feito isso, os garotos deveriam
compor um círculo sem imperfeições.
No princípio, as crianças/adolescentes tentavam cada um por si
resolver o problema, mas isso resultava em um nó ainda maior. Notamos
que elas não dialogavam entre si e cada um procurava resolver o problema
ao mesmo tempo. Tanto os mais velhos como os mais novos não formula-
vam estratégias em conjunto e não pareciam perceber que a maneira como
estavam tentando não estava resolvendo. Podemos fazer uma comparação
desse momento da atividade com a prática das regras do jogo de bolinha
pelas crianças pequenas, descrita por Piaget (1932-1994), que, com o seu
egocentrismo, jogam para a satisfação pessoal e não se socializam com os
outros. Vericamos ainda uma semelhança com a “dinâmica da bala” reali-
zada junto aos funcionários, os quais não usavam o diálogo para resolver o
problema proposto, fazendo tentativas solitárias e muitas vezes frustradas,
até chegarem à conclusão de que precisavam do outro para a solução do
problema conjunto.
Orientamos as crianças/adolescentes a tentar formar uma estra-
tégia juntos, então eles começaram a pensar e escutar a opinião uns dos
outros e, quando acontecia de um se orientar por si próprio, o círculo ca-
va mais enrolado e elas o repreendiam. Nesse momento, percebemos que
elas notaram que aquele problema somente seria resolvido se elas agissem
juntas, pensando em uma estratégia. Depois de inúmeras tentativas, for-
maram um círculo com apenas um menino com a face voltada para fora,
concluindo a dinâmica.
Sentamo-nos no chão para a leitura do conto da tartaruga. O
conto relatava a história de uma tartaruga que estava perdida na oresta e,
para ajudá-la a encontrar o caminho de casa, os duendes da oresta colo-
caram em seu casco uma erva mágica e lhe disseram que, toda vez que ela
quisesse saber o que fazer, ela deveria colocar sua cabeça dentro do casco,
cheirar a erva mágica e pensar, assim ela saberia o que fazer.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Discutimos a história, comparando-a com a dinâmica, reetindo
sobre quais os pontos comuns entre as duas atividades. As crianças/adoles-
centes participaram ativamente das discussões e compararam a diculdade
que elas encontraram em parar para pensar na dinâmica, com a diculdade
da tartaruga. Na atividade do “Nó no círculo”, o uso da conversa era fun-
damental para resolver o problema, levando-nos a constatar, como igual-
mente tinha acontecido nas observações, que essas crianças/adolescentes
não exercitam a linguagem construtiva entre eles e têm muita diculdade
quando isso é proposto. Concorrem para tal a maneira com que suas re-
lações são conduzidas, no ambiente do abrigo; as frequentes soluções dos
conitos pelos adultos; as poucas oportunidades de fazerem escolhas e a
fragilidade das relações interpessoais.
Segundo Dongo-Montoya (1996), as trocas cognitivas (ações de
reunir informações, colocá-las em relação ou em correspondência, intro-
duzir reciprocidade) permitem ultrapassar a dicotomia entre o indivíduo e
a sociedade, comportando desse modo as duas formas de ações humanas –
“[...] a ação individual e a ação interindividual”. (DONGO-MONTOYA,
1996, p.72). Dito de outra maneira, a linguagem representada aqui pelo
diálogo, além de toda função simbólica, ajuda a criança a se relacionar com
outrem e a resolver problemas de maneira coletiva, por meio de trocas de
pontos de vista, sendo importante por possibilitar a evocação de conceitos
ou esquemas interiorizados. Todavia, para que isso seja possível, não é su-
ciente dominar a linguagem ou as outras funções simbólicas. A qualidade
de socialização desse indivíduo vai inuenciar, segundo o autor, a capaci-
dade dessa operação.
Se semelhante processo é realizado pelo indivíduo, isso não signica
que ele se baste a si mesmo, inclusive porque jamais existe um indiví-
duo isolado. A operação embora sendo resultado de um processo cons-
trutivo individual, alcançado a partir da interação incessante com os
objetos, não se constitui sem a participação dos outros indivíduos, com
os quais é necessário compartilhar (socializar) os signicados represen-
tados. Por isso é que simultaneamente às coordenações de ações reali-
zadas pelo indivíduo (operações) se produzem coordenações de ações
entre os indivíduos (co-operações e trocas cognitivas). (DONGO-
MONTOYA, 1996, p.71).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

No caso dessas crianças/adolescentes, o ambiente não tem permi-
tido o exercício dessas trocas cognitivas. Um exemplo claro se verica no
momento da mediação da resolução do conito social, quando frequen-
temente o adulto intervém, buscando saber o ocorrido para encontrar o
culpado” ou simplesmente afasta os envolvidos. Se, como salienta Vinha
(2003a), momentos de conitos são oportunidades para o aprendizado, es-
ses adultos, com essa atitude, estariam dicultando esse aprendizado. Para
Dongo-Montoya (1996), a troca simbólica se faz extremamente necessária
para a criança comunicar, expressar suas experiências, seus saberes, seus
sentimentos, além de conhecer e interpretar os dos outros. E, conforme o
autor, somente com “esse movimento de dupla mão” se faz possível abrir
possibilidades para a interiorização da ação e para a co-operação.
Diante dessas considerações, percebemos o quão necessário é a
ação do educador como promotor e facilitador desse processo, assim como
a relação interpessoal entre iguais. Vimos frequentemente ações que facili-
tam o cuidado da criança/adolescente pelo educador, mas que, na verdade,
não auxiliam a criança/adolescente a reetir sobre seus atos e suas conse-
quências naturais. Podemos notar, também, que a diculdade do uso da
linguagem não se dá somente entre as crianças/adolescentes, como relem-
brado anteriormente: muitos funcionários da instituição também tiveram
diculdades semelhantes às das crianças/adolescentes, em dinâmicas pro-
postas nas reuniões de ação.
Como observamos que a relação entre as crianças/adolescentes,
na maioria das vezes, se dá por competição e o “querer se dar bem”, pro-
pusemos outra atividade com o objetivo de instaurar uma situação em que
elas pudessem pensar e agir de modo que tivessem que buscar com o outro
a melhor maneira de se resolver um problema (que envolve competição).
Levamos a dinâmica do “Potrinho” (CARRERAS, 1998), que
foi realizada de duas maneiras diferentes. A primeira foi dividir as crian-
ças/adolescentes em dois grupos, sendo entregue ao primeiro grupo uma
sequência de guras em que dois potrinhos amarrados um ao outro com
uma corda curta viam, cada um de seu lado, um monte de palha que de-
sejavam comer, mas não conseguiam, por estarem amarrados e, no nal da
sequência, achavam uma solução para resolver o problema. Para o outro
grupo, entregamos a mesma sequência, mas nesta havia o diálogo durante

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
o transcorrer da história e como chegaram à solução. Pedimos para ambos
os grupos observarem a sequência e discutirem entre si qual a mensagem
que ela trazia. Depois disso, abrimos a discussão e cada grupo expôs a sua
opinião e sua reexão. Discutimos nessa atividade a importância de estabe-
lecer o diálogo para solucionar um problema coletivo, o desejo em buscar
a vantagem pessoal e a necessidade da solução do problema que seja boa
para todos os envolvidos.
Como David e Alex não estavam presentes durante essa ativida-
de, o Participante 4 teve a ideia de propor a atividade para eles de forma di-
ferente, em que eles representariam os potrinhos. Quando eles chegaram,
conversamos com eles e, ao aceitarem a brincadeira, amarrarmos ambos
pelos pés e colocamos diante deles “batatas fritas” de brinquedo, em uma
distância que não conseguiriam alcançar. Dissemos a eles que, na brin-
cadeira, eles estavam com fome e doidos para comer as batatas, porém,
como eles não as estavam alcançando, eles deveriam resolver esse proble-
ma. Ambos tentaram com toda força pegar as batatas, mas sem sucesso.
As crianças/adolescentes que já haviam realizado a dinâmica ca-
ram ansiosas pela solução do problema, mas os orientamos a esperar para
ver como o David e o Alex iriam solucioná-lo. Os dois paravam para pensar,
mas voltavam a usar a força; depois de muito esforço, um deles sugeriu que
o outro o acompanhasse para comer e, depois, ele o acompanharia também.
Combinado isso, ambos foram para um dos montes e um dos meninos “co-
meu a batata”, todavia, no momento de acompanhar o que ainda não havia
comido”, forçou para não deixá-lo “comer”, impedindo que alcançasse o
monte de “batatas”, havendo então uma discussão entre eles e o que não ha-
via “comido” conseguiu chegar até seu monte. Com essa situação, discutimos
o que havia acontecido e novamente, mas agora com um exemplo prático,
os pontos discutidos na atividade com os dois grupos do início. Vericamos
que, na atividade prática, houve a participação concreta das crianças/adoles-
centes e com isso a reprodução de práticas de seu dia-a-dia, principalmente
o “sacanear” (sic) o outro. Atividades como essa permite a interação entre as
crianças e o surgimento de conitos, mas longe de querermos evitá-los, uma
vez que surge também, como arma Vinha (2000), a oportunidade de pro-
mover o aprendizado dessas crianças para, em função da resolução deste por
elas próprias (com a mediação do educador). Assim, de acordo com DeVries
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

e Zan (1998, p.70), “[...] organizar a interação com colegas é também prepa-
rar o terreno para conitos inevitáveis”.
Em outro momento realizamos essa mesma atividade com outros
dois adolescentes que não estavam presentes nas oportunidades anteriores.
Durante a execução da atividade, Tomás sugeriu para Vinícius ir com ele
até o seu prato e depois ele iria até o prato dele, assim os dois comeriam;
entretanto, Vinícius não concordou, pois, para ele, não era justo deixar
o outro ser o primeiro em seu lugar, estando assim ligado à justiça retri-
butiva, segundo Piaget (1932/1994). Tomás pensa em outra alternativa e
propõe para Vinícius tirarem “joquempô”, de sorte que quem ganhasse iria
primeiro e o outro o acompanharia. Porém, Vinícius não concordou, pois,
como dependia da sorte, estava com medo de perder no jogo e ser o segun-
do a comer a suposta comida. Como Vinícius não aceitava nenhuma pro-
posta e não sugeria nada, Tomás cou nervoso. André, que os observava,
começou a falar que eles tinham que entrar em um acordo. Tomás tentava
convencer Vinícius, mas este estava irredutível. Tomás cou muito nervoso
e se sentou no chão, esperando que Vinícius se decidisse, mas este também
se sentou no chão. Mostramos a eles, pois, que iríamos car muito tempo
lá, se eles não resolvessem o problema. André sugeriu novamente que en-
trassem num acordo e Tomás, vencido pelo cansaço, decide ir com Vinícius
primeiro, para que este “comesse sua comida” e, depois, vai com Vinícius
até sua “comida” e a “come”. Depois da atividade, discutimos o que tinha
acontecido e qual tinha sido a atitude dos dois. Os adolescentes (Tomás
e André) disseram que Vinícius tinha sido egoísta e queria ser o primeiro
em tudo, querendo sempre ganhar; André frisou ainda que não é sempre
que ganhamos, às vezes temos que ceder, como fez Tomás. Não percebe-
ram que a proposta de Tomás também visava seu próprio benefício, pois a
primeira alternativa foi ele “comer” primeiro e depois Vinícius. Vinícius,
como na atividade do Cego e seu Guia, cou envergonhado diante de sua
atitude e demonstrou ter entendido a situação. Todavia, compreendemos
a atitude de Vinícius quando não aceita as propostas que acredita serem
injustas, porém, percebemos claramente sua diculdade em por meio do
diálogo encontrar uma solução que ele pudesse admitir como justa, ainda
que para isso, tivessem que, por exemplo, suspender a atividade, realizar
uma outra disputa que envolvesse a habilidade ao invés da sorte e o ga-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
nhador seria o primeiro a “comer”, já que ele não aceitou que houvesse o
privilégio de um e que a sorte decidisse a ordem. Com essa atividade cou
ainda evidente a importância da prática no lugar do discurso. Enquanto
a atividade foi observada em gravuras e discutida, os verdadeiros conitos
não foram notados. A tomada de consciência se deu muito mais efetiva-
mente na prática (dramatização) da situação.
Ainda com a perspectiva de trabalho com resolução de problemas,
usamos o livro “Era outra vez o reizinho e seus vizinhos” (TOGNETTA,
2010c). Em alguns momentos, durante a leitura e discussão, tínhamos que
parar para chamar a atenção de algumas crianças que brigavam entre si,
aproveitando a oportunidade para discutir com eles o assunto tratado no
livro e compararmos com a prática que estavam vivenciando. Já que o livro
trata de um clubinho, comparamos a vivência deles com esse clubinho: o
que acontecia de semelhante, como, por exemplo, as atitudes deles durante
os conitos. Elas diziam que muitas vezes é difícil resolver os problemas
conversando, porque, quando o outro não quer ouvir, é melhor partir para
a briga. Percebemos com as falas dessas crianças/adolescentes que a forma
mais ecaz para a solução do conito é o revide do comportamento da-
quele que o agride, porque é difícil estabelecer o diálogo com o outro que
não se interessa em resolver o problema conversando. Acreditamos que isso
seja reexo dos hábitos do ambiente em que vivem, pois frequentemente
os conitos são evitados ou solucionados pelos adultos, não se permitindo,
desse modo, que as crianças/adolescentes exercitem sua interação com seus
iguais, seja para trocarem pontos de vista, seja para trocas cognitivas. A m
de que isso fosse possível, o ambiente deveria favorecer relações cooperati-
vas, como sugere Tognetta (2003, p.239):
Somente um ambiente cooperativo pode elucidar esse respeito mútuo
e promover a evolução da moralidade, porque ela é conseguida quando
podemos reetir sobre o comportamento interpessoal, sobre a convi-
vência social, sobre o tipo de vida que leva, sobre os valores que pre-
tendem conduzir o comportamento ou sobre as vivências conitivas.
Depois dessas reexões, propusemos um jogo indicado no livro
(com algumas adequações) sobre os sentimentos e expressões que temos dian-
te de algumas situações. O jogo uiu e as crianças/adolescentes discutiam os
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

sentimentos nas situações e demonstraram se divertir brincando. Conforme
enfatizam Kamii e DeVries (1991), atividades de jogo são importantes para a
interação entre as crianças e para que vivenciem a observância das regras. Foi
o que notamos com essa atividade com as crianças/adolescentes.
Com outros dois adolescentes que não estavam presentes nesse
momento, realizamos a leitura do livro e um jogo de trilha inspirado no li-
vro. Nesse jogo, três bonequinhos deveriam caminhar em direção à chega-
da. Pela ordem (denida pelo “joquempô”), cada jogador deveria retirar o
cartão com uma situação e o jogador avançaria para a casa em que estivesse
o sentimento adequado (indicando contentamento ou descontentamen-
to), vencendo o jogador que atingisse primeiro a casa da chegada.
Os adolescentes demonstraram ter gostado de jogar e quiseram
repeti-lo algumas vezes. No nal de nossas atividades do dia, as demais
crianças/adolescentes chegaram da escola e alguns se reuniram em nosso
grupo. Tomás disse que tinha um “fedor” perto dele e, como Murilo tinha
acabado de chegar no grupo, ele se sentiu ofendido, achando que Tomás o
estava provocando e se indignou, questionando: “Por que você está falando
assim comigo?” (disse isso sem estar com a voz alterada), ao que Tomás
revidou nervoso, respondendo que não era dele que estava falando. Os
dois caram nervosos. Quando Murilo foi guardar sua mochila, discutiu
novamente com Tomás, que também revidou. Murilo começa a ofender
com suas palavras a Tomás, fazendo referência a sua mãe. Um agride o
outro verbalmente, nesse momento, André interfere na discussão, pedindo
para Tomás parar e perguntando: “O que nós aprendemos hoje?” Tomás
responde: “Nada”; dá uma risadinha e vai se sentar para assistir a TV.
Percebemos, com essa situação, que, assim como as crianças/adolescentes
declararam nas discussões das atividades, era difícil se controlarem para
resolver o problema, de forma que eles tendem a preferir revidar as ofensas
e agressões, no entanto, vimos na intervenção de André a tentativa de re-
solver o problema de outra maneira, nesse caso, procurando evitar ceder às
provocações dos menores e ajudando o colega controlar o seu nervosismo.
As atividades com as crianças/adolescentes tiveram duração apro-
ximada de 3 meses. Mesmo com um tempo tão curto, retomando os ob-
jetivos e resultados percebemos vários aspectos positivos e problemas que
emergiram. Um exemplo disso foi o reconhecimento do autovalor por

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
parte das crianças/adolescentes nas discussões em torno da literatura. Isso
gerou um descontentamento por parte dos funcionários, já que geraria um
maior questionamento das regras e atitudes tomadas de modo autoritário
e desrespeitoso.
“Sulcos de escuma ao mar”. O vislumbre da mudança e a constru-
ção dos caminhos para essa mudança trazem muitas incertezas, medos, tra-
zem à tona as fragilidades das pessoas e da instituição. Quando os sulcos de
escuma no mar começam a ser mais do que isso e passam a ter as pegadas dos
caminhantes, nos deparamos com as possibilidades de tropeço, as quedas de
fato e as dores das feridas geradas. Isso por um lado leva a um questionamen-
to do “será que é possível?” e por outro instiga a curiosidade pela descoberta
da resposta. É assim que nos encontramos. Colocamos no próximo capítulo
as avaliações que zemos no processo de intervenção na instituição.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.


