Kleber Cecon
Reinaldo S. Pereira
Ubirajara R. de A. Marques
Organizadores
Amizade e Sabedoria
Festschrift em homenagem a
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Amizade e Sabedoria
Festschrift em homenagem a Antonio Trajano
Kleber Cecon, Reinaldo S. Pereira
Ubirajara R. de A. Marques [Org.]
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Amizade e Sabedoria
Festschrift em homenagem a
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Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2025
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Amizade e Sabedoria
Festschrift em homenagem a
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Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2025, Faculdade de Filosofia e Ciências
Ficha catalográfica
A517 Amizade e sabedoria : Festschrift em homenagem a Antonio Trajano / Kleber Cecon, Reinaldo S.
Pereira, Ubirajara R. de A. Marques (organizadores). – Marília : Oficina Universitária ; São
Paulo : Cultura Acadêmica, 2025.
223 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-566-7 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-567-4 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4
1. Arruda, Antonio Trajano de Menezes, 1941-2014 – Festschriften. 2. Filosofia. 3. Metaética.
4. Filosofia brasileira. 5. Cognição. I. Cecon, Kleber. II. Pereira, Reinaldo Sampaio. III. Marques,
Ubirajara Rancan de Azevedo. CDD 199.81
Telma Jaqueline Dias Silveira –Bibliotecária – CRB 8/7867
Imagem capa: https://stock.adobe.com/br - Arquivo "AdobeStock_321197166". Acesso em 19/09/2024
Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives
4.0 International License.
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
"JÚLIO DE MESQUITA FILHO"
Campus de Marília
Diretora
Profa. Dra. Ana Clara Bortoleto Nery
Vice-Diretora
Profa. Dra. Cristiane Rodrigues Pedroni
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Edvaldo Soares
Franciele Marques Redigolo
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Parecerista:
Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho
Docente do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP)
1941 – 2014
7
Sumário
Prefácio
Mariângela Spotti Lopes Fujita 9
Depoimentos
Carta de alforria de um caipira: quando a losoa
nos salva pelo exemplo
Hélio Alexandre da Silva
17
Meu amigo bossa-nova
Ubirajara Rancan de Azevedo Marques 41
Artigos
O expressivismo metaético e alguns de seus problemas
Idia Laura Ferreira 47
8
A luta pelo direito ao losofar no Brasil: contribuições
do lósofo Antonio Trajano Menezes Arruda e de
possíveis losofares a partir da realidade brasileira
Amanda Veloso
59
Filosoa brasileira?
Reinaldo Sampaio Pereira 91
Valores cognitivos revisitados: uma perspectiva
pragmático-epistemológica feminista
Edna Alves de Souza
103
A Accademia dei Lincei: a história de uma das
primeiras academias cientícas
Kleber Cecon
129
Estrela profanada. Considerações sobre a crise
em Gaza
Márcio Benchimol Barros
165
O amor em tempos de cólera: amai-vos e rebelai-vos
Ricardo Monteagudo 179
O sentido da vida
Ricardo Tassinari 193
A fotograa e a “pessoa do fotógrafo”: 4 captações
[e nenhuma revelação]
Ubirajara Rancan de Azevedo Marques
209
9
Prefácio
Mariângela Spotti Lopes Fujita
Quando recebi o convite dos Professores Ubirajara Rancan de Azevedo
Marques, Reinaldo Sampaio Pereira e Kleber Cecon, do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Unesp, Câmpus
de Marília, para fazer o prefácio deste livro em homenagem ao Professor
Doutor Antonio Trajano de Menezes Arruda ou, como todos nós o chama-
mos, Trajano, considerei que fui agraciada com honrada distinção.
Adianto que não sou da área de Filosofia, porém, tenho muita admi-
ração e respeito pela Filosofia, em especial pelo Departamento de Filosofia.
Sendo muito franca, pensei bastante sobre os motivos pelos quais os
Professores me convidaram para esta honrada tarefa. Depois de pensar em
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p9-13
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
10
várias possibilidades sobre minha trajetória aqui na Faculdade de Filosofia
e Ciências da Unesp, Câmpus de Marília: ter exercido a presidência da
Comissão Permanente de Pesquisa da FFC, por duas vezes, ter coordena-
do as bibliotecas da Unesp, ter sido Diretora da FFC e ter participado de
vários colegiados, bem como do cotidiano, desde 1978, estou fortemente
inclinada a acreditar que essa escolha se deveu ao fato de que, muito antes
disso tudo, eu pude trocar ideias sobre a atividade de Tutoria que Trajano
realizou, durante muitos anos, com os alunos da Filosofia. Adianto que
minha percepção é de alguém de outra área de conhecimento aplicado e
que se coloca na posição de observadora, com admiração.
Início da década de 90, eu ministrava uma das disciplinas da gradua-
ção, aos sábados de manhã, e, nessas ocasiões, eu encontrava Trajano, logo
cedo, na frente da porta da sala 42, no aguardo da chegada dos alunos. Ali
mesmo na porta eu o saudava. Se eu fechar meus olhos, eu o vejo perfeita-
mente com sua postura elegante e semblante de olhar calmo e simpático,
mas sempre positivamente franco. Sempre parava para questioná-lo sobre
casualidades da Faculdade, da vida acadêmica e tal e, depois, seguia para a
sala de aula onde os alunos do Curso de Biblioteconomia me aguardavam.
Em uma dessas conversas ao pé da porta da sala de aula, perguntei-lhe da
disciplina que ministrava todos os sábados e ele sorriu de leve, dizendo
que não era uma disciplina e que estava ali para realizar Tutoria aos alunos
que se interessavam e que tinham necessidade de aprofundamento teórico.
Explicou que a Tutoria era um acompanhamento intelectual de modo livre
sobre diversos temas nos quais a Filosofia era necessária, se propunha resol-
ver e, principalmente, para permitir a expressão do pensamento.
Após vários desses encontros de Tutoria, aos sábados, aconteciam
os eventos organizados com os alunos da graduação em Filosofia, a fim
de realizar os debates acerca dos temas das monografias, em defesas pú-
blicas na Faculdade. Essas defesas eram arguições acaloradas entre vários
alunos da Filosofia, que ficavam à frente da antiga sala de aula (onde hoje
está a Seção de Graduação) e muitos alunos e professores das demais áreas
de graduação (eram cinco, naquela década: Ciências Sociais, Pedagogia,
Biblioteconomia, Fonoaudiologia e Filosofia) acompanhavam, com muita
atenção, todas as arguições proferidas. Foram realizados vários debates que
Amizade e Sabedoria
11
motivaram muitos alunos, não só do Curso de Filosofia, mas das outras
áreas. Eram diálogos nos quais a troca de conhecimentos se fazia dinami-
camente, entre camadas teóricas mais profundas com a percepção mais
superficial, o que facilitava a compreensão de quem, como eu e a maioria,
assistíamos com interesse.
Eu, principalmente, confesso que fiquei entusiasmada com a per-
formance intelectual dos alunos de graduação, durante os instigantes
debates que exigiam conhecimento, mas, sobretudo, curiosidade e pos-
tura investigativa diante das inúmeras variáveis ali postas e continua-
mente questionadas.
O aprofundamento teórico dava suporte à dinâmica do debate. Algo
que acontecia naturalmente entre os debatedores e a cada debate, con-
cretizado publicamente, é que se notavam os comentários cada vez mais
argutos e perspicazes, com velocidade de pensamento, mas carregados de
conhecimento. Era o exercício da Tutoria de todos os sábados, não resta-
vam dúvidas!
Essa dinâmica que a Tutoria produzia com os alunos e professores da
Filosofia me influenciou e me transformou profundamente, devo confes-
sar. Embora não tivesse a formação em Filosofia como teve Trajano, passei
a acreditar que seria possível ter um processo de formação de pesquisadores
em cada curso de graduação, com Tutorias individuais ou em grupo.
Trajano comenta sobre o que é, como se originou e se implantou
a Tutoria no Curso de Filosofia de Marília, em entrevista publicada por
Moraes e Girotti (2013). Foi inusitado, porque tive o prazer de ler in-
teiramente e foi como se ele estivesse explicando outra vez para mim, tal
como nas manhãs de sábado, antes do início das aulas. Nessa entrevista,
vemos como o espírito de transformação mental e intelectual pelo ensino
permeia a trajetória acadêmica de Trajano e como a Faculdade de Filosofia
e Ciências de Marília foi inteiramente beneficiada com a Tutoria e com o
ideal de Filosofia de Trajano.
Um dos exemplos, mesmo que distante da Filosofia e de se tornar
um pesquisador em Filosofia, como idealizou Trajano, em sua entrevista
(Moraes; Girotti, 2013), foi a proposta de orientação de iniciação científica
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
12
no Curso de Graduação em Biblioteconomia e, depois, para a Graduação
em Arquivologia. Implantada no início da década de 90, a orientação
de trabalhos de conclusão de curso iniciou-se como disciplina na grade
curricular, devido ao aprimoramento crescente da prática de orientação.
Considerando-se os benefícios resultantes, foi especialmente interessante
concluir que não só os alunos aprenderam com a orientação de iniciação
científica, mas nós, professores, aprendemos a orientar na perspectiva da
troca de conhecimentos entre orientando e orientador. Nasceu dessa prá-
tica transformadora de orientação a vontade de avançar para a orientação
em nível de pós-graduação, uma ousadia que víamos com um misto de
desafio a ser perseguido e de necessário progresso com nossos orientandos.
Quando terminavam a graduação e após o esforço da iniciação científica
realizado, os egressos nos procuravam para a continuidade da pesquisa, em
nível de pós-graduação, com o desejo de continuar a avançar. O esforço
científico efetivado em torno de temáticas construídas pelo processo de
orientação organizou linhas de pesquisa que direcionaram a trajetória aca-
dêmico-científica de todos os envolvidos, orientandos e orientadores, e foi
determinante para a existência da Pós-Graduação e o amadurecimento da
área de Ciência da Informação.
Quando participei da Comissão Permanente de Pesquisa, em 1993
e em 1997, como membro e como presidente, em duas gestões, a proposta
de todos para fazer a mudança de rumos acadêmicos e transformar a FFC
foi, principalmente, com base no aumento da iniciação científica na gra-
duação, pelo incentivo à atividade de orientação individual e coletiva no
contexto de todos os cursos de graduação. A existência desse incentivo teve
o objetivo de “movimentar as bases”, por meio do alunado de graduação
com interesse e participação demonstrados até a atualidade.
Ao lado da experiência de orientação individual e, sobretudo, co-
letiva ou em grupos, surgiu a proposta de Grupos de Pesquisa, muito fa-
vorecida pela criação do Diretório de Grupos de Pesquisa pelo CNPq,
existente até hoje. Em realidade, a Tutoria em grupo teve a oportunidade
de institucionalização.
Nas palavras de Trajano, “A criação da Tutoria foi marca distintiva
do nosso curso. Mas atualmente há outros cursos de Graduação que pra-
Amizade e Sabedoria
13
ticam essa modalidade” (Moraes; Girotti, 2013, p.12). Da mesma forma,
podemos afirmar que a marca distintiva da FFC foi Trajano, o Curso de
Filosofia e, em especial, a Tutoria. Faço essa afirmação em nome de todos
os docentes ativos e inativos, discentes e egressos, alguns deles como auto-
res deste livro em homenagem a Trajano.
MORAES, J. A.; GIROTTI, M. T. Entrevista com o Prof. Dr. Antonio Trajano
Menezes Arruda. Kínesis, v. 5, n. 9, p.1-20, jul. 2013.
14
Depoimentos
17
Carta de alforria de um
caipira: quando a losoa
nos salva pelo exemplo
lio Alexandre da SILVA 1
À memória de Maria Érbia Cássia Carnaúba; Herbert
Barucci Ravagnani e Márcio Ricardo de Carvalho.
Todos ex-alunos de Antônio Trajano.
Vira e mexe eu penso é numa toada só.
Fiz curso de filosofia pra escovar o pensamento,
não valeu.
O mais universal que eu chego
é a recepção de Nossa Senhora de Fátima
Professor de Filosofia da UNESP/Franca/SP/Brasil/ helio.alexandre@unesp.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p17-39
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
18
em Santo Antônio do Monte.
Duas mil pessoas com velas louvando a Maria
num oco de escuro, pedindo bom parto,
moço de bom gênio pra casar,
boa hora pra nascer e morrer.
Tabaréu, Adélia Prado
Uma das formas de compreender o Brasil do início dos anos 2000
é enxergá-lo sob o olhar da esperança. Os ventos do começo do século
espalhavam expectativas de transformação que, mesmo difusas, estavam
ancoradas em algo até então inédito em nossa história: em um país dirigi-
do, no mais das vezes, por uma elite majoritariamente torpe, escravista e
subserviente, um trabalhador de fábrica, vindo da pobreza profunda do in-
terior do nordeste brasileiro e com pouco acesso ao ensino formal chegava,
através do voto e de eleições livres, ao posto político mais importante do
país. Certamente, ainda por muitos anos, nossos intérpretes se esforçarão
para dar nome e sentido ao resultado das eleições presidenciais de 2002.
Esse cenário, no entanto, não deve ser compreendido no registro de
um amplo consenso progressista em que não havia espaço para críticas,
inclusive por parte da esquerda, ainda que também não se deva perder
de vista que aquele momento representou um dos nossos maiores avan-
ços enquanto sociedade. De um modo geral, o resultado daquelas eleições
nacionais pode ser visto, entre outras coisas, como fruto da organização
política de amplos setores populares. Um dos principais diferenciais da-
quele momento estava na força dessa organização que era alimentada, de
um lado, pelo fim do regime militar no final dos anos oitenta e, de outro,
por certa fragilidade que algumas políticas de corte neoliberal já deixavam
transparecer no final dos anos noventa. Eram tempos de grandes expectati-
vas, particularmente para os jovens que pertenciam à mesma origem social
do operário retirante que havia se tornado Presidente da República.
Começo com essa imagem um tanto generalista apenas para dar ao
leitor e à leitora o pano de fundo que entendo ser decisivo para a história
que pretendo apresentar aqui. Não me interessa avançar, nesse texto, em
Amizade e Sabedoria
19
debates de corte político institucional e em seus ricos e conflituosos desdo-
bramentos. Aqui, o caminho será outro. Recuperar essa dimensão do que
nos angustiava naquele começo de milênio é apenas um modo de oferecer
a moldura que penso se adequar ao espírito daqueles tempos.
Mora na filosofia
Julho de 20042. Interior de São Paulo, inverno, muita raiva difusa,
alegria genuína e alguma solidariedade alimentavam sonhos. Na moradia
estudantil da Unesp, campus de Marília, o período de recesso das aulas
era uma oportunidade que fazia daquele cenário o palco para a conversa
entre estudantes que não passavam aquele período com as famílias, seja
por escolha ou por falta dela. Por razões que não quero discutir aqui, em
grande medida porque não saberia fazê-lo, os cursos de ciências sociais e de
filosofia, mesmo para aqueles que não compunham seus respectivos quadros
discentes, ofereciam as referências que davam a tônica das conversas. As
preocupações com o futuro se misturavam com as exigências acadêmicas, e
conversas longas eram costuradas pelas noites, por comida escassa e barata
e acompanhamentos líquidos de naturezas diversas. Os motivos que nos
empurraram para a universidade e nos reuniam ali eram, quase sempre, o
que ajudava a alinhavar uma prosa simples. Era um espaço de partilha de
onde sempre brotava muita lealdade temperada com conflitos honestos e
quase nunca amistosos sobre política, morte, família, sexo, religião, drogas,
futebol, música e sonhos. Era um presente experienciado com profundidade
e apaixonadamente cevado com o olhar no futuro, alimentado por uma
esperança que, lá no fundo, ninguém sabia muito bem de onde vinha,
mas desistir definitivamente não era uma opção. O que se tinha mais ple-
namente era o futuro. Tudo ajudava a dar sentido ao passado e a suportar,
com algum gozo frágil, o peso do presente e seus desafios.
Em um desses dias de férias em que o tédio nos ameaçava, depois
de três ou quatro copos de alguma bebida desconhecida, o tema da con-
Essas elaborações sobre o passado tomaram forma ao longo de mais de dez anos de aprendizado fruto
da convivência afetuosa e da cumplicidade profunda com Heurisgleides Sousa Teixeira. Foi com ela que
aprendi a não ter medo das memórias e a lidar com o passado. A ela dedico esse texto.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
20
versa foi a sedução. Interessava muito aos envolvidos nas conversas enten-
der os motivos que faziam com que, dentre eles, alguns se entregassem,
com certa paixão, aos caprichos da filosofia e das ciências sociais. Com
certa frequência, era para lá que as longas conversas convergiam. Era ali
que se alimentava a fidelidade e cumplicidade daqueles jovens. Nos dias
de férias, entrecortados por interrupções vazias, pela curiosidade e pelo
desejo, com histórias e intervenções se cruzando e a convivência sendo
construída pouco a pouco no seu detalhe mais desimportante, o tempo
passava e quase tudo parecia ser possível. Eram nesses momentos que a
imagem do professor Antônio Trajano Menezes Arruda invariavelmente
brotava como sinônimo de esperança e de vida exemplar.
Aqui vale uma nota: não se trata de olhar para nosso professor com
uma devoção religiosa ou como quem enxerga alguém que se guiou pelos
preceitos morais mais tradicionais e experienciou sua vida reproduzindo
comportamentos já cristalizados. Talvez, nada seja mais distante do espí-
rito compartilhado por Trajano. Conhecíamos quase nada da vida privada
daquele professor, sabíamos pouco do seu passado para além dos estudos
na Inglaterra e da escolha por construir sua história e sua vida acadêmica
longe das nossas grandes metrópoles. A vida exemplar que enxergávamos
nele era fruto de uma mistura de sedução, vinda de um pensamento fino e
cuidadoso, e de uma abertura para a conversa descompromissada, algo que
aproximava, inclusive e talvez especialmente, os espíritos mais tímidos e
inseguros. Mesmo que seja comum a compreensão segundo a qual uma das
formas canônicas de compreender o exercício rigoroso da reflexão venha
junto com certo distanciamento das paixões, é preciso ressaltar que Trajano
foi exemplo de um intelectual que jamais flertou com este tipo de rigor frio
e indiferente. A imagem que tínhamos era de que seu pensamento era
também paixão, afinal, alguém já nos disse que nada de grande no mundo
foi realizado sem ela.
