O diferencial da obra de Augusto Rodrigues consiste em seu objetivo
principal, a saber, problematizar como a emergência de uma nova política
losóco-educacional de pesquisar e de ensinar Filosoa no Brasil, junto
com a formação losóca do autor na Universidade Estadual Paulista
UNESP, transformam-se em uma herança de formação, atravessando, as-
sim, a própria constituição de Rodrigues como pesquisador e professor de
Filosoa. Para tanto, tensionando o passado pelo presente, o livro entre-
cruza as experiências e vivências do autor em sua trajetória formativa com
alguns debates atuais da área do Ensino de Filosoa, tais como a discussão
sobre o estatuto epistemológico do Ensino de Filosoa como campo de
conhecimento, a institucionalização da Filosoa universitária no Brasil e
a formação de professores e professoras de Filosoa. Ao fazê-lo, contudo,
acaba por inverter o subtítulo do livro: ao discutir suas Heranças político-
-losócas de ensinar e aprender losoa: do campo do ensino de losoa à
trajetória formativa na UNESP, Rodrigues fomenta com rigor e sabor o
próprio debate sobre o campo que lhe serve de ponto de partida.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio 0039/2022
Processo 23038.001838/2022-11
Extraído do prefácio de Patrícia Velasco
Augusto Rodrigues
HERANÇAS POLÍTICO-FILOSÓFICAS DE
ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA
do campo do ensino de Filosofia à
trajetória formativa na UNESP
HERANÇAS POLÍTICO-FILOSÓFICAS DE ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA Augusto Rodrigues
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HERANÇAS POLÍTICO-FILOSÓFICAS DE ENSINAR E
APRENDER FILOSOFIA: DO CAMPO DO ENSINO DE FILOSOFIA
À TRAJETÓRIA FORMATIVA NA UNESP
AUGUSTO RODRIGUES
Augusto Rodrigues
HERANÇAS POLÍTICO-FILOSÓFICAS DE ENSINAR E
APRENDER FILOSOFIA: DO CAMPO DO ENSINO DE FILOSOFIA
À TRAJETÓRIA FORMATIVA NA UNESP
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2024
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora: Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
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Pedro Angelo Pagni
Auxílio Nº 0039/2022, Processo Nº 23038.001838/2022-11, Programa PROEX/CAPES
Parecerista: Patrícia Del Nero Velasco (Universidade Federal do ABC)
Ficha catalográca
_______________________________________________________________________________________
Rodrigues, Augusto.
R696h Heranças político-losócas de ensinar e aprender losoa: do campo do ensino de losoa
à trajetória formativa na Unesp / Augusto Rodrigues. – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo :
Cultura Acadêmica, 2024.
233 p.
CAPES
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-5954-539-1 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-540-7 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-540-7
1. Universidade Estadual Paulista (Unesp). 2. Filosoa – Estudo e ensino. 3. Professores -
Formação. 4. Ensino superior - Licenciatura. I. Título.
CDD 378.1552
_______________________________________________________________________________________
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno – CRB 8/8211
Copyright © 2024, Faculdade de Filosoa e Ciências
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - Campus de Marília
“[...] então, também somos herdeiros
(Rm 08:17)
Sumário
Prefácio - Heranças político-losócas de um pesquisador da 3ª geração do
Ensino de Filosoa: contribuições de uma trajetória formativa ao debate
sobre o campo | Patrícia Del Nero Velasco....................................................9
Introdução...............................................................................................17
Capítulo 1. - O campo do Ensino de Filosoa: heranças de formação.......27
Capítulo 2. - O grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de Filosoa
e sua política losóca de ensinar e aprender losoa: heranças do
campo......................................................................................................85
Capítulo 3. - Da cisão do losofar das práticas educativo-losócas às
projeções de uma losoa de professores: heranças de formação losóca na
era prossional da losoa......................................................................129
Considerações nais................................................................................201
Referências.............................................................................................217
Posfácio | Bruno Bahia............................................................................229
9
Prefácio
Heranças político-losócas de um pesquisador
da 3ª geração do Ensino de Filosoa:
contribuições de uma trajetória formativa ao
debate sobre o campo
O livro que o leitor e a leitora têm em mãos versa sobre a temática do
Ensino de Filosoa, assunto que, desde a última década do século XX, tor-
nou-se objeto de investigação de pesquisadores e pesquisadoras de Filosoa
e Educação no Brasil. O diferencial da obra de Augusto Rodrigues consiste
em seu objetivo principal, a saber, problematizar como a emergência de uma
nova política losóco-educacional de pesquisar e de ensinar Filosoa no
Brasil, junto com a formação losóca do autor na Universidade Estadual
Paulista – UNESP, transformam-se em uma herança de formação, atraves-
sando, assim, a própria constituição de Rodrigues como pesquisador e pro-
fessor de Filosoa. Para tanto, tensionando o passado pelo presente, o livro
entrecruza as experiências e vivências do autor em sua trajetória formativa
com alguns debates atuais da área do Ensino de Filosoa, tais como a discus-
são sobre o estatuto epistemológico do Ensino de Filosoa como campo de
conhecimento, a institucionalização da Filosoa universitária no Brasil e a
formação de professores e professoras de Filosoa. Ao fazê-lo, contudo, acaba
por inverter o subtítulo do livro: ao discutir suas Heranças político-losócas
de ensinar e aprender losoa: do campo do ensino de losoa à trajetória forma-
tiva na UNESP, Rodrigues fomenta – com rigor e sabor – o próprio debate
sobre o campo que lhe serve de ponto de partida.
Logo nas primeiras páginas, Augusto Rodrigues enuncia a problemá-
tica do livro, expressa sinteticamente na seguinte pergunta: “como o autor se
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-540-7.p9-15
10
tornou o pesquisador e o professor de Filosoa que é?”. Embora saliente que
a questão em tela o acompanha em sua trajetória acadêmica – sendo abor-
dada, por exemplo, na obra Como nos tornamos os professores que somos. Uma
problematização da herança estruturalista nas práticas de ensinar e aprender lo-
soa (2020), publicada pela mesma Cultura Acadêmica –, no presente livro,
a problemática é reetida a partir de um potente diálogo com as discussões
a respeito do estatuto epistemológico do campo do Ensino de Filosoa: um
debate recente e caro à comunidade losóca nacional, imprescindível ao
pleito de cidadania institucional, em voga junto à comunidade losóca mais
ampla, à subárea de pesquisa do Ensino de Filosoa.
No capítulo que abre o livro, Rodrigues propõe novos contornos às
questões em discussão, interpretando o estado da arte do debate sobre o cam-
po e, em uma tão preciosa quanto rara autoavaliação, sinaliza de que modo
a supracitada discussão se tornou determinante à obra. Reete que, em suas
investigações, as questões adquirem, sobretudo, um caráter mais ético do que
propriamente epistemológico, posto que, ao invés de pesquisar epistemolo-
gicamente as discursividades próprias ao campo do Ensino de Filosoa, o
objetivo problemático almejado consiste em decifrar como os discursos que
se identicam em torno de uma Filosoa do Ensino de Filosoa se transfor-
mam em heranças de sua formação como pesquisador e professor de Filosoa.
Reconstruindo a emergência discursiva da Filosoa do Ensino de Filosoa,
em especial os dois pilares que considera a base de suas heranças – o Ensino
de Filosoa como objeto de pesquisa losóca e o resgate das virtualidades
educativas inerente à prática losóca –, o autor encerra o primeiro capítulo
questionando como esses discursos se capilarizam em sua trajetória formativa
no curso de Filosoa da UNESP.
Certamente, o primeiro capítulo se constituirá leitura obrigatória para
as pesquisadoras e pesquisadores de cursos de graduação e programas de
pós-graduação que hoje discutem a constituição, no Brasil, do campo de
conhecimento Ensino de Filosoa. Isso porque a interpretação que o autor
oferece dos acontecimentos que marcam a emergência do campo, o acervo
referencial em que sua leitura está embasada e os novos horizontes de pesqui-
sa que sua análise descortina na discussão epistemológica do campo ajudarão
a enriquecer o debate e a ampliar seus horizontes problemáticos. Para além
11
das contribuições losócas ao debate em questão, o capítulo que abre a obra
possui grande valia enquanto registro histórico, documentando os marcos e
atores/as inaugurais do campo do Ensino de Filosoa.
No segundo capítulo, por sua vez, Rodrigues retoma sua experiência
no Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de Filosoa – ENFILO, da
UNESP, a m de problematizar a recepção, dentro do grupo, das práticas ine-
rentes à discursividade Filosoa do Ensino de Filosoa. Inicialmente, mostra
como a própria emergência do ENFILO e de suas pesquisas – entre as frestas
da Filosoa da Educação – ajudam a compreender a conguração e inuên-
cia dos discursos orientados por uma Filosoa do Ensino de Filosoa. Em
seguida, por meio da reconstituição dos princípios, conceitos e práticas do
grupo, reestabelece as disputas político-losócas em torno de uma prática
menor de pesquisar losocamente o ensino de losofa e das práticas de ensi-
nar e aprender Filosoa como experiência de pensamento. O autor dene essas
práticas através de um esforço problematizador que, ao mesmo tempo que
resgata a historicidade discursiva desses conceitos nas discussões do Ensino
de Filosoa, restitui a problematização coletiva feita pelo ENFILO às práticas
de pesquisar e ensinar losoa como transmissão de conhecimentos. Como
resultado surge, de um lado, a defesa de uma pesquisa losóca que seja
imanente à vida e aos conitos experimentados pelo próprio pesquisador, em
contraposição a uma moralização da pesquisa pelos lugares-comuns pedagó-
gicos que fazem parte das relações de ensinar e aprender Filosoa. De outro
lado, vislumbra-se uma virada ética no ensino e na aprendizagem de Filosoa
em que estudantes, professoras e professores deixam de ser espectadores e se
tornam atores no losofar, mantendo uma relação visceral e criativa com a
tradição losóca.
As discussões sobre o tema do Ensino de Filosoa como campo de
conhecimento têm sido realizadas sob suas inúmeras dimensões: histórica,
epistemológica, política etc. Ao abordar a problemática do campo direcio-
nando sua tese para a (até aqui pouco explorada) dimensão ética, Rodrigues
convida o leitor e a leitora a reetir: se pensarmos que, invariavelmente, todas
as dimensões do campo do Ensino de Filosoa também dizem respeito às re-
lações que mantemos – nós, pesquisadores e pesquisadoras – com o próprio
campo, não seriam fundamentalmente éticas, em alguma medida, todas estas
12
dimensões? O livro de Augusto Rodrigues compreende o exemplo de que, a
despeito das insucientes formações losócas pelas quais passamos, se tiver-
mos a oportunidade de conviver com pessoas que, como os integrantes do
ENFILO, têm – nas palavras do autor – “o compromisso ético-formativo que
não separa losofar, aprender e ensinar a losofar”, as relações éticas invaria-
velmente perpassarão as investigações dos professores e professoras lósofos,
tal qual ocorreu com o professor-lósofo Augusto Rodrigues na pesquisa que
culminou no presente livro.
Para aqueles e aquelas que desejam entender a capilarização dos dis-
cursos congregados em torno da intitulada Filosoa do Ensino Filosoa,
tal como vislumbrava uma 1ª geração de pesquisadores e pesquisadoras
do Ensino de Filosoa – que têm nomes como Elisete Tomazetti (UFSM),
Geraldo Horn (UFPR), Leoni Henning (UEL), Renata Aspis (UFMG),
Silvio Gallo (UNICAMP) e Walter Kohan (UERJ), o segundo capítulo tem
muito a oferecer. Se, de alguma maneira, há ao menos duas décadas um gru-
po expressivo de pesquisadoras e pesquisadoras reconhecem que o Ensino de
Filosoa é um problema de pesquisa losóca e que o losofar é condição
necessária ao ensinar e ao aprender Filosoa, o autor mostra, de modo sin-
gular, como esses discursos se territorializam e adquirem uma forma própria
dentro da UNESP e, particularmente, do ENFILO. Com isso, consegue re-
gistrar a história de um grupo de pesquisa que, há mais de dez anos, vem
contribuindo com a formação de novos quadros de pesquisadores e pesqui-
sadoras do Ensino de Filosoa; e, outrossim, atualiza conceitos fundamentais
à construção da literatura do Ensino de Filosoa no Brasil, como é o caso,
por exemplo, do ensino de Filosoa como experiência de pensamento e a ideia
do/a professor/a-lósofo/a – debatendo-os em outras relações e sob outro pris-
ma investigativo, que estão em consonância com a visceralidade do problema
abordado pelo autor.
Enquanto nos dois primeiros capítulos Rodrigues se detém nas heran-
ças de formação especícas ao campo do Ensino de Filosoa no Brasil, no
último, problematiza sua experiência de formação no Curso de Licenciatura
em Filosoa da UNESP. De início, seu foco é investigar a proveniência das
disciplinas histórico-losócas de sua graduação, analisando documentos
institucionais e dialogando com outros estudos críticos sobre as condições
13
educativas do curso em apreço. Essa análise prévia o leva a recuperar, em
seguida, alguns acontecimentos em torno da emergência e consolidação da
Filosoa universitária no Brasil, a m de melhor entender as práticas hege-
mônicas vigentes na UNESP. Após a sua problematização, cam evidentes as
disputas político-losócas entre os discursos de uma Filosoa do Ensino de
Filosoa e aqueles que legitimam uma cultura de formação losóca tradicio-
nal no Brasil, assim como o modo pelo qual esse conito adquire sua tessitura
dentro do funcionamento acadêmico na UNESP. E é nesse cenário de dis-
puta que o autor, em interlocução com um projeto de formação de lósofos
e lósofas, de certa maneira esquecido e ofuscado pelas relações educativas
hegemônicas naquela instituição, esboça os protótipos de uma política de
formação de professores e professoras lósofos. Para Rodrigues, a Filosoa
universitária brasileira separou o losofar tanto da pesquisa, quanto da do-
cência, ocasionando uma relação losóca estritamente técnica e prossional.
E, por essa razão, uma política de formação de professores-lósofos e profes-
soras-lósofas compreende um caminho possível para que, ainda dentro da
instituição, as práticas losócas permaneçam imanentes à vida daqueles e
daquelas que a praticam.
A força do terceiro capítulo está, pois, na forma como Rodrigues deslo-
ca um problema que pertencia mais fortemente à comunidade losóca mais
ampla e à preocupação desta com o aparecimento de lósofos e lósofas ori-
ginais no país, e o transforma em um problema educacional-losóco, típico
às discussões especícas do Ensino de Filosoa. Muitas pesquisas do escopo
da Filosoa Brasileira já denunciaram os imperativos técnicos nas práticas
losócas de pesquisa e de ensino, cujas referências o autor faz questão de tra-
zer à sua análise. Porém, ao invés de criticar a institucionalização da Filosoa,
como muitos fazem, o autor esboça uma alternativa que não abre mão da ins-
tituição educativa, tampouco do espaço da sala de aula. Dessa forma, surgem
em seu horizonte intelectual, uma Filosoa de Professores e Professoras e um
projeto de formação de lósofos e lósofas professores que, sem separar o lo-
sofar do educar, habita a instituição – resistindo aos imperativos técnicos em
nome de uma relação losóca mais visceral e, por conseguinte, mais vital.
Pelas razões expostas, sublinha-se a relevância do livro de Augusto
Rodrigues enquanto registro histórico da constituição discursiva do Ensino
14
de Filosoa como problema losóco e, como tal, crucial para as problemati-
zações do campo e seus desdobramentos losóco-educacionais. Vislumbra-
se que o texto ora prefaciado impactará na formação de novos quadros de
pesquisadores e pesquisadoras da área, assim como poderá ser usado como
literatura dos cursos de formação docente em Filosoa e, igualmente, como
fomento para a reexão e autoavaliação de professores e professoras em seu
ofício docente.
Toda a argumentação do autor é expressa em linguagem concomitan-
temente rigorosa e convidativa, fundamentada em um sólido e atualizado
referencial teórico, utilizado com originalidade, uma vez que intercala as
principais referências aos assuntos abordados com as singularidades de sua
própria trajetória de pesquisa e de formação, alinhavando-as com maturi-
dade intelectual e oferecendo um estilo de pensamento próprio ao livro. A
política losóca de ensinar e aprender que emerge e constitui o campo de
conhecimento abordado por Rodrigues acaba por contaminar e costurar as
práticas losócas do grupo de pesquisa ENFILO, narradas pelo autor, bem
como por perpassar sua própria prática docente. Em outras palavras, o pró-
prio exercício de uma Filosoa do Ensino de Filosoa debatido no texto faz a
cosedura das ideias que o leitor e a leitora encontram na obra. Nesse sentido,
entende-se que um dos principais méritos desta última é se propor a pensar
uma problemática própria, marcada pelas nuances e congurações da vida do
autor, mas cujos desdobramentos acabam por ressoar velhos e novos debates
tão presentes e tão caros à trajetória de pesquisadores e pesquisadoras do
Ensino de Filosoa.
Cabe ainda ressaltar que Augusto Rodrigues é um representante nato
da chamada 3ª geração do campo: aquela cujas pesquisas versaram, desde a
formação na Licenciatura, sobre a problemática do ensino e da aprendizagem
em Filosoa. Não à toa, a leitura da obra de Rodrigues, fruto de sua (desejável
e precoce) formação na literatura especíca do Ensino de Filosoa, permite a
mim, pesquisadora da 2ª geração que tive o privilégio de acompanhar grande
parte desse percurso e desfrutar de algumas ideias antes mesmo de adquirirem
forma escrita (obrigada, meu amigo, pelo aprendizado diário que sua com-
panhia propicia), pedir licença para sugerir um trocadilho com o título do
livro, como também a inversão do subtítulo anunciada no início do presente
15
prefácio: a partir das reexões sobre sua singular trajetória formativa, Augusto
Rodrigues oferece a nós – professoras pesquisadoras e professores pesquisado-
res – uma preciosa contribuição à subárea de pesquisa do Ensino de Filosoa.
E somos conduzidas e conduzidos, instigadas e instigados, página a página, a
prosseguir dialogando com o autor sobre o campo e, ao fazê-lo, colaborando
para sua plena consolidação.
Se no prefácio do primeiro livro de Rodrigues, Rodrigo Gelamo pro-
punha desfazer o aranzá, puxando os os da história e desatando seus nós
para enxergar o presente, nalizo o prefácio dessa segunda obra de fôlego de
Augusto na direção oposta: ainda que outros nós tenham sido desatados e
a narrativa histórica, reconstituída, ressignicando o presente, vislumbra-se
agora o futuro: a despeito do momento delicado (mas queremos crer, re-
versível) que vivenciamos do losofar nas escolas de todo o país, o processo
de consolidação do campo de conhecimento do Ensino de Filosoa parece
caminhar rmemente; e livros como os de Augusto Rodrigues são prova de
que o futuro da área, construído por essa 3ª geração de pesquisadores e pes-
quisadoras, é promissor. “Evoé, jovens à vista1!
Patrícia Del Nero Velasco
Junho, 2024
1 CHICO BUARQUE DE HOLANDA. Paratodos. BMG Ariola Discos Ltda, 1993.
17
Introdução
Este livro marca a conclusão de uma longa jornada de formação. Da
graduação ao doutorado, são doze anos dedicados à losoa, em especial à
sua dobra mais sensível a nós: o ensino de losoa. Nosso primeiro contato
com a temática ocorreu já no segundo semestre da graduação, quando fomos
bolsistas do Programa Institucional de Iniciação à Docência – PIBID. De lá
para cá, o ensino de losoa foi nosso principal alvo de pesquisa, talvez pelo
efeito da especialização universitária que, cada vez mais, afunila nossas expe-
riências de pensamento; mas também pela problematicidade que a formação
do professor de losoa sempre nos despertou. Não nos referimos às discus-
sões histórico-losócas sobre os ideais gregos ou modernos de formação, e
sim a uma investigação que questiona os processos inerentes ao nosso devir
formativo como professor de losoa.
Até o presente momento, o trabalho de maior fôlego que conseguiu
agenciar problematicamente essas inquietações foi nosso livro, intitulado Como
nos tornamos os professores que somos (Rodrigues, 2020). Nele, problematizamos
em que medida nossas práticas de ensinar e aprender losoa poderiam res-
soar heranças losócas cristalizadas na década de 1960 na USP, comumente
associada à recepção e transformação das lições de Martial Guéroult e Victor
Goldschmidt. O pré-projeto da presente pesquisa tinha como proposta dar
continuidade a essa investigação, de maneira a dobrar os efeitos dessa herança
de formação e alguns aspectos comuns da prática universitária de ensinar e
aprender losoa, que não tinham necessariamente relação com o horizonte
losóco dos franceses. Parte dessas reexões está neste livro, mas não como
proposta central. Isso porque, ao longo dos últimos anos, fomos atravessados
pelas investigações em torno do campo do Ensino de Filosoa.
Alguns momentos foram marcantes e serviram para chacoalhar nosso
projeto investigativo. Um primeiro deles aconteceu quando fomos indagados
18
pela profª. Elisete Tomazetti2, na banca de defesa de mestrado, sobre os auto-
res do ensino de losoa que nos ajudaram a problematizar nossas heranças
de formação. Interpretamos aquela indagação não como uma cobrança de
referências teóricas, mas como uma possibilidade de pensar naqueles que nos
davam condições de resistir às heranças instituídas em nossa formação de
professores de losoa na licenciatura da UNESP. Anal, será que podería-
mos reduzir o nosso devir formativo apenas às relações de ensinar e apren-
der losoa hegemônicas de nossa licenciatura? Talvez aquela tenha sido a
primeira vez que vislumbramos nossas heranças de formação para além do
conjunto de disciplinas presente em nossa rotina universitária e passamos a
nos perguntar sobre os efeitos da convivência, em nós, do Grupo de Estudo e
Pesquisa sobre o Ensino de Filosoa3 (ENFILO).
Um segundo momento foi a realização dos estágios de pós-doutorado
das profªs. Elisete Tomazetti e Patrícia Velasco4 no ENFILO. Essa convivência
foi extremamente frutífera, deixando-nos suas marcas. Provocados e inquietos
com as discussões sobre as produções acadêmicas do ensino de losoa, fomos
impelidos a reabrir uma pesquisa coletiva do grupo, da qual participamos ainda
no período de graduação, mas que aguardava novos direcionamentos.
2 Elisete Medianeira Tomazetti é professora Titular da Universidade Federal de Santa Maria;
possui uma rica trajetória na área do Ensino de Filosoa, seja na formação de professores, seja
na realização e orientação de novas pesquisas. Referência na área, suas produções e projetos
estão disponíveis no seu currículo lattes: https://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.
do;jsessionid=471B51D7F8495A387FF9B77A1FC7AE38.buscatextual_0
3 O ENFILO é um grupo de pesquisa sobre o ensino de losoa organizado, a princípio, de
maneira informal, entre os anos de 2009 e 2010. Para atender os anseios dos estudantes de
losoa, integrantes do PIBID e do projeto “Ensino de losoa em espaços não formais”,
Rodrigo Pelloso Gelamo e Vandeí Pinto Silva montaram um grupo de estudos e pesquisa para
debater os limites e as possibilidades de ensinar e aprender losoa na atualidade, friccionando as
experiências daqueles projetos com os estudos teóricos da área. Durante uma década, o grupo cou
institucionalizado como uma das linhas de pesquisa do Grupo de Estudos e Pesquisa Educação
e Filosoa (GEPEF). Com o passar dos anos, os estudos se distanciaram do eixo de pesquisas do
GEPEF e, ao nal de 2020, o grupo encontrou as condições objetivas para a sua concretização,
tornando-se credenciado e certicado no Diretório de Pesquisa do CNPq (http://dgp.cnpq.br/dgp/
espelhogrupo/2798619311968262.
4 Patrícia Del Nero Velasco é professora da Universidade Federal do ABC. Além de suas contribuições
ao campo do Ensino de Filosoa, também é a atual coordenadora do GT Filosofar e Ensinar a
Filosofar (2023-2024). Sua trajetória acadêmica se encontra disponível no site da CNPq: https://
buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do.
19
Referimo-nos à pesquisa nos periódicos de losoa e educação, cujo
objetivo era mapear o desenvolvimento e as principais preocupações que nor-
tearam as produções acadêmicas sobre o ensino de losoa no Brasil, no pe-
ríodo de 1934 a 2008. Essa pesquisa se inicia na tese de Gelamo (2009), em
que ele faz uma primeira versão desse mapeamento, e adquire novos contor-
nos em seus dois pós-doutorados5. Participamos dessa pesquisa por cerca de
três anos6 (2013-2016), através de nossa iniciação cientíca. E, apesar de seus
resultados não aparecerem diretamente como referência às nossas reexões,
eles nos guiavam intuitivamente, uma vez que nossa problematização carre-
gava um conjunto de reexões inseridas dentro das produções acadêmicas do
ensino de losoa, como parece ter identicado a profª. Elisete Tomazetti em
seus questionamentos. Posto de outra forma, nossas armações e problemas
pareciam capilarizar uma série de discursos que eram inerentes ao campo do
Ensino de Filosoa, mas que ainda não tínhamos consciência de quais eram
nossas relações com essas heranças.
Após essas percepções, o primeiro movimento da presente investiga-
ção versou na retomada das coletâneas, dossiês e alguns livros do ensino de
losoa escritos na primeira década do século XXI. Essa estratégia merece
algumas notas explicativas. Por que priorizar as coletâneas, dossiês e livros em
detrimento aos artigos de periódicos? Por que o século XXI e não as sete déca-
das do século XX, tal como era feito nos periódicos? Não obstante os artigos
sejam melhor avaliados cienticamente e terem sido um dos principais meios
de produção acadêmica desde a instituição da losoa universitária no país,
na década de 1930, era-nos nítido, após os anos de pesquisa sobre a produ-
ção teórica presente nos periódicos, que os estudos mais próximos de nossos
projetos de pesquisa no ensino de losoa se encontravam nas coletâneas e
nesse período dos anos 2000. Nelas, encontramos uma série de textos, de au-
tores e uma conjuntura contextual que se aproximavam com as indagações e
5 Em 2009/2010, Gelamo realiza seu primeiro pós-doutorado na UNICAMP, sob a supervisão
de Sílvio Gallo: “Um estudo sobre algumas perspectivas do ensino de losoa no Brasil”. Em
2012/2013, faz o pós-doutorado na USP, supervisionado por Celso Faveretto: “Um estudo sobre a
recepção do debate sobre o ensino de losoa no Brasil”.
6 Um estudo sobre a produção teórica do ensino de losoa com crianças, Augusto Rodrigues,
2013 (Processo 25629, PIBIC/CNPq, Renovação), 2014 (Processo 30946, PIBIC/CNPq) 2015.
[Processo 33393, PIBIC/CNPq, Renovação].
20
problematizações feitas pelo ENFILO. Não sabíamos ainda os porquês7, po-
rém nossas intuições eram sucientes para fortalecer nossa estratégia inicial8.
Em nossas primeiras experimentações, procuramos identicar possí-
veis ressonâncias entre a nossa forma de encarar os problemas do ensino de
losoa com outros pesquisadores. No ENFILO, o ensino de losoa é um
problema da ordem losóca, embora sempre houvesse muita resistência no
curso em relação a essa abordagem. Como será que outros pesquisadores en-
caravam essa relação losóca? Foi o que nos perguntamos ao estudar as co-
letâneas, os dossiês e alguns livros.
Dessa primeira investida, emerge uma intuição problemática que
nos move na presente pesquisa. Aproveitando as circunstâncias históricas
do ENFILO, que completava uma década de pesquisa em 2020, organiza-
mos uma coletânea, Percepções sobre o ensino de losoa (Rodrigues; Gelamo,
2021d), cujo objetivo central era debater, coletivamente, as nossas pesquisas,
registrar nossas percepções losócas em relação ao ensino de losoa cons-
truídas até aquele momento e tornar público os movimentos teóricos e polí-
ticos que marcaram os 10 anos de existência do grupo. Esse projeto foi muito
importante, por um lado, para mapear e tomar contato com a trajetória his-
tórica de boa parte das pesquisas do ENFILO, na tentativa de, ao encontrar
alguns pontos em comuns, identicar heranças das produções acadêmicas do
ensino de losoa no Brasil. Por outro lado, ensaiamos uma aproximação de
um projeto político-losóco de ensinar e aprender losoa do grupo, que
mostrava uma convergência entre as reexões do campo e as lutas locais do
curso de losoa da UNESP.
Em nossa contribuição para o livro, o capítulo, Ensinar e aprender -
losoa como problema losóco: a emergência de um projeto político-losóco
na UNESP (Rodrigues; Gelamo, 2021a), exploramos como a criação da dis-
ciplina Questões da Filosoa e seu Ensino ressoava alguns movimentos polí-
ticos inerentes ao campo de pesquisa do ensino de losoa no Brasil e aos
7 As coletâneas desempenham um papel fundamental para a emergência do campo do Ensino de
Filosoa. O contexto histórico que justica isso será mostrado na segunda seção do primeiro capítulo.
8 Importante dizer, até como forma de agradecimento, que a realização material da tarefa não foi tão
complicada, graças às preocupações das pesquisas do ENFILO que já disponibilizavam às nossas
mãos quase a totalidade do material, sem o qual dicilmente nos aventuraríamos a experimentar
nossas novas hipóteses.
21
movimentos críticos à formação losóca, feitos pelos estudantes e alguns
professores do curso, como é o caso do prof. Trajano9.
Nossa leitura indica que a constituição da disciplina ressoa, por um lado,
um acontecimento mais amplo do cenário brasileiro relacionado com a
construção de um projeto político-losóco para pensar losocamente
os problemas do ensino de losoa, e, por outro lado, os caminhos críti-
cos já abertos localmente na UNESP por aqueles que questionavam a for-
mação universitária brasileira de losoa e, consequentemente, de nosso
curso, como é o caso do professor Antonio Trajano Menezes de Arruda
(Rodrigues; Gelamo, 2021a, p. 90).
Em 2013, essa disciplina foi criada com objetivo de permitir um espa-
ço losóco de pensamento em que se problematizam as práticas de ensinar e
aprender losoa. No entanto, ela não foi simplesmente aceita pelos docentes
do curso, que questionavam como aquela proposta destoava dos cânones da
tradição losóco-universitária dos cursos mais respeitados do país. Apesar
disso, observamos que a recusa e a despretensão de pensar losocamente
essas questões não expressavam algo exclusivo ao curso da UNESP ou estrita-
mente alguma querela entre o corpo docente. Tais posicionamentos expõem,
na verdade, um panorama nacional enfrentado, quase que hegemonicamen-
te, nos diferentes cursos brasileiros de losoa. Ora, as reexões losócas
sobre o ensino de losoa no país, sintomaticamente, não encontram espaço
na grande maioria dos departamentos e pós-graduação em losoa no país.
Escrevemos, na época, que essa visão empobrecida dos problemas do ensino
de losoa foi enfrentada e adquiriu força, principalmente, na passagem da
década de 1990 e início dos anos 2000, momento em que uma série de pro-
fessores de losoa tentou resistir a essa tendência universitária e abrir um
novo território de investigação na losoa.
Um aprofundamento daquela intuição problemática deu-se por inter-
médio de nossa participação, em 2021, na subcomissão do GT Filosofar e
Ensinar a Filosofar10, criada com a intenção de discutir o estatuto epistemo-
9 Antonio Trajano Menezes Arruda foi professor do curso de losoa da UNESP desde a década de
1970 até os anos 2000. Embora as citações de seus trabalhos sigam as normas ABNT, gostaríamos
de referenciá-lo, no decorrer do texto, como prof. Trajano, tal como ele era conhecido no curso.
10 Compuseram a subcomissão os professores Américo Grisotto, Augusto Rodrigues, Darcísio
22
lógico do campo, fomentar iniciativas na área e viabilizar caminhos para a
institucionalização das pesquisas do ensino de losoa como uma área reco-
nhecida pelas agências de fomento à pesquisa do país11. Partíamos das inquie-
tações emergidas da pesquisa de pós-doutorado de Velasco, “A constituição
do Ensino de Filosoa como campo de conhecimento: mapeamento da área
na década de 2008 a 2018”, e sentimo-nos provocados a olhar como aque-
les movimentos acadêmicos do século XXI possibilitaram uma virada dis-
cursivo-losóca nas pesquisas do ensino de losoa, de maneira a gerar os
contornos de um campo do Ensino de Filosoa, tendo efeitos em diferentes
grupos de pesquisa, inclusive no nosso. Assim, no artigo Ensino de Filosoa:
notas sobre o campo e sua constituição (Rodrigues; Gelamo, 2021b), nosso in-
tuito foi mostrar como uma virada discursivo-losóca torna-se importante
para entender algumas condições das pesquisas contemporâneas do ensino de
losoa, pois ela parece criar uma identidade disciplinar de pensamento, que
xou a condição losóca das pesquisas e das práticas de ensinar e aprender
losoa. Essa característica disciplinar expressa uma nova política de ensinar
e aprender losoa, uma disputa política pelo saber que se associa à invenção
discursiva de uma losoa do ensino de losoa, e que não deixa de ressoar em
nós, do ENFILO.
Esses eventos nos deslocaram, pouco a pouco, de nossa antiga pro-
blemática (Rodrigues, 2020), na qual nos apoiamos para dar o primeiro ar-
ranque na presente pesquisa, pelo menos nos termos iniciais que elas eram
postas. De fato, ainda nos inquieta quais são as heranças de formação que
inuenciam nossas práticas de ensinar e aprender losoa. De certa forma,
a questão dos porquês nós ensinamos e aprendemos losoa de determina-
da maneira e não de outra continua a valer, porém, o acento problemático
se altera parcialmente, adquirindo outra amplitude investigativa. Nossa pro-
blematização já não se restringe às práticas de ensinar e aprender losoa
instituídas no curso de losoa da UNESP. Incomoda-nos, agora, como o
Muraro, Felipe Pinto, Flávio Carvalho, Jéssica Erd Ribas, Lara Sayão, Leoni Henning, Marcos von
Zuben, Patrícia Velasco, Rodrigo Gelamo e Taís Pereira. Ao todo, realizamos cerca de 11 reuniões
de fevereiro a novembro.
11 Detalhes desses acontecimentos estão presentes em nosso artigo: Filosoa do Ensino de Filosoa:
o debate da cidadania-losóca a partir dos movimentos histórico-discursivos do campo (Rodrigues;
Velasco; Gelamo, no prelo).
23
campo do Ensino de Filosoa nos lega também uma herança de formação,
que inuencia em nossa maneira de ensinar e aprender losoa, por um lado,
e de pesquisar na área, por outro. A questão que nos colocamos pode ser as-
sim formulada: como a nossa convivência no ENFILO e, indiretamente, com
o campo do Ensino de Filosoa, dentro do contexto do curso de losoa da
UNESP, produz, em nós, uma relação singular de ensinar e aprender losoa
e de pesquisar o ensino de losoa?
Nesse sentido, nosso objetivo é problematizar como a convivência
no campo do Ensino de Filosoa e no curso de licenciatura de losoa da
UNESP, pela nossa trajetória no ENFILO, permite, por um lado, a emergên-
cia de uma forma especíca de pesquisar o ensino de losoa, perspectivado
principalmente como um problema losóco, e, por outro lado, faz valer
uma forma de ensinar e aprender losoa em que a experimentação lo-
sóca seja uma possibilidade para professores e estudantes em sala de aula.
Acreditamos que as heranças do campo e de nossa formação de professores
da UNESP são recepcionadas dentro do ENFILO e se reinventam como uma
prática ético-formativa que emerge como resistência a um disciplinamento
moral, de cunho teórico-prático, e se faz imanente à vida, possibilitando que
o losofar esteja presente tanto na maneira de pesquisar, bem como no que
diz respeito às relações educativas.
Para tanto, dividimos a presente investigação em três capítulos. O pri-
meiro, O campo do Ensino de Filosoa: heranças de formação, retoma como o
campo do Ensino de Filosoa tornou-se um problema coletivo para a comu-
nidade de pesquisadores da área na contemporaneidade e como essa pesquisa
se insere nessa problemática desde a emergência de uma política losóca de
ensinar e aprender losoa. Na primeira seção, fazemos um panorama das
iniciativas em torno do campo e perspectivamos o nosso problema: como
as heranças do campo ressoam em nossas práticas de pesquisa e de ensinar e
aprender losoa? Na segunda seção, nossa ideia é mostrar como as movi-
mentações do início do século XXI em torno do ensino de losoa implicam
na construção de uma nova política losóca que transforma o ensino de
losoa em objeto de pesquisa losóca e resgata as virtualidades educativas
da tradição losóca. Para encerrar o capítulo, sinalizamos como esse movi-
mento acadêmico, ao reivindicar, simultaneamente, o retorno da losoa à
24
educação básica como disciplina obrigatória e a abertura de um campo de
pesquisa no assunto, proporcionou uma virada discursivo-losóca nas pro-
duções acadêmicas da área.
O segundo capítulo, O Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de
Filosoa e sua política losóca de ensinar e aprender losoa: heranças do
campo, expressa as condições de emergência do ENFILO e o sentido de sua
maneira de ensinar, aprender e pesquisar losoa. Na primeira seção, con-
textualizamos a criação do ENFILO em relação às pesquisas em Filosoa
da Educação. Na segunda, investigamos como o grupo recepciona a virada
discursivo-losóca na forma de pesquisar o ensino de losoa e se posiciona
em resistência à moral pedagógica e losóca de pesquisa. Na terceira seção,
restituímos as críticas do grupo às práticas educativo-losócas no registro da
transmissão de conhecimentos. E, na última seção do capítulo, abordamos a
possibilidade de uma virada ética nas práticas de ensinar, aprender losoa e
de pesquisar o ensino de losoa.
O terceiro capítulo, Da cisão do losofar das práticas educativo-losócas
às projeções de uma losoa de professores: heranças de formação losóca
na era prossional da losoa, aborda como a política losóca de ensinar e
aprender losoa do ENFILO, ou sua losoa do ensino de losoa, só se faz
possível, de um lado, como resistência à formação histórico-losóca no cur-
so de licenciatura da UNESP e, de outro lado, recebe as inuências do pro-
jeto losóco de formação de lósofos do prof. Trajano. Na primeira seção,
mostramos como as disciplinas histórico-losócas comuns ao bacharelado e
à licenciatura do curso de losoa da UNESP se tornam heranças losócas
de formação. Na segunda, analisamos o problema de nossa formação a partir
de algumas hipóteses explicativas locais que apontam a proveniência dessas
heranças em contexto nacional. Na terceira seção, problematizamos como
essas heranças de formação se instituem como uma condição da losoa uni-
versitária e do ofício do scholar, reduzindo a atuação losóca às práticas de
leitura e comentário de textos. Na última seção, estabelecemos uma tensão
face à conjuntura do ensino de losoa na universidade e o curso de losoa
da UNESP, criticando como uma narrativa institucional de formação losó-
ca cinde o losofar das práticas de ensinar e aprender losoa. Em seguida,
resgatamos as críticas do prof. Trajano a essas heranças de formação e sua
25
política de formação de lósofos dentro da universidade, com o intuito de
indicar como elas se presenticaram no ENFILO e estão em consonância
com parte das reivindicações do campo do Ensino de Filosoa.
27
Capítulo 1.
O campo do Ensino de Filosoa:
heranças de formação
Neste capítulo, nosso objetivo é apresentar o problema da pesquisa e
sua relação ética com os recentes debates no campo do Ensino de Filosoa.
Para tanto, desenvolvemos três seções. Na primeira, resgatamos parte da his-
toricidade recente de discussão em torno do campo do Ensino de Filosoa
no Brasil, sua frente político-institucional e político-losóca, mostrando
como a relação que estabelecemos com tal problemática se realiza especial-
mente no âmbito ético, isto é, questionamos como as heranças do campo do
Ensino de Filosoa ecoam em nossa forma de pesquisar na área do ensino de
losoa e em nossas práticas de ensinar e aprender losoa. Já na segunda
seção, resgatamos alguns acontecimentos da década de 1990 e da primeira
década de 2000, emergentes da discussão em torno do retorno da losoa
à educação básica, a m de destacar a invenção de uma política losóca de
ensinar e aprender losoa. Consideramos essa política losóca, intitulada
muitas vezes como uma losoa do ensino de losoa, fundamental para que
o ensino de losoa fosse encarado como um problema de ordem losóca,
deslocando-o de seu lugar tradicional de pensamento restrito ao pedagógico,
bem como para atualizar as virtualidades educativas do losofar, problemati-
zando a separação contemporânea do professor de losoa e do lósofo. Na
última seção, ao retomarmos a relação dessa nova política losóca de ensinar
e aprender losoa face aos movimentos acadêmicos ocorridos na passagem
do século XX e XXI, diferenciamos as movimentações em prol da cidadania-
-curricular e da cidadania-losóca ao ensino de losoa. Ressaltamos como
essa política losóca, sem deixar de reivindicar a cidadania-curricular para
28
a losoa no rol de disciplinas obrigatórias do currículo, emerge, sobretudo,
como uma cidadania-losóca ao ensino de losoa, tornando-se fundamen-
tal, de um lado, para impulsionar a criação do campo do Ensino de Filosoa,
e, de outro lado, para outorgar uma virada discursivo-losóca nas práticas
teórico-educativas do ensino de losoa, reterritorializando o ensino de lo-
soa na próprio terreno da losoa.
1.1. O campo do Ensino de Filosoa em questão:
onde estão nossas raízes?
A presente escrita-pensamento ocorre em um momento singular para
aqueles que se dedicam à pesquisa do ensino de losoa no Brasil. Vemo-nos
como parte de uma geração de pesquisadores que, diferentemente de outras
épocas, formou-se dentro de um corpus disciplinar e de uma literatura espe-
cíca à área, no convívio com os grupos de estudos e pesquisas que, a despeito
de todas as diferenças, compartilham e disputam um território em comum: o
campo do Ensino de Filosoa.
O campo do Ensino de Filosoa é uma condição academicamente re-
cente. Seus contornos e seu projeto são elaborados há mais de duas décadas. É
possível vislumbrar, ao menos, três gerações que integram e colaboram entre
si para a sua constituição. Pertencem à 1ª geração os pesquisadores e professo-
res que participaram dos movimentos iniciais de criação do campo no início
dos anos 2000. Lutaram por sua cidadania-losóca, isto é, pela criação de
um novo campo de pesquisa e/ou estudos losócos, realizaram orientação
e escreveram suas teses e dissertações sobre o assunto, organizaram eventos e
publicações, enm, investiram todo um capital acadêmico para construção
dos contornos de um campo ainda inexistente naquela época no país. São
prossionais, na maioria dos casos, oriundos da losoa da educação, ou que
são formados dentro dessa área.
Compõem a 2ª geração os pesquisadores e professores que se envol-
vem com a temática em razão do retorno da losoa à educação básica em
2008. Não só professores de losoa que, ao atuarem regularmente na escola,
dedicam-se academicamente à temática, como também professores universi-
tários que, em virtude das demandas dos cursos de licenciatura de losoa,
adotam os problemas do ensino de losoa e da formação de professores.
29
Aliás, muitos professores e pesquisadores, por exemplo, são contratados para
ministrar disciplinas da licenciatura e, daí em diante, iniciam-se academica-
mente no assunto.
Integram a 3ª geração aqueles que são formados por essas duas gerações,
diretamente ou indiretamente. Isto é, que são constituídos e cultivados dentro
de um campo com literatura e questões próprias, sob a inuência de grupos de
pesquisas longevos. São herdeiros de práticas, projetos, concepções, conceitos e
de pressupostos que marcam suas formas de ensinar e aprender losoa, bem
como de pesquisar dentro do campo do Ensino de Filosoa. Esse é o nosso
caso: pertencemos à 3ª geração. Fomos bolsistas PIBID entre os 1º e 2º anos
do curso de Filosoa na UNESP (2012-2013). Fizemos iniciação à pesquisa
na temática do ensino de losoa, especicamente sobre a produção teórico-
-discursiva nos periódicos de losoa e educação, nos anos de 2013 a 2016.
Dedicamo-nos não só a pesquisa de mestrado12 (2017-2019), mas também a de
doutorado ao ensino de losoa13 (2020-2024), ambas realizadas no programa
da pós-graduação em educação, na linha de losoa da educação.
Não reforçamos esse vínculo para legitimar e dar autoridade à nossa
escrita; almejamos apenas perseguir problematicamente alguns signos que
foram gerados em nosso encontro com as discussões recentes do campo do
Ensino de Filosoa, perspectivando, assim, o lugar a partir do qual escreve-
mos. Quando analisamos ao que nos dedicamos no decorrer dos últimos anos
oriundos à presente pesquisa, parece-nos coerente armar que o campo do
Ensino de Filosoa foi uma de nossas principais preocupações. Ele atravessou
nossa trajetória de pesquisa e nos forçou a adentrar, sob a nossa perspectiva,
em uma problemática coletiva.
Se é possível dizer que o campo do Ensino de Filosoa é um fenôme-
no ainda recente, mais recente ainda são as pesquisas e os debates sobre o
12 A dissertação está no Repositório Institucional da UNESP. Disponível em: https://repositorio.
unesp.br/items/5889cfeb-8c47-4698-a9b0-a1e43cde419c. Acesso: 17 out 2023. Ela foi publicada
em livro pela editora Cultura Acadêmica: Como nos tornamos os professores que somos (Rodrigues,
2020). Disponível em: https://books.scielo.org/id/swrsv. Acesso: 13 mar. 2024. O texto conta com
algumas modicações, além de um prefácio, Desfazer o aranzá: um exercício espiritual de puxar os os
da história e desatar os seus nós para enxergar o presente, escrito por Rodrigo Gelamo (2020).
13 A tese, Heranças político-losócas de ensinar e aprender losoa: do campo do Ensino de Filosoa à
trajetória formativa na UNESP, também se encontra no Repositório Institucional da UNESP.
30
assunto. Só nos últimos anos que o campo adquire certa ressonância teórica
entre os pesquisadores da área. Em outubro de 2021, por iniciativa do GT
Filosofar e Ensinar a Filosofar, a ANPOF – Associação Nacional de Pós-
Graduação em Filosoa – realizou um mês14 dedicado ao Ensino de Filosoa.
Entre as discussões sobre as condições do ensino de losoa na Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) e da apresentação de parte das ações e pesquisas
da área, a comunidade losóca foi provocada a pensar a necessidade da ins-
titucionalização do Ensino de Filosoa como subárea acadêmica da Filosoa.
Patrícia Velasco, em nota emitida no Boletim da ANPOF, escreve para con-
textualizar a problemática: “Em que medida as pesquisas realizadas na pós-
-graduação brasileira permitem atestar a existência de um campo losóco
autônomo intitulado Filosoa do Ensino de Filosoa?” (Velasco, 2022, p. 4).
O mês, intitulado “Ensino de Filosoa: por uma cidadania losóca do cam-
po”, tornou público a outros participantes da comunidade losóca brasileira
o emergente debate sobre o campo do Ensino de Filosoa, especialmente sob
a reivindicação de participação efetiva do Ensino de Filosoa nas linhas dos
programas de pesquisa em losoa e seu reconhecimento, pelas agências de
fomento, como subárea da pesquisa losóca brasileira15.
Em um texto escrito para a ocasião, Filosoa do Ensino de Filosoa: por
uma cidadania-losóca (Rodrigues; Gelamo, 2022), analisamos a singulari-
dade daquelas reivindicações face ao desenvolvimento histórico das pesquisas
do ensino de losoa no Brasil. Ora, os problemas do ensino de losoa não
costumam estar listados ou serem qualicados como um problema losóco
14 Conferir o Boletim Especial - Ensino de Filosoa: por uma cidadania losóca do campo.
Disponível em: https://anpof.org/comunicacoes/boletim/boletim-especial-ensino-de-losoa-
por-uma-cidadania-losoca-do-campo. Acesso: 26 de set 2023. As produções referentes ao mês
foram posteriormente publicadas em uma seção especial na Revista Digital de Ensino de Filosoa.
Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/relo/article/view/69947/47567. Acesso: 27 jan. 2024.
15 Pensar o campo e lutar pelo seu reconhecimento como subárea da losoa acadêmica, no registro
do mês da ANPOF, foram iniciativas de uma subcomissão do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar.
Conferir a nota 6 do presente trabalho. Destacamos como ação de maior repercussão a realização
da mesa “Ensino de Filosoa como campo de conhecimento: revendo o cânone losóco”, com
participação de Patrícia Velasco, Paulo Margutti Pinto e Sílvio Gallo. Além dela, alguns integrantes
da comissão escreveram textos de participação no fórum “Cânone – uma proposta de debate”: “O
ensino de losoa em números”, de Patrícia Velasco, e “Filosoa do ensino de losoa: por uma
cidadania-losóca, de Augusto Rodrigues e Rodrigo Pelloso Gelamo.
31
pela losoa acadêmica brasileira. São raros os programas de pós-graduação
em losoa que acolhem, em suas linhas de pesquisa, os projetos que proble-
matizam losocamente as experiências, as relações e as práticas de ensinar e
aprender losoa, seja na educação básica ou mesmo na universidade. É bem
verdade que, a partir da criação recente de dois mestrados prossionalizantes16,
a situação altera-se parcialmente, de modo que muitos professores de losoa,
que desejam fazer o mestrado em losoa, assim o façam. No entanto, aque-
les que pretendem cursar mestrado e doutorado acadêmico sobre o tema, ou
mesmo os pesquisadores que querem um lugar institucional para implementar
e continuar suas pesquisas, necessitam encontrar programas de pós-graduação
em outras áreas, ou, quando possível, modelar seus projetos de tal modo a se
adequarem às linhas de pesquisa já consolidadas nos programas de losoa.
Nesse sentido, o entrelugares se revela, se não a principal, uma das
características das produções acadêmicas do ensino de losoa no Brasil.
Historicamente, essas produções ocorrem nas frestas institucionais da área
da losoa e da educação. Dentre as duas áreas, aquela que hegemonica-
mente acolheu as demandas das pesquisas sobre o tema, e ainda permanece
uma de suas principais aliadas, foi a losoa da educação, a qual, por razões
históricas, está liada à área da educação, como parte dos fundamentos da
educação. Seja diante da indenição do lugar dos conhecimentos losócos
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, ou mesmo após
o retorno obrigatório da losoa como disciplina do currículo da educação
básica, a losoa da educação atendeu às demandas de muitos professores de
losoa que queriam realizar pesquisas sobre o ensino de losoa. E tal fato
possibilitou que as inquietudes de diversos professores de losoa fossem
transformadas em uma pesquisa acadêmica, de maneira a construir, paulati-
namente, novos quadros de pesquisadores, para os quais o ensino de losoa
se tornou o eixo central de pesquisa e não apenas uma produção colateral,
efeitos de discussões e debates circunstanciais.
Por vezes, ainda que não existisse muita abertura dos programas de
pós-graduação em losoa para esses mesmos professores, foi possível, em
alguns casos, forçar os limites institucionais e se inltrar nas frestas ainda não
16 Programa de Pós-Graduação em Filosoa e Ensino (PPFEN), do CEFET/RJ, em 2015, e o
Mestrado Prossional em Filosoa (PROF-FILO), em rede nacional, em 2017.
32
ocupadas nos campos tradicionais da losoa acadêmica – ao exemplo da teo-
ria do conhecimento, ética, estética, losoa política e até história da losoa –,
desenvolvendo, marginalmente, a temática. Até porque, ao contrário daquilo
que é muitas vezes pressuposto por muitos pesquisadores, cursos universitários
e programas de pós-graduação em losoa, as tensões que irrompem do ensino
de losoa como problemática de pesquisa ressoam e invocam os problemas
mais tradicionais dos diversos campos da losoa acadêmica.
O que nós, enquanto pesquisadores do ensino de losoa, indagamos
naquele momento de discussão no mês da ANPOF foi: será que aqueles que
desejam pesquisar losocamente o ensino de losoa necessitam continuar
a se adequar às frestas institucionais e às dinâmicas dos campos de losoa
e losoa da educação? Depois de décadas entre as áreas e entre os campos,
as pesquisas do ensino de losoa já não teceram sucientemente os contor-
nos epistêmicos, políticos, éticos e estéticos imprescindíveis que as qualicam
como um campo de conhecimento ou subárea autônoma da losoa? As
produções acadêmicas de ensino de losoa não alcançaram a quantidade e
qualidade sucientes, desenvolveu novos quadros de pesquisadores e meca-
nismos próprios de divulgação cientíca do saber, de modo a criar um campo
autônomo, isto é, um campo do Ensino de Filosoa?
Essas reivindicações têm um caráter político-institucional, uma vez que
procuram mobilizar, academicamente, uma bandeira de luta pela cidadania-
-losóca ao ensino de losoa – a qual, no caso, pode ser descrita como
um jogo entre os acadêmicos que disputam entre si para esgarçar os limi-
tes-identitários do campo da losoa no Brasil, a m de adquirir os direitos
institucionais que as subáreas mais tradicionais da losoa já possuem. Assim
escreve Velasco:
[...] qual a necessidade dos pesquisadores e pesquisadoras da área do
Ensino de Filosoa pleitear o reconhecimento institucional? A nosso ver,
a resposta é um tanto óbvia: o acesso do(a)s prossionais da área a recursos
e bolsas de pesquisa, assim como a uma situação mais justa nas situações
de avaliações de nossos trabalhos pelos pares. Não podemos car reféns da
simpatia do(a)s pareceristas; temos o direito de ser avaliados por pesqui-
sadoras e pesquisadores que efetivamente conhecem a área. Um projeto
de História da Filosoa não é avaliado por um pesquisador de Lógica
ou Epistemologia, certo? Por que deveríamos ser então avaliado(a)s pelas
33
outras subáreas da Filosoa? São inúmeros casos de colegas que tiveram
seus projetos ou artigos recusados não por demérito acadêmico, mas por
não serem considerados do escopo da Filosoa. Perguntamo-nos: de qual
Filosoa? (Velasco, 2021b, p. 43).
Embora seja coletiva, essa frente político-institucional do debate se ini-
cia a partir da pesquisa de pós-doutorado de Patrícia Velasco. Sua pesquisa,
A constituição do Ensino de Filosoa como campo de conhecimento: ma-
peamento da área na década de 2008 a 2018”, realizada em 2019 sob super-
visão de Rodrigo Gelamo, analisa o estado da arte das produções acadêmicas
do ensino de losoa no Brasil, pelo recorte dos integrantes do GT Filosofar
e Ensinar a Filosofar. Velasco defende que as produções acadêmicas do ensi-
no de losoa não são mais efeitos colaterais ou fenômenos esporádicos que
surgem e desaparecem conforme exigências determinadas, e sim expressam os
resultados de pesquisas realizadas sistematicamente que passam a constituir
“[...] um campo epistemológico e prossional autônomo” (Velasco, 2022, p.
4), produtor de conhecimentos e práticas sociais próprios.
Não obstante os dados apresentados por Velasco estejam delimitados
aos membros do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, suas indicações não dei-
xam de ser signicativas à realidade brasileira. Isso porque são extraídas de
um GT composto por uma série de grupos de estudos e pesquisas, de diferen-
tes regiões do país, que assumem, regularmente, o ensino de losoa como
problema losóco de pesquisa. Nas palavras de Velasco, trata-se de literatura
produzida por pesquisadores que há muito tempo “[...] assumiram o ensino
de losoa como problema de investigação, dedicam-se ao tema com regula-
ridade e defendem, em sua grande maioria, que não basta saber Filosoa para
ensiná-la” (Velasco, 2020, p. 525).
Um pouco da história do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar indica as
pretensões do grupo. Criado em 2006, o GT faz parte de um projeto po-
lítico-losóco de construção de um espaço comum entre os professores e
pesquisadores do ensino de losoa no Brasil, a m de pensar losocamente
o ensino de losoa. Ao organizar as forças e as potencialidades investiga-
tivas dispersas no país, imaginava-se fortalecer a emergência do campo do
Ensino de Filosoa. No primeiro relatório do GT, Walter Kohan, coordena-
dor, escreve:
34
A criação do grupo de trabalho “Filosofar e Ensinar a Filosofar” é resultado
de um longo processo durante o qual diversas pessoas contribuíram para
explicitar à ANPOF sobre a importância do reconhecimento de um grupo
que trabalhe essa temática e, desta maneira, incorporasse como legitima-
mente losóca uma área de trabalho crescente no Brasil e no mundo. [...]
Como qualquer outro grupo que efetivamente propõe pesquisar e discutir
as temáticas que lhe dão nome, não se limitando à mera reprodução de
teses já conhecidas ou à adoção de procedimentos ou metodologias já
prontas, pretendemos potencializar as forças hoje dispersas sobre o ensino
de Filosoa nos Programas de Pós-Graduação das Universidades do Brasil
para contribuir com um debate em crescente consolidação e expansão.
A função do grupo não será a de servir de amplicador ou reprodutor
das doutrinas sobre o ensino de losoa, mas reetir com criticidade e
originalidade sobre questões fundamentais desta área. Em outras palavras,
desde uma perspectiva losóca sobre o ensino de Filosoa, este GT, em
formação, propõe-se a criar e fortalecer um espaço potencializador das di-
versas formas de produção na área (Kohan, 2006, p. 1-2 – grifos nossos).
As projeções que agenciam a organização do GT Filosofar e Ensinar
a Filosofar parecem concretizar-se. Atualmente, o GT é um dos principais
pontos estratégicos para incluir e fortalecer as relações entre losoa e en-
sino no registro das pesquisas losócas brasileiras. Os estudos de Velasco
e sua participação ativa na área mostram, ao comparar quantitativamente a
produção e os acontecimentos acadêmicos17 em um recorte analítico de duas
décadas (1997-2007 e 1998-2008), que, ao se expandir e fortalecer, o grupo
de trabalho da ANPOF “[...] Filosofar e Ensinar a Filosofar inclui denitiva-
mente as relações entre Filosoa e Ensino no escopo das pesquisas losócas
desenvolvidas no Brasil – consolidando-se uma subárea de conhecimento
(Velasco, 2020, p. 526). A exemplo do que acontece nos diferentes campos
17 O retorno da losoa à grade curricular obrigatória da educação básica, o aparecimento de
programas de aperfeiçoamento e valorização da formação de professores, a criação dos dois mestrados
prossionais, PROF-FILO e PPFEN/CEFET/RJ, a organização periódica de eventos nacionais,
de coleções de livros, dossiês e o estabelecimento de revistas especícas ao ensino de losoa –
Revista NESEF Filosoa e Ensino (UFPR), Revista Digital de Ensino de Filosoa (UFSM) e a
Revista Estudos de Filosoa e Ensino (CEFET – RJ), são condições institucionais e acadêmicas que
ajudaram, concomitantemente, ao desenvolvimento do campo do Ensino de Filosoa. Parte dessa
análise se encontra em Velasco (2020), mas parte atualizada está em nosso texto, anteriormente
mencionado (Rodrigues; Velasco; Gelamo, no prelo).
35
da losoa, isto é, a losoa política, ética, estética, epistemologia – cujas
pesquisas são reconhecidas institucionalmente como subáreas –, encara-se
o ensino de losoa como um objeto e problema de investigação losóca.
Cria-se, assim, uma “[...] Filosoa do Ensino de Filosoa, subárea de conhe-
cimento de cunho losóco que toma para si as reexões e os fundamentos
teóricos e os pressupostos do referido ensino” (Velasco, 2019, p. 79-80).
Nesse sentido, de tanto as produções acadêmicas e seus respectivos pro-
dutores habitarem as frestas, de ocuparem os terrenos e espaços concedidos
pela losoa e educação, os diferentes grupos conseguiram forçar e alargar os
limites epistêmicos, estéticos, políticos e éticos da losoa acadêmica brasilei-
ra. Utilizando o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar como núcleo agenciador,
os diversos grupos de pesquisadores elaboraram um espaço para realização de
pesquisas losócas que territorializam, dentro da própria comunidade aca-
dêmica losóca, novos conteúdos, objetos e problemáticas. Em outras pa-
lavras, esses pesquisadores se apropriaram-se das ferramentas losócas, em
consórcio e transversalidade com as ferramentas educacionais, para pensar as
questões emergentes das práticas de ensinar e aprender losoa.
Mesmo assim, a comunidade losóca brasileira, em sua grande maio-
ria, evita reconhecer a evolução acadêmica das pesquisas sobre o ensino de
losoa, seja por uma política de pensamento da losoa no Brasil, que,
historicamente, não associa a problemática do ensino de losoa e da edu-
cação losóca ao rol da das problemáticas genuínas da área, seja ainda por
uma política-institucional, cuja abertura implicaria em dividir e disputar o
espaço institucional com outros pares. No entanto, os pesquisadores do en-
sino de losoa, que juntam suas forças e se organizam em uma frente po-
lítico-institucional pelo campo do Ensino de Filosoa, não buscam apenas
um reconhecimento teórico às pesquisas do campo do Ensino de Filosoa;
querem, sobretudo, garantir que, como um campo autônomo, suas pesquisas
e projetos acadêmicos possam ser também acolhidos e potencializados pela
totalidade dos mecanismos institucionais do país, que dão condições para o
desenvolvimento das pesquisas acadêmicas.
Ao nal do mês da ANPOF, essa frente político-institucional de pesqui-
sadores do ensino de losoa elabora um “Manifesto em defesa da Filosoa
do Ensino de Filosoa como subárea de pesquisa losóca”. A tese que o
36
perpassa versa sobre a evolução acadêmica das produções sobre a losoa e seu
ensino no Brasil, cuja ocorrência acontece nas duas primeiras décadas do século
XXI e tem como marco o I Congresso Brasileiro de Professores de Filosoa.