C 
MUDANÇA PARA TODOS?
AVALIANDO O PROCESSO DE INTERVENÇÃO
Se você quer realmente entender alguma coisa,
tente mudá-la. Kurt Lewin
Retomando o trabalho como um todo, reencontramo-nos com
a citação de Lewin. O trabalho de intervenção nos possibilitou uma nova
compreensão a respeito da instituição de abrigo, a respeito do processo de
construção de relações cooperativas e baseadas no respeito mútuo e levan-
tou vários novos questionamentos com relação às composições educativas
nas instituições de acolhimento e no que isso reete no desenvolvimento
de crianças/adolescentes acolhidos.
Para maior clareza, dividimos as nossas reexões a respeito do
trabalho de intervenção em três partes: considerações sobre o ambiente de
abrigo na visão dos funcionários; considerações sobre o ambiente de abrigo
na visão das crianças/adolescentes acolhidas; e juízo moral das crianças/
adolescentes.
5.1 C
ONSIDERAÇÕES SOBRE O AMBIENTE DE ABRIGO NA PERCEPÇÃO DOS
FUNCIONÁRIOS
Para avaliar como os funcionários percebem a instituição após o
processo de intervenção elaboramos uma entrevista semiestruturada com
alguns objetivos que deniram as seguintes categorias: apreciação de sua
própria função na instituição em relação às crianças/adolescentes; reconhe-
cimento de sua função em situações de conito interpessoal; apreciação
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

do ambiente da instituição como facilitador do desenvolvimento moral;
mudança no relacionamento entre funcionários após a intervenção; e, mu-
dança no relacionamento dos funcionários com as crianças/adolescentes
após a intervenção.
5.1.1 APRECIAÇÃO DE SUA PRÓPRIA FUNÇÃO NA INSTITUIÇÃO EM RELAÇÃO ÀS
CRIANÇAS/ADOLESCENTES
Essa categoria visa entender qual a postura dos funcionários quan-
to à educação moral das crianças/adolescentes buscando analisar como se
veem no papel de educadores considerando as várias funções técnicas
18
que exercem na instituição. É visível que a maioria dos participantes, ao
explicar o objetivo de sua função no abrigo, descreveu apenas o que diz
respeito ao trabalho técnico, sendo que apenas dois mencionaram o papel
de educar a criança e um deles ao relatar sua função de educador colocou
ênfase na educação formal que de fato pratica enquanto professor.
O Participante 1, por exemplo, tem uma visão abrangente de
sua atuação, percebendo as dimensões saúde, educação, reforço escolar,
recreação, lazer, enm, mostra-se ciente de sua responsabilidade nessas ta-
refas não só em função do aspecto técnico, mas também em função do
relacionamento que tem com as crianças/adolescentes. Em contrapartida,
foi prevalente a postura de centraram sua atenção e atuação apenas consi-
derando a descrição de sua função no cargo ocupado sem o vislumbre de
seu papel educativo.
Nesse momento não nos cabe concluir que os participantes que
não declararam, em sua função, o papel de educador não se sentem como
tal e não exerçam essa função; ca-nos, porém, a dúvida se está claro para
eles que o papel de educador é inerente a qualquer função que possam rea-
lizar numa instituição de acolhimento, seja por membros da equipe técni-
ca, seja educador/cuidador ou auxiliar de educador/cuidador. Vericamos
que, para a maioria dos participantes, quando mencionam algum tipo de
responsabilidade educativa, esta se refere às ações disciplinares, como a de
corrigir, dar orientações e limites às crianças/adolescentes. Três funcioná-
18
Por trabalho técnico entendemos as funções inerentes ao cargo ocupado, por exemplo, as funções do cargo de
cozinheira, as funções do cargo de jardineiro e assim por dia

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
rios relataram que, além da disciplina e orientações necessárias para educar,
lidavam com o emocional da criança, dando-lhe atenção e carinho; um
deles frisou que, além do ensino formal com as crianças/adolescentes, tem
que trabalhar o emocional, mas, para ele, lidar com o emocional dessas
crianças/adolescentes é um fator que diculta o exercício de sua função.
Um exemplo desse tipo de resposta é:
Bem, tirando a parte de desestrutura [emocional] que alguns meninos tra-
zem, dentro da sala é um relacionamento bom [...] a criança que tem a
diculdade maior, que é o Paulo e o César, que desestrutura o grupo, mas
os demais do grupo respondem bem ao trabalho (Participante 4).
Quando tratamos de uma instituição de serviço de acolhimento,
pensamos em um lar provisório para crianças/adolescentes em situação de
risco, de modo que almejamos encontrar nessas instituições atributos ine-
rentes a um lar, como os cuidados básicos de higiene e alimentação, educa-
ção não formal e, sobretudo, afeto e carinho. Percebemos que, muitas ve-
zes, a maior preocupação dos funcionários da instituição analisada está em
cumprir com sua tarefa relacionada ao cuidado da criança/adolescentes e/
ou manutenção da entidade, além da preocupação em corrigir e orientar
as crianças/adolescentes, porém, a questão do afeto poucas vezes é mencio-
nada, assim como as relações de respeito e carinho. Ferreira (2007) alude à
importância de se estabelecer uma relação afetiva com a criança/adolescente,
já que é uma necessidade intrínseca a todo ser humano. Piaget (1932-1994,
p.52), concordando com as pesquisas realizadas por Bovet, arma que “[...]
o sentimento de obrigação só aparece quando a criança aceita imposições de
pessoas pelas quais demonstram respeito”; sendo assim, primeiro ela respeita
a pessoa para depois respeitar a regra e, ainda, , segundo Piaget, o respeito da
criança se inicia com o misto da relação de afeto e medo que se dá na relação
com, por exemplo, o pai ou a mãe (o sentimento de medo depois se trans-
forma em medo de decair ao olhar do outro).
Para obtermos uma resposta mais direta sobre a responsabilidade
que acreditam ter na educação das crianças/adolescentes, perguntamos aos
participantes quem educava as crianças/adolescentes no abrigo e, em segui-
da, se acreditavam ter alguma responsabilidade nessa educação.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Diante dessa questão mais direta, a maioria dos funcionários
observou que é função de todos a educação das crianças/adolescentes.
Outros, apesar de armarem que acreditam ter alguma responsabilidade
nessa educação, ressalvaram que esse papel não faz parte de sua função.
Um participante atribuiu a responsabilidade aos funcionários que, em suas
atribuições especícas, trabalham diretamente com as crianças, mas, ao
ser questionado se pensa ter alguma responsabilidade nessa educação, ele
declarou que também tem o dever de educar.
Ferreira (2007) considera que todos os funcionários de uma insti-
tuição são educadores, por lidarem com as crianças em desenvolvimento e,
por essa razão, devem ser considerados a formação continuada, a carreira, a
hora de descanso e os aspectos de desenvolvimento do prossional. Nesse
sentido, Kamii e DeVries (1991) alertam que o trabalho em equipe é funda-
mental para se constituir um ambiente de educação sociomoral, pois de nada
adiantaria o trabalho de apenas alguns dos membros da equipe se outros os
contrariassem em suas ações; assim, como está na fala do Participante 9, em
suas conversas não poderia “deseducar” as crianças/adolescentes:
Bom, quem educa eles são vários educadores, tem a diretora [...] o
Participante 2 e 3, esses aí são os educadores. [...] Tenho, tenho responsabi-
lidade na educação deles porque se eu não dar (sic) um bom exemplo para
eles eu estou ‘deseducando’ eles, então, eu tenho obrigação de educar eles
também [...] (Participante 9).
Na verdade, essa não “deseducação” é essencial para o desenvolvi-
mento moral da criança e para a constituição de um ambiente sociomoral.
Entretanto, não a vemos como suciente para isso, porque nossa grande
preocupação diante dessas respostas é o fato de ainda haver um número
considerável de funcionários entendendo que sua contribuição é secundá-
ria. Podem concluir, a partir disso, que sua ação não é muito importante,
de sorte a negligenciar sua intervenção nessa educação, delegando ao outro
essa função e prejudicando o desenvolvimento da criança/adolescente que
necessita de uma intervenção efetiva e não provisória ou inexistente.
Menin, Bataglia e Shimizu (2011) ao se referirem a respeito da
aplicação e execução de projetos de educação moral e valores morais em
escolas, discutem as diculdades encontradas, no âmbito escolar, em har-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
monizar o trabalho de toda equipe. Uma das diculdades relatadas pelas
autoras que também encontramos em nosso trabalho foi que “[...] nem
todos participam com o mesmo ânimo, ou com uma metodologia dinâmi-
ca” (MENIN;BATAGLIA;SHIMIZU, 2011, p.277). Segundo Martínez
(1994), uma das causas mais notáveis da inecácia das reformas educacio-
nais é que estas são pouco implementadas nas formas de proceder dos edu-
cadores, justamente por não perceberem a sua importância e necessidade.
O que vericamos nessa instituição é a forma compartimentalizada das
funções de cada funcionário e, em face desse fator, grande parte deles en-
contra diculdade em se identicar como educadores e desempenhar esse
papel, não favorecendo o desenvolvimento moral das crianças/adolescentes
que vivem na entidade.
5.1.2 RECONHECIMENTO DE SUA FUNÇÃO EM SITUAÇÕES DE CONFLITO
INTERPESSOAL
Investigamos as medidas tomadas pelos funcionários nos mo-
mentos em que ocorrem os conitos interpessoais, tanto entre as crianças/
adolescentes, como entre funcionários e as crianças/adolescentes, procu-
rando identicar se há ou não intervenção educativa ou transferência de
responsabilidade da intervenção adulta, do educador. Também vimos a
necessidade de conhecer a crença desses funcionários concernente aos mo-
tivos que geram os conitos na instituição, porque assim pudemos vericar
se há nesses conitos elementos da formação moral do sujeito.
As respostas dadas se referiram a medidas imediatas tomadas du-
rante o momento do conito. A medida mais relatada nas respostas dos
participantes foi a de separar os envolvidos e amenizar como forma de
apaziguar os ânimos, medidas estas que julgavam capazes de evitar maiores
problemas, como a violência física. A fala do Participante 6 exemplica
essa atitude:
[...] eles discutem, mas quando eles começam a discutir eu já entro no meio,
eu não deixo eles carem nervosos, é difícil assim eles carem nervosos co-
migo, porque eu penso assim, “se eu deixar eles carem nervosos, vai ser pior
para eu separar”, antes que implica e já começa a falar, começa agredir um
o outro, eu já faço um jeito pra separar, entrar no meio.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Sem dúvida, a medida encontrada por esse participante facilitaria
o seu trabalho com a criança/adolescente, porém, será que dessa maneira a
criança/adolescente aprenderá com o conito? Como vimos no Capítulo
2, o conito interpessoal, sobretudo entre iguais, conforme Piaget (1932-
1994), é necessário para a descentração do indivíduo, a m de perceber
que há pontos de vista diferentes do seu e, com isso, permitir que com o
exercício da cooperação entre iguais possa avançar da moral heterônoma
para a moral autônoma.
A segunda medida mais descrita foi conversar com os envolvidos,
corrigi-los e orientá-los, apontando a maneira correta de se agir, como de-
monstra o seguinte exemplo:
Eu corrijo eles só falando, eu corrijo assim, falo para eles “Não adianta
vocês carem xingando a mãe de vocês, a mãe do outro, você não sabe nem
o que a mãe do outro está aprontando, está trabalhando para cuidar dos
outros seus irmãos nas suas casas e vocês xingando suas mães, xinga uns
aos outros, mas não a mãe” (risos) você sabe o que a mãe está fazendo? A
mãe está lutando lá para pagar a água, a luz, pagar aluguel e você está aí
brigando, xingando a mãe dele, por quê? (Participante 9).
Com essa medida, há a busca por meio da fala de convencer a
criança/adolescente a acabar com a briga, a discussão; contudo, não per-
cebemos a solução do problema nem a tomada de consciência da criança/
adolescente, pois, segundo o complemento da fala do Participante 9, “[...]
sai um para lá e outro para cá, mas sai respondendo um pro outro ainda ‘eu
vou te pegar’ [...] mas aí eu falo ‘mas, agora não, agora você não vai pegar
ninguém’, um vai para lá e o outro vai para cá”. Outro participante também
favorável à conversa relata que muitas vezes esta não surte efeito, porque
alguns funcionários contrariam o seu dito, lamentando a falta de união
entre eles. Porém, não atentam para a fragilidade de seu ensino puramente
verbal para o desenvolvimento moral da criança, não provocando nenhu-
ma espécie de conito interno capaz de promover tal desenvolvimento,
como arma Piaget (1932-1994, 1930-1996).
Um dos participantes relatou a importância de “chamar à razão
nesses momentos:

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
A gente sempre tem que tentar chamar à razão, chamar à razão para ele ser
crítico da situação e dependendo da situação ele tem que pedir desculpa, tem
que ter humildade [...] isso faz parte de um caráter de uma pessoa a gente
tem que assumir nossos erros [...] No conito entre eles, quando você pára
para analisar, você começa a perguntar para eles, você observa assim, cada
um tem sua parcela de culpa [...] e a gente sempre tenta orientar e mostrar
para ambos num conito, assim, questão de respeito entre si, a individua-
lidade, valores e que a partir do momento que você passa por uma agressão
física, uma aversão verbal você perde a sua razão. (Participante 1).
Notamos, nessa fala, um avanço em relação às outras respostas,
pois, para esse participante, é importante intermediar a conversa entre os
envolvidos, tentar perceber o ponto de vista do outro e se respeitarem, no
entanto, não cou clara a participação da criança nessa medida de solução,
de quem parte o ato de pedir desculpas, se é algo decidido ou imposto,
requerendo melhor investigação.
Outro participante menciona como medida apenas o acompa-
nhamento da situação, mantendo-se em alerta para que os envolvidos não
se machuquem, alegando não poder tocar na criança:
Se a gente car corrigindo o Tiago, o David pra responder é muito assim,
rebelde [...] se você for lá por a mão – “Eu vou falar que você me bateu
– aí, o que eu vou fazer? [...] eles vão se distanciando e pronto, você só
ca acompanhando pra não deixar aquela luta, aquele desentendimento
chegar a ponto de um machucar o outro [...] Às vezes, acontece de um outro
maior – “Oh, vai parar...”, no caso, o Alex ou então o André, eu peço pra
eles “Não machuque, não bata, só separe”, aí separa. (Participante 7).
Vimos, nesse caso, a não intervenção do adulto no conito, de
forma que podemos dizer que houve a negligência de sua autoridade.
Segundo Vinha (2003a), a ênfase de uma educação construtivista não está
na solução do conito em si, mas nos procedimentos: “[...] o que irá fazer
a diferença é a forma com que os problemas são enfrentados” (p.235).
É relevante destacar que alguns funcionários, quando questio-
nados a propósito da melhor maneira de resolução dos conitos, respon-
deram que “[...] tudo que tinha que ser feito já foi feito”, como reitera o
Participante 3:
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

[...] a gente conversa muito com psiquiatra, com psicólogo, tá sempre receben-
do uma orientação, então tudo que você possa imaginar pra ser feito tá sendo
feito, sabe, muitas vezes a gente não tem mais pra onde correr [...] como eu
já trabalhei com ‘drogadictos’ [drogados], chega a um certo ponto, que nem a
psicóloga falou, “tem hora que não depende mais de você, depende da pessoa”,
depende deles também, a gente tá educando, eles não querem.
Com exceção do Participante 1, que relata julgar importante
ouvir as crianças/adolescentes e mediar a solução do conito com elas, as
respostas dos demais participantes tenderam mais para uma solução por
parte do adulto, sendo ela de evitar o aumento do conito ou a orientação
verbal para sua solução, não levando em conta a importância de seu papel
como mediador em ajudar. Uma postura mais construtiva seria a de levar
em consideração os conitos ou partir deles para que a criança/adolescente
possa chegar à tomada de consciência dos diferentes pontos de vista pre-
sentes nas relações com os outros, o respeito a essas diferenças e das conse-
quências de seus atos, o que “[...] envolve a descentração e a reciprocidade,
condições necessárias para considerar perspectivas e os sentimentos dos
outros” (VINHA, 2003a, p.237).
Um ponto interessante a ser analisado é se esses participantes veem
algum atributo moral no conito interpessoal e na sua solução. Apesar de
grande parte atribuir a esses conitos conteúdo moral relacionado a valores
e regras, como o Participante 3 que diz:
Acho que é eles não se respeitarem, acho que eles não respeitam a si pró-
prios, sabe, então eles mesmos se colocam em situações, é, constrangedoras
muitas vezes, é agressivo com outro, por besteira.
Alguns justicam os conitos interpessoais no abrigo alegando
referências ao inexplicável, sem motivação e à naturalização do comporta-
mento (algo que está na pessoa de modo inato). Um exemplo desse tipo de
resposta foi a do Participante 9:
[...] esses meninos já trazem no sangue o que não é bom, o que não é bom
vem desde o pai e a mãe, eles já são bem grandinhos, não são pequeninhos
mais, eles já estão sabendo o que estão fazendo, eles já vêm lá da casa deles
com o sangue, já viu o que aconteceu lá com o pai e com a mãe, então já

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
vem de lá, então é duro você limpar o sangue de uma pessoa dessa, então é
difícil. (Participante 9).
A diferença que podemos perceber entre as respostas desses dois
grupos é que, no primeiro, demonstram acreditar que o motivo para o con-
ito interpessoal se dá segundo as construções e interferências sociais; desse
modo, embora não mencionada pelos participantes, há a possibilidade de
intervenção educativa e mudança na situação para favorecer o desenvolvi-
mento das crianças/adolescentes em situação de acolhimento. Ainda nessa
perspectiva de interferência do meio social no desenvolvimento moral da
criança, Piaget (1930-1996) sustenta que, por meio do método “ativo”,
o educador possibilita que a criança experimente diretamente realidades
como a disciplina, a solidariedade e a responsabilidade, permitindo que
ela descubra por si mesma, “[...] pouco-a-pouco, suas leis constitutivas
(PIAGET, 1930-1996, p.22) e preparando-a para a autonomia da consci-
ência por experimentações verdadeiras e não por meio de procedimentos
fundados na heteronomia.
Quanto ao segundo grupo, fecha-se qualquer possibilidade de se
obter resultado favorável ao desenvolvimento da criança/adolescente, mes-
mo mediante uma intervenção educativa, pois “é algo inexplicável” ou por-
que “traz no sangue o que não é bom”. Nesse segundo grupo de respostas,
percebemos como está arraigado o senso comum tendendo a acreditar que
as relações interpessoais são naturais e não construídas socialmente; a partir
dessa perspectiva, pode-se isentar o educador de qualquer espécie de culpa,
caso haja frustrações no processo educativo, como se as regras não fossem
construídas socialmente e não houvesse a possibilidade de interiorização
delas pelo sujeito, contrariando, assim, este nosso trabalho.
5.1.3 APRECIAÇÃO DO AMBIENTE DA INSTITUIÇÃO COMO FACILITADOR DO
DESENVOLVIMENTO MORAL
Quando pensamos no ambiente institucional em relação ao de-
senvolvimento moral, devemos avaliar como são constituídas e vivenciadas
as regras. Os funcionários relataram que na instituição, as regras são trans-
mitidas nas reuniões, apresentadas na contratação e, no caso das crianças,
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

no momento em que chegam ao abrigo, vão tomando contato com elas aos
poucos, no dia-a-dia. Três participantes relataram, paralelamente às regras
gerais da casa, sobre a construção das regras pelas crianças/adolescentes
com nossa participação (como relatado no capítulo 4), um deles referindo-
-se à sua participação nessa construção (Participante 2). Notamos que as
regras construídas pelas crianças/adolescentes ainda não eram de conheci-
mento da maioria dos funcionários, levando-nos a concluir que não havia
participação destes, nem no cumprimento nem na observação. Quanto a
isso, o Participante 2 explica:
[...] então a regra está existindo agora, que foi posto na parede, isso aí é muito
importante, mas aquilo tudo tem que ser lmado e por em outra parede tam-
bém, não é só ali dentro da sala, tem que ser ali, tem que ser aqui, tem que ser
lá em cima, para que todo mundo fale “Oh, você está fugindo da regra”, isso
é muito vago, só ali dentro daquela sala, eu acho que tem que ter um jeito da
gente fazer do lado de fora nem que se mandar ampliar [...]
A importância que esse participante atribui à regra é a possibi-
lidade de constante vigilância, por esse motivo, acredita que uma cópia
deveria ser distribuída para todo o ambiente do abrigo. Porém, vemos a
relevância do conhecimento dos demais funcionários a respeito dessas re-
gras, para haver a participação de todos nesse processo de regulação, de
maneira que o funcionário não seria o detentor do poder, mas, juntamente
com a criança/adolescente, se submeteria também à regra. No caso da não
observância às regras que guardam nesse local um poder quase mítico,
a consequência apontada pelos participantes é quase sempre direcionada
para a punição das crianças/adolescentes faltosas e ainda para aqueles que
transferem a responsabilidade. Um exemplo que resume bem a ideia desse
grupo de respostas é o seguinte:
[...] eles vão perdendo o que eles gostam, têm que perder, alguma coisa têm
que fazer, por exemplo, nós fomos ao Hopi Hari [parque de diversões no
interior de São Paulo], a diretoria no início disse que todos deveriam ir ao
Hopi Hari, aí viu que deu trabalho, o Paulo fez o show lá, eles não cumpri-
ram a regra que prometeram, então não é assim, por exemplo, domingo vai
ter o passeio. O que está acontecendo agora? Eles não vão, o Participante
4 escolheu quem ia tomar sorvete com ele. Não é que escolheu, foram os
melhores, e isso afeta eles, sabe, tirar uma coisa de que gosta. Então colocou
a regra na parede, eu acho importante, tem que ter uma consequência, se
você não cumprir. É a vida que a gente está ensinando para os meninos, lá

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
fora vai ter regras também, eles têm que cumprir, senão não vão conseguir
nada. (Participante 2).
Os funcionários utilizam frequentemente a sanção expiatória. A
justicativa para essa sanção é que a criança/adolescente sentirá o seu erro
e, com isso, ela estaria sendo educada para cumprir as regras e ter um bom
comportamento, porém, estimulam a competição: “vão os melhores”, “os
obedientes”; expiam suas ações com sanções que nada têm a ver com a
falta cometida, não proporcionando a tomada de consciência da regra e
da consequência natural de seus atos. Inculca-se muitas vezes na criança/
adolescente que se deve obedecer à regra para não ser castigada ou para ser
recompensada. Desse modo, segundo Kamii e DeVries (1991), pelo fato
de a sanção expiatória não ter uma relação “lógica” com a falta, a crian-
ça não sente a necessidade de mudar o seu comportamento para evitar o
castigo, ou mesmo para ganhar uma recompensa como no exemplo supra-
citado. Em outros momentos, os funcionários relataram a respeito dessa
situação que alguns deles alertavam frequentemente as crianças a respeito
de seus comportamentos, com expressões como “Quem não tiver um bom
comportamento não irá ao parque”; segundo esse mesmo relato, algumas
crianças caram quietas, “mas também não abriam a boca para nada”, ou-
tras “continuavam agindo da mesma maneira”. Foi relatado na sequencia
que as ameaças da retirada do lazer das crianças com mau comportamento
não foi cumprida, pois, conforme a fala de um participante, a diretoria da
instituição permitiu que todos fossem ao passeio. Para Vinha (2000), uma
ameaça não cumprida faz o adulto perder créditos ao olhar da criança,
devendo-se evitar fazer promessas/ameaças que não se poderá cumprir.
O Participante 1 apresentou um exemplo de sanção em que cou
evidente sua preocupação em mostrar consequências reais da atitude da
criança faltosa e não puni-la expiatoriamente. Nesse caso, o participante
expõe uma situação supondo que uma criança se recuse a se alimentar no
horário do almoço, mesmo que um funcionário o alerte de que o almoço
não cará disponível em outros horários; terminado o horário do almoço,
a criança se interessa em comer, então, segundo o Participante 1, ela não
poderia comer o almoço, mas apenas o lanche no próximo horário:
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Tudo isso é conversado com ele – “Oh, se você não almoçar agora você vai
car com fome depois vai ter o lanche na escola, se você car na entidade só
vai ter o lanche mais tarde, você não vai almoçar mais tarde” – então isso
eles têm muito claro. (Participante 1).
Esse participante menciona ainda que não é possível generalizar
as medidas e consequências de uma falta, porque isso “depende muito de
situação para situação”, dando, assim, o exemplo somente quando foi soli-
citado. Mesmo sendo um número pequeno, diante da resposta desse parti-
cipante, pudemos notar que há práticas executadas pelos funcionários que
possibilitam à criança/adolescente sentir a consequência natural de seus
atos, experienciando a reciprocidade. Essa sanção por reciprocidade, como
armam Kamii e DeVries (1991, p.31), “[...] são caracterizadas por coer-
ção mínima e ter uma natural ou lógica relação com o ato de sancionar”,
proporcionando à criança a possibilidade de reetirem sobre suas ações.
Reetindo a respeito do porque da preferência das sanções expia-
tórias em detrimento das sanções por reciprocidade, questionamos qual a
posição dos funcionários a respeito da capacidade de tomada de decisão
pelas crianças/adolescentes. Notamos que a maioria acredita que eles não
sabem ou não são capazes de tomarem pequenas decisões no dia-a-dia na
instituição ou, ainda, quando as tomam é para “contrariar as regras”. Por
outro lado, alguns entendem que em alguns momentos, as crianças/adoles-
centes tomam decisões por si mesmas, como quando almejam algo.
[...] aconteceu na semana passada, um menino veio me pedir assim: “Tia,
hoje vai ter jogo do Brasil” e o jogo do Brasil passa de quarta- feira e a gente
sabe que ca até mais tarde, aí eu perguntei para ele assim: ”E a escola
amanhã?” – “Ah, não sei”... Falei: “Como não sabe?” para me dar uma
resposta dessa é melhor não me falar nada... “Não, tia, eu levanto”, “Isso
que eu quero ouvir se você vai levantar ou se você não vai levantar, porque
vai acabar tarde”; e foi permitido, então assim, ele veio pedir e eu queria
ouvir qual seria a atitude dele no dia seguinte, se ele sabia o que ele deveria
fazer ou não, se ele sabe que tem um compromisso ou não, porque no dia
seguinte ele levantou numa boa, então eu acho isso importante, a gente
quer que isso parta deles, que eles tenham crítica, que eles saibam quais
são as obrigações, qual é o dia-a-dia, não tem problema de eles assistirem
um jogo de futebol, mas eles têm que saber o compromisso [...] mas assim,
sempre com orientação. (Participante 1).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Há uma fala frequente na instituição de que os adultos podem
ter sucesso no incentivo a tomada de decisão das crianças/adolescentes e
no propício de condições para a sua independência. Ainda assim, uma
minoria desses adultos armam que pelo fato das crianças não serem ca-
pazes de tomar suas próprias decisões, não acreditam que o adulto poderia
estimulá-las a tomar decisões.
Nesse sentido, temos que a maioria dos participantes creem que
o adulto tem a possibilidade de incentivar crianças/adolescentes a tomar
decisões e ser independentes (na medida do possível, não contrariando sua
natureza). Mais uma vez, identicamos a necessidade de entrosamento,
discussão e reexão em conjunto, para denirem os procedimentos educa-
tivos a serem seguidos, sem se embasarem no senso comum, mesmo por-
que, entre os relatos apresentados nessa categoria de análise, as medidas
mais mencionadas para a intervenção do adulto fazem parte da educação
verbal, que, segundo Piaget (1930-1996), não é suciente para o sujei-
to interiorizar as regras, a reciprocidade nas relações interpessoais, assim
como as consequências dos seus atos, o que se busca em um ambiente
cooperativo e sociomoral.
5.1.4 MUDANÇA NO RELACIONAMENTO ENTRE FUNCIONÁRIOS APÓS A
INTERVENÇÃO
Com referência a como os funcionários se relacionam, resolvem
os conitos e a possibilidade de mudança nesse relacionamento, após a
intervenção realizada na instituição, notamos que de forma geral, os parti-
cipantes apreciaram seu relacionamento com os demais funcionários como
“bom”, “sem problema”, mesmo entre os que sentem necessidade de mais
proximidade ou daqueles que se denominam “quietos”. As medidas para
resolução de conitos entre eles, quando há, são por meio da conversa di-
reta com o envolvido e também mencionaram ser importante ter paciência
com o outro nessas situações. A maioria dos participantes notou mudança
no relacionamento entre eles após a intervenção, no entanto, como os mo-
tivos para essa mudança eram diversos, dividimos as respostas em subgru-
pos, para melhor esclarecer a opinião dos participantes.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Para o grupo que armou ter percebido mudanças nas relações
em virtude da intervenção, temos como exemplo:
Eu acho. Mudou bastante [...] . Agora, depois das reuniões, foi modi-
cando bastante coisa, teve um entendimento também porque sabedoria
a pessoa tem, mas se não tiver entendimento num coisa nada [...] então
depois da sua reunião até esses tempos atrás eu falei para o Participante
10: ‘É, depois dessas reuniãozinha que a Carla está tendo, vindo aí, vocês
pensam que não está valendo nada, mas está, está valendo, porque já mudo
bastante coisa aqui dentro[...] (Participante 9).
Entre as respostas que julgaram haver mudanças devidas também
a outros fatores ocorridos no abrigo, temos o seguinte exemplo:
Para mim, ca pouco visível, algumas pessoas mudaram, não sei se pelo tra-
balho, eu acho que essas pessoas mudaram por orientação dos novos direto-
res, com medo de ser mandado embora e não pelo trabalho [...] eu não sei se
essas pessoas mudaram com medo da diretoria, com medo de ser mandado
embora ou se elas tomaram consciência através do seu trabalho, o que eu
acho mais difícil, eu acho que a primeira opção é mais válida, porque você
vê que a pessoa relata, as pessoas relatam através das outras que foram man-
dadas embora, porque várias foram mandadas embora. (Participante 4).
Por último, um dos exemplos daqueles que garantiram não ter
percebido mudanças nas relações.
Mas já tinha, continua com as mesmas coisas, né [...] Porque eu não presto
atenção, se houve ou não houve [risos]. (Participante 6).
Em face das respostas, vericamos que, apesar de terem ocorrido
os fatores que geraram mudanças na instituição, como a troca de diretoria,
na apreciação geral dos participantes surgiram alguns resultados proveito-
sos, embora, de acordo com algumas falas, isso não tenha sido “integral”.
Sabemos o quanto é difícil alcançarmos resultados positivos e participação
efetiva de todos os membros de uma equipe, sobretudo quando a partici-
pação nos estudos coletivos não tenha sido encarada como opcional e vo-
luntária, como foi o caso de alguns dos funcionários, em nossas reuniões.
Nessa perspectiva,

