A coletânea “Pesquisas em Educação: contribuições de egressos do PPGE” reúne
um conjunto de textos escritos por docentes e egressos do Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da UNESP, Câmpus de Marília, em sua maioria versando
sobre resultados de investigações cientícas para elaboração de teses e disserta-
ções de mestrado nesta área do conhecimento. O livro é interface de diálogo de
discentes egressos do PPGE com diferentes Grupos de Pesquisa e outros PPGs da
Faculdade de Filosoa e Ciências FFC da UNESP, Câmpus Marília.
Constituindo-se como um vasto campo para a produção de conhecimento de
natureza acadêmico-cientíca, a área da Educação logrou com o desenvolvimen-
to acentuado da pós-graduação, nas quatro últimas décadas, a formulação de um
amplo arcabouço de reexões teóricas, bem como uma consciência generaliza-
da da interdependência entre as diferentes áreas do conhecimento. Isso implica
conduzir a busca de solução dos problemas educacionais pela intensicação de
práticas de natureza transdisciplinar, visando promover uma relação dialógica e
cooperativa entre as diversas instâncias de conhecimento e suas interconexões.
Trata-se de movimento essencialmente dialético cujas transformações impulsio-
nam o desenvolvimento de certas referências lógicas e operativas, as quais se
tornaram comuns a vários campos cientícos, impondo novos paradigmas como
a evolução da concepção histórico-lógica em contraposição à organização mera-
mente lógica dos programas de ensino, ou, então, a convicção teórica segundo a
qual é a aprendizagem que orienta o desenvolvimento da criança e não o contrá-
rio, constructo teórico com a qual se identica a maioria dos autores desta obra.
O presente livro, em sua totalidade, reete o compromisso ético-político com
a busca de compreensão para a solução de problemas educacionais a exigirem
suporte teórico-empírico da produção de conhecimento, para tanto, abordan-
do questões que aigem a sociedade brasileira: a inclusão escolar para superação
do analfabetismo absoluto e da baixa escolarização de amplo contingente po-
pulacional; a necessidade de melhoria na qualidade dos processos de ensino e de
aprendizagem em todas as áreas do conhecimento; a busca de superação do dua-
lismo entre ensino propedêutico e formação prossionalizante; reexões críticas
e losócas; estudos históricos; enm, a compreensão do aparato escolar como
instância fundamental para a construção de uma sociedade verdadeiramente de-
mocrática e inclusiva.
Vislumbrando um paradigma curricular voltado à promoção de aprendizagens,
constituição de capacidades e desenvolvimento da consciência crítica, a obra é
de interesse para a discussão sobre o processo de ensino e de aprendizagem na
educação básica e para a formação inicial e continuada de educadores.
A coletânea temática “Pesquisas
em Educação: contribuições de egressos
do PPGE” traz um acervo de trabalhos
produzidos no âmbito do Programa de
s-Graduação em Educação (PPGE),
da Faculdade de Filosoa e Ciências
(FFC) da Universidade Estadual Paulis-
ta “Júlio de Mesquita Filho(UNESP),
Campus Marília, no período a partir de
2019, entre as linhas de pesquisa: linha
01 Psicologia da Educação: Processos
Educativos e Desenvolvimento Huma-
no, linha 02 Educação Especial, linha
03 Teoria e Práticas Pedagógicas, li-
nha 04 Políticas Educacionais, Gestão
de Sistemas e Organizações, Trabalho e
Movimentos Sociais e linha 05 Filoso-
a e História da Educação no Brasil.
As investigações educacionais
que compõem a presente obra tratam
de pesquisas já concluídas e alguns re-
sultados parciais a partir de atualizações
de investigações em curso. A coletânea
conta com 21 autores entre 15 capítulos
que se dialogam na pesquisa educacional
a partir das linhas de pesquisa do PPGE
e atividades dos Grupos de Pesquisa. Os
trabalhos são desdobramentos de teses
e dissertações produzidas por discentes
egressos do programa de pós-gradua-
ção e estão em articulação com grupos
de pesquisa institucionais e interinsti-
tucionais, conectando pesquisadoras e
pesquisadores em diferentes instituições
dentro e fora do território nacional.
Durante os capítulos da coletâ-
nea é possível vislumbrar a criativida-
de e intencionalidade de pesquisas em
educação que articulam teoria e práti-
ca com pensamento crítico e reexivo
sobre seus objetos de estudo com uma
diversidade de metodologias e instru-
mentos de coleta de dados.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0039/2022
Processo Nº 23038.001838/2022-11
PESQUISAS EM EDUCAÇÃO
PESQUISAS EM EDUCAÇÃO
contribuições de egressos do PPGE
Rodrigo Martins Bersi
José Carlos Miguel
organizadores
contribuições de egressos do PPGE
Certos da relevância dos tra-
balhos neste coletivo temático da área
da educação a partir das contribuições
de pesquisas de egressos do Programa
de Pós-Graduação em Educação da
UNESP, Câmpus Marília, em interfa-
ce com diferentes Grupos de Pesquisa
e ainda com outros PPGs da Faculda-
de de Filosoa e Ciências da UNESP
Câmpus Marília, desejamos uma leitura
enriquecedora diante da diversidade te-
mática e amplitude teórica e metodo-
lógica presentes na obra. “Eu sou por-
que nós somos” é um ditado atribuído
à cultura Bantu e presente em diferen-
tes partes do continente africano na
expressão Ubuntu que enfatiza a ideia
de identidade intrinsecamente ligada a
comunidade e aos indivíduos em socie-
dade. Neste percurso de compor-se no
diálogo e em interação com diferen-
tes perspectivas teóricas e áreas do co-
nhecimento no campo da pesquisa em
educação desejamos uma boa leitura.
Ubuntu “Eu sou porque nós somos”.
Boa leitura!
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PESQUISAS EM EDUCAÇÃO:
contribuições de egressos do PPGE
Organizadores
Rodrigo Martins Bersi
José Carlos Miguel
Organizadores
Rodrigo Martins Bersi
José Carlos Miguel
PESQUISAS EM EDUCAÇÃO:
contribuições de egressos do PPGE
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2025
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora: Dra. Ana Clara Bortoleto Nery
Vice-Diretora: Dra. Cristiane Rodrigues Pedroni
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Edvaldo Soares
Franciele Marques Redigolo
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Henrique Tahan Novaes
Aila Narene Dahwache Criado Rocha
Alonso Bezerra de Carvalho
Ana Clara Bortoleto Nery
Claudia da Mota Daros Parente
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto
Daniela Nogueira de Moraes Garcia
Pedro Angelo Pagni
Auxílio Nº 0039/2022, Processo Nº 23038.001838/2022-11, Programa PROEX/CAPES
Parecerista: Prof. Dr. Alberto Luiz Pereira da Costa (Pós-doutoramento na Faculdade de Economia da Universidade
do Algarve - Portugal. Docente e Coordenador do Departamento de Educação em Ciências, Matemática e
Tecnologias da Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM – Campus Uberaba, MG)
Capa: Imagem gratuita de Pexels (https://www.pexels.com/pt-br/foto/
conjunto-de-pinceis-de-cores-variadas-3777876/)
Ficha catalográfica
_______________________________________________________________________________________
P474 Pesquisas em educação: contribuições de egressos do PPGE / Rodrigo Martins Bersi,
José Carlos Miguel. – Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2025.
353 p. : il.
CAPES
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-574-2 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-603-9 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9
1. Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília –
Pós-Graduação. 2. Educação – Pesquisa. 3. Educação. I. Bersi, Rodrigo Martins.
II. Miguel, José Carlos. III. Título.
CDD 370.78
_______________________________________________________________________________________
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno – CRB 8/8211
Copyright © 2025, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - Campus de Marília
Sumário
Prefácio | Aline de Novaes Conceição.......................................................................7
Apresentação | Rodrigo Martins Bersi e José Carlos Miguel.....................................11
Patronos dos Parques Infantis do Município de Marília/SP ................................19
Aline de Novaes Conceição
Macioniro Celeste Filho
Autobiografias e Ação Emancipadora no Blog da EJA: Sentido e Acolhimento no
Processo de Desenvolvimento.............................................................................35
Rodrigo Martins Bersi
Izabella Domingues Torres Horta
Concepções de Linguagem nas Histórias em Quadrinhos: o que dizem Jovens e
Adultos Camponeses...........................................................................................53
Gustavo Cunha de Araújo
Davi Milan
Educação Popular e Consciência de Classe: uma Reflexão a Respeito da
Experiência do 13 de Maio NEP.........................................................................69
eo Martins Lubliner
Alfabetização e Letramento do Aluno Autista à Luz da Teoria Histórico
Cultural..............................................................................................................93
Davi Milan
Lucas Ferreira Rodrigues
Sirley Leite Freitas
Tangram como Ferramenta Lúdica e Didática no Ensino de Geometria e
Pensamento Espacial.........................................................................................121
Elisângela da Silva Callejon
Representações de Professores Universitários sobre Avaliação.............................139
Luiz Felipe Garcia de Senna
Raquel Lazzari Leite Barbosa
Apontamentos sobre a Formatação do Circuito Quilombola de Turismo do Vale
do Ribeira e as Contribuições do Instituto Sociombiental (ISA).......................163
João Henrique Souza Pires
A Prisão Vista por Foucault: Reflexões Necropolíticas........................................187
Jonas Rangel de Almeida
O Movimento Universal, Particular e o Singular: sua Materialização no Campo da
Matemática......................................................................................................207
Osvaldo Augusto Chissonde Mame
José Carlos Miguel
Interseção Informacional: Semiótica, Filosofia e Teoria Unificada......................239
Valdirene Aparecida Pascoal
Rodrigo Martins Bersi
Maria Lacerda de Moura na Imprensa Anarquista: Educação e a Igreja Católica na
Década de 1930................................................................................................259
Tatiana Ranzani Maurano
Cinema, Educomunicação e Sala de Aula: Contribuições para a Formação de
Professores........................................................................................................283
Naiana Leme Camoleze Silva
A Pedagogia Waldorf Antirracista à Luz da Perspectiva Teórica Decolonial........307
Aline Lucas Ribeiro
O Desenvolvimento da Ideia de Proporcionalidade nos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental: um Estudo sobre o Projeto EMAI...............................................327
Cláudia Elaine Catena
7
Prefácio
Aline de Novaes CONCEIÇÃO1
Neste livro, “Pesquisas em Educação: contribuições de egressos do PPGE”,
são reunidos capítulos escritos por discentes egressos do Programa de Pós-Graduação
em Educação (PPGE), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) “Júlio de
Mesquita Filho”, Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) - Câmpus Marília/SP.
Nessa universidade, vinculei-me em 2009, para cursar Pedagogia e
posteriormente, especialização em Formação de professores em Educação
Especial e Inclusiva, mestrado e doutorado em educação. A formação possi-
bilitada pela Unesp foi indescritível, transformou-me enquanto pessoa, pes-
quisadora e professora.
Lembro-me o primeiro dia que estive na Unesp de Marília/SP, eu era
discente do Ensino Médio público do período noturno e tive a certeza que
queria estar naquele espaço como graduanda. O início das aulas como dis-
cente do curso de Pedagogia, possibilitaram uma admiração pelos docentes,
pois demonstravam um vasto conhecimento na área, ministrando as discipli-
nas de forma articulada com a pesquisa.
A admiração transformou-se em desejo de continuar a formação, com-
preendendo-a como algo a ser realizada por toda vida, de forma contínua.
A Unesp de Marília/SP, possibilitou essa continuidade em nível de Pós-
Graduação stricto e lato sensu.
Contudo, após 13 anos, a partir de 2022, tornei-me egressa, o que não
significou rompimento de vínculos e trabalhos com pesquisadores e docentes
da universidade em questão. Para além do vínculo institucional, havia os
vínculos pessoais, acadêmicos, científicos e profissionais.
1 Doutorado. Universidade Estadual Paulista (Unesp) “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC) – Câmpus de Marília/SP. alinenovaesc@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p7-9
8
A admiração pela referida instituição, prosseguiu e com muita satisfa-
ção, pude retornar em 2024, como docente da “casa”. Docente de uma ins-
tituição que dentre as várias ações, possibilita a formação inicial, a formação
contínua, a pesquisa e a extensão.
A Unesp formou-me e forma-me, resultado de um trabalho conjunto
de docentes, funcionários e discentes que possibilitaram e possibilitam diversas
vivências formativas no espaço universitário. Para além dos dias letivos, a di-
versidade de interações, projetos, eventos científicos, financiamentos e demais
ações, contribuem para a formAÇÃO que realmente forma e não deforma.
Nesse sentido de diversas possibilidades, no livro em questão, são reu-
nidos resultados de pesquisas realizadas no âmbito dos cursos de mestrado e
doutorado, sendo que em cada capítulo, há a relação direta com egressos do
PPGE da Unesp, Câmpus de Marília/SP.
Em “Pesquisas em Educação: contribuições de egressos do PPGE”
há 15 capítulos que com uma diversidade teórico-metodológica demons-
tram diferentes possibilidades de escolhas no âmbito da pesquisa, registran-
do temáticas relacionadas com: os Parques Infantis; Educação de Jovens e
Adultos (EJA); concepções camponesas, estética, linguagem e Histórias em
Quadrinhos; Educação Popular e Consciência de Classe; alfabetização e le-
tramento no âmbito da Teoria Histórico-Cultural, relacionando com o au-
tismo; Tangram na escola; avaliação a partir das representações de docentes
universitários; o Circuito Quilombola e Instituto Socioambiental; Foucault e
a decolianilidade; a Pedagogia e a decolianilidade; o campo da matemática e o
movimento universal; filosofia, signos e significados; histórias e bibliografias
como a de Maria Lacerda de Moura e a imprensa anarquista; tecnologias,
mídias e cinema na educação e por fim, o estudo da proporcionalidade no
Ensino Fundamental.
Parabenizo os organizadores, colega de programa e meu professor
quando cursei Pedagogia, por essa contribuição que possibilitará o fortaleci-
mento e ampliação das pesquisas, estudos e reflexões sobre diferentes temas
relacionados com a educação a partir de um ótimo e coletivo trabalho conti-
do neste livro.
Desejo uma ótima leitura formativa, compreendendo que como
pontuou o poeta Manoel de Barros “A maior riqueza do homem é a sua
9
incompletude”, constatação que quando trabalhamos com educação, precisa
ser considerada e transformada em um contínuo caminhar de formAÇÃO,
que dentre as várias possibilidades, encontra um caminho neste livro.
Marília/SP, março de 2024.
11
Apresentação
Rodrigo Martins BERSI2
José Carlos MIGUEL3
A coletânea temática “Pesquisas em Educação: contribuições de
egressos do PPGE” traz um acervo de trabalhos produzidos no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Faculdade de Filosofia
e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP), Campus Marília, no período a partir de 2019, entre as
linhas de pesquisa: linha 01 – Psicologia da Educação: Processos Educativos e
Desenvolvimento Humano, linha 02 – Educação Especial, linha 03 – Teoria
e Práticas Pedagógicas, linha 04 – Políticas Educacionais, Gestão de Sistemas
e Organizações, Trabalho e Movimentos Sociais e linha 05 – Filosofia e
História da Educação no Brasil.
As investigações educacionais que compõem a presente obra tratam de
pesquisas já concluídas e alguns resultados parciais a partir de atualizações de
investigações em curso. A coletânea conta com 21 autores entre 15 capítulos
que se dialogam na pesquisa educacional a partir das linhas de pesquisa do
PPGE e atividades dos Grupos de Pesquisa. Os trabalhos são desdobramen-
tos de teses e dissertações produzidas por discentes egressos do programa de
pós-graduação e estão em articulação com grupos de pesquisa institucionais e
interinstitucionais, conectando pesquisadoras e pesquisadores em diferentes
instituições dentro e fora do território nacional.
Durante os capítulos da coletânea é possível vislumbrar a criatividade
e intencionalidade de pesquisas em educação que articulam teoria e prática
2 Doutorado em Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação – Faculdade de Filosofia e
Ciências – UNESP/Campus Marília. E-mail. rodrigo.bersi@unesp.br.
3 Doutor em Educação, Professor Livre Docente do Departamento de Didatica da Faculdade de
Filosofia e Ciências – e-mail: jocarmi@terra.com.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p11-17
12
com pensamento crítico e reflexivo sobre seus objetos de estudo com uma
diversidade de metodologias e instrumentos de coleta de dados.
O acervo metodológico das contribuições têm amplo escopo, desde a pes-
quisa bibliográfica até investigações participantes e experimentais. Há uma di-
versidade teórica presente na coletânea que fomenta a criatividade para pensar
questões educacionais por diferentes referenciais teórico-metodológicos reunindo
em uma mesma obra um escopo abrangente de referências e autores que refletem
os debates dentro dos grupos de pesquisa fonte em que nossos autores bebem.
A coletânea reúne em uma mesma obra parcerias entre diferentes gru-
pos de pesquisa e áreas do conhecimento que pensam a educação de uma
maneira interdisciplinar e transversal a partir de diversos objetos de estudo.
Pensa-se a educação pela ótica de diferentes referenciais teórico-metodológi-
cos, a partir de diversos grupos de estudo e áreas do conhecimento que pen-
sam o campo da educação de maneira ampla. Os trabalhos presentes nesta
coletânea vão da temática histórica, biográfica e bibliográfica, pesquisas com
abordagens filosóficas, até investigações acerca de letramentos, matemática e
linguagem. São contemplados temas de reflexão filosófica e de experimenta-
ção didática sobre instrumentos pedagógicos em contextos escolares, assim
como reflexões teóricas e bibliográficas sobre os objetos de estudo e pesquisas
com tecnologias e mídias na educação.
O primeiro capítulo traz a pesquisa “Patronos dos Parques Infantis do
Município de Marília/SP” escrito por Aline de Novaes Conceição e Macioniro
Celeste Filho que tratam dos parques infantis que funcionaram no Brasil da
década de 1930 até a década de 1970 e que atendiam crianças de 3 a 12
anos, com uma educação não formal, em que se valorizava uma Educação
Integral no município de Marília/SP. A partir disso, os objetivos da pesquisa,
cujos resultados estão apresentados no capítulo, consistem em: reconstituir
elementos históricos dos sete Parques Infantis do município de Marília/SP,
no período de 1937 a 1978, respectivamente ano da instalação do primeiro
Parque Infantil da cidade e ano da alteração, na cidade, da denominação de
Parques Infantis para EMEIS, com objetivo específico de compreender quais
foram os patronos dessas instituições. Dos nomes dos sete Parques Infantis
que funcionaram na cidade, cinco estão relacionados com o universo literário
infantil e dois homenagearam pessoas que representam poder.
13
O capítulo “Autobiografias no e Ação Emancipadora no Blog da
EJA: Sentido e Acolhimento no Processo de Desenvolvimento” de Rodrigo
Martins Bersi e Izabella Domingues Torres Horta versa sobre pesquisa ex-
perimental realizada entre 2018 e 2020 e faz uma reflexão crítica a partir
do livro publicado em 2020 intitulado O Blog na EJA: autobiografia e ação
emancipadora publicado como resultado de dissertação de mestrado concluí-
da no âmbito do PPGE. A pesquisa trata da Educação de Jovens e Adultos
em diálogo com os referenciais teóricos da Educação Libertadora, a Educação
Desenvolvimental e a Educação Humanizadora com objetivo de produzir
sentido e negociar significados em intenso diálogo e valorização de educan-
dos da EJA no processo de desenvolvimento.
Os autores Gustavo Cunha de Araújo e Davi Milan no capítulo 3 in-
titulado “Concepções de Linguagem nas Histórias em Quadrinhos: o que
dizem Jovens e Adultos Camponeses” versam acerca de pesquisa de natureza
explicativa aplicada a partir de um Experimento Didático-Formativo que re-
flete a formação estética e cultural de jovens e adultos camponeses. O capítu-
lo ainda realiza considerações críticas sobre política e economia vigentes no
Brasil que influenciam diretamente o campo de estudo diante da interface
cultural do campo de pesquisa. O capítulo 4 intitulado como “Educação
Popular e Consciência de Classe: uma Reflexão a Respeito da Experiência do
13 De Maio NEP” escrito por eo Martins Lubliner analisa a necessida-
de da realização de formação política entre as classes trabalhadoras para um
avanço da consciência de classe em vistas à organização da revolução proletá-
ria junto ao socialismo científico. Trata dos grandes ensinamentos históricos
da burguesia, de suas ideias e valores as suas revoluções. Em razão disso, o
texto se ocupa de fazer uma reflexão sobre a experiência do coletivo 13 de
Maio do Núcleo de Educação Popular (NEP) que possui uma inestimável
contribuição teórico-metodológica à formação política das classes trabalha-
doras brasileiras, em especial a sua fração ligada ao sindicalismo urbano-in-
dustrial, tendo formado dezenas de milhares de pessoas através de seus cursos
e seminários desde a década de 1980.
O quinto capítulo composto por Davi Milan, Lucas Ferreira
Rodrigues e Sirley Leite Freitas traz como título “Alfabetização e Letramento
do Aluno Autista à Luz da Teoria Histórico-Cultural” apresenta como
14
principal objetivo, investigar a alfabetização, letramento e aprendizagem
de alunos autistas, explorando a influência e as possíveis contribuições da
teoria Histórico-cultural, em vista de uma compreensão aprofundada dos
processos educacionais e a identificação de estratégias eficazes no contexto
da educação inclusiva. A partir dos resultados encontrados, verificam que
a teoria Histórico-cultural, ao influenciar a prática pedagógica na alfabe-
tização, letramento e aprendizagem de alunos autistas, contribuiu signifi-
cativamente para a promoção de uma educação inclusiva, ao passo que a
adaptabilidade e flexibilidade inerentes a teoria proporcionam um alicerce
para o desenvolvimento educacional desses estudantes.
Intitulado “Tangram como Ferramenta Lúdica e Didática no Ensino de
Geometria e Pensamento Espacial” de autoria de Elisângela da Silva Callejon o
sexto capítulo tem como objetivo evidenciar a importância de jogos e ativida-
des lúdicas como ferramentas mediadoras do processo da apropriação dos con-
ceitos matemáticos e busca responder ao questionamento sobre como o jogo
Tangram e atividades lúdicas podem contribuir para a mediação do processo
de ensino e aprendizagem dos conceitos matemáticos sobre geometria e pensa-
mento espacial. O capítulo 7 de Luiz Felipe Garcia de Senna e Raquel Lazzari
Leite Barbosa intitulado “Representações de Professores Universitários sobre
Avaliação” apresenta destaques de uma pesquisa de mestrado publicada em
2020 que teve como objetivo compreender as representações docentes acerca
da avaliação da aprendizagem em cursos de licenciatura de uma Universidade
Pública no Oeste Paulista, de metodologia qualitativa, com uso de entrevistas
semiestruturadas e análise documental dos Projetos Político-pedagógicos dos
cursos. Os resultados apontam para a compreensão da avaliação e dos instru-
mentos avaliativos por professores participantes da pesquisa.
O capítulo 8 “Apontamentos sobre a Formatação do Circuito Quilombola
de Turismo do Vale do Ribeira e as Contribuições do Instituto Sociombiental
(ISA)” de João Henrique Souza Pires tem como objetivo apresentar um recorte
da análise realizada para a escrita da tese de doutoramento do autor sobre as
relações estabelecidas por organizações e instituições que realizaram trabalhos
ligados a capacitação, formação, assessoria, assistência técnica e extensão com
o propósito de organização do turismo junto às Comunidades Remanescentes
de Quilombolas do Vale do Ribeira (CRQVR). Para tanto, são considerados
15
os diferentes atores envolvidos no processo e a análise das ações do Instituto
Socioambiental (ISA) neste contexto, visto que a organização atuou diretamen-
te com a formação do CRQVR. Os resultados consideram as assimetrias entre
comunidades autóctones e agentes externos, que produz um progressivo pro-
cesso de reavaliação de recursos e uma nova configuração que altera as relações
de poder e o grau de autonomia das CRQVR.
Com autoria de Jonas Rangel de Almeida o capítulo 9 se intitula “A
Prisão Vista por Foucault: Reflexões Necropolíticas” discute como se consti-
tuiu a relação entre a prisão e as lutas marginais, destacando como os corpos
entram nesse sistema de opressão política e como a subjetividade é moldada
dentro dele. O texto se divide em duas partes: primeiro, explora as interações
entre vida e poder na modernidade usando os conceitos de biopolítica e bio-
poder; segundo, explora as visões de Foucault sobre a prisão, delinquência
e atuação política no contexto da sociedade disciplinar. Em sua conclusão
retorna à questão inicial para discutir como a abordagem foucaultiana da pri-
são pode nos ajudar a compreender a nós mesmos e a romper com a imagem
colonizada que nos foi imposta ao longo da história.
O décimo capítulo é intitulado “O Movimento Universal, Particular
e o Singular: sua Materialização no Campo da Matemática” produzido pelos
autores Osvaldo Augusto Chissonde Mame e José Carlos Miguel que faz uma
reflexão crítica em torno do movimento universal, particular e singular, bem
como da sua materialização no campo da matemática, fundamentando sua
discussão em referenciais filosóficos sobre as categorias mencionadas. O ca-
pítulo 11 faz uma interface entre diferentes Programas de Pós-Graduação da
Faculdade de Filosofia e Ciências sendo a autora Valdirene Aparecida Pascoal
egressa do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação Valdirene
Aparecida Pascoal e o autor Rodrigo Martins Bersi egresso do Programa
de Pós-Graduação em Educação PPGE. O capítulo se intitula “Interseção
Informacional: Semiótica, Filosofia E Teoria Unificada” apresenta os resulta-
dos da pesquisa de mestrado realizada pela primeira autora em interface com
o campo da pesquisa em educação realizando uma reflexão crítica e filosófica
acerca da epistemologia da construção do conhecimento e o papel desempe-
nhado pelos signos na transmissão de significados.
O capítulo 12 de autoria de Tatiana Ranzani Maurano traz o
16
título “Maria Lacerda de Moura na Imprensa Anarquista: Educação e a Igreja
Católica na Década de 1930”. A proposta do capítulo é apresentar e ana-
lisar os escritos anarquistas de Maria Lacerda de Moura e os “objetores de
consciência” de Gonçalves, Bruno e Queiroz (2015), sobre a interferência
do “Polvo Clerical”, na educação na década de 1930, tendo como fontes
primárias os jornais publicados em São Paulo que foram distribuídos em
todo o Brasil: A Lanterna – jornal de combate ao clericalismo, editado pelo
tipógrafo, jornalista, arquivista anarquista Edgard Leuenroth e A Plebe –
periódico libertário, editado pelo tipógrafo anarquista e imigrante italiano
Rodolfo Felipe nos anos de 1933 a 1935, encontrados no Arquivo Edgard
Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas. Assim registra na história
da educação brasileira a participação dos escritores e educadores anarquistas,
contribuindo para combate ao seu esquecimento ideológico proporcionando
as informações necessárias para futuras pesquisas sobre história da educação
e a educação anarquista.
O capítulo 13 com o trabalho intitulado “Cinema, Educomunicação
e Sala de Aula: Contribuições para a Formação de Professores” escrito pela
autora Naiana Leme Camoleze Silva apresenta a premissa de ressaltar a rela-
ção existente entre Cinema e Educação, assim como de colaborar com a prá-
tica docente com o uso de produções cinematográficas em sala de aula. Por
meio dos documentários produzidos pelo cineasta e poeta italiano Pier Paolo
Pasolini e através de uma perspectiva interdisciplinar busca promover diálo-
gos, visando contribuir com a formação de professores, busca compreender
como a linguagem cinematográfica pasoliniana pode contribuir na educação
e na formação de professores, por sua utilização interdisciplinar através da
educomunicação e auxiliando na prática docente.
Considerando o recente aumento da oferta de escolas Waldorf por
todo o Brasil, o décimo quarto capítulo intitulado “A Pedagogia Waldorf
Antirracista à Luz da Perspectiva Teórica Decolonial” escrito por Aline Lucas
Ribeiro trata da popularização dessas escolas entre famílias de pessoas pretas,
pardas e indígenas que anteriormente não compunham este cenário. O traba-
lho objetiva uma reflexão crítica sobre essa nova configuração que fez nascer
reivindicações de propostas pedagógicas que contemplem a cultura local do
Brasil e não mais apenas abordagens de simbologia europeia. Os resultados
17
apontam para a movimentação da comunidade Waldorf para abrasileirar a
pedagogia, fazendo aproximações com a perspectiva decolonial apontada
como importante recurso teórico para sustentar politicamente novos estudos
e atuações que descolonizam a escola e que trazem a interculturalidade às
ações pedagógicas.
Com título “O Desenvolvimento da Ideia de Proporcionalidade nos
Anos Iniciais do Ensino Fundamental: um Estudo Sobre o Projeto EMAI”
o capítulo escrito por Cláudia Elaine Catena encerra a coletânea e tem por
objetivo apresentar os resultados obtidos por meio de pesquisa documental
e bibiográfica sobre o Projeto Educação Matemática nos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental (EMAI), material didático utilizado em toda rede pú-
blica estadual paulista, com embasamento teórico que se situou no contexto
da Teoria dos Campos Conceituais de Gérard Vergnaud, além de interfaces
com a Teoria Histórico-Cultural de Vygotsky e colaboradores. Os resultados
apontam uma abordagem do material dos alunos no campo do conhecimen-
to empírico, já no material dos professores são apresentadas atividades que
podem favorecer o desenvolvimento conceitural sobre proporcionalidade, as-
sim desenvolvendo o pensamento teórico.
Certos da relevância dos trabalhos neste coletivo temático da área da
educação a partir das contribuições de pesquisas de egressos do Programa
de Pós-Graduação em Educação da UNESP, Câmpus Marília, em interface
com diferentes Grupos de Pesquisa e ainda com outros PPGs da Faculdade
de Filosofia e Ciências da UNESP Câmpus Marília, desejamos uma leitura
enriquecedora diante da diversidade temática e amplitude teórica e metodo-
lógica presentes na obra. “Eu sou porque nós somos” é um ditado atribuído
à cultura Bantu e presente em diferentes partes do continente africano na
expressão Ubuntu que enfatiza a ideia de identidade intrinsecamente ligada
a comunidade e aos indivíduos em sociedade. Neste percurso de compor-se
no diálogo e em interação com diferentes perspectivas teóricas e áreas do co-
nhecimento no campo da pesquisa em educação desejamos uma boa leitura.
Ubuntu “Eu sou porque nós somos”.
19
Patronos dos Parques Infantis do
Município de Marília/SP
Aline de Novaes CONCEIÇÃO4
Macioniro CELESTE FILHO5
Introdução
Dentre as instituições educativas, há os Parques Infantis que “[...] ti-
veram sua origem no estado de São Paulo na década de 1930, posterior-
mente, na década de 1970, foram transformados em Escolas Municipais de
Educação Infantil.” (Conceição, 2021, p. 251). Nos Parques Infantis, eram
atendidas crianças de 3 a 12 anos com uma educação não formal, em que se
valorizava uma Educação Integral.
Dessa forma, nos Parques Infantis
era considerado que a criança deveria ter momentos de recreação e
não deveria ser preparada para apenas escrever e ler, função do Ensino
Fundamental, ou como denominado no período histórico em questão,
Ensino Primário. Os Parques Infantis cuidavam e educavam com muitos
brinquedos, poucas salas e muitas árvores, o que justifica a nomenclatura
parque, que estava relacionada com a instalação dessas instituições em
parques verdejantes (Conceição, 2023, p. 251).
No município de Marília/SP houve o funcionamento de sete Parques
Infantis, os quais descrevemos a seguir a denominação e os anos em que
4 Doutorado. Universidade Estadual Paulista (Unesp) “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC) – Câmpus de Marília/SP. alinenovaesc@gmail.com
5 Doutorado. Universidade Estadual Paulista (Unesp) “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC) – Câmpus de Marília/SP. macioniro.celeste@unesp.br
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p19-34
20
foram instalados: Parque Infantil de Marília/SP (1937) que em 1948 pas-
sou a ser denominado Parque Infantil “Monteiro Lobato”, “Dr. Fernando
Mauro” (1961), “Príncipe Mikasa” (1965), “Chapeuzinho Vermelho” (1967),
“Branca de Neve” (1969), “Walt Disney” (1971) e “Saci-Pererê” (1972).
Funcionaram na cidade de Marília/SP de 1937 a 1978. Como men-
cionado, atualmente, essas instituições funcionam na cidade como Escolas
Municipais de Educação Infantil (Emeis) e a instituição “Branca de Neve” está
localizada em Padre Nóbrega/SP que é um distrito do município de Marília/SP.
Marília/SP é uma cidade cuja instalação como município ocorreu em
1929. Apresenta muitas lacunas em relação à produção de uma História da
Educação da cidade, o que dificulta a compreensão do presente educacional
do município, pois a história nos possibilita compreender onde estamos para
buscarmos as mudanças que desejamos.
Na cidade, é usual entre os familiares dos educandos matriculados nas
Emeis da cidade de Marília/SP, a afirmação que as crianças frequentam o
parque” ou o “parquinho” em vez de utilizarem Emei. Assim, tivemos in-
teresse em pesquisar a temática dos Parques Infantis não explorada no mu-
nicípio, a partir da seguinte problematização: quais os patronos dos Parques
Infantis do município de Marília/SP?
A partir disso, os objetivos da pesquisa, cujos resultados estão apresen-
tados neste capítulo de livro, consistem em: reconstituir elementos históricos
dos sete Parques Infantis do município de Marília/SP, no período de 1937
a 1978, respectivamente ano da instalação do primeiro Parque Infantil da
cidade e ano da alteração, na cidade, da denominação de Parques Infantis
para Emeis. O objetivo específico consiste em compreender quais foram os
patronos dessas instituições.
Como procedimento metodológico, foi realizada pesquisa bibliográfica
e documental com abordagem histórica, a partir dos procedimentos de loca-
lização, identificação, recuperação, reunião, sistematização, seleção, análise e
interpretação de fontes sobre a temática.
Dentre essas fontes, foram localizados números de jornais marilienses
e as fontes localizadas nos arquivos permanentes das Emeis em que funciona-
ram os Parques Infantis da cidade, como atas, fotografias, livros de matrículas,
Projeto Político Pedagógico, monumentos e placas das instituições em questão.
21
É importante destacar que as fontes foram compreendidas como “[...]
produtos de um tempo e das relações sociais estabelecidas em seus momentos
históricos.” (Kuhlmann Júnior, 2017, p. 223). Desse modo, até a questão da
preservação ou da falta de preservação das fontes é produto de um tempo e
das relações sociais.
Buscamos também considerar que “[...] ser historiador exige que se
desconfie das fontes, das intenções de quem a produziu, somente entendidas
com o olhar crítico e a correta contextualização do documento que se tem
em mãos.” (Bacellar, 2008, p. 63, grifo do autor).
Assim, analisamos e interpretamos as fontes, cotejando informações,
justapondo documentos, relacionando texto e contexto, estabelecendo infor-
mações constantes, identificando mudanças e permanências (Bacellar, 2008).
Na pesquisa com abordagem histórica, ao se utilizar os textos escritos
em outro tempo, é necessário considerar que os discursos dessas fontes são
produzidos socialmente e os seres humanos que participaram da construção
dos enunciados dos textos documentais são produtores e produtos da história
(Endlich, 2017).
É importante considerar também que as pesquisas em ciências huma-
nas são personificadas e não coisificadas, pois, o pesquisador é humano e
apresenta sentimentos, valores e percepções da realidade de acordo com a sua
trajetória de vida.
Ressaltamos que na educação, a história das instituições pode ser uma
vertente da história cultural ao se considerar o cotidiano da instituição para
realizar a reconstituição, tendo como fontes e temáticas, possibilidades diver-
sas, utilizando além das tradicionais legislações.
Na busca de compreender o cotidiano da instituição, na perspectiva
histórica, emergiu os estudos sobre cultura material escolar que significa con-
siderar “[...] edifícios, mobiliários, utensílios, materiais pedagógicos, manuais
didáticos etc [...] suportes de práticas, instrumentos mediadores da ação edu-
cativa e elementos estruturais para o funcionamento dos estabelecimentos de
ensino.” (Souza, 2007, p. 11).
A partir disso, a seguir serão apresentados os resultados e discussões,
seguida das considerações finais e referências.
22
Resultados e Discussões
Em 1948, o Parque Infantil de Marília/SP, foi denominado “Monteiro
Lobato”. Resultado de um projeto de autoria do vereador Aniz Badra que
além da troca do nome, idealizou para a instituição, uma placa de bronze
homenageando Monteiro Lobato (Modelar..., 1954).
Na entrada, à esquerda da instituição em que funcionou o Parque
Infantil em questão, há uma espécie de jardim com um monumento e uma
placa de bronze que podem ser vistos com as Figuras 1a e 1b:
Figura 1a- Monumento do Parque Infantil “Monteiro Lobato6
Fonte: arquivo da autora.
De acordo com a frase da placa, há indícios de que a escolha do pa-
trono em questão (escritor de histórias repletas de criatividade e imagina-
ção). Além de ser uma pessoa que representa poder, está relacionada com
a valorização das crianças e compreensão que educá-las no Parque Infantil
contribuiria para o progresso da cidade, o que justificaria naquele momento
o investimento nessas crianças.
6 Legenda da placa no monumento: “‘Parque Infantil ‘Monteiro Lobato’ Escrevo para as crianças,
porque elas construirão no amanhã o mundo com o qual sonhamos’ Ao grande amigo das crianças
do Brasil e das Américas, homenagem de Marília e sua gente.”.
23
Na lateral do monumento em questão, há a representação de um livro escrito
por Monteiro Lobato, denominado Viagem ao céu e do outro lado há uma pena:
Figuras 1b- Monumento do Parque Infantil “Monteiro Lobato
Fonte: arquivo da autora.
No livro Viagem ao céu, os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo
(que inclui como protagonistas duas crianças e uma boneca) viajam até o
céu e vivem muitas aventuras. O escritor, homenageado dos monumentos,
José Renato Monteiro Lobato, nasceu em 1882, em Taubaté/SP, cursou
Direito e escrevia para o jornal da faculdade. Em 1917, iniciou a colabora-
ção para o jornal O Estado de São Paulo, pesquisou o mito do Saci e publi-
cou em 1920 o livro: A menina do Narizinho Arrebitado (Chiaradia, 2016).
24
Por morar nos Estados Unidos da América (EUA), considerava que
poderia trazer o denominado progresso daquele país para o Brasil. Com isso,
como empresário, fundou três companhias de petróleo no Brasil que fez com
que entrasse em conflito com o governo do período, tendo sido preso em
1941. Em 1948, faleceu por um derrame cerebral, tendo o corpo velado na
Biblioteca Municipal de São Paulo, lembrado como grande escritor de litera-
tura infanto-juvenil, além de ter sido produtor, diretor, ativista e tradutor de
livros de literatura universal (tendo sua própria editora que futuramente se
transformou em Companhia Gráfico-Editora) (Chiaradia, 2016).
A maioria das histórias que Monteiro Lobato escreveu, ocorriam no
Sítio do Pica-Pau Amarelo e foram transformadas em série para a televisão. O
nome do autor está espalhado pelo Brasil, em município, diversos logradou-
ros, instituições e um museu. O nome do sítio em que narrava suas histórias,
também nomeia instituições, inclusive uma Escola de Educação Infantil na
cidade de Marília/SP, em que a autora deste capítulo trabalhou como profes-
sora e como professora coordenadora.
Na introdução do Projeto Político Pedagógico de 2016 da Emei
“Monteiro Lobato”, há um acróstico com o nome Monteiro Lobato:
Maria Izabel B. Abreu doa em 1930, o terreno de um Parque Infantil;
O Parque Infantil foi inaugurado em 1937;
Nesta época eram atendidas crianças de até 12 anos;
Todos praticavam esportes e recreação
Em 1948, a Escola recebe o nome de “Monteiro Lobato” em homenagem
ao escritor;
Importante referência da Literatura Infantil;
Reconhecido e amado por adultos e crianças;
Os seus personagens seguem vivos em nossas doces lembranças
Lobato, gostava de ler, escrever, pintar fotografar e desenhar;
Os alunos da E.M.E.I, também
Bonde, referência em nossa escola, patrimônio histórico;
Área bem arborizada, um pedacinho de paraíso
Tempo passou...transformações nos espaços físicos aconteceram;
O carinho pelo “Monteiro” permanecerá sempre o mesmo. (Emei
“Monteiro Lobato”, 2016, p. 1).
25
Constata-se que o Parque Infantil em questão, passou a ser denominado
“Monteiro Lobato” no mesmo ano em que o escritor em questão faleceu, a cidade
o denominou “amigo das crianças”. Crianças que na placa contida na instituição,
foi afirmada que seriam responsáveis pela construção do futuro da cidade.
Na instituição Parque Infantil “Dr. Fernando Mauro”, há uma placa de
inauguração em que há destaque para o prefeito, para o diretor de engenharia
e para o deputado Fernando Mauro, como é possível visualizar com a Figura 2:
Figura 2-Placa de inauguração do Parque Infantil “Dr. Fernando Mauro7
Fonte: arquivo da autora.
Fernando Mauro Pires da Rocha, doou com verbas próprias, playgrou-
nds para um Parque Infantil8 e com isso, foi homenageado como patrono
da instituição. Ele nasceu em 22 de setembro de 1914, em Belo Horizonte/
MG. Em 1939, finalizou o curso de medicina e chegou em Marília/SP, no
ano seguinte, em 1940 (DR. Fernando..., [20--?]). Onde teve uma clínica
ginecológica e era responsável pela enfermaria do hospital da Santa Casa de
Misericórdia até 1959, sendo que foi diretor administrativo desse hospital de
1942 a 1953 (DR. Fernando..., [20--?]).
7 Legenda da placa: “Parque Infantil Dr. Fernando Mauro construído pelo prefeito: Octávio Barretto
Prado1 e inaugurado em 7 de setembro de 1961 sendo diretor de engenharia: engº Antonio Casadei
os playgrounds deste parque foram doados gentilmente pelo deputado Dr. Fernando Mauro a quem
as crianças deste bairro agradecem”.
8 Além disso, Fernando Mauro também possibilitou a construção de prédios escolares (MARÍLIA, 1961).
26
Em 1956, foi eleito como vereador da Câmara Municipal de Marília/
SP, pelo partido Democrático Cristão. Pelo mesmo partido, foi eleito
Deputado Estadual no ano de 1959 e posteriormente em 1963 e 1967 (DR.
Fernando..., [20--?]).
Em 1961, o senador Juscelino Kubitschek juntamente com o prefeito
de Marília/SP, Octávio Barretto Prado e o presidente da Câmara Municipal
Sebastião Mônaco, cumprimentou o deputado Fernando Mauro no interior
da Catedral São Bento de Marília/SP, durante a colação de grau da faculdade
de Ciências Econômicas. O que demonstra a relação com a política e com a
religião (DR. Fernando..., [20--?]).
Foi reconhecido como cidadão honorário9 de Marília/SP, Vera Cruz/
SP, Pacaembu/SP, Flórida Paulista/SP e Tupi Paulista/SP. Em Marília/SP,
criou um grupo escolar no bairro Palmital, transformou a escola da cida-
de, em escola Industrial, criou Escola de Enfermagem e Escola Prática de
Agricultura, entre outros fatos (DR. Fernando..., [20--?]). Com a Figura 3, é
possível observar a imagem desse patrono:
Figura 3–Fernando Mauro
Fonte: https://sagl.camar.sp.gov.br/consultas/parlamentar/parlamentar_mostrar_proc?cod_par-
lamentar=100235. Acesso em 29 de maio de 2019. Autoria desconhecida.
9 É um título entregue para a pessoa que prestou serviços que auxiliam o desenvolvimento de
determinada localidade. Com esse título, o homenageado se torna conterrâneo daquela terra,
independente do seu local de nascimento e/ou residência.
27
Fernando Mauro faleceu em agosto de 1985. Ressalta-se que o Parque
Infantil “Dr. Fernando Mauro”, estava relacionado com um deputado que
como patrono trouxe melhorias físicas para a instituição.
Após ter sido dado o nome de um político para o segundo Parque
Infantil de Marília/SP, em 1965, teve-se o terceiro Parque Infantil que re-
cebeu nome de um príncipe, cujo nome completo é Takahito Mikasa, que
nasceu em 1915 e faleceu em 2016 (Takahito..., 2021). Irmão caçula do im-
perador Hiroshito, professor do Instituto Japonês de Estudos Orientais, em
1941, casou-se e teve cinco filhos (Baptista, 2014).
Na Figura 4, tem-se a figura desse príncipe:
Figura 4- Príncipe Mikasa
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Takahito_Mikasa#Visita_ao_Brasil. Autoria desconhecida.
Acesso em: 20 jan. 2024.
Em junho de 1958, devido ao cinquentenário da imigração japone-
sa no Brasil, ele visitou o país com a sua esposa Yuriko Mikasa10 a pedi-
do do presidente Juscelino Kubitschek e visitou diversos locais do Brasil
(Festivamente..., 1958).
Antes e após a data da visita do príncipe ao país, “[...] aconteceram di-
versas outras comemorações, competições esportivas e exibições artísticas [...]
foram premiados os vencedores de um Concurso Literário sobre imigração.
(Baptista, 2014, p. 296).
10 Nascida em 1923, informação disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Yuriko_Mikasa. Acesso
em: 20 jan. 2024.
28
Assim, teve uma missa na Igreja Matriz Santo Antônio e inauguração
do Obelisco Comemorativo à Imigração Japonesa no Cemitério Municipal.
Posteriormente, houve, um desfile de carros alegóricos (Baptista, 2014)
Duas horas antes da chegada príncipe, o aeroporto estava com milha-
res de pessoas, seguido “[...] por centenas de viaturas, sua Alteza dirigiu-se
à cidade, fazendo, num carro aberto vivamente aplaudido, este percurso: 9
de Julho, Sampaio Vidal, retorno pela São Luiz, Coronel Galdino, Santo
Antônio, Rio Branco e Praça da Bandeira [...]” (Festivamente..., 1958, p. 1).
Conforme as Figuras 5:
Figuras 5- Visita do Príncipe Mikasa à Marília/SP em 1958
Fonte: https://www.marilia.sp.leg.br/a-camara/biblioteca-rangel-pietraroia/
Acesso em 29 de maio de 2019. Autoria desconhecida.
29
Na primeira figura apresentada, o príncipe está desfilando na cidade
em um automóvel, enquanto que na segunda, está com a tropa de atiradores
da Escola de Civismo e Cidadania Tiro de Guerra de Marília/SP.
A Câmara Municipal da cidade, outorgou o título de cidadão mariliense
ao príncipe Mikasa que plantou um ipê, inaugurou um jardim oriental e uma
fonte luminosa que foram ofertados pela colônia japonesa, para ser inserida em
frente à Câmara Municipal da cidade (Baptista, 2014; Marília, 1977).
Esse fato é possível ser confirmado com a placa contida em uma pedra
rústica na cidade:
Figura 6- Jardim inaugurado pelo Príncipe Mikasa em visita à Marília/SP11
Fonte: arquivo da autora.
É registrado na placa que o jardim foi inaugurado pelo príncipe em
questão. Na Fotografia 7, verifica-se a plantação do ipê pelo príncipe:
11 Legenda da placa: “Cinquentenário da imigração japonêsa 1908-1958 – jardim inaugurado por sua
Alteza Imperial, o príncipe Mikasa e doado pela laboriosa Colônia Japonesa. Marília, 22 de junho
de 1958”.
30
Figura 7- Príncipe Mikasa na Prefeitura Municipal de Marília/SP para plantar
um Ipê amarelo em 1958
Fonte: https://www.marilia.sp.leg.br/a-camara/biblioteca-rangel-pietraroia/
Acesso em 29 de maio de 2019. Autoria desconhecida.
O Ipê simbolizava a flor nacional brasileira e a Prefeitura de Tóquio en-
viou mudas de cerejeiras para Marília/SP. Anos depois, um dos representantes
japoneses, em visita à cidade para a inauguração do Parque Infantil “Príncipe
Mikasa”, destacou esperar que as mudas ao lado da árvore de Ipê, crescessem
como as crianças que brincavam no parque e que servissem “[...] de laço de
união cada vez mais forte entre os nossos dois países.” (Parque..., 1965, p. 1).
A data da visita do príncipe no Brasil, fez com que Mazzini (2017),
confundisse e afirmasse que o ano de criação do Parque Infantil “Príncipe
Mikasa”, ocorreu em 1958. Contudo, como relatado, ocorreu em 1965.
O quarto Parque Infantil denominado “Chapeuzinho Vermelho”, foi
instalado em uma instituição similar a uma casa. Destaca-se que o nome da
instituição, refere-se a um conto de fadas clássico, apreciado principalmente
por crianças cujo clímax ocorre na casa da vovó.
No início da história, é relatado que a personagem principal, uma me-
nina, recebeu um capuz vermelho e um pedido da mãe para entregar alimen-
tos e bebidas para a avó. Assim, ela anda pela floresta, onde encontra com um
lobo que conversando com Chapeuzinho, corre antes para a casa da vovó e se
alimenta dela, esperando a menina para fazer o mesmo, todavia, felizmente
ela se salva e liberta a vovó da barriga do lobo.
31
O quinto Parque Infantil, denominado “Branca de Neve”, também se
refere a um conto de fadas clássico, apreciado principalmente por crianças,
cuja personagem principal também é feminina. Uma jovem que com a pele
branca como a neve, sofre com a madrasta que não suporta toda a beleza da
jovem e então a jovem precisa fugir para uma floresta, onde vive com anões,
todavia, na ausência deles, que foram trabalhar, Branca aceita uma maçã en-
venenada pela madrasta disfarçada e ao mordê-la desmaia, sendo acordada
com o beijo de um príncipe.
Chapeuzinho Vermelho foi um conto registrado inicialmente por Charles
Perrault e posteriormente pelos irmãos Grimm, que também registraram
Branca de Neve. Walt Disney reproduziu vários contos clássicos registrados por
esses autores, amenizando os aspectos reais, muitas vezes tristes e trágicos, por
meio da eliminação de elementos fundamentais dos contos originais.
Walt Elias Disney tornou-se patrono do sexto Parque Infantil da cida-
de, nasceu em 1901 e faleceu em 1966, foi um empresário norte-americano,
fundou a Walt Disney Company, criando em 1955, os parques temáticos da
Disney (localizados na Califórnia, Flórida, França, Japão e em Hong Kong)
(Frazão, 2019). Esses parques são visitados por pessoas de vários países.
Além disso, fundou o maior estúdio de animação de Hollywood. Era
filho de uma professora e gostava de desenhar, tornando-se cartunista de pro-
paganda aos 18 anos, sendo que em seguida, passou a produzir filmes publi-
citários (Frazão, 2019).
Em 1923, produziu Alice, O coelho Oswald, Mickey Mouse, Steamboat
Willie. Em 1929, criou os personagens Pato Donald, Pateta e Pluto, que
apareciam juntamente com Mickey Mouse. Em 1939, lançou o primeiro
longa-metragem animado, intitulado Branca de Neve e os sete anões e depois
criou outros longas, como: Pinóquio, Fantasia e Bambi. Durante a II Guerra
Mundial, produziu desenhos animados para treinar os soldados e com o fim
da guerra produziu Cinderela (Frazão, 2019).
Constata-se que Walt Disney, patrono de um Parque Infantil de Marília/
SP, era relacionado com a produção de desenhos animados que tem a criança
como principal público. Nas paredes do Parque Infantil “Walt Disney”, havia
personagens criados pelo patrono dessa instituição, como é possível constatar
com a Figura 8:
32
Figura 8- Desenhos na parede do Parque Infantil “Walt Disney”
Fonte: (Parque, 1971). Autoria desconhecida.
Os personagens relacionados com Pato Donald, proporcionavam a es-
tabilização de um ambiente que considera a infância, por inserir personagens
que costumam ser do universo infantil12.
Após ter um patrono não pertencente a cultura brasileira o último Parque
Infantil instalado no município de Marília/SP foi nomeado em 1969 como
“Saci-Pererê” e instalado na Vila Altaneira (Marília, 1969). Saci-Pererê é uma
lenda do folclore brasileiro, em que se conta que ele habita as florestas e apronta
travessuras com as pessoas, tendo apenas uma perna e um gorro vermelho.
Considerações Finais
Constata-se que os nomes dos primeiros três Parques Infantis homena-
gearam figuras políticas, como um escritor que fez e faz muito sucesso entre
as crianças, um deputado e um príncipe que visitou a cidade. Desse modo,
constata-se uma instrumentalização política com a escolha do segundo e ter-
ceiro patrono dos Parques Infantis do município.
Enquanto os demais se relacionam com personagens de conto de fadas,
como um criador de um estúdio de animação de Hollywood que produziu
12 Não cabe neste contexto histórico a problematização destes usos, que em suma são estereotipados
e não desenvolvimentais, considerando que poderiam ser alterados por desenhos elaborados pelas
próprias crianças.
33
desenhos animados para crianças e reproduziu vários contos de fadas e por
fim, um personagem de uma lenda brasileira, ou seja, uma referência na-
cional. Com isso, dos nomes dos sete Parques Infantis que funcionaram na
cidade, cinco estão relacionados com o universo literário infantil e dois ho-
menagearam pessoas que representam poder.
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35
Autobiografias e Ação Emancipadora
no Blog da EJA: Sentido e Acolhimento
no Processo de Desenvolvimento
Rodrigo Martins BERSI13
Izabella Domingues Torres HORTA14
Introdução
Este capítulo consiste na comunicação de leitura bibliográfica da
pesquisa de mestrado O blog na educação de jovens e adultos realizada entre
2018 e 2020 pelo pesquisador Rodrigo Martins Bersi e com orientação do
Prof. Dr. José Carlos Miguel vinculados ao Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP/Campus
Marília. A pesquisa contou com financiamento da Fundação Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e com o apoio do
Programa de Excelência Acadêmica (PROEX/CAPES) que resultou na publi-
cação do livro O blog na EJA: autobiografia e ação emancipadora em 2020. A
investigação consiste de um Experimento Didático-Formativo de referencial
teórico-metodológico da Teoria da Atividade de Estudos.
Situamos a pesquisa no campo da Teoria Histórico-Cultural em arti-
culação com a Filosofia da Linguagem, a Educação Libertadora, a Educação
Desenvolvimental e a Educação Humanizadora, sendo esses três paradigmas
de ensino-aprendizagem que foram considerados nas formulações teóricas e
13 Doutorado em Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação – Faculdade de Filosofia e
Ciências – UNESP/Campus Marília. E-mail. rodrigo.bersi@unesp.br.
14 Mestrado em Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação – Faculdade de Filosofia e
Ciências – UNESP/Campus Marília izabella.torres@unesp.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p35-52
36
realizações práticas. A leitura bibliográfica acontece permeada pela reflexão
teórica da articulação entre sentido e acolhimento na realização prática do
Experimento Didático-Formativo e análise de seus resultados.
No percurso da investigação apresentamos os marcos teórico-metodo-
lógicos que fundamentam nossas ações de pesquisa para então explicar de
maneira mais detalhada os passos metodológicos escolhidos em diálogo com
a fundamentação teórica. A partir da apresentação do campo de pesquisa,
de seus sujeitos e dos passos de realização do experimento apresentamos os
resultados e reflexões acerca da pesquisa realizada.
Os resultados de pesquisa e discussões apresentadas buscam refletir a
partir da experiência de publicação das autobiografias no blog da EJA pelos
educandos o papel do sentido e do acolhimento para o desenvolvimento e
o acolhimento dos participantes. As reflexões recebem um aspecto crítico de
ação-reflexão-ação acerca da pesquisa realizada já mais distante no tempo.
Fundamentação Teórica
A leitura bibliográfica nesta comunicação de pesquisa articula teoria
e prática a partir da perspectiva da Teoria Histórico-Cultural que interpreta
a realidade concreta como síntese das ações humanas socialmente situadas.
O percurso histórico do campo da Educação de Jovens e Adultos no Brasil
constitui-se na luta civil organizada de reivindicação do direito a educação
de qualidade por meio da mobilização de sujeitos e práticas de ensino e da
atuação política para o reconhecimento da educação de adultos como políti-
ca pública de responsabilidade do Estado brasileiro. Esses dois movimentos
ocorrem em meio a processos de valorização e de desvalorização política e
seus incentivos fiscais, muitas vezes atrelada a políticas de governo. Vale des-
tacar a incorporação da educação de adultos ao FUNDEB como uma política
de Estado importante para o campo e fruto da ação política de seus agentes.
Ao problema de legitimação da educação de adultos como campo de
políticas públicas no Brasil soma-se a questão da qualidade na alfabetização
da população e da juvenilização da educação de adultos que recebe alunos do
regular com intuito de conclusão dos estudos. Há um percentual decréscimo
dos indicativos de analfabetismo absoluto na variação entre 2016 e 2022
de 6,7% para 5,6% segundo o painel da PNAD Contínua, já o PISA 2022
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demonstra queda no desempenho em leitura, matemática e ciências de 2019
para 2022 no país. Essa problemática chama a atenção para os motivos e ob-
jetivos para a educação da população brasileira em que se pretende atender as
metas do Plano Nacional de Educação (PNE). Neste contexto realizamos a
reflexão proposta por Freire quanto a educação bancária em oposição a edu-
cação libertadora em que a segunda pretende a transformação da realidade
pelos sujeitos e não sua permanência precedendo assim por meio do ensino a
superação da consciência alienada pela consciência crítica.
Existem ainda resistências para a consolidação da EJA enquanto políti-
ca de Estado, como, por exemplo, o não reconhecimento da EJA nas primei-
ras versões da BNCC ou ainda a não observância das Diretrizes Curriculares
da EJA, principalmente na etapa do Ensino Médio no mesmo documento.
A BNCC apresenta certo aspecto normativo ao delinear as competências e
habilidades divididas entre os tempos escolares e percurso formativo. Por ou-
tro lado, há um desajuste entre os princípios da educação de adultos, seus
tempos e conteúdos, e as Diretrizes da Educação de Adultos que estão mais
associadas aos tempos e necessidades dos próprios sujeitos, devendo ainda
a escola respeitar suas individualidades, vivências e necessidades específicas,
assim a escolarização na EJA deve respeitar a educação como direito público
e subjetivo dos sujeitos.
A partir da educação libertadora o acolhimento na educação de adultos
toma importância fundamental para o sucesso do percurso formativo pois se
é responsável inicialmente pelas primeiras impressões e compreensão das dinâ-
micas escolares, torna-se catalisador de desenvolvimento pelo respeito às indi-
vidualidades e tempos dos sujeitos. Sujeitos acolhidos, respeitados e valoriza-
dos são capazes de envolver-se de maneira significativa no percurso formativo.
Conhecer as singularidades, respeitar as individualidades e valorizar as vivências
compõem o acolhimento capaz de impulsionar os sujeitos em uma ativida-
de desenvolvente que em sua síntese produzir apropriação de conhecimento.
Sujeitos valorizados e respeitados contam suas histórias e se envolvem no percur-
so formativo. As publicações autorais e as autobiografias procuram encaminhar
essas propostas didáticas na forma de um Experimento Didático-Formativo.
A educação direito público e subjetivo do sujeito estabelece portan-
to as diretrizes que possibilitam uma educação libertadora articulada com
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a humanização dos sujeitos, ou seja, da apropriação dos conteúdos desen-
volvidos pelos humanos em seu acúmulo histórico de experiências. Assim,
a humanização situa-se no percurso do sujeito de apropriação da cultura em
um processo socialmente mediatizado pela linguagem. Dessa maneira ao se
propor uma educação libertadora associada a humanização dos sujeitos se
pretende a superação da consciência alienada pela consciência crítica por
meio da aquisição de conhecimento e contato social com a cultura mediado
pela linguagem.
O lugar social em que está inscrita a educação de adultos represen-
ta ponto importante de reflexão para a compreensão do campo de estudo
e seus sujeitos, marcados inicialmente pela negação do direito a educação
em idade apropriada e sucessivamente pela vulnerabilidade em seu cotidia-
no. O principal fator para o abandono escolar segundo a PNAD Contínua:
educação 2022 é a necessidade de trabalhar, ocupando posições subalternas
de trabalho por causa da falta de certificação escolar. Vulnerabilidade que
extrapola as relações financeiras e de trabalho e atinge aspectos culturais e de
acesso ao Estado. Neste aspecto o terceiro setor acaba ocupando boa parcela
das iniciativas de educação de adultos, situação provocada pelo atendimento
insuficiente promovido pelo Estado, com baixos incentivos fiscais e propos-
tas legislativas nem sempre alinhadas aos princípios da educação de adultos.
A luta por legitimação da EJA como política pública ainda acontece nestes
espaços de decisão normativa e de financiamento, em que cabe ao poder pú-
blico ofertar e promover essa modalidade de ensino.
A interface da EJA com o mundo digital destaca outra situação de vul-
nerabilidade vivenciada por seus sujeitos em que as TDIC podem representar
avanços econômicos e sociais, mas também distâncias que segregam. Não
se tratam aqui de distâncias absolutas, mas simbólicas, visto que em 2022
existiam no Brasil mais celulares nos lares brasileiros do que aparelhos televi-
sivos, assim mesmo possuindo acesso à internet acabam por não transitar por
ambientes digitais com autonomia. A posse material de algum artefato ele-
trônico por si só não garante a inclusão digital inicialmente por limitações no
próprio hardware do dispositivo em questão e ainda por representar barreiras
culturais de acesso aos ambientes digitais e de apropriação de conhecimentos
necessários para o manuseio destes instrumentos.
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Os impactos das tecnologias digitais no cotidiano são sentidos nas dife-
rentes esferas da atividade humana e exigem da educação reflexão cuidadosa.
Sobre os sujeitos da EJA na sociedade da informação e da informática carece
ainda refletir sobre suas tecnobiografias, ou seja, seu histórico e necessidades
no contato direto com as TDIC em seus próprios contextos sociais. O impe-
rativo causado pelas tecnologias digitais já se faz aparecer nas diversas esferas
da atividade humana e na educação, cabendo ao educador dialogar com os
sujeitos sobre os possíveis significados e agir sobre suas necessidades sempre
orientado pelo sujeito em sua própria realidade social. As tecnobiografias em
perspectiva histórica dão a profundidade necessária ao objeto de estudo para
a sua significação pelos sujeitos.
No âmbito normativo da educação as TDIC ganham mais atenção ao
tratar da modalidade de ensino a distância e dos cursos profissionalizantes,
ademais aparecem nos conteúdos escolares por meio da instrumentalização
de artefatos eletrônicos que precisam ser dominados. Já o paradigma da edu-
cação libertadora e de humanização proposto vai além do desenvolvimento
das capacidades instrumentais com informática para buscar a significação crí-
tica e a apropriação dos conhecimentos do campo das tecnologias digitais a
partir da reflexão acerca do conhecimento teórico com profundidade históri-
ca. Por meio do contato direto com o objeto cultural de conhecimento, pela
interação social e mediados pela linguagem os sujeitos podem se apropriar
dos conhecimentos de maneira integral e não meramente instrumental, assim
ressignificando esses objetos em sua lógica interna, atribuindo sentido e signi-
ficado às TDIC no processo de superação da consciência alienada.
A consciência crítica na sociedade da informação necessita da supera-
ção da alienação acerca dos artefatos eletrônicos, sua constituição e origem.
Entender em profundidade histórica e social a origem, ou seja, a necessidade
primeira de ser dos objetos de conhecimento para localizar estes na realidade
concreta e de interações humanas, constituído por sujeitos. A consciência
crítica sobre as TDIC que se pretende na superação sobre a consciência alie-
nada é etapa necessária para a emancipação humana em ambientes digitais,
de refletir sobre seus impactos, história, funcionamentos e filosofias.
Neste ensejo Experimento Didático-Formativo é um método de pes-
quisa e também de ensino desenvolvido a partir da Teoria da Atividade de
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Estudo no campo da Teoria Histórico Cultural capaz de proceder com a
transformação qualitativa da consciência alienada para o pensamento crítico.
A superação da consciência alienada está na reflexão e transformação do obje-
to pelo sujeito, além de mover e operar mecanicamente o que se estuda o su-
jeito reflete, pensa e faz sínteses sobre os conhecimentos ali estudados em sua
profundidade histórica e social. Trata-se de superar a mera instrumentaliza-
ção das TDIC e pensar um ensino crítico, desenvolvente, que reflete sobre o
objeto de estudo no curso de seu desenvolvimento para criar ressignificações.
O Experimento Didático-Formativo utilizado como referência na pes-
quisa está organizado a partir do método experimental que foi utilizado em
Vigotsky e transformado pelos teóricos da Teoria da Atividade de Estudos
principalmente a partir dos trabalhos de Davidov e Elkonin traduzidos para
o português na coletânea de textos organizado por Puentes (Puentes, 2020).
Metodologicamente nos inspiramos em Aquino (2017) e Araújo (2018) para
organizar a estrutura interna da atividade desenvolvida. A experiência de pes-
quisa está em sintonia teórica e metodológica com a Teoria Histórico-Cultural,
faz sínteses sobre a realidade material e articula a atribuição de sentido no per-
curso formativo e negocia significados entre os sujeitos em um processo social
de aprendizagem. Para tanto, dialogamos a partir dos autores e objetivos da
pesquisa a articulação teórica do processo de atribuição de sentido com o aco-
lhimento e escuta dos sujeitos durante a negociação dos significados.
Pela concepção da filosofia da linguagem, é possível explorar as nuan-
ces dos gêneros enunciativos, destacando a importância do contexto na com-
preensão dos enunciados. ressaltando a interação entre a língua e a vitalidade
inerente à natureza do enunciado, considerando-o um ato social e histori-
camente situado. A verdadeira unidade da língua reside no diálogo entre os
enunciados, refletindo as complexas relações de reciprocidade na cultura e na
atividade humana. É por meio das práticas linguísticas que o ser humano se
constitui como sujeito. Ele tem a capacidade de atribuir novos significados à
língua com base em suas intenções e na posição que ocupa no mundo con-
forme sua vivência. Assim, a língua se integra à vida por meio de enunciados
concretos, enquanto a vida se expressa na língua através desses enunciados
(Bakhtin, 2011).
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Metodologia
Esta comunicação de pesquisa foi organizada a partir das produções
bibliográficas sobre um Experimento Didático-Formativo desenvolvido no
âmbito da pesquisa acadêmica de mestrado financiada pela CAPES que subs-
tanciou além de produções acadêmicas a publicação de textos autorais pelos
sujeitos da Educação de Jovens e Adultos no blog da instituição acolhedora
na internet. O experimento de que trata a pesquisa ocorreu em 2019 em um
Centro Estadual de Educação de Jovens e Adultos (CEEJA) local que deno-
minaremos de instituição acolhedora. A exposição dos achados acadêmicos
ocorre a partir livro publicado em 2020 sobre a dissertação de mestrado.
Por meio da investigação bibliográfica acerca da pesquisa de mestrado
(Bersi, 2020) que envolveu o Experimento Didático-Formativo na institui-
ção acolhedora objetiva-se apresentar seus procedimentos e refletir acerca da
centralidade da articulação entre o sentido e acolhimento para o desenvolvi-
mento no processo de ensino-aprendizagem que ocorreu na interação pro-
fessor-aluno-conteúdo. A releitura da publicação de mestrado 4 anos depois
permite um distanciamento acerta da substância e o amadurecimento teórico
para uma crítica mais articulada com a teoria. Portanto, torna-se uma auto
revisão bibliográfica que permite refletir sobre a prática de pesquisa e assim se
aprimorar para o porvir.
No âmbito do Experimento Didático-Formativo desenvolvido foram
publicados 24 trabalhos autorais pelos sujeitos no blog da instituição, dos
quais 14 foram identificados como autobiografias e as demais publicações au-
torais são poesias, músicas, reflexões e cartas. O período de produção e coleta
de dados no campo de pesquisa percorreu todo o ano de 2019, onde a partir
de intenso diálogo com a instituição acolhedora foi possível permanecer no
campo de pesquisa por tempo prolongado e experimentar ricas interações
entre os sujeitos envolvidos.
A utilização de publicações na internet teve por objetivo a valorização
e visibilidade para a autoria das pessoas participantes, sujeitos da Educação
de Jovens e Adultos que nem sempre foram supridas pelo poder público ou
enxergadas pela sociedade como cidadãos de direitos. Já a ampla utilização
da autobiografia para alcançar o objetivo proposto de valorização dos sujeitos
42
tornou-se estratégia principal no percurso do experimento, ao notar a prefe-
rência dos sujeitos por apresentar as suas histórias de vida na internet.
A pesquisa qualitativa foi publicada como abordagem pesquisador-
-participante foi metodologicamente guiada pelo Experimento Didático-
Formativo e teoricamente fundamentada na Educação Desenvolvimental
como desdobramento de teórico da Teoria Histórico-Cultural e seus pressu-
postos. A perspectiva de ensino preza pela formação integral com abordagem
omnlateral de prática libertadora com objetivo de emancipação humana por
meio da superação da consciência crítica sobre a consciência alienada sobre
o objeto de estudo e sua inscrição na realidade, explorando seus diferentes
aspectos de inscrição na realidade, em sua história, criação, usos, formatos,
artefatos, filosofias, dentre outros que se formam no intenso diálogo entre os
sujeitos epistemologicamente curiosos.
Por meio do diálogo e das publicações se exercita a pronúncia de mun-
do em que sujeitos são convidados a se expor também na internet para contar
suas vivências e trajetórias de vida, assim ao se envolver com o mundo digital
são convidados a participar e a transformar a realidade a partir com compar-
tilhamento de suas próprias histórias. Fica evidenciado para os sujeitos que
suas histórias também são culturas valiosas de serem salvas e compartilhadas
na web, que pessoas na internet leem e se apropriam dos causos ali relatados.
A valoração é elemento desencadeador de aprendizagem e esteve intimamen-
te ligada a atribuição de sentido sobre o conteúdo estudado e o acolhimento
aos sujeitos no percurso formativo.
A prática da escrita se manifesta quando há uma necessidade de in-
teração social humana. Ao oferecer aos educandos a oportunidade de uti-
lizar o blog como uma ferramenta para expressar suas memórias na forma
de autobiografias, o pesquisador introduz na pesquisa a possibilidade dos
participantes se sentirem incentivados a revisitar seu passado. Por meio da
linguagem, eles puderam criar enunciados autênticos, registros que frequen-
temente revelam as marcas da exclusão presente no contexto da Educação de
Jovens e Adultos (EJA), refletindo, assim, a realidade da sociedade em que
estamos inseridos.
Os trabalhos produzidos pelos sujeitos da pesquisa foram acompa-
nhados pelo pesquisador e equipe pedagógica da instituição acolhedora com
43
caráter orientador observando questões gramaticais e éticas para viabilizar a
publicação na web. O trabalho final publicado foi resultado de intenso dialogo
dos autores com professores da escola que acompanhavam sua escrita, caben-
do ao pesquisador auxiliar na submissão dos trabalhos no sistema do blog da
escola. Após a produção do trabalho pelo sujeito em diálogo com professores
da escola e feita a submissão do trabalho concluído com ajuda do pesquisador
os trabalhos ainda passavam por verificação pela gestão e coordenação pedagó-
gica, que procediam com os últimos ajustes. Sendo necessário o sujeito autor
era chamado para realizar alguma modificação ainda antes do agendamento da
publicação. Estando pronto o trabalho este era agendado para publicação na
próxima manhã ou em poucos dias, sempre no período matutino.
O sistema de publicações do blog foi amplamente utilizado pela insti-
tuição para além do Experimento Didático-Formativo que orientou as ações
de pesquisa. Professores fizeram postagens de conteúdos de pesquisa e au-
torais, como também foram feitas publicações de informativos, calendário,
assuntos administrativos e notícias de interesse da comunidade escolar. Essa
categoria de publicações vindas da equipe gestora, pedagógica e professores
representou grande parcela de todos os posts no período, sendo importantes
para movimentar os acessos à plataforma, funcionando realmente como um
site de notícias local.
A investigação foi organizada em quatro etapas que se interconectam
e se complementam. A primeira etapa consta da organização contendo os
primeiros contatos com a instituição acolhedora e implementação do blog.
A segunda etapa representou a realização efetiva do Experimento Didático-
Formativo junto aos sujeitos, com publicações no blog e interação direta com
os participantes. A terceira etapa foi de sistematização das informações com
encontros dialogados com os sujeitos e a quarta etapa constitui da reflexão
sobre os dados sistematizados com publicação de materiais acadêmicos, que
servem de fonte bibliográfica para elaboração deste capítulo.
Após a publicação dos posts pelos sujeitos esses foram convidados para
um encontro dialogado que funcionou na forma de uma Roda de Conversas
com temática acerca da experiência vivida, mas sem um roteiro fechado como
uma entrevista, mas mais aberto deixando para que os participantes se ex-
pressem e contem seus olhares de maneira mais fluida. O formato da Roda
44
de Conversas significa e acolhe ao respeitar a dialogicidade e a alteridade da
linguagem, valorizando a expressão verbal dos sujeitos e suas perspectivas. A
significação parte da pronúncia de mundo que viabiliza a emancipação de
sujeitos de consciência crítica e proficientes.
A metodologia está orientada no fluxo dialético da ação-reflexão-ação em
que os sujeitos participaram intensamente das tomadas de decisão e atuaram na
reflexão acerca do experimento. Tratou-se de uma pesquisa prática participante
de envolvimento direto com o campo de pesquisa e seus sujeitos, onde não se
propunha a neutralidade mas sim o envolvimento por meio de intensos diálo-
gos cotidianos. Dessa maneira a exposição sobre os resultados da investigação
foram organizados na explicação acerca dos pressupostos teóricos, a produção
e publicação dos posts na forma do Experimento Didático-Formativo, a pro-
dução de dados complementares por meio das Rodas de Conversas e a análise
crítica acerta do experimento realizado com exposição reflexiva.
Resultados e Discussões
É necessário ressaltar o aprimoramento teórico que o distanciamento
no tempo permite quando se propõe a leitura bibliográfica das produções
na pesquisa de mestrado, ato que possibilita refletir sobre a prática e então
propor uma síntese, algo que vem para reorganizar o pensamento e criar algo
novo. A compreensão acerca do Experimento Didático-Formativo e da Teoria
da Atividade de Estudo ainda está em pleno desenvolvimento e agora é pos-
sível melhor visualizar os elementos teóricos que compõem um Experimento
Didático-Formativo que se adiante ao desenvolvimento dos sujeitos e para
guiar a aprendizagem.
Dentre as compreensões sobre o Experimento Didático-Formativo que
se atualizaram está a de que se trata de um método de pesquisa e também
de ensino, que deve estar dialogado de maneira praxiológica com o campo.
Assim, o acolhimento faz-se elemento constituinte da própria atividade de-
senvolvente sem o qual não há envolvimento entre os sujeitos, assim como o
valor estético aparece para nós também recheado de importância para a sig-
nificação e valoração do objeto de estudo. Portanto, nos valemos da estética
para impulsionar a significação dos conteúdos e do acolhimento no envolvi-
mento entre os sujeitos.
45
A estratégia de ensino de utilização das autobiografias como elemento
de acolhimento e significação resultou em uma riqueza de conteúdos autorais
que contam além de suas histórias e vivências, também reflete sua persona-
lidade e singularidade. As vozes dos sujeitos aparecem durante toda a expo-
sição dos conteúdos da pesquisa pois além das produções autorais também
foram realizadas Rodas de Conversas momento em que os sujeitos partici-
param ativamente e relataram suas perspectivas. Portanto, temos duas fontes
importantes de manifestação dos sujeitos, seus trabalhos autorais publicados
no blog e suas vozes durante a Roda de Conversas realizada após o experimen-
to. Ocorreram também interações online por meio de redes sociais onde eram
compartilhados os trabalhos publicados no blog.
Por meio da alteridade da linguagem os sujeitos autores foram convida-
dos a pensar no público leitor, pessoas que poderiam se interessar na leitura
dos materiais publicados pelos participantes no blog. Essa reflexão acerca dos
motivos da escrita trouxe dizeres sobre testemunhos que serviriam de exem-
plo e motivação a outras pessoas. Foi evidenciada neste percurso a função so-
cial dos textos que alcançam seus interlocutores na internet, onde foi possível
a interação entre autores e leitores por meio de comentários no próprio blog
onde os trabalhos foram publicados, mas principalmente em redes sociais e
correntes em aplicativos de mensagens.
Na publicação em rede social da instituição com a história de Bia, su-
jeito com um dos textos com maior visibilidade durante a experiência, foram
feitos comentários sobre o desejo de retornar aos estudos, que foi respondido
primeiro por um sujeito participante da pesquisa que convida a internauta a
retornar a escola e pela própria autora do texto, Bia, que faz mais um apelo
na tentativa de motivar que fez o comentário a retornar aos estudos. A in-
terlocução entre leitores e autores contou também com interação da equipe
pedagógica nesta comunicação online que consta em sua íntegra na figura. Se
nota também a expressão de amorosidade em ambiente digital por meio de
reações de amei a cada comentário de incentivo.
46
Figura 9 – Comentários na Internet
Fonte: Bersi, 2020, p. 96.
O blog como meio digital de divulgação e conjunto das publicações
elaboradas pelos sujeitos foi interpretado a partir do conceito de biblioteca
popular trabalhado em Freire onde as obras são produzidas pela própria co-
munidade. Espaço digital de produção autoral pelos sujeitos localizada na
internet que valoriza a voz de seus autores, a participação social e a interven-
ção consciente e direta para transformação da realidade. Inclusão digital nessa
47
perspectiva está interligada com a necessidade de atuação social em ambien-
tes digitais de maneira consciente, pelo uso social da palavra que motivam
práticas significativas de leitura e escrita na web.
Quadro 1 - Relação de postagens e autores por data de publicação
POSTS PUBLICADOS POR SUJEITOS NO BLOG
DATA TÍTULO AUTOR
14/03/2019 Minha história de vida: da depressão ao sonho! Edu
14/03/2019 Testemunho real: da água pro vinho! And
18/03/2019 Carta ao prefeito: rua escura! Ine
19/03/2019 Recomeço de uma Nova Vida Igo
20/03/2019 Arrependimento não mata, mas ensina a viver! Mar
26/03/2019 Denuncie a Violência Contra as Mulheres! Disque 180! Ama/Lil
02/04/2019 Homofobia Não! Dan
03/04/2019 Vamos acordar? b
11/04/2019 Crônica: Bia e suas histórias Bia
18/04/2019 A luta continua! Eny
23/04/2019 História de vida, força e superação! Edi
26/04/2019 Acolhimento, Vida e Sonhos! João
29/04/2019 O estudo faz falta em nossa vida? Vid
03/05/2019 Poderes e Sonhos: uma autobiografia (Parte II) Igo
23/05/2019 CEEJA: A Escola do Bem Viver! João
08/06/2019 O mundo da sabedoria Nio
11/06/2019 Alunos de CEEJA traduzem trecho inédito da obra de Ale-
xis Carrel, prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, de 1912 Usu
17/07/2019 Minha trajetória de vida Ide
26/09/2019 Ginástica Laboral em um Sábado Criativo João
09/10/2019 Aprendendo a Plantar Maracujá Dem
24/10/2019 Aos mestres, com carinho! Por aluna Jan. Jan
28/11/2019 Poema de aluna do CEEJA retrata tradição nordestina na
busca pela esperança! Eny
29/11/2019 O Filho Pródigo que Volta aos Braços do Pai - Igo (Parte III) Igo
16/12/2019 Ex-aluna do CEEJA ingressa em Universidade Pública que
tem conceito máximo em indicador do MEC em 2019 Ros
Fonte: Elaboração própria (Bersi, 2020, p. 83-84).
48
O quadro apresenta os títulos dos trabalhos produzidos associando aos
seus autores e data de publicação e contribui para a síntese acerca dos tem-
pos e conteúdos produzidos a partir do Experimento Didático-Formativo.
O anonimato nas produções de pesquisa foi preservado observando as nor-
mativas do Comitê de Ética em Pesquisa e a íntegra dos conteúdos autorais
publicados pelos sujeitos pode ser acessada na internet ao acessar o blog ou ao
final do livro e dissertação da pesquisa de mestrado.
O papel desempenhado pelo acolhimento para o envolvimento do o
processo de ensino-aprendizagem fica destacado ao observar nas produções au-
torais as repetidas vezes que os sujeitos se apresentam aos seus leitores, trazendo
detalhes sobre suas vidas, história, contendo nome completo e outras informa-
ções pessoais que não foram reproduzidas nos materiais de pesquisa. Houve o
caso do sujeito João que publicou dois trabalhos e dentre eles um tratou-se de
uma carta endereçada a instituição acolhedora e seus profissionais em forma
textual de agradecimento aos serviços prestados, acolhimento e aprendizagem.
No percurso da negociação de significados a função social do texto
foi posto em evidência ao sempre direcionar as produções ao público leitor
e que ainda podiam interagir com os autores por meio da internet. Foram
produzidas cartas para autoridades públicas, instituições e também familia-
res, reconhecendo nas TDIC um suporte de comunicação e atuação social.
Mensagens de apoio a internautas que pretendiam voltar a estudar e relatos
de experiência que evidenciam a transformação direta da realidade pelos su-
jeitos em ambiente digital. Dessa maneira atribui-se sentido às tecnologias
digitais por meio de atividades socialmente situadas e a negociação dos signi-
ficados está imersa na realidade concreta dos sujeitos.
Os participantes foram convidados a serem acolhidos no mundo digital a
partir do compartilhamento de suas próprias identidades, recheando de sentido
o uso de TDIC e de participação social. As tecnologias digitais e o blog nessa
experiência servem de suporte de linguagem em ambiente digital, que por meio
dos sentidos faz a comunicação entre humanos e exerce força transformadora
sobre a realidade. Os sujeitos conscientes e valorizados são capazes de transfor-
mar a realidade de maneira intencional, dessa maneira os sujeitos em atividades
são compreendidos em sua integralidade social e psicológica e orientados para
a superação da atividade a qual se propõe estudar. Portanto, o ensino é guiado
49
para o que se pretende aprender mas que ainda não fora internalizado pelo
sujeito. Essa prerrogativa é importante para não interpretarmos os sujeitos de
maneira estanque e sim em um fluxo contínuo de transformação. O sujeito se
humaniza no contato direto com a cultura e em interação social mediatizada
pela linguagem e assim é capaz de se desenvolver.
A escrita como um instrumento cultural de extrema complexidade,
é fundamental para o desenvolvimento e a formação da inteligência. Seu
processo de assimilação e internalização envolve a participação e a evolução
de diversas atividades que expressam as capacidades humanas. Dentro desse
contexto, a abordagem que considera a função social da escrita está intrinse-
camente ligada ao educando realizar atividades que atendam à sua necessida-
de de escrever, expressar-se e interagir socioculturalmente com os outros. Essa
base está ancorada nos processos de assimilação e internalização dos conteú-
dos culturais que satisfazem as necessidades como sujeito histórico e cultural.
Os sujeitos, motivado pelo desafio de criar enunciados a serem publica-
dos em ambiente digital, os educandos passam a se perceberem como autores
e produtores de algo. Essa experiência oferece a oportunidade de assumir
uma postura de conscientização em relação à sua própria realidade, transcen-
dendo a condição de ingenuidade e adotando uma abordagem mais crítica
em seu discurso. A memória desperta a necessidade de se abrir para o mun-
do, compartilhando publicamente aspectos de sua identidade, experiências,
enunciados, discursos e valores que o constituem. Torna-se uma narrativa que
reflete a história da qual faz parte.
O impacto prático do Experimento Didático-Formativo é refletido
pela abundância de materiais produzidos pelos sujeitos e as interações no
campo de pesquisa, que evidencia sua realidade social e seus sujeitos como
transformadores e agentes de cultura. A aprendizagem pelo contato direto
com as tecnologias digitais pelos sujeitos da EJA e na reflexão crítica sobre a
realidade social potencializa o desenvolvimento, estrategicamente articulado
na EJA com a produção de sentido e negociação de significados na mediação
social entre sujeitos e ao acolhimento aos sujeitos na educação de adultos pela
valorização de suas identidades.