De lá para cá, arma-se que o Ensino de Filosoa se constitui como campo de
pesquisa losóca, autônomo e prossional, tendo em vista toda a criação e
estabilização do aparato acadêmico institucional necessário ao funcionamento
da pesquisa losóca – criação de revistas especializadas na área, criação de
dois mestrados prossionais e desenvolvimento signicativo de pesquisas de
mestrado e doutorado em diferentes programas de pós-graduação, publicação
vasta de artigos acadêmicos e capítulos de livros, diversicação dos núcleos de
pesquisas espalhados por todo o território brasileiro. Os dados, inicialmente
organizados por Velasco (2020), são ampliados pelo esforço da subcomissão de
pesquisadores anteriormente referida, que se reuniram, no decorrer de 2021,
periodicamente para pensar o campo do Ensino de Filosoa, e são publicizados
para a comunidade losóca com a seguinte reivindicação:
Há vinte anos, notadamente desde o I Congresso Brasileiro de Professores
de Filosoa realizado em outubro de 2000 na UNIMEP, em Piracicaba,
está em curso a constituição de uma Filosoa do Ensino de Filosoa –
nome, aliás, da coletânea oriunda do referido congresso. A partir deste
evento que pode ser considerado o marco inaugural do campo, o debate
em torno do ensino de losoa possui uma agenda repleta, construída em
torno do movimento de professoras e professores de losoa que assumi-
ram o ensino de losoa como problema losóco de pesquisa. [...] As
produções, orientações, pesquisas e grupos de pesquisa em/sobre ensino
de losoa permitem sustentar a existência de uma subárea de pesquisa
losóca, de um campo de conhecimento autônomo que, a despeito dos
números supracitados e da visibilidade cientíco-social em praticamente
todo território nacional, não consta como subárea nas agências de fomen-
to à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país.
A inserção da Filosoa do Ensino de Filosoa na árvore de conhecimento
destas agências é fundamental para que as pesquisadoras e pesquisadores
da área tenham acesso a bolsas de pesquisas (e outros tipos de fomento) e
a uma situação mais justa nas avaliações de seus projetos e demais traba-
lhos pelos pares – representando, igualmente, o reconhecimento de uma
parte signicativa de ações, produções e pesquisas que já são realizadas na
pós-graduação brasileira (GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, 2021, s/p).
37
Essa carta-manifesto, assinada pelo GT Filosofar e Ensinar a Filosofar,
pleiteia a inserção do Ensino de Filosoa na condição de subárea nas agências
de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no
país. Com o intuito de coletar assinaturas dos pesquisadores e professores de
losoa, defende-se o aspecto fundamental de uma cidadania-losóca para
que os pesquisadores tenham acesso à bolsa de pesquisa e a uma situação mais
justa na avaliação de seus projetos.
Apesar dos aspectos fundamentais das discussões político-institucio-
nais, o recente debate sobre o campo do Ensino de Filosoa não se limita a
isso. Se assim fosse, ele estaria pendente. Enquanto os pesquisadores do ensi-
no de losoa forçam a comunidade acadêmica losóca, os ímpares, a olha-
rem com maior atenção para aquilo que já se desenvolve por seus pares atopos,
há um movimento coletivo que força os próprios pares, os pesquisadores do
ensino de losoa, a pensarem esse recente campo em constituição. Tendo
em vista que se trata de um campo em emergência, não era tão comum uma
preocupação com aquilo que nos tornamos. Porém, em razão do amadureci-
mento da área, vide os avanços acadêmicos atuais, estamos em condição de
indagar sobre aquilo que temos feito. Sobre isso, escreve Velasco:
Dado que se trata de uma área de pesquisa extremamente recente, ao me-
nos até aqui a preocupação maior daqueles que se dedicam ao tema não
era delimitar a área, mas a de construir este campo no fazer cotidiano,
seja nas escolas e nos espaços não formais, seja na universidade. O ama-
durecimento e o volume crescente das pesquisas e das práticas, todavia,
permitem-nos, nesse momento, debruçarmo-nos sobre o que temos feito
e pensado e, por conseguinte, procurar identicar naquilo que foi efetiva-
mente realizado, alguma especicidade (Velasco, 2022, p. 6).
Decerto, a cidadania-losóca do campo do Ensino de Filosoa só
pode ser conquistada face ao reconhecimento e acolhimento institucional
– condição que alavancará ainda mais o desenvolvimento das produções aca-
dêmicas dessa subárea. É bem verdade também que a cidadania-losóca
plena só pode ser consequência de um esforço político-losóco dos próprios
pares, que necessitam estabelecer uma convivência em comum com o cam-
po, ncar suas raízes nesse território para nutrir-se dele e co-produzir-se com
as pesquisas já existentes. Apesar de existir uma produção academicamente
38
signicativa, precisamos, cada vez mais, manter nosso convívio ético, epis-
temológico, político e estético com o campo, partilhando um comum que
fortaleça nossas políticas de pensamento, isto se quisermos conquistar uma
autonomia do campo do Ensino de Filosoa. Dizemos isso porque sentimos
que não só muitas pesquisas novas surgem como gestos inaugurais sem dia-
logar e polemizar ante aquilo que havia sido discutido historicamente pelos
pesquisadores, como também há grupos de maior tradicionalidade que não
costumam estabelecer uma relação de tensão e debate com aquilo que já foi
produzido e com as novas pesquisas que estão a surgir – o que gera um en-
fraquecimento do comum e das problemáticas coletivamente criadas. Para
ser um campo, o Ensino de Filosoa necessita ser autônomo, estabelecer suas
próprias dinâmicas relacionais, nutrir-se e enraizar-se nesse território em co-
mum, desenvolver, coletivamente, as pesquisas e os pensamentos, apoiando-
-se nas diferenças entre os grupos. Em síntese, a luta pela cidadania-losóca
só faz sentido também a partir de um movimento político-losóco: um
modo de pensar que se faz como inexão sobre nossa relação com o campo,
nossos pressupostos, nossas práticas, enm, como nossas pesquisas têm ins-
tituído um território de partilha e de disputas. Só quando os pesquisadores e
seus grupos estabelecerem um convívio entre si, pensarem as suas trajetórias,
os problemas, as diferenças e os comuns que os unem nesse território que o
campo adquirirá sua cidadania-losóca plena.
Aliás, essa dupla linha de atuação – político-institucional e políti-
co-losóca – já era posta como imprescindível à abertura do debate -
losóco no início dos anos 2000. Na palestra de abertura do I Simpósio
Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosoa, Kohan (2002) escreve que o
movimento de professores de losoa, agenciados principalmente para ga-
rantir o retorno da losoa à educação básica, não deveria se restringir
somente a isso. Embora acentue a importância da luta por um viés polí-
tico-institucional – em busca do direito à losoa na educação básica, da
melhoria dos cursos de formação de professores, por melhores condições
de trabalho, etc. –, destaca também a imprescindibilidade de uma atua-
ção político-losóca, que problematize as práticas que nós, professores e
pesquisadores de losoa, temos com a losoa. As conquistas recentes e
uma luta institucional de direito à losoa não poderiam ofuscar esse olhar
39
reexivo e problemático para a maneira como nós ensinamos e aprendemos
losoa na contemporaneidade:
Há uma situação aparentemente favorável ao ensino de losoa no país.
Pelo menos nas instituições educacionais, a losoa ganha cada vez mais
espaço. [...] Essa situação, entretanto, longe de ser contemplada benevo-
lentemente, precisa ser pensada criticamente. Por um lado, há uma im-
portante questão político-institucional por trás. Nós, professores de lo-
soa, precisamos organizarmo-nos para brigar por condições econômicas,
prossionais e políticas que tornem possível um ensino de losoa levado
a sério nas escolas. [...] Há uma outra luta para dentro, não para fora,
menos político-institucional e mais político-losóca. Com efeito, há no
interior do movimento dos professores de losoa um adversário talvez
mais difícil, certamente não menos importante. Mais difícil porque não é
tão visível, quanto um oponente externo, e não menos importante porque
podem faltar muitas coisas ao ensino de losoa, mas, certamente, não
pode se ausentar a própria losoa. É da relação que temos com a própria
losoa, nós professores de losoa. (Kohan, 2002, p. 38-39).
Na época, Kohan (2002) provoca os professores de losoa, que estão
otimistas com seu possível retorno à escola, a pensarem que não basta apenas
que a losoa seja disciplina obrigatória; precisamos, sobretudo, perceber o
que se pratica e se ensina sob o nome da losoa no espaço escolar. Anal,
quais são as relações que mantemos com a losoa dentro do espaço escolar?
Qual relação os professores e os estudantes estabelecem entre si e em me-
diação do saber losóco? Antes de mais nada, que tipo de pensamento se
arma e se promove em nome da losoa? As virtualidades de suas provoca-
ções servem, se atualizadas, para nós do campo do Ensino de Filosoa ainda
nos dias de hoje. Ora, que pesquisas temos feito ao longo desses anos? Que
pensamento losóco promovemos como pesquisadores do ensino de lo-
soa? Apesar de todas nossas conquistas acadêmicas, elas são sucientes para
nos tornar um campo autônomo? Justamente por ser um fenômeno recente,
os pesquisadores e seus grupos dedicaram-se muito mais a desenvolver seus
projetos do que propriamente a repensar aquilo que foi feito, como lembra
Velasco (2022). E isto foi necessário, anal: o caminho só se faz andando. No
entanto, ao defendermos a necessidade de pensar losocamente o campo
40
– nossos limites e potencialidade –, enfatizamos a importância de um con-
vívio político-losóco que sirva para nos cultivar mutuamente, de modo a
pensar as trajetórias e as práticas que nos tornam aquilo que nós somos.
Nessa direção, com o objetivo de manter a problemática no horizonte
reexivo dos pesquisadores, organiza-se18 uma proposta de dossiê “As pes-
quisas sobre o ensino de losoa no Brasil: perspectivas sobre o campo”.
Reconhecendo o amadurecimento das pesquisas sobre o ensino de losoa,
acredita-se ser crucial nos debruçarmos sobre aquilo que temos feito, a m de
problematizar nossas especicidades, os avanços e os limites do campo – in-
clusive, questionando a existência de um campo propriamente dito. Muitos
pesquisadores, que têm participado de diferentes momentos na agenda do
ensino de losoa no Brasil, foram convidados a contribuir com o debate,
de maneira a oferecer suas percepções sobre as pesquisas na área. Assim, a
proposta de dossiê agencia os pesquisadores a problematizar o estatuto epis-
temológico e histórico do campo. Para encaminhar o debate, algumas ques-
tões foram lançadas: “As pesquisas com o ensino de losoa caracterizam um
campo de pesquisa?”; “Quais são os objetivos, desaos e problemas das pes-
quisas sobre o ensino de losoa no Brasil?”; “No cenário brasileiro, o ensino
de losoa pode ser considerado uma subárea de qual grande área, Filosoa
e/ou Educação? Existiriam outras áreas que interseccionam com o campo?”
Essas questões e outras ainda possíveis foram respondidas através da reme-
moração histórica de acontecimentos que ajudaram a elaborar os contornos
das pesquisas e da área na contemporaneidade, como também através de um
balanço autorreexivo das pesquisas e de seus grupos.
Além dessa iniciativa, o movimento político-losóco continua
através de discussões coletivas, principalmente nos eventos da área. Em
2022, no registro de atuação na ANPOF, organiza-se uma mesa-redonda,
18 A proposta de dossiê será publicada pela Revista Educação e Filosoa, e tem como proponentes
Augusto Rodrigues, Patrícia Velasco e Rodrigo Gelamo. Além da organização, escrevemos o texto
referenciado na nota antecedente: “Filosoa do Ensino de Filosoa: o debate da cidadania-losóca a
partir dos movimentos histórico-discursivos do campo (Rodrigues; Velasco; Gelamo, prelo). Temos
como objetivo realizar um resgate histórico e losóco do debate em torno da cidadania-losóca,
de maneira a recuperar alguns acontecimentos que são considerados cruciais à territorialização do
ensino de losoa como problema da pesquisa losóca, e, além disso, avaliar os avanços e aquilo
que ainda carecemos quando o assunto é o campo Ensino de Filosoa.
41
no evento bienal da instituição, para discutir as interfaces e característi-
cas do campo no Brasil e na Argentina. A mesa, “Filosoa do Ensino de
Filosoa: diálogos entre Brasil e Argentina”, contou com a participação
dos lósofos argentinos Gustavo Ruggiero e Walter Kohan, e da lósofa
brasileira Patrícia Velasco. Como preparação à mesa, a ANPOF lança um
episódio de podcast intitulado “Filosoa do Ensino de Filosoa: uma con-
versa sobre os movimentos de sua constituição como campo acadêmico19.
No ano seguinte, presenciamos a organização do evento bienal do GT,
“VII Encontro Nacional do GT da ANPOF Filosofar e Ensinar a Filosofar:
Pensar o Campo, Filosofar o Ensino”, realizado em Santa Maria em 28 a 30
de agosto. Além de contar com outros debates, a mesa de abertura versou
sobre o problema do campo: “A constituição do campo do ensino da loso-
a: história e epistemologia20”.
Essas iniciativas indicam o fortalecimento de um debate coletivo entre
os pesquisadores da área, a ponto de o campo do Ensino de Filosoa ser, cada
vez mais, um problema genuíno de pesquisa losóca na atualidade. E, como
dissemos anteriormente e indicamos na recuperação histórica, essa conver-
gência problemática tem nos afetado. Porém, na presente escrita, os signos
que nos dão a pensar não são as condições epistemológicas, históricas e polí-
ticas do campo, embora tenhamos nos debruçado sobre isso. Nosso ponto de
vista é, sobretudo, ético. O que nos interessa são as relações que mantemos
com o campo do Ensino de Filosoa e como elas ressoam nos professores
que nos tornamos. Em outras palavras, não obstante termos debatido sobre a
emergência e o estatuto do campo, a grande questão que parece nos motivar
não é tanto o que seja o campo – isto é, seu estatuto epistemológico como
campo de conhecimento –, mas como nossa convivência nele ecoa em nossos
projetos de formar professores de losoa, fazer pesquisa na área, ensinar e
aprender losoa. O que questionamos, ao nos dedicarmos à problemática
coletiva, versa sobre a nossa convivência em comum com o campo. Como
temos ncado nossas raízes nesse território em comum? Como nos nutrimos
dele e co-produzimos nossas pesquisas?
19 Participaram do podcast Elisete Tomazetti, Patrícia Velasco e Augusto Rodrigues. Ele está disponível
em: https://open.spotify.com/episode/5IWasvZkqBgl7tEf4jKBKt. Acesso em: 29 Mai 2023.
20 Os integrantes da mesa foram Silvio Gallo, por meio de vídeo, Patrícia Velasco, Jéssica Erd Ribas e
Augusto Rodrigues.
42
Por essa razão, iniciamos essa seção a m de ressaltar o nosso encontro,
que se produziu como acontecimento, que nos atravessou e insiste. Dizer que
compomos essa 3ª geração de pesquisadores signica dar início a uma experiên-
cia de pensamento que reita nossa própria relação com o campo, um território
de pensamento partilhado por inúmeros grupos de pesquisas que se dedicam há
duas décadas, pelo menos, ao ensino de losoa. Crescemos, academicamente,
cultivado pelas heranças daqueles que nos antecederam e que nos forçaram e
deram o que pensar quando o assunto é o ensino de losoa. Consiste, então,
em pensar as heranças e as virtualidades que nos atravessam desde o primeiro
ano do curso de Filosoa, e como elas incidem na nossa formação e na nossa
maneira de pesquisar, ensinar e aprender losoa. Ora, quais são essas heranças
de formação? Como elas nos torna os professores que somos?
Se há um caminho para problematizá-la, esse caminho é o nosso conví-
vio com o ENFILO. Desde nossa primeira experiência no PIBID à presente
pesquisa, o espaço formativo do ENFILO, grupo que há mais de uma déca-
da se dedica a pensar o ensino de losoa, se constitui o núcleo principal de
capilarização dos discursos e das heranças do campo do Ensino de Filosoa.
Tudo aquilo que nós produzimos em termos de ensino de losoa, nossas cren-
ças, pressupostos, práticas e projetos foram construídos na convivência com o
ENFILO. Mas o ENFILO não existe por si só e de maneira independente ao
campo do Ensino de Filosoa; ou melhor, das produções teóricas e dos diversos
projetos que são partilhados por alguns grupos de pesquisadores. Já há algum
tempo temos reetido sobre as pesquisas do ENFILO e como algumas orien-
tações gerais do grupo ressoam projeções comuns à área. Tem nos interessado,
sobretudo, a orientação losóca que caracteriza as pesquisas do grupo, especi-
camente a necessidade de manter uma relação losóca na forma de encarar
os problemas de ensinar e aprender losoa, e de experimentar a losoa em
sala de aula. Encaramos essa necessidade como um projeto político-losóco,
uma política losóca de pensamento que agencia as diferentes pesquisas do
grupo, e que podemos entendê-la como uma losoa do ensino de losoa. Ora,
parece-nos impossível negar que essa política losóca inerentes aos projetos
do ENFILO ecoam virtualidades e desejos agenciados pelas gerações do campo
do Ensino de Filosoa, especialmente por aqueles que compõem a 1ª geração
e realizam suas reexões em intersecção com o campo da losoa da educação.
43
Desde o nal dos anos 1990 no Brasil, há uma tentativa coletiva dos
professores e pesquisadores de losoa de transformar o ensino de losoa
em um problema losóco. Esses professores e pesquisadores são responsá-
veis pela elaboração discursiva de uma nova política de pensamento, cujo
objetivo é territorializar os problemas de ensinar e aprender losoa na pró-
pria losoa, de forma a outorgar um caráter losóco à produção teórica
nessa área e, consequentemente, pensar um ensino de losoa como prática
educativo-losóca. Em outras palavras, quer-se inaugurar um território na
Filosoa – uma losoa do ensino de losoa e/ou um campo do Ensino de
Filosoa21 –, criar condições institucionais e teóricas para outorgar cidadania-
-losóca aos problemas de ensinar e aprender losoa na contemporaneida-
de. No I Simpósio Sudeste do Ensino de Filosoa, escreve Sílvio Gallo sobre
esse acontecimento:
Nos últimos anos os lósofos professores de Filosoa brasileiros vêm se
preocupando com questões como essas. Trata-se, quer me parecer, de um
movimento de pensar losocamente o ensino de losoa. Um movimen-
to em que os lósofos têm tomado para si a responsabilidade de pensar a
prática docente, em seus vários níveis de ensino. Um movimento de dar
cidadania, no território, à problemática do ensino que, até aqui, só encon-
trava asilo no território da Educação (Gallo, 2004, p. 10).
Um dos marcos históricos dessa movimentação foi a instauração da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, a qual delimitou a necessidade
21 Entre os pares, discute-se como denir e perceber as especicidades do campo do Ensino de
Filosoa. Em alguns momentos, dada a força da política losóca de ensinar e aprender losoa
inaugurada no início dos anos 2000 – esforço que ajudou a organizar as primeiras dobras do campo
–, este já foi associado como uma Filosoa do Ensino de Filosoa. Essa estratégia é relevante para
manter uma interlocução com os ímpares (os lósofos que têm diculdades de reconhecer o estatuto
losóco do ensino de losoa), principalmente quando estão em disputa os espaços institucionais
na própria losoa. Apesar disso, alguns pesquisadores sinalizam os perigos de reduzir o campo a
uma losoa do ensino de losoa, em detrimento de outras políticas de pensamento importantes
à área, tal como no caso da didática losóca. Referimo-nos especialmente à Elisete Tomazetti e sua
orientanda de doutorado, Jéssica Erd Ribas, cuja pesquisa também se debruçou sobre o campo e
nas formas de enunciação de suas especicidades. Não mencionamos a versão de seu trabalho nal,
pois, no momento da presente escrita, ele não está disponível ao público. Nossas observações se
baseiam, principalmente, na convivência com ambas as pesquisadoras e nos debates realizados no
VII Encontro do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar.
44
dos conhecimentos losócos para formação do cidadão. No entanto, a re-
ferida lei condicionou a losoa a uma presença inócua na educação básica,
uma vez que a delimitação da importância dos conhecimentos losócos no
currículo não se concretizou em garantia de sua integração ao quadro de
disciplinas obrigatórias. Em razão da ambiguidade na lei, o deputado Padre
Roque formulou o Projeto de Lei 3.178, defendendo o retorno da losoa e
sociologia como disciplinas obrigatórias. Ambos os acontecimentos serviram
para organizar nacionalmente alguns professores e seus subsequentes grupos
que, daí em diante, endossaram uma movimentação em prol da obrigatorie-
dade da losoa na escola. Entre os inúmeros abaixo-assinados, eventos e dis-
cussões públicas em defesa da losoa como disciplina curricular obrigatória
no ensino médio, alguns grupos de professores – ou “lósofos professores
(Gallo, 2004, p. 10) –, sem abandonar a luta pela cidadania-curricular da
losoa na instituição escolar, concentraram seus esforços com o objetivo de
garantir uma cidadania-losóca ao ensino de losoa, transformando-o em
um problema losóco genuíno no cenário brasileiro.
Encaramos esse agenciamento coletivo como um ponto substancial
para a constituição de uma série de discursos, muitos deles ainda vigentes
na produção teórica do ensino de losoa de maneira geral. São discursos
que circulam na criação de projetos coletivos, nos diagnósticos da formação
dos professores, nas narrativas da história do ensino de losoa no Brasil,
nos posicionamentos críticos ante a produção teórica existente, construindo,
assim, contornos ao campo do Ensino de Filosoa. São discursos que abrem
caminhos à área no Brasil, deixando heranças e hábitos na própria maneira
de pensar a losoa e seu ensino na realidade brasileira. Porém, dentro dessa
movimentação, que não pode ser encarada de forma homogênea22, interes-
sa-nos, mais particularmente, os discursos que enfatizam uma “losoa do
ensino de losoa”, que impulsiona a constituição de uma virada discursivo-
22 Do mesmo modo que não se pode considerar homogênea as teses, problemas e diagnósticos que são
construídos nesse agenciamento coletivo, nós não encaramos os textos, oriundos dos debates, como
posicionamentos e pensamentos individuais, sejam eles pesquisadores, professores de losoa, e
que, portanto, revelariam o pensamento de pessoas isoladas, e sim de “[...] cursos e grupos de
pesquisa” e “[...] experiências docentes vivenciadas nos diferentes níveis de ensino”, que se voltam
para pensar o ensino de losoa na realidade brasileira, conforme apontam os organizadores do VII
Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosoa (Sardi; Souza; Carbonara, 2007, p. 14).
45
-losóca nas produções da área (Rodrigues; Gelamo, 2021b). Esse projeto
representa uma tentativa de alterar a política de pensamento dos responsáveis
pela formação de professores de losoa, que tem como objetivo as questões
da losoa e seu ensino de maneira geral. Trata-se de forçar uma mudança de
perspectiva, do pedagógico para o losóco, a m de estabelecer uma nova
política de pensamento e de praticar o ensino e a aprendizagem da losoa.
Pensar o ensino de losoa como um problema losóco vai permitir não
só a diferenciação teórica, do pedagógico para o losóco, mas também das
relações que professores e estudantes mantêm quando se propõem a ensiná-la
e aprendê-la: a sala de aula e as vivências educativas se instituem como um
espaço genuíno de losofar, que desloca os professores do lugar comum pe-
dagógico de transmissor de conhecimentos e os estudantes do lugar de aluno,
daquele que adquire conhecimentos que ainda não possuía.
Em outros momentos23, mas especialmente no texto Ensino de Filosoa:
notas sobre o campo e sua constituição (Rodrigues; Gelamo, 2021b), reconsti-
tuímos essa nova política losóca de pensar o ensino de losoa, destacando
alguns aspectos de seu agenciamento no Brasil e suas implicações nas práticas
de ensinar e aprender losoa. Naquela época, debatíamos o campo do Ensino
de Filosoa na subcomissão do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar mencionado
há pouco. Nesse sentido, visitamos os textos oriundos da pesquisa de pós-gra-
duação de Velasco e rezemos uma narrativa de emergência do campo, a qual
ressoava em suas armações. Conforme escrevemos, a constituição do campo
de pesquisa que “[...] ela propõe está respaldada em uma narrativa sobre a tra-
jetória de criação e desenvolvimento de um debate em torno do ensino de lo-
soa, cuja historicidade pode ser fundamental para melhor estabelecer o campo
em questão” (Rodrigues; Gelamo, 2021b, p. 817).
Reconstruímos essa narrativa, através dos prefácios/apresentações das
coletâneas e dossiês publicados na época, além de alguns textos que tinham
como uma de suas partes o intuito de realizar uma leitura dos acontecimentos
históricos do ensino de losoa nos anos 2000 ou aprofundar em algumas ca-
racterísticas conceituais desse novo projeto político-losóco. Esses arquivos
revelam os desejos de muitos pesquisadores do ensino de losoa, que pro-
curavam, na época, territorializar o ensino de losoa como um problema de
23 Rodrigues; Gelamo (2021a,b; 2022); Rodrigues; Velasco; Gelamo (no prelo, 2024)
46
pesquisa e de educação losóca. Consideramos fundamental mapear quais
são esses desejos e as intenções para adentrar às disputas de saber e poder pelo
campo, vigentes em quaisquer campos de conhecimento.
Portanto, na próxima seção, vamos nos apoiar nesse trabalho (Rodrigues;
Gelamo, 2021b). Isso porque, do mesmo modo que aquela reconstrução
mostra os desejos daqueles que buscavam a invenção de um projeto políti-
co-losóco para o ensino de losoa no Brasil, a própria escolha, seleção e
atenção ao material também revela os nossos desejos como pesquisadores do
ensino de losoa. Ora, não queremos separar observador e objeto, principal-
mente quando nosso objetivo de agora consiste em nos perguntar por aquilo
que nos tornamos, isto é, restituir alguns aspectos dessa política losóca de
ensinar e aprender, a m de vericar como elas ecoam no ENFILO e em nós
como professores de losoa e pesquisadores do ensino de losoa. Anal,
onde estão as nossas raízes que nos fazem ser os professores e os pesquisadores
que somos? Como nós nos enraizamos no campo do Ensino de Filosoa e
cultivamos nossos projetos de ensinar e aprender losoa, bem como realizar
nossas pesquisas na área? Quais são as heranças que nos fazem ter determina-
das práticas de pesquisa, de ensino e de aprendizagem em losoa?
1.2. Filosoa do ensino de losoa: a emergência de uma política
losóca de ensinar e aprender losoa
Em sua pesquisa de pós-doutorado, Velasco (2021b) chega a al-
gumas conclusões provisórias referentes ao estatuto epistemológico do
campo do Ensino de Filosofia. Segundo suas vivências como pesqui-
sadora/agente do campo e os depoimentos de vários pesquisadores e
agentes da área, ela mostra algumas aproximações e convergências, cer-
tos consensos, cujas características são cruciais para proporcionar um
contorno ao campo. A primeira característica é a dimensão filosófica
dos problemas de ensinar e aprender filosofia. Muitos pesquisadores
identificaram que um de seus principais objetos envolvem as questões
inerentes às práticas do ofício docente dentro das instituições de ensino.
Quais são os conteúdos a serem ensinados? Quais metodologias de en-
sino e recursos didáticos devem ser utilizados em uma aula de filosofia?
Que formação se espera ao ensinar filosofia e como ela contribuirá com
47
uma formação mais ampla? Como preparar os professores de filosofia
para os desafios educacionais da contemporaneidade?
Embora essas questões sejam partilhadas por outras áreas, ao exemplo
da área de ensino, qual é a relação desses objetos com a losoa? Algumas ra-
zões são elencadas, mas a tese que as perpassam aponta para a necessidade de
uma inuência relacional entre a concepção de losoa e as práticas inerentes
ao ensino e à aprendizagem desse saber. Sobre isso, escreve Velasco:
Como a Filosoa é polissêmica, o ofício docente em Filosoa obriga aque-
le(a) que se dispõe a ensinar a manter a pergunta “que losoa?” em seu
horizonte de reexão: qual a relação que eu mantenho com a losoa
e como essa relação implica na minha atividade de ensiná-la? Este é o
questionamento que qualquer professora ou professor, em qualquer nível
de ensino, deveria procurar responder. Uma vez que a didática própria da
Filosoa é permeada sobre a natureza do losofar e de seu ensino, dizemos
que ela é, forçosamente, losóca (Velasco, 2021b, p. 29-30).
Conforme as respostas colhidas de muitos pesquisadores/agentes do
campo, ensinar losoa exige uma didática, caminhos metodológicos e ques-
tões formativas que só podem ser pensadas e respondidas dentro do escopo da
losoa. A necessidade de colocar essas questões em um registro losóco de
pensamento está fundamentada principalmente numa concepção implícita de
losoa que subsiste nas práticas pedagógicas de ensinar e aprender losoa.
Onde está o losóco quando se ensina e aprende losoa? A determinação do
losóco terá, consequentemente, aspectos implícitos na forma de ensiná-la e
aprendê-la, o que justica a atenção losóca defendida pelos pesquisadores24.
Além dessa dimensão losóca, outras duas características que con-
ferem os contornos de um estatuto epistemológico ao campo do Ensino de
Filosoa são: as dimensões práticas e políticas. Os conhecimentos produzi-
dos pelos pesquisadores não se reduzem a um registro estritamente teórico,
como é tão comum em outras áreas de investigação losóca. Para aqueles
24 Os argumentos em defesa de uma losocidade das questões do ensino de losoa não vão apenas
nessa linha, como se verá ao longo do texto. Resgatarmos as percepções de Velasco (2021b), a m de
mostrar esse ponto em comum: o caráter losóco do ensino de losoa, independentemente das
conclusões que levam até essa armação. Até porque, diferentes concepções de losoa resultarão
diferentes formas de argumentar pela especicidade losóca do problema.
48
que pesquisam o ensino de losoa, o vínculo entre teoria e prática é algo in-
dissociável. É um campo que inexiste sem a dimensão da sala de aula, que se
faz na imanência das relações de ensinar e aprender. Nas palavras da lósofa:
“[...] os problemas investigados no Ensino de Filosoa usualmente nascem
de experiências vivenciadas por seus atore(a)s e solicitam metodologias de
pesquisas e referências teóricas escassas (quando inexistentes) nos programas
de Filosoa” (Velasco, 2021b, p. 30). Mas a dimensão prática adquire um
aspecto de invenção de um losofar em sala de aula, praticado e exercitado
pelos professores e estudantes em seus respectivos espaços educativos.
[...] A própria atividade de ensinar e aprender losoa é parte constituinte
da dimensão prática da área: um losofar que se faz enquanto ensino e en-
quanto aprendizagem – ao exercitar-se na Filosoa, o (a) docente reinven-
ta o ato losóco no mesmo espaço em que os (as) estudantes experimen-
tam o pensamento em seu registro losóco (Velasco, 2021b, p. 31-32).
A experimentação losóca em sala de aula, losofar através das prá-
ticas de ensinar e aprender, torna-se um dos aspectos característicos da di-
mensão prática e, por conseguinte, da dimensão epistemológica do campo
do Ensino de Filosoa. Essa união de uma dimensão teórica e da dimensão
prática envolve propriamente o ofício do professor de losoa e, de maneira
geral, das licenciaturas que preparam o docente para um saber teórico-práti-
co. Tendo em vista que se trata de ensinar e aprender losoa, há uma defesa
do losofar enquanto atividade teórico-prática a ser experimentada em sala
de aula, confundindo-se em um enunciado que ensinar e aprender losoa
signicam ensinar e aprender a losofar.
Além disso, há ainda a dimensão política: um compromisso educacio-
nal-losóco com a formação do ser humano e de sua atuação na polis. Aqueles
que se dedicam ao ensino de losoa, em suas atuações, enfrentam e lidam com
a formação do outro, experimentando-se em questões que envolvem a existên-
cia humana e a nossa vida na contemporaneidade – não só as questões tradi-
cionais éticas, políticas e estéticas, mas também as inquietações atuais, como a
colonialidade, o racismo, as questões de gênero, tensões que estão presentes na
realidade escolar e universitária. E, para complementar, essa dimensão política,
Velasco (2021b) aponta para o compromisso político de divulgação losóca,
49
algo que diz respeito à área da losoa como um todo, embora seja assumida,
principalmente, pelos pesquisadores do ensino de losoa.
Recuperamos essas características evidenciadas pela pesquisa de Velasco
(2021) não para debatê-las propriamente, ou para armar que, tal como fo-
ram expostas, essas dimensões compreendem os contornos inquestionáveis
do campo do Ensino de Filosoa. Nossa intenção consiste em indagar se
certas compreensões dos pesquisadores do ensino de losoa em relação às
suas próprias especicidades não foram possíveis somente a partir de uma
virada discursivo-losóca, que criou as bases para uma nova política lo-
sóca de pensar e praticar o ensino de losoa no Brasil. Ora, será que se os
pesquisadores hoje reconhecem, pelo menos em nível teórico, a existência
de uma série de implicações losócas interdependentes da perspectiva e da
relação que se cultiva com a losoa, essa não foi uma condição construída
discursivamente? Anal, como a grande maioria dos pesquisadores passa a
reconhecer uma dimensão prática e política do ensino de losoa de uma
experimentação losóca? Não haveria aí uma sedimentação discursiva que
delimita as condições daquilo que pode ou não ser pensado quando o assunto
em questão é o ensino de losoa? Nós acreditamos que sim, e essa condição
está implícita em uma política losóca de ensinar e aprender losoa, culti-
vada desde o nal dos anos de 1990.
A base dessa nova política de pensamento tem dois pilares principais: o
ensino de losoa como um problema losóco genuíno e a reinvenção das
experiências de ensinar e aprender losoa na contemporaneidade, em seus
aspectos práticos e políticos, conforme já percebidos por Velasco (2021b).
Para mostrar essas bases, vamos nos ater a alguns materiais produzidos pelo
agenciamento acadêmico acima referido, destacando certa discursividade,
determinados acentos que vão indicar, primeiramente, a importância de se
losofar sobre o ensino de losoa, cuja tensão vai ser estabelecida através de
uma losoa do ensino de losoa e, em segundo lugar, as implicações políticas
e práticas de uma losoa do ensino de losoa na invenção contemporânea
de um losofar em sala de aula, feita por docentes e estudantes em sua con-
vivência educativa.
Nesse sentido, o objetivo desse momento de nossa reexão conver-
ge, portanto, na demonstração de alguns aspectos inerentes a essa virada
50
discursivo-losóca e como ela permite a construção de uma nova política
de pensamento que parece sedimentar-se entre os pesquisadores da área. O
contexto, como nos referimos na seção anterior, diz respeito à promulgação
da LDB/96 e a falta de clareza da forma como os conhecimentos losócos
integrariam a formação dos estudantes da educação básica. Esse lugar de in-
certeza e a possibilidade de reintegrar o saber losóco como disciplina obri-
gatória do currículo da educação básica estimularam o agenciamento político
e acadêmico de inúmeros professores de losoa no país.
Uma das primeiras iniciativas acadêmicas encontra-se na tradução do
livro La losoa en la escuela - caminos para pensar su sentido, de Alejandro
Cerletti e Walter Kohan para o português. A obra, A losoa no Ensino
Médio: caminhos para pensar seus sentidos, foi publicada em 1999 no Brasil
pela Editora da Universidade de Brasília, um ano depois de ser publicada na
Argentina. Produzido no contexto do programa da Universidade de Buenos
Aires, “La UBA y los profesores”, cujo enfoque é manter um vínculo de for-
mação e intercâmbio entre os professores do ensino médio e a universidade,
o livro traz uma abordagem de problemas que dizem respeito à construção
do conhecimento losóco e da sua transmissão. Na apresentação, os auto-
res destacam como “[...] o ensino losóco exige de nós, cotidianamente,
na qualidade de professores, a necessidade de assumir um compromisso
múltiplo: o que ensinar, como fazê-lo e para quê” (Cerletti; Kohan, 1999,
p. 11). A losoa, por sua condição crítica radical, de querer estabelecer um
pensar sem pressupostos, jamais poderia se furtar de questionar os porquês,
o como e o para quê envolvidos na transmissibilidade de seu saber. Dessa
forma, “a aula de losoa é (ou deveria ser) o âmbito por excelência onde
esta abertura ao pensamento crítico daria sentido a qualquer intervenção
didática” (Cerletti; Kohan, p. 26). Em outras palavras, toda modalidade
de ensino que possa vir a ser adotada está condicionada pelo sentido que o
professor de losoa atribui ao seu ofício, às práticas de ensinar e aprender
losoa. No entanto, em razão da “[...] pluralidade do losóco, a ques-
tão se torna mais complexa” (Cerletti; Kohan, 1999, p. 11). Isso porque
é preciso centralizar a tensão sobre um problema sempre presente: “[...] a
autorreexão losóca, a pergunta da losoa sobre si mesma” (Cerletti;
Kohan, 1999, p. 15).
51
Tanto a ênfase no losóco do ensino de losoa, a ponto de se ques-
tionar se “[...] há realmente lugar para uma reexão losóca ou em que me-
dida nós, professores e estudantes, somos capazes de pensar losocamente
(Cerletti, Kohan, 1999, p. 11), bem como essa maneira losóco-didática
de encarar o problema de ensinar e aprender losoa pelo tensionamento da
pluralidade da losoa, questionando o quê, para quê e como, são as premis-
sas de um compromisso losóco daqueles que ensinam e aprendem losoa.
Pensar losocamente o ensino de losoa signica lidar com as questões do
sentido da losoa na escola desde uma perspectiva losóca, repensando
as condições de produção do saber losóco e das possibilidades de ensiná-
-lo. Por ser um ensino losóco da losoa, isso signica que professores e
estudantes são agentes ativos, promotores de uma reexão compartilhada.
Justamente, busca-se uma problematização losóca para que exista uma
prática losóca de pensamento em sala de aula. Nas palavras dos autores:
O olhar atento voltado para o ensino losóco revela a interrogação sobre
aquilo a que nos referimos quando falamos de losoa, atualmente e dian-
te do mundo adolescente. O problema do sentido (que do ponto de vista
do pragmatismo às vezes se compara à utilidade) da losoa na escola de
hoje deve ser abordado dentro de uma perspectiva especicamente losóca.
Isso supõe, entre outras coisas, ter presente as condições atuais de pro-
dução de um saber losóco e as possibilidades de ensiná-lo. [...] Uma
abordagem losóca do problema do ensino da losoa obriga também, pa-
ralelamente, a tematizar o lugar e a função do professor de losoa como
pensador ativo e promotor da reexão partilhada com seus jovens inter-
locutores. A prática losóca da aula deveria partir, então, dos interesses e
das inquietações que emergem da própria experiência, para transformar-se
em reexão e questionamento dessa experiência (Cerletti; Kohan, 1999,
p. 12-14 – grifos nossos).
Se as armações de Cerletti e Kohan (1999) não surpreendem os
pesquisadores do ensino de losoa que hoje se debruçam sobre o tema,
elas apenas começavam a circular no cenário brasileiro, naquela época. Ana
Wuensch, encarregada de traduzir o livro para o português, ressalta a impor-
tância dele entre nós. Segundo a autora, esse livro “[...] vem preencher uma
lacuna na bibliograa atualmente disponível no Brasil” (Wuensch, 1999, p.
52
19). Tendo em vista a presença inconstante da losoa na escola, não temos
ainda uma tradição de reexões sobre a formação de professor de losoa e os
sentidos da disciplina na educação básica. Na Argentina, ao contrário, a disci-
plina sempre esteve no currículo da educação básica, independentemente da
organização política do país. Portanto, foi possível consolidar uma trajetória
investigativa, instituir um campo de conhecimento sobre o ensino de loso-
a25, algo ainda incipiente na realidade brasileira.
Nesse sentido, de maneira a aproveitar o cenário da LDB/96, cuja in-
terpretação ambígua em torno do lugar da losoa no currículo escolar foi
responsável por despertar os prossionais da área novamente para a discussão,
a tradução do livro26 e sua circulação entre nós será de grande valia, conforme
escreve a autora:
Vericamos um lento mas progressivo comparecimento da losoa aos
currículos escolares brasileiros [...] mais recentemente, uma retomada do
tema, inspirada pelas diretrizes e parâmetros da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional 9.394/96, que embora ambígua e vacilante ao referir-se
ao ensino de losoa, tem o mérito de despertar outra vez para a necessida-
de de mobilização entre os prossionais da área. Na Argentina, ao contrário
do Brasil, a losoa não foi excluída dos currículos durante a vigência do
regime militar, o que permitiu uma continuidade da experiência escolar
com a disciplina e a formação de um campo de reexões sistematizadas
sobre a formação de professores, o acompanhamento e a avaliação do tra-
balho realizado. A experiência consolidada na Argentina e em outros países
25 Sobre o legado argentino na instituição do campo do Ensino de Filosoa no Brasil, conferir o texto
de Velasco (2022b).
26 Atentando-nos aos livros traduzidos, outro exemplo desse intercâmbio é a obra Una introdúccion
a la ensenanza de la losoa, de Guillermo Obiols, traduzida no país, por Sílvio Gallo, como: Uma
introdução ao ensino de losoa (Obiols, 2002). No prefácio à edição brasileira, Kohan (2002)
lembra que esse livro, o mais recente do professor argentino Guillermo Obiols, será de importância
crucial para as atuais discussões sobre o ensino de losoa no Brasil. Por um lado, o professor é
um dos mais importantes pesquisadores da área na América Latina, dedicando-se à formação de
professores desde a cátedra de Estágio Supervisionado em Filosoa na Universidade de Buenos
Aires. Por outro, o professor criou, por meio de sua vasta experiência no assunto, um modelo
que exprime sua forma de ensinar losoa. Esse modelo e as discussões do livro de maneira geral,
que têm a pretensão de “[...] situar o ensino de losoa na própria terra da losoa, como uma
questão estritamente losóca” (Kohan, 2002, p. 13), reabrem inúmeras questões que servem como
interlocução para aqueles que se dedicam ao ensino de losoa repensarem suas práticas.
53
hispânicos favoreceu, por exemplo, que os prossionais da losoa desen-
volvessem certas posições críticas e apresentassem outras propostas criativas
diante das reformas educacionais que também ocorrem em seus países. [...]
Por essa razão, entre outras, o material do livro agora editado em português
é signicativo para nós brasileiros (Wuensch, 1999, p. 19-20).
Ainda no mesmo ano em que o livro de Cerletti e Kohan (1999) veio
a público, a Universidade de Brasília protagonizou mais uma ação acadêmica
relevante para o ensino de losoa. Trata-se do Congresso Internacional de
Filosoa com Crianças e Jovens, promovido em julho de 1999 pelo “Projeto
Filosoa na Escola”, sediado na Faculdade de Educação da Universidade de
Brasília. Apesar do intuito central do congresso envolver a temática de lo-
soa e infância, houve a criação de uma mesa redonda, “Filosoa no ensino
médio”, para discutir o tema. Os idealizadores do evento convidaram repre-
sentantes de outros países – entre eles, François Galichet, coordenador de
um grupo de pesquisa na área (ALEPH) na Universidade de Estrasburgo,
Alejandro Cerletti, coordenador do Programa de Formação de Professores de
Filosoa no Ensino Médio, “La UBA y los profesores”, da Universidade de
Buenos Aires, Argentina; Mauricio Langón, Inspetor Geral de Filosoa, do
Ministério de Educação em Montevidéu; e Silvio Gallo, apresentado como
proeminente gura nacional na área (Kohan; Leal, 1999, p. 12).
Alguns aspectos presentes na organização da mesa nos chamam a aten-
ção. A presença do uruguaio Maurício Langón e do argentino Alejandro
Cerletti indicam como as discussões sobre o ensino de losoa marcaram-se
pelo intercâmbio reexivo sulamericano. Certamente, o trânsito de Walter
Kohan – organizador do evento e coordenador do projeto Filosoa na Escola,
bem como presidente do Conselho Internacional para Investigação losó-
ca com Crianças (ICPIC) – nos países da América Latina facilitaram esse
intercâmbio teórico. Por outro lado, destacamos a presença de Sílvio Gallo.
Apresentado com louvor pelos organizadores do evento, suas credenciais jus-
ticavam-se pela trajetória do autor e também pelos alcances recentes do
Grupo de Estudos sobre o Ensino de Filosoa – GESEF.
Para entender a trajetória do autor até aquele momento, vejamos seu
relato presente em seu livro, Metodologia do ensino de losoa: uma didática
para o ensino médio (2012). Sílvio Gallo retoma como o ensino de losoa
54
constituiu-se um problema losóco em sua caminhada na universidade. Em
1990, quando inicia seu trabalho no curso de licenciatura em Filosoa da
Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep –, sua intenção foi de não
repetir os equívocos crônicos da licenciatura no Brasil. Em seu diagnósti-
co, ele depreende que não há uma preocupação losóca com a formação
do professor de losoa no Brasil. Os lósofos dão pouca ou nenhuma im-
portância à questão do ensino de losoa; preocupam-se, exclusivamente,
apenas em transmitir o legado da história da losoa com o enfoque de for-
mar pesquisadores especializados. Aproveitando da participação institucional
dos departamentos de educação na licenciatura, o corpo docente de losoa
transfere toda a responsabilidade de formação do professor de losoa aos
prossionais da educação, abdicando-se do compromisso losóco inerente
à formação do professor de losoa.
Essa situação incomodava alguns professores do curso de losoa da
Unimep, e daí surgiu a ideia de organizar o GESEF, inicialmente gestado em
1993, sendo formalmente implementado a partir do apoio do Departamento
e do Curso de Filosoa da UNIMEP, em 1995. Filosoa do Ensino de Filosoa
foi o nome do projeto de pesquisa criado em razão da gestação do grupo,
conforme consta no currículo de Gallo, que foi o responsável pela organiza-
ção do grupo – originalmente composto por professores e alunos da Unimep
e por professores de losoa da rede pública e privada de ensino da região. O
GESEF atuou na organização de encontros anuais de professores de losoa,
promoveu ocinas pedagógicas sobre o ensino de losoa e organizou dois
eventos, cujas coletâneas tornaram-se referências bibliográcas relevantes para
as discussões do ensino de losoa: o I Congresso Brasileiro de Professores
de Filosoa, em 2000, e o I Simpósio sobre Ensino de Filosoa da Região
Sudeste, em 2002.
Mas, antes da organização desses eventos, e para não perdermos a cro-
nologia dos acontecimentos – estamos analisando os convidados da mesa
“Filosoa no Ensino Médio”, do Congresso Internacional de Filosoa com
Crianças e Jovens –, o GESEF trabalhou, em 1996, na confecção de um
livro didático de losoa para o ensino médio. O livro, Ética e cidadania:
caminhos da losoa, publicado em 1997, seria o vencedor do Prêmio Jabuti
55
na categoria de melhor livro didático no ano seguinte27. Esse envolvimento
do autor nas discussões do ensino de losoa no Brasil dão um tom ao papel
que ela desempenhava na época e, além disso, indicia o caráter losóco vis-
to como necessário para manter no debate do ensino de losoa. Não só o
título do projeto de pesquisa que era feito no GESEF – Filosoa do Ensino
de Filosoa –, como também a sua denúncia sobre a estrutura dos cursos de
licenciatura de losoa no Brasil explicitam a ausência de um olhar losóco
para o ensino de losoa.
Analisando ainda o Congresso Internacional de Filosoa com Crianças
e Jovens, outros fatores são destacados como importantes à trajetória acadê-
mica do ensino de losoa no Brasil. Segundo as narrativas de Gallo (2004;
2013), atribuindo um sentido aos acontecimentos acadêmicos na área, foi
“[...] a partir desse evento, ao qual compareceram professores de Filosoa
de diversos estados brasileiros e de vários países, que principiamos a trocar
impressões e experiências, que começamos a nos debruçar com maior rigor
sobre o tema do ensino de losoa” (Gallo, 2004, p. 11). Ora, se não havia
no cenário brasileiro uma tradição teórica no ensino de losoa tal como des-
tacou Wuensch (1999), Gallo (2004) considera o referido congresso o ponto
de emergência de uma discussão mais rigorosa sobre o ensino de losoa no
Brasil. Além disso, no mesmo congresso ocorre uma reunião entre os inte-
grantes da mesa, a m de se pensar ações para fortalecer as discussões sobre o
ensino de losoa no país. Daí que se decide criar o I Congresso Brasileiro de
Professores de Filosoa, realizado na UNIMEP, conforme rememora Gallo
(2013) no capítulo do livro que marca a reunião do II Congresso Brasileiro
de Professores de Filosoa, realizado em Recife no ano de 2012:
Em 1999, entre quatro e nove de julho, a Universidade de Brasília se-
diou o Congresso Internacional de Filosoa com Crianças e Jovens
(IX Encontro do ICPIC – Conselho Internacional para Investigação
Filosóca com Crianças, então presidido por Walter Kohan). Embora
o foco do Congresso estivesse mais voltado para o ensino de Filosoa
na infância, foi realizada uma mesa redonda com o tema “A Filosoa no
Ensino Médio”, com representantes da Argentina, do Brasil, da França e
27 Disponível em: https://www.premiojabuti.com.br/premiados-por-edicao/premiacao/?ano=1998.
Acesso : 07 dez 2023.
56
do Uruguai. Professores do ensino médio presentes, bem como os par-
ticipantes da mesa, zeram uma reunião para discutir possibilidades de
ação no Brasil, e dessa reunião saiu a proposta de realizar um congresso
para discutir especicamente a problemática do ensino da Filosoa nes-
se nível de ensino. De modo que, entre cinco e oito de novembro de
2000, na Universidade Metodista de Piracicaba, foi realizado o Congresso
Brasileiro de Professores de Filosoa (Gallo, 2013, p. 14-15).
Muitos pesquisadores utilizam o I Congresso Brasileiro de Professores de
Filosoa para demarcar o momento histórico de início das pesquisas losócas
do ensino de losoa28. Conhecemos detalhes daquilo que lá ocorreu através
da coletânea Filosoa do Ensino de Filosoa (2003), organizada por Sílvio Gallo;
Márcio Danelon e Gabrieli Cornelli. Segundo Gallo, o título do livro anuncia
a tônica do que se procurou realizar no congresso, e que já estava previamente
anunciada pelo título do seu projeto de pesquisa: “[...] um trabalho de natureza
losóca sobre o ensino de losoa; ou, para dizer de outra maneira, tomar
o ensino de losoa como problema genuinamente losóco” (Gallo, 2012,
p. 14). No entanto, antes de adentrar a alguns detalhes importantes da referi-
da coletânea, atentemo-nos a uma publicação, em 2000, de outra coletânea,
Filosoa no Ensino Médio, iniciativa de Sílvio Gallo e Walter Kohan.
Filosoa no Ensino Médio é o volume VI da coleção “Filosoa na Escola
da Editora Vozes, e antecede à publicação da coletânea Filosoa do Ensino de
Filosoa, último volume da coleção. Na apresentação da obra, os organiza-
dores armam que, assim como o ensino de losoa não é uma tradição no
currículo da educação básica brasileira, a reexão e a produção escrita sobre o
ensino de losoa nesse nível de ensino deixam ainda a desejar. Não obstante
seja possível identicar alguns e até bons manuais para o ensino de losoa,
a bibliograa é parca: a “[...] produção losóca sobre o ensino de losoa,
entre nós, ainda é praticamente nula” (Gallo, Kohan, 2000a, p. 7).
Isso não signica dizer que jamais existiu uma produção teórica sobre o
ensino de losoa no Brasil. De acordo com os organizadores, entre os anos
28 Esses dois textos de Gallo (2004; 2013) servem de exemplo, mas também destacamos o texto de
Fávero et al (2004), Alves (2007) e Danelon (2008). O que eles têm em comum? O texto de Fávero
tem a presença de Gallo e Kohan, assim como dois de seus orientandos. Alves fez sua dissertação
com Gallo e retrata esse agenciamento acadêmico em conformidade com o autor; já Danelon foi
professor da Unimep, de 1997 a 2005, por isso, membro do GESEF.
57
de 1970 e 1980, houve uma produção considerável, em virtude da reforma
educacional inscrita na Lei n. 5692/71, que reestruturou o ensino de 1º e
2º graus. Alguns departamentos de losoa e estudantes das universidades
brasileiras articularam-se em defesa da presença da losoa no 2º grau, tendo
especial destaque a Sociedade de Estudos e Atividades Filosócas – SEAF.
Ainda que tenha nascido para se constituir como um espaço alternativo para
o estudo e o debate de ideias, inviabilizados nos cursos de losoa das uni-
versidades brasileiras, em razão da vigilância imposta pela ditadura militar,
a SEAF notabilizou-se também pela problemática relativa à losoa e seu
ensino, de forma a contribuir com uma série de atividades que reivindicava
sua volta obrigatória ao currículo (Alves, 2002, p. 42).
Num primeiro momento, o debate se concentrou no convencimento e
explicitação para a sociedade, em geral, e para os responsáveis pela educação,
em particular, da importância da losoa na educação básica para a formação
do cidadão, e da urgência de isso se efetivar. Em 1982, com a sanção da lei
7.044/82, há uma alteração na legislação que rege a educação, trazendo a
losoa como facultativa para o então chamado 2º grau. Com essa fresta na
legislação, por um lado, houve uma ampliação nas produções que buscavam
armar a importância do ensino da losoa nesse grau de instrução, e por
outro, a preocupação com o currículo, com os métodos e com a reimplemen-
tação pedagógica da disciplina começaram a aparecer nas produções acadê-
micas. Esse foi o caso das discussões ocorridas em São Paulo, publicizadas no
livro O ensino de losoa no 2º grau (Nielsen Neto, 1986). Foi nessa época
também que muitos livros didáticos, presentes na educação básica até os dias
de hoje, foram publicados. Relendo os acontecimentos da década de 1980,
assim escreve Tânia Gonçalves:
A década de 1980 marcou o período da chamada redemocratização, e
naquele momento reapareceu o debate sobre o ensino de Filosoa no
segundo grau. [...] O debate contou com signicativas colaborações da
Filosoa universitária em jornais e mesmo em periódicos acadêmicos. Por
essas colaborações, podemos observar uma signicativa preocupação com
a direção que deveria ser tomada pela Filosoa como disciplina escolar (a
abordagem deveria ser pela História da Filosoa, por temas ou outra va-
riante?). Esse debate foi incrementado pela publicação de obras que pro-
curaram dar um novo caráter ao ensino de Filosoa, assumindo uma nova
58
perspectiva a partir de contribuições diversas, sobretudo as produzidas pela
intelectualidade universitária. A título de exemplo, podem ser citados os
seguintes livros: Filosoa básica, de Henrique Nielsen Neto, cuja segunda
edição foi lançada durante o encontro em Santos; Primeira losoa, lições
introdutórias: sugestões para o ensino básico de Filosoa, de autoria de um
grupo de professores do Departamento de Filosoa da Universidade de
São Paulo; Curso de losoa: para professores e alunos dos cursos de segundo
grau e de graduação, de 1986, organizado por Antonio Rezende e conten-
do textos escritos por docentes e pesquisadores da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Filosofando: introdução à Filosoa, também de 1986, de autoria de Maria
Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins. Tais trabalhos
procuraram estabelecer um determinado padrão de ensino de Filosoa,
contemplando a História da Filosoa e textos de lósofos selecionados
(Gonçalves, 2011, p. 33-34).
Quando observamos a história das produções teóricas do ensino de
losoa no Brasil, é a primeira vez que há uma preocupação coletiva dos
lósofos universitários para escreverem sobre o ensino de losoa na escola.
Desde a implementação dos cursos de losoa universitários no país, a aten-
ção havia se concentrado estritamente na formação do lósofo prossional e
não dos professores para educação básica (Gelamo, 2009). Gonçalves (2011)
capta um elemento interessante desse acontecimento: os lósofos acadêmicos
almejaram estabelecer uma nova perspectiva de trabalho para a losoa no
segundo grau, na qual a história da losoa e o estudo dos textos clássicos
sejam o cerne das práticas de ensinar e aprender – e isso terá consequências
futuras nas reexões do ensino de losoa, numa tentativa de alinhar a forma
como se ensina na escola e na universidade29.
No entanto, Gallo e Kohan (2000a) dizem que essa produção, ainda que
signicativa, não foi suciente para criar uma área e desenvolver uma perspec-
tiva losóca de estudo e pesquisa do ensino de losoa, alterando a própria
estrutura dos cursos de losoa ou o modo como as questões do ensino de
losoa são vistas pela comunidade acadêmica. Pela própria forma do debate,
a discussão tomou um rumo apologético, de defesa da importância da losoa
29 Exploramos essas heranças acadêmicas nas práticas de ensinar e aprender losoa na educação
básica em nosso livro, Como nos tornamos os professores que somos (Rodrigues, 2020).
59
na formação do cidadão, e programático-pedagógico, sem que o ensino de lo-
soa se transformasse em um problema de estudo e pesquisa losóca:
Nos anos oitenta, a Seaf (Sociedade de Estudos e Atividades Filosócas)
foi responsável por uma produção e publicação razoável. Mas era um
tempo heroico”: foi o momento marcado pela volta da losoa ao Ensino
Médio, então denominado “Segundo Grau”. Os textos produzidos, en-
tão, tinham muito mais o cunho político de “apologia da losoa” para
justicar sua presença nas grades de estudos, do que propriamente uma
conceituação losóca do ensino de losoa. E com a precária volta da loso-
a aos currículos (de forma opcional, como sabemos), essa luta arrefeceu
e a produção bibliográca mingou. Nos anos noventa, por outro lado,
mesmo essa produção é praticamente inexistente (Gallo; Kohan, 2000a,
p. 7 – grifos nossos).
Não obstante as ações políticas e pedagógicas, a comunidade losóca
não se preocupou em criar condições estruturais para que o ensino de loso-
a fosse uma problemática para a losoa acadêmica, como são as questões
da ética, da política, da história da losoa e das demais temáticas canônicas.
Todo esse debate não se concretizou em esforços para trazer a problemática
do ensino de losoa para o núcleo duro de interesses das pesquisas em lo-
soa ou da licenciatura em losoa. Em outras palavras, décadas depois dos
anos 1970 e 1980, o debate se arrefeceria sem deixar um legado de estudos e
pesquisas losócas no ensino de losoa ou mesmo na estrutura da licencia-
tura, que continuaria a terceirizar as reexões losócas inerentes à formação
do professor de losoa aos prossionais da educação. O mesmo diagnóstico
é repetido por Sílvio Gallo, na década seguinte ao texto referenciado acima.
Em razão da temporalidade que marca sua escrita, o lósofo, além de rea-
rmar a desmobilização da universidade brasileira em relação ao ensino de
losoa na educação básica, defende que a pesquisa losóca séria na área só
se inicia recentemente:
Por anos, a universidade brasileira calou-se sobre o ensino de losoa no
ensino médio. É verdade que tivemos ações políticas pontuais importan-
tíssimas, em especial a mobilização de professores e estudantes universitá-
rios no nal da década de 1970 e na primeira metade de 1980 em torno
da defesa de uma “volta” da losoa aos currículos da educação média.
60
Tal mobilização resultou na publicação de artigos em jornais e em revistas
acadêmicas e mesmo de alguns livros. Mas essa reexão foi mobilizada em
torno de uma questão pontual: a defesa da losoa, de sua necessidade
e as justicativas construídas para armação dessa importância e neces-
sidade. Contudo, isso não signicou que o problema de ensinar e aprender
losoa tenha sido tomado como uma tarefa séria a ser enfrentada. Muito
menos que tenha sido tomada como um problema losóco. Não chega a duas
décadas a tomada em sério da questão do ensinar e do aprender losoa como
problema de pesquisa, como objeto de pesquisa losóca séria (Gallo, 2015,
p. 13 – grifos nossos).
Assim, ao dizer que a produção losóca sobre o ensino de losoa, en-
tre nós, é praticamente nula, Gallo e Kohan (2000a) denunciam o descaso aca-
dêmico de alguns colegas que “[...] armam que os grandes lósofos da história
nunca se dedicaram ao problema do ensino produzindo conceitos, reexões e
obras sobre essa temática” (Gallo; Kohan, 2000a, p. 7-8). Em outras palavras, o
que eles denunciam é o ensino de losoa como um problema losóco ainda
pouco explorado pela intelectualidade universitária. Para eles, pouco adianta
defender a presença da losoa na escola se não reetirmos losocamente
sobre a questão, conforme consta na contracapa da referida obra:
[...] para que tenhamos verdadeiras aulas de losoa é necessário que nos aven-
turemos por um terreno muito pouco explorado no Brasil: o trato losóco do
ensino de losoa. Em outras palavras, o ensino de losoa é por demais
complexo para ser trabalhado em seu aspecto estritamente pedagógico; é ne-
cessário que a própria losoa se debruce sobre o problema de seu ensino, já
que desde suas origens gregas ela tem um compromisso com a paideia, com
a formação cultural dos jovens (Gallo; Kohan, 2000c, s/p – grifos nossos).
Essas ponderações já nos indicam o processo de ruptura que certo gru-
po de pesquisadores procura estabelecer e, com isso, de inauguração do modo
losóco de encarar as questões do ensino de losoa. Pensar losocamente
o ensino de losoa, estabelecer uma conceituação losóca do problema,
será diferente de pensá-lo de modo estritamente apologético ou mesmo na
esteira pedagógica do problema. Se a opinião de grande parte da comunidade
acadêmica de losoa arma que os grandes lósofos nunca se dedicaram ao
problema do ensino, os autores relembram os escritos contemporâneos de
61
Kant, Hegel e Derrida, para exemplicar reexões losócas recentes sobre
o ensino de losoa. Ainda que a comunidade acadêmica reconheça que os
lósofos dedicaram ocasionalmente à educação losóca, a ponto de essas
reexões ocuparem um lugar menor em suas obras, os autores, para se con-
traporem a esse argumento, resgatam uma tese tradicional às pesquisas de
losoa da educação, segundo a qual toda losoa é uma losoa da edu-
cação. Isso signica que se interpreta o losofar como uma tarefa educativa,
condição que faz do ensino de losoa uma dimensão central da atividade
e não um problema menor ou colateral à tradição losóca. Quando o -
lósofo se coincide com o educador, a educação e a formação tornam-se um
compromisso do lósofo com o seu tempo. Assim, um outro olhar para a
história da losoa justica plenamente “[...] a eleição do ensino da losoa,
ou da ‘pedagogia da losoa’, como um tema estritamente losóco” (Gallo;
Kohan, 2000a, p. 8).