Nós, seus alunos dessa época, com a maturidade de quem tinha vin-
te e poucos anos, enxergávamos nele algo que misturava o cálculo de um
arquiteto e a sabedoria das pessoas simples do campo. Para construir seus
argumentos, o arquiteto filósofo respeitava o tempo. A reflexão metódica
e profundamente rigorosa não se prendia à autorreferência ou ao vício
Amizade e Sabedoria
21
dogmático do apego às próprias ideias. Em sala de aula, Trajano parecia
um súdito que, para mostrar sua fidelidade à razão, não se constrangia
em emendar seu próprio raciocínio quando ele mesmo submetia seus
argumentos ao escrutínio e à crítica. Um gesto de humildade absolutamente
cativante (e raríssimo!!). A fleuma arrogante que, vira e mexe, passeia por
nossa vida acadêmica, não era um vício reproduzido por ele. Mas, ao
lado do rigor honesto e antidogmático, também havia um respeito pelo
tempo do pensamento. Isso era notável, entre outras coisas, pela rebeldia
desse comportamento que insistia em não se entregar ao tipo de louvor
acadêmico que é medido pela quantidade de artigos e livros que se pode
publicar em uma vida. Sua calma e delicadeza funcionavam como antessala
do argumento bem colocado e bem construído. Era bonito. Ainda que
não fosse convincente, era sedutor. Mas, nesse caso, era tão convincente
quanto sedutor. E quem, no bom uso de suas faculdades, quereria resistir
àquela mão estendida à reflexão livre e apaixonada?
Ainda que essa imagem do professor Trajano possa ser discutível ou
mesmo acusada de excessivamente romântica, foi ela que ficou registrada
na memória daqueles anos de graduação em filosofia marcados, em grande
medida, pelos anseios juvenis de quem insistia em acreditar que vivíamos
o momento adequado para superar, de uma vez, nossas mazelas sociais e
políticas e as dores na alma que delas derivam.
O turbilhão um tanto imaturo de receios, medos, expectativas e uto-
pias cevadas nas longas conversas durante as férias na moradia estudantil
quase sempre encontrava guarida nas conversas que Trajano conduzia em
suas aulas. Ainda que debates livres, sobre praticamente tudo, povoassem
as escadarias da entrada do prédio de atividades didáticas e dessem vida
ao campus, a experiência cotidiana alimentada na moradia estudantil, em
particular nas férias, trazia algo de mais intenso e profundo, embora eu
não saiba justificar exatamente por quais motivos. De todo modo, no mais
das vezes, as disciplinas de Trajano eram oferecidas para o primeiro ano
do curso de filosofia. Isso fazia com que seus alunos dos anos anteriores
trabalhassem quase como propagandistas de suas aulas. Essa dinâmica se
repetia a cada ano, assim como o espanto filosófico soprado nos espíritos
dos ingressantes.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
22
Naquele início de século, a mistura das aulas de Trajano com as an-
gústias, expectativas e medos forjados e alimentados pela história de vida
de cada um produziram efeitos muito distintos. Houve aqueles que, in-
fluenciados por suas aulas, seguiram as veredas do existencialismo e dos
caminhos tortuosos da pesquisa sobre as promessas e as armadilhas da bus-
ca pela liberdade; outros que, enfeitiçados pelo seu carisma intelectual,
encontraram na psicanálise e no pensamento crítico um caminho; outros
tantos que temperaram o gosto pela política com os condimentos da insis-
tência e da perseverança como meios para construir novas formas de vida;
mas houve também aqueles que não souberam mais atribuir sentido aos
estudos e abandonaram a filosofia em busca de outros caminhos.
Vale registrar ainda que, muito embora o ambiente fosse universitá-
rio, as preocupações imediatas de boa parte dos estudantes daquela épo-
ca dirigiam-se ao trabalho. Havia uma configuração de classe marcada de
forma clara, particularmente evidenciada, vale destacar, entre aqueles que
residiam na moradia estudantil. Os estudos, para muitos de nós, eram um
meio. Havia menos romantismo nas escolhas e mais preocupações com o
que fazer com um diploma de filosofia em um país que, naquele momen-
to, não incluía o ensino de filosofia, nem de sociologia, nos currículos dos
ensinos fundamental e médio3. Com o tempo as coisas mudaram para
muitos de nós, mas naquele momento havia uma preocupação em garantir
meios de vida e, em certo sentido, fugir das próprias histórias. Uma das
formas de compreender o que alimentava nossas vidas era o medo do fu-
turo, a necessidade de trabalho, uma angústia indeterminada, incontida e
mal equilibrada, a ansiedade pelo fim da graduação, as paixões iniciadas,
o almoço coletivo de domingo, os amores terminados, os desafios da es-
querda, a expectativa de entrar no mestrado, a falta de tempo, os sonhos e
o depois. O depois era o porto seguro da imaginação.
Seria injusto, porém, insistir na tarefa de descrever o que a convivên-
cia com Trajano produziu em todos meus colegas de graduação porque os
efeitos de suas aulas respeitavam, quase sempre, a diversidade das experi-
ências e dos sonhos que cada um trazia consigo. Por isso, vou me permitir
reunir aqui algumas notas da biografia de colegas, colhidas pela memória
Esse quadro mudou por alguns anos, mas hoje o cenário, nesse particular, é o mesmo de vinte anos atrás.
Amizade e Sabedoria
23
e sem citá-los nominalmente, para dimensionar a relevância do professor
Antônio Trajano para muitos de seus alunos daquele começo de século.
O que me interessa mesmo é fazer um relato de biografias marcadas por
diferentes experiências de vida, e como elas foram se conectando com o
exemplo daquele professor que influenciou e alimentou a paixão pela fi-
losofia que muitos de nós incorporou como dimensão das próprias vidas.
O que mais importa? entre o rural e o urbano
“O caso é que eu não posso fazer o tempo voltar; Sou um
cocão sem chumaço que já não pode cantar;
Hoje eu vivo na cidade perdendo as forças aos poucos; Mas
não consigo perder o meu jeitão de caboclo
Liu e Valdemar Reis
O ofício acadêmico ainda goza de algum prestígio, especialmen-
te quando se considera não o discurso público sobre a profissão, mas a
silenciosa autoavaliação dos próprios pares. Entre nós, professores uni-
versitários, há certa arrogância que eu desconfio que seja fruto direto de
um indisfarçável desprezo social. Uma espécie de mecanismo de defesa,
como poderiam dizer certos especialistas. Parece-me clara nossa profun-
da dificuldade de nos fazermos compreensíveis para além de um respeito
miúdo, por vezes angariado pelo profundo e envergonhado desconcer-
to docemente constrangido e sedimentado por quem se dispõem a nos
ouvir, embora demonstrem entender pouco daquilo que ouvem. Se é
verdade que essa imagem pode ser demasiadamente exagerada e distor-
cida quando consideramos a sociedade brasileira, não parece ser possível
negar que ela testemunha um fenômeno comum em grupos sociais com
alguma relevância sociológica.
Uma parcela bastante representativa da comunidade de estudantes
da Unesp de Marília no início dos anos 2000 era composta por filhas e
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
24
filhos de trabalhadores pobres, alguns deles vindos do meio rural ou de pe-
quenas cidades que misturavam o urbano e o rural de modo orgânico. Estar
sempre distante dos grandes centros, para essas pessoas, era uma forma de
resguardar valores, comportamentos e tradições que se solidificavam com
o tempo e contornavam a pouca influência dos modos vindos das grandes
cidades. A constante mudança de lugar era um traço marcante que trazia
algumas consequências no processo lento de construção daquele modo de
vida que, de uma forma ou de outra, sempre produzia algum nível de es-
panto e grande estranheza nos espíritos modernos e metropolitanos.
Não é simples convencer uma pessoa da cidade, integrada ao senti-
mento de autopromoção, cultivado na complexidade, defensor do mérito,
das luzes e divulgador convicto do bom uso da razão, de que a garantia da
subsistência retirada do simples manejo da terra era uma forma razoável
de viver a vida. Mas, como filhos e defensores de um simplório e bucólico
espírito campestre, os membros dessas famílias, comumente, não almejam
muito mais que isso, muito embora quando se aproximem de uma forma
de vida mais urbana, pouco a pouco esse quadro comece a se modificar4.
Mesmo em pequenas cidades do interior, esse espírito simples que mais
não buscava senão garantir a própria sobrevivência, acabava por absorver
gradativamente as esperanças de sucesso individual alcançadas pelo acú-
mulo de bens e isso, com o passar do tempo, o transformava radicalmente.
O que surgia dessa mistura era um espírito híbrido que se equilibrava fra-
gilmente entre uma defesa fervorosa da religiosidade difusa e uma racio-
nalidade que operava na lógica de meios e fins; entre uma solidariedade
tradicional e um individualismo urbano. Tudo isso era acomodado com
algum sofrimento mitigado que se suportava na medida em que era apre-
sentado como moderno.
É marca das grandes metrópoles funcionar como máquinas de moer
gente simples e pobres. Mas o distanciamento, algumas vezes consciente
e fruto de uma espécie de escolha pela reclusão, fazia com que alguns se
envaidecessem de sua própria ignorância cuidadosamente cultivada. Se o
que valia era o saber tido como sinônimo da razão utilizada nas grandes
É o que mostra, por exemplo, trabalhos como: CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo:
Todavia, 2023.
Amizade e Sabedoria
25
cidades, a escolha deles era pela tradição porque só ela era capaz de afastar
os males da civilização. É claro que essa escolha não era consciente. Entre
o desconforto alimentado pelo medo do vizinho potencial assassino e o
temor causado pelo medo dos fantasmas presentes nos causos contados
pelos mais velhos, a escolha deles era pelo segundo. Atormentava muito
mais, e era preferível que assim fosse, o medo do invisível e do místico ali-
mentado pela devoção religiosa cega e obstinadamente sincera. O ladrão e
o assassino não causavam tanto medo. A velocidade da faca e da cartuchei-
ra não haveria de falhar quando necessário e concorreria em igualdade de
condições com a eventual destreza de um marginal produzido pela cidade.
Imerso nos horizontes daquela vida cultivada no campo, sem con-
tato profundo com os modos modernos, os homens e mulheres dessas fa-
mílias mais pareciam com ermitões atrofiados. O espírito aventureiro e
de conquista não era fonte de grande sedução. O que vigorava era uma
simples economia de subsistência que mantinha contatos miúdos com a
economia de mercado das grandes cidades. Escassos por escolha, esses con-
tatos se davam, no mais das vezes, quando uma das filhas ou filhos ia até
a cidade vender um frango caipira, ovos, verduras, um pedaço de porco
ou de boi. Feita a venda, consumada a troca e adquirido o dinheiro para
comprar o mínimo que na vida rural não se tinha, o que voltava a vigorar
era a calmaria, a conversa mansa regada à cachaça; a prosa infinita sob à
sombra das árvores; o ouvido apurado para o canto dos passarinhos que
todos distinguiam por nome e precisão quase científica.
Naquele ambiente se crescia com a convicção de que a família era o
início, o meio e o fim de tudo. Embora se cultivasse um sentimento mui-
to amistoso entre os vizinhos, as famílias tinham seu núcleo de formação
voltado para si mesmo. O que explicava, em grande medida, o fato que
não era incomum notar pessoas com mais de cinquenta anos que viveram
com os pais praticamente toda a vida. Elas eram marcadas, entre outras
coisas, por não terem constituído um lar próprio, não terem tido filhos,
mas também não terem estudado ou obtido trabalhos com algum nível
de capacitação. Semearam e alimentaram suas vidas no emprego bruto da
própria força corporal. Cuidar do período de velhice dos pais era, no mais
das vezes, o que servia de justificativa para reprodução daquele ciclo de
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
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vida voltado para o próprio interior, tanto no sentido geográfico quanto
moral. Quando se tinha contato com formas de vida diferentes, como
aquelas cultivadas pelas pessoas vindas do nordeste que, vez ou outra,
apareciam por ali em busca de trabalho em grandes lavouras de café, era
como se tivesse tido contato com imigrantes. Afinal, eram tratados como
estrangeiros. Havia inclusive grandes dificuldades de compreensão graças
aos diferentes registros regionais de comportamento e de fala, tanto dos da
terra quanto desses forasteiros. Certa vez, perguntado se havia tido entre os
membros da família algum estrangeiro, o avô disse que uma tia distante
havia se casado com um baiano.
O avô era desses gurus que são empregados de grandes fazendas, rela-
tivamente respeitado quando o assunto não era finanças. Exímio contador
de causos um tipo falante, com palha, fumo e canivete sempre à mão, cheio
de certezas e conselhos prontos para orientar e melhorar a vida de qualquer
vivente. Sobre todo e qualquer problema ele possuía uma receita infalível.
Essa última virtude ele deixou como grande legado, sua deliciosa herança
para os descendentes. O que vinha dele não se contestava e não se em-
prestava: incontestável e imprestável. Viver e crescer como parte integrante
dessa cultura certamente contribuiu para a fermentação de um sentimento
ambivalente sobre ela. Prazer e orgulho se misturavam com certa revolta e
desespero. Era sofrido e estava além dos limites do possível imaginar algo
que rompesse aquele círculo curto. Nessas circunstâncias, o espanto, tantas
vezes mobilizado nas aulas de Trajano como característica eminentemente
filosófica, não brotava naquele mundo caipira de reafirmação das tradições
e comportamentos. O sabor de quase tudo estava na repetição.
Severinas vidas caipiras
Todas às vezes que me chamam de caipira é um carinho
que recebo de alguém.
É uma prova que a pessoa me admira e nem calcula o pra-
zer que a gente tem.
Amizade e Sabedoria
27
Doutor, agora nós já somos bons amigos; Vamos comigo,
conhecer o meu além;
Para dizer que sou caipira na cidade, mas lá no mato eu
sou um doutor também
Geraldinho e Goiano
Saber-se caipira era ao mesmo tempo libertador e triste. Essa parece
ser uma forma razoável de pintar o que floresceu de uma daquelas famílias
que viviam entre o campo e a cidade. Ela sempre foi um solo fértil para
tudo, seja para alimentar as desgraças comezinhas ou para dar vida aos
dramas do cotidiano. Mas ali também havia verdade, pouco choro e muito
ranger de dentes. O sorriso diário quase sempre era forjado com suor e às
vezes com sangue, mas estava sempre presente para sufocar a dor que renas-
cia todo dia. Um sorriso dolorido que mostrava uma dor majestosa, vistosa
e adornada com flores de plástico. Uma beleza! Naquela família materna
que irradiava sonhos para todos os lados, o trabalho sempre foi um dever
moral. Sim, o trabalho era símbolo maior de dignidade, não a reflexão que
busca algum rigor. Não, não eram apenas sonhos realizáveis. Apesar dos
passeios oníricos, a vida cotidiana insistia em sugar todos para a realidade,
dia após dia, cada um desses personagens de si mesmos, sem exceção. Às
vezes, é melhor insistir no errado pra dar certo, dizia o avô.
De fato, não é incomum encontrar os grandes sonhos mergulhados
na experiência das maiores misérias. Sabe-se lá Deus o porquê, mas em
alguma esquina da vida a esperança é sempre realimentada pela aridez fértil
do sofrimento. Talvez isso seja natural. Há até quem chame isso tudo de
utopia. Vocábulo graúdo e charmoso que intelectuais atribuem para uma
coisa ainda um tanto confusa. Parecia haver uma tendência que fazia com
que quanto mais profundo fosse o mergulho no lodo viscoso do sofri-
mento, mais ele era alimentado por uma insistente esperança jovial que se
renovava. De cada conta sem pagar, de cada fatura vencida sempre brotava
a expectativa que se concretizava na fé transferida para os jogos na loteria.
Essa aposta tinha a milagrosa capacidade de projetar e realimentar, mais
uma vez, a esperança da redenção final que vingaria, para sempre, todas
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
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as tristezas. De cada anúncio de demissão de um subemprego precarizado,
nascia a esperança de um dia ser patrão, ter empregados e ser dono do seu
próprio negócio. A decepção cotizada era vivida quase como se nada fosse.
Era um fantasma que causava certa paúra, mas como sua causa parecia
invisível ou indiscernível, não havia muito remédio senão o sonho difuso e
repetidamente adiado. As desgraças cotidianas funcionavam como esterco.
Adubavam a esperança de uma vida redimida e menos sofrida. Amiúde e
insistentemente, enquanto a esperança da redenção era apenas uma espe-
rança, o que se servia no almoço era a marmita requentada preparada de
véspera. Embora naquela família sonho nunca faltasse, a realidade sempre
fazia questão de também mostrar seus dentes e, como de praxe, a face que
ela apresentava era o mais completo avesso dos sonhos diariamente regados
pelos programas de televisão dominicais.
Repetiam tudo. Repetiam o gesto de produzir caricatura, de fazer tro-
ça de toda e qualquer coisa. Repetiam as falas, os modos, as piadas, as reações
que performavam um conjunto previsível de atitudes que se retroalimenta-
vam infinitamente. Tudo era simplesmente motivo de piada. O sofrimento
produzia o riso de canto de boca ou a gargalhada pseudo-libertadora. Embora
não se duvidasse que a alegria fosse genuína, ela não deixava de trazer uma
ingenuidade infantil, tosca e de gênero bufão. Mesmo entre os membros da
família, alguns deixavam-se pisar por outros com um fatalismo resignado de
causar inveja ao Cristo. A trapaça grosseira a qual se foi submetido ontem
era quase sempre a repetição pálida da trapaça sofrida anteontem. E isso se
sucedia ao infinito como um ritual masoquista. Incomodava, no entanto,
a incapacidade de perceberem o lado sombrio e árido daquilo tudo, o que
predominava era uma espécie de banalização romântica das dificuldades.
Finalmente, tudo resultava em um círculo vicioso semelhante à ave cega
que se sente acuada entre espinhos: quanto mais se debate, mais se percebe
inapelavelmente presa. Como consolo, a repetição e o riso sempre fácil
afastavam as agruras para o dia seguinte.
Talvez não seja exagero dizer que aqui o exemplo do pensar lento,
rigoroso e apaixonante de Trajano pudesse ter algum lugar. Seu carisma
possivelmente produziria alguma fricção criativa naquele mar de repeti-
ção. Talvez.
Amizade e Sabedoria
29
Também havia sonhos, mas sem a porção vivificante que impulsiona
o espírito para a criação e para o novo. Novidade era causa de estranhamento
e sinal de impertinência. Era um sonhar com sabor de vigília. A alegria
sempre aparente era a forma de postergar o dia de amanhã quando seria
cobrada a fatura do riso de hoje. Para os amigos, que viam tudo mais ou
menos de fora, esse modo de vida era curiosamente convidativo, acolhedor
e atraente. Mas a alegria que entorpecia era só mais um sinal de que o
encontro com a realidade estava sempre adiado. A dureza febril da vida res-
secada sempre batia à porta e com ela entrava o desespero da falta. Faltava
de tudo um pouco: dinheiro para pagar as contas, lucidez para reconhecer
as carências, rumo para sair do buraco, raiva para pensar no hoje, crítica
para entender as razões da falta, mas troça e riso não faltavam. Até nisso
eram repetitivos. Um círculo que fechava o curto circuito de uma dialética
mambembe, sem síntese nem expectativa de superação. Não havia farsa, só
repetição. Enfadonho, mas alegre, ou, talvez, enfadonho ainda que alegre.
Ali não se encontrava em ninguém o apego a ideais absolutos, tampouco
a preconceitos inflexíveis. Conviviam o espírito de confraternização e
a competição, a solidariedade, a tristeza, o riso e o sofrimento. O que
resultava desse amálgama arlequinal era um tipo contemporizador e do-
tado de uma religiosidade longamente arrastada e cozida em fogo brando.