50
Considerações Finais
Ao escrever seus textos e publicarem no blog, os participantes foram
oportunizados a expressar seus desejos, sonhos, sentimentos, informações,
descobertas e experiências para os outros. Em outras palavras, eles utilizaram
a linguagem em sua função social, inserindo-se em práticas de leitura com
o blog como suporte de escrita na construção dos textos que envolvem um
contínuo processo de assimilação e internalização desses atos.
A partir desse movimento de elaboração e publicação na internet das
produções autorais que seus enunciados ganham vida e são preenchidos de
sentidos. As publicações trouxeram para a materialidade as situações cotidia-
nas e vivências culturais dos educandos, possibilitaram a troca de experiências
e o sentimento de pertencimento no universo digital, contribuindo para que
as experiências pudessem ser compartilhadas, trazendo um novo sentido à
própria história.
O percurso formativo enquanto processo de desenvolvimento dos edu-
candos acontece pela mediação com a linguagem em contextos sociais con-
cretos com a ajuda de um par mais experiente que o auxilia na resolução da
atividade pretendida. Para o desenvolvimento mobilizam-se o sentido e o
acolhimento de maneira a acolher os participantes no processo de ensino-
-aprendizagem. Por maio da valorização das histórias de vida e vivências os
educandos são convidados a apresentar suas identidades e ver-se em espaços
também digitais.
O acolhimento e o sentido são aspectos que permitem no percurso
para o desenvolvimento uma inclusão digital que permite a participação so-
cial crítica e atenta, com objetivo de superação da consciência alienada pela
consciência crítica e causando mudanças qualitativas na personalidade dos
envolvidos. Neste percurso a valorização da pessoa por meio das autobiogra-
fias e publicação online dessas produções preenchem de sentido as atividades
do percurso formativo, permitindo o acolhimento significativo que valoriza
suas identidades e histórias particulares também em contextos digitais.
51
Referências
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(Tomo II).
53
Concepções de Linguagem nas
Histórias em Quadrinhos: o que dizem
Jovens e Adultos Camponeses
Gustavo Cunha de ARAÚJO15
Davi MILAN16
Introdução
Realizar uma pesquisa de cunho educacional que envolve diferentes
sujeitos inseridos no contexto social e cultural de uma instituição acadê-
mica é uma forma de produzir conhecimento. Assim, entendemos que a
construção de conhecimentos está relacionada diretamente com a intera-
ção social que o indivíduo tem com o ambiente e com outras pessoas. Do
ponto de vista da perspectiva Histórico-Cultural, em especial nos estudos
de Vigotski (1999), o desenvolvimento é impulsionado pelo aprendizado
e, que o bom ensino, aquele eficaz, é o responsável pelo avanço do desen-
volvimento. Com relação à contribuição dos estudos de Vigotski para a
educação, em algumas de suas pesquisas é possível observar a importância
dada à linguagem, relevante para a comunicação humana, pois essa co-
municação com o outro é condição para o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores: por meio da linguagem a interação se torna pos-
sível; interagir com o outro e sobre um objeto, o sujeito desenvolve essas
funções. Este pensamento considera a linguagem como fator primordial
15 Doutor em Educação pela UNESP, Marília. Universidade Federal do Norte do Tocantins. E-mail:
gustavocaraujo@yahoo.com.br. Bolsista de Produtividade em Pesquisa CNPq PQ-2.
16 Mestrando em Educação pela UNESP, Marília – SP. Univesp – Universidade Virtual do Estado de
São Paulo. E-mail: davimilan145@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p53-68
54
para a comunicação e a interação social entre as pessoas inseridas num de-
terminado contexto histórico e cultural.
Ao propormos o tema da pesquisa, buscamos caracterizar e delimitar o
problema a ser respondido e analisado, dentro do campo teórico e empírico
pertinente a esta pesquisa. Nesse sentido, ao considerarmos a prática docente
e de pesquisadores em educação, em consonância com as nossas inquietações
enquanto professores, destacamos as questões norteadoras desta pesquisa:
quais obstáculos os estudantes jovens e adultos da Educação do Campo se
deparam com os processos de leitura e de escrita? Qual é o papel da arte na
produção de conhecimento desses estudantes? As histórias em quadrinhos
estão presentes na realidade17 do estudante jovem e adulto da Educação do
Campo? Quais os conhecimentos produzidos pelos alunos jovens e adultos
camponeses através das produções de histórias em quadrinhos? Quais são as
vivências e recepção deles ao conteúdo das histórias em quadrinhos trabalha-
das no Experimento Didático-Formativo? As HQs18 podem impulsionar o
interesse pela leitura desses estudantes? Essa linguagem pode inserir o estu-
dante da Educação do Campo na cultura escrita e visual? Com o propósito
de tentar responder essas questões, construímos um diálogo com a teoria
Histórico-Cultural.
Para alcançar o objetivo pretendido neste estudo, que se refere a ana-
lisar algumas concepções de escrita e histórias em quadrinhos de estudan-
tes camponeses, para que possamos compreender o que entendem por essas
linguagens, e como representam a suas realidades a partir dos quadrinhos,
optamos pela pesquisa aplicada, de natureza explicativa (Prodanov; Freitas,
2013). Tem-se no Experimento Didático-Formativo (Aquino, 2017, 2015,
2013) o método utilizado durante toda a pesquisa, na geração dos dados
(pesquisa de campo, entrevistas com estudantes camponeses e produção de
histórias em quadrinhos). Contudo, para este capítulo, socializamos um
17 Ao mencionar a inserção do indivíduo na realidade, Kosic (1976, p. 44) ressalta que essa presença
precisa ser objetiva e prática a partir de uma relação de historicidade com a natureza e na interação
com os outros, e não meramente especulativa. Embora essa realidade possa se apresentar em
determinados momentos contraditória, é necessário compreendê-la em sua totalidade, entendida
como “realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer pode
vir a ser racionalmente compreendido”.
18 Abreviação de História em Quadrinhos que será utilizada em alguns trechos desta pesquisa.
55
recorte de alguns desses dados, neste caso, de parte das entrevistas realizadas
com os participantes.
Resultados e Discussão:
a concepção de histórias em quadrinhos de jovens e adultos camponeses
As histórias em quadrinhos como linguagem que representa a realidade
do jovem e do adulto da Educação do Campo foram trabalhadas em diferen-
tes momentos do Experimento Didático-Formativo, como já foi mencionado
neste relato de pesquisa. Algumas tarefas foram voltadas à parte teórica de
conhecimento da sua linguagem visual e o seu contexto histórico; em outras,
na produção verbal e visual das histórias. Porém, em todos esses momentos,
os alunos sentiram a necessidade de trabalharem e conhecerem mais essa lin-
guagem que, embora não estivesse presente na maioria da realidade deles, era
importante para que ativassem as suas ações mentais e a se interessarem pelo
conteúdo. Assim, ao serem motivados após a necessidade criada, passaram a
se interessarem pelas tarefas propostas no experimento.
A respeito das histórias em quadrinhos, os estudantes jovens e os adul-
tos camponeses assim conceituaram essa linguagem:
Agora tá difícil...vou responder...(risos)...olha história em quadrinho é
você mostrar uma realidade através dos desenhos né, porque o desenho
chama muito a atenção...tanto do adulto quando da criança. (A5)
É uma história que a pessoa conta ali em forma de quadrinhos né... a
minha é real, realmente aconteceu comigo lá na minha comunidade, vi-
venciei e presenciei o caso....e outros inventaram a história né. (C5)
Professor, para mim seria uma história resumida que utiliza imagens ou
não...acho que trabalha muito a questão de ilustração...pra crianças e
adultos também. (E5)
História em quadrinho para mim é a gente contar uma história não de ler
só desenhos, mas também pode ser usando os desenhos e a escrita. (G1)
História em quadrinho é uma pequena história...real ou imaginária. (G3)
56
Assim, por exemplo, até eu fiz um modelinho da história em quadrinhos
na cartolina, e eu vi que a gente tem total possibilidade de mudar...eu
posso contar a mesma história de diferentes formas, mas baseada no meu
texto eu posso mudar até o meu vocabulário. (I1)
História em quadrinho tem que ter várias falas, tem que ter o desenho né,
e tem que ter início, meio e fim. (L1)
Eu diria que a história em quadrinhos é uma construção do conhecimen-
to, de uma forma mais expressiva, e diria também que nos possibilita
transferir o mundo para o papel, que não é uma coisa muito simples, e a
história em quadrinhos tem essa competência. (L3)
Para mim são as imagens... então às vezes só a gente olhando as imagens
já sabe o que aquela história quer dizer. (L4)
Para mim, história em quadrinhos é...ela tem utilidade muitas vezes de
provocar o leitor, de divertir, de informar, de criticar algo, é uma história
que o personagem tem oportunidade de vivenciar, de imaginar. (S1)
É uma sequência de fatos contados de forma reduzida e ilustrada com
personagens. (S2)
A maioria das respostas apresentadas pelos jovens e adultos deixa claro
que as histórias em quadrinhos são formas de representar a realidade por meio
dos signos verbais e não verbais (desenhos). Além de alguns alunos, como é o
caso do A5 e da G1, associarem essa linguagem com a escrita, compreendem
que as HQs são meios que possibilitam a eles não apenas representar o real
vivido, mas também o imaginário.
O experimento demonstrou que as histórias em quadrinhos podem
impulsionar o interesse pela leitura do jovem e do adulto camponeses. Pelo
fato de muitos virem de camadas populares, com histórico de ineficiência
das práticas didáticas, encontrou nessa linguagem uma forma de se rela-
cionarem com o mundo e a modificarem os seus pensamentos, o que lhes
permitiram revelar o que está por trás de suas histórias: luta pela terra, tra-
balho, questões agrárias, emancipação e educação. Destacamos ainda que as
suas falas mostram que as suas experiências de vida, culturas e letramentos
57
constituídos em seu meio não estão separados da totalidade camponesa na
qual se inserem.
Os conceitos aqui construídos por eles demonstram que a representa-
ção geral (pensamento empírico) que fizeram do objeto estudado (Histórias
em Quadrinhos) foi importante para conseguirem chegar ao teórico e enten-
der que essa linguagem é constituída não apenas por palavras, mas principal-
mente por desenhos. Essa formação de conceitos ocorreu via desenvolvimen-
to de pensamento, uma vez que os ajudou a elaborarem a sua consciência e a
compreenderem essa totalidade.
Com efeito, o pensamento teórico “não tem por objeto a diversidade
imediata das coisas; estuda-as por meio da objetivação idealizada específica e
só então realiza as suas possibilidades. Os símbolos e os signos são os meios
de construção da objetivação idealizada”. (Davídov, 1988, p. 134). Ou seja,
os conteúdos trabalhados nas tarefas de estudo a respeito das histórias em
quadrinhos ajudaram na formação do pensamento teórico dos alunos. Em
suma, o desenvolvimento dessa atividade proporcionou uma formação mais
plena neles, ao conseguirem identificar e conhecer os signos que compõem as
histórias em quadrinhos.
À luz desse pensamento, Davídov (1988) defende que o ensino deve
impulsionar o desenvolvimento mental dos alunos. E por que não partir de
suas realidades por meio da arte? Com isso, o ensino pode ajudá-los a terem
uma atitude nos modos de pensar, analisar e entender os objetos e as relações
que esses têm com a realidade. É por isso que o pensamento teórico, que
ocorre da ascensão do abstrato ao concreto, é relevante nesse processo, pois
possibilitou ao jovem e adulto do campo a amadurecer as suas funções psí-
quicas superiores.
Destacamos ainda que nas aulas do experimento buscamos não “entre-
gar” o conceito pronto ao aluno, pois era necessário que ele o desenvolvesse
a partir de suas experiências com a realidade e por meio de situações-pro-
blema promovidas pelas produções das histórias em quadrinhos, ocorridas
no Experimento Didático-Formativo, o que nos permitiu inferir que muitos
deles tiveram condições de desenvolver a sua criatividade.
Com o objetivo de dar sequência nessas análises, exponho o que res-
ponderam o que entendiam por escrita:
58
Escrita é você saber escrever tudo certinho, pôr vírgula, por tudo, então
escrita para mim é isso. (A1)
É a forma utilizada para transmitir uma mensagem, seja ela de forma
visual ou não. (A2)
Olha, para mim escrita é você saber escrever corretamente...porque a es-
crita é você escrever o que tá pensando, porque se você não escreve corre-
tamente, muitas vezes a pessoa não vai saber o que você quis dizer. (A5)
É um desenho de palavras...porque às vezes tem pessoas que não conse-
guem escrever porque não tem aquela habilidade de manusear uma cane-
ta. (C3)
É a maneira que usamos para expressar nossos pensamentos...e a escrita
nos faz estar melhorando nossa leitura. (E2)
Escrever é colocar em prática aquilo que você está pensando. (G1)
Para mim não é só letra não...se eu fazer um desenho, um desenho tam-
bém é um tipo de escrita, não é? É uma forma de comunicação. (J1)
Eu acredito que a escrita é a transferência daquilo que eu aceito ou eu
tenho construído... aquilo que eu conheci, aquilo que eu vivi, aquilo que
eu vivenciei...então a escrita é a transferência do meu conhecimento para
o papel. (L3)
Bom, pra mim a escrita transmite alguma mensagem que a pessoa olha e
consiga entender o que tá dizendo ali...para mim o conceito de escrita não
é só letra não...tem um significado dependendo de cada contexto. (M2)
É uma forma, assim como a arte, de expressar sentimentos, opiniões, crí-
ticas. (S1)
É o ato de transmitir a mensagem, seja ela de forma verbal por extenso ou
visual. Pois a escrita é ato de registrar. (S2)
Os seus depoimentos demonstram que a escrita precisa ser algo “bem
feito”, reforçado pelas falas dos alunos A1 e A5, pois, além de ser um registro
59
de ideias, pensamentos e informações produzidas, a escrita está associada ao
desenho, o que lhe confere uma qualidade estética.
Nas suas palavras, a escrita melhora a interpretação, pois escrevo não
apenas para mim, mas para as outras pessoas também, o que evidencia a
importância da interação na formação das funções psíquicas superiores do
jovem e do adulto do campo. Além de “libertar” o camponês, tanto a leitura
quanto a escrita são conquistas significativas para eles em busca de seus direi-
tos enquanto cidadãos, uma vez que muitos deles são analfabetos funcionais,
o que implica a mudança da realidade deles pela arte, leitura e escrita.
Sob essa afirmação, as histórias em quadrinhos produzidas por eles no
experimento foram fundamentais para que eles enfrentassem as suas realidades,
superando-as ao mostrar que são capazes de agir com mais fomentação crítica e
com intensa participação nos interesses de seu povo, por meio de movimentos
sociais e mobilizações que buscam lutar por seus direitos. Não é porque são
camponeses e moram no campo que não mereçam atenção ou que não sejam
considerados fundamentais para as tomadas de decisões do país. Nesse sentido,
é possível dizer que as linguagens escrita e oral são revolucionárias para eles.
Com esse pensamento, defendemos que trabalhar com textos escritos
com jovens e adultos da Educação do Campo é uma forma interessante para
motivá-los a respeito da importância da leitura para o processo formativo de-
les. Ou seja, buscamos “provocá-los” no interesse deles para a leitura. Embora
gostar de ler ou ter interesse pela leitura pode ter influência cultural e familiar
desse sujeito no seu contexto camponês, esse conhecimento foi fundamental
para que nós conseguíssemos trabalhar com os textos escritos e visuais com
eles a partir de suas vivências, interesses e necessidades, com o objetivo de
captarem a essência do real, e não simplesmente observarem “superficialmen-
te” o que liam e escreviam no experimento.
É por meio dos textos que eles expressam as suas ideias, sentimentos
e conhecimento, e porque não dizer, instrumento de luta? Ora, a linguagem
escrita e oral é um interessante meio de expor os seus questionamentos no
que concerne à sociedade atual. A partir dessa perspectiva, é preciso mencio-
nar também a linguagem visual nesse processo que, em consonância com a
produção artística que eles realizaram no Experimento Didático-Formativo,
foi importante para a formação estética e cultural deles.
60
Essas análises permitem afirmar ainda que não tem como dissociar o
texto expresso nos balões e legendas das histórias em quadrinhos dos seus de-
senhos e outros elementos visuais presentes nessas histórias. Tanto os signos
verbais quanto os visuais proporcionam interpretações e representações da
realidade camponesa, uma vez que, quando o desenho se soma com a palavra,
formam uma fusão e passam a descrever não apenas a história contada, mas
fornece o diálogo, sons e outros signos visuais para o processo de compreen-
são da história.
Queremos mencionar ainda que as dificuldades apresentadas por eles
ao longo do experimento nem sempre são ortográficas ou gramaticais, pois
eles buscavam melhorar os textos produzidos por eles com os exercícios fei-
tos nas tarefas, o que ficou evidente tanto nos trabalhos feitos, quanto em
seus relatos orais aqui socializados. Constatamos que eles tinham dificuldades
também em compreender e raciocinar sobre o conteúdo e assunto trabalhado
que não são voltados as suas realidades.
A Escrita do Estudante Camponês Jovem e Adulto
Segundo Vigotski (2007), a linguagem escrita é constituída por sig-
nos verbais que se relacionam, dialeticamente, na conjuntura do texto. Nesse
sentido, é fundamental que o indivíduo se comunique com o mundo a sua
volta, ao estabelecer relações culturais e reais com as pessoas. Nessa direção,
por ser um sujeito histórico e social e autor de sua própria história, o jovem e
o adulto da Educação do Campo têm na linguagem escrita e na leitura a pos-
sibilidade de se humanizar e se apropriar da cultura. Esse processo se efetiva
na medida em que ele interage com as pessoas a sua volta e com “parceiros
mais experientes que ele. Esse processo é importante para o amadurecimento
de suas formações mentais.
No que se refere à escrita, procurei compreender que importância os
estudantes dão a essa linguagem na Educação do Campo. Assim relataram:
É importante igual à leitura, porque se você ler muito, você escreve me-
lhor. Se você não ler, você não tem uma escrita cem por cento. A leitura e
a escrita têm que andar juntas. (A1)
61
A leitura e a escrita são instrumentos importantes para os sujeitos do cam-
po, sejam autônomos no sentido de responder por si. (A2)
A escrita é importante porque...é meio que redundante, porque da mes-
ma forma que a leitura, a escrita também é importante...a leitura é algo
escrito...você aprende ler escrevendo, igual lá no estágio (7° ano), quando
a gente foi estagiar e falou para os meninos da turma fazerem um texto
sobre alguns questionamentos lá, e pensando eu que eles iam fazer em
casa, para entregar na próxima aula, porque o objetivo era esse, e tinha
uma menina toda empolgada com a metade da folha já escrita, e a gente
surpreende porque eles são do campo, e eles gostam de escrever, e os da
cidade não gostam. A gente não tem o prazer de escrever, de ler, porque,
pelo menos para mim, na minha infância, eu tinha isso como obrigação,
eu era obrigada a ler, e eu era obrigada a escrever...então se é algo que você
tem obrigação, no futuro você não tem prazer com aquilo ali. (A3)
Porque o cidadão precisa adquirir essa ferramenta...porque para ele escre-
ver o que ele pensa, o que ele acha né, do sistema na qual ele vive...porque
se ele só reescreve o que as pessoas escrevem, ele precisa escrever a sua
própria história, precisa ser independente. (A5)
Já a escrita, também, é importante pelo fato de...as pessoas entenderem o
que você quer passar...porque um ponto já diz muita coisa, um ponto de
interrogação, uma vírgula. (C3)
Para se libertar professor...(risos)...é também, porque quando a pessoa não
sabe ler, ela vive presa. Eu faço isso porque lá onde eu moro, tem muitas
pessoas que são analfabetas, que não sabem mesmo ler não, mas tem uma
colega minha lá que vive reclamando, porque ela não sabe ler, não sabe es-
crever de jeito nenhum, aí ela tá sempre pedindo as pessoas pra fazer. (C5)
Porque se eu sei escrever, eu lá no campo vou poder fazer qualquer docu-
mento e...mandar para qualquer lugar. Eu vou aprender a me comunicar
através da escrita também. (D1)
Ah professor, a escrita tem uma importância muito grande, porque, tipo assim,
se você pratica a escrita, você vai escrever mais simples, sua caligrafia vai mudar, e
a língua vai mudar também...eu tinha uma dificuldade muito grande de “é” pra
e”...é como se você tivesse no fundo do poço, aí vão lá e te tira. (I1)
62
Eu acredito que quando mais você ler, mais você aprende...aumenta a
capacidade de você escrever melhor né...e na escrita você precisa ter uma
boa compreensão para escrever. (J1)
Acho que é a questão da documentação...do que sabe, do que faz, do que
acontece né...no campo...porque é o seguinte, se acontece um determina-
do caso, se não se escreve, aquilo, a tendência é ficar no esquecimento...se
não registra isso, ele. (J2)
O aluno do campo já sofre um preconceito por ser do campo e não tiver
a leitura e uma escrita acessível já é taxado como analfabeto que não sabe
ler nem escrever. Tanto a escrita quanto à leitura é muito importante para
o aluno do campo. (R2)
É comum nas falas dos alunos a importância da leitura e escrita para o
seu aprendizado e para a construção de conhecimento. Porém, alguns ressal-
taram da relevância dessa linguagem para se inserirem na sociedade, isto é,
para aqueles que não sabem e não exercem as ações de ler ou escrever, o fato
de conseguirem assinar um documento se mostra uma grande conquista para
que ele possa participar enquanto cidadão em seu meio social. Além disso, há
alguns alunos que destacam a melhoria para a leitura o fato de exercitarem a
escrita, como é o caso das alunas A3, C3 e I1.
A relação dialética entre a leitura e a escrita está presente nas falas dos alu-
nos (A3, C3, I1), além de concederem essas duas linguagens relevantes. As suas
repostas trazem indicativos de que eles entendem que a escrita não se dissocia
da leitura no processo de interação e comunicação humana. Com isso, ambas
são significativas para expressarem as suas ideias, conhecimentos de mundo e
questionamentos da realidade camponesa. Em adição, a escrita possibilita ao
jovem e adulto da Educação do Campo deixarem registrada a sua vida no pa-
pel, o que os coloca como sujeitos e autores de suas próprias histórias.
Além disso, a linguagem escrita é uma forma de libertação para eles, como
relata a aluna C5, pois por meio dessa linguagem, o camponês representa os seus
interesses, vontades e enfrenta as intempéries da vida. Com a escrita, esse sujeito
exerce o seu direito de se posicionar criticamente, tão negado pelo Estado, pois assi-
nar um documento e compreender melhor e com mais consciência a sua realidade,
é mais que uma grande conquista de direitos: é um ato revolucionário para ele.
63
No entanto, a escrita na Educação do Campo também está relacionada
ao processo de escolarização precária desses sujeitos, uma vez que aprender a
ler e a escrever como imposição obrigatória do professor, com métodos tra-
dicionais, sem considerar a realidade desse povo e seus saberes, apenas afasta
esse educando do interesse em desenvolver melhor os seus processos de leitura
e escrita. Assim, quando pretendem continuar os seus estudos na universida-
de, trazem com eles essas experiências negativas que, inclusive, afetam eles no
processo de ensino e aprendizagem ao longo da graduação. Essa constatação
foi possível a partir do depoimento da aluna A3.
Em outras palavras, se não há o desenvolvimento habitual da leitura e
da escrita (Vigotski, 2010), isto é, se é ausente à relação dialética entre essas
duas ações linguísticas no processo de formação do jovem e do adulto da
Educação do Campo, a necessidade de aprendizagem e, consequentemente, a
formação da sua consciência não se desenvolvem efetivamente.
Seguindo essa lógica, conceber a língua à luz da abordagem dialógica,
reflete o entendimento de que, por natureza, ela está em real funcionamento
e à disposição dos sujeitos para exercerem suas práticas sociais. De acordo
com Bakhtin (1992), a língua é uma atividade essencialmente social, dada as
condições favoráveis na qual ocorre a comunicação entre os interlocutores.
Sob a ótica do autor, entende-se que ela recebe influência do contexto, o que
leva um participante agir, de maneira recíproca, com o(s) outro(s).
Nesse meio de campo e, levando em consideração o contexto do ensino
propriamente dito, é possível observar, por meio das concepções dos estudio-
sos do texto e do discurso, que toda prática pedagógica é conduzida por uma
determinada concepção de língua. Mesmo que não esteja explícita, ela está
coagindo e permeando as experiências de todos os participantes que integram
o plano da atuação verbal. Sob esse viés, e não perdendo o foco da abordagem
dialógica, pode-se assumir uma noção de língua
[...] como um fenômeno social da interação verbal, realizada pela enunciação
(enunciado) ou enunciações (enunciados) [...] não constituída por um sistema
abstrato de formas linguísticas [língua como sistema de formas – objetivismo abs-
trato] nem pela enunciação monológica isolada [língua como expressão de uma
consciência individual – subjetivismo individualista], nem pelo ato psicofisiológi-
co de sua produção [atividade mental]. (Bakhtin, 1992, p. 123, grifo do autor).
64
Os estudos da vertente textual entram em consonância com a teoria
bakhtiniana, ao explorar a enunciação como uma manifestação da atividade
social e interacional. Sob a ótica do autor, a enunciação se define ou se apre-
senta como um produto de dois indivíduos historicamente situados em uma
determinada situação, levando aquilo que está no interior da linguagem a
ser emitida (Bakhtin, 1986). Assim, a língua é uma atividade essencialmente
social e é marcada por uma postura ideológica e, portanto, de ordem social,
na qual a ordem dos discursos e dos sentidos a caracterizam por ser essencial-
mente dialógica por natureza.
Nesse ínteim ressaltamos que a maioria desses estudantes tem interesse
pela escrita, o que é importante para desenvolverem os seus pensamentos e
a sua criticidade. Não é porque são do campo, que vivem em condições pre-
cárias tanto de moradia quanto de escolarização que não se interessam pela
leitura e escrita. No entanto, a dificuldade em escrever, de se apropriar e co-
nhecer diferentes signos verbais e visuais leva alguns jovens e adultos campo-
neses a não gostar de desenvolver essa ação linguística; portanto, a se afastar
dela e, consequentemente, não continuar em seu desenvolvimento. Isso ficou
claro em suas falas ao perguntar se tinham alguma dificuldade com a escrita:
Eu tenho. Ortografia. Fica mudando essas coisas...querendo renovar. (A1)
Tenho...palavras difíceis, pontuação. (C2)
Tenho muita dificuldade com ortografia. (C5)
Eu tenho, assim...as habilidades....eu não tenho dificuldade para escre-
ver...hoje eu tenho receio da escrita justamente porque a ortografia mu-
dou muito do tempo que aprendi a escrever...então aquilo que era certo,
hoje não é mais certo. (L3)
Sim, com algumas palavras que às vezes fico com dúvidas de como é a
palavra, ou seja, de como escrever a palavra. (G1)
Eu tenho...eu já estudei as normas, mas acho confusas...é tanta regra da
linguagem portuguesa... porque eu tenho dificuldade entre “ss”, “c”, “sc”.
(G3)
65
Assim, com algumas palavras, por exemplo, “ç”. (I1)
Sim, depois da nova ortografia eu escrevo muitas palavras erradas. (I2)
Sim. Tenho com a ortografia. (J1)
Eu tenho lá...a questão do Português...aquelas regrinhas assim...se eu for
fazer tudo acima dos conformes, aí fica mais complicado. (J2)
Eu tenho. Palavras grandes. (M1)
É evidente em seus relatos que a maioria dos jovens e adultos da
Educação do Campo compreende que a principal dificuldade em escrever é a
apropriação de novos signos verbais que, até então, eram desconhecidos por
eles, muito devido à nova ortografia brasileira que entrou em vigor no ano
de 2016 no país. Sob essa constatação, entendemos que as histórias em qua-
drinhos que eles produziram no Experimento Didático-Formativo são im-
portantes nesse processo, pois trabalhadas na perspectiva Histórico-Cultural,
levam eles a superar o ensino tradicional baseado por exercícios repetitivos e
mecânicos que, associados a métodos obsoletos, pouco contribuem para esse
educando a avançar na escrita. As suas falas revelaram essa afirmação.
Nesse sentido, tanto a escola quanto a universidade não devem trabalhar
com a leitura e a escrita de forma superficial, pois elas não devem ficar apenas
na decodificação de sinais gráficos e palavras. Diante disso, acrescentamos ain-
da que as histórias em quadrinhos proporcionam a esse educando maior quali-
dade nos seus processos de leitura e escrita, ao trabalhar no desenvolvimento de
signos verbais e visuais na produção de textos, o que ajuda significativamente
na evolução desses processos no percurso formativo de sua vida.
É importante lembrar que a vida desse camponês que quer escrever e
ler não é nada fácil. Muitos percorrem grandes distâncias até universidade, às
vezes a pé ou de carona (quando tem), tudo isso associado a trabalhos desgas-
tantes no campo, nas tarefas coletivas de suas comunidades, nas plantações
colheitas, assentamentos entre outros. Geralmente são vistos pela sociedade
dominante como “inferiores”, sem ao menos, possibilitar-lhes a transforma-
ção de sua própria realidade. É por isso que é importante romper com a lógica
formal do ensino que entende apenas ser correto e verdadeiro, determinados
66
métodos e conteúdos trabalhados em sala de aula, que não levam em consi-
deração o contexto camponês. Queremos dizer que se o jovem e o adulto da
Educação do Campo se deparam com uma realidade na universidade total-
mente diferente da dele, ele não se interessará em aprender e a desenvolver a
sua escrita e, consequentemente, a sua leitura, dois instrumentos importantes
para exercerem os seus direitos e a continuarem na luta pela Reforma Agrária.
Alguns desses estudantes preferem escrever no computador, outros,
manualmente. Independente dos meios que utilizam para representar as suas
realidades e as suas ideias, eles gostam de escrever, mas, pelas dificuldades que
têm com essa ação linguística, em compreender determinadas palavras, sig-
nos visuais entre outros já mencionados, acabam se afastando dela. É por isso
que pelos trabalhos realizados por eles no Experimento Didático-Formativo,
quando produziram as histórias em quadrinhos, não temos dúvidas de que
a arte os ajudou a se interessarem mais pela linguagem verbal e linguagem
visual. Com efeito, é possível dizer que as histórias em quadrinhos ampliam
o universo letrado do homem do campo.
Considerações Finais
Os estudantes jovens e adultos apresentam diferentes concepções acer-
ca da escrita e histórias em quadrinhos. Alguns a compreendem como algo
que precisa ser “correto”, que expressa diferentes expressões, o que evidencia
que escrever e ler hoje em dia é de fundamental importância para comunicar
com as pessoas e o mundo a sua volta. Por outro lado, acerca dos quadrinhos,
entendem essa linguagem como forma de representar a realidade camponesa,
a partir de signos visuais.
Em consonância com essas considerações, está evidente que a política e a
economia vigentes no Brasil e que influenciam diretamente o campo brasileiro
precisam ser revisadas e reformuladas, pois impossibilitam que a diversidade
cultural se fortaleça nesse âmbito. Nesse cenário, a tônica do capitalismo é pro-
por políticas de seu interesse, com a justificativa de fazer ajustes econômicos
para recuperar o crescimento do país. Na verdade, a realidade que se mostra é
bem diferente, pois as taxas de juros aumentaram, assim como as desigualdades
sociais, o que culminou no crescimento do desemprego e na baixa qualidade do
ensino ofertado na Educação Básica e no Ensino Superior no Brasil.
67
Essas são algumas das contradições que determinam e reproduzem as
opressões da classe dominante contra a classe trabalhadora do campo. Logo,
lutar por um projeto de educação que seja efetivamente voltado à popula-
ção camponesa é uma forma de criar novas condições materiais de vida do
homem e da mulher do campo que, historicamente, vivem em condições
de exploração e submissão, como muitos jovens e adultos revelaram nesta
pesquisa. Com efeito, pensar que tanto a escola quanto a universidade são
espaços de intensas contradições, identificá-las é essencial para transformar a
realidade daquele camponês que frequenta essas instituições. É por isso que
as abstrações realizadas por eles no Experimento Didático-Formativo foram
importantes, uma vez que conseguiram captar informações que, até então,
eram desconhecidas da sua realidade.
A Educação do Campo é mais que um movimento educacional, é uma
ciência que luta contra a hegemonia tradicional da educação e contra as in-
vestidas do capitalismo que a vê como mercadoria. Com esse pensamento,
essa educação deve promover nos estudantes o pensamento teórico, para que
consigam compreender o campo e transformá-lo. Com isso, terão condições
de entender que o cavalo que eles andam é um transporte, que a enxada usada
na lavoura é um instrumento de trabalho, que os alimentos produzidos por
eles seguem um ciclo para germinarem, que a matemática aprendida na esco-
la pode ajudá-los na medição de quantos hectares plantaram, que o contato
com as artes na universidade pode auxiliá-los a entender que os artesanatos
e as músicas produzidas em suas comunidades são manifestações artísticas.
Enfim, é importante que o camponês se reconheça como sujeito tão impor-
tante quanto aquele cidadão que mora na cidade e que a roça é também o
seu emprego.
Referências
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68
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69
Educação Popular e Consciência de
Classe: uma Reflexão a Respeito da
Experiência do 13 de Maio NEP19
eo Martins LUBLINER20
Introdução
“O único meio de pressão que pode levar à vitória é a
formação política dentro da luta cotidiana”.
Rosa Luxemburgo
A convicção sobre a necessidade de realizar formação política entre as
classes trabalhadoras para um avanço da consciência de classe em vistas à orga-
nização da revolução proletária nasceu junto ao socialismo científico. E não po-
deria ter sido diferente. Afinal, um dos grandes ensinamentos históricos da bur-
guesia foi justamente a antecipação de suas ideias e valores as suas revoluções.
Marx e Engels deixaram clara a importância da educação e da neces-
sidade de ampliação do conhecimento para a luta socialista e para fomentar
uma “consciência comunista embrionária”, o que perpassava pela compreen-
são crítica da ciência e da ideologia burguesas e pela elaboração da ciência
proletária. Isso, porém, não seria condição suficiente para a superação da
19 O presente texto é o resumo de um dos capítulos da tese A decadência ideológica da ciência econômica
e a formação política no MST e n 13 de Maio NEP do autor (LUBLINER, 2024)
20 Professor do Instituto Federal de Sergipe, doutor em Educação pela Unesp, mestre em
Desenvolvimento Econômico e bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp. Autor do livro
Sobre Economia publicado pela Editora Lutas Anticapital.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p69-92
70
alienação e para a emancipação humana que só poderia ocorrer com a mu-
dança estrutural da forma de propriedade. Afinal, uma nova consciência só
poderia ser alcançada com a superação do modo de produção capitalista.
Esse tema, consensuado por algumas décadas mas sem nenhum tipo
de aprofundamento, passaria então por debates de “como fazer?” no sé-
culo XX. Lenin teria sido o primeiro marxista a se debruçar sobre a te-
mática em seu clássico texto Que fazer? de 1902. Disse o autor: “«Todos
estão de acordo» que é necessário desenvolver a consciência política da
classe operária. Pergunta-se, como fazê-lo e o que é necessário para o fa-
zer? (1977[1902], p.47). Nesse texto, Lenin se empenhou em combater a
ideia que prenominava entre a social-democracia russa de que o processo
de consciência derivaria da própria luta econômica de forma espontânea,
além de fazer uma defesa intransigente da teoria revolucionária, ideia le-
gada de Engels de que a luta da social-democracia não era somente po-
lítica e econômica mas também teórica. Daí sua célebre frase no mesmo
texto: “sem teoria revolucionária não pode haver também movimento re-
volucionário” (idem, p.17).
Mais ainda, ele defendeu a tese de Kautsky de que cabia à intelectuali-
dade reunida no Partido difundir essas teorias o que, à época, se fazia sobretu-
do pela imprensa escrita. Ou seja, para ele, a consciência de classe não surgiria
de forma espontânea do próprio proletariado, mas viria de fora, através de
uma intelectualidade especializada – pelo próprio exemplo de Marx e Engels,
pertencentes a uma intelectualidade burguesa (idem, p.20) – que deveria ex-
plicar ao proletariado sua condição de exploração e também a sua missão
histórica já que este estaria impossibilitado de fazê-lo pela exaustiva e massa-
crante jornada de trabalho imposta. Lenin acreditava que a classe operária,
por si só, desenvolveria, no máximo, uma consciência do tipo “trade-union”,
ou seja, sindical-corporativista e economista.
Caberia, portanto, aos membros do Partido a formulação teórica, a agi-
tação, a propaganda e a denúncia das diferentes formas de exploração e opres-
são através da imprensa para influenciar as massas a irem além da luta por
ganhos materiais imediatos. Disse ainda Lenin:“Devemos empreender activa-
mente o trabalho de educação política da classe operária, de desenvolvimento
da sua consciência política” (idem, p.35) e “devemos «ir a todas as classes da
71
população» como teóricos, como propagandistas, como agitadores e como
organizadores” (idem, p.49). O desenvolvimento da consciência política do
operariado seria, portanto, um meio que legitimasse o Partido e o tornasse
uma referência para dirigir o movimento de massas e não a sua finalidade.
Indiscutivelmente, a leitura de Lenin – vale dizer, mesmo antes do le-
vante de 1905 – se mostrou correta com o desfecho da Revolução de 1917
uma vez que a fração bolchevique do Partido Operário Social-Democrata
Russa, a partir de seu esforço de denúncias e agitação, ganhou legitimidade
e, após a insurreição de fevereiro, os reconheceu e os conduziu à liderança do
movimento em outubro daquele ano.
Ocorre, porém, que essa perspectiva sobre o papel da intelectualidade e
do Partido levou a uma tendência vanguardista centralizadora como se hou-
vesse exogeneidade do pensamento crítico e, portanto, uma certa autonomia
em relação à luta política e econômica.
Essa perspectiva já era questionada por Rosa Luxemburgo no início do
século XX. Assim como Lenin, Rosa foi, sem dúvida, uma fiel herdeira dos
ensinamentos e do método de Marx. Ela tinha convicção sobre a necessidade
de as classes trabalhadoras acessarem o conhecimento produzido pela ciência
proletária em sua complexidade e o esforço por empreender uma linguagem
acessível sem a tornar simplória. Isso era tão importante para Rosa que sua
vida possuiu um significado pedagógico. Não só por sua metodologia como
educadora, mas por seus textos, seus discursos, sua atuação militante e suas
relações interpessoais. Para ela, o alto grau de conhecimento intelectual só
levaria a uma concepção revolucionária ou a um avanço no processo de cons-
ciência de classe através da inserção na luta cotidiana. Essa, porém, sem um
alto grau de conhecimento intelectual levaria a inevitáveis erros interpretati-
vos e a sérios equívocos estratégicos e táticos.
Apesar de sua morte trágica e precoce, Luxemburgo teve tempo de ir
além. Ela antecipou algumas reflexões e questões que hoje parecem óbvias,
como: o papel central do que é chamado de Educação Popular para a cons-
ciência de classe; a centralidade do método e não de prognósticos baseados
em análises conjunturais para a compreensão da realidade e para a elaboração
estratégica; o papel protagonista da luta de resistência dos povos originários
contra o avanço da acumulação capitalista; a democracia proletária como
72
princípio inegociável e como antídoto aos perigos da concentração de poder
e da burocratização21.
Para além dos problemas das experiências socialistas que têm exigido
sérias e constantes autocríticas (para as quais Luxemburgo se apresenta como
referência fundamental), o papel das organizações e da formação política para
a consciência de classe se mostram centrais enquanto se desenrolam os des-
fechos da luta de classes. Sobretudo porque, recorrentemente, vivemos mo-
mentos oportunos para a ofensiva da ciência proletária diante de sucessivas
crises ideológicas e científicas das classes dominantes.
A tarefa de dar continuidade a esse esforço iniciado por Marx e Engels
e levado adiante por outras grandes figuras da ciência proletária se impõe hoje
adicionados novos desafios tanto pelo avanço da ofensiva ideológica como
pelas transformações próprias do modo de produção capitalista que envol-
vem ainda novas mistificações dos diferentes e “modernos” mecanismos de
exploração do capital sobre o trabalho, novas configurações das classes e tam-
bém formas hodiernas de opressões criadas e adaptadas pelo capital.
Isso porque, para além da elaboração teórica que desenvolva a ciência
proletária ainda sob o domínio do capital, existe o desafio de sua difusão. Isto
é, o esforço de que haja uma apropriação pelas classes trabalhadoras tanto da
ciência econômica burguesa como da proletária. Isso envolve, é claro, agita-
ção e propaganda, mas sobretudo a formação política que torne possível a
compreensão não só de conteúdo mas de lógica e capacidade de abstração, o
que exige não só a apreensão da ciência em si mas de outros campos do co-
nhecimento que envolvem também a subjetividade, como a filosofia e a arte.
Recentemente, com a ofensiva das teses neoliberais sobre o senso co-
mum, o imaginário popular e a opinião pública tem reforçado as ideias de
meritocracia como sistema social justo, do empreendedorismo individualista
como solução ao desemprego, de “educação financeira” como cura ao endivi-
damento, do individualismo como “sociabilidade”, da competição como chave
para o progresso. Por isso, a temática econômica possui terreno propício tanto
para o domínio ideológico como para a crítica. Nos espaços especializados nes-
se assunto isso é direto e explícito. Contudo, nas escolas e no entretenimento
(que tem se confundido constantemente), onde a economia está implícita, isso
21 Sobre essas contribuições de Roda Luxemburgo, ver Wavrant (2018) e cap. 3 de Lubliner (2024).
73
tem ocorrido de forma muito mais sorrateira, mas não menos impactante. Essa
tem sido uma importante arma que sobrou às classes dominantes incapazes, pe-
las próprias forças do capital, de disponibilizar algum tipo de meio de redução
de danos como foi o Estado de bem-estar social na Europa.
Ainda que a Escola se mostre uma importante trincheira das classes tra-
balhadoras contra a ideologia, não se deve iludir. Isso porque, sob o domínio
das classes dominantes, ela pode ser no máximo um espaço de acirramento
das contradições e não o terreno de uma inflexão possível para o avanço na
consciência de classe. O espaço que tem demonstrado força para isso é o de
formação política dos movimentos sociais que são capazes de unir a teoria
crítica da ciência proletária à luta. Daí o presente texto se ocupa de um dos
mais importantes esforços nesse sentido, o do Núcleo de Educação Popular
(NEP) 13 de Maio NEP.
Sobre o 13 de Maio NEP
O 13 de Maio NEP foi, sem dúvida, a grande referência de formação
política no movimento sindical brasileiro na virada dos anos de 1980 para
1990. Tendo realizado milhares de cursos e seminários por todo o país para
dezenas de milhares de participantes ao longo de suas mais de quatro dé-
cadas, esse coletivo se destacou não só pela quantidade mas pela qualidade
do método desenvolvido ao longo desse jornada. Ainda hoje, na figura do
Fórum Nacional de Monitores (FNM), o chamado “FêNêMê”, esses educa-
dores continuam contribuindo para a organização popular e para o avanço da
consciência de classe, sendo ainda a “maior e mais longeva escola de formação
político-sindical do Brasil” (Silva; Tumolo, 2010, p.118).
O grupo nasceu por volta do final dos anos de 1970 já na decadência
da ditadura empresarial-militar e junto ao reascenso das lutas das classes tra-
balhadoras que originaram a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o
Partido dos Trabalhadores (PT). O coletivo de educadores que formou o 13
de Maio NEP pertencia, inicialmente, à frente sindical urbana da Federação
dos Órgãos para Assistência Social (FASE), que oferecia cursos profissionali-
zantes. Por volta de 1976 a equipe da FASE de São Paulo começou a relacio-
nar esses cursos à organização da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo
para combater as direções consideradas pelegas. Passou-se, assim, a utilizar a
74
estrutura da FASE para organizar sindicatos combativos, oposições sindicais
e ajudar a fundar a CUT. Porém, parte significativa da direção nacional da
FASE (composta por membros do PCB, PCdoB e MR-8) era contra a fun-
dação da CUT e o PT. Por essas divergências, toda a equipe da FASE-SP foi
demitida em 1982. No mesmo dia da demissão, em 13 de maio, a equipe de-
cidiu formar um novo coletivo para dar continuidade ao trabalho que vinha
sendo desenvolvido. Daí originou-se o nome do grupo. (Silva, 2008).
A equipe atuava em diferentes ambientes, fossem aqueles aos quais a
Igreja possuía acesso – como grupos de alfabetização, de crisma, de jovens
etc. –, núcleos de base do PT a partir de 1982, movimentos de favelas, de luta
por creche e por transporte.
Com a criação da CUT em 1983 o 13 de Maio NEP passou a construir
organicamente a Secretaria de Política Sindical (responsável por acompanhar as
eleições sindicais e a dar suporte às oposições) e a Secretaria de Formação da en-
tidade, sendo o grupo responsável pela construção do seu programa de forma-
ção político-sindical. Essa vinculação ofereceu uma possibilidade de ampliação
do trabalho do coletivo que, além de atuar na organização da oposição, passou
a organizar cursos de formação política e a elaborar materiais audiovisuais.
Ainda que até a fundação da CUT isso não estivesse bem demarcado, a
equipe já realizava esses três tipos de trabalho: o de acompanhamento do nas-
cimento das oposições sindicais nas fábricas, o trabalho direto; o de elabora-
ção de cursos de formação de militantes e dirigentes para a oposição sindical,
o trabalho de formação política; e o de produção de materiais audiovisuais, o
trabalho de produção de recursos pedagógicos (Silva, 2008, p.97). Todo o tra-
balho estava subordinado ao trabalho direto uma vez que o grande foco da
equipe era garantir a vitória da oposição nas eleições sindicais.
Até esse momento o grupo não havia produzido ainda um programa es-
truturado de formação política. Eram realizadas “reuniões orientadas” em que
os monitores da equipe simplesmente iam até determinado local para discutir
alguns temas com os trabalhadores. Posteriormente, a experiência dos educadores
era socializada com o restante da equipe que acabava produzindo os Cadernos de
Formação e que serviriam de suporte aos novos trabalhos de formação.
O grupo era composto por militantes de diferentes matrizes do cam-
po marxista, inclusive membros católicos adeptos da Teologia da Libertação.
75
Dentre estes, Humberto Bodra desempenhou papel fundamental a partir
de sua experiência como educador popular tanto em aspectos de conteúdo
como didático-pedagógicos, quando o grupo passou a fazer formação políti-
ca. Segundo Luís Carlos Scapi, teria sido ele o responsável por ajudar a resol-
ver problemas relacionados ao curso de Noções Básicas de Economia Política.
(Silva, 2008, p.104)
A frente de formação política começou a se organizar somente a partir
de 1984 com a realização dos “cursõesHistória do Movimento Operário no
Brasil, Noções Básicas de Economia Política e História das Revoluções, que eram
realizados em seis dias por quatro períodos. Um curso acabava derivando
do outro a partir das demandas que surgiam. Questões de Sindicalismo, por
exemplo, nasceu após 1987 pela necessidade de se explicar a mais-valia aos
participantes do curso de Noções Básicas de Economia Política. Aquele curso se
tornaria então o “carro-chefe” e que, mais tarde, ganharia o nome de Como
Funciona a Sociedade. No Relatório de Avaliação de 1991 em Cruz (2010,
p.143) o coletivo registrou que a criação e implementação de novos cursos
passava por um processo de avaliação que envolvia a elaboração de um pro-
jeto inicial que era discutido pelo conjunto da equipe até que se formava um
protótipo. Realizava-se, em seguida, um curso piloto que era submetido a
uma avaliação coletiva, agora com impressões empíricas dos participantes.
Da mesma forma, os materiais bibliográficos (os Cadernos de
Formação) iam sendo produzidos de acordo com as experiências vividas nos
cursos. O roteiro do curso Noções Básicas de Economia Política, por exemplo,
transformou-se no livreto Classe contra classe. (Silva, 2008, p.106)
Inicialmente, os cursos eram oferecidos em uma sala do 13 de Maio
NEP. Divulgava-se o nome e a data da atividade e iam trabalhadores de dife-
rentes partes do país para participar. O coletivo chegava a organizar até seis
turmas em um ano. Entretanto, com a reorganização da classe trabalhadora
em marcha e a explosão das greves que emergiam no ABC paulista em meados
dos anos de 1980 as demandas para o grupo cresceram de forma exponencial.
Os cursos eram frequentados majoritariamente por membros do mo-
vimento sindical (organizações com maior suporte financeiro aos participan-
tes), mas também por membros do PT, de movimentos populares e de pas-
torais. Os grupos de participantes eram formados por diferentes perfis, níveis
76
de escolaridade (a maioria possuía pouca escolaridade e pouco hábito de lei-
tura e estudo), de histórico de organização e luta e de conhecimento sobre
os temas abordados nos cursos. Dentre os participantes havia uma maioria
de operários mas também funcionários públicos, professores, profissionais da
saúde, bancários, profissionais da comunicação, engenheiros agrícolas, tra-
balhadores domésticos, agricultores etc. A maioria deles era motivada mais
por ter o organizador do evento como referência do que propriamente pela
compreensão da necessidade da formação política. (Silva, 2008, p.137)
A partir de 1988 o grupo passou a desenvolver melhor também cursos
de caráter mais instrumental que já existiam mas de forma mais precária
como: Organização por Local de Trabalho; Negociação Coletiva; e Campanha
Salarial. Porém, com o aumento da demanda em todo o país, já ao final dos
anos de 1980 o coletivo não conseguia atender a todos os pedidos. Por esse
motivo, em 1988, passou-se também a discutir a necessidade de formar mul-
tiplicadores além de organizar melhor roteiros e programas dos cursos. Por
isso foi criado, nesse mesmo ano, o Programa de Formação de Monitores.
O foco cada vez maior nos cursos de formação política, porém, levou a
um distanciamento deste do trabalho direto que fora, outrora, seu nutriente.
Manoel Del Roio em (Silva, 2008) explica que esse foi um divisor de águas
do coletivo. Para ele, que representava um grupo minoritário, esse desloca-
mento da concepção metodológica do objeto representaria a morte do 13
de Maio NEP pois o afastaria da prática. Porém, a maioria acreditava que a
oferta de cursos de formação política deveria ser a contribuição da equipe às
organizações das classes trabalhadoras.
Para Pitias Lobo, esse período marcou a descaracterização da forma
Partido assumida até então pelo coletivo – e típica da herança das organiza-
ções de esquerda no século XX – para uma transição a uma espécie de “escola
de aporte e sustentação do pensamento econômico-político de esquerda no
Brasil” (Lobo, 2009, p.116).
Ainda que tenha nascido na CUT e tenha mantido uma relação mais
estreita com o PT em sua origem (onde participou da sua Secretaria Nacional
de Formação), o 13 de Maio NEP manteve sua autonomia e sua capacidade
de dialogar com diferente organizações a partir da clareza de sua tarefa de
“instrumentalizar os militantes em geral para que possam compreender os
77
fundamentos das polêmicas principais colocadas pelo movimento, para que,
dessa forma, possam participar, ativamente, dessas discussões e posicionar-se
conscientemente (Silva, 2008, p.120).
Teria sido pelo “amplo diálogo com as entidades de diferentes correntes
e tendências” que o 13 de Maio NEP pôde se tornar referência de formação
econômico-política para inúmeras organizações e o que permitiu ao coletivo
não realizar formações doutrinárias. Sobre esse aspecto, Iasi destaca a preocu-
pação que o grupo possuía:
o que nos preocupa é que, na tentativa de buscar uma relação entre a prá-
tica formativa e a organização, por vezes, a primeira acaba por perder sua
especificidade. O que vem a ocorrer então é a submissão da formação não
à organização concebida das instâncias e organizações para as quais ofere-
cem seu programa. Está assim aberto o caminho para a relação utilitarista
para com a formação (Silva, 2007, p.171).
Teria sido sobretudo essa decisão que levou o grupo a se esquivar de
uma formação política utilitarista. Ao tratar de uma autocrítica do programa
de formação feito pelo 13 de Maio NEP, Cyntia Silva explicou que:
Há também os que concebiam a formação de forma utilitária, esperando
resultados imediatos, como “a formação de uma chapa, para resolver um
problema na diretoria, para atrair novos militantes”, e acabavam perden-
do a especificidade do trabalho educativo que desaparecia no ativismo.
O mais grave, no entender da Equipe, “foi o fato da formação ter sido
direcionada para a disputa interna em torno do poder nas instituições,
entidades e movimentos dos trabalhadores”. Ao contrário de formar para
compreender uma realidade, entendê-la de forma crítica para agir sobre
ela, a formação foi dirigida para o “reforço de posições políticas contra
outras” (Silva, 2008, p.134).
Outro fator decisivo para a autonomia do grupo foi a questão de seu
financiamento. Inicialmente, ele era provido por organizações europeias que
não se ocupavam muito em saber o destino de seus recursos compensató-
rios no então Terceiro Mundo. Entretanto, com a guinada conservadora dos
governos europeus e com o enfraquecimento da social-democracia, as enti-
dades financiadoras começaram a querer intervir de forma mais direta sobre
78
o destino de suas aplicações. Em um contexto de nascimento da ideologia
neoliberal começavam a ser alimentadas as perspectivas da inclusão social,
combate às desigualdades e de promoção da cidadania em detrimento da
disputa entre capital e trabalho. Começaram a aparecer Organizações Não
Governamentais alinhadas a essa perspectiva para conseguir captar esses re-
cursos. Constatando essa mudança de cenário, o coletivo antecipou-se a pos-
síveis interferências ou escasseamento de recursos e passou, a partir de 1992,
por uma transição gradual. O trabalho que era profissionalizado passou a ser
voluntário e o grupo passou a se autofinanciar.
Por outro lado, essa escolha representou algumas decisões difíceis que en-
volveram encerrar algumas frentes de trabalho como o de produção de recursos
pedagógicos e de trabalho direto. A prioridade do coletivo passou a ser a oferta
de cursos para formação de formadores para que esses replicassem a experiência
vivenciada através da criação de outros núcleos e coletivos de educação popular
nas diferentes regiões do Brasil. Consolidava-se, assim, um programa mínimo
de formação e uma concepção metodológica a ser utilizada.
Apesar da difícil conjuntura de aumento do desemprego e crise finan-
ceira das organizações que minavam a participação nos cursos na década
de 1990, houve um aumento progressivo das ações de formação por conta
da multiplicação proporcionada pelo Programa de Formação de Monitores
(Silva, 2008, p.145). O ano de 1992 foi bastante conturbado politicamente,
com impeachment presidencial e um refluxo das lutas operário-sindicais já
perceptível. Nesse contexto, o grupo passou a se aproximar de outras formas
de organização – como os sem-terra e trabalhadores rurais – o que passou a
demandar uma adequação aos conteúdos (Silva, 2008, p.128).
Ainda que o número de realização de cursos tivesse caído no início da
década, ele voltou a crescer novamente a partir de 1995 e deu um salto em
1996 com mais de quatro mil participantes, em sua grande maioria sindica-
listas mas com uma participação significativa de membros de movimentos
populares, do PT e de outros partidos22. Nesse ritmo, o número de cursos
ofertados continuava crescendo. Em 2001, por exemplo, foram 461 cursos
com mais de dez mil participantes23. (SILVA, 2008)
22 Como no caso do, à época, nascente Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU)
23 Segundo César Cruz (2010, p.171) a partir de 2001 não é possível mais encontrar informações
79
Na virada do século, assim como o perfil dos formandos vinha mu-
dando, o dos monitores também. Diminuía a participação proporcional de
militantes com experiência de lutas operário-sindicais e aumentava a de mi-
litantes ligados aos “novos movimentos sociais” como sem-terra, sem-teto,
indígenas, ecologistas, LGBT+, moradores de rua etc.
A quantidade de programas de monitores também aumentou significativa-
mente de 1994 para 1995, saindo de 17 para 63. No ano seguinte, em 1996, foi
ainda realizado o Encontro do Fórum Nacional de Monitores que contou com
a participação de 378 pessoas das dez turmas já finalizadas até aquele período.
Como consequência do Programa de Formação de Monitores, em
1992, nasceu o FNM, composto por diferentes grupos e coletivos de forma-
ção política incluindo, claro, o próprio 13 de Maio NEP. Até 1995 haviam
sido criados o Núcleo Humberto Bodra de Educação Popular (NHUBEP) no
Rio de Janeiro, o Coletivo de Formadores da Fetravisp no Paraná e o Centro
de Educação e Documentação Popular “Outubro” no Distrito Federal.
Posteriormente foram ainda criados outros coletivos: o “Norte”, envolven-
do o Pará e o Maranhão; outro em Vitória (ES); o “17 de Abril” no Vale da
Paraíba (SP); e o “Coletivo José Novaes” na Bahia. Em 1996 o 13 de Maio
NEP representava o coletivo com maior número de cursos e participações
por razões óbvias. Porém, monitores em formação, o NUHBEP, “Outubro
e o “Norte” já representavam, somados, mais das metades dos cursos e de
participações, mostrando o êxito da ampliação das atividades de formação.
Esses novos núcleos, ainda que estivessem articulados e partilhassem dos
propósitos e da prática formativa, passaram a ter autonomia em relação ao
13 de Maio NEP. Mais tarde, porém, eles foram se diluindo e hoje só existe a
unidade em torno do FNM, composto por monitores que possuem relativa au-
tonomia para desenvolverem trabalhos de formação mas que estão unidos em
torno de objetivos comuns e pela compreensão sobre a necessidade do trabalho
de formação política sobre as mesmas bases teóricas e metodológicas.
sobre os cursos, atividades de formação e nem o número de participantes pois esta prática de registro
quantitativo se perdeu.
80
Consciência de Classe e a Formação Política
A formação política realizada pelo 13 de Maio NEP sempre esteve in-
timamente relacionada à convicção de sua importância para o avanço do
processo de consciência das classes trabalhadoras. Teria sido essa convicção,
inclusive, que fez com que, em determinado momento, o coletivo optasse por
focar nessa atividade em detrimento do trabalho direto.
Porém, a justificativa do trabalho de formação política só poderia ocor-
rer com uma explicação sobre a concepção de consciência de classe do gru-
po. Apesar de haver algumas divergências e controvérsias na equipe, o texto
Processo de Consciência de Iasi, publicado pela primeira vez em 1999 pelo
Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (CPV)24, representou uma
apresentação da concepção dominante no coletivo.
Em seu texto Iasi inicia a exposição explicando que não se pode com-
preender a consciência de classe de forma estanque e sim como um processo.
Daí a ideia de processo de consciência:
Falamos em processo de consciência e não apenas consciência porque não
a concebemos como uma coisa que possa ser adquirida e que, portanto,
antes de sua posse, poderíamos supor um estado de “não consciência”.
Assim como para Marx, não nos interessa o fenômeno e suas leis enquanto
forma definida; o mais importante é a lei de sua transformação, de seu de-
senvolvimento, as transições de uma forma para outra (Iasi, 2007, p.12).
Para ele, esse processo ocorre tanto com os indivíduo como pela cole-
tividade: “cada indivíduo vive sua própria superação particular, transita de
24 “Esse texto foi produzido originalmente para um estudo do programa de Psicologia Social da
Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo no ano de 1985. Foi baseado numa pesquisa
sobre a história de vida e militância de alguns companheiros e companheiras, e posteriormente
incorporado como texto de apoio a um seminário do Curso de Monitores do 13 de Maio – Núcleo
de Educação Popular (NEP)” (Iasi, 2007, p.11). O mesmo texto foi ainda republicado em 2001
pelo próprio CPV e, posteriormente, em 2007 pela Editora Expressão Popular no livro Ensaios
sobre consciência e emancipação. Há ainda, o aprofundamento desse texto na tese de doutorado de
Iasi A mediação particular e genérica da consciência de classe: O Partido dos Trabalhadores entre a
negação e o consentimento e que se transformou no livro As metamorfoses da consciência de classe:
o PT entre a negação e o consentimento publicado em 2006 pela Expressão Popular e em 2023 pela
Lutas Anticapital.
81
certas concepções de mundo até outras, vive subjetivamente a trama de rela-
ções que compõe a base material de sua concepção de mundo” (2007, p.13).
O avanço do processo de consciência individual pode ocorrer porque,
como ensinou Gramsci, todo indivíduo possui uma concepção de mundo.
Emílio Gennari, que esteve no coletivo desde as suas primeiras atividades,
sintetiza essa ideia:
todo pensamento, por desorganizado e contraditório que seja, guarda uma
relação de coerência e sentido do ponto de vista de sua elaboração históri-
ca. Para entender essa «coerência» do senso comum, temos que estudá-lo
como um conjunto de respostas, de conceitos e de ações que as massas
populares adotaram para adaptar-se às circunstâncias adversas que enfren-
taram ao longo de sua história. Estas adaptações, que foram sucedendo-se
no passado de um povo e tem se sedimentado na sua visão de mundo,
constituem os recursos culturais que, individual e coletivamente, devem
ser incorporados e reelaborados criticamente para que possam constituir o
ambiente no qual serão gestadas a identidade da classe e o seu projeto de
intervenção na sociedade (Gennari, 2002, pp.9-10).
A consciência é, nesse sentido, “o processo de representação mental
(subjetiva) de uma realidade concreta externa (objetiva), formada neste mo-
mento, através de seu vínculo de inserção imediata (percepção)” (Iasi, 2007,
p.14). Portanto, a consciência não é uma mera representação mental do real
mas envolve subjetividades que, entre o objetivo e o subjetivo, sofre media-
ções. Por isso ela é tão complexa e pode ser falseada. Porque ao apresentar-se
como senso comum, oculta as suas essências.
No modo de produção capitalista, o que ocorre é exatamente esse fal-
seamento pela chamada alienação, como explica Iasi:
A lógica imposta pelo capital (externa), interioriza-se e nós mesmos nos
levamos ao mercado para sermos esfolados... e nos alegramos quando al-
gum capitalista dispõe-se a comprar nossa força de trabalho. Pregamos
alegre e convictamente as ideias do capital como se fossem nossas. Assim,
formada esta primeira manifestação da consciência, o indivíduo passa a
compreender o mundo a partir de seu vínculo imediato e particularizado,
generalizando-o. Tomando a parte pelo todo, a consciência expressa-se
como alienação. No senso comum, a alienação é tratada como sendo um
82
estágio de não consciência. Após essa análise preliminar, percebemos que
ela é a forma de manifestação inicial da consciência. Esta forma será a
base, o terreno fértil, onde será plantada a ideologia como forma de do-
minação (idem, p.20).
A ideologia, porém, não deve ser entendida de forma simplista como
um conjunto de ideias abstratas introjetadas na mente das pessoas mas como
um jogo complexo de dominação que envolve estrutura e superestrutura,
isto é, além do domínio dos aparelhos ideológicos, as relações cotidianas e
concretas entre indivíduos e a exploração entre as classes sociais. Ou seja, a
alienação se dá em primeira instância nas relações de produção que são assim
concebidas como ideias. E é a partir do referencial e dos parâmetros que o
sujeito possui de sua vivência imediata que ele passa a julgar os fenômenos
que desconhece. É isso que Gramsci chama de senso comum.
Para Iasi existem, portanto, três estágios de consciência nesse processo:
ingênua ou alienada; em si ou reivindicatória; e para si ou revolucionária.
Nessa concepção, portanto, não existe um estado de não consciência. Porém,
o estágio inicial é marcado pela alienação própria da ideologia e do senso
comum, uma vez que “a primeira manifestação da consciência, o indivíduo
passa a compreender o mundo a partir de seu vínculo imediato e particulari-
zado, generalizando-o. Tomando a parte pelo todo, a consciência expressa-se
como alienação” (idem, p.20).
A primeira forma de consciência se manifesta então pela união desorde-
nada e contraditória entre elementos de senso comum e de pensamento críti-
co, uma vez que todos possuem capacidade crítica. Essa forma não é alienada
porque está desvinculada da realidade mas porque a “crítica” é feita a partir da
naturalização da ordem, isto é, retirando-se o seu contexto e a história.
O rompimento desse ciclo vicioso começa a ocorrer por uma crise
ideológica, ou seja, pelas próprias contradições entre o desenvolvimento das
forças produtivas e as relações interiorizadas como ideologia e não pelo sim-
ples acesso a uma teoria reveladora. Porém, ele não significa ainda a superação
da alienação. É, na verdade, uma forma transitória que se expressa em um
estado de revolta. Essa forma, ainda que perceba injustiças, tende, pela falta
de um arcabouço crítico, a cair na resignação de que “as coisas sempre foram
assim” para logo concluir que “é impossível mudar as coisas”. O salto para a
83
superação desse tipo de alienação passa, nesse momento, pela necessidade do
grupo: quando o indivíduo reconhece que essas contradições não são vividas
somente por ele acende-se a luz para a possibilidade da organização para
opor-se a outros grupos. “É a chamada consciência em si, ou consciência da
reivindicação” (idem, p.30).
As consequências da estagnação nesta etapa do processo de consciên-
cia tende a incorrer no corporativismo, no carreirismo e na burocratização.
Assim, “a consciência volta a ser espectadora passiva de forças que não con-
trola, vive uma realidade da qual desconhece as raízes e o desenvolvimento,
acabando assim submetido por ela, ainda que mantenha na forma os elemen-
tos questionadores da segunda forma de consciência” (idem, pp.32-3). Pode-
se dizer que é, sobretudo para evitar essa estagnação que o 13 de Maio NEP
(e agora o FNM) tem realizado seus cursos básicos de formação política. A
síntese da concepção de formação política do 13 Maio NEP e do seu papel é
expresso no seguinte trecho de Iasi:
Segundo o que pensamos, a formação encontra sua especificidade na ta-
refa essencial de socializar os elementos teóricos fundamentais para que
os elementos da classe trabalhadora possam constituí-la enquanto sujeito
histórico, ou seja, capaz de apresentar uma alternativa societária com in-
dependência e autonomia histórica. Para tanto, os elementos que com-
põem a classe precisam compreender a natureza particular da sociedade
capitalista, suas determinações e sua formação histórica, assim como a luta
de sua classe, o movimento na história da própria constituição da classe
trabalhadora enquanto [sic] classe, suas estratégias, suas epopéias e derro-
tas, para retirar de cada grão da história seus ensinamentos. Mas também,
e fundamentalmente, apropriar-se de um método, que tornou possível
estes saberes, que desvendou a economia política, que através da crítica da
economia política logrou compreender o ser do capital em sua essência,
que buscando captar o movimento das formas chegou a compreender os
processos pelos quais as formas se superam, que compreendendo a natu-
reza singular da transformação que a sociedade especificamente capitalista
em seu auge prepara, pode encontrar na classe trabalhadora o sujeito his-
tórico desta transformação e nesta forma particular a possibilidade de uma
emancipação humano-genérica. Em uma palavra, a formação implica,
ao nosso ver, a apropriação do legado marxiano pela classe trabalhadora
(apud Silva, 2008, p.205).
84
Portanto, o desafio do 13 de Maio NEP é contribuir para acirrar as
contradições através da reflexão teórica pois acredita-se que
Essa contradição pode levar o indivíduo em seu processo de consciência
para um novo patamar: a busca da compreensão das causas, o desvelar das
aparências e a análise da essência do funcionamento da sociedade e suas
relações. Buscar saber como funciona a sociedade para saber como é possí-
vel transformá-la. É na própria constatação de que a sociedade precisa ser
transformada que supera-se a consciência da reivindicação pela da trans-
formação. O indivíduo transcende o grupo imediato e o vínculo precário
com a realidade dada, busca compreender relações que se distanciam no
tempo e no espaço, toma como sua a história da classe e do mundo. Passa
a conceber um sujeito coletivo e histórico como agente da transformação
necessária (Iasi, 2007, p.35)
O salto de qualidade da consciência da reivindicação para uma cons-
ciência revolucionária depende, portanto, da combinação entre a “vivência
prática dos impasses e impossibilidades de completar a emancipação dentro
dos limites não superados de uma sociedade regida pelo capital” e a “apro-
priação de instrumentos teóricos que permitam ir além das aparências e com-
preender as determinações profundas que estão na base das injustiças e da ex-
ploração contra as quais a classe se move” (Iasi apud Silva, 2008, p.74). Nesse
momento, a formação política exerce função primordial para contribuir à
necessidade do avanço individual do processo de consciência.
Nas palavras de Paulo Tumolo, outro importante monitor do coletivo
desde sua origem,
a superação do “primeiro patamar” de consciência em direção à consciên-
cia de classe exige, necessariamente, uma intervenção teórico-educativa.
É aí que entra o papel da formação política, cujo objetivo, em linhas ge-
rais, deve ser o de buscar a superação do senso comum, qualificando o
conhecimento adquirido na prática de militância, quer dizer, oferecendo
os instrumentos teórico-metodológicos para que se possa compreender,
na radicalidade necessária, não só as questões postas pela luta cotidia-
na mas, principalmente, o modo de produção capitalista, sua lógica, seu
movimento contraditório, ou melhor, apreender a totalidade social e as
questões conjunturais e cotidianas no bojo dessa mesma totalidade. Isso
85
porque a realização da revolução implica necessariamente a elaboração de
um projeto, o que pressupõe um conhecimento profundo da realidade
que se pretende transformar. Tal conhecimento da realidade, por sua vez,
tem como pressuposto a apreensão do conhecimento já sistematizado e
acumulado historicamente (Tumolo, 2013, p.226-7).
Apesar de a formação política ser considerada peça chave contra o sen-
so comum propagado pelos diferentes aparelhos ideológicos, o coletivo não
atribui a ela um papel mágico e infalível. Isso porque ela só pode se genera-
lizar em condições conjunturais específicas e de processos de longa duração.
Por isso, Iasi (apud Silva, 2008, p.7225) também alerta para uma possível e pe-
rigosa “mistificação” e “supervalorização” da formação política e da Educação
Popular. Sobretudo porque o “êxito” da formação política é de difícil men-
suração. A formação não pode ser utilitarista ou imediatista querendo-se que
cursos produzam, de imediato, resultados que reflitam o número de militan-
tes ou a capacidade militante de organização pois não o farão. Isso só pode
ser verificado no desenrolar da luta e, ainda que seja um fator imprescindível,
não pode ser considerado o único já que outros elementos conjunturais da
correlação de forças da luta de classes são fundamentais. Explica Iasi:
Para nós, o produto da formação é algo mais complexo e difícil de medir
no curto prazo, como seria o gosto da consciência imediatista e sindical
predominante em nosso movimento. Seria algo a ser medido na qualidade
efetiva da ação militante, em sua capacidade crítica diante de deforma-
ções que vão se produzindo, a constatação, no quadro de militantes, da
socialização de novos valores e preocupações, no número de quadros com
capacidade de elaboração de políticas de ação e organização. Um produto
que deve ser construído cotidianamente, mas que somente se expressa ao
final de processos relativamente longos (Iasi, 2007, p.171).
Em razão dessa percepção, a formação política não se encerra na ela-
boração de um programa de formação e na execução de atividades isoladas,
eventuais e sem continuidade. Ela deve ser um processo de formação perma-
nente conectada à luta em seus diferentes planos. Por isso, a formação política
25 O texto referido por Silva é Educação Popular: formação da consciência e luta política, apresentado em
2004 no Seminário de Educação Popular e lutas sociais do SFCH da UFRJ, e se encontra mimeografado.
86
precisa combinar ainda outras duas dimensões do trabalho revolucionário
para a constituição das condições subjetivas para uma transformação: “a da
agitação, que potencializa as contradições vividas individualmente até formas
variadas de sociabilidade grupal” e a “da organização, que potencializa essas
formas grupais, partindo de níveis imediatos até graus maiores de pertenci-
mento de classe (associações, sindicatos, movimentos sociais, partidos etc.)”
(Silva, 2008, p.75).
Contudo, esse não é um caminho inelutável e infalível. Por isso Iasi
adverte que
Na passagem da consciência em si para a consciência revolucionária, ou para
si, abre-se uma importante contradição. Apesar de as alterações da consciên-
cia só poderem ser vivenciadas em nível individual, o processo de transfor-
mação que irá realizá-la é necessariamente social, envolvendo mais que a
ação individual, a de classe. O amadurecimento subjetivo da consciência de
classe revolucionária, se dá de forma desigual, depende de fatores ligados à
vida e à percepção singular de cada indivíduo. Coloca-se assim a possibilida-
de de haver uma dissonância, que pode ou não se prolongar de acordo com
cada período histórico, entre o indivíduo e sua classe, surgindo a questão do
indivíduo revolucionário inserido num grupo que ainda partilha da cons-
ciência alienada. As mediações políticas consistem, em parte, no esforço de
superando esta distância (Iasi, 2007, pp.35-6).
O processo de consciência, portanto, “escapa” à formação política e passa
a depender mais fortemente do próprio processo histórico que deriva da luta de
classes. Ainda que a reflexão teórica seja uma espécie de antídoto, é fundamen-
tal se compreender que “o processo de consciência não é linear” e, portanto,
pode e muitas vezes regride a etapas anteriores” (idem, p.33), ainda que não
da mesma forma como antes mas podendo levar indivíduos ao isolamento, à
resignação (novamente), à alienação26, ou até mesmo ao reacionarismo.
26 Nesses casos “É comum ouvir de militantes que passando por processos semelhantes, que pensam
em ‘cuidar da vida’. Produzimos algo como uma tentação de nos rendermos ao princípio do prazer,
negando as exigências de uma nova consciência, que se antagoniza com um mundo e que se recusa
a mudar de um SUPEREGO que ainda nos impõe velhas normas. ‘Pensar em mim mesmo’ é o
grito de guerra do EGO contra o mundo” (Iasi, 2007, p.37). “Sua consciência retorna a patamares
anteriores, como a revolta isolada ou mesmo a alienação. Evidente que nunca se retoma ao mesmo
ponto, e a passagem pela consciência de classe deixa marcas, como por exemplo, a justificativa mais
87
Por fim, Iasi ressalta que não é possível alcançar uma nova consciência
na sociedade capitalista. É possível, no máximo, apresentar o seu gérmen.
Assim como as ideias burguesas só puderam se efetivar “tendo por base a pró-
pria gestação material das bases objetivas do modo de produção capitalista e,
com elas, o desenvolvimento de novas classes sociais que buscavam expressar
(idem, p.42), o mesmo deve ocorrer com o pensamento proletário. Ao alcan-
ce do 13 de Maio NEP estaria a possibilidade de difundi-lo e massificá-lo
através de seus cursos e seminários27.
Considerações Finais
O 13 de Maio NEP não só tem cumprido o papel ao qual se propôs
desde a opção pelo foco no trabalho de formação política como tem deixa-
do um legado para todos aqueles que entendem a necessidade da Educação
Popular para a luta das classes trabalhadoras. Esse coletivo possui uma inesti-
mável contribuição teórico-metodológica à formação política das classes tra-
balhadoras brasileiras, em especial a sua fração ligada ao sindicalismo urba-
no-industrial, tendo formado dezenas de milhares de pessoas através de seus
cursos e seminários desde a década de 1980. Para além da quantidade de seus
elaborada, o discurso e talvez algumas posturas. Pode se manifestar por outro lado em ceticismo,
hipocrisia ou outras manifestações” (idem, p.38).
27 Entre os cursos de capacitação estão: Comunicação e Expressão; Como fazer análise de conjuntura;
Organização nos locais de trabalho; Organização patronal nos locais de trabalho; Campanha salarial
e negociação; Plano de ação sindical; Questões de Gênero; Como Funciona a Sociedade I e II. Em
consequência da experiência de trabalho e como necessidade de estruturação melhor de materiais
a serem utilizados como subsídio nas formações, surgiram alguns Cadernos de Formação. De
1984 até o final desta década haviam sido elaborados, publicados e reeditados oito cadernos: 1) A
sociedade em que vivemos; 2) Trabalhadores muitas lutas uma só classe; 3) A ilha da fantasia; 4)
8 horas: 1o de maio ou 1o de abril?; 5) Noções básicas de economia política, que viria a se tornar
o manual mais famoso Classe contra Classe; 6) Concepções e estruturas sindicais no Brasil; 7)
História dos salários no Brasil; e 8) Eureka – Zé Batalhador descobre o segredo da exploração. Além
dos cadernos de formação, o 13 de Maio NEP publicou ao menos sete textos de apoio desde do
final da década de 1970 até meados dos anos 1980. Foram feitos também materiais audiovisuais,
sendo muito utilizados nas atividades de formação, como: Essa luta é nossa!; 1º de Maio – Um dia
de luta; Trabalhadores muitas lutas uma só classe (articulações sindicais no Brasil e a CUT); Vale
mais (Força de trabalho, salário, mais-valia e lucro); História do movimento operário sindical no
Brasil; e Classe contra classe. Por pelo menos duas décadas o coletivo ainda organizou análises de
conjuntura chamada Crítica Semanal de Economia.
88
espaços de formação, o 13 de Maio NEP é muito reconhecido por uma con-
cepção específica de Educação Popular e pelo desenvolvimento de um método
próprio de trabalho para a abordagem e apropriação das categorias marxistas e
que tem contribuído sobremaneira para a transição da consciência ingênua à
crítica de uma importante fração das classes trabalhadoras. O coletivo chegou
ainda a publicar materiais audiovisuais e centenas de textos, entre cadernos de
formação, textos de apoio e boletins de análise de conjuntura econômica.
Podemos destacar os elementos que, segundo Schio, compõe a forma-
ção das pessoas que passaram pelos cursos do 13 de Maio NEP:
a crítica radical do capital e a necessária compreensão de sua atual confor-
mação socio-histórica; a crítica do Estado capitalista e de sua configuração
presente; a crítica das estratégias reformistas/socialdemocratas; o estudo
das contribuições a respeito das estratégias revolucionárias experienciadas
ao longo da história do movimento da classe trabalhadora; a discussão e
elaboração da estratégia revolucionária na contemporaneidade; e a análise
do papel da educação na estratégia revolucionária (Schio , 2019, p.111).
Pode-se dizer que o grupo se manteve fiel a sua perspectiva inicial ainda
que tenha mudado algumas táticas. Diferente de organizações que sucumbi-
ram à lógica neoliberal da inclusão social e da promoção de cidadania e/ou
foram engolidos pela máquina eleitoral, o 13 de Maio NEP manteve seu ca-
ráter classista e anticapitalista (Silva, 2008). Isso foi possível porque o grupo
conseguiu manter sua autonomia e porque o debate e a reflexão crítica são
parte constitutiva do seu método. Por isso o grupo tem conseguido cumprir
seus objetivos, sintetizados por César Cruz no seguinte trecho:
Contribuir para que os setores populares se tornem sujeitos ativos e cons-
cientes, que se capacitem para atuar de forma efetiva nas decisões e rumos
da vida econômica e política de nosso País, bem como para criar espaços
próprios de organização, rompendo com a lógica da delegação de poderes,
tanto nas instâncias de representação da sociedade como naquelas criadas
pelos próprios trabalhadores (Cruz, 2010, p.155).
A importância desse coletivo é reflexo do respeito que possui entre as
organizações socialistas de todo o país e que se manifesta tanto pelos convites
89
para espaços de formação – mesmo quando há críticas ao seu método – como
pelo temor que dirigentes burocratizados de algumas organizações possuem
de receber membros de sua base mais críticos após passarem por algum curso
do 13 de Maio NEP.
Como bem retratou Cruz em 2010,
Os cursos de monitores continuam a receber dirigentes e militantes de
vários movimentos sociais, sindicais, pastorais e dos diversos partidos da
esquerda brasileira que procuram no 13 de Maio NEP a formação marxis-
ta que não encontram em suas formas de organização. Isso por um lado é
importante porque mostra o trabalho sério e reconhecido desta entidade,
mas por outro mostra também a extrema fragilidade em que se encontram
nossos movimentos, sindicatos e partidos políticos de esquerda no Brasil
(Cruz, 2010, p.171).
Ocorre, porém, que a crítica mais dura ao reformismo petista e à es-
tratégia democrático-popular28 adotada pelas formações do 13 de Maio NEP
tem feito com que, durante a década de 2010, movimentos ligados a organi-
zações que outrora foram muito próximas a ele se afastassem. Esse tem sido
um preço caro a ser pago pela liberdade da crítica e pela dedicação à elabora-
ção teórica e à reflexão com base na rigidez metodológica do legado de Marx.
Ainda que não seja possível medir o alcance dos propósitos do grupo, os
seus feitos são notórios. É fácil encontrarmos relatos de egressos dos cursos do
13 de Maio NEP do quanto eles contribuíram para “abrir seus olhos” ou para
os famosos “cair a ficha” que os fizeram compreender a importância central da
formação política para a práxis militante. Pode-se afirmar, com segurança, que
o 13 de Maio NEP tem contribuído substancialmente para a consciência crítica
de muitos militantes. Em documento de 1998, a respeito da avaliação sobre os
efeitos do trabalho de formação, encontra-se o seguinte relato:
A possibilidade de reencontrar as mesmas turmas de trabalhadores nos fez
registrar alguns aspectos que se tornaram constantes no desenvolvimento
28 Esse é o caso do livro Estratégia Democrático Popular: um inventário crítico (IASI et al, 2019)
publicado pela editora Lutas Anticapital, organizado e escrito por monitores e educandos que
passaram pelos cursos do 13 de Maio NEP em conjunto com outros pesquisadores após seminário
realizado na UFRJ em 2017.
90
do nosso programa. As pessoas nos confirmam que os cursos ajudam a
abrir os olhos e a ter uma visão mais crítica da realidade. Com algumas
ferramentas teóricas ao próprio alcance, as pessoas têm melhores condi-
ções de compreender e formular os desafios da conjuntura e começam a
pensar estrategicamente, ou seja, a prever as conseqüências para o futuro
das ações que realizam no presente. Ao conseguir dar os primeiros passos
para encaixar as peças do quebra-cabeças da realidade e ao buscarem um
sentido mais profundo para os acontecimentos, se sentem estimuladas a
ler e a conhecer mais e a agir entendendo e planejando os passos da sua
ação. A nota comum nas avaliações de final de programa é que as pessoas
participam mais dos momentos decisivos de seus movimentos e, nas situa-
ções em que os sindicatos tendem a frear a ação dos trabalhadores, não são
poucos os casos em que estas tomaram algumas iniciativas de ação. Para
a maior parte delas trata-se de um estágio embrionário da militância que
para se desenvolver ainda demanda muita reflexão e muita prática. Mas é
bom perceber que após os cursos, um número expressivo de pessoas deixa
de ser espectador e ensaia os primeiros passos para ser ator da cena social
(13 de Maio NEP apud Cruz, 2010, p.168-9).
Por outro lado, há também um diagnóstico de ineficiência das forma-
ções do 13 de Maio NEP por parte de monitores históricos como Emílio
Gennari. Ele, por exemplo, acredita que o descolamento da prática (causado
principalmente pelo distanciamento em relação ao trabalho direto) tende a
ceifar a contribuição da formação teórica. E que, também em consequência
disso, os conteúdos teóricos seriam insuficientes para os educandos interpre-
tarem a realidade pois faltam importantes mediações dos cursos do coletivo
às diferentes formas contemporâneas das relações de produção. Esse é o caso
do debate econômico como Gennari deixa claro em entrevista dada à Silva:
A impressão que se tem, diz Gennari (2007), é que faltavam outros ele-
mentos àqueles trabalhadores, inclusive para interpretarem o cotidiano,
para poderem ‘pegar o jornal e entender o que está escrito. Não porque
você não lê o Português, mas porque faltam elementos teóricos para en-
tender a página da Economia; faltam elementos teóricos para analisar a
página da política... Mas não são elementos teóricos do ‘arco da velha
não, são coisas simples que podemos reincorporar nos cursos básicos para
as pessoas treinarem, verem que faz sentido, que mexe com o seu cotidia-
no’ (Silva, 2008, p.182).