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
[...] nenhum curso de formação, por melhor que seja, obriga a consciên-
cia do participante a agir de acordo com os pressupostos trabalhados, isto
é, faz com que ele tenha aceitação interna de que aquilo que foi estudado
é válido e procure colocar em suas ações. (VINHA et al., 2011, p.290).
Mesmo assim, ainda que seja em alguns casos, houve funcioná-
rios que identicaram na rotina do abrigo mudança no relacionamento en-
tre os funcionários, especialmente nos fatores de trato e respeito ao outro,
como destaca o Participante 3:
[...] uma parte boa foi que, em relação aos funcionários, passaram a se res-
peitar mais, isso foi um ponto que eu percebi e que muitas vezes você, tendo
jeito pra falar, você consegue resolver certos tipos de picuinha e que guardar
isso pra você vai fazer mal, então é melhor você chegar no mesmo dia, depois
de algum momento já passado do calor da discussão, você chegar pra pessoa e
falar assim, ó: “Eu não gostei do que aconteceu, não gostaria que acontecesse
mais”, então, esse respeito aumentou, apesar que tem muita gente que não
tem uma forma assim, delicada de se colocar, mas está colocando.
Podemos atribuir também o fato de se perceber poucos resultados
ou resultados parciais ao tempo de aplicação e execução, como aponta o
Participante 4, ao ser questionado sobre o motivo de não terem acontecido
mudanças, em sua opinião: Talvez porque o trabalho teria que ser mais esten-
dido, teria que ser mais profundo”. Acreditamos que um trabalho dessa natu-
reza deve ter prosseguimento, sobretudo pela própria instituição, mantendo
horários de reuniões de capacitação, como sugerido por documento ocial
(BRASIL, 2009), ou para trocas de experiências e apoio emocional compar-
tilhado entre a equipe, conforme propõe Campos (2011). São momentos
como esses que permitem ao grupo se conhecer melhor, amenizar a situação
de vulnerabilidade comum do trabalho em instituição de acolhimento, tro-
car experiências, fazer estudos que ajudem a formular estratégias de ações
educativas desarraigadas das ações movidas pelo senso comum.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

5.1.5 MUDANÇA NO RELACIONAMENTO DOS FUNCIONÁRIOS COM AS CRIANÇAS/
ADOLESCENTES APÓS A INTERVENÇÃO
Observamos que a maioria dos funcionários relatam perceber
mudanças nas relações entre adultos e crianças/adolescentes, entretanto,
dentre eles, apenas a metade atribui essa mudança, ainda que pontual, à
intervenção. Para identicar mais claramente seus pensamentos a respeito
do assunto discutido, exemplicaremos os grupos identicados.
Entre os participantes que armaram vericar mudanças pontu-
ais, temos o seguinte exemplo:
Entre os funcionários e os meninos, em relação a se impor não, tem alguns
funcionários, que a maior reclamação na reunião foi os meninos não res-
peitarem que não fez nada pra melhorar, sabe, tentou uma, duas vezes,
na terceira viu que não deu certo, falou “Não vou tentar mais”, ca do
jeito que está, então, tem alguns que não conseguiram assimilar que é um
trabalho demorado, que é um trabalho cansativo, que é um trabalho repe-
titivo [...] uma coisa que antes eu não tinha hábito e comecei a ter agora
é sentar e conversar, eu tinha depois parei, me afastei, aí depois eu voltei
[...] (Participante 3).
Um dos participantes evidenciou que houve mudança em virtude
das reuniões, mas também em função de mudanças na entidade:
Oh, com a equipe para trabalhar com criança eu acredito que sim, prin-
cipalmente, logo depois das dinâmicas, mas existe uma grande diferença
assim, está havendo uma mudança na entidade, porque agora foram con-
tratados dois monitores, os monitores são responsáveis pelas crianças feriado
e nal de semana que isso não tinha e era uma falha muito grande que
tinha dentro da entidade [...] (Participante 1).
Entre os funcionários que atribuíram mudanças em função de
outros fatores, temos:
Não, a única coisa que mudou foi os monitores, que entrou os monitores
agora, e mudou, que nós o que tiver que fazer, continua a mesma coisa, não
mudou nada, o que eu tiver que falar pro menino, que ele estiver fazendo
errado eu vou falar e passar pra eles, “Ó, está acontecendo assim, assim,
assim” [...] (Participante 10).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Por último, quanto às respostas daqueles que não perceberam ne-
nhuma mudança , temos:
[por que não mudou?] é essa falta de visão de grupo, é um grupo com poucas
instruções, as pessoas que não conseguiram visualizar, entender e ver os objeti-
vos, acho que é isso [...] o meu relacionamento está comprometido por outros
fatores que é o que eu te coloquei que está tendo este desconforto desde o início
do ano que não está sendo solucionado, a gente está num campo de batalha
tentando arrumar soluções e a gente, pensando, pensei, em cada reunião a
gente discutia, pensava em uma estratégia [...] mas eu estou de mãos atadas,
porque o importante é chegar aqui para apagar o fogo [...] (Participante 4).
Dentre aqueles que vericaram mudanças pontuais em virtude
das reuniões, há os que relataram sua própria experiência vivida no âmbito
do abrigo, armando fazer uso de reexão das suas práticas no relacio-
namento com as crianças/adolescentes, prática essa que não era realizada
antes ou estava esquecida.
Diante dessas respostas, pudemos perceber a relevância do uso de
dinâmicas e discussões entre os participantes deste estudo, que teve como
proposta não expor nossos conhecimentos, valores e princípios, porém,
a partir deles, criar meios para a construção de conhecimentos, valores e
princípios pelos próprios funcionários. O resultado que vimos foi parti-
cipantes preocupados em avaliar suas ações e buscar novas posturas que
favoreçam um ambiente mais cooperativo, procurando o respeito mútuo
no âmbito da instituição. Visto isso,
[...] sem desconsiderar a importância do ambiente estimulador, a real
compreensão, o compromisso, a aceitação é um processo de construção
paulatina pelo professor, ocorrendo de dentro para fora e não o contrá-
rio. (VINHA et al, 2011, p.291).
Devemos considerar ainda que houve alguns participantes, ao
longo da entrevista, que foram contraditórios em alguns de seus relatos.
Um exemplo disso é o Participante 6 que relata sua reexão e táticas edu-
cativas no relacionamento com as crianças/adolescentes e, em outro mo-
mento expõe a não crença de seu papel de educador na instituição, só
o fazendo com ajuda de outros. Com isso, podemos concluir que, para
alguns funcionários, o papel de educador e sua postura no relacionamento
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

entre ele e as crianças/adolescentes ainda não está claro, o que acentua a
importância de desempenhar essa função em um trabalho harmônico com
os demais prossionais da equipe.
Houve participantes, como ilustrado, que não viam a necessidade
de mudanças e que também não perceberam nenhuma mudança no rela-
cionamento entre funcionários e criança/adolescente. Como destacamos
(CARVALHO, 2004; VINHA et al., 2011; MENIN, et al., 2011), para
reuniões que propõem uma nova prática educativa surtir resultado entre
uma equipe de trabalho, há a necessidade de esta reconhecer o problema e,
em consequência, sentir a necessidade de mudança, caso contrário, a nova
prática não ocorrerá e, se acontecer, não será efetiva.
O Participante 4, um dos que responderam não ter observado
mudanças, atribuiu esse fator principalmente à situação de instabilidade
que a instituição estava enfrentando, com a transição para nova diretoria.
Ele ainda declara que somente será possível praticar novas estratégias quan-
do amenizar a situação do abrigo e das crianças/adolescentes:
Acho que muita coisa foi legal, muita coisa os meninos desenvolveram,
a atividade das regras, mas, não vejo inserida ainda, talvez muita coisa
aconteceu, vai ter que ser retomado e talvez a hora que o grupo estiver mais
tranquilo que tiverem numa fase melhor. (Participante 4).
Sem dúvidas, transições como esta tornam a rotina e as relações
mais delicadas, no entanto, esse participante demonstra não ter entendido
que os momentos de conitos são importantes para a execução de práticas
educativas voltadas para o desenvolvimento da autonomia e que somente
em um ambiente cooperativo, principalmente entre iguais, será possível
desenvolver a autonomia, conforme ressalta Piaget (1932-1994), mesmo
que em germe, na relação entre criança e adulto. Como será possível es-
perar um ambiente “mais tranquilo” para realizar novas estratégias? Em
acréscimo, como alcançar a “tranquilidade” (no caso de paz e respeito, não
isenta de conitos pessoais) senão pelo respeito mútuo?
A cooperação moral e intelectual é a fonte de tudo o que é vivo e ativo
na vida social por oposição a coerção inerte da herança coletiva. No
domínio moral, a relação de amizade, de colaboração prossional, etc.,

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
tem nos iniciado numa outra moral, além daquela da obediência aos
imperativos do grupo. (PIAGET, 2003, p.191).
Portanto, por se tratar de um trabalho realizado em um serviço de
acolhimento, em que lidamos com seres humanos, os quais estão em cons-
tantes transformações, enfrentamos variáveis não controláveis, como a tro-
ca de diretoria da instituição e, com ela, novos acontecimentos e mudanças
consideráveis na rotina do abrigo. Por conta dessa situação, alguns dos par-
ticipantes relataram alguns fatos que, segundo eles, tornaram frequentes
os conitos no relacionamento entre crianças/adolescentes e funcionários.
Esses fatos também foram notados quando perguntamos aos fun-
cionários se eles perceberam mudança nas relações interpessoais entre as
crianças/adolescentes. De forma geral, os funcionários relataram não ter per-
cebido mudanças, acreditam que o relacionamento entre as crianças/adoles-
centes dependem do momento, dicultando a observação de mudanças. No
entanto, alguns funcionários ressaltaram que havia atividades exteriores ao
abrigo proporcionadas pela nova diretoria que estavam inuenciando nega-
tivamente o comportamento das crianças/adolescentes. Segundo eles, a nova
diretoria estaria propondo atividades externas ao abrigo, “fora de sua realida-
de social”. Como exemplos dessas atividades, os participantes mencionaram
as sessões de acupuntura oferecidas às crianças/adolescentes e a convivência
com crianças de classe econômica mais alta. Percebendo que esse problema
estava inuenciando negativamente as crianças/adolescentes e baseando-se
nas sugestões apresentadas no documento de Organização de Serviços de
Acolhimento (BRASIL, 2009), que declara que os abrigos não devem ofere-
cer condições superiores à realidade social da criança/adolescente, a equipe
pediu para a diretoria a suspensão dessas atividades, sendo assim favorecido
o entrosamento entre equipe e diretoria, necessário para o bom andamento
da rotina e transformações na realidade da instituição.
5.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O AMBIENTE DE ABRIGO NA PERCEPÇÃO DAS
CRIANÇAS/ADOLESCENTES ACOLHIDAS
Considerando que as crianças/adolescentes acolhidas também
devem ter voz na avaliação da instituição enquanto lugar de habitação,
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