E é sob o signo dessa nova perspectiva que os textos dessa coletânea são
apresentados, convidando o leitor a participar desse território ainda pouco
explorado no Brasil, e a reabrir um debate tão essencial para que a disciplina
volte a ocupar um papel fundamental na educação básica:
Esperamos que esses textos possam contribuir para que os professores de
losoa, os estudantes de losoa, além dos demais interessados nos as-
suntos, possam colocar-se losocamente a questão do ensinar losoa, pos-
sibilitando com isso que cada vez a losoa possa, de fato, inserir-se no
currículo de nosso Ensino Médio, como uma atividade crítica e resistente
na formação de jovens dispostos a problematizar o presente. E para voltar
a abrir um debate tão necessário, tratando-se de losoa (Gallo; Kohan,
2000a, p. 9-10 – grifos nossos).
Essa apresentação chama-nos a atenção pelo caráter losóco que pro-
cura inaugurar na forma de pensar e ensinar a losoa no Brasil. Os organi-
zadores acabam por se posicionar criticamente ante a forma como a comuni-
dade losóca hegemônica trata as questões de ensinar e aprender losoa.
Ainda que reconheçam a importância dos debates da década de 1970 e 1980,
eles estabelecem uma descontinuidade com os problemas da losoa e seu
ensino. Enquanto as movimentações teóricas da década anterior se cristali-
zaram na bandeira de defesa da presença da losoa na educação básica ou
62
mantém um olhar estritamente pedagógico para a questão, eles procuram
agenciar um debate conceitual, buscar um desenvolvimento teórico da área
do ensino de losoa.
Além dessas relações de saber que podemos depreender da apresentação
da obra, um outro trabalho discursivamente potente para esse projeto político
losóco de ensinar e aprender losoa é o texto “Crítica aos lugares-comuns
ao se pensar a losoa no ensino médio”, escrito por ambos os organizadores
da coletânea. Esse texto contém algumas teses que foram desenvolvidas no
decorrer da década por aqueles que procuram pensar losocamente o ensi-
no de losoa, forçando uma transformação discursiva do pedagógico para
o losóco. Logo no início, eles destacam “[...] o gritante desinteresse da
maioria dos lósofos neste país – para melhor dizer, na América Latina toda
– pela educação, a falta de compromisso das instituições públicas de Ensino
Superior (tanto federais quanto estaduais) na formação de professores, ou
melhor ainda, de lósofos educadores” (Gallo; Kohan, 2000b, p. 176). Aqui
há o destaque para uma das consequências de se pensar losocamente o en-
sino de losoa: formar lósofos educadores. Não se trata de um desprestígio
à função do professor, nem de criar uma hierarquia do lósofo acima do pro-
fessor, mas de resgatar uma virtualidade educadora da losoa e atualizá-la
no presente no conceito de lósofo que faz losoa educando.
Ora, essa é, ao nosso ver, a principal questão que perpassa o projeto po-
lítico losóco: atualizar as potencialidades educativas da losoa, transfor-
mando a maneira como nós somos formados na contemporaneidade, como
ensinamos e aprendemos losoa, através de uma reexão tipicamente losó-
ca que pensa e repensa os seus próprios pressupostos. Vejamos o que dizem
os lósofos no excerto abaixo:
O momento é importante no Brasil. Todos o são. A losoa tem uma
oportunidade de atualizar suas possibilidades educacionais. Para tal,
precisa transformar seu presente. Como? Transformando-se a si mesma.
Como? Pensando-se a si mesma. Como? Através de si mesma. Neste capí-
tulo tentaremos traçar algumas linhas para pensar o presente da losoa
no Ensino Médio. Importa-nos problematizar alguns sentidos óbvios ar-
mados dentro da própria losoa. Duvidar do estado de coisas aparen-
temente comum e normal que a losoa se oferece a si mesma (Gallo;
Kohan, 2000b, p. 176 – grifos no original).
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Especicamente nesse texto, eles vão problematizar os lugares comuns
pressupostos nas três formas de ensinar e aprender losoa na educação bá-
sica – ensino de losoa baseado na história da losoa, em problemas lo-
sócos e por meio de habilidades cognitivas ou atitudes losócas. Dos sete
pressupostos/lugares comuns presentes nas três alternativas de se praticar o
ensino de losoa, o primeiro pressuposto apontado, e o qual nos interessa
analisar, é a distinção entre professor de losoa e lósofo.
O que representa a distinção entre professor de losoa e lóso-
fo? Essa é uma distinção paralela àquela que se tem institucionalizado nos
cursos universitários de losoa, que diferencia o licenciado do bacharel.
Primeiramente, encara-se essa distinção em relação à capacidade intelectual,
segundo a qual os melhores estudantes voltam-se à pesquisa acadêmica e os
outros voltam-se ao ensino de losoa, ou seja, vão ser professores da educa-
ção básica. Dessa hierarquia institucional depreendem-se alguns pressupostos
inerentes às práticas de ensinar e aprender losoa. Assume-se, por exemplo,
que o ofício do professor é secundário ao do pesquisador. Além disso, con-
sidera-se que a pesquisa está dissociada do ensino, como se fosse possível ser
um bom professor sem realizar pesquisas sobre suas próprias práticas. Enm,
o que se desvaloriza é a vocação de educador dos discentes e a dimensão
educacional da losoa e, com isso, cria-se uma cisão inexistente na losoa:
aqueles que produzem a losoa e aqueles que fazem circular o saber losó-
co, ou seja, entre o lósofo e o professor de losoa. Em outras palavras,
quando se desvaloriza a dimensão educacional da losoa pressupõe-se que
não precisa ser lósofo, produzir e criar losocamente, para ensinar losoa
e que a educação não é uma prática de natureza losóca.
Mas será que o professor de losoa pode se furtar a ser também um
lósofo? Condiz com a historicidade do saber losóco essa distinção entre
educar e losofar? Pode o professor de losoa deixar de losofar quando
ensina losoa? O losofar não é uma condição necessária para aqueles que
educam e transmitem o legado losóco? Aliás, pode-se losofar sem educar?
Os autores acreditam que não. Tanto pelo aspecto educativo da losoa e,
portanto, dialógico – sempre se pratica losoa com outros –, seja pela di-
mensão losóca inerente à dimensão educativa da losoa: não se trata de
mera reprodução, um lósofo jamais se relaciona com a tradição losóca
64
para reproduzir aquilo que foi dito; ele não se limita a redizer o que o lósofo
disse. Um professor de losoa é um lósofo, ele precisa ser um lósofo para
ensinar a losoa, porque, para transmiti-la, precisa praticar sua atividade
com os outros, ele dialoga com a tradição losóca e com seus estudantes,
transformando as práticas de ensinar e aprender em algo tipicamente produ-
tivo, uma experiência losóca de pensamento:
Com efeito, a losoa tem sido sempre educativa, seja nas implicações
do pensamento losóco, seja na prática dos lósofos. A losoa nunca
pode esconder seus efeitos no outro, e isto é manifesto mesmo naqueles
lósofos que negaram enfaticamente qualquer interesse em falar para um
outro. A losoa sempre fala para um outro, ela sempre se faz com um
outro, mesmo que ele seja um outro internalizado. [...] Um professor de
losoa que apenas reproduza, que apenas diga de novo aquilo que já
foi dito não é, de fato, um professor de losoa; o professor de losoa
é aquele que dialoga com os lósofos, com a história da losoa e, claro,
com os alunos, fazendo da aula de losoa algo essencialmente produtivo.
Portanto, a losoa não é produzida numa parte e ensinada noutra, ela
é sempre produzida e ensinada ao mesmo tempo. A losoa não pode
ser ensinada no sentido de ser transmitida, pela mesma razão pela qual
ela não pode ser escrita, como diria Platão no Fedro (274c s), porque ela
depende de uma atitude tão vivencial e ativa do sujeito que aquele que se
situa como suposto transmissor da losoa se coloca num não-lugar lo-
sóco. Mesmo – ou melhor, sobretudo – quando o assunto é a história da
losoa ou a losoa de outro lósofo, a transmissão é um não-lugar da
losoa, porque ela não pode ser enfrentada externamente, como aquilo
que um outro faz: ou ela se exerce, se pratica ou se faz outra coisa. Todos
os lósofos da história zeram isto, por isso são ao mesmo tempo lósofos
e educadores, os melhores ensinantes de losoa! Quer melhores profes-
sores de losoa que os textos losofantes dos bons lósofos? O professor
que não se assume como lósofo não tem a menor chance de ensinar lo-
soa, assim como o professor que não se reconhece como pesquisador não
poderá fazer outra coisa do que reproduzir aquilo que outros pensaram,
uma marca da antilosoa (Gallo; Kohan, 2000b, p. 182-183).
Temos aqui uma problematização que altera fundamentalmente a for-
ma de ensinar e aprender losoa. Já não cabe mais essa distinção entre o
professor de losoa e o lósofo; para ser um professor de losoa, precisa-se
65
losofar, vivenciá-la em suas práticas educativas, do mesmo modo que se pre-
cisa questionar losocamente os pressupostos e as suas práticas de ensinar e
aprender. Nesse sentido, o que esses autores fazem é reposicionar o professor
de losoa, tiram dele o lugar de guardião e transmissor neutro do legado -
losóco, como reprodução, e invocam a dimensão de uma transmissibilidade
do losofar pela criação e pela convivência com o outro.
Essa mudança de estatuto do professor de losoa como transmissor
do conhecimento para uma dimensão losóca de ensinar e aprender lo-
soa acaba, consequentemente, deslocando a maneira de pensar o ensino de
losoa do registro pedagógico de reexão, que tem como base fundamen-
talmente a preocupação com aquilo que se ensina, como se ensina e para que
se ensina. Não que essas questões não sejam pertinentes, mas, como Gallo e
Kohan (2000b) mostraram, as diferentes formas de ensinar e aprender loso-
a podem ter pressupostos comuns que nos fazem assumir certas práticas que
reposicionam nosso ofício como professores e nossa relação educativo-losó-
ca. Anal, quais são os pressupostos que guiam nossas práticas? Que é isso
que fazemos quando somos professores de losoa?
Por essa razão, para se praticar um ensino de losoa losóco faz-se
imprescindível pensar losocamente essa questão. Não se trata de pensar as
questões do ensino de losoa como se fôssemos transmitir pedagogicamen-
te, de maneira ecaz e neutra, um saber losóco acumulado historicamente.
As questões que a pedagogia coloca à losoa são importantes para pensar a
dimensão educativa da losoa nas instituições de ensino, mas não são ex-
clusivas. Os autores nos convidam a pensar losocamente uma maneira de
ensinar e aprender losoa, de criarmos um modo de problematizar o ensino
de losoa, a m de repensar a transmissibilidade do saber losóco como
criação e como prática de um pensamento coletivo. O que está em questão é
uma forma de pensar, uma experiência de pensamento que seja losóca, e
não uma experiência pedagógica de apresentação da losoa:
[...] a questão do ensino de losoa é uma questão losóca e não meramente
pedagógica e deve, portanto, ser enfrentada como tal. [...] Se tratarmos a
problemática do ensino de losoa exclusivamente no plano pedagógico
– o que acabam fazendo quase todos os cursos de licenciatura em losoa,
como já vimos – perdemos o âmbito losóco da questão e ela ca “manca”.
66
Acabamos caindo nas mãos de uma didática não losóca e naqueles luga-
res comuns dos quais já tratamos neste capítulo. Se, como temos tratado aqui,
a atividade losóca é em si mesma educativa, não faz sentido falar de uma
didática apenas instrumental. Para que aqueles lugares comuns possam ser
de fato superados é preciso que o ensino do ensino de losoa seja tratado
como uma “pedagogia do conceito”, que ele seja tratado de forma estrita-
mente losóca (Gallo; Kohan, 2000b, p. 190-191 – grifos nossos).
De maneira geral, as críticas a todos os outros pressupostos vão ser in-
dicativas dessa política losóca do ensino de losoa e da atualização dessa
dimensão educativo-losóca da losoa na contemporaneidade. Essa políti-
ca losóca de ensinar e aprender losoa, assim como suas críticas à losoa
e aos outros pressupostos serão desdobradas em outros textos constituintes
dessa década, seja pelos autores, seja pelos seus orientandos e/ou intercessores
que se apoiam neles para defender suas próprias teses.
O I Congresso Brasileiro de Professores de Filosoa, publicado na co-
letânea Filosoa do Ensino de Filosoa (Gallo; Cornelli; Danelon, 2003), vo-
lume VII da Coleção “Filosoa na Escola”, é um desses casos. Não sem razão,
muitos pesquisadores do ensino de losoa tomam o evento como marco
histórico para a área. A tônica do congresso é instituir um pensamento losó-
co sobre o ensino de losoa e isso se faz presente já no título da coletânea,
que publicaria parte das reexões e das mesas de conferência do evento. A
apresentação, escrita por Gabriele Cornelli, professor da UNIMEP e inte-
grante do GESEF, reforça e expande o sentido e os desejos dos organizadores
do evento. Partindo da analogia de um canteiro de obras, Cornelli (2003)
descreve o evento como espaço de reexão momentâneo, cujo intuito foi ge-
rar trocas losócas sobre o ensino de losoa – suas didáticas, metodologias,
teorias e práticas de ensinar e aprender. Um dos resultados dessa convivência
foi a própria coletânea, denida como uma caixa de ferramentas para aqueles
que desejam reetir sobre o ensino e a aprendizagem da losoa.
Assim, com os objetivos de explorar, losocamente, a didática do ensino
de losoa em seus vários níveis de ensino, gerar espaços para troca de
experiências entre professores atuantes em todo o país e explorar novas
possibilidades teóricas e metodológicas para pensar e praticar o ensino
de losoa, o Congresso discutiu os impasses e desaos da losoa no
67
sistema de ensino brasileiro contemporâneo, tentou consolidar um espaço
de intervenção sobre o ensino de losoa para professores atuantes em
todo o país, chegando também a pensar os atuais espaços públicos da -
losoa no Brasil. Deste canteiro restam boas discussões, muitos contatos,
projetos de colaboração para o futuro e – para todos – esta publicação, que
quer se apresentar como uma caixa de ferramentas do pensar o ensino de
losoa hoje (Cornelli, 2003, p. 9-10 – grifos nossos).
Cornelli (2003) não deixa dúvidas sobre a qualidade das ferramentas:
elas são losócas por excelência, elaboradas por autores brasileiros e de ou-
tros países (Argentina, Uruguai, Itália e França) desde as mais diferentes tra-
dições losóco-pedagógicas, experiências institucionais, prossionais e exis-
tenciais. Apesar das diferenças históricas e geográcas entre os autores, essas
experiências de pensamento dão organicidade inaugural de algo que, até en-
tão, era diagnosticado como ausente: um campo losóco de discussão sobre
o ensino de losoa. Observa Cornelli (2003) que esse campo losóco em
emergência procura estabelecer seu território na própria losoa, resgatando
sua virtualidade educativa. No entanto, não se busca a losoa para armar
uma forma de pensar semelhante à losoa acadêmica vigente ou à losoa
dos grandes clássicos; almeja-se utilizar da própria tradição losóca para
problematizar e tensionar a forma hegemônica de fazer e ensinar losoa, a
m de reinventar uma prática losóca que atualiza/cria as potencialidades
educativas da losoa.
A uma leitura atenta não foge, porém, um ponto de convergência na di-
versidade [dos textos que compõem a coletânea] acima indicada, que sur-
ge na singularização de um campo de discussão que, pensando a losoa como
ensino, revela a necessidade da reexão sobre sua função política, seu sig-
nicado como instrumento de formação de homens e mulheres cidadãos.
Este campo que podemos resumir nas intersecções da tríade losoa-ensi-
no-política, que encontraremos como pano de fundo conceitual em pra-
ticamente todas as contribuições a seguir, permite reconhecer a reexão
sobre o ensino da losoa não somente um passaporte, ou uma “carteira
de identidade” losóca no interior da Filosoa (aquela dos grandes clás-
sicos), mas – ao mesmo tempo – a denição de um outro lugar hermenêu-
tico, um ponto de vista próprio, a partir do qual pensar a mesma losoa.
Isto é, após rearmar mais uma vez que reetir sobre o ensino de losoa
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é também ofício da losoa, no lugar de uma simples reivindicação de um
espaço dentro da losoa para pensar o seu ensino, o canteiro de Piracicaba
parece elaborar uma nova compreensão deste mesmo espaço. Assim o ensino
de losoa adquire, nestas páginas, a conotação de um lugar muito par-
ticular e signicativo a partir do qual pensar a própria Filosoa, toda ela,
mesmo – ou talvez, sobretudo, aquela com F maiúsculo (Cornelli, 2003,
p. 10-11 – grifos nossos).
Consideramos essa passagem crucial para qualicar essa política lo-
sóca de ensinar e aprender losoa, em gestação naquele momento. Ela
rearma que o ensino de losoa é ofício da losoa e que a emergência
desse campo de discussão passa pelo reconhecimento do caráter losóco do
ensino de losoa. Porém, ao territorializar as questões do ensino de losoa
no campo da Filosoa, quer-se inventar um novo lugar dentro dessa tradição,
habitar diferentemente o espaço losóco, com o objetivo de se cultivar uma
relação com a losoa que arme a experiência educativa losóca, contra-
pondo-se às práticas da losoa hegemônica – que despotencializaram a di-
mensão educativa da losoa.
Nesse sentido, tornar o ensino de losoa objeto caro às reexões lo-
sócas acadêmicas signica reconhecer também a necessidade de criação de
novas coordenadas ao campo, que terá como alvo uma relação que, até aquele
momento da pesquisa universitária losóca brasileira, não havia ainda tido
espaço, a saber: uma losoa que se faz como ensino. Trata-se, sobretudo, de
reinventar, na atualidade, um antigo compromisso ético e político do lósofo
como educador, agora professor de losoa, que faz da sua própria prática
educativa um ato losóco. Os professores e professoras de losoa se tor-
nam, então, genuínos lósofos, cuja expressão se faz imanente às suas atua-
ções docentes. Será lósofo ao assumir um compromisso teórico-losóco
com as questões do ensino de losoa, e, também, será lósofo ao se tornar
um professor-lósofo em sala de aula.
Dois textos dessa coletânea nos ajudam a dimensionar as projeções
de Cornelli (2003), trazendo à superfície discursiva o projeto losóco de
ensinar e aprender losoa em questão. Em primeiro lugar, tem-se o texto
de Alejandro Cerletti “Ensino da losoa e Filosoa do Ensino Filosóco
(2003), cujo propósito consiste em pensar o processo de formação do
69
professor de losoa. Suas reexões são fundamentais para mostrar as im-
plicações losócas imbuídas na problematização do ensino de losoa, de
maneira a demonstrar a impossibilidade de se reduzir a questão a uma ree-
xão pedagógica.
Para o autor, um professor de losoa “[...] não se constrói apenas cur-
sando algumas matérias pedagógicas” (Cerletti, 2003, p. 62). Ele nos conta
que, na Argentina, nos últimos dez anos, há uma série de trabalhos relativos à
didática da losoa de tal forma a tornar quase um ponto pacíco entre esses
pesquisadores e pensadores que algo que pode ser transmitido/ensinado em
losoa, e que aquilo que pode ser ensinado é o losofar. Outros trabalhos
ainda ampliam esse horizonte do ensinar a losofar, para uma perspectiva de
um ensino losóco. Muito mais do que uma mudança na nomenclatura,
falar de um ensino losóco representa “[...] uma mudança fundamental
na forma de pensar a didática da losoa” (Cerletti, 2003, p. 65). Dito de
outra forma, essas mudanças representam uma nova maneira – losóca – de
pensar as relações de ensinar e aprender losoa, que exige do professor de
losoa fazer um exercício losóco essencial: “[...] avaliar o horizonte dos
condicionamentos de sua atividade docente com as ferramentas que a própria
losoa lhe dá” (Cerletti, 2003, p. 65).
Considerar que a losoa está em condições de pensar sua própria prá-
tica de ensinar e aprender é, nas palavras de Cerletti, “[...] fazer losoa do
ensino losóco” (2003, p. 65). E isso signica romper com a tradicional
dualidade presente nos cursos de losoa e nas reexões sobre o assunto:
“[...] didática, por um lado, losoa, pelo outro, como se fossem terrenos
independentes” (Cerletti, 2003, p. 65). Problematiza-se, então, a aplicação de
uma suposta didática geral à losoa, como se aquela fosse um conjunto de
técnicas, estratégias ou recursos e como se o saber losóco e suas múltiplas
compreensões não tivessem implicações nas resoluções de ensinar e aprender.
Talvez mais pertinente para nossa investigação seja o destaque para
aquilo que se abre quando se defende o ensino de losoa como problema
losóco. Amplia-se o campo da losoa acadêmica, que passa a incluir as
reexões sobre o ensino de losoa como uma problemática genuinamente
losóca. Nas palavras do argentino, “[...] agora a losoa deverá reconhecer
como próprio o problema de sua transmissão ou de seu ensino, que é algo
70
que sempre se viu (sobretudo a partir da losoa acadêmica) como um as-
pecto separado ou como uma questão subalterna ou menor” (Cerletti, 2003,
p. 66). Em outras palavras, uma losoa do ensino losóco consistiria na
criação de um novo campo de pesquisa losóca, de forma a proporcionar
novos conteúdos, objetos e problemáticas à área da losoa. Signica “[...]
inaugurar um território losóco ‘losoa do ensino losóco’ e dentro dele
pensar as condições e as possibilidades da transmissão e ensino dos saberes,
das atitudes e práticas losócas” (Cerletti, 2003, p. 67-68).
Para Cerletti (2003), a maneira losóca de pensar o ensino de losoa
gera um impacto não só para a losoa acadêmica, ampliando seu território
investigativo, mas também nos cursos de licenciatura de losoa, uma vez
que a formação do professor e as reexões sobre o ensino de losoa acabam
por ser tensionadas em um espaço próprio de reexão losóca. E isso, em
seu modo de ver, revaloriza a função do professor. Ele já não será apenas um
reprodutor ou repetidor das teses losócas, mas passa a encarar o ensino de
losoa como um problema losóco. “Ou seja, o desao da aula o interpela
como lósofo” (Cerletti, 2003, p. 66).
Tal como se observa, os discursos que Cerletti (2003) faz circular
em seu texto caminham, sincronicamente, com o projeto de uma políti-
ca losóca de ensinar e aprender losoa, que visa a essa ampliação do
campo da Filosoa para se criar um território, um novo campo do Ensino
de Filosoa. Segundo Filipe Ceppas, aquilo que Cerletti expõe na mesa
redonda “Filosoa do Ensino de Filosoa” no I Congresso Brasileiro de
Professores de Filosoa faz parte de algo que já vem se discutindo no
Brasil. Para ele, cresce entre nós a “[...] reexão losóca sobre o ensi-
no de Filosoa. Há anos nós temos falado de uma Filosoa do Ensino
de Filosoa; e Alejandro Cerletti, falava, aqui, dois anos atrás, em uma
Filosoa do ensino losóco” (Ceppas, 2004, p. 22).
Enquanto as observações de Cerletti (2003) resgatam a perspectiva
teórica do projeto losóco de ensinar e aprender losoa, destacando prin-
cipalmente a emergência das novas pesquisas, de uma nova forma de pensar
o ensino de losoa, é no texto de outro integrante da mesa “Filosoa do
Ensino de Filosoa” que encontramos a outra parte do projeto: a invenção de
um novo modo de fazer losoa. Mauricio Langón, em seu texto, “Filosoa
71
do ensino de losoa”, apresenta uma forma de fazer losoa educando.
Resgata a gura socrática que, apesar de não ensinar a losofar, impulsiona
os outros a losofar losofando. Sócrates é o mestre vivo que “[...] através
de seu ensinamento losóco (dia-losoa, trans-losoa), educa. E educar é
basicamente levar a losofar” (Langón, 2003, p. 90).
Para o autor, o losofar não é uma atividade de estilo e formato único,
ele é variável de acordo com a cultura, com a época e com o povo que a pra-
tica. O losofar é pautado “[...] pelos modos próprios de se relacionar(-se)
dessa cultura, povo, época, que transita caminhos trilhados (que, ainda que
os transforme, o faz a partir dele” (Langón, 2003, p. 93). O losofar se realiza
concretamente em âmbitos determinados, como a sala de aula, um café lo-
sóco, uma comunidade de pesquisa, em uma ocina de educação popular,
em um grupo de amigos etc. “Cada espaço gera um estilo próprio, reservado,
intransferível a outros. E também bastante irrepetível, instável, cambiante
(Langón, 2003, p. 93 – grifos no original). Diante das argumentações do
autor, questionamos: qual losofar emerge das condições concretas da sala de
aula e qual estilo se faz passível de criar?
Langón diz qual o sentido de uma losoa do ensino de losoa.
Arma que uma “losoa do ensino de losoa” parte do dito kantiano: não
se pode aprender losoa e sim aprender a losofar, que inverte de entrada a
posição do tema. Sem recorrer a todas as implicações do adágio kantiano, o
autor arma que já não se pensa o ensino de losoa em termos de ensino,
mas em termos de aprendizagem. Além disso, não se trata de memorizar um
objeto conhecido, e sim desenvolver habilidades e capacidades voltadas ao
domínio de dada ação. Ora, quando se coloca o problema de ensinar e apren-
der losoa a partir do sujeito que aprende, enfocando nas suas aptidões
ativas, no losofar, as relações mantidas na tríade professor-estudante-conhe-
cimento alteram-se signicativamente.
Levando em consideração a concretude do losofar feito em espaço
escolar, em uma sala de aula, as práticas de ensinar e aprender losoa são
aproveitadas para aprender a losofar, mas há deslocamentos e recongura-
ções. Por exemplo, uma mudança signicativa ocorre na questão da didática,
cujo enfoque não é uma relação pedagógica com o saber losóco, de apre-
sentação e transmissão de conhecimentos. Compreende-se a didática como
72
uma maneira de losofar, porque aquilo que está em questão é um losofar
educando, de educar losocamente losofando:
Uma didática do losofar não deve ser pensada como um modo de didá-
tica, mas como um modo especíco de losofar. Trata-se de losofar edu-
cando, de losofar fazendo losoa, de fazer losoa ajudando a loso-
far, de losofar em grupo. Trata-se de educar losofantes losofando com
crianças, jovens, adultos, anciãos, lósofos “prossionais”, estudantes de
“losoa”, “não-lósofos”...E losofando com pessoas, mas também com
grupos; na aula e fora dela; em circunstâncias formais de educação e não
formais (Langón, 2003, p. 92 – grifos no original).
Diferentemente do acento teórico às reexões do ensino de losoa,
Langón (2003) prevê uma losoa do ensino de losoa como um estilo de
losofar inventado na concretude da sala de aula e/ou nos espaços educa-
tivos. Para ele, o losofar é uma atividade feita com os outros, é uma ação
relacional através da qual se transformam as relações, independentemente das
circunstâncias concretas. Por essa razão, fazer losoa em sala de aula consiste
em praticar um losofar que se realiza como educação, de losofar para que
outros também losofem. Eis então o exemplo socrático, um mestre vivo. As
relações educativas e losócas de Sócrates mostram esse losofar comunitá-
rio, de um mestre que também aprende com seus discípulos. “Em cada classe,
em cada comunidade, está cada um de nós; está o mestre vivo, o lósofo vivo,
que quer pôr em movimento seus discípulos, mas sem que isto implique nem
dominá-los nem morrer” (Langón, 2003, p. 95).
Nesse sentido, um losofar em sala de aula, uma losoa que se faz
como prática de ensinar e aprender, transforma a escola e as salas de aula
em um estilo de convivência losóca, de viver coletivamente, cujas relações
permitem que a vida se faça presente e mova os mestres e os discípulos. Nas
palavras de Langón, “cada aula de losoa é uma forma de convivência entre
mestre e discípulo. Como é vida, é movimento, é uma comoção, um movi-
mento mútuo. A comoção é a vida da aula de losoa; sem comoção não há
vida na aula” (Langón, 2003, p. 95).
Com Langón (2003), ilustramos como essa dimensão educativa de
uma política losóca de ensinar e aprender losoa circula no I Congresso
Brasileiro de Professores de Filosoa. Suas armações sobre os estilos e as
73
dimensões concretas e culturais inerentes ao losofar são fundamentais para
levantar os signos, de cujas forças nos levam a invenção de um estilo de loso-
far educativo em sala de aula. Nesse novo espaço, o professor se torna lósofo
– não só porque pensa losocamente seu ofício, mas porque faz de seu ofí-
cio uma atividade losóca. Assim, não é incumbência do professor ser um
transmissor de conhecimentos historicamente consolidados; seu ofício é ser
um mestre vivo, precisa conviver com os estudantes para losofar; precisa -
losofar para que os estudantes também losofem. Sua didática não é pedagó-
gica, é genuinamente losóca, uma maneira de exercitar-se losocamente.
Com isso, a sala de aula deixa de ser um espaço de circulação pedagógica dos
saberes losócos e se torna um espaço, por excelência, de um novo losofar
que se revitaliza contemporaneamente a partir de uma convivência educativa.
Em síntese, a partir dos textos de Cornelli (2003), Cerletti (2003) e
Langón (2003) parece-nos possível mostrar a importância do I Congresso
Brasileiro de Professores de Filosoa para projeção de uma política losóca
de ensinar e aprender losoa. Não só pela parte teórica, mas também pelo
agenciamento acadêmico que ocorre a partir dele. Ainda na apresentação,
Cornelli (2003) relata quais foram as estratégias para intensicar o debate e
ampliar aquela experiência de campo que emergia no I Congresso Brasileiro
de Professores de Filosoa:
Além destas e muitas outras palavras que marcaram o Congresso, resta-
ram indicativos de continuidade e vários projetos concretos, como os de
organizar fóruns de professores de losoa em nível regional, da oportu-
nidade de realizar em breve um II Congresso Brasileiro de Professores de
Filosoa, de redobrar o esforço para a realização de novas publicações na
área, de criar linhas de pesquisa especícas sobre o ensino de losoa em
nível de pós-graduação (Cornelli, 2003, p. 13-14).
Para aqueles que articulavam esse movimento acadêmico em torno do
ensino de losoa, o retorno da losoa à educação básica dependia não só
de uma atuação política em nível institucional – lutar pela inserção da disci-
plina no currículo da educação básica –, mas fundamentalmente da invenção
de uma política losóca de ensinar e aprender losoa: incentivar a produ-
ção acadêmica responsável por estabelecer uma literatura losóca na área,
74
continuar a organizar eventos para discussão losóca do ensino de losoa,
incentivar pesquisas sobre o assunto, instituindo novos quadros de pesqui-
sadores na área, enm, criar um campo do Ensino de Filosoa. Partindo da
experiência do Fórum Sul de Coordenadores dos Cursos de Filosoa, que
já havia realizado os Encontros de Cursos de Filosoa do Sul do Brasil, e
que convocavam para um primeiro encontro sobre o ensino de losoa –
Simpósio Sul-brasileiro sobre o Ensino de Filosoa – inspirou-se na ideia de
criação de outros fóruns regionais, a m de ampliar e organizar, organica-
mente, o debate. Segundo Gallo, “[...] a estratégia seria então a de fortaleci-
mento regional da organização de professores e aprofundamento do debate
em torno do ensino da Filosoa, de modo a possibilitar, no futuro, ações em
níveis mais gerais” (2013, p. 16). Assim, da experiência do Fórum Sul são
criados os Fórum do Centro-Oeste de Ensino de Filosoa, Fórum Sudeste de
Ensino de Filosoa e Fórum Norte-Nordeste de Ensino de Filosoa.
1.3. Entre a cidadania-curricular e a cidadania-losóca: uma virada
discursivo-losóca
Sob a ótica daqueles que observam os acontecimentos do início da
década de XXI de trás para frente, vemos que, vinte anos depois, parte sig-
nicativa das resoluções iniciais se concretizaram. Na luta pelo retorno da
losoa à educação básica, os professores de losoa se somaram aos esforços
de sociólogos e de suas associações que reivindicaram o retorno obrigatório
das duas disciplinas ao currículo da educação básica. Dentre as iniciativas
nessa direção, mencionamos, por exemplo, a Carta de Piracicaba, escrita em
decorrência do I Congresso Brasileiro de Professores de Filosoa, que mani-
festou apoio aos senadores e deputados pela aprovação do PL. nº 3178/97,
como também a Carta de Londrina, elaborada no VI Simpósio Sul-brasileiro
sobre o Ensino de Filosoa. De acordo com Adriana Maamari, uma das or-
ganizadoras daquela edição, a “[...] petição e a representação do fórum [sul],
naquele momento, tiveram caráter nacional e podem ser consideradas o pri-
meiro gesto político de uma articulação nacional que reuniu todos os fóruns
do país!” (Maamari, 2017, p. 71).
Alves (2007), em sua participação no I Simpósio sobre o Ensino de
Filosoa (SIMPHILO), sediado em Campinas/SP e organizado pelo Grupo
75
de Pesquisa Paideia, da Unicamp, ressalta que a atuação da losoa foi mais
acadêmica, do que propriamente política, isto é, frente ao congresso brasi-
leiro30. Para ele, a atuação da comunidade losóca gerou, principalmente,
“[...] eventos, publicações e pesquisas de mestrado, doutorado e monograas
de conclusão de curso sobre o tema do ensino de Filosoa sob os mais varia-
30 Alves (2007) pode ter razão quando compara os esforços das comunidades e associações dos
sociólogos e a comunidade losóca na luta pela aprovação de ambas as disciplinas. Lejeune
Carvalho, no II Simpósio Sul-Brasileiro de Ensino de Filosoa, faz uma contundente crítica à
participação dos lósofos pelo retorno da disciplina de losoa e de sociologia.“[...] Curso de
Filosoa – sabemos que a mobilização dos cursos, sejam os professores como os estudantes, foi
pequena. E sabemos ainda que existem muito mais cursos de losoa que os nossos 65 de CS
no país. Mesmo a ANPOF, a nossa equivalente da ANPOCS, nem sequer foi localizada e não
conseguimos discutir com eles a possibilidade mínima de assinarem nosso manifesto nacional em
apoio à nossa luta. É preciso registrar que, com poucas exceções, essa luta nacional cou circunscrita
a umas poucas, ainda que pequenas, entidades representativas de sociólogos. Isso porque os lósofos
e professores de losoa não possuem entidades representativas. Assim, carecemos, durante todas
as idas a Brasília, de um interlocutor na área de losoa e mesmo de seus cursos que formam
professores. Até hoje, sequer sabemos quantos são esses cursos e quantos prossionais formados
existem. Soubemos, pela imprensa, diversas vezes, que os lósofos professores de losoa
realizavam aqui e ali congressos nacionais e internacionais no Brasil, envolvendo até mesmo cinco
mil prossionais. Nós sociólogos nunca reunimos mais de mil colegas em congresso. No entanto,
desses congressos de losoa não resultaram ação prática e concreta na luta e no engajamento
pela aprovação do Projeto. Quem sabe daqui pra frente (Carvalho, 2002, p. 552). Importante
contextualizar que as armações de Carvalho referem-se à primeira tentativa de aprovação do
Senado, cujo projeto de lei seria, posteriormente, vetado pelo presidente da República. No decorrer
da luta, houve participações da comunidade losóca mesmo na luta institucional, conforme os
relatos do professor Emmanuel Appel (Langón et al, 2013/2014). Mesmo assim, por mais que
reconheçamos certo descaso da comunidade losóca em geral em relação ao ensino de losoa,
conforme já mencionamos anteriormente, discordamos de Alves (2007) e de Carvalho (2002) no
que se refere ao conceito de política. Isso porque consideramos as iniciativas feitas pela comunidade
losóca, especialmente dos lósofos da educação e os professores de losoa da educação básica,
como uma forma de política, no caso, uma política-losóca, que se dividiu em iniciativas em
defesa pelo retorno da losoa à educação básica, e também em iniciativas acadêmicas voltadas à
construção de um campo, imprescindíveis para cultivar o ensino de losoa como uma tradição
escolar no Brasil. Parece-nos nítida a importância que essas iniciativas acadêmicas proporcionaram
à implementação da disciplina no cenário escolar, visto que muitos dos debates e pensamentos
que são hoje referências para pensar o ensino de losoa e a formação de professores adquiriram
seus primeiros contornos na efervescência acadêmica da primeira década. Assim, acreditamos que
o lugar da losoa na educação básica só pode ser garantido com a construção de uma cultura
de pesquisa na área, sem deixar de lado a luta em defesa do espaço institucional na escola como
disciplina, tal como é feito nos dias de hoje diante dos efeitos da Base Nacional Comum Curricular.
76
dos enfoques, contribuindo muito para o enriquecimento do debate” (Alves,
2007, p. 48).
Ora, a partir do fortalecimento dos elos regionais, toda uma produção
acadêmica se intensica no cenário nacional. Na primeira década de 2000,
destacamos as iniciativas acadêmicas do Simpósio Sul-Brasileiro sobre Ensino
de Filosoa31 (2001-2010); Fórum do Ensino de Filosoa do Centro-Oeste32
31 Todos os eventos geraram coletâneas publicadas, em quase sua totalidade, pela coleção Filosoa e
Ensino da Editora Unijuí. I Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosoa e o III Encontro dos
Cursos de Filosoa do Sul do Brasil (Universidade Passo Fundo, abril de 2001). FÁVERO, Alberto;
RAUBER, Jaime José; KOHAN, Walter Omar (Org) Um olhar sobre o ensino de losoa. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2002, 296p. II Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosoa (Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, abril de 2002). PIOVESAN, Américo et al. Filosoa
e ensino em debate. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. 632p. (Coleção Filosoa e Ensino 2). III Simpósio
Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosoa (PUC-Paraná, abril de 2003). ROLLA, Aline Bertilha
Mafra. SANTOS-NETO, Antonio; QUEIROZ, Ivo Pereira (Org.) Filosoa e ensino: possibilidades
e desaos. Ijuí: Ed. Unijuí, 2003 – 280p. (Coleção Filosoa e Ensino 4) IV Simpósio Sul-Brasileiro
sobre o Ensino de Filosoa (UNISINOS, São Leopoldo, RS, maio de 2004). CANDIDO,
Celso; CARBONARA, Vanderlei (Org.). Filosoa e ensino. Um diálogo interdisciplinar. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2004. – 584p – (Coleção Filosoa e Ensino 5). V Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino
de Filosoa. RIBAS et al (Org.) Filosoa e Ensino. A losoa na escola. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005. –
504p –. (Coleção Filosoa e Ensino 7). VI Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosoa, I
Congresso Internacional sobre losoa na Universidade e VII Encontro de Cursos de Filosoa do
Sul do Brasil (Universidade Estadual de Londrina, maio de 2006). MAAMARI, Adriana Mattar;
BAIRROS, Antonio Tadeu de; WEBER, José Fernandes (Org). Filosoa na Universidade. Ijuí:
Ed. Unijuí, 2006. – 328p – (Coleção Filosoa e Ensino 9). VII Simpósio Sul-Brasileiro sobre
o Ensino de Filosoa. SARDI, Sérgio Augusto; SOUZA, Draiton Gonzaga de; CARBONARA,
Vanderlei (Org). Filosoa e sociedade: perspectivas para o ensino de losoa. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007 –
p. 568 –. (Coleção Filosoa e Ensino 11). VIII Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosoa
(Universidade de Caxias do Sul-RS, maio de 2008). KUIAVA, Evaldo Antônio; SANGALLI, Idalgo
José; CARBONARA, Vanderlei. (Org). Filosoa, formação docente e cidadania. Ijuí: Unijuí, 2008
IX Simpósio Sul-Brasileiro sobre o ensino de Filosoa (Centro Universitário Metodista do IPA
em Porto Alegre). NOVAES, José Luis Correa; AZEVEDO, Marco Antonio Oliveira de (Org).
Filosoa e seu ensino: desaos emergentes. Porto Alegre: Sulina, 2010. – p. 215 –.
32 Fórum de Ensino de Filosoa do Centro-Oeste (Universidade de Brasília, junho de 2001 – I Encontro
Internacional “Filosoa e Educação”). KOHAN, Walter (Org). Ensino de losoa: perspectivas.
Belo Horizonte: Autêntica, 2005 [2002]. II Fórum de Ensino de Filosoa do Centro - Oeste
(Universidade Católica de Goiás, novembro de 2003). III Fórum de Ensino de Filosoa do Centro
- Oeste (Universidade de Brasília, novembro de 2003), publicado em forma de dossiê na revista Resafe.
Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/resafe/issue/view/280. Acesso em: 04 abr. 2021. IV
Fórum de Ensino de Filosoa do Centro- Oeste (Universidade Federal de Goiás, outubro de 2004).
77
(2001-2004); Fórum Sudeste de Ensino de Filosoa33 (2002-2004); Fórum
Norte-Nordeste do Ensino de Filosoa (2004); Encontros do GT Filosofar
e Ensinar a Filosofar (desde 2006); Simpósio sobre Ensino de Filosoa34
(SIMPHILO) (2007, 2009).
Esses eventos, somados a organizações de alguns dossiês35, foram cru-
ciais para a divulgação e debate das pesquisas sobre o ensino de losoa,
bem como cumpriram um papel de construção de um acervo bibliográco,
como ressaltam os organizadores da VI edição do Simpósio Sul-Brasileiro do
Ensino de Filosoa:
O conteúdo desta obra resulta do esforço coletivo de professores/pesquisado-
res que têm sistemática ou signicativamente se dedicado ao tema da Filosoa
e Ensino, desta vez direcionando o foco das investigações e disseminações de
suas práticas para a Universidade. [...] Encontraremos diferentes e enriquece-
doras perspectivas para se pensar a Filosoa e a instituição, realizando uma vez
mais o importante papel de preencher a lacuna bibliográca ainda existente
em nosso meio (Maamari; Bairros; Weber, 2006, p. 12).
Na realidade, na medida em que participavam das ações acadêmicas em
prol do ensino de losoa, vários pesquisadores zeram questão de ressaltar
33 I Fórum Sudeste de Ensino de Filosoa (Universidade Metodista de Piracicaba, 29 de novembro
e 1 de dezembro de 2002). GALLO; Silvio; DANELON, Márcio; CORNELLI, Gabriele. Ensino
de losoa: teoria e prática. Ijuí: Ed. Unijuí, 2004, 272p. II Fórum Sudeste de Ensino de Filosoa/
II Encontro Internacional de Filosoa e Educação (Universidade do Estado do Rio de Janeiro de
2004). Os trabalhos foram publicados em três coletâneas. KOHAN, Walter Omar (Org). Políticas
do ensino de losoa. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. KOHAN, Walter Omar (Org). Filosoa:
caminhos para seu ensino. Rio de Janeiro: D&A, 2004. KOHAN, Walter Omar (Org). Lugares da
Infância: Filosoa. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
34 I Simpósio sobre Ensino de Filosoa foi realizado pelo Grupo de Pesquisas Paideia, nos dias 3 e 4 de dezembro
de 2007, na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). TRENTIN, Renê;
GOTO, Roberto (Org.) A losoa e seu ensino: caminhos e sentidos. Edições Loyola, São Paulo, 2009, 108p.
II Simpósio sobre o Ensino de Filosoa, realizado pela Grupo de Pesquisa Paideia, na Faculdade de Educação
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em dezembro de 2009. GOTO; Roberto; GALLO,
Sílvio (Org). Da losoa como disciplina: desaos e perspectivas. Edições Loyola: São Paulo, 2011, 150 p. II
Simpósio sobre o Ensino de Filosoa, realizado pela Grupo de Pesquisa Paideia, na Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em dezembro de 2009.
35 Dossiê da Revista Educação (2002); Revista Caderno Cedes (2004), Revista Éthica (2006), Revista
Educação e Filosoa (2008); Revista Resafe (2010).
78
os avanços bibliográcos e, principalmente, das pesquisas no assunto, indi-
cando, assim, a abertura de um campo do Ensino de Filosoa. Ainda no I
Simpósio sobre Ensino de Filosoa da Região Sudeste, Gallo arma que “[...]
Programas de Pós-Graduação têm aberto linhas de pesquisas sobre a temática
e dissertações e teses têm sido feitas na área; livros estão sendo publicados,
desde textos de reexão e problematização até material didático e paradi-
dático” (2004, p. 11). Algo semelhante é defendido por Danelon, em texto
escrito para o dossiê Filosoa e seu Ensino, publicado no Caderno Cedes. Nas
palavras do autor, “O ensino de losoa tem se constituído como uma área
de pesquisa bastante fecunda e frutífera para os lósofos que se dedicam ao
tema. A produção de conhecimento vem adensando e se cristalizando com
bastante consistência neste início de século” (Danelon, 2004, p. 346).
E foi com o objetivo de criar um local de debate para o desenvolvi-
mento das recentes pesquisas do ensino de losoa no Brasil, outorgando-
-lhes maior organicidade e potência, que se criou o GT Filosofar e Ensinar
a Filosofar dentro da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosoa36.
No relatório de 2005-2006, Kohan, primeiro coordenador do GT, faz ques-
tão de ressaltar a importância de a ANPOF reconhecer “[...] um grupo que
trabalhe esse temática e, desta maneira, incorporasse como legitimamente
losóca uma área de trabalho de crescente expressão no Brasil e no mundo
(Kohan, 2006, p. 1). Após marcar o crescimento da pesquisa losóca em
torno do ensino de losoa no Brasil, ele destaca o objetivo central do grupo
de trabalho: fortalecer um espaço losóco de reexão sobre as questões fun-
damentais da área. Em suas palavras, “[...] desde uma perspectiva losóca
sobre o ensino de Filosoa, este GT, em formação, propõe-se a criar e for-
talecer um espaço potencializador das diversas formas de produção na área
(Kohan, 2006, p. 2).
Essa série de iniciativas acadêmicas fortaleceu a pesquisa do ensino de
losoa no Brasil, abrindo caminho para a emergência do campo do Ensino
de Filosoa. Em sua leitura desses acontecimentos da área, Danelon refor-
ça, no dossiê Ensino de Filosoa (2008), publicado na Revista Educação e
36 Os professores e pesquisadores fundadores são: Elisete Tomazetti, Filipe Ceppas, Gabrieli Cornelli,
Geraldo Horn, Gonzalo Armijos Palácios, Humberto Guido, Junot Cornélio Matos, Leoni Maria
Padilha Henning, Márcio Danelon, Marcos Lorieri, Maurício Rocha, Paula Ramos, Pedro Pagni, Rosely
Giordano, Sérgio Sardi, Sílvio Gallo, Sônia Ribeiro, Walter Matias Lima e Walter Omar Kohan.
79
Filosoa, o caráter frutífero das pesquisas do ensino de losoa no Brasil,
relembrando os fóruns regionais e alguns eventos recentes da área. Reconhece
também que grande maioria das pesquisas do ensino de losoa desenvol-
ve-se, sobretudo, nos programas de pós-graduação em educação, dentro da
linha ou área de concentração da Filosoa da Educação. Acredita, contudo,
que o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar pode desempenhar uma mudança
nesse cenário, aproximando as pesquisas do ensino de losoa dos programas
de pós-graduação em losoa37. Por essa razão, o autor faz questão de apontar
uma mudança de eixo no entendimento do problema de ensinar losoa no
Brasil. De uma perspectiva pedagógica, essas iniciativas acadêmicas transfor-
maram, paulatinamente, o ensino de losoa em um problema genuíno de
pesquisa losóca:
Os diversos eventos e as inúmeras produções acadêmicas sobre o ensino de
losoa estão sinalizando para uma mudança de eixo no entendimento do
problema do ensino de losoa. Arma-se, de forma incisiva, a necessidade
de um olhar losóco para o ensino de losoa, ou seja, que o ensino de lo-
soa se constitui um problema losóco, tratado de forma losóca e tendo,
isto é fundamental, a história da losoa como instância dialógica para
o enfrentamento desse problema (Danelon, 2008, p. 17 – grifos nossos).
Certamente, muito daquilo que se produziu por meio dessas diversas
iniciativas acadêmicas não se enquadra nessa política losóca de ensinar e
aprender losoa em emergência. Precisamos separar os discursos que são
produzidos para apenas defender a volta da losoa à educação básica, justi-
cando sua importância na formação do educando –, daqueles discursos que
defendem a criação de uma área losóca de pesquisa, a m de transformar
o ensino de losoa em um objeto de pesquisa losóco-educacional. Aliás,
não são poucos os pesquisadores que criticaram, no decorrer desse agencia-
mento coletivo, a tendência das discussões à defesa incondicional da losoa
como disciplina curricular, ou da ênfase genérica em concepções de losofar.
37 As conjecturas de Danelon (2008) são razoáveis, pois, de fato, o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar
tem desempenhado importante papel nessa aproximação das pesquisas da área dos programas de
pós-graduação em losoa, como destacamos nos movimentos recentes sobre o campo do Ensino
de Filosoa. Além disso, essa aproximação aconteceu também pela emergência de uma política
losóca de ensinar e aprender losoa.
80
Fávero, em sua participação no II Simpósio Sul-Brasileiro sobre o
Ensino de Filosoa, ressalta que houve pouco avanço na produção teóri-
ca sobre o ensino de losoa. Sua análise tem sua vivência no I Congresso
Brasileiro de Professores de Filosoa e no I Simpósio Sul-Brasileiro sobre o
Ensino de Filosoa. Ele critica, então, a ingenuidade de prossionais que não
percebem que a losoa não tem mais lugar garantido apenas por sua fama
milenar. Anal, o que adianta organizarmos uma mobilização da losoa se
não há uma preparação e a construção de um debate que pense nas práticas
de ensinar e aprender losoa no ensino médio e seus impactos necessários à
formação do professor de losoa?
Em novembro de 2000, participei do Congresso dos professores de
Filosoa em Piracicaba e, no ano passado, organizamos o I Simpósio Sul-
Brasileiro sobre o Ensino de Filosoa, mas o que percebo é que avançamos
pouco na produção teórica sobre o ensino de losoa. Grande parte das
proposições feitas continuam sendo chavões: a luta pela obrigatoriedade
de sua inclusão nas grades curriculares, a concepção redentora de que seu
retorno representa a “tábua de salvação para a educação”, a compreensão
de que ela é uma superdisciplina, de modo que, bastaria sua inclusão,
por exemplo, no ensino médio, e teríamos estudantes críticos e reexivos.
[...] Estou cansado de assistir, nas próprias universidades, a indagações de
alunos a respeito da nalidade da disciplina de losoa em seus currículos,
uma vez que seus respectivos professores, formados em losoa, não con-
seguem fazer [...] Mas quem são esses professores? São geralmente ilustres
graduados em losoa ou até mestres e doutores, que leram os clássicos,
ou supõem terem lido, ingressaram na universidade por concurso ou con-
vite, ministram suas aulas, algumas delas interessantes e importantes para
a formação acadêmica dos alunos, mas que perderam o bonde da história.
[...] Tais indagações nos zeram recuar e perceber que, muito mais impor-
tante do que conquistar um dispositivo legal que garantisse sua obrigato-
riedade, era repensar os cursos de losoa no aspecto de ensino (Fávero,
2002, p. 431).
Textos como o de Fávero não são raridades. Silvio Gallo, por exem-
plo, critica também o condicionamento da presença da losoa a imagens
exteriores, como é o caso dos ideais de cidadania presentes na nova LDB/96
(Gallo, 2003). Esses lugares exteriores são um risco porque não analisam
81
realmente as condições de possibilidades de tais práticas, defendendo, de
maneira abstrata, a presença da disciplina na escola. No VII Simpósio Sul-
Brasileiro de Ensino de Filosoa, Walter Kohan, na mesma direção, qualica
como “[...] alarmante a tranquilidade com que tantos professores de losoa
acolhem a nalidade cidadã outorgada para o ensino de losoa pela legisla-
ção educacional. É como nunca peremptório a losoa pensar seus próprios
sentidos educacionais e políticos” (Kohan, 2007, p. 62). Ora, será que à força
de tantos ns nobres, como a democracia, cidadania, a tolerância, o respeito
e o pluralismo, colocados como ns últimos do ensino de losoa, não te-
ríamos nos esquecido de pensar as práticas que nós professores e estudantes
exercitamos com a losoa?
Por outro lado, é importante também destacar que muitas produções
discursivas são apenas efeitos colaterais da agenda criada em defesa do lugar
da losoa no ensino médio brasileiro, sem que houvesse um compromisso
com a instituição do campo do Ensino de Filosoa como um núcleo agencia-
dor e criador de pesquisas e novas práticas. São muitos os participantes que
escrevem sobre o ensino de losoa de forma inaugural, sem que houvesse
reexões prévias sobre o assunto ou sem pretensões de continuar ou realizar
pesquisas no assunto. É muito comum encontrar no emaranhado discursivo
da intensa produção bibliográca e documental, criada no nal dos anos de
1990 e primeira década de 2000, generalizações que defendem tanto um
olhar losóco como uma ideia de losofar genérico, que, ainda que estejam
em consonância com a nova política de pensar o ensino e a aprendizagem
de losoa, não assumem como um objeto de pesquisa losóco. Ao nosso
ver, esses discursos são parte constituinte de um movimento de luta institu-
cional – de cidadania-curricular – pelo ensino de losoa, porque têm mais
uma preocupação de endossar o coro em defesa da losoa, destacando sua
importância para a formação do cidadão, e de apresentar suas justicativas ao
evidenciar um ato formativo que é o losofar, em suas características genera-
listas, como um pensamento crítico e reexivo, por exemplo.
Uma pesquisa que ressalta essas críticas é a da lósofa Elisete Tomazetti.
Debruçando-se, especialmente, no Fórum Sul-Brasileiro de Ensino de
Filosoa e os seus respectivos Simpósios, a m de analisar os discursos do
ensino e da aprendizagem da losoa no Brasil, ela faz uma crítica à boa
82
parte da construção discursiva, destacando quem eram os agentes – muitas
vezes, professores que não tinham relação com o ensino de losoa, mas que
participam das discussões por serem representantes dos cursos de losoa
organizadores do evento, ou por “surfarem na onda” do momento que era o
ensino de losoa. O problema disso é que, concomitantemente à constru-
ção do campo do Ensino de Filosoa, circulavam discursos genéricos quanto
ao caráter do losofar e da associação de uma ideal de formação losóca
enquanto educação crítica e reexiva, denunciando uma falta de precisão
conceitual de muitos pesquisadores que não eram da área.
Os sujeitos professores dos cursos de Filosoa, participantes nas ações do
Fórum e do Simpósio, ao longo da década, eram todos aqueles envolvidos
com as disciplinas que propunham discussões, leituras, reexões sobre o
Ensino de Filosoa? [...] Considerando-se que a constituição do campo de
saber denominado Ensino de Filosoa foi fortalecida a partir de sua legiti-
mação no campo maior dos saberes de Educação e da Filosoa, no mesmo
período em que aconteciam as reuniões de coordenadores dos cursos de
Filosoa da Região Sul e os já referidos simpósios sobre ensino da Filosoa,
pode-se perceber a dispersão de autores que escrevem nos referidos livros.
Muitos professores escreveram sobre a temática sem serem efetivos estudio-
sos, pesquisadores, e também professores, envolvidos com as questões do
ensino de Filosoa em seus cursos (Tomazetti, 2012, p. 91-92).
Se a defesa de que ensinar e aprender a losoa seja um ensinar e apren-
der a losofar consiste em uma das características dos discursos produzidos
no campo do Ensino de Filosoa, conforme mostra Elisete Tomazetti (2012),
e ainda que os aspectos práticos e políticos sejam reconhecidos por muitos
daqueles que escreveram sobre o ensino de losoa, isso não anula uma críti-
ca em relação à boa parte dos discursos produzidos sobre o ensino de losoa,
uma vez que não há, ao se defender a dimensão prática e política do losofar,
um amadurecimento conceitual de discussão losóca sobre os sentidos desse
losofar em sala de aula. A defesa de um losofar, em sua dimensão política
e prática, pode assumir, em muitos dos casos, um caráter meramente retóri-
co, sem analisar as implicações desse losofar e a formação do professor de
losoa; sem se pensar nas reais condições daquilo que está em questão e a
proposta de ensinar e aprender losoa.
83
No entanto, é possível notar a emergência de uma política losóca
de ensinar e aprender losoa no cenário brasileiro, isto é, de uma luta pela
cidadania-losóca ao ensino de losoa. Entre os discursos e as produções
circunstanciais, efeitos da demanda do momento, surgem grupos de pesqui-
sadores e professores de losoa preocupados em criar um campo do Ensino
de Filosoa. Ao assumirem o ensino de losoa como um problema losóco
genuíno, esses professores e pesquisadores atualizam a virtualidade educativa
da losoa, buscam criar condições para transformar nossas salas de aula em
um espaço de losofar. Essa política losóca de ensinar e aprender losoa
não é uma atitude individual, proposta de um sujeito-autor, mas uma dinâ-
mica coletiva, que proporciona uma virada discursivo-losóca na forma de
pensar o ensino de losoa. O que ocorre é uma mudança de perspectiva,
do pedagógico para o losóco, reposicionando a função do professor de
losoa e promovendo um estatuto losóco às suas formas de pesquisa e
prática. O professor de losoa não pode mais ser um repetidor, um mero
transmissor de pensamentos alheios que nada lhe dizem respeito. Deve ser
um professor lósofo, que faz da sala de aula e de suas práticas de ensinar
e aprender a condição concreta e o estilo de seu losofar: um pensamento
coletivo, criativo e educativo.
Nesse sentido, defendemos que essa virada discursivo-losóca só pode
ser entendida à luz da abertura de um novo campo, o Ensino de Filosoa, de
outorgar cidadania-losóca aos problemas de ensinar e aprender losoa, de
forma a permitir não só a criação de um debate e estratégias acadêmicas que
abram um novo campo de pensamento, realizado em intersecção aos pro-
blemas educacionais e losócos, mas também de invenção de uma maneira
de losofar em sala de aula, que busca atualizar as virtualidades educativas
ofuscadas pela losoa acadêmica. A invenção do professor-lósofo rompe
com a hierarquia existente nos cursos de losoa – que só reconhecem algum
caráter losóco na função acadêmica do bacharelado. Mesmo que dentro
da losoa acadêmica a criação do pesquisador não seja usualmente conside-
rada semelhante a dos lósofos canônicos, prevalece ainda um pressuposto e
uma defesa da existência de um processo losóco, ora através da elaboração
de um comentário original, ora na atualização historiográca dos problemas
perenes da losoa. Em contrapartida, as práticas do professor de losoa
84
não são qualicadas como um exercício losóco, uma atividade de lósofo,
e sim pedagógica e educacional. Se a universidade reconhece as práticas histo-
riográcas e o comentário como algo da natureza losóca, isso não vale para
o registro educacional da losoa. Quem é professor nada há a atualizar: sua
função consiste em realizar apenas uma mediação pedagógica de dois mundos:
da produção losóca e dos leigos. Embora seja preciso criar para ser professor
de losoa, esse ato criativo se restringe a um registro organizacional dos con-
teúdos a serem ensinados, ao registro pedagógico e não losóco. Entretanto,
uma política losóca de ensinar e aprender losoa altera essa conguração
institucionalizada. Ela outorga àquele que ocupa a função de professor a res-
ponsabilidade de ser lósofo: não só porque precisa pensar losocamente as
condições de suas práticas, mas porque precisa se reinventar como lósofo,
educar losofando, losofar para educar, losofar para que outros também -
losofem. Eis o desao e as implicações de uma losoa do ensino de losoa
Desse primeiro momento de investigação, a questão que nos ca é:
como essa política losóca de ensinar e aprender losoa ecoa nos professo-
res e pesquisadores que hoje somos? De maneira geral, os grupos de pesqui-
sas, os coordenadores de projetos de iniciação à docência, os pesquisadores
e professores dos cursos de licenciatura de Filosoa são responsáveis não só
pela construção dessa política losóca, mas também por sua capilarização
no território brasileiro. Acreditamos que o ENFILO é um dos dispositivos
que contribui para o funcionamento dessa política losóca, em especial para
sua circulação no curso de licenciatura de losoa da UNESP. Por essa razão,
ele se torna chave para a presente investigação.
No próximo capítulo, pretendemos recuperar nossa convivência no
ENFILO, de maneira a vericar como os projetos do grupo são capazes de
fazer circular essa política losóca. Partiremos de nosso encontro com o
grupo, destacando a emergência de alguns signos que nos ajudam a proble-
matizar a política losóca de ensinar e aprender losoa do ENFILO. A m
de restituir a singularização de uma forma de pensar coletiva, utilizaremos
dos textos e produções acadêmicas que circularam e foram produzidas no
agenciamento coletivo dos professores e pesquisadores de losoa no início
do século XXI. Essa é uma forma de mostrar a capilarização dos discursos e a
singularização de uma forma de pensar do ENFILO.
85
Capítulo 2.
O grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino
de Filosoa e sua política losóca de ensinar e
aprender losoa: heranças do campo
O objetivo deste capítulo é investigar como as heranças do campo do
Ensino de Filosoa se capilarizam no ENFILO, especicamente em sua for-
ma de pesquisar o ensino de losoa e ensinar e aprender esse saber. Na
primeira seção, apresentamos a emergência do grupo em sua relação com a
losoa da educação, destacando como a aproximação recente das pesquisas
daquela área da tradição losóca acabam por inuenciar na virada discur-
sivo-losóca das produções acadêmicas do ensino de losoa. Na segunda
seção, vericamos de que maneira os discursos, principalmente produzidos
pela 1ª geração dos pesquisadores do ensino de losoa, ecoam na forma que
os integrantes do ENFILO realizam suas pesquisas no ensino de losoa.