Uma espécie de ingenuidade dogmática e exótica. Tudo se passava como se
ninguém fosse capaz de olhar para si mesmo como produto de uma forma
particular de organização social. A vida era como o cumprimento de um
destino irreversível contra o qual qualquer manifestação de revolta ou re-
beldia não passava de pastiche. Uma pantomima que ajudaria a despertar
o momento pavoroso do riso que sempre estava à espreita. Era esse o pano
de fundo da vida cotidiana, passiva e resignadamente aceito festejado com
a monotonia das trilhas sonoras das festas de fim de ano das empresas du-
rante a troca de presentes do amigo secreto.
Essa era a família materna. A família paterna era a sombra de uma
imagem distante que ganhava contornos mais concretos duas vezes por
ano. Além das conversas domésticas sobre a vida alheia, uma visita no
dia das mães e outra no natal era tudo que se tinha para evitar grandes
injustiças no julgamento. A tia dos presentes e boa cozinheira, a tia que
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
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lutava contra a balança, o tio alto astral e sua esposa, a avó doce e de voz
mansa, o avô meio surdo, uma prima e um primo mais velhos compu-
nham os pontos que teciam a sociabilidade construída ali.
O convívio maior com a família da mãe não era uma escolha, mas
uma contingência, um acaso criado pelo fato que a família do pai não
morava na mesma cidade. A convivência cevada a cada visita dominical
repetida com abnegação sacerdotal criava uma proximidade e cumplicidade
que rapidamente tornava a vida entre eles algo mais íntimo e natural. Entre
aqueles que compunham a família da mãe, tudo era mais próximo, para
o bem e para o mal, como qualquer convivência que dure o tempo de
uma família. Esse tempo das emoções vividas e divididas, das conquistas
partilhadas, dos sofrimentos cotidianamente repisados, das alegrias
anarquicamente irradiadas. Essa experiência íntima, embora nem sempre
intimista, criou laços úteis que se sedimentaram com o passar dos anos. O
tempo da cristalização dos laços de convivência foi algo produzido apenas
com os parentes maternos, essa certamente é a principal razão que fez com
que as experiências com a família paterna tenham sido escassas e menos
marcantes. Provavelmente este seja apenas mais um indício de que a
geografia construída pela frágil mobilidade social influencia decisivamente
a experiência de vida de uma pessoa, mas esse seria assunto para especialistas
dentre os quais, talvez, Trajano encontrasse alguma guarida. A escolha
pela vida interiorana, que foi também a de nosso mestre, nem sempre traz
as mesmas angústias, compensações e desafios que a vida que se vive no
interior por falta de escolha.
As periferias das cidades do interior
“No centro da sala, diante da mesa
No fundo do prato comida e tristeza.
A gente se olha, se toca e se cala, e se desentende no instante
em que fala
Belchior
Amizade e Sabedoria
31
No ano de mil novecentos e oitenta e seis, uma casa de dois cômodos
sem pintura e sem reboco, com laje e sem telhas, com portas de ferro e sem
vidro, e um banheiro sem azulejos e sem porta foi a primeira casa que o
casal e seu filho pôde chamar de própria. Erguida quase que totalmente
pelas mãos do pai e de um tio materno, embora com ajudas esporádicas e
bem vindas de outros membros da família. A casa tinha o formato de um
caixote retangular partido ao meio. Durante sua fase final de construção,
a família foi morar com os avós maternos para economizar o dinheiro do
aluguel e investir naquilo que foi, e em grande medida ainda é, um dos
sonhos maiores das famílias de trabalhadores pobres desse país. Ter um
emprego e um endereço era tornar-se socialmente visível. Era o que torna-
va possível deixar brotar uma fagulha de orgulho. Para um trabalhador que
preenchia quase metade do seu dia com um ofício dilacerante, ter uma casa
era como ter acesso livre às portas do paraíso.
O bairro onde a casa foi construída não possuía os requisitos míni-
mos para habitação, não havia saneamento básico ou água encanada, as
ruas perfaziam grandes estradas de terra que se transformavam em barro
quando chovia. Havia luz elétrica, mas não iluminação na via pública. A
casa ficava no penúltimo terreno de uma rua que estabelecia o exato limite
entre a zona urbana e a zona rural, de modo que ser acordado por cavalos,
vacas, patos e galinhas era uma experiência extremamente comum; havia
também gatos e muitos cachorros com quem se convivia com alguma na-
turalidade. Essa situação limítrofe entre indícios tímidos de urbanidade
e uma cumplicidade profunda com a vida rural ajudava a construir um
modo de vida que, em alguma medida, era a marca da periferia de cidades
do interior de São Paulo no fim dos anos oitenta do século vinte. As be-
nesses da urbanização, assim como seus problemas, são sempre fenômenos
tardios na vida das periferias. Em pouco tempo, a rua que tinha poucas
casas tornou-se quase que totalmente preenchida por outras construções
que, em poucos anos, transformou a paisagem do bairro dando a ele alguns
traços de urbanidade. A água encanada e o saneamento básico chegaram
em alguns anos. A pavimentação das ruas foi algo que demorou um pouco
mais, de tal sorte que todo morador tinha uma história para contar de
quando atolou os pés no lamaçal que se formava após as chuvas.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
32
O ponto de ônibus mais próximo ficava a três quarteirões da casa,
algo em torno de uns oitocentos metros. Quando chovia e a lama se for-
mava, chegar até o ônibus tornava-se uma experiência épica. O guarda-
chuva era acessório obrigatório, embora insuficiente. O problema não
estava exatamente na água que caia do céu, mas na água que se empoçava
no chão e se misturava à terra fofa e avermelhada formando um líquido
denso que falsamente se estabilizava e traía os moradores desatentos. Para
evitar desgosto inesperado, durante as chuvas, se fosse necessário sair de
casa, era prudente se armar com sacos plásticos na cabeça, no tronco e
principalmente nos pés, além do guarda-chuva. A eficácia desse tipo de
armadura era medida pela sua capacidade de evitar que os calçados ou chi-
nelos fossem tingidos de barro. Pular as poças de lama era, para as crianças,
uma experiência de filme de aventura de sessão da tarde. Havia uma alegria
inocente, breve e indisfarçável naquela situação. Já os adultos, particular-
mente as mães, a maioria já despidas pela vida de qualquer espírito lúdico,
atormentavam-se por ter que dividir sua atenção entre os filhos e um pé
de sapato que traziam nas mãos e que era um objeto comum entre as
mulheres da periferia. Naquela cidade marcada pelo acúmulo de indústrias
de calçados, a costura manual de sapato era, e hoje, embora em menor
medida, ainda é uma das formas de trabalho precário que ajuda na renda
familiar sempre insuficiente para prover o mínimo.
As mulheres quase sempre estavam com os filhos por perto e um pé
de sapato nas mãos, que elas costuravam enquanto andavam. Peripatéticas
da periferia, cujo trabalho não era exatamente ensinar, embora manti-
vessem, como seus antecessores gregos, a extravagância nos gestos e nas
expressões. O trabalho dessas mulheres mães consistia basicamente em
unir uma peça maior do sapato, o cabedal, a uma peça menor, a pala.
A junção dessas duas peças se dava por intermédio de uma agulha fina
que trazia uma linha grossa que perpassava os buracos dando formato ao
sapato que passaria por outras fases de produção até o acabamento final.
Essa costura, que quase sempre era um trabalho para mulheres e crianças,
podia ser feita através de vários tipos de pontos, os mais comuns eram xis,
chuleado, gominho e o ponto cruz. Impressionava o desfile da habilidade e
da destreza que essas trabalhadoras e mães, em ato contínuo, costuravam o
Amizade e Sabedoria
33
sapato, caminhavam e conversavam sobre amenidades. Se o caminho a ser
percorrido fosse longo, era comum carregar no antebraço uma sacola com
dois ou três pares de sapatos para aproveitar todo o tempo da caminhada.
Assim, quando terminada a costura de um pé era possível tirar outro da
sacola para continuar a tarefa mecânica e disciplinarmente cumprida. O
caminho de casa para o ponto de ônibus era, com frequência, preenchido
por um ponto no sapato e uns tapas na nuca do filho desatento para que
ele prestasse atenção na rua e não se sujasse na lama. Essa era uma visão
comum daquele bairro, pequenos grupos de mulheres e crianças que
dividiam seu tempo entre conversas sobre os acontecimentos ocorridos na
vizinhança ou no capítulo do dia anterior da novela e a costura manual dos
sapatos. Tudo isso era estimulado com quilos de sonhos e pitadas ralas de
revolta morna e difusa.
É curioso, embora um tanto revoltante e melancolicamente lamen-
tável, notar o quanto a dureza e a aridez provinciana que se acumulavam
no dia a dia de uma família pobre de trabalhadores que moravam nas
periferias ajudava a formar uma espécie de pedagogia sociofamiliar da des-
graça. Um tapa desnecessário aqui, um grito e um safanão público acolá,
de constrangimento em constrangimento se endurecia o espírito daqueles
moleques que, mais tarde, deixariam de apanhar dos pais para apanharem
da polícia, algumas vezes, com o aval dos próprios pais. A grosseria, rudeza
e ignorância, por vezes tidas como sinais de maturidade, ajudava a for-
jar pouco a pouco uma moralidade em que a violência doméstica brotava
como consequência comum, seja contra as mulheres ou contra as crianças.
Não importa para o convívio cotidiano se a violência é produto de
uma vida experienciada pela democratização das múltiplas formas de carên-
cia. Quando se nasce imerso no ambiente de pobreza e escassez extrema, a
violência é vista como natural ou como produto da bestialidade e estupidez
de um indivíduo particular. Todos os olhares se voltam para o efeito pro-
duzido, pouco importam as causas que contribuíram para seu surgimento.
Assim, fecha-se outro círculo de carência brutal que é próprio da vida na
periferia. Quando apanhar se torna um hábito, a brutalidade tornada co-
mum passa a ser sinal de correção comportamental. O barbarismo ao qual
a vida da mãe está exposto se explicita enquanto ela trabalha, com sapatos
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
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nas mãos, caminhando para tomar o ônibus. O mesmo barbarismo e bru-
talidade é transmitido à prole quando a mãe corrige os passos do filho para
evitar a lama formada pela chuva que cai na rua sem pavimento. Nesse
momento, a ausência do Estado se funde com a falta de paciência da mãe,
e o que se vê é violência em estado bruto. As minguadas condições de vida
produzem sutilmente, com um ato excessivo aqui e outro ali, um redemoi-
nho de desgraças coletivas que atraem para seu centro todos que estiverem
por perto. A fragilidade individual produzida pela carência material inva-
riavelmente conduz à penúria e responsabiliza aqueles que sofrem. Diante
desse circo semi-trágico, as drogas e a Igreja eram saídas sempre à mão. O
sofrimento agudo e sistemático parecia neutralizar a rebeldia, o espanto e
a curiosidade que Trajano nos apresentaria anos mais tarde. Nessa espécie
de subterrâneo social, as sutilezas do pensamento eram assassinadas aos
poucos, sem gritos nem manchetes nos jornais da hora almoço.
A convivência entre os moradores do bairro era algo no mínimo he-
terodoxo. Alguns sinais distintivos marcavam as famílias, essa em particu-
lar era simples e pequena, pai, mãe e filho. O irmão só nasceria quatro anos
mais tarde. Mas frequentar algumas famílias não era recomendável, havia
um receio de que conviver com certas companhias pudesse desencaminhar
o filho. No entanto, para além da censura e dos infinitos avisos de alguns
pais e mães, ali não havia segregação, todos se frequentavam em maior ou
menor medida. Se entre os adultos havia certa relutância e um esforço,
ainda que tímido, de manter distância daqueles que tinham “fama”,
especialmente aquela produzida por envolvimento com polícia causado
por deslizes cotidianos da vida da periferia, entre as crianças e os jovens o
intercâmbio era pleno. Por inocência, por necessidade de pertencimento
ou pela obviedade de tratar-se de crianças e jovens, o que importava de
fato era que a vida feliz se dava na rua. Nessa idade de seis, sete, oito anos,
praticamente todo o dia após a escola ou antes da escola, para os que estu-
davam à tarde, a vida era a rua.
Esse era o ambiente mais prazeroso, lúdico e democrático que a vida
naquele bairro propiciava. Era na rua que tudo acontecia, tudo mesmo. Lá
era o espaço da plenitude da experiência dos amores e do sexo precoce, do
lúdico, dos planos futuros, dos sonhos e das frustrações, do acesso comum
Amizade e Sabedoria
35
às drogas, das conversas que invariavelmente tinham a violência como mote
(Quem comprou a arma de quem? Quem fugiu da cadeia? Quem jurou
matar quem e por quê? Quem matou quem? Quem deve o quê pra quem?).
Esse denso caldo era sempre temperado pelas espertezas, vaidades, verdades
e mentiras da religião, especialmente o catolicismo e o protestantismo evan-
gélico, formas hegemônicas de expressão religiosa naquele tempo e lugar.
Todas as demais manifestações religiosas eram desprezadas, demonizadas ou
tomadas como caricatura, o que não deixa de ser mais uma fonte de mal-
-estar subterrâneo. Mas o que causava a maioria das alegrias e tristezas, e as
desavenças de modo particular, eram os jogos de futebol entre o time da
rua de cima e o da rua de baixo. Quantos talentos foram enterrados nos
jogos em campos de terra batida! Talentos para tudo, para o jogo de futebol
propriamente dito, cuja habilidade notavelmente estava nos pés, e talento
para a prática de outros esportes cujas habilidades fundamentais estavam
nas mãos como o boxe, a luta livre e as artes marciais em geral. Esses últimos
eram praticados, geralmente, no momento das desavenças que eram parte
incontornável daquele cenário ao mesmo tempo trágico e romântico. De
verdadeiramente cômico não havia quase nada.
Olhar para aquela cidade através dos olhos da periferia significava
enxergar uma sociedade sem sutilezas. Um lugar sem meios tons e sem
acordes dissonantes. Uma cidade de notas fortes, rígidas e ríspidas, sem es-
paço para nuances, fragilidades, modulações ou entretons. Tudo era árido,
duro, retesado e oco como se espraiasse pela cidade o espírito ordinário e
instrumental das máquinas que produziam os sapatos que era o alicerce de
sua alegada riqueza. A força da indústria produzia tudo em série e padroni-
zado conforme exigia a simetria da modernidade, que tardiamente chega,
quando chega, nas periferias e cidades do interior. Não havia ali espaços
para o semitom, para dúvida e incerteza criativa, para sustenidos e bemois.
A música cotidiana que brotava daquele tempo era um amontoado de re-
frões que se repetiam infinitamente, ad nauseam, como a esteira da linha
de produção de uma fábrica qualquer que gira com lentidão, ininterrupta-
mente, por mais de oito horas diárias. A pobreza ali não era extrema e pa-
ralisante, não se morria de fome, mas ela era grande o suficiente para min-
guar a esperança e limitá-la a um horizonte curto, raso e com expectativas
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
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eternamente superficiais. A estética da pobreza, pra quem vive nela, não
tem nada de sublime, nem de artístico. Quase sempre é pura dor que dói
de forma lenta e suportável, disciplinadamente aceita, sem reação. Nem
o choro é libertador. É contido, baixo, silencioso, com poucos soluços e
poucas lágrimas. A rotina do sofrimento a conta-gotas, decantado dia após
dia, embotava a autenticidade do riso e da alegria. É como se a possível
sumptuosidade das cores da vida boa se decantasse em uma aquarela de
tons pastéis, pouca vivacidade e uma sensação profunda de vazio perma-
nente. O brilho nos olhos, a pupila dilatada e o sorriso fácil só vinham com
o fogo produzido pela fumaça que, quase automaticamente, era vinculada
à ilegalidade, à marginalidade e à rebeldia. Aliás, a rebeldia era uma carac-
terística maior do professor Trajano, ainda que exercida em espaços menos
hostis e dramáticos que aqueles brevemente relatados aqui. De todo modo,
mesmo que experienciada em diferentes registros, a rebeldia se identifica
quando seus portadores frequentam os mesmos espaços.
Um brinde às contradições: a alforria vem das elites
“O pior dos temporais aduba o jardim
rgio Sampaio
A dureza desse cenário dificilmente seria superada, mesmo que
parcialmente, sem a efetividade de políticas como aquelas que mantêm
o funcionamento e a gratuidade do ensino superior público. Mesmo que
aceitemos que a sociedade brasileira não tenha sido capaz de democratizar
o ensino público de qualidade, ele ainda pode ser espaço de disputa que
torna possível mudar histórias de vida e produzir encontros entre intelec-
tuais, como Antônio Trajano e filhos da classe trabalhadora das cidades do
interior do Brasil.
Na manhã do dia quatorze de março de 2002, o telefone tocou. Era
uma voz desconhecida que trazia uma informação em uma linguagem com
sinais de formalidade pública. Era um comunicado que exigia uma resposta
Amizade e Sabedoria
37
breve porque o interesse, talvez os sonhos, de outros estavam em questão.
Tudo resumido, tratava-se de uma informação sobre a possibilidade de as-
sumir um lugar, fruto de vaga aberta em terceira chamada, no curso de filo-
sofia da Unesp, campus de Marília. A esperança na possibilidade de receber
essa chamada telefônica era quase nula. O resultado do vestibular, como
mais ou menos esperado, tinha sido sofrível, um quinquagésimo nono
lugar em um curso que oferecia trinta e cinco vagas. Para que a lista de
espera chegasse ao quinquagésimo nono lugar seria necessário contar com
a desistência de vinte e quatro candidatos. No mundo de quem acordava às
seis da manhã para começar a trabalhar às sete em uma fábrica de sapatos
que reunia, em um só fôlego, cheiro de cola, pó de borracha, martelo em
fôrma quente e brutalidade, não havia justificativa capaz de tornar essa
esperança algo razoável. Pensando melhor, talvez houvesse, mas não vale
muito remoer uma vez mais os entulhos para procurar de onde ela poderia
brotar. O telefone tocou e o interlocutor do outro lado fez o anúncio.
A hora do almoço foi o momento em que a notícia foi dada ao des-
tinatário sem absolutamente nenhuma cerimônia, mas com alguma curio-
sidade. Não havia tempo para retornar a ligação naquele momento. A con-
versa poderia se alongar e a prudência ensina que não se troca o certo pelo
duvidoso. Demorar-se ao telefone e perder a hora do retorno ao trabalho
poderia significar perder o direito sagrado de sofrer com carteira assinada,
salário mensal e décimo terceiro. Era preciso retornar ao trabalho. A tarde
durou o tempo da borbulha insana dos desejos, sonhos, raiva, frustrações
acumuladas, medos e algum desespero. Havia esperança também. O reló-
gio de ponto marcou cinco horas e quinze minutos. Soou o alarme, mas a
fila para picar o cartão estava imensa. Era comum ficar atento ao relógio de
ponto minutos antes do horário da liberdade provisória. Assim era possível
antecipar-se para marcar o ponto e não ter que esperar na fila dos que iriam
descansar depois de ter deixado parte de si mesmo naquele chão cinza. Mas
dessa vez não foi possível antecipar-se. Havia uma fila e era preciso esperar
a vez. Cartão na mão, olho fixo no relógio de ponto. Marcação feita, pon-
to registrado e a porta aberta para o descanso insuficiente, mas desejado.