91
Para além da abordagem basilar dos aspectos da crítica da economia polí-
tica marxista, parecem faltar elementos da “ciência econômica” que expliquem
as diferentes formas de exploração do capital sobre o trabalho e que parecem
cada vez mais difusas pela ideologia neoliberal. Inflação, carestia, juros, câmbio,
tributação, distribuição de renda etc. são temas que estão muito mais presentes
no cotidiano das classes trabalhadoras – sobretudo em sua atual configuração,
que tem mudado significativamente a partir do processo de desindustrialização
e das reformas neoliberais das últimas décadas – e que precisam ser abordadas
como pré-requisito para a compreensão de “como funciona a sociedade” e,
portanto, para a continuidade do avanço da consciência.
Referências
CRUZ, César Albenes de Mendonça. O processo de alienação e desa-
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93
Alfabetização e Letramento do Aluno
Autista à Luz da Teoria Histórico Cultural
Davi MILAN29
Lucas Ferreira RODRIGUES30
Sirley Leite FREITAS31
Introdução
Neste estudo, propomos uma análise aprofundada sobre a alfabetiza-
ção e letramento de alunos autistas, explorando os fundamentos da teoria
Histórico-Cultural, considerando que essa abordagem teórica oferece uma
perspectiva singular sobre o processo de aprendizagem, destacando a impor-
tância das interações sociais e do contexto cultural na formação do conheci-
mento. Nesse viés, buscaremos compreender como essa teoria pode ser aplica-
da de maneira específica no contexto da educação básica, mais precisamente
no Ensino Fundamental I, no qual as bases fundamentais da alfabetização e
letramento são estabelecidas.
Ao abordar a alfabetização e letramento de alunos autistas sob a luz
da teoria Histórico-cultural, buscamos não apenas compreender os desafios
enfrentados por esses alunos, mas também identificar estratégias educacionais
29 Mestrando em Educação pela Universidade Estadual Paulista – UNESP/ Campus Marília. Docente
na Univesp (Universidade Virtual do Estado de São Paulo), atuando como orientador de projetos e
docente na educação Básica na SEDUC em Quintana-SP. E-mail: davi.milan@unesp.br
30 Mestre pela Universidade Federal do Pará – UFPA E-mail: elucasfrodrigues@gmail.com
31 Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista – UNESP/ Campus Marília. Docente
do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Mestrado e Doutorado Profissional
(PPGEEProf) da Universidade Federal de Rondônia – UNIR e do Instituto Federal de Educação,
Ciências e Tecnologia de Rondônia - IFRO. E-mail: sirley.freitas@ifro.edu.br
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p93-119
94
que possam ser eficazes na promoção de um ambiente inclusivo e propício ao
desenvolvimento dessas habilidades.
Assim, a discussão proposta visa contribuir para a reflexão crítica sobre
as práticas educativas voltadas para alunos autistas, oferecendo observações
valiosas que podem orientar educadores, pesquisadores e profissionais envol-
vidos nesse processo. Entendemos que a maneira distinta do aluno autista
em aprender tem suas concepções por falta de compreensão da metodologia
utilizada ou por questão biológicas ou cognitivas, muitas vezes oriundas de
fatores sociais e emocionais, dificultando um diagnóstico e intervenção pre-
cisa por parte dos docentes e equipe multidisciplinar.
Dentre as características do autismo, nos apoiamos em pesquisas que
serviram de base para este estudo, a qual destaca Kanner (2006, p.47), ao
afirmar que dentre elas, é possível perceber maneirismos motores estereotipa-
dos, resistência à mudança ou insistência na monotonia, bem como aspectos
não-usuais das habilidades de comunicação da criança, tais como a inversão
dos pronomes e a tendência ao eco na linguagem (ecolalia), dentre outros.
A pesquisa faz uso de uma abordagem Histórico e cultural, tratando o
homem como partícipe do processo cultural, social e biológico. Nesse pro-
cesso, a escola é o local onde encontra-se as vivências e aprendizado social-
mente privilegiados para o pleno desenvolvimento cognitivo do indivíduo
(Vygotsky, 2007).
A visão histórico-cultural de Vigotsky baseia-se na participação do ou-
tro na formação do sujeito em sua relação com o mundo. Assim, nenhum
indivíduo deve ser excluído de interações sociais, sendo o ambiente que fa-
vorece tais relações o mais benéfico, independentemente de deficiências que
o sujeito possa ter.
Quando tratamos do termo alfabetização, Colello (2004) enfatiza que
esse termo está longe de ser a apropriação de um código, envolve um com-
plexo processo de elaboração de hipóteses sobre a representação linguística,
igualmente férteis na compreensão da dimensão sócio-cultural da língua es-
crita e de seu aprendizado.
A alfabetização e letramento do aluno autista à luz da teoria Histórico-
cultural proporcionam concepções profundas e de extrema relevância. Estas
não só guiam o progresso coletivo da escola, dos educadores e dos estudantes
95
na mesma trajetória, mas também oferecem um arcabouço teórico valioso
para compreender como as experiências e aprendizados socialmente construí-
dos podem promover o desenvolvimento de percepções cognitivas adequadas
no indivíduo com Transtorno do Espectro Autista (TEA). (Colello, 2004)
Ao explorar os fundamentos dessa teoria no contexto da alfabetização e
letramento, almejamos não apenas uma compreensão mais profunda dos de-
safios enfrentados pelos alunos autistas, mas também a identificação de estra-
tégias eficazes que possam ser aplicadas para otimizar o processo de aprendiza-
gem, favorecendo a inclusão e a participação plena na vida acadêmica e social.
Colello (2004) postula em seu estudo que a inclusão das pessoas com
Transtorno do Espectro Autista (TEA) no universo da alfabetização e letra-
mento desempenha um papel crucial na formação de professores mais capa-
citados para a prática educativa inclusiva. Além disso, contribui significativa-
mente para a construção de um ambiente escolar que não apenas reconhece,
mas também valoriza a diversidade linguística, promovendo, assim, o acesso
igualitário à educação. Esses resultados ressaltam a importância de estratégias
pedagógicas inclusivas e sensíveis às necessidades específicas dos alunos com
TEA, enfatizando a necessidade de um ambiente educacional que estimule a
participação ativa e o pleno desenvolvimento de cada indivíduo.
Desta feita, partindo da questão problematizadora: “Qual o impacto
potencial da aplicação da teoria histórico-cultural na prática de alfabetização
de alunos autistas, considerando as características específicas desse grupo e
as perspectivas oferecidas por essa abordagem teórica no contexto educacio-
nal?”, o objetivo deste capítulo é o de investigar a alfabetização, o letramento
e aprendizagem de alunos autistas, explorando a influência e as possíveis con-
tribuições da teoria Histórico-cultural, em vista de uma compreensão apro-
fundada dos processos educacionais e a identificação de estratégias eficazes no
contexto da educação inclusiva. Para tanto adotamos a pesquisa bibliográfica
como meio de coleta de dados.
Considerações sobre Alfabetização e Letramento
Apresentar uma fundamentação teórica sobre alfabetização e letramen-
to é fundamental para embasar e enriquecer um estudo ou abordagem edu-
cacional, visto que essa base teórica serve como alicerce para que possamos
96
compreender os princípios, conceitos e contextos que permeiam o processo
de alfabetização e letramento, oferecendo uma estrutura conceitual signifi-
cativa para a análise e desenvolvimento de práticas pedagógicas. Dentre as
principais características desempenhadas por essa abordagem, podemos citar
que as mesmas embasam as decisões educacionais, orienta a prática pedagó-
gica, promove reflexão e análise crítica, facilita a compreensão do contexto,
dentre outros aspectos que serão discutidos de forma mais detalhada a seguir.
A Lei nº 11.274/2006 (Brasil, 2006), que promoveu alterações na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Brasil, 1996), desempe-
nhou um papel significativo ao estender a duração do Ensino Fundamental
de oito para nove anos. Uma das mudanças mais marcantes nela observada,
foi a obrigatoriedade da matrícula de crianças a partir dos seis anos, anteci-
pando, assim, o ingresso no ciclo de alfabetização.
Essa medida representou uma reconfiguração estratégica no sistema
educacional brasileiro, reconhecendo a importância de iniciar o processo de
aprendizagem formal mais cedo, aprimorando as bases da alfabetização e pro-
movendo uma transição suave para o Ensino Fundamental. Essa antecipação
no ciclo de alfabetização busca não apenas cumprir as demandas legais, mas
também otimizar as oportunidades de desenvolvimento cognitivo e acadêmi-
co das crianças, fortalecendo as habilidades fundamentais de leitura e escrita
desde os estágios iniciais da educação formal.
Conforme é orientado pelo Ministério da Educação no Brasil (MEC),
com relação a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), é nos anos ini-
ciais do ensino fundamental (1º e 2º anos) que se espera que a criança esteja
alfabetizada, apesar de desde o nascimento e na educação infantil a criança
participar de inúmeras atividades letradas, principalmente através da oralida-
de. (Brasil, 2010)
Para Soares e Batista (2005), o conceito de alfabetização consiste em
um processo permanente que se estende por toda a vida, não se esgotando
apenas na aprendizagem da leitura e escrita. A autora destaca que a alfabe-
tização transcende a aquisição das habilidades básicas de decodificação de
palavras, envolvendo também a compreensão crítica e reflexiva do contexto
em que a leitura e a escrita ocorrem. Além disso, enfatiza a necessidade de
considerar a alfabetização como um processo dinâmico e contextualizado,
97
integrando-se às práticas sociais, culturais e tecnológicas ao longo do tempo.
Essa abordagem ampliada do conceito de alfabetização propõe uma visão
mais abrangente e holística, alinhada com as exigências contemporâneas de
uma sociedade cada vez mais complexa e interconectada.
Em relação a alfabetização e letramento, Luria afirma: “O sujeito se
relaciona com coisas escritas sem compreender o significado da escrita, ou
seja, ainda não entende a escrita como leitura em si” (Luria, 1988, p. 181).
Alfabetizar é dar condições para que o indivíduo- criança ou adulto - te-
nha acesso ao mundo da escrita, tornando-se capaz não só de ler e escrever,
enquanto habilidades de decodificação e codificação do sistema da escrita,
mas, e, sobretudo, de fazer uso real e adequado da escrita com todas as
funções que ela tem em nossa sociedade e também como instrumento na
luta pela conquista da cidadania plena (Soares, 1998, p.33).
Nesse sentido, a autora define que o objetivo educacional vai além de
simplesmente ensinar a ler e escrever, abrangendo o desenvolvimento de ha-
bilidades de decodificação e codificação do sistema da escrita. No entanto, o
foco principal é capacitar o indivíduo a utilizar a escrita de maneira eficaz e
apropriada, reconhecendo todas as suas funções na sociedade. Sendo assim,
a alfabetização é percebida como um instrumento essencial na busca pela
cidadania plena, destacando seu papel na promoção da participação ativa e
informada dos indivíduos na sociedade. É preciso que ela saiba ainda, fazer
uso dessa leitura e dessa escrita na sua vida. (Gontijo, 2023)
Para Soares e Batista, (2005, p. 24),
O termo alfabetização designa o ensino e o aprendizado de uma tecnolo-
gia de representação da linguagem humana, a escrita alfabético-ortográfi-
ca. O domínio dessa tecnologia envolve um conjunto de conhecimentos
e procedimentos relacionados tanto ao funcionamento desse sistema de
representação quanto às capacidades motoras e cognitivas para manipular
os instrumentos e equipamentos de escrita (Soares e Batista, 2005, p. 24).
A autora destaca que o termo alfabetização vai além da simples aqui-
sição da leitura e escrita, referindo-se ao ensino e aprendizado de uma
tecnologia específica de representação da linguagem, no caso, a escrita
98
alfabético-ortográfica. Essa tecnologia implica não apenas compreender o
funcionamento do sistema alfabético, mas também desenvolver habilidades
motoras e cognitivas para manipular os instrumentos e equipamentos rela-
cionados à escrita.
Assim, a alfabetização não se restringe à decodificação de letras e pa-
lavras, mas abrange um conjunto mais amplo de competências que incluem
tanto o entendimento do sistema de representação quanto a habilidade prá-
tica de utilizar ferramentas de escrita. Essa compreensão reforça a ideia de
que a alfabetização é um processo multifacetado que engloba conhecimentos
teóricos e práticos, contribuindo para uma participação efetiva e crítica na
sociedade letrada.
Para nosso estudo, adotaremos aqui a definição de alfabetização como
sendo o processo de aquisição do código escrito, das habilidades de leitura e
escrita. Ou seja, ao se referir à alfabetização, faremos referência a ler e escrever
(Soares, 2009).
Para Soares (2009), o letramento não está condicionado apenas pelo
fato de ler e escrever, mas, essencialmente, pelo uso eficaz da leitura e es-
crita em diversas situações sociais. Isso envolve a habilidade de aplicar essas
competências em contextos práticos, como elaborar uma lista de compras no
supermercado ou preencher uma ficha de isenção de imposto de renda, o que
nos permite compreender que essa perspectiva ampliada de letramento vai
além das habilidades básicas e destaca a importância de uma compreensão
funcional e contextualizada da leitura e escrita na vida cotidiana. Assim, o
letramento é visto como uma prática social integrada, na qual a habilidade
de usar a linguagem escrita é aplicada de maneira significativa e relevante em
diversos cenários, contribuindo para a participação efetiva e crítica dos indi-
víduos na sociedade.
Ferreira (2020) menciona que as crianças não aprendem a ler e escrever
meramente pelo fato de codificar e decodificar a palavras, contudo leva-se em
conta a participação dessa criança no contexto da leitura para uma ação de al-
fabetizar letrando. Deixando a forma mecanizada de aprender a ler e escrever,
passando para uma outra dinâmica.
99
Definições Basilares do Transtorno do Espectro Autista (TEA)
O Transtorno do Espectro Autista – TEA é considerado um Transtorno
do neurodesenvolvimento caracterizado por déficits na comunicação e inte-
ração social: (a) limitação na reciprocidade socioemocional, (b) restrição na
comunicação não verbal utilizados para a interação social e dificuldade nos
relacionamentos; (c) padrões restritos e repetitivos de comportamento, inte-
resses ou atividades com prejuízos no funcionamento adaptativo. (DSM-5;
American Psychiatric Association, 2014).
As pessoas autistas podem enfrentar desafios na distinção entre aquelas
consideradas benevolentes e aquelas percebidas como mal-intencionadas. Em
um breve contraste, Frith (1991) enfatiza que os indivíduos autistas tendem
a interpretar o comportamento de maneira literal, enquanto, por outro lado,
aqueles com mentalismo compulsivo tendem a não interpretar os comporta-
mentos em si, mas sim a partir da perspectiva das intenções subjacentes a eles.
Ao descrever os comportamentos de pessoas autistas, podem ser destacados
aspectos como,
Ansiedade, preocupação, nervosismo, medo intenso de pessoas, objetos
ou situações, costume de andar na ponta dos pés, falta de atenção, perda
da fala, tiques e manias nervosas, interesse intenso em coisas específicas,
depressão. Esses são muitos dos comportamentos que uma criança pode
apresentar; não é necessário demonstrar todos eles, mas em geral vários
são perceptíveis, o que pode permitir um diagnóstico (Aggio; De Jesus,
2022, p. 181).
Dentre as características supracitadas, a tabela de referência do
Ministério da Saúde (2014) apresenta alguns sinais precoces adicionais mais
frequentemente associados a um diagnóstico posterior de autismo, como di-
ficuldades no contato ocular, iniciativa em direcionar a atenção do parceiro,
foco comum de interesse durante a interação social, coordenação de gestos
com expressão facial e postura na comunicação, brincadeira simbólica redu-
zida ou ausente, comportamentos repetitivos ou ritualizados relacionados ao
corpo: maneirismos e outros movimentos complexos, linguagem (ecolalia, ri-
tuais verbais), ações com objetos (girar, enfileirar), alterações sensoriais (hipo
ou hipersensibilidade a sons, luzes e movimento).
100
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) possui como características
gerais para diagnóstico dois critérios: 1) os déficits de interações sociais e de
comunicação; e 2) comportamentos repetitivos e interesses restritos (APA,
2013, 2014).
O DSM-5, ressalta as necessidades de suporte e atendimento, conside-
rando 3 níveis de severidade do TEA:
Nível 1 – paciente necessita de suporte. Possui dificuldade de interação so-
cial inicial, além de possuir respostas atípicas ou falhas a interações sociais.
A inflexibilidade apresentada interfere no seu funcionamento nesse e/ou em
mais contextos. Nível 2 – requer apoio substancial (possui, por exemplo,
acentuado déficit em aspectos não verbal e social. Apresenta dificuldade em
iniciar interações, comportamento restritivo ou repetitivo); Nível 3 – re-
quer apoio muito significativo. Apresenta, por exemplo, grave déficit social
e não-verbal, inflexibilidade em mudanças, interferindo significativamente
no funcionamento das atividades do paciente (Oliveira, 2017, p. 15).
Com todo os sinais do autismo diagnosticados, a pessoa com TEA ne-
cessita de apoio familiar nesse processo de identificação e superação de adver-
sidades, nesse ínterim, Viana et al., (2020) destaca a importância do auxílio
dos familiares na identificação do transtorno, bem como em todo o processo
de superação de dificuldades posteriores ao diagnóstico e no enfrentamento
das mudanças que serão vivenciadas em toda a rotina familiar.
Entre os sintomas e manifestações previamente mencionados, é crucial
que os familiares também observem o comportamento verbal das pessoas
autistas. Nesse sentido, as quais destacamos a seguir que
O comportamento verbal está relacionado com a comunicação e a intera-
ção, mas há outras formas de se comunicar no TEA, como as comunica-
ções alternativas, por fichas, por exemplo. A função social da comunicação
precisa ser definida para as nossos(as) filhos(as) e inicialmente eles vão
perceber o quão agradável e útil é se comunicar quando essas habilidades
forem reforçadas, inicialmente com ganhos arbitrários, como o próprio
operante mando é reforçado com o acesso ao que foi pedido. Posterior,
deve ocorrer a substituição de ganhos arbitrários por outros sociais, como
elogios, agradecimentos, feedbacks positivos, entre outros (Oliveira, Grass
e Bolsoni-Silva, 2024, p. 13).
101
Essa discussão destaca a importância do comportamento verbal no
contexto do Transtorno do Espectro Autista (TEA), destacando que a comu-
nicação vai além da fala convencional. Ressalta ainda, que outras formas de
comunicação, como as comunicações alternativas, desempenham um papel
crucial. A ênfase recai na necessidade de definir a função social da comuni-
cação para crianças com TEA, inicialmente utilizando reforços arbitrários,
como o acesso ao que foi solicitado, para demonstrar a utilidade e agradabi-
lidade da comunicação.
Isso sugere que com o tempo, esses reforços podem ser substituídos por
ganhos sociais, como elogios, agradecimentos e informações positivas. Essa
abordagem destaca a importância de adaptar estratégias de comunicação para
atender às necessidades específicas de crianças com TEA, visando um desen-
volvimento eficaz e significativo das habilidades comunicativas.
Em continuação ao comportamento verbal, no quadro 2 a seguir, há
algumas indicações de como o indivíduo com TEA (transtorno do Espectro
autista) se comporta em diversos contextos e ambientes em que está inserido
e participando.
Quadro 2 - Comportamento verbal e a comunicação da pessoa com autismo
Comportamento verbal
e comunicação Descrição
Brincar independente
Corresponde aos comportamentos que envolvem o engaja-
mento de maneira espontânea com comportamentos e itens
que são legais e prazerosos;
Comportamento social e
brincar
O brincar social envolve muitos outros comportamentos,
como fazer pedidos, responder às interações, nomear itens,
os quais estão definidos logo mais, e o prazer do brincar;
Comportamento verbal
espontâneo
Corresponde aos balbucios, brincadeiras vocais, as quais são
emitidos sons;
Ecoico É compreendido a partir dos comportamentos de repetir o
que se escuta;
Escrita
Corresponde ao comportamento de cópia da escrita e escrita
espontânea, para ele, é preciso o reconhecimento de letras e
a psicomotricidade fina;
Estrutura linguística Nesse comportamento, compreende-se ler, escrever e soletrar
palavras
102
Comportamento verbal
e comunicação Descrição
Imitação motora Corresponde a copiar os movimentos motores (modelo) de
uma outra pessoa;
Intraverbal
Corresponde aos repertórios de manutenção de uma conver-
sação, desde responder perguntas, completar frases, ou fazer
perguntas diante de outra fala;
Leitura Corresponde a identificar a escrita, interpretar dica visual, e
responder de maneira verbal;
Mando Refere-se à habilidade de fazer pedidos, por algo ou retirada
de algo;
Matemática Corresponde ao reconhecimento dos números, contar e
operações básicas;
Performance visual e
emparelhamento com o
modelo
Corresponde a parear estímulos visuais com um modelo, seja
ele idêntico ou similar;
Responder de ouvinte Corresponde aos comportamentos de seguir instruções
verbais/auditivas, seja um mando ou não;
Responder de ouvinte por
função, classe e caracte-
rísticas
Corresponde à discriminação e classificação de estímulos
com base em suas características, função ou classe, o que
contribui na ampliação de Rotinas de classe e habilidades de
grupo. São os comportamentos e habilidades envolvidas em
interações grupais. Nesse repertório, as habilidades sociais
são desenvolvidas, além de outros repertórios verbais como a
imitação de modelos, atividades de vida diária, entre outros;
Tato O tato pode ser entendido como o repertório de nomear,
identificar e descrever objetos, ações ou eventos.
Fonte: (Oliveira; Grassi; Bolsoni-Silva, 2024, p. 14-15).
É fundamental reconhecer a singularidade de cada pessoa com TEA,
pois as características e comportamentos podem ser altamente individuali-
zados, sendo que intervenções personalizadas e ambientes adaptados podem
proporcionar um suporte mais eficaz para promover o bem-estar e a partici-
pação plena desses indivíduos em diversos contextos.
Entre outras características, a ausência de faz de conta, por exemplo,
demonstra falha da fantasia como instrumento de elaboração das dificulda-
des que toda criança enfrenta ao crescer, tendo prejuízos na caracterização
e formação do sujeito (Kupfer et. al., 2009). Outros comportamentos de
103
sentimentos, atrasos no desenvolvimento são manifestações notáveis na pes-
soa com autismo. A família esteja atenta ao comportamento das crianças para
que o diagnóstico seja feito o mais cedo possível e que os profissionais façam
as melhores intervenções e tratamentos possíveis (Aggio; De Jesus, 2022).
A Teoria Histórico-Cultural e sua Relação com a Educação
de Alunos Autistas
Para Vigotski, a complexidade da estrutura humana deriva do proces-
so de desenvolvimento enraizado nas relações entre a história individual e a
história social. Seus estudos têm relevância para reformulações na Educação,
apontando um novo rumo na compreensão dos processos escolares e de
aprendizagem, a partir do entendimento da realidade social educacional e do
processo formativo do indivíduo sob o paradigma histórico-cultural. Antunes
(2010) ressalta a contribuição fundamental de Vigotski e seus seguidores ao
explorar a mente humana na elaboração da Teoria Histórico-cultural. Nestes
termos, o autor enfatiza que,
Talvez a mais extraordinária revolução trazida pelo século XX para a edu-
cação tenha sido propiciada por Lev Vygotsky e seus discípulos russos
ao pesquisar a mente humana mostrando que não mais se busca com-
preendê-la através de comportamentos, mas pela ação dos neurônios e
suas sinapses, posto que os comportamentos são tímidas manifestações
desta (Antunes, 2010, p. 7).
No trecho supracitado, os autores propuseram uma revolução ao in-
vestigar a mente humana, destacando que compreendê-la não deve se basear
apenas em observar comportamentos, mas sim na compreensão da ação dos
neurônios e suas sinapses. A ideia é que os comportamentos são manifesta-
ções limitadas e introvertidas desse complexo funcionamento neuronal. Essa
perspectiva neurocientífica trouxe uma abordagem mais profunda e detalha-
da para entender o processo mental humano e influenciou significativamente
a forma como a educação é abordada.
Segundo essa teoria, o progresso da mente humana envolve a aquisi-
ção das formas sociais de atividade historicamente desenvolvidas pela hu-
manidade. Isso ocorre através do ensino de atividades efetivas do sujeito,
104
promovendo o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Essas
funções capacitam o autocontrole e o autodomínio, sobrepujando as funções
biológicas básicas.
No início do século XX, Vigotski buscava superar as práticas de ensino
mecânico baseadas em concepções simplistas e nos paradigmas científicos da
época. Seus estudos sobre defectologia revelam uma perspectiva única em re-
lação às capacidades de aprendizado das crianças com deficiência. Enquanto
algumas abordagens se concentravam na modificação do comportamento
para alcançar a adaptação social, Vigotski enfatizava que o processo de en-
sino-aprendizagem para indivíduos deficientes, como no caso de aprendizes
com autismo, deveria incorporar uma interação entre a ação pedagógica, co-
tidiano e formação de conceitos (Orrú, 2016).
Nessa visão, o professor atua como sujeito mais experiente que orga-
niza o processo de ensino, não como detentor do conhecimento. Conforme
Orrú (2016), é crucial que o professor utilize sua sensibilidade para perceber
e reconhecer os significados vinculados aos conceitos que estão sendo cons-
truídos pelos alunos. Dessa forma, desde os conceitos mais básicos até os
mais intricados, o professor deve adotar como objetivo, a condição de que o
aprendiz ultrapasse a postura passiva de mero receptor obediente.
Vigotski, Luria e Leontiev (1988) afirmam que um ensino bem orga-
nizado e conduzido ativa um conjunto de funções mentais que possibilitam
a criança a desenvolver uma série de atividades. Portanto, ensino e apren-
dizagem são processos essenciais para o desenvolvimento das características
psíquicas humanas na criança. Esses processos não devem ser mecanicistas,
naturalizados e enciclopédicos, mas sim promover a reflexão, análise e síntese.
Conforme Vigotsky (1996), nas fases iniciais do crescimento da crian-
ça, suas atividades ganham um significado próprio em um sistema de com-
portamento social. Direcionadas a objetivos específicos, essas atividades são
influenciadas pelo ambiente da criança. A interação entre a criança e o objeto
ocorre com o auxílio de outra pessoa. Essa estrutura complexa é resultado
de um processo de desenvolvimento profundamente vinculado às conexões
entre a história individual e a história social.
A visão histórico-cultural de Vigotsky (1996), destaca a importância
da participação do outro na formação do indivíduo em sua interação com o
105
mundo, sendo mediada por diversas ações. Nesse sentido, a relação tratada
nesses dois aspectos trata da importância de que todos tenham a chance de
interagir, sendo um ambiente propício para relações sociais altamente bené-
fico, independentemente da presença ou ausência de deficiências. A abor-
dagem enfatiza a inclusão social e destaca que todos os indivíduos devem
ter acesso a oportunidades de interação e desenvolvimento, independente de
suas características específicas.
Na perspectiva comportamental, de acordo com Orrú (2010), alunos
autistas compartilham uma sala de aula, utilizando seus colegas com autismo
como referência social, enquanto o professor desempenha o papel de regula-
dor comportamental, dando ênfase ao ambiente estruturado e à minimização
de erros, enquanto que na abordagem histórico-cultural, as relações sociais e
o ambiente são priorizados para o desenvolvimento do aluno autista. Neste
contexto, o referencial social inclui colegas sem autismo, e o professor atua
como mediador, facilitando transformações entre o aluno, o objeto de estudo
e o mundo ao qual pertence. Essa abordagem considera a literatura científica
sobre o autismo e os principais princípios da perspectiva histórico-cultural.
Baseando-se nas ideias de Vygotsky, é crucial ponderar sobre o processo
educativo para alunos autistas. O professor deve compreender cada aluno,
planejando intervenções pedagógicas que respeitem a singularidade deles,
dado que as características dos autistas são particulares.
Assim, o professor deve considerar em sua atuação a relação entre a
ação pedagógica, cotidiano e formação de conceitos para promover o desen-
volvimento da linguagem, visto que ela desempenha um papel crucial na for-
mação da consciência humana. Nesse sentido, o currículo precisa ser adapta-
do, com um planejamento individualizado que respeite as singularidades de
cada estudante que recebe o Atendimento Educacional Especializado (AEE),
conforme preconizado pelas Diretrizes Nacionais da Educação Especial na
Educação Básica (Brasil, 2010) e a Resolução CNE/CEB no 4/2010, em seu
Parágrafo 1o do Art. 29.
§ 1o Os sistemas de ensino devem matricular os estudantes com deficiên-
cia, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdo-
tação, nas classes comuns do ensino regular Educacional Especializado
(AEE), Atendimento complementar ou suplementar à escolarização
106
ofertada em sala de recursos multifuncionais ou em centros de AEE da
rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópi-
cas sem fins lucrativos (Brasil, 2010, p. 6).
Com isso, percebemos a urgente necessidade dos sistemas de ensino
em matricular estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvol-
vimento e altas habilidades/superdotação em classes regulares. Além disso,
propõe o oferecimento de Atendimento Educacional Especializado (AEE),
que pode ser complementar ou suplementar à escolarização padrão, ocor-
rendo em salas de recursos multifuncionais ou centros de AEE, tanto em
instituições públicas quanto em organizações comunitárias, confessionais ou
filantrópicas sem fins lucrativos.
Ampliando a discussão, Alves (2017) afirma que é responsabilidade da
escola, em conformidade com seu papel social, elaborar uma proposta peda-
gógica que leve em consideração as características dos alunos, tanto no ensino
regular quanto na educação especial. Sugerindo isso, é aconselhável adaptar
o currículo, incorporando metas de curto, médio e longo prazo, e assegurar
a oferta de Atendimento Educacional Especializado (AEE) também para os
estudantes autistas.
Nesse sentido, compreendemos integrar a pessoa com deficiência no ce-
nário educacional requer uma reavaliação da abordagem pedagógica, envol-
vendo a elaboração de ações que facilitem a assimilação dos conhecimentos
científicos acumulados ao longo da história da humanidade. Para alcançar esse
objetivo, é fundamental identificar o percurso a ser seguido no processo de de-
senvolvimento. No âmbito dessa discussão, Vigotski (2010) enfatiza que
a aprendizagem não é, em si mesma, desenvolvimento, mas uma corre-
ta organização de aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento
mental, ativa todo um grupo de processo de desenvolvimento, e esta ati-
vação não poderia produzir-se sem aprendizagem. Por isso, a aprendiza-
gem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se
desenvolvam nas crianças essas características humanas não-naturais, mas
formada historicamente (Vigotski 2010, p. 115).
O texto destaca a interligação entre aprendizagem e desenvolvimento
na perspectiva de Vygotsky. Ele argumenta que a aprendizagem em si não
107
equivale ao desenvolvimento, mas a organização adequada do processo de
aprendizagem em uma criança impulsiona o desenvolvimento mental. A ati-
vação de diversos processos de desenvolvimento é desencadeada pela correta
organização da aprendizagem, e essa ativação não ocorreria sem a aprendi-
zagem. Assim, a aprendizagem é considerada um momento intrinsecamente
necessário e universal para o desenvolvimento das características humanas nas
crianças, características que não são inatas, mas sim formadas historicamente.
Metodologia - Análise de Pesquisas Produzidos à Luz
da Teoria Histórico-Cultural
O presente estudo propõe uma metodologia estruturada para a realiza-
ção de um levantamento bibliográfico que se concentra na análise de pesqui-
sas produzidas sob a influência da Teoria Histórico-Cultural. Esta abordagem,
desenvolvida por Vygotsky e seus colaboradores, oferece uma importante len-
te para compreender o desenvolvimento humano, especialmente no contexto
educacional. O levantamento bibliográfico visa explorar como essa teoria tem
sido aplicada em diversas pesquisas, identificando padrões, lacunas e contri-
buições significativas para o campo da educação.
Nesse sentido, apresentamos a seguir, os principais tópicos que delimi-
taram a metodologia de análise desse levantamento bibliográfico:
a) Definição do escopo:
A definição do escopo é um passo crucial no desenvolvimento da estra-
tégia de busca de trabalhos acadêmicos relacionados ao tema, considerando
que essa etapa é fundamental para estabelecer limites conceituais e temporais
que garantam a relevância e a pertinência das fontes selecionadas. Nesse sen-
tido, o primeiro passo consistiu na delimitação precisa da temática, sobre a
qual nos propomos à realização de diversas ações, como a identificação de
palavras-chave, conceitos-chave e a determinação de critérios de inclusão e
exclusão, incluindo ainda, a delimitação temporal e conceitual para garantir
a pertinência das fontes selecionadas.
108
b) Estratégia de busca:
A estratégia de busca de trabalhos acadêmicos relacionados ao tema
Alfabetização e Letramento do Aluno Autista à Luz da Teoria Histórico-
Cultural” desempenhou um papel crucial na identificação de fontes relevan-
tes e na construção de uma base sólida para a análise proposta. Desse modo, a
identificação de palavras e conceitos-chave, compreendeu a escolha criteriosa
de fontes de dados em bases acadêmicas, bibliotecas digitais e repositórios ins-
titucionais, orientando a busca de maneira a garantir a inclusão de trabalhos
específicos e diretamente relacionados ao escopo do estudo. Paralelamente,
foram desenvolvidos termos de busca específicos, combinando-os de maneira
eficaz para assegurar uma busca abrangente e relevante.
c) Seleção e categorização de fontes:
A seleção e categorização de fontes constituem uma etapa crucial no
processo de desenvolvimento da pesquisa, não apenas determinando quais
materiais serão incluídos no estudo, mas também organiza essas fontes de
maneira a facilitar a análise e interpretação posterior. Após a busca pelas pes-
quisas relacionadas ao tema Alfabetização e letramento do aluno autista à
luz da teoria histórico cultural, as fontes foram selecionadas com base em
critérios pré definidos e após isso, um processo de triagem foi implementado
para eliminar duplicatas e garantir a consistência na escolha das fontes que
foram selecionadas de acordo com temas, abordagens metodológicas e outros
critérios relevantes.
d) Análise crítica das fontes:
A análise crítica das fontes desempenhou uma função essencial no processo
de pesquisa sobre a temática em questão, especialmente após a seleção criteriosa
desses materiais por meio da estratégia de busca previamente estabelecida. Nessa
fase, o foco recaiu sobre a avaliação detalhada da qualidade metodológica e teóri-
ca das pesquisas selecionadas, onde cada fonte foi submetida a uma análise crítica,
sobre a qual avaliamos a qualidade metodológica, a clareza na aplicação da teoria
Histórico-cultural e a relevância para a temática em questão.
109
De acordo com esses critérios, a etapa buscou identificar padrões, ten-
dências e contribuições específicas de cada pesquisa.
e) Síntese dos resultados:
A síntese dos resultados provenientes da estratégia de busca de trabalhos
acadêmicos relacionados à temática proposta nesse estudo, representa um mo-
mento crucial no desenvolvimento da pesquisa, consolidando as descobertas e
proporcionando uma visão abrangente das contribuições do corpo de literatura
selecionado. Nessa etapa, busca-se destilar os principais achados, identificar pa-
drões emergentes e explorar implicações práticas e teóricas relevantes.
Os resultados foram sistematicamente sintetizados, destacando os princi-
pais achados, conceitos e contribuições encontradas nas pesquisas analisadas. Esse
processo de síntese permitiu uma visão consolidada do estado atual do conheci-
mento na interseção entre a Teoria Histórico-Cultural e a pesquisa educacional.
f) Discussão e implicações:
A discussão das estratégias de busca adotadas para pesquisas acadêmi-
cas relacionadas ao tema desse artigo foi um fator essencial para compreender
não apenas os resultados encontrados, mas também os desafios enfrentados e
as implicações dessas escolhas metodológicas. Além disso, a reflexão sobre as
estratégias de busca ofereceu resultados significativos para o estado atual da
pesquisa na área e indicar possíveis direções futuras.
Os resultados encontrados nos possibilitaram uma reflexão crítica, nos
estimulando a tecer abordagens e implicações sobre os aspectos observados
de modo que possíveis lacunas na literatura foram identificadas, o que nos
orientou um encaminhamento de sugestões para pesquisas futuras. Assim,
essa etapa atingiu seu objetivo que era o de enriquecer a compreensão da
aplicação da Teoria Histórico-Cultural na produção acadêmica.
g) Conclusão:
A conclusão deste levantamento bibliográfico, que se dedicou à análise
de trabalhos acadêmicos relacionados ao tema “Alfabetização e Letramento
110
do Aluno Autista à Luz da Teoria Histórico-Cultural”, proporcionou uma vi-
são consolidada das contribuições e tendências observadas no corpo de litera-
tura examinado, de modo que ao longo deste processo, buscamos compreen-
der a interação complexa entre os elementos da alfabetização e letramento em
alunos autistas, explorando essa dinâmica à luz da Teoria Histórico-Cultural.
Essa dinâmica nos motivou a apontar sugestões para pesquisas futuras,
considerando as lições aprendidas com as estratégias de busca utilizadas, so-
bre as quais foi possível nos aprofundar sobre a exploração de novas fontes de
dados, refinamentos nos termos de busca de investigações de áreas específicas
que ainda carecem de atenção acadêmica.
Em resumo, a conclusão das estratégias de busca ofereceu uma visão
panorâmica do processo metodológico, destacando sucessos e desafios. Essa
reflexão contribuiu não apenas para a validade interna do estudo, mas tam-
bém para o avanço do campo de pesquisa, orientando futuros esforços na
compreensão da alfabetização e letramento de alunos autistas à luz da Teoria
Histórico-Cultural.
Ao adotar essa metodologia de levantamento bibliográfico, buscamos
apresentar aos interessados na temática, uma análise abrangente e aprofunda-
da das pesquisas produzidas à luz da Teoria Histórico-Cultural, contribuindo
para o avanço do conhecimento nesse campo específico da educação.
Nesse contexto, a investigação foi conduzida mediante a seleção de pa-
lavras-chave específicas, sendo elas: teoria Histórico-cultural, Autismo, alfa-
betização e letramento, inclusão e Educação especial. Ao mergulharmos nesse
escopo de estudo, buscamos compreender como esses elementos convergem,
revelando observações valiosas para aprimorar práticas educacionais voltadas
para crianças autistas no âmbito da educação especial.
Assim, elencamos 4 estudos datados do período de 2011 a 2017, sen-
do o primeiro na categoria de Tese de Doutorado, o segundo, sendo uma
Dissertação de Mestrado, o terceiro sendo um Artigo científico e om quarto,
caracterizado como uma dissertação de mestrado.
Para realizar o levantamento de busca, foram exploradas duas platafor-
mas acadêmicas, o SciELO e o Catálogo de Teses & Dissertações da CAPES.
A pesquisa foi conduzida utilizando palavras-chave específicas associadas a
operadores booleanos “and” e “or”. As palavras-chave incluíram termos como:
111
teoria Histórico-cultural, Autismo, alfabetização e letramento, inclusão e
Educação especial “and” possibilitou a busca por artigos que contemplassem
simultaneamente todas as palavras-chave, refinando a seleção para estudos
mais alinhados aos objetivos da pesquisa. Por outro lado, o uso do operador
or” ampliou a abrangência da busca, considerando variações e sinônimos das
palavras-chave, enriquecendo assim a diversidade de resultados.
Os trabalhos foram selecionados de acordo com a abordagem Sócio-
histórica tratada nesse estudo, de modo que analisamos cada uma das temá-
ticas, conforme descrição a seguir:
Título 01: O papel da mediação32 da educadora no desenvolvimen-
to da brincadeira de crianças com autismo na educação infantil: um estudo
longitudinal - Este estudo longitudinal, ao ser analisado à luz da teoria histó-
rico-cultural, pode oferecer insights sobre como a ação pedagógica ao longo
do tempo impacta o desenvolvimento das brincadeiras de crianças autistas na
fase inicial da educação, contribuindo para uma compreensão mais aprofun-
dada desse processo.
Título 02: Atividades escolares envolvendo alunos autistas na escola
especial - Ao explorar as atividades escolares específicas para alunos autistas
em ambientes de educação especial, um olhar sob a teoria histórico-cultural
pode destacar a importância da ação pedagógica na adaptação dessas ativida-
des para atender às necessidades dos alunos autistas, promovendo, assim, a
alfabetização e o letramento.
Título 03: A mediação pedagógica no desenvolvimento do brincar da
criança com autismo na educação infantil - Este título ressalta a mediação
pedagógica no contexto do brincar de crianças autistas. Sob a perspectiva
da teoria histórico-cultural, o artigo pode explorar como essa ação contribui
para o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos fundamentais, in-
cluindo a alfabetização, durante as atividades lúdicas na educação infantil.
Título 04: Introduções ao Sistema de Numeração Decimal a Partir
32 Cabe aqui salientar que o conceito de mediação preconizado por Vygotsky (2010) está vinculado
aos instrumentos e signos e não a figura do professor, uma vez que para a teoria Histórico-cultural o
professor é o sujeito mais experiente que organiza o ensino e a mediação é feita pelos instrumentos e
signos. Já nos trabalhos analisados neste estudo, nem sempre o termo mediação está de acordo com
o proposto por Vygotsky, mas se apresentam vinculados as definições trazidas por teorias de base
construtivistas e neopiagetianas.
112
de Um Software Livre: Um Olhar Sócio-Histórico Sobre os Fatores que
Permeiam o Envolvimento e a Aprendizagem da Criança com TEA - Este tí-
tulo, embora aborde um tema mais específico, pode ser enriquecido por uma
análise sob a ótica da teoria histórico-cultural. Pode explorar como a media-
ção pedagógica influencia a introdução ao sistema de numeração decimal,
considerando os fatores sociais e históricos que permeiam o envolvimento e a
aprendizagem da criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
No quadro 3 a seguir, apresentamos os detalhes de cada um desses es-
tudos, focando nos seus objetivos gerais e discussão:
Quadro 3 - Análise de pesquisas produzidos à luz da teoria Histórico-cultural
Título 1 O papel da mediação da educadora no desenvolvimento da brincadeira
de crianças com autismo na educação infantil: um estudo longitudinal
Autor SANTOS, Maucha Sifuentes dos
Tipo de pes-
quisa Tese de Doutorado
Palavras-chave Palavras-chave: Autismo; brincadeira; mediação; inclusão escolar;
Educação Infantil.
Ano 2011
Objetivo geral
e discussão
Esta pesquisa abrange três investigações, sendo que a primeiro teve como
principal objetivo de forma crítica a literatura acerca da atividade lúdica
no âmbito do autismo, discutindo os resultados à luz da teoria Históri-
co-cultural. A autora observou em sua busca por trabalhos na área, uma
escassez de estudos sobre a brincadeira de crianças autistas no contexto
brasileiro e que internacionalmente, há uma prevalência no exame
do comprometimento da brincadeira simbólica, negligenciando uma
compreensão mais aprofundada das manifestações lúdicas que a criança
autista pode apresentar. Em decorrência disso, delineou-se um segun-
do estudo teórico para abordar a função do educador na inclusão de
crianças autistas, utilizando o conceito de mediação como ponto central.
Concluiu-se que são imprescindíveis pesquisas que investiguem quais
estratégias de mediação são mais eficazes na inclusão de crianças autistas.
Assim, o terceiro estudo visou examinar a influência da mediação do
educador na complexidade das atividades lúdicas apresentadas por crian-
ças autistas na Educação Infantil, em contexto de inclusão.
Título 2 Atividades escolares envolvendo alunos autistas na escola especial
Autor BRAGIN, Josiane Maria Bonatto
113
Ano 2011
Tipo de pes-
quisa Dissertação de Mestrado
Palavras-chave Autismo. Atividades educacionais. Abordagem histórico-cultural.
Objetivo geral
e discussão
Pesquisa embasada na abordagem histórico-cultural que busca com-
preender as experiências oferecidas aos estudantes diagnosticados com
Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (autismo) nas práticas
educativas vigentes. O objetivo é analisar as concepções que direcio-
nam tais práticas e explorar potenciais alternativas de educação para
esses alunos. Além disso, procura-se identificar maneiras de aprimorar
as abordagens educacionais, considerando as necessidades específicas
desse grupo. Nesse sentido, o estudo pretende fornecer subsídios para o
desenvolvimento de estratégias mais inclusivas e eficazes, promovendo
uma reflexão crítica sobre as atuais práticas pedagógicas. A pesquisa
busca não apenas compreender o cenário educacional para estudantes
autistas, mas também contribuir para a construção de um ambiente es-
colar mais adaptado e acolhedor. Dessa forma, visa-se estabelecer bases
para a promoção do desenvolvimento integral desses alunos, levando
em consideração suas singularidades e estimulando a participação ativa
no processo educacional.
Título 3 A mediação pedagógica no desenvolvimento do brincar da criança com
autismo na educação infantil
Autor CHIOTE, Fernanda de Araújo Binatti
Ano 2012
Tipo de pes-
quisa Artigo científico
Palavras-chave Criança com autismo. Mediação pedagógica. Brincar. Educação Infantil.
Objetivo geral
e discussão
O propósito é examinar o papel da mediação pedagógica no progresso
do brincar da criança autista na educação infantil, levando em conta
que a atividade lúdica não é inata à criança. A abordagem históri-
co-cultural serve como a base teórica e metodológica, conforme os
estudos de Vigotski (1997, 2007). A conclusão da autora é que, diante
das peculiaridades da criança autista e, de fato, de qualquer criança,
as oportunidades de desenvolvimento não são preestabelecidas, mas
sim emergem em situações concretas onde suas potencialidades se
expressam de alguma maneira. Assim, a pesquisa busca aprofundar a
compreensão sobre como a mediação pedagógica pode ser otimizada
para favorecer o desenvolvimento do brincar na infância autista.
114
Título 4
Introduções Ao Sistema de Numeração Decimal A Partir De Um Soft-
ware Livre: Um Olhar Sócio-Histórico Sobre os Fatores que Permeiam
o Envolvimento e a Aprendizagem da Criança Com TEA
Autor Do Nascimento. Ieda Clara Queiroz Silva
Ano 2017
Tipo de pes-
quisa Dissertação de Mestrado
Palavras-chave Ciclo de alfabetização. Autismo. Educação Matemática e TI. Teoria
Sócio-histórica.
Objetivo geral
e discussão
A pesquisa visa examinar, com base na teoria histórico-cultural, a brinca-
deira mediada em crianças autistas, visando o desenvolvimento socio-
cognitivo. O estudo foi dividido em três fases. Inicialmente, por meio
de uma revisão bibliográfica, buscou-se informações sobre a brincadeira
no contexto do autismo. Nesse contexto, a autora observou uma falta de
produções brasileiras e uma ênfase internacional na brincadeira simbóli-
ca. Isso conduziu a uma segunda fase teórica, concentrada na inclusão de
crianças autistas por meio da mediação. Diante disso, a autora identifi-
cou a importância de considerar estratégias de mediação que promovam
a inclusão. Na terceira etapa, a pesquisa partiu dessa necessidade, com a
autora conduzindo investigações com duas crianças autistas na Educação
Infantil em escolas regulares. Os resultados indicaram que a inclusão
contribui para o avanço das crianças autistas no que diz respeito ao
brincar. Os resultados destacam a importância de se pensar estratégias
pedagógicas que promovam uma inclusão efetiva, reconhecendo as
potencialidades individuais de cada criança autista. Este estudo, portan-
to, contribui não apenas para a compreensão da brincadeira mediada
no contexto do autismo, mas também para a construção de práticas
inclusivas que fortaleçam o desenvolvimento sociocognitivo das crianças
autistas na Educação Infantil.
Fonte: organização dos autores/2024
Esse conjunto de estudos contribuiu de maneira significativa para a
melhor compreensão da pesquisa que propomos, abordando a Alfabetização
e letramento do aluno autista sob a ótica da teoria histórico-cultural, de
modo que O estudo longitudinal sobre o papel da mediação da educadora
no desenvolvimento das brincadeiras de crianças autistas na educação infan-
til, nos proporcionou uma compreensão abrangente de como a intervenção
pedagógica ao longo do tempo impacta o desenvolvimento dessas crianças,
influenciando indiretamente seus processos de alfabetização e letramento.
115
A pesquisa sobre atividades escolares em ambientes de educação espe-
cial pode fornecer valiosas considerações sobre como adaptar práticas peda-
gógicas, mediadas historicamente, para atender às necessidades específicas de
alunos autistas, promovendo sua alfabetização de maneira eficaz.
O estudo sobre a mediação pedagógica no desenvolvimento do brincar
de crianças autistas na educação infantil destaca a importância dessa media-
ção em contextos lúdicos, fornecendo uma perspectiva única sobre como esse
aspecto pode contribuir para os processos de letramento. Já a investigação
sobre a introdução ao sistema de numeração decimal por meio de um soft-
ware livre, sob um olhar sócio-histórico em relação aos fatores que permeiam
o envolvimento e a aprendizagem da criança com TEA, oferece uma aborda-
gem específica que pode enriquecer a compreensão das estratégias de ensino
mediadas pela teoria histórico-cultural nesse contexto específico de alfabeti-
zação e letramento para crianças autistas.
Resultados e Discussões
Os resultados e discussões desta pesquisa proporcionaram uma vi-
são abrangente sobre a alfabetização, letramento e aprendizagem de alunos
autistas, considerando a aplicação da teoria Histórico-Cultural como uma
lente teórica fundamental para compreender e aprimorar os processos edu-
cacionais. A questão problematizadora que guiou este estudo se destacou
pela preocupação central na pesquisa educacional, promovendo uma análise
profunda sobre como uma abordagem teórica específica pode influenciar po-
sitivamente o processo de alfabetização de alunos autistas e assim, desvelou
resultados significativos e provocou discussões pertinentes.
Sobre o foco nas características específicas dos alunos autistas, A ênfa-
se na consideração das características específicas dos alunos autistas reflete a
compreensão da singularidade desse grupo. A Teoria Histórico-Cultural, ao
ser aplicada, precisa ser adaptada para atender às necessidades individuais, res-
peitando as características cognitivas, sensoriais e sociais dos alunos autistas.
A respeito do potencial transformador da abordagem Histórico-
Cultural, inferimos que a teoria demonstrou um potencial transformador
na prática de alfabetização, que pode ser vinculado à ênfase na vivência so-
cial, na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) e na internalização de
116
conhecimento, elementos que podem ser particularmente relevantes para
alunos autistas, contribuindo para um ambiente educacional mais inclusivo.
Sobre as perspectivas oferecidas pela teoria no contexto educacional,
observamos que indicam um olhar amplo sobre como a teoria abordada nesse
estudo contribuiu para o contexto educacional como um todo. Isso não se
limita apenas à alfabetização, mas sugere uma influência mais ampla no am-
biente escolar, incluindo aspectos sociais, emocionais e interativos.
A partir dessa dinâmica foi possível compreender que a questão proble-
matizadora ofereceu um ponto de partida sólido para investigar como teorias
educacionais específicas, como a Teoria Histórico-Cultural, podem ser efetiva-
mente traduzidas e aplicadas para melhorar a experiência educacional de alunos
autistas, contribuindo para o enriquecimento da prática pedagógica inclusiva.
Considerações Finais
Partindo do objetivo geral de investigar a alfabetização, letramento e
aprendizagem de alunos autistas, explorando como a Teoria Histórico-Cultural
poderia influenciar e contribuir para esses processos educacionais, inferimos
que essa perspectiva pode ser percebida a partir de uma perspectiva enrique-
cedora que busca compreender e aprimorar esses processos educacionais es-
pecíficos, visto que a teoria Histórico-cultural, desenvolvida por Vygotsky e
seus colaboradores, propõe uma visão interativa e sociocultural do desenvol-
vimento humano, destacando a importância da interação social, da Zona de
Desenvolvimento Proximal (ZDP) e da internalização de conhecimento.
No contexto da alfabetização, a referida teoria destaca a relevância da
interação social para o processo de aprendizagem, observando o fato de que,
para os alunos autistas, essa interação assume um papel crucial, uma vez que
pode ocorrer por meio de interações personalizadas, adaptadas às necessida-
des específicas de cada estudante. A ZDP, conceito central na teoria, permite
a identificação das capacidades e habilidades que um aluno pode desenvolver
com apoio de um sujeito mais experiente, direcionando a prática pedagógica
para um ensino mais ajustado ao nível de desenvolvimento individual.
A individualização das estratégias pedagógicas é outro aspecto enfati-
zado por essa abordagem, promovendo a adaptação de métodos de ensino de
acordo com as características únicas de cada aluno autista e ela reconhece a
117
diversidade de estilos de aprendizagem e preferências individuais, permitindo
a criação de ambientes educacionais mais inclusivos e acessíveis.
Esse estudo nos possibilitou perceber que a importância da apropria-
ção do conhecimento enfatiza não apenas a aquisição de habilidades, mas a
capacidade do aluno de aplicar essas habilidades de maneira independente.
Para alunos autistas, esse processo pode ser facilitado por meio de estratégias
que promovem a repetição estruturada, o uso de recursos visuais e a criação
de conexões significativas entre os conceitos, proporcionando uma aprendi-
zagem mais consolidada.
No que diz respeito ao letramento, a teoria Histórico-Cultural ampliou
nosso conhecimento, ao abordar não apenas a decodificação de símbolos, mas
também a compreensão mais ampla das práticas sociais envolvidas na leitura e
na escrita e quando direcionamos essa observação para o público alvo dessa pes-
quisa, isso implicou em uma abordagem que considerou não apenas a dimen-
são técnica, mas também a aplicação prática dessas habilidades em contextos
do cotidiano, promovendo uma aprendizagem mais significativa e funcional.
A teoria Histórico-Cultural teve uma influência significativa na prática
pedagógica relacionada à alfabetização, letramento e aprendizagem de alunos
autistas tratadas nesse estudo. Sua adaptabilidade e flexibilidade proporcio-
naram uma base sólida para o desenvolvimento educacional desses estudan-
tes, levando à promoção efetiva da educação inclusiva. Este estudo destaca a
Teoria Histórico-Cultural como uma ferramenta teórica valiosa, moldando
práticas educacionais que não apenas buscam ensinar, mas também com-
preender e apoiar o desenvolvimento integral dos alunos autistas, ao valorizar
a diversidade em ambientes educacionais.
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Tangram como Ferramenta Lúdica e Didática
no Ensino de Geometria e Pensamento Espacial
Elisângela da Silva CALLEJON 33
Introdução
Este artigo visa partilhar parte de uma pesquisa de mestrado que con-
tribuiu com o percurso acadêmico desta pesquisadora, na condição de inves-
tigadora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista
(UNESP), também como profissional, pois exerce o cargo de professora, já
atuou na coordenação, direção e hoje está como auxiliar de direção de uma
Escola de Educação de Tempo Integral no Sistema Municipal de Ensino de
Marília. Pode também influenciar e aperfeiçoar os conhecimentos teórico-
-metodológico e prático dos docentes, ao proporcionar algumas possibilida-
des didáticas para o ensino da geometria utilizando o jogo Tangram.
A escolha do tema da pesquisa foi motivada por um problema inquie-
tante que acomete os profissionais da educação, diz respeito às dificuldades
dos estudantes em compreender os conceitos matemáticos. Durante a revisão
inicial da literatura sobre o assunto, foi observada a escassez de produções
científicas relacionadas ao tema, que poderiam auxiliar na superação dessas
dificuldades e destacar a relevância dos jogos e atividades lúdicas no ensino da
matemática para o 5° ano do Ensino Fundamental I, ano em que ocorreram
33 Mestra em Educação e doutoranda pela UNESP, Câmpus de Marília. Especialista em Gestão
Escolar: Administração, Supervisão e Orientação - Faculdade Única/Grupo Prominas. Especialista
em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela FATEC- Faculdade de Tecnologia do Vale do Ivaí/
Grupo Rhema. Licenciada em Pedagogia com Habilitação em Educação Infantil pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Faculdade de Filosofia e Ciências/Campus Marília - SP.
elisangelacoordenacaocelio@gmail.com
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p121-138
122
as observações que serão aqui relatadas. É sabido que a compreensão dos
conteúdos de matemática no Ensino Regular, especialmente aqueles aborda-
dos no 5° ano do Ensino Fundamental I. apresentam desafios tanto teóricos
quanto metodológicos.
Por um lado, muitos alunos enfrentam dificuldades na aprendizagem
matemática, e por outro, observa-se no ambiente escolar uma certa parcimônia
de atividades reflexivas, significativas e instigantes, proporcionadas pelos jogos
e atividades lúdicas, que poderiam contribuir para o desenvolvimento do racio-
cínio lógico, do pensamento abstrato e do pensamento teórico, conforme pre-
conizado pela Teoria Histórico-Cultural. Dessa forma, o objetivo é discutir as
contribuições dos jogos e atividades lúdicas como elementos mediadores para o
desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem da geometria, nos anos
iniciais do Ensino Fundamental. Portanto a questão orientadora é: como o jogo
Tangram e atividades lúdicas podem contribuir para a mediação do processo
de ensino e aprendizagem dos conceitos matemáticos sobre geometria e pensa-
mento espacial? Nesse sentido, evidencia-se a atuação intencional e sistemática
do professor propondo atividades envolvendo o jogo Tangram, contribuindo
para a apropriação desses conceitos matemáticos.
Além disso, visa promover uma reflexão sobre o processo de ensino e
aprendizagem dos conteúdos matemáticos trabalhados em sala de aula. Para
isso, torna-se fundamental o planejamento das aulas para a efetiva inserção
dos jogos como ferramenta secundária na mediação dos conteúdos matemá-
ticos. O planejamento estrutura as ações e guia as atividades, proporcionando
um direcionamento claro para o processo de ensino e aprendizagem, com o
objetivo de eliminar o improviso e elaborar aulas que despertem o interesse
dos alunos e tornem os conteúdos mais atraentes.
Em resumo, este estudo pretende contribuir para o processo de ensino
e aprendizagem, destacando os jogos e atividades lúdicas como elementos
importantes na apropriação, sistematização e consolidação dos conteúdos
matemáticos sobre geometria.
Enfim, o capítulo foi disposto da seguinte forma: inicia-se pela intro-
dução, onde foi apresentado o estudo e contextualização da temática sobre o
jogo Tangram e sua importância no ensino da geometria, promovendo refle-
xões sobre o processo de ensino e aprendizagem, sendo assim fundamental,
123
o planejamento de aulas que insiram os jogos como ferramentas secundárias
na mediação da apropriação dos conteúdos, visando despertar o interesse
dos alunos. Na sequência foram abordadas algumas considerações acerca da
Teoria Histórico-Cultural (THC) e da Teoria da Educação Desenvolvimental.
A Teoria Histórico-Cultural em Vygotsky (1978, 1979), enfatizando
a importância do contexto cultural e histórico na formação do indivíduo no
processo de ensino e aprendizagem e na formação humanizadora do mesmo.
Demonstrando que o desenvolvimento humano ocorre por meio de intera-
ção social e da internalização de ferramentas culturais, como a linguagem,
símbolos, ferramentas, objetos e práticas sociais, valorizando, ainda, a inte-
ração entre o professor/aluno e a mediação do objeto de aprendizagem que
atua na zona de desenvolvimento proximal, onde a criança é capaz de realizar
tarefas com o auxílio de alguém mais experiente.
Na teoria da educação desenvolvimental, proposta por Davidov (1998),
apresentou a compreensão do processo de desenvolvimento do pensamento e
da aprendizagem, destacando a importância de criar situações de ensino que
promovam a aprendizagem e desenvolvimento dos alunos, com o objetivo
de alcançar níveis mais elevados de abstração e pensamento teórico. Para tal
mostrou que é necessário desafiar os alunos com atividades significativas e
complexas, que os levem a desenvolver as habilidades cognitivas promovendo
o seu desenvolvimento integral, considerando suas capacidades cognitivas e
o contexto sociocultural em que vivem. Depois foram apontados os percur-
sos metodológicos, demonstrando os caminhos utilizados para realização da
pesquisa, garantindo a validade, confiabilidade e rigor científico do trabalho
realizado, fornecendo uma estrutura sólida para o desenvolvimento da pes-
quisa. Em seguida, foram apresentados e discutidos os dados provenientes da
pesquisa, extraindo os significados dos dados, respondendo às questões da
pesquisa que contribuíram para os resultados e conclusão do trabalho. Logo
depois, foi explanado sobre a importância do jogo Tangram como recurso
pedagógico, experiência presenciada durante as observações realizadas para
elaboração da dissertação de mestrado e por fim as considerações finais sobre
os resultados obtidos.
124
Teoria Histórico-Cultural e Teoria da Educação Desenvolvimental:
algumas considerações
A Teoria Histórico-Cultural (THC) é uma abordagem psicológica que
enfatiza a importância do contexto cultural e histórico na formação do indi-
víduo e no desenvolvimento de suas capacidades mentais, Vygotsky (1978,
1989), Leontiev (1978) e Luria (2001) são os principais representantes da
THC e propõe que o desenvolvimento humano é mediado pelas interações
sociais e culturais, sendo assim, a aprendizagem ocorre por meio da participa-
ção em atividades sociais e da internalização de práticas e conceitos culturais.
Na prática educativa se leva em consideração a Zona de Desenvolvimento
Proximal (ZPD). A aprendizagem ocorre pela mediação no intervalo entre o
nível de desenvolvimento real (conhecimentos já apropriados pelo sujeito) e
o nível de desenvolvimento na ZDP (conhecimentos a serem adquiridos com
auxílio) para então alcançar o desenvolvimento potencial. Portanto a ZDP
é considerada a distância entre o nível de desenvolvimento real da criança
(aquilo que ela consegue realizar sozinha) e o que ela tem como potencial
de aprender (o que ela ainda precisa de auxílio para compreender e aplicar).
Na consolidação desse movimento dialético que é proposto a utilização
dos jogos matemáticos e atividades lúdicas de forma a dinamizar o processo
de abstração, desencadeando o desenvolvimento cognitivo, pois é na ZDP
que se concretizam funções ainda não desenvolvidas plenamente, mas que
se apresentam latentes. Esse processo não é somente biológico, portanto, à
medida em que a criança aprende ela se desenvolve: “O que determina dire-
tamente o desenvolvimento da psique de uma criança é sua própria vida e o
desenvolvimento dos processos reais desta vida [...]” Leontiev (2010, p. 63).
Ainda, segundo Vigotsky (1978), para o sujeito se desenvolver, é impres-
cindível que ele esteja inserido em um contexto em que ocorra a interação,
sendo que as aprendizagens, as quais são mediadas por outro sujeito (mais
experiente), podem também ser mediadas pelo próprio objeto, uma vez que
a linguagem é um desses objetos simbólicos:
Considero que é a partir da própria experiência sociocultural dos sujeitos
de aprendizagem que se facilita a apropriação do conhecimento mate-
mático. Impõe-se, então, a necessidade de uma metodologia apoiada na
125
valorização do raciocínio próprio de forma a se conduzir a proposições
mais abstratas e à utilização do raciocínio formal, lógico e dedutivo típico
da Matemática. Tendo como horizonte ultrapassar os limites das meras
representações simbólicas, o trabalho pedagógico em Matemática deve
contribuir para o desenvolvimento de habilidades de raciocínio, proces-
so interposto inicialmente pela linguagem oral e que, com o decorrer da
escolarização, incorpora práticas, textos, contextos e representações mais
elaborados (Miguel, 2020. p. 523).
Em vista disso, se faz importante enfatizar uma abordagem pedagógica
na qual o conhecimento matemático seja construído a partir das experiências
socioculturais dos alunos. Destaca-se a necessidade de uma metodologia que
valorize o raciocínio próprio dos estudantes, permitindo que eles avancem
em direção a conceitos abstratos e à utilização do raciocínio formal e lógico.
Inserir a criança em ambiente de descoberta, de criação, de imaginação e de
crítica. É ir além das aulas expositivas com aplicações de conceitos, fórmulas,
cópias e resolução de exercícios para sistematização de conteúdos.
Os pedagogos começam a compreender que a tarefa da escola contempo-
rânea não consiste em dar às crianças uma soma de fatos conhecidos, mas
em ensiná-las a orientar-se independentemente na informação científica
e em qualquer outra. Isto significa que a escola deve ensinar os alunos a
pensar, quer dizer, desenvolver ativamente neles os fundamentos do pen-
samento contemporâneo para o qual é necessário organizar um ensino
que impulsione o desenvolvimento. Chamemos esse ensino de “desenvol-
vimental” (Davídov, 1988, p. 3).
Segundo a perspectiva da Educação Desenvolvimental, conforme dis-
cutido por Davidov (1988) e Miguel (2020), os aspectos sociais, históricos
e culturais têm um papel significativo no processo de ensino, aprendizagem
e desenvolvimento dos alunos. Esse processamento de construção do conhe-
cimento é visto como ativo, envolvendo uma internalização que é influen-
ciada pelas particularidades do contexto em que os alunos estão inseridos.
De acordo com essa abordagem, a aprendizagem assume um papel central,
orientando o desenvolvimento das crianças, e não o inverso. Dessa forma, o
ensino e a aprendizagem são vistos como elementos interdependentes que se
influenciam mutuamente. A interação dialética entre ensino e aprendizagem
126
demanda que cada componente do processo contribua para a compreensão
e a funcionalidade do outro. Assim, se estabelece a mediação pedagógica es-
sencial para fomentar o desenvolvimento do pensamento teórico dos alunos.
Davidov (1988) argumenta que a educação desenvolvimental não se
concentra apenas na transmissão de conhecimentos, mas também visa de-
senvolver a consciência e o pensamento que estejam alinhados com as leis
dialéticas e materialistas de compreensão da realidade. Essa abordagem busca
não apenas a aquisição de conhecimentos, mas também o desenvolvimento
de uma consciência crítica e de um pensamento teórico.
Na perspectiva do conceito de educação desenvolvimental é preciso en-
tender que o conhecimento é produzido de forma coletiva e que a princi-
pal função da educação é propiciar ao educando a apropriação do conhe-
cimento histórico e culturalmente construído pela humanidade (Miguel;
Freitas, 2022, p.03).
Portanto, para promover a compreensão e a apropriação do conheci-
mento pelos alunos, é necessário que o ensino seja organizado de modo a
refletir esse processo histórico real, permitindo que os estudantes compreen-
dam não apenas os conteúdos em si, mas também o contexto e a evolução do
conhecimento ao longo do tempo. Essa abordagem visa proporcionar uma
aprendizagem mais significativa e contextualizada, possibilitando aos alunos
se aprofundarem criticamente nos conteúdos abordados em sala de aula.
Metodologia
Nesta seção, destacam-se os aspectos metodológicos deste estudo; ins-
trumentos e fontes utilizados para coleta e análise dos dados, bem como a
caracterização dos participantes e da instituição investigada.
Para embasamento da pesquisa foi utilizado o método de revisão bi-
bliográfica, abrangendo fontes primárias e secundárias. Por meio dessa re-
visão, foram analisadas obras científicas disponíveis em livros, artigos, teses,
dissertações e periódicos relacionados ao tema em questão. Adicionalmente,
foram realizadas as análises de documentos oficiais pertinentes à temáti-
ca estudada. A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa, centrada em
127
observações, visando a analisar os processos de interação pedagógica entre os
sujeitos envolvidos.
A pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos,
aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço
mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não po-
dem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (Minayo, 2001, p. 21).
Como dito anteriormente, este artigo expõe dados obtidos em uma pes-
quisa de mestrado realizada com crianças do quinto ano do Ensino Fundamental
de uma escola municipal de Ensino em Tempo Integral, localizada em um
bairro periférico de um município de médio porte do interior de São Paulo.
Fizeram parte do estudo a professora do 5°Ano (Núcleo Comum/manhã) e de
Jogos Matemáticos (Oficina de Enriquecimento Curricular/tarde).
Por ser esta pesquisa desenvolvida com crianças, exige normas envol-
vendo pesquisa com pessoas. A mesma foi submetida à Plataforma Brasil e
obteve a autorização do Comitê de Ética da universidade a qual se vincula, por
meio do parecer favorável de nº 4.663.865 e CAEE: 44605721.0.0000.5406,
de acordo com as normas estabelecidas pelas Resoluções CNS nº 466/12 e/
ou CNS nº 510/16, em conformidade com os aspectos éticos que envolvam
seres humanos. Para o aporte teórico e discussões valeu-se do estudo e análise
de alguns autores, como, por exemplo, Davidov (1988), Leontiev (1978),
Luria (2001), Vygotsky (1978, 1989), dentre outros pensadores que elabora-
ram trabalhos pertinentes ao assunto. Duval; Moretti (2012), Miguel (2020),
Oliveira (1997), Puentes; Longarezi (2013).
Como instrumentos de pesquisa para coleta de dados foram utilizados:
Questionário: com questões estruturadas para serem respondidas
sem a presença do pesquisador, impresso (professores) e por meio
do Google Formulário (alunos);
Observação: observar a sala de aula do Núcleo Comum (NC) e
Oficinas de Enriquecimento Curricular, para anotações e coletas de
dados, descrição dos sujeitos, de acordo com suas ações;
Entrevista: entrevistar a professora, estabelecendo contato direto,
através de perguntas semiestruturadas, realizadas pelo Google Meet;
Diário de campo: para anotações das observações feitas.
128
As informações coletadas por meio dos instrumentos de pesquisa fo-
ram processadas utilizando a abordagem de análise de conteúdo proposta por
Bardin (2016). Inicialmente, foi realizada a pré-análise, seguida pela explo-
ração minuciosa das respostas obtidas. Posteriormente, foi procedido com o
tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação dos dados, resultan-
do a formação do corpus e na preparação do material produzido. Esse pro-
cesso envolveu a identificação de unidades temáticas por meio de codificação
e categorização.
O tema, enquanto unidade de registro, corresponde a uma regra de recor-
te (do sentido e não da forma) que não é fornecida, visto que o recorte
depende do nível de análise e não de manifestações formais reguladas.
[...] O tema é geralmente utilizado como unidade de registro para estudar
motivações de opiniões, de atitudes, de valores, de crenças, de tendências,
etc (Bardin, 2016, p. 135).
Na sequência foram realizadas as análises das respostas do questionário
direcionado à docente, fundamentadas na literatura estudada. Para preservar
o anonimato do sujeito participante da pesquisa, na seção a seguir, foi utili-
zada a sigla P1 para indicar a professora respondente.
Produção e Análise dos Dados
O questionário foi elaborado em consonância com os objetivos do es-
tudo. Ele foi estruturado em quatro blocos temáticos distintos: informações
pessoais, formação acadêmica, formação complementar e aspectos relaciona-
dos ao ensino e aprendizagem da matemática. Abrangendo uma variedade
de questões, como estruturadas, abertas, fechadas e de múltipla escolha. Este
instrumento de coleta de dados foi projetado para explorar diferentes aspec-
tos relevantes para a pesquisa. Abaixo consta o Quadro 4 com as característi-
cas da professora participante.
129
Quadro 4 - Caracterização da professora participante
Professora Formação inicial
Formação complementar e/
ou continuada em Matemáti-
ca (Jogos/Atividades lúdicas)
Tempo de
atuação na
sala de aula
P1
Professora do
5°Ano (Núcleo
Comum).
Idade: 46 anos.
Sexo: feminino
Habilitação para o
Magistério;
Graduação em
Pedagogia;
Pós-Graduação
Lato Sensu em
Psicopedagogia
Clínica e Institu-
cional
Formação em HEC (Horas de
Estudos Coletivos);
Formação em nível de Secreta-
ria Municipal de Educação;
Cursos diversos por iniciativa
própria.
23 anos
Fonte: Registro de Pesquisa (2021).
Cabe ressaltar que a respondente trabalha no Ensino Fundamental e
também na Educação Infantil, acumulando dois cargos. Observou-se que a
professora apresenta base sedimentada em relação à formação inicial, ao passo
que procura constantemente, atualizar-se por meio de cursos de formação
continuada. A seguir, veremos a análise de alguns excertos que corroboram
com a pesquisa. Como podemos notar, nos discursos das professoras, apare-
cem algumas considerações relevantes, visíveis em suas falas:
Pesquisadora: Você oferece recursos diversos e estratégias para realizar
as suas aulas de Matemática, além de livros didáticos, material impresso,
lousa e giz? Quais?
P1 – Gosto das competições, bingos, jogos orais, etc. Acredito que as
formas como lidamos com os conteúdos podem torná-los lúdicos, for-
necendo a aprendizagem. Diálogo é fundamental (Registro de Pesquisa-
Subcategoria 1.3; Subcategoria 3.3, 2021, grifo nosso).
Segundo o relato de P1, é possível inferir sua compreensão sobre a
relevância da utilização de materiais diversos para mediar o ensino e a apren-
dizagem da Matemática. Ela reconhece os jogos e atividades lúdicas como
ferramentas acessórias, adotando uma abordagem que parte do geral para
o particular. Isso promove a interação entre os sujeitos por meio do objeto.
130
O conhecimento é a base abstrata que sustenta o raciocínio teórico: a com-
preensão não é desvinculada dos objetos. O concreto é algo que incorpora
(aprende) e se torna abstrato, Miguel (2020). “Assimilar, reproduzir, interio-
rizar e internalizar são termos que, dentro da teoria histórico-cultural, têm o
mesmo significado e podem ser entendidos como sinônimo de aprender ou
aprendizagem” (Puentes; Longarezi, 2013, p. 263).
No próximo excerto, a professora realça um aspecto positivo em rela-
ção às estratégias diferenciadas para incentivar as crianças a compreenderem
os conceitos matemáticos:
Pesquisadora: Você nota melhora no interesse e na aprendizagem da
criança, quando usa recursos e estratégias diversificadas? Quais?
P1 - Sim, percebo claramente que o interesse aumenta. A Matemática
sempre é vista como inatingível, e a maioria dos professores utiliza isso
para causar medo na turma. A partir do momento em que a criança com-
preende que existe uma lógica e que ela e capaz, tudo flui. O desafio é
o norteador de tudo! Nos jogos coletivos também percebo muita moti-
vação para identificar soluções. (Registro de Pesquisa-Subcategoria 1.1;
Subcategoria 2.2, 2021, grifo nosso).
No registro acima, a professora percebe a motivação das crianças ao se
depararem com os jogos e atividades lúdicas. Também traz um fator impor-
tante sobre o jogo: o trabalho em grupo, colaborativo e cooperativo. Assim os
jogos apresentam um fator motivacional e também desafiador, despertando
na criança o desejo de encontrar soluções para a dificuldades proporcionadas
pelos conteúdos matemáticos abordados.
Em 2021 dois professores dividiam a classe, sendo denominados de du-
plas produtivas. O professor da manhã era responsável pelo Núcleo Comum e
o professor da tarde pelas Oficinas de Enriquecimentos Curriculares. Uma des-
sas disciplinas denominava-se Jogos Matemáticos e foi nessa oficina que foi rea-
lizada a observação que será relatada aqui. No final de 2022 a Escola de Tempo
Integral foi regulamentada pelo Decreto Municipal n° 13.843 de 11/11/2022:
Art. 3°. As aulas de educação em Tempo Integral acontecerão das 7h às
I6h30min, garantindo-se o mínimo de 09 (nove) horas diárias de efetivo
trabalho escolar na seguinte conformidade:
131
I- O turno da manhã, preferencialmente, destinar-se-á ao trabalho com
os conteúdos das Áreas do Conhecimento da Base Nacional Comum
Curricular, conforme dispõe a Lei Federal n° 9394/96 - L.D.B., que esta-
belece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional;
II- O turno da tarde destinar-se-á, preferencialmente, as atividades de
enriquecimento curricular, através de oficinas, que acontecerão após o ho-
rário do almoço dos discentes;
III- A matriz curricular a ser implementada contemplará os componentes
obrigatórios da Base Nacional Comum e as Oficinas de Enriquecimento,
selecionadas pela relevância social, totalizando 45 (quarenta e cinco) horas
semanais (Marília, 2015, p. 02).
Esse novo decreto regulamentou a Lei n° 7588, de 18 de dezem-
bro de 2013, sobre Implementação do Projeto de Escolas de Educação de
Tempo Integral e os dispositivos previstos na Lei n° 3200/1986, Estatuto de
Magistério, modificada posteriormente pela Lei n° 8903, de 25 de outubro
de 2022. A partir dele o professor de Escola de Tempo Integral passou para o
Regime de Dedicação Plena Integral (R.D.P.I).
Na próxima seção será realizada uma abordagem sobre a exploração peda-
gógica do Tangram, presenciada durante uma observação realizada no decorrer
da pesquisa, visando analisar a importância de sua utilização como instrumen-
to acessório na apropriação dos conceitos matemáticos sobre geometria, desde
que, sejam organizados intencionalmente e sistematicamente pelo professor.
O Jogo Tangram como recurso Pedagógico
As representações semióticas englobam a interpretação de significados
atribuídos a signos e símbolos que representam conceitos e objetos do mundo
real, consistindo de um significante e um significado. Dentre uma variedade de
tipos de representações semióticas, incluem-se a linguagem verbal, a linguagem
visual, mapas, fórmulas, diagramas, tabelas, gráficos, e até mesmo os jogos e
atividades lúdicas. Na área da Matemática, as representações semióticas desem-
penham um papel fundamental, conforme descreve Duval; Moretti (2012):
são produções constituídas pelo emprego de signos pertencentes a um
sistema de representações que tem inconvenientes próprios de significação
132
e de funcionamento. Uma figura geométrica, um enunciado em língua
natural, uma fórmula algébrica, um gráfico são representações semióticas
que exibem sistemas semióticos diferentes. Consideram-se, geralmente,
as representações semióticas como um simples meio de exteriorização de
representações mentais para fins de comunicação, quer dizer para torná-
-las visíveis ou acessíveis a outrem. Ora, este ponto de vista é enganoso. As
representações não são somente necessárias para fins de comunicação, elas
são igualmente essenciais à atividade cognitiva do pensamento (Duval;
Moretti, 2012, p. 269).
Na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural e da Educação
Desenvolvimental esse mesmo pressuposto se caracteriza como a heurística,
ou seja, a capacidade de buscar soluções para problemas de forma criativa e
autônoma, é vista como um elemento crucial no desenvolvimento cognitivo
da criança. A heurística está relacionada à capacidade de explorar, experimen-
tar, errar e aprender com os próprios erros, favorecendo assim a construção de
conhecimento e a superação de desafios.
Nesse contexto, as atividades educacionais devem proporcionar opor-
tunidades para que os alunos desenvolvam suas habilidades heurísticas. Isso
pode ser feito por meio de atividades que estimulem a investigação, o racio-
cínio lógico, a resolução de problemas, atividades colaborativas e tomada de
decisão, permitindo que as crianças se envolvam ativamente na construção
do conhecimento.
Na sequência, foram tecidas as inferências e interpretações acerca da
atividade desenvolvida com o jogo Tangram. Foram levadas em considera-
ção algumas temáticas a saber: a intencionalidade pedagógica, a mediação,
a interação e o processo de ensino e aprendizagem, tendo o jogo Tangram
como percursor da compreensão do conceito de geometria. De acordo com
Oliveira (2009) a geometria é algo rotineiro, estamos cercados por percepções
geométricas que podem ser observadas em objetos, construções, na natureza,
entre outros:
A importância de se estudar geometria explica-se pelo fato de que ao lon-
go da história da humanidade essa se fez presente no cotidiano dos povos,
estando também presente no meio em que estamos inseridos, tornando
assim importante a exploração dessa área da matemática de maneira clara,
133
possibilitando a compreensão de seu significado pelo educando (Oliveira,
2009, p. 04).
As Habilidades trabalhadas durante as jogadas foram: classificar e com-
parar figuras planas (quadrado, retângulo, triângulo, trapézio e paralelogra-
mo) em relação a seus lados (quantidade, posições relativas e comprimento)
e vértices. Sendo o objetivo: compor e decompor triângulos e quadriláteros,
analisando suas diferenças e propriedades. Para Oliveira (2009):
A geometria é o ramo da matemática que contribui para o desenvolvi-
mento do raciocínio lógico, da percepção das formas e da sensibilidade
para as artes, tendo em vista que a mesma está presente em todos os mo-
mentos importantes da vida da humanidade, seja na escola, no lazer, nas
brincadeiras ou em casa. É fundamental na aprendizagem, ampliando a
capacidade do pensar e do agir (Oliveira, 2009, p. 05).
No dia da observação a professora trabalhou o Tangram da seguinte
forma: primeiro ela realizou a proferição da lenda do Tangram em que um
imperador chinês, após ter quebrado um espelho tentou refazê-lo juntando
as peças, daí descobriu que poderia elaborar outras formas como animais,
objetos, flores, casas e assim foi descrevendo e ilustrando sua história durante
sua jornada. Depois ela explicou para as crianças, o passo a passo da constru-
ção do Tangram, por meio de dobradura, recordando com eles os conceitos
geométricos de figuras planas, lado, vértice, arestas, ângulos, diagonal, dentre
outras. Na sequência ela passou o vídeo que se encontra no link http://www.
youtube.com/watch?v=uIWonsPaaWY (aprox.4min.), também sobre cons-
trução do jogo, por meio de dobradura. Logo depois, colocou em prática
a mão na massa, realizando na prática cada etapa explicada anteriormente.
Distribuiu uma folha de papel Filipinho (criativo), muito utilizado para do-
braduras e artes com a técnica de mosaico. Depois iniciou a modelação da
dobradura do Tangram. Vejamos o Episódio a seguir:
Episódio 1 – (P1)
P: Vocês já fizeram a dobradura do Tangram?
A1: Não
A2: No primeiro ano eu estudei sobre o Tangram, mas não fiz ele.
134
P: Então prestem muita atenção e observem o passo a passo. Vamos fazen-
do juntos. Preparados?
Alunos: Sim!
P1: Qual a forma geométrica do papel colorido que vocês têm em mãos?
Os alunos permaneceram por alguns minutos em silêncio e depois um
deles respondeu:
A2: Acho que é um retângulo, é isso professora?
P1: Correto, muito bem! Agora, vocês terão que tirar um quadrado
dessa a partir dessa folha retangular. Vocês sabem como fazer isso? (16ª
Observação, 29/07/2021, grifo nosso).
As crianças ficaram em silêncio, e, começaram a dobrar a folha, tentan-
do obter um quadrado, mas não conseguiram. A professora prosseguiu com a
modelação como mostram as Figuras 10, 11, 12, 13, 14 e 15.
Figura 10 e 11 - Tangram por meio de Dobradura
Fonte: Registro de Pesquisa (2021)
Figura 12 e 13 - Tangram por meio de Dobradura
Fonte: Registro de Pesquisa (2021).
135
Figura 14 e 15 - Tangram por meio de Dobradura
Fonte: Registro de Pesquisa (2021).
Durante os procedimentos a professora utilizou alguns termos técnicos
presentes na geometria plana, ou seja, nas formas geométricas tais como:
linha, reta, segmento de reta, paralela, perpendicular, diagonal, entre outras.
Sempre mostrava cada movimento e nomeava as figuras geométricas que fo-
ram se formando após cada dobradura realizada. Durante suas explicações
foi andando pela sala auxiliando as crianças que não conseguiam realizar os
passos corretamente. Também solicitava aos alunos que tentassem encontrar
a forma correta de dobrar o papel para ir tirando as figuras geométricas do
quebra-cabeça Tangram. A figura que causou mais dificuldade em ser encon-
trada, pelas crianças foi o paralelogramo.
Depois ela elaborou alguns desafios a saber: 1- construa um triângulo
usando duas, três, quatro e cinco peças; 2- construa um quadrado usando
duas, três, quatro e cinco peças. Para finalizar, a professora deixou as crianças
criarem algumas figuras com as peças do Tangram, como mostram as figuras
16, 17, 18 e 19.
Figura 16 e 17 - Tangram por meio de Dobradura
Fonte: Registro de Pesquisa (2021).
136
Figura 18 e 19 - Tangram por meio de Dobradura
Fonte: Registro de Pesquisa (2021).
Nessa atividade desenvolvida pela professora, é possível perceber que
ela lançou mão de várias representações semióticas para formar o conceito
e compreensão do conteúdo de geometria, fazendo com que as crianças vi-
venciassem situações de aprendizagens diversificadas e lúdicas. As crianças
compreenderam que o Tangram é um quebra-cabeça de origem chinesa que
também pode ser chamado de jogo das sete peças. Aprenderam que ele é
formado por dois triângulos grandes (isósceles e congruentes), um triângulo
isóscele médio, um paralelogramo, um quadrado e dois triângulos pequenos
(isósceles e congruentes).