Restituímos as críticas de Gelamo (2009) às produções teóricas do ensino de
losoa no Brasil, as quais, segundo ele, se prendem a certas imagens de pen-
samento, que funcionam como uma moralização da experiência de pensar os
problemas inerentes ao ensino e à aprendizagem da losoa. Essas críticas são
cruciais para elucidar a política losóca de pesquisa do grupo como expe-
riência de pensamento, deslocando o problema de um horizonte pedagógico,
cujo foco é a transmissão de conhecimentos. Na terceira seção, nosso olhar
se volta aos ecos desses discursos, dessa losoa do ensino de losoa, nas
práticas de ensinar e aprender do grupo. Considerando as experiências dos
projetos de iniciação à docência na escola, especialmente o PIBID, mostra-
mos como o grupo tem como concepção uma relação de ensinar e aprender
losoa como experiência de pensamento, em que estudantes e professores
86
experimentam a losoa dentro da sala de aula, em contraposição à relação
epistemológica de ensinar e aprender losoa, que se concentra, sobretudo,
nos pressupostos da transmissibilidade do saber losóco. Na última seção,
retomamos o percurso do capítulo e mostramos como as heranças do campo
e da 1ª geração de pesquisadores são recepcionadas no ENFILO, fundamen-
talmente, em sua potência ética. Nesse caso, a virada discursivo-losóca do
ensino de losoa se capilariza em nós como uma virada ética que desloca
tanto nossas práticas de pesquisa, bem como de ensinar e aprender a losoa,
do paradigma pedagógico de formação e de sua condição estritamente epis-
temológica, evocando as forças de um losofar menor como atitude transfor-
madora de quem nós somos e de nossa relação com o mundo.
2.1. Notas sobre a emergência do ENFILO:
uma dobra da Filosoa da Educação
O ENFILO surge entre os anos de 2009 e 2010. Os primeiros inte-
grantes foram os estudantes do curso de losoa da UNESP de Marília que
participavam de dois projetos: o PIBID e o ensino de losoa em espaços
não formais. O desenvolvimento dos projetos não coincidia propriamente
com a existência do grupo. Na realidade, este só foi criado pela iniciativa dos
estudantes e bolsistas voluntários que, instigados pelo momento histórico
em que a losoa retornava obrigatoriamente à educação básica, assim como
pelos problemas advindos de suas experiências nos projetos, resolveram se or-
ganizar para debater e estudar losocamente o que ocorria nas diferentes si-
tuações. Somente depois que vieram os professores38, atendendo às demandas
estudantis. Nesse momento, gurou-se a necessidade de institucionalizar o
grupo de estudos, que foi acolhido como uma linha de pesquisa do Grupo de
Estudos e Pesquisa em Educação e Filosoa – GEPEF. Posteriormente, com
o passar dos anos e do amadurecimento das pesquisas da linha do ENFILO,
houve um distanciamento dos grupos, condição que resultou no credencia-
mento do ENFILO no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq.
Não é coincidência que o ENFILO integrou, primeiramente, as linhas
de pesquisa do GEPEF, um grupo de losoa da educação. Seu líder, Pedro
38 Rodrigo Gelamo, líder atual do grupo, e Vandeí Pinto Silva.
87
Pagni, conhecido por suas pesquisas na área de losoa da educação, foi um
dos pesquisadores dessa área, dentre tantos outros, que se envolveu com a
efervescência do debate do ensino de losoa no início dos anos 200039. Em
escritos diversos, ele destaca as aproximações entre a losoa da educação e
os problemas do ensino de losoa. Em seu caso particular, essa aproximação
tem como objetivo pensar sua prática docente como professor da disciplina
de losoa da educação e como historicamente os lósofos se envolveram
com as questões relativas ao ensino de losoa. Ainda que os lósofos mo-
dernos e contemporâneos discutam os problemas do ensino de losoa como
parte de seus sistemas de ideais, uma vez que entendem a losoa como um
conteúdo formativo e como um bem cultural a ser transmitido às novas gera-
ções – seja como objetivo especíco de formar lósofo ou como parte de uma
formação moral, estética ou política –, essas são questões que servem como
marco àqueles que se propõem a ensinar a disciplina contemporaneamente,
especialmente no contexto de luta para incluir a disciplina no currículo do
ensino médio e na discussão sobre o papel da disciplina de losoa e losoa
da educação nos cursos de ensino superior (Pagni, 2002).
Essa intersecção entre o GEPEF e os problemas do ensino de loso-
a contribuiu com o debate teórico, além de permitir a formação de novos
quadros de pesquisadores, como foi o caso da tese de doutorado de Rodrigo
Gelamo (2005-2009), que versava especicamente sobre o ensino de losoa.
39 Na primeira década do século XXI, Pagni produz alguns textos sobre o ensino de losoa. Em
2002, publica um artigo: O ensino de losoa nas obras de Kant, Hegel e Nietzsche: uma breve análise
histórico-losóca. Participa também do I e II Simpósio sobre o Ensino de Filosoa da Região
Sudeste, contribuindo com os respectivos textos: Os limites e as discretas esperanças do ensino de
Filosoa: a questão da educação dos educadores aos temas relativos ao amor e à infância no pensamento
contemporâneo (2004) e As memórias da infância e as vicissitudes dos desejos de sabedoria na experiência
educativa: retratos literários e questões losócas para educadores (2004). Colabora com a coletânea
produzida em razão do II Simpósio sobre o Ensino de Filosoa (II SIMPHILO), em 2009, com
o seguinte texto: O pensar losóco, os modos de subjetivação e a escola no Brasil (2011). Em 2012,
escreve sobre o assunto no II Congresso Brasileiro de Professores de Filosoa, publicando o texto
Entre o discurso losóco e a losoa como modo de vida: aprender, ensinar e/ou experimentar? (2013),
e também no VI Colóquio Internacional de Filosoa da Educação, cujo tema central foi “Filosofar:
aprender e ensinar”. Deste evento, publica o texto: Entre o discurso losóco e a losoa como modo
de vida: aprender, ensinar e/ou experimentar? (2012). Em 2015, participa do V Congresso da Sofelp
(Sociedade de Filosoa da Educação de Língua Portuguesa, e produz o texto Considerações sobre a
educação losóca no ensino de losoa no ensino médio e o seu sentido ético-formativo (2016).
88
Anos mais tarde, Gelamo daria continuidade à sua participação no grupo,
agora como professor do departamento de didática da UNESP de Marília,
tornando-se corresponsável pela linha do ensino de losoa no GEPEF, par-
ceria que durou até a diminuição da troca teóricas e problemáticas no co-
mum daquele grupo.
Podemos indagar se o distanciamento do ENFILO do GEPEF não
seria um reexo da evolução histórica das pesquisas do ensino de losoa no
Brasil, as quais, embora dialoguem e aprendam com as pesquisas do campo
da Filosoa da Educação, circunscrevem novas regras, práticas e problemas
próprios, instituindo o campo do Ensino de Filosoa. Apesar disso, certa-
mente há resquícios desse convívio inicial no campo do Ensino de Filosoa
e também em nós do ENFILO. Este grupo é apenas um exemplo, dentro
tantos outros, da aliança entre os pesquisadores da losoa da educação e os
novos pesquisadores do ensino de losoa, fenômeno que permitiu a emer-
gência da 1ª geração de pesquisadores da área e, consequentemente, da pri-
meira dobra do campo.
Em diversos momentos teóricos, Pagni (2002; 2004; 2013; 2016) re-
conhece essa aliança entre losoa da educação e os novos pesquisadores do
ensino de losoa. Dado o abandono e o desinteresse da área de losoa
às questões do ensino de losoa, as novas pesquisas do ensino de losoa,
emergentes no início deste século, se aproximaram da losoa da educação
e utilizaram as ferramentas daquela para encontrar legitimidade teórica para
enfrentar as questões relativas à losoa e seu ensino. Assim ele escreve:
Na última década, ocorreu uma ampliação signicativa da produção bi-
bliográca sobre o ensino de Filosoa no Brasil. [...] Por ausência de certo
interesse do tema pela área de Filosoa, essas produções se concentraram na
educação, particularmente, recorrendo às principais referências da Filosoa
da Educação e, no momento em que este campo discutia a formação huma-
na, foram arriscadas algumas aproximações com essa temática. Tanto essa
aproximação do tema da formação humana quanto o interesse pedagógico
pelo ensino da Filosoa no nível médio propiciaram a incrementação de
recursos intelectuais e uma diversicação de perspectivas teóricas a darem
suporte ao trabalho com essa disciplina na escola, assim como um papel
emblemático na esfera curricular (Pagni, 2016, p. 129).
89
Já no I Simpósio sobre o Ensino de Filosoa da Região Sudeste, Pagni
(2004) faz uma leitura dos acontecimentos das discussões do ensino de lo-
soa no Brasil e qual a atuação da losoa da educação naquele momento.
Escreve que a aliança entre os pesquisadores da losoa da educação e as
novas produções do ensino de losoa ocorre em um momento em que o
debate da losoa da educação e a maneira como essa disciplina é ensinada
se afasta do olhar pedagógico, aproximando-se do pensamento e de temas
da área da losoa. Essa nova conguração da losoa da educação facilitou
a interlocução entre as questões interrogadas pelos lósofos da educação e
aqueles que encabeçaram as produções do ensino de losoa:
Com a recente reaproximação das discussões em Filosoa da Educação,
desenvolvidas no Brasil, de temas e do pensamento losóco, sobretudo
do pensamento contemporâneo e da História da Filosoa, o ensino dessa
disciplina nos cursos superiores ganhou uma dimensão mais losóca que
pedagógica, sendo também interrogado pelas mesmas questões que ai-
gem o ensino de Filosoa (Pagni, 2004, p. 217-218).
A leitura de Pagni sobre a emergência da produção losóca do ensino
de losoa fundamenta-se na forma como ele observa o desenvolvimento do
campo da losoa da educação no Brasil. A partir da década de 1990, as pes-
quisas de losoa da Educação se “[...] desprenderam de sua antiga ligação
com a História da Filosoa da Educação” (Pagni, 2014, p. 774). São desen-
volvidos trabalhos de caráter monográco sobre a educação no pensamento
dos lósofos, gerando uma maior aproximação com a losoa. Em outras
palavras, “[...] os pesquisadores conseguiram se autonomizar da História da
Educação e dar contornos mais losócos, livrando-a de certa pedagogização
ocorrida nos anos 1980” (Pagni, 2014, p. 774).
Quando Pagni (2014) aponta a alternância do enfoque pedagógico
para o losóco das pesquisas da losoa da educação, não defende uma
hierarquização de um saber face ao outro. Não há uma moralização do pen-
sar; o losóco não signica algo necessariamente bom ou ruim. O que ele
aponta é uma alternância entre formas de pensar, pesquisar e ensinar na área
da losoa da educação. Tanto é que, embora Pagni (2014) ressalte a impor-
tância do desenvolvimento conceitual na abordagem da educação na tradição
90
losóca dessa aproximação às pesquisas e ao ensino da losoa da educação,
ele não deixa de problematizar os efeitos colaterais dessa aproximação da área
da losoa. Para ele, o enfoque no losóco trouxe uma metodologia para o
ensino e para as pesquisas de losoa da educação “[...] excessivamente pró-
xima aos procedimentos da Filosoa se restringindo somente a estudos de de-
terminados autores e escolas losócas” (Pagni, 2014, p. 774). Privilegiando
o comentário de autores, esses estudos, em muitos dos casos, contrariaram a
atitude de pensamento e o projeto losóco dos autores, rearmando uma
atitude doutrinária de pensamento que não pensa os problemas emergentes
da práxis educativa e da realidade sociocultural brasileira. Algo semelhante é
diagnosticado por Silvio Gallo em seu artigo Filosoa da Educação no Brasil:
da crítica ao conceito (2007). Um dos principais caminhos que as pesquisas
de losoa da educação encontrou para consolidação do campo foi de “[...]
estudos de autor, o que não deixa de ser uma espécie de reexo da tradição da
Filosoa no Brasil, inuenciada pelos valores franceses de que fazer Filosoa
é produzir história da Filosoa” (Gallo, 2007, p. 274).
Tanto Pagni (2014) quanto Gallo (2007) mostram as relações de saber
e poder presentes na história e constituição do campo da losoa da educação
no Brasil. O deslocamento do saber da pedagogia e da história da educação é
um exemplo das disputas políticas pela identidade disciplinar do campo da
losoa da educação, ocorrida na década de 1990 em diante. Os trabalhos que
se propõem a pensar ou a criticar a procura de uma identidade para área alme-
jam um outro olhar, que se afaste da conguração emprestada ao debate na
década anterior, protagonizada pelas guras de Dermeval Saviani e Durmeval
Trigueiro Mendes. Busca-se, então, “[...] um olhar mais especíco, mais próxi-
mo à Filosoa do que da Pedagogia e, senão menos marcado pela conguração
da Filosoa da Educação como ideologia, ao menos conferindo maior distinção
em relação aos seus vínculos com a política” (Pagni, 2014, p. 777).
Essa reaproximação da losoa da educação dos problemas mais pró-
ximos à área da losoa tem relação, principalmente, com a redenição que
passa aquela área nos anos 1990 e 2000. Essa redenição provém de crise
oriunda das constantes revisões curriculares dos cursos de formação de pro-
fessores, que excluíram ou diluíram os seus conteúdos, animados seja pelo
predomínio de uma perspectiva mais temática e interdisciplinar de formação
91
ou pela própria distância entre a losoa da educação e os problemas do
educador (Gallo, 2007).
Historicamente, a losoa da educação só se tornou um campo em
1970, a partir da abertura dos primeiros programas de pós-graduação em
educação e losoa da educação. Foi daí em diante que se consolidou uma
cultura investigativa, e não meramente uma cultura de ensino nos diversos
cursos de formação de professores, como arma Severino:
A condição meramente curricular da Filosoa da Educação, reforçada pela
tradição dogmática da experiência losóca nacional e pela característica
transmissiva do ensino, não estimulava a investigação e a reexão crítica
sobre a natureza dos processos educacionais bem como da natureza da
Filosoa da Educação e suas competências e atribuições. O despertar de
uma postura mais investigativa para a Filosoa da Educação é fenômeno
bem recente em sua história. Sem dúvida, o fator fundamental para tanto
foi a implantação, no país, dos Programas de Pós-Graduação, uma vez que
neles, até por exigência de seu próprio perl, a pesquisa se fazia formal-
mente necessária e obrigatória (2000, p. 276-276).
Segundo Gallo, (2007), tendo em vista que a criação desses programas
ofereceu uma condição institucional para que se iniciasse a prática investi-
gativa no campo da losoa da educação em 1970, foram nas duas décadas
seguintes, 1980 e 1990, que houve a consolidação do campo. Naquele mo-
mento, os pesquisadores da losoa da educação questionaram e reetiram
sobre si mesmo à procura de sua identidade, ou seja, quando seus pesquisa-
dores procuraram xar “[...] suas regras e o que pode e não pode ser chamado
de Filosoa da Educação” (Gallo, 2007, p. 269).
Enquanto na década de 1970, a fenomenologia adquiriu espaço, em
razão da inuência dos intelectuais formados na Europa que, na grande
maioria dos casos, foram os responsáveis pela implantação dos programas
de pós-graduação brasileiros, nos anos 1980 duas tendências não-exclusivas
se tornaram dominantes: “[...] a produção de uma Filosoa da Educação de
forte inspiração marxista e o trabalho de identicar as tendências e correntes
pedagógicas que marcaram a história da Educação brasileira” (Gallo, 2007,
p. 269). Por um lado, grande parte dos trabalhos de inspiração marxista, pro-
duzidos na década de 1980, reagiram às críticas reprodutivistas da educação,
92
que denunciaram o caráter reprodutor e o aparelhamento da educação aos in-
teresses ideológicos do Estado. Para se contraporem ao sentimento de impos-
sibilidade de uma ação transformadora por meio da escola, as pesquisas de
caráter marxista construíram uma teoria educacional como caminho de trans-
formação social. Um dos exemplos é o trabalho de Durmeval Trigueiro Mendes
e Dermeval Saviani (Gallo, 2007, p. 270). Por outro lado, ambos os autores,
somados aos esforços intelectuais de José Carlos Libâneo e Moacir Gadotti,
inauguraram uma segunda vertente básica: “[...] a investigação em torno das
tendências e correntes pedagógicas na história da Educação brasileira.
Esse panorama se alterou em relação à produção da década de 1990 e
2000. Na análise de Gallo (2007), houve um grande esforço para delimitar
a identidade e o sentido da losoa da educação. E a estratégia para isso foi
uma só: recorrer aos estudos dos autores. Com base nas produções do GT
Filosoa da Educação da ANPEd, que passou a funcionar como um disposi-
tivo de produção, controle e de exclusão de outros saberes, a losoa da edu-
cação construía sua identidade disciplinar, amparando-se, principalmente em
autores como: Adorno, Horkheimer, Habermas, Gramsci, Marx, Aristóteles,
Platão, Perelman, Rorty, Piaget, Dewey, Merleau-Ponty, Foucault, Deleuze,
Guattari e Nietzsche.
Porém, se a losoa da educação se consolida como campo nos anos
de 1990 e 2000, cultivando sua identidade disciplinar no trabalho losóco
com autores, há efeitos colaterais dessas práticas, como já denunciava Pagni
(2014). As pesquisas criam certa dependência e se fecham em um tipo de
tradição de losoa, cujo enfoque é o trabalho com os autores, de modo que
ocorre uma despotencialização do pensamento criativo.
Como “separar o joio do trigo” e denir o que é e o que não é Filosoa da
Educação? Ou ainda, para carmos no marco foucaultiano, como exer-
cer o papel de polícia disciplinar dos saberes, estabelecendo os contornos
do campo e denindo o que pode e o que não pode ser dito? A respos-
ta, recorrendo à tradição losóca, foi clara. Se os estudos tiveram um
efeito positivo ao desempenhar um importante papel na consolidação do
campo, denindo contornos claros e fazendo com que ganhasse densida-
de, penso que mais recentemente estamos sendo vítimas de seus efeitos
nocivos. [...] Estou identicando esses estudos como “efeitos nocivos”,
na expectativa de abrir um debate: em primeiro lugar, verica-se que há
93
excessiva dependência de uma certa tradição de Filosoa, que a identi-
ca com estudos de autor; em segundo, nota-se o fechamento do cam-
po disciplinar em torno dessa perspectiva; por m, e o mais importante,
constata-se a perda do potencial criativo do pensamento (Gallo, 2007, p.
274-275).
Seja na leitura dos acontecimentos de Pagni (2014), seja no diagnós-
tico de Gallo (2007), aquilo que está em questão são as políticas do saber da
losoa da educação, cujos princípios identitários foram se alterando no de-
correr do tempo. Eles mostram a reconguração das relações de saber e poder
da losoa da educação, sem realizar um juízo moral. Mostram como as pes-
quisas e as produções do campo, ao se aproximarem da Filosoa, forticaram
uma relação losóca de pensamento da losoa da educação, de maneira a
se distanciar dos funcionamentos tradicionais da história da educação e do
acento pedagógico por eles atribuídos às investigações. Evidentemente que as
leituras e os diagnósticos de ambos os autores não estão isentos de certa pre-
ferência: ambos se enquadram nessa virada discursivo-losóca na pesquisa
e ensino da losoa da educação. Porém, não deixam de tensionar aquilo
que se tem produzido na área na contemporaneidade, a m de problematizar
certa forma losóca de pensar.
Não temos pretensões e nem condições de nos aprofundar na evolução
– início, desenvolvimento e consolidação da losoa da educação. Essa seção
tem um único objetivo, e ele é ético. Indicamos certo contexto para eviden-
ciar uma herança especíca que incide em nós, via ENFILO, a partir dessa
relação entre os lósofos da educação e os problemas do ensino de losoa: a
coincidência de um olhar losóco para os problemas do ensino de losoa.
Essa coincidência losóca será fundamental para o estabelecimento de uma
política losóca de ensinar e aprender losoa, cuja construção está na raiz
da emergência do campo do Ensino de Filosoa no início deste século, e cujos
projetos se capilarizam e ressoam no ENFILO. Como argumenta Pagni, a
aliança entre a losoa da educação e as novas produções do ensino de loso-
a não são hegemônicas, mas boa parte da discussão reitera uma perspectiva
clássica na qual a pedagogia busca inspiração, quando não se fundamenta
para calcar seus saberes e práticas em um discurso sobre a formação humana.
Mas, de seu ponto de vista, é imprescindível “[...] ultrapassar a dimensão
94
estritamente pedagógica da questão relacionada ao ensino de Filosoa e al-
mejar um sentido losóco” (Pagni, 2016, p. 134). Esse sentido losóco é
o que “[...] algumas referências da literatura vêm postulando [como] uma
Filosoa do ensino de Filosoa, mas essa Filosoa do ensino possui várias
conotações” (Pagni, 2016, p. 135).
Ora, não nos parece casual que, no momento em que a losoa da
educação se envereda por uma perspectiva losóca para construir sua iden-
tidade, nós, do ensino de losoa, falamos também da necessidade de pensar
losocamente o ensino de losoa, encarnado numa losoa do ensino de
losoa. Portanto, sob uma perspectiva ética, parece-nos impossível negar
como parte dos projetos do ENFILO, emergente de um grupo de losoa
da educação, que endossa essa narrativa, ecoam virtualidades e desejos agen-
ciados pelas gerações do campo do Ensino de Filosoa, especialmente por
aqueles que compõem a 1ª geração. São heranças que incidem em nossos
corpos, em nossas práticas de ensinar e aprender losoa, e que fomos, face à
nossa experiência e realidade, tensionando, modelando e reinventando para
que pudéssemos existir e praticar nossa losoa do ensino de losoa.
Haveria uma única losoa do ensino de losoa? Como diz Pagni
(2016), muitos podem ser os seus sentidos. De fato, a questão que ca para
nós é: qual desses sentidos ressoam no ENFILO e como o grupo os res-
signica face à sua realidade e problemas especícos? Encontramos alguns
signos dessa herança já na análise de Pagni (2014), quando, ao referenciar as
diferentes formas losócas de se relacionar com os problemas da losoa da
educação, avalia sua trajetória teórica e a própria maneira como se vincula
ao campo. Arma o autor que sua perspectiva se estabelece em continuidade
às concepções de losoa da educação esboçadas por Sílvio Gallo e Walter
Kohan, cuja atuação no campo permitem a circulação dos projetos losócos
de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Rancière.
Segundo Pagni (2014), contra uma única identidade da losoa da
educação, Gallo apresenta uma prática losóca primeiramente como esforço
criativo. Os lósofos da educação são lósofos de maneira geral: são criadores
de conceitos, pensadores que dão consistência a acontecimentos no campo
educacional. A losoa deixa de ser apenas uma prática teórica, destacando o
papel da losoa no ensino. Mais radicalmente, Kohan arma uma losoa
95
da educação como uma prática losofante em, para e através da educação.
Nessas condições, a educação deixa de ser um objeto externo e inerte, refém do
processo de teorização losóca, colocando-se como a realidade de emergência,
que alimenta e oferece sentido às práticas losofantes. Do mesmo modo, a
losoa já não seria mais algo externo à realidade do educador, uma vez que se
potencializa como prática e produção de pensamentos, cuja força interrogante
da losoa funciona como potência questionadora, dessacralizadora, polêmica
que serve para questionar a pedagogia e as próprias práticas educativas estabele-
cidas. Assim, de acordo com Pagni (2014), as concepções losócas de ambos
os autores corroboram para uma experiência de losoa que problematiza os
processos de subjetivação e, especialmente, a experimentação de si, em vistas
a sustentar a “[...] proposição de que a losoa da educação compreenderia
as práticas do pensar losóco, imanentes à ação educativa, empreendidas no
sentido de criar conceitos, de acolher acontecimentos, e, principalmente, de
ampliar a liberdade existente” (2014, p. 784).
Nesse sentido, Pagni reconhece-se numa tradição da losoa que con-
cebe “[...] como uma prática de pensar na ação educativa, portadora de um
ethos e de uma estilística da existência” (Pagni, 2014, p. 798), em que os
sujeitos formadores se experimentam cotidianamente na prática educativa,
de modo que, ao formarem os outros, estão por formar a si mesmos. Nessas
condições, a losoa se torna um saber como outro qualquer e desempenha
um papel de caixa de ferramentas para enfrentar os desaos problemáticos
com os quais se deparam os atores educacionais. Longe de ser apenas um dis-
curso teórico, a tradição losóca é encarada em sua dimensão de exercícios
espirituais – inspiração do último Foucault – ou como processos que corro-
boram na subjetivação em que o si mesmo é experimentado, mobilizando
uma atitude ética diante da vida. Ou seja, a losoa não seria simplesmente
uma concepção teórico-formativa, mas o “[...] próprio processo (trans)for-
mativo para se adotar esse modo de existência e para vivê-lo verdadeiramente,
segundo uma verdade não epistemológica, mas ética” (Pagni, 2014, p. 799).
As armações de Pagni (2014; 2016) e Gallo (2007) nos servem
como caminho para vislumbrar algumas relações entre uma política losó-
ca da losoa da educação – oriunda da consolidação dessa área de saber,
que resultou em uma desvinculação da história da educação e das correntes
96
pedagógicas – e uma política losóca de ensinar e aprender losoa. Por
outro lado, elas dão indícios norteadores de certa forma de compreender e de
se relacionar com a tradição losóca, a qual, na medida em que inuencia o
GEPEF, não deixa de ecoar na emergência e nos projetos do ENFILO.
Sabemos que, no campo do Ensino de Filosoa, essa política losóca
proposta por Gallo e Kohan ecoam com certa força, principalmente pelo pa-
pel de agenciadores que ambos ocuparam nas movimentações acadêmicas do
ensino de losoa no início do século XXI. No entanto, nossa intenção não é
problematizar o campo do Ensino de Filosoa, sua constituição epistemológica
e histórica, e sim empreender um esforço ético, de pensar como essas heranças
de formação nos faz pesquisar na área e ensinar e aprender losoa de deter-
minada maneira e não de outra. Portanto, para continuar essa investigação,
precisamos problematizar nosso convívio no ENFILO, de modo a evidenciar
como o grupo projetou sua losoa do ensino de losoa, mostrando, conco-
mitantemente, as capilarizações discursivas dos agentes da 1ª geração de pes-
quisadores, que desenvolvem seus pensamentos em interface com o campo da
losoa da educação. Assim, questionamos: como aquilo que se institui como
projeto losóco do ENFILO ressoa uma herança de formação do campo do
Ensino de Filosoa, que tem como interface esses pesquisadores da 1ª geração?
Eis o que passaremos a investigar no restante do capítulo.
2.2. Filosoa do ensino de losoa: práticas losócas de pesquisa
Nossa convivência com o ENFILO é relativamente longa, inicia-se no
ano de 2012 e se mantém desde então. O encontro foi obra do acaso: fomos
informados da vigência de um processo de seleção para bolsa de iniciação
à docência (PIBID) por um colega de turma, que viu o cartaz de anúncio
no mural do prédio de Didática. Não conhecíamos o projeto, tampouco o
grupo; só fazia seis meses que tínhamos ingressado na graduação. Todavia, a
oportunidade nos pareceu única, pois lecionar era um dos nossos horizontes
formativos. Com o passar dos anos, a convivência só se intensicou. Mas um
ponto ou um momento de maior partilha se deu a partir da nossa pesquisa
de mestrado. Daí em diante, exercitamo-nos em uma nova forma de pensar,
marcadamente coletiva, que nos trouxe mais vitalidade e vigor na experimen-
tação do pensamento.
97
Pretendemos nos ater a alguns aspectos dessa convivência, a m de pro-
blematizar nossas heranças de formação, indicando como uma política losó-
ca de ensinar e aprender losoa, emergente no início deste século, circula
e se singulariza dentro da atuação de pesquisa, ensino e formação do grupo.
Reconhecemos a diculdade material para problematizar nossa convivência,
uma vez que boa parte dessa política losóca de ensinar e aprender losoa
se encontra nas relações do convívio e não propriamente em textos. Mesmo
assim, nossa estratégia é tensionar nossa experiência por meio de alguns tex-
tos elaborados pelo grupo ou por aqueles que o inuenciam, desvelando as
relações losócas de pesquisa e de ensino e aprendizagem que emergem da
imanência de nossa partilha.
Levando em consideração a nossa problemática em relação ao campo
do Ensino de Filosoa, partimos do posicionamento de Gelamo (2009) face
às produções teóricas da área. No primeiro capítulo de seu livro, publicação
de sua tese de doutorado, Gelamo (2009) analisa como o problema de ensi-
nar e aprender losoa havia sido problematizado no Brasil, a partir de um
levantamento bibliográco de 1934 a 2008. Seu objetivo é entender “[...] a
maneira por meio da qual o pensamento sobre o ensino de losoa tem se
constituído no espaço acadêmico das pesquisas sobre o assunto e as questões
que vêm sendo debatidas pelos pesquisadores da área” (Gelamo, 2009, p. 34).
Na medida em que recupera as produções acadêmicas do ensino de losoa
no Brasil no último século, diagnostica uma certa fragilidade da discussão,
uma vez que boa parte das produções permaneceu restrita a uma formulação
pedagógica do problema de ensinar e aprender losoa, circunscrita a três
perspectivas: (i) da importância do ensino de losoa para a formação do
estudante; (ii) do currículo da disciplina e dos conteúdos a serem ensinados;
(iii) das metodologias de ensino.
Gelamo (2009) denuncia, em interlocução com Deleuze, como essas
três perspectivas funcionam como imagens de pensamento responsáveis por
cristalizar o modo de pensar o ensino de losoa no Brasil. Para ele, a (pouca)
literatura do ensino de losoa já pressupõe o que é essencial a ser pensado
sobre o assunto, moralizando, consequentemente, boa parte das experiências
teóricas e práticas da área. Especicamente, essas imagens condicionam a
experiência de pensar o ensino de losoa às questões pedagógicas inerentes
98
a uma relação de transmissão de conhecimentos, dicultando não só a par-
te teórico-losóca, mas também a criação de outras práticas de ensinar e
aprender losoa.
Por essa razão, Gelamo (2009) defende que pensar losocamente o
ensino de losoa signica ultrapassar essas imagens de pensamento, ima-
gens pré-losócas, dogmáticas e morais que condicionam e impõem como
se deve formular o problema de ensinar e aprender losoa na contempora-
neidade, isto se quisermos elaborar outras maneiras de pensar as experiências
educativas em losoa. Para ele, a forma de pensar o ensino de losoa está
presa ao mesmo recorte e ao mesmo registro, sempre se retornando às ques-
tões da importância, da metodologia e dos conteúdos do ensino de losoa,
temas que não dão conta de problematizar a densidade das relações esta-
belecidas nesse processo. Portanto, defende o deslocamento do pensamento
dessas imagens, a m de criar a possibilidade de ensinar e aprender losoa
de outra maneira:
Se não rompermos com o dogmatismo do modo de questionar o ensino
da Filosoa, a resposta ao problema enunciado na nossa apresentação – o
que faz o losofo quando uma de suas tarefas no contexto presente é ser profes-
sor de losoa – já estaria dada, uma vez que os problemas que poderiam
ser pensados precisariam estar restritos (ou se enquadrar) à importância,
à metodologia e aos conteúdos a serem ensinado na aula de Filosoa em
razão de uma formação crítica do sujeito. Isso nos levaria a contribuir para
a centralidade do ensino da Filosoa na transmissão de conhecimento e,
consequentemente, para o distanciamento do ensino de losoa do desejo
de saber daqueles que têm acesso a ela (Gelamo, 2009, p. 82-83 – grifos
no original).
Esse deslocamento proposto por Gelamo (2009) parece beirar ao ab-
surdo, sem sentido e, talvez, sem lugar nos debates acadêmicos – lugar em que
os saberes estão dispostos como um corpus disciplinar. Ora, as três imagens
do ensino de losoa representam lugares-comuns pertencentes às práticas
de ensinar e aprender, que devem ser os pontos de partida de todos aqueles
que se dedicam à reexão sobre seu ofício educativo. Anal, que professor
não precisa pensar o que ensinar, como ensinar e para que ensinar quando
enfrenta o desao docente? Essas são perguntas pedagógicas básicas do ofício
99
docente e, consequentemente, reetem na formulação das pesquisas. Porém,
será que aquilo que se põe como necessário não limita o que pode ou não
ser pensado sobre o ensino de losoa? Será que essas questões, por mais
que digam respeito à urgência dos professores de losoa, devem ser consi-
deradas como pontos de partida necessários ao pensar? Ao fazermos assim,
não estaríamos caindo em um senso comum, ainda que pedagogicamente e
academicamente estabelecidos, esquecendo quais são as experiências que nos
dão a pensar?
Em um texto de Sílvio Gallo (2003), escrito para ocasião do III
Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosoa, encontramos uma crítica
muito próxima a de Gelamo (2009) – talvez pela partilha de referencial –,
que também problematiza a restrição do pensar do ensino de losoa àqueles
três modos usuais de pensar o ensino de losoa. Em vários momentos em
que escreve sobre o tema, Gallo perspectiva o que está acontecendo nos de-
bates. Quase sempre faz questão de sublinhar os avanços signicativos de um
possível campo, principalmente quando comparado aos debates das décadas
de 1980. No entanto, dessa vez, ele faz uma ressalva a um modo “maior”
de pensar o ensino de losoa que se produz na intensicação bibliográca
recente. Não obstante o incremento da produção teórica na primeira década
de 2000, muito daquilo que se tem escrito se limitou a pensar de maneira
maior”, retomando as “grandes” questões que devem ser pensadas sobre o
ensino de losoa. Logo no início de seu texto, ele escreve que:
A temática do ensino de losoa vem sendo trabalhada exaustivamente
nos últimos anos. Os simpósios sobre ensino de losoa organizados pelos
cursos da região sul, no que foram seguidos pelos cursos do centro-oeste e
do sudeste, foram certamente um grande estímulo para a pesquisa na área.
Também em outros congressos e eventos a temática do ensino da losoa
tem aparecido e crescem as publicações a esse respeito. O crescimento
quantitativo, felizmente, tem sido seguido por um expressivo crescimento
qualitativo. O mercado editorial, por sua vez, parece acompanhar esse
movimento, uma vez que têm sido publicadas obras sobre a temática,
algo que não ocorria há uma década atrás. Toda essa produção, a meu
ver, está voltada para uma discussão em torno da importância da presença
da losoa nos diferentes níveis de ensino, como se a losoa precisasse
se autojusticar o tempo todo; para um debate em torno das políticas
100
educacionais e o espaço reservado à losoa nelas; para a proposição e o
comentário em torno de metodologias de ensino de losoa, também nos
diversos níveis. Resumindo isso tudo, eu diria que as pesquisas e as práti-
cas em torno do ensino de losoa no Brasil, desde a década de noventa
(sobretudo em sua segunda metade) têm estado voltadas para a “grande
educação”, para uma “educação maior”. (Gallo, 2003, p. 23-24).
Na perspectiva de Deleuze-Guattari na qual se inspira Gallo (2003)
e também Gelamo (2009), um modo maior de pensar, seja sobre o ensino
de losoa ou qualquer outro assunto, não está vinculado a uma questão
numérica, de incidência quantitativa. De fato, maior e menor referem-se a
um posicionamento, a uma atitude que se assume face aos problemas, ante
as verdades e aos jogos de poder que constituem as disputas pelo verdadeiro.
Por essa razão, não são qualicações, mas funções e tipos de usos que são
estabelecidos para pensar. Um modo maior de pensar o ensino de losoa
– que Gelamo (2009) chama de pedagógico por evocar a relação do ensino
de losoa à transmissibilidade do saber –, vincula-se àquelas três imagens.
Ou seja, representa as maneiras hegemônicas, sedimentadas historicamente
pelo saber/poder educacional-pedagógico, que tem a qualidade de enunciar
como se deve formular um problema e onde estariam as soluções possíveis. A
marca de um pensar maior é o foco na unidade da representação, a busca pela
universalidade dos conceitos, cujas forças são encontradas em uma condição
de validade externa à experiência daquele quem pensa, tornando-se, por isso,
moralizante. Abaixo, recortamos um trecho do livro de Gelamo (2009), a
partir do qual ele destaca a associação das imagens de pensamento e uma
relação “maior” de pensamento com o ensino de losoa:
A partir da caracterização feita por Deleuze e Guattari a respeito da loso-
a maior, podemos armar que boa parte das produções sobre o ensino de
losoa vinculam-se a esse modo de losofar. Notamos isso especialmente
quando deparamos com os problemas debatidos pela losoa do ensino
da Filosoa. [...] Poderíamos dizer, então, que existem três imagens do pen-
samento por meio das quais sua ortodoxia é circunscrita; elas são o espaço
no qual aqueles que se dedicam a pensar o ensino da Filosoa devem se
enquadrar e enquadrar suas pesquisas. (Gelamo, 2009, p. 98-99).
101
Uma atitude “menor”, um pensar “menor” do ensino de losoa, ao
contrário, se faz como ato de resistência e militância; é uma atividade micro-
política de se contrapor ao instituído, que ocorre entre as frestas das macro-
políticas do saber. Nas palavras de Gelamo, só é possível manter uma relação
menor” com o ensino de losoa, pensar pela potência da menoridade, por
meio de “[...] uma política de resistência aos padrões instituídos do losofar,
do aprender e do ensinar” (Gelamo, 2009, p. 97).
Os questionamentos de Gelamo (2009) e Gallo (2003) às imagens de
pensamento que cristalizam o debate do ensino de losoa são forças que
buscam deslocar o devir investigativo daquilo que as grandes políticas do
pensamento já sedimentaram como ordem discursiva, com a pretensão de
que exista um pensar imanente, vital, que seja emergente da própria realida-
de daquele que pensa. Objetiva-se produzir um modo de pensamento que
possibilite, enm, pensar os problemas que afetam de forma imanente a vida
daqueles que ensinam e aprendem losoa. Tal como arma Gelamo: “[...]
aquilo que precisa ser pensado é o que afeta nossa vida; pensar aquilo a que
está ligado à nossa própria experiência e que sequestra nosso pensamento
(2009, p. 31).
Essas críticas de Gelamo (2009) ecoam no grupo como uma força in-
fante, um movimento em direção a um pensar pela diferenciação, para além
da recognição dos conceitos universais, das representações, dos grandes luga-
res e formas que ordenam e moralizam o pensar. Ao estabelecer uma tensão
com o passado – isto é, com o modo como as questões do ensino de losoa
foram pensadas no Brasil –, seu pensamento provoca o grupo a criar uma
nova maneira de colocar o problema do ensino de losoa, forçando-nos a
problematizar, novamente, as experiências nos diferentes projetos e pesquisas.
Somos impelidos a pensar aquilo que sequestra nosso pensamento quando
ensinamos e aprendemos losoa; pensar, de novo, aquilo que diz respeito à
nossa vida, às nossas práticas, assumindo os riscos e as ingenuidades envolvi-
das nesse pensar, simultaneamente, intempestivo e pungente. E a esse novo,
esse pensar de novo nossas práticas, era qualicado pelo ENFILO como “-
losóco por excelência”.
Mas o que seria pensar losocamente o ensino de losoa? Seria só
evitar o lugar das três imagens pedagógicas de pensar o ensino de losoa e
102
nos deslocarmos para o registro de pensar da losoa? Não é isso. Trata-se
de uma política losóca de pensamento, cujo ponto central é manter uma
atitude menor de pensar, em resistência às condições morais que são postas
como necessárias ao pensamento. Posto isso, o losóco não estaria, propria-
mente, nas ferramentas, ou seja, no uso técnico e habitual que se faz da tradi-
ção losóca no Brasil, seja a área da losoa, seja da losoa da educação40.
Na época de seu doutoramento, Gelamo (2009) não apresenta ana-
liticamente o funcionamento da área da losoa, nem tanto da losoa da
educação; de fato, posiciona-se contra o poder institucional que sente no seu
corpo quando se propõe a pensar losocamente. Tão logo na introdução de
seu livro, ele narra algumas pressões institucionais que o atravessam como
exigências de uma pesquisa verdadeira:
Sempre ouvi dizer que fazer uma pesquisa exige que entremos no pensa-
mento de autores para apresentá-los sem cometer injustiças contra aqueles
que nos acompanham em nosso solitário exercício de escritura. Exige que
sejamos coerentes com os pensamentos daqueles com os quais dialogamos
para escrever nossos próprios pensamentos. Exige a busca de um estilo de
escrita que seja academicamente aceito, em que o rigor e a clareza este-
jam presentes. Exige a apresentação de uma habilidade cirúrgica no trato
daquilo que foi lido e na apresentação de ideias de inúmeros autores so-
bre um tema, ou sobre um aspecto de um tema. Exige que façamos uma
revisão de literatura e que procuremos innitamente por lugares onde
possamos sustentar nossas hipóteses e fundamentar nossos problemas.
Todo esse trabalho pode nos levar ao esquecimento dos motivos que nos
levaram a pesquisar determinado assunto, autor ou problema (Gelamo,
2009, p. 12).
Ele parece recusar o funcionamento da losoa e da losoa da edu-
cação, especialmente quando o pensar losocamente se torna sinônimo de
um pensar sobre e reexivo, em que não há espaço para a criação e para o
novo. A ideia de criação e de novidade não estão associadas à instauração
de um pensar genial ou mesmo de algo nunca antes pensado na história do
40 Nossa diferenciação entre losoa e losoa da educação tem como critério apenas a história do
desenvolvimento disciplinar dessas duas áreas no Brasil, tendo em vista que a losoa da educação
não é vista como uma subárea da losoa, e sim como subárea da educação.
103
pensamento. Pensar losocamente é criar; é inventar; mas a invenção não
é novidade pura – pois se faz como repetição –, tampouco está reservada ao
gênio – uma vez que é condição genuína do pensar e daqueles que pensam.
Por isso, pensar losocamente coincide com a elaboração de um sentido a
partir dos motivos que realmente nos levam a pensar; trata-se de uma atitude,
uma coragem de pensamento, que se tem em imanência com a vida, isto é,
pensar algo que faça sentido para a própria vida. Em outras palavras, pensar
losocamente é ser tomado pela losoa, manter muito mais uma atitude,
uma certa intensidade de pensar nos problemas emergentes da vida, do que
propriamente ter uma relação acadêmica com uma área que se fecha sobre si
mesma, a m de aprofundar e esmiuçar reexivamente os conceitos e o cor-
pus disciplinar da área. Ainda na introdução, Gelamo assim expõe o pensar
losóco como ele compreende e sua relação contrastante com aquilo que se
estabelece costumeiramente nas pesquisas de losoa e losoa da educação:
Foi nesse momento que comecei a ser tomado pela losoa. Não pela
losoa entendida como área de saber fechada sobre si mesma, mas pela
losoa perspectivada como uma intensidade do pensamento, como uma
forma de problematizar e pensar os problemas. Fui tomado por um de-
sejo de conhecer e de pensar losocamente a vida em seus mais amplos
aspectos. Porém, meu interesse não estava em me inscrever em uma área
do saber nomeada de losoa para conhecer o pensamento losóco de for-
ma exterior, mas em experimentar um modo de existência no qual o que
importa é ter uma atitude losóca ante o pensamento e a vida, ou seja,
ensaiar e ensaiar-se continuamente na experiência de viver-pensar losoca-
mente. [...] Nesse contexto, o objeto da minha pesquisa passou a ser minha
própria vida de professor, minha prática docente e as questões que dela
emergiam: uma prática em devir e em experiência de pensar essa prática a
partir de sua imanência, com a intensidade da obra dos lósofos que me
acompanhavam. (Gelamo, 2009, p. 12-14).
Em tensão com a organização e as práticas da losoa e losoa da
educação no Brasil, Gelamo assume uma condição em que pensar losoca-
mente se aproxima de uma relação vital, em que os lósofos são intercessores
e não objetos para se reetir sobre. Apesar do funcionamento institucional
ocorrer em áreas diferentes, as pesquisas da losoa e da losoa da educação
104
se assemelham em muitos aspectos. Como vimos na seção anterior, Gallo
defende que as pesquisas de losoa da educação, especialmente na década
de 1990, desenvolveram-se a partir de um caminho hegemônico de estudos e
comentários de autor. A resposta de Gallo àquilo que se consolida na área da
losoa da educação é retirar os estudos e as pesquisas desse registro comum
de comentário de autor, que também assume como forma duas posturas de
pensamento hegemônicas: “[...] uma espécie de ‘reexão sobre’ a Educação
e a de entendê-la como um dos ‘fundamentos da educação’ (Gallo, 2007, p.
276). Ele defende, inspirado em Deleuze e Guattari, um pensamento criativo
e não reexivo. O pensar reexivo não cria, ele se aprofunda, busca a raiz do
problema para conhecê-lo em profundidade e pretende ocupar o lugar de
coroamento e rainha do saber: de unicar e fundamentar os outros saberes
– uma visão demasiada problemática que retira o direito à reexão de outras
áreas e que empobrece as potencialidades criativas da losoa:
Como age a Filosoa da Educação quando entendida como um funda-
mento da Educação? Em geral, busca resgatar os conceitos produzidos
ao longo da história da Filosoa para aplicá-los aos problemas relativos
ao fenômeno educativo, procurando, com isso, construir (para car na
metáfora arquitetônica) um saber educacional que teria tais conceitos
como base. Outra atitude recorrente é a do resgate daquilo que diferentes
lósofos, ao longo da história, pensaram sobre a Educação, subsidiando
o pensamento na atualidade. Na perspectiva de Deleuze, também essa
atitude é despotencializadora, pois inibe a produção de novos conceitos,
em lugar de estimulá-los (Gallo, 2007, p. 279).
Nesse sentido, uma losoa do ensino de losoa procura escapar do
registro maior de operação da losoa e se inventar com um losofar menor,
mantendo outro tipo de relação losóca de pensamento daquela usualmen-
te estabelecida pela losoa e pela losoa da educação. Gelamo (2009) es-
creve sua tese dentro da losoa da educação e, de certa forma, mantém uma
proximidade maior com o funcionamento investigativo da losoa do que
da ciências da educação. Mesmo assim, quer manter outro tipo de relação
losóca de pensamento. As diferenças não se dão somente na escolha do ob-
jeto – enquanto a losoa da educação tem a educação e a educação losóca
como alvos investigativos por exemplo, e o ensino de losoa teria o ensino
105
de losoa como objeto –, e sim na relação losóca que se mantém com o
pensar. Pensar losocamente consiste em sair do registro maior de operação
da losoa e da educação, para estabelecer uma prática losóca menor.
Em síntese, não é o caso de partir das imagens de pensamento peda-
gógicas instituídas pelas produções teóricas do ensino de losoa. Quer-se
pensar losocamente. Porém, isso não signica estabelecer uma relação re-
exiva e um pensar sobre o ensino de losoa. Em outras palavras, pensar
losocamente o ensino de losoa não se assemelha, de um lado, com aqui-
lo que é feito pela losoa e losoa da educação, que resgatam, de maneira
reexiva e histórica, os autores para pensar sobre ou fundamentar um ideal
educativo-losóco. Anal, o que adiantaria evitar o lugar pedagógico co-
mum de pensar o ensino de losoa se isso nos levar ao funcionamento maior
do território da losoa e losoa da educação? Não basta escolher entre uma
moral ou outra; precisa-se, enm, ocupar um espaço de pensamento entre
aquilo que se sedimentou, dando voz e trabalhando com aquilo que move
o pensar: a própria vida. Nas palavras de Gelamo, pensar losocamente o
ensino de losoa consiste em manter uma atitude menor, habitar entre o
modo ortodoxo da educação e o da losoa (da educação):
Além disso, a proposta de pesquisar o ensino da Filosoa, fundamentando-
-o na continuidade do que venho desenvolvendo em meus estudos e em
minha prática educativa, exige que eu faça dos desaos atuais do ensino
da Filosoa problemas losócos para pensá-los losocamente, o que
não implicaria uma recusa em adentrar na área educacional e losóca,
mas um distanciamento dos métodos e das técnicas usuais nesses campos
de conhecimento que estariam mais afeitos à problematização pedagógica
ou didática do ensino de Filosoa (no caso da educação) e da uma análise
estrutural de textos losócos e um pensar sobre os lósofos e sobre os pro-
blemas losócos (no caso da Filosoa). Assim, essa proposta de estudo se
coloca no entre, melhor dizendo, no espaço em que não sofre a reicação
dos métodos e técnicas da losoa ou da educação, mas faz uso de ambos
os saberes para se produzir. Nesse sentido, minha proposta é tratar o ensi-
no da Filosoa de modo losóco, sem cair no lugar-comum da losoa
denunciado por Deleuze (1990): o de reetir sobre o ensino da losoa,
mas criar uma estratégia diferente – que faz ressoar Nietzsche, Deleuze
e Foucault – para pensá-lo: como um desejo violento de pensar minha
própria vida. (Gelamo, 2009, p. 32-33).
106
Dentro dessa política losóca do ensino de losoa, o que tem valor
é a potência inerente à losoa, de um pensar imanente, que tenha relação
com a nossa vida, de modo que se questionem os pressupostos que habi-
tam nosso pensar, tensionando e nos deslocando das imagens, daquilo que
moraliza nossa experiência de pensamento. Da mesma forma que Gelamo
(2009) se arrisca a pensar entre a losoa (da educação) e a educação, ele
estimula a convivência no ENFILO nessa direção, garantindo o direito à
nossa experiência como condição de emergência de nosso pensar-praticar o
ensino de losoa e para que essas experiências sejam alvos de nossa expe-
rimentação losóca.
Como já ressaltamos anteriormente, essa política losóca do ensino
de losoa não se reduz à experimentação teórica. Não se trata de manter
uma relação teórico-losóca com os problemas de ensinar e aprender lo-
soa. De fato, quando as práticas de ensinar e aprender losoa são dimen-
sionadas como um problema realmente losóco, o seu exercício exige de
seus agentes mais do que um compromisso de pesquisa: implica reviver uma
relação losóca intrínseca às práticas educativas. Uma política losóca do
ensino de losoa signica, sobretudo, assumir um compromisso com o lo-
sofar, transformando as salas de aulas em um espaço por excelência da prática
losóca, onde os professores e estudantes sejam minimamente lósofos, ex-
perimentem losocamente sua vida.
Em contraste àquilo que é comum à nossa realidade universitária e à
situação escolar, o grupo defende que a experiência losóca não se restringe
aos lósofos canônicos; tampouco que a função da disciplina de losoa na
escola consiste em transmitir e dar acesso às culturas losócas acumuladas
historicamente, oferecendo, assim, uma formação pedagógica, sem que se de-
senvolvesse uma experimentação losóca. Na realidade, buscamos o direito
ao losofar, a experimentação losóca, que foi, na história da educação bra-
sileira, constantemente negada. Isso representa não só defender um direito ao
losofar na educação básica, mas também na universidade. Em linhas gerais,
consiste em resistir a essa lógica institucional formativa que cinde a experiên-
cia losóca da transmissibilidade disciplinar da losoa, de maneira a tentar
unicar uma prática educativo-disciplinar e a experiência de pensar loso-
camente, condição esta que a universidade e a escola parecem ter segregado.
107
2.3. Filosoa do ensino de losoa: práticas losócas de
ensinar e aprender
Na convivência no ENFILO, buscamos losofar dentro das relações
educativas; almejamos uma experiência em que se losofa educando e se educa
losofando. A política losóca do grupo não se contenta com o lugar e com
as práticas do professor-transmissor e do estudante-receptor, como se as rela-
ções de ensino e aprendizagem pudessem ser reduzidas a um aprimoramento
cultural – preocupado em se familiarizar com os conceitos e as teorias losó-
cas marcantes da história da losoa –, e não propriamente à experimentação
losóca. Assim, ser professor de losoa, bem como ser estudante, signica
assumir um ensino e um aprendizado losocamente ativos: não haveria outra
maneira de se educar losocamente a não ser exercitando-se losocamente.
Essa condição está explícita em nossa atuação nos projetos de inicia-
ção à docência do grupo. Nessas experiências, problematizamos a costumeira
relação escolarizada supercial e programática imputada ao exercício de pen-
samento losóco, algo que, em nosso ponto de vista, distorce o processo do
losofar, pois reduz a experimentação e os movimentos do pensar à transmis-
são e à assimilação de conteúdos, organizados em situações de aprendizagem,
cujas perguntas e respostas já estão programadas de antemão e sem espaço
para uma reexão genuína, visceral, em que professores e estudantes se tor-
nem agentes determinantes daquele saber.
No contexto do Estado de São Paulo41, a disciplina de losoa no en-
sino médio tem como característica trabalhar com as questões e temas da
contemporaneidade, de forma a encontrar na história da losoa o suporte
reexivo para os problemas da vida dos estudantes e dos professores. Quer-se
com isso evitar, fundamentalmente, uma maneira de ensinar e aprender, cujo
vínculo com a losoa se restrinja apenas à capacidade de memorização e de
acúmulo informacional das doutrinas losócas, como mostra um trecho do
41 Atualmente, o Currículo do Estado de São Paulo não está mais vigente. No entanto, foi basicamente
sobre esse currículo que desenvolvemos nossas investigações. Reconhecemos que, a partir do novo
currículo, a situação da losoa cou ainda mais complicada, principalmente pela diminuição
da carga horária e exibilização curricular, que afetou todas as demais disciplinas. Apesar disso,
acreditamos que as experiências realizadas com o Currículo do Estado de São Paulo podem servir
de reexão para os breves momentos semanais em que ainda há espaço para a disciplina de losoa.
108
material didático (Caderno do Professor e Caderno do Aluno) do Currículo do
Estado de São Paulo:
O que parece certo, porém – e esta é nossa escolha –, é que precisamos
chegar à História da Filosoa a partir das questões presentes, e não o in-
verso, como habitualmente acontece. Assim, nossos adolescentes podem
chegar a uma melhor compreensão dos problemas apresentados pela vida.
Sem isso, nenhum lósofo ou conceito losóco terá sentido para eles. O
primeiro conceito losóco para se trabalhar em sala de aula é a vida das
pessoas que ali estão – do professor e do aluno. É claro que para trabalhar
essas questões, temos de recorrer aos conhecimentos e às estratégias suge-
ridas pelos lósofos, encontrados na História da Filosoa e que devem ser
utilizadas para desenvolver o pensamento crítico, indispensável à promo-
ção da dignidade humana (São Paulo, 2014-2017, p. 5).
Aparentemente, a proposta parece interessante porque reconhece os
riscos de separar a losoa da vida. Porém, não é bem isso que acontece,
principalmente em razão da transformação dos pensamentos losócos em
conteúdos que necessitam ser ensinados e aprendidos, e não em experiências
de pensamentos que podem transformar a maneira como nos relacionamos
com a vida. Ainda que parta de situações contextualizadas no presente, é
possível dizer que, sob uma perspectiva curricular e programática, ensinar e
aprender losoa signicam ensinar e aprender a história da losoa. Tem-se
como pressuposto que, tal como nas outras disciplinas curriculares, a losoa
também possui conteúdos especícos que operam como espinha dorsal ao
desenvolvimento losóco dos estudantes – no caso, as doutrinas e os siste-
mas losócos, espalhados pelos mais de vinte e cinco séculos de tradição.
Dentro desse contexto, o professor de losoa adquire uma função es-
sencial de transmissor de conhecimentos, ou seja, de explicador dos sistemas
losócos e de suas doutrinas. Em muitas das situações de aprendizagem, o
professor tem como recurso explicativo, como matéria precípua, os textos dos
clássicos. Quase toda discussão temática do currículo apresenta um ou mais
textos clássicos da história da losoa, cujo exercício de leitura deve apoiar a
reexão losóca. No entanto, em razão das circunstâncias e dos objetivos da
disciplina na educação básica, são trazidos fragmentos ou adaptações dos tex-
tos clássicos. Por vezes ainda, apesar de existir apelo aos clássicos, os materiais
109
didáticos, oferecidos pelo Programa Nacional do Livro Didático, tornam-se
também a fonte primária de leitura, de forma a ser, por conseguinte, também
objeto da explicação do professor. É bem verdade que, em alguns momen-
tos da situação de aprendizagem, o Caderno do Professor, material didático,
oferece espaços para pesquisa, leitura e outros exercícios que, a princípio,
poderiam indicar a saída do registro da transmissão. Porém, todos aqueles
exercícios sustentam-se no pressuposto da transmissão, que é conferir a al-
guém o papel de juiz sobre o verdadeiro a ser conhecido e ser, fundamental-
mente, o controlador da aprendizagem. Logo, o papel do professor não deixa
de ser o de transmissor do legado, radical e perene da reexão losóca aos
estudantes, daquele que proporciona o acesso à história da losoa, a m de
aprimorar a reexão crítica daqueles.
De maneira geral, o funcionamento escolar da disciplina de losoa
não permite uma experimentação losóca em sala de aula, uma vez que
se encontra preso às práticas de transmissão de conhecimentos. Nesse caso,
em contrariedade ao que é proposto, a relação educativa construída tende a
estimular mais a capacidade de memorização e domínio representacional de
um referencial teórico do que propriamente uma experiência de pensamento.
Cultiva-se uma relação abstrata com o saber losóco, pois dicilmente se
consegue colocar em tensão as questões apresentadas, tampouco formular
uma problemática em que estudantes e professores sejam agentes daqueles
saberes, criando vínculos viscerais com os conceitos e a contemporaneidade.
Não negamos que o conhecimento da história da losoa pode ofe-
recer sustentação e localização histórica para os estudantes na discussão de
temas contemporâneos, ou seja, não discordamos da força de atualidade da
tradição losóca e seu papel de auxiliar os estudantes na reexão sobre o
presente. O problema é que, no caso do currículo, os conceitos e as doutrinas
losócas são tratados como abstrações que, pela sua força de universalida-
de, emancipam-se das amarras do tempo, de maneira a servir, em muitos
dos casos, como ponto de chegada para aqueles que desejam pensar loso-
camente. Ainda que produzidos em determinada época e por determinado
grupo de pensadores, as doutrinas losócas são evocadas em sua eternidade
e validade, representações que servem para explicar e dizer a realidade. Em
contrapartida, esse exercício, hegemonicamente, não costuma ultrapassar
110
um conhecimento sobre os conceitos e doutrinas produzidos pelos lósofos
– quando não funciona apenas como argumento de autoridade para alguma
questão ou situação problemática. Isso é o que apontam alguns integrantes42
do grupo no trecho abaixo:
No âmbito do ensino de losoa, especicamente, existe um forte apelo
a um conteúdo que se limita àquilo que foi pensado pelos lósofos no de-
curso da história da losoa. Estabelece-se por objetivo que o aluno tenha
acesso a tais conteúdos e, na assimilação e compreensão dos mesmos, possa
bem reconhecer as ideias losócas apresentadas[...] Nesse caso, para que
o aluno tenha contato com a gama de conteúdos prescritos pelo currículo
educacional, exige-se um domínio da temporalidade da aprendizagem, ou
seja, controla-se o tempo da experiência, fundamental ao aprender losó-
co, em virtude da demanda de informações a serem transmitidas. Assim,
a transmissão da losoa teve de ser reduzida à compreensão objetiva de
enunciados losócos, que, quando muito, atuavam a favor da consti-
tuição de recortes sobre os temas e as formas de pensamento presentes
na história da losoa. Esse modelo de ensino restringia a experiência do
aprender a uma relação puramente abstrata: “losoa era coisa de lóso-
fos” e aprender losoa, portanto, seria entender corretamente seus pen-
samentos. Isso demonstrava uma imagem de losoa na escola marcada
pelo estatuto da abstração, uma conguração do pensamento na qual as
ideias funcionam separadamente do “ordinário” da vida; daí a resistência
em aprender tudo o que estaria aparentemente distante, tudo o que seria
“inútil”. Assuntos do campo da Ética e Política, por exemplo, ainda que
presentes na vida prática, representavam mais conteúdos a serem ensina-
dos pelo professor do que uma problemática viva e atual no cotidiano.
(Pinto et al, 2015, p. 659)
De modo algum negamos a importância do corpus disciplinar acumu-
lado na tradição losóca. Certamente, a forma como os conhecimentos estão
dispostos dentro das aulas de losoa oferece uma localização histórica de co-
nhecimento, cristalizados como cultura ocial, cuja funcionalidade é uma refe-
rência epistemológica importante. No entanto, ainda que partamos de situações
42 Há uma série de outros artigos do grupo que problematiza essas experiências por diferentes
perspectivas. São críticas que não deixam de denunciar os problemas inerentes ao ensino de losoa
como transmissão de conhecimentos. Deixamos aqui algumas indicações: Garcia e Gelamo (2012),
Rosa e Gelamo (2015) e Pinto e Santos (2013).
111
da atualidade, quando nos prendemos à transmissão do conhecimento, nossa
relação com o ensino e a aprendizagem da losoa não deixa de ser estritamente
epistemológica, de claricação conceitual e elucidação de pontos referenciais da
cultura que estruturam o currículo ocial. Os estudantes conhecem mais sobre
a organização democrática brasileira ou sobre o conceito de política; conhecem
mais sobre as reexões éticas e os problemas bioéticos da contemporaneidade;
conhecem de maneira aprofundada os alicerces da ciência moderna, isto é, sobre
o início da revolução cientíca, o que é o método cientíco, as congurações
cosmológicas e epistemológicas da nova ciência. No entanto, qual é a relação
desses conhecimentos com a vida deles? Ter conhecimentos sobre temas éticos,
políticos e epistemológicos não implica uma transformação ética daqueles que
aprendem, não signica que aqueles saberes produzem sentido existencial na
vida dos professores e estudantes.
Nesse sentido, percebemos que, em muitos dos casos, não se realiza-
vam experiências de pensamento no contexto escolar. Elas são obscurecidas,
não têm um lugar nas práticas de ensinar e aprender, para fazer valer a trans-
missão dos signicados dominantes sobre os conhecimentos acumulados, ge-
nericamente intitulados como história da losoa. Estudantes e professores
não podem experimentar a losoa, manusear os conceitos de acordo com a
delimitação do que é ou não problemático para eles, porque, além da trans-
missão de conhecimentos se situar descontextualizada da vida, aquilo que
precisaria ser pensado já estava instituído pela situação de aprendizagem que
indicava quais representações os professores deveriam explicar e os estudantes
compreender (Rancière, 2011).