Bicicleta retirada do bicicletário, olho no pedal antes de olhar o portão.
Antes da primeira pedalada um gesto mecânico para alguém sem rosto. As
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
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imagens daquelas pessoas se misturavam entre diabolicamente sofridas e
indiferentes. Tinha alguns risos que apareciam entre frases preconceituosas
embrulhadas em algum consentimento. Foi o último dia dentro de uma
linha de produção de uma fábrica de sapatos.
Quinze minutos depois, já em casa, telefone na mão e o suspense
de uma vida. Coração acelerado sem nem sequer saber exatamente a razão
de tamanha ingenuidade. Não era razoável imaginar que vinte e quatro
pessoas abandonaram a possibilidade de entrar em uma universidade
pública. O que poderia ser melhor do que estudar em uma universidade
gratuita e com direito a alguns auxílios sociais em dinheiro? Ligação feita.
Atendeu uma voz feminina. Perguntou por dados pessoais e, em seguida,
explicou que a lista de espera para o curso de filosofia da turma de 2002
da Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília havia chegado até
o candidato número cinquenta e nove. Se houvesse o interesse pela vaga,
aquele era o momento de dizer o sim.
Sim!!!! O mundo ficou indecifrável. Uma explosão de futuro e um
grito que poderia ter sido dado, mas ficou contido. Por ali o comum era
não exagerar nas emoções. Telefone desligado e Domingo no Parque tocando
naquela cabeça que não sabia o que fazer. Tanta coisa poderia ter sido dita
naquele momento, tanto sentimento poderia ter sido demonstrado, tanta
frustração redimida, tanto rancor arrancado de uma vez por todas. Mas
a prudência e a diligência que a maturidade dos vinte e um anos sempre
trazem, conteve o exagero. Afinal, até então só havia uma informação
oficial e uma esperança com alguma expectativa de realização.
No outro dia era preciso pedir as contas com algum orgulho. Houve
deboche dos colegas que pensam mandar, mas que têm seus espíritos
despedaçados pela necessidade de garantir o próprio sustento. Os que
ocupam cargos de administração ou gerenciamento são seduzidos pela
falsa proximidade com o poder, e esmagam sob seus pés os funcionários
rasos do chão da fábrica. Aquele momento foi uma desforra, morna e
insegura, mas foi.
– Quero minhas contas porque vou estudar na Unesp.
– Hein? O que você está falando?
Amizade e Sabedoria
39
Manter o pedido com alguma altivez e arrogância foi uma alegria.
Curioso mesmo foi notar como era difícil manobrar aquele fio de arro-
gância. Quando se é treinado no exercício cotidiano da submissão, são
tronchas as tentativas de manifestar alguma empáfia. Tudo vira pastiche e
motivo para vergonha.
Os primeiros dias de universidade foram um misto de encantamento
e novos desafios. O futuro aos poucos ganhava o peso do cotidiano presen-
te. Outros sonhos, outras esperanças, outras expectativas.
E aqui o professor Trajano volta à cena, ou melhor, aqui ele en-
tra realmente em cena e, com voz baixa e um pouco trêmula, começa a
ministrar o curso de “Filosofia geral e problemas metafísicos». O primeiro
sentimento era de perplexidade, certamente sem nenhuma reflexão de
fôlego sobre o que isso poderia significar, mas o espanto estava ali. A sen-
sação de que havia um novo mundo a ser descoberto tomava conta daquela
alma recém liberta. Com o tempo, Trajano foi nos ensinando o quanto era
saboroso o esforço de querer pensar com rigor.
A universidade pública e suas políticas de permanência ajuda-
ram a reconstruir um sentido para vidas que, até então, só encontravam
motivos na busca direta e insana pela sobrevivência. Nesse cenário, muitas
pessoas foram imprescindíveis, entre elas, os colegas de curso e de moradia
estudantil, professores e funcionários da Unesp. Contudo, o espírito
filosofante e jovial, acolhedor e rigoroso, rebelde e cuidadoso de Trajano
foi a assinatura simbólica em uma carta de alforria que, pelo exemplo
incorporado na dedicação e seriedade com o trato e o fazer filosófico,
tornou-se um marco inesquecível.
Quando as demandas do cotidiano cobram sua fatura, sempre é um
bom refúgio lembrar que a humildade e a generosidade, aliada ao trabalho
sério e rigoroso com a filosofia será sempre um caminho a ser seguido. A
trajetória profissional do professor Antônio Trajano Menezes Arruda é um
testemunho de que a filosofia pode nos salvar pelo exemplo.
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41
Meu amigo bossa-nova
Ubirajara Rancan de Azevedo MARQUES 1
Conheci Trajano em 87, ao participar de processo seletivo na então
Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação.
Contemplado com a vaga em disputa, vim para o Departamento de Filosofia
da UNESP em março de 89. Tornados colegas, tornamo-nos amigos.
Individualmente, os membros todos da “Filosofia” [“DFil”, apelido
administrativo, viria bem mais tarde] eram competentes e camaradas. Mas
aquele Departamento, havia somente 12 anos em Marília, ressentia-se do
lugar nenhum em que estava, cultural e institucionalmente.
Professor Titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP. Marília,
SP; Brasil. ubirajara.rancan@unesp.br
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p41-43
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
42
Viera de Assis, onde, criado o curso em 68, começara a formar cor-
po, o próprio e o da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de lá, um
dos então Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo.
Sua transferência forçada para cá, se mais não era, geográfica e cul-
turalmente, do que uma troca de 6 por meia dúzia, do ponto de vista
político-organizacional correspondeu a um degredo, pois o pouco que
conseguira a menos de 80 km de distância fora da noite para o dia desfeito.
Com a partida sucessiva de vários professores daquele grupo origi-
nário, no qual todos se sentiam multiplamente próximos, a organicidade
espontânea com que atuavam cedeu em boa parte a vez ao individualismo
carreirista. Enquanto a UNESP devia consumar a ideia de um ensino e
uma pesquisa de ponta estado adentro, a maior parte da “Filosofia”, na
contramão, buscava ir da província para a corte, percurso cujo traçado con-
feriria um ar estagiário a “Marília”.
Nesse embate de tendências opostas, muitos se foram, outros fica-
mos. Entre os que permanecemos, alguns se ressentiam, outros se apatiza-
vam, também havendo quem vivesse para trabalhar.
Nem ressentido, nem apático, tampouco tomando a parte pelo
todo, Trajano, muito garbo e tanta façanha, não tinha talento nenhum
para a chatice.
Preferencialmente, ouvia; quando falava, punha em prática o diá-
logo, jamais o monólogo autocrático, quer estivesse numa reunião com
colegas, quer numa aula ou num encontro social.
Na mesma época em que cuidava de implementar a “Tutoria” no
Curso de Filosofia, nele tendo sido seu primeiro Coordenador de Curso,
Trajano comparecia regularmente ao “Pratas da Casa”, evento na Faculdade
em que cantava e tocava violão. Mais adiante, seria o responsável por arre-
gimentar os primeiros coralistas do futuro Coral Boca santa, conjunto de
que fez parte e com o qual se apresentou.
O mesmo professor sempre querido pelos estudantes, especialmente
os do primeiro ano, surpreendia-os ao convidá-los, encerrado o ano letivo,
Amizade e Sabedoria
43
para irem como convidados seus a um bar da cidade, no qual por vezes
ficavam todos até o raiar do dia.
Aos colegas mais jovens, deixava-nos saudavelmente invejosos ao
contar-nos dos shows no “João Sebastião Bar”, do talento e charme de Nara
Leão, da pensão na qual, estudante e bancário, morara com José Celso
Martinez Corrêa e Luiz Roberto Salinas Fortes, ou de sua kitchenette no
“Copan”, na qual, anos de chumbo, abrigara uma amiga militante.
Privar com quem reze pela cartilha do saudosismo ou pela do presen-
tismo cultural é dos acasos mais enfadonhos da vida em sociedade. Tendo
experienciado a efervescência dos anos 60 em São Paulo, onde se graduara
e obtivera o mestrado em filosofia [sob a orientação de Oswaldo Porchat],
e residido vários anos na Inglaterra, nos 80, onde se doutorara no “King’s
College”, Trajano não só não ficava preso a um momento “seu”, como tam-
pouco fazia do tempo o veículo no qual se deslocasse como espectador.
Soberano sem soberba, tanto era moldado pelas circunstâncias que irre-
mediavelmente o afetavam, quanto as moldava com obstinada paciência,
convincente argumentação.
Com ele, Filosofia e “Filosofia” só tiveram a ganhar. Já o “Dfil”, pa-
dece na orfandade.
44
Artigos
47
O expressivismo metaético e
alguns de seus problemas
Idia Laura FERREIRA 1
A tarefa da metaética é, em seu sentido mais geral, explicar a ex-
periência da moralidade. Tal experiência, o pensamento e a prática da
moralidade têm por características alguns aspectos centrais: o pensa-
mento moral parece ser caracterizado por estados mentais identificados a
crenças, ou seja, quando estamos envolvidos em demandas morais o que
parece estar em jogo são demandas objetivas que não dependem de nos-
sos interesses pessoais, cuja verdade/falsidade pode ser comprovada no
mundo; e a prática da moralidade está imbuída de demandas subjetivas,
Centro de Ética e Filosofia da Mente/Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ/Rio de Janeiro/RJ/
Brasil/ilfe64@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p47-58
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
48
ou seja, que envolvem nossas emoções e desejos, e essas demandas são
intrinsecamente motivadoras.
Em termos próprios, em uma descrição geral, a moralidade faz uso
de uma linguagem proposicional cuja semântica denuncia pretensões à ob-
jetividade e, fenomenologicamente, sentimos reconhecer uma autoridade
que se sobrepõe a nós ou a nossa subjetividade e, ao mesmo tempo, reco-
nhecemos um aspecto pró-ativo nas demandas caracteristicamente morais.
Os teóricos da metaética têm-se desdobrado para explicar, sem prejuízo da
fenomenologia ou de nossas intuições mais arraigadas, os aspectos meta-
físicos, semânticos e epistemológicos que caracterizam a moralidade. Por
metodologia iniciarei nomeando com o termo geral “não-cognitivista” as
teorias irrealistas/expressivistas, o que significa que estamos, em primeiro
lugar, falando de teorias que afirmam que o estado mental associado ao
pensamento e expressão morais é um estado diferente de crenças.
Por fornecer uma explicação irrealista ou não representacionista da
moral, o não-cognitivista (expressivista/quasi-realista) precisa fornecer, so-
bretudo, uma explicação epistemológica, metafísica e semântica do dis-
curso moral. Por exemplo, fornecer uma explicação alternativa ao paradig-
ma da semântica de condições de verdade, lidar com a fenomenologia da
normatividade na questão dos valores, explicar a metafísica envolvida nos
juízos morais e assim por diante.
Por definição, o não-cognitivista está comprometido com o pon-
to de vista de que uma descrição completa do que existe no mundo não
mencionaria qualquer propriedade valorativa. Para afirmar que somente
certas coisas e propriedades figuram na reconstrução completa da realidade
é preciso ter um modo de determinar o que incide em qual lado da divi-
são entre aparência e realidade. O não-cognitivista, por isso, deve prover
alguma explicação baseada em princípios do que figuraria nessa explicação
completa da natureza da realidade e o que seria excluído. Uma das ques-
tões prementes na explicação da moralidade é o entendimento da natureza
e origem dos juízos normativos, e nesta questão o naturalismo é a visão
adotada pelas principais teorias metaéticas. E embora afirmem que juízos
morais não expressam crenças, as teorias não-cognitivistas mais sofisticadas
assumem a prescritividade objetiva da moral, a exemplo do quasi-realismo
Amizade e Sabedoria
49
de Blackburn, (assim como a teoria do erro de Mackie, que é irrealista
ontológica). De fato, a metaética inicialmente pode ser sistematizada por
quatro linhas de abordagem epistemológica que têm teorias atreladas que
podem ser chamadas de realistas ou irrealistas acerca da moralidade. O
não-naturalismo e o naturalismo são entendidos como teorias realistas, ao
passo que o ficcionalismo (descendente da teoria do erro) e o expressivismo
são irrealistas. Mas essa classificação funciona para teorias anteriores ao
quasi-realismo, como veremos.
Na questão semântica, tendo rejeitado a ideia da realidade moral, de
verdade moral e de fatos morais, o não-cognitivista sustenta também que
proferimentos morais não podem ser enunciados, ou não são meramente
enunciados. Ele precisa, então, oferecer uma reconstrução positiva da fun-
ção da linguagem moral. Nesta reconstrução, a divisão fato e valor encon-
tra sua expressão linguística em uma distinção entre dois tipos diferentes
de proferimento ou ato de fala: descrever e valorar. O primeiro está ligado
à noção de um enunciado. Desse modo, ao descrever algo declaro como
as coisas são (sendo assim, um enunciado é a expressão natural de uma
crença). Ao valorar, damos expressão não às nossas crenças, mas às nossas
atitudes: valorar algo é avaliar isso favorável ou desfavoravelmente, não
estamos simplesmente descrevendo os fatos, mas reagindo a eles. O propó-
sito da valoração parece ser prover orientação sobre o que escolher e está
intimamente relacionado com aconselhar ou ordenar, ou seja, prescrever
algum curso de ação. Esta ideia traduz perfeitamente o que a moralidade
parece fazer.
Como sabemos, teorias semânticas referencialistas contam com a
semântica de condições de verdade para explicar o significado de qual-
quer termo na linguagem natural. As teorias expressivistas precisam de-
senvolver uma semântica que dê conta do significado não só dos termos
morais, mas também dos termos não morais, já que a semântica para
ambos deve ser a mesma. A semântica expressivista enfrenta o que al-
guns autores denominam o desafio da diferenciação, para explicar, dentre
outros, a inconsistência na ausência de condições de verdade em casos
paradigmáticos como o da negação.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
50
O principal desafio para a semântica expressivista é aquele que se
convencionou chamar de “o problema Frege-Geach”. Para alguns críticos,
a objeção Frege-Geach é essencialmente uma objeção sobre a impossibi-
lidade da semântica expressivista de ter indicadores de força no escopo
de conectivos sentenciais. E o problema geral para os expressivistas é que
termos normativos e conectivos sentenciais podem ocorrer no âmbito uns
dos outros. Portanto, eles, os expressivistas, têm de mostrar como isso é
possível, preservando os vínculos (entailments) intuitivamente óbvios, que
diferem de acordo com a ordem de escopo. A semântica deve capturar
corretamente a variação dos âmbitos que são possíveis quando conectivos
interagem com termos normativos. Isso sem falar nas ocorrências mistas
em sentenças complexas, de sentenças que misturam termos normativos e
termos factuais. Trocando em miúdos, a semântica expressivista enfrenta o
que alguns autores denominam o desafio da diferenciação, para explicar, por
exemplo, a inconsistência na ausência de condições de verdade em casos
paradigmáticos como o da negação. Para ilustrar tomemos o argumento:
(1) Matar é errado
é inconsistente com
(2) Matar não é errado
Mas como diferenciar este de
(3) Não matar é errado.
O problema se resume na dificuldade, para a explicação do expres-
sivismo, de dar conta do fato de que os termos normativos possuem, por
vezes, um escopo subordinado. Isto é, em (2) a negação tem escopo amplo
e o predicado ‘errado’ um escopo estreito. Em (3) ocorre o inverso. A ques-
tão direcionada ao expressivismo é como ele pode fornecer um significado
de (2) e depois distingui-lo de (3), ou seja, uma explicação de como termos
normativos podem ocorrer dentro do escopo relevante do operador— uma
explicação que distingue esse caso do caso em que o operador ocorre su-
bordinadamente. Esta é apenas uma das ressalvas à semântica expressivista,
para cada um dos conectivos sentenciais lógicos há ressalvas relevantes.
Amizade e Sabedoria
51
Nenhuma resposta expressivista até agora parece oferecer uma aplicação
válida para o Modus Ponens em nenhum dos casos. Muito se pode dizer
sobre o problema da semântica expressivista, e, de fato, esta é a mais difí-
cil questão que envolve a noção não-cognitivista/expressivista. Mas não é
apenas na semântica que as teorias expressivistas encontram dificuldades.
Uma solução simples apresentada pelo não-cognitivista para expli-
car o uso que fazemos quando falamos de opiniões morais como sendo
verdadeiras ou falsas, ou seja, uma forma de legitimar o nosso discurso co-
mum é: responder ao que alguém diz afirmando “Isso é verdade” tem uma
função realista (prática) de exprimir anuência com o falante. Isso é válido
tanto quando o falante está exprimindo uma crença como quando exprime
uma atitude. Assim, exprimir anuência em atitude é uma forma de falar
de atitudes morais como sendo verdadeiras ou falsas. Ao fazer uso dessas
expressões, estamos exprimindo nosso assentimento ou rejeição sobre as
atitudes em questão.
São platitudes para o expressivista que proferir um juízo de valor é,
além de realizar um enunciado, exprimir aprovação ou desaprovação. O
expressivismo não está comprometido com o ponto de vista de que, desde
que um proferimento moral exprima uma atitude, ele não pode exprimir
uma crença. Ele pode fazer ambos. O que distingue um juízo puramente
factual de um juízo de valor é que o primeiro é somente uma crença, ao
passo que o último envolve sustentar uma atitude assim como ter uma
crença. Expressivistas afirmam que existe uma conexão entre sua teoria,
segundo a qual termos valorativos têm um tipo especial de significado e seu
ceticismo sobre a possibilidade de se justificar um ponto de vista avaliativo.
Além disso, segundo a ‘Lei de Hume2, nenhuma classe de premissas factu-
ais pode acarretar uma conclusão valorativa.
Outra platitude aventada pelo expressivismo é que uma relação de
acarretamento (quando a aceitação de uma premissa depende de outra)
entre duas proposições é frequentemente tida como repousando no sig-
A Lei de Hume afirma que não se pode derivar um “deve” de um “é”. A propósito da prática comum,
especialmente em escritos morais, de fazer a transição automática de declarações afirmativas do tipo “é”
para fórmulas do tipo “deve ser” e “não deve ser”, onde estas últimas expressam novas relações que precisam
ser explicadas e não tomadas como implicações, Hume exige a apresentação de uma razão para esta nova
relação deduzida entre coisas inteiramente diferentes entre si.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
52
nificado. Desde que isso se dê, o expressivista pode usar a divisão entre
significado descritivo e significado valorativo para explicar e justificar sua
afirmação de que existe um abismo, o qual nenhuma relação de acarre-
tamento pode jamais fechar. No caso de um argumento com premissas
factuais e uma conclusão valorativa, as premissas somente terão significado
descritivo, mas a conclusão, além do significado descritivo, terá também
significado valorativo. A alegação de que existe um abismo entre fato e va-
lor revela-se como sendo o reflexo, em termos de lógica, da alegação de que
aceitar uma classe de crenças não obriga o indivíduo a assumir qualquer
atitude particular.