Enfim, durante as manipulações com as peças do Tangram, as crian-
ças observaram as formas bidimensionais, conhecidas como figuras planas.
Puderam classificar e nomear algumas figuras geométricas: triângulo, qua-
drado, paralelogramo. A utilização de materiais tangíveis na construção de
figuras geométricas foi uma prática valiosa para auxiliar os alunos na com-
preensão das formas geométricas e suas propriedades.
Considerações Finais
Esse artigo enfatizou a relevância dos jogos e atividades lúdicas como
recursos mediadores no processo de apropriação dos conceitos matemáticos,
com o foco na geometria e no pensamento espacial.
O Tangram se destacou como ferramenta eficaz, tanto lúdica quan-
to didática, no processo de ensino de geometria e pensamento espacial. Por
meio das atividades com esse jogo, os alunos foram desafiados a explorar for-
mas, reconhecer padrões e desenvolver habilidades de resolução de problemas
137
de maneira criativa, interativa, estimulante e colaborativa, tornando a apren-
dizagem da geometria mais prazerosa e motivadora para as crianças. Cabe
destacar que a professora desempenhou um papel fundamental ao propor
atividades desafiadoras e estimulantes, ao passo que promoveu reflexões sobre
os conceitos abordados.
Diante disso, a utilização do Tangram deve ser incorporada de forma
ampla e sistemática no ensino da geometria e pensamento espacial, tanto nas
escolas como parte do currículo regular, quanto em atividades extracurricula-
res e projetos educacionais.
Por fim, com o Tangram é possível abordar diversos conceitos matemá-
ticos tais como: frações, proporções, porcentagem, área, perímetro, figuras
geométricas planas e suas propriedades. Com o Tangram as crianças apren-
dem brincando e jogando. Também podem construir e ilustras diversas his-
tórias com esse objeto. Dessa forma o Tangram é um recurso que deve ser
introduzido por meio de atividades intencionais e dirigidas para auxiliar na
compreensão dos conceitos matemáticos citados acima.
Cabe ressaltar que na Pesquisa da tese de doutorado, que está em curso,
serão desenvolvidas Atividades Orientadoras de Ensino-AOE, por meio de
oficinas, onde será adotado o procedimento investigativo do Experimento
Didático-Formativo (EDF) para trabalhar o conceito de equivalência de fra-
ções utilizando o Tangram. Portanto, brevemente teremos os resultados de
nova pesquisa utilizando esse jogo como instrumento mediador da apropria-
ção dos conceitos de frações.
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139
Representações de Professores
Universitários sobre Avaliação
Luiz Felipe Garcia de SENNA34
Raquel Lazzari Leite BARBOSA35
Introdução
Este capítulo apresenta uma síntese da dissertação de mestrado intitulada
A avaliação da aprendizagem e seu papel na formação inicial de professores: re-
presentações docentes”, publicada em 2020. O objetivo da pesquisa foi mapear
as representações de professores universitários sobre a avaliação da aprendizagem
nos cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas, História e Letras de uma
Universidade Pública no Oeste Paulista. Utilizando uma abordagem qualitativa,
os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com nove
professores e análise de documentos oficiais produzidos por eles e seus pares.
Os encaminhamentos teóricos adotados reconhecem a avaliação como
uma prática social (Fernandes, 2009a) que transcende os ambientes escolares
e burocráticos, permeando a sistematização do conhecimento. Isso permitiu
analisar a avaliação da aprendizagem à luz dos conceitos de representação
social e práticas sociais de Chartier (1990), que destacam a influência das
percepções sociais na conduta e escolhas individuais. Essa perspectiva oferece
um panorama sobre como as práticas de avaliação se desenvolvem nos cursos
de formação de professores.
O estudo selecionou três cursos de um centro de formação de profes-
sores, equilibrados em número de professores e alunos, para comparar suas
34 Mestre. Universidade Estadual Paulista, Unesp, Campus de Marília/SP. luiz.senna@unesp.br.
35 Profª Drª Universidade Estadual Paulista, Unesp, Campus de Marília/SP. raquel.leite@unesp.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p139-162
140
perspectivas sobre avaliação e compreender melhor a dinâmica pedagógica.
Levou em conta a influência de vários fatores sociais, ambientais, históricos
e institucionais nas práticas avaliativas e nos resultados educacionais. O pro-
blema de pesquisa partiu exatamente da indagação sobre como os professores
dos três cursos de licenciatura selecionados concebem a avaliação e de que
maneira essas representações interferem em suas práticas. A hipótese inicial
compreendia que o modo pelo qual os docentes compreendem a avaliação
interfere no modo como eles desenvolvem o trabalho pedagógico. A pesquisa
desenvolvida contribuiu com a compreensão de como esses processos foram
se constituindo ao longo da trajetória dos participantes.
Entre os resultados alcançados, destaca-se que os professores apresen-
taram em suas falas características de diferentes vertentes avaliativas, o que
demonstra que a noção deles sobre o objeto em discussão não está baseada em
aprofundamentos teóricos e metodológicos estruturados, mas em vivências
pessoais dos diferentes períodos de formação em suas vidas.
Fundamentação Teórica
A fundamentação teórica da dissertação destrincha considerações teó-
ricas sobre a avaliação da aprendizagem, fazendo uma breve recapitulação
histórica dela, trazendo as principais funções e usos na atualidade. Tudo isso
a partir da organização desenvolvida por Guba e Lincoln (2011) e das con-
tribuições de Fernandes (2009a). Para sustentar as análises, apropriou-se de
conceitos de Chartier (1990) - tais como representação social, práticas sociais
e apropriação - e de Bourdieu (2017a) – como campo, capital cultural, habi-
tus, violência simbólica etc -.
Falar da avaliação enquanto prática social é estabelecer que ela tem
sua presença no cotidiano social e na história das relações humanas. Os pri-
meiros registros de avaliações formais são da China há mais de 2500 anos
(Fernandes, 2004), já a avaliação compreendida como informal tem uma re-
lação direta com o desenvolvimento da intelectualidade humana, é a partir da
consciência e da percepção das infinitas possibilidades que os sujeitos fazem
escolhas no cotidiano. A avaliação como conhecida na atualidade no meio
escolar foi popularizada pelos jesuítas a partir do século XVI, era uma prática
recorrente nas escolas religiosas, os exames eram vistos como meio de motivar
141
a aprendizagem. Esse papel da avaliação como meio de certificação das apren-
dizagens foi mantido e popularizado em todos os países, o Brasil enquanto
colônia teve forte influência do movimento jesuíta, que deixou suas marcas
na cultura, na organização social e no campo educacional. (Luckesi, 1999).
A expansão da educação para as camadas mais pobres nos países euro-
peus e latino-americanos nos séculos XIX e XX suscitaram a adoção de novos
mecanismos de seleção dos tidos como mais aptos para formação superior,
dessa maneira, muitas Universidades Europeias começaram a utilizar exames
para selecionar os estudantes no século XIX, igualmente, o procedimento
começou a ser adotado por instituições brasileiras no século XX.
Conforme apontado por Santos (2012), no contexto brasileiro, os exa-
mes de admissão nas instituições de Ensino Superior não visavam apenas
identificar candidatos capacitados, mas também funcionavam como meca-
nismos de reforço das desigualdades sociais. Enquanto as escolas de Educação
Básica direcionavam sua preparação para suprir as necessidades das indús-
trias, os vestibulares asseguravam o acesso privilegiado apenas aos pertencen-
tes às classes dominantes. A percepção de que os exames são utilizados nas
sociedades para legitimar desigualdades é discutida por Bourdieu e Passeron
(1992), que, ao analisar o contexto francês, propuseram a organização dessas
estruturas como meios de perpetuação das hierarquias sociais.
Como explica Nóvoa (2009), no século XX, as práticas avaliativas
nos espaços educacionais nos países ocidentais foram influenciadas por três
grandes movimentos. De início, por um movimento de base psicológica que
popularizou testes de inteligência e aptidões como os psicotécnicos. Após
a Segunda Guerra Mundial, houve uma expansão e democratização dos
sistemas de ensino, levando ao surgimento de estudos sociológicos sobre o
insucesso escolar e teorias da reprodução social, que impactaram a avalia-
ção em diversos países. Nas últimas décadas do século XX, perspectivas eco-
nômicas ganharam destaque, com organizações internacionais como a IEA
(International Association for the Evaluation of Educational Achievement) e a
OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico)
influenciando políticas educacionais voltadas para a qualificação de recursos
humanos para o desenvolvimento econômico e social. Essas influências fo-
ram acompanhadas por mudanças nos sistemas educativos para atender às
142
novas realidades, embora a pressão por resultados quantitativos tenha muitas
vezes levado a uma ênfase em modelos de ensino tradicionais, com avaliações
focadas em resultados e classificações, em detrimento da integração com os
processos de ensino e aprendizagem.
Os autores Guba e Lincoln (2011) resumiram as tendências avalia-
tivas durante o século XX em gerações avaliativas. A primeira, chamada de
Avaliação como Medida, teve influência da gestão científica de Frederick
Taylor no campo educacional, isso introduziu princípios como sistemati-
zação, padronização e eficiência, refletidos ainda nos sistemas educacionais
atuais. A busca por credibilidade científica naquele momento levou à uma
cultura escolar com ênfase na quantificação das aprendizagens, habilidades e
inteligência dos alunos, resultando em avaliações que classificavam e selecio-
navam sem considerar as experiências fora da escola.
Posteriormente, iniciada por Ralph Tyler, surgiu a geração da “Avaliação
como Descrição” como insatisfação à cultura avaliativa estabelecida. Focada
no acompanhamento do desenvolvimento dos alunos para identificar pontos
fortes e fracos, definindo objetivos para que os alunos os alcancem, permitin-
do aos professores avaliarem seu progresso. Essa abordagem ficou populariza-
da no cotidiano educacional, com práticas baseadas na definição de objetivos
e na descrição do sucesso ou insucesso dos alunos.
A terceira geração da avaliação educacional, também chamada de “gera-
ção da formulação de juízos de valor”, reconheceu a importância dos educadores
como agentes não neutros no processo avaliativo. Michael Scriven, em 1967,
destacou a distinção entre avaliação somativa (prestação de contas e certifica-
ção) e avaliação formativa (melhoria das aprendizagens). Autores como Bloom,
Hastings e Madaus enfatizaram a importância da avaliação formativa na prática
docente para lidar com as dificuldades de aprendizagem dos alunos. Essa gera-
ção ampliou as discussões sobre a avaliação da aprendizagem, com centros de
pesquisa nos Estados Unidos e Europa, e diferenciou abordagens behavioristas
(Watson) e cognitivistas (Piaget, Bruner e Ausubel) na avaliação formativa. O
behaviorismo enfatizou a observação e controle dos comportamentos dos alunos,
enquanto o cognitivismo focou nos processos de construção dos conhecimentos.
Ao longo das três gerações, a avaliação educacional evoluiu de uma vi-
são limitada para uma mais abrangente. No entanto, as limitações percebidas
143
até então continuaram, como influências de aspectos subjetivos, falta de con-
sideração para o âmbito extraescolar, dificuldades em lidar com a diversidade
e a dependência excessiva de testes. Apesar do progresso, as ideias das primei-
ras gerações estiveram distantes das realidades pedagógicas.
A quarta geração da avaliação educacional, proposta por Guba e
Lincoln (2011), representou uma ruptura epistemológica com as abordagens
anteriores. Intitulada como “Avaliação como negociação e construção”, essa
geração reconhece a importância do contexto e do momento histórico espe-
cífico na definição dos processos avaliativos, enfatizando que esses processos
podem não ser universais e devem ser adaptados às necessidades locais. O
diálogo entre professores e alunos é central para essa abordagem, uma vez que
todos podem participar ativamente da construção dos saberes pedagógicos no
ambiente escolar.
Conforme Fernandes (2009a), as premissas fundamentais da quarta
geração incluem: o compartilhamento do poder de avaliar entre professo-
res e alunos; integração da avaliação no processo de ensino e aprendizagem;
priorização da avaliação formativa para melhorar e regular as aprendizagens;
importância do feedback em várias formas para integrar plenamente a ava-
liação no processo educacional; ênfase na função da avaliação em ajudar as
pessoas a desenvolver suas aprendizagens em vez de julgá-las ou classificá-
-las; reconhecimento da avaliação como uma construção social que considera
contextos, negociação, envolvimento dos participantes, construção social do
conhecimento e processos cognitivos, sociais e culturais na sala de aula; e uti-
lização predominante de métodos qualitativos na avaliação, sem excluir o uso
de métodos quantitativos. Essa abordagem representa uma visão mais ampla
e integradora da avaliação, alinhada com princípios construtivistas e voltada
para a participação ativa dos envolvidos no processo educacional.
A quarta geração da avaliação educacional, representada por autores
como Guba, Lincoln, Allan, e outros, apresentou uma abordagem alterna-
tiva às gerações anteriores, incorporando princípios do cognitivismo, cons-
trutivismo e teorias socioculturais. Essa abordagem enfatiza interações entre
os sujeitos, aspectos psicológicos, ambientais, sociais e culturais, com foco
em aprendizagens contextualizadas e motivadoras. As avaliações dessa ge-
ração são interativas, contextualizadas e transparentes, visando melhorar as
144
aprendizagens dos estudantes, constituindo uma alternativa à avaliação psi-
cométrica de raiz behaviorista.
Fernandes (2009a), fala também da avaliação formativa de raiz
behaviorista, que ocorre de maneira retroativa, ou seja, ela analisa o nível
de aprendizagem depois dos processos e não durante. Por isso, ele marcou
uma distinção entre a avaliação formativa de raiz construtivista e a de raiz
behaviorista por meio da Avaliação Formativa Alternativa (AFA). A AFA é
um processo pedagógico integrado ao ensino e à aprendizagem, cuja prin-
cipal função é regular e melhorar as aprendizagens dos alunos, promo-
vendo uma compreensão profunda e o desenvolvimento de competências
cognitivas e metacognitivas. Esse pressuposto, que enfatiza a avaliação
como um meio de melhorar as aprendizagens dos alunos através de uma
abordagem contextualizada e dialógica, está alinhado com o adotado por
este trabalho. A compreensão da avaliação como um meio de promover
a emancipação dos sujeitos é ressaltada, reconhecendo a diversidade pre-
sente na realidade pedagógica.
O imaginário professoral sobre a avaliação da aprendizagem é construí-
do a partir de aspectos do cotidiano, vivências formativas e profissionais. A
partir de Chartier (1990), pode-se dizer que as experiências pessoais moldam
as representações sociais sobre avaliação, assim como diferentes grupos sociais
e indivíduos atribuem significados distintos às práticas, ideias, aos conceitos
e valores, refletindo uma constante ressignificação desses elementos. Dessa
forma, o conceito de apropriação destaca a criatividade e inventividade pre-
sentes nos processos de recepção e interpretação, enfatizando a importância
de considerar as diversidades nas percepções sobre a avaliação.
Este trabalho adota o conceito de representação conforme definido por
Chartier (1991), baseado na ideia de “representação coletiva” de Durkheim e
Mauss, mas com uma abordagem particular e historicamente determinada. Essa
definição articula três modalidades de relação com o mundo social: o trabalho de
classificação e recorte que produz diferentes configurações intelectuais da realida-
de; as práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social e simbolizar
um estatuto; e as formas institucionalizadas que marcam a existência de grupos
ou comunidades. Essas modalidades que são partes da construção das representa-
ções sociais também podem ser percebidas na formação de professores.
145
Durante sua formação, os professores entram em contato com diferentes
ideias sobre ensinar, aprender e avaliar, fazendo escolhas e atribuindo valores, o
que contribui para a construção de suas representações. Essas representações in-
fluenciam suas ações no dia a dia, refletindo suas posições e influenciando suas
relações com os outros e com os espaços que integram. Como resultado desses
processos, os professores se afirmam dentro de determinados grupos sociais e
perspectivas de ensino. As identidades sociais dos professores são construídas
em meio a conflitos entre diferentes representações existentes em seu meio. Na
dinâmica da sala de aula, as hierarquias se manifestam de forma sutil através
de vários elementos, como a disposição dos alunos em fileiras ou círculos em
relação ao professor, a gestão do tempo escolar e a participação dos alunos, bem
como a divisão em grupos com base em características percebidas ou interações
cotidianas. Esses fatores variam em cada lugar, refletindo a visão de cada profes-
sor. A construção das identidades sociais ocorre paralelamente à construção do
mundo social, através de processos de adesão ou resistência às diferentes formas
de ocupar e compreender os espaços.
A incorporação dos indivíduos aos grupos sociais por meio de práticas,
gostos e consumos resulta em divisões sociais, onde os indivíduos podem ou
não incorporar representações da estrutura social dominante. Essas visões po-
dem negar ou validar signos visíveis que representam poder ou identidade,
como a autoridade do professor ou a função das instituições educacionais na
formação de uma elite intelectual ou na integração de diferentes grupos sociais.
Em todas as esferas da vida social há diferenciações entre os sujeitos, esses pro-
cessos se dão dentro do que Bourdieu (1983a) denomina como campo.
Esse conceito exemplifica as estruturas sociais, como, por exemplo,
presentes no campo educacional, onde as instituições de ensino são ce-
nários de disputas entre diferentes forças em busca de poder. Estas forças
são representadas pelos grupos e indivíduos que detêm diferentes visões
e interesses sobre as hierarquias sociais. Os embates presentes no campo
educacional refletem a luta pelo reconhecimento e pela legitimação de de-
terminadas formas de constituir o conhecimento e de interagir com ele. Os
indivíduos que fazem parte de um campo estão constantemente envolvidos
nessas disputas, tomando atitudes que se alinham ou se opõem às diferentes
forças e ideias em jogo.
146
Dentro de cada campo, há o que Bourdieu (1983a) denomina de
capital específico”, que consiste em um conjunto de práticas e conheci-
mentos reconhecidos como válidos apenas dentro dos limites desse campo
e que só podem ser convertidos em outros tipos de capital dentro de condi-
ções específicas. Além disso, existem hierarquias que separam os agentes de
acordo com seu poder e proximidade com o centro de domínio do campo.
Por exemplo, alunos e professores ocupam diferentes posições na hierarquia
escolar, o que influencia diretamente nas interações e nos processos de legi-
timação do conhecimento.
No entanto, muitas vezes, os embates nos campos educacionais não
geram mudanças significativas nas estruturas estabelecidas. O que importa,
nessas situações, é permanecer no jogo e evitar a exclusão. Isso pode ser obser-
vado quando os docentes simplificam os critérios avaliativos para “passar” os
alunos ou quando os próprios alunos memorizam e reproduzem os conteúdos
apenas para obter boas notas, sem realmente internalizarem os conhecimen-
tos. Essas ações resultam em “exclusões dóceis”, onde os sujeitos são mantidos
dentro das instituições de ensino, mas sem adquirirem os conhecimentos
mínimos necessários para adentrar aos lugares que o diploma desejado ga-
rantiria. Esses processos de exclusão estão relacionados com situações de do-
minação e “domesticação” dos sujeitos, caracterizados por Bourdieu (2003)
como violências simbólicas. Estas violências podem ter origem em questões
econômicas, sociais, psicológicas e até mesmo na imposição de discursos ou
poderes dominantes. Em situações de ensino, por exemplo, elas aparecem
quando os estudantes internalizam qualidades negativas sobre si mesmos ou
sobre seu potencial para o estudo, o que os impede de desenvolver plenamen-
te seu potencial acadêmico.
A violência simbólica, como definida por Bourdieu (2003), é uma
forma de violência suave, insensível e invisível para suas próprias vítimas,
exercida essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e
do conhecimento. Os alunos e até mesmo os professores muitas vezes não
percebem que estão sendo vítimas dessa violência, já que ela pode ocorrer
de maneira indireta, por meio da precarização da profissão docente, da or-
ganização curricular e dos processos avaliativos, que acabam reproduzindo e
perpetuando as desigualdades sociais existentes na sociedade.
147
Bourdieu (2017b) destaca ainda como as instituições escolares contri-
buem para a preservação das desigualdades sociais ao legitimarem o abismo
de oportunidades entre os jovens de diferentes realidades socioeconômicas,
sob o discurso da meritocracia. O simples acesso às instituições escolares não
é garantia de sucesso formativo, já que os processos avaliativos institucionais
tendem a favorecer os alunos provenientes de escolas com melhores estrutu-
ras, enquanto eliminam os demais. Isso é especialmente relevante no contex-
to das licenciaturas, onde os professores têm o papel crucial de preparar todos
os alunos para a profissão docente, independentemente de sua origem social,
e não apenas selecionar aqueles considerados mais preparados com base em
critérios subjetivos.
O conceito de campo de Bourdieu oferece uma lente analítica pode-
rosa para compreender as dinâmicas presentes nos campos educacionais e
como elas reproduzem e perpetuam as desigualdades sociais, evidenciando
a importância de repensar as práticas pedagógicas e as políticas educacionais
visando uma educação mais inclusiva e equitativa.
Essa discussão também engloba o conceito de capital cultural (2017c), pois
ele desempenha um papel significativo no desempenho acadêmico e profissional
dos indivíduos, além de influenciar a percepção dos professores em relação aos
alunos. O nível de capital cultural de um aluno está intimamente relacionado ao
seu sucesso escolar e aos resultados obtidos em sua jornada educacional e profis-
sional. Esse capital é moldado por diversos fatores sociais, familiares, econômicos
e contextuais que cercam o indivíduo e o grupo ao qual pertence.
O capital cultural se manifesta em três formas distintas: incorpora-
do, objetivado e institucionalizado. O incorporado se refere aos processos
de inculcação recebidos desde a infância, influenciando o comportamento,
a linguagem e as interações sociais dos indivíduos. O objetivado consiste na
acumulação de bens culturais materiais, como obras de arte e livros, que po-
dem ser utilizados como recursos em diferentes contextos sociais. Já o capital
cultural institucionalizado é representado pelos certificados e diplomas que
validam o conhecimento acumulado, conferindo ao sujeito reconhecimento
e status dentro da sociedade.
No entanto, é importante ressaltar que esses conceitos não determi-
nam de forma absoluta o sucesso ou o fracasso dos indivíduos. A posição
148
social da família e a quantidade de capital cultural que um aluno incorpora
desde cedo podem influenciar seu percurso educacional, mas não o deter-
minam por completo (Charlot, 2003). Muitos alunos de classes populares
conseguem obter sucesso acadêmico, enquanto alguns estudantes de classes
médias, apesar de receberem investimentos econômicos significativos, podem
não alcançar os mesmos resultados. O sucesso ou fracasso dos indivíduos não
é apenas resultado das desigualdades sociais existentes, mas também está rela-
cionado a fatores individuais, experiências singulares e interpretações pessoais
da realidade. O cotidiano social é marcado por escolhas individuais, expe-
riências únicas e maneiras próprias de interpretar a realidade, todas as quais
influenciam o trajeto dos sujeitos ao longo de suas vidas.
No contexto educacional, o capital cultural institucionalizado é objeto
de constantes embates. A democratização do acesso a determinados certi-
ficados pode levar à desvalorização desses títulos, pois a demanda por eles
nem sempre acompanha o aumento do número de diplomados. Os grupos
detentores desses certificados podem adotar estratégias para preservar seu va-
lor, como limitar o acesso a instituições de ensino ou controlar o número de
alunos por turma.
O conceito de capital cultural oferece uma perspectiva ampla para
compreender as dinâmicas sociais e educacionais, destacando a importância
dos contextos sociais e familiares na formação dos indivíduos, ao mesmo
tempo em que reconhece a complexidade e a individualidade dos percursos
formativos de cada pessoa. Junto ao capital está o conceito de habitus, con-
junto de disposições internalizadas, que reflete as diferentes formas de capital
que os indivíduos possuem e que são acumuladas ao longo de suas vidas. Por
exemplo, o habitus de uma pessoa de classe média pode refletir um maior
acesso ao capital cultural, manifestando-se em preferências estéticas, padrões
de comportamento e modos de expressão que são socialmente reconhecidos
e valorizados. Assim, o habitus também está ligado ao capital econômico e
social, influenciando as maneiras pelas quais os indivíduos lidam com recur-
sos financeiros e estabelecem conexões sociais. O habitus funciona como um
elo entre os diferentes tipos de capital, moldando as práticas e escolhas dos
indivíduos de acordo com as estruturas sociais nas quais estão inseridos.
O modo como os professores abordam a avaliação revela suas crenças
149
e valores sobre o ensino e a aprendizagem. A escolha de atividades e critérios
de avaliação expressa as prioridades dos professores, refletindo as suas repre-
sentações sobre o processo educativo. Essas representações moldam as expe-
riências dos alunos na sala de aula, influenciando na forma como percebem o
ambiente escolar e se identificam em diferentes grupos.
As relações pedagógicas estabelecidas entre professores e alunos criam
o que Silva (2005) definiu como habitus professoral e estudantil. Professores
reproduzem modos de ensinar, avaliar e expressar poder, enquanto alunos de-
senvolvem formas de reagir e responder a essas atitudes. O habitus professoral
se refere às práticas de avaliação, ensino e punição adotadas pelos professores,
influenciadas por suas próprias experiências e representações. Esse habitus é
transmitido aos alunos, que internalizam essas práticas e desenvolvem
seu próprio habitus estudantil, moldando suas atitudes em sala de aula. A
falta de alinhamento do habitus estudantil pode resultar em exclusão, varian-
do conforme diferenças institucionais e sociais. O que é relevante em sala de
aula impacta a formação de novos professores, influenciando a organização
escolar. Tanto professores quanto cursos de formação podem contribuir para
a reprodução ou ruptura de processos elitistas.
O problema surge quando as dificuldades dos alunos são condiciona-
das às representações dos professores, que podem tanto incentivar quanto
desmotivar os aprendizes. Por um lado, o trabalho pedagógico pode facili-
tar a apropriação de um habitus que promova sucesso pessoal e crescimento
cultural. Por outro lado, ele pode resultar em desinteresse dos alunos, seja
pela metodologia, seja pela falta de contextualização. A avaliação da apren-
dizagem, crucial nesse processo, confronta as representações dos alunos com
as dos docentes, moldando suas maneiras de ensinar e aprender. O estudo
das representações docentes, nesse contexto, é essencial para compreender a
dinâmica em constante movimento da instituição educacional.
Metodologia
A metodologia utilizada para desenvolver a pesquisa teve caráter qua-
litativo, começando pela escolha dos instrumentos utilizados: entrevista se-
miestruturada e análise dos Projetos Político-Pedagógicos (PPP) dos cursos.
A justificativa para essa escolha reside na necessidade de compreender as
150
representações dos professores sobre o processo educativo, bem como as dire-
trizes e objetivos dos cursos de licenciatura. O trabalho coloca em discussão
as possíveis relações entre as falas dos professores e diversas concepções de
avaliação com o intuito de compreender as representações, isso a partir dos
objetivos, da visão da avaliação como meio ou um fim, entre outras questões.
A partir das análises, constatou-se que dos nove professores entrevistados,
sendo três de cada curso, as contribuições dos três que lecionam disciplinas
pedagógicas, um de cada curso, seriam suficientes para desenvolver as discus-
sões, pois suas falas abarcaram questões colocadas pelos colegas.
A seleção dos três cursos se justifica por estarem em um importante
centro de formação, além de fornecerem materiais de diferentes áreas do co-
nhecimento e apresentarem um equilíbrio entre o número de professores e
alunos. A proximidade entre eles permitiu comparações entre as perspectivas
dos professores sobre avaliação, visando oferecer informações complementa-
res aos estudos educacionais e compreender melhor a dinâmica pedagógica
do lugar. A análise das representações dos professores levou em conta as con-
tradições existentes no ambiente da sala de aula, focando na perspectiva de-
les. O estudo reconhece que diversos fatores sociais, ambientais, históricos e
institucionais influenciam as práticas avaliativas e os resultados educacionais.
A entrevista semiestruturada permite uma abordagem flexível e apro-
fundada das diferentes visões dos professores sobre avaliação da aprendiza-
gem (Lüdke, 2004; Fernandes, 2009a), por meio dela, eles compartilharam
informações que poderiam não ter sido consideradas inicialmente no roteiro,
mas que emergiram durante o diálogo, sem desviar do tema central do es-
tudo. Para preservar a identidade dos participantes, eles foram identificados
por códigos compostos por letras representando o curso (B para Ciências
Biológicas, H para História e L para Letras) e o número 1 representando
a disciplina pedagógica: B1, H1 e L1. O professor de Ciências Biológicas
leciona uma disciplina que aborda a Filosofia da Educação; já o docente do
curso de História discute Políticas Educacionais e a organização da Educação
Básica; por fim, o de Letras trabalha com Metodologia de Ensino de Línguas
e Literaturas estrangeiras.
Após a realização das entrevistas, foi realizada as transcrições, conforme
Bourdieu (2012), essa fase apresenta desafios significativos, exigindo cuidado
151
meticuloso na sua execução. A transcrição foi realizada de maneira a apre-
sentar a maior proximidade possível ao conteúdo das gravações em áudio,
garantindo que as falas dos entrevistados não fossem descontextualizadas ou
distorcidas. Nesse sentido, a transcrição é mais do que uma simples transpo-
sição do oral para o escrito; ela representa uma verdadeira tradução ou inter-
pretação, conforme apontado pelo autor. A partir das transcrições, as análises
foram conduzidas, permitindo a organização e a identificação de aspectos
comuns e divergentes das ideias expostas pelos professores durante as entre-
vistas. Assim, a transcrição possibilita a análise detalhada e a interpretação
dos dados coletados.
Já a análise documental dos Projetos Político-Pedagógicos (PPP) dos
cursos trouxe um panorama sobre o lugar da avaliação da aprendizagem na
formação de professores nesses espaços a partir dos documentos oficiais. Os
PPPs representam as diretrizes que orientam o funcionamento das insti-
tuições de ensino, delineando objetivos, conteúdos e métodos pedagógicos
adotados (Libâneo, 2017; Lüdke; André, 2004). A análise dos documentos
revelou como a avaliação é abordada, quais são seus propósitos e funções, e se
é concebida de maneira justificada ou simplificada. Além disso, os PPPs re-
fletem a visão da instituição sobre a formação dos alunos e sua relação com a
sociedade, que pode envolver, ou não, um planejamento que considera a rea-
lidade social, econômica, política e cultural na qual estão inseridos. Portanto,
a análise documental serviu para compreender as diretrizes que orientam as
práticas de ensino, aprendizagem e avaliação dos cursos incluídos no estudo.
Resultados e Discussões
Para este trabalho foram selecionados alguns dos resultados da pesquisa de
dissertação. Da primeira seção, denominada “Avaliar para orientar”, discutir-se-á
sobre as percepções dos professores sobre as suas práticas avaliativas, os papéis
dados para a avaliação somativa e o impacto da avaliação percebido no progresso
dos estudantes. Da segunda seção, intitulada “Avaliação Dialógica”, abordar-se-á
as diversas funções atribuídas à avaliação pelos docentes, o papel do feedback em
suas abordagens e as dificuldades enfrentadas na utilização da avaliação.
Falar da avaliação como meio de orientar é discutir sobre o que os
professores entendem por avaliação e o que eles valorizam nos processos
152
pedagógicos. No início das entrevistas, os professores foram solicitados a
comentar o que entendem por avaliação, todos expressaram uma visão que
compreende a avaliação em duas etapas distintas que se assemelham ao
que Fernandes (2008) explica ser avaliação somativa e avaliação formativa.
Primeiro, ela foi descrita como um processo contínuo que ocorre ao longo
das disciplinas, depois, caracterizada pela quantificação pontual dos desem-
penhos dos estudantes. O professor B1 enfatizou a importância dessa segun-
da etapa, destacando-a como crucial devido à sua relação com a entrega das
notas à instituição. H1 complementou essa perspectiva ao afirmar que essa
fase da avaliação é aquela que resulta em um produto final mensurável. L1
expressou uma visão crítica, considerando a entrega das notas como uma
mera formalidade institucional e argumentando que o trabalho pedagógico
não pode ser reduzido a esse processo pontual de quantificação.
Quando questionados sobre a avaliação somativa ou classificatória, o
professor H1 disse que ela não faria sentido. B1 a abordou como uma prá-
tica ligada a uma abordagem tradicional de avaliação, na qual o foco está na
quantificação do conhecimento do estudante e na produção de instrumentos
de avaliação com esse fim. Ele observou a prevalência dessa abordagem em es-
colas e universidades, destacando o enfoque feito nas notas. Essa relação entre
avaliação e notas entregues à instituição pode ser analisada à luz do conceito
de capital cultural institucionalizado de Bourdieu (2017c), o qual enfatiza
a influência dos fatores sociais, familiares, econômicos e contextuais na for-
mação do capital cultural de cada indivíduo e grupo, e como isso se reflete
nas diferenças entre os sujeitos, incluindo sua origem social, o conhecimen-
to transmitido por seus tutores e o valor atribuído às instituições de ensino
pelo grupo social. A busca por uma boa nota é em si o desejo pelo capital
cultural objetivado, como explicado, trata-se da materialidade dos conheci-
mentos acumulados. Ainda assim, é necessário que o capital cultural esteja
incorporado, pois nas interações sociais, os conjuntos de modos de agir, falar
e expressar suas ideias podem legitimar, ou não, aquilo que foi objetivado.
As falas dos professores destacaram o quanto o processo de organização
da avaliação direciona o desenvolvimento das aulas, eles disseram que as pro-
postas avaliativas são apresentadas logo no início do curso, indicando uma
preocupação com a transparência e a participação dos alunos nesse processo.
153
Eles apresentam as atividades, os descritores e os objetivos de aprendizagem.
No entanto, o professor B1 deixou claro que realiza apenas ajustes indivi-
duais, mas não estende essa flexibilidade para todos.
Uma questão relevante levantada pelos professores H1 e L1 é a falta de
iniciativa dos alunos na apresentação de alternativas avaliativas. H1 atribui
essa passividade ao percurso escolar dos alunos, que pode ter limitado a ava-
liação às provas e aos trabalhos escritos. Para Silva (2005), essa visão restrita
da avaliação pode sim estar enraizada no habitus estudantil desenvolvido ao
longo da Educação Básica, pois o contexto interfere no imaginário estudantil.
Tanto o professor H1 quanto o professor B1 reconhecem a relação
entre percurso e habitus estudantil, mas em etapas diferentes da formação.
Enquanto o professor H1, que leciona no primeiro ano, associa a falta de
iniciativa dos alunos com a escolarização; o professor B1, que leciona nos úl-
timos anos, enxerga nos alunos uma predisposição à iniciativa, possivelmente
desenvolvida ao longo da graduação. Larrosa (2002) também fala sobre os
efeitos da formação escolar no percurso dos alunos, ele diz que é por meio da
experiência que eles desenvolvem novos hábitos e olhares sobre a realidade.
A experiência é definida como algo que afeta, toca e transforma as pessoas. A
vivência de uma experiência leva uma real transformação do ser.
Os professores H1 e L1 relataram vivências contrastantes no uso da
autoavaliação, H1 viu o instrumento servindo como meio de promoção da
maturidade, relacionando-a diretamente ao desenvolvimento de habilidades
necessárias para o exercício da docência no futuro. Também disse compreen-
der a influência da avaliação ao longo da vida escolar, ressaltando que as
percepções sobre avaliação podem ser moldadas pelas experiências acumu-
ladas ao longo desse percurso. L1 expressou preocupação com a tendência
dos alunos a se depreciarem durante a autoavaliação, sugerindo uma possível
desconexão entre a percepção dos alunos sobre seu próprio desempenho e as
expectativas do professor.
Essas visões podem ser relacionadas às concepções de Fernandes (2009b,
2009c) sobre como a avaliação deve ser um processo complexo e contextua-
lizado, que vai além da mera quantificação do desempenho dos estudantes.
Por um lado, H1 parece adotar uma abordagem que valoriza a autoavalia-
ção como uma ferramenta para o desenvolvimento pessoal e profissional dos
154
alunos, alinhando-se com a ideia de Fernandes (2009c) de que a qualidade
da avaliação está relacionada à sua articulação com objetivos claros. Por outro
lado, a preocupação de L1 com a autoavaliação negativa dos alunos pode
refletir uma percepção de que a avaliação não está cumprindo seu papel de
fornecer uma oportunidade de reflexão e percepção de aspectos tanto positi-
vos quanto negativos como partes do processo de aprendizagem.
As reflexões de H1 sobre a influência da escola nas percepções e expe-
riências dos alunos estão alinhadas com as teorias de Bourdieu (2017b) sobre
a transmissão e internalização de valores e práticas sociais pelas instituições
de ensino. A ênfase de H1 de fazer relações entre os conteúdos estudados
com a vida pessoal e profissional dos alunos também ressoa com a ideia de
Fernandes (2009d) de que as instituições de ensino desempenham um papel
crucial no desenvolvimento e bem-estar das pessoas, fornecendo oportunida-
des para romper com situações desfavoráveis e precárias a partir do desenvol-
vimento de um olhar crítico.
Parte dos processos que complementam essa discussão foram aborda-
dos na segunda seção, Avaliação Dialógica, destaca-se dela as diversas funções
atribuídas à avaliação pelos docentes, o papel do feedback em suas abordagens
e as dificuldades enfrentadas na utilização da avaliação. Essas considerações
partem do pressuposto de que a avaliação não é uma ciência exata nem uma
entidade separada, mas sim um instrumento utilizado para atingir uma va-
riedade de objetivos.
Nas entrevistas, os professores H1, L1 e B1 compartilharam suas per-
cepções sobre a funções da avaliação, refletindo suas representações sobre o
ensino, aprendizagem e o papel da avaliação nesses processos. H1 enfatizou
a importância da construção das próprias opiniões pelos alunos, relacionan-
do-a ao propósito do curso, seja formar profissionais ou cidadãos críticos. Ele
destacou a avaliação como um meio de promover esse processo de transfor-
mação dos estudantes em formadores de opinião, ressaltando a necessidade
de uma abordagem mais reflexiva, porém, o professor não comentou realizar
devolutivas com os estudantes, os alunos apenas participam das discussões
nas aulas, mas isso não significa que eles realmente se apropriaram das ideias
abordadas. Alain (2012), um autor de perspectiva conservadora, descreve o
ambiente educacional como uma oficina preparatória para a vida profissional
155
e pessoal, ele fala do professor como alguém responsável por passar orienta-
ções e dos estudantes como responsáveis por ouvir com atenção e absorver,
trata-se de uma situação pedagógica mais diretiva.
L1 destacou a função diagnóstica da avaliação, que ela pode ajudar na
compreensão do nível de aprendizagem dos alunos e no planejamento de es-
tratégias pedagógicas adequadas para atender suas necessidades. Alves (2015)
explica que a uma avaliação diagnóstica é realizada no início e ao longo do
curso para identificar os conhecimentos prévios dos alunos. Esta abordagem
complementa a avaliação formativa, que se concentra no acompanhamento e
na análise do progresso das aprendizagens dos estudantes.
B1 comentou que a avaliação deveria ser um meio de orientar pro-
fessores e alunos, mas ressaltou que isso acaba não correndo, pois tudo fica
centrado nos resultados. Ele destacou a importância de dar mais sentido e
dedicação às atividades avaliativas, reconhecendo a necessidade de uma co-
municação eficaz entre alunos e professores nesse processo.
Essa melhor comunicação pode ocorrer por meio do feedback, que
pode ser fornecido de diversas maneiras, como feedback coletivo oral, fee-
dback individual escrito, entre outros. Geralmente, os alunos recebem prin-
cipalmente o feedback na forma de nota final, que quantifica seu desempe-
nho em relação aos objetivos estabelecidos pelo professor. Fernandes (2009a)
destaca que o feedback individual oral ou escrito é mais eficaz, pois permite
uma abordagem personalizada, incentivando os alunos a refletirem sobre seu
próprio progresso.
O professor B1 disse realizar feedback de forma geral e oral, comentou
que antes costumava fazer de maneira individual escrito, mas que isso era
muito trabalhoso. Ele reconhece essa mudança como uma deficiência em sua
prática, percebendo que antes era uma qualidade oferecer orientações e co-
mentários individuais aos alunos. O feedback individual e escrito é valorizado
por sua capacidade de fornecer orientações específicas sobre o desempenho e
trabalhos dos alunos. Isso está alinhado com uma prática avaliativa formativa,
onde os alunos recebem orientações sobre como melhorar com base em seu
estado de aprendizagem.
L1 justificou que as exigências burocráticas dificultam um trabalho
focado nas necessidades individuais dos estudantes. No primeiro semestre,
156
ele não realiza feedbacks devido ao uso exclusivo de provas escritas no final do
semestre, que, segundo ele, inviabilizam essa prática. Nos demais semestres, as
atividades mais dinâmicas permitem que os alunos recebam devolutivas nas
aulas. L1 ressaltou que sua disciplina é teórica e de supervisão, com um tempo
considerável dedicado a tirar dúvidas práticas dos alunos. Ele expressou insa-
tisfação com suas devolutivas, reconhecendo a dificuldade de realizá-las devido
ao grande número de alunos. Em disciplinas optativas com turmas menores,
ele realiza avaliações individuais e autoavaliações escritas após conversar indivi-
dualmente com cada aluno. Sempre que possível, ele utiliza seminários e pro-
duções textuais, responsabilizando os alunos por apresentações e comentários
sobre as atividades dos colegas. Após as devolutivas, alguns alunos buscam tirar
dúvidas, mas muitos são descritos como passivos e pouco questionadores, o que
é lamentado pelo professor como uma oportunidade perdida para um engaja-
mento mais profundo com o processo de aprendizagem.
B1 listou desafios para realizar feedbacks individuais, mencionando
especialmente seus múltiplos compromissos e o grande número de alunos.
Ele reconheceu isso como uma deficiência pessoal e expressou o desejo de
voltar com a prática, destacou que as experiências anteriores com feedbacks
foram positivas, pois permitiram estabelecer vínculos mais profundos com
os alunos e criar um ambiente de diálogo. Uma avaliação formativa pro-
porciona aos alunos a oportunidade de expressar suas opiniões e contribui
para o fortalecimento da relação entre professor e estudantes. No entanto,
o Professor B1 geralmente comenta algum assunto com mais ênfase a partir
das demonstrações de incompreensão dos estudantes, o que nem sempre
ocorre nas aulas.
O Professor H1 salientou que não adota a prática de fornecer feedbacks.
Ele explicou que os trabalhos escritos são entregues no final do semestre, o
que torna impraticável a realização de feedbacks nesse momento. Além disso,
apontou que apenas os alunos com maus resultados tendem a procurá-lo,
o que considera um problema. Para H1, feedback é uma atividade que deve
partir da iniciativa dos estudantes durante o semestre, ficando ele disponível
apenas para tirar dúvidas pontuais. Ele percebe a nota como uma devolutiva
limitada do desempenho dos alunos, pois não fornece detalhes sobre os erros
cometidos e as áreas que precisam ser melhoradas. O professor descreve a
157
ausência de feedbacks de sua iniciativa como um erro seu, mas explica que isso
se dá pelo modo como o trabalho é desenvolvido.
Essa abordagem de ensino, sem feedbacks, reflete uma visão apriorista,
na qual os estudantes são vistos como capazes de alcançar os saberes neces-
sários por conta própria. No entanto, essa abordagem pode deixar muitos
alunos perdidos e incapazes de atender às expectativas do professor. A prática
de fornecer feedbacks é fundamental para uma abordagem formativa da ava-
liação, do ensino e da aprendizagem, contribuindo para o desenvolvimento
e crescimento dos alunos. Fernandes (2009a) pontua a responsabilidade dos
docentes de promover os feedbacks.
O alto número de estudantes e os compromissos dos professores uni-
versitários foram apresentados como exemplos de dificuldades para o desen-
volvimento de práticas avaliativas mais formativas e contextualizadas. Na
perspectiva do professor da Licenciatura em Ciências Biológicas, as dificul-
dades na avaliação dos alunos residem também na falta de participação e
colaboração por parte de alguns. Ele atribuiu essa falta de engajamento tam-
bém à possível falta de simpatia dos alunos pelo conteúdo, resultando em
uma participação física sem envolvimento nos debates. Sua maior preocu-
pação está em encontrar maneiras mais rigorosas de avaliar os alunos menos
participativos, sugerindo a aplicação de critérios diferenciados para medir o
desempenho desses alunos. Ele busca responder ao desinteresse dos alunos
com uma abordagem mais rigorosa, incluindo advertências públicas para os
grupos menos envolvidos, na esperança de reorientá-los durante o curso. O
professor acredita que esse rigor adotado por ele pode manter os alunos par-
ticipativos e ajudar a realinhar os que estão menos engajados.
No entanto, sua abordagem levanta questões sobre a eficácia de impor
um controle mais rígido sobre os alunos como resposta ao seu desinteresse.
Isso sugere uma abordagem mais disciplinar e coercitiva, em vez de estratégias
de engajamento e motivação que poderiam ser mais eficazes para lidar com
as dificuldades dos alunos menos participativos. Essa maneira mais rigorosa
de lidar com estudantes desinteressados sugere uma imposição de padrões
de comportamento que desconsideram as individualidades dos estudantes.
Essa atitude pode ser interpretada como uma forma de violência simbólica
(Bourdieu, 2003) na medida em que os alunos são coagidos a agirem de
158
maneira mais participativa, sem levar em conta os motivos que geraram o
desinteresse. Até porque no curso de Ciências Biológicas, a licenciatura é
opcional, sendo assim, os estudantes desinteressados, podem abandonar a
docência antes de a iniciar.
Essa falta de reflexão crítica sobre suas próprias práticas pode contri-
buir para a manutenção de um ambiente educacional pouco inclusivo e de-
mocrático, onde as diferenças individuais não são valorizadas nem respeita-
das. Portanto, a abordagem do professor B1, embora possa ser compreendida
como uma tentativa de promover o engajamento dos alunos, pode acabar
reproduzindo dinâmicas de poder e exclusão que são contrárias aos princípios
de uma educação verdadeiramente emancipatória.
Como demonstrado nas discussões, os professores têm expectativas sobre
como os estudantes devem agir no contexto de sala de aula. A trajetória acadê-
mica gera efeitos no habitus estudantil, logo, estudantes dos últimos ciclos de
formação têm mais facilidade em atender às expectativas dos docentes. Ainda
que os professores não afirmem incluir o comportamento como parte do pro-
cesso avaliativo, eles relataram que uma boa participação gera uma nota mais
positiva. Eles compreendem que a avaliação deveria ser um meio de promover
a aprendizagem dos alunos, diagnosticar necessidades e fornecer orientações
adequadas. No entanto, são observadas dificuldades na implementação dessas
práticas, especialmente em relação ao feedback individualizado, devido a fatores
como o grande número de alunos e múltiplos compromissos.
Considerações Finais
O objetivo deste capítulo foi apresentar alguns dos resultados de uma
pesquisa de mestrado que tratou de representações de docentes universitários
sobre a avaliação. De início, foram entrevistados nove professores, três de
cada curso de licenciatura, mas no decorrer das análises, constatou-se que
as contribuições dos três professores de disciplinas pedagógicas, um de cada
licenciatura, abarcaram questões trazidas por todos, dando maior ênfase na
formação de professores. As análises dos Projetos Político-Pedagógicos dos
cursos serviram para contextualizar as discussões, os documentos trazem o
histórico dos cursos, do campus e os princípios norteadores deles. No caso
deste capítulo, focou-se nos dados resultantes das entrevistas.
159
Como mencionado anteriormente, esta discussão parte da ideia de que
a avaliação é uma prática social que vai além dos exames escolares, ocorren-
do tanto em situações cotidianas quanto em momentos formais (Fernnades,
2009a). A avaliação escolar não é neutra, pois os professores trazem consigo
um conjunto de conhecimentos e experiências que influenciam o proces-
so avaliativo, ainda que em diferentes níveis (Borudieu, 2017d). Da mesma
forma, os estudantes encaram os momentos de avaliação como desafios, po-
dendo resultar em experiências positivas ou negativas, dependendo da abor-
dagem adotada pelo docente.
Cursos de licenciatura são centros de formação de novos professores,
que serão futuros avaliadores de outros estudantes. Ainda mais, tratando-se
de centros de referência educacional. O trabalho desenvolvido no dia a dia
poderá tanto provocar e promover reflexões quanto perpetuar práticas exclu-
dentes (Silva, 2005). A partir do problema de pesquisa, que indagou como os
professores dos três cursos de licenciatura selecionados pensam a avaliação e
como isso afeta as suas práticas, chegou-se na conclusão de que os professores
conhecem a avaliação e seus diversos empregos, mas não de maneira me-
todológica e teoricamente sustentada. Eles mencionaram instrumentos que
facilitam o trabalho com um maior número de estudantes, como seminários,
provas e trabalhos escritos, mas explicaram que não conseguem realizar devo-
lutivas sobre os resultados dos estudantes.
Todos demonstram insatisfação ou incômodo com as atribuições de
notas e mensurações das aprendizagens dos estudantes, relataram dificulda-
des em desenvolver processos mais formativos. Em uma sociedade organizada
por meio de hierarquias sociais, as notas e certificações institucionais funcio-
nam como meios de legitimar o capital cultural objetivado, os estudantes e
professores estão inseridos em conflitos, ainda que suaves, de reconhecimento
e legitimação dos habitus tidos como mais pertinentes para os futuros edu-
cadores. Esses processos podem resultar em ampliação do repertório cultural
estudantil ou em exclusões dóceis e uma violência simbólica em que os es-
tudantes até passam pelo processo formativo, mas sem se apropriarem dos
aspectos valorizados pelo campo educacional (Bourdieu, 1983; 2003).
Os estudantes constroem suas representações acerca da avaliação e da
prática pedagógica por meio das vivências, das situações significativas que
160
vivenciam no percurso formativo. O feedback pode oportunizar reflexões sig-
nificativas para os envolvidos, desde que aplicado de maneira contextualizada
e alinhado aos objetivos de aprendizagem. Todos os docentes disseram ter
dificuldade em implementar a prática em suas aulas, principalmente pelo
grande número de estudantes e excesso de compromissos. Apenas o professor
L1 disse propor devolutivas entre os estudantes nas situações de apresentação
de seminários, ainda que oportuna, a situação não diminui a necessidade de
o professor oferecer essa devolutiva.
A questão principal é que a avaliação pode e deve servir como meio de
aprofundar vínculos com os estudantes e promover relações pedagógicas mais
leves, saudáveis e objetivas. Fazendo com que o habitus estudantil repercuta
sobre o habitus professoral dos futuros profissionais.
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163
Apontamentos sobre a Formatação do Circuito
Quilombola de Turismo do Vale do Ribeira e as
Contribuições do Instituto Sociombiental (ISA)
João Henrique Souza PIRES36
Introdução
Segundo a Lei de Diretrizes de Base (LDB) nº 9.394 de 1996, em seu artigo
1º, “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida fami-
liar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
A partir dessa compreensão ampla que a própria LDB dá aos processos
formativos que abrangem a educação, observa-se, com base em nossa trajetória
atuando junto às populações do campo, que, muitas vezes, os processos de for-
mação e de capacitação no meio rural, principalmente técnico, são realizados por
uma variedade de entidades, que não as instituições de ensino convencionais.
Observa-se que desde a reforma do Estado realizada durante o governo
de Fernando Henrique Cardoso (19295-2002), os serviços de assistência téc-
nica e extensão no meio rural, até então mais restritos a empresas estatais de
Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), além de passarem a contar com
uma diversidade maior de entidades ofertando serviços de capacitação e de for-
mação, também tiveram um aumento da variedade de propostas e de opções.
Há no Brasil uma série de entidades que fornecem apoio e assessoria
tanto no meio rural quanto no meio urbano, nas quais podemos destacar as
Organizações Não Governamentais (ONGs), Organização da sociedade civil
36 Doutor – Programa de Pós-Graduação em Educação – Faculdade de Filosofia em Ciências - PPGE/
FFC/UNESP – Câmpus Marília – e-mail: souza.pires@unesp.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p163-185
164
de interesse público (OSCIP), universidades, movimentos sociais, centrais
sindicais, fóruns nacionais e estaduais, instituições religiosas, entre outras.
Diante dessa realidade, o presente trabalho tem como propósito apre-
sentar parte da análise que realizamos sobre os procedimentos teóricos me-
todológicos de algumas entidades e organizações que contribuíram com a
formação e capacitação relacionadas ao desenvolvimento do turismo junto as
Comunidades Remanescentes de Quilombolas do Vale do Ribeira (CRQVR).
Considerando o universo mais amplo e histórico que abrange uma va-
riedade de entidades e organizações que, em algum momento, envolveram-
-se direta ou indiretamente com atividades e projetos relacionados a forma-
ção, capacitação e assistência junto às comunidades, delimitou-se para fins
desse artigo e pela sua importância no processo de elaboração do Circuito
Quilombola de Turismo Comunitário do Vale do Ribeira (CQTVR), o
Instituto Socioambiental (ISA).
Importante destacar que esse recorte faz parte da pesquisa que rea-
lizamos entre os anos de 2017 e 2021 para a elaboração de nossa tese de
doutoramento pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade
de Filosofia e Ciência (FFC) da Universidade Estadual Paulista (UNESP)37.
Por fim, a corrente trabalho está estruturado para além dessa introdu-
ção em mais dois tópicos e mais as considerações finais. No primeiro tópico
apresentamos de forma generalizada alguns apontamentos sobre o turismo e
a formação do CQTVR. No segundo apresentamos mais especificamente os
procedimentos metodológicos utilizados pelo ISA junto as CRQVR.
Apontamentos sobre Turismo e o Circuito Quilombola de Turismo do
Vale do Ribeira (CQTVR)
Consoante aos pressupostos da Organização Mundial do Turismo
(OMT) e adotados oficialmente pelo Brasil, o turismo está relacionado às
atividades que as pessoas realizam durante viagens e estadas em lugares di-
ferentes do seu entorno habitual, por um período inferior a um ano, com
finalidade de lazer, negócios ou outras” (Brasil, 2006, p. 04).
37 A pesquisa contou com financiamento e apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).
165
Definido normalmente como uma atividade vinculada à viagem e ao
lazer, o turismo enquanto uma atividade socioeconômica vem ganhando
certo espaço na literatura contemporânea, cursos e programas de graduação
começaram a ser direcionados para estudar as viabilidades e os impactos do
turismo. A diversidade de estudos e formas do turismo nos últimos anos
torna a sua compreensão bastante controversa e difusa: fala-se em turismo
de negócio, turismo de aventura, turismo religioso, turismo rural, turismo
gastronômico, um leque de definições que deixa sua compreensão volátil à
intencionalidade do pesquisador.
Enquanto disciplina e produto do conhecimento científico, quase sem-
pre é abordado a partir da disciplina que está sendo tratada: Administração,
Arquitetura, Economia, Educação, Psicologia, Sociologia, Geografia e
Turismo, dificultando compreender uma identidade própria para o tema
(Siqueira, 2005).
Em harmonia com esse cenário em que os estudos, políticas e investi-
mentos para a área de turismo ganham cada vez mais destaque em diferentes
lugares do globo terrestre, não há dúvida de que o turismo, enquanto uma
atividade socioeconômica, bem ou mal, é um fenômeno real na sociedade mo-
derna. Nesse sentido, mais interessante do que entender os tipos e mesmo os
benefícios ou malefícios do desenvolvimento desse fenômeno, parece-nos mais
importante demonstrar o processo histórico e as transformações políticas, eco-
nômicas e culturas que estabeleceram as condições reais para a sua consolidação.
A partir da eleição presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, o
turismo foi realçado como uma atividade com potencial para inclusão social e
como “alternativa socioprodutiva” para uma variedade de segmentos sociais,
incluindo as Comunidades Remanescentes de Quilombolas (CRQ). Diante
disso, atividades ligadas à cultura, ao lazer, à recreação, à preservação ambien-
tal passaram a ser incentivadas por diferentes instituições que realizam ações
na região do Vale do Ribeira.
Em 2003, com o início do governo Lula da Silva, o turismo deixa de ser parte
de outros órgãos federativos e, pela primeira vez, é elevado à categoria de Ministério.
Constituída pela relevância que o setor assume, o Ministério de Turismo (MTUR)
foi criado com a missão de desenvolver o turismo como atividade econômica autos-
sustentável em geração de empregos e de inclusão social (Brasil, 2016).
166
Considerando que, desde tempos mais remotos, devido particular-
mente aos seus bens naturais e culturais, o Brasil é apontado com vocação e
potencialidades para o desenvolvimento do turismo, com a criação da pasta,
compreendemos que essa vocação começa a ser operacionalizada de forma
mais elaborada e ampliada.
No mesmo ano, o MTUR lança sua Política Nacional de Turismo PNT
(2003-2007) com os seguintes objetivos gerais: a) Desenvolver o produto
turístico brasileiro com qualidade, contemplando as diversidades regionais,
culturais e naturais; b) Estimular e facilitar o consumo do produto turístico
brasileiro no mercado nacional e internacional.
Apesar do novo status na estrutura organizacional, o MTUR, através
do PNT, vai continuar com a racionalidade operacional de gestão descentra-
lizada e um suposto fortalecimento dos órgãos estaduais, regionais e munici-
pais, bem como, de parceria e terceirização de atividades de extensão, capaci-
tação, assistência técnica e formação.
Isto ocorre, no Brasil, em concordância com os objetivos da “Reforma
Gerencial” do Estado, promovida pelo ex-ministro Bresser Pereira no governo
FHC. Assim, a descentralização refere-se tanto ao processo de municipali-
zação ou descentralização administrativa – transferência de responsabilidade
dos órgãos federais para instâncias municipais -, quanto ao que Bresser Pereira
chama (enganosamente) de publicização – ou seja, transferência de respon-
sabilidade e funções para o setor privado e para as organizações do chamado
terceiro setor”, isto é, uma verdadeira privatização (Montaño, 2007, p. 192).
Destaca-se que a descentralização administrativa ou municipalização
significa a transferência de responsabilidade e competência dos órgãos fede-
rais para instâncias municipais e locais”, porém, sem os recursos correspon-
dente e/ou necessários (Soares, 2000 apud Montaño, 2007, p 193).
O Brasil se lança à sua suposta “vocação” para o turismo em uma for-
mação socioeconômica e territorial desigual, segmentada e com infraestrutu-
ra básica de saúde, segurança e moradia precárias, bem como, sem consolidar
um Estado de bem-estar que possibilitasse a massa de seus trabalhadores go-
zar de melhores condições de vida e de trabalho.
Assim, suponhamos que, a partir da constituição do MTUR, o Brasil
passou por um processo de massificação do serviço turístico embasado em uma
167
suposta vocação devido às suas belezas naturais e culturais, contudo, sem esta-
belecer as condições adequadas de desenvolvimento social e de infraestrutura.
A ideologia da vocação turística, em nosso ponto de vista, deve ser com-
preendida como uma forma de reedição do velho determinismo am-
biental, sistematizado e divulgado no século XIX pelo geógrafo alemão
Frederic Ratzel. Repete a mesma procissão histórica dos determinismos
anteriores, com a diferença de que agora não são mais a extração de ri-
quezas e a produção de mercadorias industriais que fazem nossa “ordem e
progresso”: agora, basta vendermos nossa paisagem natural, já que temos
um povo “naturalmente” receptivo (Ouriques, 2005, p. 126).
Observa-se que o turismo, ocupando lugar estratégico no plano de de-
senvolvimento do governo, talvez devido a sua dinâmica e à diversidade de
setores que mobiliza, foi utilizado como um dos principais pilares suposta-
mente propulsores do desenvolvimento social e econômico do país.
Diante desse contexto, o turismo, além de oferecer o gozo e o relaxamen-
to, foi proposto de forma generalizada e sob uma lógica empreendedora como
alternativa para geração de trabalho e de renda em diversas localidades que não
estavam diretamente transformados para o consumo turístico, dentre as quais,
destacam-se o meio rural e particularmente os territórios das CRQVR.
O Vale do Ribeira, região localizado entre dois dos estados mais ricos
do Brasil, abrangendo respectivamente parte do leste paranaense e o sudoeste
de São Paulo, em sua porção paulista, área de abrangência desta pesquisa,
além de abrigar a maior quantidade de territórios remanescentes de quilom-
bos do estado, comporta os mais importantes remanescentes contínuos de
Mata Atlântica do território nacional.
Em meio a uma totalidade mais ampla em que as questões ambientais
vão ganhando cada vez mais espaço político, sobretudo, a partir da década de
1980, no Vale do Ribeira, região onde está localizada a maior área contínua do
bioma original do que resta da Mata Atlântica, ocorreu um aumento significa-
tivo de áreas de proteção ambiental e de Unidades de Conservação (UC).
Tal processo, de forma contraditória, ao mesmo tempo em que foi for-
talecendo a questão ambiental na região e atraindo diferentes entidades e mo-
vimentos de proteção ambiental exógenos para a região, enfraqueceu o debate
no território sobre a reforma agrária e a situação fundiária das comunidades
168
na região. Estas, por sua vez, passaram a colher um sentimento de que os
ambientalistas traíam seus interesses (Romão et. al., 2006; Todesco, 2007).
Em relação às Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQ),
as questões ambientais e o aumento significativo de UC na região, além de
apresentarem elementos que vão complexificar a luta e os procedimentos para
a titulação de seus territórios devido à sobreposição das áreas, impuseram,
por meio da legislação ambiental, várias restrições às roças de subsistência,
limitando suas práticas agrícolas e o extrativismo.
Carregados por uma lógica de ocultamento e desconsideração repro-
duzida historicamente em relação aos grupos subalternas na região, a ação
estatal e as novas restrições ambientais passaram a prejudicar a reprodução do
modo de vida e as práticas de produção das CRQ que já ocupavam aqueles
territórios de mata densa ao longo do rio Ribeira de Iguape há séculos.
A contradição gerada pela forma autoritária como a fiscalização am-
biental foi imposta na região foi de tal tamanho que, segundo o Relatório
Técnico Científico (RTC) da CRQ São Pedro, além de prejudicar as práticas
tradicionais de manejo das comunidades, que ficaram impedidas de abrir
novas roças, potencializou a extração clandestina e predatória do palmito e
não garantiu a proteção ambiental, pelo contrário, ainda que indiretamente,
incentivou a devastação da floresta (São Paulo, 1998).
Compreende-se que tanto a ação estatal imposta à CRQ, proibindo
a instalação de suas roças e restringindo o uso dos recursos naturais de seus
territórios, bem como, conforme Capobianco (2004) e Todesco (2007), o
aumento do ativismo ambiental e da atuação de diferentes EA com uma
visão preservacionista, estão consubstanciados numa concepção que Diegues
(2001) descreveu como “neomito da preservação da natureza”.
Diante desse contexto em que a questão ambiental passou a ganhar
cada vez mais destaque no cenário político global, o Vale, por ter o maior
remanescente do pouco que resta da Mata Atlântica, atraiu a atenção e a pre-
sença de diversas entidades e ativistas ligados à questão ambiental.
Grande parte dessas entidades e ativistas, que eram exógenas ao ter-
ritório, tinham uma visão preservacionista que prejudicou o debate sobre
a reforma agrária, a titulação dos territórios quilombolas e a situação fun-
diária das comunidades da região, situação que gerou um sentimento de
169
desconfiança por parte das comunidades em relação aos interesses das enti-
dades ambientalistas.
Com certa mudança de paradigma que transfere a orientação de algu-
mas entidades para uma concepção mais conservacionista e de desenvolvi-
mento sustentável, o turismo vai cada vez mais sendo inserido no contexto do
Vale como uma possibilidade de desenvolvimento sustentável.
Nesse cenário que conta também com incentivos estatais, quilombolas
de diferentes comunidades da região, aproveitando as possibilidades dadas
por meio de projetos e cursos, vão se aproximando do debate e se inteirando
de um conhecimento mais sistematizado sobre o turismo.
Com base nas visitas que realizamos e nas referências que consultamos
sobre o turismo na região, considera-se que os quilombolas começaram a ter
contato com um conhecimento mais elaborado sobre o turismo, bem como
uma compreensão de desenvolvê-lo como uma alternativa socioeconômica, en-
tre outros fatores, devido à realização das roças estarem prejudicadas pela fisca-
lização ambiental e pelos cursos ofertados por diferentes grupos e organizações.
Apesar de reconhecermos certo interesse estatal em potencializar o tu-
rismo na região, como também as ações dos diferentes grupos e organizações
atuando na proposição de diagnóstico, capacitação e planejamento para o
desenvolvimento do turismo na região, constata-se certa ausência de atuações
direcionadas mais especificamente aos quilombolas.
A partir dos trabalhos de Todesco (2007), Aguiar e Souza (2017),
Santana (2008) e da entrevista com iago Marques do Oliveira (analista
de desenvolvimento agrário do Itesp) em 2018, observa-se que a atuação das
entidades na promoção do ecoturismo nesse período que abrange a transição
do século XX para o século XXI, além de ser bastante pontual, estava muito
influenciada pela ideia da promoção da “mercadoria paisagem”.
Nesse momento em que o turismo, em especial o ecoturismo, vai ga-
nhando espaço na região, as ações, apesar de trazerem uma alusão ao desen-
volvimento sustentável, tinham uma compreensão mais voltada à promoção
e ao preparo do território com trilhas, cavernas, cachoeiras e natureza conser-
vada, para o consumo “consciente” da mercadoria ecoturista.
Tanto as ações estatais como das demais organizações e grupos que
atuavam com a promoção do ecoturismo na região foram sob uma lógica de
170
transferência do conhecimento, de promoção de oficinas e de capacitação,
que forneceu um primeiro conhecimento para alguns quilombolas sobre o
tema, ao passo que desconhecia e ou subjugava os interesses prioritários das
CRQ no território.
Buscando tratar mais especificamente sobre os elementos que con-
tribuíram para a elaboração do CQTVR, identificamos que o projeto
Programa Comunidades Quilombolas (PCQ) da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), desenvolvido pelo Grupo de Trabalho de Turismo
e Educação Ambiental (GTTEA), talvez tenha sido a primeira ação que
buscou trabalhar o turismo sob a especificidade dos remanescentes de qui-
lombos da região.
Com referência em Santana (2008), consideramos que a UNICAMP
por meio do PCQ, representa pela primeira vez a presença da Universidade
Pública como proponente e coordenadora de um projeto com o objetivo de
desenvolvimento do turismo articulado à educação ambiental, direcionado
especificamente para uma parcela organizada das CRQVR.
O GTTEA/PCQ/UNICAMP atuou com o tema no território entre
2005 e 2006, ainda no primeiro Governo Lula da Silva, destarte percebe-
mos que foi um contexto diverso de debates sobre o papel da universidade,
e particularmente da extensão universitária, articulada a outros temas como
tecnologia social, economia solidária e turismo de base comunitária.
Ainda que reconheçamos o GTTEA/PCQ/UNICAMP como um pro-
jeto importante, que iniciou um debate mais elaborado e crítico sobre o tu-
rismo com os quilombolas, foi alguns anos mais tarde, a partir da parceria
estabelecida no projeto coordenado pelo Instituto Socioambiental (ISA), que
as comunidades André Lopes, Ivaporunduva, Mandira, Pedro Cubas, Pedro
Cubas de Cima, São Pedro e Sapatu se organizaram em torno do Circuito
Quilombola de Turismo Comunitário do Vale do Ribeira (CQTVR).
O ISA, em articulação com as Associações das CRQ André Lopes,
Ivaporunduva, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, São Pedro e Sapatu, em
Eldorado, e Mandira, em Cananéia, que demonstraram interesse em apro-
fundar o conhecimento sobre as possibilidades e impactos do turismo, for-
mularam um projeto, que contou com apoio financeiro do MTUR, para
trabalhar o turismo nas comunidades.
171
Em entrevista, Raquel Pasinato (2018) explicando o desenvolvimento
do projeto, destacou que, num primeiro momento, foi realizado um processo
de formação, de pensar o turismo que eles queriam. Relatou que havia uma
grande preocupação com o potencial exploratório e consumista que o turis-
mo possui, e que, nesse contexto de estudos, o turismo de base comunitária
se apresentou como a alternativa mais adequada38.
Apesar das contradições intrínsecas ao turismo, por seguir uma lógica
oligopolista imposta pela mundialização do capital e, em alguma medida,
pela mercantilização do tempo e do espaço, Cruz (2009) destaca que o
turismo comunitário se apresenta como uma possibilidade e alternativa em
que as comunidades autóctones assumem o controle de seu desenvolvimen-
to nos territórios.
Durante a pesquisa empírica nos Quilombos Pedro Cubas, Pedro
Cubas de Cima, Sapatu e Ivaporunduva, entre 2018 e 2019, ficou evidente,
nas conversas com representantes das comunidades, que, além da possibili-
dade de gerar renda e trabalho particularmente para a juventude e para as
mulheres, apropriar-se do turismo também parecia ser essencial para manter
certo grau de autonomia e autocontrole dos territórios.
Compreende-se que o CQTVR foi resultado de uma proposta que ar-
ticulou a história de luta e resistência no e pelo território, com o reconheci-
mento do modo de vida dos quilombolas e com a preservação e manuten-
ção do patrimônio cultural e natural que cada comunidade possuía. Com
referência à apresentação descrita no livreto elaborado pelo ISA (2013) em
parceria com as Associações dos Quilombolas, observa-se que:
Esta é uma oportunidade única de fazer turismo de base comunitária e
ao mesmo tempo conhecer a cultura afro-brasileira, participando de seu
cotidiano, observando seus conhecimentos tradicionais, visitando as be-
lezas naturais e, principalmente, ouvindo as histórias de luta e resistência
das comunidades, que contribuem até hoje para preservar as riquezas da
sociobiodiversidade da região.
38 Entrevista realizada com Raquel Pasinato (Coordenadora do Programa Vale do Ribeira desenvolvido
pelo ISA), na sede do ISA na cidade de Eldorado-SP em 2018. Informamos que todas as referências
a Pasinato (2018) são referências a essa entrevista.
172
É evidente que os quilombolas, em alguma medida, têm consciência de
que uma parcela dos turistas que visitam as comunidades busca experiências
valorizando o romântico, o lúdico, o nostálgico, o rústico, a natureza preser-
vada e a folclorização da cultura, mas não é isso que eles buscam incentivar.
Seja por meio da auto-organização socioprodutiva dos quilombolas no
território, bem como da expressão de sua territorialidade, identifica-se um
movimento interessante e diferenciador quando se pensa no turismo, visto
que se contrapõe à lógica liberal burguesa de propriedade privada e de coisi-
ficação socioambiental.
Essas comunidades, que luta pela propriedade coletiva e não aliená-
vel, bem como pela soberania e auto-organização dos seus territórios, buscam
construir uma proposta de desenvolvimento do turismo contra hegemônico
e adequado a sua autodeterminação e aos seus interesses, ou seja, com fortes
características de não mercantilização.
Nesse sentido, compreendemos que o processo iniciado com o GTTEA/
PCQ/UNICAMP e particularmente do ISA com o Programa Vale do Ribeira
geraram elementos de mediações consideráveis para se construir uma alter-
nativa com e pelas comunidades. Em tempos de neoliberalismo, observamos
que a mediação/relação nesses casos estabeleceram elementos teóricos e prá-
ticos compromissados com a identidade e emancipação das comunidades,
criando espaços coletivos de estudos e de decisões sobre as possibilidades ou
não do turismo nas comunidades.
Com referência em Novaes (2012, p. 133), considera-se que o serviço
dessas entidades buscou romper como o modelo difusionista e de transferên-
cia tecnológica e desenvolveu-se com o objetivo de “fortalecer a capacidade
de gerar conhecimentos, já existente na comunidade – capacidade de questio-
nar, analisar e testar possíveis soluções para os próprios problemas”.
Para ilustrar de forma mais elementar essa nossa compreensão, apre-
sentamos no próximo capítulo uma parcela da análise que fizemos sobre a
atuação do ISA junto as CRQ e na elaboração do CQTVR.
173
As Contribuições do Instituto Sociombiental para Concepção do
CQTVR
Tendo como principal referência a entrevista que realizamos com
Raquel Pasinato (Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do Instituto
Socioambiental – ISA) em 2018, constata-se que o ISA nasceu em 1994,
fruto do desmembramento do Centro Ecumênico de Documentação e
Informação (CEDI).
Referência na temática socioambiental no Brasil, o ISA é uma entidade
sem fins lucrativos, constituída com os seguintes objetivos: defender bens e
direitos sociais, coletivos e difusos, relativos ao meio ambiente, ao patrimônio
cultural e aos direitos dos povos indígenas. Desde 2001, o ISA é uma Oscip
– Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – com sede em São
Paulo (SP) e subsedes em Brasília (DF), Manaus (AM), Boa Vista (RR), São
Gabriel da Cachoeira (AM), Canarana (MT), Eldorado (SP) e Altamira (PA).
Raquel Pasinato (2018) relata que os trabalhos do ISA se iniciaram mui-
to vinculados às questões indígenas, tanto que, até os dias atuais, os indígenas
são as principais populações atendidas pelo ISA, fazendo parte de todos os
programas da entidade, com exceção especialmente do Programa do Vale do
Ribeira, que tem os quilombolas como as principais populações atendidas.
Para sua atuação no território, o ISA se organiza por bacia hidrográ-
fica; dessa forma, além do Programa do Ribeira, o ISA tem o Programa Rio
Negro: abrangendo a bacia hidrográfica do Rio Negro e trabalhando, especi-
ficamente, com populações indígenas; e o Programa Xingu: abrangendo a ba-
cia do rio Xingu. Esse programa, além de assistir os povos indígenas, trabalha,
também, com extrativistas e populações ribeirinhas.
Para além dos programas de campo, Raquel Pasinato (2018) destaca,
também, o que eles denominam de programas meio: Programa de Políticas
Públicas e Direito, que fica em Brasília desenvolvendo atividades ligadas à
legislação, direito e políticas públicas; Programa de Monitoramento de Áreas
Protegidas, que fica em São Paulo com serviços de banco de dados, informa-
ção, produção de informação e monitoramento – portarias, conflitos sobre as
comunidades e UC, monitoramento de portarias e conflitos; e, também, em
São Paulo está a sede do ISA, que abriga os serviços de administração.
174
Abrangendo a bacia hidrográfica do rio Ribeira de Iguape, e atuando
especialmente com as comunidades remanescentes de quilombos, o Programa
Vale do Ribeira começou entre 1998-1999 em decorrência de uma ação que
se chamava Mata Atlântica, iniciativa que tinha como objetivo realizar um
diagnóstico socioambiental na região.
A proposta desse diagnóstico socioambiental buscou analisar o Vale do
Ribeira com o intuito de entender as características da região. Constatou-se
que na região, além de uma grande riqueza ambiental, havia muitas comuni-
dades tradicionais, dentre essas, os remanescentes de quilombos, que, apesar
de terem seus direitos reconhecidos desde 1988, eram um grupo muito desas-
sistido e que necessitava de assistência técnica e apoio, inclusive sobre a regu-
larização fundiária naquele espaço territorial permeado por uma série de UC.
Destaca-se que, nesse contexto, as comunidades estavam organizadas
na luta contra os projetos de barragens no rio Ribeira. Dessa forma, o ISA
também se insere nesse processo de luta contra a construção da barragem de
Tijuco Alto. Compreende-se que, a partir desse movimento, o ISA começa
a se aproximar de forma mais sistemática das comunidades, do MOAB e
da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do
Ribeira (EAACONE).
Com essa aproximação, o ISA começou também a oferecer assesso-
ria e assistência às comunidades. Partindo de procedimentos ligados à lógi-
ca do desenvolvimento local, iniciou um projeto de banana orgânica com
Ivaporunduva. Vale destacar que, por meio de parceria nesse projeto, o Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Alimentação (Nepa) da UNICAMP começou a
atuar na região. Além do Nepa/UNICAMP, o projeto contou também com
a participação do Instituto Biodinâmico (IBD), parceiro até os dias atuais.
Raquel Pasinato (2018) destacou que, a partir dos anos 2000, opor-
tunidades que surgiram por meio de iniciativas e políticas, principalmente
do governo federal, com a finalidade de apoiar pequenos projetos ligados às
comunidades tradicionais, contribuíram para a elaboração de propostas mais
abrangentes, abrindo caminho para discutir melhor as prioridades e questões
de organização, gestão e planejamento a médio e longo prazo.
Em meio a uma série de ações e de iniciativas que foram desenvolven-
do, primeiro com Ivaporunduva e, depois com outras comunidades, sentiu-se
175
a necessidade de entender o que eram as demandas dessas outras comunida-
des, quais eram as prioridades para o território e os desafios. Dessas reflexões,
surgiu a proposta de construir uma Agenda Socioambiental de Comunidades
Quilombolas do Vale do Ribeira.
A Agenda foi um projeto coordenado e desenvolvido pelo ISA com
apoio financeiro do Fundo Nacional de Meio Ambiente (FNMA) atra-
vés da linha de financiamento “Demanda Espontânea”, do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA), e da Igreja da Noruega através da opera-
ção Dia do Trabalho (AIN-OD) (Santos; Tatto, 2008).
A construção dessa Agenda foi iniciada ainda em 2004, com a participa-
ção de representantes das comunidades quilombolas nas discussões para
a elaboração do projeto, através de reuniões organizadas pelo ISA com o
apoio da EAACONE. Em 2006, em parceria com 14 comunidades qui-
lombolas, iniciam-se as ações de campo, através das primeiras reuniões nas
comunidades para apresentações do projeto de discussões sobre estratégias
de sua implementação. No âmbito desse projeto, ocorreram oficinas te-
máticas onde foram trabalhados os temas como: organização e fortaleci-
mento comunitário, legislação ambiental; cultura, artesanato tradicional
quilombola; manejo de recursos florestais saneamento, manejo de lixo e
cuidados com os agrotóxicos (Santos; Tatto, 2008, p. 07).
Tendo como referência a própria Agenda e as entrevistas com a Raquel
Pasinato (2018), constata-se que a construção da Agenda se deu por meio de
diagnósticos participativos, envolvendo pessoas de cada uma das comunida-
des, de tal forma que os próprios moradores conduziram os levantamentos e
as entrevistas. Dessa forma, compreende-se que, além do protagonismo dos
sujeitos, houve também um importante processo de formação e capacitação
para o desenvolvimento das atividades.
Foi realizado um processo intenso de oficinas sobre cartografia para
que eles pudessem desenhar os territórios, indicando onde se encontram as
nascentes, as vilas, as casas, as roças e os espaços de convivência comunitá-
ria. Foi como cartografia social, mas não com os mesmos procedimentos.
Diferentemente da cartografia social, o ISA levava a base geográfica feita em
laboratório com o limite do território que já tinha sido realizado pelos RTC
e, a partir dessa base, eles iam desenhando em cima.
176
Foi um processo bem intenso e, a partir do momento que fechou a
Agenda em 2008, tinha-se um quadro das principais demandas e priorida-
des para trabalhar. Raquel Pasinato (2018) destacou que a ideia da Agenda
não deveria se limitar apenas às ações desenvolvidas pelo ISA. Também era
uma ferramenta de luta para que as comunidades, a partir dela, pudessem
reivindicar seus direitos sobre os territórios e, além disso, para que gestores e
formuladores de políticas públicas pudessem consultar o material e entender
melhor as prioridades de cada uma das comunidades.
A partir do trabalho da Agenda, Raquel relata que o ISA conseguiu, de
forma mais elaborada, entender as demandas e identificar as prioridades que
poderiam contribuir. Dentre essas prioridades, a questão do resgate cultural,
demandada particularmente pelos mais velhos e de planejamento territorial,
mostraram-se de grande relevância, criando o ambiente para a proposta da cons-
trução de um Inventário Cultural e do Planejamento Territorial Participativo.
Atendo-se ao Inventário, observa-se que, além de resgatar a cultura
e aproximar os mais jovens de suas origens ancestrais, mostrou-se também
como um possível instrumento de luta contra os projetos da barragem, por
exemplo, identificando e sistematizando todo aquele universo cultural que a
construção da barragem poderia alagar e extinguir.
A proposta de fazer o levantamento dos bens culturais nasce dos próprios
quilombolas, preocupados pela falta de conhecimento e reconhecimento
por parte do Estado e da sociedade brasileira em relação aos seus direitos
territoriais e pela ameaça permanente dos grandes projetos de infraestru-
tura na região, entre eles, os de barragens no Rio Ribeira de Iguape, com
grande potencial de impacto para a região e diretamente sobre alguns ter-
ritórios quilombolas (Andrade; Tatto, 2013, p. 07).
Diante das mediações e reflexões que foram sendo potencializadas pelo
ISA junto às comunidades, entendeu-se que o resgate e a manutenção da
cultura e o modo de vida quilombola, além de um instrumento para lutar
contra as barragens, também eram direitos resguardados pelos artigos 215 e
216 da Constituição Federal.
A construção do Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira
se deu por um intenso processo de trabalho que durou 4 anos. Além da
177
assessoria do ISA e da EAACONE, o projeto contou também com suporte
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e apoio
financeiro da Petrobrás por meio da Lei Rouanet.
Amparado pela metodologia do Inventário de Referências Culturais – INRC/
IPHAN, o levantamento envolveu 16 CRQ e identificou 180 bens culturais que
foram classificados em cinco categorias: Celebrações; Formas de Expressão; Ofícios
e Modos de Fazer; Lugares e Edificações (Andrade; Tatto, 2013).
Raquel Pasinato (2018) destacou que o processo levou todo esse tem-
po, entre outras razões, porque a equipe era pequena, mas, principalmente
pela questão metodológica, que, apesar de seguir as orientações do INRC/
IPHAN, o ISA, enquanto coordenador da proposta, sugeriu fazer os proce-
dimentos de forma participativa, de forma similar ao processo feito para a
construção da Agenda.
Visto que o INRC/IPHAN tem uma metodologia própria, foi necessário
fazer capacitações e adequações para o processo, de uma forma que permitisse
que os próprios quilombolas fizessem as entrevistas. Havia a antropóloga que
coordenava o processo, mas eram os próprios membros das comunidades que
iam fazendo as entrevistas com os mais velhos. Diante disso, foi necessário
adaptar o questionário e as linguagens, fato que demandou um tempo maior.
O Planejamento Territorial Participativo, apesar de abranger uma por-
centagem maior de comunidades que se organizaram e debateram o licencia-
mento ambiental com técnicos e profissionais de diversas entidades, enquanto
ação planejada e coordenada pelo ISA, envolve diretamente as comunidades
de Morro Seco em Iguape e São Pedro em Eldorado (Pasinato, 2012).
A escolha dessas comunidades se deve a diferentes razões. Em São Pedro, a
comunidade sempre atuou de forma proativa em diferentes projetos com
destaque na luta pelo licenciamento das roças, pautada em parte pelas
pesquisas sobre a dinâmica do uso da terra e pela organização frente aos
desafios pela sobrevivência. Em Morro Seco, a comunidade é fortemente
organizada em torno da Associação, e sofre sérias limitações espaciais, ten-
do que lidar com muitos ocupantes terceiros em um território pequeno
(Pasinato, 2012, p. 6).
Com base no material elaborado pelo ISA, para o Planejamento
Territorial Participativo, foi desenvolvido um intenso processo de
178
sensibilização, mobilização, envolvimento e participação. Foram inúmeras
reuniões e oficinas sobre Patrimônio Cultura e Turismo, Agricultura e ex-
trativismo, Adequação Ambiental, Organização Comunitária, Diagnóstico
Rural Participativo e outras atividades complementares.
O planejamento territorial foi importante para pensar as ações baseadas
na especialização do uso atual e futuro, que podem concretizar demandas
locais e proporcionar meios para atingir os objetivos do território como a
garantia de desenvolvimento e qualidade de vida para as famílias, compa-
tibilizando a sobrevivência da população com o uso sustentável dos recur-
sos naturais em seus espaços territoriais (Pasinato, 2012, p. 07).
Nesse intenso e rico processo que envolve a construção da Agenda
Socioambiental, o Inventário Cultural e o Planejamento Territorial Participativo
é que também algumas CRQVR que já se defrontavam com atividades tu-
rísticas em seus territórios identificam a necessidade de se estruturarem de
forma mais organizada para tratar com o turismo nos territórios.