Coincidir o ensino de losoa à transmissão de conhecimentos e à
prática do professor à explicação signica entrar em um contexto de educa-
ção institucional. Assim como ocorreu com outros saberes, a experimentação
losóca dentro das instituições educativas tende a reduzir suas práticas a
esse pressuposto de progressão formativa pela instrução, cujo funcionamento
se apresenta pelos registros da explicação e compreensão. Para fundamentar
a educação em um processo de transmissão, é preciso hierarquizar o mun-
do em dois, entre aqueles que sabem e os que não sabem. Na cultura das
instituições educativas, os professores são aqueles que sabem e que ilumi-
nam os ignorantes – os sem luz –, tornando-se os responsáveis para suprir
112
a ausência de conhecimento dos estudantes e para diminuir a distância que,
supostamente, existe entre eles e o saber. E isso só se faz possível através da
explicação. Explicar é tornar inteligível, equalizar, romper, através da palavra,
a complexidade do saber desejado, criando os degraus de iniciação para uma
inteligência desigual.
No ensino de losoa como transmissão de conhecimentos, a m de
que os estudantes desenvolvam sua aprendizagem, faz-se preciso que o pro-
fessor transmita não só as verdadeiras representações sobre alguns recortes
temáticos da história, mas também que diga o que e como se pode pensar.
Vive-se, sobretudo, um silenciamento ou empobrecimento da experiência
com a losoa e o mundo. Isso porque o estudante, sob a ordem da expli-
cação, não precisa experimentar o problema, não precisa ter uma conexão
com aquilo que é pensado; basta que tenha a capacidade de compreender as
explicações do mestre. A aprendizagem é uma decorrência linear daquilo que
é ensinado, tornando-se um efeito necessário daquilo que se explica. Por essa
razão, a aprendizagem se reduz à compreensão: um ato individual de posses-
são daquilo que o professor já tem assimilado, ordenado e representacional-
mente sintetizado, e que está prestes a dar a conhecer através da explicação.
Em sua condição imatura de pensamento, os estudantes precisam se sujeitar
às representações do professor, o que inclui o recorte problemático que con-
cede às temáticas e às informações que transmitirá da história da losoa.
Cabe ao estudante o papel de compreensão, e compreender signica ter rece-
bido a revelação daquilo que o professor já descobriu, mais ainda se faz, aos
estudantes, escondido.
Jacques Rancière constitui um dos intercessores de nossa convivência
no ENFILO, porque nos ajuda, por um lado, a desnaturalizar a concepção
comum de ensinar e aprender, produto de uma lógica inerente à socieda-
de-escola. O mestre embrutecedor e a lógica da explicação nos dão força para
enunciar as experiências em sala de aula. De modo geral, a escola, enquanto
instituição pedagógica moderna, simboliza o lugar de conciliação entre a or-
dem e o progresso, onde a instrução torna-se a palavra de ordem central como
veículo de passagem de progressão e participação na sociedade organizada:
Fazendo passar os conhecimentos que possui para o cérebro daqueles
que os ignoram, segundo uma sábia progressão adaptada ao nível das
113
inteligências limitadas, o mestre era, ao mesmo tempo, um paradigma
losóco e o agente prático da entrada do povo na sociedade e na ordem
governamental modernos (Rancière, 2011, p.11).
Por outro lado, além de denunciar esse funcionamento comum cons-
tituído em torno do ensinar losoa, as críticas de Jacques Rancière são
apropriadas para denunciar, não só a subjugação da experiência losóca às
ordenações modernas do saber escolar, mas sobretudo para problematizar o
empobrecimento do losofar. Quando o ensino e a aprendizagem em loso-
a se ancoram no funcionamento da transmissão de conhecimentos, fazendo
valer essa relação escolarizada com o saber losóco, ocorre, justamente, a
despotencialização do losofar, que está expressa na impossibilidade ou na
diculdade de realizar experiências com a losoa, o mundo e aquilo que nós
somos. Anal, a relação que o ensino de losoa mantém na escola é estrita-
mente epistemológica e não ética.
O problema da não-experiência está, em parte, na incapacidade de
transformar a tradição losóca e os eventos de nossa vida em experiências
signicativas. Não obstante façamos parte dos eventos, é difícil experienciá-
-los, manter uma relação de sentido com eles, porque prevalece, na moderni-
dade, uma cisão entre o sujeito do conhecimento e o sujeito da experiência.
Ou seja, o conhecimento não se sustenta na autoridade narrativa daquele que
experiencia, e sim nos experimentos que se dão fora do sujeito. A condição do
conhecimento válido é o inenarrável – no experimento, no uso metódico da
razão, ou nas faculdades a priori da razão. O empobrecimento da experiência
nos impossibilita de narrar, de atribuirmos sentido para aquilo que vivencia-
mos; perdemos, enm, a autoridade de quem experienciou algo, para armar
um modo de conhecimento objeticável que se produz como reconhecimento
e cuja autoridade se sustenta nos conhecimentos que são reconhecidos, sem
que exista, de fato, uma experiência (Gelamo, 2006, p. 13).
Isso acontece explicitamente no ensino de losoa e resulta naquilo
que o grupo costuma qualicar como empobrecimento do losofar. A lógica
da explicação faz valer um modo de conhecimento acumulado que inde-
pende daquele que ensina e daquele que aprende. O funcionamento expli-
cativo-compreensivo inerente às relações de ensino e aprendizagem mantém
professores e estudantes expropriados da experiência; o que se cultiva são os
114
conhecimentos objetivamente instituídos pela história da losoa, a ponto
de esses saberes silenciarem as relações nas quais se vivencia a educação losó-
ca. Ante uma realidade objetivável de conhecimento a ser transmitido, a tra-
jetória dos estudantes e professores e as experimentações que possivelmente
já realizaram sobre o assunto não são produtoras de sentido dentro do ensino
de losoa na contemporaneidade.
Talvez seja mais fácil identicar o empobrecimento da experiência na
aprendizagem losóca, uma vez que o estudante se torna refém das explica-
ções e da validação representacional do professor. Porém, as críticas do grupo
mostram que, dentro do jogo da transmissão de conhecimentos, nem mesmo
o professor precisa ter uma experiência com aquilo que explica. Ora, um co-
nhecimento representacional, adquirido via explicação, pode ser reexplicado
em outro contexto, sem que passe pela experiência daquele que o reexplica.
Poderíamos explicar a origem de desigualdade em Rousseau para os estu-
dantes da educação básica através das próprias explicações assimiladas em
nossas aulas de losoa política na universidade. Evidentemente que, dentro
da lógica da explicação, o segredo está no nível comunicativo daquilo que se
explica. Um professor consciencioso de seu ofício sabe que precisa simplicar
o que, em outro registro, se apresenta de forma mais complexa. Mas isso não
signica que o processo de assimilação da representação e simplicação passe
pela experimentação. E isso se agrava, principalmente pela própria extensão
curricular. A necessidade de contemplar vários temas, de se transmitir uma
série de representações sobre a história da losoa, empurra, praticamente, os
futuros professores à relação representacional e abstrata com o conhecimen-
to. Assim, nem os professores e tampouco os estudantes parecem, em sala
de aula, criar uma experiência que friccionasse a losoa e o mundo, como
aponta as críticas de Gelamo:
A relação ensino/aprendizagem no ensino da Filosoa pode ser entendida
como uma relação entre a explicação e a compreensão que vai propiciar o
acúmulo informacional sobre a losoa: explicação de algo que não passou
necessariamente pela experiência do professor (pois, muitas vezes, ele tam-
bém foi refém da explicação de seu professor) e que, muitas vezes, não foi
objeto de seu pensamento enquanto experiência; e compreensão, por par-
te do aluno, que se constitui em uma relação puramente cognitiva com a
115
explicação dada pelo professor e, por isso, muitas vezes também não faz uma
experiência de pensamento daquilo com que entra em contato, ou seja, não
transforma as “experiências diárias” em experiências signicativas. [...] Nesse
registro, pensar losocamente congurar-se-ia como um exercício vazio, de-
senvolvido a partir do acúmulo de conhecimentos sobre a losoa: uma
forma de cristalização do losofar. Isso dicultaria uma experiência com a
losoa que fosse capaz de produzir uma ssura na relação signicativa do-
minante e de permitir ao “aprendiz” a procura de uma ressignicação de sua
relação com o mundo e com a própria losoa. (2009, p. 116-117).
Nesse sentido, antes mesmo de qualquer experiência, de sermos afeta-
dos por aquilo que se propunha a pensar nas situações de aprendizagem, em
nossas experiências de ensinar e aprender losoa, a losoa e seus proble-
mas costumam se enquadrar nas representações, sob o princípio do mesmo,
da identidade e do semelhante. Enquanto estudantes e professores enrique-
cem-se de representações, de conhecimentos informacionais sobre a história
da losoa, adquirindo formas de leituras de situações circunstancialmente
problemáticas, em contrapartida, a experiência do mundo é mediada pelo
pensamento dos lósofos, pela explicação dos professores ou mesmo pela
explicação dos livros didáticos, como se a possibilidade da experiência só se
pode ser vivenciada na sombra das experiências historicamente acumuladas e
não na experimentação de um problema que emerge da relação comum dos
próprios estudantes e professores com o mundo.
Em outro texto, Gelamo (2010) continua a problematizar o empo-
brecimento da experiência na cultura geral e, em especial, nas relações de
ensinar e aprender losoa. Sua análise ajuda a perceber o contexto crítico
que o grupo coloca a educação losóca na escola, suprimindo e silenciando
as experiências de estudantes e professores, para armar uma experiência ou-
tra, supostamente universal e maior porque baseada em critérios cientícos e
losócos. Em síntese, o ensino de losoa na escola valoriza a imitação da
experiência de um outro, dicultando com que os professores e estudantes
experimentassem estar vivos e narrar as próprias vidas, evidentemente que em
interlocução com a tradição losóca:
Esses critérios de validação cientícos e losócos passaram a ser legítimos
instrumentos que o indivíduo deveria usar para avaliar e se integrar à vida
116
cultural. Nesse sentido, eles corroboram a busca de uma homogeneização
cultural, uma vez que esta também precisaria ser submetida a critérios
cientícos e losócos que buscam a universalidade daquilo que se co-
nhece. Assim, tornamo-nos mais pobres nas experiências culturais que
têm como característica não a universalidade das ideias, mas a fugacida-
de, a heteronomia, a mutabilidade, a concretude das relações pessoais e
a particularidade dos contextos em que as experiências culturais nascem,
constituem-se e desenvolvem os vínculos afetivos. O ensino de losoa
pautou-se nesses critérios cientícos e losócos cujo mote não é a valo-
rização da cultura particular de um povo, mas a cultura geral e universal
produzida pelos grandes eruditos. A losoa, ao corroborar o empobreci-
mento da experiência, contribuiu para o enfraquecimento dos modos de
vida das pessoas e em seu lugar colocou um modo de vida que não lhe é
próprio (Gelamo, 2010, p. 393-394).
Dentro do convívio do grupo, torna-se problemático cultivar um en-
sino e aprendizagem em que a experimentação do pensamento não seja o
norte. A incerteza, a falta de clareza, a ambiguidade, a insatisfação com as res-
postas dadas e com os problemas colocados e o “perder tempo” são condições
que, embora inerentes aos caminhos desconhecidos da aprendizagem, não
costumam fazer presentes em sala de aula. Assim, o propósito do ENFILO
consiste em transformar a sala de aula em um espaço onde ocorra um exer-
cício losóco acerca de um conhecimento que nos toma a partir de uma
experiência que se faz dele. O que defendemos não é uma imagem de loso-
a e de losofar fechada, mas que nós, professores e estudantes, situados em
determinado território, sob condições especícas, criemos outros modos rela-
cionais com a losoa e com o mundo, de maneira a fugir dos paradigmas e
validação historicamente instituídos, singularizando relações e saberes outros.
Apesar desse “losofar” não ser reconhecido academicamente, seja pela
distância existente comparado aos lósofos clássicos, seja pela tenuidade do
pensamento e dos problemas experimentados, nosso objetivo é experimentar
a pensar losocamente, a produzir uma diferença e construir novos sentidos
a partir do convívio com a tradição losóca e a perspectiva de real da qual
emergem nossas relações educativas. Assumimos que pensar é experimentar,
e a experimentação está envolvida com o novo, com as virtualidades. E isso
parece impossível no registro da transmissão, cujo funcionamento se ancora
117
na representação e no reconhecimento daquilo que já é conhecido. Mesmo
que o registro da transmissão pressuponha que o primeiro passo para o lo-
sofar aconteça através de um enriquecimento cultural, conhecer com clareza
e distinção a losoa para adquirir um referencial antes mesmo de experi-
mentá-la, o grupo almeja uma outra condição de ensinar e aprender losoa,
cunhado na experiência.
Educar losocamente partindo da experiência não coincide com co-
nhecer tudo aquilo que foi escrito, ou ter um acesso explicativo e compreen-
sivo mínimo aos clássicos referenciais guias do pensamento humano em sua
universalidade. Está em questão a criação de condições relacionais para que a
sala de aula seja uma ocina de exercícios e ensaios losócos. O importante
não é a robustez ou a densidade teórica daquilo que se ensina, mas sim o
exercício que se começa, a produção de sentidos que exercitamos em sala de
aula com nossos estudantes. Anal, a experiência losóca estaria restrita aos
grandes lósofos? Não poderíamos pensá-la em movimentos, em produções
de diferenças, cuja força depende do investimento e condições de emergên-
cia? Estaríamos nós, professores e estudantes de losoa, expropriados da
experiência de losofar? Acreditamos que não:
Muitos podem alegar que o modo como apresentamos o ensino de lo-
soa não seja fazer losoa. Podem, ainda, armar que o resultado a que
chegariam os alunos não seja losóco – uma vez que eles não são deten-
tores do saber sobre a losoa, ou mesmo, porque o rigor de suas propo-
sições não é suciente para que sejam consideradas proposições losócas.
Podem, ainda, considerar que essas criações conceituais feitas pelos alunos
sejam heterogenias, irregularidades, etc. Seguindo essa mesma proposi-
ção, não poderíamos dizer que, ao nos reunirmos com algumas pessoas
em um campo e “bater uma bola”, estaríamos jogando futebol. Assim,
jogar futebol estaria restrito aos grandes jogadores. [...] Pensamos que os
mesmos argumentos possam ser usados no que diz respeito aos estudantes
de losoa, ou mesmo, a nós, professores de losoa. Talvez não sejamos
exímios lósofos (o que está cada vez mais raro em nosso tempo), mas não
podemos negar que, se estamos criando conceitos para responder, para
produzir um sentido aos acontecimentos que nos problematizam, estamos
criando conceitos que expressem problemas que emergem do aconteci-
mento-experiência educativa, que se dá no encontro dos corpos – alunos,
história da losoa, mundo, professor, sala de aula. Assim, podemos dizer
118
que estamos fazendo losoa, uma vez que estamos experimentando a
losoa (Gelamo, 2006, p. 23-24 – grifos no original).
Reconhecemos que, para a losoa acadêmica, essa condição proposta
para o losofar como experiência pode soar absurda. Aliás, nós podemos ser
acusados de empobrecer o losofar. Anal, o empobrecimento do losofar
não estaria justamente no esvaziamento cultural do exercício losóco, isto é,
em possibilitar uma prática losóca que prescinda de uma propedêutica for-
mativa, caracterizada pelos conhecimentos perenes inscritos na tradição lo-
sóca? Ora, para nós, a propedêutica do losofar é a própria vida. Professores
e estudantes só podem ser concebidos como seres esvaziados e necessitados de
cultura na lógica da transmissão de conhecimentos, que retira deles todas as
vivências e as potências que os tornam vidas singulares. Estudantes e profes-
sores já são vitalmente potentes, mesmo que não possuam uma cultura losó-
ca historicamente acumulada. Isso não signica desprezar os conhecimentos
da tradição losóca, só signica armar que a cultura losóca não vem
como propedêutica, e sim junto com o caminhar problemático e investigati-
vo do pensamento. Assim, apontar o empobrecimento da experiência consis-
te em denunciar um ensino de losoa como epistemologia e a ausência de
um ensino e aprendizagem que se fazem como ética, que parta da imanência
de nossas relações e implique uma transformação daquilo que nós somos.
2.4. Uma virada ética nas práticas de pesquisar, ensinar
e aprender losoa
Iniciamos o presente capítulo, recuperando a emergência do ENFILO.
Tal como a pesquisa do ensino de losoa, o grupo nasce nas frestas institu-
cionais da educação, sendo acolhido pelos agentes da losoa da educação.
Esta vivia um momento singular em sua recente história enquanto campo de
pesquisa. Na procura de sua identidade, nas disputas de poder pela ordenação
do saber da losoa da educação, boa parte dos pesquisadores se afasta da
história da educação e das investigações pedagógicas e se vincula às formas
tradicionais de fazer e ensinar losoa. Tocar nessas questões, ainda que par-
cialmente, nos trouxe a possibilidade de visualizar as franjas da história do
campo do Ensino de Filosoa, por um lado, e do ENFILO, por outro. Ao
119
resgatar a leitura dos acontecimentos a partir de Pagni (2014) e Gallo (2007),
criamos condições para vericar a relação do campo da losoa da educação
e do Ensino de Filosoa, bem como para encontrar indícios da relação do
GEPEF com esses dois campos. Não poderíamos adentrar à política losóca
do ENFILO sem ao menos vasculhar a mudança de paradigma das pesquisas
da losoa da educação, de perceber uma tendência teórica do GEPEF ante
esse novo paradigma e de destacar como, em nosso contexto, ocorreu o en-
volvimento dos lósofos da educação no agenciamento acadêmico do ensino
de losoa.
Em seguida, voltamos nossa investigação para as convivências do
ENFILO. Nossa leitura dos acontecimentos teve como suporte textos do
grupo e daqueles que o inuenciaram. Foi a forma que encontramos para
transformar em palavras a convivência de anos, problematizando as heran-
ças e as relações que norteiam nossa prática de ensinar, aprender e pesquisar
no ensino de losoa. Partimos da crítica de Gelamo (2009) às produções
teóricas do ensino de losoa e mostramos como seu discurso, ao se referir
às imagens de pensamentos, pode ser encarado como uma atitude losóca
de pensamento que marca o grupo. Independentemente do projeto, inicia-
ção à docência, iniciação cientíca, mestrado ou doutorado, cremos que essa
atitude losóca se faz presente enquanto um convite à experimentação do
pensamento. Experimentar a pensar consiste em realizar um movimento que
atravessa a vida de quem a pratica. É um convite à incerteza do caminho ou à
certeza de que o caminho só será sedimentado após a caminhada. Caminhar,
exercitar, comover-se são atitudes que exemplicam o ato de experimentar o
pensamento à procura de algo que ainda não se sabe, mas que somos impe-
lidos a pensar.
Nesse sentido, experimentar a pensar o ensino de losoa signica se
aventurar por um caminho ainda sem mapa, sem referência necessária que
precisamos retornar para mostrar que, de fato, pensamos. Experimentar a
pensar o ensino de losoa nos força a sair da moral, daquilo que é pré-
-losóco, e que supostamente nos impõe qual questão vale a pena a ser
pensada. No caso em questão, a moral do professor e pesquisador de losoa
é, segundo Gelamo (2009), o paradigma da transmissão de conhecimentos,
sustentado pelos pressupostos da pedagogia moderna, os quais centram a
120
formação em uma relação estritamente epistemológica. As três imagens – da
importância formativa da disciplina de losoa, dos conteúdos/currículo e da
metodologia de ensinar – são postas como atualizações dos imperativos mo-
rais daqueles que têm como desao ensinar losoa na contemporaneidade.
Comparando a virada discursivo-losóca das produções do ensino de
losoa às políticas de pensamento do grupo, vemos que as críticas à insu-
ciência do saber pedagógico e educacional foram problematizadas pelo viés
de uma educação como instrução, como transmissão de conhecimentos, que
moraliza as experiências de pensar e ensinar losoa na atualidade. Quando
o ensino de losoa se reduz à transmissão de conhecimentos, perdemos a
igualdade de inteligência como princípio: o professor, necessariamente, detém
o conhecimento e tem como função transmitir o que sabe ao estudante ig-
norante. Ensinar losoa como transmissão de conhecimento à luz da lógica
da explicação é reforçar um sistema de desigualdades de inteligência entre o
professor e estudante, outorgando ao professor o poder moralizante sobre a
vida e a experiência de pensar do estudante. Recusar a igualdade de inteligência
signica expropriar o aprendiz de sua própria experiência de pensamento, de se
aventurar por caminhos ainda não sedimentados. Negar a lógica da explicação
permite a abertura de espaços para que estudantes e professores façam suas
próprias experiências, experimentem seus próprios problemas. Tal como escre-
ve Sílvio Gallo, no II Simpósio sobre o Ensino de Filosoa (SIMPHILO), a
experimentação do pensamento só se faz possível quando permitimos que cada
um tenha direito a seus próprios problemas. “É importante que cada um viva o
problema como seu, faça sua própria experimentação, e não assuma falsamente
o problema imposto por outrem” (Gallo, 2011, p. 92).
Ensinar e aprender losoa como experiência de pensamento altera
signicativamente a relação do professor de losoa, do estudante e do
espaço da sala de aula. Podemos retomar o texto de Langón (2003) e
evocar a invenção de um novo estilo de losofar, que se molda às conjun-
turas e condições históricas desse saber: entre as paredes das instituições
educativas – escolas e universidades – tem-se a possibilidade de emergir
uma forma coletiva de experimentar a losoa, em que o professor de
losoa não desempenha o papel de transmissor de conhecimentos, de
juiz do verdadeiro e do falso, mas de lósofo educador; e os estudantes,
121
por sua vez, deixam de lado o papel de receptor, para encarnar a gura de
aprendiz de lósofo.
Ser professor de losoa não se confunde mais com a transmissão de
conhecimentos, ser um mestre explicador. Não se ensina para que o aluno
aprenda, tampouco o professor não é aquele que mostra como deve ser feito.
Do mesmo modo, o estudante não precisa da palavra de ordem do professor
para iniciar no caminho da aprendizagem; para experimentar a pensar, ele
precisa escapar do controle do ensino e se arriscar a pensar sua própria vida,
seus próprios problemas. Quebra-se, então, a lógica de dependência do pro-
fessor e do aprendiz, inerente à transmissão de conhecimento. Ao permitir
que o estudante tenha direito aos próprios problemas, que tenha direito ao
losofar, resgata-se uma convivência de um losofar com, de um losofar
comunitário, de um losofar no espaço comum da sala de aula. Vislumbra-se,
assim, uma comunidade losofante que comove, se movimenta e se experi-
menta a partir da losoa.
Assim, à inspiração de Deleuze, Guattari, Foucault e Rancière, as prá-
ticas pedagógicas são denunciadas como uma experiência moralizante do
pensamento que nos afasta da vida e, portanto, de uma relação ética com a
losoa e seu ensino. Eis as condições de uma relação losóca menor com o
ensino de losoa: fugir das grandes questões da educação; diferenciar-se das
formas tradicionais de pensar losocamente; não buscar a universalidade
e a representação como forma de conhecimento; fazer-se como exercício de
liberação do pensamento e da vida, a m de poder experimentar e se tornar
diferente daquilo que se é, cultivando uma relação singular com o ensino de
losoa e a vida.
Assim, retomando a questão norteadora do presente capítulo: como as
heranças do campo e da 1ª geração de pesquisadores circulam no ENFILO e
se singularizam em uma política losóca? Para nós, uma política losóca
do ensino de losoa adquire um sentido de pensar losocamente os pro-
blemas inerentes às relações de ensino e aprendizagem da losoa na contem-
poraneidade, tal como é posto pelos precursores do campo. Não tratamos o
problema de um ponto de vista pedagógico e educacional. Territorializamos
a problemática na losoa, ainda que não seja a losoa tradicional, mas
uma losoa menor; uma losoa cujas características são atitudinais, e não
122
morais com o pensar. Por outro lado, uma política losóca do ensino de lo-
soa consiste em praticar em sala de aula o losofar, ou seja, exercitar um ensi-
no e uma aprendizagem losóca com os estudantes. Almejamos experimentar
coletivamente a losoa, educar losofando, losofar educando, mantendo
uma relação fundamentalmente ética e não epistemológica com o saber.
Desse modo, a losoa do ensino de losoa do ENFILO pode ser com-
preendida como sob o prisma de uma virada ética na forma de pensar e praticar
a losoa. Na parte problemática teórica, consiste em resistir às imagens de
pensamento inerentes a uma parcela das produções acadêmicas do ensino de
losoa, que colocam o problema em um registro pedagógico, de uma edu-
cação como transmissão de conhecimentos. Na parte prática, esforçamo-nos
para potencializar uma educação losóca que escape dos limites pedagógicos
da transmissão e proporcione um losofar como atitude losóca em face da
própria existência, afastando-nos, assim, de qualquer neutralidade que ignora a
implicação daquele que pensa no próprio presente problemático.
O caráter losóco dessa experimentação assume um registro especí-
co de um pensar vital, elaborado na imanência da vida, e menos no funciona-
mento teórico-abstrato, estritamente epistemológico. Antes de uma episteme
a ser adquirida – uma série de saberes, de habilidades e competências ineren-
tes à losoa –, vislumbramos uma educação losóca enquanto ética, que
implique, necessariamente, uma modicação daquilo que nós somos. Por
mais que a universidade e a escola nos tragam muito forte em seus discursos
e práticas uma imagem de losoa como um exercício de produção teórico-
-abstrato que almeja explicar problemas abstratos e organizar o mundo teori-
camente, a partir de um esforço genial de totalidade, o grupo procura resistir
a esse paradigma. Apostamos num exercício de losofar como experimenta-
ção do pensamento que, ao invés de ser associado à compreensão, elaboração
ou domínio de uma teoria losóca, se faz como exercício e cultivo de uma
atitude, um ethos, em que a realidade, a vida e o presente sejam a matéria pri-
ma para formulação de um problema a ser enfrentado losocamente.
Ora, para armar um exercício do losofar como experiência de pen-
samento, precisaríamos resistir às concepções institucionais modernas de
educação, ensino e aprendizagem, cujos alicerces são os pressupostos da pe-
dagogia moderna, e que se faz inerente dentro do funcionamento da própria
123
losoa universitária e escolar. Segundo Pagni (2012), a pedagogia, conforme
denunciada por Foucault, é uma arte técnica que postula tornar igual o nível
de conhecimento do aluno ao do educador. Ela é uma arte que implica mais o
desenvolvimento de habilidades, competências e saberes, o domínio de certas
técnicas do que propriamente a transformação ética daqueles que são agentes
da arte pedagógica – isto é, professores e estudantes. Nesse caso, a pedagogia
é uma arte que se relaciona com a verdade a partir da transmissão de um dis-
curso verdadeiro a alguém que necessita ser dotado de determinadas capaci-
dades que ainda não possui. Aquele que a transmite não precisa, e geralmente
não se vê, nesse mesmo discurso; tampouco na verdade que exprime em suas
atividades de ensino. Sua função é transformar, epistemologicamente, o ou-
tro, mantendo intacto aquilo que se é (Pagni, 2012, p. 149).
Por essa razão, o conceito de uma educação pedagógica tem um funcio-
namento especíco e foi problematizado pelas críticas aos ideais de formação
presentes na educação formal desde a modernidade. Embora a educação se
proponha a cuidar do ser humano, ela o faz principalmente não tanto para
ajudá-lo a enfrentar os desaos da vida, mas fundamentalmente para prepa-
rá-lo para ingressar no mundo, fornecendo-lhe os saberes, as habilidades e
competências supostamente necessários à sobrevivência e à participação so-
cial, que são transmitidos como conhecimentos. Por mais que a vida faça
parte dos discursos educacionais, as intensidades da vida são revividas muito
mais desde uma perspectiva moralizante de uma educação moral, ao invés de
se conectar e colocar, no centro, a vida.
Esse acento pedagógico e epistemológico do ensino de losoa se torna
nítido na própria forma como as discussões são feitas na área. As críticas de
Gelamo (2009) às imagens de pensamento expressam justamente o âmbito
da face pedagógica da educação losóca, como se a losoa fosse um conhe-
cimento a ser transmitido, e não propriamente uma condição de exercitar e
transformar aquilo que nós somos. Isso foi identicado por Pagni:
[...] parece ser possível dizer que a maior parte das discussões atuais so-
bre o ensino de Filosoa se restringe ao âmbito da face pedagógica da
educação losóca, por assim dizer, ignorando uma eventual dimensão
psicagógica da formação do lósofo ao qual aspira. Para ser mais preciso,
a maior parte das discussões que decorre dessa temática nos últimos anos,
124
como salientou Gelamo (2009), centra-se em uma série de questões so-
bre a importância dessa disciplina, os aspectos didáticos e metodológicos
dessa atividade ou, em uma palavra, a sua dimensão pedagógica. (Pagni,
2013, p. 76).
Pagni (2016), em outro texto, retoma essa análise e avança em suas
implicações, mantendo o mesmo enfoque em uma educação ética, e menos
numa relação epistemológica e pedagógica. Para ele, as discussões do ensino
de losoa no Brasil concentraram-se nas discussões pedagógicas – propor
quais seriam os conteúdos a serem ensinados e para debater quais os métodos
de ensino mais adequados aos estudantes na educação básica, além de discutir
a importância da disciplina –, mas também para justicar o papel da disci-
plina de losoa na educação dos jovens. Boa parte das conclusões dos estu-
dos no ensino de losoa destacou a importância da disciplina como lugar
do pensar crítico por excelência, quando não de resistência à tecnização do
ensino. No entanto, essas postulações são problemáticas no contexto contem-
porâneo porque “[...] reduzem a educação losóca a uma disciplina e o seu
exercício, ou melhor dizendo, seu aprendizado a uma questão epistemológica
para não dizer pedagógica, tornando-as pouco abrangentes do ponto de vista
ético” (Pagni, 2016, p. 129-130).
Segundo Pagni (2016), a m de alcançar essa dimensão ética no ensino
de losoa, não só se faz crucial perceber os limites da atuação disciplinar
da losoa na educação básica – os próprios limites de tempo, de espaço e
de condições institucionais – para que as práticas educativas ocorram nessa
direção ético-formativa, bem como se alinhar mais à losoa como modo de
vida do que à tradição hegemônica e acadêmica. Pagni refere, em diferentes
momentos, aos traços tradicionais de funcionamento da losoa brasileira
que privilegiam as discussões e estudos de temas enfocados na interpretação
rigorosa de textos. Nesses casos, há uma desvinculação da losoa de uma
tradição que a compreende como modo de vida, com o objetivo de apro-
ximar o estudo losóco das ciências, e na conquista de um abrigo e sua
legitimidade como disciplina acadêmica e universitária. Ora, de uma maneira
ou de outra, ao enfocar em uma losoa mais aproximada das ciências, com
um viés epistemológico, privilegiou-se uma prática de análise dos “[...] dis-
cursos sobre os discursos e o seu ensino uma transmissão que perspectivaria
125
o aprendizado cognitivo do conceito, de certa episteme, ou mesmo de uma
doutrina teórica, sem qualquer vínculo à existência ou apelo à sua utilização
para a formação ética” (Pagni, 2016, p. 134).
Em contraposição a esse ensino de losoa como prática de análise de
discursos – que privilegia um aprendizado enquanto domínio epistemológi-
co da tradição losóca, ou uma relação pedagógica que se mantém através
do cultivo disciplinar de conhecimentos especícos, de desenvolvimento de
habilidades intelectuais ou competências esperadas para o bem pensar – está
um ensino de losoa como ética, mais centrado na transformação dos agen-
tes que integram as relações de ensinar e aprender, portanto, mais alinhado
ao cultivo de atitudes – disposições singulares dos agentes diante da vida. Só
assim, “[...] na medida em que uma educação losóca procura formar atitu-
des – antes do que habilidades, competências ou, mesmo, conhecimentos –,
poderia propiciar uma formação ética” (Pagni, 2016, p. 132). E, para tanto,
parece fundamental ultrapassar a dimensão ou a face pedagógica do ensino de
losoa, a m de alcançar uma preocupação ética. Alcançar essa condição éti-
ca no ensino de losoa seria fazer valer uma losoa do ensino de losoa,
segundo Pagni (2016). Apesar de seus múltiplos sentidos, para aqueles que
resistem ao ensino de losoa em seu sentido pedagógico e epistemológico,
uma política losóca do ensino de losoa é conceber: “a experimentação
losóca como constitutiva da formação ética do sujeito e que a compreende
como o centro de toda a educação losóca” (Pagni, 2016, p. 135).
Desse modo, a política losóca de ensinar e aprender losoa do
ENFILO se elabora em tensão entre um ensino de losoa centrado na rela-
ção epistêmica e pedagógica com o saber losóco e uma proposta de virada
ética na educação losóca. Pensar e educar losocamente envolvem a ex-
perimentação, a transformação de nossa vida em problemas a serem vivencia-
dos. Se essa política de ensinar e aprender losoa pode ser qualicada como
losóca, ela se aproximaria muito mais de uma losoa menor, que se faz
entre os jogos de verdades da losoa e da educação.
Apesar de nos dedicarmos à investigação da política losóca de ensi-
nar e aprender losoa do ENFILO, de maneira a resgatar e problematizar
quais são as nossas raízes no campo do Ensino de Filosoa, ainda falta um
elemento importante para nossa empreitada: a relação dessa política losóca
126
e a formação de professores. Ora, a política losóca do ENFILO nasce,
fundamentalmente, como um projeto de formação de professores de loso-
a. Mas não se trata de uma formação no sentido de outorgar uma forma,
de preparar os estudantes para se adequarem a uma formatação ideal de um
professor de losoa. Esse projeto de formação precisa ser entendido como
resistência: uma forma de pensar e praticar a losoa localizada e situada,
que resiste às práticas, valores e formas instituídas no ensino de losoa con-
temporâneo, no caso, como resistência às relações hegemônicas de ensinar e
aprender losoa instituídas no curso de licenciatura de losoa da UNESP.
Uma losoa do ensino de losoa não é criada como teoria; ela não se con-
funde com um esforço teórico de fundamentação das práticas de ensinar e
aprender losoa. Enquanto uma prática ética, ela aparece, sobretudo, como
invenção de uma forma de reexistir na contemporaneidade, a m de que
possam existir novas formas de ensinar e aprender losoa.
Por vezes, a impressão que algumas produções do campo do Ensino de
Filosoa passam ao leitor é que pensar e praticar losocamente o ensino de
losoa signica, antes de mais nada, tomar uma decisão, assumir uma pers-
pectiva ante as múltiplas losoas, e pensar as implicações educativas dessa
decisão, de maneira a delimitar as possibilidades e os posicionamentos que
se assumem nas práticas de ensinar e aprender losoa com seus estudantes.
Em outras palavras, signica evidenciarmos a posição losóca com base na
qual pensamos e ensinamos.
A indissociabilidade entre a concepção que se tem de losoa e as pos-
sibilidades de seu ensino, aprendizagem e a formação losóca é condição
fundante deste posicionamento. Acentua-se a indissociabilidade entre lo-
soa e as práticas de ensinar e aprender, de modo que a primeira ecoa nos
sentidos de ensinar e aprender. A losoa e as práticas de ensinar e aprender
não andam separadas, já que cada uma das eventuais respostas poderia dar lu-
gar a concepções diferentes da losoa e do losofar; os diferentes lugares do
losofar oferecem relações distintas entre ensinado e aprendido. Esse parece
ser um ponto pacíco entre os professores e estudantes que escrevem sobre o
assunto. Não sem porquês, encontrará na constituição do debate do ensino
de losoa, uma série de propostas baseada em diversas losoas ou lósofos.
Por exemplo, ensino de losoa em Hannah Arendt, em Sócrates, em Kant,
127
em Hegel, em Descartes, em Marx, em Bergson, em Foucault, Deleuze, e
assim por diante.
Mas será que cada denição de losoa implica diretamente em ou-
tras práticas com seu ensino, aprendizagem e formação? Ensinamos losoa
e aprendê-mo-la conforme lhe assinalamos teoricamente? Será que elaborar
uma losoa do ensino de losoa se trata apenas de uma denição teórica
com implicações práticas? Não no caso de uma losoa menor. Uma prática
losóca menor é resistência, não se faz como sistema, como macropolítica,
e sim em contraposição, como problematização do instituído. Não é o caso
de tomar uma decisão teórica, denir os princípios a partir dos quais se pode-
riam deduzir logicamente as práticas de ensinar e aprender losoa. Pensar -
losocamente o ensino de losoa consiste, justamente, em perceber que essa
decisão, que o ponto de partida, ainda que seja construído em anidade com
alguma tradição losóca, emerge em resistência a um contexto, ou melhor,
ante um conjunto de heranças formativas que modelam tanto as práticas de
ensinar e aprender losoa na instituição educativa, bem como o professor
que nos tornamos. O território a partir do qual emerge uma losoa do en-
sino de losoa, a imanência de nossa vida, não pode ser ignorada, quando o
assunto é implementar uma política losóca de ensinar e aprender losoa.
Mas a quais heranças de formação re-existe nossa política losóca de
ensinar e aprender losoa? Posto de outro modo, quais são as heranças he-
gemônicas de formação do curso de licenciatura de Filosoa na UNESP? No
próximo capítulo, problematizaremos algumas relações institucionais de en-
sinar e aprender losoa da licenciatura da UNESP, indicando como elas se
tornam uma herança de formação a ser combatida, problematizada e, funda-
mentalmente, resistida, se quisermos manter uma educação losóca como
experiência de pensamento.
129
Capítulo 3.
Da cisão do losofar das práticas educativo-
losócas às projeções de uma losoa de
professores: heranças de formação losóca na
era prossional da losoa
Neste capítulo, nosso objetivo é problematizar alguns aspectos da for-
mação losóca em sua era prossional brasileira, de modo a vericar, por
um lado, como algumas narrativas instauradas desde então moralizam uma
rotina de ensinar e aprender losoa que separou o losofar e os processos
educativo-losócos, tornando-se uma herança em nossa formação de profes-
sores de losoa; e, por outro lado, retomaremos algumas estratégias de resis-
tências que foram criadas em nossa instituição, que vislumbram a construção
de uma política de formação de lósofos e professores-lósofos. Na primeira
seção do capítulo, resgatamos a dimensão histórico-losóca de nossa rotina
de formação no curso de losoa da UNESP, a m de problematizá-la em
seu aspecto disciplinador de nossas práticas de ensinar e aprender losoa,
questionando, ao nal, qual é a emergência dessa rotina no contexto brasilei-
ro. Na segunda seção, investigamos como essa rotina formativa é interpretada
por algumas pesquisas do ENFILO e por professores do curso da UNESP,
com o objetivo de dialogar com possíveis respostas e perspectivas. Veremos
que, entre as diferentes interpretações, há um ponto em comum: a emergên-
cia do curso de losoa da USP e seu vínculo umbilical com a UNESP. As
ligações entre ambas as instituições ocorrem tanto em um nível institucional,
bem como na circulação de uma narrativa de formação que reforça o lugar
imprescindível da história da losoa, da atividade de explicação dos textos
clássicos e do método estruturalista de leitura de texto na formação losóca
130
de professores e bacharéis. Na terceira seção, reconstituímos essa narrativa de
formação associada à emergência do curso de losoa na USP e suas práticas
modernizadoras da experiência losóca prossional no Brasil. Destacamos
como, na verdade, essa narrativa, muito mais do que estabelecer uma rotina
metodológica inspirada nas lições de Guéroult e Goldschmidt sobre o méto-
do estruturalista de leitura de textos losócos, legitima uma propedêuti-
ca prossional e formativa em torno da história da losoa e do comentário
dos textos clássicos. Veremos que essa rotina é inerente ao funcionamento
moderno da losoa na universidade, cujas práticas podem ser exemplica-
das através da gura do scholar. Já na última seção, fechamos a investigação
com as críticas às práticas e aos pressupostos da losoa prossional como
atividade do scholar, denunciando a restrição da losoa à sua dimensão es-
tritamente técnica e prossional e o consequentemente afastamento da vida e
dos problemas que são viscerais àqueles que buscam se dedicar à losoa na
atualidade. Por m, mostramos que, embora essa dimensão técnica e fria de
losoa seja uma herança de formação hegemônica no curso de losoa da
UNESP, especialmente nas disciplinas histórico-losócas, há movimentos
de resistências que têm como objetivo estabelecer uma política de formação
de lósofos e professores-lósofos.
3.1. O curso de licenciatura de losoa da UNESP e as heranças
hegemônicas do bacharelado na formação do professor de losoa
Naturalizada como caminho único e moderno de formação losóca,
nossa rotina universitária nos forja em um conjunto de práticas de ensinar e
aprender losoa, sem que sequer exista um debate ou disciplinas especícas
que sejam responsáveis por introduzir, pensar e problematizar os princípios
do projeto político pedagógico-losóco do curso. Nos dois primeiros anos
de curso, frequentamos uma formação “especíca em losoa” – um tronco
comum de disciplinas oferecido tanto ao futuro bacharel quanto ao futuro
licenciado, ministrado exclusivamente por docentes do departamento de lo-
soa. Como optamos pela licenciatura, somada à formação losóca, recebe-
mos uma formação “pedagógica” – disciplinas da grande área de formação de
professores, de responsabilidade dos departamentos de educação do campus,
conforme se observa no Projeto Pedagógico do Curso de Filosoa (PPCF):
131
“Caso o discente opte por licenciatura em losoa, além das disciplinas obri-
gatórias [isto é, as disciplinas losócas em comum com o bacharelado], ele
deverá cumprir uma carga horária excedente, composta por disciplinas de
formação pedagógica” (Unesp, 2007, p. 4). Em nossa época, essas disciplinas
foram: “Estágio supervisionado em Filosoa I e II”, “Psicologia da Educação”,
“Didática” e “Estrutura e funcionamento do ensino fundamental e médio”.
Essa estrutura de licenciatura ainda carrega os resquícios do antigo mo-
delo “3+1”, que dicotomiza a formação do professor de losoa em duas
etapas – conhecimento especíco e conhecimento pedagógico –, criando
uma dicotomia teórica entre formação losóca e formação pedagógica. Um
dos grandes problemas dessa cisão consiste em pressupor que, enquanto as
habilidades e as práticas inerentes ao conhecimento losóco são cultivadas
nas disciplinas especícas, aquelas que dizem respeito à docência e ao ensi-
no de losoa são cultivadas nas disciplinas pedagógicas. Nas entrelinhas,
pressupõe-se que a formação do professor acontece somente nas disciplinas
pedagógicas; como se o processo educacional fosse o encontro de duas etapas
de formação: a de saberes losócos e dos saberes técnicos e pedagógicos,
que tornam o estudante de losoa docente apto a transformar aquilo que
estudou em conteúdos escolares, em saberes ensináveis e escolarmente trans-
missíveis na educação básica.
Levando em consideração a virada discursivo-losóca do ensino de
losoa, já não há mais espaço para essa dicotomia formativa. Isso porque as
questões inerentes à educação losóca – ensinar e aprender losoa, as ati-
tudes de um professor de losoa, as relações losóco-educativas do profes-
sor e estudantes, etc – exigem uma atenção losóca, que se some às bagagens
das disciplinas tradicionais da licenciatura. Não basta saber losoa e saber
ensinar e aprender em geral. Faz-se imprescindível uma união entre a área
dos conhecimentos especícos e a área educacional, isto é, entre o campo do
Ensino de Filosoa e o campo da educação. Sobre isso, escreve Silvio Gallo
no VIII Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosoa:
[...] não se pode tratar o professor de losoa como um professor “em ge-
ral”; não basta um conhecimento “técnico” de como dar aulas ou mesmo
conhecimentos teóricos do campo educacional para, agregados a conhe-
cimentos especícos em losoa, formar um bom professor de losoa.
132
Penso que a losoa traz, intrinsecamente, uma “ensinabilidade”; a rela-
ção de ensino, a relação mestre-discípulo é uma constante na história da
losoa. Assim, saber losoa precisa ser saber ensinar losoa e saber
aprender losoa. É preciso, pois, envolver a área especíca, dos domí-
nios estritamente losócos, com a problemática do ensino; em suma, é
preciso fazer uma “losoa do ensino de losoa”. Contudo, certamente
o professor de losoa não pode prescindir dos conhecimentos especícos
da área da educação. ele precisa dominá-los e articulá-los com os conhe-
cimentos losócos, de forma transversal. Em minha opinião, o lócus
privilegiado para a formação do professor de losoa é o Departamento
de Filosoa, desde que os saberes losócos sejam atravessados – e por
sua vez atravessem – os saberes educacionais e pedagógicos. É preciso que
haja uma interlocução real da losoa com a educação para a formação do
professor (Gallo, 2008, p. 173-174).
Apesar da existência do campo do Ensino de Filosoa e de algumas
discussões já avançadas entre os pares, esse projeto losóco de formação do
professor de losoa não circula com tanta facilidade nas licenciaturas em
losoa. Mesmo com todos os esforços recentes para modicação da licencia-
tura da UNESP, impulsionada pelos saberes e discussões do campo do Ensino
de Filosoa, os docentes do departamento de losoa não se preocupam com
a licenciatura – nem em nossa época e tampouco agora –, mantendo ainda a
dicotomia formativa acima referida.
No entanto, a existência dessa dicotomia não signica que a forma-
ção do professor de losoa se iniciaria somente nas disciplinas especí-
cas de licenciatura. Na realidade, a cultura de formação do bacharel gera
impactos diretos na nossa atuação docente. Nossa trajetória como profes-
sor de losoa começa desde o primeiro momento da graduação, já nas
disciplinas especícas de losoa. Poderíamos ofuscar o fato de que nós,
como licenciandos, percorremos um caminho de aprendiz de losoa e,
concomitantemente, de aprendiz de professor de losoa? Como sepa-
rar “forma” e “conteúdo”, pressupondo que o signicativo da formação
losóca reside no “conteúdo” e não nas relações que os professores esta-
belecem em suas aulas? Muito mais do que conhecimentos especícos, o
estudante, futuro professor, aprende com os docentes do departamento
de losoa, de modo consciente ou não, maneiras de ensinar e aprender
133
a losoa. É isso que Alejandro Cerletti aponta ao criticar a estrutura
dicotômica dos cursos de licenciatura:
Um professor de losoa não se “forma” tão somente ao adquirir alguns
conteúdos losócos e outros pedagógicos, para então em seguida justa-
pô-los. Em realidade, vai-se aprendendo a ser professor desde o momento
em que se começa a ser aluno. Em grande medida, se é como docente o
aluno que se foi. Ao longo dos anos de estudante, vão sendo internaliza-
dos esquemas teóricos, pautas de ação, valores educativos, etc., que atuam
como elementos reguladores e condicionantes da prática futura. [...] Em
grande medida, acaba-se por ensinar como “se foi ensinado”. (Cerletti,
2009, p. 55-56).
Difícil ignorar os efeitos formativos das disciplinas ministradas pelo
departamento de losoa na formação das práticas docentes do licenciado.
Essa ideia dicotômica da formação do professor de losoa ofusca o papel
disciplinador que os docentes exercem ao ministrarem suas disciplinas es-
pecícas de losoa. Se parece insustentável estabelecer essa dimensão di-
cotômica e se, geralmente, os professores de losoa são os estudantes que
foram – tal como arma Cerletti (2009) – isso ocorre porque as disciplinas
do eixo comum, bacharel e licenciatura, nos ensinam muito mais do que
conteúdos ou habilidades isoladas, que devem posteriormente serem ade-
quadas à pesquisa ou ao ensino. A partir de uma série de exercícios ao longo
de toda graduação – provas, a escrita de trabalhos acadêmicos, o rotineiro
ritual das aulas como exercício de leitura e comentário de textos clássicos,
as palavras de ordem que delimitam as condutas verdadeiras de um estu-
dante de losoa, a seleção de recortes temáticos, as preferências losócas,
a orientação de trabalhos de conclusão de curso, etc –, os corpos estudantis
dos futuros professores são marcados, reetindo nas relações losócas fu-
turas em sala de aula. Por essa razão, de maneira nenhuma o conhecimento
disciplinar losóco pode ser visto apenas do ponto de vista de um conhe-
cimento especíco, separando-o de suas implicações nas práticas de ensinar
e aprender. Por trás da carga curricular, nós adquirimos um saber como,
uma forma de ensinar e aprender losoa, e desempenhamos uma atuação
com o saber losóco em sala de aula. Ou seja, ao passo que participa-
mos de um conjunto de disciplinas, cujos conteúdos foram historicamente
134
acumulados, também cultivamos uma disciplina de pensamento, uma série
de atitudes e práticas losócas.
Nesse sentido, na condição de professores de losoa, somos herdeiros
de uma formação losóca que recebemos no decorrer da graduação, herdei-
ros de uma formação bacharelesca, que nos inuencia na relação que man-
temos com a losoa e no modo como ensinamos e aprendemos. Segundo
Agratti, em sua participação no VIII Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino
de Filosoa, mais do que um saber losóco, herdamos uma prática, uma
relação que, à primeira vista, permanece oculta nas ações programáticas das
disciplinas, mas que não deixa de nos modelar:
Somos herdeiros de uma formação que recebemos, e este é um ponto que
não podemos esquivar. A trajetória formativa foi construindo nossa bi-
blioteca, mas não só isso. Introjetou um “esquema prático”, “um modo de
ser”, “uma atitude”, “um modo de ler” em cada um, ainda que não sempre
um estilo de pensar. [...] [é sempre arriscado que] o professor universitário
não advirta que não está transmitindo somente um conjunto de conhe-
cimento, mas que está ensinando uma prática com sua prática (Agratti,
2008, p. 186-188)
Ora, se as disciplinas losócas transmitem ao futuro professores ati-
tudes, hábitos de leituras e práticas de pensamento, todo ensino se traduz em
uma forma de intervenção. Não se ensina apenas um conteúdo, algo essencial
ao saber losóco, que teria utilidade tanto para o futuro professor quanto
para o pesquisador. As aulas de losoa cultivam um vínculo com a losoa;
joga-se luz sobre o que se acredita ensinar, mas se oculta toda uma herança de
formação acadêmica, cujos pressupostos e práticas dão a expressão da relação
losóca a ser estabelecida em sala de aula. E, diante disso, questionamos:
quais são as heranças que se ocultam em nossa rotina de formação? Ao que
nossos professores nos disciplinam quando julgam apenas ensinar os conhe-
cimentos especícos à nossa formação de professores? Anal, que práticas nos
transmitem com suas práticas?
Essas questões nos direcionam para as relações formativas instituídas
hegemonicamente em nossa licenciatura. A grande maioria das disciplinas do
curso de licenciatura – 33 das 39 cursadas em nossa época de graduação – fo-
ram disciplinas oferecidas ao bacharelado, ou seja, que são da grade losóca
135
do curso e ministradas pelos professores do departamento de losoa. Dentre
essas disciplinas, parte hegemônica se concentrava na história da losoa.
Como consta no PPCF, a história da losoa constitui-se como espinha dor-
sal do currículo, relação manifesta inclusive nas disciplinas de organização
programática temática, ao exemplo da ética, losoa política ou estética.
No entanto, a centralidade da história da losoa, por si só, não diz
muito sobre nossa educação losóca; de fato, a questão está no sentido atri-
buído à história da losoa e no modo de estudá-la. A presença da história da
losoa em nossa formação losóca, apesar de ser comum ao bacharelado e
à licenciatura, traz um perl acadêmico voltado às práticas e objetivos estrita-
mente do bacharelado. Para que não quemos apenas em nossas percepções
de nossa formação, veriquemos algumas indicações presentes no próprio
PPCF, que ilustram o peso e o benefício dessa herança bacharelesca ao futuro
professor de losoa. Na primeira, ao se entender a importância do livro
didático no ensino de losoa na educação básica, arma-se que não existe
espaço na formação losóca comum para trabalhar com essa condição espe-
cíca ao ensino e a aprendizagem da tradição losóca. O que nos inquieta
nessa armação não é propriamente sua tese – que ensinar losoa no ensino
médio passa pela mediação do livro didático, o que discordamos por sinal
–, mas a justicativa de que uma formação especializada, à luz do perl de
uma rotina de estudos consolidada nos diversos cursos de bacharelado em
losoa – disciplinas monográcas, que permitem acesso às fontes primárias
dos clássicos e seus comentadores –, torna-se suciente para a preparação da
formação losóca do futuro professor. Vejamos o que diz o documento:
A formação de professores de Filosoa para o ensino de Filosoa de segundo
grau é outra das importantes metas do currículo proposto. [...] O ensino de
Filosoa no segundo grau passa signicativamente pela mediação do livro
didático. Tal leitura tradicionalmente não encontra espaço nos Cursos de
Graduação em Filosoa. De um lado, o recurso exclusivo às fontes primárias
e às suas melhores traduções, o acesso aos artigos de caráter cientíco e aca-
dêmico e também o estudo de textos dos grandes comentadores, mantêm e
garantem o elevado nível de formação do futuro prossional. Colabora para
a manutenção desse patamar o caráter predominantemente monográco
das programações oferecidas, que escolhem número reduzido de problemas
e de autores e os tratam em profundidade. (UNESP, 2007, p. 4).
136
Como a inclinação da formação losóca comum se resume aos obje-
tivos inerentes do bacharel, sem levar em consideração as especicidades do
ensino de losoa na educação básica? Não negamos que os estudos acadê-
micos da tradição losóca podem ser partilhados entre bacharéis e licencia-
dos. Porém, pressupor que essa rotina prossional do bacharelado seja mais
do que suciente para preparar o futuro professor, no que diz respeito à sua
formação losóca para atuar na educação básica, é desconsiderar não só a
distinção do perl prossional – bacharelado e licenciatura –, como também
assumir que a relação estabelecida com a tradição losóca na educação bási-
ca pode ser um decalque dos hábitos universitários.
Em outra passagem do PPCF, essa herança do perl do bacharelado no
curso de licenciatura também se destaca, e o referido decalque se torna mais
evidente. No item “Perl Prossional”, aponta-se que a técnica de explicação
de textos, desenvolvida através dos exercícios de comentários dos clássicos,
constitui-se ferramenta imprescindível ao licenciado em sua tarefa de media-
ção e transmissão da cultura losóca acumulada:
O Bacharel em Filosoa é prossional capacitado ao trabalho de docên-
cia e pesquisa no ensino superior, plenamente habilitado para o trabalho
intelectual, desenvolvendo ensaios cuja característica é a originalidade de
reexão, bem como comentários de alta especicidade técnica e erudição
histórico-lológica. Igualmente familiarizado com a técnica de “explica-
ção de texto”, tornando-o privilegiado instrumento do ensino de Filosoa
no 2ºgrau, o licenciado deverá, também, promover o contato produtivo
de seus alunos com os mais signicativos movimentos da cultura ociden-
tal, no domínio das ciências e das artes (UNESP, 2007, p. 1).
Se na formação losóca comum não existe condições para trabalhar em
consonância com as especicidades da losoa da educação básica, argumenta-se
que, pelo menos, o conhecimento da história da losoa e algumas ferramentas
próprias ao ofício do bacharel suprem as necessidades da formação losóca do
professor de losoa. Esse é o caso da explicação de texto: a mesma técnica, pro-
veitosa ao ensino de losoa universitário, se torna, por decalque, instrumento
importante para o professor de losoa na educação básica em seu ofício.
Mas qual é o projeto de formação que sustenta essa relação de ensino
e aprendizagem? Como denir essa “técnica de explicação de textos”? Qual é
137
sua proveniência, suas razões, suas especicidades? Em que medida essa téc-
nica e o ensino de losoa como comentário de textos clássicos preparam o
professor de losoa para ensinar losoa na educação básica ou mesmo na
universidade? Embora nossa formação universitária fosse naturalizada como
caminho único e moderno de ensinar e aprender losoa, não existe um de-
bate institucional sobre isso, tampouco disciplinas especícas que abordem
os princípios e os pressupostos do projeto pedagógico-losóco do curso.
Infelizmente, o compromisso institucional da grande maioria do corpo do-
cente do departamento de losoa com o instituído academicamente, soma-
do ao desencorajamento de qualquer revisão ou conhecimento da tradição,
costuma ofuscar as fontes das experiências históricas que são fundamentais
para estabelecer a tradicionalidade de nossos hábitos. Possíveis ilações sobre a
ordenação vigente não costumam ser bem acolhidas, sob o pretexto de que o
funcionamento institucional em questão seja partilhado pelos melhores cur-
sos de losoa do país. No entanto, será que aquilo que se coloca como única
possibilidade de formação losóca não pode ser produto de um conjunto
de condições históricas e disputas políticas pela ordenação do saber losóco,
cujo acesso nos permite questionar a naturalidade e indiscutibilidade do fato?
Ou seja, aquilo que se arma como necessário não tem a possibilidade de ser
resultado de uma emergência histórica que tornou tradicional e inquestioná-
vel algo que até então não era?
Essa é a nossa aposta. Acreditamos que aquilo que se defende como ca-
minho natural e único de formação losóca no curso de Filosoa da UNESP
representa a sedimentação histórica de práticas de ensinar e aprender loso-
a, heranças de formação, cujos caminhos de construção foram esquecidos e
separados das práticas atualmente consolidadas. Na próxima seção, contex-
tualizaremos essa problemática dentro de nossas pesquisas e do ENFILO,
tensionando-as de acordo com os discursos e percepções que circulam no
curso de Filosoa da UNESP.
3.2. Do método estruturalista ao comentarismo: hipóteses explicativas
de nossas heranças de formação
Tentar explicar e problematizar nossas heranças de formação tem sido
uma preocupação do ENFILO no decorrer de suas diferentes pesquisas.
138
Sanabria de Aleluia (2014), em sua pesquisa de mestrado, abordou alguns
acontecimentos históricos e políticos da criação da USP, detendo-se na im-
portância da gura de Jean Maugüé para constituição das diretrizes iniciais
do ensino de losoa naquela instituição. Alguns anos depois, Éliton Silva
(2016), também em sua pesquisa de mestrado, estudou certos aspectos do
método estrutural de Martial Guéroult e Victor Goldschmidt à luz da pro-
blemática kantiana de aprender a losofar e os efeitos dessas práticas na for-
mação do professor de losoa. Amanda Garcia43 (2016), igualmente no
mestrado, detém parte de sua investigação em defesa de uma losoa não
verbal para questionar o estado, as práticas e os pressupostos da losoa bra-
sileira. Essa prática se repete em sua pesquisa de doutorado, momento em
que Garcia (2021) propõe uma forma de fazer losoa para adiar o m do
mundo, contrastando com as práticas hegemônicas da losoa no Brasil. No
mesmo ano, Sanabria de Aleluia (2021) expande sua pesquisa sobre o ensino
de losoa na USP, com o objetivo de entender as descontinuidades e conti-
nuidades do ensino de losoa naquela instituição, debruçando-se não só no
método estruturalista de Guéroult e Goldschmidt, bem como em sua recep-
ção através de alguns professores tradicionais do curso de Filosoa da USP.
Dentro desse panorama investigativo, inserimos também nossa pesquisa de
mestrado (Rodrigues, 2020), cujo objetivo foi recuperar uma possível resso-
nância da herança estruturalista – proveniente de uma convivência acadêmica
que se consolida na década de 1960 na USP, produto de uma recepção dos
ensinamentos e vivências universitárias com Guéroult e Goldschmidt – nas
práticas de ensinar e aprender losoa na licenciatura em losoa da UNESP
e na educação básica.
O ponto comum para o qual convergem todas essas pesquisas é uma
forte relação entre o curso de losoa da USP e da UNESP. Mas essa afe-
rição não surgiu do nada. Ela faz parte, em primeiro lugar, de um registro
comum dos estudos sobre a formação da losoa no Brasil e dos debates
sobre as práticas da losoa da USP, que condicionam a prossionalização
da losoa universitária à consolidação dos arcabouços técnico-acadêmicos
43 Apesar da pesquisa de mestrado de Garcia não ser de orientação de Gelamo, ela participou da
fundação do ENFILO, foi integrante dos dois projetos de iniciação à docência – PIBID e “Ensino
de losoa em espaços não formais”, não deixando de ser uma interlocutora e agente do grupo. Já
no doutorado, ela fez sua pesquisa sob orientação do Gelamo.
139
do jovem departamento de Filosoa da USP, na década de 1960 (Arantes,
1994; Marques, 2007, Domingues, 2017). De acordo com Arantes, essa épo-
ca marcou a consolidação de “[...] um movimento coletivo que se cristalizou
no nal dos anos 60, quando as primeiras teses ‘europeias’ foram defendidas
e o estilo franco-uspiano de lidar com a losoa se constituiu (Nobre; Rego,
2000, p. 351). Apesar das variedades individuais dos assuntos, prevalecia uma
rotina de estudos “[...] coletiva no que se refere aos procedimentos básicos
acumulados” (Arantes, 1996, p. 276), com técnicas e métodos intelectuais
herdados de uma escola de historiograa francesa – representada pela convi-
vência com Guéroult e Goldschmidt e suas obras.
Por outro lado, esse ponto em comum entre as nossas pesquisas tem um
valor contextual para nós que somos formados na UNESP. Primeiramente,
pela razão de nossos professores serem formados na USP ou estudarem com
professores provenientes dessa universidade. Há também o entrelaçamento
histórico entre as duas instituições. A centralidade da história da losoa na
licenciatura e no bacharelado na UNESP e o destaque da USP nesse ramo
formativo, constituindo-se referência para outros cursos, tornam-se outro
elemento importante.