convívio interpessoal diário e educação buscamos levantar suas percepções
em relação ao processo educativo constituído na instituição. Para tanto,
propusemos às crianças/adolescentes um novo momento de reexão indi-
vidual a respeito da instituição. A análise desses dados possibilitou a siste-
matização do conteúdo em três categorias de análise: apreciação da insti-
tuição; regras na instituição; e, função da instituição.
5.2.1 APRECIAÇÃO DO ABRIGO
Nessa categoria reunimos os dados relativos à apreciação do abri-
go de acordo com sua organização e avaliação afetiva. Em geral, as crian-
ças/adolescentes classicaram o abrigo como “bom”. Otávio (11
19
) justica
sua avaliação dizendo:
Otávio (11): Acho bacana, porque tá bem pintado, bem arrumado. Eles cui-
dam bem de nós, roupa, comida, a gente vai para passeio, material da escola.
Na resposta de Otávio, ele faz uma apreciação geral dos benefí-
cios que o abrigo traz, segundo sua visão. Outro adolescente avalia o abrigo
segundo as relações interpessoais estabelecida na rotina, razão pela qual
arma que a instituição melhorou com a saída de uma criança que, em sua
opinião, não mantinha um bom relacionamento com ele. Percebemos nes-
se último tipo de avaliação o quão frágil se mostra a resolução de conitos,
assim como a sensação de apego afetivo entre as próprias crianças/adoles-
centes, que, mesmo vivendo juntos por um período longo, consideram a
saída do outro como uma boa solução para o ambiente melhorar. Segundo
Martín-García e Puig (2010, p.48), as relações interpessoais inuenciam
profundamente a convivência de qualquer grupo humano, e “[...] sua qua-
lidade afeta decisivamente o estado anímico e o nível de rendimento das
pessoas”, de modo que acreditamos ser crucial não somente estabelecer um
envolvimento afetivo entre adultos e crianças/adolescentes, como discuti-
do, mas também incentivar essa relação entre as próprias crianças/adoles-
centes para que se sintam acolhidos e pertencentes ao grupo de iguais, o
19
Mesmo havendo um intervalo de um ano aproximadamente entre o início da intervenção e sua avaliação, optamos
em manter a mesma idade das crianças/adolescentes, para permitir melhor comparação e análise dos dados.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
que não identicamos durante o período em que estivemos presentes na
instituição.
Quanto à apreciação afetiva da instituição vericamos que a
maioria das crianças/adolescentes descreve a instituição segundo as ativi-
dades recreativas, tanto para atribuir o que gosta de realizar em sua rotina
como o que não gosta, por exemplo:
Alex (13): De brincadeiras.
Outras crianças/adolescentes atribuíram sua apreciação, princi-
palmente quando relataram o que não gostavam de fazer no abrigo, de
acordo com os feitos ou consequências no envolvimento interpessoal na
instituição, como no seguinte exemplo:
Paulo (9): [O que não gosta de fazer] Não gosto quando eles me batem.
Quem? Os moleques.
Foi também possível notar que as crianças/adolescentes entrevis-
tadas tenderam a apreciar a instituição pelo que elas vivenciam, por essa ra-
zão classicam as atividades desenvolvidas no abrigo como referência para
relacionar o que gostam e o que não gostam de fazer; no entanto, o que
igualmente podemos observar é que, sobretudo ao relatar a opinião sobre
o que não gostava de fazer no abrigo, a maioria das crianças/adolescentes
focalizou fatores presentes nas relações sociais, mesmo que suas classica-
ções e motivos se diferenciassem. Isso nos mostra que, de um modo geral,
as crianças/adolescentes ainda não estão descentradas, ou seja, conseguem
visualizar o que gostam que a instituição lhes proporcione e o que não gos-
tam que os outros façam para eles, mas não se colocam como agentes ativos
no abrigo. Apenas o adolescente Otávio (11) colocou-se, em suas respostas
referentes a essa categoria, ele próprio como sujeito ativo, salientando seu
querer e suas diculdades:
Otávio (11): De levar a atenção [ser chamado atenção] da diretoria.
Para mim (sic) não ser chamado à atenção eu tenho que obedecer as regras
e fazer as coisas. É fácil ou difícil cumprir as regras? Às vezes é difícil por-
que a gente quer fazer alguma coisa que não pode, por exemplo, de jogar a
bola no salão, mas não pode. Por que não pode? Porque pode quebrar um
vidro da porta ou sujar a parede. E onde pode jogar bola? Na quadra.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Otávio parece estar ciente de que seus atos geram consequências,
mas também arma o quão difícil é fazer vencer sua força de vontade em
relação aos seus desejos. Nesse primeiro momento, poderíamos dizer que
ele procura agir com o objetivo de preservar a regra que se justica em exis-
tir, apresentando indícios de autonomia moral, conforme explicita Piaget
(1962/2006, p.119):
A delidade pode ser uma atitude espontânea do indivíduo, mas na
medida em que intervém na delidade um elemento de força de von-
tade, uma necessidade de conservar valores, do ponto de vista do outro
e não somente do seu próprio, neste sentido aparece então justamente
a dimensão moral. (Tradução nossa).
Todavia, ao armar que tentará respeitar as regras construídas
e que somente assim não será “chamada sua atenção”, percebemos que,
como as demais crianças/adolescentes, Otávio ainda age em função da au-
toridade adulta.
5.2.2 REGRAS E CONFLITOS NA INSTITUIÇÃO
Com relação à avaliação das crianças/adolescentes sobre conitos
e regras, a maioria acredita ser dever cumprir as ordens dadas pelos adul-
tos, porque é obrigação ou porque devem obediência ao adulto, como no
exemplo:
Tiago (9): Eu cumpro. Porque eu devo obedecer. Por quê? Porque é dever.
Outros atribuem o dever de cumprir regras a fatores como obten-
ção de vantagem:
David (8): Cumpre [...] Pra não car sem as coisas legal. (sic).
E há ainda os que agem motivados por sua razão ou sentimentos,
como o fato de “pensar antes de fazer as coisas”, “querer ajudar” ou “para
seguir a regra”. No último caso, para Otávio, a razão para respeitar o adulto
se resume ao dever respeitar as regras. Para ele, a regra é inviolável e coer-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
citiva, sua violação autoriza o adulto a sancionar a criança/adolescente e,
assim, ainda se mostra favorável à autoridade adulta:
Otávio (11): [...] Eu faço porque tem que respeitar o que ele está dizendo,
que é para obedecer o que ele esta falando. Ele está certo? Tá. Por quê?
Porque tem regra, porque tem a regra escrita que não pode fazer aquilo lá.
Assim como Otávio, as demais crianças/adolescentes são da opi-
nião que, ao se descumprir uma ordem, devem car de castigo, conrman-
do a crença na necessidade de sanção expiatória apresentada na entrevista
clínica. Percebemos, em face dessas respostas que elas reproduzem o que
ocorre na sua rotina na instituição, favorecendo a sanção e a obediência,
evidenciando seu realismo moral, apresentando o dever como essencial-
mente heterônomo:
É bom todo ato que testemunhe uma obediência à regra ou mesmo
uma obediência ao adulto [...] Portanto, a regra não é absolutamente
uma realidade elaborada pela consciência, nem mesmo julgada ou in-
terpretada pela consciência: é dada tal e qual, já pronta, exteriormente
à consciência; além disso, é concebida como revelada pelo adulto e
imposta por ele. Então, o bem se dene rigorosamente pela obediência.
(PIAGET, 1932/1994, p.93).
Com relação a resolução de conitos, a maioria das respostas ma-
nifestou como medida preferencial a conversa entre os envolvidos, mesmo
que seja orientada por um adulto ou que não resolva o problema, como
no exemplo:
Otávio (11): O adulto ou adolescente separa a briga. O que você acha
que deveria acontecer? Conversar com os dois que estava brigando. O que
começou [o motivo] a briga, para eles se entenderem, não adianta brigar.
Algumas crianças/adolescentes pensam que os adultos devem
intervir, separando e/ou conversando com aquele que começou a briga.
Outros ainda, também creem que deve haver interferência do adulto, mas
por meio de sanções. Seguem-se exemplos dos dois tipos de pensamento:
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Tomás (14): [o que acontece?] A tia entra no meio ai ela para a briga
ai ca normal. O que você acha que deveria acontecer? Conversar com
quem começou a brigar.
Tiago (9): Os dois cam de castigo. O que você acha que deveria acon-
tecer? Ficar de castigo.
Vimos que, no juízo da maioria das crianças/adolescentes, a re-
solução de uma briga ou conito social deve ser resolvido pela conver-
sa entre/com os envolvidos, diferentemente de seus relatos nas sessões de
atividades, que direcionavam as resoluções de conitos pelo revide, com
brigas corporais e xingamentos. Chama-nos ainda a atenção a presença de
um adolescente, Tomás, no grupo das respostas que recorre ao adulto para
resolução do problema, fato esse comum entre as crianças menores. Para
ele, basta conversar com a criança/adolescente que iniciou a briga, como se
esta não fosse gerada por fatores interpessoais e ocorrida tão somente por
um dos lados, e não pelo desentendimento de ambos. Não é possível con-
cluir se a conversa é reciprocidade mais elaborada ou elementar semelhante
ao revide ou vingança, porque isso não foi questionado. Não é possível,
igualmente, assegurar que essa conversa não seria apenas uma reprodução
do discurso adulto (ainda que não seja praticado por ele).
5.2.3 FUNÇÃO DA INSTITUIÇÃO
Com relação à função da instituição como um local que propicie
o desenvolvimento integral da criança/adolescente, buscamos investigar
qual a concepção destes em relação ao tipo de aprendizagem presente no
Abrigo. Grande parte dos acolhidos resumiu a aprendizagem em: “obede-
cer, ajudar e/ou respeitar”. Vejamos um exemplo:
Alex (13): Sobre educação, comportamento. O que você acha que mais
aprende? Educação. Que tipo? Ajudar, respeitar. Você acha isso impor-
tante? Hahã. Por quê? Pra depois que sair da [Instituição]. ajudar a fa-
mília, as pessoas, obedecer ao patrão.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Outros acreditam que aprendem atividades escolares, como no
exemplo:
Paulo (9): A estudar [...] Para nós saber na escola e quando crescer.
Um adolescente frisou que se aprende no abrigo a respeitar, viver
em grupo e respeitar as regras:
Otávio (11): Aprende se quiser aprender, aprende a respeitar, a viver em
grupo. O que você acha que mais aprende? O que mais aprende é a
respeitar a regra, porque tem bastante regra. Você acha isso importante?
É importante, porque quando você sair lá fora vai ter muita regra, aonde
você vai tem regras, é muito importante saber respeitar as regras.
Há ainda um adolescente que arma aprender a ajudar nas ativi-
dades domésticas com um funcionário especíco, como relata:
Tomás (14): Ajudar o Participante 9 [...] Porque é bom.
Em face dessas diferentes concepções, podemos notar o quanto
a autoridade adulta rege, na rotina da instituição, uma vez que a maioria
das crianças/adolescentes revelou aprender, sobretudo, a obedecer, julgan-
do essa circunstância como fator importante para sua vida futura. Para
investigar melhor a apreciação da instituição como ambiente educativo
sociomoral, buscamos investigar como poderia ser melhorado o tratamen-
to que elas/eles recebem na instituição e em que as crianças/adolescentes
poderiam contribuir para isso.
Aproximadamente metade das crianças/adolescentes manifestou
que nada precisaria mudar na instituição, para que melhorasse seu trata-
mento, outros acreditam dever aumentar o respeito entre eles próprios e
para com os funcionários; e ainda houve os que dissessem que como fator de
melhora, dever-se-ia evitar as brigas. Seguem alguns exemplos dessas falas:
Alex (13): Nada, continuar assim mesmo.
Bruno (7): Eu respeitando ele e eles me respeitando e a gente respeitando
os funcionários também.
Paulo (9): Bater (os meninos).
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Com relação a contribuição de cada um para que o ambiente
fosse melhor, a maioria pensa que o maior respeito entre eles seja o fator
fundamental, alguns apontaram as crianças/adolescentes deveriam ter mais
respeito ou obedecer aos funcionários, e outros consideraram como me-
lhora o não gritar ou falar alto entre eles. Eis alguns exemplos:
David (8): Um respeitar o outro.
Paulo (9): Os meninos tem que ter respeito, mais, muito mais respeito (com
os funcionários).
Vimos, portanto, que o respeito entre eles é desejado e visto
como importante para melhorar o tratamento recebido na instituição.
Nessa perspectiva, ocorrem-nos as seguintes questões: se o respeito mútuo
entre as crianças/adolescentes é tão desejado por elas, qual o motivo de
ele não ocorrer? Como podemos notar, a maioria das crianças/adolescen-
tes destacou que a instituição não necessita mudar, no entanto, a maioria
apontou que as crianças/adolescentes poderiam contribuir para que hou-
vesse melhora: poderia esse fator evidenciar uma supremacia dos adultos
da instituição?
Fica evidente que as crianças/adolescentes encaram a autoridade
do adulto como intocável e digna de ser obedecida acima de seus desejos;
mesmo na resolução de conitos entre elas/eles, a autoridade do adulto se
faz necessária, quando não utilizada para resolver o problema, é empre-
gada para indicar a melhor maneira de resolução (a conversa). Ao com-
pararmos com os dados de nossas observações , podemos dizer que essas
crianças/adolescentes reproduzem exatamente o que a maioria dos adultos
lhes apregoam, pois, para se evitar brigas verbais e corporais, elas são cons-
tantemente orientadas a levar o problema para o adulto resolver. Mesmo
que elas, na prática, tentem resolver seus conitos sozinhos, retribuindo a
agressão sofrida, julgam, como podemos perceber na entrevista, que isso
deve ser evitado.
Dependendo da natureza do ambiente sócio-moral geral da vida de
uma criança, ela aprende de que forma o mundo das pessoas é seguro
ou perigoso, carinhoso ou hostil, coercitivo ou cooperativo, satisfatório
ou insatisfatório. (DEVRIES; ZAN, 1998, p.51).

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
No juízo de algumas dessas crianças/adolescentes, é imperioso
haver o respeito entre eles, porém, cremos que isso se torna difícil de ser
realizado na prática, em função dos hábitos existentes no ambiente da ins-
tituição. Não exercitam resolver eles próprios seus conitos sociais e mo-
rais, falar sobre seus desejos e sentimentos ou sentirem que são ouvidos.
Percebemos que elas veem o abrigo como um ambiente em que se apren-
dem condutas sociomorais, contudo, ainda predomina o respeito exterior
à regra, aos outros e a si próprio.
5.3 J
UÍZO MORAL DAS CRIANÇAS/ADOLESCENTES
Descreveremos a seguir os dados obtidos a partir das entrevistas
clínicas pós-intervenção. Nesse momento zemos uso do mesmo instru-
mental utilizado no início dos trabalhos na instituição (vide descrição no
Capítulo 3) com o objetivo de analisar os resultados em relação ao juízo
moral, referente à noção de justiça. Seguimos, assim, o mesmo critério para
a classicação das respostas e os mesmos aspectos de investigação trazidos
em cada história, apresentados na entrevista clínica de diagnóstico.
5.3.1 SANÇÃO EXPIATÓRIA VERSUS SANÇÃO POR RECIPROCIDADE
Apresentaremos, a seguir, a classicação das respostas relativas à
escolha dos interrogados pela sanção expiatória ou pela sanção por recipro-
cidade, além dos casos que se encontram em transição.
Um exemplo da opção pela sanção expiatória é a sugestão de
Tomás:
Tomás (14 anos): Deixar ele sem sair com os amigos dele a noite e ir
pra cama cedo. O pai pensou em outras três: 1° Que ele pegasse seu
dinheiro que havia economizado para comprar uma lâmpada nova?
2° Dar-lhe umas palmadas? 3° Deixar-lhe car no escuro durante uma
semana? Qual delas é a melhor? O segundo, dá um tapa. Por quê? Porque
pra ele não fazer mais. Qual é o pior castigo desses três? A segunda. Qual
é? A que bate.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Na resposta de Tomás, há elementos que deixam clara sua escolha
pela sanção expiatória, sendo ela por castigos físicos e que seja a mais chata
das alternativas. Não houve nenhuma resposta em que pudemos conside-
rar que o interrogado escolheu uma sanção por reciprocidade.
A maioria das respostas foi tomada, por sua imprecisão de posi-
cionamento, como de transição. Como exemplo desse tipo de resposta, há
a de Otávio, que, apesar de fazer a opção pela sanção por reciprocidade,
consequência direta e material ou restitutiva, ele não soube explicá-la:
Otávio (11 anos): Ficar sem jogar vídeo game, car sem assistir, car de
castigo pra não ir brincar (na rua). O pai pensou em outros três castigos,
qual deles seria o melhor? Ficar sem lâmpada no quarto. Por quê? Ah,
também tinha o de pagar, mas eu acho que car sem lâmpada é melhor.
Por que ela é a melhor? Eu não sei. Qual que é a mais chata? As palma-
das, eu acho que é as palmadas. Por quê? Porque apanha, não sei.
Quanto à parte B dessa história, correspondente à necessidade de
punição para impedir uma nova infração, percebemos que, na maioria das
respostas, imperou a necessidade de haver punição; mesmo entre as crian-
ças mais velhas e adolescentes, apenas um adolescente se mostrou favorável
à não punição para a não reincidência:
Vinícius (15 anos): O primeiro. Por que você acha que é ele? Eu não sou
adivinho. Se você fosse o menino e seu pai tivesse te castigado, você vol-
taria a jogar? o. E se seu pai tivesse explicado? Também não. O que é
melhor para resolver o problema? Conversar. Por quê? Pra não car de
castigo e não apanhar. O que o pai acharia melhor? Conversar com ele.
Pelas respostas dessas crianças/adolescentes, vemos que eles acre-
ditam na ecácia do castigo, já que, segundo eles “só explicar não resolve”,
podendo acontecer o esquecimento, não entendimento ou simplesmente
o fato de não quererem ouvir a explicação de seus pais, de sorte que a
punição é a melhor medida para a não reincidência da falta. Mesmo o
adolescente que escolheu a conversa como melhor medida para resolver
o problema de uma infração demonstra ter essa escolha para “não car de
castigo e não apanhar”, ou seja, não a entendendo como medida ecaz,
mas menos ruim ou dolorida para se resolver o problema. Nesse sentido,
assim como os demais interrogados, este também acredita na supremacia