Visto que o turismo já se manifestava e impactava os territórios qui-
lombolas devido à grande quantidade de turistas que visitavam anualmente
a Caverna do Diabo, que fica no quilombo de André Lopes, e a cachoeira do
Meu Deus, que fica no Quilombo de Sapatu, por exemplo, as comunidades
sentiram a necessidade de construir uma alternativa que lhes proporcionasse
certo grau de controle sobre os bens naturais e culturais, materiais e imateriais
que eram explorados por outros em seus territórios.
Diante dessa compreensão, as Comunidades de Ivaporunduva,
Mandira, André Lopes, Sapatu, São Pedro, Pedro Cubas e Pedro Cubas de
Cima, em parceria com o ISA, elaboraram um projeto que obteve apoio fi-
nanceiro do MTUR, com a finalidade de estruturar um Circuito Quilombola
de Turismo Comunitário do Vale do Ribeira (CQTVR).
Seguindo o modus operandi que o ISA já vinha desenvolvendo junto às
comunidades desde suas primeiras ações, a proposta de construção do CQTVR
também seguiu procedimentos de capacitação e formação que potencializava e
incentivava a construção participativa, comunitária e as prioridades locais.
Raquel Pasinato (2018) destacou que foi realizado um processo de for-
mação e capacitação interno, envolvendo as comunidades no levantamento e
179
mapeamento dos possíveis atrativos, no desenho de um mapa e no desenvolvi-
mento de um material de divulgação, além de um curso de monitor ambiental.
No decorrer do processo de debate, reflexão e construção da proposta,
os membros das comunidades realizaram visitas técnicas e troca de saberes
com outras CRQ que também estavam trabalhando com o turismo, como,
por exemplo, o Quilombo de Monte Alegre no Espírito Santo e o Quilombo
Campinho da Independência no Rio de Janeiro.
Em relação às visitas técnicas, constata-se, com base no documentário
sobre o CQTVR, que as atividades foram de fundamental importância para
a troca de experiência, mas principalmente para observarem como outras
comunidades vêm discutindo e propondo o turismo nos territórios, sempre
com muita politização, respeito e consciência de um conhecimento ancestral.
Os cursos e oficinas de capacitação com foco em planejamento, gestão,
monitoria, precificação, trilha, entre outras temáticas que foi necessário tratar
de forma mais aprofundada durante o processo, serviu para as comunidades
materializarem as possiblidades e os limites do turismo em seus territórios,
bem como compreender e definir como utilizá-lo e desenvolvê-lo.
Raquel Pasinato (2018) apontou que o ISA, enquanto mediador, con-
tribuiu como um problematizador que tinha como princípio fomentar as
diferentes possibilidades, bem como os limites e as consequências dessas pos-
sibilidades, potencializando reflexões que incentivassem a autoaprendizagem
para que as próprias comunidades a escolhessem e tomassem suas decisões.
Entre 2008 e 2012, quando foram desenvolvidas todas as ações, for-
mou um conselho gestor, denominado pela alcunha de Conselho Gestor do
Circuito Quilombola, composto por representantes das 7 comunidades que
compunham o Circuito. Após esse prazo e a finalização das etapas do projeto, o
ISA foi se retirando dessa assistência focada no turismo e deixando a condução
do processo para o conselho, contudo, devido a divergências e particularidades
entre os membros, o Conselho, com o tempo, foi deixando de funcionar.
Importante destacar que, nesse período, os quilombolas criaram ou-
tra entidade, chamada de Centro de Educação, Profissionalização, Cultura e
Empreendedorismo (CEPCE), com a missão de ser um efetivo agente promotor do
desenvolvimento sustentado e representar, de forma inclusiva, os direitos e interesses
de grupos tradicionalmente excluídos, em especial, as comunidades quilombolas.
180
De acordo com a entrevista com Raquel Pasinato (2018), ao passo que
o projeto foi dando seu prazo de encerramento, o ISA foi se retirando desse
debate mais específico sobre o turismo, e a CEPCE começou a assumir a
condução desses debates e até conseguiram aprovar um outro projeto para
trabalhar com o turismo junto à Petrobras.
Contudo, ao que tudo indica, a CEPCE está inoperante. Tentando
entender melhor a situação da entidade com alguns quilombolas que mais
ou menos acompanharam o processo, esse debate sobre a CEPCE se mostrou
muito caro, as pessoas sempre desconversavam ou mesmo se recusavam a
falar abertamente sobre ela, não nos possibilitando avançar mais sobre o que
realmente sucedeu nesse contexto.
Pontuado isso, constata-se que, apesar de considerar o processo de dis-
cussão e de construção do Circuito todo muito rico, Raquel Pasinato (2018)
considera que a falta de um acompanhamento contínuo debilitou a estru-
turação e o funcionamento do circuito de forma integrada e coletiva, e as
comunidades passaram a trabalhar mais de forma autônoma, focadas na or-
ganização do seu território, e não como circuito.
A proposta foi de fazer uma coisa mais integrada e em rede, de tal
forma que o grupo pudesse visitar as comunidades e passar mais tempo en-
volvidas no Circuito, contudo, devido às particularidades e limites internos e
externos que envolvem as singularidades e dificuldades de cada comunidade,
isso não ocorreu de fato.
Ainda assim, Raquel considera que o turismo é uma alternativa im-
portante que, além de possibilitar uma renda bacana, funciona como uma
ferramenta de planejamento territorial, bem como de diálogo e comunicação
com os turistas e as demais pessoas que visitam seus territórios, apresentando
sua cultura e suas histórias de luta e de resistência.
Fazendo mea culpa dessa debilidade no funcionamento de forma inte-
grada do CQTVR, Raquel destacou que esse trabalho suscitou e serviu de base
para outras inciativas, inclusive a de formação do Circuito Quilombola Paulista,
proposto pelo Estado por meio do ITESP e da Secretária Estadual de Turismo.
Contudo, como já destacamos, quando tratamos sobre o ITESP, o
Circuito Quilombola Paulista, apesar de ter sido proposto entre 2016 e 2018
no governo de Geraldo Alckmin, devido às transformações políticas dos
181
últimos anos, ainda não possui um direcionamento de assessoria e assistência
que de fato atende às comunidades nesse sentido.
Para finalizar esse processo de análise e reflexão do ISA sobre as
CRQVR, e mais especificamente sobre sua contribuição na formatação do
CQTVR, destaca-se que, apesar de ter se retirado do debate específico sobre
o turismo, o ISA tem se inserido em várias outras ações que fortalecem o
processo de resistência e luta das CRQVR, com destaque ao seu engajamento
na construção e manutenção da Feira de Trocas de Sementes dos Quilombos do
Vale do Ribeira e na campanha de defesa e salvaguarda do Sistema Agrícola
Tradicional Quilombola.
Nesse sentido, compreende-se que a importância do ISA, enquanto en-
tidade que atua diretamente prestando serviços de assistência, capacitação e
formação junto às comunidades para a concepção de um turismo alternativo
e contra hegemônico, esta consubstancia, no seu histórico de atuação, que
sempre buscou fortalecer e reconhecer o direito e a auto-organização dessas
comunidades sobre seus territórios.
Diante disso, compreende-se que o ISA desenvolve suas ações de for-
ma dialógica-problematizadora com enfoque transdisciplinar, que debate as
necessidades e as possibilidade das comunidades a partir de uma perspectiva
que busca fortalecer a capacidade de autoaprendizagem e auto-organização.
Apesar de ser um processo que leva um tempo maior do que a simples
transferência do conhecimento, contata-se que esse tipo de ação busca es-
tabelecer, por meio do diálogo, da reflexão e da problematização, subsídios
para que a própria comunidade tenha conhecimento dos processos e possam,
assim, tomar a decisão mais adequada às suas demandas e necessidades.
Considerações Finais
Dentro dos limites e possibilidades dados pela própria lógica neolibe-
ral, que hegemonicamente determina as ações de formação e capacitação de
cima para baixo, observa-se que as mediações/relações construídas tanto pela
UNICAMP mas particularmente pelo ISA com as comunidades, buscaram
fortalecer o diálogo e a capacidade de autoaprendizagem para a auto-organiza-
ção do turismo comunitário, não mercantilizado, em seus territórios, ou seja,
os remanescentes de quilombos não perderam o controle do território para
182
uma grande empresa de turismo, muito menos para uma empresa de hotela-
ria, preservando as relações sociais naquele território.
Com relação ao papel do GTTEA do PCQ/UNICAMP, constatamos
que suas ações tiveram relevância, entre outras razões, por ter sido a primeira
entidade que buscou desenvolver um trabalho de formação, capacitação e
planejamento para o turismo articulando o conhecimento científico codifica-
do produzido na universidade e o saber tradicional das comunidades locais.
Nesse sentido, mesmo sem ter tratado especialmente do trabalho de-
senvolvido pelo GTTEA/PCQ/UNICAMP, se faz expressivo realçar que as
suas ações potencializou as trocas de conhecimentos, desenvolveram-se de
uma forma dialógica-problematizadora, não sem contradições, conduzindo
as mediações e as reflexões dentro de padrões que buscam o equilíbrio am-
biental e social, bem como de estímulo à autonomia e à auto-organização
das comunidades, além de lhe propor ferramentas de planejamento e ela-
boração de projetos.
Responsável pelo projeto que conduziu a formatação do CQTVR,
consideramos que o ISA – entidade com atuação direta na região - também
desenvolveu suas ações junto às comunidades quilombolas com procedimen-
tos dialógicos, com uma atuação que potencializou a organização comunitá-
ria, o conhecimento local e a construção de processos participativos, de um
turismo de baixa escala, em bases comunitárias.
Constatamos que o ISA tem seus procedimentos focados no diálogo
e na troca de saberes, buscando o equilíbrio entre a missão da entidade e as
demandas das comunidades, partindo do princípio de que a entidade deve
sensibilizar e problematizar os limites e possibilidades, bem como fornecer as
condições para que as comunidades tomam suas decisões. Em termos gerais,
o ISA enquanto entidade atua dentro da ótica do desenvolvimento sustentável,
mas lá na ponta, seus técnicos foram decisivos para o desenvolvimento de um
turismo não mercantilizado.
Contudo, mesmo com os esforços constituído por meio da luta e resis-
tência no território, compreendemos, diante do avanço da lógica neoliberal e
individualista, que são inevitáveis as dificuldades e as contradições enfrenta-
das para construção da propriedade comunal, bem como para construção de
um turismo não mercantilizado e contra hegemônico.
183
Em relação ao CQTVR, nas palavras de Raquel Pasinato (2018), en-
tendemos que o Circuito ainda possui dificuldades para se desenvolver da for-
ma como foi idealizado, organizado de forma integral e em rede, envolvendo
todas as comunidades e não só atividades soltas e restritas aos próprios terri-
tórios. Ainda com base na entrevista com Raquel Pasinato (2018), vimos que
esse limite no funcionamento integral do Circuito se dá também pela falta de
acompanhamento contínuo em longo prazo, seja pela parte do próprio ISA,
que só obteve recurso para manter as ações durante a vigência do projeto, seja
pela ausência de um serviço de ATER público contínuo e de qualidade, como
nos relatou iago em entrevista em 2018.
Acerca das contradições e dificuldades enfrentadas pelo CQTVR, vale
destacar que se trata de um grupo em luta contra o sistema do capital. Dessa
forma, há que se considerar as condições objetivas em que eles levam sua
proposta de turismo, que ora corroboram, ora contrariam e não raramente
desafiam a proposta do turismo convencional exploratório e capitalista.
Apesar das contradições e dificuldades, compreendemos que o propó-
sito e a razão de ser do turismo desenvolvido pelos remanescentes de qui-
lombos em torno do CQTVR escapam a uma lógica capitalista e puramente
mercantil, assumindo caraterísticas de luta e resistência pelo território como
instrumento de diálogo, comunicação e apresentação de sua história e sua
cultura à sociedade.
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187
A Prisão Vista por Foucault:
Reflexões Necropolíticas
Jonas Rangel de ALMEIDA39
Introdução
Michel Foucault (1926 -1984) tornou-se internacionalmente conheci-
do como intelectual engajado por suas intervenções políticas no debate públi-
co e suas contribuições teóricas muitas vezes foram capazes de renovar a ima-
gem do pensamento contemporâneo. Um exemplo disso são conceitos como
o de biopolítica e de biopoder que apropriados aos estilos de Esposito (2010)
e Mbembe (2016) geraram as conceituações de tanatopolítica e necropolíti-
ca. Pensando nisso, doravante, pretendo revisitar o pensamento de Foucault
e explorar o lugar que a prisão ocupa, tendo em vista que essas instituições
são atravessadas pelos mecanismos assujeitadores produtores do sujeito delin-
quente e tornaram-se lócus por excelência de exercício da necropolítica.
Tendo em vista esse horizonte o propósito deste artigo é discutir as re-
lações entre a prisão às lutas e resistências marginais mostrando como ocorre
à entrada dos corpos e a inscrição da subjetividade nesse dispositivo estraté-
gico de opressão política, um sistema de clausura da liberdade, de correção
das condutas que a despeito de sua justificação para conter o crime acaba
por sua vez contribuindo para a perpetuação de certos modos marginais de
existência cujas vidas estão a mercê da necropolítica. Para realizar essa tarefa
39 Doutor em Educação Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e
Ciências - PPGE/FFC/UNESP – Câmpus Marília. Professor de Ensino Fundamental e Médio na
rede pública do Estado de São Paulo. Autor dos livros Foucault e as teorias do reconhecimento (2021)
e O governo, os intelectuais e a educação (2023). E-mail: jradavisao@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p187-206
188
o texto segue dois movimentos: primeiro procura demarcar as relações iné-
ditas entre a vida e o poder na modernidade mediante o conceito de biopo-
lítica e biopoder com objetivo de lançar luz nas leituras contemporâneas de
Foucault; e, segundo, recupera algumas ideias de Foucault sobre a prisão, a
delinquência e a atuação política no contexto de surgimento da sociedade
disciplinar, especialmente a proliferação de dispositivos de visibilidade. Por
fim, para concluir retomo essa problematização inicial para discutir em que
medida a exploração foucaultiana do dispositivo prisional pode ou não nos
ajudar a em relação compreensão de nós mesmos, especialmente, a romper
e a transformar a imagem colonizada que nos foi imposta e tornou adictos
durante o processo histórico.
Foucault e a Biopolítica
Segundo Muhle (2009) o conceito de biopolítica apropriado de Foucault
pelos autores contemporâneos é muito controverso. Aparentemente uma das
razões que tornaria esse conceito pretensamente polêmico é que o próprio
Foucault ofereceu-lhe tratamento limitado à época cedendo lugar às artes de
governo nos anos posteriores. Parece-me necessário esclarecer é que na verdade
não há um abandono da problemática da biopolítica em favor da governamen-
talidade, ao contrário, a análise da inserção da população às formas de gover-
namentalidade, amplia ainda mais a noção mostrando como os dispositivos
biopolíticos se inscreve nas estratégias de governo da população e da vida não
somente como tecnologia de regulação, mas, como racionalidade econômica.
Existem explicitamente dois textos importantes que versam sobre a
hipótese do biopoder: O primeiro a aula 17 de Março 1976, conferência
intitulada: Do poder de soberania ao poder sobre a vida; o segundo, o último
capítulo de A vontade de saber, chamado de Direito de morte e poder sobre
a vida. Os dois textos possuem muitos pontos em comum, por isso, o mais
sensato é expor alguns fragmentos de ambos.
Segundo Foucault (1999; 2005), parece que um dos fenômenos funda-
mentais do século XVII-XIX foi o que se poderia denominar a assunção da vida
pelo poder, isto é, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo,
certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do bio-
lógico. Isso ocorre na medida em que temos uma passagem do poder marcado
189
pela soberania, para um poder que teria por função gerir a vida. É a entrada do
corpo e da vida biológica nos cálculos e exercícios do poder.
Para Foucault (1999; 2005), o poder soberano era aquele que reservava
para si o direito de vida e de morte, podendo assim, fazer morrer e deixar vi-
ver. Esse poder se manifestava, conforme escreve Foucault em Vigiar e punir
(1997) nos suplícios e rituais punitivos que tinham a função de garantir a
inviolabilidade do poder do soberano. Ainda, o direito de matar detém efeti-
vamente em si próprio a essência desse direito de vida de morte do soberano.
A situação parece mudar no final do século XVIII graças a uma nova forma
de Direito que se instala: o direito de fazer viver e de deixar morrer.
De acordo com Foucault (2005) um dos primeiros sinais de desapa-
recimento do poder soberano, foi nos séculos o aparecimento nos XVII e
XVIII de técnicas de poder que eram essencialmente centradas no corpo,
no corpo individual, as disciplinas. Já, durante a segunda metade do século
XVIII, se vê aparecer algo de novo, uma nova tecnologia se instala se dirige
à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em
corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global,
afetada por processos de conjunto que são próprios à vida, processos como o
nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. Desse modo, desde no século
XVIII e XVIII, temos o desenvolvimento de duas tecnologias de poder que
são introduzidas com certa defasagem cronológica e que são sobrepostas. A
primeira é disciplinar: é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes,
manipula o corpo como foco de aperfeiçoar, tornar útil e, ao mesmo tempo,
dócil na relação mando e obediência e no trabalho. E, de outro lado, temos
a segunda tecnologia que, por sua vez, é centrada não no corpo, mas no
que faz pulsar a vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas pró-
prios de uma população, que procura controlar a série de eventos fortuitos
que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar
(eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em
compensar seus efeitos.
Este biopoder teria suas práticas e sua área de intervenção, de saber e
de poder em torno, ao mesmo tempo, da natalidade, da morbidade, das in-
capacidades biológicas diversas, dos efeitos do meio. É disso tudo que a bio-
política vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu poder.
190
A biopolítica lida com a população como problema político, como problema
a um só tempo científico e político, por isso, como problema biológico e
como questão de poder e regulação social. Ela se dirige aos acontecimentos
aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração a fim
de minimizar os riscos à população e regulamentá-la. Nesse sentido, não se
trata mesmo de considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas, submetê-los
a mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados glo-
bais de equilíbrio, de regularidade. Em resumo, leva-se em conta a vida, os
processos biológicos do homem-espécie para de assegurar sobre eles não uma
disciplina, mas uma regulamentação.
Conforme Foucault (2005, p. 289), tudo sucedeu como se o poder,
que tinha como modalidade e como esquema organizador à soberania, ficasse
inoperante para reger o corpo econômico e político de uma sociedade em via,
a um só tempo, de explosão demográfica e de industrialização. O biopoder
foi sem dúvida um elemento indispensável para o desenvolvimento do capita-
lismo, de um lado, controle dos corpos no aparelho de produção, e de outro,
por um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos.
Graças à explosão populacional, muitas coisas escapavam à velha mecânica do
poder de soberania, tanto por baixo quanto por cima, no nível do detalhe e
no nível da população. Foi para recuperar o detalhe que se deu uma primeira
acomodação: acomodação dos mecanismos de poder sobre o corpo individual,
com vigilância e treinamento, através da disciplina. A primeira acomodação foi
mais fácil, mais cômoda de realizar. E por isso que ela se realizou mais cedo já
no século XVII, início do século XVIII - em nível local, em formas intuitivas,
empíricas, fracionadas, e no âmbito limitado de instituições como a escola, o
hospital, o quartel, a oficina, etc. E, depois, tem-se em seguida, no final do
século XVIII, uma segunda acomodação, sobre os fenômenos globais, sobre
os fenômenos de população, com os processos biológicos ou bio-sociológicos
das massas humanas. Acomodação muito mais difícil, pois ela implicava órgãos
complexos de coordenação e de centralização. Um conjunto orgânico institu-
cional: a organo-disciplina da instituição de uma parte, e, de outro outra, um
conjunto biológico e estatal: a bio-regulamentação pelo Estado.
Não se deve pensar que essas tecnologias políticas funcionam sepa-
radas, ao contrário, elas se articulam e raramente se exercem sozinhas. O
191
exemplo dessa dupla articulação seria, como aponta Foucault (2005, p. 299),
a cidade operária. Ali, se vê muito bem como ela articulam, de certo modo
perpendicularmente, mecanismos disciplinares de controle sobre os corpos,
por sua quadrícula, pelo recorte mesmo da cidade, pela localização das fa-
mílias (cada uma numa casa) e dos indivíduos (cada um num cômodo). Há
recortes, por indivíduos em visibilidade, normalização dos comportamentos,
espécie de controle policial espontâneo que se exerce assim pela própria dis-
posição espacial da cidade, tornando uma série de mecanismos disciplinares
visíveis na cidade operária.
N’A vontade de saber (1999), Foucault faz uma análise do dispositivo
da sexualidade, mostrando como esta é inserida na articulação entre anáto-
mo-política do corpo e biopolítica da população. Portanto, ela depende da
disciplina, mas depende também da regulamentação. Isso pode ser observa-
do na extrema valorização médica da sexualidade no século XIX. De acordo
com Foucault, uma teoria da degenerescência, fundamentada no princípio
da transmissibilidade da tara chamada “hereditária”, foi o núcleo do saber
médico sobre a loucura e a anormalidade na segunda metade do século XIX.
Muito cedo adotada pela medicina legal, ela teve efeitos consideráveis sobre
as doutrinas e as práticas eugênicas e não deixou de influenciar toda uma
literatura, toda uma criminologia e toda uma antropologia. No domínio da
sexualidade, na medida em que esta põe em foco as doenças individuais, estas
adentram a disciplina, e, por outro lado, no núcleo da degenerescência, se
representa exatamente esse ponto de articulação, ao do disciplinar e do regu-
lamentador, do corpo e da população. Diz o autor que:
de fato sua articulação não será feita no nível de um discurso especulati-
vo, mas na forma de agenciamentos concretos que constituirão a grande
tecnologia do poder no século XIX: o dispositivo da sexualidade será um
deles, e dos mais importantes. (Foucault, 1999, p. 132).
Para Foucault (2005, p.302) a norma é um elemento articulador entre
ambos, porém, para que a população emergisse foi necessária além do desen-
volvimento demográfico, que esta pudesse ser tomada como objeto de saber
é preciso à emergência da população como uma categoria política. A norma
seria, neste caso, circularia entre o disciplinar e o regulamentador, permitindo
192
controlar a ordem disciplinar do corpo e, ao mesmo tempo, os acontecimen-
tos aleatórios de uma multiplicidade biológica. A sociedade de normalização
é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a
norma da disciplina e a norma da regulamentação. Dizer que o poder, no
século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que o poder, no século
XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfície
que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o
jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de
regulamentação, de outra. Esta é a sociedade em que vivemos.
Segundo Foucault (2005), é no limite do exercício do biopoder que
podemos localizar seus paradoxos. Um desses paradoxos é o poder atômico,
uma vez que o que está em jogo é a extinção da espécie humana ou parte dela.
Outro paradoxo é que a inserção do racismo no mecanismo de Estado que se
dá com a emergência do biopoder. De acordo com o autor:
A especificidade do racismo moderno, o que faz sua especificidade, não
está ligado a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligado à
técnica do poder, à tecnologia do poder. Está ligado a isto que nos coloca,
longe da guerra das raças e dessa inteligibilidade da história, num meca-
nismo que permite ao biopoder exercer-se. Portanto, o racismo é ligado
ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a elimi-
nação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano.
(Foucault, 2005, p. 309).
Ora, operando um corte entre o que deve viver e o que deve morrer,
ora, separando, classificando e hierarquizando os grupos humanos em raças
criando, cesuras no domínio do biológico aberto pelo biopoder. Afinal de
contas, o nazismo é, de fato, o desenvolvimento até o paroxismo dos meca-
nismos de poder novos que haviam sido introduzidos desde o século XVIII.
Não só o nazismo, mas o fascismo e em certa medida o stalinismo são pro-
blemas políticos essenciais para analisar a dinâmica das relações de poder na
sociedade contemporânea. Certos de que a excrescência cristaliza as relações
de poder em verdadeiros estados de dominação. Segundo Foucault:
jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX e nun-
ca, guardadas as proporções, os regimes haviam, até então, praticado tais
193
holocaustos em suas próprias populações [...] As guerras já não se travam
em nome de um soberano a ser defendido; travam-se em nome de todos;
populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome das necessi-
dades de viver. Os massacres se tornaram vitais (Foucault, 1999, p. 129).
O que poderíamos chamar de limiar de modernidade biológica, de
uma sociedade que se situa no momento em que a espécie entra como algo
em jogo nas próprias estratégias políticas. Para Foucault, o homem, durante
milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além dis-
so, capaz de existência política; já, o homem moderno é um animal, em cuja
política, sua vida de ser vivo está em questão.
N’A vontade de saber (1999) Foucault aborda a vida como um aconte-
cimento, contudo, esta não é a primeira vez. Ainda em As palavras e as coisas
(2000), Foucault faz uma análise do modo como ocorre, no plano discursivo,
a ruptura nos regimes saber, graças ao aparecimento da dupla problemática
da vida e do Homem, que veio atravessar e redistribuir a episteme clássica. Na
década de 1970 abundam nos cursos de Foucault a problemática da emer-
gência das ciências da vida, da sociedade disciplinar e de uma sociedade de
normalização. As emergências das ciências da vida são muitos importantes
quando consideramos sob ponto de vista do papel dos intelectuais, visto que,
como agentes no processo de produção de regimes de verdade, os intelectuais
se relacionam às batalhas em torno da individualização – aquelas que ligam
o indivíduo a uma identidade – seja no papel do médico, do pedagogo, do
psiquiatra, do sociólogo, etc.
É preciso ressaltar que a categoria dos intelectuais é ampla para Foucault,
basta lembrar o ponto mais agudo de sua emergência, a urgência que ganhou
o debate dos físicos em torno da teoria da relatividade no período entre guer-
ras, nesse âmbito, pode ver a dimensão que passa ocupar a relação entre poder
e vida no mundo moderno. Pode-se dizer também que, para Foucault, a ca-
tegoria dos intelectuais é muito difusa, de modo através penetrar nas malhas
da sociedade, nas relações sociais, de poder. Portanto, o acontecimento que
determina configura essas relações é ordem tanto microfísica, no plano das
disciplinas e anátomo-política do corpo, quanto, macrofísica, o aparecimento
da vida nos cálculos do poder, uma biopolítica que toma como corpo tratável
a população, cuja estratégia inscreve o corpo como campo de batalha. Nesse
194
ponto, a relação entre poder e vida articula-se profundamente com o proble-
ma da política na sociedade moderna, isto é, já que as formas de poder não
visam apenas, dirigir, controlar, mas governar as almas, transformar em sujei-
tos. Detentores de um saber que pode proliferar a vida sob suas mais diversas
e adversas condições, saberes em torno de vida ou morte. Para Foucault:
[a] razão por que a questão do homem foi colocada – em sua especifici-
dade de ser vivo e em relação aos outros seres vivos – deve ser buscada no
novo modo de relação entre história e vida: nesta dupla posição da vida,
que situa fora da história como suas imediações biológicas e, ao mesmo
tempo, dentro da historicidade humana, infiltrada por suas técnicas de
saber e poder (Foucault, 1999, p. 135).
Segundo Muhle (2009), nesse contexto, a noção de vida se vê entra-
nhada pela reflexão sobre o desenvolvimento das ‘ciências da vida’ e da pos-
sibilidade crescente de manipulação dos fenômenos da vida pelas biotecno-
logias. Problemas como o aborto, a utilização in vitro de material genético
humano, etc, se envolvem à temática. A regulação crescente dos mecanismos
biopolíticos acompanha uma reflexão moral, assim como o estabelecimento
de um sistema de valores que dizem respeito à vida reflete as discussões sobre
o direito (biológico) a vida e ao imperativo onipresente de viver (de mais
tempo e com mais saúde) dá lugar a uma confusão entre biopolítica e bioé-
tica. Conforme Ugarte-Pérez (2006) a bioética tem por princípios a benefi-
cência, a autonomia e a justiça. Ela não se ocupa dos indivíduos conscientes,
mas se move, entre a vida e morte, tendo por objeto de atenção embriões,
fetos, pessoas que se encontram no leito de morte (eutanásia), doentes ter-
minais, em suma, ela reivindica aqueles que não podem decidir o próprio
futuro. Apóia a manutenção da vida sob condições dignas. Nesse sentido
Ugarte-Pérez (2006), se questiona se não seria mais legítimo adotar o termo
“biomoral” para referir-se a essa disciplina.
Em suma, devemos considerar que o biopoder é o uso que a política faz
da biologia para criar e transformar as forças vitais e orgânicas, a fim de alcançar
uma série de objetivos econômicos, médicos, pedagógicos, demográficos, mili-
tares, etc. A biopolítica para Foucault não é exterior à vida, pois seu registro se
inscreve dentro dos processos vitais. Suas técnicas se adaptam a lógica interna
195
da vida, criando um modo próprio de funcionamento. Desse modo, o biopo-
der é indissociável das tecnologias relacionadas à vida, e mais, podemos dizer
que não pode haver biopoder sem a emergência da modernidade biológica.
Para Ugarte-Pérez (2006), porém, como esse poder é uma potência mo-
dificadora das condições da vida humana, está se vê cada vez mais dependente
do desenvolvimento das tecnologias. Na sociedade contemporânea uma das
tecnologias que mais tem crescido é a informática, que permite fazer milhões
de cálculos e codificar dados em apenas segundos. Assiste-se ao desenvolvi-
mento da sociedade de informação. Assim a era do biopoder estabelece uma
cesura mais fundamental no tocante à vida e suas relações com as potências
a-orgânicas como as que são postas em jogo pela sociedade do controle.
Graças a Foucault adentramos o coração do nosso tempo onde sob o
imperativo de proteger a vida, assistiu-se às guerras mais brutais da história. É a
era da divisão do átomo, da sequenciação do DNA, do genoma, mas, também
séculos de multiplicação dos massacres, das guerras coloniais, do racismo e das
catástrofes ecológicas. E nesse sentido, intérpretes contemporâneos do pensa-
mento de Foucault, como Roberto Esposito (2010) e Achille Mbembe (2016)
desenvolveram suas investigações com a finalidade de nos mostrar como a po-
lítica de vida da modernidade tem-se revelado seu extremo oposto, seja como
tanatopolítica, quer dizer, quando o poder organiza os meios para aniquilar
grupos humanos, ou, como necropolítica, quando a divisão entre humanos
sofre um escalonamento em razão daqueles que são considerados dignos de
viver e aqueles que podem ser abandonados a vulnerabilidade social e a morte.
Humanos e infra-humanos. Nesses casos, temos Esposito (2010) analisando
como a tendência moderna de imunização consiste em uma proteção negativa
da vida; e, Mbembe (2016), mostrando como as estratégias de poder na colônia
consolidaram uma verdadeira necropolítica que expõe as populações racializa-
das à morte cotidiana e paulatinamente. Isso nos leva a repensar as estratégias
de reativação do poder soberano de vida e morte sobre as populações. Vejamos
um pouco mais sobre paroxismo no caso do dispositivo prisional.
A Prisão Vista por um Filósofo Francês
Para Foucault (2006b) a prisão deve ser pensada como uma articulação
saber/poder cujo objetivo é a produção do sujeito delinqüente, ou, criminoso
196
mediante a uma objetivação do olhar, ao adestramento do corpo e ao controle
do tempo. Diga-se de passagem, que a entrada neste espaço de saber/poder é
essencial para compreendermos a função política que os intelectuais ocupam
na sociedade aos olhos do próprio filósofo francês.
No pensamento de Foucault ao se constituírem em jogos de forças, as
relações de poder podem ser estudadas por diversos ângulos, por exemplo,
analisar o grande jogo entre o Estado e seus cidadãos, ou mesmo, as rela-
ções entre Estados. Todavia, o filósofo francês se interessa por jogos de alcan-
ce mais limitado, temas que não possuem estatuto reconhecido na filosofia
como grandes problemas: jogos de poder em torno da loucura, da doença,
do corpo doente, ou os jogos de poder em torno da delinquência, da pena-
lização e da prisão. Ao tratar sobre esse assunto Vilela (2010, p.214) diz que
estas “[...] são questões que tocam profundamente a vida quotidiana. Elas
evidenciam problemas – a loucura, o crime, o sexo – que, sendo experiências
limite, sublinham a íntima entre as experiências-limite e a historia da verdade”.
A noção de experiências-limite diz respeito aquela experiência que, em
vez de ser considerada central e valorizada positivamente na sociedade, é uma
experiência fronteiriça que coloca em xeque o que se considera aceitável. Um
exemplo disso é ser preso, passar pelas malhas do sistema penitenciário.
Nesse horizonte, se pretende neste texto partir de uma série de pistas
deixadas nas entrevistas publicadas pela edição Ditos e Escritos IV e no livro
Vigiar e punir (1997). O objetivo é reconstruir qual o lugar que a prisão ocu-
pa no pensamento do filósofo e mostrar como os jogos de poder em torno
da prisão se inserem à margem das chamadas lutas históricas, exigindo dos
intelectuais uma outra postura em relação às configurações sociais da reali-
dade. Uma vez que é interrogando sobre o que acontece com aqueles que
não tomam parte na distribuição dos papéis sociais, com aqueles que não
obedecem às normas e exigências impostas às existências singulares que po-
demos compreender como funcionam os mecanismos que cindem o normal
e o patológico, o lícito e o ilícito. Desde então, a prisão vista na condição de
um acontecimento singular, nos termos de relações saber/poder, se apresenta
como um possível vetor de onde podem irromper resistências. Sobretudo,
pode evidenciar como a prisão opera com a lógica necropolítica moldando a
percepção pública dos sujeitos delinquentes.
197
Em 1971, Michel Foucault é convidado por Daniel Defert para criar
uma comissão de inquérito, cujo propósito era auxiliar nos processos cri-
minais relacionados aos militantes presos do movimento chamado Esquerda
Proletária, grupo de inspiração maoísta, que num regime de greve de fome
reivindicavam para si direitos de presos políticos. Foucault aceita esse traba-
lho, mas, ao invés de uma comissão de inquérito, ele transforma a ideia em
um grupo de informação. Assim nasce o Grupo de Informação sobre as Prisões
– G. I. P. Basicamente, esse Grupo insistia ao mesmo tempo em ser uma
experiência coletiva de pensamento e uma tomada da palavra pelos detentos.
Tratava-se de mobilizar em rede um conjunto de intelectuais específicos –ma-
gistrados, médicos, assistentes sociais, jornalistas, psicólogos, etc- para que as
informações sobre a prisão pudessem circular na sociedade, não pela palavra
dos especialistas, mas, por intermédio dos depoimentos dos próprios deten-
tos. Afinal, argumentava o grupo: ninguém pode ter certeza que nunca irá
passar pela prisão em algum momento da vida, principalmente numa época
em que a repressão policial se intensifica sobre os jovens, sobre os marginali-
zados e estrangeiros. Em A prisão em toda parte (Foucault, 2006a), diz:
[h]á três meses o Grupo de informação sobre as Prisões conduz sua in-
quirição. Ele interroga os detentos, os ex-detentos, suas famílias, todos os
usuários da prisão. Afinal, somos todos suscetíveis de ir para prisão; com
que direito nos impedem de saber o que ela é realmente? Ela é um dos
instrumentos do poder, e um dos mais desmedidos. Com que direito o
poder faz segredo sobre ela? (Foucault, 2006a, p. 26).
É num jogo aparentemente neutro que as instituições como tribunais,
prisões, hospitais psiquiátricos, universidades, órgãos de imprensa/informação
e as escolas que se exercem sob diferentes máscaras uma opressão que em sua
raiz é política. Em Prefacio a Enquête dans vingt prisons (2006c), o Foucault
indica que o contexto político de maio de 1968 contribuiu significativamente
ao desenrolar dessas lutas marginais, já que nesse momento de convulsão social
o aparelho judiciário foi ‘superutilizado’ para reprimir os operários, estudantes,
imigrantes, etc. Contudo, essa opressão, que a classe trabalhadora tem histori-
camente suportado com resistência tornou-se intolerável até mesmo às novas
camadas sociais, entre eles, intelectuais, técnicos, juristas, médicos, jornalistas
198
etc. Desta forma, as inquirições-intolerância, como era chamada, não era desti-
nada a abrandar, ou, melhorar as condições sob a opressão, mas, servia como
um ato político onde a opressão se exerce sob nomes como, justiça, técnica,
saber e objetividade. Por isso, elas possuem alvos precisos, instituições locali-
zadas, administradores, responsáveis e dirigentes. A inquirição deve servir para
agrupar diversas camadas mantidas separadas pelas classes dirigentes através
do jogo das hierarquias sociais e dos interesses econômicos divergentes. Em
resumo, as inquirições articuladas pelo G.I.P não eram elaboradas do exterior
por um grupo de técnicos, mas, pelos próprios inquiridos, cabia a cada um
tomar a palavra, fazer cair a compartimentagem, formular o que é intolerável,
encarregar-se da luta que impedirá a opressão de se exercer. Afinal, como uma
estrutura censurada como a prisão pode perdurar por tanto tempo?
Em A prisão vista por um filósofo francês (2006b), sob o contexto da
publicação de Vigiar e punir (1997), Foucault mostra que o aparecimento da
organização prisional como pena universal e semelhante para todos faz parte
da história recente do ocidente. Nos tempos do Antigo Regime, no seio de
uma sociedade feudal, o valor de mercado do indivíduo como mão-de-obra
era mínimo, a própria vida, por causa das violentas epidemias, da grande
mortalidade infantil, escassez, etc, não tinha o mesmo valor que passará a ter
nos séculos seguintes. Até o século XVIII, com o absolutismo monárquico, o
suplício não desempenhava o papel de reparação moral, antes sua função era
de reconstruir a soberania do monarca que era manchada cada vez que um de
seus súditos perturbava a ordem de seu poder.
Na esteira de uma sociedade em plena transformação é na figura de
Charles Beccaria e dos reformadores que a questão da penalidade ganhou
outra dimensão através da proposta de uma nova economia penal sugerida
pela proporcionalidade entre o delito e as penas, ou seja, para um trabalho
um salário proporcional, para delitos uma pena proporcional. Contudo os
reformadores não introduziram a nova tecnologia política que necessitava a
sociedade nascente. Com a nova estrutura econômica da sociedade, a burgue-
sia precisa organizar sua chegada ao poder com a ajuda de uma nova tecno-
logia penal muito mais eficaz do que o suplício, ou, a proporcionalidade das
penas, que a propósito permaneceu nas variações das detenções contradita
pela privação da liberdade como castigo único.
199
Segundo Foucault (1997), um momento qualitativamente importante
na filosofia do castigo é a guilhotina, uma vez que, graças a esse aparelho
efetuava uma transformação do suplício em execução capital indolor, um
verdadeiro grau zero do sofrimento. Cabe ressaltar também que tais medi-
das punitivas não desempenham um papel meramente negativo de repressão,
mas positivo, na medida em que é utilizado para legitimar o poder que edi-
ta as regras. Com os príncipes, o suplício legitimava o poder absoluto, sua
atrocidade se desdobrava sobre os corpos, porque o corpo era a única riqueza
acessível. Com a emergência da casa de correção, do hospital, da prisão, dos
trabalhos forçados nasce também uma nova economia política da penalidade.
Para Foucault (2006b, p.155) mesmo sob o rigor da monarquia o con-
trole da sociedade era muito fraco, nas malhas frouxas da administração pas-
savam mil e um ilegalismos populares. O contrabando, a pastagem abusiva,
a colheita da lenha nas terras do rei, embora ameaçados de penas terríveis,
na realidade, raramente ocasionam perseguições. Entretanto, no fim do século
XVIII a burguesia com as novas exigências de uma sociedade industrial, com
uma maior subdivisão da propriedade, não pode mais tolerar os ilegalismos
populares, por isso, essa buscou novos métodos de coação do indivíduo, de
controle, de enquadramento e de vigilância. Para o filósofo francês a estrutura
arquitetural dessa exigência tecnológica é fornecida por Bentham, em 1791,
com seu panóptico, que permitia um esquema complexo de vigilância no qual
se controlava qualquer coisa e todo movimento sem ser visto. Nesse âmbito,
o poder desaparece, ele não mais se representa, mas existe diluído na infinita
multiplicidade de seu único olhar. Em tempos modernos, a prisão, bem como
um grande número de instituições que recentemente se disseminou no campo
social segue esse mesmo princípio de vigilância. Conforme este autor, a fisca-
lização, os asilos psiquiátricos, os fichários, os circuitos de televisão e tantas
outras tecnologias que nos envolvem são a concreta aplicação do panóptico.
Poderia se argumentar nesse caso que a prisão desde o seu começo foi
criticada como uma usina de delinqüentes. Como explicar então sua persis-
tência de mais de duzentos? Segundo Foucault, (2006b, p. 156) a prisão cria
e mantém uma sociedade de delinqüentes, o que inclui o meio, com suas
regras, sua solidariedade e sua marca moral de infâmia. Portanto, longe de ser
um estrondoso fracasso, a prisão é muito importante para o funcionamento
200
da estrutura de poder da classe dominante. Foucault (2006b) menciona que
sua primeira função é de desqualificar todos os atos ilegais que se reagrupa-
ram sob uma comum infâmia moral, o ilegalismo popular antes tolerado
é enquadrado agora sob o signo da delinquência. O delinqüente fruto da
estrutura penal é antes de tudo um criminoso como qualquer que infringe a
lei, seu castigo é a privação da liberdade.
Contudo, isso não impede a criação de uma zona intermediaria da
qual se serve a classe dominante para cometer seus ilegalismos, como ocorre
no caso da exploração do sexo, onde, instauram-se interdições, escândalos e
repressões em torno da vida sexual, permitindo transformar a necessidade
sexual em mercadoria. Portanto, a ligação com o poder existe na medida em
que há cumplicidade entre os delinqüentes e as estruturas policiais no con-
trole da sociedade. Deste modo, cria-se um sistema que se efetua em plena
cumplicidade por trocas e chantagens. Além disso, os delinqüentes têm outra
função nessa nova economia da criminalidade, a classe no poder se serve da
ameaça da criminalidade como um álibi contínuo para endurecer o controle
da sociedade. Como deixa explícito na entrevista Gerir os ilegalismos:
as vítimas da pequena delinquência cotidiana ainda são os mais pobres.
E o resultado desta operação é mesmo, afinal de contas, um gigantesco
lucro econômico e político. Um lucro econômico: as fabulosas somas que
a prostituição, o tráfico de drogas, etc, proporcionam. Um lucro político:
quanto mais delinquentes há, mais a população aceita os controles poli-
ciais; sem contar o benefício de uma mão de obra assegurada para tarefas
políticas inferiores: colocadores de cartazes, agentes eleitorais, furadores
de greve (Foucault, 2006f, p. 49).
O medo que a criminalidade suscita o faz funcionar como uma espécie
de “nacionalismo interno”, pois, o medo do inimigo o faz “amar” o exército,
o medo dos delinqüentes o faz “amar” o poder policial. No fundo o suplício
não desapareceu dos mecanismos da justiça criminal sendo incluído na pe-
nalidade incorporal. Mais do que nunca, essa nova penalidade pune, corrige
e cuida, sendo legitimada nos parâmetros da ciência moderna, estendendo
seu poder de controle, de imposição da norma. Conseqüentemente, o delin-
qüente não é fora da lei, mas ele se situa no centro dos mecanismos de poder,
passando insensivelmente da “[...] disciplina à lei, do desvio ao delito, em
201
uma continuidade de instituições que se remetem umas às outras: do orfana-
to ao reformatório, à penitenciária, da cidade operária ao hospital, à prisão
(FOUCAULT, 2006b, p. 158). Impressionante como aqueles que estão no
centro do mecanismos de poder muitas vezes correspondem aqueles que es-
tão à margem da noção de humanidade.
Na senda de Foucault, Vilela (2010), entende que a emergência de
uma sociedade do tipo capitalista, de uma produção mais intensa e eficaz
possível, exigiu que o olho do poder se disseminasse por todo corpo social,
fazendo com que cada indivíduo se sentisse efetivamente observado por ele.
Daí que se criasse uma verdadeira microfísica do poder. É a proliferação das
tecnologias disciplinares, cuja origem é extrajurídica. Como escreve Deleuze
(1988), a prisão como visibilidade do crime não deriva do direito penal como
forma de expressão, ao invés disso, ela provém horizonte diferente, discipli-
nário e não jurídico. Para Vilela (2010, p.210), essa visibilidade está presente
desde as primeiras obras de Foucault e se manifesta em Vigiar e punir (1997),
no qual as disciplinas implicam na visibilidade – do crime, da doença, da
loucura – desempenhando o papel de uma imagem da pena de privação da
liberdade, de alienação, de doença. No fundo vemos o que se ensaia uma
crítica política da visibilidade.
Na entrevista “O olho do poder” (2004), realizada após a publicação de
Vigiar e punir, Foucault revela que foi estudando as origens da medicina clínica
que pensou seus estudos sobre a arquitetura hospitalar na segunda metade do
século XVIII, a época do movimento de reforma das instituições médicas. No
Nascimento da clínica , o autor procurava entender como o olhar médico havia
se institucionalizado, como esse olhar se inscreveu efetivamente no espaço so-
cial e como a nova forma hospitalar era, ao mesmo tempo, o efeito e o suporte
de um novo tipo de olhar sobre a doença. Foi examinando os diferentes proje-
tos arquitetônicos elaborados depois do segundo incêndio do HôteI−Dieu, em
1772, que Foucault percebeu até que ponto o problema da visibilidade total
dos corpos, dos indivíduos e das coisas para um olhar centralizado havia sido
um dos princípios diretores mais constantes. Nesta época os médicos eram de
certa forma considerados os especialistas do espaço. Diz Foucault:
[n]o caso dos hospitais, este problema apresentava uma dificuldade suple-
mentar: era preciso evitar os contatos, os contágios, as proximidades e os
202
amontoamento, garantindo a ventilação e a circulação do ar: ao mesmo
tempo dividir o espaço e deixá−lo aberto, assegurar uma vigilância que
fosse ao mesmo tempo global e individualizante, separando cuidadosa-
mente os indivíduos que deviam ser vigiados. (Foucault, 2004, p.209).
Foucault (2004) admite que durante muito tempo se acreditou que
essa gestão calculada dos espaços eram problemas específicos da medicina do
século XVIII e de suas crenças. Contudo, a partir de seus estudos sobre as
sociedades punitivas chegando a Vigiar e punir até o livro A vontade de saber,
Foucault passa a elaborar elementos que nos permitem entender a propaga-
ção dos dispositivos de visibilidade.
Para compreender o que são esses dispositivos, Foucault (2004, p.216)
nos deixa algumas pistas - algumas em forma de metáforas - de que um gran-
de medo assombrou a segunda metade do século XVIII, “[...] o espaço escu-
ro, o anteparo de escuridão que impede a total visibilidade das coisas, das pes-
soas, das verdades”. Com o desbloqueio da população, era preciso dissolver
os fragmentos de noite que se opõem à luz, fazer com que não houvesse mais
espaços escuros na sociedade, era preciso demolir as câmaras escuras onde se
fomentava o arbitrário político, os caprichos da monarquia, as superstições
religiosas, os complôs dos tiranos e dos padres, as ilusões da ignorância, as
epidemias. Era necessário fazer com que as pessoas se sentissem mergulha-
das num campo de visibilidade, sob o olhar dos outros. Para Foucault, esse
reino da opinião, invocado com tanta freqüência nesta época, é um tipo de
funcionamento em que o poder se exerce pelo simples fato de que as coisas
serão sabidas e de que as pessoas serão vistas por um tipo de olhar imediato,
coletivo e anônimo. Um poder cuja instância principal fosse não tolerar re-
giões de escuridão.
Nesse registro, para Foucault (2004, p. 210), o projeto de Bentham
despertou interesse, pois fornecia a fórmula aplicável a muitos domínios dife-
rentes de um poder exercendo-se por transparências de uma dominação pela
iluminação. O panóptico servia para criar um espaço de legibilidade detalha-
da. Entretanto, antes de qualquer coisa, é preciso frisar que o panóptico foi
uma espécie de utopia, de uma forma pura elaborada no século XVIII para
fornecer ao exercício do poder um alcance imediato e total, o que passa ao
largo da realidade. Segundo Foucault (2006b) havia uma funcionalidade no
203
sonho de Bentham, mas nunca houve funcionalidade real deste na prisão. A
realidade da prisão sempre foi tomada em diferentes estratégias e táticas que
levavam em consideração o caráter espesso, pesado, cego e obscuro da prisão.
Em Vigiar e punir, Foucault (1997, p. 186-214) dedica um capítulo
para descrever o dispositivo panóptico. Ele funciona grosso modo assim: a prin-
cípio, na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta possui
grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção peri-
férica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção.
Estas celas têm duas janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo
às janelas da torre; outra, dando para o exterior, permitindo que a luz atra-
vesse a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia na torre central
e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário
ou um estudante. Devido ao efeito de contraluz, pode-se perceber da torre,
recortando-se na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas
da periferia. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de
um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia.
Para Foucault (2004, p. 2011) a própria palavra panóptico é fundamen-
tal. Ela designa um princípio de conjunto, Bentham não imaginou simples-
mente uma figura arquitetural destinada a resolver um problema específico,
como o da prisão, o da escola ou o dos hospitais. Esse anuncia uma verdadeira
invenção, sendo assim, na verdade aquilo que os médicos, os penalistas, os
industriais, os educadores procuravam: ele descobriu uma tecnologia de poder
própria para resolver os problemas de vigilância. Segundo Foucault (2004),
Bentham pensou e disse que seu sistema ótico era a grande inovação que permi-
tia exercer bem e facilmente o poder. Na verdade, ela foi amplamente utilizada
depois do final do século XVIII. Mas os procedimentos de poder colocados
em prática nas sociedades modernas são bem mais numerosos, diversos e ricos.
Seria falso dizer que o princípio da visibilidade comanda toda a tecnologia do
poder desde o século XIX, a visibilidade constitui apenas um dos elementos.
Como sublinha Larrosa (1995, p. 61), “[...] a visibilidade é, para Foucault,
qualquer forma de sensibilidade, qualquer dispositivo de percepção”.
Portanto, eis um fenômeno capital para a compreensão da biopolítica,
ou melhor, da necropolítica, a visibilidade. Ver e ser visto constitui parte
fundamental do processo de proliferação das tecnologias de poder do poder
204
disciplinar e da produção de subjetividades. E aqui devemos esclarecer uma
coisa, ver e ser visto, no contexto racial, envolve o que Gilroy uma relação
específica com o corpo e em um modo de observação do corpo, no qual as
tecnologias de poder e regimes de visibilidade moldam a estética, posto que
não existe uma percepção em estado natural, sem treino, residindo no corpo.
O sensorium humano precisou ser educado para a observação das diferenças
raciais.” (GILROY, 2007, p. 64). Para Gilroy (2007) é inegável as relações
entre as teorias e histórias do espectador e da observação, dos aparatos visuais
e da ótica com o regime de visibilidade raciológico. Como diz esse autor:
A história da escrita científica sobre as ‘raças’ se faz através de uma sequên-
cia longa e sinuosa de discursos sobre morfologia física. Ossos, crânios,
cabelo, lábios, narizes, olhos, pés, genitália e outras marcas somáticas de
‘raça’ têm um lugar especial nos regimes discursivos que produzem a ver-
dade de ‘raça’, tendo-a descoberto, repetidas vezes, alojada no corpo e nele
inscrita. [...] (Gilroy, 2007, p 56).
Considerações Finais
Considerando o que foi discutido neste artigo, penso ser necessário fa-
zer alguns apontamentos com fins de retomar algumas questões. Na primeira
parte o enfoque recaiu sobre as relações entre a vida e o poder, especialmente
a transição do poder de soberania para as modernas sociedades biopolíticas,
destacando sua importância no controle dos corpos e na regulação dos fenô-
menos populacionais. Para Foucault a primeira acomodação do biopoder
ocorreu no século XVII, centrada no controle individual através da discipli-
na, enquanto a segunda acomodação, no final do século XVIII, abordou os
fenômenos globais e populacionais, exigindo uma coordenação mais com-
plexa. Além do mais, Foucault ressalta os paradoxos do biopoder, como a
ameaça nuclear e a inserção do racismo no mecanismo de Estado. De uma
parte Ugarte-Pérez (2006) destacou a dependência crescente do biopoder em
relação ao desenvolvimento tecnológico, especialmente na era da informáti-
ca. E de outra, intérpretes contemporâneos como Esposito (2010) e Mbembe
(2016) alertam-nos como a política de vida moderna acaba por se trans-
formar em seu oposto como tanatopolítica e necropolítica, evidenciando as
205
estratégias de poder que expõem certas populações à morte cotidiana e à
vulnerabilidade social. Essas reflexões nos levam a repensar as estratégias de
poder, especialmente no contexto dos dispositivos prisionais.
A análise foucaultiana da prisão revela sua função como uma dispo-
sitivo de produção sujeito criminoso, mantendo uma sociedade onde a de-
linquência é fabricada e perpetuada. A classe dominante se beneficia desse
sistema, que desqualifica atos ilegais e transforma o ilegalismo popular em
delinquência. Essa estrutura penal cria uma zona intermediária para os ilega-
lismos da classe dominante, como na exploração sexual, utilizando o medo
da criminalidade para consolidar seu controle sobre a sociedade. Além disso,
a penalidade moderna, legitimada pela ciência, incorpora o princípio panóp-
tico, o que permite a prisão não somente estender sua vigilância punindo e
controlando os indivíduos como também gerando um regime de visibilidade
e percepção do criminoso. Por sua vez, Gilroy aproximando-se dos regimes
ópticos de Foucault destaca a importância da visibilidade na tecnologia do
poder, especialmente no contexto racial, onde as relações de poder moldam a
percepção e observação do corpo. Essa dinâmica contribui para a compreen-
são da necropolítica, evidenciando como as relações raciais são influenciadas
pelos regimes de visibilidade e pelas tecnologias de poder. Com isso, pode-se
argumentar para uma cumplicidade indissociável entre a prisão e o necropo-
der à medida que implicam a distribuição diferencial da precariedade huma-
na. Finalmente, talvez o exame preliminar possa nos conduzir a uma outra
compreensão do fenômeno que antes de ser uma instituição sumariamente
necessária para defender o corpo social, funciona precisamente como uma
maquinaria de produção de sujeitos criminosos.
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207
O Movimento Universal, Particular
e o Singular: sua Materialização
no Campo da Matemática
Osvaldo Augusto Chissonde MAME40
José Carlos MIGUEL41
Introdução
O presente estudo analisa o movimento universal, particular e singular,
bem como a sua materialização, no campo da matemática. Num primeiro
momento, a abordagem se dá em torno das correntes filosóficas que mar-
caram a discussão sobre as referidas categorias. Em um segundo momento,
faremos uma discussão sobre a relação existente entre o universal, particular
e singular e sua materialização no campo da matemática. Assim, dada a im-
portância dos estudos no campo da filosofia sobre as categorias mencionadas,
importa, mesmo que de forma sucinta, o esclarecimento sobre o entendi-
mento que se tem acerca do conceito de movimento.
A discussão deste conceito, enquanto forma universal do modo de ser
da matéria foi efetivada pelos pensadores, logo no começo do desenvolvi-
mento da filosofia, como forma particular da consciência social (Cheptulin,
2004). De acordo com o autor, entre os primeiros filósofos gregos o movi-
mento desempenhou o papel de princípio inicial, a partir do qual procurou-
-se explicar todos os fenômenos observados na realidade ambiente. Ainda
40 Doutor em Educação, Professor Auxiliar do Instituto Superior Politécnico da Caála e da
Universidade José Eduardo dos Santos – e-mail: osvalneusiomame@gmail.com.
41 Doutor em Educação, Professor Livre Docente do Departamento de Didatica da Faculdade de
Filosofia e Ciências – e-mail: jocarmi@terra.com.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p207-237
208
sobre o movimento, Cheptulin (2004) diz que:
Tomando como princípio primeiro uma ou outra substância concreta,
eles mostraram que todas as formas do ser observadas no mundo apare-
cem em decorrência de certas transformações dessa substância (princípio
primeiro) e que, organicamente ligadas, passando uma pela outra e pelo
princípio inicial Cheptulin (2004, p. 158).
Assim sendo, se o princípio primeiro a ser tomado for o ápeiron,
uma matéria indeterminada, a título de exemplo, Anaximandro, citado por
Cheptulin, dizia que:
O infinito é o princípio primeiro do existente, porque é dele que tudo
nasce e nele tudo se destrói. É dele que se desligaram os céus e os mundos
em geral, cujo número é infinito e eles todos aparecem depois que um
tempo bastante considerável tenha decorrido desde seu aparecimento; e
todos eles executam um movimento circular desde tempos imemoriais
(Cheptulin, 2004, p. 158).
No âmbito do materialismo dialético, em particular, de Engels, citado
por Cheptulin (2004, p.162), “o movimento aplicado à matéria, é a modifi-
cação em geral”. Em tal afirmação, o autor inclui todas as mudanças e todos
os processos que se produzem no universo, desde a mais simples do lugar até
o pensamento. Não houve, não há e não pode haver matéria sem movimento,
nem movimento sem matéria. Dito de outra forma, a matéria sem movimen-
to é tão inconcebível quanto o movimento sem matéria. O movimento é,
portanto, tão impossível de ser criado e destruído quanto à própria matéria
(Cheptulin, 2004).
Correntes filosóficas em torno das categorias: universal,
particular e singular
As categorias universal, particular e singular, da dialética materialista,
refletem a realidade objetiva do mundo como resultado de múltiplas deter-
minações e caracterizam aspectos essenciais do conhecimento produzido his-
toricamente pela humanidade. O estudo destas categorias surge ao mesmo
209
tempo com a filosofia, e foi objeto de variados debates por diferentes corren-
tes, entre elas as realistas e nominalistas (Cheptulin, 2004, p. 191).
Cheptulin (2004), ao descrever o pensamento da primeira corrente,
afirma que os realistas defendiam que o universal, existe de forma autônoma,
independentemente do singular. De acordo com o autor, entre os defensores
da primeira corrente alguns consideravam que o universal, por sua própria
natureza, existe sob forma de ideias, de essências, enquanto que outros decla-
ravam-no matéria, existindo fora e independentemente da consciência. De
um lado, os realistas declaravam o singular como fenômeno inexistente ou
secundário, dependente do universal e por ele engendrado. De outro, consi-
deravam como um fenômeno temporário, transitório, surgido sob influência
direta do universal e desaparecendo em condições análogas. Por sua vez, o
universal era constante, imutável, eterno (Cheptulin, 2004).
A segunda corrente, no caso a dos nominalistas, afirmava que não é o
universal, mas sim o singular que possui existência real. Para eles, o universal
é produto da atividade do pensamento dos homens e existe apenas em suas
consciências sobre forma de nomes gerais, designando objetos singulares. Em
relação ao singular, os representantes da corrente nominalista afirmam que
existe sob forma de objetos materiais isolados, sensações, nômades, átomos
espirituais únicos em seu gênero” (Cheptulin, 2004, p. 193).
A discussão entre as correntes realistas e nominalistas citadas por
Cheptulin (2004) apresenta lacunas por omitir as características reais das ca-
tegorias filosóficas universal e do singular, pois exclui a categoria particular
que, na relação entre o universal e o singular, assume o papel de mediação.
A superação da lacuna é creditada às teses marxianas e discutidas por vários
seguidores de sua corrente. Importa destacar que a relação dos entes filosó-
ficos em discussão – no caso a relação entre universal-particular-singular – é
fundamental porque explicita os movimentos específicos que constituem a
dinamicidade da realidade como um todo, os quais são representados em
nosso pensamento por meio de categorias (Oliveira, 2015).
Isto quer dizer que, ao fazer-se juízos da realidade objetiva, mesmo
ao analisar os fenômenos da natureza, seu movimento e desenvolvimento,
não é possível de forma separada ou isolada. Trata-se de uma unidade, tota-
lidade que em movimento avança do concreto real, ponto de partida, para
210
o concreto pensado como ponto de chegada, a síntese de muitas determina-
ções, isto é, a unidade do múltiplo (Lukács, 1978).
De acordo com o mesmo autor, citado por Pasqualini e Martins (2015),
a dialética entre singular-particular-universal é uma propriedade objetiva dos
fenômenos. Por essa razão, a lógica e a epistemologia que pretendem apreen-
der a realidade em suas conexões essenciais e básicas devem orientar-se pela
perspectiva de revelar a interpenetração dialética entre singularidade, particu-
laridade e universalidade.
Rosental e Straks (1958), defensores da corrente marxista, ao se debru-
çarem sobre as referidas categorias, afirmam que o universal é todo ato que
apresenta repetitividade e está intimamente relacionado com a lei, na medida
em que expressa o vínculo estável, essencial, interno e reiterado entre os fe-
nômenos. De igual modo, afirmam os autores que se denomina universal ao
grupo de classe de objetos, caracterizados por possuir notas comuns a todos
eles. “O universal se reflete no conhecimento sob a forma de conceitos gerais,
de juízos universais e das leis da ciência” (Rosental; Straks, 1958, p. 257).
Neste âmbito, pode-se afirmar que todas as propriedades, ligações, fe-
nômenos, que se repetem em seus acontecimentos (coisas, objetos e processos)
constituem o universal. Como exemplo, os conflitos armados enquanto pro-
cessos que se registram de tempo em tempo na humanidade. Todos provocam
mortes, dissolução das famílias, destruição de cidades, de economias, do tecido
humano e de forma recorrente são incitados pelas grandes potências em nome
de uma falsa expansão democrática mundial. Na verdade, o interesse é de per-
petuação de suas economias, de dominação e subordinação aos seus países.
Outro exemplo é o homem; sendo ele um ser vivo, que vive em sociedade, cuja
essência é determinada pelas relações de produção correspondentes. Ele é dota-
do de uma consciência, reflete o mundo ambiente por meio de um sistema de
imagens e ideias, possui uma família (Cheptulin, 2004, p. 194).
Quanto ao singular, os defensores das teses marxianas (Cheptulin,
2004; Rosental; Straks, 1958) afirmam ser um fenômeno ou objetos de-
terminados, um processo ou fato que se dá na natureza e na sociedade de
forma não repetível. De igual modo, pode-se denominar singular ou indi-
vidual o conceito de um fato ou acontecimento real único, isto é, pensa-
mento que abarca fato singular. Em relação à sua vinculação, “o singular ou
211
individual está intimamente relacionado com a casualidade e fenômeno
(Rosental; Straks, 1958, p. 259).
Para Cheptulin (2004), constituem o singular as propriedades e liga-
ções que são próprias apenas a uma formação dada (coisa, objeto, processo)
e que não existem em outras formações materiais. De acordo com o autor,
o singular para cada coisa é, por exemplo, o fato de que ela ocupa um lugar
dado no espaço, que é constituída justamente de moléculas dadas e que, ex-
posta a uma alta temperatura, ela emite fótons dados (Cheptulin, 2004, 194).
Podemos aqui retomar, exemplificando, os conflitos armados e suas re-
soluções como processos para explicitar fenômenos singulares. O continente
africano é palco recorrente de luta pelo poder entre as elites políticas e tribais.
Tal fato, no caso a ascendência pelo poder tem motivado o surgimento de
conflitos armados, muitas vezes apoiados e patrocinados pelas potências oci-
dentais. Esta, por sua vez, via “Nações Unidas” voltam para os países em con-
flitos internos na condição de mediadores de paz. Angola (2012), um desses
países, viveu uma guerra cruel sob patrocínio dos blocos ocidentais, durante
longos 26 anos de conflitos. Recebeu, neste período, diversos mediadores e
observadores de paz de várias nacionalidades, incluindo africanos a serviço
das Nações Unidas, União África, entre outras. Porém, nenhuma delas foi
capaz de estabelecer uma paz efetiva neste país africano, ocorrendo somente
pequenos acordos de trégua com duração temporária. A paz efetiva que este
país vive, passados mais de 18 anos, é resultado de um entendimento interno
entre os militares envolvidos no teatro de guerra.
Portanto, não dependeu da classe política e nem tribal angolana, tam-
pouco das potências ocidentais e organizações de manutenção de paz. Este
fato angolano, por ser único e irrepetível no mundo e em particular na África
é, sem dúvida, o ato singular, único. Com o exposto, concluímos que o sin-
gular é sempre um objeto concreto, ou seja, um fenômeno individual.
Segundo Rosental; Straks (1958), denomina-se particular a um grupo
de objetos, fenômenos ou fatos que, sendo gerais, formam parte ao mes-
mo tempo de outro grupo mais geral, dentro deste grupo. O particular se
apresenta como singular ou individual, isto é, como parte de um todo mais
amplo. De igual modo, compreende um conjunto de objetos que numa rela-
ção se apresenta como universal e em outra como individual ou singular. O
212
particular é, portanto, uma forma universal da existência da matéria, questão
que permite um relacionamento dos conceitos de corpo, coisa e de objetos
(Cheptulin, 2004).
No mundo real, o particular assume-se como o elo entre o singular e o
universal. No conhecimento o particular se expressa em forma de conceitos e
juízos “particulares”, os passos do conhecimento em seu desenvolvimento do
singular e do universal (Rosental; Straks, 1958)
Para Santana e Ferreira (2016), o particular é um fato intermediário
que mediatiza a relação do singular e do universal e vice-versa, tanto na reali-
dade, quanto no pensamento que capta o movimento, a estrutura. Em suma,
o particular é o campo de mediações. A partir deste pressuposto pode-se
considerar como exemplo, de particular no contexto do conflito armado an-
golano, dois cenários: o primeiro é fato de que apesar de serem os militares
os artífices dos acordos de paz, o ato foi formalizado em sede da Assembleia
Nacional de Angola, na presença das organizações internacionais e políticos
que, ao longo dos vários anos, buscavam a todo custo o estabelecimento de
uma paz definitiva em solo angolano. Um outro cenário no qual podemos
enquadrar o particular é o fato de que no âmbito do conflito armado angola-
no existiu um militar de nível superior (general), que combateu em ambos os
lados do conflito armado, o que lhe granjeou a possibilidade de ser o articu-
lador para a assinatura dos acordos de paz.
Relações existentes entre o universal, o particular e o singular: de suas
concepções à materialização no campo da matemática
Tal como anunciamos, a presente seção aborda a relação existente en-
tre o universal, o particular e o singular, bem como a sua materialização no
campo da matemática. Para tanto, três questões são levantadas: o que é uma
relação? Em que contexto do pensamento humano é discutida a relação entre
o universal, particular e singular? E como se efetiva a relação universal, singu-
lar e particular no campo da matemática?
Para Cheptulin (2004, p. 176), a categoria relação foi seguida e desen-
volvida por Kant para quem “a relação compreende ao mesmo tempo a liga-
ção e a separação”. De acordo com o autor, a ligação é a relação entre os ob-
jetos da realidade. Dito de outra forma, ela é existente entre dois fenômenos,
213
cuja modificação de um pressupõe a transformação do outro. Para melhor
elucidar a categoria relação, Cheptulin toma como exemplo o corpo e a mas-
sa. Para o autor, o movimento do corpo está organicamente ligado à massa,
já que a modificação do primeiro acarreta necessariamente a modificação da
segunda. Outro exemplo para a explicitação da categoria relação poderia ser
entre o homem e a natureza. A modificação do primeiro, passa necessaria-
mente pela transformação do segundo e vice-versa. A destacar: neste último,
existe uma categoria que serve de mediação entre homem e natureza, no caso,
a categoria trabalho.
Quanto à separação, Cheptulin (2004, p. 176) afirma ser uma relação
entre os fenômenos da realidade feita de tal forma que as mudanças de um
deles não afetam os outros fenômenos e não acarretam mudanças nestes úl-
timos. O autor toma como exemplo os princípios morais da sociedade e a
natureza exterior que, no seu entender, estão em estado de isolamento. Para
ele, as modificações dos princípios morais não acarretam uma mudança da
natureza e vice-versa. As mudanças na natureza não modificam os princípios
morais. Prosseguindo, afirma Cheptulin, que os fenômenos como natureza
biológica do homem e a luta de classes, as jazidas de carvão e de ferro, etc.
não estão ligados entre si. “Uma modificação de um não acarreta uma modi-
ficação do outro” (Cheptulin, 2004, p. 176).
Assim, é possível apresentar a relação e os nexos constantes entre o uni-
versal, o particular e o singular, categorias da dialética materialista trazidas por
diferentes autores no contexto do marxismo. De acordo com Lukács (1978),
a relação entre universal, particular e singular constitui um antiquíssimo pro-
blema do pensamento humano. O autor aponta que Lênin já havia se pro-
nunciado sobre a preocupação de Aristóteles ao observar o perigo ideológico
de uma autonomização do universal. Vale destacar que o comentário exposto
por Lênin se limita à relação dialética entre o universal e o singular, apesar
de criar possibilidade de extensão para o particular, dando ênfase maior à
questão em relação ao exposto por Aristóteles. Partindo do pressuposto dos
opostos (singular e universal), Lukács considera-os idênticos e diz que:
O singular só existe na ligação que conduz ao universal. O universal só
existe no singular, através do singular. Todas as coisas singulares são (de
um ou de outro lado) universais. Cada coisa universal é uma parte ou um
214
lado, ou a essência do singular. Qualquer universal abarca apenas aproxi-
madamente todos os objetos singulares. Qualquer elemento singular só
entra incompletamente no universal. (Lukács, 1978, p. 6).
O perigo da autonomização do universal, percebido por Aristóteles,
está vinculado ao tratamento gnosiológico dado por Platão, a universalidade,
e aprofunda-se na filosofia medieval com o realismo conceitual. Porém, a
componente importante deste perigo, de acordo com Lukács (1978), é a não
apreensão da singularidade, da particularidade e universalidade como deter-
minações da realidade. Essa precaução deve ocorrer inclusive nas relações
dialéticas recíprocas e ao contrário. O cuidado é para que uma só dessas cate-
gorias passe a ser considerada como a mais real em confronto com as outras,
ou até como única real, a única objetiva, ao passo que nas outras se reconhece
somente uma importância subjetiva (Lukács, 1978).
Apesar do debate sobre a relação do universal, do particular e do sin-
gular, ser objeto de estudo de vários teóricos, como Kant e Schelling, etc.,
Lukács (1978, p. 37), citado por Masson (2018, p. 32-33), considera Hegel
como, “o primeiro pensador a colocar no centro da lógica a questão das rela-
ções entre singularidade, particularidade e universalidade”. A autora pontua
que, para Hegel, o particular não é um estado intermediário estável entre o
universal e o singular, pois essas categorias são consideradas tanto como pro-
cesso quanto como resultado, estando todas em um mesmo nível da realidade
(Masson, 2018).
Lukács (1978, p.70) explica que com a inevitável mediação do par-
ticular ocorre o movimento do singular ao universal e vice-versa, ou seja, o
movimento da universalidade abstrata à concreta, da universalidade inferior
à superior, o que transforma a universalidade precedente numa particulari-
dade, bem como da singularidade puramente imediata à mediatizada, etc.
Importa mencionar que a partir deste movimento, pela primeira vez na ló-
gica, colocou-se a particularidade como sendo um insuprimível membro da
mediação entre a singularidade e a universalidade, em ambas as direções do
movimento (Lukács, 1978).
De acordo com Rosental e Straks (1958), a unidade do singular, parti-
cular e universal se expressa nas leis que regem o desenvolvimento da nature-
za. Para a elucidação desta tese, os autores partem, a título de exemplo, da lei
215
de gravitação enquanto lei universal que rege em todos os corpos materiais.
Segundo Dias et al. (2004, p. 20), esta lei de Isaac Newton, foi publicada na
obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, em meados de 1687, e
explicita que “dois corpos quaisquer se atraem mutuamente com uma força
que é diretamente proporcional ao produto das massas e inversamente ao
quadrado das distâncias”.
Para Rosental e Straks (1958), esta lei universal atua por meio de uma
série de leis particulares (por exemplo, através das leis de Kepler, que dão ra-
zão ao movimento dos planetas ao redor do sol, através da lei de queda livre
dos corpos). E estas leis “particulares se manifestam no movimento singular,
concreto, de um planeta dado” (Rosental; Straks, 1958, p. 268). Segundo os
autores, a mesma interdependência real, objetiva entre o singular, o particular
e o universal encontra-se nos fenômenos sociais. Para explicitação da afirma-
ção, tomam como exemplo a categoria trabalho por apresentar a unidade
entres estes três momentos: universal, singular e particular, uma vez que, o
trabalho por sua natureza universal mantém em todos os momentos a forma
de organização social e econômica (Rosental; Straks, 1958).
O trabalho, enquanto processo, é a atividade orientada a um fim, que
consiste na produção de valores de uso-apropriação do elemento natural para
satisfação das necessidades humanas. É condição “universal do metabolismo
entre homem e natureza, perpétua condição natural da vida humana e, por
conseguinte, independente de qualquer forma particular dessa vida, ou me-
lhor, comum a todas as suas formas sociais”. (Marx, 2013, p. 261).
De acordo com Rosental e Straks (1958), o trabalho, para além da
sua essência universal, apresenta suas características específicas. Os autores
adiantam que:
O que é universal no trabalho – a produção dos bens necessários para a
existência – se manifesta através do particular, sob uma certa forma his-
tórica e concreta. Por exemplo, a particularidade do trabalho assalariado,
baseia-se no fato de que o trabalhador que trabalha ao serviço do capita-
lista, que é o dono dos meios de produção e se apropria do produto do
trabalho do trabalhador. O trabalho assalariado, como qualquer tipo de
trabalho, só existe em processos singulares de trabalho, na forma de traba-
lho singular e concreto (Rosental; Straks, 1958, p. 268, tradução nossa).
216
Segundo esses dois autores, outros fatos sobre a vida social que confir-
mam a unidade entre o singular e o universal poderiam ser apresentados. Um
deles é as contradições internas inerentes a todos os fenômenos sociais e natu-
rais. Na explicitação acerca das contradições, Rosental e Straks (1958) citam
Mao Tse-Tung, ao afirmarem que a relação existente entre o caráter universal
e o caráter específico da contradição é a relação entre o universal e o singu-
lar. Eles explicam que o universal existe por meio do singular e sem este não
pode dar-se o universal. Da mesma forma, o singular não existe à margem de
seus nexos com o universal e que o universal só existe por meio do singular.
Prosseguindo a discussão sobre a interdependência existente entre o singular
e o universal, os autores citam a afirmação de Lênin de que todo o universal é
também uma parte, um aspecto ou a essência do singular. O universal existe
no singular que faz parte do universal. Assim, “o nexo indissolúvel que une a
estes contrários constitui a característica fundamental da dialética” (Rosental;
Straks, 1958, p. 269).
Dessa forma, concorda-se com Lênin, citado por Rosental e Straks
(1958), ao afirmar que “todo o singular forma parte, de modo incompleto do
universal”. Em tal fato reside a insuficiência do universal. Porém, de forma
recíproca, o singular é considerado insuficiente, pois só existe efetivamente
na relação com o universal. Esta relação demonstra que a verdadeira imagem
do mundo, tal como se apresenta na realidade, é uma unidade dialética destes
dois contrários: universal e singular (Rosental; Straks, 1958). Apesar desta
unidade dialética representar a verdadeira imagem do mundo, não se pode
deixar à parte a correlação do singular e do universal no particular e nem tão
pouco do universal e particular no singular.
Quanto à primeira, no caso a correlação do singular e do universal
no particular, Cheptulin, (2004) afirma que ela se manifesta como aspectos
únicos em seu gênero, que são próprios apenas a uma formação material
dada e a aspectos que se repetem nesse ou naquele grupo de outras formações
materiais, isto de um lado. De outro, é manifestação do singular no universal
e vice-versa, no processo de movimento e do desenvolvimento das formações
materiais (Cheptulin, 2004).
Ainda sobre o singular e o particular, enquanto categorias que se corre-
lacionam, o autor afirma que se o singular se apresenta como uma propriedade
217
que não se repete, o que é próprio de uma formação material (coisa, objeto
e processo), o particular assume-se como a própria formação material, a pró-
pria coisa, o próprio objeto, o próprio processo. O particular é simplesmente
o singular, mas é igualmente o geral (universal). Ademais, considera que a
correlação do particular e do universal (geral) representa uma correlação do
todo e da parte, sendo que o particular é todo e o universal (geral) é parte.
Assim, sendo uma parte do particular, “todo o geral (universal) engloba, ape-
nas aproximadamente, todos os objetos particulares” e “todo particular entra
de maneira incompleta no universal” (geral). Afinal, ele possui o singular ao
lado do geral (universal) e que, ao lado das propriedades únicas em seu gêne-
ro, são próprias exclusivamente dele (Cheptulin, 2004, p. 196).
A segunda correlação, no caso a do universal e do particular no sin-
gular, encontra-se em Lukács (2012), no âmbito da discussão da ontologia
de Hegel e suas determinações de reflexão. Neste estudo, Lukács relata que
as categorias universalidade, particularidade e singularidade aparecem como
conceitos novos na lógica do conceito. O conteúdo filosófico delas é extrema-
mente importante e rico de consequências para o conjunto da imagem hege-
liana do mundo. Mas, também, ele aparece encoberto pelo discurso lógico,
na medida em que as aplicações decisivas dessas categorias são incorporadas
na teoria do conceito – juízo – silogismo (Lukács, 2012, p. 276). Segundo o
autor, na lógica do conceito, a singularidade aparece como posta pela particu-
laridade, a qual, por sua vez, não é mais do que a universalidade determinada.
Mas adiante, Lukács afirma que:
A universalidade e a particularidade manifestam-se [...] como momentos
do devir da singularidade [...]. O Particular, pela mesma razão, por ser
apenas o universal determinado, é ao mesmo tempo também um singular;
e vice-versa dado que o singular é o universal determinado, ele é do mes-
mo modo particular. (Lukács, 2012, p. 276).
Essa afirmação lukacsiana leva-nos ao entendimento de que – a depen-
der do fenômeno ou problema social, econômico ou político a ser analisado
– ele pode apresentar-se como universal em um dado momento e, em ou-
tro, como uma singularidade, bem como uma particularidade. Retomemos
o exemplo do fenômeno do conflito armado e sua forma de resolução já
218
anunciada anteriormente. Ele é um fenômeno que acontece de tempos em
tempos no mundo, como consequência de disputas do poder entre as elites
políticas. Porém, a duração do mesmo e as formas de resolução assumem,
em alguns momentos, características repetíveis e noutros, irrepetíveis, isto é,
diferentes. Um outro exemplo importante é o da palmeira, planta tropical
oriunda principalmente de países da África, América Latina e Sul da Ásia.
Em todas as localidades de seu plantio ela assume um nome comum e repe-
tível, o de palmeira, o que a torna universal. Sua singularidade é denotada de
um lado no clima e período do plantio e noutro na forma de crescimento.
Algumas espécies podem atingir até quarenta metros de altura. A particulari-
dade é observada na forma de plantio sendo que umas podem ser plantadas
em vasos ou canteiros, em área externa ou interna, a depender das espécies.
Vale destacar que, no âmbito do conhecimento humano, a relação en-
tre as categorias universal, particular e singular se expressa no juízo. Segundo
Kopnin (1978, p. 198), juízo “é toda ideia relativamente acabada, que reflete
as coisas, os fenômenos do mundo material, as propriedades, as conexões e
relações destes”. O autor cita Hegel para quem o juízo é construído de acordo
com a forma: o singular é o universal (o sujeito é o predicado), isto é, por um
lado o singular é universal (o sujeito é o predicado), por outro o singular não
é o universal (o sujeito não é o predicado), uma vez que cada um deles apre-
senta-se como é (o singular é singular, o universal é universal) e se distingue
do outro. Essa unidade e diferença entre o singular e o universal (sujeito e
predicado) no juízo se “constitui na fonte do desenvolvimento, do movimen-
to do juízo” (Kopnin, 1978, p. 199).
A tese hegeliana do juízo como unidade do singular e o universal, an-
teriormente apresentada, foi reelaborada pelo marxismo-leninismo, com base
nos pressupostos do modo materialista. De acordo com Kopnin (1978, p.
199), Lênin observa que, na oração (juízo) há a dialética da relação entre o
singular e o universal, que reflete a dialética objetiva nas mesmas qualidades
(transformação do particular em geral, do casual em necessário, as transfor-
mações, irisações, a mútua conexão dos contrários). Para a elucidação da tese
de Lênin sobre os juízos que estabelecem a relação entre o singular e o uni-
versal, Kopnin toma como exemplo, as sentenças: ouro é um metal; trigo é
um vegetal gramíneo. Segundo o autor, nesses juízos se estabelece a existência
219
de propriedades comuns nas coisas singulares ou inclui-se o singular entre as
classes das coisas, sendo que, essa relação existe no mundo objetivo e o juízo a
reflete (Kopnin, 1978, p. 199-200). Vale salientar que a discussão sobre juízo
como unidade do singular e universal, assim como do particular no campo
do materialismo, não se esgota em Lênin, uma vez que Engels, outro estudio-
so do materialismo, pronunciou-se a respeito ao dividir todos os juízos em
juízos da singularidade, particularidade e universalidade.
Para Engels, citado por Kopnin (1978, p. 203), “no juízo da singu-
laridade registra- se um fato qualquer”. Para a justificação da afirmação, o
autor toma como exemplos: “o atrito produz o calor”; “elementos isolados
são capazes de desintegrar-se em componentes mais simples”. Enquanto que,
no juízo da particularidade, Engels estabelece que certa forma especial de
movimento da matéria revela a propriedade de transformar-se noutra forma
de movimento sob determinadas condições. Como exemplo, Engels diz que
o movimento mecânico se transforma em calor”; “todo um grupo especial
dos elementos mais pesados por nós conhecidos possui a propriedade da ra-
diatividade natural”.
Concluindo a discussão sobre as teses de Engels, Kopnin (1978) apre-
senta a característica do juízo universalidade, expressa na lei universal do mo-
vimento dos fenômenos: “toda forma de movimento da matéria é capaz de
transformar-se em qualquer outra forma de movimento”; “sob determinadas
condições cada elemento pode ser transformado em qualquer outro elemen-
to”. Para Kopnin, essa classificação dos juízos engloba todo o processo de seus
movimentos: do conhecimento dos fenômenos ao conhecimento da essência
(Kopnin, 1978).
A partir do exposto, no caso o juízo enquanto unidade do singular e
universal pode-se concluir que o movimento do juízo, que vai desde o singu-
lar ao universal por meio do particular, é uma lei específica do pensamento.
É, pois, um ato constante e estável deste que reflete uma lei da natureza, o
fato real de que em todo fenômeno singular há características universais e
particulares (Rosental & Straks, 1958, p. 278). Até ao momento procuramos
trazer respostas relacionadas com o contexto no pensamento humano, em
que é discutida a relação entre o universal, o particular e o singular. Tendo
por base as discussões dos diferentes pesquisadores do marxismo, conclui-se
220
que o singular, apesar de ser um fenômeno não repetível (único), pode apare-
cer no pensamento no âmbito dos fenômenos repetíveis, ou seja, do univer-
sal. Este, por sua vez, também pode transformar-se ou assumir características
singulares e vice-versa.
Quanto ao particular, para além de ser o elo que une o singular ao
universal, também pode assumir-se como singular; ou seja, como o próprio
fenômeno, coisa, objeto ou processo, isto de um lado. Por outro, pode assu-
mir-se como universal a depender do contexto em que o fato ou fenômeno
for apresentado ou analisado.
Na sequência, apresentamos a discussão sobre o contexto em que se
efetiva a relação universal, singular e particular no campo da matemática.
Para tal, urge a necessidade de remeter-se, a priori, à gênese de todo conhe-
cimento humano: a atividade prática. Ela constitui um dos fatores determi-
nantes do conhecimento.
De acordo com Cheptulin (1978), o conhecimento começa precisa-
mente com a prática, que funciona e se desenvolve nesta base e, por ele, a
mesma se realiza. É precisamente com base na prática que se “formam as ca-
tegorias nas quais são refletidas e são fixadas as ligações e as formas universais
do ser” (Cheptulin, 1978, p. 57). Para o autor, o conhecimento que se desen-
volve com base na prática representa um processo histórico, no decorrer do
qual o homem penetra de forma mais profunda no mundo dos fenômenos.