Guéroult e Goldschmidt ou o método estruturalista de leitura dos tex-
tos losócos caram conhecidos nos estudos sobre a formação da losoa
universitária no Brasil, principalmente através das memórias e das narrativas
de formação de Arantes (1994) e dos professores que compunham o depar-
tamento de losoa da USP, na década de 1960, como são o caso de Bento
Prado Jr, José Arthur Gianotti e Oswaldo Porchat Pereira. A centralidade
geopolítica de São Paulo no destino do país e a historicidade do curso de
Filosoa da USP fortalecem uma narrativa de origem da losoa univer-
sitária no Brasil e justica, consequentemente, uma certa tradicionalidade
de formação em história da losoa, que tem como patronos as guras da-
queles dois historiadores franceses. Essa narrativa se presentica no curso da
UNESP e cria uma associação daquilo que nós somos como efeitos daquilo
que se consolidou na USP. Em razão do curso se concentrar no interior de
São Paulo e de grande parte de nossos professores ter feito sua graduação e/
ou pós-graduação na USP ou na UNICAMP, sob a orientação de tradicionais
professores da história da losoa, a USP é uma referência paradigmática para
140
a nossa atividade losóca. Assim, leitura estrutural dos clássicos, Guéroult e
Goldschmidt são guras que circulam nos corredores e, em alguns documen-
tos, fortalecendo uma narrativa de tradicionalidade coletiva, de um trabalho
sério e rigoroso nos estudos em história da losoa.
Nessa direção, encontramos os depoimentos de Cruz Costa e de um
dos primeiros professores do curso de Filosoa da UNESP, rearmando esses
laços históricos que nos unem. Em entrevista à revista Trans/form/ação do
departamento de losoa, inicialmente da Faculdade de Filosoa, Ciências e
Letras de Assis que, em 1976, passou a integrar a UNESP, Cruz Costa ana-
lisa os resultados dos 30 anos do departamento de losoa da USP. Para ele,
um dos produtos desses anos de trabalho está diretamente ligado à expansão
e à criação de outros cursos de losoa no país, como era o caso em Assis.
“Tenho a impressão que estes 30 anos geraram muita coisa. O fato mesmo de
vocês estarem aqui. A Faculdade de Filosoa de Assis é, como outras, o resul-
tado do crescimento da Faculdade de Filosoa de S. Paulo” (Costa, 1975, p.
90). No mesmo registro de memórias, tem-se o depoimento de Caio Navarro
de Toledo que rememora o início, ainda em Assis, destacando a inuência do
curso de losoa da USP na instituição dos protótipos do departamento de
losoa da UNESP. Segundo Toledo,
No início, éramos praticamente uma espécie de sucursal do Departamento
de Filosoa da USP. Os primeiros docentes em Assis foram indicados
por professores da Faculdade de Filosoa da Rua Maria Antônia. É de
se reconhecer que, neste início, não havia um projeto intelectual claro e
denido do Departamento; anal, éramos recém-formados, com peque-
na experiência docente, além de estarmos incertos quanto à denição da
problemática de nossas pesquisas. Assis era a nossa iniciação acadêmica e
intelectual. Éramos, sim, fortemente inuenciados pelo estilo de trabalho
intelectual vigente no DF da USP. Modelo de trabalho losóco discipli-
nado e rigoroso e, acima de tudo, temido pelos estudantes que ousavam
frequentar o curso da Maria Antônia. [...] A inuência uspiana se ma-
nifestava na compleição dos cursos que ministrávamos em Assis, pelos
autores escolhidos, pelo método de trabalho adotado e em seminários (a
orientação metodológica estruturalista proposta por Victor Goldschmidt
e Martial Guéroult). (Toledo, 2012, p. 138).
141
Esses depoimentos são indícios históricos e losócos do curso de
Filosoa da UNESP e da USP. Aquele estilo intelectual de trabalho rigo-
roso e disciplinado, nas palavras de Toledo (2012), reforça aquela narrativa
de tradicionalidade de estudar e ensinar losoa implementada na USP e
retrata uma força institucional que opera como modelo intelectual para nós
da UNESP. Além dessa possível inuência formativa e coincidências histó-
ricas, destacam-se alguns diagnósticos partilhados por professores do curso.
Importante dizer que toda preocupação diagnóstica em explicitar nossas he-
ranças de formação não vem daqueles que mantêm uma relação mais pró-
xima com o modelo uspiano, e sim daqueles que criticam esse modelo e se
opõem a essas heranças.
No curso de Filosoa da UNESP, costuma-se enunciar uma oposição
ao modo de encarar a educação e o fazer losóco: a losoa temática e a his-
tória da losoa. Essa distinção não aparece no PPCF, embora seja vivenciada
pelos estudantes do curso. O que se encontram são poucas indicações docu-
mentais que servem para aludir essa oposição. Vejamos algumas delas. No site
de apresentação da pós-graduação em losoa da UNESP, há a indicação, por
exemplo, de dois pers investigativos, um de natureza historiográca e outro
losóco-interdisciplinar e temático, conforme se observa na página do site44.
Especicamente, o eixo central do PPGFIL compreende temas e questões
referentes às relações entre cognição, razão, consciência e vida, sendo essas
relações investigadas em duas perspectivas, que correspondem às linhas
“Razão, consciência e vida” de natureza historiográca, e “Filosoa da
informação, cognição e da consciência”, com o perl losóco-interdisci-
plinar e temática.
Mas o que diferencia esses dois pers? São diferenças de caráter ins-
titucional e organizacional das pesquisas na pós-graduação ou representam
relações distintas de fazer, ensinar e aprender losoa? Na abordagem de
natureza historiográca, o objetivo fundamental é uma formação histórica
que valorize o pensamento ocidental, trabalhando “[...] temas e problemas
propostos por autores clássicos, especialmente da tradição francesa, alemã
44 O documento está disponível em: https://www.marilia.unesp.br/#!/pos-graduacao/mestrado-e-
doutorado/losoa/apresentacao/historico/. Acesso em: 07 fev. de 2022.
142
e inglesa45. Nesse caso, as pesquisas “[...] inserem-se no âmbito da análise
e da exegese de textos clássicos46 e estabelece uma relação disciplinar e mo-
nográca em um autor ou sistema losóco. Mesmo nos eixos temáticos,
como são os casos da Ética e Filosoa Política, privilegia-se a reconstituição
histórica, uma vez que os “[...] estudos desenvolvidos na linha de pesquisa em
Ética e Filosoa Política têm como fundamento teórico os grandes autores da
História da Filosoa47. Em síntese, as pesquisas de natureza historiográca
têm, como cerne, a reconstituição histórica do pensamento losóco a par-
tir do comentário dos textos clássicos, segundo aquelas práticas já elencadas
também no perl do bacharel do licenciado pelo PPCF.
Já na abordagem losóco-interdisciplinar e temática tem-se como ob-
jetivo uma formação interdisciplinar. Seus pesquisadores analisam os pres-
supostos losócos das pesquisas contemporâneas sobre os processos “[...]
cognitivos, perceptuais e informacionais e cientícos bem como suas con-
sequências48. Em diferença à pesquisa histórica, a história da losoa não
ocupa o papel central, tampouco tem-se como metodologia de trabalho o
exercício exegético e monográco dos textos clássicos. Os temas/problemas
são o centro da investigação e, dada a complexidade dos problemas tratados,
preza-se por uma metodologia interdisciplinar que inclua o diálogo com ou-
tras áreas de conhecimento.
Na análise do documento, a disputa antes referenciada ca mais eviden-
te, especialmente no que diz respeito ao uso da tradição losóca e um questio-
namento do tipo de leitura dos textos clássicos dentro do itinerário formativo
da instituição. Ainda que se resguarde a importância dos clássicos, condicio-
na-se sua leitura aos problemas contemporâneos. Em seguida, questiona-se o
simples uso do recurso da leitura “estrutural” no estudo da tradição losóca,
de maneira a exigir que seu exercício não limite a atuação autônoma e crítica
do estudo. Por m, faz-se questão de dizer que as pesquisas losóco-interdis-
ciplinar e temática, por suas especicidades, atendem às demandas dos próprios
estudantes, que querem elaborar e resolver os problemas contemporâneos, su-
gerindo uma associação entre essas pesquisas e a atualidade:
45 Idem.
46 Idem.
47 Idem.
48 Idem.
143
Um dos pressupostos fundamentais em ambas as áreas de concentração
é que a formação losóca deve articular os estudos dos textos clássicos
da tradição com a análise de temas e problemas losócos. Reconhece-se
que a leitura estrutural dos textos clássicos da tradição é um importante
alicerce na formação losóca, desde que exercida de modo a promover a
autonomia intelectual e o espírito crítico. Em particular, nosso Programa,
através da Área de Filosoa da Mente, Epistemologia e Lógica, visa tam-
bém a dar base um diálogo interdisciplinar entre diversas áreas do saber,
atendendo a uma demanda cada vez maior de alunos interessados na dis-
cussão de problemas contemporâneos49.
Essas críticas são colocadas e melhor debatidas no texto Informação e
Ação: Notas sobre a experiência interdisciplinar na Filosoa (2012), de auto-
ria das duas professoras da abordagem losóco-interdisciplinar e temática
da UNESP, e do professor Willem Haselager. Inspirados no prof. Trajano,
cuja atividade losóca se torna modelo de “[...] valioso exemplo de lósofos
que, sem perder de vista a especicidade da losoa, abriram caminhos para
a reexão interdisciplinar” (Broens, Gonzales, Haselager, 2012, p. 93), eles
apontam alguns limites da história da losoa para a experiência interdisci-
plinar temática. Problematizam o pressuposto historicista do fazer losóco,
comum à abordagem histórico-losóca, segundo o qual os estudos em lo-
soa devam ser, necessariamente, mediados pela história da losoa, ou seja,
que os caminhos e as possibilidades do que se estuda devem circunscrever-se
aos horizontes postos pelos lósofos clássicos.
Para muitos, a reexão losóca será reconhecida como tal se apenas esti-
ver inserida numa rota losóca previamente traçada pelos clássicos. Esta
concepção constitui basicamente uma salvaguarda metodológica, desejá-
vel, contra tentativas ingênuas de resolver problemas através de argumen-
tos ou instrumentos reexivos anteriormente postulados, evitando-se, as-
sim, “arrombar portas abertas” ou “reinventar a roda”. Mas uma aplicação
extremada dessa salvaguarda acaba por gerar uma tese problemática: a de
que o exercício do losofar precisa ser precedido por justicativa históri-
co-losóca. Em outras palavras, a reexão losóca deve se submeter à
autoridade dos clássicos. Uma ilustração desta tese consiste, por exemplo,
quando se considera que um texto losóco sobre o problema da relação
49 Idem.
144
mente/corpo deve necessariamente se restringir à reprodução passo a pas-
so dos argumentos de algum lósofo, como Descartes (Broens; Gonzales,
Haselager, 2012, p. 94).
Até que ponto devemos submeter a reexão losóca ao registro dos
autores clássicos? Eis um lado do problema colocado. Outra camada de ques-
tionamento consiste na relação que se pode estabelecer com o clássico. O es-
tudo que zer uso dele precisa manter-se el ao contexto losóco do autor?
Anal, qual é a relação a ser estabelecida com a história da losoa, com um
autor clássico, quando se tem como objetivo o debate de algumas problemá-
ticas contemporâneas? O exemplo fornecido pelos autores elucida uma situa-
ção típica à rotina das discussões da losoa da mente. O cogito cartesiano
faz ressoar um conjunto de desaos e pressupostos na tradição losóca que,
apesar de ter sua emergência no horizonte losóco cartesiano, seria impos-
sível nele se manter. Pensar contemporaneamente com ou contra Descartes
exige um certo tipo de leitura e análise que não se limita à reprodução passo
a passo de seus argumentos losócos, presa à leitura de seu pensamento, de
maneira que a reprodução do que ele pensa se torne mais importante do que
o pensamento problemático que com ele se constrói.
Entretanto, o que justica a adoção de uma abordagem histórica, cujos
pressupostos defendem não só a imprescindibilidade dos textos clássicos, mas
também o resguardo da integridade interpretativa do pensamento do autor,
suas doutrinas e os problemas tal como foram enunciados no horizonte teóri-
co do lósofo? Segundo Broens, Gonzales e Haselager, aqueles que defendem
o pressuposto historicista evocam, frequentemente, “[...] as colocações de
Victor Goldschmidt, para quem as doutrinas losócas, como a cartesiana,
são indissociáveis dos movimentos lógicos de que são fruto” (2012, p. 94).
À luz das orientações de Goldschmidt, a interpretação dos clássicos só per-
manece válida, de maneira a não cair em uma interpretação dogmática, se o
movimento reexivo for acompanhado da sucessão lógica interna, dentro do
próprio contexto ontológico e metodológico que as gerou.
Porém, eles discordam das diretrizes historicistas de Goldschmidt, uma
vez que a liação irrestrita dos estudos losócos aos quadros de referência
consagrados impossibilita uma reexão autônoma. Em suas palavras, “[...] tal
impossibilidade prática resulta, entre outras, do tempo que a interpretação
145
estrutural demanda”, e, além disso, da própria “[...] proibição explícita por
Goldschmidt de avaliar as teses losócas fora do contexto lógico que lhe
foram geradas” (Broens; Gonzales; Haselager, 2012, p. 95). Mesmo com essas
críticas, eles reconhecem que essa é a abordagem vigente em muitas univer-
sidades brasileiras, uma vez que boa parte dos “[...] professores brasileiros
de losoa, até pela formação estruturalista presente em muitos dos cursos
de Graduação em Filosoa de nosso país, optou por privilegiar, no ensino e
em sua pesquisa, a interpretação estrutural dos sistemas losócos” (Broens,
Gonzales, Haselager, 2012, p. 95).
Regionalmente, essas críticas são direcionadas à abordagem histórico--
losóca do curso de losoa da UNESP. Quando o documento da pós-gradua-
ção traz uma ressalva ao uso da história da losoa na pesquisa e no ensino,
coloca-se em questionamento essa herança formativa estruturalista que serve de
amparo à leitura dos textos clássicos. Não obstante se atribua importância à tra-
dição losóca, as condições que a leitura estrutural exige são problematizadas:
por mais que a história da losoa ofereça ricos instrumentos para enfrentar
problemas contemporâneos, a abordagem interdisciplinar temática “[...] não
considera que as ferramentas estruturalistas de interpretação de sistemas losó-
cos sejam sempre necessárias ou mesmo adequadas e nem que as teses losó-
cas pairem numa temporalidade lógica acima da possibilidade de refutação
(Broens; Gonzales; Haselager, 2012, p. 96). A estratégia da losoa interdisci-
plinar e temática cultiva uma outra relação com o passado, a partir da qual, as
teses e os instrumentos losócos históricos ultrapassam o horizonte histórico
que lhe são próprios, privilegiando, conforme destacado no documento, a au-
tonomia intelectual e o espírito crítico da investigação no contemporâneo.
Como dissemos anteriormente, esse texto é um dos que debate
alguns pressupostos formativos do curso e problematiza uma suposta
herança hegemônica de formação da filosofia universitária brasileira.
Aliás, torna-se compreensivo que sejam os professores da filosofia te-
mática que estejam preocupados em realizar essa crítica, uma vez que
essa perspectiva é secundarizada na graduação50 e se torna uma forma de
50 Isso não ocorre na pós-graduação. Historicamente, foram as pesquisas da losoa temática que
conduziram o processo de criação do programa de pós-graduação em Filosoa. “O Programa de Pós-
Graduação em Filosoa (PPGFIL) da UNESP, campus de Marília, iniciou suas atividades em 1996,
com a área de concentração em Ciência Cognitiva e Filosoa da Mente. O PPGFIL tinha um perl
146
resistência àquilo que nela permanece hegemônico, isto é, a abordagem
histórico-filosófica.
Boa parte das críticas realizadas à abordagem histórico-losóca tem
como sustentação o pensamento e a atuação do prof. Trajano na UNESP.
Não só a dissociação entre uma losoa temática e história da losoa, como
também a associação das heranças losócas das universidades brasileiras ao
método estrutural e à losoa emergente na USP, remete ao modo como ele
avaliava a formação dos cursos brasileiros. O texto de Broens, Gonzalez e
Hanselager (2012) utiliza-o para criar uma imagem do que é feito hegemo-
nicamente no Brasil. Importante ressaltar que, afora o valor histórico para a
instituição, da qual faz parte desde a década de 1970, sua presença e parti-
cipação no curso marcavam essas disputas internas ao curso. Sua gura deu
vasão e força de existência a movimentos contrastantes às heranças formati-
vas em losoa, sejam os movimentos de disputa entre a losoa temática
e histórica, ou mesmo dos estudantes que desejavam uma outra experiência
losóca de formação51.
O ensino de losoa universitário e a formação de lósofos no Brasil
foram preocupações que perpassaram a trajetória do prof. Trajano na uni-
versidade. Desde seus primeiros passos na graduação de losoa na USP,
sentia certo desconforto com a formação recebida e desejava algo diferente,
conforme relata em entrevista à revista Kínesis: “Eu, pessoalmente, já estava
descontente com o ensino na Graduação, porque queria ter uma formação
de lósofo, escrever sobre temas que me interessavam e outros que pudes-
sem aparecer, e não car fazendo comentários de autores, apenas”. (Moraes;
Girotti, 2013, p. 3). Sua inquietude permaneceu mesmo no mestrado. Ainda
que tenha escrito um projeto para discutir a ideia de verdade, amparado em
Russell, Quine e Carnap, seu então orientador, Oswaldo Porchat Pereira,
losóco-interdisciplinar voltado a investigar pressupostos e possíveis implicações epistemológicas
e éticas da abordagem mecanicista da mente. [...] Em 2003, foi criada a área de concentração em
História da Filosoa, Ética e Filosoa Política, a qual, junto com a área já existente”. Disponível
em: https://www.marilia.unesp.br/#!/pos-graduacao/mestrado-e-doutorado/losoa/apresentacao/
historico/. Acesso: 26 de dez 2023.
51 Esse aspecto foi explorado por alguns estudantes de losoa da UNESP ao analisarem a última
reestruturação do curso (Cf. Garcia, 2021b; Silva, 2021; Oliveira; 2021; Costa; 2021; Rodrigues,
Gelamo, 2021a).
147
vetou sua proposta, justicando que tal tarefa só poderia ser feita no douto-
rado. Contudo, muito mais do que uma justicativa pedagógica, aos olhos
do prof. Trajano, a defesa de uma formação através do exercício de comentar
autores, tanto na graduação como na pós-graduação, constituía-se uma dire-
triz de formação, herdada da institucionalização da losoa universitária no
contexto brasileiro.
A implementação dos cursos universitários no Brasil caracterizou-se pela
rejeição e substituição dos manuais de losoa e história da losoa pela leitura
dos livros e textos losócos na língua original. Os estudos dos clássicos da
losoa francesa, alemã e inglesa, sobretudo na década de 1960, veio acompa-
nhado “[...] de uma concepção de análise de texto rigorosa, a mais isenta pos-
sível, na época associada ao estruturalismo” (Arruda, 2013, p. 50). Em poucas
décadas, foram formados pesquisadores internacionalmente competentes no
gênero do comentário de obras, porém, esse gênero acabou ocupando todo o
espaço destinado a outros gêneros da atividade prossional de losoa.
No entanto, segundo o prof. Trajano, um curso universitário de lo-
soa deve contar, pelo menos, com três áreas de investigação prossional: i)
a losoa propriamente dita (losoa temática), (ii) o comentário de obras
losócas e a (iii) história da losoa. A primeira área de atuação é aquela
que faz o que os lósofos zeram: debater problemas losócos e tentar solu-
cioná-los. O comentário de obras losócas consiste na área da losoa uni-
versitária dedicada aos estudos monográcos dos clássicos e dos lósofos, va-
lorizando muito mais o entendimento de uma losoa do que propriamente
o desenvolvimento losóco das ideias no tempo. Já a hstória da losoa,
entendida de modo menos abrangente como se costuma na universidade,
consiste nos estudos dos itinerários das ideias e doutrinas no tempo e espaço,
examinando a gênese de uma doutrina e escola losóca em dado lapso tem-
poral e a transformação das ideias na história.
Podemos distinguir três áreas de investigação dos prossionais universi-
tários da Filosoa: a losoa propriamente dita – isto é, aquilo que os
lósofos fazem e produzem –, o comentário de obras losócas – aqui en-
tendido de modo a incluir estudos que não entram nos detalhes das liga-
ções da obra comentada com a literatura losóca anterior e/ou posterior
– e a história da losoa – aqui entendida no sentido, menos abrangente
148
que o habitual, de estudos que contam o itinerário das ideias e doutrinas
no tempo e no espaço, examinando, portanto o surgimento e desenvol-
vimento desta ou daquela doutrina ou escola num determinado lapso de
tempo, às vezes maior às vezes menor. (Arruda, 2013, p. 44).
Segundo o prof. Trajano, em quase todo o período de sua história oci-
dental, o pensar losóco se congurou como uma forma temática de pensa-
mento, o interrelacionamento entre saberes – losoa, matemática, teologia,
física, biologia, e, mais recentemente, psicologia, neurociência, antropologia
– marca a história das contribuições dos mais diferentes lósofos ocidentais.
De fato, a partir do século XVIII, houve os primeiros aparecimentos do dis-
tanciamento entre os saberes e uma tendência à disciplinarização e especiali-
zação das áreas, que se aprofundou no século XIX e XX. Pela primeira vez na
história, passam a existir lósofos hostis à ciência e cientista hostis às artes e
às losoas. No entanto, essa tendência parece se alterar na metade do século
XX, uma vez que, quanto mais uma disciplina avança, mais ela deixa visíveis
os vínculos com tópicos de outras disciplinas mais ou menos próximas dela.
E isso não é diferente no caso da losoa. O desenvolvimento de outras disci-
plinas desemboca em novos problemas à humanidade e, consequentemente,
aos lósofos. O que se tem agora “[...] é muitos lósofos, em todas as áreas,
interagindo e atuando com os praticantes das demais modalidades da episte-
me, e sentindo-se à vontade fazendo isso” (Arruda, 2001, p. 119).
A forma de pensar do prof. Trajano embasa sua tripartição. Para ele,
os lósofos não são estudiosos disciplinares, eles são estudiosos de questões.
E isso ocorre porque os problemas são as personagens centrais da losoa e
de sua história, enquanto as escolas e os próprios lósofos são apenas coad-
juvantes, alterando-se de tempos em tempos. Como os problemas não são
disciplinares, a losoa só pode ser temática. Em entrevista à professora do
curso, Mariana Broens e a João Antônio de Moraes, prof. Trajano reforça
essas características da losoa:
A losoa é essencialmente temática. O que não é temática é a História
da Filosoa. E essa distinção se faz muito importante. Mas a Filosoa, no
sentido que os lósofos a praticaram, é sempre temática. [...] Para mim,
não há qualquer obstáculo em minha prática, em meu pensamento, além
do conveniente em sacricar a identidade da Filosoa mergulhando num
149
conjunto multidisciplinar. Por quê? Porque no meu pensamento nós não
somos estudiosos de disciplinas. Eu não sou. Nós somos estudiosos de
questões; onde as questões estiverem, estaremos lá. Há questões estrangei-
ras à Filosoa, como, por exemplo, na História natural, na Neurociência,
etc., que possuem, aparentemente, relevância para claricar questões da
Filosoa da Mente, (e.g, identidade mente-corpo, entre outras) (Broens;
Moraes, 2014, p. 308-310).
No entanto, em razão de nossas heranças universitárias, a losoa te-
mática não foi implementada nas universidades brasileiras. “A Filosoa no
Brasil foi concebida num ‘pecado original’ nos anos de 1934-35, na USP.
Por azar nosso, um azar verdadeiramente histórico, na instituição de losoa
predominaram os comentadores, e não os lósofos” (Moraes; Girotti, 2013,
p. 14). Transmitido de geração em geração de professores, capilarizando-se
através de um modo hegemônico de ensinar e aprender losoa, predomi-
nou, em nossas universidades, apenas o gênero do comentário, criando um
regime, intitulado pelo professor Trajano, de comentarismo. Esse é o pecado
original da losoa brasileira, essa prática restrita da losoa como comentá-
rio, que se inicia com a chegada dos primeiros professores e que tende a per-
manecer hegemônico, obscurecendo as outras formas de atividade inerentes
à reexão losóca original e regular na universidade:
Esse regime, caracterizado pelo domínio generalizado do comentário de
obras, com a exclusão quase total do gênero losóco e do histórico no
sentido estreito, vou chamá-lo de comentarismo. [...] O comentarismo é o
principal fator que tem entravado e atrasado o aparecimento na universi-
dade brasileira de uma reexão losóca original regular e consistente. O
ensino e a pesquisa em Filosoa já nasceram assim, e assim continuam até
hoje. Portanto, o passado, com essa deformação comentarista, ainda está
conosco quase que em sua inteireza; ele constituiu como que um pecado
original, que, como tal, foi sendo transmitido de geração para geração de
professores (Arruda, 2013, p. 50 – grifos do autor).
O comentarismo representa a exclusão da losoa de qualquer ou-
tro gênero que não seja o comentário; representa uma hegemonia na for-
ma de compreender e praticar a losoa na contemporaneidade. E o grande
problema do comentarimo é que a prática losóca mantém uma relação
150
estritamente disciplinar, em que o comentário dos autores é mais relevante
do que a resolução de problemas, afastando-se daquilo que o prof. Trajano
considerava como fundamental à losoa.
Essa crítica do prof. Trajano ao comentarismo denuncia, ao mesmo
tempo, o funcionamento da losoa universitária brasileira e as causas his-
tóricas de sermos o que somos em nível de losoa acadêmica. Por ter sido
formado na USP e por compor o curso de losoa da UNESP desde os
primeiros anos, ele problematiza aquilo que ocorrera na USP e via os efeitos
também na UNESP. Isso ca claro na entrevista concedida à professora do
curso, Mariana Broens, e ao estudante egresso do curso, João Antônio de
Moraes, para avaliar as contribuições da profª. Maria Eunice para a Filosoa
na UNESP. O prof. Trajano defendia a criação de um projeto e uma política
de formação à losoa universitária brasileira que corrigissem a deformidade
comentarista e implantassem também as duas outras atividades losócas,
especialmente a losoa temática. Para ele, tanto lósofos, como comentado-
res e historiadores da losoa são formados. Só que os cursos de formação de
lósofos se diferenciam dos cursos de formação de historiadores e comenta-
dores, justamente por seus exercícios de preparação. Caso se queiram formar
lósofos, devem-se exercitar as habilidades inerentes à losoa, ou seja, se o
objetivo é a formação de lósofos, devemos exercitar o losofar, praticando
exercícios que estimulem, desde o princípio, o estudante na atividade almeja-
da. E ele reconhece que foi a profª. Maria Eunice que o ajudou a implemen-
tar a losoa temática no curso, apesar de também reconhecer que tal prática
não deslanchou na instituição.
A losoa é essencialmente temática. O que não é temática é a história da
losoa. E essa distinção se faz muito importante. Mas a losoa, no sen-
tido que os lósofos a praticaram, sempre é temática. Eu sempre sonhei
em ter um grupo de investigação losóco-temática e acho que o perl
da Maria Eunice contribuiu para alimentar esse sonho, porque ela vem de
uma área não viciada pelo comentário, que é o caso da Física. A Filosoa,
ao contrário, é hipercontaminada racionalmente pelo “comentarismo” (i.
é, pela ignorância da Filosoa a favor de outro gênero que não o comen-
tário). [...] É claro que a inuência da pesquisa losóco-temática não
deslanchou em todo o Departamento como a gente gostaria. Tanto que
a maioria de nossos colegas, por enquanto, não aderiu, mas alguns foram
151
inuenciados (eu próprio, a Profa. Mariana Claudia Broens, entre outros).
[...] O Departamento de Filosoa da UNESP seria um Departamento
igual a dezenas e dezenas de outros no Brasil, que são muito bons do pon-
to de vista do que se propõem a fazer. Realmente são. Têm departamentos
muito bons, vários federais, alguns estaduais. O Brasil pode se orgulhar
de ter uma estrutura de comentários losócos de nível muito alto. Pena
que isso não se constitui enquanto Filosoa. Acho que a resposta é essa.
Ao falar sobre isso nos damos conta de quanto o perl do Departamento
de Filosoa da UNESP deve às contribuições da Maria Eunice (Broens;
Moraes, 2014, p. 308-313).
Nesse sentido, o prof. Trajano diagnostica a historicidade de nossas
heranças de formação da UNESP, remetendo-as às Missões Francesas na USP,
cujo acontecimento marcou gerações e gerações de pesquisadores na prática
do comentário. O pecado original da losoa no Brasil foi ter instituciona-
lizado uma prática disciplinar em losoa, que nos afastou dos funciona-
mentos da losoa temática. Apesar do diagnóstico do prof. Trajano, que
relaciona a institucionalização da losoa da USP com a vigência da tirania
do comentarismo na pesquisa e no ensino de losoa no Brasil, entre os
integrantes do ENFILO, havia certa dúvida em relação ao modo como ele
formulava seu diagnóstico. Por mais que se acreditasse na dívida com essas
experiências associada à USP, a simplicação do fenômeno à ideia de “pecado
capital”, cuja origem ainda faz ressoar até os dias de hoje o comentarismo,
parece excluir uma série de acontecimentos que são importantes para se en-
tender aquilo que foi apagado na história de criação e constituição do curso
de losoa da USP. Vemos isso, por exemplo, nas armações de Sanabria
de Aleluia, a saber: “apesar das palavras de Arruda indicarem bons cami-
nhos investigativos, uma certa continuidade provoca certa desconança. O
pecado original e sua transmissão de geração a geração não parecia ser algo
simples” (2021, p. 26). Isso vale também para a nossa pesquisa de mestrado
(Rodrigues, 2020), que, ao invés de nos contentarmos com a leitura do prof.
Trajano, resolvemos olhar para os horizontes históricos e losócos das prá-
ticas historiográcas de Guéroult e Goldschmidt e sua recepção nas práticas
de ensinar e aprender losoa na contemporaneidade.
Evidentemente que essas críticas são válidas quando se tem como
objetivo restituir as relações de saber e poder que instituem os horizontes
152
formativos losócos na USP, indagando suas consequências na UNESP. A
crítica ao pecado original pode simplicar uma série de conjunturas históri-
cas que, se problematizadas pela ótica do presente, poderiam nos ajudar a en-
tender nossas práticas atuais de ensinar e aprender. Porém, será que a crítica
ao comentarismo não traz uma intuição potente para explicarmos as nossas
heranças de formação losóca no curso de losoa da UNESP? Se, certa-
mente, ela não dá conta da historicidade dos fenômenos da instituição do
curso de losoa da USP até as nossas práticas atuais, o diagnóstico de prof.
Trajano não captaria aquilo que se tornou hegemônico na losoa universi-
tária brasileira e, em especial, na UNESP, problematizando uma relação de
ensinar e aprender losoa, assim como de pesquisar na contemporaneidade?
Acreditamos que sim, e é o que defenderemos na próxima seção. Nosso
objetivo consiste em mostrar como a instauração do curso de losoa da USP
e a inuência de Guéroult e Goldschmidt são utilizados para fundamentar
uma narrativa de formação que, ao defender o estudo dos textos clássicos e
a história da losoa como único caminho de formação losóca possível,
excluiu quaisquer outras possibilidades de se ensinar, aprender e fazer lo-
soa no presente. Anal, não é isso que fala o prof. Trajano ao dizer que o
comentarismo consiste na exclusão de quaisquer outras relações na losoa
universitária? À luz de sua leitura, há espaço para problematizar como a re-
cepção das lições de Guéroult e Goldschmidt – encarnando os patronos do
método estrutural de leitura de textos losócos – serve para justicar uma
série de práticas hierárquicas na formação losóca e no ensino de losoa.
Acreditamos que essas práticas reetem uma construção histórica discursiva
que naturaliza a estreita relação entre a formação losóca e a história da
losoa como explicação de textos clássicos.
Seguiremos as narrativas de Paulo Arantes (1994; 1996), intercalando
com as memórias de parte do corpo docente do departamento de losoa da
USP. Em especial, duas guras tornam-se cruciais para balizar os efeitos des-
sa recepção na USP: Oswaldo Porchat Pereira e Lívio Teixeira. O primeiro,
representando a relação técnica e prossional de uma nova geração de pro-
fessores do departamento na década de 1960 – composta, conforme Arantes
(1994, p. 14-15), por José Artur Gianotti, Bento Prado Jr, e Ruy Fausto
–, e o segundo – pertencente uma geração intermediária, de guras como
153
Cruz Costa e Gilda de Mello Souza, sucessores dos programas do curso de
losoa de Jean Maugüé – que se tornou muito importante para consolidar
os estudos em história da losoa na USP (Chauí, 2003). Enquanto a gura
de Oswaldo Porchat Pereira será utilizada para entender o contexto dos ensi-
namentos de Goldschmidt no curso, a gura de Lívio Teixeira, ao conviver e
defender a importância de Guéroult para os estudos da losoa no Brasil, nos
ajudará a compreender, por sua vez, o uso das lições deste último. No nal
da seção, recuperaremos os efeitos colaterais desse projeto e disciplinamento
em interlocução com uma série de críticas ao funcionamento da losoa no
Brasil. Essas críticas se aproximam muito daquilo que enuncia o prof. Trajano
sobre o comentarismo e, por essa razão, podem nos ajudar a conceituar a he-
rança de formação que se capilariza no curso de losoa da UNESP.
3.3. A história da losoa e o comentário: do uso didático e
propedêutico à disciplina prossional
Retomar a recepção das heranças historiográcas que se cristalizam na
década de 1960 é ter como pano de fundo o projeto de criação da USP52,
três décadas antes, e, mais especicamente, o projeto de prossionalização da
experiência losóca universitária em São Paulo, iniciado a partir das Missões
Francesas53 e do começo da criação do aparato institucional em que a loso-
52 De maneira geral, a criação da USP, em 1934, seguia o vetor de um triplo projeto, segundo Patrick
Petitjean: “político liberal (formar elites paulistas para modernizar a nação brasileira), educativo
(uma universidade, moderna, à imagem dos países europeus) e cientíco (uma forte demanda de
ciência para o ensino, sobretudo para a formação dos pesquisadores)” (Petitjean, 1996, p. 261). No
contexto do país, a década de 1930 foi atravessada pelo otimismo e pela ótica do desenvolvimento de
um país novo, em modernização, mas com a consciência de ainda existir muito a ser feito. Em São
Paulo, reagindo à política educacional do governo federal, a criação da USP fez valer um projeto de
ilustração, concentrando na instrução pública de São Paulo um poder, inicialmente, aglutinador e
depois irradiador de cultura. A FFLCH tinha a missão de promover a integração da nova universidade,
mantendo um conjunto de ciências básicas ao lado das disciplinas de humanidades. Além disso,
tinha como missão difundir no Brasil aquilo que havia de mais moderno nos diferentes campos das
humanidades, incluindo a losoa (Domingues, 2017, p. 57). Para mais detalhes sobre o projeto
que envolvia a criação da USP e os seus desdobramentos na fundação da experiência universitária em
losoa nessa universidade, ver os trabalhos de Arantes (1994), Cordeiro (2008), Aleluia (2014).
53 Além de São Paulo, as Missões Francesas tiveram sua importância para a Universidade do Distrito
Federal (UDF), criada em 1935 e incorporada à Universidade do Brasil (UB) em 1939. A UB
154
a, daí em diante, viverá no país. Se há uma ideia que possa elucidar o con-
texto que tinge os documentos com os quais dialogamos na presente seção,
essa ideia é modernização: uma tentativa de superação do décit intelectual
e cultural da experiência losóca no país, para instaurar uma losoa aos
moldes do padrão universitário internacional.
De maneira geral, o papel das Missões Francesas para a losoa foi
considerado, por princípio, uma modernização de nossa forma de pesquisar,
ensinar e aprender losoa. Superar o antigo e rearmar o progresso moder-
nizador envolveu uma transformação da losoa em sua experiência autodi-
data para um fenômeno acadêmico-prossional. Os caminhos do progresso
levaram as experiências losócas brasileiras à universidade, lugar em que
será ensinada e difundida como experiência intelectual continuada, estável
e conforme um padrão reconhecido internacionalmente. À sombra da luz
do progresso, qualquer expressão losóca pré-universitária foi sentenciada
como losoa amadora: feita de improviso, sem rigor, afeita à novidade, se-
duzida pelas ideias gerais e pelas sínteses rasas e abstratas dos manuais e com-
pêndios; uma losoa sem originalidade, feita a reboque dos uxos de ideias
alheias, sem qualquer continuidade entre as ideias e a construção de escolas
de pensamento.
Esse projeto modernizador da USP se constituiu e se reforçou a partir
de uma autoimagem negativa da losoa e da intelectualidade pré-universi-
tária brasileira54. Mesmo sem um conhecimento aprofundado e debatido da
foi criada duas vezes, uma em 1937 e outra em 1939. Émile Bréhier, eminente historiador da
losoa e conhecido no contexto universitário paulista, foi professor estrangeiro convidado na
UDF, em 1936.
54 O diagnóstico que denuncia a ausência de uma losoa brasileira antecede a criação da USP.
Segundo Canhada (2017), desde A losoa no Brasil, primeiro texto que se reporta à produção
losóca brasileira e aos seus autores, Sílvio Romero cria um discurso que reverbera nas mais
diferentes tentativas históricas da losoa feita no país, como são o caso de Leonel Franca e Cruz
Costa. Trata-se, sobretudo, de um discurso que desqualica o próprio objeto dessas histórias – os
supostos lósofos e suas obras –, colocando, em seus devidos lugares, autores que se pretendem
lósofos, mas não são dignos de ocupar esse posto. Essa deslegitimação daquilo que foi produzido
visava sempre à instauração de um novo modelo de intelectualidade ou armação de um projeto
intelectual em especíco, que não se encontraria na história analisada, criando um sentimento de
ausência, de um território arrasado e, consequentemente, a falsa projeção de um começo absoluto.
155
trajetória da reexão losóca nacional55, armava-se que aquilo que havia
sido produzido intelectualmente até então era um trabalho amador, refém das
novidades europeias. Sendo assim, a fundação da USP e o início do funciona-
mento acadêmico de losoa marcaram o primeiro passo de um “transplante
civilizatório” (Arantes, 1994), necessário para estabelecer uma nova direção
aos rumos da losoa no país. E, nesse contexto, a história da losoa –
como um tipo especíco de conhecimento do passado e na condição de uma
relação disciplinar – se tornaria o caminho naturalizado aos jovens aprendizes
paulistanos, desempenhando a função de disciplinar o intelecto aos padrões
internacionais. As palavras abaixo estão presentes no Projeto Pedagógico do
curso de Filosoa da USP e rearmam a autoimagem negativa da experiência
losóca pré-universitária brasileira, bem como o papel do estudo rigoroso
da história da losoa na esteira do projeto de modernização:
Desde o início, a preocupação fundamental do Departamento de Filosoa
foi com o rigor dos estudos losócos, contrapondo-se ao ambiente intelec-
tual do país que, principalmente na primeira metade do século XX, carac-
terizava-se por certa uidez e abuso da retórica, bem como pela importação
acrítica de novidades europeias. Os primeiros professores franceses, constru-
tores iniciais de nossa tradição, pautavam o trabalho pela análise das ideias a
partir da leitura rigorosa dos textos, mormente clássicos. Tal perspectiva de
formação marca até hoje o estilo de trabalho do Departamento de Filosoa
e tornou-se paradigma para vários núcleos universitários de Filosoa que se
constituíram posteriormente (São Paulo, 2021, p. 9).
Na medida em que o intelectualismo supercial brasileiro só seria su-
perado através do estabelecimento institucional e do transplante acadêmico,
o rigoroso conhecimento histórico da losoa se apresenta como caminho
responsável pela assimilação e aprendizado das novas lições. Apesar do pri-
meiro professor do curso ter sido Étienne Borne, as narrativas de emergência
do transplante civilizatório e do destaque à história da losoa como discipli-
na intelectual apontam para Jean Maugüé. O texto dele, Ensino da losoa:
suas diretrizes (1955), foi considerado por Arantes (1994) como a “certidão
55 Estudos históricos recentes procuram desconstruir essa imagem, de maneira a mostrar como a
produção intelectual pré-universitária é bem diferente daquilo que se acostumou a ser rearmado
pelos discursos do progresso universitário. Cf. Margutti (2013; 2020) e Canhada (2017).
156
de nascimento” da losoa universitária na USP, demarcando, além disso, a
estreita aliança entre história da losoa e formação brasileira. Todavia, pare-
ce ser impossível comparar as técnicas e a relação historiográca de Maugüé
com Goldschmidt e Guéroult, bem como suas maneiras de habitar a univer-
sidade. As narrativas em torno da convivência e do ensino do herói-fundador
caracterizam uma exibição ensaística do pensar, ainda generalista – não do
modo pré-universitário –, que misturava as questões atuais com os grandes
temas da história da losoa, atuação nada semelhante aos outros dois histo-
riadores franceses. Talvez se não fossem as memórias de Antônio Cândido e
Gilda de Mello, resgatadas e amplicadas analiticamente por Arantes (1994),
a gura de Maugüé poderia estar esquecida56, principalmente por representar
uma época de formação ainda mais genérica da faculdade, em contraposição
à rotina especializada de estudos que os outros professores franceses funda-
ram na universidade. Sobre essa distinção da primeira época formativa e da
que viria em sequência com a vinda de outros professores franceses, descreve
Antônio Cândido:
Depois da Guerra, com a Faculdade amadurecida, as coisas mudaram e
vieram professores franceses que, ao contrário dele, eram lósofos empe-
nhados em desenvolver uma carreira prossional especíca e orientar os
estudantes no mesmo sentido. Eram lósofos formando lósofos. Além
disso, Cruz Costa e Lívio Teixeira, seus substitutos, estabeleceram um sis-
tema segundo o qual jovens licenciados brasileiros passaram a fazer em
universidades francesas estágios de dois e três anos, o que deu solidez e es-
pecicidade à sua formação. Na Faculdade de São Paulo a losoa deixou
então de ser, como em nossa época heróica, uma espécie de visão genérica.
56 Em entrevista a Denilson Cordeiro, disponibilizada em sua tese sobre Jean Maugüé, Antônio
Cândido relata: “Pelos anos afora, sempre dissemos [Antônio Candido e Gilda] ou escrevemos
alguma coisa sobre ele, ressaltando a sua importância no tempo da nossa formação. Acho que sem
nós ele teria sido completamente esquecido. Os jovens que vieram depois o ignoravam, porque não
deixou obra escrita que pudessem consultar, e com certeza o desprezaram “porque não era lósofo”.
Em seguida, foi fundamental a atuação de Paulo Arantes que, por causa do que ouvia de nós, se
interessou por Maugüé e deniu muito bem a natureza de sua atuação num livro importante (Mello
e Souza, 2007, p. 199). Ainda sobre o esquecimento de Maugüé destaca Gianotti: “Ao chegar ao
Departamento em 1950, não tanto como calouro pois já tinha frequentado por dois anos curso de
Letras Clássicas na qualidade de ouvinte, posso assegurar que poucos se lembravam da existência de
Maugüe” (1994, p. 246).
157
Maugüé estava sendo superado e as novas gerações o esqueceram rapida-
mente (Mello e Souza, 2007, p. 12).
Porém, parece-nos difícil negar que uma prática acadêmica de losoa,
já consolidada na França, se inicia com Maugüé e suas diretrizes, fortale-
cendo o discurso em prol da modernização da experiência losóca no país.
A centralidade e primeiridade da história da losoa no ensino e formação
losóca, a leitura rigorosa do texto clássico em contraposição ao uso dos
manuais no ensino e aos objetos de estudos losócos comuns à produção
losóca brasileira, criam e fortalecem uma dimensão de modernidade e
atualização dos hábitos losócos do país, em detrimento daquilo que existia
anteriormente. Mesmo jamais habitando a carreira universitária na França57,
a presença de Maugüé, especicamente, e a criação da USP, de maneira geral,
anunciam a transição entre o diletantismo/loneísmo e uma prática losóca
universitária. Se Maugüé não poderia formar lósofos, no sentido como os
tempos modernos exigiam, de certa forma, a experiência losóca brasileira
anterior passa a ser silenciada e substituída por uma nova rotina de estudos
losócos e novos objetos, fortalecendo, assim, um discurso de inauguração
e hierarquização de uma nova forma de ensinar e aprender losoa58, em que
o brasileiro deveria estar disposto a se disciplinar. Recorremos ao texto de
Canhada para ilustrar o ponto em questão:
Entre o gosto pela losoa e a aptidão para realizá-la haveria uma distân-
cia transponível apenas por intermédio de uma disciplina de pensamento.
Cabeças mal-formadas, voltadas para as “ideias gerais” e desprovidas, nas
palavras de Étienne Borne, do ‘senso crítico e histórico’, deveriam passar
por um dressement do espírito de modo a se formar o que Jean Maugüé
denomina “discernimento”. Segundo este autor, a aquisição de um “tato
histórico” deveria ser dada por uma reorientação tanto do objeto do co-
nhecimento losóco, quanto pela maneira de tratar esse objeto. Ou seja,
trata-se aqui de uma disputa tanto sobre o que seja legítimo do passado
losóco, quanto pelo que seja o melhor instrumento que daria acesso a
57 Maugüé jamais defendeu seu doutorado e se aposentou como professor de Liceu (Cordeiro, 2007).
58 As condições do ensino losóco de Maugüé não deixavam de ressoar as heranças formativas do
jovem professor francês, antigo normalien. Segundo Arantes (1994), elas estavam ancoradas em uma
tradição universitária com a idade da Terceira República da França, marcada pelo neokantismo.
158
ele. [...] O ensino de um modo de leitura de textos losócos, neste mo-
mento, não signicava ainda a defesa estrita de um rigor metodológico tal
como irá ocorrer em meados de 1950. A defesa do domínio da história
consagrada da losoa – “ler os clássicos” – e de uma suposta disciplina
do pensamento parece contribuir, sobretudo, para a construção de uma
gura de um outro que se deve endireitar para que a losoa possa aconte-
cer no Brasil. Um dos inauguradores do ensino universitário brasileiro em
losoa, Maugüé, portanto, possui uma atividade cuja contribuição seria
dupla: formalizar em novos termos a disciplina universitária de losoa e
ajudar a construir uma imagem de que faltaria aos brasileiros uma correta
compreensão do losofar, assim como uma base histórica sobre a qual po-
deriam construir um “verdadeiro” edifício losóco (Canhada, 2017, p.
18-19 – grifos no original).
Nesse sentido, não obstante prevaleçam as diferenças e linhas de des-
continuidades entre a época de ensino de losoa na USP com Maugüé e das
primeiras gerações em relação às décadas posteriores, seu projeto de formação
do discernimento, tendo a losoa como iniciação para analisar a sociedade,
a política e a cultura, não deixa de estar inserido em uma camada discursi-
va de armação hierarquizante de institucionalização da educação losóca,
reforçando um programa disciplinar e modelador aos brasileiros de ajuste
histórico ao desenvolvimento do fenômeno losóco internacional.
Apesar de ocorrerem em momentos distintos e existir uma desconti-
nuidade teórica e dos usos da história da losoa entre as décadas iniciais e
os anos de 1950 e 1960, as lições e as práticas historiográcas de Guéroult
e Goldschmidt são recepcionadas também no interior desse projeto, ou seja,
estão marcadas por um discurso modernizador em favor da disciplinaridade
técnica do trabalho losóco, estabelecendo, em solo nacional, uma rotina
prossional universitária de padrão europeu/francês, na qual a história da
losoa, como estudo dos textos clássicos e sob a inspiração dos preceitos do
método estrutural, terá um papel propedêutico e didático à consolidação de
uma rotina prossional.
Na França, os trabalhos de Guéroult e Goldschmidt se ajustam ao mo-
mento histórico em que a losoa se torna também um problema histórico-
-historiográco e histórico-losóco. A vigência e a valorização da história da
losoa como atividade do ramo losóco são reexos do próprio contexto
159
da losoa francesa, de maneira especíca, e da losoa, de maneira geral, em
virtude do desenvolvimento frenético da ciência. A ascensão da ciência resulta
na decomposição da losoa em múltiplas ciências distintas, na tentativa de
conferir positividade às diferentes áreas que eram anteriormente de proprieda-
de da losoa, gerando uma losoa autocentrada, distante de suas pretensões
metafísicas anteriores de conhecimento. Contestada e disciplinarmente sepa-
rada de outras áreas do conhecimento, resta à losoa o “[...] consolo de ser
seu próprio tribunal, instância a que apela sem garantia de legitimidade de o
ato ser reconhecida ou considerada. Mas esse retorno é agora mais profundo
e demorado: os vários sistemas em seus próprios tempos.” (Marques, 2007, p.
105). Impedida de voltar-se à realidade como costumeiramente fazia, a losoa
volta-se para si mesma; é esse o único sentido que a faz se demorar consigo e
“[...] redescobrir-se historicamente”. (Marques, 2007, p. 108).
A presença daqueles dois historiadores da losoa em solo brasileiro
nos aproxima dessa reinvenção da losoa como história da losoa, espe-
cialmente à luz da linhagem de uma escola francesa de historiograa da lo-
soa. Segundo Marques (2007), o conceito de escola não se confunde com
a projeção de um mestre ou de ensinamentos comuns que são obedecidos
pelos discípulos, mas se trata de uma partilha de uma concepção losóca de
história da losoa e uma metodologia de leitura e interpretação das obras
losócas que se enraízam em pressupostos de aceitação geral e em discussões
que se tornam comuns. Émile Boutroux marca o início orescente de um
conjunto de textos e pequenas obras dedicadas à historiograa da losoa
e às relações entre a losoa e história da losoa na França, cuja posição
no debate, 70 anos depois, Guéroult e Goldschmidt “[...] apresentam o re-
namento e a cristalização de conceitos desenvolvidos no período anterior
(Marques, 2007, p. 103).
Dessa condição, emerge a gura do historiador-lósofo, cujo ofí-
cio consiste em reviver histórica e losocamente as losoas do passado.
Vejamos o que diz Guéroult sobre isso:
A história da losoa na França, de Victor Cousin aos nossos dias, oferece
uma grande variedade de escolas e tendências. Ela desenvolve-se gradual-
mente para depois resultar no século XX, numa incomparável oração
de historiadores-lósofos, que combinam em seus trabalhos a mais alta
160
preocupação pela objetividade histórica com a pesquisa losóca em pro-
fundidade” (Guéroult, 1988, p. 737 apud Marques, 2012, p. 16).
Para o historiador-lósofo, a experiência losóca mostra a indestru-
tibilidade losóca das losoas, independentemente de sua pretensão a
uma verdade representativa. Inabalável à refutação cientíca ou à condição
contraditória recíproca entre as losoas – enquanto teorias –, o historiador
da losoa vê as obras losócas “[...] como objetos indestrutíveis para a
história; e, em consequência, sempre válidos para a consciência losóca e
dignos de ser erigidos como objeto de uma historiograa possível” (Guéroult,
1968 [1956], p. 196). Assume-se, assim, a perenidade dos sistemas losócos
como um fato histórico: desde a origem da losoa ocidental, eles se apresen-
tam como válidos para as reexões losócas, seja através de uma retomada
polêmica ou histórica.
Nessa direção, o historiador-lósofo recupera o fato histórico da pere-
nidade da losoa pelo interesse cientíco, em busca de realizar um resgate
histórico dos sistemas losócos do passado. Um dos seus objetivos versa
na reconstituição dos sistemas, a m de “[...] representá-las à consciência
losóca do momento, segundo o sentido autêntico em que se presume que
seus autores a entendiam” (Guéroult, 1968 [1956], p. 191). Do ofício do his-
toriador, exige-se frieza e objetividade, um olhar distanciado que seja capaz
de assegurar aos leitores do presente a compreensão íntima e autêntica dos
lósofos do passado.
Por outro lado, apesar da pretensão de alcançar a verdade histórica,
segundo as verdadeiras intenções do autor, a atividade do historiador-lósofo
não deixa de ser qualicada como um ramo da atividade losóca. Como
lembra Goldschmidt (1970, p. 140), da história da losoa será exigido,
“[...] ao mesmo tempo, ser ciência rigorosa e, entretanto, permanecer lo-
sóca”. O espírito que guia o historiador-lósofo é o losóco, o que lhe
interessa é a potencialidade losofante imanente à verdade histórica, tal como
apresenta Guéroult:
A indissolubilidade da losoa e sua história é uma característica essen-
cial do fato dessa história. Quaisquer que sejam suas formas, por desliga-
da, objetiva e crítica que possa ser concebida, essa história é sempre, ao
161
mesmo tempo, losoa, sendo o interesse que a sustenta o da losoa e
não da história. A pesquisa da verdade histórica não tem por m último
essa mesma verdade histórica, mas a valorização das capacidades de suges-
tão losóca que essa verdade encobre a título de losoa. Não se trata de
satisfazer a uma vã curiosidade erudita, nem uma preocupação em relação
à psicologia, sociologia, etc., mas de assegurar o melhor contato efetivo
entre o pensamento losóco do momento e o autêntico pensamento de
outrora, em vista de forticar e de estimular a reexão losóca presente
(1968 [1958], p. 191).
No entanto, a estabilização da escola francesa de historiograa da lo-
soa aconteceu, no Brasil, sem existir uma recepção dessas relações entre a
atividade losóca e a história da losoa. O ofício do historiador-lósofo
e suas práticas são recepcionadas especialmente sob o registro metodológi-
co, ignorando todo o debate histórico e o esforço de auto-compreensão da
losoa que a “dianoemática” – teoria losóca que subentende e legitima
os trabalhos históricos – se insere, tema do qual se ocupam os historiadores
franceses desde os tempos de Boutroux (Marques, 2007, p. 131). Da con-
vivência com Guéroult e Goldschmidt, extrai-se um imperativo de adesão
metodológica e não a discussão e o exame da metodologia empregada. O
objetivo fundamental era criar uma etapa de formação intelectual:
[...] a estabilização da escola francesa entre nós não era exatamente compa-
tível com o exercício de questionamento das relações entre losoa e sua
história. O aprendizado dessa técnica de leitura e explicação das obras lo-
sócas era uma etapa de formação intelectual estrita, momento didático que
só podia ser recebido passivamente. [...] O ensino de losoa por meio do
qual nós nos emancipávamos tinha um indisfarçável vigor metodológico ou
um caráter provisório manifesto no padrão historiográco que modela os
cursos, o qual, porém, sobrevivera bom tempo na exclusividade, fazendo a
história da losoa a losoa possível (Marques, 2007, p. 19).
Essa herança historiográca não foi uma inspiração mais profunda para
aqueles que a importavam. O que ocorreu foi um transplante pela metade,
que deixava de lado as elucubrações e o contexto histórico e losóco que
acompanhavam o enunciado técnico dos patronos franceses, fazendo valer es-
tritamente uma relação metodológica e propedêutica, condicionada à técnica
162
de leitura e explicação das obras losócas. Prevalecia, assim, mais o “[...]
espírito’ do que a letra” (Arantes, 1994, p. 16). Em outras palavras, com
os dois historiadores franceses, redescobria-se a atividade histórico-losóca
como experiência acadêmica de reconstituição objetiva dos sistemas losó-
cos, preservando a autonomia dos sistemas e do discurso losóco em relação
à sua gênese histórica, a m de resguardar a intenção lógica e demonstrativa
dos lósofos. Aquilo que estava em questão – e isso se fazia evidente nas
memórias e nas defesas de vários interlocutores do rigor metodológico da
prática losóca da USP – era estabelecer uma formação técnica, concentra-
da em uma abordagem analítica e monográca da história da losoa, cujos
preceitos metodológicos garantiriam uma compreensão verdadeira e rigorosa
do pensamento losóco.
Nesse sentido, a recepção dos ensinamentos de Guéroult e Goldschmidt
fortalecia um discurso de preparação para um losofar futuro a partir do dis-
ciplinamento técnico, diferenciando a produção acadêmica uspiana do resto
do país. Assim, ao invés de almejar o estabelecimento de uma rotina de estudo
especulativa, de debate e a problematização losóca do presente, valorizar-
-se-ia a paciência propedêutica do discípulo, que busca primeiramente o ca-
minho tortuoso do conhecimento objetivo, especializado e prossional pela
via da história da losoa antes de arriscar alçar voos losócos amadores.
Livio Teixeira, em um texto de homenagem a Guéroult, evidenciava
a importância dos estudos de história da losoa para a emancipação da
losoa universitária no Brasil e o papel crucial de Guéroult nisso. Ele
reforça que a losoa acadêmica nascente necessitava superar o desajuste
cronológico cultural, oriundo das condições geográcas e econômicas do
país. Por ainda ser uma nação jovem, não existia uma troca e importação
cultural equilibrada com os países europeus. No Brasil, os temas losócos
e autores eram estudados pelo critério da novidade ou segundo sua utilida-
de, ainda sem o devido espírito crítico que caracteriza os estudos losócos
europeus. Então, à falta de densidade cultural do país, a formação histórica
forneceria os critérios para balizar as ideias no tempo e também ajudaria a
evitar os dogmatismos precoces e ensaios pouco rigorosos – supostamente
inerentes às relações pré-universitárias da losoa brasileira59. Essa discipli-
59 Sobre o diletantismo brasileiro, essa relação amadora de importação acrítica da cultura europeia, sem
163
na de estudo ampliaria o acervo cultural e ajudaria na relativização do peso
dogmáticos dos sistemas losócos:
Sobre esse ponto, estamos em uma situação diferente, poderíamos dizer,
de densidade cultural. Nossa atmosfera é como rarefeita. Há coisas essen-
ciais que nos fazem falta e que constituem a própria ambiência da cultura
europeia. No que toca à losoa, a presença da história é, sem dúvida, um
desses elementos, talvez o mais importante. Essa atmosfera de pensamen-
to histórico é solidária, naturalmente, da ecácia do espírito crítico que,
por sua só presença, limita os exageros, as distorções, a fatuidade, os im-
provisos e o diletantismo. Por outro lado, a própria riqueza e a variedade
do pensamento europeu reduzem as diversas orientações a uma sorte de
relatividade, a um balanço de conjunto de valores que estabelece o equilí-
brio do conjunto (Teixeira, 2003 [1964], p. 198).
Quando Teixeira descreve o cenário losóco brasileiro ao leitor fran-
cês, ele compara a realidade cultural brasileira com a europeia. A ausência de
uma cultura amadurecida gerava consequências no desenvolvimento da roti-
na prossional de estudos losócos no país: ainda faltava aos brasileiros essa
verve histórica que, ao fornecer um conhecimento perspectivo da tradição
losóca, abriria espaço para uma prática losóca crítica, balanceada, que
evitaria os perigos do amadorismo em matéria de losoa. Seja através dos
eternos recomeços, marcados pelos inuxos teóricos europeus, seja ainda em
razão de um projeto de nacionalização da losoa, em que se valoriza única e
exclusivamente a história e os problemas especícos ao Brasil, o que se devia
perseguir, para o catedrático uspiano, era o aprofundamento dos estudos e
da reexão losóca. Diferentemente das ciências em que essa cultura histó-
rica não é de todo necessária, para a losoa a história permanece essencial:
o ltro histórico necessário que baliza as ideias novas ao contexto e desenvolvimento histórico, Teixeira
escreve: “Quanto às importações culturais, o Brasil foi sempre uma terra fértil. Tudo o que chega
aqui desponta bem; há lugar para tudo. Livros que chegaram aqui quase ao acaso das comunicações
zeram que lósofos muito secundários na Europa tivessem sua chance no Brasil. Mas fossem lósofos
de valor secundário ou verdadeiramente lósofos importantes, houve um tempo em que a regra era
sobretudo citá-los por seu prestígio de autores consagrados. [...] Poder-se-ia, como ilustração, lembrar
a obra de Farias Brito, cujo centenário foi comemorado esse ano. É um exemplo de diletantismo
losóco. De sua obra se disse, com razão, que é um eterno recomeço, o comentário nunca terminado
das doutrinas losócas europeias do século XIX” (2003 [1968], p. 196).
164
para compreender aquilo que há de novo no pensamento losóco europeu
ou para estabelecer o novo na losoa, faz-se preciso reportar à história da
losoa. Nas palavras dele: “[...] a formação losóca exige uma formação
histórica” (Teixeira, 2003 [1968], p. 195).
E é dentro desse contexto e projeto de formação losóca que os tra-
balhos de Guéroult teriam muito a oferecer. Sabe-se que, na França, o histo-
riador francês era reconhecido por suas pesquisas históricas e losócas sobre
a história da losoa, desempenhando um papel importante no debate da
temática e no fortalecimento da gura do historiador-lósofo. Entretanto,
não havia espaço para essas reexões, tipicamente europeias, no contexto bra-
sileiro, tamanha era a falta de perspectiva histórica e cultural do país. Antes
de discutir os problemas histórico-historiográcos e histórico-losócos re-
lativos ao trabalho do historiador da losoa, os ensinamentos de Guéroult
e a história da losoa precisavam ser utilizados propedeuticamente para ad-
quirir o senso histórico e cultivar, simultaneamente, uma disciplina de pensa-
mento que nos aproximasse às práticas culturais europeia. Como diz Teixeira:
“[...] nosso problema, pois, não é tanto saber como a losoa pode se portar
diante de sua própria história, mas de conhecer melhor a própria história da
losoa e ter curso a ela a um elemento de alguma forma pedagógico para
nossa formação losóca” (2003 [1964], p. 198).
No que diz respeito ao conhecimento da própria história da losoa,
Teixeira armava que o francês marcou a forma de ensiná-la e estudá-la na
USP60, sendo precursor de uma metodologia conhecida pela busca de uma
relação objetiva com a história da losoa. Por mais que seja difícil ascender
à objetividade quando o assunto é história da losoa, Guéroult mostra que
o “[...] historiador deve permanecer el ao lósofo que ele estuda” (Teixeira,
2003 [1964], p. 199). Em contraste aos historiadores da losoa para os
quais os estudos históricos devem ser feitos a partir das determinações so-
ciais do pensamento losóco, e que só isso pode ser chamado de história,
Guéroult oferece, ao estudante brasileiro, um modo de estudo da história da
losoa pela exatidão da estrutura do pensamento do lósofo. Somente a
60 Guéroult foi professor contratado da cadeira de História da Filosoa, entre 15/07 e 31/12/1948,
e professor visitante da mesma cadeira, de 01/08 a 30/11/1949. Já no segundo semestre de 1951,
Guéroult visita a USP, ministrando duas séries de aulas: uma sobre os pré-socráticos, para o 1º ano
de Filosoa, outra sobre Leibniz, para o 2º ano (Marques, 2007, p. 15-16).