A reconstrução expressivista da linguagem moral reforça a negação
de que possa haver verdade moral: se avaliar é pensado como sendo mais
proximamente relacionado com ordenar ou aconselhar do que com enun-
ciar ou descrever, então há razões adicionais para dizer que a teoria não
deixa espaço para a verdade moral. Um enunciado ou descrição é sempre
avaliável na dimensão do verdadeiro ou falso. Se um proferimento não
pode ter um valor de verdade, ele não é um enunciado.
A teoria semântica adotada em qualquer visão que se proponha a
explicar a moralidade (na forma de seus termos e expressões) fornece fer-
ramentas para explicação de significados, mas também impõe as limita-
ções inerentes à própria teoria. Teorias semânticas descritivas dizem ‘o que
os termos significam, no caso de teorias semânticas descritivas de termos
morais fornecem o significado dos termos morais. A visão realista da mo-
ralidade utiliza a teoria semântica descritiva que se apoia em condições
de verdade que tem como princípio que: “Uma teoria semântica descriti-
va precisa providenciar uma caracterização recursiva e composicional dos
valores para sentenças o qual determina as condições de verdade de cada
sentença” (Schroeder, 2008).
Teorias expressivistas, por outro lado, pregam que uma teoria semântica
descritiva adequada não precisa de maneira nenhuma determinar condições
de verdade, precisa apenas associar recursivamente e composicionalmente
cada sentença ‘P’ a um estado mental—intuitivamente, àquele estado que
se constitui o que é pensar que P. Neste sentido, o expressivismo está mais
interessado em dizer ‘por que’ os termos significam o que significam. Este
Amizade e Sabedoria
53
é um aspecto meta-semântico dos termos morais, especificamente. Como
vimos anteriormente, para o expressivismo (não-cognitivismo), o estado
mental expresso por uma sentença moral não é uma crença, mas sim um
desejo (ou qualquer estado desire-like).
Na teoria semântica adotada pelo não-cognitivismo tradicional e
herdada pelas teorias mais sofisticadas até o expressivismo, o significado
dos termos e sentenças morais é dado pelos contextos de condições de uso.
Quando o expressivismo afirma que o significado da linguagem mo-
ral, tal como a utilizamos, não se apoia em condições de verdade porque
seus termos e sentenças não expressam crenças, ele está se comprometendo
em fornecer ‘como’ os termos morais podem ter um significado diferente
dos termos não morais, se, de fato, eles não parecem ser em nada diferen-
tes, já que aparecem em enunciados exatamente da mesma forma que os
termos não morais. O problema Frege-Geach para o não-cognitivista é o
problema de como pode ser isso—como palavras morais podem ter signifi-
cados que se comportam tais como os significados de palavras não morais,
em termos de sua contribuição para o significado de sentenças complexas
nas quais elas aparecem, se elas realmente têm, subsumidamente, um tipo
muito diferente de significado.
A empreitada puramente irrealista do expressivismo da explicação da
moralidade acarreta um crescendo de problemas que culmina com a desca-
racterização do próprio objeto da explicação, no caso a linguagem natural.
Por outro lado, se o não-cognitivismo não deseja arcar com os
problemas advindos do distanciamento artificial da linguagem que re-
almente falamos para desenvolver uma semântica totalmente não des-
critivista, ele teria que se aproximar do realismo para acomodar seus
significados e semântica.
Uma teoria expressivista que se destaca, sobretudo por ter como au-
tor Simon Blackburn, é a chamada Quasi-Realismo, nomeada assim por
tentar adicionar as intuições do realismo à visão expressivista para contor-
nar os ônus que o irrealismo enfrenta ao tentar negá-las. Um desses ônus é
abrir mão de uma intuição arraigada que sustenta o realismo de que juízos
normativos são prescritivamente objetivos. Irrealistas ontológicos como
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
54
Mackie admitem que não reconhecer esse aspecto da moralidade significa
não assumir a moralidade como de fato ela é.
O quasi-realismo é entendido como uma teoria expressivista que
pretende compatibilizar um entendimento naturalista acerca da nature-
za e origens dos juízos morais (normativos) eliminando destes qualquer
mistério metafísico ou epistemológico com a afirmação sobre a chamada
“independência da mente sobre valores”, ou seja, a ideia de que é verdade
independentemente de nós, ou de nossas atitudes, avaliações morais como
a condenação da crueldade, por exemplo. Mas compatibilizar esses dois as-
pectos não é tarefa simples (como vimos naturalismo e irrealismo aparente-
mente estão em campos diferentes), embora seu sucesso possa representar
um avanço para o irrealismo.
O quasi-realismo fornece uma compreensão minimalista sobre fato e
verdade para poder continuar falando sobre verdade ou falsidade normati-
va, sobre a existência de fatos normativos independentes etc., qualificando
o expressivista a falar nos mesmos termos que o realista. Como isso se dá:
O antirrealismo de Blackburn no quasi-realismo está alinhado com
o naturalismo na afirmação de um mundo físico com causas e efeitos
cientificamente explicáveis e negando a existência de propriedades mo-
rais com características tão estranhas que as distingue de qualquer outra
coisa no universo.
O diferencial da proposta quasi-realista é que ela, ao modo de
Mackie, não acompanha o irrealismo em todos os sentidos, de modo a
preservar algumas características do realismo moral—a saber, a autoridade
que as crenças morais têm a reputação de possuir. Sob muitos paradigmas
de teorias realistas, essa autoridade está depositada nas crenças morais—e
nos juízos morais feitos a partir delas—porque sua verdade depende
de fatos morais sobre o mundo e não sobre a mente daquele que pos-
sui essas crenças. A verdade de nossas crenças morais são supostamente
mind-independent”.
O antirrealismo é uma ameaça à autoridade moral na postulação de
que nossas crenças morais são, de fato, expressões de atitudes não cogni-
tivas, acabando com a questão da verdade moral ao mesmo tempo. Mas,
Amizade e Sabedoria
55
para preservar a autoridade moral, o quasi-realismo tem de superar o obs-
táculo que representa a característica independente da mente da verdade de
nossas crenças morais, e o obstáculo de incorporar na linguagem a expres-
são de atitudes não cognitivas quando o uso da linguagem moral parece
mostrar o contrário. Esse segundo obstáculo é conhecido como Embedding
Problem, e se trata da questão semântica.
Para fazer frente ao obstáculo representado pela característica inde-
pendente da mente, Blackburn argumenta que só é preciso fornecer uma
teoria minimalista sobre a verdade, e não argumentar sobre as noções do
realismo moral, e a esta teoria minimalista da verdade conjugar um requi-
sito de consistência para atitudes. “Properties are the semantic shadows
of predicates, and a supervening judgement, whose use of predicates is
protected by quasi-realism, may be cited by way of explaining all kinds
of things.” (Blackburn, 1993, p. 8). Não é uma proposta modesta como
necessidade argumentativa, como ele mesmo reconhece, mas busca ser fiel
ao que, para Blackburn, realmente conta para a teoria que propõe, que é
a explicação do próprio pensamento moral, ou, mais precisamente, algo
que ajude a compreender o papel e o tipo de juízo que está operando na
expressão da moralidade.
Tendo raízes no emotivismo (das primeiras versões do não-cogniti-
vismo), o quasi-realismo de Blackburn mantém deste que, a despeito de
sua aparência realista, nossa semântica moral carece de referências das pro-
priedades morais porque tais referências não existem para serem referidas
por nossa semântica. Ao invés disso, nossos proferimentos são projeções
de nossos próprios sentimentos e complexos desses sentimentos para o
mundo. Se reconhecendo, porém, um naturalista na metafísica, ele busca
construir uma teoria moral que se ajuste a ideia de que “o mundo físico é
tudo que é o caso”. O que significa, dizer que, tal como o quadro fisicista
vê o ser humano, ele rejeita qualquer apelo a uma ordem supranatural.
Tendo isto em mente, parece surpreendente que o caminho que
Blackburn elege para providenciar uma noção de verdade para nossos juí-
zos morais com a autoridade apresentada pela independência da mente seja
combinar duas alegações—que juízos morais expressam atitudes morais
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
56
não-cognitivas, e que nós podemos ainda pensar nessas expressões morais
como verdadeiras ou falsas em um modo dependente da mente.
A necessidade de fugir do espectro do subjetivismo moral é a prin-
cipal motivação por trás desta escolha. Blackburn quer preservar para sua
teoria a possibilidade de desacordo em disputas morais, que é o principal
trunfo do realismo que, por sua vez, está apoiado na maneira como nós
mesmos nos vemos e à moralidade.
Certamente providenciar uma noção de verdade moral que preserve
sua prescritividade, mantendo a bivalência, mas, ao mesmo tempo, ne-
gando teorias correspondentistas não é tarefa fácil, por tudo que foi visto
até agora. Mas, para Blackburn, isto é importante para o quasi-realismo
porque representa evitar o subjetivismo, o emotivismo e não se alinhar ao
expressivismo, que afinal de contas é correspondentista no sentido de que
ele adota a verdade do juízo moral que seria correspondente a atitudes não
cognitivas, cuja verdade neste caso é supostamente dependente da mente.
Essas pretensões de Blackburn para sua teoria, independentemente
da forma como ele argumenta a seu favor, o compromete com implica-
ções em diversas direções. Uma delas, apontada por David Lewis (2005) e
que alinha o quasi-realismo ao ficcionalismo moral, advém de uma delas.
Para assegurar a bivalência para as atitudes morais, a teoria da verdade de
Blackburn terá de permitir que atitudes morais sejam tratadas como se elas
fossem mais amplamente bivalentes, ou seja, bivalentes no sentido de que
não dependa da mente da pessoa com essa atitude o que elas sejam de fato.
Ou, ao menos, mostrar como uma bivalência ampla realmente se reverta
para aquelas atitudes. A teoria de Blackburn é conservativa na medida em
que se reconhece construtivista. Ela está em oposição direta a uma visão re-
volucionária. Todo seu esforço se dirige justamente a explicar a linguagem
tal qual ela realmente aparece em nosso uso.
Ao imitar o realismo na adoção de sua premissa mais forte, de verda-
de normativa independente da mente, o quasi-realismo também se coloca
à mercê das críticas dirigidas ao próprio realismo. Como o realista, ele
também deve mostrar como capturar o pensamento e a fala sobre verdades
normativas independentes, por exemplo, quando um agente diz que exis-
tem verdades normativas independentes, e isso é entendido como uma lista
Amizade e Sabedoria
57
de afirmações substantivas do tipo: ‘é uma verdade normativa indepen-
dente que chutar cães por diversão é errado’. Seguindo este entendimento,
quando esse agente diz: ‘existem verdades normativas independentes’, ele
está expressando sua intenção de não chutar cães por diversão (mesmo
para contingências nas quais ela e outros ‘aprovariam’ essa diversão). Mas o
que garante que outro agente que concorda que existem verdades normati-
vas independentes não diria: ‘é uma verdade normativa independente que
chutar cães por diversão é moralmente permitido’?
Se o quasi-realismo tem sucesso no seu projeto de imitar o realismo,
então ele deve ser capaz de capturar a ideia de que quando um agente diz:
existem verdades normativas independentes’ e outro agente diz a mesma
sentença, eles estão concordando em alguma coisa. Mas isso não pode ser
assim, se cada um dos agentes estiver meramente afirmando o equivalente
à sua própria lista sobre o que são essas verdades. Para acomodar a ideia
de que esses agentes estão concordando, é preciso que o quasi-realista deva
admitir como inteligível algo como: ‘falar sobre verdade normativa inde-
pendente como tal’, ou seja, falar o que não pressupõe nada substantivo
sobre o que é a verdade normativa independente em questão.
Mas quando isso é feito, a porta estará aberta para levantar as habi-
tuais questões sobre como é que nossas atitudes normativas acabam acer-
tando essas verdades. Se planejamos fazer x mesmo para contingências hi-
potéticas as quais nós mesmos e outros planejamos fazer algo inteiramente
diferente, então podemos perguntar (de nossos pontos de vista como par-
ticipantes no discurso normativo e colocando entre parênteses nossa visão
específica sobre o que x é) como sabemos que não estamos na verdade em
uma dessas contingências hipotéticas na qual estamos planejando fazer a
coisa errada.
Parece, por tudo isso, que a adoção da estratégia da imitação do
realismo é questionável tanto no caso de seu sucesso quanto no caso de
seu insucesso. No primeiro caso, restaria saber como distinguir as duas, e,
no segundo, essa posição falha sob sua própria ótica ao não alcançar seu
principal objetivo.
Ao sugerir o quasi-realismo, Blackburn tem de lidar com a discussão
sobre valores, que, ao contrário do que possa ser afirmado, está longe de
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
58
ser resolvida— porque adotar, afinal, como nos alerta Street, a visão de
que valores são independentes da mente, se mais coerente seria adotar o
oposto: que valores são dependentes da mente, projetados sobre o mundo
por criaturas que fazem juízos valorativos? Sob este ponto de vista, o quasi-
-realismo está sujeito à crítica de, por um lado, querer adotar as vantagens
do realismo sem os seus ônus e, por outro, não ser irrealista o suficiente
quando não consegue se distinguir do realismo em seus próprios termos.
A teoria quasi-realista, sob essa perspectiva, cria uma zona nebulosa onde
não fica clara a vantagem de se manter o expressivismo quando se trata de
explicar, na teoria normativa, quando valores dependem de atitudes valo-
rativas ao final e ao cabo.
Referências
BLACKBURN, S. Essays in Quasi-Realism. Oxford: Oxford University Press, 1993.
MACKIE, J. Ethics: inventing right and wrong. London: Penguin, 1974.
NOLAN, D. David Lewis. Chesham: Acumen, 2005.
RIDGE, M. Impassioned Belief. Oxford: Oxford University Press, 2014.
SMITH, M. e Moral Problem. Hoboken: Blackwell Publishing, 1994.
SCHROEDER, M. Being For: evaluating the semantic program of expressivism.
Oxford: Oxford University Press, 2008.
STREET, S. Mind-independence without the mystery: why quasi-realists cant have it
both ways. In: SHAFER-LANDAU, Russ (ed.). Oxford Studies in Metaethics. Oxford:
Clarendon Press, 2011. v. 6. p. 1-32.
59
A luta pelo direito ao losofar
no Brasil: contribuições do
lósofo Antonio Trajano
Menezes Arruda e de
possíveis losofares a partir
da realidade brasileira
Amanda Veloso GARCIA 1
Introdução
“Não se deixe dominar pela inércia do hábito
(Antonio Trajano Menezes Arruda, 2011, p. 18).
Desde os primeiros anos de graduação, o tema da filosofia no Brasil
sempre foi meu interesse de pesquisa. Tive a sorte de encontrar alguns
Docente EBTT na área de Filosofia do IFRJ/Pinheiral (RJ). Atuante no curso Técnico Integrado em Meio
Ambiente e na Pós-Graduação e Educação em Direitos Humanos. E-mail: amanda.garcia@ifrj.edu.br
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p59-90
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
60
docentes e estudantes que fomentaram espaços2 para que eu pudesse dar
vazão a estas questões acerca da filosofia no Brasil, haja vista que não temos
linhas de pesquisa nesse sentido em universidades brasileiras e muitas vezes
esta é vista como uma questão irrelevante. Um desses espaços eram as aulas
do Prof. Antonio Trajano Menezes Arruda, conhecido como Prof. Trajano.
Tive aulas com ele já no primeiro semestre, além da honra de fazer aulas de
tutoria com ele, disciplina existente devido a uma proposta dele. Havia fila
de espera para a tutoria com o Prof. Trajano, pois era a mais concorrida.
Nas aulas do Prof. Trajano, as questões que me incomodavam acerca da
Filosofia no Brasil, e que foram ganhando corpo no decorrer da minha for-
mação, eram acolhidas e debatidas. O próprio Prof. Trajano tinha interesse
sobre o tema e questionava o aspecto por vezes comentarista dos estudos
da área. Sem dúvida, minha filosofia autoral tem muito a ver com o que
aprendi com ele.
No primeiro ano de curso cheguei a pensar que havia escolhido o
curso errado, pois me sentia desqualificada para executar os trabalhos, es-
pecialmente no que diz respeito à leitura e à escrita de textos. Os textos
pareciam difíceis demais, a minha escrita parecia muito simples para o que
eu lia nos grandes clássicos que estavam sendo estudados nas disciplinas do
curso. Eu imaginava que seria desafiada a autonomia do pensamento, mas
o ambiente era muito mais voltado para a compreensão de filósofos consa-
grados da história. Com o passar dos meses esse desconforto começou a se
apresentar em forma de questões que fizeram com que me interessasse pela
filosofia no Brasil, suas vertentes e discussões, de certa forma para compre-
ender qual era meu lugar nessa história, como eu poderia executar a tarefa
da filosofia da melhor maneira possível. O espaço em que tais questões
mais se potencializaram inicialmente foram as aulas do Prof. Trajano; por
isso, digo que não desisti do curso graças a ele. Com a oportunidade de
debater tais questionamentos, pude perceber que aquela sensação de inade-
Entre tais espaços gostaria de ressaltar o ENFILO (Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de Filosofia)
e o GAEC (Grupo Acadêmico de Estudos Cognitivos), espaços nos quais os problemas é que guiavam as
análises. Além disso, foram fundamentais os espaços fomentados especialmente em torno da organização
dos Encontros de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP e os Encontros de Pesquisa na Pós-Graduação
em Filosofia da UNESP, nos quais os/as estudantes podiam defender um ponto de vista próprio sobre a
formação em Filosofia e isto sem dúvida era motor para pesquisas, grupos de estudos, diálogos, parcerias,
pautas nas reuniões, etc; espaços essenciais para minha formação enquanto pesquisadora e docente.
Amizade e Sabedoria
61
quação no curso era compartilhada por outras pessoas, inclusive docentes,
e que nada dizia especificamente sobre minha competência – que poderia
ser desqualificada ou não –, mas sobre um modo específico de fazer filoso-
fia, modo este do qual eu estava demasiado distante para o compreender.
Neste texto, pretendo abordar a questão “Existem filósofos/as/es no
Brasil?” a partir das minhas hipóteses de pesquisa voltadas desde 2010 para
este tema, em diálogo com os apontamentos do Prof. Trajano acerca da
Filosofia no país, já que ele foi fundamental para os meus estudos no tema.
Com este problema, tenho como objetivo refletir sobre as condições do
filosofar no território brasileiro. Defenderei que a luta pelo direito ao filo-
sofar nas universidades, travada constantemente pelo Prof. Trajano duran-
te o tempo em que tive convívio com ele, demanda refletir sobre aspectos
tanto da formação, quanto do ensino na área, seja na educação básica, seja
no ensino superior.
1. Panorama geral da filosofia no Brasil: existem filósofos/as/es no
Brasil?
Para responder à pergunta “Existem filósofos/as/es no Brasil?” ini-
ciarei por um panorama geral acerca das respostas mais recorrentes a esta
questão, trazendo algumas hipóteses de pesquisa, de modo a refletir sobre
o que envolve a legitimidade do filosofar no país.