Assim, Rosental e Straks (1958) afirmam que a significação das cate-
gorias singular, particular e universal para atividade prática está determinada,
antes de tudo, pelo fato de que a consideração do singular e do universal em
sua unidade e diferenças, responde a um dos princípios fundamentais da
dialética: ao abordar de modo histórico e concreto os fenômenos, quer dizer,
responde ao princípio da verdade concreta (Rosental; Straks, 1958, p. 287).
Partindo dos pressupostos anteriormente descritos, é possível afirmar
que os conhecimentos matemáticos que se conhecem até hoje foram adqui-
ridos pelos homens desde as primeiras etapas do desenvolvimento humano,
trazendo a influência da atividade prática diária, isto é, da necessidade de
contar, de medir a capacidade dos recipientes, de medir o tempo, de confec-
cionar planos para a edificação de casas e divisão de terras para o exercício de
atividades agricultáveis.
221
A fundamentação dessa afirmação pode-se ser encontrada em Ribnikov
(1987), para quem as matemáticas surgiram da atividade produtiva dos ho-
mens e que seus novos conceitos e métodos foram fundamentalmente formu-
lados sob influência das ciências naturais exatas. Neste sentido, vale destacar
que existiram diferenças, por parte dos povos, para o desenvolvimento dos
conhecimentos matemáticos. Porém, apesar das distintas vias de seu desen-
volvimento, é comum para todos os povos, que os conceitos básicos das ma-
temáticas – número, figura, área, prolongação infinita da série natural, etc.
– surgiram da prática e atravessaram um longo período de aperfeiçoamento
(Ribnikov, 1987, p. 20).
Como exemplo do exposto, toma-se o próprio conceito de número
que surgiu como consequência da necessidade prática de contar os objetos,
pois, no princípio, a contagem valia-se da ajuda dos meios disponíveis como:
dedos, pedras, etc. A este respeito, Davýdov (1982) entende que a atividade
laboral, experimental, por sua essência permite aos homens a revelação das
conexões indispensáveis e universais dos objetos. O autor aprofunda esta dis-
cussão citando Engels, para quem a forma da universalidade é, de um lado, a
da perfeição interna. Por outro lado, a forma da universalidade na natureza é
uma lei. Exemplificando, Engels, citado por Davýdov (1982), diz o seguinte:
Quando o homem sabe que o cloro e hidrogênio sob ação da luz e a uma
determinada temperatura e pressão se unem na forma de gás e originam
uma explosão, ele também sabe por isso mesmo que acontecerá sempre e
em todas as partes em que se conjuguem ditas condições. Este conheci-
mento não depende se o evento ocorrerá uma vez ou repetirá milhões de
vezes, não importa em quais corpos celestes Davýdov (1982, p. 283-4).
O exemplo apresentado por Engels, citado por Davydov, traz consigo
a ideia do conhecimento e ascensão do singular para o particular e, depois,
para o universal. No entanto, fica claro que as condições indicadas, aper-
feiçoadoras internamente do processo, foram encontradas no experimento
prático como forma especial da atividade produtiva (Davydov, 1982, p. 284).
Desse modo, entende-se que a universalidade da atividade prática e a capaci-
dade de transformação da natureza pelo homem, por meio do experimento,
constituíram a base de todas as formas de conhecimento teórico. Conforme
222
Davydov, com base em Lênin, “a prática é superior ao conhecimento teórico,
pois possui não apenas a virtude da universidade, mas também a realidade
imediata” (Davydov, 1982, p. 285-286).
Neste sentido, vale destacar que a matemática como ciência é uma das
formas da consciência social dos homens. Por isso, apesar da conhecida singu-
laridade qualitativa, as leis que regem seu desenvolvimento fundamentalmente,
são gerais para todas as formas de consciência social (Ribnikov, 1987, p. 15).
Segundo Engels, citado por Ribnikov (1987), constitui objeto da ma-
temática as relações quantitativas e formas espaciais do mundo real. As dife-
rentes ciências matemáticas têm a ver com as formas particulares, individuais
destas relações quantitativas e formas espaciais ou se distinguem pela singula-
ridade de seus métodos. Neste sentido, entende-se a Matemática como uma
totalidade constituída de diferentes partes como (Aritmética, Geometria,
Álgebra, etc.). Estas partes do todo, que é a matemática, assumem posições
de singularidade, em um dado momento e em outros de particularidade. Da
mesma forma, constituem-se em universalidade a depender do contexto e do
processo de investigação. Estas partes, cuja gênese é atividade prática, estão
unidas pelo mesmo objeto de estudo, daí que sua relação universal se mate-
rializa no âmbito das relações entre grandezas.
De acordo com Costa (1866, p. 9), chama-se “grandeza tudo quanto
é suscetível de aumento ou diminuição, por exemplo: a extensão, o tempo,
o peso e o movimento”. As grandezas distinguem-se em incomensuráveis e
comensuráveis (quantidades que podem ser medidas por um padrão). Estas
são objeto das ciências matemáticas, que podem ser: contínuas (aumentam
ou diminuem por graus tão pequenos quanto possível, como a extensão) e
descontínuas (não permitem o aumento e diminuição por graus tão peque-
nos quanto se queira). É com base em grandezas descontínuas que se chega à
ideia de número (Costa, 1866).
Dito de outra forma, as relações entre grandezas são a base principal e
primeira para o surgimento do conceito de número real, como também serve
de base genética dos conceitos teóricos matemáticos, para os quais se voltam
o ensino escolar (Mame, 2014).
Este pensamento está em concordância com Rosa (2012), para quem
as grandezas constituem-se em elemento central do processo de formação
223
do pensamento teórico da matemática. Razão pela qual se dá ênfase, em
Davýdov (1982), à sua afirmação de que no processo de formação do pensa-
mento existe a possibilidade de as crianças assimilarem com bastante detalhes
os conhecimentos sobre as grandezas. Para tal, faz-se necessária a presença dos
objetos físicos, não para explicitar as características externas, mas de modo
que permitam a familiarização e apropriação de suas propriedades fundamen-
tais (Mame, 2014, p. 76).
A concretização destas premissas serão enfatizadas durante o estudo das
grandezas no contexto das tarefas particulares propostas no sistema Elkonin-
Davídov- Repkin e proposições angolanas. A referência será a introdução das
significações aritméticas, geométricas e algébricas, no primeiro ano do ensino
fundamental. Também terá como pressuposto de análise os conceitos de adi-
ção, subtração, multiplicação, divisão, com foco no processo de movimento
do pensamento de ascensão do abstrato ao concreto. Estas duas categorias da
dialética marxista são importantes e surgem da necessidade de compreender
com profundidade o processo do conhecimento e permite captar a dialética
do reflexo da realidade na consciência humana.
De acordo com Rosental e Straks (1958), o concreto e o abstrato estão
intimamente ligados com outras categorias da dialética, particularmente com
a essência e fenômeno, lei, análise e síntese, o lógico e o histórico, o sensível
e o racional. O concreto no conhecimento reflete o fato objetivo de que os
fenômenos e objetos da realidade existem em uma unidade, como um todo
composto de diferentes aspectos, qualidades e relações. O abstrato pode dar-
-se no conhecimento porque os diferentes aspectos e as diversas propriedades
e relações dos objetos e fenômenos possuem uma relativa autonomia, que se
distinguem entre si, se dão em uma distinta relação com a essência. Por ele,
no conhecimento, se pode separar alguns aspectos ou propriedades dos obje-
tos, abstraindo-se de todos (Rosental; Straks, 1958, p. 298).
A percepção destas categorias da dialética marxista, associada ao mo-
vimento universal, particular e singular e sua materialização prática no cam-
po da matemática será apresentada nas tarefas a seguir, as quais explicitam
a relação existente entre as significações aritméticas, geométricas e algébri-
cas a partir do modo de organização do ensino de matemática do sistema
Elkonin-Davidov-Repkin.
224
Nas primeiras tarefas, os estudantes são submetidos à análise concei-
tual de comprimento, área, volume e massa atreladas às primeiras abstra-
ções: igualdade, desigualdade e quantidade. Isso significa que, aos poucos, a
universalidade, o geral, dos conceitos matemáticos (relação entre grandezas)
vão se explicitando – às vezes, singularmente como também particularmente
– nas tarefas. Nas primeiras tarefas, o objetivo será o de analisar a igualdade
entre os objetos, tendo por base o comprimento e amassa. Para a respectiva
comparação, usar-se-ão os segmentos como auxílio de verificação (figura 10).
Figura 20 - Igualdade entre os objetos
Para a ação investigativa, o professor questiona os estudantes: Qual é
a característica que pode tornar estes objetos iguais? Os estudantes analisam
cada uma das características conhecidas (se for necessário o professor faz as
comparações, colocando os corpos um contra o outro de modos diferentes).
Depois de várias possibilidades, chega-se à conclusão de que os objetos se
diferenciam, respectivamente pela altura e pela massa, conforme a figura.
Figura 21 - Demonstração da igualdade pela altura e pela massa
No sistema Elkonin-Davidov-Repkin, é criteriosa a postura de contem-
plar os pressupostos do método materialista histórico e dialético. Observa-se
que as tarefas particulares – como estas analisadas – partem de algo que ca-
racteriza uma atividade prática, mas não fica nela em si, o que caracterizaria
225
um processo de apropriação empírica de conceito. É para evitar tal tipo de as-
similação que a tarefa propõe uma representação geométrica por meio de seg-
mentos. Além disso, há os primeiros indícios da ação de modelação de duas
formas: modelo objetal (figuras referências de análise) e gráfica (segmentos).
Também, é manifestação da transição da gênese do conhecimento matemá-
tico (atividade prática) com as primeiras manifestações de registros gráficos.
A próxima tarefa se volta ao estudo de tarefas que trazem a noção ma-
temática de soma (aumento) e diferença (diminuição). Importa lembrar que
ainda não estará em causa a discussão das operações matemáticas com nú-
meros, porém o foco será na operação entre grandezas. É neste âmbito que
o professor coloca sob sua mesa dois recipientes iguais e no quadro dois seg-
mentos de comprimentos diferentes (Figura 22). O professor explica que os
segmentos representam o volume de água a ser colocado, pelos estudantes,
dentro dos recipientes. Ele sugere que, primeiramente, seja preenchido o vo-
lume indicado por este segmento (mostra o segmento menor), e só depois
colocar a água no outro recipiente (Го р б о в ; Микулина; Савельева, 2008).
Figura 22 - Medida de Volume a partir da indicação de segmentos
Para o cumprimento das orientações, no decorrer da ação investigativa,
a tarefa estabelece que dois estudantes, um após o outro, dirijam-se até a mesa
do professor para a execução das manipulações necessárias, colocando o líqui-
do no recipiente conforme estabelecem os segmentos. Enquanto decorre esse
processo, os demais estudantes observam atentamente se a manipulações estão
sendo realizadas corretamente. Na ação investigativa, eles descobrem que o im-
portante não é a quantidade de líquido colocado em cada um dos recipientes,
mas sim a condição dada pelo cumprimento de dois segmentos: que o volume
de líquido no primeiro recipiente seja menor que no segundo (Mame, 2014).
De acordo com Mame (2014, p. 102), “a tarefa coloca o pensamento
dos estudantes em movimento, não mais dado diretamente, mas pela situação
226
em si de lidar com líquido e os recipientes, a fim de elaborar conclusões sobre
o maior ou menor volume e, por extensão, a capacidade”. Agora, para atingir
tal finalidade, é apresentado um elemento mediador eminentemente geomé-
trico – os segmentos –, o que dá um teor abstrato na orientação da execução
da tarefa. Ou seja, a essência do desenvolvimento da tarefa é determinada
pelo comprimento dos segmentos.
A tarefa, a seguir (Figura 23), apresenta o mesmo teor da anteriormente
analisada, porém com objetivo de investigar a igualdade de valores. Outra vez,
o professor coloca sobre sua mesa dois recipientes iguais, mas com diferentes
volumes de líquido. Os estudantes notam a diferença existente pelo volume do
líquido e representam por meio de segmentos, tanto no quadro, quanto nos
cadernos. Feita a observação, o professor explica aos estudantes, recomendando
que o volume de líquido do recipiente menor se iguale ao recipiente de maior
volume de líquido (Горбов; Микулина; Савельева, 2008).
No decorrer da ação investigativa, as crianças dizem que basta adicio-
nar uma quantidade de líquido, o que é executado. Mas, a questão primordial
da tarefa é a representação dessa operação no segmento. Há, pois, um vínculo
entre o ato de lidar com o líquido e o do uso dos segmentos. Para tanto, há
uma referência ao maior, tanto em relação ao recipiente quanto em relação
ao segmento, que não sofre ação direta na grandeza do volume (recipiente)
como no comprimento (segmento). Por sua vez, essas mesmas grandezas se
alteram ao se considerar a menor, de modo que se estabeleça uma igualdade
em relação às duas situações. Isso significa que o aumento do volume acarreta
na necessidade de acréscimo no segmento. Porém, não é algo aleatório nem
indicado verbalmente pelo professor ou algum estudante, mas determinado
pelo segmento de referência (Mame, 2014, p. 103).
Figura 23 - Igualdade de volume pelo aumento de uma situação.
227
Para Mame (2014), a percepção dessa determinação pelos estudantes
só ocorre por consequência do modo de organização do ensino, que os levam
às apropriações necessárias. Essa premissa está em concordância com Puentes
(2013), ao afirmar que a educação e o ensino precisam levar em considera-
ção um aspecto fundamental: a criação de melhores modos de organizar os
processos e práticas educativas. Modos esses que possibilitem a aquisição das
habilidades e as condutas em um sistema harmonioso no qual cada parte sir-
va de base e premissa para assimilação de outros sistemas, em vez de aspectos
separados uns dos outros, como acontece ainda hoje, em currículos baseados
em disciplinas estanques (Puentes, 2013, p.178). Este pressuposto de melhor
organização de ensino verifica-se no processo de análise das figuras, isto é,
aquilo em que uma determinada tarefa era ação para apropriação de uma de-
terminada ideia conceitual, em outra se constitui em operação para novas ela-
borações (Leontiev, 1978, apud Mame, 2014). Esse processo transformativo
faz com que o teor geométrico de segmento e volume cada vez mais conclame
por significado aritmético.
Para Alves e Damazio (2019), a tarefa apresentada, trata igualmente de
elementos conceituais, tais como: a medição, o aspecto quantitativo (aumen-
tar o volume) e a representação do resultado da medição. Assim, os direciona-
mentos do professor colocam o pensamento das crianças em movimento, na
busca da explicitação da relação universal todo-partes, peculiar ao conceito
teórico de adição e subtração. Tal fato ocorre pelo trânsito dos estudantes por
dois tipos de representações: objetal (recipientes e líquido) e gráfica (segmen-
tos). Ainda, para os autores, haveria duas possibilidades de solução: aumentar
e diminuir o volume de líquido de um ou de outro recipiente e do respectivo
segmento. Porém, a tarefa direciona para a ideia de aumentar. No entanto,
isso só é possível com a presença do outro recipiente e do segmento, que pos-
sibilitam a comparação (Alves; Damazio, 2019, p. 458 - 459).
No prosseguimento da análise, Alves e Damazio (2019, p. 459) con-
sideram que a tarefa, implicitamente, configura-se em outra ideia central
do sistema conceitual em foco que é a relação de igualdade e desigualdade.
Ora, se é preciso aumentar, significa que se está diante de uma desigualda-
de que, conceitualmente, demanda um movimento que leve à igualdade, o
que requer uma referência, no caso, o recipiente com maior volume. Nessa
228
circunstância de aumento, configura-se o prenúncio de outra ideia caracte-
rizadora do sistema conceitual: se há uma parte, é necessário o acréscimo de
outra para atingir o todo.
De acordo com Gorbov, Mikulina, Savieliev (2008), citados por Alves
e Damazio (2019), nessas duas representações, há uma ideia peculiar ao sis-
tema conceitual: determinar a diferença. Tem-se uma parte conhecida, re-
ferência que cria a necessidade de identificação da outra, o que ocorre com
a determinação da diferença. Alves e Damazio observam igualmente que a
tarefa traz ideias e abstrações com um teor anunciativo, uma vez que elas se
apresentam no contexto da primeira ação de estudo do modo davydoviano de
organização de ensino. E afirmam que a atenção não está somente na mani-
pulação dos objetos, mas no movimento que incita o surgimento de elemen-
tos conceituais que se configurarão na representação gráfica que a situação
propõe. Tal fato, ocorre na relação entre dois segmentos de retas, em que um
deles precisa ser aumentado até se igualar ao de maior comprimento, con-
comitantemente, à ação objetal de acrescentar líquido no recipiente. Assim
sendo, “a relação todo-partes se inicia no âmbito conceitual das abstrações de
igualdade e desigualdade, representadas por duas grandezas distintas: a obje-
tal, que tratou do volume, e a gráfica (representação geométrica), reveladora
da grandeza comprimento” (Alves; Damazio, 2019, p. 459).
O exposto é indício para buscar formas de dizer o quanto aumenta ou
diminui e as operações necessárias, ou seja, número e operações de adição
e subtração. Esta é prenunciada na tarefa (Figura 24), que se diferencia da
anterior por prever que se iguale o valor maior ao menor. Isso implicará na
diminuição do líquido ou material do recipiente com maior volume; bem
como em relação ao segmento (Горбов; Микулина; Савельева, 2018, apud
Mame, 2014).
Figura 24 - Igualdade do volume pela diminuição de uma situação
229
Na análise da tarefa, recomenda-se a diminuição do valor maior por meio
da subtração ou eliminação da diferença. No segmento maior, a demonstra-
ção será feita com riscos verticais em uma parte até atingir o comprimento do
menor (Горбов, Микулина, Савельева, 2008 apud Mame, 2014). Importa
salientar que a demonstração das relações existentes entre os volumes e a capa-
cidade, por meio de tiras e segmentos, marca o início da modelação das relações
entre grandezas que, gradativamente, serão reproduzidas na forma gráfica e lite-
ral (Rosa, 2012). Tais relações se convertem em “objeto das ações” das crianças
e suas leis em objeto de apropriação (Galperin et al., 1987, p. 311).
Segundo Matos (2017, p. 41) “as relações entre grandezas, na especifi-
cidade da tarefa em análise, volume, constituem o caráter geral da proposição
davydoviana”. Com base nelas, são introduzidos os conceitos matemáticos
concernentes à educação básica (Davýdov, 1982).
A execução da tarefa anterior (Figura 23), por exemplo, requer opera-
ção com a grandeza volume e análise da equivalência. A relação entre as duas
grandezas é representada geometricamente por meio de dois segmentos de reta.
Segundo Davídov (1988), tal procedimento é um processo necessário para a
transformação dos dados obtidos, por meio da contemplação e da represen-
tação, em tarefa do pensamento teórico que precisa elaborá-los em forma de
conceito. Por isso, requer a reprodução integral do sistema de conexões internas
que lhe deram origem, por meio da relação todo-partes (Matos, 2017, p. 42).
A síntese da análise, que se pode fazer sobre as tarefas anteriores apre-
sentadas (figuras 24 a 26), é que explicitam as relações entre grandezas com
a utilização dos segmentos, como elemento mediador, para a indicação da
igualdade e desigualdade entre objetos: pela altura, forma, volume, etc., no
âmbito do aumento ou diminuição de uma situação. O não menos impor-
tante é que, também, trazem a gênese do pensamento algébrico, no seu pri-
meiro estágio, isto é, a álgebra retórica ou verbal. Neste estágio, os argumen-
tos da resolução de um problema são descritos sem abreviações ou símbolos
específicos (Bonadiman, 2007).
Sousa (2004, p. 104) considera que, a fase retórica se constituiu na
primeira tentativa do homem em representar o desconhecido das quanti-
dades. A linguagem retórica da álgebra é definida por Fraile (1998, p. 11),
citado por Sousa (2004, p. 106), como “a ferramenta inicial, mas básica, a
230
linguagem ordinária”. Para a autora, é com essa linguagem retórica que, após
uma depuração e precisão dos termos para que se evitem ambiguidades, se
faz maravilhas “se reflete, se constroem teoria”. Para a fundamentação do
anteriormente descrito, Sousa (2004) toma como exemplo a lógica aristoté-
lica que serve não apenas para se comunicar, mas sim como “ferramenta de
pensamento” (Sousa, 2004, p. 106).
Importa salientar que as tarefas (1 a 5) analisadas apresentam uma in-
terligação entre as significações aritméticas, geométricas e algébricas. No en-
tanto, apesar de serem tarefas introdutórias, elas explicitam a relação univer-
sal, singular e particular, isso em função das relações entre grandezas. Nestas
tarefas, é notável a geometria aparecer em todo momento como elemento
mediador entre a significação aritmética e algébrica.
Vale destacar que, nas proposições até agora analisadas, verifica-se que
as tarefas estão organizadas e estruturadas de forma a permitirem, aos es-
tudantes, conhecerem as características externas e internas dos objetos, se-
guindo o processo de pensamento de ascensão do abstrato ao concreto. Este
processo verifica-se tão logo os estudantes tomam contato com os objetos
que, a priori, aparecem como um vislumbrar de abstrações, mas depois de
generalizados atingem a concretude do conceito, orientando o desenvolvi-
mento (Mame; Miguel, Miller, 2020).
Este pensamento corrobora com Libâneo e Freitas (2013), ao explicitar
que, para se chegar ao conceito do objeto, o pensamento do aluno segue o
caminho da abstração e generalização. Seu pensamento, dizem os autores,
precisa realizar o trânsito e as transformações do objeto desde sua manifesta-
ção abstrata até sua manifestação concreta, desde seu caráter generalizado ao
seu caráter singular. Ainda, de acordo com os autores, neste trânsito, “o pro-
cesso de generalização conceitual desempenha uma função básica: permite
ao aluno conhecer o objeto percebendo como seu aspecto geral – universal,
também aparece em cada caso particular” (Libâneo; Freitas, 2013, p. 335).
Além das ações apresentadas que ilustram o movimento universal,
particular e singular e sua materialização no campo da matemática, outras
tarefas podem ser apresentadas no âmbito da interligação entre as signifi-
cações aritméticas, geométricas e algébricas. Tal como foi discutido, o estu-
do recai para o modo de organização do ensino de matemática do sistema
231
Elkonin-Davidov-Repkin. Dada a infinidade de tarefas que trazem na sua
essência o movimento universal, particular e singular e sua materialização no
campo da matemática elegeremos apenas duas que explicitam as operações
aritméticas da adição e subtração.
Vale lembrar que a introdução das operações de adição e subtração
ocorre na proposição de Elkonin-Davídov-Repkin, com a determinação de
um valor desconhecido, tendo como base dois valores já conhecidos, a partir
da reta numérica. Segundo Rosa (2010, p. 196), a adição e a subtração são in-
troduzidas, respectivamente, como contagem para frente ou para trás, na reta
numérica. Posteriormente, são registradas como sentenças e, gradualmente,
elevadas ao plano mental. Razão pela qual, a tarefa é apresentada com base na
reta na numérica, para que os estudantes completem o seguinte registro: __
> 5. Com a condição de que a diferença seja de duas (2) unidades (Горбов;
Микулина; Савельева, 2008).
Esse pressuposto leva o professor a sugerir que os estudantes encon-
trem, na reta numérica, o número 5. Direciona a continuação do desenvolvi-
mento da tarefa com questionamentos do tipo: “O número desconhecido é
maior ou é menor que 5? Para que lado devemos prosseguir pela reta numé-
rica de acordo com a seta (se distanciando do início) ou para o lado contrário
da seta (para o início)? Quantos passos temos que dar a partir do número 5?”
A análise dos questionamentos leva os estudantes a concluírem que
serão 2 unidades ao lado oposto da origem, porque o número procurado é
maior que 5 e a diferença é 2 unidades. O registro da operação realizada é
apresentado no quadro pelo professor (5 + 2), conforme figura 23. E explica:
“Partimos do 5; estamos à procura de um número maior, por isso vamos
para o lado contrário do início e marcamos com o sinal de “adição”; no fi-
nal, colocamos quantas unidades são deslocadas, a partir do 5. O resultado
será: 2+5=7. Este registro pode ser lido de várias maneiras, como por exem-
plo, “cinco mais dois dá sete” ou “se acrescentar dois ao cinco, vai dar sete
(Горбов, Микулина e Савельева, 2008).
232
Figura 25 - Representação geométrica da adição de um número
Fonte: Rosa (2012, p. 197).
A operação de subtração é apresentada por meio de um procedimento
análogo à adição. Porém, com deslocamento na reta numérica em sentido
contrário, pois elas são inversas entre si (Rosa; Damazio; Alves, 2013, apud
Matos, 2017, p. 45). Gradativamente, a linguagem matemática é introduzida,
por exemplo, com destaque, pelo professor, do número 7 na reta numérica e
os estudantes registram-no (7). Em seguida, desloca-se para a esquerda (este
movimento é representado pelo sinal de menos) em duas unidades (Figura
26). Pronuncia-se o número encontrado (5). Para finalizar, procede-se à lei-
tura da operação realizada: sete menos dois igual a cinco: 7 – 5 = 2 (Горбов;
Микулина; Савельева, 2008).
Figura 26 - Representação geométrica da subtração de um número
As tarefas apresentadas no âmbito das operações da adição e subtração
reforçam a tese de que, nas proposições do sistema Elkonin-Davídov-Repkin,
o ensino de matemática é organizado de forma que contemple a inter-relação
entre as significações matemáticas, por meio da relação entre seus diversos
conceitos, sistema conceitual (Vygotsky, 1993). Uma peculiaridade a destacar
é que nessas significações, além do sistema conceitual e seu nexos, trazem vin-
culações entre aritmética, geometria e álgebra, partes constituintes de um todo
que é a matemática. Como temos anunciado, ao longo deste texto, as propo-
sições do sistema Elkonin-Davídov-Repkin trazem um número de tarefas que
pela sua diversidade e complexidade contribuem para o desenvolvimento do
233
pensamento teórico matemático dos estudantes. Nisso está a manifestação de
que a relação universal/singular/particular é uma de suas peculiaridades.
Procuramos demonstrar, ao longo do texto, como se materializa o mo-
vimento universal, particular e singular no campo da matemática a partir da
inter-relação das significações aritméticas, algébricas e geométricas, tendo por
base o sistema Elkonin-Davídov-Repkin. As tarefas explicitam que tal relação
surge no âmbito da medição de grandezas, linha reta, igualdade e desigual-
dade, reta numérica, uso das operações aritméticas da adição, subtração e na
determinação do significado do todo e as partes.
Ao terminar a discussão sobre adição e subtração, como tendo a re-
lação essencial todo-partes, vale destacar que as tarefas (6 e 7) explicitam,
a priori, a relação existente entre as significações aritméticas, geométricas
e algébricas e, a posteriori, o objeto central desta pesquisa, que é a relação
universal-singular-particular.
Considerações Finais
A título de considerações finais do presente capítulo, vale descatar que
a discussão se voltou ao movimento universal, particular e singular e sua
materialização no campo da matemática. O estudo aponta ser essa temática
o objeto de estudo de vários teóricos. Os pesquisadores afirmam que o uni-
versal é todo ato que apresenta repetitividade e está intimamente relacionado
com a lei. Quanto ao singular são unânimes em afirmar ser um fenômeno
ou objetos determinados, um processo ou fato que se dá na natureza e na
sociedade de forma não repetível. Em relação ao particular os autores deno-
minam ser um grupo de objetos, fenômenos ou fatos que, sendo gerais, for-
mam parte ao mesmo tempo de outro grupo mais geral, dentro deste grupo.
Prosseguindo a discussão, com base nos autores, é possível considerar que o
particular se apresenta como singular ou individual, isto é, como parte de um
todo mais amplo. De igual modo, compreende um conjunto de objetos que
numa relação se apresenta como universal e em outra como individual ou
singular. O particular é, portanto, uma forma universal da existência da ma-
téria, questão que permite um relacionamento dos conceitos de corpo, coisa
e de objetos. Ademais se assume como o elo que une o singular e o universal
e no conhecimento o particular se expressa em forma de conceitos e juízos
234
particulares”, que são passos do conhecimento em seu desenvolvimento do
singular e do universal.
Quanto ao campo da matemática, o movimento universal, particular e
singular se materializa no âmbito do modo de organização de ensino do sistema
Elkonin-Davídov-Repkin, por via de tarefas que apresentam uma interligação
entre as significações aritméticas, geométricas e algébricas. Para tal as tarefas são
apresentadas, aos estudantes, de forma problematizada e articuladas umas às
outras. Ou seja, em movimento, criando um processo de aprendizagem signifi-
cativa por promover o desenvolvimento do pensamento teórico, que é um dos
pressupostos para uma educação que se pretende desenvolvimental. Por esta
razão as tarefas são apresentadas. Importa salientar que as tarefas explicitam que
tal relação surge no âmbito da medição de grandezas, linha reta, igualdade e
desigualdade, reta numérica, uso das operações aritméticas da adição, subtração
e na determinação do significado do todo e as partes.
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239
Interseção Informacional:
Semiótica, Filosofia e Teoria Unificada
Valdirene Aparecida PASCOAL42
Rodrigo Martins BERSI43
Introdução
Desde os tempos da Grécia Antiga, os filósofos têm se dedicado a inves-
tigar os grandes temas que permeiam a existência humana. Entre esses temas,
o conceito de informação emerge como uma fonte constante de indagações
e controvérsias. A compreensão do significado e da construção desse termo
revela-se uma tarefa árdua, marcada por pouco ou quase nenhum consenso.
Neste capítulos enriquecemos a diversificação teórico-metodológica da obra
nos aproximando da área da Filosofia e das Ciências da Informação por meio da
reflexão teórica resultante da pesquisa realizada por Pascoal no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências
– PPGCI/FFC/UNESP/Câmpus Marília. Propomos a aproximação com a pes-
quisa em educação e a interação entre diferentes PPGs da Faculdade de Filosofia e
Ciências da UNESP/Câmpus Marília pensando as múltiplas interpretações sobre a
transmissão de conhecimentos e o papel dos signos no processo de conhecimento
em interface às necessidades do campo da educação.
Na pesquisa, a presença da informação pode ser rastreada em diver-
sas manifestações ao longo da história da humanidade. Desde os tambores
42 Programa de Pós-Graduação em Ciências da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências –
PPGCI/FFC – UNESP/Câmpus Marília. Email: valdirene.pascoal@unesp.br.
43 Doutorado em Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação – Faculdade de Filosofia e
Ciências – UNESP/Campus Marília. E-mail. rodrigo.bersi@unesp.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p239-258
240
africanos, que transmitiam mensagens por meio de batidas ritmadas, ins-
piração para o desenvolvimento do código Morse, como documentado por
Gleick (2013), até a revolucionária Teoria Matemática da Comunicação,
proposta por Shannon e Weaver (1949), que redefiniu a estrutura do mun-
do moderno ao oferecer uma base sólida para compreender os processos de
transmissão e recepção de dados, a essência da informação se faz presente.
No entanto, mesmo diante desses avanços, a definição precisa e abran-
gente de informação continua a escapar dos limites do entendimento hu-
mano. Comumente associada a conceitos como tabloide, notícia ou sim-
plesmente qualquer forma de comunicação presente na mídia, a verdadeira
natureza da informação permanece obscurecida.
A questão que se impõe, portanto, é: o que, de fato, constitui a infor-
mação? Seria ela meramente a transmissão de dados, a codificação de mensa-
gens ou algo mais profundo e fundamental? Sem a pretensão de encerrar essa
discussão neste capítulo, mas sim de oferecer direções promissoras para uma
possível resposta, é necessário adentrar os domínios da filosofia, da matemáti-
ca, da comunicação e de outras disciplinas afins, buscando uma compreensão
que transcenda as fronteiras do conhecimento estabelecido. Além do mais,
é essencial explorar a necessidade de desenvolver uma teoria unificada da in-
formação, enfrentando a máxima que sugere que se tudo é informação, então
nada é realmente informativo.
Ao explorar o conceito de informação, este capítulo propõe uma re-
tomada histórica filosófica que convida o leitor a refletir sobre a natureza da
realidade, a interação entre os seres humanos e o papel fundamental que a
informação desempenha na construção do mundo contemporâneo. Por meio
de uma abordagem multidisciplinar e crítica, almeja-se lançar luz sobre uma
das questões mais intrigantes e complexas que permeiam o pensamento hu-
mano. Dessa maneira propomos uma interface entre diferentes campos de
investigação para pensar os signos e a informação no processo de significação.
O Conceito de Informação: história e perspectivas
O século XX foi marcado por grandes transformações, o desenvolvi-
mento de tecnologias digitais suscitaram transformações e inovações no modo
de produzir, processar e transmitir informação; tais tecnologias deixaram de
241
fazer parte de contextos exclusivos e tornaram-se essenciais para a dinâmica
social do nosso século. Assim, comunicação, entretenimento, relações inter-
pessoais, educação, trabalho, política e muitos outros aspectos que permeiam
a sociedade contemporânea são compreendidos a partir de uma perspecti-
va informacional. Sem entrar em pormenores, mais do que ferramentas que
auxiliam e facilitam a realização de determinadas atividades, as tecnologias
digitais atualmente se colocam como mediadoras de ações de indivíduos.
(Moraes; Broens; D’ottaviano, 2019, p. 15).
No contexto de mudanças aceleradas, conforme observado por Gleick
(2013, p. 15), a matéria-prima essencial para essas transformações começa
a permear todos os aspectos da vida, manifestando-se através de uma varie-
dade de formas: “letras e mensagens, sons e imagens, notícias e instruções,
abstrações e fatos, sinais e signos - uma amálgama de elementos inter-relacio-
nados”. No entanto, ainda não havia uma palavra que pudesse abarcar toda
essa diversidade. Bush (1939) considerava “inteligência” como uma palavra
capaz de englobar essa multiplicidade de fenômenos, mas, embora flexível,
não conseguia capturar totalmente a complexidade desses efeitos. Alguns en-
genheiros, particularmente aqueles que trabalhavam em laboratórios telefô-
nicos, começaram a adotar o termo “informação” para descrever algo mais
técnico, como a quantidade ou medida de informação. Shannon (1949) ado-
tou posteriormente esse termo, como indicado por Gleick (2013).
Embora a palavra informação tenha sido difundida no século XX, nes-
se contexto tecnicista, sua origem retoma aos pensadores clássicos, de acordo
com Capurro (1978), as origens etimológicas do termo latim informatio es-
tão vinculadas a conceitos gregos como typos, idea e morphé. Sua interpre-
tação contemporânea como “dar forma a algo” só foi estabelecida entre os
séculos XV e XVII. Ao analisar as raízes etimológicas da palavra informação,
percebe-se que ela é formada pelo prefixo “in” e pelo substantivo “formae”,
relacionado à ideia de forma. Agostinho (1993) argumenta que a noção de
forma pode ser compreendida de acordo com a concepção platônica de ideia.
Capurro observa que os termos latinos informatio/informare são encontra-
dos em traduções e comentários desses conceitos gregos, surgindo dentro
de um paradigma ontológico uma caracterização epistemológica. (Gonzalez,
Nascimento, Haselager, 2004).
242
No pós-guerra, com diversas mudanças paradigmáticas, o termo in-
formação ganhou destaque no cenário acadêmico e tecnológico. Saracevic
(1996) destaca que, nesse período, o termo experimentou um verdadeiro
boom, impulsionado pelo interesse crescente de engenheiros, cientistas e
empreendedores em lidar com os desafios da explosão informacional. Esse
interesse culminou na ampliação dos estudos e investimentos relacionados
à informação, estimulando debates sobre soluções técnicas e sistemas de in-
formação. A introdução do conceito de “recuperação da informação” por
Mooers (1951) representou um marco nesse contexto, enfatizando a impor-
tância dos aspectos intelectuais da descrição e busca de informações, inclusive
demarcando o início da Ciência da Informação.
Somente após ter ganhado destaque nesse cenário mega tecnológico,
ter sido vista como algo simples, contabilizada em bits, a informação passa
a ser encontrada por toda a parte. McLuhan (1967) apontou que o ser hu-
mano deixou de ser um coletor de comida, para reaparecer no século XX
como um coletor de informações, de maneira incongruente. Após a Teoria
Matemática da Comunicação, Shannon (1949) construiu pontes entre infor-
mação e incerteza, informação e entropia e informação e caos, como aponta
Gleick (2013). Nas palavras do autor:
Podemos ver agora que a informação é aquilo que alimenta o funcionamen-
to do nosso mundo: o sangue e o combustível, o princípio vital. Ela permeia
a ciência de cima a baixo, transformando todos os ramos do conhecimento,
A teoria da informação começou como uma ponte da matemática para a
engenharia elétrica e daí para a computação. Não à toa, a ciência da com-
putação também é conhecida pelo nome de informática. Hoje até a biolo-
gia se tornou uma ciência da informação, sujeita a mensagens, instruções
e códigos. [...] A própria evolução é o resultado de uma troca contínua de
informações entre organismo e meio ambiente. (Gleick, 2013, p. 16).
Apesar da onipresença da informação em todas as dimensões da vida
humana e não-humana, sua definição permanece desafiadora. Os principais
teóricos contemporâneos da informação têm explorado seus significados
em contextos variados, abrangendo esferas, âmbitos e planos diversos. A
complexidade e diversidade inerentes ao termo conferem-lhe uma natureza
multifacetada, facilitando sua aplicação em uma variedade de setores. No
243
entanto, a dificuldade em estabelecer uma definição precisa persiste e pare-
ce se agravar com o tempo.
Autores como Jesse Shera (1971) enfatizam uma visão mais abrangen-
te, incorporando aspectos tecnológicos, de conteúdo e contextuais na defi-
nição de informação. Por outro lado, Nicholas Belkin e Stephen Robertson
(1976) destacam a capacidade da informação de provocar mudanças em es-
truturas existentes. Além disso, há uma tendência crescente de considerar a
informação como um recurso crucial em organizações, como discutido por
Chun Wei Choo (2004), enquanto Luciano Floridi (2005) propõe uma defi-
nição mais formal, descrevendo a informação semântica em termos de dados
significativos e verdadeiros. Essas diversas perspectivas ilustram a complexi-
dade e a multidimensionalidade do conceito de informação, evidenciando
sua relevância em campos interdisciplinares como ciência da computação,
biologia e sociologia. No entanto, a falta de consenso sobre uma definição
precisa pode gerar desafios na aplicação prática desses conceitos, destacando
a necessidade contínua de debates e reflexões na áreas que exploram o signi-
ficado da informação.
Vitti-Rodrigues, Matulovic e Gonzalez (2017) em busca de encontrar
padrões em relação ao conceito de informação propõem cinco abordagens para
o conceito de informação, são elas: metodológica, epistemológica, ontológica,
ética e lógico-semiótica. Gonzalez Acrescenta-se ainda o plano ecológico, con-
siderando a capacidade de animais e plantas de produzir, receber e compartilhar
informação. Esses seis planos facilitam a compreensão do conceito de informa-
ção, dada sua complexidade e multidisciplinaridade. É comum haver confusões
devido à polissemia e à natureza multifacetada do termo. Os planos propostos
pelas autoras auxiliam na evitação de erros conceituais e na localização da infor-
mação em diferentes áreas de aplicação e conhecimento.
No plano metodológico, são desenvolvidos métodos para medir e
quantificar a informação transmitida entre emissor e receptor, considerando
canais de comunicação e estratégias eficientes para transmissão de mensagens.
Autores como Shannon e Weaver (1949), como mencionado, contribuem
para essa abordagem com a Teoria Matemática da Comunicação, onde a in-
formação é vista como uma medida de escolha de mensagens que reduzem a
incerteza durante a transmissão.
244
No plano epistemológico, Dretske (1981) enfatiza a relação entre in-
formação e conhecimento, considerando a informação como uma mercado-
ria objetiva que existe independentemente da interpretação humana. Ele ar-
gumenta que a informação pode proporcionar conhecimento se a mensagem
transmitida corresponder à realidade.
No plano ontológico, Vitti-Rodrigues, Matulovic e Gonzalez (2017)
argumentam que a informação é um processo organizador de relações de
dependência comunicacional entre elementos físicos, biológicos ou abstratos.
Esse plano destaca a complexidade da informação, que vai além de ser uma
entidade material ou imaterial.
No plano ético, autores como Floridi (1999, 2011, 2014) e Capurro
(2007, 2009, 2012) exploram as implicações éticas do uso da informação na
sociedade contemporânea, considerando aspectos como emprego, dissemi-
nação e influência na ação individual e coletiva. A concepção de informação
varia entre os autores, mas todos concordam sobre a necessidade de uma
Ética Informacional que contemple os desafios atuais e futuros relacionados
ao uso da informação.
Em suma, os diferentes planos de análise oferecem perspectivas com-
plementares sobre o conceito de informação, permitindo uma compreensão
mais abrangente e aprofundada desse fenômeno complexo e multifacetado. A
necessidade de uma teoria unificada da informação se torna evidente devido
à sua presença e influência em diversos planos e contextos da vida humana e
não-humana. Desde os aspectos metodológicos, epistemológicos e ontológi-
cos até os aspectos éticos e lógico-semióticos, a informação desempenha um
papel fundamental em nossa compreensão do mundo e na interação entre
sistemas e indivíduos. Uma teoria unificada permitiria integrar esses diferen-
tes planos de análise, proporcionando uma estrutura conceitual abrangente
e coesa que pode ser aplicada de maneira consistente em toda a gama de
disciplinas e práticas que lidam com a informação. Isso não apenas facilitaria
a compreensão e a gestão da informação em sua complexidade, mas também
promoveria uma abordagem mais sistêmica e integrada para lidar com os
desafios e oportunidades apresentados pela era da informação.
245
Caminhos Possíveis para a Definição de um Conceito:
Semiótica e Teoria Unificada da Informação
Charles Sanders Peirce (1989-1914) elabora em duas etapas distintas
o que ficou reconhecido como a Teoria da Informação: a primeira, aproxi-
madamente de 1865 a 1867, e a segunda após 1900 (Nöth; Gurick, 2011).
O conceito de informação, em seus textos, é descrito como um processo de
semiose (produção de significados enquanto signos representam objetos e
geram interpretantes). O pensador engloba em sua teoria aspectos lógicos,
pragmáticos, semânticos e cognitivos. Compreendemos que a teoria peircea-
na da informação, apesar de formulada muito anteriormente, engloba as três
questões mencionadas na TMC de Shannon e Wiever (1949): transmissão,
significado e impacto na conduta. Além disso, a filosofia de Peirce contribui
para debates éticos sobre a conduta, permitindo expandir discussões atuais
acerca da Ética Informacional.
A inicial análise da teoria da informação peirceana enfoca elementos re-
lacionados à lógica-proposicional. Apesar de não ser o foco desta investiga-
ção dar destaque à primeira caracterização da informação peirceana, é crucial
compreender suas fundamentações, pois isso contribui para a compreensão do
conceito de informação semiótica. A informação no contexto da lógica-pro-
posicional implica conexões no âmbito das comunicações verbais. Nessa pers-
pectiva, a informação resulta de duas dimensões lógico-semânticas: a extensão
e a profundidade de termos, proposições ou conceitos (CP 2.419). Em outras
palavras: Informação = Extensão x Profundidade de um termo ou conceito.
Por extensão Peirce compreende: “Pela extensão informada, irei sig-
nificar todas as coisas reais das quais ela é predicável, com a certeza lógica no
todo, em um suposto estado de informação” (CP 2. 407, tradução). Por sua
vez, o filósofo caracteriza a profundidade de um conceito em termos de pre-
dicados que podem ser atribuído aos objetos (CP 2. 408). Segundo Silveira
e Rodrigues (2016, p. 42) extensão e profundidade informadas referem-se
ao produto da informação, abrangendo condições de conhecimento ou do
chamado estado de informação”. Em outros termos, a extensão alude ao
conjunto de conceitos caracterizadores de objetos e a profundidade determi-
na a especificidade desses objetos.
246
Ao expor a descrição da concepção de informação delineada por Peirce,
Silveira (2008, p. 284) postula: “A informação pode ser definida como a
quantidade de entendimento [profundidade] contida em um símbolo além
de seus limites de abrangência”. Peirce (2.407) concebe que a informação,
em seu contexto conceitual, somente é materializada quando há a intersec-
ção entre a extensão e a profundidade. Consequentemente, a transmissão de
informação ocorrerá mediante a linguagem proposicional: uma proposição
completa assegurará a transmissão de informação. Um exemplo proposto por
Vicentini et al. (2019, p. 436) destaca que sentenças tautológicas não apre-
sentam caráter informativo, enquanto apenas sentenças ampliativas têm essa
qualidade, conforme expresso pelos autores: “[…] na proposição ‘A esfera é
redonda’, não há informação, pois o atributo ‘redonda’ já está implicitamente
contido no conceito de esfera, diferentemente de ‘A esfera é azul’, cujo atri-
buto, verdadeiro ou possivelmente verdadeiro, acrescenta informação [...].
Dessa forma, a informação pode ser interpretada como a atualização de sím-
bolos, de maneira que haja informação em uma proposição sempre que novas
características de um objeto ou de uma classe de objetos forem apresentadas.
Nöth (2011, p. 11) destaca que “semanticamente, o papel das informações
parece ser o de moldar o signo para torná-lo (cada vez mais) semelhante ou
fiel àquilo que ele representa”.
A seguir, enfatizamos a segunda etapa da teoria de informação delinea-
da por Peirce, na qual ele aproxima a aprendizagem do processo informacio-
nal, agora situado no âmbito semiótico. Nesse contexto, o filósofo amplia
sua perspectiva comunicacional além de uma abordagem exclusivamente se-
mântica, passando a contemplar também aspectos pragmáticos e cognitivos
presentes em contextos reais. A caracterização da informação se concentra
no estudo do signo, entendido como um instrumento para a transmissão de
um conceito, conforme descrito por Peirce: “Um signo é um instrumento
de comunicação de uma ideia” (EP2, p. 477), cuja efetivação ocorre em um
contexto triádico.
Um signo, ou representamen, é algo que, sob certo aspecto ou de algum
modo representa alguma coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é,
cria na mente desta pessoa um signo equivalente ou talvez um signo me-
lhor desenvolvido. Ao signo, assim criado, denomino interpretante do
247
primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto (Peirce, p. 94,
trad. de MOTA, O. S.; Hegenberg, L.).
Dessa maneira, o signo desempenha funções de comunicação, mediação
e representação da forma do objeto para um interpretante. No que diz respeito
à caracterização da informação, Peirce (CP 2. 309) concentra sua análise no
Signo Dicente. O filósofo define o signo dicente como aquele que transmite
informação. O dicente é um signo composto pela junção de um ícone e de
um índice. Na primeira abordagem da informação peirceana, Santaella (2017)
esclarece que o dicente está associado à ideia de proposição. Na lógica clássica,
a proposição é a menor unidade capaz de expressar ideias verdadeiras ou falsas,
desde que contenha pelo menos um sujeito e um predicado. A estrutura básica
de uma proposição segue o formato “A é B”, sendo este o único tipo de signo
capaz de afirmar algo ao relacionar um predicado com um sujeito. Assim, o
dicente pode veicular informação (Santaella, 2017, p.60).
No processo de interseção entre Ícone e Índice, que compõem um sig-
no Dicente, o Ícone incorpora características e propriedades que delimitam
o objeto a ser informado, enquanto o Índice referência e indica a localização
espaço-temporal desse objeto. A combinação desses dois signos confere ao
Dicente a capacidade de transmitir informação (SILVEIRA, 2008). No en-
tanto, o processo só se completa com a Sintaxe, que emerge da conjunção
entre Ícone e Índice. A sintaxe é o elemento que confere existência factual à
informação para o possível receptor. Em resumo, para que um signo veicule
informação na perspectiva semiótica, é necessário, primeiro, que ele apresen-
te uma qualidade do objeto; em segundo lugar, que aponte para a existência
real desse objeto; e, por último, que apresente uma estrutura sintática factual.
Quando o Signo Dicente atende a essas exigências, ocorre a veiculação de
informação (Silveira, Gonzalez, 2014).
Peirce (EP2, 1906, p. 478) fornece um exemplo que facilita a com-
preensão do processo semiótico de veiculação de informação: imaginemos
que um homem, enquanto caminha por uma estrada, é abordado por um
indivíduo que diz: “Há fogo em Megara”. Não se pode afirmar que há infor-
mação nessa frase, pois não se sabe o tempo ou a localização do incêndio até
que se pergunte quando e onde. Se o indivíduo responder e indicar o local
e o tempo, proporcionando um elemento comum para a compreensão, a
248
informação será transmitida e poderá ser verificada empiricamente. O exem-
plo ilustra a transmissão de informação, pois os signos se conjugam em refe-
rência a um objeto real.
Um juízo de valor pode ser feito com base em uma verificação empí-
rica, por exemplo, ao constatar o incêndio na cidade, por meio de um obje-
to dinâmico. O objeto dinâmico, conforme Peirce (CP 8.314, tradução de
Santaella), “é aquilo que, pela natureza das coisas, o signo não pode expressar
e que só pode indicar, deixando para o intérprete descobri-lo por experiência
colateral”. O juízo de valor, permitido pela experiência que vai além do que a
percepção revela, pode contribuir para a formação de um hábito de conduta.
Vitti-Rodrigues et al. (2017) resumem o processo informacional semiótico:
o processo informacional se estabelece quando uma forma disponibilizada
pelo objeto é delimitada pelo signo e comunicada ao interpretante, que,
num processo emergente, tentará reconstruir a forma do objeto transmi-
tida pelo signo, com a finalidade de adequar a conduta e se aproximar do
objeto admirável. (Vitti-Rodrigues, M. et al, 2017, p. 143).
Em resumo, a informação-processo que o signo dicente transmite -
possibilita a compreensão de eventos reais relacionados a objetos reais. O
impacto gerado pelo signo dicente pode abranger aspectos qualitativos e de
existência, enquanto a sintaxe que emerge dessa relação indica padrões que
podem influenciar processos, pensamentos e ações. A busca por uma teoria
unificada da informação, capaz de integrar as diversas perspectivas e aborda-
gens sobre o fenômeno informacional, tem sido um objetivo central nos estu-
dos contemporâneos. Nesse contexto, a contribuição da teoria da informação
de Peirce se destaca como um dos pilares fundamentais para o desenvolvi-
mento de uma compreensão abrangente e integrada da informação. As ideias
de Peirce, desenvolvidas em diferentes fases ao longo de sua obra, oferecem
uma abordagem rica e multifacetada, que transcende as fronteiras discipli-
nares e incorpora aspectos lógicos, semânticos, pragmáticos e cognitivos. Ao
centrar-se na noção de signo e no processo de semiose, Peirce oferece uma
visão complexa da informação, na qual esta é concebida não apenas como um
fenômeno técnico, mas também como um processo complexo de comunica-
ção e significação. Assim, a teoria da informação peirceana representa uma
249
importante contribuição para a construção de uma teoria unificada da infor-
mação, ao fornecer um arcabouço conceitual sólido e abrangente que pode
integrar e enriquecer diversas perspectivas teóricas e práticas relacionadas ao
fenômeno informacional.
Nas linhas de Peirce, Marcos (2008) apresenta algumas ideias para uma
possível Teoria Unificada da Informação. O autor defende que a informação
deve ser concebida como uma relação, especificamente uma relação triádica.
Para ele, a informação no sentido pragmático e funcional, seria a base para
derivações ou abstrações de outras teorias da informação. O filósofo argu-
menta que a informação de Peirce fundamentada em uma relação triádica
tem como precedente:
Toda ação dinâmica, ou ação de força bruta, física ou psíquica, ou ocorre
entre dois sujeitos... ou pelo menos é o resultado de tais ações entre pares.
Mas por semiose eu quero dizer, ao contrário, uma ação ou influência que
é ou envolve uma cooperação de três sujeitos, como um signo, seu objeto
e seu interpretante, esta influência tri-relativa não sendo de forma algu-
ma resolúvel em ações entre pares. (Peirce, vol. 5. p. 484, 1931-35 apud
Marcos, 2008, p. 565).
Marcos (2008) argumenta que outro ponto a favor da informação de-
fendida por Peirce é a possibilidade de desenvolver uma medida de informa-
ção e interagir e integrar diferentes medidas de informação. Assim, Marcos
(2008, p. 566) argumenta que:
i) uma mensagem, m, que pode ser qualquer evento, linguístico ou não;
ii) um sistema de referência, S, sobre a qual a mensagem informa o
receptor;
iii) um receptor, R. O receptor é um formal esquema residente em um
sujeito concreto (um ser humano, outro sistema vivo, uma parte de um
sistema vivo, na ecossistema, uma célula, um computador, etc.). Um su-
jeito concreto poderia, é claro, usar mais de um receptor e usá-los alterna-
damente (jogando com diferentes “hipóteses”) ou sucessivamente (devido
a um processo individual de aprendizagem). (Marcos, 2008, p. 566).
Em uma clara referência à Teoria da Informação de Peirce, Marcos
(2008) introduz certos elementos que se entrelaçam em uma relação
250
informacional, cujos papéis podem variar dependendo do contexto. Assim,
o que pode desempenhar o papel de receptor em uma relação informacional
pode se tornar uma mensagem em outra relação. Isso dá origem a um sistema
de mensagens alternativas, que, por sua vez, pode se transformar em um sis-
tema de referências em outra relação, e vice-versa, em um ciclo contínuo. Ao
comparar esse esquema triádico com a Teoria Matemática da Comunicação
(TMC), Marcos (2008) observa que emissor e fonte não ocupam papéis
centrais. Isso ocorre porque, ao considerarmos um sistema de referência, a
informação que o receptor recebe através de uma mensagem pode ser sobre
o próprio emissor. Olhando para esse esquema de outra perspectiva, perce-
bemos que ao deixar o significado indeterminado, o emissor pode agir como
um receptor virtual, uma construção matemática. O autor argumenta que
em alguns contextos, especialmente em situações não linguísticas, não há um
emissor específico, e, portanto, uma teoria da informação não deve necessa-
riamente exigir sua presença.
Os desafios conceituais inerentes à informação derivam de lacunas,
conforme apontado pelo autor, que se referem à omissão e à pressuposição do
significado da informação, tornando sua definição cada vez mais complexa.
Outro aspecto destacado por Marcos (2008) é a natureza funcional, transitiva
e pragmática da informação. Se uma mensagem não faz referência a algo por
meio de um receptor, não pode ser considerada uma mensagem, mas sim um
evento isolado. O autor esboça sua proposta da seguinte forma:
Para elucidar minha proposta, sugiro uma interpretação da noção de in-
formação que se diferencia do diagrama clássico de Shannon, embora es-
teja intrinsecamente relacionada a ele. Primeiramente, proponho abordar
os problemas pragmáticos ou funcionais, representados pelo nível C. Em
seguida, pretendo reinterpretar outras teorias que abordam questões dos
níveis A e B, como teorias pragmáticas restritas ou ideais. Concordando
com MacKay (1969) que “Informação é o que a informação faz”, uma
teoria geral da informação deve iniciar do nível pragmático e, somente
então, avançar para a reconstrução dos demais níveis. Em segundo lugar,
sugiro centrar o receptor como ponto fundamental na relação de informa-
ção, em conformidade com o conselho de Millikan (1989). [...] do pon-
to de vista matemático, as distribuições de probabilidades que definem
o receptor seriam suficientes para atender às funções tradicionalmente
251
atribuídas à fonte e ao canal. Essa possibilidade já é sugerida pela inter-
pretação abstrata da teoria de Shannon por Abramson (1968). (Marcos,
2008, p. 567, tradução nossa).
De maneira geral, a proposta conceitual de Marcos (2008) pode ser resu-
mida da seguinte forma: a informação (I) é uma relação entre a mensagem (m),
um receptor (R) e um sistema de referência (S). Assim, a relação triádica forma-
da por m, R e S altera o conhecimento do receptor sobre o sistema de referên-
cia. Quanto mais prováveis forem as alternativas para o receptor, ou seja, maior
o número de escolhas disponíveis, maior será a quantidade de informação.
Marcos (2008) propõe uma sequência lógica que visa estabelecer uma
estrutura para entender a relação entre mensagem, receptor e sistema de re-
ferência. Em síntese:
A mensagem (mi) faz parte de um conjunto de mensagens alternativas (M).
O sistema de referência (S) consiste em um conjunto de estados alter-
nativos acessíveis (σ).
O receptor (R) possui um conjunto de probabilidades associadas aos
diferentes estados do sistema referencial e uma função que atribui probabili-
dades a cada par de mensagem e estado.
A informação transmitida de mi para R sobre S pode ser medida pela
diferença entre as probabilidades antes e depois da recepção da mensagem.
Essa diferença é calculada como a soma das diferenças absolutas entre as
probabilidades dos estados antes e depois da recepção da mensagem. Essa
abordagem oferece um método para quantificar a informação transmitida,
permitindo uma análise mais precisa do processo de comunicação.
Com base nos resultados alcançados, Marcos (2008) conclui que todos
os processos de aprendizagem são mediados pela informação, desde a evolução
biológica até as teorias científicas. Ele identifica dois tipos principais de mudan-
ças nesses processos: a) acumulativa ou gradual, que ocorre dentro dos limites
de um receptor e implica em um aumento progressivo na quantidade de infor-
mações; e b) reorganizacional ou saltacional, que sugere uma mudança radical
para um novo receptor quando a medida de informação não produz um valor
real. Utilizando ideias de Peirce, Marcos (2008) busca integrar conceitos de
Shannon e Weaver (1949), Dretske (1981) e outros autores, enfatizando que “a
informação pode ser medida pela magnitude de seus efeitos”.
252
A análise de Marcos (2008) sobre a mediação da informação vai além
de simplesmente reconhecer seu papel nos processos de aprendizagem; ela
lança luz sobre a complexidade e a profundidade dessa influência. Ao iden-
tificar dois tipos principais de mudanças - acumulativa e reorganizacional
- Marcos sugere que a informação não apenas é adquirida e armazenada ao
longo do tempo, mas também pode desencadear transformações significati-
vas no modo como percebemos e entendemos o mundo ao nosso redor. A
mudança acumulativa representa um processo gradual e contínuo nos quais
novas informações são incorporadas aos esquemas existentes, ampliando e
aprimorando nosso conhecimento de forma incremental. Por outro lado, a
mudança reorganizacional indica momentos de ruptura e reconfiguração,
nos quais a quantidade ou a qualidade das informações disponíveis se tornam
tão discrepantes que exigem uma revisão fundamental de nossas estruturas
cognitivas. Essas duas formas de mudança destacam a plasticidade e a adap-
tabilidade do sistema cognitivo humano, bem como a importância da infor-
mação como catalisadora desses processos.
A integração de conceitos de diferentes teóricos, como Peirce, Shannon
e Weaver (1949), e Dretske (1981), proporciona uma compreensão integrada
da natureza da informação e de seu impacto nos processos de aprendizagem.
Ao reconhecer a inter-relação entre esses diversos enfoques teóricos, Marcos
(2008) enfatiza que a informação é uma entidade multifacetada, que transcen-
de fronteiras disciplinares e permeia todos os aspectos da vida humana. Além
disso, ao salientar que a informação pode ser medida pela magnitude de seus
efeitos, Marcos destaca sua dimensão pragmática e funcional. Não se trata ape-
nas de acumular dados ou transmitir mensagens, mas sim de como essas infor-
mações afetam nossa percepção, pensamento e comportamento. Nesse sentido,
a informação não é apenas um conceito abstrato; é uma força motriz que molda
e molda continuamente nossas experiências individuais e coletivas.
Essa abordagem mais ampla e integrativa da informação proposta por
Marcos (2008) tem implicações significativas não apenas para a teoria e a
pesquisa acadêmica, mas também para a prática e a aplicação em diversos
campos. Ao reconhecer a influência ubíqua da informação e sua capacidade
de catalisar mudanças fundamentais na forma como entendemos e intera-
gimos com o mundo, podemos desenvolver estratégias mais eficazes para a
253
educação, comunicação, tomada de decisões e solução de problemas. Em
última análise, a compreensão da informação como uma força dinâmica e
transformadora nos capacita a navegar melhor em um mundo cada vez mais
complexo e interconectado.
A teoria de Marcos (2008) apresenta várias conexões com os princí-
pios fundamentais da semiose de Peirce. Peirce desenvolveu uma abordagem
triádica para entender os processos de signo, conhecida como triadismo se-
miótico. Nessa abordagem, um signo é composto por três elementos inter-
-relacionados: o signo propriamente dito (ou representamen), o objeto e o
interpretante. Esses elementos formam uma relação dinâmica em que a inter-
pretação do signo é mediada pela mente do intérprete.
Marcos (2008), ao propor sua teoria unificada da informação, incorpo-
ra essa estrutura triádica em seu modelo, embora sob uma perspectiva mais
funcional e pragmática. Ele utiliza conceitos de mensagem, receptor e siste-
ma de referência para descrever como a informação é processada e como seu
efeito pode ser medido. Esses elementos se assemelham aos componentes da
triade peirceana, onde a mensagem corresponde ao representamen, o recep-
tor ao interpretante e o sistema de referência ao objeto. Além disso, enfatiza a
importância dos efeitos da informação, o que ecoa a ênfase de Peirce na rela-
ção entre signo e interpretante, ou seja, como os signos influenciam a mente
do intérprete e geram significados. Portanto, a teoria de Marcos (2008) pode
ser vista como uma extensão contemporânea dos princípios semióticos de
Peirce, aplicados ao contexto da teoria da informação.
Considerações Finais
No percurso desta análise sobre a teoria da informação de Charles
Sanders Peirce e suas conexões com abordagens contemporâneas, como a pro-
posta por Marcos (2008) para uma possível Teoria Unificada da Informação,
torna-se evidente a riqueza e a complexidade desse campo de estudo.
Peirce, em tempos em que a informação não era pilar de desenvolvi-
mento de inúmeras ciências, focalizou uma abordagem triádica da informa-
ção, onde os signos desempenham papéis cruciais na transmissão e no pro-
cessamento de significados. Sua concepção da informação como um processo
de semiose, que envolve a produção de significados por meio de signos que
254
representam objetos e geram interpretantes, oferece uma perspectiva multifa-
cetada que vai além das abordagens puramente lógico-semânticas.
Ao longo de suas duas etapas de desenvolvimento da teoria da infor-
mação, Peirce incorporou aspectos lógicos, pragmáticos, semânticos e cog-
nitivos, fornecendo uma base sólida e abrangente para a compreensão do
fenômeno informacional. Sua distinção entre extensão e profundidade de
um termo ou conceito como elementos essenciais da informação destaca a
importância de considerar não apenas os objetos referenciados, mas também
os predicados atribuídos a eles.
Além disso, a proposta de Marcos (2008) para uma Teoria Unificada da
Informação, que se baseia nos princípios semióticos de Peirce, amplia ainda
mais o escopo dessa área de estudo. Ao introduzir uma abordagem triádica
da informação, onde a mensagem, o receptor e o sistema de referência são
elementos inter-relacionados, Marcos busca integrar diferentes perspectivas
teóricas e práticas relacionadas ao fenômeno informacional.
O conceito de informação, como explorado por Peirce e outros teóricos
contemporâneos, transcende a mera transmissão de dados ou conhecimento.
Em vez disso, a informação é concebida como um processo dinâmico e com-
plexo de significação, que envolve a interação entre signos, objetos e interpre-
tantes. Essa visão mais ampla da informação reconhece sua natureza multifa-
cetada, abrangendo não apenas aspectos semânticos e lógicos, mas também
pragmáticos, cognitivos e sociais. A informação não apenas representa objetos
ou eventos, mas também influencia a percepção, o pensamento e o comporta-
mento dos indivíduos, desempenhando um papel fundamental na construção
do conhecimento e na formação de experiências humanas. Portanto, entender
a informação requer uma abordagem holística que leve em consideração sua
complexidade e sua importância em diversos contextos e disciplinas.
Em síntese, a teoria da informação de Peirce, enriquecida pelas contri-
buições contemporâneas de autores como Marcos, oferece uma visão com-
plexa e integrada da informação como um fenômeno que transcende as fron-
teiras disciplinares. Ao destacar a importância dos signos, da semiose e dos
efeitos da informação sobre o conhecimento e o comportamento humano,
essa abordagem fornece um arcabouço conceitual sólido e abrangente que
pode enriquecer ainda mais nosso entendimento sobre a natureza e o papel
255
da informação em diversos contextos.
A pesquisa em educação se enriquece ao contemplar diferentes pers-
pectivas teóricas para refletir sobre a informação e a transmissão de conhe-
cimentos em contextos reais e educacionais. Pensar os atuais resultados de
pesquisa no âmbito da Ciências da Informação e da Filosofia nos permite
ampliar os horizontes teóricos e diversificar o pensamento para novas formas
se ser e estar na materialidade e nas práticas educativas.
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259
Maria Lacerda de Moura na Imprensa
Anarquista: Educação e a Igreja
Católica na Década de 1930
Tatiana Ranzani MAURANO44
Introdução
A concepção de Maria Lacerda de Moura sobre educação na década
de 1930 é o que se propôs analisar neste estudo sobre a autora. Para ela, o
fascismo e a Igreja Católica, juntos, se utilizavam dos institutos educacionais
para controlar o que era ensinado à população brasileira, seus corpos e men-
tes. Este é o seu entendimento sobre o tema. Mas Lacerda não era a única
anarquista brasileira a tratar do assunto e, para mostrar isso, recorre-se a dois
jornais anarquistas, A Lanterna e A Plebe, nos anos de 1933 a 1935.
No presente estudo, pretende-se apresentar os escritos dos objetores de
consciência, como Maria Lacerda de Moura, em periódicos declaradamente
anticlericais e anarquistas da década de 1930 sobre a temática da educação, mas
também, inevitavelmente, em alguns momentos, sobre fascismo e clericalismo,
por estar-se contemplando a década de 1930, quando esses temas estavam fer-
vilhando, não apenas no Brasil. Mas o que significa ser objetor de consciência?
A objeção de consciência diz respeito à recusa, motivada por razões éti-
co-morais, em obedecer à lei ou alguma obrigatoriedade que o indivíduo
considere iníqua. No âmbito do antimilitarismo e do pacifismo, a objeção
de consciência geralmente se expressa na recusa ao serviço militar obriga-
tório. A noção, entretanto, pode ser empregada de maneira mais ampla,
44 Psicóloga, mestre e doutora em Educação. E-mail: querolacerda@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p259-282
260
inspirada no posicionamento do indivíduo livre diante de estruturas
opressivas de qualquer espécie (Gonçalves; Bruno; Queiroz, 2015, p. 30).
Os escritos desses objetores de consciência sobre educação serão expos-
tos, assim como as divulgações dos lançamentos dos livros de Maria Lacerda de
Moura, no intuito de enfocar outros autores e aprofundar as temáticas estuda-
das, muitos deles, como Lacerda, considerados como objetores de consciência.
Através dessas fontes, objetivou-se compreender quem eram as outras e
outros escritores, livre pensadores, objetores de consciência que faziam a crítica
à dominação clerical, autoritária e à expansão de seu controle, através da edu-
cação, os que ecoavam a voz de Maria Lacerda de Moura ou destoavam, criti-
cando alguns dos posicionamentos da autora e, assim, ter-se leitura aguçada dos
entendimentos dos anarquistas sobre o papel da educação, na década de 1930.
As fontes que serão usadas são o periódico brasileiro A Lanterna
Jornal de Combate ao Clericalismo, com os números 354 a 368, do ano de
1933, números 369 a 383, do ano de 1934, números 387 a 392 e os números
397, 398, 400 e 401, do ano de 1935; A Plebe – Periódico Libertário, com os
números de 7 a 34 e 36 a 52, do ano de 1933, os números 53 a 77, do ano de
1934, e os números 79 a 90 e 92 a 102, do ano de 1935, ambos encontrados
no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Entre idas e vindas, justamente pela repressão política, o periódico
A Lanterna foi fundado na cidade de São Paulo, em 1901, pelo anarquista
Benjamin Mota, circulando até 1904 e voltando a circular sob a editoração
de Edgard Leuenroth, em 1909, encerrando-se em 1916. Ficou 17 dezessete
anos sem circular, para voltar em 1930, permanecendo até 1935, como um
jornal de combate ao clericalismo.
É possível constatar, na leitura feita de todos os números dos exem-
plares citados anteriormente, que o jornal é totalmente dedicado a críticas
sobre as instituições clericais, sejam elas jesuítas, sejam católicas romanas,
apresentando várias denúncias de abuso de poder, escândalos, demonstrações
de coligação do clero com o fascismo, não apenas do Brasil, mas na América
Latina e na Europa.
O jornal A Plebe – Periódico Libertário, foi fundado por Edgard
Leuenroth, em 1917, em plena atividade da Greve Geral, compondo-se em
261
um veículo da imprensa anarquista que iria além da questão anticlerical, para
o movimento operário, tendo seção do jornal específica para a luta operária
e debate sobre o anarquismo. Considerado o jornal mais duradouro da im-
prensa anarquista, segundo estudos de Silva (2005), manteve-se em plena
atividade durante 30 anos. A partir de 1932, em sua nova fase, teve como
redator-gerente Rodolfo Felipe, amigo de Maria Lacerda de Moura.
Fundamentação Teórica
Nada como a metodologia de um autodidata (Maurício Tragtenberg),
para guiar o movimento de pesquisa e compreensão de uma pensadora auto-
didata (Maria Lacerda de Moura). Os estudos de Maurício Tratenberg (2004)
denunciam a lógica capitalista na educação - professores rígidos, reprodutores
da ideologia em voga, formando os servos ignorantes em diversas áreas (jus-
tiça, medicina e educação), garantindo sua hegemonia; o saber produz o co-
nhecimento necessário para a dominação, para aqueles que querem dominar,
o controle sobre esse saber é essencial.
Sua lógica, entendimento crítico sobre a educação, a produção de co-
nhecimento e a dominação contribuem para o objeto de estudo, é preciso ver
além do que é mostrado, a fim de compreender os processos de dominação
e controle sociais. Entender o momento histórico, a lógica do (s) poder (es)
para enxergar esse processo e legitimar a narrativa daqueles que não concor-
dam com a manipulação da realidade que está imposta. Um movimento de
resgate do momento histórico, político e cultural vivido pelo autor (a) estu-
dado para então debater seus escritos.
Metodologia
Pesquisa história documental, utilizou-se fontes primarias da década de
1930, os jornais A Lanterna – jornal de combate ao clericalismo e A Plebe
periódico libertário, ambos publicados entre os anos de 1933 a 1935 que se
encontram no Arquivo Edgard Leuenroth na Unicamp, além da pesquisa bi-
bliográfica da autora estudada em seus livros publicados na década de 1930,
destacando-se: Fascismo, filho dileto da Igreja e do Capital, Clero e Fascismo:
Horda de Embrutecedores e Ferrer, o Clero Romano e a Educação laica.
262
Resultados e Discussões
A Lanterna surgiu, em 1901 em São Paulo, como uma iniciativa das
Ligas Anticlericais do Estado de São Paulo, em sua primeira fase, com a di-
reção de Benjamin Mota, priorizando assuntos anticlericais e de denúncia
dos abusos dos clérigos, mas com algum caráter liberal. Em 1909, Edgard
Leuenroth é alçado à direção e, com a contribuição de Neno Vasco e outros
anarquistas, o jornal assume o anarcosindicalismo, incluindo publicações do
movimento operário, no Brasil e fora.
Com uma linguagem combatente, muitas vezes intelectual, outras ve-
zes, de uma ironia bem refinada. Na leitura feita dos exemplares do jornal,
buscou-se por artigos de Maria Lacerda de Moura, citações da autora ou so-
bre a autora, além de artigos de outros autores acerca de educação. Os temas
específicos sobre o fascismo e o clero não foram indexadores de busca, pri-
meiro, por ser o objetivo discutir a questão da educação e, segundo, pelo fato
de o jornal ser completamente dedicado à crítica, principalmente ao clero,
mas também ao fascismo.
Maria Lacerda de Moura participou de várias atividades das Ligas
Anticlericais divulgadas no jornal, sempre discursando a favor da educação
livre de preconceitos e contra os absurdos do clero e do fascismo. O jornal é
todo voltado à crítica da religião católica, seja de ordem romana, seja jesuíta,
denunciando as hipocrisias, ditaduras, no sentido do controle das mentes e
almas, querendo dominar o mundo através da imposição e violência (inqui-
sição, autos de fé e torturas).
A seção do jornal denominada Catecismo Hereje é onde mais citações de
Maria Lacerda aparecem, por 8 vezes, 2 no ano de 1933, 5 no ano de 1934
e 1 vez no ano de 1935. Dentre as oito citações de Maria Lacerda de Moura
feitas nessa seção do jornal, destacam-se duas, as quais, de alguma forma,
contribuem para a discussão sobre a educação, como a seguinte, estampada
no n. 358, de 10 de agosto de 1933m: “A covardia mental é a mais podero-
sa das forças reacionárias”; essa citação também está reproduzida na página
71 do livro Ferrer, o clero romano e a educação laica, na edição de 2021c do
Centro de Cultura Social. Mas é na citação do jornal n. 373, de 8 de março
de 1934b, que se tem a autora abordando especificamente a educação:
263
Todos querem, todos se arrogam o direito à exploração da alma da criança.
E no momento histórico que atravessamos, já o clero brasileiro se arregi-
mentou para poluir a alma das gerações nossas – através do ensino católico
na escola nacional (A Lanterna, 1934b, n. 373, p. 2).
Essa citação também se encontra no livro Ferrer, o clero romano e a edu-
cação laica, na página 67 da edição de 2021c. No capítulo intitulado “A alma
feminina é a presa dileta das garras do clero”, ela alerta a todos dos intuitos do
fascismo e do clero, tendo como viés a educação, tornando as crianças e os cren-
tes em presas fáceis dos defensores da “civilização do bezerro de ouro” (Moura,
2021c, p. 68). Outros autores também se utilizam dessa mesma expressão, “ci-
vilização do bezerro de ouro”, termo já explicado no presente trabalho.
As participações de Maria Lacerda de Moura como oradora convidada,
seja do movimento anticlerical de São Paulo, seja nas Ligas Anticlericais do
interior do Estado de São Paulo. Encontraram-se quatro registros de suas
participações. Demonstrando que a autora, além de seus escritos publicados
sobre a importância da educação para a livre consciência humana também
viaja para outras cidades, levando o seu entendimento sobre essas temáticas e
fazendo conferências, debates e, assim, fortalecendo o movimento anticlerical
de resistência em outros espaços.
Diante da leitura de A Lanterna: jornal de combate ao clericalismo (1933-
1935), identificou-se outros autores que abordavam a educação. Localizaram-
se trinta e três artigos; dezoito autores foram identificados, quer com seus no-
mes, quer com apelidos, quer ainda com iniciais; 4 artigos sem assinatura, 2 dos
movimentos estudantis e 1 da Coligação Nacional Pró-Estado Leigo. O autor
com a maior quantidade de artigos sobre educação escritos foi Xisto Leão, com
7 artigos, depois Luiz Rogerio, com 3 artigos, e Arthur ompson, também
chamado de Almirante ompson, com 2 artigos. Os artigos não assinados,
que contam 4, não entraram nessa contagem, pois podem ser todos de um
mesmo autor, mas podem ser também de autores diferentes.
Utiliza-se como maior referência os artigos de Xisto Leão, autor com o
maior número de artigos sobre educação, e seus outros artigos sobre a domina-
ção clerical e o fascismo se aproximam sobremaneira dos escritos de Lacerda.
Mas se trabalham os artigos específicos sobre educação. Infelizmente o autor
que mais escreveu sobre a educação no jornal não pôde ser identificado: Xisto
264
Leão era um pseudônimo utilizado por um livre pensador, o qual, por moti-
vos desconhecidos, não se pôde identificar: têm-se possíveis suposições, óbvias
para o momento vivido de repressão, mas que não podem ser confirmadas.
O primeiro artigo de Xisto Leão, de 03 de agosto de 1933a, no número
357, intitulado “Não de padres que se precisa”, fez uma crítica feroz ao clero
e a sua dominação. Utiliza-se do mesmo termo que Maria Lacerda de Moura,
sobre à dominação clerical, “polvo clerical”, constatando-se que essa não é
uma particularidade dos escritos da autora ou de Xisto Leão, mas de outros
autores e, inclusive, com representações de charges desse tipo de dominação.
Abaixo uma charge representa esse termo usado por autores da época,
no jornal A Lanterna (1933-1935), com os seguintes dizeres “Serão pelo me-
nos incompletos os resultados de qualquer movimento popular que tenha
por fim libertar o povo brasileiro, se não se combater resolutamente o im-
perialismo do Vaticano”. Na imagem, vê-se um polvo com uma cabeça de
clérigo, representando a territorialização clerical sobre o Brasil, e cada tentá-
culo abraça uma instituição: a assistência social, a fábrica, o lar, o quartel, a
política e a escola.
Figura 27 – O Polvo Clerical
Fonte: A Lanterna, 1935, n. 396, p. 1 – AEL- UNICAMP.
265
Assim como o termo “polvo clerical” une o pensamento de Lacerda com
outros objetores de consciência, a crítica feroz ao clero e sua força também o
fazem. O movimento anticlerical era muito forte, em todo o Brasil, com re-
presentantes em quase todos os estados, nas Ligas Anticlericais, onde se uniam
anarquistas, liberais, maçons e, inclusive, alguns republicanos. Através das pági-
nas dos jornais anticlericais, foi possível confirmar algumas localidades (cidades
e estados), como as Ligas Anticlericais, em: Maranhão, Pernambuco, Rio de
Janeiro, São Paulo, Campinas, Pelotas, Porto Alegre, Uruguaiana, Sorocaba. É
inegável o nível de organização, debate e escritos dos anarquistas, em relação ao
combate do clericalismo. O nível de organização chega ao ponto de terem jor-
nais específicos sobre a luta anticlerical, como é o caso de A Lanterna, citando
apenas um jornal do Estado de São Paulo. Para o movimento anticlerical, assim
como para o anarquismo, não existiam fronteiras.
A crítica também vai para além das fronteiras. No artigo anterior, Xisto
Leão menciona a dominação do polvo clerical sobre as instituições, incluindo
a escola. O artigo no número 361, de 14 de setembro de 1933c, na página 3,
intitulado “Não hesitemos: Guerra ao Vaticano! – Abaixo as mistificações e os
embustes que nos achincalham e nos aniquilam”, não trata especificamente
da educação, mas facilita a compreensão do autor de ir além do território bra-
sileiro. Escreve sobre a influência do Vaticano em todas as mazelas do mundo
ocidental, as guerras, as chacinas, convencendo o povo humilde, através dos
dogmas que a eles são ensinados, argumentando que têm que passar por tudo.
Há igualmente o alerta “Brasileiros, a postos! Oponhamo-nos resoluta
e energicamente á expansão do perigo negro que nos ameaça” (A Lanterna,
1933b, n. 359, p. 3). O perigo negro ao qual Xisto Leão se refere são os
padres que vestem a batina preta. Nesse artigo, o autor pergunta aos leitores
se existe alguma dúvida sobre a ação do padre e sua interferência na ordem
pública, nas suas mais diversas áreas (política, social – entende-se educação
também e economia). Chama-os de ladinos, “[...] na sua arte de escamotear
e confundir o próximo” (A Lanterna, 1933b, n. 359, p. 3).
Através da educação, a instituição clerical tem o privilégio, desde tenra idade,
de construir na criança o tipo de mentalidade ideal para continuar a ser uma das
instituições religiosas mais ricas e com maior expansão territorial. Qual o produto, se-
gundo o autor, de tantos anos de interferência da Igreja? Um mundo de vícios e erros.
266
De acordo com sua explicação, todas as coisas que aconteciam eram
resultado de uma formação de homens cegos a todas as realidades, criando
pessoas impotentes e incapazes de reagir aos desmandos dos dominadores.
Eles não defendem o povo, porém, o Vaticano, que representa os explorado-
res. A educação católica, para Xisto Leão, é “[...] a estagnação do homem na
indiferença de todas as questões mais sérias da humanidade: é o despreso pelo
sofrimento alheio [...]” (A Lanterna, 1933b, n. 359, p. 3). As críticas não
param por aí: o autor continua falando sobre as guerras que visam somente
ao lucro e às injustiças sobre os pobres e famintos, para serem a edificação
dos seus templos de riqueza. A Igreja destrói a harmonia social, porque seus
ensinamentos levam à irracionalidade.
Mas, especificamente sobre o Brasil, ele pergunta: “Para que se fez
Revolução? Para o povo? Para os Padres?” (A Lanterna, 1933d, n. 367, p.
1). Essa é a pergunta que o autor faz diante do anteprojeto da Constituição
brasileira, quando estava sendo discutido e cogitado o ensino religioso nas
escolas, se opcional. Critica a Constituição por ser um papelacho a favorecer
a padraria. Nem mais, nem menos. Os eternos exploradores da ingenuidade
popular hão de sentir-se extremamente bem com tais promessas de domínio
mais fácil e mais perpétua sobre todos nós.
Pois não foi certamente para converter em leis a própria republica das
imoralidades, tão fértil em escândalos e abusos [...] como um atentado
a liberdade de pensamento, que se fez a revolução. Não foi, não pode
ter sido para mais oprimir e vexar o povo que se preparou e fez estalar o
grande movimento armado que deveria conduzir a nação a um regime de
garantias de liberdade.
Ensino religioso nas escolas... nada disso... (A Lanterna, 1933d, n. 367, p. 1).
Essa passagem demonstra um pouco da ironia do autor, característica
que também podemos ver em outros colaboradores do jornal, assim como já
se constatou também em Maria Lacerda de Moura. No artigo acima citado,
o autor se pergunta para quem foi feita tal revolução que apenas oficializou
o status quo das desigualdades já existentes no país. Esse é um questiona-
mento que se mantém em Xisto Leão, como se pode ver no artigo seguin-
te, “Revolucionarios de verdade, ou joguetes da padralhada?” (A Lanterna,
267
1933e, n. 368, p. 1), protestando pelo fato de que os homens livres não
lutaram para ter ensino religiosos, nas escolas, pelo contrário. “Não será com
padres nas escolas que evitaremos a escravidão fascista no Brasil” (A Lanterna,
1934a, n. 374, p. 2).
A cada artigo, Leão vai se apresentando como um escritor que, de vá-
rias formas, em vários momentos, comunga com as ideias de Maria Lacerda
de Moura, como nesta frase: “O fascismo é, antes de tudo, antes de mais
nada, fruto do capitalismo” (A Lanterna, 1934a, n. 374, p. 2). E seria tam-
bém o fim da Igreja que cria os “cordeiros”, como lhe convém, através do
ensino religioso.
A resistência a toda essa forma de dominação é necessária, força para
garantir a liberdade de consciência: “O polvo clerical não dominará o Brasil”
(A Lanterna, 1934b, n. 380, p. 4). Leão reafirma a intenção de dominação do
povo pelo clero, por meio do ensino religioso nas escolas, defendendo que o
povo deve resistir e garantir a sua liberdade consciência. “O monstro clerical
e a sua sórdida missão” (A Lanterna, 1935b, n. 399, p. 4). O autor discorre
sobre à instituição católica, que tem como missão a desculpa de ensinar, mas,
na verdade, é produzir cabeças não pensantes, as quais possam ser dominadas
e seguirem o seu propósito, que é servir a Deus, na verdade, servindo ao sis-
tema clerical e a quem ele designar que esteja no poder.
O periódico libertário A Plebe foi fundado em 1917, esteve presente até
1951, ficando alguns anos sem publicação, por causa da repressão da polícia
política e pelas próprias dificuldades de manutenção. O jornal teve diver-
sos colaboradores, os quais escreviam artigos, os redatores-gerentes Edgard
Leuenroth, Florentino de Carvalho, Pedro A. Mota e Rodolfo Felipe. Os jor-
nais analisados de 1933-1935 são da chamada nova fase do jornal, que tinha
como redator-gerente Rodolfo Felipe.