165
partir dos textos e do seu real losóco, e não de seu contexto, que o historia-
dor da losoa permite uma verdadeira compreensão do pensamento losó-
co. Para Guéroult, as losoas são como “[...] monumentos arquitetônicos,
cujo material são as ideias, mas que não chegam a serem losoas senão por
sua efetiva demonstração” (Teixeira, 2003 [1964], p. 199). Sendo assim, sua
abordagem histórica prevê que, para entender as ideias losócas, só percor-
rendo o mesmo caminho, as razões e suas ordens tal como sugere o próprio
lósofo, razões e ordens que são instituídas pelo método demonstrativo de
cada sistema losóco. O que Guéroult propaga é um método de restituição
histórico-losóca através da identicação do caráter lógico e arquitetônico,
teórico e artístico de cada losoa:
Nessa ordem de ideais, temos o prazer de testemunhar nosso reconheci-
mento ao Sr. Martial Guéroult que quis por bem aceitar, há alguns anos,
o convite da Faculdade de Filosoa da Universidade de São Paulo, para
ocupar a cadeira de história da Filosoa. Seus cursos sobre a historiograa
da história da losoa, sobre Descartes, Kant e Leibniz marcaram pro-
fundamente o ensino de história da losoa entre nós. Ele nos mostrou
de uma forma magistral como se deve analisar os textos investigando a
estrutura de uma obra e o método demonstrativo de que serve o lósofo.
(Teixeira, 2003 [1964], p. 200).
Além das lições de um fazer histórico-losóco que mantém essa
objetividade na interpretação do sistema losóco, Teixeira quer destacar,
principalmente, a questão formativa envolvida nessas práticas e como elas
se tornaram pertinentes à realidade brasileira, porque ajudaram a discipli-
nar os impulsos diletantes, loneísta e nacionalistas de losoa no país. Não
obstante, na França, a discussão metodológica de história da losoa – em-
basada no estudo e nas descobertas dos manuscritos, na tradução dos ori-
ginais, na metodologia de leitura e interpretação dos sistemas – ocorresse
concomitantemente à discussão de losoa da história da losoa, no Brasil,
o método histórico de Guéroult funcionaria como estratégia pedagógica de
formação intelectual. Sua proposta de emancipar da losoa prossional bra-
sileira convergia na adoção de um antídoto: o rigor metodológico da leitura
e explicação estruturalista dos textos clássicos. O primeiro e único passo para
a losoa futura brasileira só poderia ser a história da losoa, uma vez que
166
a procura da objetividade e a restituição da estrutura dos sistemas losócos
consistiriam em um convite à disciplina de pensamento que tanto nos falta:
Para lá da importância dos trabalhos do M. Guéroult para a renovação
dos estudos da história da losoa na Europa, eles têm para nós no Brasil,
uma signicação a mais: o método histórico dele é um convite à disciplina
do pensamento losóco, que com tanta frequência nos faz falta. Poder-se-á
adquirir esta disciplina justamente pelo esforço que consiste em veri-
car rigorosamente nos grandes sistemas losócos, o que é a “ordem das
razões”. E para corrigir as pretensões nacionalistas que surgem presente-
mente no Brasil, é preciso nos recordemos, ainda uma vez, que a história
da losoa é a condição da própria losoa (Teixeira, 2003 [1964], p.
200 – grifos nossos).
Nesse contexto de formação, a recepção brasileira de Guéroult fez pos-
sível uma distinção entre o comentador e o teórico da história da losoa,
prevalecendo o primeiro em relação ao segundo. No entanto, não há nos
pressupostos e práticas do historiador da losoa francês uma condição estri-
tamente didática do fazer histórico, e sim o ofício do historiador da losoa,
cujo equilíbrio losóco e cientíco o qualicam. Os estudos de Marques são
reveladores dessa condição do historiador-lósofo e são importantes para des-
tacar aquilo que, de fato, foi importado dessa herança historiográca e quais
eram os objetivos e projeto de formação com base na história da losoa.
Sobre isso, destaca-se um texto do autor que, ao retomar os escritos de Lívio
Teixeira (o mesmo que até agora acompanhamos), mostra a adequação das
lições de Guéroult ao solo brasileiro:
Embora tais palavras [de Lívio Teixeira] tivessem sido publicadas num livro
em homenagem a Guéroult, ao enfatizar o papel formador da história da
losoa (e, pois, o de quem com ela se ocupava), pondo de lado o viés
especulativo com o qual se lhe quisesse considerar, tais palavras distinguem
implicitamente entre um Guéroult-comentador e um Guéroult-teórico da
história e da historiograa da losoa, optando claramente pelo primeiro,
cujos trabalhos, assim, concorriam em prol de nossa formação. Mas a argu-
mentação em favor de uma história da losoa propedeuticamente estabe-
lecida é estranha e oposta à de Guéroult. Nem atenção curricular provisó-
ria, nem recurso metodológico à mão, mas interdependência radical, fato
167
inconteste cuja legitimidade se trata de estabelecer. Se se nota em Guéroult
a diferenciação entre o historiador da losoa e o lósofo, tal não anula
nem sequer enfraquece a intimidade entre história (da losoa) e losoa,
cristalizada na expressão “historiadores-lósofos”. (Marques, 2013, p. 89).
Essa distinção entre um Guéroult-comentador e um Guéroult-teórico
permite perceber não só o funcionamento propedêutico da história da lo-
soa, mas também a relação a ser estabelecida com a história da losoa, isto
é, de uma relação técnica de comentário. O que mais importava era o aspecto
cientíco e metodológico das lições de Guéroult para realizar uma leitura
objetiva dos clássicos, de modo a preservar a autonomia das doutrinas losó-
cas e a anterioridade de direito do discurso losóco em relação a qualquer
outro discurso, guardando a própria a instauração de um universo próprio a
cada losoa, ao qual tudo se reduz e ao qual prevalece uma indissolubilidade
entre lógica e doutrina.
Aos ensinamentos técnicos de Guéroult61 – sobre os quais é preciso
sempre lembrar a importância modelar de sua obra Descartes selon l’ordre des
raison62,– foram adicionadas as lições de Goldschmidt. Tendo retornado em
1961 da França ao Brasil, onde havia dado início à sua tese de doutorado,
Porchat começa a lecionar no Departamento de Filosoa da USP. Ele que se
considerava na época “um estruturalista de carteirinha” (Nobre; Rego, 2000,
61 O professor Gianotti presenciou o curso de Guéroult sobre Leibniz, curso este que, segundo seu
depoimento, o encantou e o iniciou na grande história da losoa e nos subsequentes problemas
técnicos envolvidos nas análises de textos. “No mesmo ano, conheci Martial Guéroult, que, na
qualidade de professor visitante, nos ensinava Leibniz. Era a descoberta da grande História da
Filosoa, dos problemas técnicos da análise de texto, enm, de toda problemática que predominou
no Departamento dos anos 60”. (Gianotti, 1974, p. 27). Em outra entrevista, aos professores
Marcos Nobre e José Marcio Rego, Gianotti relembra a importância do contato, agora na França,
com ambos os historiadores da losoa: “em 1956 – consegui uma bolsa da Capes para ir à França,
onde fui estudar com Granger, em Rennes. Lá passei o primeiro ano escolar, tive o imenso privilégio
de conhecer Victor Goldschmidt, e comecei a praticar, na linha de Martial Guéroult, uma história
da losoa que me distinguiria claramente do núcleo dominante da losoa francesa da época,
mergulhada no existencialismo” (Nobre; Rego, 2000, p. 93).
62 Segundo Arantes, esse livro de Guéroult foi considerado a “bíblia daqueles tempos” (1994, p. 119).
Com ele, “admitíamos não só que Descartes sabia e muito bem o que queria dizer, mas que esse
pensamento não variaria e que era possível aproximar-se dessa verdade que Descartes pensara explicitar
na forma de razões e movimentos argumentativos bem encadeados” (Arantes, 1994, p. 119).
168
p. 122), traduz, em 1963, a obra Religião de Platão, de Goldschmidt e, junto
dela, em apêndice, o texto Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos
sistemas losócos (Goldschmidt, 1970 [1953]) do mesmo autor. No prefácio
da obra, Porchat esclarece que a conferência de Goldschmidt e o artigo de
Guéroult, O problema da legitimidade da história da losoa (Guéroult, 1968
[1958]), eram paradigmáticos para a formação a se estabelecer na USP, por-
que representavam “[...] os dois momentos mais altos da metodologia cientí-
ca em história da losoa” (Pereira, 1970 [1963], p. 21).
Na mesma época em que Lívio Teixeira homenageia a importância de
Guéroult, o jovem professor Porchat reforçava o elogio e trazia, ao público
brasileiro – em especial aos estudantes do Departamento de Filosoa –, um
receituário metodológico do seu mestre, que também foi mestre de todos os
jovens professores colegas de departamento em Rennes63. Aliás, os elogios a
Goldschmidt e às suas práticas histórico-losócas não são nada modestos e re-
forçam o cenário promissor e moderno que se projetava aos estudos losócos
da USP. Os estudantes e professores de losoa brasileiros teriam acesso ao tra-
balho e às reexões de um dos “[...] maiores historiadores de losoa de nosso
tempo” (Pereira, 1970 [1963], p. 6), alguém cujos trabalhos sobre Platão serão,
no futuro, reconhecidos por marcar duas grandes etapas: “[...] antes e depois de
Goldschmidt” (Pereira, 1970 [1963], p. 6). O grande mérito de Goldschmidt,
continua Porchat, é fazer da história da losoa uma “ciência rigorosa”, cujas
regras metodológicas “[...] permitem alcançar, na exposição e interpretação dos
sistemas losócos, uma real objetividade” (Pereira, 1970, p. 7).
A partir da leitura estrutural não só se evitam as distorções de leitores
pretensamente críticos que não respeitam a objetividade e o percurso meto-
dológico do autor e estrutura da obra, como também se escapa das tentati-
vas “históricas” de explicação dos sistemas. Por mais que seja ambiguamente
enquadrado, como lembra o jovem professor – nos estudos de história da
losoa, o método estrutural se opõe às abordagens genéticas e evolutivas do
63 Ao evocar suas memórias da época de Maria Antônia, Prado Jr destaca o percurso de formação dos
jovens professores: “De fato, os jovens professores da década de 60 (Gianotti, Porchat, Ruy Fausto e
eu mesmo) passamos todos por Rennes, onde fomos alunos de Victor Goldschmidt – mas também
de Gilles-Gaston Granger” (Prado Jr, 1988, p. 66). As memórias desses professores sobre a passagem
em Rennes e outros elementos de formação estão também presentes no livro Conversa com lósofos
brasileiros (2000), organizado por Marcos Nobre e José Marcio Rego.
169
pensamento, segundo as quais as causas explicativas dos sistemas ou vão evo-
luindo em direção à verdade, como em um romance, no decorrer do tempo
histórico ou são resultadas de fatores externos, econômicos, políticos e psico-
lógicos do autor, da vida do lósofo, as intuições primárias, etc.. Armar que
a losoa se constitui em história e almejar explicar um sistema losóco em
relação a ela já é assumir uma posição losóca explícita, e abandonar “[...]
a isenção necessária à exposição interpretativa rigorosa, já é tomar – mas há
quem não veja – uma posição losóca bem precisa e determinada” (Pereira,
1970, p. 9). Ainda que seja possível considerar que toda losoa tenha como
início uma intuição germinal, ou mesmo que o lósofo se encontre em deter-
minado contexto histórico, etc., esses fatores prévios e externos são digeridos
e desenvolvidos nas razões explícitas pelos lósofos e na progressão lógico-
-metodológica inerente ao sistema losóco. Ora, o que existe é uma “[...]
solidariedade estrutural entre as teses e os movimentos dos pensamentos que
nelas culminam” (Pereira, 1970, p. 9). Assim, a defesa do método estrutural
passa pelo oferecimento de recursos para interpretar os sistemas conforme a
intenção do autor, do ponto de vista da verdade formal de sua doutrina e à
luz do tempo lógico e da estrutura que lhes são inerentes.
Quando Goldschmidt escreveu sobre a prática do método estrutural,
opondo uma diferença entre o lógico e o genético, ele mantém vivo um de-
bate histórico-losóco presente no cenário francês – aquela polêmica que
nos lembra Lívio Teixeira. Porém, o que se observa é a anulação do conito
entre os diferentes estudos historiográcos, a m de armar uma prática me-
todológica de trabalho, cujo valor não é somente a objetividade da leitura,
mas também a disciplina intelectual ofertada. O método estrutural é um
convite disciplinar e formativo a uma atitude, própria a quem não pretende
julgar um autor, e sim compreendê-lo. Isso porque o método “[...] exige um
esforço penetrante, uma rigorosa disciplina intelectual, a ausência de todo
preconceito e dogmatismo. Exige que o intérprete se faça discípulo – ainda
que provisoriamente – e discípulo el” (Pereira, 1970, p. 7). Ora, ca mui-
to forte nessa posição, assim como estava em Lívio Teixeira, que o método
estrutural representava mais do que uma ferramenta exegética, ele consistia
em uma disciplina e experiência formativa de caráter técnico e cientíco de
estudar e se relacionar com a losoa.
170
Os elogios aos ensinamentos de Goldschmidt marcaram o tom disci-
plinar das práticas de ensinar e aprender losoa do jovem professor Porchat
na década de 1960 – como ele mesmo, décadas depois, relembrou em sua fa-
mosa conferência aos estudantes de losoa da USP (Pereira, 1999). Mas sua
autocrítica não esconde os benefícios do estruturalismo à formação losóca,
uma vez que, segundo o autor, “[...] em um sentido muito particular, sou
estruturalista até hoje: penso que o método estruturalista é o melhor método
para uma primeira leitura de um pensador, para se descobrir a lógica interna
das razões, a estrutura da obra. Trata-se tão somente de um instrumento de
trabalho, um instrumento para pensar” (Nobre; Rego, 2000, p. 122). Para
ele, o trabalho técnico de reconstruir uma doutrina segundo às ordens das
razões, prevalecendo um esquecimento metodológico de si próprio, é um
primeiro passo indispensável ao estudo não-dogmático do autor:
Os nomes de nossos grandes professores franceses, de Martial Guéroult
e, em particular, do meu saudoso e amado mestre Victor Goldschmidt,
são de todos vocês conhecidos e nunca é demais renovar-lhes o preito de
nossa gratidão. Eles nos ensinaram o rigor metodológico na leitura, mos-
traram-nos como tentar reconstruir uma doutrina ad mentem auctoris.
Permitam-me dizer-lhes. Um primeiro passo indispensável e preliminar a
toda análise comparativa, a todo esforço de compreensão mais global, a
uma interpretação posterior mais geral de uma obra que permita relacio-
ná-la com seu contexto cultural, político, econômico, e que propicie sua
inserção numa perspectiva mais propriamente histórica. Nesse trabalho de
refazer os movimentos losócos que estruturam uma losoa particular,
de apreender sua lógica interna, impõe-se seguramente a necessidade me-
todológica de deixar de lado todas as posições pessoais, os pontos de vistas
losócos que eventualmente se tenham, faz-se mister o esquecimento me-
todológico de si próprio (Pereira, 1999, p. 132 – grifos nosso).
Não obstante as críticas à excessiva unilateralidade do método, Porchat
não deixa de reconhecer o valoroso benefício formativo e pedagógico do mé-
todo estrutural como primeira leitura, como um primeiro passo para o loso-
far. O texto acima, que faz parte de sua participação, em 1998, do encontro
de graduação da USP, foi muito utilizado para contestar o rigor disciplinar
do ensino da história da losoa como caminho único de formação losóca.
171
Porém, não só nesse texto, como na entrevista a Nobre e Rego (2000), ele
evidencia o papel formativo da história da losoa. Aliás, quase duas décadas
depois, em sua última conferência, também aos estudantes da USP, Porchat
destaca que foi muito, por vezes, mal compreendido pelos estudantes. Em ne-
nhum momento, ele apagou a importância da história da losoa nos proces-
sos formativos. Mesmo sendo cético, ele continua a considerar o esforço prope-
dêutico nessa empreitada de decifração da genialidade dos sistemas losócos:
Naquele discurso de 1998, z a crítica do fato de a quase totalidade dos
cursos deste Departamento se ocuparem tão somente da história da lo-
soa. [...] Os estudantes de então gostaram dessa parte de meu discurso e
difundiram por todo o país. Nas muitas conferências que, posteriormente,
eu z em muitíssimas cidades, veriquei que as plateias estudantis tinham
conhecimento daquele texto. Mas veriquei também que eles pareciam
não levar em consideração uma parte importante daquele discurso. Porque
eu também defendera a necessidade de um estudo sério dos grandes auto-
res da história da losoa. Até hoje, sendo embora um cético, penso que
a leitura dos grandes autores representa um fato de maior importância
na formação losóca dos estudantes. Porque é com eles, esforçando-nos
por decifrar sua genialidade criadora, que aprendemos a pensar com pro-
fundidade, a organizar adequadamente nosso uso de conceitos losócos.
(Pereira, 2016, p. 8).
Por essa razão, de acordo com Canhada, mesmo com as críticas aos
limites do método estrutural, ele não rompe com as práticas do comentador
e sua expectativa innita de claricação dos textos losócos, condição esta
que confere “[...] ao trabalho do comentador uma forte tendência à autono-
mização” (2017, p. 21). As práticas de Porchat contribuíram para o estabe-
lecimento de uma larga antessala da prática losóca: ao invés de se denir
diferentes modos de losofar, detém-se na denição e compreensão de dife-
rentes modos de se entrar na losoa.
O caso é que a vigência de uma diretriz de formação estritamente his-
tórica, cujo rigor metodológico o convívio com Goldschmidt e Guéroult,
tornou o ensino da história da losoa a principal e exclusiva estratégia for-
mativa da USP. Não havia outras possibilidades de formar losocamente os
futuros quadros da losoa brasileira, sem manter as precauções da disciplina
172
do comentador. Essa relação exemplar e formativa é ressaltada também pelos
outros professores que integravam o quadro da década de 1960. Ainda que,
anos depois, tenham sido realizados balanços críticos em relação à exclusivi-
dade irrestrita dessa diretriz formativa, prevaleceu – propagando-se até hoje
no imaginário losóco brasileiro – uma defesa do rigor e da importância
metodológica do estruturalismo; como primeira leitura dos textos, ou, em
caráter mais genérico, como uma formação acadêmica que valeu a pena, à
época, justamente pelo padrão internacional de estudos que foi impresso, em
contraste aquilo que ocorria no Brasil.
Retomando suas memórias, Bento Prado Jr (1988) assinala o acertado
projeto e destaca o importante papel do treinamento escolar da análise de texto:
É certo, ainda, que o privilégio da análise estrutural dos textos clássicos
nos parecia instrumento pedagógico essencial (opinião, aliás, que até agora
me parece sensata). Mais ainda, é incontestável que essa escolha técnica
estava ligada a uma interpretação realista da situação brasileira da losoa,
bem como a um projeto pedagógico-crítico geral a ela adequado [...] O
treinamento escolar da análise de texto aparecia espontaneamente, não
só como instrumento de ascese, mas também como arma de combate à
geleia ideológica dominante no país (Prado Jr, 1988, p. 66-67).
A análise estrutural dos textos clássicos tornou-se um instrumento de
ascese, fruto de um projeto pedagógico, que se mostrava contrário às expe-
riências e atividades losócas existentes no país. Arthur Gianotti relembra
também o valor de ascese do método. Para ele, o projeto pedagógico da USP
serviu para nos afastar dos ingênuos estudos positivista e marxista que reina-
vam antes da prossionalização universitária dos estudos losócos.
O método, o estruturalismo ou como se queira chamá-lo, serviu-nos
antes de tudo para pôr em xeque o historicismo vigente entre nós nos
anos 1950. Imperava um positivismo tão entranhado, que nem mesmo
se lembrava dos três estados de Comte, enquanto o marxismo da Terceira
Internacional pensava a história como um varal em que se põem os acon-
tecimentos (Gianotti, 2005, p. 115).
O autor relembra esse legado fundamental do estruturalismo em entre-
vista à Maria Cecília Loschiavo dos Santos. Para ele, o estruturalismo, isto é
173
“[...] a interpretação da losoa como um sistema fechado, o losofar como
uma relojoaria” (Santos, 1988, p. 48), foi o principal legado da geração dele,
e, mesmo acreditando que ele já não mantém essa relação com a história da
losoa, não deixa de considerar como um primeiro momento de leitura dos
textos losócos. Em suas palavras, “[...] não condenando o estruturalismo,
mas o considero uma etapa primeira na leitura do texto. Atualmente tenho
uma relação com a história da losoa muito diferente daquela dos anos 60”
(Santos, 1988, p. 48).
Todos esses depoimentos e análises dos principais professores, que
compunham o jovem Departamento de Filosoa na USP na década de 1960,
criaram, por um lado, uma narrativa de pertencimento institucional e lo-
sóco de autolegitimação. A ideia de um método ou uma rotina coletiva e
propedêutica de estudos losócos faz nascer uma força auto-legitimadora
que desidentica os agentes participantes e os exime de questionamentos pré-
vios (Canhada, 2017, p. 23). Defender a história da losoa como caminho,
fazer menção aos patronos Guéroult e Goldschmidt e aos efeitos pedagógicos
e proláticos do método estrutural e, enm, referenciar o rigor das práticas
de leitura e comentário de textos losócos estabelecidos na USP servem
para criar uma autolegitimação de suas práticas, de modo a produzir um
sentimento de pertencimento institucional e losóco. Fala-se em nome de
um grupo, cuja força coletiva ultrapassa as diferenças pessoais e permite, por
exemplo, a defesa genérica dessa rotina formativa, como se não fosse necessá-
rio mostrar ou tensionar outras possibilidades.
Por outro lado, essa força coletiva familiar marca o começo de uma
nova era no país, estabelecendo o marco zero e o modelo da verdadeira expe-
riência losóca brasileira. À luz da imagem do progresso e da modernização
do destino da losoa nacional, todas as experiências que não participam
desse processo progressivo da história acabam por ser excluídas, vistas como
fora do tempo, e deixam de ser consideradas como losócas. Em outras
palavras, a experiência losóca como disciplina acadêmica e prossional
torna-se a única possibilidade que resta à losoa na contemporaneidade.
Essa narrativa de nascimento da losoa no Brasil foi captada e reforçada por
Arantes (1994). O uso de conceitos como virtudes civilizatórias, novo limiar,
estabelecem uma distinção entre duas eras losócas no país.
174
Em entrevista à Marcos Nobre e José Rego, Arantes arma, por exem-
plo, que foi essa disciplina cinzenta do método que ofereceu condições de
poder se falar de uma losoa brasileira, no sentido acadêmico. De acordo
com ele, só essa “[...] colonização necessária” (Nobre; Rego, 2000, p. 351)
permitiria que os participantes da losoa universitária se desvinculassem do
que ocorria nas Faculdades de Direito e nos círculos amadores do país. Só
com o transplante colonial que se foi possível criar um corpus de acadêmi-
co – que não se apresenta como um conjunto de obras originais de lósofos
brasileiros, mas um movimento coletivo, uma rotina intelectual e prossional
com a losoa, responsável por gerar um “[...] repertório de referências bi-
bliográcas, temas a serem estudados, de maneiras de se fazer teses, de se dar
aulas e assim por diante”. (Nobre; Rego, 2000, p. 351). Assim, ainda que se
considere o estilo individual de cada um à procura de assunto, o que se ini-
ciou foi uma rotina coletiva no que se refere aos procedimentos básicos, que
teve como parte inicial um transplante objetivo de técnicas intelectuais fran-
cesas que implementou, não um corpo doutrinário, mas um “[...] conjunto
de métodos e técnicas intelectuais cristalizado na tradicionalíssima cultura
losóca universitária francesa”. (Arantes, 1996, p. 273).
Na realidade, esse é o ponto de Paulo Arantes. Por mais que ele mos-
tre a liação histórica de Guéroult, Goldschmidt e Maugüé, o que ele quer
demonstrar, a partir de suas críticas, consiste no renascimento da losoa em
São Paulo como especialidade universitária, um processo objetivo de constru-
ção de uma relação prossional com a losoa. Trata-se de uma adaptação da
modernização brasileira às regras do jogo internacional da losoa acadêmica,
uma oposição à losoa praticada em círculos amadores ou em faculdades, cuja
especialidade central não é a formação de bacharéis e licenciandos em losoa.
Desde então, a losoa só pode ser encarada como “[...] coisa de prossional,
matéria que se ensina e aprende em colégio” (Arantes, 1996, p. 273).
Apesar de todas suas críticas a essa losoa prossional, de “[...] fun-
cionários medíocres, explicadores de textos, assimiladores de textos, de costa
para o país” (Nobre; Rego, 2000, p. 353), essa se tornou a condição sob a
qual losoa pode existir nos dias de hoje nas acadêmicas brasileiras. Esse é o
único lugar em que ela, modernamente, poderia funcionar. Desde a invenção
da losoa universitária nos países europeus, a “[...] cultura losóca para
175
funcionar tem que viver no circuito fechado de uma instituição especializada
(Arantes, 1996, p. 273). Enquanto disciplina universitária, a losoa adquire
uma emancipação, não só disciplinar – que a separa das outras ciências e
disciplinas – mas também passa a funcionar somente dentro das institui-
ções universitárias e escolares, assumindo a forma de um saber especializado,
técnico. Assim, a vida losóca em São Paulo se iniciaria “[...] por onde os
europeus terminavam, pela losoa universitária” (Arantes, 1994, p. 21), a
qual, enquanto especialidade universitária condiciona a experiência losóca
a uma relação disciplinar autocentrada, saber técnico que transforma “[...] o
único assunto da losoa na própria losoa”. Doravante, “[...] só poderá
ser considerado lósofo prossional, isto é, lósofo propriamente dito, quem
cuida da losoa” (Arantes, 1996, p. 33).
Essa narrativa evidencia como no Brasil ocorreu uma inversão daqui-
lo que acontecia na Europa: a escola e a universidade precederam e condi-
cionaram a experiência e a emergência do pensamento losóco no Brasil.
Contemporaneamente, quem reforça essa narrativa de Arantes sobre a USP e
o nascimento da verdadeira experiência de losoa no país e a estende como
um fenômeno nacional é a pesquisa de Ivan Domingues (2017). O conceito
chave que permite a transmutação daquilo que ocorre na USP e a losoa
universitária no Brasil é o conceito de scholar, alma dos novos tempos da
atividade losóca.
De proveniência do vocábulo erudito, de tradução scholar pelos ingle-
ses, um tipo intelectual comum ao campo das humanidades, e sob inuência
do expert egresso da ciência, o scholar é um especialista em losoa, possui
uma dedicação prossional à matéria e se contrapõe ao autodidata e diletante
– “[...] egressos do direito e marcados pelo bacharelismo, que trocaram a lógica
pela retórica e argumentação técnica circunspecta pelo oreio e o deslumbra-
mento”, cuja conduta pode dar lugar, então, ao improviso e incompetência
(Domingues, 2017, p. 361). Mais do que experiências individuais, entende-se
que a gura do scholar deve ser entendida como fenômeno resultado de expe-
riências históricas bem datadas em relação ao ethos e a conduta de indivíduos –
um gradiente com linhas de continuidade que marcam grupos de coletividades
(Domingues, 2017, p. 42). O scholar já se tornou comum nos grandes centros:
trata-se, de um lado, do professor universitário e pesquisador de losoa; e de
176
outro, o discípulo-iniciado e o estudante-aprendiz espalhados pelas universida-
des, “[...] pois a aprendizagem da losoa hoje se dá nos bancos das instituições
a ela consagradas, culminando com as orientações de doutorado e seguindo
depois com as lealdades clânicas mesmo tribais” (Domingues, 2015, p. 379).
A losoa que antes era ensinada e praticada na praça pública, nos salões e no
torneio retórico-religioso vem habitar a universidade.
Para Domingues (2017), só se faz possível falar e defender uma losoa
brasileira, ou como ele prefere, a existência de uma losoa no Brasil a partir
da instauração do aparato institucional e das práticas acadêmico-prossionais.
Diferentemente da experiência pré-universitária, só a losoa acadêmica pôde
dar curso e continuidade a uma experiência intelectual estável, estabelecendo
autores (professores universitários), obras (livros, teses, dissertações e artigos)
e um público-consumidor. Na década de 1930 a 1960, a implementação das
condições institucionais da losoa acadêmica é protagonizada pela USP e o
governo de São Paulo. Em 1968, a Reforma Universitária outorgou uma mu-
dança profunda no sistema superior de ensino brasileiro, tendo como efeito
institucional a massicação da universidade e do intelectual. A experiência
universitária e o ofício do intelectual, que eram coisa apenas para elites e, con-
sequentemente, para poucos, será massicada através do modelo do tayloris-
mo e da indústria, protagonizado pela universidade de massa, acarretando o
taylorismo acadêmico e levando ao produtivismo. Isso só será possível através
do protagonismo do sistema de universidades federais e tendo como agências
coligadas a Capes e o CNPq, agências fundamentais na criação do sistema de
pós-graduação e do aparato institucional de pesquisa, ao exemplo dos dispositi-
vos, editais, nanciamentos de projetos e formação de pesquisadores. E o perl
intelectual que se estabelece no Brasil é justamente o do scholar:
[...] ao perguntar pelo tipo de intelectual que prevaleceu nesses últimos
cinquenta anos, quando o ensino e a pesquisa nalmente se prossiona-
lizaram entre nós e atingiram o mesmo padrão técnico da Europa e dos
Estados Unidos, é justamente o surgimento e a consolidação do scholar em
seus dois tempos fortes: em São Paulo inicialmente, na esteira da Missão
Francesa e por muito tempo restrito à USP, conhecido como uspiano, e
depois generalizando-se aos quatro cantos do país, por obra do SNPG e
graças ao protagonismo da Capes (Domingues, 2017, p. 452).
177
Para nós, o trabalho de Domingues (2017) reforça e expande a moral
implementada pela instauração da experiência losóca como prática univer-
sitária. Essa narrativa tem a potência de se tornar uma moral, cujas palavras
de ordem reforçam uma série de valores, pressupostos e práticas acadêmicas
que, segundo ele, permanece a mesma no mundo inteiro: a atividade losó-
ca “[...] se efetuará com os mesmos cacoetes e os mesmos dispositivos técni-
cos encontrados nos quatro cantos do mundo, abarcando epistemólogos, os
metafísicos, os exegetas e os historiadores, etc., e fazendo losoa um métier
universal” (Domingues, 2017, p. 484). No entanto, assim como os professo-
res da USP na década de 1960 e Paulo Arantes, Domingues (2017) não deixa
de problematizar os limites da experiência losóca patrocinada pelo scholar.
Este tem uma prática com a losoa ensimesmada, vive, de certa forma, alie-
nado do mundo, uma vez que suas ações e inuências não costumam ultra-
passar os muros da academia ou mesmo sua própria expertise. O scholar não
é capaz de alçar grandes voos na losoa. Mesmo assim, ele é importante para
a criação de uma linha de continuidade, uma relação técnica com a losoa.
Sem escala não há massa crítica, e é do aumento da quantidade que pode
sair o aumento da qualidade. Por essa razão, é esse prossional, cujo trabalho
rotineiro e anônimo, e a massicação de sua prática nos quatro cantos do país
que fornecem condições para existir uma losoa autoral brasileira, tal como
existe nos grandes centros da Europa e nos Estados Unidos:
Certamente, o virtuose erudito e o seu sucedâneo – o scholar, fusão do
erudito de humanidades e do especialista das ciências – não são capazes
de alçar grandes voos e elevar a losoa a cimos mais altos, mas o que eles
fazem é losoa e é ele quem pavimenta o caminho. Quanto ao mais, é a
partir de uma losoa mais rasa e mais técnica, em linha de continuidade
e vincada numa tradição, que será possível um dia a alguém entre nós,
com a tecnhe requerida, ousar mais e dar o ansiado grande salto, impri-
mindo em sua obra o selo de originalidade. (Domingues, 2017, p. 470).
Nesse sentido, Domingues (2017) reforça essa visão unilateral da expe-
riência losóca, que encontra na gura do scholar especializado a condição
de continuidade necessária para outorgar a existência de uma Filosoa no
Brasil. A essa tese podemos nos referir como um otimismo institucional: a
ideia de que a Filosoa acadêmica brasileira está no caminho certo, uma vez
178
que, pouco a pouco, nos aproximamos do fazer losóco dos grandes centros
europeus e norte-americanos. Esse otimismo institucional se funda em três
fatores, tal como descreve Cabrera: “[...] criação de um público losóco,
a boa qualidade das Pós-Graduações e o signicativo aumento do número
de boas traduções e obras losócas” (2013, p. 38-39). Reforça-se, assim, o
pressuposto de que a existência de um losofar legitimamente nosso só será
alcançado a partir da criação de uma comunidade de estudiosos de textos, tal
como existe no âmbito internacional. Acredita-se que só com a instauração
do aparato institucional, de um preparo sociocultural que conte com a pre-
sença de bons comentadores e conhecedores de losoa, estabelecendo uma
cultura de papers e livros, que se pode vislumbrar um losofar futuro.
No entanto, enquanto a comunidade losóca local ainda espera por
um legítimo lósofo, é esse otimismo institucional que não só continua a
apagar o período pré-universitário da losoa brasileira, jogando para de-
baixo do tapete uma série de experiências losócas legítimas e excluídas no
cenário acadêmico atual, mas também reforça, contemporaneamente, uma
narrativa de disciplinamento, de caminho natural ao aprendizado losóco,
que continua a excluir outras possibilidades de experiências com a losoa,
de ensinar e de aprendê-la, para além do instaurado modelo do expert e do
scholar. Diferentemente daqueles que debatem esse problema pela ótica da
losoa brasileira64, nosso objetivo não é questionar quais experiências lo-
sócas essa história ocial excluiu no passado, mas quais são as experiências
losócas que essa narrativa ocial continua a excluir ao fundamentar uma
prática de ensinar, aprender e fazer losoa na contemporaneidade, como
isso impacta na política de formação da licenciatura e, consequentemente, no
professor de losoa que seremos.
Para nós que somos formados na UNESP, seja pelo nosso vínculo his-
tórico com a USP, seja pela centralidade que o ensino de losoa tem na
história da losoa, a narrativa uspiana se transforma em uma herança de
formação e se fortalece como uma moral: a formação losóca só se faz pos-
sível a partir de uma longa trajetória de disciplinamento na história da loso-
a e práticas de leitura e comentário de textos. Qualquer questionamento a
64 Nessa direção, destacamos os livros de Margutti (2013; 2020), as críticas de Cabrera (2013) e o
próprio trabalho de Canhada (2017).
179
essa disciplina formativa, mesmo nos dias de hoje, caminha à contramão de
um suposto progresso e modernização da experiência de ensinar e aprender
losoa na universidade. Ao contrário da tradição losóca, que costuma
manter adversários, opositores, essa narrativa permite, a partir da ideia de
inauguração de uma verdadeira losoa, o apagamento de tudo aquilo que
era e que pode ser diferente da rotina e dos pressupostos marcados pela pro-
ssionalização da losoa. A qualicação do diferente como diletante, ama-
dor, ingênuo, ultrapassado, e, fundamentalmente, não losóco em oposição
a uma prática cientíca rigorosa e moderna, estabelece, moralmente, uma
forma única de se ensinar, aprender e pesquisar losoa.
A força dessa narrativa e dessas imposições morais são tão grande que
não só os professores do curso de Filosoa da UNESP, como nossas pesqui-
sas do ENFILO, para resistir às relações hegemônicas de ensinar e aprender
losoa como história da losoa e uma prática exclusiva de comentário de
textos, precisam remeter a essa tradição e criticar, paralelamente, o método
estrutural. Mas não podemos nos enganar quanto a isso, o método estrutural,
as guras de Guéroult e Goldschmidt, em razão das relações de saber e poder
vigentes na USP, não foi implementada como metodologia que se repete até
os dias de hoje, com poucas modicações. Ou seja, não podemos armar que
aquilo que se faz na UNESP representa uma continuidade com os pressupos-
tos historiográcos dos franceses.
A historicidade e a tradicionalidade da USP, a ideia de que os estudos
da história da losoa, como explicação e comentário de textos clássicos con-
siste no único caminho para o losofar futuro no Brasil, funcionam como
signos, cujas forças nos remetem a uma moral que cristaliza nossa maneira de
ensinar e aprender losoa na contemporaneidade, e que pode ser expressa
pelas críticas do prof. Trajano ao fenômeno nacional do comentarismo.
Assim, acreditamos que para entender as heranças de formação que se
capilarizam em nossa licenciatura em Filosoa na UNESP, a m de resistir a
elas, precisamos dobrar o fantasma moral do estruturalismo e da USP e dar
um sentido para ele de funcionamento inerente à losoa na contempora-
neidade que se gura na prática do comentarismo. E essa é a importância,
para nós, do texto de Domingues (2017). A gura do scholar revela algo con-
temporâneo que se manifesta em nossa herança bacharelesca de formação:
180
a tendência da losoa como um saber especializado, distante de pensar os
problemas da vida e, por conseguinte, afastada de uma experiência de pen-
samento. O comentarismo engloba uma atitude acadêmica em losoa da-
queles praticantes que deixam de pensar problemas, de se experimentarem
losocamente, para se especializarem em discussões e autores.
Anal, quais são os impactos do comentarismo em nossa formação de
professores? Como essas heranças ecoam em nós e nos afastam de uma política
losóca de ensinar e aprender losoa em que o professor de losoa se assu-
me como lósofo e se experimenta com os seus estudantes a pensar a imanência
da vida? Nosso ponto de referência será o curso de licenciatura de Filosoa
da UNESP. Analisaremos, especialmente, como nossa formação sustenta-se no
pressuposto inerente à narrativa institucional de uma propedêutica técnica ao
losofar, segundo o qual há uma progressão formativa entre essa relação técnica
e rigorosa da losoa na universidade e um losofar futuro. Mostraremos que,
ao invés de uma experiência losóca, o comentarismo cria uma cisão entre a
experiência de pensar losocamente e as práticas educativas em losoa, im-
pactando signicativamente nas práticas do professor de losoa. Esperamos,
ao nal dessa reexão, contrastar essas práticas com uma política losóca de
formação de lósofos, cujos aspectos, em nosso caso, circunscrevem-se à inven-
ção de uma losoa de professores – uma losoa que se faz como resistência à
política hegemônica de formação pelo comentário.
3.4. O comentarismo e a cisão da experiência losóca das práticas de
ensinar, aprender e fazer losoa: por uma losoa de professores
Encerramos a última seção, restituindo a narrativa de formação lo-
sóca emergente da instituição da losoa universitária na USP. O apareci-
mento da gura do scholar em solo brasileiro abre os caminhos para uma ex-
periência de losofar como especialidade técnica, uma disciplina acadêmica,
cujo funcionamento parece nos afetar como uma herança de formação que se
capilariza no curso de losoa na UNESP. No entanto, é possível dizer que
o funcionamento das disciplinas histórico-losócas, comum à formação da
licenciatura e do bacharelado em losoa, provém de um projeto de forma-
ção losóca que repete a experiência oriunda da USP? Existe algum vínculo
entre as práticas metodológicas e os pressupostos losócos da historiograa
181
losóca de Guéroult e Goldschmidt com a técnica de explicação de texto,
defendida em nosso PPCF como habilidade de análise e comentário de tex-
tos losócos e também como técnica de transmissão de conhecimentos no
registro da educação básica?
Em nossa análise, as práticas historiográcas de Guéroult e Goldschmidt
fazem parte de uma relação moral de ensinar e aprender losoa, que tem
a história da losoa e a prática de leitura e comentário dos textos clássicos
como sua estrutura dorsal. Essas práticas são evocadas e são remetidas aos
patronos franceses, a m de reforçar uma tradicionalidade de ensinar e apren-
der losoa e, além disso, demarcar o início de um disciplinamento único e
supostamente necessário à formação losóca na era prossional da losoa.
Os ensinamentos de Guéroult e Goldschmidt não são recepcionados como
uma metodologia de ensinar e aprender losoa que se repete desde a década
de 1960 até os dias de hoje. Elas reforçam uma narrativa de tradicionalidade,
que desobriga aqueles que a ela se identicam de questionar e de claricar os
próprios pressupostos e práticas, do mesmo modo que evoca o pressuposto de
invenção de uma relação moderna de ensinar e aprender losoa. Nesse caso,
o princípio de modernidade sintoniza-se com um ideal de progressão histó-
rica universal ao qual quaisquer tentativas losócas de ensinar e aprender -
losoa deveriam sucumbir, sob o pretexto de estarem fora da história. Não só
toda experiência losóca pré-universitária é excluída dentro dessa narrativa
moralizante, bem como quaisquer resistências ao instituído são associadas a
ingenuidades intelectuais. Pensar em uma prática de ensinar e aprender lo-
soa que não tenha a história da losoa e o comentário dos textos clássicos
como disciplina intelectual e formativa do losofar futuro torna-se o mesmo
que se situar em uma experiência fora do tempo, impossível portanto de
existir; como se a losoa na universidade só existisse sob esses imperativos
morais, evocados pela disciplina intelectual consagrada pela convivência com
os patronos franceses.
Embora seja possível aproximar algumas práticas de ensinar e
aprender losoa das concepções teóricas e metodológicas de Guéroult e
Goldschmidt65, elas também evidenciam uma relação técnica com o saber
losóco, inerente ao funcionamento da losoa como disciplina universi-
65 Conferir, por exemplo, a última seção do terceiro capítulo do nosso livro (Rodrigues, 2020).
182
tária e escolar. Conforme aludimos anteriormente, a rigidez das disciplinas
histórico-losócas quanto a certeza do lugar dos textos clássicos em todas as
disciplinas, no estudo monográco dos lósofos com base nos comentadores
e artigos cientícos, faz jus aos imperativos de uma moral do que propria-
mente de um projeto formativo estruturado e debatido. As convicções dos
professores são resoluções que se justicam muito mais pela força da tradi-
cionalidade do que propriamente pela concordância de um projeto losóco
que debate os ideais de uma formação em losoa na contemporaneidade,
seja ela para o bacharelado, seja para a licenciatura.
Esse diagnóstico, inclusive, é partilhado por um dos antigos professores
da casa que, ao ser questionado por estudantes em entrevista sobre aquilo
que nossa formação nos prepara, diz que não há uma atenção no curso de
losoa da UNESP a essa questão, tal como se deveria. O estudante Girotti
retira uma anedota – “Não somos estruturalistas, não somos historiadores,
somos blá” – da comunidade do Orkut que contempla os estudantes das três
universidades paulista, e lança o problema da formação losóca no curso
de losoa da UNESP ao professor Ubirajara Marques, que responde da
seguinte maneira, mostrando um certo descontentamento com o panorama
da instituição:
A frase poderia ser pitoresca, mas não é. Quanto ao ensino de losoa,
ao menos na UNESP, ele não vem sendo focalizado com a devida aten-
ção, ao menos por parte de todo o corpo docente, ao menos por parte
dos órgãos que por ele devem zelar, o Conselho de Curso e o Conselho
Departamental. [...] Temos ainda grande diculdade em falar sobre o en-
sino de losoa, pois fomos ensinados e ensinamos, mas via de regra não
paramos para reetir sobre o ensino de losoa como tal. Isto é: ló-
sofos e historiadores da losoa, não damos a devida atenção à forma-
ção, à Bildung, ocupando-nos, no mais das vezes, com os próprios botões
(Girotti, 2009, p. 11).
Enquanto cada professor se preocupa com seus próprios botões, ou
simplesmente evita debater aspectos do ensino de losoa na instituição, não
temos quaisquer indícios de um posicionamento institucional face à forma-
ção losóca no Brasil e o projeto instituído na UNESP. Apesar de existi-
rem críticas às formas de ensinar e aprender losoa no curso, especialmente
183
daqueles professores que participam de uma prática temática e interdisci-
plinar de losoa, os professores responsáveis pelas disciplinas histórico--
losócas sequer se incomodam em problematizar a forma como ensinam e
participam do funcionamento da losoa acadêmica no Brasil. Eles acabam
ensinando como foram ensinados, sem realizar uma reexão losóca sobre
os sentidos do ensino de losoa.
No entanto, o ensino de losoa da UNESP, especialmente das disci-
plinas histórico-losócas, não se distingue tanto daquilo que se diagnostica
da realidade formativa no Brasil. Assim como em tantas outras universidades,
defende-se uma formação losóca em etapas progressivas de conhecimento
da história da losoa. As críticas de lósofos brasileiros à experiência uni-
versitária da losoa no Brasil nos ajudam a dimensionar o fenômeno em seu
aspecto comum do funcionamento da losoa universitária, especialmente
quando praticada como comentário de textos losócos, e não como um
método de leitura e explicação de textos clássicos.
Na introdução do livro História da Filosoa no Brasil (2013), Paulo
Margutti elabora um plano geral da atividade losóca no país. Apesar de a
situação ser complexa e não se encaixar em um esquema pré-moldado, ele
identica três grandes grupos que não dialogam entre si: “[...] um deles se
dedica ao estudo de autores estrangeiros clássicos, outro se dedica ao estudo
do pensamento losóco brasileiro e um terceiro procura elaborar ideias lo-
sócas independentes” (Margutti, 2013, p. 10). Importa para nossa proble-
matização especialmente o primeiro grupo, porque são os pesquisadores que
estão ligados aos principais programas de pós-graduação em losoa e con-
gregam-se, nacionalmente, na ANPOF. É esse grupo que reforça a narrativa
de inexistência de uma atividade losóca brasileira e, por não acreditarem
que os brasileiros ainda não possuem o aparato social e institucional para
losofar como os europeus e os norte-americanos, focalizam sua atividade
no comentário de pensadores estrangeiros. São estudiosos que, nas palavras
do autor, “[...] se revelam mais preocupados com as nuances do comentário
exegético especializado dos clássicos da losoa” (Margutti, 2013, p. 11).
Não obstante Margutti reconheça algumas exceções no grupo, a ten-
dência da atividade losóca daqueles que estão ligados à ANPOF versa
na prática do comentário especializado de autores e temas. Isso impacta
184
diretamente na estrutura dos cursos de losoa no Brasil e na pós-graduação.
Em outro texto, Filosoa brasileira e pensamento decolonial, Margutti (2018)
faz uma análise da situação do ensino de losoa nas universidades brasilei-
ras. Segundo ele, o estudante de losoa passa a maior parte da sua gradua-
ção concentrado no estudo dos pensadores europeus e norte-americanos, em
detrimento de sua realidade e do contexto brasileiro. Como se isso não bas-
tasse, estudam-se, praticamente, os clássicos modernos e antigos, com pouca
atenção aos lósofos contemporâneos e aos problemas por ele enfrentados.
Essa estrutura de formação tem como pressuposto que só um conheci-
mento aprofundado sobre os textos clássicos pode proporcionar as bases de
uma formação losóca rigorosa, preparando o estudante para os voos lo-
sócos futuros. Em contrapartida, enquanto o estudante espera para aden-
trar às questões que lhes interessa e que ressoam em sua vida, acaba por ser
estimulado apenas em suas habilidades de comentador, de leitor e explicador
de textos. Não que essas habilidades não sejam importantes, mas, como são
hegemônicas nos cursos de graduação, afastam e deixam de estimular o exer-
cício de uma experimentação do pensamento losóco. Qualquer iniciativa
do estudante de arriscar um pensamento, de ensaiar uma problematização de
alguma inquietação losóca, por ser contrária a essa orientação formativa,
acaba por ser considerada um devaneio e não é vista com bons olhos.
Não se trata, contudo, de uma realidade apenas da graduação. Ainda
segundo Margutti (2018), essa disciplina formativa se estende à pós-gra-
duação. No mestrado, os estudantes aprofundam no estudo do pensamento
europeu e norte-americano, com pouco interesse pela losoa praticada
no Brasil. Além de não serem incentivados a pensar problemas que lhes
estimulem a reexão, os estudantes não precisam ter quaisquer pretensões
de originalidade. O argumento é o mesmo: busca-se o “[...] aprimoramen-
to das habilidades exegéticas do aluno, sob o pretexto de que isso é exi-
gido para que ele tenha uma formação adequada do seu espírito crítico
(Margutti, 2018, p. 227). Por outro lado, os estudantes são cobrados de
certa originalidade no doutorado e de alcançarem uma reexão autônoma
que até então nunca tinham praticado. Os resultados não são promissores;
anal, como exigir algo do estudante que nunca lhe foi permitido realizar
no decorrer de sua formação?
185
Apesar de as armações de Margutti (2018) irem à contramão do oti-
mismo institucional de Domingues (2017), ambos concordam sobre a prá-
tica losóca dominante no Brasil: uma relação escolar de pensamento, tra-
balhos estritamente acadêmicos, produzidos por um estrangeirado exegeta,
que não se preocupa com a realidade à sua volta e só aceita como universal os
problemas e as losoas europeias e norte-americanas. E a grande justicativa
para tudo isso é o pressuposto de que uma formação losóca séria e rigorosa
antecipa os anseios e as tentativas de um losofar maduro. Essa narrativa
moralizante já está há setenta anos em vigência no país, e quais foram os re-
sultados até agora alcançados, questiona Margutti:
No caso da ANPOF, a justicativa inicial para o estímulo à exegese foi a
de que, como ainda não temos suciente preparo intelectual, deveríamos
nos exercitar no comentário acadêmico de textos losócos até atingirmos
a maturidade intelectual que nos libertasse do loneísmo, do diletantismo
e do autodidatismo que marcaram os pensadores do passado. Acontece
que já estamos praticando esse comentário de textos há mais de setenta e
sete anos e até agora ninguém teve a coragem de anunciar que já passou
da hora de atingir essa maturidade (2018, p. 229).
Mas por que se considera o conhecimento aprofundado dos textos
clássicos como uma formação rigorosa? Historicamente, como nós vimos,
dentro da losoa acadêmica brasileira o rigor se opõe, primeiramente, ao
diletantismo, à improvisação e ao autodidatismo. Tem-se medo dos “livres
pensadores” que instauram sua aventura losóca de pensamento sem man-
ter os funcionamentos da cultura acadêmica. No entanto, se na época da cria-
ção das Faculdades de Filosoa os inimigos eram os diletantes, os bacharéis
e os autodidatas, contra quem estamos lutando agora? Ou melhor, a quem
representam os diletantes e os amadores no século XXI? E o que justica
mantermos uma cultura losóca brasileira, a qual condiciona o comentário
de textos a uma disciplina de ascese intelectual?
Os amadores e os diletantes representam certo descompromisso com as
normas acadêmicas instituídas; um certo desejo de losofar sem contrair e se
submeter aos mecanismos institucionalizados da losoa acadêmica. Evocam
uma certa obstinação “ingênua” de querer losofar mesmo no século XXI, de
manter uma atitude losóca com um forte envolvimento existencial, uma
186
preocupação em elaborar um pensamento situado no seu país de origem, ao
invés de escreverem sobre textos e autores que precisam referendar a atividade
de pensar. No entanto, vitalidade e improvisos tornam-se sinônimos de falta
de seriedade; de pouco prossionalismo, como se fosse um pensar frouxo,
contrário ao rigor imposto pela losoa acadêmica (Cabrera, 2013).
Para Cabrera (2017), duas exigências caracterizam a losoa acadêmi-
ca brasileira: a exigência de exaustividade e a exigência de frieza vital. Ambas
as exigências opõem-se às características de um losofar amador e diletante.
A exigência de exaustividade evoca um pensar losóco que seja necessaria-
mente erudito. Defende-se que qualquer estudo losóco, seja ele de autor
ou temático, tem como impositivo um conhecimento aprofundado. No caso
dos autores, faz-se imprescindível conhecer todo o pensamento, ou pelo me-
nos, as obras de referência e da literatura secundária de comentadores. Isso
equivale aos estudos temáticos, cuja exigência não é menor, pois se rearma
a imprescindibilidade de esgotar a literatura envolvida na temática, ter um
domínio integral sobre a problemática.
Chamo de “exigência de exaustividade” nos estudos losócos a ideia
seguinte: ao debruçar-nos sobre um autor para estudar seu pensamen-
to, o pesquisador deve “conhecer” profundamente toda a obra do autor
estudado; ou, se esta for muito volumosa, deve-se, pelo menos, ter um
conhecimento global da mesma através do intenso uso de literatura se-
cundária, além da leitura atenta de todos os textos originais disponíveis. O
“leitor exaustivo” sempre teme que alguém da audiência formule alguma
pergunta que aluda a uma leitura que ele não conseguiu fazer. Se não se
trata de autor, mas de temática, também haverá a exigência de conhecer
adequadamente toda a literatura considerada relevante pela comunidade
a respeito do assunto tratado, o que costuma ser chamado de status ques-
tionis, do pé em que se encontram atualmente as discussões relevantes
(Cabrera, 2017, p. 82).
De acordo com Cabrera (2017), torna-se grave deciência, para a co-
munidade acadêmica, não ter todos os conhecimentos considerados relevan-
tes ao assunto tratado ou ao autor estudado. Por essa razão, não está em
questão uma exaustividade absoluta – evidentemente, reconhece-se a impos-
sibilidade material contida do esgotamento e domínio do assunto –, e sim
187
uma exaustividade relativa àquilo que a comunidade considera relevante e
que não abre mão. Mas só o relevante “[...] já costuma abranger um conjunto
imenso de referências, o que sugere uma espécie de tarefa interminável (so-
bretudo com os dispositivos de informação com os quais se conta atualmen-
te)” (Cabrera, 2017, p. 84).
Por outro lado, a frieza vital refere-se a uma atitude acadêmica de des-
vinculação do pensamento losóco, dos exercícios de escrita e leitura, da
vida. Já não há espaço para um pensar biográco, cuja própria vida esteja
envolvida naquilo que se tenta reetir. Em contraposição a um pensar com
as entranhas, de um pensamento existencialmente motivado, a frieza vital
fomenta um trabalho oriundo apenas de leituras ou conhecimentos adquiri-
dos; não há uma motivação pessoal que impele o pensamento; não há, enm,
experimentação do pensar, como escreve Cabrera:
[...] um losofar prossional e rigoroso exige distanciamento e frieza, des-
personalização e anonimato; qualquer envolvimento vital é considerado
pouco sério e prossional. A vida deve car do lado de fora, tudo aquilo
que biogracamente nos leva a losofar é visto como irrelevante, apenas
importando os resultados obtidos pela força da razão em seu exercício
universal e impessoal (2017, p. 84).
Na realidade, tanto a exigência de exaustividade como a frieza vital
são as características do scholar. Segundo Cabrera (2017), o scholar afunda a
totalidade de sua vida no pensamento erudito e frio; os comentadores deixam
a própria biograa e suas motivações de lado, para fazer valer uma forma de
pensamento prossional, em que a vida e o pensamento losóco não têm
convergência. “Os scholars fazem losoa sem vida, pensamento que supri-
miu totalmente suas raízes existenciais” (Cabrera, 2017, p. 115). Em outras
palavras, a losoa institucional transforma a atividade losóca numa série
de movimentos automáticos e sem vida; numa rotina em que professores e es-
tudantes são condicionados a uma prática losóca cujo aspecto burocrático
funciona por si mesma, sem motivação vital.
Ora, como no início do século XX a disputa pelo saber losóco se deu
entre uma losoa prossional e uma losoa amadora, com a vitória evi-
dente da primeira, essa disputa já não existe mais. Como escreve Domingues
188
(2017), hoje a gura do scholar tornou-se uma realidade nacional, raros são
os espaços para aqueles que não são formados dentro de uma rotina universi-
tária e acadêmica. E é justamente a vitória de uma ideia de losoa acadêmica
que fortalece essa visão prossional de losoa, erudita e fria, reforçando essa
narrativa institucional de uma formação rigorosa como acúmulo de conheci-
mentos sobre a história da losoa.
Por outro lado, esse é um pressuposto ligado às instituições educati-
vas, que acreditam que uma progressão e emancipação só têm chances de
acontecer a partir da transmissão de conhecimentos, tais como denunciadas
por Rancière (2011). Por detrás desse preparo sociocultural, fortalecido pela
narrativa moralizante de uma agenda progressiva e moderna de estudos lo-
sócos, há o pressuposto de uma sociedade-escola, que está na raiz da ideia de
uma emancipação pela contínua transmissão de conhecimentos. Acredita-se
que só a instituição e seus ritos oferecem uma emancipação losóca. Por
consequência, faz-se preciso criar uma estrutura institucional que mantenha
a transmissão dos conhecimentos losócos até que um dia apareça o verda-
deiro lósofo.
De acordo com Cabrera (2014), esse é um dos principais pressupos-
tos da losoa acadêmica brasileira: acredita-se que a experiência losóca
depende de uma incursão nos procedimentos institucionais, que oferecem
um conhecimento sólido – exaustiva e objetivamente – da história do pen-
samento losóco europeu, independentemente de qual tipo de reexão
que se queira fazer e independentemente do tipo de pensador que somos.
Basicamente, “trata-se de um treinamento anônimo e impessoal, espécie de
dispositivo cego ou pedagogia absoluta, de ‘cultura losóca geral’ obrigató-
ria que passa por cima de idiossincrasias, características, vocações e projetos
(Cabrera, 2014, p. 14).
Mas será que a experiência de losofar depende de um acúmulo in-
formacional e técnico de cultura losóca geral? Será que a aquisição de in-
formações, de um conhecimento sobre a história da losoa, constitui etapa
progressiva ao losofar? Cabrera acredita que esse pressuposto institucional
mantém uma miragem, uma falsa expectativa de emergência do losofar fu-
turo. Esse tratamento impessoal, de cultura losóca geral, atua contra a
vocação losóca dos estudantes, ao mesmo tempo que propõe, em paralelo,
189
um discurso que promete uma relação losóca que não se cultiva institucio-
nalmente, contrário às práticas defendidas pelo sistema institucional.
Filosoa surgindo de comentário de textos não seria como gatos parindos
cachorros? A losoa não surge como possível e esperançoso epifenômeno
do trabalho do comentário ou da exegese, não se cria Filosoa em espaços
pequenos. Nada assegura que a Filosoa surgirá naturalmente de trabalho
técnico sem uma mudança estrutural na atitude. A losoa jamais virá
por acréscimo (Cabrera, 2013, p. 70).
Nós concordamos com Cabrera (2013; 2014;), justamente pela nebu-
losidade envolvida nas práticas de ensinar e aprender como transmissão de
conhecimentos. Embora se pressuponha que a transmissão de conhecimentos
losócos seja a condição primeira para uma formação losóca mínima, para
o desenvolvimento das potencialidades losócas dos estudantes, esse exercício
formativo limita as possibilidades da aprendizagem, pois restringe aquilo que
se aprende às relações explicativas do professor. Como a prática do professor
de losoa torna-se a única capaz de ordenar e validar aquilo que se aprende,
ensinar e aprender losoa são dispositivos de um disciplinamento que cir-
cunscreve os limites e modela a formação de uma maneira de se relacionar com
a tradição losóca e o presente. O professor de losoa não transmite apenas
conteúdos, conhecimentos especícos da tradição losóca, e sim uma racio-
nalidade, uma maneira de fazer losoa, de ensiná-la e aprendê-la, ilustrada no
próprio perl formativo do estudante de Filosoa da UNESP66.
Valoriza-se um perl que forje o estudante a ser, sobretudo, um leitor
perspicaz e amante dos assuntos abstratos, um conhecedor e pesquisador dos
tradicionais problemas losócos, que possa acompanhá-los e desenvolvê-los,
de preferência, sob o domínio das línguas estrangeiras (Francês, Alemão e
Inglês). A frequência e regularidade na biblioteca são defendidas como um
distintivo do perl estudantil de losoa, estudantes estes que, como costu-
mam dizer nossos professores, devem ser “ratos de biblioteca”. Somos disci-
plinados para ser bibliólos: amantes dos livros, leitores vorazes e pacientes e
comentadores precisos. O que não falta é lósofo e losoas a serem lidas,
66 Tal como consta na página da UNESP. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/#!/graduacao/
cursos/losoa/perl-prossional/ . Acesso: 09 de jan 2023.
190
livros a serem meticulosamente estudados no curso, criando-se uma rotina
acadêmica de transmissão da cultura losóca, em que se estabelece uma
relação de pensamento consumista, cumulativa e exibida de erudição.
Tal como na lógica da explicação (Rancière, 2011), estudantes e pro-
fessores são acometidos pela sensação de que ainda resta algo a ser lido, a ser
melhor conhecido, a se aprofundar. São incapazes de experimentar o pensa-
mento sem as explicações prévias, que intermediam a experiência. Pensar lo-
socamente se confunde com dominar e sugar as informações mais relevantes
disponíveis do autor e do tema, mantendo em funcionamento um certo jogo
de citações e referências inndáveis que parecem obstruir quaisquer possibi-
lidades de experimentar uma aventura de pensamento. Enquanto no livro de
Rancière (2011) o mestre explicador é quem determina o começo e o m da
busca pelas explicações, no caso da losoa acadêmica, a comunidade losó-
ca e as rotinas universitárias desempenham essa função.
O problema disso tudo é que tanta admiração e amor pelos livros acaba
nos afastando de manter uma conexão vital, uma relação direta de problema-
ticidade com os estudos losócos. Nosso desejo de pensar losocamente o
presente é sequestrado no decorrer de nossa formação losóca na UNESP,
silenciado pela rotina formativa acadêmica. Há uma estratégia de silencia-
mento das nossas percepções de mundo, das nossas histórias, marcas e dos
problemas e desejos que modelam nossos corpos. Somos forçados a esquecer
nossas subjetividades para nos enquadrarmos às regras e aos padrões acadê-
micos. Nossa trajetória de vida não se faz crucial ou não cabe na universida-
de. Os problemas que nos movem até a universidade não se compatibilizam
com a experiência losóca universitária. Nossas leituras e experiências não
se encaixam e não são sequer relevantes à rotina intelectual da universidade.