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
do adulto e na necessidade de obediência da criança, e não na sanção como
uma medida de reciprocidade do seu ato, o que também conrma a prefe-
rência pela sanção expiatória atribuída na parte A da história.
Diante dos dados obtidos no interrogatório da História I parte A,
vimos que houve a predominância de respostas tendendo para o nível de
transição. Enquanto que para a parte B dessa História houve a predomi-
nância da tendência heterônoma. Esses dados sugerem um possível dese-
quilíbrio no juízo desses interrogados. No entanto, ainda com prevalência
da moral heterônoma, em que, segundo Piaget (1932-1994) a regulação é
externa ao indivíduo.
5.3.2 JUSTIÇA RETRIBUTIVA VERSUS JUSTIÇA DISTRIBUTIVA
Para esse item de análise, apresentaremos o conjunto de respostas
de duas histórias, como as evidenciadas na entrevista clínica de diagnósti-
co. Para a história II como exemplo das respostas nas quais os interrogados
escolhem a justiça retributiva, temos:
Bruno (7 anos): Eu acho que o menino cou com raiva e começou a ba-
gunçar. É justo o que a mãe fez? É. Por quê? Porque ele se comportava,
aí ele falou pra mãe: - Mãe, por que você deu maior pra ele? Aí a mãe res-
pondeu: - Filho, você tem que se comportar que nem o seu irmão. Aí os dois
respeitavam e foram igual pro passeio e recebeu o mesmo pedaço de doce.
Alex (13 anos): Certo. Por quê? Porque ele se comporta, obedece a mãe.
Teria outro jeito para resolver? Deixar o lho obediente brincar e o deso-
bediente de castigo no quarto. E os doces? Dar pro lho obediente metade
maior. E pro desobediente? Metade menor.
Nos exemplos ilustrados, vericamos que creem que a autorida-
de do adulto justica a desigualdade no tratamento das crianças; dessa
maneira, para essas crianças/adolescentes, importa que a criança obedeça
ao adulto para ser digna de um tratamento igualitário. Bruno, em sua res-
posta, começa a analisar o sentimento da criança que foi sancionada e as
consequências que essa sanção ocasionaria na criança, numa análise que,
como arma Piaget (1932-1994), é própria daqueles favoráveis à justiça
distributiva. Todavia, no decorrer de seu discurso, Bruno voltou-se a favor
da autoridade, colocando a justiça retributiva acima da justiça distributiva
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

e revelando que é justo punir o desobediente. Bruno ainda simula uma
possível conversa em que a criança punida (provavelmente indignada pela
sanção) pergunta para sua mãe o motivo da desigualdade e, mais uma vez
a favor da autoridade da mãe, ressalta que houve a obediência igual dos
irmãos e ambos foram tratados iguais. Assim, Bruno entende que o trata-
mento desigual pode ocasionar a revolta, contudo, acredita que a solução
para o problema não é a justiça distributiva, mas a obediência. Dessa mes-
ma maneira, Alex é igualmente favorável à sanção como uma boa medida
de solução do problema e, mesmo quando sugere outra punição que não
seja a divisão desigual do doce, quando volta a ser questionado sobre esse
assunto, rearma a favor da justiça retributiva.
Enfatiza Piaget (1932-1994, p.203):
Numa família numerosa, onde a educação moral está assegurada pelo
contágio dos exemplos, mais do que por uma vigilância constante dos
pais, a ideia de igualdade poderá desenvolver-se muito mais cedo.
O abrigo seria, por conseguinte, um lugar propício para essa evo-
lução na ideia de igualdade, já que é um lar onde vivem e se relacionam
muitas crianças/adolescentes com idades próximas, como também há o re-
lacionamento destes com os adultos. No entanto, no abrigo estudado, isso
não é notado dessa maneira, pois, como vimos, não pôde ser percebido um
número considerável da ideia de igualdade entre crianças nas respostas dos
interrogados. Provavelmente isso possa ocorrer pelo mesmo motivo que
contrapõe a ideia de educação moral atribuída por Piaget, na citação supra-
mencionada – a questão da vigilância constante do adulto. Nesse abrigo,
como em muitos outros, há a preocupação constante em assistir as crian-
ças/adolescentes, principalmente para lhes garantir segurança, tendendo-se
com isso a evitar sempre que possível os diversos conitos, como medida
protetiva. Há ainda a vigilância para que não haja diferença de tratamento
acentuada, quanto a presentes, alimentação, entre outros; não obstante,
quando os adultos da instituição creem que há momentos em que se faz
necessário premiar a obediência ou punir o desobediente, fazem uso das
divisões desiguais ou dos favorecimentos (como idas a passeios, brincadei-
ras etc.), conforme pudemos constatar em vários momentos do trabalho
realizado.

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
Para as respostas que direcionam uma escolha pela justiça distri-
butiva, obtivemos:
Otávio (11 anos): Não pode ser assim, tem que dar a quantidade certa
pra cada um, por causa que ninguém é melhor que ninguém. E se fosse
um brinquedo? Tinha que dar igual, né. Por quê? Por que ninguém é
diferente de ninguém.
Como podemos notar, Otávio é irredutível na questão da igual-
dade, para ele, não faz sentido favorecer um por ser obediente e punir ao
outro desobediente, porque, segundo ele, “ninguém é melhor que nin-
guém”; embora ele não tenha feito menção às situações psicológicas que
poderiam estar inerentes a história, ele justica sua resposta com uma lei
universal, que resumiria qualquer discordância de um tratamento desigual.
Houve também aquele que mudou de ideia no decorrer do inter-
rogatório, mas que não se mostrou rme em sua nova escolha, motivo pelo
qual a classicamos como transição. Eis o exemplo:
Paulo (9 anos): Um mau exemplo. Por quê? Um mau exemplo, porque
tem que falar com ele, da 3ª vez que ele não obedecer tem que punir ele. O
que ela deveria fazer com o doce? Não sei. Dá um pouquinho pro desobe-
diente, bastante pro obediente. Uma outra criança disse que deveria dar
igual pras duas, você concorda com ela? Concordo. Por quê? Tem que dá
o tanto certo pra cada um. E você acha isso justo? É. Por quê? Não sei.
Porque a mãe não era justa.
Ainda para a diferenciação da justiça retributiva e justiça distri-
butiva, apresentamos aos interrogados outra história, mas, dessa vez, com
a gura da professora para representar a autoridade adulta.
A maioria das respostas teve como juízo a justiça retributiva, in-
dependentemente da idade da criança/adolescente. Três respostas foram
consideradas como transição, não se apresentando nenhuma como favo-
rável à justiça distributiva. Reproduzimos, em seguida, um exemplo das
respostas relativo à justiça retributiva:
Tiago (9 anos): Injusto. Por que é injusto? Porque sim. O que a professo-
ra devia fazer? Deixar o desobediente sem educação física. Por quê? Porque
ele mereceu, porque, quando a professora falou, ele não obedeceu.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Percebemos nessa resposta como esta criança acredita que a jus-
tiça retributiva deve prevalecer em relação à justiça distributiva, mesmo
quando esta não tem nada a ver com a falta cometida, como também evi-
denciado com a história anterior. Tiago, por exemplo, não achou justo
a professora ter deixado a criança faltosa sem recreio, porém, ele escolhe
um castigo semelhante – “deixar o desobediente sem educação física” – e
justica tal castigo não por alguma forma de retribuição, mas como uma
vingança do adulto”, já que a criança o desobedeceu, evidenciando, nova-
mente, o juízo desse grupo de resposta pela tendência heterônoma.
Como exemplo de resposta em transição, temos a seguinte:
Tomás (14 anos): Foi. Por quê? Porque a professora pediu pra ele guardar
e ele foi no outro brinquedo, aí o outro guardou e a professora deixou ele de
castigo. Teria outro jeito pra ela resolver? Tinha. Como? Deixar os dois
ir pro recreio, mas quando voltar, o que não guardou não vai mais brincar
de brinquedo, aí ele vai car de castigo lá no canto.
Na resposta de Tomás, é possível observar que, como os demais
interrogados, ele acredita na supremacia do adulto, apesar de abrir a possi-
bilidade de se permitir a distribuição igual (os dois irem ao recreio), desde
que, ao voltar, a criança faltosa tenha seu castigo garantido.
Piaget (1932-1994) destaca ser comum a criança julgar por muito
tempo que a sanção tem primazia sobre a igualdade, quando esta vive em
um ambiente onde há predomínio da prática de punição e de uma regra
rígida sobre as crianças, aceitos de modo passivo. Diante dessa armação,
podemos justicar o índice da escolha pela justiça retributiva apresentado
em ambas às histórias.
Assim, quando analisamos os dados do interrogatório da História
II notamos uma equivalência na quantidade das respostas que escolheram
como opção a Justiça Retributiva e das respostas que escolheram como op-
ção a Justiça Distributiva. Quanto aos dados do interrogatório da História
III, podemos notar que houve a predominância de respostas com a opção
da Justiça Retributiva, e consequentemente a predominância da tendência
heterônoma. Acreditamos que essa diferença entre as histórias ocorreram
simplesmente pelas guras de autoridades nelas representadas (mãe e pro-
fessora), que trazem consigo a fantasia do ideal da relação entre mães e

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
lhos, assim como da realidade vivenciada nas relações com professores
e educadores/cuidadores em que na maioria das vezes o autoritarismo é
legitimado.
5.3.3 IGUALDADE VERSUS AUTORIDADE
Para essa história, encontramos grupos de respostas concernentes
à escolha pela igualdade entre crianças ou a favor da autoridade adulta, e
ainda, aquelas respostas como transição.
Respostas que favorecem a autoridade adulta acima da igualdade:
Bruno (7 anos): Ele falou “Mamãe”, mas meu irmão foi brincar e eu não,
mas deixa eu vou fazer tudo que você mandar. Foi justo? Foi certo. Por
quê? Porque a mãe dele foi certa, ela sabe o que faz. Aí o menino que saiu
pra fora pra brincar cou um mês lavando a louça e o menino que lavou
a louça ao menos uma vez cou um mês/3 dias jogando vídeo game, aí
depois que ele cou três dias jogando vídeo game, ele ajudou o irmão e os
dois respeitou a mãe.
Podemos vericar, nesses exemplos, que esses interrogados acre-
ditam que a ordem do adulto, mesmo quando há diferenciação no trata-
mento das crianças, se justica pela sua autoridade, nesse exemplo está no
sentido de que ele “sabe o que faz”. Na resposta de Bruno, primeiramente
ele avalia o estado psicológico da criança, prevendo uma espécie de indig-
nação, no entanto, esta não é suciente para fazê-lo acreditar que a igual-
dade deve vencer a autoridade da “mãe”, e talvez como um “consolo” para
essa indignação, ele completa sua resposta, favorecendo o obediente com
uma boa recompensa.
Na perspectiva de Piaget (1932-1994), no desenvolvimento da
justiça distributiva parece ser possível distinguir três grandes etapas: na
primeira, a justiça não é diferenciada da autoridade das leis; na segunda, o
igualitarismo desenvolve-se e prevalece diante de qualquer situação; e, na
terceira, o igualitarismo simples cede espaço para a equidade.
Desse modo, as respostas apresentadas no grupo acima parecem
estar de acordo com a primeira etapa do desenvolvimento da justiça distri-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

butiva, justicando, assim, essas crianças julgarem justa a ordem do adulto,
mesmo que seja contra o seu desejo.
Estão expostos, em seguida, exemplos de respostas que favorecem
a igualdade acima da autoridade adulta:
Otávio (11 anos): É justo. Não, a mãe teria que falar pro Sérgio fazer, fa-
zer o trabalho que ele tinha que fazer. O que o Miguel respondeu? Acho
que ele respondeu que cada um tem que fazer a sua parte, que cada um
deve fazer. E se, mesmo assim, ela pedisse pra ele fazer as duas coisas?
Ele ia fazer. Por quê? Pra ajudar a mãe dele, não sei.
Tomás (14 anos): Não. Falou não. É justo a mãe ter pedido pro Miguel
fazer as duas coisas? Não. Por quê? Porque o outro queria brincar e não
queria fazer a tarefa e o outro ia fazer mais. Foi justo o Miguel ter fala-
do não pra mãe dele? o. Por quê? Porque ele não queria fazer os dois
serviços. E ele deveria fazer? o.
Podemos diferenciar esses exemplos segundo as três etapas pos-
síveis do desenvolvimento da justiça distributiva consideradas por Piaget
(1932-1994) e descritas acima. Para esses exemplos, percebemos as duas
últimas etapas. Sendo assim, Tomás direciona sua resposta para a segun-
da etapa, em que está presente o igualitarismo puro; ele demonstra que,
apesar de não “ser certo” dizer “não” para sua mãe, ainda assim Miguel
(personagem da história) não deveria realizar os dois afazeres. Já Otávio
parece direcionar sua resposta mais para a terceira etapa desse desenvol-
vimento, pois, embora não ache justa a ordem da mãe, ele arma que
poderia ser cumprida não simplesmente como uma obrigação ou obedi-
ência, mas porque se deseja ajudar a mãe. Porém, não podemos armar
que Otávio tenha realmente essa noção mais renada da justiça, porque,
segundo Piaget (1932-1994), também há a possibilidade de essa atitude
ser fruto da educação recebida, quer dizer, uma obediência com apelo de
cooperação. Nesse sentido, seria necessária uma melhor investigação, a m
de entender se ele realmente considera a situação particular de cada um ou
leva em conta as circunstâncias atenuantes de cada situação.
Como exemplo de resposta de transição, temos:
Alex (13 anos): Que na janta o Sérgio faz tudo. Foi certo a mãe ter pe-
dido para o Miguel fazer as duas coisas? Não. Por quê? Por causa que só
ele ia fazer e o irmão dele não ia fazer nada, cava brincando. Na janta