Nesse periódico, buscou-se por Maria Lacerda de Moura e sobre edu-
cação, incluindo as palavras “escola” e “ensino”. Nas 96 edições do jornal, en-
tre 1933-1935, analisadas, ela foi citada 75 vezes, na divulgação e indicações
dos seus livros, nas conferências de que participou, nos artigos publicados.
Obtiveram-se 5 artigos, sendo que o último deles foi publicado em 4 partes,
em edições diferentes, 6 conferências na cidade de São Paulo e no interior do
Estado; notícia sobre a visita que recebeu da militante argentina Concepción
268
Fernandez, divulgação de 5 livros de Lacerda, sendo citados em diferentes
edições, por dezessete vezes; teve 7 livros recomendados, sendo recomenda-
dos em cinquenta e duas edições diferentes e ela também doou 3 livros para,
com a venda, arrecadar fundos para o jornal, assim como 2 citações de frases
suas na seção “Estilhaços...
Dos 5 artigos publicados de Maria Lacerda de Moura, nenhum aborda
especificamente a educação, mas 3 deles conversam com o tema da educação,
o clero e o fascismo, pois tratam de política e consciência humana. São eles:
“Direitos civis e políticos à mulher” (A Plebe, 1933d, n. 18, p. 2), “A política não
me interessa” (A Plebe, 1933f, n. 19, p. 1) e “Nem governos nem sacerdotes” (A
Plebe, 1933j, n. 34, p. 2). Além desses artigos, ela publicou mais dois, são eles: “A
‘Legião Negra de São Paulo’” (A Plebe, 1933l, n. 36, 37, 38, 39, todos na p. 2) e
A proposito das perseguições aos Israelitas” (A Plebe, 1933g, n. 24, p. 2).
Os artigos que contribuem para a questão da educação, nos escritos
de Maria Lacerda de Moura, são os três primeiros mencionados acima. O
primeiro, “Direitos civis e políticos à mulher” (A Plebe, 1933d, n. 18, p. 2),
demonstra o quanto a Igreja se utilizará desse direito, para impor suas vonta-
des, ao passo que, no número seguinte, considera a inutilidade do voto:
Democracia? – Ferrero a definiu: ‘este animal cujo ventre é imenso e a
cabeça insignificante’...
O voto não é necessidade natural da espécie humana: é uma das armas
do vampirismo social. Si tivéssemos os olhos abertos, chegaríamos a com-
preender que o rebanho humano vive a balar a sua inconciencia, aplau-
dindo à minoria parasitaria que inventou e representa a ‘tournée’ da tea-
tralidade dos governos, da política, da força armada, da burocracia de
afilhados – para complicar a vida cegando aos incautos, afim de explorar
a todo o gênero humano em proveito de interesses mascarados nos ídolos
do patriotismo, das bandeiras, da defesa sagrada dos nacionalismos e das
fronteiras, da honra e da dignidade dos póvos...
Depois, a rotina, a tradição, a escola, o patriotismo cultivado, carinhosa-
mente, para que a carneirada louve, em uníssono, o cutelo bem afiado dos
senhores. A religião, a família se encarrega do que falta para desfibrar o
individuo (A Plebe, 1933, n. 19, p. 1)45.
45 A Plebe – periódico libertário, números 7 (07.01.1933) a 102 (23.11.1935), Arquivo Edgard
Leuenroth – Unicamp.
269
Esse fragmento é apenas uma amostra das fortes e conscientes palavras
de Maria Lacerda de Moura, criticando a política e os seus senhores famin-
tos de poder. Para se manter no poder, é preciso domesticar as consciências
com bandeiras, dogmas, e a escola tem seu papel fundamental para moldar a
obediência servil.
O último artigo, “Nem governos nem sacerdotes” (A Plebe, 1933j, n. 34,
p. 2), segundo o jornal, faz parte de outro livro inédito de Maria Lacerda de
Moura, intitulado Clero, fascismo e antissemitismo. Nele, a autora aborda o fato de
existirem duas formas de ética em que se resumem todos os problemas humanos:
A primeira fórmula de ética vem da sabedoria antiga, do Templo de Delfos.
A sabedoria moderna acrescentou-lhe um poema de beleza e harmonia:
“Conhece-te a ti mesmo” – “para aprenderes a amar”.
A segunda fórmula é consequência da primeira:
“Unir ao individualismo dos espíritos o comunismo das mãos” – liberda-
de e auxílio mutuo. Pensamento livre, livre conciencia e trabalho manual
para todos. (A Plebe, 1933j, n. 34, p. 2).
Na citação acima, verifica-se mais uma vez a sua aproximação de pensa-
mentos filosóficos com o anarquismo individualista de Han Ryner e do anarquis-
mo quanto à liberdade e auxílio mútuo. As ambições e a cultura da imbecilida-
de aplaudem os déspotas: mesmo assim, o ser humano pode, individualmente,
iluminar sua consciência para a fraternidade e acima de todos os despotismos e
torturas, sobrevivendo às inquisições políticas e religiosas, de modo a sermos ir-
mãos, no auxílio e respeito mútuo, no culto à liberdade e à bandeira dos Direitos
Humanos. Essas aspirações da autora podem se concretizar muito, segundo ela
mesma, com a educação do livre pensamento e consciência.
A autora, apesar de suas críticas, acreditava na possibilidade de se
viver em um mundo mais harmônico, de respeito às diferenças, pensa-
mento livre e ajuda mútua, sem dogmas, autoritarismos, baseados na
consciência livre e respeito às individualidades. Era totalmente contra
qualquer forma de violência ou dominação, algo que se pode verificar nas
6 conferências de Maria Lacerda, as quais foram registradas, nesse perío-
do, com temas contra a guerra, antissemitismo, fascismo, clericalismo, e
a favor de uma educação livre de dogmas, tendo como amparo autores
270
como Francisco Ferrer, ao qual ela dedicou todo um livro, divulgado e
recomendado pelo jornal.
Quanto aos outros autores que escreveram no jornal sobre o tema da
educação, não será feita uma tabela, por serem muitos e vários deles terem es-
crito apenas um artigo, no intervalo verificado, de 1933-1935. Foram encon-
trados sessenta artigos, que focalizam a educação, de alguma forma, dentre os
quais quinze sem assinatura, 3 de Souza Passos, M. Garcia, Campos Carvalho
e um artigo de cada dos 52, alguns sem assinatura, publicadas pelo movimen-
to operário e outros autores que colaboraram com o jornal: J. Carlos Boscolo,
Isabel Cerruti, Neno Vasco.
Dos artigos de Souza Passos, o primeiro chama-se “Educação ou re-
trocesso” (A Plebe, 1933, n. 39, p. 4) e questiona o conceito de evolução.
Indigna-se o autor com a possibilidade de ansiarmos pela liberdade e cons-
ciência livre, todavia, vivermos dominados. Isso leva ao seu segundo artigo,
A vida proletária á beira de um abismo – o caso da Austria é um preludio da
sangreira com que o capitalismo julga salvar os seus privilégios”, uma vez que
as expressões do fascismo têm como objetivo impedir a realização humana, a
fraternidade e a liberdade.
A educação fascista não só cria o ódio como impede o ser humano de se
desenvolver em sua plenitude, na liberdade de pensamento e ação, na vivência
coletiva e de apoio mútuo, concebidas como proposta pelo anarquismo e seus
pensadores. Por exemplo, na educação, com o pedagogo anarquista Francisco
Ferrer, o qual é o título do terceiro artigo de Souza Passos. Nele, o autor asseve-
ra que o mundo está escravo dos preconceitos religiosos, fruto da educação, de
concepções dogmáticas que “[...] comprimiam o coração de Francisco Ferrer
onde transbordava a seiva da fraternidade humana” (A Plebe, 1934, n. 73, p. 3).
Seres humanos servis e fáceis de dominar e explorar, seja pelo clero,
seja pelo fascismo ou capitalismo – esse é o resultado de uma educação ba-
seada em dogmas e preconceitos, sobre os quais já escreveram Maria Lacerda
de Moura, Souza Passos, assim como Martins Garcia, no seu artigo “Vida
de anarquista – Anarquismo, sindicalismo e revolução social”, quando alerta
para as “[...] consequências malignas de uma falsa educação [...]”, que come-
ça na edição de A Plebe, 1934, n. 58 e termina no n. 59, ambas na página 2,
apresentando as possibilidade de uma redenção.
271
A educação é um dos grandes motes da transformação social. A esse coro
se une a voz de Campos Carvalho, no artigo “O século da criança”, onde o
autor denuncia a descoberta da burguesia em explorar o trabalho da criança:
“Esquece a burguesia que aí esta se formando uma criança proletária e que
lutará com consciência desde tenra idade até adulto” (A Plebe, 1934, n. 71, p.
2), não aceitando o “[...] método de educação da classe pobre, procurando que
subsista para sempre a admirável obediência [...]” (A Plebe, 1934, n. 73, p. 2).
Sobre a educação, M. Sanches, em “Momento Pedagógico”, faz um
alerta acerca da “[...] a responsabilidade dos professores na formação do ser
humano e a uma educação adequada ao desenvolvimento da ciência” (A
Plebe, 1933, n. 8, p. 2). Assim como Martins Garcia, citado anteriormen-
te, M. Sanches, com outros autores, alerta para as consequências de uma
educação baseada em dogmas religiosos e mitos patrióticos. É uníssono, em
quase todos os outros autores que abordam a educação, melhor dizendo, o
problema da educação que tem a intromissão do fascismo, pela autoridade,
do clero, pela caridade, pela fé, os quais se embrenham como um polvo em
quase todas as áreas, do capitalismo ao proletariado, por meio das campanhas
de educação e saúde, transformando-se em fazedores de rebanhos. Critica-se
essa educação totalitária e promove, através dos movimentos operários, nas
escolas racionalistas, uma educação libertária.
Os outros anarquistas que focalizam o tema da educação, em algum mo-
mento, em seus artigos para o jornal A Plebe (1933-1935), escrevem 27 artigos,
alguns assinados, abreviados ou sem assinatura. Infelizmente, não serão descri-
tos e estudados todos eles, neste documento, pois ficaria cansativo para o leitor
e, em alguns momentos, mesmo que examinando a educação, fora de contex-
to para a pesquisa. Tenta-se então resumi-los, dando os destaques necessários
àqueles autores que mais “conversam” com o tema da pesquisa.
João Pontes Morais, no texto “O clero e a Contra-revolução” (A Plebe,
1933, n. 7, p. 3-4), denomina contrarrevolução o fato de os paulistas rea-
cionários da política burguesa e o clero financiarem o movimento, fazendo
a crítica de os hospitais estarem lotados, centenas de desamparados, de não
terem escolas suficientes, enquanto a igreja doa ouro para a “revolução”:
O problema social do mundo não desperta a sua atenção. Que se im-
portam eles que haja miséria e desespero. Os imbecis proporcionam-lhes
272
conforto invejável. A bolsa dos burgueses está sempre aberta para encher-
-lhes as mãos de ouro. O trabalho que prestam á burguesia, de anestesiar
a conciencia do povo, é bem pago [...] Onde o Arcebispo sepultou os en-
sinamentos do grande revolucionário, Jesus, aproveitado pela igreja como
divindade para bestificar a massa? (A Plebe, 1933, n. 7, p. 3-4).
Mas a educação das massas está evoluindo e o “Trio Corruptor” (A
Plebe 1933, n. 13, p. 4), como diz Vanguardeiro, está afundando:
Religião, burguesia e capitalismo, estão, neste século, navegando num
barco frágil, apodrecido pelo tempo e gasto na sua estrutura, fazendo agua
já nos porões da estabilidade graças á evolução e educação das massas (A
Plebe, 1933, n. 13, p. 4).
Nisso se inclui a educação anarquista, racionalista, pois, em face
de tanta injustiça social, não há como não ser anarquista, escreve Alfredo
Calderon, no artigo intitulado “Serei Anarquista?” (A Plebe, 1933, n. 15, p.
1), acrescentando: “[...] a educação transformada em um meio de formação
dos espíritos para adaptar ao ambiente; o sentimento religioso convertido
em monopólio de uma Igreja que faz dele um negócio e adora um Deus ‘por
interesse’ [...]” (A Plebe, 1933, n. 15, p. 1).
Ditam-se regras que contradizem os ensinamentos, tendo-se na educa-
ção religiosa obrigatória nas escolas uma forma de se eximir do seu trabalho
de sacerdócio. Como explica um autor anônimo, no artigo de A Plebe, nú-
mero 16, página 3 de 1933, com o título de “Os dez mandamentos do eleitor
católico”; o sétimo fala se refere às escolas:
7º - Para introduzir obrigatoriamente o ensino religioso nas escolas; para
que os colégios públicos e particulares deem 5 horas diárias de catecismo
ás crianças brasileiras, poupando esse trabalho aos nossos queridos sacer-
dotes [...] (A Plebe, 1933, n. 16, p. 3).
Esse é o intuito da Igreja e, para se livrar dessa doutrinação, aconse-
lha: “Trabalhador – sê o teu próprio defensor” (A Plebe, 1933, n. 20, p. 2),
um artigo anônimo que sugere ao trabalhador cuidar da sua própria educa-
ção, instrução e reflexão, pois as castas capitalistas, sacerdotais, industriais e
273
latifundiárias não irão fazer isso, pois a elas só interessa a exploração. “É como
diz o Escritor: pobre educação capitalista!” (A Plebe, 1933, n. 20, p. 3), reflete
Oliveiro Rigonati, em “Conceitos de um caipira paulista”, criticando a imbe-
cilidade de alguns senhores, dando como exemplos o sr. Pinto Serva e o Dr.
Baptista Luzardo, este último por considerar a prostituição uma necessidade.
Por isso, a importância da educação baseada na ciência, porque desta
depende o nosso futuro: é o que diz aos professores, em relação às crianças,
José Ingenieros, no artigo “Pela humanidade futura”:
Ensina-lhes que entre os deveres do homem, o primeiro dever é a inten-
sificação da própria personalidade, mediante a cultura da inteligência, a
socialização dos sentimentos, a educação da vontade: assim se forma o
homem livre, o cidadão laborioso, conciente, altivo em sua dignidade de
seu similhantes. Essa é a aurora porvir (A Plebe, 1933, n. 22, p. 4).
Pode-se destacar alguns “Pontos de doutrina – as razões porque somos li-
bertários ou anarquistas” (A Plebe, 1933, n. 22, p. 4), conforme frisa um escritor
anônimo, com 6 razões: “1 – Religião explora; 2 – O trabalho manual e intelectual
é criador; 3 – o governo é improdutivo; 4 – Polícia é sementeira de ambições; 5 – A
lei não impede os delitos e 6 – a pátria é a criação arbitraria dos governantes”.
“Nós libertários queremos uma sociedade em que cada um se governe
a si mesmo, e na qual os meios de produção estejam ao alcance de todos os
seres humanos” (A Plebe, 1933, n. 22, p. 4). Essa fala se aproxima bem do
anarquismo individualista de Maria Lacerda de Moura e de outros anarquis-
tas, como André Néblind, Émile Armand e Han Ryner.
E para alcançar estes fins, propomos os seguintes meios de ação:
Procurar agremiar todos os trabalhadores assalariados, de boa vontade, deci-
didos a combater os preconceitos religiosos, políticos, econômicos, sociais.
Procurar abrir na muralha negra da ignorância, da hipocrisia, de todos os
preconceitos e de todas as opressões, uma brecha por onde possa livremente
irradiar um pouco de vida e ideal. Procurar facilitar aos espíritos livres e
curiosos, que desejem conhecer a questão social, 0 os meios indispensáveis
para tal fim. Procurar despertar e estimular, principalmente entre a moci-
dade das escolas e dos produtores, o gosto e o interesse pela leitura e estudo
das diversas escolas sociológicas, filosóficas e científicas, que mais interessem
á cultura geral. Procurar, finalmente, contribuir para a difusão das moderna
274
idéias de emancipação humana, preconizadas pelos mais formosos espíritos
de cientistas, filósofos e artistas, sustentadas pela parte sã e conciente dos
produtores do Universo (A Plebe, 1933, n. 22, p. 4).
Essas são algumas diferenças entre a educação de um fanático e um
consciente ponderado, como em “O nosso contro – Um Patriota”, de João
Távora (A Plebe, 1933, n. 24, p. 3) e o que repetem algumas organizações,
como o Comitê organizador de Campinas, em “Aos homens de conciencia
livre” (A Plebe, 1933, n. 29, p. 4).
Inimigo de todo e qualquer princípio de liberdade humana, o clero man-
teve-se sempre ao lado dos opressores contra os oprimidos. (Haja vistas nas
relações amistosas do Vaticano com Hitler e Mussolini). Aqui no Brasil
esses propagadores do erro e da mentira tentaram introduzir o ensino reli-
gioso nas escolas e vendo fracassado o seu intento, resolveram transformar
as igrejas em centros de propaganda política (A Plebe, 1933, n. 29, p. 4).
Da mesma forma, a União dos Artífices em calçados, em “O nosso
grito de Repulsa contra o bandoleirismo fascista” (A Plebe, 1933, n. 34, p. 4),
na seção “Ignorancia e Cultura”, enfatiza a importância da educação e da cul-
tura, com base na pedagogia de Francisco Ferrer. Para combater e evitar que
o Brasil se torne “A Alemanha subjugada pelo nazismo” (A Plebe, 1933, n.
36, p. 4), o autor anônimo explica sobre os campos de trabalho, treinamento
e educação militar.
A “Escola de Vagabundos” é um bom exemplo, mas referente ao Estado,
no qual B. S., no artigo “Paradoxo” (A Plebe, 1933, n. 37, p. 4), conta que
chegou a uma Chácara, que descobriu ser do governo, pôs-se a conversar com
um senhor, que também olhava o ambiente. Ali estavam várias crianças, mal-
trapilhas e castigadas, em extrema disciplina: plantavam o dia todo, dormiam
em barracões e, à noite, iam para a escola, onde, além de tudo aprendiam a
rezar e a instrução militar. Ora, e eles eram os “vagabundos”, segundo esse
senhor que também os observava?
Esforçava-me por desfazer a confusão que aquele paradoxo me propor-
cionava: os vagabundos são quem trabalha, quem revolve a terra, quem
planta, quem colhe...
275
Aprendem a rezar e militarizam-se... Esta é a escola que eles recebem!
Que crime terá cometido aquela massa de crianças?
...Ah! Sofrem fome! Tiritaram de frio! Dormiram nas portas das igrejas!
Então, prenderam-os, como prendem a todos, para afastar da cidade esse
aspeito de miséria que existe em todas as urbes dos países capitalistas.
Que mundo de lodo! (A Plebe, 1933, n. 37, p. 4).
É preciso estar atento à falsa educação, e o artigo de Atomo, intitulado
“Humildade, resignação, tolerância...” (A Plebe, 1933, n. 41, p. 2) alerta sobre
os falsos educadores que querem que o povo seja humilde, resignado e se curve
diante das autoridades (patrão, padre, general, governador). Essa é uma auto-
ridade artificial, porque todos são e têm como fim a exploração. São os pobres
que têm de ser humildes ou devem se orgulhar da sua força, pergunta o autor?
Em sua opinião, a resignação foi inventada por ricos, com o objetivo de escravi-
zar. Como nos resignar, se o salário não dá para o sustento? “Sublime escola essa
que nos ensina a curvar a espinhela para que os piratas cavalguem!...
Essas situações despertam para o senso de justiça; por isso, chega
Bongado, em “Revolução Social” (A Plebe, 1933, n. 42, p. 2), questionando
acerca do que é preciso para tal. Deve estar ligada ao sentir, pensar e agir dos
indivíduos, sem as autoridades, com os decretos, leis recompensas, castigos,
prisões, propriedades e atos religiosos, cada um com seus próprios interesses.
As lutas políticas e religiosas que se agitam atualmente, partem de percep-
ções despeitadas, filhas duma educação decadente e de físicos doentios” (A
Plebe, 1933, n. 42, p. 2).
Ora, o homem, como salienta H. Halpern, em “A religião e o proleta-
riado” (A Plebe, 1933, n. 42, p. 1),
no albor da sua infantilidade não possui nenhuma noção sobre deus, anjos
ou diabo. De tudo isso vem a ter-se conhecimento pelas circunstâncias
acidentais em primeiro lugar da mãe, avô, e, naturalmente da escola (A
Plebe, 1933, n. 42, p. 1).
É preciso continuar lutando e resistindo contra esse “Trio Corruptor”,
o qual tenta dominar a todos. E a Conferência Internacional das
Trabalhadoras em Bruxelas (A Plebe, 1933, n. 46, p. 1) uniu-se a essa luta,
aprovou a moção de indignação as violências contra a classe trabalhadora
276
alemã e, entre outras questões, o valor da liberdade individual, a luta contra
o fascismo e a importância da educação.
Foi o que fizeram em relação à Alemanha, mas a luta é internacional,
porque o polvo clerical se une a todas as forças governamentais e burguesas,
para continuar ressurgindo a todo momento, com o seu poderio e domínio
sobre o povo. Entretanto, aqui no Brasil, a resistência continua, conforme o
autor anônimo de “Vida anarquista – A todos os anarquistas do Brasil” (A
Plebe, 1933, n. 48, p. 2):
Não obstante haver a certeza de que no Brasil o fascismo não conseguirá
medrar, porque, porque as condições de educação e as condições geográ-
ficas do país não são de molde a produzir vida a essa planta daninha do
clericalismo, acham, entretanto, os anarquistas do Grupo Terra Livre, já
em relações com os outros grupos, que, afim de evitar danos maiores á
vida coletiva do Brasil, devem ser postas em pratica todas as atividades
revolucionarias no combate a essa praga que ameaça a tranquilidade do
proletariado brasileiro (A Plebe, 1933, n. 48, p. 2).
Era importante a organização dos anarquistas e existia, de fato, uma
luta de resistência, assim como no acreditar que a revolução social estava por
vir; contudo, essa última fala se demonstra bastante ingênua e divergente do
que Maria Lacerda de Moura e outros autores escreveram sobre a dominação
do polvo clerical, que inclusive se utiliza das suas localizações geográficas,
igrejas e escolas para pregar o seu entendimento sobre o que é certo, no senti-
do político, espiritual, educacional, de resignação social e obediência.
Como destacado acima, não são todos os autores que comungam desse
entendimento do autor anônimo. Por exemplo, Antônio Manoel Vinhais, no
artigo “Professores ou agentes do Vaticano?” (A Plebe, 1933, n. 52, p. 4), cri-
tica a influência clerical em todo o país, dando como exemplo o magistério e
a escola normal, repletos de professores católicos. Convoca os intelectuais de
consciência livre contra a arrogância do clero para bloquear o polvo clerical.
Não é diferente quanto à “A questão social na Constituinte” (A Plebe,
1934, n. 58, p. 1), na qual outro escritor anônimo, com uma escrita contun-
dente, nega aos membros da Constituinte ou instituições de Estado a autori-
dade para resolver as questões dos trabalhadores. Diz já saber que a revolução
de 30 trairia o povo com sua demagogia que, entre tantas questões, introduz
277
o ensino religioso nas escolas. A nossa educação é cheia de vícios e prejuízos,
como enfatiza J. Carlos Boscolo, em “Verdades Sociais” (A Plebe, 1934, n.
59, p. 2). Por isso, conforme realçado na Conferência Operária Brasileira (A
Plebe, 1934, n. 62, p. 3), é preciso:
[d]esenvolver constante propaganda contra todos os vícios e máus hábi-
tos que prejudicam moral e fisicamente os trabalhadores, sustentando, ao
mesmo tempo, uma permanente obra de educação e instrução em todos os
meios obreiros, procurando elevar o nível dos conhecimentos intelectuais,
profissionais e sociais da classe trabalhadora (A Plebe, 1934, n. 62, p. 3).
O entendimento da Conferência Operária Brasileira e dos movimentos
grevistas estava articulado com o conceito anarquista de luta de classe, como
é possível verificar, em “Os movimentos grevistas e o conceito anárquico da
luta de classe” (A Plebe, 1934, n. 67, p. 1):
A luta de classes, como encaram os anarquistas, é a ação direta dos tra-
balhadores, como demonstração de uma independência de caráter e de
consciência, contra as classes que exploram o trabalho escravizando os
indivíduos ou submetendo-os por uma educação disciplinada com base
na obediência ao chefe (A Plebe, 1934, n. 67, p. 1).
A autoridade tem um papel repressivo, com a desculpa de ser guarda-
dora da moral, cedendo apenas por pressão. A história mostra que autoridade
e justiça são incompatíveis, afirma Claudio de Lisle, em “Autoridade e justi-
ça” - “A justiça quer a benevolência, a educação, a grandeza da alma, falando
assim, enquanto a autoridade se alimenta da soberba, do orgulho, da vaidade
e da violência” (A Plebe, 1935, n. 85, p. 2).
No artigo “Necessidades Urgentes” de Roinvjócira (A Plebe, 1935, n.
83, p. 2), se pergunta: “E quantos, quantos por aí andam já perdidos no labi-
rinto de uma escravidão branca sob o jugo de uma minoria de mistificadores
[...]”. Na dominação do clero, como frisa J. Alves, em “A exploração clerical
no Brasil” (A Plebe, 1935, n. 93, p. 3), que vai vagarosamente tomando espa-
ços até “[...] o ensino religioso nas escolas, Cristo no Tribunal, a Constituição
decretada em nome do padre do Filho e do Espírito Santo, a igreja novamen-
te casa com o Estado [...]” (A Plebe, 1935, n. 93, p. 3).
278
Considerações Finais
Encerra-se este escrito, que teve como objetivo a pesquisa documental
sobre Maria Lacerda de Moura e a educação em três jornais, sendo dois deles
da imprensa anarquista brasileira e um na imprensa de grande circulação. Os
três serviram para verificar o que se falava da autora, na imprensa anarquista
ou não, sendo os dois primeiros para descobrir quais eram outros “objetores de
consciência”, autores anarquistas, anticlericais, e o que tratavam sobre educação.
A leitura dessas fontes documentais, principalmente as anarquistas, se
fez de suma importância para se compreender que não era apenas Maria
Lacerda de Moura que pensava da forma como se apresenta, nos Capítulos
2 e 3, a dominação dos fascistas, da Igreja Católica e seus intelectuais sobre a
educação brasileira e seu povo. Pode-se, através desses documentos, verificar
em outros autores, alguns conhecidos e outros anônimos, que a percepção
sobre a interferência do fascismo e da Igreja Católica estava nos escritos dos
escritores e militantes anarquistas e anticlericais.
A luta contra a dominação da Igreja Católica era fortíssima, a ponto
de um dos jornais, A Lanterna, ser declaradamente anticlerical, denunciando
todos os abusos de poder dessa instituição, a qual se utiliza de um dogma e
da crença massiva da população para controlar a todos e dominar sobre eles,
influenciando inclusive a sua vida política partidária, no sentido de que usa
os espaços religiosos para fazer a pregação dos fascistas.
Para esses autores, os espaços de educação são importantes lugares de for-
mação das mentes da população e, assim, o clero, o fascismo e seus intelectuais,
ou melhor dizendo, os superelefantes, conforme designou Maria Lacerda de
Moura, lutavam para se manter dentro deste campo e perpetuando a domina-
ção, domesticação, controle e servilismo do povo. É o polvo clerical!
O polvo clerical é assim denominado por Maria Lacerda de Moura,
como outros autores, entre eles Xisto Leão, autor cuja identidade infelizmen-
te não se sabe e cujas ideias se aproximam demasiadamente com os escritos
de Maria Lacerda de Moura sobre educação. Esse polvo que se pretende estar
presente em todos os espaços da sociedade, para controlar a população, pois
sem ele, sem Deus, os homens e mulheres estão perdidos, de sorte que apenas
através dos seus ensinamentos de domesticação e servilismo há salvação.
279
É preciso, segundo os autores e autoras, combater esse polvo clerical e
sua dominação, que é fundamentalista, é imperialista, é capitalista, é fascista,
se molda conforme o grupo político que está dominando, para se manter no
poder. Nesse sentido, conhecer outros autores, através dessas fontes, mos-
trou-se muito profícuo, na contribuição do entendimento sobre o fascismo, a
Igreja Católica e a educação, no Brasil da década de 1930. Na busca por esse
tema e sobre Maria Lacerda, encontramos a crítica a respeito dessa autora,
sendo esta específica sobre um dos livros da escritora, elencado como base
para os estudos dos seus escritos sobre clero, fascismo e educação.
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283
Cinema, Educomunicação e Sala de Aula:
Contribuições para a Formação de Professores
Naiana Leme Camoleze SILVA46
Introdução
A presente pesquisa intitulada “Cinema, Educomunicação e sala de
aula: contribuições para a formação de professores” tem como premissa res-
saltar a relação existente entre Cinema e Educação, e colaborar com a prá-
tica docente com o uso de produções cinematográficas em sala de aula, por
meio dos documentários produzidos pelo cineasta e poeta italiano Pier Paolo
Pasolini, e através de uma perspectiva interdisciplinar promover diálogos, vi-
sando contribuir com a formação de professores.
O estudo parte de uma perspectiva bibliográfica, passando para um pa-
norama documental com a utilização dos documentários de Pasolini e dá-se,
sobretudo, a partir da observação do conteúdo expresso nos documentários
do cineasta italiano: A Raiva, Comícios de amor, Locações na Palestina para O
Evangelho segundo Mateus, Notas para um filme sobre a Índia, - Os Muros de
Sanaa, Anotações para uma Oréstia Africana, que foram rodados, respectiva-
mente, na Itália, Palestina, Índia, Iêmen e África, e tratam de temas como
cultura, política, preservação histórica, mito, dramas humanos etc., cuja pro-
posta do trabalho é sistematizar o que há de interesse à área de Educação.
O que nos interessa é fazer saber neste trabalho, através dos docu-
mentários, como a linguagem cinematográfica pasoliniana pode contribuir
46 Mestra e Doutoranda em Educação: UNESP - Universidade Estadual Paulista/FFC - Faculdade de
Filosofia e Ciências, campus de Marília/SP; formada em Letras (UNESP) e Comunicação Social
(FEMA). E-mail: nl.camoleze@unesp.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p283-306
284
na educação e na formação de professores, cujo objetivo é sua utilização in-
terdisciplinar através da educomunicação, auxiliando a prática docente.
Posteriormente, com a capacitação docente esse diálogo sobre cinema e edu-
cação pode ser levado à sala de aula, incluindo demais áreas correlacionadas,
como história, literatura, línguas estrangeiras, artes, por exemplo, considerando
a universidade como espaço privilegiado de extensão e divulgação de saberes
diversos, dos pontos de vista cognitivo, científico e de valores éticos e morais.
Fundamentação Teórica e Metodologia
Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a reencontrar
a cultura ao mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo
no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são
sintetizados numa mesma obra de arte. (Napolitano, 2022, p. 11).
Esta pesquisa tem como principal premissa ressaltar a relação existente
entre Cinema e Educação através dos documentários produzidos pelo cineas-
ta e poeta italiano Pier Paolo Pasolini e promover diálogos entre as áreas
visando contribuir com a formação de professores.
Mais especificamente a proposta é sistematizar o que há de interesse à
Educação ao propor auxiliar o docente a fazer uso do Cinema na sala de aula
observando os documentários pasolinianos, cujo estudo parte da perspectiva
da metodologia bibliográfica, posteriormente, passando para um panorama
documental, cujos passos serão detalhados de forma transparente, para que a
pesquisa cumpra sua função científica e esse processo possa ser reproduzido.
A pesquisa segue o método bibliográfico, em que são observadas a cor-
relação entre as áreas que compreende cinema, educomunicação e formação
docente, cuja referência metodológica encontra-se nas descrições de Correia e
Mesquita (2014) sobre tipos de revisão de literatura baseada em Machi et al.:
Enquanto a revisão básica da literatura sumaria e avalia o conhecimento
existente sobre um tópico em particular (estado da arte), na revisão avan-
çada o investigador, em primeiro lugar, avalia o estado do conhecimento
sobre a questão em estudo e, depois, com base nos resultados obtidos, pro-
põe uma tese para futura investigação (Correia e Mesquita, 2014, p. 218).
285
Deste modo, seguimos a perspectiva de revisão básica, cuja investiga-
ção se dá por meio das teorias relacionadas ao tópico estudado e, para que
o trabalho tenha sustentação teórica foram mapeados materiais previamente
selecionados, como livros, artigos, revistas e vídeos, usando as fontes de dados
indicadas em pesquisa via Google Acadêmico e Consensus.
Os autores e teóricos ligados à esfera de concentração da pesquisa fo-
ram selecionados, tendo como ponto de partida obras sobre Cinema: Marcos
Napolitano (2022) e Como usar o cinema na sala de aula para dar enfoque
ao uso do cinema como meio educativo; Alex Moletta (2014) e Fazendo
Cinema na Escola; para trazer uma base mais concisa sobre cinema, Fernando
Mascarello (2006) e História do Cinema mundial; contando com aporte so-
bre o Neo-realismo italiano, Mariarosaria Fabri (2006); Documentário moder-
no, Francisco Elinaldo Teixeira (2006) Cinema e Tecnologias Digitais, Erick
Felinto (2006); além de André Bazin (1991) e O Cinema, Ensaios, objetivan-
do auxiliar na construção de uma visão mais técnica da produção cinema-
tográfica; Já a Educomunicação, área em ascensão, cuja importância sobre
seu conceito, seu campo profissional e sua aplicação se faz emergente, tem
como fonte os estudos propostos por Ismar Soares (2011) e Heloísa Penteado
(1998) com Pedagogia da Comunicação; Para abordar com mais propriedade
os estudos pasolinianos, Luiz Nazário (2007) e Todos os corpos de Pasolini, e
complementa a obra Um intelectual na urgência: Pasolini lido no Brasil, orga-
nizado por Maria Betânia Amoroso e Cláudia Tavares.
A pesquisa conta ainda com respaldo da Cineteca di Bologna/Itália,
por meio do Centro Studi - Archivio Pier Paolo Pasolini, onde materiais fo-
ram consultados virtualmente, entre vídeos e obras, e dúvidas foram sanadas
com a equipe responsável; Sobre a formação de professores outros autores
foram relacionados, como João Formosinho (2009) e Lizete Maciel (2004) e
na área da Didática, Ilma Veiga (1991), Jaime Cordeiro (2010) e José Carlos
Libâneo (1994), que foram surgindo durante a caminhada acadêmica, cuja
construção tem a finalidade de resultar em aprimoramento na área.
A definição inicial dos autores principais de base bibliográfica ocor-
reu na montagem do projeto, sendo melhor direcionada durante o percurso
da pesquisa, ocasião em que enquanto pesquisadora e bolsista CAPES tive
a oportunidade de realizar a condução do estágio docência, que alavancou
286
a pesquisa, bem como minha prática docente - quando pude formular a
hipótese a ser verificada, especificamente, direcionada à utilização dos docu-
mentários pasolinianos como base documental visando a capacitação docente
para o uso do cinema na sala de aula.
Ora, toda hipótese pertence ao mundo das abstrações. Ainda que sua
construção se tenha iniciado com a percepção de um problema bem real,
ela em seguida foi explicitada e precisada ao longo da problemática, até
expressar-se em um enunciado que põe em jogo um ou alguns conceitos
que são essencialmente construções do espírito. Assim, a autonomia, con-
ceito central da hipótese selecionada, não tem existência em si mesma, não
pode ser vista, ouvida ou tocada diretamente. E uma representação mental
tirada de um conjunto de observantes e de experiências particulares. Daí
a necessidade de uma tradução que assegure a passagem da linguagem
abstrata do conceito para a linguagem concreta da observação empírica, a
fim de que se saiba o que pesquisar e o que selecionar como informações
ao conduzir o estudo. Essa ponte entre o universo da hipótese e o de sua
verificação empírica é essencial (Laville, 1999, p.173).
O tema foi então ampliado quando pude lecionar na disciplina
Filosofia da Educação pelo período do segundo semestre de 2022, para o 4º
ano do curso de Letras, da UNESP Câmpus de Assis, através do DELLE –
Departamento de Estudos Linguísticos, Literários e da Educação, ou seja,
para alunos em fase de finalização de curso, por isso, o estreitamento do tema
foi sendo direcionado à formação de professores.
Faz-se necessário relatar que, durante esse período estágio foram dis-
cutidos temas relacionados à atuação docente como forma de compartilhar
conhecimentos, experiências, abrir para questionamentos e sanar possíveis
dúvidas sobre o cinema na educação, visando a ampliação do senso crítico
destes alunos da graduação, cuja proposta resultou, após a formulação da
hipótese, no início da problematização da pesquisa: Como seria essa capa-
citação de professores para o uso do cinema na sala de aula, o que teria a
agregar ao que já tem sido feito sobre a temática e o que isso significaria
para a prática docente? E ainda, para afunilar o tema, investigando se os
documentários do cineasta italiano poderiam contribuir com o ensino, e se
sim, de que forma?
287
Sabendo que estas questões estruturais como crise econômica e des-
valorização do profissional, bem como as motivacionais, e ainda a possível
desistência da carreira após a pandemia, por fatores como alto índice de vio-
lência nas escolas, não podem ser sanadas neste trabalho, e nem é a pretensão
sua abordagem, fato é que, não podem ser descartadas.
Reforça-se então que, a partir desses apontamentos, há a necessidade
de se pensar em estratégias didáticas que possam talvez amenizar esse contex-
to ao auxiliar o professor em seu ofício, e o cinema como recurso didático
pode se mostrar eficiente, deste modo, ao abordar cinema e educação, o tema
foi direcionado ao questionamento com o grupo de alunos encontrando sua
justificativa na discussão do impacto do cinema na sala de aula.
Resultados e Discussões
Durante o desenrolar da pesquisa o cinema pasoliniano então foi tido
como estratégia educativa, pois foi observada essa já citada lacuna na área,
que é o uso da produção cinematográfica de Pasolini na formação docente,
mais especificamente seus documentários, ainda não utilizados para fins edu-
cativos, mas que têm potencial para tal, o que encaminha a pesquisa à resolu-
ção de sua questão principal: Como contribuir de forma didática, através dos
documentários de Pasolini, com a formação de professores?
Por essa razão, ao avançar na metodologia bibliográfica foi possível
identificar que os documentários de Pasolini ainda não foram explorados
pelo viés educativo visando a ampliação na formação docente, então, resta
evidente sua relevância, pois além de ter um enfoque inédito, atende às de-
mandas e problematizações apresentadas pelos alunos em sala de aula, o que
também comprova sua aplicação social.
A primeira tarefa é decompor o conceito: depois, para cada um dos
componentes identificados, apela-se a seus conhecimentos e a suas expe-
riências para imaginar manifestações concretas dele. Não se deve negli-
genciar também a experiência alheia: uma olhada nas pesquisas conexas
ou, mais geralmente, nos trabalhos em que um ou outro dos conceitos
em jogo em nosso estudo apareceram pode trazer muita coisa. Resta em
seguida pousar um olhar crítico sobre o que foi assim acumulado, de iní-
cio para operar uma triagem, mas também para referenciar as eventuais
288
lacunas e preenchê-las, a fim de que todos os aspectos do conceito sejam
representados (Laville, 1999, p.174).
Desta maneira, o enfoque do primeiro capítulo é ‘Cinema aliado ao
ensino como instrumento educativo’, pois para que o cinema seja visto como
um aliado ao processo de ensino e o aspecto cultural seja alavancado, é neces-
sário começar pela base, ou seja, pelos formadores, pela conscientização do
professor sobre a importância do Cinema para a Educação.
Assim, dos mais comerciais e descomprometidos aos mais sofisticados e
difíceis”, os filmes têm sempre alguma possibilidade para o trabalho es-
colar. O importante é o professor que queira trabalhar sistematicamente
com o cinema se perguntar: qual o uso possível desse filme? A que faixa
etária e escolar ele é mais adequado? Como vou abordar o filme dentro da
minha disciplina ou num trabalho interdisciplinar? Qual a cultura cine-
matográfica dos meus alunos? (Napolitano, 2022, p. 11-12).
Na sequência, é tratada a ‘Abordagem cinematográfica pelo viés da
Pedagogia da Comunicação’.
Usar a Pedagogia da Comunicação consiste em promover a construção
de conhecimento por meio da comunicação dialógica e da relação entre
as pessoas, utilizando estratégias que impulsionem a interação em uma
comunidade de aprendizagem, incentivando a participação de todos
(Almeida, 2016, p. 34).
A Pedagogia da Comunicação, como pode-se ver, lança mão de recur-
sos da comunicação para facilitar a construção de conhecimento, utilizando
como instrumentos facilitadores do ensino, portais de notícias, podcasts, re-
des sociais e produção audiovisual e sua atividade, de acordo com Almeida
(2016), é Educação pela Comunicação.
E ainda, ‘Educomunicação: perspectiva interdisciplinar de fomento ao
cinema na escola’.
O segundo capítulo passa para um panorama documental, onde são
apontados os principais fundamentos dos estudos pasolinianos com ‘Educação
para Comunicação: breve biografia e cinema de Pier Paolo Pasolini’.
289
Qual a diferença fundamental entre esses dois tipos de cinema, o cinema
de prosa e o cinema de poesia? O cinema de prosa é um cinema no qual
o estilo tem um valor não primário, não tão à vista, não clamoroso, en-
quanto o estilo no cinema de poesia é o elemento central, fundamental.
Em poucas palavras, no cinema de prosa não se percebe a câmera e não
se sente a montagem, isto é, não se sente a língua, a língua transparece no
seu conteúdo, e o que importa é o que está sendo narrado. No cinema de
poesia, ao contrário, sente-se a câmera, sente-se a montagem, e muito.
(Pasolini, 1966, trad. Benetazzo, 1986, p. 104).
Os documentários de Pier Paolo Pasolini estão enquadrados nesta pesquisa
em uma perspectiva documental, sendo utilizados como fontes primárias, bus-
cando trazer um tratamento analítico e um cunho científico ao material artístico
produzido pelo italiano, complementando a pesquisa bibliográfica, levando-se
em conta que este trabalho seleciona a obra cinematográfica a ser analisada por
meio dos seis documentários produzidos pelo cineasta, que terão direcionamento
à abordagem do Cinema na sala de aula através da formação de professores.
Pasolini é um artista completo e trazer à tona sua obra cinematográfica é
mais do que justo, pois ela oferece uma vasta gama de possibilidades no campo
do conhecimento, e mesmo tendo inúmeros estudos acadêmicos dedicados ao
poeta e cineasta italiano, vale a pena revisitar seus documentários, que ainda
não foram amplamente tão estudados no Brasil, em busca de acrescentar uma
visão que favoreça à área da Educação, sobretudo, voltada à formação de pro-
fessores por uma perspectiva educomunicativa, algo inédito até então.
Além de poeta audacioso, o escritor mais tarde destaca-se, ainda, como
um arrojado cineasta, depois de frequentar cineclubes, ter contato com diversos
artistas, de gêneros variados, o que reflete em sua produção cinematográfica.
Nascido em 5 de março de 1922, em Bolonha, na Itália, intelectual
reconhecido mundialmente, Pasolini pretendia documentar o mundo arcaico
e pré-capitalista e, segundo Nazario (2007), seu cinema não se enquadraria
na produção comercial de entretenimento, seus filmes poderiam ser conside-
rados, de acordo com o estudioso, extraparlamentares, pois em seu cinema as
imagens flutuam, ele utiliza as câmeras para narrar histórias aberrantes:
Desejando viver sempre ao nível da realidade, “sem a interrupção mágico-sim-
bólica, do sistema de signos linguísticos”, nenhum outro meio pareceu-lhe
290
melhor que o cinema pra expressar-se, nessa altura de sua vida, uma vez que
o cinema “dá a realidade através da realidade”. Em outras palavras: o cinema
permitiria a um Pasolini maduro não apenas expressar sua visão de mundo e
seu interior, como também viver nesses mundos sonhados, permanecendo
mais próximo de seus objetos de desejo, convivendo com eles de uma maneira
criativa e produtiva. (Nazario, 2007, p. 37, grifo nosso).
Os documentários de Pasolini serão tomados neste estudo como fontes
documentais, seguindo a metodologia apresentada por Laville (1999), uma
vez que, por base documental entende-se o material apto a ser utilizado para
consulta, estudo ou prova, assim, uma pesquisa realizada com essa metodolo-
gia é conduzida a partir de documentos, atuais ou antigos, considerados au-
tênticos cientificamente. Esses documentos podem ser de fontes primárias e
secundárias, de escritas ou não. São consideradas fontes escritas os documen-
tos oficiais, projetos, livros, artigos, etc. e fontes não escritas as fotografias, os
vídeos, materiais audiovisuais.
Um documento pode ser algo mais do que um pergaminho poeirento: o
termo designa toda fonte de informações já existente. Pensa-se, é claro,
nos documentos impressos, mas também em tudo que se pode extrair dos
recursos audiovisuais (Laville, 1999, p.166).
O gênero documentário objetiva através da filmagem apresentar uma
visão da realidade, embora tenha um roteiro previamente definido, mas não
necessariamente planejado, encontra-se em constante processo de constru-
ção, nem sempre mantendo fidelidade à realidade, ou seja, sem tanto com-
prometimento com fatos reais ou com informações, abrindo espaço para de-
bates e análises diversas e interdisciplinares.
E desta forma, a pesquisa foca em uma abordagem acerca do relaciona-
mento entre Cinema e Educação, em que os campos citados trazem suas espe-
cificidades para um objeto de interesse comum e sua contribuição educacional.
Assim, a utilização dos documentários de Pasolini dá-se, sobretudo, a
partir da observação de: 1. A Raiva (Primeira parte) - La Rabbia (Prima parte-
(1963); 2. Comícios de amor - Comizi d’amore - (1964); 3. Locações na Palestina
para O Evangelho segundo Mateus - Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo se-
condo Matteo - (1965); 4. Notas para um filme sobre a Índia - Appunti per un
291
film sull’India - (1968); 5. Os Muros de Sanaa - Le mura di Sana’a - (1970); e
6. Anotações para uma Oréstia Africana - Appunti per una Orestiade Africana
- (1975), respectivamente, rodados na Itália, Palestina, Índia, Iêmen e África e
que tratam de assuntos com evidente relevância para a atualidade, sobretudo, no
contexto educativo, como cultura, política, religião, dramas humanos, diferença
entre as gerações, preservação à memória e patrimônio, fatos históricos, mito etc.
Sinopses47 e fotos dos documentários produzidos por Pasolini
La Rabbia- A Raiva (Primeira parte) - (1963): Documentário que reúne
imagens documentais de 1950, sendo ilustrado por recortes jornalísticos, por
exemplo, com cenas do pós-guerra italiano, uma forma do cineasta mostrar
indignação, denúncia da situação política e social da época, contra a burgue-
sia, a discriminação, ao que ele chamou de irresponsabilidade histórica, em
um momento em que a Itália passava de um país agrícola para industrializa-
do, com forte transformação cultural.
Comizi d’amore - Comícios de amor (1964): Documentário que pode ser
considerado mais voltado ao estilo jornalístico, em que Pasolini, assumindo
função de uma espécie de repórter, transita por universos distintos, de gêneros
e idades diversas, filmagem em formato de entrevista, em que circula pelas
ruas lidando diretamente com públicos desde infantil, passando por jovens,
abordando também adultos, entre diferentes camadas da sociedade, desde cam-
poneses, militares, artistas, intelectuais, tratando dos mais variados temas do
cotidiano. Assim, o cineasta percorre a Itália de norte a sul fazendo seus levan-
tamentos explorando questões sobre os dramas humanos comum a todos.
Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo secondo Matteo - Locações
na Palestina para O Evangelho segundo Mateus (Palestina) - (1965):
Documentário que mostra o itinerário que Pasolini, apesar de ser considera-
do por muitos como ateu, percorreu em companhia de um padre, em bus-
ca de locações na Galiléia, Jordânia e Síria para ambientação do seu filme
“Il Vangelo secondo Matteo”, “O Evangelho Segundo São Mateus”, cujos lo-
cais visitados foram descartados por não haver evidências da ancestralidade
47 Alguns dos documentários têm sinopse registrada na Cineteca de Bologna/Itália (https://
cinetecadibologna.it/), cujas referências serão traduzidas e inseridas neste capítulo para contextualizar
e complementar as análises.
292
projetada pelo cineasta. O filme acabou sendo rodado na própria Itália, re-
tratando Jesus Cristo como um jovem inconformado com a realidade de seu
tempo. Sem inserir um único diálogo que não estivesse na Bíblia, Pasolini
construiu seu Cristo e sua narrativa cinematográfica tomando como impulso
suas próprias indignações, convocando inclusive atores amadores para trazer
à tona a realidade pretendida.
Appunti per un film sull’India - Notas para um filme sobre a Índia - (Índia)
- (1968): Documentário que aborda a cultura indiana, suas lendas e mitos,
retratando aquele povo e sua situação social através da religião e da fome.
Le mura di Sana’a - Os Muros de Sanaa – (Iêmen) - (1970): Documentário
em forma de denúncia à UNESCO, em que Pasolini faz um apelo por in-
tervenção para proteção cultural e do local, considerado patrimônio da hu-
manidade, resultado do aproveitamento que o cineasta fez de imagens das
filmagens do filme Mil e Uma Noites em Sanaa.
Appunti per una Orestiade Africana – Anotações para uma Oréstia Africana
- (África) - (1975): Documentário que tem como tema central questões raciais,
ideia que surgiu depois de uma tentativa fracassada de produzir com atores
africanos uma adaptação de Ésquilo na África, cujo material gravado é reapro-
veitado em um documentário sobre o processo do que seria o filme.
Em seguida é abordada a ‘Teoria cinematográfica como suporte à análi-
se do gênero documentário’, e para ampliar para além das importantes defini-
ções teóricas e discussões sobre as possíveis implicações e variações etimológi-
cas dos termos que definem pela teoria cinematográfica o que é o cinema, que
dão suporte aos gêneros posteriores, menciona-se, então, - mesmo que histo-
ricamente tenha levado um tempo para ser creditada -, a importância que o
documentário tem na retratação da vida e aproximação com a percepção de
mundo que o espectador tem e como isso pode ser aproveitado positivamente
pelo prisma educativo.
Por isso, o que nos interessa é fazer saber neste trabalho, através dos do-
cumentários, como a linguagem cinematográfica pasoliniana pode contribuir
na educação, especificamente, com a capacitação docente, para que posterior-
mente, esse diálogo sobre cinema e educação possa ser expandido e levado à sala
de aula, incluindo o envolvimento de demais áreas correlacionadas, como por
exemplo, História, Letras, Literatura, Línguas estrangeiras, Artes, Psicologia.
293
Ao tratar da formação de professores nesta pesquisa, a intenção é promo-
ver sua utilização interdisciplinar, auxiliando a prática docente, considerando
a universidade como espaço privilegiado de extensão e divulgação de saberes
diversos, dos pontos de vista cognitivo, científico e de valores éticos e morais.
Defende-se, pois, o uso dessa série de documentários do cineasta, pelo viés
da Educação, especificamente, para a formação de professores, pois a produção
audiovisual trabalhada em sala de aula pode contribuir com o ensino, servindo
como instrumento fortalecedor, auxiliando professores e alunos no processo de
ensino e aprendizagem, atuando ainda como forma de socialização e inclusão.
Dando continuidade à proposta de fomentar o aprofundamento na esfe-
ra teórica do cinema, são explorados os ‘Documentários de Pasolini: inspiração
para projetos educacionais’, servindo como um forte complemento à pesquisa
bibliográfica, a metodologia documental ocorre em praticamente três etapas:
pré-análise, a organização dos documentos e a análise dos resultados.
O cinema na sala de aula aparece, então, como uma estratégia, uma ten-
tativa e responder às demandas de aprendizagem cooperativa, uma vez que a
Educomunicação atua no ensino-aprendizagem de forma colaborativa e dando
aos seus participantes caráter de protagonismo, para enfim, apontar o cinema
como instrumento educativo que pode capacitar o professor a auxiliar seus
alunos a assistir e compreender obras cinematográficas no cotidiano escolar.
O trabalho completo traz observações dos seis documentários de
Pasolini. Aqui será exibido um deles, com tradução de um catálogo sobre
as produções do cineasta, além de um trecho da entrevista conduzida em
italiano e traduzida, feita com uma autoridade italiana a pesquisa, especial-
mente sobre o filme originado do documentário “Locações na Palestina para
O Evangelho segundo Mateus”.
DOC Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo secondo Matteo - Locações
na Palestina para O Evangelho segundo Mateus (Palestina) - (1965) –
Documentário que mostra o itinerário que Pasolini, apesar de ser considerado
por muitos como ateu, percorreu em companhia de um padre, em busca de
locações em Israel e na Jordânia para ambientação do seu filme “O Evangelho
Segundo São Mateus”, cujos locais visitados foram descartados por não ha-
ver evidências da ancestralidade projetada pelo cineasta para a montagem da
produção cinematográfica que, posteriormente, rendeu prêmios ao cineasta.
294
O filme acabou sendo rodado na própria Itália, retratado Jesus Cristo
como um jovem inconformado com a realidade de seu tempo e um detalhe
importante é que o cineasta montou o roteiro da obra sem inserir um único
diálogo que não estivesse na Bíblia. Pasolini construiu seu Cristo e sua narra-
tiva cinematográfica tomando como impulso suas próprias indignações, con-
vocando inclusive atores amadores para trazer à tona a realidade pretendida.
Para a gravação do documentário que, posteriormente, gerou o filme
“Evangelho segundo São Mateus”, Pasolini, que não era católico, age com
prudência ao decidir filmar um evangelho cristão, tamanha é sua cautela que
não acrescentou e nem tirou nenhum trecho bíblico, permanecendo a obra
toda original. O respeito também pode ser observado quando ele convida um
sacerdote para acompanhá-lo em sua peregrinação em busca de uma locação
para a montagem do filme. E a tolerância parte fundamental para que sua
obra fosse concluída e hoje premiada, inclusive, aclamada no meio cristão
católico, em que era considerado herege por ataques frequentes que fazia à
Igreja Católica.
De acordo com a nota nesta primeira foto do catálogo, o filme foi roda-
do de 24 de abril ao final de julho de 1964, em ambientes rochosos, e locais
como Chia (Soriano nel Cimino, Viterbo) Barile, Castel Lagopesole, Ginosa,
Cutro, Le Castella, Matera, Massafra e Gioia del Colle, contando com a par-
ticipação de atores não profissionais e de figurantes que foram escolhidos
entre a população camponesa local.
Jesus Cristo de Pasolini é interpretado por Enrique Irazoqui, espa-
nhol de dezenove anos e entre os diversos prêmios conquistados estão: XXV
Mostra de Veneza: Prêmio especial do júri; Prêmio OCIC Office Católico
Internacional do Cinema; Prêmio da União Internacional da Crítica de
Cinema (UNICRIT); Prêmio Liga Católica de Cinema e Televisão da RFA;
Grande Prêmio da OCIC, Assis, 27 de setembro de 1964; Prêmio Caravela
de Prata, Festival Internacional de Lisboa, 26 de Fevereiro de 1965; Nastro
d’Argento 1965 pela direção, fotografia e figurino. Ainda segundo a nota,
o filme é uma fiel interpretação do Evangelho de Mateus e foi amplamente
apreciado pela crítica católica.
Há ainda na nota um trecho de uma entrevista de Pasolini, em que
ele relata como foi fazer O Evangelho segundo São Mateus e o quanto se
295
mostrou livre para poder produzir seu filme, por não ser católico, então não
se sentiu preso, no sentido restritivo, isto é, não teve um olhar tendencioso
ao religioso, nem sentiu alguma inibição escrupulosa como poderia sentir
se fosse um católico praticante, ele apenas fez uso do respeito, sem temer o
resultado. E o resultado foi uma grande aclamação no meio católico.
Na terceira foto do catálogo sobre O Evangelho segundo São Mateus,
Pasolini faz um apontamento interessante no que diz respeito à morte. Ele
começa dizendo sobre o filme, que poderia em sua obra cinematográfica ter
desmistificado a situação que considera real e histórica contidas no Evangelho
que deu origem ao seu filme, como por exemplo, trazendo as relações en-
tre Pilatos e Herodes, ou ainda, desmistificar a figura mítica de Cristo do
Romantismo, do Catolicismo e da Contra-Reforma, mas aí questiona: como
teria desmistificado o problema da morte? Um problema que, segudo seu
relato, não é capaz de desmistificar, por ser profundamente irracional eem
suas palavrs, portanto, um tanto religioso, que está no mistério do mundo.
E isso não pode ser desmistificado, pois é absolutamente necessário morrer,
pois segundo Pasolini, enquanto estivermos vivos, nos faltará significado; e
acrescent que a linguagem da nossa vida, ou seja, com a qual nos expressamos
e a quem atribuímos extrema importância, é intraduzível...
Trecho da Entrevista sobre o Documentário de Pasolini na Palestina
Como forma de reforçar o conteúdo documental apresentado sobre
os documentários de Pasolini, sugere-se pois, acrescentar às observações
apontamentos de uma autoridade, assim, fortalecendo a percepção sobre o
tema. Para tratar sobre um dos documentários, mais especificamente sobre o
doc Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo secondo Matteo - Locações na
Palestina para O Evangelho segundo Mateus (Palestina) e sobre o próprio
filme, considerando ser um dos documentários mais expressivos do cineasta,
uma vez que, resultou em um de seus filmes bastante premiados, como jorna-
lista, conduzi uma entrevista com Enzo Fortunato, padre italiano, jornalista
colaborador da RAI - Radiotelevisione Italiana, canais de televisão e rádio es-
tatais da Itália -, atuante na mídia daquele país, escritor de livros, responsável
por uma revista e pela Assessoria de Imprensa da Basílica de San Francesco
em Assisi, Itália.
296
A entrevista foi realizada via e-mail, contando com autorização do entre-
vistado para divulgação, como forma de ampliar as discussões acerca da temá-
tica, no entanto, dando o enfoque em um dos documentários, o da Palestina,
uma vez que Pasolini, que já foi considerado herege e ateu, duramente criti-
cado pela Igreja Católica italiana de sua época, por conta de algumas de suas
produções cinematográficas, foi também condecorado por esta instituição reli-
giosa, por ter produzido um filme baseado no Evangelho, de forma imparcial,
sensível e fiel aos escritos, notado com obra de arte atemporal.
Segue trecho da entrevista que conduzi e traduzi e que se encontra no
trabalho completo na íntegra:
Cosa ne pensi del film? Quali sono le tue impressioni come spettatore e
principalmente come sacerdote? - O que você achou do filme? Quais são suas
impressões como espectador e principalmente como sacerdote?
R: Si tratta di una delle pellicole più poetiche e vere che siano state girate
sulla vita di Cristo. Come in tutti i suoi file, Pasolini non tralascia nulla, non
omette e non aggiunge. E’ secco, diretto, senza mezzi termini: il linguaggio del
cineasta italiano è questo. Può piacere o meno. L’ Osservatore Romano lo definì
come “il miglior film su Gesù mai girato”. R: É um dos filmes mais poéticos e
verdadeiros que já foram rodados sobre a vida de Cristo. Como em todos os seus
arquivos, Pasolini não tira nada, não omite ou acrescenta. É seco, direto, sem
meios termos: esta é a linguagem do cineasta italiano. Você pode gostar ou não.
L’Osservatore Romano o definiu como “o melhor filme sobre Jesus já feito”.
Quale punto fort nel film? - Qual o ponto forte do filme?
R: Non c’è un momento più forte di un altro. Ogni cosa si intreccia per-
fettamente come il pezzo di un puzzle. Solo per fare alcuni esempi: la colonna
sonora, curata passo passo dallo stesso Pasolini unisce il repertorio “alto” della
Matthäus Passion di J.S. Bach o Maurerische Trauermusik di Mozart, a quello
“basso” del blues arcaico di Blind Willie Johnson Dark Was the Night, Cold
Was the Ground. I canti popolari provenienti dalla Russia, dalla Grecia o dalla
cultura ebraica atti a sottolineare l’universalità del racconto evangelico, sono stati
rielaborati dal compositore Luis Bacalov. Diamo un occhio anche ai pregevoli
costumi di Danilo Donati: sono visibilmente ispirati al ciclo La leggenda del-
la vera Croce dipinta da Piero Della Francesca ad Arezzo. A Pasolini piacevano
297
molto queste citazioni e troviamo in ogni suo film dei rimandi all’arte del passato.
La sua formazione, infatti, è stata molto influenzata da Roberto Loghi, impor-
tantissimo storico dell’arte che fu professore di Pasolini all’università. A Loghi
Pasolini riconosceva il merito di aver dato il via alla sua “fulgurazione figurativa”.
R: Não há momento mais forte que outro. Cada coisa se encaixa perfeitamente
como uma peça de quebra-cabeça. Só para dar alguns exemplos: a trilha sonora,
com curadoria passo a passo do próprio Pasolini, une o repertório “alto” da Paixão
de Mattheus de J.S. Bach ou Maurerische Trauermusik de Mozart, ao “baixo
do blues arcaico de Blind Willie Johnson Dark Was the Night, Cold Was the
Ground. Canções populares da Rússia, Grécia ou da cultura judaica para sub-
linhar a universalidade da história do Evangelho foram retrabalhadas pelo com-
positor Luis Bacalov. Vejamos também os valiosos figurinos de Danilo Donati:
visivelmente inspirados no ciclo A Lenda da Verdadeira Cruz pintado por Piero
Della Francesca em Arezzo. Pasolini gostou muito dessas citações e encontramos
referências à arte do passado em cada um de seus filmes. Sua formação, aliás, foi
muito influenciada por Roberto Loghi, um importantíssimo historiador da arte
que foi professor de Pasolini na universidade. Pasolini creditou a Loghi por ter
dado lugar à sua “fulguração figurativa”.
Come vedevano allora la Chiesa Cattolica e il Vaticano quest’opera
d’arte cinematografica? C’è stata una menzione? Premio? Sapete se il film è
piaciuto ai cattolici? Como a Igreja Católica e o Vaticano viam essa obra de
arte cinematográfica na época? Houve menção? Prêmio? Sabe se o filme foi
apreciado pelos católicos?
R: Il film fu presentato alla Mostra del Cinema di Venezia nel 1964.
Vi cito solo due premi vinti dal film. Uno “laico” e uno “cattolico”: Leone
d’Argento - Gran Premio della giuria e Premio OCIC (Office Catholique
International du Cinéma). R: O filme foi apresentado no Festival de Cinema
de Veneza em 1964. Menciono apenas dois prêmios conquistados pelo fil-
me. Um “secular” e um “católico”: Leão de Prata - Grande Prêmio do Júri e
Prêmio OCIC (Office Catholique International du Cinéma).
Quale contributo può dare il film all’Educazione? - Que contribuição
o filme pode trazer para a educação?
298
R: Lo stesso film è già contributo: un ateo capace di raccontare la vita
di Cristo meglio di un credente. R: O próprio filme já é uma contribuição:
um ateu capaz de contar melhor a vida de Cristo do que um crente. (Padre
Enzo Fortunato, OfmConv - Direttore Rivista san Francesco e Sala Stampa
della Basilica di San Francesco di Assisi. - Padre Enzo Fortunato, Ofm Conv
- Diretor da Revista San Francesco e Assessoria de Imprensa da Basílica de
San Francesco em Assis).
Assim, uma nova perspectiva se abriu para este trabalho, tendo no ter-
ceiro capítulo a ‘Sétima Arte: ferramenta didática para a formação de profes-
sores’, e, também, através dessa nova nuance que foi sendo traçada na pesqui-
sa o argumento foi ganhando pertinência ao tratar do Professor mediador e
cinema como meio facilitador do ensino-aprendizagem, com aproximação
das Contribuições para o uso do cinema na sala e aula’, o que resultou no
tema mais delineado: Cinema, Educomunicação e sala de aula: Contribuições
para a Formação de Professores.
Considerações Finais
A peculiaridade do cinema é que ele, além de fazer parte do complexo
da comunicação e da cultura de massa, também faz parte da indústria do
lazer e (não nos esqueçamos) constitui ainda obra de arte coletiva e tecni-
camente sofisticada. O professor não pode esquecer destas várias dimen-
sões do cinema ao trabalhar filmes em atividades escolares (Napolitano,
2022, p. 14).
Para finalizar essa pesquisa, intitulada “Cinema, Educomunicação e
sala de aula: contribuições para a formação de professores” reforça-se que a
premissa maior deste trabalho foi alcançada, que é contribuir com os debates
sobre Cinema e Educação e a aplicação efetiva do cinema na sala de aula,
colaborando com o ensino e fortalecendo a prática docente.
Para tonar viável a discussão, o estudo se propôs a discutir a utilização de
produções cinematográficas em sala de aula, tomando como base a observação
dos documentários produzidos pelo cineasta e poeta italiano Pier Paolo Pasolini.
Parte-se, então, de uma perspectiva bibliográfica, em que foram
299
apresentados autores de referência das áreas de concentração da pesquisa,
seguindo por uma metodologia documental, em que se verifica que a lin-
guagem cinematográfica pasoliniana pode contribuir na educação e na for-
mação de professores, uma vez que, sua utilização interdisciplinar através da
Educomunicação auxilia a prática docente.
No primeiro capítulo busca-se através do tema ‘Cinema aliado ao ensino
como instrumento educativo’, reforçar o caráter educativo do cinema, cujos
resultados mostraram sua efetividade, uma vez que, pôde-se observar através
de relatos de especialistas que ao ter-se acesso a diversos suportes tecnológicos,
atualmente, acaba-se por ter também mais facilidade em fazer uso do audiovi-
sual em sala de aula. Ficando, então, evidente que não há motivos para adiar
a ampliação de seu estudo na área, no âmbito escolar, já que mostrou-se uma
ferramenta bastante útil como meio didático e pedagógico na sala de aula.
Ainda neste capítulo, abre-se discussão em torno da ‘Abordagem cine-
matográfica pelo viés da Pedagogia da Comunicação’, como forma de fomen-
tar a disseminação da área de intervenção Pedagogia da Comunicação, que
promove a construção do conhecimento através da comunicação dialógica,
ou seja, por meio da relação entre as pessoas, fazendo uso de estratégias que
possam alavancar essa interação, alcançando bons objetivos na aprendizagem,
fortalecendo a participação coletiva.
Com esta abordagem sobre a Pedagogia da Comunicação espera-se in-
centivar os professores a fazerem uso dos recursos da comunicação para facili-
tar essa construção de conhecimento, em especial, pelo uso do cinema na sala
de aula, como instrumento facilitador do ensino.
Sendo assim, mostra-se necessária a discussão de uma metodologia es-
pecífica que auxilie esse docente nesse caminho de abranger os saberes através
do cinema na sala de aula e, para que isso seja possível, é de extrema impor-
tância que a formação de professores seja direcionada à essa temática.
Importante lembrar que não se trata de uma pedagogia sobre os meios
de comunicação, mas uma pedagogia que estabelece comunicação com o
meio escolar, o ensino e os envolvidos. Sendo, então, uma comunicação que
dialoga com os meios e as linguagens.
Assim, chega-se à conclusão neste tópico, de que utilizar a comunica-
ção como mediadora no uso cinema em sala de aula, pode fomentar ainda a
300
democratização dessa linguagem na escola, servindo, inclusive de multiplica-
dora de informação, por meio da linguagem cinematográfica.
Em seguida, ainda no mesmo capítulo, abre-se a possibilidade de tratar da
‘Educomunicação: perspectiva interdisciplinar de fomento ao cinema na escola’,
trazendo a concepção de que a Educomunicação promove um diálogo educativo
por meio da interface Educação e Comunicação e através da interdisciplinaridade
envolve outras áreas, auxiliando, desta forma, nas práticas sociais, engajando o
aluno de forma protagonista em seu processo educativo, tendo validação de sua
aplicação tanto em sala de aula, como suporte na formação de professores.
Para o segundo capítulo, exibe-se através do tópico ‘Educação para
Comunicação: breve biografia e cinema de Pier Paolo Pasolini’ um pouco do
universo do cineasta italiano, que apresenta em seu perfil características de
um educomunicador, sendo eleito neste trabalho como material midiático de
suporte ao tema proposto pela pesquisa, visto que, poderiam ser escolhidos
outros materiais, no entanto, a produção dos documentários de Pasolini mos-
tra-se adequada à discussão e ainda não estudada pela perspectiva educativa
direcionada à formação de professores.
Em sequência, para tratar do tema é proposta a discussão sobre a
Teoria cinematográfica como suporte à análise do gênero documentário’,
ampliando, assim, a conceituação na área.
E assim, no tópico seguinte, é trabalhada a esfera documental, com
‘Documentários de Pasolini: inspiração para projetos educacionais’, trazendo
observações e comentários de autores e do próprio Pasolini sobre sua produ-
ção cinematográfica, buscando assim contribuir tanto com a formação do-
cente, como com a formatação de novos projetos educativos.
Foram observados os documentários no trabalho completo: A Raiva,
Comícios de amor, Locações na Palestina para O Evangelho segundo Mateus,
Notas para um filme sobre a Índia, - Os Muros de Sanaa, Anotações para uma
Oréstia Africana, filmados na Itália, Palestina, Índia, Iêmen e África, trazen-
do referências que, apesar de não se esgotarem, pois não é o almejado neste
trabalho, podem servir de inspiração para futuros projetos na área educo-
municativa, seja em disciplinas conjuntas com a Didática ou com o Estágio
Supervisionado ou, ainda, em Projetos de Extensão Universitária.
Encerrando as discussões, no terceiro capítulo é proposto voltar o olhar
301
ao cinema como mecanismo de auxílio ao ensino com ‘Sétima Arte: ferramenta
didática para a formação de professores’, em seguida, continuando a temática,
abordando o tópico ‘Professor mediador e cinema como meio facilitador do
ensino-aprendizagem’ e finalizando com ‘Contribuições para o uso do cinema
na sala e aula’, visando contribuir, ainda, com estudos futuros na área.
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307
A Pedagogia Waldorf Antirracista à Luz
da Perspectiva Teórica Decolonial
Aline Lucas RIBEIRO48
Introdução
No livro O perigo de uma história única, da escritora nigeriana
Chimamanda Ngozi Adichie (2019), a autora narra de maneira sensível e
não menos difícil de ser digerida, sobre a gravidade do “embranquecimento
da história oficial, que é contada pelo colonizador aos colonizados, fazendo
existir uma verdade branca oficial que coloca a todos nós como sujeitos que
precisam se subalternizar e agradecer aos salvadores brancos, que nos tiraram
tudo, principalmente a selvageria.
Este discurso cruel transforma toda a riqueza étnica e cultural do mun-
do, em simples objeto de descarte. Desde o período colonial até os dias de
hoje, quanto de vida e história foi dilacerado? Em uma passagem em seu
pequeno grande livro de bolso, Chimamanda conta: Sou uma contadora de
histórias. Gostaria de contar a vocês algumas histórias pessoais sobre o que
gosto de chamar de “o perigo de uma história única”.
Passei a infância num campus universitário no leste da Nigéria. Minha
mãe diz que comecei a ler aos dois anos de idade, embora eu ache que
quatro deva estar mais próximo da verdade. Eu me tornei leitora cedo, e
o que lia eram livros infantis britânicos e americanos. Também me tornei
escritora cedo. Quando comecei a escrever, lá pelos sete anos de idade
48 Professora pedagoga na rede SESI. Mestra em educação na linha história e filosofia da educação pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação PPGE FFC UNESP Campus Marília - E-mail: astones.
unesp@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p307-326
308
- textos escritos a lápis com ilustrações feitas com giz de cera que minha
pobre mãe era obrigada a ler -, escrevi exatamente o tipo de história que
lia: todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis, brincavam
na neve, comiam maçãs e falavam muito sobre o tempo e sobre como era
bom o sol ter saído. Escrevia sobre isso apesar deu morar na Nigéria. Eu
nunca tinha saído do meu país. Lá, não tinha neve, comíamos mangas e
nunca falávamos do tempo, porque não havia necessidade. Meus persona-
gens também bebiam muita cerveja de gengibre, porque os personagens
dos livros britânicos que eu lia bebiam cerveja de gengibre. Não impor-
tava que eu não fizesse ideia do que fosse cerveja de gengibre. Durante
muitos anos, tive um desejo imenso de provar cerveja de gengibre. Mas
essa é outra história O que isso demonstra,acho,é quão impressionáveis
e vulneráveis somos diante de uma história, particularmente durante a
infância. Como eu só tinha lido livros nos quais os personagens eram
estrangeiros, tinha ficado convencida de que os livros, por sua própria
natureza, precisavam ter estrangeiros e ser sobre coisas com as quais eu
não podia me identificar. Mas tudo mudou quando descobri os livros
africanos. Não havia muitos disponíveis e eles não eram tão fáceis de ser
encontrados quanto os estrangeiros, mas, por causa de escritores como
ChinuaAchebe e CamaraLaye, minha 28 percepção da literatura passou
por uma mudança. Percebi que pessoas como eu, meninas com pele cor
de chocolate, cujo cabelo crespo não formava um rabo de cavalo, também
podiam existir na literatura. Comecei, então, a escrever sobre coisas que
eu reconhecia. Eu amava aqueles livros americanos e britânicos que lia.
Eles despertaram minha imaginação. Abriram mundos novos para mim,
mas a consequência não prevista foi que eu não sabia que pessoas iguais a
mim podiam existir na literatura. O que a descoberta de escritos africanos
fez (Chimamanda, 2019, p. 11).
Considerando as infâncias de países colonizados pela Europa, em espe-
cial às crianças brasileiras, este trabalho é uma tentativa de que nossos filhos
saibam contar sua história, construímos a análise do objeto de estudos, apoia-
dos nos autores da perspectiva decolonial e utilizando alguns apontamentos
trazidos da Antroposofia e da pedagogia Waldorf. Fizemos uma construção
histórica e argumentativa até aqui para seguir na ideia de elucidar a prática
docente waldorf no Brasil atualmente, que tem partilhado questionamentos
alinhados à perspectiva decolonial que por sua vez, também tem se revelado
nas discussões acadêmicas, políticas e sociais da atualidade brasileira.
309
Desenvolvimento
Com o advento das escolas Waldorf por todo território Brasil, a entrada
de professoras e alunos de diversas realidades econômicas, culturais e étnicas
também aumentou. Fazendo nascer deste advento, reivindicações dos próprios
sujeitos que a compõem. Também foi possível notar um significativo aumento
de produções acadêmicas com este tema. E ao mesmo tempo observamos a
perspectiva decolonial adentrar nos espaços de discussão de movimentos so-
ciais. Com a expansão Waldorf cada vez maior, as escolas vêm recebendo mais
e mais pessoas que aderem à sua filosofia e participam de sua Comunidade.
Há escolas abrindo por toda parte, são escolas que recebem professoras,
famílias e crianças de diversas culturas e etnias porque esta é a realidade do
Brasil, um país plural. Se faz cônscio da população a informação de que a
escola Waldorf exige alto valor econômico, não acessível para a população em
geral. É uma escola que exige das famílias que se comprometam não somente
com a educação das crianças no âmbito particular em casa, mas também,
envolvimento na construção da escola porque ela se organiza como uma so-
ciocracia (forma de governo que toma suas decisões considerando a opinião
dos indivíduos de sua sociedade).
Sabemos também, que famílias com o privilégio deste tempo disponí-
vel para desenvolver com a educação de seus filhos muitas vezes são famílias
com situações financeiras confortáveis perto da enorme outra parcela do país
que é engolida pelo mercado de trabalho. Porém, atualmente, não apenas
famílias de alta renda compõem o espaço waldorf, devido à sua ascensão e a
dificuldade em manter de pé uma escola de autogestão, cada vez mais as esco-
las abrem espaços para trocas de mensalidades por trabalhos e contribuições
com o espaço escolar. E os filhos dos professores da escola, professores estes
que fazem parte da grande parcela do país que é mal remunerada por seu
trabalho, sendo assim, em sua grande maioria, são de baixa renda.
Mesmo assim, o público que geralmente se envolve na Comunidade
Waldorf, têm acessos à informação, acessos culturais outros ou mesmo aces-
sos à novas formas de perspectiva educacional onde encontramos elementos
de conhecimentos suficientes para compreender a infância como um período
que necessita atenção e cuidado, a educação positiva por exemplo, ou mesmo
310
os vários estudos publicados que fazem relação importante entre infância-na-
tureza e as famílias preocupadas com os malefícios da tecnologia que invade
os lares e empoeira livros e contatos naturais de vida, são informações rela-
tivamente novas de lidar com a infância e não estão disponíveis para todos.
Além do alto custo financeiro das práticas ligadas à antroposofia: ali-
mentação orgânica, medicina fitoterápica e holística, agricultura biodinâmi-
ca, arquitetura e etc. Todas estas questões colocam esta comunidade num
patamar de privilégio social que tem força e legitimidade para buscar mu-
danças, há também significativa autonomia estrutural da comunidade escolar
Waldorf pois se organiza de acordo com o local onde está inserida e, portanto,
se adequa às especificidades e necessidades locais. Acreditamos numa ligação
forte, mas não única, entre o lugar social das famílias Waldorf e a ascensão
da perspectiva decolonial nos meios acadêmicos e informativos. Pois esta é a
pauta do dia das discussões e publicações científicas no Brasil atualmente e
estas são famílias com acesso à informação, podem escolher a escola para seus
filhos e podem escolher como construí-la.
Também é possível identificar o significativo aumento de movimentos
sociais trabalhando com a perspectiva decolonial, outro lugar onde também
podemos associar a perspectiva decolonial com a pedagogia waldorf, pois ob-
servamos ser uma pedagogia que ultrapassa os muros limítrofes da escola, o
fazer pedagógico alinha teoria e prática, a fenomenologia de Steiner pressupõe
o desenvolvimento humano intimamente ligado ao universo cósmico e toda a
vida natural da terra e a espiritualidade: físico, etérico, astral e Eu. Os diferentes
nichos da vida natural e social que compõe o currículo Waldorf, tais como bio-
mas, agricultura biodinâmica, tradições culturais, alimentação saudável, sus-
tentabilidade dentre tantos outros segmentos da existência física, social e espiri-
tual do local onde a escola está inserida ultrapassam os muros que a legitimam
burocraticamente enquanto escola, sua perspectiva educacional está alinhada
com reivindicações muito próximas aos movimentos sociais.
A realidade política e social do Brasil nos mostram que historicamente
os movimentos sociais são os responsáveis por garantir políticas públicas para
diversos nichos da sociedade e são eles muitas vezes os únicos a defenderem
direitos e não exploração, como, por exemplo, quando falamos de meio am-
biente, que é uma pauta em comum com a Comunidade Waldorf. É comum
311
nas escolas Waldorf, que pessoas pertencentes à comunidade local e aos mo-
vimentos sociais e/ou culturais de onde a escola está inserida, atuam indivi-
dualmente de alguma maneira na escola como pessoas colaborativas, desde
auxiliar no plantio, orientar professores, oferecer oficinas, artes e etc., ou seja,
a escola colhe com as produções das identidades locais.
Por ser uma proposta fenomenológica, que utiliza pedagogicamente
do contato das crianças e jovens com a natureza é, portanto, de seu interesse
que a vida natural coexista preservada com a humanidade como fundamento
básico das leis e estruturas universais da vida e do supra-sensível. A pedago-
gia Waldorf é uma pedagogia de ação participativa, em comunhão com os
processos naturais. Por atuar em movimento, se assemelha aos Movimentos
sociais de luta orgânica contra a exploração imperialista.
Desde a colonização do Brasil até os dias de hoje, o país não deixou de
ter suas riquezas fundamentais destruídas e exploradas: biomas, comunidades,
culturas. Resistir a isso é lutar contra a colonização moderna. São estas, con-
siderações importantes e que podem ajudar a nos aproximarmos de uma liga-
ção que nos aponta as novas buscas da escola Waldorf no Brasil, teoricamente
amparadas na perspectiva decolonial. Em seu artigo Interações de Rudolf Steiner
com uma Educação Anticolonial, Ernesto elucida sobre a fenomenologia estar
embasada na ancestralidade das tradições e na cosmovisão dos povos perten-
centes a cada comunidade onde a escola Waldorf está inserida.
o processo fenomenológico, o é pelo fato de se constituir como decorrên-
cia do processo de vivência interativa, amparada na ancestralidade, nas
tradições e na cosmovisão de cada grupo humano em particular. Este pro-
cesso se particulariza na medida em que busca elementos arquivados na
essência das pessoas, da comunidade e do povo, com os quais é possível
uma diversidade ampla de compreensões dos temas estudados e, assim,
promover educação respeitosa aos potenciais latentes e, por isso, educação
de liberdade e de libertação. (Keim,2015, p. 99).
O exercício da consciência ancestral torna-se elemento educativo an-
ticolonial (Catherine Walsh), pois os colonizadores destruíram, diminuíram,
silenciaram sabedorias ancestrais e tornaram o saber europeu como um saber
hegemônico, limpo e verdadeiro a despeito dos saberes outros. A colonização
tem uma data de fim na história porém a colonialidade está instaurada há
tanto tempo que se olharmos para ela como algo natural numa perspectiva
fenomenológica, podemos dizer que a colonialidade é a raiz da erva daninha
que plantaram aqui quando invadiram nossas terras. Esta raiz é grande e cal-
cada, se faz necessário força e principalmente, saber da existência dela. Olhar
para a ancestralidade com identificação, pertencimento e torná-la instrumen-
to de pedagogia é resgate e resistência.
No livro O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação, Nilma Lino Gomes, considera que a escola é a principal insti-
tuição responsável pela tensão entre conhecimento científico e saberes outros.
O livro aborda também sobre a questão racial ter sido a estrutura do período
de colonização do Brasil. E as diretrizes aplicadas nas escolas públicas e priva-
das, contemplam a escola Waldorf, também, pois, trata-se de uma conquista
social a obrigatoriedade dos ensinos de cultura afro-brasileira e indígena nos
currículos oficiais:
Dada a sua importância na constituição da nossa sociedade, esses saberes
deveriam fazer parte da educação escolar, dos projetos educativos não es-
colares e do campo do conhecimento em geral, a colonialidade está para
além do colonialismo e refere-se à naturalização das relações de poder,
das experiências sociais e subjetivas em pleno acordo com o que se co-
loca como padrão de ser, de sentir e de saber; se revela nas relações de
exploração tanto da mão de obra como das próprias subjetividades que
consomem ideias e produtos; sustenta-se nas relações de hierarquia, de
dependência e de classificação social, principalmente do ponto de vista
étnico-racial, ferramenta do colonialismo para a manutenção das relações
de poder e de opressão. Lembrando que a expansão territorial é a base do
colonialismo, bem como o extrativismo e o cristianismo, instrumentos de
produção e reprodução do modo europeu de ser, de sentir e de pensar. É
solo europeu em solo não europeu. (Marcondes, 2023. p. 12).
Sobretudo após a alteração da Lei 9.394]96 (Lei de Diretrizes e Bases)
pela Lei 10.639]03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana nos currículos das escolas de ensino fundamental e
médio, públicas e particulares (Gomes, 2022. p. 68). Aníbal Quijano, con-
tribuiu com a construção de um pensamento essencial para a compreensão
do nosso objeto de estudo, trata-se do conceito “colonialidade do poder” sua
313
principal hipótese é de que: “a colonialidade é constitutiva da modernidade,
e não derivada” (apud Mignolo, 2005, p. 75), e afirma que a modernidade e
colonialidade são duas faces da mesma moeda. Partindo do pressuposto de
que a colonialidade é a herança do período colonial e nos deixou até os dias
de hoje como única possibilidade de existência o cultivo e endeusamento da
cultura europeia em detrimento das culturas dos povos colonizados:
Colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão
mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classifica-
ção racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido
padrão de poder e operar em cada um dos planos, meios e dimensões,
materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e de escala social.
(Ballestrin, 2013, p. 100).