Primeiramente, há que se destacar que, como afirma Gonçalo
Armijos Palácios (2004, p. 70) no livro De como fazer filosofia sem ser grego,
estar morto ou ser gênio: « Várias vezes tenho visto insinuar que para fazer
filosofia a pessoa tem de ser gênio. (Isto está implícito na menção dos
clássicos como gênios). Há inclusive um certo pudor nos que ostentam
um diploma em filosofia de chamar-se a si mesmo filósofos. “Não – dizem
–, eu sou ‘professor’ de filosofia” ». É um verdadeiro tabu se afirmar como
filósofo – e mais ainda como filósofa/e – no Brasil. Nesta seção, vou refletir
sobre alguns argumentos que tornam o ser filósofo/a/e um tabu por aqui.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
62
Aqui neste texto, a filosofia no Brasil não se resume à filosofia feita
por brasileiros/as/es. Isto porque existem grupos no Brasil que não se sentem
contemplados pela expressão “brasileiro”, o que se deve à relação que esta
tem com a colonização. O território em que estamos tem diversos povos
originários, anteriores à colonização, que não têm sua cidadania reconhecida
de fato como brasileiros/as/es, que é o que também ocorre com os povos em
diáspora africana. Também não se resume à filosofia que se faz no territó-
rio brasileiro, pois é possível fazer filosofia no Brasil, sendo brasileiro/a/e, e
ainda assim essa filosofia não ter reciprocidade com o contexto. Defendo a
expressão filosofia a partir do Brasil, isto é, uma filosofia que é consequência
da experiência de viver neste território, e que de alguma forma consiste na
prática da filosofia neste território, no envolvimento com seus problemas.
Nesse sentido, também pode contemplar uma possível filosofia para além do
Brasil, reflexo do contexto de Abya Yala e Améfrica Ladina.
Aqui, destacarei três principais posições possíveis no debate e algu-
mas de suas argumentações: posição A) Não existem filósofos/as/es no
Brasil; posição B) Existem, mas a filosofia produzida no Brasil não tem
uma identidade; posição C) Existem filósofos/as/es no Brasil, e a filosofia
no Brasil tem uma identidade.
1.1 Não existem filósofos/as/es no Brasil (posição A).
Entre os principais argumentos que acompanham a posição de que
não existem filósofos/as/es no Brasil está a ideia de que a filosofia tem
origem grega (argumento A1), já que a própria palavra é grega. Portanto,
nesse viés, se existem outras tradições do pensamento, devem ter outros
termos, e não reivindicarem serem chamadas de “filosofia”. Uma das for-
mas de expressar tal argumento se ancora na ideia de Heidegger de que a
Filosofia ocidental-europeia é uma tautologia.
A autodenominação é importante quando consiste em respeitar o
modo como cada povo se refere às suas próprias tradições, pois o processo
de tradução pode muitas vezes se pautar em percepções preconceituosas
Amizade e Sabedoria
63
sobre outras tradições. O problema desse argumento é que ele ignora os
processos de silenciamento/invisibilização de outras tradições do pensa-
mento. Muitas das coisas que entendemos como autoria europeia são rou-
bo de outras tradições do conhecimento, um processo de “extrativismo
epistêmico” (Grosfoguel, 2016):
Como consequência da construção racial moderna que faz do
homem europeu um ser racialmente superior aos demais, foram
construídas narrativas sobre a história da ciência nas quais foram
apagadas as contribuições das civilizações não ocidentais das quais
o Ocidente bebeu para produzir ciência e filosofia, gerando assim
o mito racial moderno de que a ciência tem origem nos homens
ocidentais. Por isso que celebramos Copérnico e esquecemos
Ibn al-Shatir, o cientista de Damasco que trezentos anos antes
desenvolveu os teoremas matemáticos precisos que o mesmo
Copérnico usava, ou Al-Biruni, o astrônomo muçulmano persa
que 600 anos antes já havia concebido a ideia de que a terra gira
em torno do sol e gira sobre seu eixo. O mesmo aconteceu com
a imprensa, que é atribuída a Gutenberg quando ela já existia
900 anos antes inventada pelos chineses. O mesmo ocorre com a
filosofia grega que chega à Europa através dos filósofos andaluzes
Averróis e Maimônides. Essa apropriação de conhecimento e
apagamento da memória histórica sobre as origens da filosofia e
da ciência moderna constituíram o projeto colonial/moderno de
extrativismo epistêmico” desde seus primeiros dias no final do
século XV até os dias atuais. É um processo extrativista colonial
que se repetirá nos próximos cinco séculos (Grosfoguel, 2016, p.
142, tradução nossa).
Muito do que aprendemos sobre a história dos conhecimentos hu-
manos tem iniciativas de invisibilização. A própria origem grega da filoso-
fia deve ser questionada, haja vista que é notável a anterioridade africana e
asiática em alguns pensamentos. Molefi Kete Asante, filósofo estaduniden-
se estudioso da afrocentricidade, aponta para a importância do senegalês
Cheikh Anta Diop em chamar a atenção para as contribuições africanas:
Ele foi capaz de demonstrar que a tentativa da Europa de tirar
pessoas negras para fora do Egito e o Egito para fora da África foi
o cerne da falsificação europeia das contribuições da África para a
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
64
história mundial. Sua principal argumentação era que os antigos
egípcios lançaram as bases da civilização africana e europeia e que
os antigos egípcios não eram nem árabes nem europeus, mas como
Diop diria “Negros Africanos” para enfatizar que não deveria
haver erro. Esses “Negros Africanos” do Vale do Nilo deram
ao mundo a astronomia, a geometria, o direito, a arquitetura,
a arte, a matemática, a medicina e a filosofia. O antigo termo
egípcio africano “seba” encontrado pela primeira vez em uma
inscrição no túmulo de Antef I de 2052 a.C. tinha como principal
significado no ciKam3, o “estilo de raciocínio do povo”. Era a fonte
da raiz “sophia” na palavra “filosofia” (Asante, 2016, p. 6).
Ademais, se considerarmos o próprio significado da palavra grega
(“amor à sabedoria), fica difícil afirmar uma nacionalidade única e exclu-
siva para todas as manifestações de tal tipo.
Outra argumentação que acompanha a posição de que não existem
filósofos/as/es no Brasil é a ideia de que a filosofia é universal; logo, não é
de nacionalidade alguma (argumento A2).
Não é raro que esta venha acompanhada de expressões equivalentes
em outras nacionalidades, como, por exemplo: “filosofia alemãetc., de
maneira que parece ser uma questão apenas no que diz respeito ao nosso
contexto nacional. O problema desse argumento é que costuma se ancorar
em uma filosofia que não se relaciona com o território, a qual, por exem-
plo, permite que um filósofo afirme verdades universais sobre o continente
africano e as pessoas africanas sem ao menos conhecer tal contexto, como
Hegel (1982, p. 279-283), que afirmou que o continente africano
[n]ão tem interesse histórico próprio, senão o de que os homens
vivem ali na barbárie e na selvageria, sem fornecer nenhum elemento
à civilização. Por mais que retrocedamos na história, acharemos que
a África está sempre fechada no contato com o resto do mundo, é
um Eldorado recolhido em si mesmo, é o país criança, envolvido na
escuridão da noite, aquém da luz da história consciente.
Nota do autor: “Segundo Ama Mazama (2014), o ciKam constitui uma língua clássica africana, sendo a língua
do Kemet e, portanto, uma base importante para o estudo do pensamento africano” (Asante, 2016, p. 6).
Amizade e Sabedoria
65
É possível afirmar que mesmo que a filosofia se caracterize por um
pensamento universal, isto não quer dizer que a filosofia não se relacione
com o território, já que todo pensamento parte de uma geopolítica.
O terceiro argumento que acompanha esta posição é o de que falta
generalidade na filosofia feita a partir do Brasil (argumento A3), e, por isso,
não existem filósofos/as/es no país. O problema desse argumento é que ele
costuma se basear em incompreensões sobre o pensamento de outros povos
ou em uma concepção restrita de generalidade, como, por exemplo, enten-
der o pensamento hegemônico como universal e qualquer outro como parti-
cular, quando na verdade todos emergem de um contexto específico. Muitas
vezes, o que nos impede de ver a generalidade de outros pensamentos é que
não conseguimos entendê-los de fato a partir de seu próprio contexto.
Há um exemplo escrito por Marilena Chauí (1997, p. 20), no qual
ela afirma que a filosofia “entendida como aspiração ao conhecimento ra-
cional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e
causas do mundo e de suas transformações, da origem e causas das ações
humanas e do próprio pensamento, é um fato tipicamente grego”. Para ela,
ainda que povos não ocidentais – chineses, hindus, japoneses, árabes, per-
sas, hebreus, africanos, ameríndios – tivessem desenvolvido elaboradas for-
mas de conhecimento sobre a natureza, no entendimento de Chauí (1997,
p. 21) a filosofia é um “fato grego” por apresentar características distintas
daquelas utilizadas por outros povos, como, por exemplo, atingir um “grau
de generalidade elevado”. Para Chauí (1997, p. 20-21), o pensamento chi-
nês acerca do Yin/Yang se encontra restrito no seu grau de generalidade
por se pautar na oposição masculino/feminino para entender o Universo,
enquanto, por outro lado, o pensamento pitagórico, legítima Filosofia,
entende os opostos sob aspectos matemáticos atingindo um grau maior
de generalidade. Entretanto, um estudo mais cuidadoso do pensamento
chinês permite a compreensão de que o Yin/Yang não se reduz à tensão
entre masculino/feminino; esta é apenas uma faceta do que representa o
Yin/Yang, o que pode indicar um entendimento eurocêntrico e patriarcal
das categorias chinesas. Isto acontece muito quando se pensa a filosofia no
Brasil, olhando para outras tradições do pensamento com categorias euro-
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
66
peias/ocidentais. Tal forma de pensar aparece no Brasil como maneira de
deslegitimar filosofias ameríndias ou afro-brasileiras.
O quarto argumento que aparece associado a esta posição afirma
que não há filosofia no Brasil porque só existe história da filosofia ou co-
mentário (argumento A4). Uma faceta disso é a reflexão de Paulo Arantes
em Um Departamento francês de Ultramar (1994), livro no qual ele reflete
sobre o método estruturalista implantado por professores franceses no iní-
cio do curso de Filosofia da USP, em 1934, marco da profissionalização
da área no país. Arantes entende que “aqui, em nosso Departamento (da
USP), a história da filosofia faz as vezes de filosofia” (Arantes, 1994, p. 135,
parêntese nosso).
Victor Goldschmidt (1970, p. 139), um dos docentes franceses em
questão, entende que há duas maneiras de interpretar um sistema filosófi-
co: método dogmático – que visa a entender um sistema através da busca
pela verdade, o que implica em procurar suas razões –, e o método gené-
tico – que tem como objetivo entender o sistema através da busca por sua
origem, levando em conta suas causas. Segundo o autor (Goldschmidt,
1970, p. 139), o “Primeiro método é eminentemente filosófico: ele aborda
uma doutrina conforme à intenção de seu autor e, até o fim, conserva, no
primeiro plano, o problema da verdade”. Para ele, por meio do método
dogmático, separamos o sistema filosófico de seu tempo histórico, de
modo a entendê-lo por sua própria coerência interna.
O convite a docentes franceses para a implementação de um curso
de filosofia na nascente Universidade de São Paulo foi consequência da as-
sociação da filosofia no Brasil ao autodidatismo ou com formados na área
do Direito, entre os quais predominavam ideários do ecletismo, do positi-
vismo, do neokantismo e da escolástica. Diante disso, não se considerava
que existissem pessoas aptas a lecionar, nem a filosofar.
Porém, é preciso ressaltar que a análise de Arantes, ao menos neste
período de escrita do livro, não estava bem colocada, haja vista que não
percebia como o método estruturalista não poderia ser entendido como
uma análise histórica. Isto porque consiste em analisar as estruturas in-
Amizade e Sabedoria
67
ternas do texto, sem considerar fatores externos à sua escrita, como, por
exemplo, fatores histórico-sociais, que podem enriquecer a compreensão.
O Prof. Trajano entendia a missão francesa na USP como um “pe-
cado originalda filosofia brasileira: “Pecado porque não vieram filósofos
para instaurar a investigação temática, e original, a deformação comenta-
rista/historiográfica foi se transmitindo de geração em geração até chegar
nos dias atuais” (Arruda, 2013, p. 14). Em entrevista à Revista Kíneses em
2013, ele comenta o quanto isto o fez desanimar da filosofia em alguns
momentos, e inclusive a ir estudar fora do Brasil.
Arruda distinguia a filosofia no Brasil em três modalidades exis-
tentes: a) História da filosofia, b) Comentário de filósofos, c) Filosofia
propriamente dita. A história da filosofia corresponderia a uma descrição
detalhada que visa a apontar a continuidade ou ruptura ocorrida no pen-
samento filosófico de diferentes períodos. Por sua vez, o comentário de
filósofo constitui-se da análise do pensamento ou de algum conceito es-
pecífico da obra de um filósofo. Por fim, para ele, a filosofia propriamente
dita é de cunho temático e não se restringe à reprodução do pensamento de
um filósofo ou período histórico; trata-se da criação de pensamento através
do contato com problemas. Arruda defendia uma formação não só para
o comentário, mas também para as outras duas áreas, especialmente para
formar aprendizes de filósofo:
[...] o departamento de Filosofia deve ter, de preferência,
profissionais nas três áreas, que atuem no sentido de ensinar e
formar comentadores, historiadores e filósofos. É preciso que seja
um curso que forme esses profissionais; se não der pra formar
os três, que forme pelo menos dois: aprendizes de filósofos e de
comentadores. Aprendiz de filósofo qualquer um de vocês tem
condição de ser, desde que você se aplique a um assunto que te
interesse de verdade, ou não vai funcionar. Mas só um filósofo, e
não um comentador, pode formar um aprendiz de filósofo. Aí sim
iremos ampliar o número de filósofos no Brasil, que trabalham com
temas (Arruda, 2013, p. 14-15).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
68
Sobre o Encontro da ANPOF realizado em Canela (RS) em 2008,
Arruda (2013, p.14, grifo nosso) observou:
Na universidade é quase inexistente essa possibilidade (de filosofar).
[...] No passado tem, têm alguns no momento, mas no âmbito dos
departamentos estaduais e federais é próximo de zero o filosofar.
Para comprovar isso basta abrir o caderno de resumos dos trabalhos
apresentados na XIII ANPOF, que aconteceu em Canela. Este
caderno tem por volta de 700 páginas, e por volta de 300 resumos.
Abra o caderno e veja se algum deles é filosófico no sentido que a
gente usa quando fala de filósofos. Talvez tenha, mas nessas 700
páginas vai ter, no máximo, dois resumos de cunho temático-
filosófico. Então, ele não foi um congresso de Filosofia, mas de
História da Filosofia.
Os Encontros da ANPOF, enquanto o evento mais importante na
pesquisa especializada em filosofia no Brasil, expressam em diversos âmbi-
tos a hegemonia do uso de comentário de filósofos, independentemente
de qual sejam os temas; outras formas de expressar pensamentos não são
consideradas filosóficas pela comunidade em geral. Apenas um exemplo:
não há estrutura para utilização de slides durante as apresentações, isto por-
que há um imaginário de que a apresentação filosófica consiste na leitura
de um texto previamente elaborado, o que vemos na quase totalidade dos
Grupos de Trabalho.
Palácios, que é docente da UFG, indica que:
[É] verdade que há lugares onde os estudantes são forçados a
admirar excessivamente a tradição e não se lhes permite ousar
afastar-se dela. Esse lugar é a academia. Vejamos só os títulos das
dissertações de graduação e pós-graduação: “O conceito de xxx
em YYY” etc. E o mesmo ocorre com os artigos e publicações
acadêmicos. Dessa forma, é o sentimento de inferioridade em
relação a filósofos gregos, medievais, modernos ou contemporâneos
que impede as novas gerações de filosofar, não a inferioridade da
língua em que falam.
Em suma, é o complexo de inferioridade de muitos professores
de filosofia que não querem ou não podem filosofar. A Capes, o
CNPq, o Ministérios da Educação, ou quem quer que detenha
Amizade e Sabedoria
69
a competência, deveriam proibir, na filosofia, os trabalhos
cuja intenção seja explicar para o mundo os significados de “O
conceito de xxx em ZZZ”. As prateleiras de todas as bibliotecas
universitárias estão lotadas com esses trabalhos. Eu queria ver se
alguém podia receber um doutorado em biologia com um trabalho
cujo tema fosse “O conceito de dor em Galeno” ou “A noção de
diarréia em Hipócrates”. Talvez isto tenha interesse histórico. Um
texto de história da medicina pode ter semelhante tema. E até
seria interessante. Mas não um trabalho de biologia, isto é, um
trabalho em que se discutam assuntos prementes para os biólogos
contemporâneos e, em decorrência disso para os seres humanos.
Devemos, portanto, redefinir o espírito dos Departamentos de
Filosofia. Ou fazemos história da filosofia, ou filosofia. Devemos
ter a coragem de mudar o nome do departamento para o de
“história” se nos sentimos incapazes de filosofar por conta própria
e se achamos que nossos alunos também o são - e sempre se pensa
que eles são (Palácios, 2004, p. 14-15).
Ele considera um retrocesso a maneira como o filosofar é restrita-
mente associado ao comentário de filósofo no Brasil, pois, como aponta,
em outras áreas ocorre de forma diferente, já que, por exemplo, “ninguém
é obrigado, em física, a conhecer física aristotélica para fazer física ou for-
mar-se como físico” (Palácios, 2004, p. 26); não há tabu nesse sentido em
outras áreas.
1.2 Existem filósofos/as/es, mas a filosofia no Brasil não tem uma
identidade (posição B).
A segunda posição que analisaremos é a de que existe sim filósofos/
as/es no Brasil, mas que a filosofia no país não tem uma identidade. Entre
os argumentos que acompanham esta posição, apontaremos inicialmente
a ideia de que a filosofia no Brasil ainda é “iniciante” (argumento B1);
por isso, precisamos estudar a tradição filosófica ocidental, exclusivamente
pautada na filosofia europeia. Existem diversos exemplos desse pensamen-
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
70
to na literatura. Em escrito de 1888, Tobias Barreto (1990, p. 237 - 238,
240, grifo nosso) afirmava:
Não há domínio algum da atividade intelectual em que o espírito
brasileiro se mostre tão acanhado, tão frívolo e infecundo como
no domínio filosófico. [...] Se nas outras esferas do pensamento,
somos uma espécie de antropóides literários, meio-homens e meio-
macacos, sem caráter próprio, sem expressão, sem originalidade –
no distrito filosófico é ainda pior o nosso papel: não ocupamos
lugar algum; não temos direito a uma classificação. [...] o Brasil não
tem cabeça filosófica.
Em 1899, Farias Brito apontava: “Uma civilização que começa não
pode competir com civilizações já amadurecidas na luta... Para a elabora-
ção de grandes construções filosóficas, originais e fecundas, é indispensável
o concurso do tempo” (Farias Brito, 1899, p. 307). Vale ressaltar que só
é possível afirmar a suposta “imaturidade” do pensamento brasileiro se se
tomar como parâmetro a colonização, pois já existiam povos vivendo nesse
território quando os europeus chegaram, e considerar o início da história
do território como a chegada dos colonizadores é obviamente um equívoco.