Em busca de sempre resguardar o nosso esforço intelectual em uma
propedêutica formativa, ofuscamos nossas vivências, nossos problemas e
nosso contexto. Não há espaços para um exercício de pensamento losóco
que não esteja repleto de referências e citações de autores, que não seja re-
conhecido pelo conhecimento erudito das fontes (de preferência, na língua
original), e que sejam escritos com forte apelo autobiográco e existencial,
repleto de intuições e apelos à experiência. O que se cultiva é uma relação de
comentador, não de crítico ou mesmo de lósofo. Pouco importa o debate,
191
não existe uma polêmica com os lósofos – quando há, ela só ocorre no pla-
no interpretativo, dentro da lógica do comentário. Toda problematicidade
acaba sendo escanteada para armar um tipo de conhecimento como leitor e
comentador. Se não existe espaço para debates, tampouco para avaliar a per-
tinência e a relação daquilo que se estuda com a vida. Em nossa formação, os
lósofos e as losoas não são usados como ferramentas; não nos inspiramos
e participamos de seus projetos; nossa relação não é ativa, mas, substancial-
mente, passiva, agentes e leitores/escritores externos. De fato, em nossa rotina
biblióla, os problemas são, quase sempre, assuntos para dissertar, temas a
serem conhecidos e bibliogracamente explicados, e não problemas a serem
conceitualmente resolvidos. Assunto estritamente técnico, ensinar e aprender
losoa não têm implicações éticas: dedicamo-nos à losoa sem sequer exis-
tir a necessidade de nos transformarmos, sem sequer experimentarmo-nos
naquilo que se estuda. O estudo e a formação losóca existem, assim, sepa-
radamente de uma prática ética com o presente.
No entanto, o que esperar de uma rotina formativa na qual somos
modelados para leitura e comentário dos textos losócos, para o esqueci-
mento temporário de nossas vocações especulativas, dos problemas contem-
porâneos, de nossas crenças e contextos? Como esperar que na vivência dessa
rotina formativa possamos ser conduzidos a estabelecer outros exercícios com
a losoa que não seja de um conhecimento sobre a história da losoa? E,
pensando essas práticas como essa herança de formação, não podemos dei-
xar de questionar: como um professor de losoa, modelado à forma dessas
heranças de formação, consegue estabelecer outra relação em sala de aula
com seus estudantes a não ser uma relação de transmissão de conhecimentos,
estritamente técnica com o saber losóco, um exercício sem implicações éti-
cas? Se ao longo dos anos cultivamos uma relação fundamentada nas práticas
de comentador de losoa, não é bem provável que ofereçamos uma relação
educativa fundamentada nos mesmos pressupostos e práticas? Como manter
uma prática ética com o ensino de losoa, almejando uma experimentação
do pensar, se não temos a oportunidade de ser formados para tal?
Herdeiros de uma tradição que tem como projeto a formação de co-
mentadores de textos, temos grandes chances de permanecermos presos às
malhas dos textos e de costas para a vida. Se saímos formados como guardiões
192
da cultura losóca geral, pouco fomos estimulados a pensar losocamente os
problemas vitais e teremos diculdades para assim fazer com nossos estudantes.
Do mesmo modo que nos habituamos a acreditar que o acúmulo de referências
losócas torna-se o nervo central das práticas de ensinar e aprender losoa,
corremos o risco de ensinar losoa na educação básica sob esse pressuposto.
Embora seja defendida com unhas e dentes, não vemos como nossas heranças
de formação podem, por si mesmas, nos ajudar a cultivar um ensino e uma
aprendizagem losóca que se faça como experimentação de pensamento lo-
sóco e tenha, portanto, um foco nos problemas de nossa realidade.
Por essa razão, uma política losóca de ensinar e aprender loso-
a passa a ser crucial para as relações educativo-losócas no país. Por um
lado, necessitamos de um projeto que resista à conformidade comentarista
da losoa nacional e que passe a formar lósofos e professores-lósofos,
tal como arma o prof. Trajano. A universidade brasileira tem condições de
formar lósofos; tudo depende de uma política que cultive as potencialida-
des inerentes ao losofar, longe de quaisquer imagens românticas do lósofo
como gênio. Tal como em qualquer outra episteme, faz-se preciso criar uma
organização formativa para o losofar. Anal, não teriam os lósofos sido,
no decorrer da história da humanidade, formados em escolas ou a partir de
processos organizados de educação? Qual seria a diferença na atualidade? Ele
explora esse argumento no fragmento abaixo:
Desde o início da episteme, e em todos os lugares onde ela foi cultivada,
existe algo que responde pelo nome de aprender losofar, e nenhum ló-
sofo maduro – tenha sido ele genial, muito bom ou apenas bom – chegou
a sê-lo antes de aprender a losofar e se aperfeiçoar nesse aprendizado.
Ora, aprender a losofar é uma arte ensinável tanto quanto qualquer ou-
tra arte acadêmica ou não acadêmica. Contudo, podemos assumir que
(quase) ninguém aprende a losofar sem que haja uma organização pro-
jetada, montada, estruturada e equipada para atingir essa nalidade, a de
ensinar a losofar. Essa organização ou instituição existe nos lugares onde
surgiam ou continuam a surgir lósofos; a bem dizer, estes não surgiam
espontaneamente, mas foram formados e produzidos por instituições cujo
objetivo era precisamente este. Será preciso lembrar que, por exemplo, a
Academia platônica e o Liceu aristotélico eram escolas de formação de
lósofos? Essas instituições tinham, no passado, e têm no presente, uma
193
política de formação de lósofos. Só aparecem lósofos de modo regular
e consistente onde existe uma política de ensino que seja orientada para
o objetivo de formar lósofos, vale dizer, de ensinar a losofar. E, no
caso da situação brasileira, é possível formular uma política especíca que,
aplicada coerentemente, deverá no futuro dar frutos na direção de corrigir
a distorção comentarista, e desse modo implantar e implementar na uni-
versidade o ensino e a pesquisa regulares da Filosoa propriamente dita
(Arruda, 2013, p. 51-52).
Em sua política de formação de lósofos, o prof. Trajano entende que
os lósofos são aqueles que praticam e se praticam nessa atividade – caracteri-
zam-se muito mais pela atividade que fazem e que os inserem na comunidade
dos lósofos –, do que propriamente pelos produtos doutrinais resultado de
seus esforços investigativos. Isso signica que um curso de losoa precisa
encarar os estudantes como aprendizes de lósofos. Em suas palavras, “[...] o
aprendiz de lósofo vai ser um aprendiz da arte de losofar” (Arruda, 2013,
p. 46). Mesmo que a ideia de formar lósofos não seja muito bem aceita na
universidade brasileira, tampouco no curso de losoa da UNESP, o prof.
Trajano diz que uma coisa é praticar a losoa, outra coisa é fazer uma -
losoa reconhecida mundialmente. Não há a necessidade de ser um grande
nome, ter a mesma ressonância global dos lósofos apontados como clássicos,
para exercitar-se losocamente.
Em entrevista aos estudantes de graduação do curso, ele arma que
temos que partir do ponto que todos somos aprendizes de lósofos, de modo
a desassociar o desenvolvimento e a prática do losofar da genialidade atem-
poral dos poucos escolhidos67. Recupera em seu argumento a impossibilidade
que teve, em sua época de formação na USP, de pensar um problema que
chacoalhava suas crenças losócas, justamente pelo pressuposto de que a
losoa é necessariamente inerente à subjetividade iluminada:
Aprendiz de lósofo qualquer um de vocês tem condição de ser, desde
que você se aplique a um assunto que te interesse de verdade, ou não
vai funcionar. [...] O meu ex-orientador, Oswaldo Porchat, quando vetou
meu trabalho temático do mestrado, teve a ideia que era um trabalho
67 Vemos argumentação semelhante no livro do Gonçalo Armijos Palácios, De como fazer losoa sem
ser grego, estar morto ou ser gênio (2004).
194
complexo. Não era. Não precisa ser. Agora, as pessoas não entendem,
acham que a losoa é coisa para gênios iluminados. Esse é um erro come-
tido pelos professores na nossa área, especialmente os brasileiros (Moraes;
Girotti, 2013, p. 15-17).
Se, por um lado, a losoa não é uma atividade restrita ao gênio e
se os estudantes são tratados como aprendizes de lósofos, essa política de
formação depende, por outro lado, da existência de professores-lósofos no
corpo docente do curso. Precisamos de professores de losoa que ministrem
cursos genuinamente losócos, isto é, “[...] que ofereçam ao longo de todo
o período de aprendizado cursos propriamente losóco-temáticos” (Arruda,
2013, p. 46). Não há uma necessidade de o curso ter como base a exposição
de uma doutrina original do professor, ainda que isso seja extremamente for-
mativo e pertinente. Um curso de um professor-lósofo tem que manter no
centro das atenções o interesse pelos temas, pelas questões. Ao contrário das
disciplinas estritamente expositivas, em que “[...] não há espaço para losofar,
isto é, para debater a temática losóca” (Moraes; Girotti, 2013, p. 9), o cer-
ne dos exercícios de uma aula de um professor-lósofo será a experimentação
de problemas losócos.
Os problemas losócos são os personagens centrais da história da lo-
soa e não as doutrinas. Exercitar-se nos problemas é a condição epistêmica
imprescindível ao losofar, porque somente dentro de uma situação proble-
mática que somos afetados a perseguir uma melhor formulação e, até mesmo,
uma solução para aquilo que nos incomoda losocamente. O problema
não é algo já pronto e que poderia ser expresso através de uma interrogação
linguística; não basta ser formulado de maneira interrogativa para ser um
problema. Um problema losóco só pode ser um problema para alguém. Ou
seja, por mais que os lósofos criem e recoloquem seus problemas, torna-se
inegociável que aquele que investiga tenha uma relação visceral com o que
é problematizado, que o problema tenha uma real problematicidade para
aqueles que se educam losocamente:
Um problema losóco não é denido como tal (isto é, como problema)
independentemente de um sujeito particular. Um lósofo espanhol con-
temporâneo, Júlio Marías, nascido em 1916, escreveu sobre isso e armou
que não basta o assim chamado problema vir uma forma interrogativa e
195
versar sobre um assunto losóco. Por exemplo, “O que é a liberdade?”,
“Como se conciliam liberdade individual e controle social?”. É preciso,
além disso, que aquilo que se pergunta tenha como pergunta uma rela-
ção visceral tal que essa interrogação linguística se torne um problema
vital para ele, um problema mesmo, no sentido de incomodá-lo, de ser
um obstáculo que ele tem de transpor para continuar no caminho. Quer
dizer, o assim chamado problema tem de ter uma real problematicidade.
(Arruda, 2013, p. 37-38 – grifos no original).
Se os problemas só valem na medida em que têm efeito naqueles que
pensam, o prof. Trajano considera que o problema losóco jamais pode ser
transmitido, ensinável. No entanto, sua experimentação pode ser encorajada,
intensicada e até diminuída. Então, um curso de formação de lósofos traz
em sua prática a construção de um contexto de ensino e aprendizagem que
permita que estudantes e professores vivenciem os problemas em seu caráter
pulsante. Isso não exclui o estudo da tradição losóca, mas o torna pragmá-
tico, uma vez que a bibliograa de referência só vem depois ou concomitante-
mente com a afetação pelo problema. Diferentemente de uma atitude exaus-
tiva de leitura e desvinculada do vital, não se busca o acúmulo cultural que
prepare a experimentação losóca. Lê-se, estuda-se e escreve-se de acordo
com o tempo vital e impulsionado pela força dos afetos com a problemática.
Experimenta-se losocamente intensicando-se no contato vivo e regular
com a problemática, de forma a conjugar os estudos dos lósofos do passado
com o interesse crucial pelos problemas, como escreve o prof. Trajano:
Precisamos estar, e permanecer, em contato próximo e tangível com a
problemática própria que é, podemos dizer, o coração da Filosoa, e desse
modo sentir as “pulsações desse coração”, isto é, vivenciar o problema
em seu caráter interessante, relevante e palpitante. Sem esse contato vivo,
cultivado e regular com a problemática, permaneceremos estranhos à -
losoa. Para isso, precisamos conjugar o estudo dos lósofos do passado
com o interesse crucial pelos problemas, para poder exercitar o intelecto
na reexão pessoal sobre temas, e poder ter a possibilidade de contribuir
para o debate losóco contemporâneo (Arruda, 2013, p. 48).
Esse fragmento elucida uma atitude não só cara ao prof. Trajano, como
também à nossa política losóca de ensinar e aprender: formar lósofos se
196
qualica pela relação ética que se estabelece em sala de aula, seus propósitos,
seus valores e os exercícios que estão presentes. A sala de aula precisa se tornar
um espaço do losofar, em que se exercite eticamente aquilo que se considera
crucial ao losofar contemporâneo. Não pode ser, portanto, uma disciplina
em que se expõe uma temática e se explica como os lósofos resolveram e
criaram seus problemas. Ou seja, as práticas de ensinar e aprender losoa, a
m de cultivarem a arte do losofar, precisam ser exercitadas “[...] no estilo
de um lósofo e não de um historiador da losoa ou de comentador de
obras” (Arruda, 2013, p. 46-47). As aulas expositivas jamais dariam conta
de iniciar os estudantes às problemáticas, por manter uma relação losóca
diferente da exigida ao losofar.
Dessa forma, prof. Trajano coloca também em xeque o pressuposto da
losoa acadêmica brasileira segundo o qual o exercício de comentar textos
torna-se propedêutico ao losofar. Esse pressuposto, inerente ao otimismo
institucional, defende que a cultura da erudição e do esvaziamento vital do
comentário de textos torna-se a via única que nos resta a fazer academica-
mente em preparação para o losofar futuro. Os anos de cultivo de comen-
tário, seja na graduação e pós-graduação, não garantem o desenvolvimento
futuro do losofar nas universidades brasileiras, pois não é o comentário das
obras losócas que prepara ao losofar, e sim o próprio exercício do loso-
far, a relação vital com os problemas losócos.
De acordo com o prof. Trajano, em todos esses anos, aquilo que o re-
gime do comentarismo criou foi uma cultura de comentar os textos clássicos
da losoa, de forma a não permitir a abertura de espaços para os problemas
losócos. E a emergência do losofar na universidade só pode vir do contato
vivo que se produz em pensar os problemas losócos, haja vista que são eles
que geram o espanto e a perplexidade:
Nesse regime do comentarismo não há lugar para o elemento de inte-
resse pelo objeto da losoa, pelo tema, pelo problema. Uma vez que a
origem da losoa está no espanto, na perplexidade, então a esperança
de que a reexão losóca tenha nalmente sua plena origem e desenvol-
vimento na universidade brasileira vai precisar esperar até que o interesse
pela temática e problemática losóca deixe de ser bloqueado e sufocado
pelo regime do comentarismo. Com efeito, espanto e perplexidade são
197
experiências feitas em relação com problemas losócos, e não em relação
com obras que vão ser objeto de comentário (Arruda, 2013, p. 51).
Aliás, dentro de uma cultura institucional da erudição e da transmissão
de conhecimentos, acreditamos que a experimentação losóca como traba-
lho visceral com os problemas funciona como uma alternativa de outorgar o
direito ao losofar. Estudantes e professores não precisam se vincular a uma
caminhada exaustiva de acúmulo cultural para se tornarem, quem sabe um
dia, dignos de poderem experimentar o losofar. Todos, por direito imanen-
te à vida, têm as próprias condições de se iniciarem à losoa. Não há essa
desigualdade de inteligência inerente às relações institucionais que pressupõe
uma equiparação por etapas instrutivas. Estar vivo nos garante o direito ao
pensamento. Os problemas são o resultado do tensionamento de nossos en-
contros, da problematização dos signos que nos envolvem como elemento e
autor e nos forçam a pensar. O enriquecimento, as suas dobras, o encontro
com a tradição são consequências do próprio caminhar problemático.
Essa política losóca de ensinar e aprender losoa tem como base
uma concepção de losoa como arte, e, como tal, não será a simples ini-
ciação discursiva que tornará suciente para cultivar os requisitos da ativi-
dade losóca. A transmissibilidade da losoa não ocorrerá estritamente
por meios discursivos e expositivos. Não basta dizer/comentar o que seja a
losoa, o que foram os problemas losócos, quais foram as soluções in-
ventadas, quais são os contextos de cada problemática, para que se inicie a
experimentação losóca. As teorias, os problemas e as metodologias criadas
para sua resolução, embora estejam nos livros, no registro discursivo, não são
sucientes para cultivar o losofar. Precisa-se incluir o exercício da arte que
se deseja aprender e fazer com. Portanto, para cultivar uma experimentação
losóca, se faz necessário que se a pratique em sala de aula; será preciso
exercitar e praticar com os estudantes o losofar, ainda que de forma tateante:
Tentar dizer o que a Filosoa é, e desse modo, esperar transmitir a quem
ouve ou lê o espírito dela, o “coração e a mente dela”, é uma empreitada
nela mesma com uma séria limitação, mesmo que alguém consiga dizê-lo
de um modo excepcionalmente bom, ou o melhor possível. É que a lo-
soa propriamente dita – isto é, aquela que é praticada por aqueles que
chamamos de lósofos, e que não inclui nem estudos de comentador nem
198
histórico-losócos propriamente ditos – é uma atividade, uma arte, por-
tanto algo que envolve o cultivo de determinados interesses e habilidades.
E, como toda arte, ela não é suscetível de ser explicada apenas por meio do
discurso. É necessário, para se ter dela uma explicação menos abstrata, mais
concreta e aprofundada, que se a pratique; é preciso que o dizer de quem
explica se combine intimamente com o fazer losóco, com a atividade
losofante – ainda que em nível do aprendiz lósofo – daquele para quem
a explicação está sendo dirigida (Arruda, 2013, p. 42- grifos no original).
Resgatamos a política losóca de formação de lósofos inspirada e
praticada pelo prof. Trajano, a m de criar um ponto de encontro com outra
raiz que inspira nosso projeto político-losóco de ensinar e aprender loso-
a. Aprendemos com o prof. Trajano que não há mais uma dissociação entre
professores e lósofos; aliás, aprendemos que só uma virada ética nas práticas
de ensinar e aprender losoa pode evitar a esterilidade do comentarismo.
Em sua perspectiva, a formação de lósofos na contemporaneidade depende
do convívio vital com a tradição losóca e com professores-lósofos, utili-
zando do espaço da sala aula para experimentarmo-nos no losofar.
O presente capítulo tinha como objetivo mostrar as heranças de for-
mação que atravessam a formação losóca comum no curso de losoa da
UNESP. Uma política losóca de ensinar e aprender losoa está inserida
em um contexto, faz-se como resistência ao instituído, especicamente em
nosso caso, em resistência a essa herança comentarista de formação. E é re-
sistindo a essas heranças que dissociam o losofar das práticas de ensinar e
aprender que se faz possível uma virada ética no ensino e na aprendizagem
de losoa e, consequentemente, a invenção de uma losoa de professores.
Para nós do ENFILO, nossa losoa do ensino de losoa consiste no encontro
e na capilarização das heranças do campo do Ensino de Filosoa e da política
de formação de lósofos, tal como ensaiada pela vida do prof. Trajano. Em
outras palavras, trata-se da atualização das virtualidades de dois projetos po-
lítico-losócos – um emergente da convivência com as pesquisas do campo
do Ensino de Filosoa e outro com a convivência na UNESP – para vislum-
brarmos uma losoa de professores. Ora, não se pode ser um lósofo sem
ser, de alguma maneira, professor-lósofo; e tampouco o professor de loso-
a tem condições de exercer seu ofício, seja na universidade ou na educação
199
básica, sem ser um professor-lósofo. Restaurar a experimentação losóca nas
práticas de ensinar e aprender losoa, mantendo uma visceralidade com o
pensamento e problemas, torna-se imprescindível para inventarmos uma lo-
soa de professores e colocar em prática nossa losoa do ensino de losoa,
que é uma losoa que fazemos seguindo o ofício vital de sermos professores.
Assim como tantos outros estudantes, escolhemos a losoa em busca
de entender e ter certas atitudes com o mundo em que vivemos, para criar
sentidos e conexões com a vida. Muito mais do que uma bibliolia, tornar-se
professores-lósofos é, sobretudo, um projeto vital, uma losoa menor que
se pratica como uma arte, para quem não escolheu cindir prossão e a vida.
Isso não signica uma negação da prossionalização da losoa na contem-
poraneidade, mas coloca os aspectos prossionais na esteira do artesão e, por
isso, do ofício. Adotamos, como ofício de vida, ser lósofos; lósofos que
exercem o ofício de ser professores de losoa. E esse ofício, para nós do
ENFILO, precisa ultrapassar a dimensão estabelecida por nossas heranças
de formação. Formar-se para ser professor de losoa é nos preparar ou criar
exercícios formativos para estabelecer uma relação ético-educativa, para além
da explicação e comentário dos textos losócos. Almejamos ser professores
para os quais ensinar e aprender losoa vai além de transmitir um conjunto
de conhecimento acumulado, ou um saber sobre; desejamos levar para a sala
de aula a losoa, transpirando-a através das práticas coletivas dialógicas, do
perguntar, do exercício de colocar problema; por meio do convívio que per-
mite estabelecer um saber como experiência, isto é, como transformação ética
daqueles que a exercitam, modicando, então, as atitudes daqueles que estão
envolvidos, alterando nossas perspectivas e nossa forma de viver.
201
Considerações nais
Após a escrita dos três capítulos, temos a sensação de que a pergun-
ta “onde estão nossas raízes” pode ser respondida por diferentes ângulos.
Certamente, o caminho que sentimos mais confortável foi o que adotamos.
Optamos por partir de um lugar que nos afetou intensamente em nossa traje-
tória de pesquisa: o campo do Ensino de Filosoa. Este tem sido alvo recente
de muitos debates entres nossos pares, ora em razão da luta pela sua cidada-
nia-losóca, ora pelas investigações recentes sobre o seu estatuto epistemo-
lógico. No presente livro, a questão do campo nos afetou, especialmente, em
uma perspectiva ética. Como nos enraizamos no campo, ou melhor, como
as relações que mantemos com as pesquisas do ensino de losoa se singu-
larizam em nossa forma de ensinar e aprender losoa, bem como em nossa
maneira de pesquisar o ensino de losoa?
Nossa estratégia foi problematizar nossa relação com o campo do
Ensino de Filosoa a partir da nossa participação no ENFILO, grupo que
nos acolheu no decorrer de toda nossa trajetória na universidade, desde a
graduação até a pesquisa de doutorado. Como ponto de tensão para iniciar
a investigação, partimos do ponto que consideramos basilar ao campo do
Ensino de Filosoa e às pesquisas do nosso grupo: a orientação losóca nas
pesquisas e nas práticas de ensinar e aprender losoa. Não começaria aí nos-
so vínculo com o campo do Ensino de Filosoa?
Debruçamo-nos, então, nos discursos da 1ª geração de pesquisadores
do Ensino de Filosoa, emergentes no nal da década de 1990 e início dos
anos 2000. Diante do contexto da LDB/96 e do lugar incerto da disciplina
de losoa na educação básica, inaugura-se um movimento coletivo de pro-
fessores e pesquisadores do ensino de losoa de luta pela cidadania-losóca
aos problemas do ensino de losoa. Ao lado da reivindicação pela cidada-
nia-curricular à disciplina na educação básica, alguns grupos realizaram uma
202
série de iniciativas acadêmicas, com objetivo de alterar a política de pensa-
mento inerente ao debate e às questões do ensino de losoa. A presença da
losoa na educação básica exige não só uma luta institucional, mas princi-
palmente uma atitude losóca face às questões educativas da losoa. Não
bastava defender a importância do retorno da disciplina ao currículo escolar,
pois o contexto brasileiro – carente em pesquisas sobre o assunto, – precisava
da abertura de um debate losóco. A apresentação de Wuensch (1999) e
de Gallo e Kohan (2000a) são arquivos que evidenciam essa percepção de
alguns agentes brasileiros. Até aquele momento, prevalecia uma despreocu-
pação da comunidade losóca em relação ao ensino de losoa, à formação
de professores de losoa, às práticas de ensinar e aprender, às relações meto-
dológicas e didáticas, relegando essas reexões aos prossionais da educação
nos breves momentos institucionais da formação pedagógica da licenciatura,
ou se envolvendo em momentos pontuais como foi o caso das movimenta-
ções na década de 1970 e 1980. No entanto, as condições de produção do
saber losóco e de sua transmissibilidade na contemporaneidade dependia
da abertura de um campo de discussão, da realização de pesquisas e debates
coletivos, em outras palavras, enquanto lósofos e professores de losoa
precisaríamos assumir um compromisso losóco e transformar o ensino de
losoa em um problema genuinamente da alçada da losoa.
Essas iniciativas marcaram a emergência de uma virada discursivo-lo-
sóca na área, que implica fundamentalmente a desterritorialização do ensi-
no de losoa do campo pedagógico e territorialização no campo losóco,
prenunciando as forças de abertura do campo do Ensino de Filosoa. Em
diferentes arquivos – a apresentação da coletânea do I Congresso Brasileiro
de Professores de Filosoa escrita por Cornelli (2003), a leitura dos aconteci-
mentos da área operada por Sílvio Gallo em diferentes momentos históricos
(Gallo, 2004; 2012; 2013; 2015), a justicativa de Kohan (2006) no rela-
tório do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, as leituras de Danelon (2008)
no dossiê Ensino de Filosoa, enm – nos permitiu pontuar o aparecimen-
to de uma nova política de pensamento para o ensino de losoa que, por
um lado, alterou a forma de problematizar a questão e as relações de ensino
e aprendizagem, deslocando-a dos lugares-comuns de pensar apologético e
pedagógico-programático, e criaram-se inúmeros incentivos acadêmicos à
203
constituição de um quadro de pesquisa e pesquisadores. A organização dos
fóruns regionais, de dossiês na área, o acolhimento de pesquisadores nas li-
nhas de Filosoa da Educação e a própria criação do GT Filosofar e Ensinar
a Filosofar exemplicam os esforços acadêmicos pela instituição de uma co-
munidade losóca do ensino de losoa.
Por outro lado, essa nova política de pensamento não atingiu apenas
a esfera teórica, pois resgatou a potencialidade losóca esquecida pela aca-
demia: a vocação educativa da losoa. Educar a si e aos outros faz parte
da trajetória histórica da losoa no ocidente, é um ofício do lósofo ao
longo dos tempos. Em nome de que os cursos de losoa e a comunidade
hegemônica de losoa relegam essa tarefa? Anal, como justicar loso-
camente a dissociação entre o professor de losoa do lósofo? Mesmo que
essa diferença seja alimentada pela hierarquização e dissociação de função do
bacharel em relação ao licenciando em losoa – um problema crônico de
outras licenciaturas –, será que soa coerente com a tradição losóca e com os
desaos do presente manter essa distinção? Alterar a política de pensamento
vigente signicou problematizar a desvalorização da dimensão educacional
da losoa na contemporaneidade, questionando o pressuposto de que não
precisa ser lósofo para ensinar losoa. O professor de losoa não pode se
furtar a ser também um lósofo, seja porque precisa pensar losocamente
suas práticas educativas, seja porque para educar precisa losofar e vice e ver-
sa. Essa dissociação institucional entre educar e losofar é denunciada como
equivocada: losofar torna-se uma condição necessária para criação e trans-
missão do legado losóco. O professor de losoa se confunde com ser ló-
sofo, porque, para transmiti-la, pratica sua atividade com os outros, dialoga
com a tradição losóca e com seus estudantes, transformando as práticas de
ensinar e aprender em algo tipicamente produtivo, uma experiência losóca
de pensamento coletiva. Os textos de Langón (2003), Cerletti (2003), Gallo
e Kohan (2000b) e Gallo (2004), por exemplo, nos permitiram trazer à tona
esses discursos emergentes e mostrar as implicações dessa nova política na
criação e transmissão do saber losóco na contemporaneidade.
Em síntese, essa nova política de ensinar e aprender losoa exige a
reinvenção no território da Filosoa de outra forma de entender e nos rela-
cionarmos com a losoa e a educação. Projetar uma losoa do ensino de
204
losoa não coincide em operar sob as imagens e os lugares-comuns da lo-
soa. Esses pesquisadores e professores de losoa resgatavam a virtualidade
educativa da vocação losóca e atualizavam no presente como potência,
esboçando um projeto futuro ainda a se fruticar e se construir pela nova
comunidade losóca em emergência. Em outras palavras, trata-se de uma
nova política de ensinar e aprender losoa que escava o território da losoa
em busca de nossas raízes educativas. Esse retorno ao passado pela ótica do
presente mantém uma tensão com as formas hegemônicas de compreender
o losofar e a losoa acadêmica. Ou seja, falar de uma losoa do ensino
de losoa não é o mesmo que pensar uma losoa política, uma losoa
da arte etc. Não se almeja um empreendimento reexivo e teórico, tal como
as outras subáreas da losoa acadêmica, e sim uma nova política losóca,
a produção de uma outra relação com a losoa e a educação. Talvez o texto
que melhor ilustre essa produção de diferença consista na apresentação de
Cornelli (2003). Segundo sua leitura dos acontecimentos, esse movimento
de professores-lósofos deseja reinventar uma losoa que não se submeta às
imagens de pensamentos então vigentes, nem às práticas morais do losofar
acadêmico. Assim, sem abrir mão da tradição educacional, os professores de
losoa precisam se liar à tradição losóca para ter condições de produ-
zir-se um campo de pesquisa e produção de pensamento, mas, sobretudo, se
modelarem para reinventar uma nova prática losóca: o losofar não é uma
atividade de estilo único; variável de acordo com a cultura e a história, reali-
za-se em âmbitos determinados como os espaços escolares e as universidades
na contemporaneidade. Por que o losofar na contemporaneidade não pode
assumir um compromisso ético e político em educar losofando e losofar
educando, colocando-se à altura da situação da losoa na atualidade?
Se encararmos essa pesquisa como abertura de novos horizontes de in-
vestigação, esse primeiro capítulo abre-nos alguns caminhos a serem explo-
rados em projetos futuros. Os dossiês, as pesquisas de mestrado e doutorado
e, principalmente, as coletâneas oriundas dos fóruns regionais constituem
um vasto arquivo para problematizarmos as disputas pela reconguração das
práticas e das pesquisas do ensino de losoa. Em razão de não separarmos o
agente pesquisador do objeto de pesquisa, nosso olhar marcou-se pelas narra-
tivas daqueles grupos e pesquisas que nos inuenciaram e nos tornaram o que
205
somos. Mas a própria ideia de uma política losóca envolve uma disputa
pelos saberes, que ainda precisa ser melhor estudada dentro do campo do
Ensino de Filosoa. Outras versões e narrativas sobre a emergência do campo
e das práticas do professor de losoa estão ainda soterradas nos arquivos,
trazendo-nos talvez uma imprecisão e uma visão unilateral da realidade.
Após levantarmos esses discursos e apresentarmos essa nova política
de ensinar e aprender losoa, zemos uma imersão em nossa trajetória no
ENFILO. Uma losoa do ensino de losoa não pode ser conceituada
universalmente, mas precisa ser compreendida em suas singularizações, nos
diferentes projetos e práticas que procuram repetir essa nova política para
se diferenciar. Talvez o conceito mais preciso seja de losoas do ensino de
losoa. E isso nos fez questionar como essas heranças do campo do Ensino
de Filosoa ressoam em nós do ENFILO.
Nesse sentido, no segundo capítulo, os dois vetores de investigação se
mantiveram: procuramos problematizar uma forma losóca de pesquisar o
ensino de losoa e questionamos quais eram suas as implicações educativo--
losócas. Qual seria o projeto político losóco de ensinar e aprender losoa
do ENFILO? Como o grupo desloca suas práticas de pesquisa e de ensinar e
aprender losoa de um registro comum pedagógico e losóco e se reinventa
seu próprio projeto político losóco de ensinar e aprender losoa?
Em todas as seções, zemos questão de marcar como as heranças do
campo ressoavam no grupo, de modo a adquirir uma forma especíca no
contexto da UNESP. Assim como outras iniciativas do início do século XXI,
o grupo nasce como uma dobra da losoa da educação, acolhido pelo
GEPEF. A pesquisa de doutorado de Gelamo (2009) é produzida no contex-
to da primeira década e traz em seu corpo muitas características do debate
da época. Para nós, era importante resgatar essas franjas da história, narradas
por Pagni (2002; 2004; 2011; 2014; 2016), uma vez que nos permitiu en-
contrar alguns pontos de ligação entre a losoa da educação, o campo do
Ensino de Filosoa e o ENFILO. Por exemplo, a área da losoa da educação
já vinha numa modicação de sua forma de fazer pesquisa, distanciando-se
dos estudos de história da educação e das preocupações com as correntes
pedagógicas, aproximando-se da losoa, ou melhor, do funcionamento de
estudos de autores, tal como ocorre na losoa acadêmica. Essa coincidência
206
de um olhar losóco para os problemas educativo-losócos constituiu-se
como ponto de intersecção entre os pesquisadores da losoa da educação e
do ensino de losoa. Pagni (2016) intitula essa conexão em comum como
uma losoa do ensino de losoa, a qual signica, em seu caso especíco, uma
aproximação com os estudos e os projetos das losoas da diferença, por um
lado, e dos escritos de Sílvio Gallo e Walter Kohan, de outro. Pagni (2014)
mantém uma relação com a tradição losóca pela perspectiva ética, em que
os sujeitos se experimentam em suas práticas educativo-losócas a caminho
de uma maneira de existir, segundo uma verdade ética e não epistemológica.
A exigência de um olhar losóco e os indicativos de uma atitude ética
em contraposição a uma prática estritamente epistemológica com a losoa
vão aparecer no ENFILO e em seus diferentes projetos. Retratamos o nosso
convívio com o grupo sem nos separamos do objeto de pesquisa, resgatando-o
pela nossa problemática e de modo demarcar o sentido que nós atribuímos a
essas vivências. Encontro inesperado, a convivência no grupo nos deslocou de
certas perspectivas sobre o ato de se tornar um docente e de como pesquisar
o ensino de losoa. Intrinsicamente marcados por um ideal ético-formativo
que conceitua a atividade de pensar como experiência, fomos impulsionados
a resistir à moral pedagógica – as imagens dogmáticas do pensamento como
referencia Gelamo (2009) – e à relação tradicional losóca no registro da
pesquisa e na atividade docente.
Para pesquisar e ensinar losoa não bastava circunscrever nossa ex-
periência investigativa e docente às questões pedagógicas da importância, do
conteúdo e das metodologias de ensino, tampouco às estratégias universalistas
da losoa acadêmica. Somos exercitados a experimentar as relações educati-
vo-losócas, a problematizar o ensino de losoa pela visceralidade daquilo
que vivíamos em sala de aula e em nossa realidade. O importante a ser pensado
é aquilo que afeta a nossa vida, a nossa experiência e que sequestra o nosso
pensamento; não aquilo que se impõe como uma questão de dever, seja pelo
ideal de recognição dos conceitos e problemas universais da losoa. Ora, se
há uma política losóca de ensinar e aprender losoa, essa política aparece
como uma losoa menor – práticas e atitudes que só podem emergir da vida e
se realizarem enquanto resistência às formas morais instituídas de pensar –, que
garante a todos os integrantes o direito às suas experiências de pensar.
207
Aliás, o direito à experiência e ao losofar são as bases dos projetos
de ensino de losoa, seja na escola ou na universidade. Em nome desse
direito à igualdade prévia de pensar, problematizam-se as práticas de ensinar
e aprender como transmissão de conhecimentos. O ideal de ensino como
transmissão de conhecimentos valoriza uma relação com a tradição losóca
estritamente epistemológica; estudantes e professores tornam-se conhecedo-
res, manuseiam as representações universais da cultura losóca acumulada,
porém não podem se experimentar. Ainda que a escola e as instituições tra-
gam situações históricas e contextuais, pensa-se a vida em abstração, com
conceitos universais que, embora certamente se transformaram na relação
institucional em conhecimentos historicamente acumulados por sua suposta
perenidade, moraliza a potência de pensar de professores e estudantes, si-
lenciando-os e cristalizando a vitalidade da atividade losóca. Em muito
dos casos, são os professores e suas explicações que mantêm as relações no
nível estritamente epistemológico, deixando de cultivar um exercício ético;
mas, por outro lado, a própria instituição e sua estrutura disciplinar forçam
a losoa a se cristalizar em conhecimentos acumulados e passíveis de serem
transmitidos via explicação do professor.
Nesse sentido, a transmissão de conhecimentos existe sob a condição
de hierarquização de inteligências, da redução da inteligência do estudante
face a do professor; do condicionamento da tradição losóca à sua dimensão
epistemológica; da limitação da aprendizagem à cultura losóca historica-
mente cristalizada e, consequentemente, às práticas de ensinar e aprender.
Mas como manter uma relação ético-formativa no ensino de losoa sob
essas condições? Como possibilitar uma experimentação da losoa quando
as relações educativo-losócas de estudantes e professores se fundamentam
nos pressupostos da transmissão de conhecimentos? Filosofar em sala de aula,
praticar uma educação em que o losofar se torna exercício de formação
parece muito difícil ainda nas situações cotidianas do ensino de losoa na
escola, porque há esse empobrecimento do losofar, expresso na diculdade
de transformar a tradição losóca e os eventos de nossas vidas em experiên-
cias signicativas, experiências que modicam nossa relação com o mundo.
De fato, a transformação da sala de aula em um lugar onde professo-
res e estudantes se experimentem losocamente, partindo de uma situação
208
localizada e de uma relação visceral com os problemas, tal como vislumbra o
ENFILO, parece ser impossível aos olhos acadêmicos. Como experimentar
a losofar sem ter um arcabouço de conhecimentos prévios e propedêuticos
em relação a esse objetivo? Será que o empobrecimento do losofar não se-
ria justamente o esvaziamento cultural do exercício losóco? Será que essa
perspectiva de um losofar pela experiência, tal como prevê o ENFILO, não
diminui a grandiosidade da losoa e de suas práticas?
Ora, parece-nos que a propedêutica ao losofar é a própria vida, isto
é, a visceralidade que mantemos com os problemas losócos. Estudantes e
professores já trazem suas leituras e vivências de mundo; eles já são previa-
mente potentes de vida, mesmo que não possuam uma cultura losóca his-
toricamente acumulada. A cultura losóca não virá antes como propedêuti-
ca, e sim junto com o caminhar problemático e investigativo do pensamento.
Nesse sentido, enquanto grupo, vislumbramos uma virada ética nas
práticas de pesquisar, ensinar e aprender losoa. Seja no registro da pesqui-
sa do ensino de losoa, seja no registro das práticas educativas, estabelece-
mos uma tensão problemática com o funcionamento acadêmico da losoa e
com as imagens pedagógicas que atravessam o ofício do professor de losoa.
Pesquisar, ensinar e aprender losoa são práticas emergentes de nossa relação
visceral com os problemas e com a vida, uma vez que são perspectivadas como
experiências de pensar, experiências que o sujeito de pesquisa ou agente educa-
tivo estão imanentemente implicados. Ao invés de um domínio teórico losó-
co e pedagógico, do desenvolvimento de habilidades intelectuais, almejamos
cultivar atitudes, isto é, disposições singulares dos agentes diante da vida.
Nos termos de uma política losóca menor de ensinar e aprender -
losoa, apresentamos essa virada ética como resistência às nossas heranças de
formação de professores de losoa. Na realidade, ela se inventa como forma
de reexistir à moral instituída, a m de poderem existir novas formas éticas
de ensinar e aprender losoa. E foi nessa direção para a qual caminhamos
no último capítulo.
Primeiramente, analisamos como a cultura disciplinar das matérias
histórico-losócas, comum ao bacharelado e à licenciatura, instituem-se
como heranças hegemônicas em nossas práticas de ensinar e aprender lo-
soa. Diferentemente do pressuposto dicotômico ainda presente na maioria
209
das licenciaturas, o professor de losoa herda das disciplinas do bacharelado
uma herança de formação, que não subsiste apenas ao conhecimento sobre a
história da losoa ocidental e sim, sobretudo, a uma série de práticas que o
disciplinam em uma relação losóca especíca. Por trás de um saber sobre,
adquirimos um saber como, que modela nossa atuação e nossas práticas de
ensinar e aprender.
Mostramos que as bases de nossa formação histórico-losóca, com o
enfoque nas habilidades de comentários e leitura dos textos clássicos, não é
um fenômeno restrito ao curso de losoa da UNESP, pois faz ressoar um
funcionamento tradicional de ensinar e aprender losoa. Em algumas pes-
quisas do ENFILO e dentro do próprio curso, adquire força uma leitura co-
mum ao fenômeno, remetendo-se à institucionalização da losoa prossio-
nal e universitária da USP, na década de 1960. Sob a inuência das Missões
Francesas e, especialmente, do convívio com Guéroult e Goldschmidt, ad-
quirimos uma rotina universitária concentrada na história da losoa à luz da
disciplina de leitura do método estruturalista, cujo cerne é explicar os textos
em suas relações verticais e lógico-discursivas, em detrimento das análises
genéticas e das abordagens horizontais da história da losoa.
Desde nossa pesquisa de mestrado (Rodrigues, 2020), já mostramos
que a importação dos ensinamentos de Guéroult e Goldschmidt é feita em
sua parcialidade. Enquanto suas práticas histórico-losóca se inseriam, na
França, em um contexto problemático mais amplo do historiador-lósofo,
aqui, no Brasil, seus ensinamentos foram incorporados com uma disciplina
de pensamento, confeccionada para impor um ltro às importações diletan-
tes e amadoras da cultura losóca, oriundas do período pré-universitário.
Todavia, ao invés de problematizarmos esse disciplinamento em sua
condição metodológica, enfocamos, no presente trabalho, na narrativa de
origem da losoa universitária que estabelece uma rotina moderna e pro-
gressiva de estudos losócos. Em nossa hipótese, o comentarismo, conforme
enunciação do prof. Trajano (Arruda, 2013), torna-se mais potente para re-
velar a instauração de uma moral prossional de ensinar e aprender losoa,
que tem na leitura e comentário dos textos losócos, seu principal objetivo.
Para mostrar isso, reconstituímos aquela narrativa de projeto modernizador
inicialmente feito pela USP, espalhando-se, depois, por todo o Brasil através
210
da Reforma Universitária de 1968, a criação das Universidades Federais e
Estaduais e do SNPG.
No que diz respeito à USP, destacamos as análises dos professores do jo-
vem departamento de losoa da década de 1960, e como suas posições sobre
a formação losóca forjam um caminho único para se ensinar e se aprender
losoa: os ensinamentos de Guéroult e Goldschmidt foram recepcionados
como modelos para instauração de uma disciplina necessária para controlar
nossos impulsos losócos e as especulações precoces. Desejava-se estabelecer
uma etapa de formação intelectual estrita, uma formação técnica, concentra-
da em uma abordagem analítica e monográca da história da losoa, a m
de garantir um acúmulo de conhecimentos verdadeiros e rigorosos sobre a
história da losoa. Instrumento de ascese, o método estrutural é vendido
como salvaguarda metodológica de um projeto pedagógico, uma propedêuti-
ca. Não havia possibilidades de formar losocamente sem manter a discipli-
na e a precaução do comentador, do discípulo-el à leitura dos textos.
Embora a ideia de salvaguarda metodológica soe como implementa-
ção de uma metodologia, repetida de maneira equivalente, essa narrativa que
prevê o caráter propedêutico do método estrutural no estudo da história da
losoa cria, na realidade, um pertencimento institucional losóco de au-
tolegitimação, que desidentica os agentes e os exime de questionamentos
prévios, conforme arma Canhada (2017). Escreve-se em nome de um gru-
po, cuja força coletiva é maior do que as diferenças pessoais, e exclui-se a
possibilidade de pensar em outras formas que se diferenciam do tradicional.
Por outro lado, essa narrativa estabelece um marco zero para a experiência
losóca brasileira. Daí em diante, a losoa só pode existir sob as condições
de uma propedêutica cultural histórico-losóca.
Domingues (2017) desloca a narrativa da USP e a amplia para a si-
tuação losóca no país, resgatando o início da genuína experiência de uma
losoa brasileira a partir do estabelecimento das práticas do scholar especia-
lizado. Essa gura, comum na comunidade losóca internacional, exempli-
ca a atuação prossional em losoa: um trabalho técnico, especializado,
rotineiro e anônimo. Apesar de a losoa prossional ser descolada da vida,
de não alçar grandes voos reexivos e intelectuais, a narrativa de Domingues
(2017) reforça um otimismo institucional, isto é, a ideia de que a losoa
211
acadêmica brasileira está no caminho certo e que, em breve, teremos ló-
sofos internacionais e cosmopolitas. O problema dessa narrativa é que, ao
rearmar esse otimismo institucional, mantém-se uma moral de formação
técnica, segundo a qual, o caminho natural para a experiência losóca na
contemporaneidade passa, necessariamente, pela cultura formativa do inte-
lectual especializado, cujo cerne são as práticas de leitura e comentário de
textos losócos, conforme denunciava o prof. Trajano ao se referir aos pro-
blemas da losoa na universidade (Arruda, 2013). O princípio de moder-
nidade reforça um ideal de progressão histórica universal ao qual quaisquer
tentativas losócas de ensinar e aprender losoa deveriam sucumbir, sob
o pretexto de estarem fora da história. Vislumbrar um ensino de losoa em
que a história da losoa ou o comentário dos textos losócos não sejam
uma disciplina intelectual, soa como ingenuidade, uma experiência fora do
tempo, impossível portanto de existir; como se a losoa na universidade só
pudesse existir sob esses imperativos morais.
Com base nisso, mostramos que o ensino de losoa na UNESP, es-
pecialmente nas disciplinas histórico-losócas, ao invés de se vincular às
heranças do método estrutural e, indiretamente, às guras de Guéroult e
Goldschmidt, ressoa uma moral oriunda de um otimismo institucional uni-
versitário. Tal como em tantas outras universidades, nossa formação estru-
tura-se em etapas progressivas do conhecimento da história da losoa. E,
como escrevemos anteriormente, não se trata de um saber que, mas, funda-
mentalmente, um saber como. Não acumulamos, simplesmente, um conheci-
mento sobre a história da losoa, adquirindo referências clássicas da cultura
losóca. De fato, a habilidade de “explicar” textos losócos, a nossa rotina
em torno da explicação e compreensão dos textos clássicos, reete os impe-
rativos de uma cultura técnico-losóca do especialista, do comentador de
textos, cujo ofício se faz separado da vida e dos problemas imanentes à nossa
realidade. Como arma Cabrera (2017), a losoa acadêmica traz no bojo de
suas práticas a exigência de exaustividade, conduzindo-nos para uma cultura
erudita de formação; e, além disso, exige dos pesquisadores, professores e
estudantes uma frieza vital, condição que permite uma relação apenas técnica
com a tradição losóca e seus problemas e, em contrapartida, impossibilita,
praticamente, a experimentação losóca.
212
Em partes, a rotina universitária e hegemônica do curso de losoa da
UNESP se fortalece pelos próprios integrantes da losoa acadêmica brasi-
leira, que não deixam de reforçar aquela narrativa de otimismo institucional.
Além disso, essa rotina também endossa os pressupostos de uma educação
institucionalizada, que prevê no acúmulo cultural e na impessoalidade, na
separação de uma racionalidade técnica e uma racionalidade vital, o caminho
único para se educar losocamente pela transmissão de conhecimentos. Mas
será que a experiência de losofar é dependente de um acúmulo informacio-
nal, técnico e impessoal de cultura losóca geral?
Nós defendemos que não, porque aquilo que aprendemos a cultivar ao
longo de nossas práticas de ensinar e aprender universitárias foram uma cultura
biblióla, que separa bibliograa da própria biograa. Nossos desejos de pensar
o mundo, de manter uma conexão vital com os problemas losócos e a tra-
dição losóca são sequestrados pela rotina institucional; nossas experiências e
nossa trajetória de vida são silenciadas pelas exigências de exaustividade e frieza
vital. Em nossa rotina biblióla, a losoa torna-se conversa de especialista, te-
mas a serem conhecidos e bibliogracamente debatidos no plano técnico, sem
nenhuma implicação e afetividade ética. Dedicamo-nos à losoa sem sequer
existir a necessidade de nos transformarmos, sem sequer experimentarmo-nos
naquilo que se estuda, ensina e pesquisa. O estudo e a formação losóca exis-
tem, assim, separadamente de uma prática ética com o presente.
E o que esperar de um professor e pesquisador de losoa que não se
exercitou eticamente? Quais serão os efeitos disso em nossas relações edu-
cativo-losócas? Não seria necessária uma política losóca de ensinar e
aprender losoa que forme lósofos e professores-lósofos? Ao recuperar-
mos o texto do prof. Trajano (2013) e seu projeto de formação de lósofos,
apresentamos algumas notas problemáticas para pensarmos em uma educa-
ção losóca que não separa as práticas de ensinar e aprender da experiência
de losofar. Para nós, o losofar não é obra do gênio e de poucos escolhidos;
tampouco exige uma exaustividade bibliográca e um preparo cultural eru-
dito. Filosofa-se no cultivo da vida, experimentando os problemas que visce-
ralmente afetam professores e estudantes. No decorrer de uma tensão proble-
mática do pensamento, vamos adquirir as bagagens culturais e os arcabouços
técnicos próprios da tradição losóca. Mas o contrário parece ser difícil,
213
porque não somos exercitados no pensamento e nossas atitudes losócas se
atroam pela rigidez da disciplina imposta. Tal como uma arte, aprende-se
losofar fazendo com, e não recebendo as explicações ilustrativas dos profes-
sores ou a transmissão de conhecimentos que nos preparariam as bagagens
culturais imprescindíveis para o losofar.
De certa forma, nossa política losóca de ensinar e aprender losoa,
assim como ressoa às heranças do campo, encontra também suas raízes nas
echas lançadas pelo prof. Trajano e em sua política de formação de lóso-
fos. Quando problematizamos a emergência de nossa losoa do ensino de
losoa, vemos o encontro de trajetórias e projetos que acontecem em frentes
distintas, mas que têm muitas causas em comum, e que são reelaborados na
conguração do ENFILO, seja como grupo atuante na formação da licen-
ciatura em losoa da UNESP, seja como grupo que desenvolve pesquisas
no campo do Ensino de Filosoa e forma novos quadros de pesquisadores
para a área. Trata-se de um encontro de dois projetos losócos de ensinar e
aprender losoa, os quais, ao mesmo tempo que resistem às práticas e pres-
supostos hegemônicos da formação losóca na universidade, armam uma
política de formação de lósofos e professores-lósofos.
Na realidade, o prof. Trajano vislumbrava esse encontro. Em sua últi-
ma entrevista, feita em homenagem à profª. Maria Eunice, diz que o depar-
tamento de losoa, tendo-a como representante, tem algo a oferecer às re-
centes discussões do ensino de losoa, as quais se intensicaram nos últimos
anos. Os anos de dedicação à universidade e à formação losóca serviriam
para oferecer um projeto ambicioso de ensinar a losofar:
Para nalizar, gostaria de dizer que uma contribuição que o Departamento
de Filosoa da UNESP ainda pode dar, e a Maria Eunice guraria como
uma representante central neste projeto, é sobre a discussão acerca do
Ensino de Filosoa. Estamos em uma fase propícia para isso. A literatura
brasileira sobre o Ensino de Filosoa está crescendo cada vez mais e nós
ainda não inuenciamos efetivamente essa corrente. Porém, temos tudo
para fazer isso de uma maneira original, de uma maneira que os outros
não estão fazendo. Nós, com a Maria Eunice, podemos lançar uma ofensi-
va, nada ambiciosa, mas uma ofensiva real de proposta sobre o Ensino do
losofar, porque nós estamos com a “faca e o queijo na mão”. E sabemos
do que estamos falando (Broens; Moraes, 2015, p. 313-314).
214
Infelizmente, ele não pôde estar conosco debatendo mais sobre o seu
ambicioso projeto. Mas suas echas foram lançadas e nos servem como ve-
tores para debatermos novas políticas de ensinar e aprender losoa na con-
temporaneidade. Atualmente, um lugar propício para esse debate tem sido
o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, cujo nome carrega esse desejo do prof.
Trajano e cria uma comunhão entre diferentes projetos. Tal como escreve
Gonçalo Armijos Palácios, um dos fundadores do GT, em sua participação
no VII Simpósio Sul-brasileiro do Ensino de Filosoa, há um desejo comum
em torno do losofar no Brasil. Identica-se uma necessidade crescente de
todos aqueles que se veem como lósofos de losofar e ensinar a losofar:
Pois como ensinar a losofar se não sabemos o que é losofar? E como
losofar sem ter conhecimento de pelo menos algumas formas em que se
deu o losofar? A necessidade de ensinar a losofar é uma consequência
da necessidade de se losofar. Esta última vem crescendo e seu clamor -
cando mais forte no Brasil. Quem faz pós-graduação de Filosoa no Brasil
tem percebido o crescimento dessa exigência. Quem estuda losoa, no
Brasil, não se contenta mais com o papel de subalternos da losoa, com
o de, unicamente, fazer comentários losócos ou História da Filosoa.
As vozes se espalham e dizem: queremos losofar. O Fato de ser formado
um Grupo de Trabalho, acolhido pela Associação Nacional de Filosoa,
com o nome ‘Filosofar e Ensinar a Filosofar’ é uma prova disso. É uma
prova – e uma consequência – da necessidade crescente de todos aqueles
que se vêem a si mesmos como seres losofantes, como pessoas que estão
exercendo um ofício determinado: o ofício de pensar por si, o ofício da
reexão própria (Palácios, 2007, p. 113).
Muitas são as pautas do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar na atualida-
de. Nele se reúnem pesquisadores de todas as regiões do país, com o objetivo
de discutir losocamente as práticas de ensinar e aprender losoa, a pre-
sença da losoa na educação básica, os desaos educacionais da losoa, as
condições institucionais e losócas do campo do Ensino de Filosoa, etc..
Porém, uma coisa parece unir a todos: o losofar e o desejo de que outros
também possam, por sua vez, conosco losofar. E acreditamos que é nisso
que se expressa uma losoa de professores: uma experimentação losóca
que se cultiva como educação de si e do outro; um pensar coletivo que se
215
realiza na relação entre professores e estudantes em sala de aula e em tantos
outros espaços educacionais.
Uma losoa de professores pode não entusiasmar muitos dos críti-
cos da losoa brasileira, porque não reete necessariamente na emergência
de um lósofo modelo que as universidades brasileiras poderão reconhecer
como dignos representantes do Brasil. Na realidade, ela só pode ser uma
losoa menor, corporicando-se na invisibilidade das inúmeras escolas e uni-
versidades brasileiras espalhadas pelo Brasil. No plano relacional micro, ela
se espalha e contamina os corredores, as salas de aula e os pátios, levando o
legado educativo do losofar para todos aqueles que se sentem afetados pela
losoa. Não exige erudição, nem pré-condições innitas, apenas compro-
metimento vital e uma transformação ética de quem nós somos e de nossa
relação com o mundo. E, para nós do ENFILO, a nossa maneira de losofar
é como professores de losoa, dentro de uma sala de aula e em outras re-
lações educativo-losócas. Ser professor de losoa não é nossa prossão,
mas ofício de vida: compromisso ético-formativo, que não se separa losofar,
aprender e ensinar a losofar, como uma prática de vida, na vida e pela vida.
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229
Posfácio
[...] se realmente participamos dos seus sofrimentos
para que, da mesma maneira, participemos da
sua glória. O sofrimento e a glória futura.
(Rm 08:17)
A epígrafe abre-alas desta obra, aqui posfaciada, tem continuação.
E faz sentido também trazê-la neste momento.
A ideia primária de “herança” nos remonta um legado, muitas vezes,
virtuoso que seus receptores aproveitarão com deleite. Pouco se diz das pedras
no caminho. Não apenas suas presenças que, por óbvio, sabemo-las. Mas é
preciso buscar o impacto que cada uma provoca naqueles que se lançam no
ofício de ensinar e aprender losoa.
Assim, Augusto Rodrigues lança uma luz nos meandros do Ensino
de Filosoa enquanto campo – a luta travada pelas diversas gerações que se
entrecruzam na construção de uma tradição existente que, por necessidade,
é. Nossas raízes são axiais. E como já nos alastramos! Neste sentido, desve-
lam-se pesquisas nos mais diversos meios (construídos e ocupados por nós).
Somos lósofos do ensino de losoa. Nada fácil para a pesquisa, nem para
a educação losóca, nem tampouco para losoa da educação e do ensino.
A dimensão política de ensinar e aprender losoa é essencial e subsiste em
nossas práticas lo-pedagógicas.
O legado resgatado pelo autor nos convida a mergulhar no universo
não universal dos primeiros trabalhos, dos primeiros colegas que se arvo-
raram neste ofício, dos primeiros encontros e movimentos que deram cor-
po às reexões sobre as práticas de ensinar e aprender losoa. É uma via-
gem cuidadosa que busca os fundamentos do fundamental, isto é, aquilo
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-540-7.p229-231
230
que encampa o campo. Uma primeira geração que inaugura pesquisas, cria
metodologias e epistemologias para que professoras e professores futuros de
losoa possam não somente ser agentes da prática, mas também membros
participantes da teoria.
O currículo vivo que gesta o ensino de losoa precisa ser nutrido para
que essa herança também seja orgânica e se espraie em novas ideias, em novos
territórios, em novos pensamentos. Políticas que ampliquem as vozes que
precisam ser ouvidas.
Passeando por Sampa, para além das avenidas Ipiranga e São João, des-
vela-se todo o trabalho desenvolvido na UNESP e a importância do PIBID
para que o jovem Augusto, assim como tantos outros, se formasse professor
de losoa. Reetir sobre seu ensino é lançar-se nos caminhos sofridos que
muitas vezes percorremos.
Não nos esquecendo da epígrafe – ainda o sofrimento. Talvez eu o ape-
lidaria de angústia (sem desprezo ou desmerecimento). As reexões sobre a -
losoa e seu ensino nos conduzem às primárias realizadas na formação inicial
em que não temos como vislumbrar, por exemplo, qual conteúdo faz sentido
naquele momento, naquele território, naqueles estudantes. Quais caminhos
seguir para que essa losoa possa ser pesquisada, ensinada e aprendida? Para
que precisamos de tudo isso?! Ora, herdemos! E trans-formemos!
Por isso, se losofa educando e se educa losofando. Esse amálgama faz
da joia algo único e deveras valiosa – é a única propriedade da nossa própria
idade! É onde o pensamento se materializa na prática. É onde a prática nos
conduz às reexões. É onde as reexões nos estimulam pesquisas. É onde
pesquisas se realizam no pensamento.
A formação docente-losóca de nossa geração não foi boa. Componentes
curriculares que em nada contribuíam para a autonomia reexiva da prática
losóca. Quantos de nós ainda estamos perdidos nos caminhos com nossas
pedras? Os problemas losócos que se apresentam em cada espaço do livre
pensar merece destaque, pois, a partir deles, em cada momento histórico, em
cada remoto território, seres humanos livremente losofavam.
O processo de ensinar e aprender losoa é uma exortação para o re-
conhecimento dos problemas de cada espaço e de cada tempo para que haja
a experimentação losóca.
231
E, partindo das ideias trazidas por Augusto Rodrigues que aprendemos
a lidar com aquilo que está exposto no versículo da epígrafe – assim como
participamos do sofrimento também participaremos da glória futura. Ou
seja, ser professor de losoa não nos coloca em um status quo privilegiado,
mas, ao contrário, é de uma aridez existencial que agrega um conjunto de
mal-estar quase indissolúvel.
Mas quando o espetáculo se encerra, o cenário e o palco são desmon-
tados, podemos nos deparar com a solução, fruto da desilusão. Desiludidos,
losofamos mais e melhor. Desiludidos, (nos) educamos mais e melhor. É
a glória futura que, quando menos esperarmos, se apresentará e se instalará
como uma possível losoa de professoras e professores.
Seropédica/RJ, no inverno de 2024.
Bruno Bahia (UFRRJ)
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno – CRB 8/8211
Normalização
Lívia Pereira
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Ocina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
O diferencial da obra de Augusto Rodrigues consiste em seu objetivo
principal, a saber, problematizar como a emergência de uma nova política
losóco-educacional de pesquisar e de ensinar Filosoa no Brasil, junto
com a formação losóca do autor na Universidade Estadual Paulista
UNESP, transformam-se em uma herança de formação, atravessando, as-
sim, a própria constituição de Rodrigues como pesquisador e professor de
Filosoa. Para tanto, tensionando o passado pelo presente, o livro entre-
cruza as experiências e vivências do autor em sua trajetória formativa com
alguns debates atuais da área do Ensino de Filosoa, tais como a discussão
sobre o estatuto epistemológico do Ensino de Filosoa como campo de
conhecimento, a institucionalização da Filosoa universitária no Brasil e
a formação de professores e professoras de Filosoa. Ao fazê-lo, contudo,
acaba por inverter o subtítulo do livro: ao discutir suas Heranças político-
-losócas de ensinar e aprender losoa: do campo do ensino de losoa à
trajetória formativa na UNESP, Rodrigues fomenta – com rigor e sabor – o
próprio debate sobre o campo que lhe serve de ponto de partida.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio 0039/2022
Processo 23038.001838/2022-11
Extraído do prefácio de Patrícia Velasco
Augusto Rodrigues
HERANÇAS POLÍTICO-FILOSÓFICAS DE
ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA
do campo do ensino de Filosoa à
trajetória formativa na UNESP
HERANÇAS POLÍTICO-FILOSÓFICAS DE ENSINAR E APRENDER FILOSOFIA Augusto Rodrigues

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