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
também o Sérgio fez a mesma coisa, o que o Miguel deveria fazer? O
Miguel faz, mas depois ele ganha alguma coisa em troca. Por que ele faz?
Pra depois ele ganhar presente por tudo que ele fez no almoço e na janta.
Podemos observar que Alex não acha justa a ordem da mãe, con-
tudo, justica sua ação de obedecê-la simplesmente porque acredita que
Miguel irá “ganhar um presente” em troca, armando a autoridade da mãe.
Como a resposta de Alex não dene sua posição da escolha pela igualdade
ou pela autoridade, nós a classicamos como transição.
Os dados apresentados no interrogatório da História IV aponta-
ram uma predominância das respostas que optaram pela igualdade indi-
cando uma tendência da moral autônoma no juízo das crianças/adolescen-
tes para essa história.
5.4 REFLEXÕES SOBRE A INTERVENÇÃO
Ao analisarmos o resultado de cada item trabalhado, podemos
fazer uma comparação entre o início e o nal do processo permitindo-nos
avaliar sob o ponto de vista dos vários atores do ambiente institucional os
avanços alcançados ou limitações enfrentadas no decorrer dele.
No trabalho com os funcionários vale destacar dois aspectos que
consideramos muito importantes para avaliação deste estudo e planeja-
mento de estudos futuros. O primeiro aspecto diz respeito ao fato dos
participantes terem conseguido de fato avaliar criticamente sua postura na
relação interpessoal com os demais colegas de trabalho, fato esse que gerou
mudanças positivas nesse relacionamento, conforme relatado por alguns
participantes no momento da entrevista. Da mesma forma, houve uma
mudança na postura dos funcionários em seu trabalho com as crianças/
adolescentes, mudança essa que transpassou das reuniões para sua prática
no dia-a-dia, como também foi relatado por alguns funcionários na en-
trevista de avaliação. O segundo aspecto se refere ao fato dos participan-
tes cuja função não seja diretamente ligada a aprendizagem (auxiliares de
educador/cuidador), não acreditarem que desempenhem na verdade, um
papel ativo de educadores, mas apenas de colaboradores. Durante o pro-
cesso, houve aqueles que declararam ter reetido sobre sua prática, mas,
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

ainda assim, não se reconhecem como educadores, ou seja, aparentemente
não tomaram consciência plena de que a função que exercem ultrapassa os
limites do título do cargo que ocupam.
Ao estabelecermos relação entre a entrevista clínica de diagnósti-
co e a entrevista clínica de avaliação com as crianças/adolescentes podemos
vericar se houve alguma espécie de mudança no juízo das crianças/ado-
lescentes interrogadas em relação à entrevista clínica de diagnóstico com a
de avaliação. O Quadro 2 expõe os dados gerais das entrevistas clínicas de
diagnóstico e avaliação.
Quadro 2- Dados gerais das entrevistas clínicas de diagnóstico e avaliação.
Criança/adolescente
H.I
(D)
H.I
(A)
H.II
(D)
H.II
(A)
H.III
(D)
H.III
(A)
H.IV
(D)
H.IV
(A)
Bruno S.E* T* J.R J.R J.R J.R A A
David T S.E T J.R T J.R T* I*
Tiago S.E* T* J.D J.D J.R J.R T A
Paulo S.R T J.R* T* J.R J.R T* I*
Otávio T T T* J.D* J.R* T* I I
Alex T T J.R J.R J.R J.R I T
Tomás T S.E J.R* T* J.R* T* A* I*
Vinícius T T J.D J.D J.R* T* A A
Fonte: Elaborado pelos autores.
Legenda-
H. I História I (A) (Avaliação) J.D Justiça Distributiva
H. II História II S.E Sanção Expiatória A Autoridade
H. III História III S.R Sanção por Reciprocidade I Igualdade
H. IV História IV J.R Justiça Retributiva T Transição
(D) (Diagnóstico)
A análise do Quadro 2 mostra que houve 11 (onze) situações em
que as respostas na fase de avaliação mostrou um progresso da tendência
heterônoma para transição ou da transição para a tendência à autonomia
(são os casos marcados no referido Quadro com um asterisco). Em 14
(catorze) situações as avaliações permaneceram inalteradas e em 7 (sete)
situações houve um retrocesso da transição para a tendência heterônoma e
em 1 (um) caso da tendência à autonomia para a transição.
A análise quantitativa e qualitativa dos dados apresentados no
Quadro 2 indica que houve maior número de alterações para um nível su-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
perior do que para um nível inferior nos casos em que houve mudança. A
passagem das respostas da tendência heterônoma para o nível de transição
no juízo moral da maioria dos interrogados pode ser considerado aceitável
e um avanço quando levamos em consideração o curto período de inter-
venção e o curto período transcorrido da entrevista de diagnóstico para
a entrevista de avaliação (aproximadamente um ano). Para um resultado
superior, acreditamos que seria necessário não apenas o prosseguimento
das atividades, mas a efetividade de uma comunidade justa no âmbito do
abrigo, que ainda não foi implantada nessa instituição.
Gostaríamos de comentar os casos em que houve retrocesso. Este
dado deve ser interpretado como um indício de que a resposta superior
não estava sucientemente consolidada para se manter, principalmente
considerando que as regressões se deram da transição para a tendência he-
terônoma. Importante também lembrar que para Piaget (1932-1994) as
tendências morais não se constituem como estágios duros como ocorre no
desenvolvimento cognitivo.
Quando estabelecemos uma comparação entre as entrevistas se-
miestruturadas de diagnóstico e de avaliação com as crianças/adolescentes
observamos que o principal resultado foi a mudança na apreciação, por
parte das crianças, da função da instituição em relação à educação cons-
tituída em sua rotina. Enquanto no estudo de diagnóstico (realizado an-
teriormente), a maioria dos entrevistados ressaltou os aspectos formais de
estudo, na entrevista de avaliação, as crianças/adolescentes, em sua maio-
ria, apreciaram a instituição pela educação não formal, como obediência e
respeito às regras, aos funcionários e às demais crianças/adolescentes. Além
disso, ao invés de relacionarem a melhoria da instituição com mais pre-
sentes e menos brigas (resultado da entrevista semiestruturada no estudo
prévio), na entrevista de avaliação, a maioria das crianças salientou que a
instituição não precisaria mudar em nada, outros acreditavam dever au-
mentar o respeito entre eles próprios e para com os funcionários e diminuir
as brigas; para a contribuição das demais crianças/adolescentes, a maioria
armou que poderia melhorar, de modo que pudesse constituir um maior
respeito entre eles.
Esses dados indicam que, embora as crianças/adolescentes acre-
ditassem na supremacia do adulto, atribuindo a eles a necessidade de estes
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

serem obedecidos e respeitados com um respeito unilateral, eles estão visu-
alizando a instituição como um lugar em que se aprende, sobretudo, a es-
tabelecer relações sociais e que, nessas relações, é necessário haver respeito.
Sabemos que essa maneira de raciocinar ainda é elementar, visto
que impera o respeito unilateral, a obediência cega à regra e ao adulto, no
entanto, consideramos um grande avanço no que tange à visão anterior
que tinham da instituição. A visão de grupo e eles próprios sentindo a
necessidade de respeito a todos e respeito mútuo, principalmente entre
eles, faz com que visualizemos essa mudança como necessária e relevante
para o prosseguimento de constituição de um ambiente cooperativo ou
sociomoral. Como arma Puig (1998b), a educação moral não é apenas
um processo de socialização, mas sem essa socialização ela não é possível.
Cremos que o fato de alguns funcionários terem encarado a cons-
tituição das regras como uma possibilidade de vigilância e cobrança para
a obediência, tanto das regras como dos adultos, foi a principal razão para
as crianças/adolescentes mencionarem o cumprimento e obediência às re-
gras e aos funcionários como algo exterior e não algo em que eles próprios
tiveram participação. Relembremos a fala do Participante 2, que se refere
exatamente a essa crença do controle:
[...] então a regra está existindo agora, que foi posto na parede, isso aí é muito
importante, mas aquilo tudo tem que ser lmado e pôr em outra parede tam-
bém, não é só ali dentro da sala, tem que ser ali, tem que ser aqui, tem que ser
lá em cima, para que todo mundo fale “Oh, você está fugindo da regra”, isso
é muito vago, só ali dentro daquela sala, eu acho que tem que ter um jeito da
gente fazer do lado de fora, nem que se mandar ampliar [...].
Como podemos perceber, mesmo com as atividades junto às
crianças/adolescentes sendo trabalhada a ideia de que elas eram sujeitos
de suas ações e, na constituição das regras, enfatizando-se a razão que jus-
ticaria sua existência, as crianças/adolescentes ainda viam as regras como
algo obrigatório e exterior, porque alguns funcionários que tiveram conta-
to com esse trabalho não o enxergavam como um possível promotor para
autonomia, porém, como uma oportunidade de cobrar das crianças/ado-
lescentes de forma coercitiva aquilo que elas mesmas constituíram, como
demonstrado na fala do Participante 2. Percebemos que nosso trabalho,

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
nesse sentido, foi limitado por não ter conseguido enfocar também com
os funcionários a razão da constituição das regras junto às crianças/adoles-
centes, para estabelecer um trabalho conjunto e contínuo, mesmo sem a
nossa presença.
Devemos lembrar, entretanto, que houve uma reunião junto aos
funcionários da instituição com o tema especíco “O sentido das regras”.
Como pudemos vericar na análise e discussão dessa reunião, os funcioná-
rios demonstraram ter compreendido a maneira de se constituir regras de
convivência, observando sempre a razão e o princípio que levou a sua ela-
boração, excluindo desse modo qualquer espécie de constituição por con-
trole ou meio facilitador para o educador e enfocando o desenvolvimento
da autonomia moral das crianças/adolescentes. Essa compreensão cou
evidente principalmente quando o Participante 2 reviu uma regra por ele
criada, que controlava o acesso das crianças/adolescentes ao banheiro para
evitar o excesso de sua utilização e o controle de sua limpeza.
Do modo como a regra tem sido encarada por alguns funcioná-
rios, seu objetivo geral como uma medida de diminuição da heteronomia
para promover a autonomia, como Devries e Zan (1998) destacam, está
funcionando exatamente ao contrário; vimos isso como um problema a
ser analisado com os funcionários e crianças/adolescentes. Por outro lado,
como pudemos perceber, a construção de regras pelas crianças/adolescen-
tes com essa proporção foi algo que antes não era praticado na instituição,
passo que se fez muito importante para a introdução dessas crianças/ado-
lescentes no universo da regularidade de forma concreta e ativa. Mesmo
que, constituída por eles, as regras ainda permaneçam exteriores, cremos
que seja o primeiro passo para o alcance de sua interiorização. Para que
isso ocorra, é importante “[...] dar às crianças a possibilidade de regular
seu comportamento voluntariamente” (DEVRIES & ZAN, 1998, p.138).
Dessa forma, não podemos descartar, no caso desse abrigo, que o trabalho
dos funcionários da instituição seja contínuo para a constituição de um
ambiente favorável ao desenvolvimento da autonomia moral das crianças/
adolescentes.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.


CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito deste estudo foi discutir a situação das crianças/
adolescentes abrigadas em relação ao desenvolvimento da autonomia mo-
ral. Para tanto, realizamos um trabalho de intervenção que se dispôs a
propiciar um ambiente sociomoral cooperativo embasado no respeito mú-
tuo entre todos os atores da instituição de sorte a favorecer a elaboração e
o cumprimento consciente de regras de convivência. Iniciamos por uma
retomada teórica contextualizando, ainda que brevemente, a situação de
institucionalização da infância e o desenvolvimento da moralidade segun-
do Jean Piaget. A seguir, analisamos a situação do abrigo levantando pos-
sibilidades de intervenção. Descrevemos o trabalho realizado e avaliamos o
processo como um todo. Cabe agora rever as limitações e vislumbrarmos
perspectivas futuras. É esse o objeto que será tratado a seguir.
Quando iniciamos nosso estudo na instituição, com as reuniões
de estudo para uma avaliação inicial das possibilidades de atuação na ins-
tituição, pudemos perceber que, ao serem tratados os problemas de educa-
ção moral de forma diretamente relacionada entre prática e teoria, alguns
participantes tenderam a encarar nossas reuniões como uma espécie de
aula ou um momento de aprenderem posturas “corretas”, e não como um
momento de reexão e busca de soluções para os problemas apontados
por eles próprios. Houve também a postura de constante defesa por parte
de alguns funcionários, muitas vezes se colocando em papel de vítima das
circunstâncias ou acusando os outros pelo fracasso da educação não for-
mal das crianças/adolescentes, quando não acusavam as próprias crianças/
adolescentes por esse fracasso, alegando sua condição de “rebeldes”, que
trazem costumes e valores difíceis de serem mudados”. Alguns funcioná-
rios encaravam a participação nas reuniões como obrigatória, o que di-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

cultava a abertura para a discussão e fortalecia a falta de interesse. Outro
aspecto importante que observamos foi a diculdade de entendimento do
conteúdo discutido por parte de alguns funcionários, sobretudo daqueles
com grau menor de escolaridade, fato que igualmente contribuía para o
desinteresse na participação.
A partir dessa análise decidimos por utilizar estratégias dife-
rentes para tratar dos temas importantes no processo de intervenção.
Elaboramos um programa com dinâmicas que provocavam a reexão e a
discussão entre os participantes. Percebemos que o uso de tais dinâmicas
nas atividades desenvolvidas facilitou o envolvimento dos participan-
tes, independentemente de seu grau de escolaridade. Propiciou também
maior discussão, partindo dos sentimentos de cada um para a discussão
concernente às práticas educativas e de relacionamentos interpessoais no
âmbito do abrigo. Essas dinâmicas foram importantes, já que, por meio
delas, o participante pôde vivenciar situações que permitiam experienciar
sua atuação em práticas moralmente signicativas. A respeito desse mé-
todo, Puig (1998b,
p.117-118) considera que:
Tem-se armado com frequência, e com razão, que o melhor modo
de desenvolver simultaneamente a sensibilidade, o juízo e a conduta
moral é aproximando-se pessoalmente das situações reais nas quais se
vivencia uma problemática moralmente relevante. Ver a realidade de
perto é o melhor modo de entendê-la e de sentir-se tocado por ela [...]
Os enfoques socioafetivos são uma modalidade desta natureza: tentam
oferecer, mesmo que articialmente, uma oportunidade de vivenciar
experiências moralmente signicativas.
É verdade que, em algumas atividades propostas, como a dinâ-
mica dos “rótulos”, houve problema por parte de alguns funcionários em
diferenciarem o momento de fantasia (proposta para a realização da dinâ-
mica) da realidade, dicultando, em um primeiro momento, a sua reali-
zação; por outro lado, atividades como essa foram as que proporcionaram
maior reexão e discussão sobre problemas enfrentados no dia-a-dia e que,
muitas vezes, passavam despercebidos.
Superada as diculdades iniciais na dinâmica dos rótulos, foi mui-
to rica a discussão que se seguiu, pois, ainda que os participantes tenham
percebido o signicado do rótulo, reconheceram que o ato de rotular era