Encontramos também argumentos que defendem que o povo brasi-
leiro tem seu pensamento reduzido aos aspectos da realidade prática, e, por
isso, como afirma João Ribeiro em 1917:
Não está no temperamento nem nas virtudes de nossa raça o culto
da philosophia. Entre nós, um philosopho seria coisa anomala, sem
antecedencias normaes, a classificar entre os productos teratologicos
da espécie. Não se comprehende, de facto, que surja um indivíduo,
integralmente composto, fóra da tradição, do habitalismo ou da
historia de nossas gentes. Portugal, nem o Brasil, jamais contribuiu
para as investigações transcendentes. E, seja curteza de vista ou
repugnância natural, não ha raça mais refractaria á metaphysica
que a nossa. O nosso idealismo não se alonga muito da terra, nem
vae além dos mais próximos planetas; e, fóra da poesia condoreira
e do gongorismo dos epithetos, ninguém se preocupa do infinito.
[...] Não temos, pois, propriamente nenhum philosopho (Ribeiro,
1917, p. 2).
Amizade e Sabedoria
71
O argumento B1 costuma aparecer de duas formas. Por um lado,
aparece sob um viés colonizado, como reprodução da ideologia hegemô-
nica da Europa como progresso da humanidade. Por outro lado, em um
viés racista por meio da ideia de que o povo brasileiro é emocional, e/ou
não tem pensamento sistemático, e/ou não tem habilidade para a meta-
física, o que às vezes aparece associado à herança da miscigenação, entre
outras possibilidades.
O segundo argumento que destacaremos é de que existe filosofia no
Brasil, mas que esta é justamente o comentário de filósofo (argumento
B2), pois, ao contrário da discussão que trouxemos na posição 1, parte-se
da compreensão de que esta forma de analisar texto é de fato filosófica em
si. Em nosso ponto de vista, isso expressa uma forma de reducionismo da
filosofia feita a partir do Brasil. Precisamos nos perguntar: Onde estamos
procurando a filosofia brasileira? Quais são os parâmetros e categorias? Tais
questões são importantes porque vemos na literatura exemplos de autores
que procuram a filosofia no período colonial – como Paulo Margutti –, pe-
ríodo de explícito epistemicídio do pensamento do território; ou apontam
para o ecletismo francês predominante na produção brasileira do século
XIX – como Júlio Canhada –, ou vemos autores que só consideram procu-
rar a filosofia na profissionalização da área, desconsiderando qualquer ou-
tra manifestação anterior ou externa às universidades, vistas sempre como
autodidatistas e desqualificadas.
1.3 Existem filósofos/as/es no Brasil, e a filosofia no Brasil tem uma
identidade (posição C).
A terceira posição consiste em afirmar que existem filósofos/as/es no
Brasil. A primeira argumentação parte de associar exclusivamente a filoso-
fia no Brasil a algumas pessoas importantes da área (argumento C1). O
problema dessa argumentação é que reafirma a ideia de que filosofia só é
feita por alguns “gênios”, reproduzindo a ideia do ser filósofo como tabu.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
72
Outra argumentação comum é de que a filosofia no Brasil está rela-
cionada exclusivamente à filosofia profissional – especificamente feita por
doutores” – das universidades (argumento C2), já que se parte da ideia
de que esta precisa ter rigor, o que se consegue, por exemplo, através do
comentário de filósofo. No entanto, quando analisamos o que significa
ter rigor”, percebemos muitas vezes que em tal posição estão pressupostas
ideias racistas ou misóginas. Ademais, o mesmo rigor não é exigido quando
filósofos consagrados afirmam verdades universais sobre povos e contextos
que desconhecem.
Por fim, também é possível encontrar a existência da filosofia asso-
ciada à defesa de uma filosofia nacionalista ou estereotipada (argumento
C3). Isto explica o porquê da existência de uma tradição de estudos sobre
a filosofia brasileira associada a posições integralistas.
Entendo que mesmo que estas três argumentações defendam a exis-
tência da filosofia no Brasil, posição com a qual compactuo, não contri-
buem para a pluralidade do campo por se basearem em ideias restritas
sobre este filosofar ou outros povos/grupos sociais.
1.4 Afinal, existem filósofos/as/es aqui no Brasil?
Retomando a questão que dá título à seção, “Existem filósofos/as/
es aqui no Brasil?”, podemos dizer que sim. Primeiramente porque se
o filosofar consiste, mesmo na tradição ocidental hegemônica, em uma
forma de lidar com os problemas guiados/as/es pelo amor à sabedoria,
inegavelmente é feito pela humanidade em geral. No entanto, há que se
ressaltar que as universidades não necessariamente têm promovido espaço
profícuo para a proliferação dessa forma filosófica de se relacionar com os
problemas, devido a seu foco excessivo no uso do comentário de filósofos.
O mesmo vale para a filosofia ensinada na Educação Básica, que também
tem se dedicado à mesma tarefa de explicação de textos. Por isso, filosofias
a partir do Brasil raramente estão presentes na formação em Filosofia, seja
na licenciatura, seja no Bacharelado, assim como também não aparecem
Amizade e Sabedoria
73
na Educação Básica. Por exemplo, a brasileira Lélia Gonzalez, que tinha
formação em Filosofia, não faz parte do cânone dos cursos, ainda que os
conceitos e discussões produzidos por ela, aliás em grande quantidade de
produções, sejam altamente relevantes para o contexto dos problemas na-
cionais. Diante disso, é importante ressaltar que há um distanciamento dos
problemas, haja vista que fazemos comentário sobre autores. No máximo,
pensamos sobre os problemas colocados pelos filósofos do cânone.
O que o Prof. Trajano entendia como um pecado original da fi-
losofia no Brasil, prefiro entender nos termos de uma praga, até mesmo
para evitar um vocabulário que remete à religião hegemônica que tan-
ta violência promoveu em nosso território, embora essa associação faça
sentido uma vez que tal filosofia hegemônica também produz violência.
Minha preferência pelo uso do termo “praga” tem a ver com seus sen-
tidos e uso. Os seres que são vistos como “praga” pela monocultura de-
sempenham importantes funções para a vida existir nos diferentes solos
que compõem. A grande proliferação que vemos nas plantações é, na
verdade, o sinal de um desequilíbrio ecológico decorrente da alienação
dos seres de suas ecologias específicas e companheiros interespecíficos,
especialmente pela comercialização de réplicas/clones em viveiros indus-
triais que levam junto consigo fungos e bactérias para as quais os seres
de seus novos nichos ecológicos não têm resistência suficiente. Assim,
fungos sequestrados de seus nichos ecológicos podem gerar devastação
em outros contextos, prejudicando plantas nativas e outros seres vivos.
A partir desta perspectiva, entendo o comentário de filósofo como uma
praga na formação em filosofia no Brasil. Na história da filosofia profis-
sional do país, por sua relação com a colonialidade, incentivou-se extrair
filosofias de um contexto no qual existem relações intrínsecas sociais, in-
terespecíficas, cosmopolíticas, ignorando tais condições como determina
o método estruturalista, e aplicá-las em um contexto diverso em todos
os sentidos. Do mesmo modo como os fungos que são entendidos como
pragas, retirados de seus companheiros interespecíficos e colocados em
outro contexto, para o qual as relações cosmopolíticas não são as mesmas
que os impediam de proliferar. Nesse sentido, o comentário de filósofo se
tornou praga no contexto brasileiro, proliferou sem condição de controle
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
74
sobre suas implicações e alienado de seus problemas, pois na maioria das
vezes o que aprendemos a fazer nas graduações é ler quaisquer filosofias
de maneira alienada, desconsiderando seus determinantes sociais e po-
líticos, e também ignorando nossas próprias relações sociais e políticas.
2. Algumas hipóteses e desafios para a filosofia a partir do Brasil:
nós podemos filosofar?
A partir do panorama geral da seção anterior, quais são as condições
para o filosofar no Brasil? A fim de iniciar esta reflexão, trago o que afirmou
Júlio Canhada:
Ainda que seja comum um filósofo fazer terra arrasada de seus
predecessores, considerando que o início da filosofia coincide
exatamente com sua própria obra, no caso das histórias da filosofia no
Brasil o que ocorreu foi que, a cada vez, os historiadores consideraram
que o objeto de suas histórias, ou seja, as produções filosóficas
brasileiras, não eram dignas de serem efetivamente consideradas
filosofia. Esse procedimento um tanto paradoxal pode ser visto desde
o primeiro texto publicado sobre esse tema: A filosofia no Brasil, de
Sílvio Romero, lançado em 1878. Nele, o autor desqualifica a quase
totalidade das produções anteriores, em nome de uma perspectiva
histórico-filosófica evolutiva, a qual seria a única a tornar possível que
a filosofia finalmente começasse no Brasil. Outro texto com o mesmo
título – A filosofia no Brasil –, de autoria do padre Leonel Franca e
publicado em 1918, chega ao mesmo resultado valorativo, embora
por meios diferentes. Leonel Franca considera que o autodidatismo
e a ausência de tradição filosófica brasileira foram responsáveis pela
debilidade dos filósofos no país, de modo que apenas o neotomismo
seria a doutrina capaz de garantir um início sólido para a filosofia
no Brasil. João Cruz Costa, de sua parte, sobretudo em seu livro
Contribuição à história das ideias no Brasil (1956), afirma que o
Brasil, por sua origem colonial portuguesa, teria uma indelével
marca de origem que impediria a filosofia constituir-se, entre nós,
como especulação pura, e propõe que, em vez de filósofos, teríamos
filosofantes mais preocupados com a vida prática do que com o
mundo do pensamento.
Amizade e Sabedoria
75
Na linha dessa tradição historiográfica que venho recompondo,
cabe mencionar a obra de Antonio Paim, que publicou numerosa
produção a esse respeito. Seu livro História das ideias filosóficas no
Brasil (1967), embora pretenda interpretar as obras dos filósofos
brasileiros com neutralidade, acaba por desqualificá-las por meio
de uma comparação implícita com o cânone europeu: Paim não
encontra nas produções brasileiras que analisa uma “ universalidade
capaz de sustentá-las de forma autônoma, julgando que são, no
fundo, inconsistentes. Como último momento dessa sequência,
é interessante notar o modo como Paulo Arantes, em seu Um
departamento francês de ultramar (1994), repõe mais uma vez esse
juízo de desqualificação da filosofia no Brasil. Examinando o caso
específico da fundação e do estabelecimento do Departamento de
Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) em 1934, o autor,
crítico à herança francesa responsável pela implementação desse
curso de filosofia, tece-lhe no entanto elogios porque ela teria
contribuído para uma “disciplina do pensamento” que, por um lado,
livrava os brasileiros das pretensões filosóficas irresponsáveis dos
autores anteriores e, por outro, incutia naqueles que foram formados
no novo modelo uma autolimitação que restringia seu trabalho
ao comentário de textos filosóficos consagrados pela tradição. Tal
modelo para o trabalho com filosofia, embora de inegável qualidade,
teve como resultado secundário o apagamento de tradições filosóficas
pré-universitárias, ao tornar-se praticamente hegemônico nas
universidades brasileiras (Canhada, 2021, p. 14-15).
Canhada aponta que há uma tendência em se desqualificar a filo-
sofia feita no país. De certa forma, podemos associar essa tendência, por
um lado, à colonialidade, que produz um sentimento de inferioridade da
produção nacional ao mesmo tempo em que supervaloriza a produção es-
trangeira, especialmente de países europeus; enquanto, por outro lado, o
problema pode estar em adotar parâmetros estrangeiros para procurar a
filosofia no Brasil, o que também pode estar relacionado à colonialidade.
No meu processo de procurar a filosofia desde o Brasil, cheguei
a algumas hipóteses que têm a ver com onde eu a estava procurando.
Primeiramente considerei que o problema da ausência da filosofia pro-
priamente dita, nos termos do Prof. Trajano, nas universidades poderia ser
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
76
decorrência de como o currículo era pensado. Olhei para os autores que
compõem o currículo da formação em Filosofia, tanto no ensino superior,
quanto no ensino médio, entendendo este último como um reflexo do pri-
meiro. Como os currículos brasileiros das escolas e universidades se com-
põem majoritariamente de autores do sexo masculino, brancos, europeus,
é possível observar a relação entre tais currículos e a colonialidade e o pa-
triarcado. A primeira hipótese que trabalhei em minha pesquisa consistiu
em estabelecer relações entre os currículos de Filosofia e a permanência da
colonialidade na sociedade brasileira. Assim, podemos dizer que, no Brasil,
a colonialidade está no cerne da compreensão do que é filosofia.
Isso quer dizer que “Iremos derrubar as estátuas dos filósofos?”, ex-
pressão utilizada por Érico Andrade (2021) em texto publicado na coluna
ANPOF. Em geral, esta pergunta leva a resposta de que “Não devemos
jogar fora o bebê com a água do banho”. Tal frase aparece como forma de
afirmar que uma crítica necessária a esses filósofos não deve implicar na
eliminação deles do cânone. No seu texto, Andrade reflete:
Qual é o bebê? Qual é a água? Quem é que joga o bebê? Essas
questões orbitam em torno de um eixo comum, qual seja: há uma
definição implícita do que é filosofia e daquilo que na filosofia é, em
última análise, intocável do ponto de vista de sua função na história
da filosofia. [...] nós não apenas não estamos ainda dispostos a
abrir mãos (sic) dos clássicos como os defendemos sempre diante
de qualquer ataque, uma vez que se produz muito mais textos no
Brasil para defender os filósofos do que textos que radicalizem uma
reflexão sobre as bases filosóficas que conectam esses pensadores a
posições que hoje em dia dificilmente aceitamos. A radicalidade
que o pensamento pós-colonial nos aporta não deve se resumir a
reconhecer “contradições” nos filósofos chamados clássicos, mas
deve tocar mesma (sic) a noção de cânone e de clássico sem se
comprometer a priori com salvar ou condenar um pensador. O
pós-colonialismo não nos convida apenas a criticar a postura de
filósofos clássicos como se tudo tivesse, em última análise, que girar
em torno deles e os colocando sempre como centro da filosofia. A
sua maior contribuição é questionar a noção mesma de clássico.
A quê (sic) ela serve? Ou ainda: a quem ele serve? [...] Se não
iremos derrubar as estátuas dos filósofos, pelas mais variadas razões,
e que isso possa ser em alguma medida compreensível, que essa
Amizade e Sabedoria
77
nossa decisão não implique a impossibilidade das gerações futuras
colocarem no centro da filosofia quem sempre esteve fora até de sua
margem (Andrade, 2021).
As perguntas colocadas por Andrade no início desta citação são fun-
damentais. É preciso refletir para quem é possível ler afirmações misógi-
nas/racistas e continuar achando importante o que um determinado autor
diz? O racismo e a misoginia estrutural estão presentes, por exemplo, na
própria compreensão do que é um clássico, racionalidade, filosofia, teoria,
conhecimento válido, relevante, e inclusive na compreensão do que é de
fato ofensivo, pois as definições que damos para esses conceitos podem ser
implicitamente racistas e misóginos. Para além da dimensão explícita des-
sas violências, há uma dimensão estrutural da própria filosofia ao se basear
em conceitos que são etnocêntricos e excludentes, e, por vezes, racistas e
misóginos. É preciso perguntar: o que sobra de alguns autores se deles se
excluir a dimensão implícita do seu racismo/sexismo? Considerar o ra-
cismo/misoginia dos filósofos consagrados apenas um detalhe diz muito
sobre o paradigma sobre o qual a filosofia hegemônica vem se baseando.
Como é possível que o racismo/sexismo dos filósofos em seus textos tenha
sido ignorado ou insignificante? Insignificante para quem?
No entanto, investigando mais a fundo, comecei a entender que não
era uma questão sobre quais eram os/as autores/as, embora isso com cer-
teza faça diferença. Compreendi que mesmo diversificando os autores/as,
discutindo pensadores/as que fazem uma filosofia a partir do Brasil, não
necessariamente se caminha para uma filosofia propriamente dita, o que
me fez olhar para o método e sua relação com a colonialidade.
Minha segunda hipótese consistiu, então, em olhar para o proble-
ma do método único e sua relação com a colonialidade. Tal método está
ancorado em uma lógica ocidental-europeia, e, ainda que não necessa-
riamente impeça o filosofar, pode excluir outras possibilidades de pen-
samento-ação filosóficos. Qual lógica é esta? Uma filosofia centrada na
abstração, na escrita, que procura se desvincular do contexto e do corpo
– entendido modernamente como “enganador” –, caracterizada por um
monólogo interior”. Por isso, comecei a procurar a filosofia encapsulada
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
78
no corpo, gestos, na ação, pinturas, intervenções corporais, desenho, arte
etc. Percebi que olhar a filosofia a partir daí poderia incluir mais gente
no diálogo, embora não necessariamente exclua a filosofia europeia, nem
mesmo o comentário de textos.
O método do comentário da filosofia em alguns contextos pode co-
laborar para o filosofar. O problema é que nas nossas condições coloniza-
das, tal método tem se propagado na forma de compreensão sem refutação,
baseada exclusivamente em autores europeus, inibindo a pluralidade de
filosofares e do filosofar desde o Brasil. Ou seja, o que é princípio de pro-
dução de filosofares em um contexto, pode se tornar princípio de silencia-
mento em outra condição social e histórica.
Após a investigação da segunda hipótese, que me levou a buscar
estratégias para estudar filosofias não verbais, comecei a pensar que para
procurar a filosofia desde o Brasil seria mais interessante olhar para os te-
mas, problemas e conceitos relevantes para o contexto brasileiro. Entre os
problemas que me provocam a pensar a realidade brasileira destaco a desi-
gualdade social, o racismo estrutural, que perpassa qualquer outra questão
neste território, o problema da fome, a violência de gênero e a transfobia
(vide seu impacto nas eleições de 2018) e as tristes estatísticas brasileiras
nesse campo, a questão ambiental, haja vista que estamos em um território
com enorme biodiversidade, bem como a relação que esta exploração tem
e continua tendo com a colonialidade.
Entre os conceitos emergentes de discussão no território que me
provocaram a pensar destaco a ideia de Améfrica ladina e de pretuguês de
Lélia Gonzalez, diversos conceitos indígenas, como a ética do bem-viver,
defendida por diversos povos, e o conceito de arando, tal como defendido
por Cristine Takuá; também a ideia de corpo como território presente no do-
cumento final da Marcha das Mulheres Indígenas, realizada em 2019; a filo-
sofia de Exu, das encruzilhadas, das macumbas, das capoeiras, emergentes
em diversos movimentos, com destaque para o trabalho de Luiz Rufino; a
filosofia do samba de Renato Noguera etc.
Este processo de perceber filosofias emergentes do território envolve
reconhecer outras formas de autoria/expressão. Por um lado, tem a ver com
Amizade e Sabedoria
79
o reconhecimento de filosofias nos muros, ou filosofias de coletivos, que
não necessariamente estarão presentes em livros; envolve entender movi-
mentos de filósofos que pautam problemas e conceitos, tal qual faz Nilma
Lino Gomes com o movimento negro como educador.