A aproximação da pedagogia Waldorf com a perspectiva decolonial é
uma urgência que se dá no chão das escolas. Trata-se de uma demanda social
que invadiu o espaço antroposófico, trazida essencialmente por pessoas com
marcadores sociais de exclusão, marcadas pela desigualdade social e pelo ra-
cismo, e que reivindicam o direito não somente de ocupar o espaço da escola
Waldorf como também, pertencer e construir junto, fazendo e recebendo peda-
gogias dos povos outros que não o europeu. A educação como a tarefa social bá-
sica para a reformulação da sociedade e das relações entre os homens. (Steiner),
segundo o Grupo de estudos Modernidade/Colonialidade49, que se trata de um
grupo de autores, incluindo Aníbal Quijano, que pesquisam as intempéries da
colonização nas vivências colonizadas, modernidade foi implementada escon-
dendo o seu lado obscuro que é a colonialidade. (Catherine Walsh et all, p.3).
Não podemos deixar de observar com olhar crítico as abordagens da
escola Waldorf no Brasil por todos estes anos. Não é nossa intenção dimi-
nuir este fazer pedagógico e sim construir uma percepção não alienada desta,
que está em expansão e se mostra cada vez mais procurada pelas famílias
como alternativa ao ensino tradicional, que desenvolve somente no âmbito
49 1Modernidade/Colonialidade é um grupo de estudos que desenvolve e trabalha conceitos
decoloniais. Indico a leitura FREITAS, Altiere Dias de. Notas Sobre o Contexto de Trabalho
do Grupo Modernidade/colonialidade. Aníbal Quijano foi um sociólogo e pensador humanista
peruano, conhecido por ter desenvolvido o conceito de “colonialidade do poder”. Seu corpo de
trabalho tem sido influente nos campos dos estudos decoloniais e da teoria crítica
314
intelectual e não agrega valor aos desenvolvimentos todos do ser humano.
As contribuições de Steiner para a educação são incontestáveis em diversos
aspectos, porém, a natureza europeia de onde a escola Waldorf foi pensada
e construída se espalhou com ela pelos territórios que alcançou, levando a
concepção de branquitude, atrelada em seu ritmo.
É importante falarmos sobre a pedagogia Waldorf dando ênfase à sua
origem europeia, olhar para isso nos traz movimentos necessários. Como o pró-
prio Steiner pontuou, estamos em busca de um desenvolvimento para atingir
um lugar do qual ainda não chegamos. Cida Bento fez um trabalho importante
para a literatura decolonial onde explica o conceito de branquitude que utiliza-
mos aqui. A branquitude a fim de se manter no centro, impele todos os outros
à margem. A branquitude é o conceito que demonstra a relação hegemônica da
população branca e determina a ideia de que tudo o que é branco e advém do
povo branco, é universal, normal, legítimo, bonito, admirável.
A branquitude é a naturalização do homem europeu como sendo o pa-
râmetro de referência, onde precisamos alçar quiçá, chegar perto de sua forma
de existir. Neste contexto de estudo, a pedagogia Waldorf não se apresenta
como uma proposta que visa ou procura fomentar a colonização. Seu percur-
so histórico desde a teosofia de Helena Blavatsky a coloca numa perspectiva
que nega o positivismo europeu e a universalização dos saberes. Mas quando
se trata de Colonialidade, ela se encaixa principalmente quando mantém fir-
me e forte suas abordagens e as suas simbologias específicas, construídas na
europa mesmo estando do outro lado do oceano.
A questão central num projeto de emancipação epistêmica é a coexis-
tência de diferentes epistêmes ou formas de produção de conhecimento entre
intelectuais, tanto na academia, quanto nos movimentos sociais, colocando
em evidência a questão da geopolítica do conhecimento.
entende-se geopolítica do conhecimento como a estratégia da moderni-
dade europeia que afirmou suas teorias, seus conhecimentos e seus para-
digmas como verdades universais e invisibilizou e silenciou os sujeitos que
produzem conhecimentos “outros”. Foi esse o processo que constituiu a
modernidade que não pode ser entendida sem se tomar em conta os nexos
com a herança colonial e as diferenças étnicas (Cida Bento,2022).
315
A Antroposofia compreende a existência humana dividida em perío-
dos de sete anos, são os chamados setênios. Períodos em que o corpo físico,
espiritual, anímico do Ser Humano se desenvolve e amadurece. A Pedagogia
Waldorf se fundamenta a partir de três momentos dessa compreensão do
desenvolvimento do Ser: no primeiro setênio, o mundo é bom; no segundo
setênio o mundo é belo; e no terceiro setênio o mundo é verdadeiro. Se o
mundo é bom, belo e verdadeiro (conceitos que embasam a educação wal-
dorf), num contexto onde a criança olha ao redor e apenas vê pessoas brancas
e de classe social dominante, o bom, belo e verdadeiro para ela, passa ser o
bom, belo e verdadeiro branco e dominante.
No ano de 2020, após o assassinato cruel de um homem negro chama-
do George Floyd, em Minessota- EUA, houve uma grande comoção e revolta
a nível global. No mesmo ano aqui no Brasil, uma criança preta de cinco
anos foi negligenciada enquanto sua mãe trabalhava na casa de uma família
branca, o mundo passava por uma pandemia e a escola de Miguel estava
em “quarentena” portanto, fechada. Houve muita comoção social no Brasil.
Ambas as situações violentas e racistas contra pessoas pretas caíram como um
estopim de revolta num país com histórico de escravidão.
A população preta tem sua sociabilidade medida pela régua do racismo.
Após estes momentos dificeis professores, familiares e alunos, se uniram com
ajuda das redes sociais e impulsionaram dois grupos fundamentais: Pedagogia
Waldorf Antirracista e Movimento Preto na Pedagogia Waldorf. Ambos grupos
propunham dar voz à inquietações outrora dispersas e tímidas. São grupos ain-
da informais, que buscam reconhecimento da Comunidade Antroposófica,
principalmente apoio da Federação das Escolas Waldorf no Brasil – FEWB
(FEWB é uma organização sem fins lucrativos de escolas e organizações in-
dependentes Waldorf no Brasil), que pode fomentar a pedagogia antirracista
para todas as escolas do território nacional.
E vem cada vez mais se posicionando sobre este assunto e propondo
trocas de discussões. Dentro das escolas Waldorf há predominância de
pessoas brancas e são minoria as pessoas diversas brasileiras, que ficam de
fora das práticas pedagógicas integradas à natureza e ao Cosmos. A inte-
gração à natureza e ao cosmos é algo que a cultura indígena e afro-bra-
sileira também ritualiza e cultiva. A espiritualidade dos povos brasileiros
316
existe, assim como a arte e a musicalidade. Cultura é algo muito sério no
Brasil porque é rica, diversificada e legítima.
As escolas Waldorf chegaram ao Brasil em 1956 e, desde a primeira
instituição em São Paulo, o currículo e a inspiração são centrados na cultura
alemã. Localizadas em um contexto plural nos âmbitos histórico, político,
econômico e racial, como é o caso do Brasil, são inevitáveis as tensões dentro
dos espaços escolares. No entanto, até 2020, as inquietações estavam disper-
sas nas diversas escolas entre mães, professoras e alunas (Caetano; Oliveira;
Leme, 2021, online). Sabemos que a raiz disso encontra-se na desigualdade
social do país e no colonialismo intrínseco ao imaginário da população bra-
sileira. São estes questionamentos que começaram a ganhar voz e o grupo
Movimento Preto na Pedagogia Waldorf, elaborou um questionário para ma-
pear as situações de racismo dentro das escolas Waldorf espalhadas por quase
todo território brasileiro. E esse documento recebeu diversas denúncias de
racismo e intolerâncias.
As escolas Waldorf vêm cada vez mais tomando espaço no Brasil, há
muitas escolas nascendo e tantas outras expandindo suas propriedades, rece-
bendo muitos alunos e famílias fugindo da pedagogia tradicional. Seu currí-
culo se distancia muito da pedagogia tradicional, trabalha com leveza, arte e
contemplação da natureza, preparados pelo corpo pedagógico, busca desen-
volver noções de autonomia com as crianças.
Cada uma delas é assistida individualmente, com olhar atento às suas
habilidades individuais. Uma escola humanista onde a arte habita todos os es-
paços, e onde as famílias brasileiras em sua pluralidade, vem buscando pleitear
acesso para seus filhos. Porém, não um acesso superficial, buscam pertencimen-
to orgânico das raízes brasileiras e pertencimento na construção do espaço e do
currículo. Causa demasiado incômodo um currículo eurocêntrico nas entra-
nhas do tropicalismo brasileiro. Paulo Freire sobre a cultura do “hospedeiro”:
O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam
ao opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos,
da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram
“hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua
pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e
parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo. (Freire, 1987, p. 17).
317
Partilhar deste olhar crítico para a pedagogia Waldorf como uma peda-
gogia que tem percorrido caminhos que culminam numa opressão cultural,
é parte do processo que precisamos para superar enfim, e atravessar para o
pensamento decolonial. O Brasil tem uma longa e terrível história de invasão
e colonialidade, sofre até hoje as consequências da exploração das terras, do
bioma, é um território marcado por massacres indígenas, muita matéria-pri-
ma foi saqueada e levada para a Europa.
Outro período terrível em nossa história é o período da Diáspora
Africana. Estes dois marcadores históricos são feridas abertas em nossa socie-
dade. Quando a pedagogia Waldorf se apresenta como curativa e holística,
cabe a ela pisar com cuidado neste solo sagrado e ferido, para agir coerente-
mente com a proposta de Steiner, e respeitosamente com as pessoas locais.
Os novos movimentos antirracistas que estão operando dentro das escolas
Waldorf, buscando enegrecer a história e contemplar a pluralidade étnica
existente para agregar os sujeitos todos brasileiros.
Em agosto 2006, foi implementada no Brasil a lei n°11.343, que encar-
cerou um enorme e colossal número de jovens e adolescentes em sua maioria
negros, enfatizando o encarceramento por tráfico de drogas, crime inafiançá-
vel. Essa lei é responsável pelo absurdo número de jovens negros encarcerados
no Brasil, cerca de 70% dos jovens encarcerados são negros.
O Estado burguês brasileiro se sustenta em bases racistas, no qual o ra-
cismo estrutural, integra a organização política, econômica e jurídica da
sociedade. Por ser estrutura, é base para o pensamento social coletivo,
para as relações inclusive afetivas que desenvolvemos “o racismo fornece o
sentido, a lógica e a tecnologia para as formas de desigualdade e violência
que moldam a vida social contemporânea” (Rocha et. al., 2022, p. 158).
O encarceramento dos jovens negros brasileiros quando deveriam estar
na escola, é fruto da desigualdade social no Brasil, resultado dos marcadores
históricos que falamos anteriormente e que nunca foram solucionados de
fato, tornando-se herança não quista. Sobra à população não branca brasilei-
ra, estar em constante luta contra a guerra social travada no âmbito popular
onde em todos os espaços é necessário lutar para permanecer vivo, permane-
cer com respeito e qualidade.
318
Nossa sociedade pautada por colonialidade, insere seus sujeitos num es-
tranhamento social onde se reconhecer pertencente, digno de direitos,
com olhar esperançoso para o futuro, se torna incoerente. Pois, graças à
colonialidade, a Europa pode produzir as ciências humanas com um mo-
delo único, universal e pretensamente objetivo na produção de conheci-
mentos, além de deserdar todas as epistemologias da periferia do ocidente
(Walsh et al., ANO, p. 3).
Buscando este pertencimento, sabendo da expansão das escolas wal-
dorf no Brasil, e cada vez mais recebendo a pluralidade de pessoas brasileiras,
pensamos que uma criança preta ou indígena quando brinca no quintal de
um Jardim Waldorf, merece olhar ao redor e encontrar os seus, se reconhecer,
ver na parede da sala uma Madona Preta tal qual sua mãe protetora. Os ins-
trumentos pedagógicos da escola Waldorf e sua base de sustentação científica
espiritualista, dão conta de explicar a existência viva da humanidade, da terra
e do cosmo através de uma lei universal que se aplica à toda humanidade. São
diretrizes de evolução física e espiritual das quais nenhuma pessoa está isenta.
O que acontece é que os corpos humanos são iguais em sua estrutura
física e funcionamento orgânico, a maneira como nascemos e morremos, nos
alimentamos e etc., é a mesma para o sujeito que nasce no Brasil e para o
sujeito que nasce na Alemanha, porém, a cultura e a socialização, são outras
organizações. O processo de socialização é outro, a linguagem, as tradições,
comemorações, crenças e etc. Como já explicitamos, a Europa sucumbiu às
culturas dissidentes por todo lastro de colonização por onde passou e inva-
diu não somente a geografia, invadiu a subjetividade de culturas inteiras. O
período de colonização dividiu o mundo em dois: europeus e não europeus.
Boaventura denomina este fenômeno como pensamento abissal:
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal.Consiste
num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas
fundamentam as primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas por
meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos
distintos: o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”. A divisão é
tal que “o outro lado da linha” desaparece como realidade, torna-se ine-
xistente e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não
existir sob qualquer modo de ser relevante ou compreensível.Tudo aquilo
que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque
319
permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão con-
sidera como o “outro”. A característica fundamental do pensamento abis-
sal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. O universo
deste lado da linha” só prevalece na medida em que esgota o campo da
realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência, invisibili-
dade e ausência não-dialética. (Santos, 2007. p.71).
É curioso observar que após sessenta e sete anos de chegada da Escola
Waldorf no Brasil, ainda estamos pensando que oferecer cultura não euro-
peia às crianças brasileiras talvez seja um direito delas. Utilizar as diretrizes
instrumentais da pedagogia Waldorf, que advém de um material muito rico,
e modificar a matéria-prima que a nutre, descartando a hegemônica cultura
europeia e substituindo por culturas locais brasileiras: indígenas, africanas,
quilombolas, caiçaras, caipira, gaúcha, nordestina e assim por diante, é o que
tem feito a comunidade antroposófica inserida nos grupos antirracistas. Para
tanto, é nítido quando observamos o Movimento Negro como um agente
transformador, nas palavras de Nilma Lino Gomes (2017):
O Movimento Negro é um educador porque gera conhecimento novo,
que não só alimenta as lutas e constitui novos atores políticos, como con-
tribui para que a sociedade em geral se dote de outros conhecimentos
que a enriqueçam no seu conjunto. Pois é o próprio Movimento Negro
responsável por abrir os espaços de direito historicamente no Brasil, sua
força é ramificada e está dissolvida por todos os lados da sociedade, uma
virtude deste Movimento, mas também evidente pois segundo dados do
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(Dieese), das pessoas brasileiras são negras. (Diesse, 2022. online).
É muito corajosa a maneira que estes grupos antirracistas vêm forjando
no bojo da escola Waldorf, que se faz coerente substituir São Micael por São
Jorge ou Ibejis. A época cultural trabalhada na escola que precisa do elemento
imagético de São Micael, tem a simbologia de força e a coragem para lidar
com as adversidades da vida. Força e coragem São Jorge e os Ibejis também
possuem em sua mística e estão bem mais próximos culturalmente das crian-
ças brasileiras. Andar este passo, é sobretudo, romper o pensamento abissal
para trabalhar a identidade cultural tão maravilhosamente rica e pertencente.
O caráter de reivindicação antirracista de buscar de elementos próprios da
320
cultura brasileira caracteriza este novo momento da pedagogia Waldorf, for-
jada principalmente por seus atores pessoas pretas, mas não somente, apró-
xima-se das ações de movimento social, além de trabalhar dentro da concep-
ção do próprio Rudolf Steiner, criador da proposta Waldorf, que tem como
pressupostos conceitos como pensar, sentir e querer, caminho único para o
desenvolvimento humano.
Aproxima-se da mesma conjuntura do programa de investigação do
Grupo ‘Modernidade e Colonialidade’ que reconhece a importância destes
Movimentos. A perspectiva Modernidade/Colonialidade não se restringe a
um pensamento acadêmico ou se propõe a ser um novo campo teórico uni-
versal, ela só adquire sentido somente desde e com as lutas contra a colonia-
lidade, junto aos movimentos políticos e sociais (de mais de 500 anos) carac-
terizados como pensar/ser/fazer/sentir de forma distinta à práxis e a retórica
da modernidade. O neocolonialismo herdou do período de colonização e
pós-colonização o que chamamos de colonialidade de pensamento (Quijano)
difundindo as epistemologias do sul de maneira desconstrutiva, reduzindo
a metafísica dos povos colonizados para enaltecer a metafísica eurocêntrica,
mesmo sendo um eurocentrismo esotérico como é o caso da antroposofia.
Aqui mesmo no Brasil ou, aqui mesmo em Pindorama temos toda a
matéria-prima física, subjetiva e metafísica que são os instrumentos necessá-
rios para o pleno desenvolvimento humano que Steiner propõe. Estas preo-
cupações são plausíveis pois toda a filosofia da pedagogia waldorf se utiliza
de preceitos subjetivos especialmente da cultura para transformar e/ou movi-
mentar o desenvolvimento infantil (desta criança que vai se tornar um adulto
que pertence não somente ao mundo, mas principalmente à sua cultura) a
fim de atingir um nível superior de humanidade, portanto, trata-se de uma
pedagogia profunda que se não for bem observada e bem elaborada pode
acarretar feridas quando se propõe a curar. Steiner estava preocupado com a
redução da vida que a ciência materialista traz como verdade absoluta, esta
mesma verdade que colonizou os povos do Sul.
Porém, disponibilizar o desenvolvimento integral da humanidade
à luz da ciência espiritual antroposófica utilizando instrumentos europeus
como outra verdade absoluta, é fomentar equívocos de mesma natureza epis-
temológica. Tomemos de exemplo outra cultura, Neil Boland realiza uma
321
interessante pesquisa na Austrália para entender a Escola Waldorf no contex-
to cultural Maori, provocando reflexões sobre até que ponto as escolas locais
estão se organizando para estudar e oferecer aos educandos as subjetividades
presentes em sua própria cultura. Neil alerta para o advento da pedagogia
Waldorf em toda Ásia e Oriente e faz uma relação com a globalização. Em
sua pesquisa com os Maori, povo completamente distinto do povo alemão,
Neil observa que uma preocupação das famílias que as crianças entrem para
dentro da escola Waldorf e saiam menos Maori. “La gente [maorí] entiende el
aspecto espiritual, pero no irán [a los colegios] si no ven su cultura reflejada.
Necesitan ver rostros.
A população Maori é indígena e vive na Nova Zelândia, são provenien-
tes da Polinésia e têm uma gama de simbologias culturais próprias, não têm
uma religião oficial, porém, assim como no Brasil, sofreram com a invasão
do cristianismo.
“Para além do pensamento abissal. 40 morenos entre el profesorado, las
familias y los alumnos.” Para decirlo más directamente, no siempre se
cubre la necesidad de sentirse “culturalmente seguro” en el contexto esco-
lar. “Me duele cuando veo a mi hijo ir hacia la escuela cada mañana, aun-
que sé que es la mejor escuela para él. Cuando regresa, será un poco me-
nos maorí que cuando se marchó”. Como maestros y profesores Waldorf,
hemos fomentado el aprendizaje basado en el lugar durante una buena
parte de los últimos 100 años mediante la iniciativa que ahora parecen
haber adoptado otros. Para mí la gran pregunta es ¿de veras ofrecemos una
educación basada en el lugar? Mi respuesta inicial cuando entré en con-
tacto por primera vez con las escuelas Waldorf inglesas fue no: parecían
alemanas (Boland, 2016, p. 4-5).
Os Maori são indígenas e sua existência sociocultural se difere comple-
tamente da cultura europeia mas há escolas Waldorf por todo o mundo, em
todos os continentes. Elaborar uma coexistência com a pedagogia Waldorf é
buscar um caminho onde culturas não passem novamente por um processo
de extermínio. No Brasil, com a política de cotas para negros e pardos nas
Universidades públicas, uma verdadeira integralização destas pessoas ao am-
biente acadêmico que outrora foi permeado apenas por pessoas brancas. Tem
mostrado resultados na sociedade brasileira como um todo.
322
Este trabalho de certa maneira, é resultado dessa política pública e
como dizemos no título do texto, a iluminação está jogando luz no obscuro
outrora naturalizado. Segundo Paulo Freire (1968), esse comportamento é
próprio daqueles que sofrem opressão, buscam se igualar aos opressores e
essa realidade aparentemente está se diluindo para dar espaço ao verdadeiro
caldeirão cultural característico do Sul global. No Brasil, temos uma longa
história de luta de movimentos sociais e reivindicações populares, em diver-
sos âmbitos da sociedade, não obstante o Movimento Antirracista Waldorf
nasceu e se organizou através de professores e familiares dos alunos, são sujei-
tos do dia-a-dia que propuseram movimentar a pedagogia de Steiner.
O Brasil, tem uma longa história de Reivindicações e Movimentos
Sociais. Temos um histórico de nichos da sociedade, que reivindica justiça
social e não apagamento cultural. Quilombolas, Indígenas, Povos da Floresta,
Movimento Feminista, Negro, de orientação sexual, pró-teto, moradia, pró-
-escola/universidade...Sujeitos sociais, invisibilizados, apenas destinatários de
programas sociais compensatórios e de políticas públicas educativas se mos-
trando presentes, visíveis e resistentes. Em que aspectos essas presenças afir-
mativas de Outros Sujeitos interrogam as teorias pedagógicas e pressionam
por outras Pedagogias? (ARROYO, 2007, p. 4). 41 Essa característica forte
no Brasil que de certa maneira nos marca muito profundamente, é também
a conquista de luta popular de um povo oprimido.
Os personagens da pedagogia Waldorf que fazem deram início a es-
sas movimentações são também essas pessoas herdeiras de uma sociabilidade
forjada na reivindicação histórica. Ademais, se percebem agentes de proteção
e fomento da cultura linda que o Brasil têm nas mãos. Essas reivindicações
informais ainda estão caminhando e não modificaram os documentos oficiais
ou a abordagem da formação de professores, não estipularam cotas raciais e
sociais para alunos e etc. A escola Waldorf é uma das poucas possibilidades de
escola alternativa à tradicional conteudista, situação que lhe traz certo status
e portanto, estas movimentações são importantes para que não se perpetue o
abismo cultural. Olhar para a cultura das famílias das crianças e da comuni-
dade local é uma prerrogativa.
E também, segundo Paulo Freire (1968), o educando é sujeito pedagó-
gico, portanto o professor precisa acessá-lo. E para Steiner, a criança absorve a
323
energia do adulto que a educa, esse adulto usa sua subjetividade como instrumen-
to pedagógico. Adulto que tem sua subjetividade forjada numa realidade local e
social, e portanto a transmite. Logo, as crianças recebem o fruto da socialização
cultural do Professor/adulto. Este professor não pode se alienar de si. Já pon-
tuamos aqui acerca da crescente abertura de escolas Waldorf por todo território
brasileiro, cada vez mais pessoas pretas, pardas e indígenas estão adentrando este
espaço. Alienar-se de si seria trabalhar e atuar enquanto pedagogia utilizando ma-
téria-prima cultural e espiritual divergentes com a sua subjetividade.
O que faria dessa atuação uma não verdade, indo na contramão da
proposta instrumental de atuação do professor Waldorf. Pensar, sentir e que-
rer, são ações mergulhadas em influências socioculturais da realidade de cada
Escola. Uma criança na Alemanha não sente, pensa e quer tal qual a criança
no interior de Minas Gerais no Brasil. Boaventura de Souza (2007) nos lem-
bra que a educação colonizadora busca homogeneizar o mundo. E a escola
Waldorf traz consigo a legitimidade da branquitude que tem passe livre para
atropelar outras subjetividades, este trabalho se limita às questões culturais e
raciais brasileiras, mas e quanto as pessoas no Japão, Bolívia, México, Egito,
China? Universalizar a cultura europeia não se trata de demasiada prepotên-
cia? Quão legítimo abrasileirar o currículo Waldorf? O colonialismo denota
uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo está no po-
der de outro povo ou nação, o que constitui a referida nação em um império.
Diferente desta idéia, a colonialidade se refere a um padrão de poder
que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar
limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se rela-
ciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações
intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial
e da idéia de raça. Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade,
a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos di-
dáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido
comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos
outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a
colonialidade na modernidade cotidianamente. (Torres, 2007, p. 4).
324
Considerações Finais
No Brasil, folclore, histórias, histórias orais, musicalidade, instrumen-
tos, cantos, artesanato, cultura popular como um todo, são deveras preen-
chidas de riquezas que podem permear o imaginário infantil tornando in-
compreensível a utilização dessa bagagem importada de outro continente.
E na metodologia da pedagogia Waldorf, esses mergulhos na ancestralidade
são fundamentais para construir uma subjetividade com bons impulsos nas
crianças e todo povo tem cultura ancestral. Nas grandiosas imagens dos con-
tos, encontramos os grandes princípios diretores da evolução humana:
o estado original de harmonia e perfeição (o reino); a queda (a madrasta,
andanças pela floresta); a perda da harmonia original (o mundo das pe-
dras, os sofrimentos), as tentações (dragões, fadas más), o despertar da in-
teligência (anões que auxiliam, outros seres elementares), a alma que luta
(a princesa vestida de trapos, ou o príncipe que passa por dificuldades), a
redenção final, isto é, a purificação como volta ao estado de harmonia (o
casamento feliz da princesa com o príncipe), etc. Em seus mínimos deta-
lhes, os autênticos contos de fadas revelam essa origem oculta que, para
gerações remotas, continha toda a moralidade de que estas precisavam,
além de satisfazer sua curiosidade histórica. Os contos são, por esse moti-
vo, um alimento inexaurível para as crianças em determinada idade. Em
suas imagens eles mostram as tendências e expectativas que, inconscien-
temente, desenham-se na alma infantil, gravando em seu subconsciente
ideias e anseios que mais tarde se transformam naturalmente nos ideais e
aspirações de vida. Há uma afinidade profunda entre o mundo dos contos
e a alma infantil. (Lanz, 1997, p. 113).
O conceito de colonialidade (Quijano, 2009), nos remete que ele está
enraizado no dia-a-dia dos povos do Brasil e empobrecendo nossas festividades,
comemorações e abordagens pedagógicas, um conhecido exemplo é o período
de 43 Natal onde as árvores de pinheiro com neve espalhada por todo comércio
e pelas casas, filmes, desenhos, imagens…quando no Brasil nesta época que fin-
da o ano, estamos inundados de água. É verão e ritualizamos aspectos culturais
norteados pelo norte quando deveriam ser suleados pelo sul.
É comum nas escolas Waldorf as crianças receberem uma surpresa de
São Nicolau, um pacotinho com frutas, nozes e chocolate: A tradição diz
325
que São Nicolau, também conhecido como “Samichlaus” no dialeto suíço-
-alemão, traz às crianças chocolates, nozes, frutas e também bons conselhos.
(Eichenberger, 2019, online) Na escola Aroeira, localizada em Olinda - PE,
a Professora fundadora Rosa Maria, relatou no grupo do Movimento Preto
que não utiliza São Nicolau como referência para o ritmo de festas de fim de
ano e sim, Oxalá. Outra Professora integrante do Movimento Preto Waldorf,
trouxe o Kwanzaa como opção de festividade. Kwanzaa é uma cerimônia não
cristã, criada em 1966 pelo professor e ativista americano Maulana Karenga
nos Estados Unidos da América – EUA (embi Sekou).
Partindo dessas substituições entre uma entidade e outra, uma referên-
cia e outra, numa tentativa de descolonizar o currículo, vamos pensar numa
vivência híbrida com as culturas que nos chegam. A branquitude precisa dar
um passo atrás!
Referências
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desafios e estratégias na orientação e escrita de teses e dissertações. 2. ed.
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STEINER, Rudolf. A arte da educação II: metodologia e didática no
ensino Waldorf. Trad. Rudolf Lanz. 3. ed. São Paulo: Antroposófica, 2016.
327
O Desenvolvimento da Ideia de
Proporcionalidade nos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental: um Estudo sobre o Projeto EMAI
Cláudia Elaine CATENA 50
Introdução
Este trabalho aborda a análise e discussão sobre um dos mais relevantes
conteúdo do currículo de Matemática da Educação Básica, o desenvolvimen-
to da ideia de proporcionalidade, dada sua importância para a formação dos
estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental e às várias aplicações deste
conteúdo na realidade cotidiana, era proposto no Projeto EMAI (Educação
Matemática nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental), material didático
adotado por toda rede pública estadual paulista.
No ano de 2012, participamos enquanto professores da rede pública
estadual paulista, através de grupos de estudos, usando o espaço destinado
às aulas de trabalho pedagógico coletivo (ATPC) e atuando no formato de
grupos colaborativos, organizados pelo Professor Coordenador do Ensino
Fundamental dos Anos Iniciais, ou seja, fizemos parte, mesmo que de manei-
ra indireta, da elaboração deste material.
A proposta é que ele sirva de base para estudos, reflexões e discussões a
serem feitos com seus colegas de escola e com a coordenação pedagógica,
em grupos colaborativos nos quais sejam analisadas e avaliadas diferentes
propostas de atividades sugeridas (São Paulo, 2013, p. 7).
50 Mestra em Educação pela Unesp de Marília e Doutoranda em Educação pela mesma Universidade
E-mail: claudia.catena@unesp.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-603-9.p327-353
328
A ATPC era organizada pelo Professor Coordenador (PC) dos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental e os professores participavam conduzindo
as atividades. Essa forma de organização em grupos colaborativos estimula-
va os professores participantes a trocarem experiências, fortalecer as relações
profissionais interpessoais e compartilhar boas práticas. O PC por sua vez,
tinha apoio dos Professores Coordenadores de Núcleos Pedagógicos (PCNP)
das Diretorias de Ensino. Por sua vez, os PCNP participavam de reuniões
mensais organizadas em polos, por uma dupla de PCNP que integravam o
chamado Grupo de Referência de Matemática (GRM), sendo um deles um
especialista em anos iniciais e o outro, um especialista em Matemática, que
compartilhavam seus saberes sobre conteúdos matemáticos e sobre aborda-
gens didáticas e metodológicas.
Os PCNP do GRM participavam de reuniões mensais, com a assessora
do projeto e com a equipe pedagógica do Centro do Ensino Fundamental
dos Anos Iniciais (CEFAI) e do Centro do Ensino Fundamental Anos Finais
(CEFAF). Nas reuniões do GRM eram discutidas as ações do projeto, pla-
nejadas as reuniões dos polos e das escolas, e também, eram elaboradas e
discutidas as Trajetórias Hipotéticas de Aprendizagem (THA) para cada ano
da escolaridade.
Enquanto professores, tínhamos como pauta o estudo baseado nas
THA e participávamos efetivamente para aplicação em sala de aula e depois
avaliávamos o processo de ensino- aprendizagem. Segundo Pires:
O propósito de trabalhar com a ideia de THA inspira-se nas investigações
conduzidas por Simon (1995), que defende a ideia de que a consideração
do objetivo da aprendizagem, as atividades de aprendizagem e pensamen-
to e conhecimento dos estudantes são elementos importantes na constru-
ção de uma trajetória hipotética de aprendizagem – parte chave do que ele
denomina Ciclo de Ensino de Matemática, expresso como um modelo de
inter-relações cíclicas dos aspectos do conhecimento do professor, pensa-
mento, tomada de atitudes. (Pires, 2014, p. 3).
As reuniões de ATPC acontecem semanalmente e em uma dessas re-
uniões, foram apontadas dificuldades relacionadas à resolução de problemas
por parte dos alunos, em especial no campo multiplicativo. Levantou-se en-
tão, alguns questionamentos: “todas as crianças aprendem matemática?”; “é
329
proposto para os alunos uma diversidade de situações-problema?”; “o que os
professores pretendem ao propor determinadas situações-problema?”; “quan-
do envolve multiplicação, por que as dificuldades são maiores?”; “como se
desenvolve o conhecimento matemático?”; e “a ideia de proporcionalidade?”.
Vários apontamentos podem ser feitos quanto ao fato de os alunos
apresentarem baixo rendimento com relação às atividades propostas em
Matemática. Seria a escola, a forma como os conteúdos são trabalhados, ou o
material didático utilizado como norteador desse trabalho?
Diante desses apontamentos e em decorrência de certa curiosidade,
pesquisando sobre o tema de maneira preliminar, despertou a atenção ao
ler o que afirma Terezinha Nunes, chefe do Departamento de Psicologia da
Universidade de Oxford, segundo a qual a proporcionalidade é a principal
falha no ensino da matemática hoje (Falzetta, 2003).
Havendo uma falha no ensino, há influências diretas na defasagem da
aprendizagem e essa constatação gera um desconforto.
Considerando de fundamental relevância compreender se o desenvolvi-
mento da ideia de proporcionalidade está abordado nesse material e de que ma-
neira, formulou-se os seguintes problemas de investigação: O desenvolvimento
da ideia de proporcionalidade é proposto no Projeto EMAI? Se é, de que maneira?
Nesse sentido, considerou-se que analisar e discutir tais aspectos pode
contribuir para ampliação das reflexões sobre o desenvolvimento da ideia de
proporcionalidade, de que maneira está sendo realizada essa proposta para os
alunos e minimizar as implicações no ensino-aprendizagem desse conceito
nos anos iniciais do ensino fundamental.
O objetivo geral constituiu-se em investigar se o desenvolvimento da
ideia de proporcionalidade é proposto no material didático do Projeto EMAI,
composto pelo exemplar do aluno e do professor, e se é, de que maneira. Esse
objetivo geral se desmembra em dois objetivos específicos:
1. Analisar o material didático do Projeto EMAI; e
2. Verificar se, e como o desenvolvimento da ideia de proporcionalida-
de é proposto no Projeto EMAI.
Para a realização desse estudo, optou-se pela pesquisa bibliográfica,
que possibilitou um levantamento sobre o conceito de proporcionalida-
de, além de buscar situar essa discussão no âmbito dos aportes da Teoria
330
Histórico-Cultural. A busca de compreensão e explicação dos nexos concei-
tuais envolvidos na noção de proporcionalidade constituiu a ideia central
deste texto.
Fundamentação Teórica
Para fundamentar este trabalho, buscou-se a Teoria dos Campos
Conceituais de Gérard Vergnaud como suporte teórico.
De acordo com Fioreze (2010), a Teoria dos Campos Conceituais é uma
fonte teórica de bastante valor, haja vista sua contribuição às pesquisas que versam
sobre a didática e à compreensão dos processos de desenvolvimento dos Conceitos
Matemáticos voltados às Estruturas Multiplicativas e à Proporcionalidade.
Vergnaud afirma:
O saber se forma a partir de problemas para resolver, quer dizer de situações
para dominar. [...] Por problema é preciso entender, no sentido amplo que
lhe atribui o psicólogo, toda situação na qual é preciso descobrir relações,
desenvolver atividades de exploração, de hipótese e de verificação, para pro-
duzir uma solução. (Vergnaud, 1990, p. 52, apud Miguel, 2018, p. 38).
Para se aprender o conceito de proporcionalidade, há a necessidade de
se trabalharem diversos problemas práticos e teóricos. Para Vergnaud (1983),
um conceito comporta várias propriedades, cuja pertinência varia de acordo
com as situações a serem tratadas. Essas propriedades poderão ser compreen-
didas de forma imediata ou não pelos estudantes, ou, então, futuramente no
decurso da aprendizagem. O campo conceitual das estruturas multiplicativas
é o conjunto das situações cuja resolução implica uma ou várias multiplica-
ções e divisões, e o conjunto dos conceitos e teoremas que permitem anali-
sar estas situações: proporção simples e múltipla, função linear e não linear,
quociente e produto de dimensões, combinação linear, fração, razão, número
racional, múltiplo e divisor, semelhança, dentre outros.
Por meio do exposto, é possível depreender que, há que se considerar,
diante de uma situação-problema as relações estabelecidas, um vasto reper-
tório de atividades, a elaboração de conceitos e os procedimentos pessoais
utilizados, para sua resolução.
331
Ainda de acordo com Fioreze (2010), Vergnaud (1983), ao propor es-
tudar um campo conceitual ao invés de um conceito, está considerando que
em uma situação problema dada, o conceito não aparece isolado. A comple-
xidade do cenário educacional advém do fato de que muitos conceitos em
matemática traçam seus sentidos utilizando uma variedade de situações e a
cada situação temos vários conceitos a serem analisados.
Ao tratar das representações semióticas, nota-se proximidade com a teo-
ria histórico-cultural e confluências com a aprendizagem desenvolvimental.
Assim, Gérard Vergnaud pode ser considerado um neopiagetiano que
busca compreender os processos de conceitualização, situando e estudando as
filiações e rupturas entre conhecimentos, do ponto de vista de seu conteúdo
conceitual. Como tal, o autor busca avançar no sentido de abordar a especifi-
cidade do domínio das habilidades cognitivas, bem como atuar no sentido de
favorecer aumentos evolutivos da capacidade mental. Considerando a psico-
logia como elemento central, o autor admite também que haja outros aportes
teóricos, epistemológicos e técnicos que contribuem para sanar o problema,
podendo-se pensar no papel das relações sociais, das interações e do dialogis-
mo inerente ao problema da efetiva aprendizagem.
A Teoria dos Campos Conceituais de Gerard Vergnaud e a Teoria
Desenvolvimental de Vasili V. Davídov apresentam alguns pontos con-
vergentes na compreensão do desenvolvimento do pensamento mate-
mático em crianças. Ambas as teorias consideram o desenvolvimento
do pensamento matemático como um processo contínuo, que se inicia
desde a infância e se estende ao longo da vida. Tanto Vergnaud quanto
Davídov destacam a importância da interação social na formação das
estruturas mentais matemáticas, especialmente durante a infância. As
duas teorias consideram a prática concreta como fundamental para o
desenvolvimento da compreensão, pois permite assim, a concretização
das representações matemáticas.
Tanto Vergnaud, quanto Davídov afirmam que a construção dos conceitos
matemáticos é um processo ativo, no qual o indivíduo constrói significados a
partir de suas próprias vivências e interações. As teorias de Vergnaud e de Davídov
concordam na importância da interação social e da prática concreta na formação
das estruturas mentais, e na construção ativa dos conceitos matemáticos.
332
Com base nos princípios da Teoria Histórico-Cultural, a finalidade
da educação é o desenvolvimento integral do sujeito em várias perspectivas,
cultural, social, ética, estética, política, entre outras. A aprendizagem desen-
volvimental tem como pressuposto o desenvolvimento humano, uma forma
específica de desenvolvimento, de natureza psíquica e subjetiva, pois, o que
nos torna humanos precisa ser adquirido, como nos esclarece o autor:
a aprendizagem não é, em si mesma, desenvolvimento, mas uma corre-
ta organização da aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento
mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ati-
vação não poderia produzir-se sem a aprendizagem. Por isso, a aprendi-
zagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se
desenvolvam na criança essas características humanas não-naturais, mas
formadas historicamente (Vigotski, 2017, p. 115).
O autor nos traz ainda a teoria da Zona de Desenvolvimento Potencial
(ZDP), que parte do princípio segundo o qual há dois níveis de desenvolvi-
mento na criança, a zona de desenvolvimento efetivo e a zona de desenvol-
vimento potencial. A zona de desenvolvimento efetivo diz respeito a tudo
aquilo que a criança é capaz de desenvolver intelectualmente sozinha e a zona
de desenvolvimento potencial é aquela na qual a criança não é capaz de de-
senvolver intelectualmente sozinha, mas com o auxílio de um parceiro mais
experiente. O autor menciona que:
O que a criança pode fazer hoje com o auxílio dos adultos, poderá fazer
amanhã por si só. A área de desenvolvimento potencial permite-nos, pois,
determinar os futuros passos da criança e a dinâmica do seu desenvolvi-
mento e examinar não só o que o desenvolvimento já produziu, mas tam-
bém o que produzirá no processo de maturação (Vigotski, 2017, p. 113).
Nessa perspectiva, o professor é alguém que cria condições, organiza e
orienta os alunos e a atividade é tida como categoria central, principal, pois
é por meio das atividades que nosso cérebro se modifica, criando novas es-
truturas, ou seja, as neoformações, porém não se trata de qualquer atividade,
a atividade principal é então a atividade cujo desenvolvimento gover-
na as mudanças mais importantes nos processos psíquicos e nos traços
333
psicológicos da personalidade da criança, em um certo estágio de seu de-
senvolvimento (Leontiev, 2017, p. 65)
A aprendizagem se dá num processo interno, particular, de autotrans-
formação. Por isso a importância da escola, que comumente trabalha com
base na experiência, na realidade cotidiana vivida, ou seja, no pensamento
empírico, impondo-se a necessidade de avançar para desenvolver o pensa-
mento teórico, que é a capacidade humana de representar pelo plano mental
e de maneira subjetiva a realidade objetiva a partir de reflexão, análise, síntese
e generalização subjetiva.
Davidov (2020) ao discutir os condicionantes de natureza psicológica
envolvidos no processo de aprendizagem dos estudantes é enfático ao afirmar
que os conteúdos e as regularidades envolvidas no processo de apropriação
de ideias científicas dependem das formas concretas de atividade dentro das
quais ela se constitui. Assim:
A relação teórica com a realidade e com os modos de orientação corres-
pondentes à essa relação, constituem a necessidade específica e o motivo
da Atividade de Estudo da criança. Os modos inter-relacionados da cons-
ciência teórica (científica, artística, moral e jurídica) atuam como conteúdo
dessa atividade. O domínio dos modos generalizados de ação, desde o pon-
to de vista do conteúdo (teórico) da solução de centenas de tarefas práticas
concretas, é a característica substancial da tarefa propriamente de estudo.
Formular para o aluno, uma tarefa de estudo significa colocá-lo em uma
situação que requer uma orientação para um modo generalizado de ação,
desde o ponto de vista do conteúdo de sua solução em todas as variantes
particulares e concretas possíveis das condições (Davidov, 2020, p. 170).
Por certo, a preocupação do autor é com o processo de produção de
sentidos de aprendizagem e de negociação de significados de ciência, haja
vista, inexoravelmente, que no caso da Matemática o sujeito cognoscente
deve criar um sistema de ações organizadas em pensamento e nele inserir os
objetos, ou seja, é um complexo de intrínsecas relações entre sujeito e objeto.
Nesse sentido, a aprendizagem que desenvolve o pensamento teórico só
acontece na Atividade de Estudo. Davidov (2020) afirma que o mesmo opera
mediante conceitos científicos:
334
Como conteúdo do pensamento teórico serve o ser, mediatizado, refleti-
do e essencial. Tal pensamento constitui uma idealização do aspecto fun-
damental da atividade prática-objetiva, a saber, da reprodução nela das
formas gerais das coisas, de sua medida e de suas leis. Essa reprodução
tem lugar na atividade produtiva num singular experimento sensório-ob-
jetivo. Depois, esse experimento vai adquirindo cada vez mais um caráter
cognitivo, permitindo com o tempo que o homem passe a experimentos
mentais [...] Essas singularidades do experimento psíquico constituem
a base do pensamento teórico, que opera mediante conceitos científicos
(Davidov, 2020, p. 98).
Vygotsky (1995), explica que a formação dos conceitos não se dá por
meio mecânico, como uma simples sobreposição de fotos retiradas da realida-
de. Há uma elaboração por parte do sujeito na constituição do pensamento
natural, que ocorre no exato instante em que ele atribui sentido para aquele
momento todo de vivência.
Neste momento as crianças estão construindo seus conhecimentos, na
maioria das vezes na mútua interação que estabelecem entre seus pares, seja
com professores e professoras ou com crianças que tem uma percepção mais
aguçada, elas tentam conservar conceitos que possibilitem seu desenvolvi-
mento no decorrer do estudo dessa disciplina.
Como afirma Davidov (1988), há que se desenvolver um trabalho
educativo voltado à constituição pelo sujeito de capacidades e habilidades
historicamente formadas e imprescindíveis à ação cotidiana. Não basta en-
sinar ao sujeito a função social de determinado objeto, é necessário que ele
desenvolva, ou reproduza, as habilidades humanas que são inerentes a esse
determinado objeto, a fim de usá-lo adequadamente.
Ainda de acordo com Davidov (1988), é por meio da atividade prática,
sempre social, do contato imediato com os objetos da cultura, contato esse
mediado pelas relações sociais com pessoas mais experientes, que as carac-
terísticas e as propriedades destes objetos passam a ser interiorizadas, apro-
priadas pelo sujeito, constituindo uma representação mental dos objetos, de
acordo com as necessidades do homem social.
Entendemos que, o desenvolvimento humano está vinculado à ati-
vidade dos indivíduos concretos incluídos no sistema de relações da so-
ciedade. Não se pode considerar a atividade desvinculada das relações
335
sociais, pois desta maneira ela não existe. Toda atividade psíquica, então,
é um reflexo da atividade prática, transportando para a atividade subje-
tiva toda a atividade com objetos realizada no mundo cultural, objetivo.
Claro que este transporte não ocorre de modo mecânico, mas implica a
participação ativa do sujeito, processo denominado pela teoria histórico-
-cultural como objetivação, sempre determinado pelas relações sociais em
que o sujeito se encontra envolvido.
Metodologia
Foi realizada a análise de todos os livros que compõem o Projeto EMAI,
que são organizados em dois volumes para cada ano de escolaridade, sendo
um volume para cada semestre, tanto o material do aluno, como o do profes-
sor, totalizando dez volumes. No livro destinado aos alunos, são apresentadas
as atividades a serem realizadas e no livro destinado aos professores, são apre-
sentadas além das atividades que constam no livro do aluno, o passo a passo
de como propor a sua realização.
Diante das questões norteadoras: como se desenvolve o conhecimento ma-
temático? Como se desenvolve a ideia de proporcionalidade? Com relação às
dificuldades e ao baixo rendimento em Matemática por parte dos alunos,
onde está a falha: na escola, na forma como os conteúdos são trabalhados, ou no
material didático utilizado como norteador desse trabalho? Levou-se em consi-
deração a prática docente da pesquisadora bem como sua expertise em educa-
ção, em concomitância com suas inquietações enquanto professora atuante
nos anos iniciais da Educação Básica por aproximadamente quinze anos.
Sendo a pesquisa o elo entre teoria e prática, parte-se para a prática, e por-
tanto, se fará pesquisa, fundamentando-se em uma teoria que, naturalmen-
te, inclui princípios metodológicos que contemplam uma prática. Mas um
princípio básico das teorias de conhecimento nos diz que as teorias são re-
sultado das práticas. Portanto, a prática resultante da pesquisa modificará
ou aprimorará a teoria de partida. E, assim modificada ou aprimorada essa
teoria criará necessidade e dará condições de mais pesquisa, com mais deta-
lhes e profundidade, o que influenciará a teoria e a prática. Nenhuma teoria
é final, assim como nenhuma prática é definitiva, e não há teoria e práti-
ca desvinculadas. A aceitação desses pressupostos conduz à dinâmica que
336
caracteriza a geração e a organização do conhecimento: ... teoria –> prática
–> teoria –> prática –> teoria... (D’Ambrósio, 2012, p. 74-75).
Com o propósito de tentar responder a esses questionamentos, es-
boçou-se uma interface entre a Teoria dos Campos Conceituais de Gérard
Vergnaud e a Teoria Histórico-Cultural de Vygotsky e colaboradores.
Foram utilizados textos publicados em forma de artigos, teses acadêmi-
cas, leis, decretos, o próprio material didático EMAI, programas e similares,
que auxiliaram a responder a questão norteadora dessa pesquisa.
Para a realização desse trabalho, optou-se pela pesquisa documental e
bibliográfica, por meio da hipótese explicativa de fontes documentais sobre
a construção da ideia de proporcionalidade no material didático do Projeto
EMAI do qual resultará um instrumento de pesquisa contendo referências de
textos escritos sobre o tema.
De acordo com Cervo e Bervian (1976), qualquer tipo de pesquisa em
qualquer área do conhecimento, supõe e exige pesquisa bibliográfica prévia,
quer para o levantamento da situação em questão, quer para a fundamentação
teórica ou ainda para justificar os limites e contribuições da própria pesquisa.
A opção por essa metodologia decorre do fato de considerá-la ade-
quada à análise de textos legais e acadêmico-científicos tomados na pesquisa
como documentos históricos compreendidos não como meras sobras do pas-
sado, mas como:
produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que
aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento
permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientifica-
mente, isto é, com pleno conhecimento de causa. [...] O documento não é
inóculo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente
ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram,
mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver,
talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que
pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemu-
nho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em
primeiro lugar analisados, desmistificando-lhes o seu significado aparente.
O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas
para impor ao futuro — voluntária ou involuntariamente — determina-
da imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade.
337
Todo documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de
ingênuo (Le Goff, 2003, p. 535-538).
Com relação ao ensino e a aprendizagem, cabe ao professor o papel es-
sencial de reconhecer o material didático como um instrumento de trabalho,
e busque estudar o material a ser utilizado, a teoria que o sustenta, e assim
passar a ser um coautor da proposta, e não apenas mero executor.
Davidov (1988) considera de suma importância o papel do professor,
pois é sob sua direção que as crianças, ao iniciarem o estudo de qualquer ma-
téria curricular, analisam o conteúdo e identificam a relação geral (principal)
e suas manifestações em relações particulares. Ao registrarem a relação geral
constroem uma abstração teórica. E, ao detectarem a vinculação regular da
relação principal com suas manifestações particulares, realizam a generaliza-
ção teórica do assunto estudado.
Para analisar e discutir as atividades que tratam da ideia de proporcio-
nalidade no material do Projeto EMAI, faremos a apresentação da organiza-
ção do material, dos objetivos, da base teórica que o sustenta, identificaremos
se algumas das atividades propostas, que foram selecionadas, estão apresen-
tadas de forma clara para alcançar esses objetivos, bem como verificar se pro-
movem o desenvolvimento do conceito.
O material do Projeto EMAI apresenta as atividades organizadas e di-
vididas em blocos de conteúdos, para todos os anos de escolaridade, a saber,
Números e Operações, Espaço e Forma, Grandezas e Medidas e Tratamento da
Informação. Realizou-se a abordagem de algumas atividades, contemplando ao
menos uma atividade proposta para cada ano de escolaridade, buscando obser-
var pelo menos uma atividade de cada eixo temático ou bloco de conteúdos,
que tratam da ideia de proporcionalidade no material do Projeto EMAI para
analisar, discutir e verificar se promovem o desenvolvimento do conceito, por-
que há uma diferença entre apresentar a ideia e promover o desenvolvimento.
O desenvolvimento acontece por meio da assimilação (apropriação) do
indivíduo da experiência histórico-social. Não se pode concordar com
a contraposição entre assimilação e desenvolvimento, isto é, quando o
desenvolvimento é compreendido como um processo independente da
assimilação; também quando é tratada como algo autônomo que acontece
em paralelo com o desenvolvimento ou; mesmo entendida “no lugar” do
338
desenvolvimento. Por outro lado, a assimilação nem sempre leva ao desen-
volvimento (Davidov; Márkova, 2020, p. 194)
Os autores apontam ainda, que em um sistema de organização da
aprendizagem de forma tradicional, a experiência socialmente elaborada é
transferida aos alunos, separando o ensino como sendo o que o professor faz
e a aprendizagem funcional, aquilo que o aluno faz, defendendo que:
De acordo com o Vigotski, a aprendizagem desenvolvimental só pode
ser considerada eficaz quando é orientada para o desenvolvimento futu-
ro. As alterações qualitativas no desenvolvimento da criança, que se for-
marem no decorrer da aprendizagem desenvolvimental em determina-
dos estágios evolutivos, L. S. Vigotski chama de novas formações. Assim
se a assimilação é a reprodução pela criança da experiência socialmente
desenvolvida, a aprendizagem desenvolvimental é a forma de organiza-
ção dessa assimilação adotada nessas condições históricas concretas em
uma determinada sociedade. Então o desenvolvimento é caracterizado
principalmente por mudanças qualitativas no nível e na forma dos mo-
dos de ação, os tipos de atividades etc., de que se apropria o indivíduo
(Davidov; Márkova, 2020, p. 195).
A Proporcionalidade no Projeto EMAI
A noção de proporcionalidade constitui ideia fundamental não apenas para
a consolidação do raciocínio lógico face às implicações para a formulação do pró-
prio pensamento matemático, mas principalmente para desenvolvimento do pen-
samento teórico, em sentido amplo, por envolver considerável gama de relações
conceituais no processo de apropriação do conhecimento científico, de forma geral.
Assim, nesta seção analisaremos o material relativo a algumas ativida-
des envolvendo o conceito de proporcionalidade no projeto EMAI, buscando
estabelecer relações com o referencial teórico construído, principalmente no
que se refere ao desenvolvimento do pensamento teórico, base para a consoli-
dação de encaminhamentos necessários ao processo que poderia ser denomi-
nado de educação desenvolvimental.
Conforme nossa convicção teórica, educação desenvolvimental envol-
ve pensar ensino e aprendizagem como ações dialeticamente articuladas, ou
339
seja, processos que se complementam dialeticamente de tal modo que uma
ação melhora a compreensão que da outra se tem, exigindo novas posturas
de educadores e educandos frente às necessidades de produção de sentidos de
aprendizagem e de negociação de significados matemáticos.
A ideia de proporcionalidade é de ampla aplicação não apenas em
outras temáticas do campo matemático, como no amplo espectro dos nú-
meros racionais ou de semelhança de figuras geométricas, mas também em
outras áreas de conhecimento como Ciências, Física, Química, Geografia,
Economia, Matemática Financeira, Estatística, etc.
Nesse modo de pensar, a primeira consequência do debate sobre a noção
de proporcionalidade é que ela não deve ser tratada de forma isolada no currículo,
como algo estanque, mas articuladamente a outras instâncias do conhecimento.
Por isso, a aprendizagem da proporcionalidade deve favorecer a inter-re-
lação entre as ideias matemáticas de forma tal que o aluno possa, ao aprender
Matemática, reconhecer a sua utilidade na vida cotidiana e, progressivamente,
na constituição do processo de desenvolvimento de outras ideias científicas.
Registre-se, então, que a abordagem de temas, os quais, por sua própria
natureza, deveriam ser tratados de forma vinculada à noção de proporcionali-
dade, têm sido trabalhados de forma isolada uns dos outros, dificultando sua
apropriação e síntese por parte dos alunos.
De fato, a apropriação dos conceitos matemáticos exige a formulação
de situações didáticas envolvendo diferentes representações dos objetos de
estudo sob a forma de articulações entre signos, conceitos, propriedades, es-
truturas e relações, ou seja, conhecer diferentes formas de representação do
mesmo ente matemático pode facilitar a aprendizagem conforme depreende-
mos da formulação teórica de Duval (2007).
Assim, é importante considerar em nossa análise que os materiais do
Projeto EMAI estão organizados em dois volumes por ano de escolaridade,
sendo que o volume 1 corresponde ao trabalho a ser desenvolvido no pri-
meiro semestre e o volume 2 corresponde ao trabalho a ser desenvolvido
no segundo semestre de cada ano escolar, contendo um livro para realização
das atividades pelos alunos, onde são apresentadas as atividades organizadas
em blocos de conteúdos ou eixos temáticos e estas dispostas em sequências
didáticas que contemplam ao menos uma atividade de cada eixo e um livro
340
organizado para os professores, que além de incluir as atividades da mesma
maneira que é apresentada aos alunos, só que em tamanho reduzido, traz
orientações com a finalidade de auxiliar na proposta de realização das ativi-
dades matemáticas apresentadas aos alunos e traz ainda, reflexões sobre hi-
póteses de aprendizagem das crianças, embasada na teoria que sustenta a or-
ganização das sequências didáticas de acordo com cada Trajetória Hipotética
de Aprendizagem. Conforme consta no capítulo introdutório do volume do
professor de cada ano, sua organização se dá da seguinte maneira:
está organizado em Trajetórias Hipotéticas de Aprendizagem (THA) que
incluem um plano de ensino organizado a partir da definição de objetivos
para a aprendizagem (expectativas) e das hipóteses sobre o processo de
aprendizagem dos alunos (SÃO PAULO, 2014, p. 7).
A ideia de THA mencionada na citação anterior baseia-se em investiga-
ções desenvolvidas por Simon (1995), citadas por Pires (2014):
Usaremos o termo trajetória hipotética de aprendizagem tanto para fazer re-
ferência ao prognóstico do professor, como para o caminho que possibilitará
o processamento da aprendizagem. É hipotética porque caracteriza a propen-
são a uma expectativa. O conhecimento individual dos estudantes ocorre de
forma idiossincrática, embora frequentemente em caminhos similares. O co-
nhecimento do indivíduo tem alguma regularidade [...], que em sala de aula
adquire com atividades matemáticas frequentes em métodos prognósticos, e
que muitos dos alunos em uma mesma sala de aula podem se beneficiar das
mesmas tarefas matemáticas (Pires apud Simon, 2014, p. 3).
Nesse modo de pensar, os objetivos de aprendizagem, as próprias ati-
vidades de aprendizagem e pensamento, além do conhecimento anterior
dos estudantes, são elementos fundantes na construção de uma Trajetória
Hipotética de Aprendizagem (THA), compreendida como um conjunto de
articulações cíclicas dos fatores relacionados ao conhecimento do professor,
ao próprio pensamento e à tomada de atitudes, aspectos essenciais do proces-
so de produção de sentidos de aprendizagem e de negociação de significados
matemáticos como definidos pelos autores mencionados, bem como no con-
texto de nossa compreensão sobre a educação desenvolvimental:
341
As ações de estudo, controle e avaliação, têm um papel importante no
processo de assimilação do conteúdo pelos alunos. O controle consiste em
determinar a correspondência de outras ações de estudo com as condições
e exigências da tarefa de estudo e permite ao aluno, ao mudar a compo-
sição operacional das ações, colocar ao descoberto sua relação com uma
ou outras peculiaridades dos dados da tarefa por resolver e do resultado
obtido. Dessa forma, o controle garante a requerida plenitude na compo-
sição operacional das ações e a forma correta de sua execução (Davidov,
2020, p. 223-224).
Essas formulações teóricas exigem situar o professorado no contexto
de alguns invariantes, os quais não podem ser por eles ignorados, sob pena
de comprometimento de todo o movimento didático-pedagógico que se pre-
tende instalado. Primeiramente, o processo exige ações de estudo envolven-
do contextualização, ou seja, conduzir os educandos à percepção dos fatos
matemáticos em suas relações com a realidade, impondo paulatinamente o
reconhecimento de sua formulação como constructo humano.
Uma segunda condição é a inserção dos alunos em um processo de for-
mação de conceitos pautado pela perspectiva de problematização, ou seja, o
reconhecimento do problema como matriz geradora do conhecimento novo.
Outrossim, os conhecimentos matemáticos decorrem de um processo de his-
toricização, ou seja, eles precisam reconhecer a evolução histórica das ideias
matemáticas. Por fim, mas não por último, há de se consolidar uma trajetória
de enredamento dos temas da Matemática entre si e desta ciência com a de-
mais áreas do conhecimento, em abordagem transdisciplinar.
Percebe-se que o volume do professor sugere ainda, o tempo de desen-
volvimento de cada trajetória, recomendando que cada sequência de ativi-
dades seja realizada em uma semana, podendo esse período ser ampliado de
acordo com a necessidade dos alunos e adequação desse tempo por parte do
professor, indicando também que algumas atividades trarão temas já visitados
em THA anteriores, mostrando a importância da retomada de conteúdo.
No material destinado ao professor, há no início de cada THA um
texto denominado “Reflexões sobre hipóteses de aprendizagem das crianças
que apresenta a trajetória que será trabalhada, bem como sua fundamentação.
Peguemos como exemplo o livro destinado ao professor do primeiro ano,
onde a primeira THA a ser trabalhada é sobre números.
342
Algumas pesquisas recentes, como as de Délia Lerner e Patrícia Sadovsky
(1996), mostram que os alunos têm conhecimentos prévios sobre as fun-
ções dos números em seu cotidiano, seja em seu aspecto cardinal, ordinal,
de medida ou de codificação. Fayol (1985), entre outros pesquisadores,
considera que o uso dos números, de algumas relações entre eles construí-
das pelas crianças e, ainda, alguns tipos de cálculo, parecem não ser deter-
minados pela existência prévia da conservação de quantidades por parte
da criança. Autores, como Gelman e Meck (19893), consideram que a
apropriação do número está ligada ao cálculo e não à noção de conserva-
ção de quantidades. Essas pesquisas embasam as propostas de atividades
da Unidade 1 (São Paulo, 2014, p. 9).
As proposições apresentadas, embora relevantes, se colocam no âm-
bito do pensamento empírico. Por assim considerar, “Davydov diz que um
dos conceitos fundamentais de toda a matemática escolar é o de número real
(Davydov, 1982; Davydov, 1988 a e b; Davídov, 1988; apud Rosa, 2012) e ele-
ge esse campo numérico como instância de relações conceituais a sustentar um
conjunto de ideias matemáticas a dar sentido a praticamente toda a atividade
intelectual voltada à abordagem quantitativa da realidade. Desse modo, o au-
tor questiona a conduta didática segundo a qual a aprendizagem se dá do mais
simples para o mais complexo, das quantidades discretas para as contínuas.
A saber, os números reais incluem os números inteiros, os números
decimais, os números fracionários e os números irracionais, já os números
naturais são aqueles usados para contar, não incluindo os demais, ou seja, são
subclasse dos números reais. Grandezas discretas são aquelas que podem ser
contadas, não podem ter valores intermediários entre dois valores consecu-
tivos e são representadas por números naturais. Elas diferem das grandezas
contínuas, que podem ter valores intermediários mais próximos entre si entre
dois valores consecutivos e são representadas por números reais. Exemplos de
grandezas discretas incluem o número de pessoas em uma sala, o número de
itens em uma lista etc. Exemplos de grandezas contínuas incluem a altura de
uma pessoa, o tempo que se leva para chegar ao trabalho, a quantidade de
líquido em um copo etc. Ambas são representadas respectivamente por variá-
veis discretas e variáveis contínuas em estatística e modelagem matemática.
Em verdade, o conhecimento evolui do que é geral e amplo para o que
é específico ou particular. Por isso, poderíamos iniciar do mais complexo
343
para o mais simples. Na especificidade do ensino do conceito de número,
no primeiro ano escolar, Davydov, 1982, propõe que se inicie com a ideia de
número real, a partir do estudo de grandezas discretas e contínuas, na inter-
-relação de suas significações aritméticas, algébricas e geométricas. Portanto,
difere do que se faz atualmente na educação matemática brasileira, em que
o ponto de partida é o número natural nos limites da aritmética, a partir de
contagens discretas (Rosa, 2012; Damázio, Rosa e Euzebio, 2012). A expres-
são das relações entre grandezas, uma tomada como unidade de medida da
outra, que se traduz no modelo algébrico, G como grandeza a ser medida, U
a unidade de medida e X o resultado da comparação entre G e U). Ainda de
acordo com Rosa:
Davydov também concluiu que a preocupação do ensino primário con-
sistia em conservar a relação com os conhecimentos cotidianos que a criança
recebeu antes de entrar na escola. Em cada etapa do ensino se propõe aos estu-
dantes apenas aquilo que são capazes de assimilar na idade dada. O ensino utiliza
unicamente as possibilidades já formadas e presentes na criança. “Naturalmente,
assim se pode justificar a limitação e a pobreza do ensino primário, apelando a ca-
racterísticas evolutivas da criança de sete anos” (Davídov, 1987, p. 147). Ou seja,
subestima-se tanto a “natureza histórica concreta das possibilidades da criança
como as ideias sobre o verdadeiro papel que a educação desempenha no desenvol-
vimento” (idem). O ensino assim organizado é trágico para o desenvolvimento
mental por: enfatizar apenas a base sensorial, reduzir os conceitos ao seu funda-
mento empírico e, consequentemente, desenvolver exclusivamente o pensamen-
to empírico (Davídov, 1987). (Rosa, 2012, p. 24-25).
De acordo com esse modo de pensar, deve-se reconhecer que tradicio-
nalmente o ensino da proporcionalidade tem se constituído em um conjunto
de regras e procedimentos transmitidos via memorização e repetição, resul-
tando em aprendizagem mecânica ou sérias dificuldades de aprendizagem
por parte dos alunos.
Desenvolver a noção de proporcionalidade implica em criar estratégias
que possibilitem ao aluno atribuir sentidos à aprendizagem e construir sig-
nificados em um arcabouço complexo de situações matemáticas de modo a
estabelecer relações, justificando, analisando, discutindo e criando estratégias
voltadas à resolução dos problemas.
344
Nesse sentido, o encaminhamento metodológico deve ser desenvolvi-
do de modo a evidenciar a atividade de estudo do aluno posto que valoriza
a participação ativa no processo de apropriação do conhecimento, em ação
mediada pela interação com o docente e com os colegas de turma.
No início de cada unidade do material em análise, organizado para
os professores, são apresentadas as expectativas de aprendizagem que se pre-
tende alcançar. No caso específico da unidade 1 do material do 1º ano é
apresentado um quadro que contém três eixos do ensino da Matemática e
as respectivas expectativas de aprendizagem de acordo com a primeira THA,
porque no primeiro ano de escolaridade, de acordo com esse material, o eixo,
ou bloco de conteúdos Espaço e Forma é apresentado para os alunos a partir
da segunda THA.
Em seguida, ainda no material destinado ao professor, é apresentado
o plano de atividades, que traz expectativas específicas e é organizado em se-
quências, sendo que, cada sequência é composta por cinco atividades, sendo
ao menos uma de cada um dos blocos de conteúdos abordados. Todas as ati-
vidades são compostas por três seções que orientam o professor na condução
da aula e em como propor a realização das atividades aos alunos.
Na seção 1 “Conversa Inicial”, há sempre uma indicação de como o
professor deve iniciar o diálogo com as crianças, tentando fazer com que elas
falem sobre o que já conhecem do assunto tratado. Trata-se de um processo
de suma importância para o levantamento das hipóteses iniciais dos alunos,
bem como o exercício da escuta ativa por parte do professor, levando o aluno
a colocar em jogo seus conhecimentos prévios, permitindo que aconteça a
produção de sentidos e negociação de significados matemáticos.
Na seção 2, “Problematização”, há um encaminhamento contendo
perguntas problematizadoras que o professor deve fazer aos alunos para que
esses pensem sobre o conteúdo que será abordado e apresentem respostas a
partir de suas próprias vivências cotidianas. Há ainda a orientação para que
o professor não antecipe informações sobre descobertas que os alunos são
capazes de fazer sozinhos, isso é muito importante pois estimula as crianças a
realizar desafios possíveis.
Na seção 3 “Observação/Intervenção”, há orientações para que o
professor observe a realização da atividade e realize intervenções de modo
345
a garantir a realização da atividade proposta, levando os alunos a discutir o
processo de resolução utilizado, incentivando-os a refletirem sobre situações
cotidianas em que utilizariam aqueles conteúdo. Aqui é possível observar a
importância dada a função social das atividades propostas.
As três seções aparecem em todas as atividades dos dois livros do pro-
jeto EMAI, destinados ao professor, seções estas que deverão ser observadas
para propor as atividades que serão trabalhadas durante o ano letivo e servem
para orientar e determinar a condução das aulas.
O professor assume, portanto, o papel de executor do que lhe é deter-
minado, pois com uma possível formação deficitária não conseguirá se
desvencilhar do material didático como seu único suporte, que, por ser
imposto, tornar-se-á confiável, como: meta, atividade e fonte de estudo.
(Severino, 2019, p. 310).
O material do professor apresenta ainda, um tópico denominado
“Procedimentos importantes para o professor”, que destaca como o professor
deve proceder para estudar este material e planejar adequadamente suas aulas.
Analise as propostas de atividades sugeridas nas sequências e planeje seu
desenvolvimento na rotina semanal; analise as propostas do livro didático
escolhido e de outros materiais que você utiliza para consulta. Prepare e
selecione as atividades que complementem seu trabalho com os alunos;
faça algumas atividades coletivamente, outras em duplas ou em grupos
de quatro crianças, mas não deixe de trabalhar atividades individuais em
que você possa observar atentamente cada criança; elabore lições simples
e interessantes para casa (São Paulo, 2014, p.10).
Seguindo a apresentação e análise do material em estudo, no pri-
meiro ano do EF a primeira atividade do Projeto EMAI que trata espe-
cificamente da ideia de proporcionalidade, aparece no volume dois, ou
seja, será apresentada ao aluno no segundo semestre letivo. A atividade
faz parte do bloco de conteúdos Números e Operações e a expectativa de
aprendizagem que se pretende alcançar é analisar, interpretar e resolver
situações-problema com diferentes significados do campo multiplicativo
por meio de estratégias pessoais.
346
É proposto ao professor, no volume próprio para ele, na seção
“Conversa inicial”, seja indagado aos alunos quem já brincou de desafio, e
informe que será necessário resolver um desafio para descobrir a idade da
família de Enrico. Em seguida, na seção “Problematização” é sugerido que
se organize a turma em duplas e garanta para que cada dupla tenha uma cópia
da situação proposta e proponha o desafio de identificar as respectivas idades
dos membros da família de Enrico com as dicas oferecidas na própria atividade.
É sugerido ainda, que o professor indique para as crianças que,
conforme forem descobrindo as idades de cada membro da família, re-
gistrem abaixo de cada desenho. Por último, a orientação é que se pro-
blematize a situação indagando: “Quem descobre o que aconteceu com a
idade de Enrico, comparada com a de seu pai?”, introduzindo a noção de
dobro. Na seção “Observação/Intervenção” a instrução aparece como segue:
Circule pela sala para observar os possíveis procedimentos que utilizaram
para resolver esta situação. Fique atenta, se os alunos identificaram como
o mais velho” ou o “mais novo” relacionando com os números maiores
ou menores e se ainda utilizam algum apoio para verificar suas ideias (qua-
dro numérico por exemplo). Peça a eles para justificarem suas respostas e
oportunize a interação, para que todos reconheçam as possíveis maneiras
de raciocinar. Deve surgir nessa socialização a ideia de “dobro”, observe
se os alunos transpõem esses saberes iniciados em atividades anteriores.
Ainda existe a possibilidade de você convidá-los a pensarem mais sobre
essa situação em outro momento dando continuidade na atividade, com
vistas a ampliar a ideia de “triplo” e o reconhecimento da contagem ascen-
dente e descendente. (São Paulo, 2013, p. 89).
347
Figura 39 - Introdução à ideia de proporcionalidade
Fonte: (São Paulo, 2013, p. 88) - EMAI 1º ano, v. 2, material do professor.
Sabe-se que as crianças não desenvolvem a ideia de proporcionalidade
apenas pelos procedimentos das quatro operações básicas, adição, subtração,
multiplicação ou divisão, mas sim por utilizar de diferentes representações
semióticas que sustentam esse conceito, conforme nos aponta o autor:
Mais ainda, é o desenvolvimento dessas representações semióticas que
permitirão aos alunos compreenderem, ao final do ensino fundamental,
que em uma relação proporcional “o produto dos extremos é igual ao pro-
duto dos meios”, a chamada Propriedade Fundamental das Proporções,
em geral, apresentada aos alunos como coisa pronta, de forma abrupta
e desconexa, destituída de significado efetivo para eles, como por vezes
essas ideias matemáticas aparecem nos textos didáticos. Não é apenas pela
verbalização de uma ideia matemática que se forma um conceito, mas pe-
las relações que se pode estabelecer entre os dados que a constitui. É pela
exploração e reconhecimento de regularidades desde os anos iniciais do
348
ensino fundamental, valendo-se dos raciocínios aditivo e multiplicativo
nas relações entre grandezas, nas sequências numéricas e padrões geomé-
tricos, entre outras situações matemáticas, que o professor poderá condu-
zir os estudantes à familiarização com ideias que sustentarão a formação
do conceito de proporcionalidade. (Miguel, 2020, p. 510).
Faz-se necessário observar que esta é a primeira atividade sobre propor-
cionalidade proposta para registro pelos alunos, pois o texto fala em transposi-
ção de saberes iniciados em atividades anteriores, o que ratifica a citação ante-
rior. Outra observação plausível é a de que não há menção sobre a possibilidade
de não surgir durante a socialização a ideia de “dobro”, é necessário que o pro-
fessor tenha clareza que essa ideia não surge espontaneamente, nem tampouco
apenas com a realização de determinados exercícios, é necessário um leque de
estímulos, familiarização com a noção de dobro, levantamento de hipóteses
por parte dos alunos, auxilio do professor na validação ou não dessas hipóteses,
porém é imprescindível que se diga às crianças o que é dobro.
Na conduta didático-pedagógica que se pretende desenvolvida no pro-
jeto EMAI, o docente, na condição de organizador das atividades, não é ape-
nas aquele que expõe todo o conteúdo programático aos alunos, mas um
mediador que fornece informações necessárias para a reflexão individual e
coletiva dos estudantes sobre as situações matemáticas. Isso implica conside-
rar o conhecimento anterior das crianças.
Na análise do material do projeto EMAI percebe-se a preocupação
quanto à necessidade de exploração de atividades envolvendo a ideia mate-
mática de proporcionalidade, bem como de conduzir os alunos ao desenvol-
vimento do hábito de observação e reflexão para o levantamento de infor-
mações antes de resolver um problema. Tal postura é relevante uma vez que
raciocínio proporcional é uma capacidade mental necessária para os alunos
compreenderem os contextos, as aplicações matemáticas e sejam capazes de
relacioná-los na resolução de problemas.
Trata-se de criar situações apropriadas para maior envolvimento dos alu-
nos na construção de significados para si, trabalhando com imagens, esquemas
e representações de modo a mobilizar, articuladamente, as dimensões sociais,
mentais e emocionais conforme sugere a atividade anteriormente registrada.
349
Considerações Finais
O presente estudo investigou se o desenvolvimento da ideia de propor-
cionalidade é proposto no material didático EMAI e de que maneira, porém
vale ressaltar que não foi tomado nesta investigação como objeto de análise
de forma isolada, entendendo que, trata-se de um material didático oficial da
proposta curricular estadual e todas as políticas nele presentes, entendendo
ainda, que o conhecimento não é neutro e por isso deve ser constantemente
questionado e ampliado.
Ao analisar o material EMAI destinado aos alunos, se o professor somen-
te o utilizar, para introduzir a ideia de proporcionalidade, o conhecimento a
ser apropriado ficará sem significado, limitando-se ao campo do conhecimento
empírico, uma vez que, a abordagem inicial no caderno do aluno sobre o con-
ceito de proporcionalidade, se resume à apresentação de atividades.
Com relação ao material destinado ao professor, são apresentadas algu-
mas sugestões de encaminhamento das atividades propostas, que podem favo-
recer o desenvolvimento do conceito proporcionalidade, se forem organizadas
de maneira que levem os alunos a atribuir sentido aquilo que estão aprendendo.
Contudo, faz-se necessário ainda, que os professores busquem outras
situações potencialmente desencadeadoras que favoreçam a aprendizagem,
bem como o desenvolvimento do pensamento teórico, a exemplo disso, po-
de-se citar jogos, histórias virtuais e situações emergentes do cotidiano etc.
Muitas vezes acreditamos que as crianças já realizam essas conexões com as
situações reais, mas isso precisa ser construído sistematicamente. Portanto
a compreensão do significado de número ultrapassa os muros da escola, e
quando uma criança escreve um número não significa que ela realmente tem
domínio, ou consegue aplicá-lo em diferentes situações do cotidiano.
O material didático é uma ferramenta importante para o trabalho do
professor, fornecendo recursos, podendo ser usado para complementar a aula,
servindo de apoio na organização dos conteúdos. No entanto, é importante
lembrar que o material didático não deve ser o único recurso e muito me-
nos engessar o trabalho a ser realizado em sala de aula, é imprescindível que
o professor considere as necessidades individuais de cada aluno, oferecendo
atividades diferenciadas e diversificadas que atendam a essas necessidades.
350
Com relação ao ensino e a aprendizagem, cabe ao professor conhecer e es-
tudar o material didático a ser utilizado, bem como a teoria que o sustenta, sendo
seletivo e atento, inclusive com a forma de organização e disposição das ativida-
des, não sendo apenas mero executor desse material. Nesse sentido entendemos
que o professor sozinho não dará conta de compreender todas as particularidades
que envolvem o conceito de proporcionalidade, e necessitará de uma formação
continuada que favoreça a construção e a reflexão sobre este tema. Só assim po-
derá atuar de forma efetiva na elaboração de seus planos de aula, propiciando
atividades diferenciadas e que realmente favoreçam a aprendizagem.
Como já vimos, a aprendizagem se dá num processo interno, particu-
lar, de autotransformação, por isso a importância de avançarmos para desen-
volver o pensamento teórico, que é a capacidade humana de representar pelo
plano mental e de maneira subjetiva a realidade objetiva a partir de reflexão,
análise, síntese e generalização subjetiva.
Atuar na zona de desenvolvimento proximal dos estudantes exige do
professor, no caso da busca de apropriação da noção de proporcionalidade,
uma compreensão ampla dos conceitos envolvidos com vistas à formulação
de hábitos de problematizar, projetar, refletir e tirar conclusões. Sem essa
capacidade de intervenção docente, o que resta é repetir situações do campo
aditivo ou do campo multiplicativo de forma mecânica e repetitiva. O princi-
pal resultado que a didática centrada na associação de modelos produziu, no
caso do processo de ensino e de aprendizagem matemática, foi a frustração e
a aversão de contingente significativo de estudantes por essa área do conhe-
cimento. Pior ainda, é constatar que esses estudantes revelam, por vezes, ca-
pacidade de raciocínio lógico e articulado em outras áreas do conhecimento.
À guisa de conclusão, é importante destacar ainda que o movimento
que se nota na formulação das atividades voltadas ao desenvolvimento da
ideia de proporcionalidade no projeto EMAI traz consequências para a or-
ganização dos currículos e programas de ensino de Matemática apontando
para a necessidade de se avançar da concepção internalista, ou seja, do arranjo
curricular pensado sob a óptica do modo como o matemático concebe a sua
ciência, para uma concepção externalista na qual, sem desconsiderar o desen-
volvimento da Matemática como conhecimento organizado, contemple tam-
bém as suas relações com a realidade e com outras áreas do conhecimento,
351
em perspectiva transdisciplinar, um movimento a englobar as vivências, os
motivos e as necessidades de aprender Matemática.
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SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. EMAI: educação matemá-
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VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo, Martins Fontes,
1989.
VYGOTSKY, L. S. Psicologia Pedagógica. Edição Comentada por
Guilhermo Blanck. Porto Alegre, Artes Médicas, 2003.
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno – CRB 8/8211
Normalização
Taciana Oliveira
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
A coletânea “Pesquisas em Educação: contribuições de egressos do PPGE” reúne
um conjunto de textos escritos por docentes e egressos do Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da UNESP, Câmpus de Marília, em sua maioria versando
sobre resultados de investigações cientícas para elaboração de teses e disserta-
ções de mestrado nesta área do conhecimento. O livro é interface de diálogo de
discentes egressos do PPGE com diferentes Grupos de Pesquisa e outros PPGs da
Faculdade de Filosoa e Ciências – FFC da UNESP, Câmpus Marília.
Constituindo-se como um vasto campo para a produção de conhecimento de
natureza acadêmico-cientíca, a área da Educação logrou com o desenvolvimen-
to acentuado da pós-graduação, nas quatro últimas décadas, a formulação de um
amplo arcabouço de reexões teóricas, bem como uma consciência generaliza-
da da interdependência entre as diferentes áreas do conhecimento. Isso implica
conduzir a busca de solução dos problemas educacionais pela intensicação de
práticas de natureza transdisciplinar, visando promover uma relação dialógica e
cooperativa entre as diversas instâncias de conhecimento e suas interconexões.
Trata-se de movimento essencialmente dialético cujas transformações impulsio-
nam o desenvolvimento de certas referências lógicas e operativas, as quais se
tornaram comuns a vários campos cientícos, impondo novos paradigmas como
a evolução da concepção histórico-lógica em contraposição à organização mera-
mente lógica dos programas de ensino, ou, então, a convicção teórica segundo a
qual é a aprendizagem que orienta o desenvolvimento da criança e não o contrá-
rio, constructo teórico com a qual se identica a maioria dos autores desta obra.
O presente livro, em sua totalidade, reete o compromisso ético-político com
a busca de compreensão para a solução de problemas educacionais a exigirem
suporte teórico-empírico da produção de conhecimento, para tanto, abordan-
do questões que aigem a sociedade brasileira: a inclusão escolar para superação
do analfabetismo absoluto e da baixa escolarização de amplo contingente po-
pulacional; a necessidade de melhoria na qualidade dos processos de ensino e de
aprendizagem em todas as áreas do conhecimento; a busca de superação do dua-
lismo entre ensino propedêutico e formação prossionalizante; reexões críticas
e losócas; estudos históricos; enm, a compreensão do aparato escolar como
instância fundamental para a construção de uma sociedade verdadeiramente de-
mocrática e inclusiva.
Vislumbrando um paradigma curricular voltado à promoção de aprendizagens,
constituição de capacidades e desenvolvimento da consciência crítica, a obra é
de interesse para a discussão sobre o processo de ensino e de aprendizagem na
educação básica e para a formação inicial e continuada de educadores.
A coletânea temática “Pesquisas
em Educação: contribuições de egressos
do PPGE” traz um acervo de trabalhos
produzidos no âmbito do Programa de
s-Graduação em Educação (PPGE),
da Faculdade de Filosoa e Ciências
(FFC) da Universidade Estadual Paulis-
ta “Júlio de Mesquita Filho(UNESP),
Campus Marília, no período a partir de
2019, entre as linhas de pesquisa: linha
01 Psicologia da Educação: Processos
Educativos e Desenvolvimento Huma-
no, linha 02 Educação Especial, linha
03 Teoria e Práticas Pedagógicas, li-
nha 04 Políticas Educacionais, Gestão
de Sistemas e Organizações, Trabalho e
Movimentos Sociais e linha 05 Filoso-
a e História da Educação no Brasil.
As investigações educacionais
que compõem a presente obra tratam
de pesquisas já concluídas e alguns re-
sultados parciais a partir de atualizações
de investigações em curso. A coletânea
conta com 21 autores entre 15 capítulos
que se dialogam na pesquisa educacional
a partir das linhas de pesquisa do PPGE
e atividades dos Grupos de Pesquisa. Os
trabalhos são desdobramentos de teses
e dissertações produzidas por discentes
egressos do programa de pós-gradua-
ção e estão em articulação com grupos
de pesquisa institucionais e interinsti-
tucionais, conectando pesquisadoras e
pesquisadores em diferentes instituições
dentro e fora do território nacional.
Durante os capítulos da coletâ-
nea é possível vislumbrar a criativida-
de e intencionalidade de pesquisas em
educação que articulam teoria e práti-
ca com pensamento crítico e reexivo
sobre seus objetos de estudo com uma
diversidade de metodologias e instru-
mentos de coleta de dados.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0039/2022
Processo Nº 23038.001838/2022-11
PESQUISAS EM EDUCAÇÃO
PESQUISAS EM EDUCAÇÃO
contribuições de egressos do PPGE
Rodrigo Martins Bersi
José Carlos Miguel
organizadores
contribuições de egressos do PPGE
Certos da relevância dos tra-
balhos neste coletivo temático da área
da educação a partir das contribuições
de pesquisas de egressos do Programa
de Pós-Graduação em Educação da
UNESP, Câmpus Marília, em interfa-
ce com diferentes Grupos de Pesquisa
e ainda com outros PPGs da Faculda-
de de Filosoa e Ciências da UNESP
Câmpus Marília, desejamos uma leitura
enriquecedora diante da diversidade te-
mática e amplitude teórica e metodo-
lógica presentes na obra. “Eu sou por-
que nós somos” é um ditado atribuído
à cultura Bantu e presente em diferen-
tes partes do continente africano na
expressão Ubuntu que enfatiza a ideia
de identidade intrinsecamente ligada a
comunidade e aos indivíduos em socie-
dade. Neste percurso de compor-se no
diálogo e em interação com diferen-
tes perspectivas teóricas e áreas do co-
nhecimento no campo da pesquisa em
educação desejamos uma boa leitura.
Ubuntu “Eu sou porque nós somos”.
Boa leitura!
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