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
uma prática enraizada para muitos dos funcionários da instituição. E o fato
dos funcionários se prenderem ao rótulo na prática do dia-a-dia estava im-
pedindo que vissem novas perspectivas de se estabelecer a educação moral
e, com ela, a possibilidade de as crianças/adolescentes se desenvolverem
moralmente. É muito interessante observar que apesar de toda a reexão
gerada, a prática do rótulo era considerada necessária e até a responsabili-
dade pelo rótulo era atribuída em parte às crianças/adolescentes em função
de seu comportamento. Em função disso, é claro que a prática de rotular
não foi extinta, mas puderam experienciar e reetir o quão prejudicial es-
tava sendo, no âmbito do abrigo.
Um dos assuntos frequentemente discutidos em nossas reuniões
foi a respeito de quando há a necessidade do uso de sanção, de quais os
tipos de sanções seriam mais adequados, a m de educar a criança/adoles-
cente. Esse assunto foi um dos mais delicados com que trabalhamos, pois
a postura dos funcionários, na maioria das vezes, era fazer predominar
a sanção expiatória (retirar algo que dá prazer), alegando que não havia
muito que se fazer com crianças/adolescentes que não eram seus lhos. A
alternativa a esse tipo de sanção, ou seja, a sanção por reciprocidade não
era sequer cogitada pois ressaltavam a incapacidade de compreensão dessas
crianças em entender as consequências de sua falta. Verbalizavam inclusive
que a única alternativa à privação do prazer como sanção seria o uso da
violência física, o que não seria possível dada a relação legal estabelecida
pelo fato de estarem em ambiente institucional.
Em uma das reuniões de ação, quando discutimos estritamente
sobre as escolhas de sanções, quando estas se fazem necessárias, levamos
algumas histórias ctícias com sanções pré-estabelecidas, para que os fun-
cionários pudessem escolher as que julgavam ser as mais adequadas. Nessa
atividade, a maioria dos funcionários escolhia aquelas que faziam relação
com a falta cometida, isto é, as sanções por reciprocidade, no entanto, ain-
da se reportavam à educação que seus pais e avós lhes deram, salientando
que “palmadas nunca tinham matado ninguém”.
Diante da escolha das sanções e da alusão à educação do passa-
do, percebemos que alguns funcionários, embora tenham mudado a sua
maneira de discutir hipoteticamente sobre as sanções, escolhendo sempre
aquelas equivalentes à falta e com ruptura do elo social, quando as dis-
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

cutiam sob a perspectiva de sua vivência ainda preferiam as sanções ex-
piatórias, justicando que estas fazem as crianças/adolescentes sentirem
o efeito de sua falta. Por essa discrepância, vimos a escolha das sanções
pré-estabelecidas como um ato de inteligência, escolhendo pela lógica da
situação exposta. Piaget (1932-1994) já alertara sobre essa possibilidade no
interrogatório com as crianças, de sorte que percebemos que isso também
ocorreu no interrogatório com os adultos. Assim, foi utilizado mais o ra-
ciocínio lógico do que, propriamente, a interiorização a respeito da prática
como educadores em momentos de conitos sociais e de valores.
Apesar disso, vericamos nas observações participantes e durante
a entrevista que alguns funcionários fazem uso da sanção por reciproci-
dade, porém, esta parece ser uma prática de poucos. Também pudemos
constatar na entrevista que grande parte dos funcionários atribuía ainda a
sanção expiatória (retirada de algo prazeroso) como a melhor medida para
punir. Isso evidencia o quão difícil é para o indivíduo mudar práticas e
pensamentos enraizados.
Um aspecto importante a ser destacado é o incômodo dos fun-
cionários, quando as suas práticas começaram a ser questionados pelas
crianças/adolescentes, como, por exemplo, o uso dos gritos para chamar
a atenção.
Em ambas as situações, rótulos e sanções, ca clara uma relação
contraditória entre por um lado crenças pessoais sobre como é a educação
tradicional, e por outro, como algumas práticas são inecazes e até pre-
judiciais para o ambiente institucional. Ao mesmo tempo, os discursos e
observações evidenciam quão difícil é mudar, abrir mão do estabelecido e
construir outra forma de vinculação.
É importante apontar uma limitação do estudo, que foi não ter-
mos realizado trabalho conjunto entre as crianças/adolescentes e funcio-
nários. Seria bastante produtivo se durante o processo tivéssemos incluído
algumas das atividades relacionadas a sentimentos envolvendo também os
funcionários da instituição, já que seria possível falarem sobre sentimentos,
“[...] respeitando o limite da intimidade de cada um”, como arma Tognetta
(2010b, p.10). Também poderíamos ter proposto trabalhos conjuntos na
atividade da construção das regras sociais do abrigo realizado com a parti-

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
cipação das crianças/adolescentes e os Participantes 2 e 4. Lembrando de
algo que ocorreu no início das reuniões com os funcionários ca clara a
diculdade que esse tipo de atividade geraria: em uma ocasião foi sugeri-
do que um representante das crianças/adolescentes pudesse estar presente
em reuniões de planejamento de atividades ou de resolução de problemas,
muitos dos presentes consideraram que esse tipo de ação seria impossí-
vel, pois as crianças/adolescentes não teriam “capacidade” para tanto. Se
consideramos que as reuniões conjuntas seriam bastante difíceis de serem
implementadas e conduzidas, isso não signica que sejam pouco impor-
tantes ou impraticáveis. Pelo contrário, os estudos sobre implantação de
assembleias em escolas sofrem as mesmas resistências e diculdades, mas
com a persistência, levam a um desenvolvimento da competência demo-
crática que não é facilmente alcançável. Segundo Ramos (2014) na imple-
mentação das assembleias, muitos prossionais esperam verdadeira mágica
e que os conitos desapareçam. Isso não acontece. Os conitos continuam
a ocorrer, como é de se esperar, mas os estudantes desenvolvem estratégias
mais assertivas de resolução desses conitos. Por isso, consideramos uma
limitação desse estudo a não realização conjunta e apontamos a relevância
de trabalhos nessa direção em futuros estudos em abrigos institucionais.
Podemos destacar como os principais avanços desse estudo: a
importância da reexão, outorgada por alguns funcionários, nas práticas
educativas e de relacionamento interpessoal com a equipe de trabalho e
com as crianças/adolescentes; avaliação por parte de alguns funcionários,
de melhora das relações interpessoais entre eles e os demais funcionários;
percepção de alguns funcionários da necessidade de construção das regras
junto às crianças/adolescentes. Quanto às crianças/adolescentes, vimos
como principal avanço o fato de passarem a perceber o abrigo, não apenas
como um local de estudo formal, mas como um ambiente social promotor
de relações de respeito entre crianças/adolescentes, mesmo que as relações
com o adulto ainda sejam vistas predominantemente de modo heterôno-
mo. Além disso, foi possível notar um progresso no juízo moral das crian-
ças/adolescentes, no sentido da passagem de respostas de respeito unilate-
ral para respostas de nível transitório, evidenciando que na intervenção se
produziu desequilíbrios das noções heterônomas de juízo moral.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

Apesar de enfocarmos como um dos princípios deste trabalho a
necessidade de estabelecermos uma comunidade justa em que crianças/
adolescentes e adultos pudessem colaborar entre si e se respeitarem, isso
não foi alcançado efetivamente no dia-a-dia da instituição, desse modo, as
crianças/adolescentes não puderam vivenciar tal forma de comunidade. O
que pudemos notar em virtude da intervenção desse trabalho, como su-
pracitado, foram algumas evidências tanto no relacionamento interpessoal
como nas atitudes das crianças/adolescentes e funcionários em favor da
melhoria desse relacionamento.
Desse modo, apesar de haver progresso no sentimento dos inte-
grantes do abrigo a m de um estabelecimento de relações interpessoais
que sobressaia o respeito a si e ao outro, o ambiente do abrigo não chegou
a se caracterizar como um ambiente sociomoral cooperativo. O respeito
ainda se encontrava sob um paradigma do respeito unilateral. Nesse pro-
cesso, nota-se que embora à criança/adolescente fosse permitido dizer o
que sentem, os adultos apresentavam diculdades em aceitar as críticas
advindas dessas, principalmente quando questionavam a postura arbitrária
do adulto, ou seja, havia uma diculdade por parte de alguns funcionários
em acompanhar as transformações decorrentes do processo de constituição
de um novo ambiente.
Atribuímos como um forte fator que inibiu a constituição de um
ambiente sociomoral cooperativo a tendência para a imobilidade da própria
instituição para as modicações inerentes ao processo dessa constituição.
Assim, embora a entidade tenha aceitado participar da intervenção, ela se
manteve fechada para mudança dos seus fundamentos. Possivelmente por
isso as mudanças nos juízos das crianças ocorreram somente para o nível
intermediário. Sendo assim, acreditamos que o progresso poderia ter sido
maior caso a instituição outorgasse maior abertura para a prática e reexão
dos temas propostos junto às crianças/adolescentes no dia-a-dia do abrigo.
Como acreditamos que há necessidade de continuidade das prá-
ticas morais na instituição mesmo após a saída dos autores, sugerimos e
demos suporte para que a instituição desse prosseguimento às atividades,
com uma atividade contínua, juntamente com as crianças/adolescentes
e também com os adultos da instituição. Essa atividade correspondeu à
“Urna dos sentimentos” que propõe, sobretudo, momentos de reexões e

Abrigo ou casa?
Desenvolvimento moral de crianças e adolescentes abrigados
discussão sobre sua vivência e relação interpessoal na entidade. A proposta
foi a de terem uma prática que permitisse o acolhimento de sentimentos
positivos ou negativos das crianças/adolescentes de modo que periodica-
mente pudessem abrir essa urna, ler o que foi ali depositado e conversarem
sobre os temas. A urna foi confeccionada pelos autores e apresentada como
proposta de atividade conjunta entre funcionários e crianças/adolescentes,
para os Participantes 1, 3 e 4. Estes acolheram a ideia com entusiasmo e
consideraram que essa era uma atividade muito interessante e necessária.
Os autores se propuseram a participar de algumas reuniões conjuntas, para
a implantação da atividade, mas não foram contatados.
Para o prosseguimento das ações junto aos funcionários, acredi-
tamos que seja necessária a continuidade de reuniões entre eles, com o ca-
ráter de formação continuada, como bem sugere as Organizações Técnicas:
Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2009).
Mesmo que este trabalho tenha tomado um grande volume, visto
que houve uma extensa atividade junto aos participantes sujeitos do es-
tudo e, com isso, inúmeros dados analisados e discutidos, não pensamos
que tenha sido concluído. Os dados indicaram que a constituição de um
ambiente favorável ao desenvolvimento da autonomia moral das crianças/
adolescentes está apenas se iniciando. Sendo assim, este trabalho se consti-
tuiu em arar a terra e plantar a semente, mas, para que ela seja germinada e
se torne uma planta que dê frutos, é necessário que tenha prosseguimento
e inclua novas contribuições.
Nos estudos anteriores, pudemos perceber que a diculdade de
se estabelecer uma educação moral, voltada para a autonomia, não é um
problema pontual do abrigo estudado. Nesta investigação, pudemos notar
que, na visão da maioria dos funcionários da instituição há a necessida-
de de se educar moralmente as crianças/adolescentes em situação de aco-
lhimento, no entanto, a visão dessa educação ocorre principalmente pela
questão de moralização ou doutrinamento, também com um agravante,
já que, para eles, as crianças/adolescentes em situação de risco “não res-
pondem” a um tipo de educação mais cooperativo, como “nossos lhos”.
Com isso, surgem as seguintes questões: como se faz possível um ambiente
sociomoral, cooperativo, com a permanência desse tipo de visão? Por que,
mesmo com o avanço das leis nacionais, passando as crianças/adolescentes
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.

de “objetos” de permanência dos valores e bons costumes para “sujeitos
com o direito de se desenvolverem moralmente, não percebemos esse mes-
mo avanço nas perspectivas de educação desses funcionários? E, por m,
como as demais instituições de acolhimento têm percebido e realizado a
educação moral? Acreditamos que essas questões merecem ser mais bem
discutidas e analisadas.
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Dissertação (Mestrado em Educação)- Faculdade de Educação, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2012.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.
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SOBRE OS AUTORES
ADRIAN OSCAR DONGO MONTOYA
Possui graduação em Psicologia pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos
(1974), mestrado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (1983), dou-
torado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade
de São Paulo (1988). Fez pós-doutorado no Laboratório de Psicologia Genética
da Universitè de Lumiére - Lyon 2 (1995-1996) e obteve o título de livre-docen-
te na Unesp (1999). Atualmente é Professor Titular da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho e Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa
em Epistemologia Genética e Educação - GEPEGE. Atua principalmente nos se-
guintes temas: Epistemologia Genética, Educação, Psicologia Genética, Psicologia
da Educação e pensamento de Jean Piaget. As principais obras publicadas: Piaget
e a criança favelada, pela Editora Vozes; Piaget:Imagem mental e a construção do
conhecimento, pela Editora da Unesp; Teoria da aprendizagem na obra de Piaget,
pela editora da Unesp.
CARLA ANDRESSA PLÁCIDO RIBEIRO DE FRANÇA
É doutoranda pela Universidade Estadual Paulista - Júlio de Mesquita Filho,
Mestra em Educação e Pedagoga pela mesma instituição. É membro do Grupo
de Estudo e Pesquisa em Epistemologia Genética e Educação GEPEGE (Unesp
Marília). Entre suas principais atividades estão a Pesquisa cientíca e Educação,
atuando principalmente nos seguintes temas: Desenvolvimento moral, Relações
interpessoais, Formação de educador; Psicologia da Educação, Pesquisa-ação,
Ensino de decientes visuais e Recursos didáticos adaptados ao ensino.
Dongo-Montoya, A.O.; França, C.A.P.R.; Bataglia, P.U.R.
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PATRICIA UNGER RAPHAEL BATAGLIA
Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1986), mestrado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo
(1996) e doutorado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (2001).
Atualmente é docente e pesquisadora do Departamento de Psicologia da Educação
e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Faculdade de
Filosoa e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho
- UNESP, campus de Marília. É membro da Comissão de Ética do Conselho
Regional de Psicologia de São Paulo e é assessora cientíca da FAPESP.É membro
do Grupo de Estudos de Psicologia e Epistemologia Genéticas (GEPEGE), do
Grupo de estudos e pesquisas em bioética e educação (G-BIO) e do Laboratório
de Temas Filosócos em Conhecimento Aplicado (LABFILC). Tem experiência
na área de Educação, com ênfase na formação ética do prossional, atuando prin-
cipalmente nos seguintes temas: competência moral, ética prossional, desenvol-
vimento moral e bioética.
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SOBRE O LIVRO
Formato 16X23cm
Tipologia Adobe Garamond Pro
Papel Polén soft 85g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Acabamento Grampeado e colado
Tiragem 300
Catalogação Telma Jaqueline Dias Silveira
Normalização Sonia Faustino do Nascimento
Assessoria Técnica Maria Rosangela de Oliveira - CRB-8/4073
Capa Edevaldo D. Santos
Diagramação Edevaldo D. Santos
Produção gráca: Giancarlo Malheiro Silva
2016
Impressão e acabamento
Gráca Campus
Unesp -Marília - SP