Após mais de uma década de interesse por esse tema, me coloco nes-
te momento a investigar uma quarta hipótese, motivada a partir da ques-
tão: “Quem tem direito ao filosofar no Brasil?” Entendo que esse direito é
perpassado pelos problemas da filosofia desde o Brasil em sua relação com
aspectos de raça, gênero e classe, tão determinantes na formação da socie-
dade brasileira atual. Por isso, é preciso refletir: há garantia do direito ao
filosofar no Brasil? Em qual contexto? Para quem? Para quê?
Durante o decorrer da história, a concepção sobre quem tem o di-
reito ao filosofar fundamentou a desumanização de grupos e povos não
ocidentais, mas também das mulheres e de seres não humanos, todos/as/es
entendidos/as/es como incapazes de utilizar a razão, e, portanto, de filoso-
far. A concepção por trás do direito ao filosofar tem consequências no cam-
po dos direitos humanos. Quem tem o legítimo direito de questionar, de
fazer perguntas, de colocar novas perspectivas sobre os problemas? Como
explica Katiúscia Ribeiro (2021, p. 32-34):
O fator de opressão racial e animalização suprimiu de todas as formas
o valor dos escravizados como sujeitos históricos. A desumanização
do homem africano eliminou por completo sua capacidade
racional; a zoomorfização destinou a esse homem a incapacidade
de produzir pensamento cognitivo ao alcance da filosofia. Logo,
não é possível pensar uma filosofia fora do eixo europeu, referência
principal da racionalidade humana – demonstrando que o que está
em jogo não é a questão se existe uma filosofia africana ou não,
mas, antes, como os sujeitos africanos poderiam produzir filosofia,
se não seriam humanos?
A questão que nos colocamos neste texto é “O que envolve o direito
ao filosofar no Brasil?” Quando falamos do direito ao filosofar nos interessa
não apenas a discussão sobre a importância da filosofia para a sociedade,
ou a necessidade de sua obrigatoriedade na Educação Básica. Interessa-nos
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
80
entender como as discussões acerca de metodologias e conteúdos que com-
põem o ensino e a formação de filosofia se relacionam com o campo do
direito ao filosofar, especialmente porque a filosofia ocidental hegemônica
carrega uma concepção de humanidade excludente dos povos originários,
afro-brasileiros e das mulheres, grupos fundamentais para compreender os
problemas e o pensamento produzido no contexto nacional.
Além disso, com o direito ao filosofar como conceito-chave também
se exige olhar para os debates que envolvem a formação de professores/as e
a exclusão do debate acerca da filosofia no Brasil das graduações e pós-gra-
duações. De que forma e em qual contexto o filosofar é de fato um direito,
tanto no que diz respeito à Educação Básica, quanto ao ensino superior?
Ter a disciplina de filosofia nas escolas ou o curso de filosofia nas univer-
sidades garante de fato o direito ao filosofar? Qual a filosofia que está na
Educação Básica? Qual a filosofia que está nas universidades? O filosofar
está nesses espaços? O que diz a comunidade acerca desses temas? Se as pes-
quisas da área se fazem via comentário sobre filósofos, em especial homens
europeus e brancos, quais são os autores que têm direito a filosofar? O que
estes permitem dizer acerca da realidade brasileira? Os modos como são
aplicados à nossa realidade reproduzem uma humanidade e metodologias
excludentes? Qual o espaço destinado à filosofia no Brasil nas graduações
e pós-graduações da área? Esse espaço é filosófico ou apenas repete autores
europeus? Quem tem direito a filosofar?
Ainda que a filosofia fosse modo de vida para os gregos, não era qual-
quer modo de vida que era visto como capaz e com o direito ao filosofar, o
que permanece de certo modo na contemporaneidade e leva à necessidade
de questionar profundamente o ensino de filosofia e sua função social na
sociedade brasileira. Entendo que o direito ao ensino de filosofia envolve
a presença do filosofar, tanto do/a/e docente quanto do/a/e estudante, da
Educação Básica ao ensino superior, em diálogo com os problemas, pessoas
e seres do território.
É importante ter como cerne quais são os desafios a se enfrentar no
campo da filosofia no Brasil. Primeiramente, é preciso resistir à monocul-
tura filosófica. A aceitação exclusiva de um método único na filosofia, an-
corado na lógica de reprodução sem refutação, colabora para necropolíticas
Amizade e Sabedoria
81
no campo filosófico, tanto no sentido de um silenciamento da filosofia
autoral, quanto no da exclusão da pluralidade de filosofares existentes, es-
pecialmente em uma sociedade multicultural como a brasileira. Essa ex-
clusão de algumas formas de pensar e entender a realidade é justamente
o que justificou o colonialismo, a escravidão e outras formas de violências
contra povos e grupos não hegemônicos. A abertura para filosofias outras
pode potencializar o enfrentamento dos problemas que afetam o território,
papel filosófico desde a origem da filosofia em qualquer contexto.
Se no campo da agricultura o que é nativo é considerado erva-dani-
nha a ser eliminada com veneno por atrapalhar a monocultura, o mesmo
ocorre com povos que resistem às políticas monoculturais e seus saberes e
filosofias. Por isso, é com essa filosofia das frestas, que resiste à monocultu-
ra, que podemos aprender sobre problemas e soluções possíveis para adiar
o fim do mundo, personificado pela devastação ambiental e os constantes
ataques aos direitos humanos que se expressam nos conflitos por território
e recursos naturais.
Outro desafio fundamental diz respeito a combater a lógica extra-
tivista na filosofia e na universidade como um todo, pois, como afirma
Ailton Krenak, o trânsito entre os saberes indígenas e os saberes acadêmi-
cos ocorre na forma de contrabando:
Não é dado o crédito, a bibliografia, ele é apropriado. Tudo que é
interessante e útil é utilizado, mas não diz de onde foi pego, tanto
o acervo da biodiversidade, como da cultura é subliminarmente
capturado, adaptado e pirateado. Mas isso acontece. Não existe um
abismo entre o que nós vivemos no cotidiano, comemos, falamos
e a cultura dos povos indígenas, os saberes. E são apropriados
o tempo inteiro, na culinária, na linguagem, na geografia, na
topografia. Se você olhar para um lado vai ver um lugar que chama
Anhangabaú, mais para cima, Jaraguá. São nomes em língua Tupi.
Tudo isso está no cotidiano, mas está como se fosse um fantasma.
Aquilo que eu chamei de biodiversidade vem da Mata Atlântica,
das florestas, o que está sendo usado na base de muitos dos nossos
cosméticos. O conhecimento e tecnologia dos índios é apropriado
pelo mercado, pelos brancos, sem crédito. Isso é biopirataria.
Então, as universidades, os livros e bibliotecas estão cheios de
saberes, apropriando-se de conhecimentos que não são acadêmicos.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
82
Depois que alguém fizer uma tese, um doutorado, isso vira produto
deles também (Krenak, 2019).
É preciso romper com a lógica de extrativismo e assimilação da lógica
dominante. Trazer tais filosofias para a academia não necessariamente
irá transformar a filosofia em um sentido mais autoral. É preciso um
rompimento com essa lógica de extrativismo que produz fetichização/
folclorização de filosofias, demarcando uma filosofia posicionada, com
corpo, reciprocidade e responsabilidade com o contexto e com as pessoas e
seres que estão nele. Reconhecer a importância de saberes não hegemônicos
deve significar reconhecer a legitimidade de seus sabedores, como apon-
ta Célia Xacriabá (2020) acerca dos saberes indígenas nas universidades:
“Não basta apenas reconhecer os conhecimentos tradicionais, é necessário
também reconhecer os conhecedores”.
Além da diversificação dos currículos e metodologias, é preciso pen-
sar medidas efetivas para que as condições do filosofar sejam possíveis para
os diferentes grupos que compõem as universidades. Em texto da Diretoria
ANPOF 2023/2024 com o objetivo de compartilhar a percepção sobre o
Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) e o relatório da Coordenação
de nossa área do Seminário do Meio Termo, é apontado que os desafios da
área se concentram em três eixos: gênero, raça e região. No que diz respeito
ao eixo racial, o texto aponta que há ausência de dados nesse campo e que
“Isto é, por si só, um dado” (Diretoria Anpof, 2024). Para avanços nesse
âmbito é necessário
um processo de enriquecimento do conhecimento com a inclusão
de uma diversidade de conteúdos que foi, historicamente,
silenciada. É fundamental incentivar e reconhecer essa diversidade
que, sobretudo, tem sido colocada por estudantes provenientes
de grupos sócio-historicamente minoritários, que conseguem
superar exclusões e adentrar na universidade e na pós-graduação.
Trata-se, pois, de não apenas acolher os seus corpos, mas também
suas epistemes. Considerando que a nossa área tem desenvolvido
cada vez mais a sua vocação interdisciplinar, podemos estar na proa
disso que o PNPG exige (Diretoria Anpof, 2024).
Amizade e Sabedoria
83
Com relação ao eixo gênero, o mesmo texto aponta que é evidente
que o “o corpo docente é majoritariamente masculino e branco” (Diretoria
Anpof, 2024). Nesse campo, o texto ressalta:
O que os dois documentos públicos aqui analisados mostram é
que é urgente que a nossa área pense formas efetivas de inclusão de
mulheres (seja, por exemplo, aproveitamento de mulheres que tenham
sido segundo lugar em concursos, seja pela promoção de concursos
voltados para a área de gênero ou ainda pelo critério de gênero como
fator de desempate) e que, de alguma maneira, a avaliação contemple
positivamente os programas que se engajam, de modo efetivo, na
ampliação da presença de mulheres docentes-pesquisadoras. [...] Um
programa não pode ser considerado de alta qualidade com a significativa
concentração de gênero que presenciamos, uma vez que a multiplicidade
de perspectivas filosóficas fica prejudicada. Sabemos que a mudança e
ampliação no corpo docente é algo complexo e que envolve, também,
fatores externos aos programas. No entanto, há ações que podem
ser realizadas por eles, por exemplo, por meio de bancas de seleção
constituídas por membros de diferentes gêneros, algo incomum na área.
Temos o desafio, como área, de criar políticas para diminuir a assimetria
de gênero que estamos repetindo há décadas em diversos níveis, como
mostra o Relatório do Meio Termo (Diretoria Anpof, 2024).
No texto “O machismo nosso de cada dia não rima com a filoso-
fia” escrito por Cinara Nahra, Professora da UFRN, são abordados outros
pontos de interesse neste artigo. A autora aponta um certo “caldo cultural”
machista4 que provoca cotidianamente o silenciamento e o menosprezo às
mulheres (Nahra, 2023). Ela questiona:
Quantos homens efetivamente nos escutam e nos dão o devido crédito
pelos nossos ensinamentos e conhecimentos ao invés de tomá-los
como seus? Quantos não nos desqualificam dos mais variados modos,
tentando nos “explicar” assuntos que pesquisamos há anos e dos quais
sabemos muito mais do que eles, mas que eles sempre acham que
saberão mais do que nós? Quantos homens na filosofia citam nossos
artigos? Será que efetivamente não nos leem ou tomam como suas as
ideias que na realidade são nossas? (Nahra, 2023).
Expressão utilizada pela autora.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
84
Nahra também defende a existência de cotas para mulheres em con-
cursos e bolsas, o que considero relevante de se estender para outros grupos
não-hegemônicos como pessoas LGBTQIAPN+s.
Para além do viés explícito das violências, que podemos notar através
de situações de racismo e assédio sexual, infelizmente bastante comuns em
instituições em geral, é preciso ressaltar que estereótipos raciais e de gênero
colaboram para a exclusão da população não-branca, LGBTQIAPN+ e do
gênero feminino dos espaços educativos. Nas universidades isto pode se
expressar na forma como compreendemos o rigor científico, como consi-
derar que falar assertivamente é expressão de domínio acerca de um tema,
sendo que na realidade apenas os homens que correspondem ao ideal do-
minante de humanidade são incentivados a falar dessa forma, as mulheres/
pessoas LGBTQIAPN+ e negras costumam ser vistas como “histéricas
quando se comportam do mesmo modo. Também não é incomum, por
exemplo, que uma mulher seja questionada em um processo seletivo se
pretende engravidar, como um impedimento para a pesquisa.
Repercutindo o texto de Nahra, o GT Filosofia e Gênero da Anpof
aponta que esse viés implícito “forja percepções (conscientes ou incons-
cientes) que determinam a incapacidade de algum grupo, gênero, etnia,
etc, que são tomadas como verdadeiras pela repetição constante desses es-
tereótipos (os mesmos que associam o trabalho da mulher natural e histo-
ricamente ao de cuidado, por exemplo)” (GT Filosofia e Gênero, 2023).
O texto também destaca um dado fundamental: “atualmente possuímos
54 programas acadêmicos de pós-graduação em filosofia no Brasil. Destes,
apenas 7 possuem na coordenação uma mulher, enquanto 47 são coorde-
nados por homens, ou seja, apenas 12,9% dos programas têm uma mulher
à frente na sua gestão, enquanto 87,1% são coordenados por homens
(GT Filosofia e Gênero, 2023).
A Rede Brasileira de Mulheres Filósofas (2024) divulgou um
Protocolo de Enfrentamento da Violência de Gênero no qual discutem boas
e más práticas nos ambientes institucionais acadêmicos. Entre os aspectos
apontados como más práticas vale ressaltar: desrespeito ao uso do nome so-
cial; a desatenção às necessidades específicas de gestantes, lactantes e mães
em geral; o viés de gênero das supostas piadas e brincadeiras; olhares, co-
Amizade e Sabedoria
85
mentários e argumentos que ridicularizem ou constranjam algumas pesso-
as a participarem dos espaços e debates acadêmicos; interrupções excessivas
ou explicações desnecessárias a fim de “complementar” suas falas; a moral,
o comportamento e a imagem de mulheres sendo colocadas em julgamen-
to por colegas homens; a desqualificação da sanidade mental de mulheres
como “desequilibradas” ou “histéricas”; influência de experiências pessoais
na apreciação da produção intelectual de uma mulher; ignorar como as
dinâmicas de desigualdades estruturais afetam a vida; adoção de critérios
nos processos seletivos e avaliativos que inviabilizam a aprovação de um
determinado perfil de pessoa; presença exclusiva de homens nas bancas;
atribuição de apelidos pejorativos ou tarefas humilhantes; exposição exces-
siva da vítima de assédio e de violência; ausência de mecanismos reparado-
res e de prevenção do assédio sexual e moral, a responsabilização efetiva,
acolhimento e restabelecimento de uma vida livre de violência para as ví-
timas. Outro aspecto que considero importante é o que é apontado como
vulnerabilidade física, econômica ou social” (Rede Brasileira de Mulheres
Filósofas, 2024), que diz respeito a experiências prévias que possam “tornar
uma aula, um debate ou uma conversa desconfortável para ela (fazendo-a,
por exemplo, revisitar situações traumáticas)” (Rede Brasileira de Mulheres
Filósofas, 2024). A maior parte dos aspectos pontuados podem ser estendi-
dos para o tratamento dado para pessoas negras, LGBTQIAPN+, pessoas
com deficiência, periféricas, pobres, entre outros grupos marginalizados.
No que tange ao eixo regional, o texto da Diretoria da ANPOF
2023/2024 ressalta:
Em relação às questões regionais, é importante que as parcerias entre
programas tenham uma perspectiva de cooperação e organicidade
sem o estabelecimento de eventuais hierarquias. É igualmente
fundamental a valorização, como, aliás, a área tem feito, dos saberes
locais e que a nossa comunidade filosófica acadêmica dialogue com
a produção do pensamento indígena tão presente, especialmente,
no Norte do Brasil. Defendemos que uma das formas de dirimir as
assimetrias regionais é não atuando de modo uniforme, evitando
a padronização de um único modelo de pensar filosófico, como
se a filosofia pudesse ser dita de uma só forma, mas levando em
consideração os saberes já produzidos no solo brasileiro (Diretoria
Anpof, 2024).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
86
O texto da Diretoria da ANPOF 2023/2024 finaliza sua reflexão
apontando que:
Assim, entendemos que as políticas afirmativas para combater as
diversas desigualdades não se resumem a uma espécie de cota, mas
de assumir a diversidade e a multiplicidade da filosofia brasileira,
que não precisa guardar um modelo hegemônico. Aliás, a ausência
da palavra “excelência” no PNPG e no relatório do Seminário do
meio termo indica que o desafio é de fato a ampliação da qualidade
cuja aferição em termos de avaliação passa, necessariamente, pela
compreensão e valorização dos diversos modos de fazer filosofia
e das diferentes tradições filosóficas. Se falamos de diferentes
tradições filosóficas, o estabelecimento exigente de um só método
de filosofar é um contrasenso, não um comprometimento com
o desenvolvimento do conhecimento e da filosofia, mas uma
imposição que visa à manutenção de um perfil que se propõe
hegemônico (Diretoria Anpof, 2024).
Parece que só é possível encontrar filosofia no Brasil fazendo uma vira-
da epistemológica, que exige ampliar os parâmetros sobre o que entendemos
por filosofia e filosofar, o que é consequência de uma visão mais ampla de
humanidade. Como aponta Katiúscia Ribeiro acerca das filosofias africanas:
O sequestro do Atlântico trouxe filosofias e ciências capazes de
reestruturar e realocar os descendentes dispersos pela escravização; o
corpo como continente de conteúdo trouxe em seu território corporal
elementos capazes de recriar e conduzir a memória e a experiência
africana. Essas práticas recriaram nos territórios negros (terreiros,
quilombos, irmandades) representações materiais e simbólicas que
permitiram o resguardo de capitais científicos, culturais, ambientais
e filosóficos que resistem às violações e violências impetradas ao povo
negro. Assim, para a legitimidade dessa filosofia, é preciso abandonar
o olhar racial sobre as pessoas negras, legitimar sua humanidade e
reconhecer um outro modus cultural de construção de pensamento.
Reintegrar esse lugar é uma ação justa e necessária que a filosofia
ocidental precisa assumir – reconhecendo o caráter valorativo da
África para as contribuições filosóficas no Brasil e no mundo e não
permitindo mais que o fenômeno do epistemicídio gerencie essa
avaliação (Ribeiro, 2021, p. 34).
Amizade e Sabedoria
87
Ou seja, o que está envolvido é um questionamento sobre a supe-
rioridade das ontologias ocidentais hegemônicas diante das ontologias
marginais”, como as dos africanos, afrodescendentes, ameríndios, mu-
lheres, pessoas com deficiências, pessoas LGBTQIAPN+. Com foco nas
filosofias ameríndias, Filipe Ceppas reflete sobre o porquê de fazer tal
questionamento:
Mas por que fazê-lo? Mero exercício de “relativismo cultural”? O
que queremos nós, filósofos/as, quando nos debruçamos sobre
as culturas indígenas? Trata-se, no mínimo (e não é pouco), de
perceber quanto essa demanda interpela algumas concepções
tradicionais da filosofia e de seu ensino: que as cosmoapreensões
que atribuímos aos ameríndios, assim como seus saberes, mitos e
ritos, desafiam, em diversos sentidos, as das filosofias ocidentais,
obrigando-nos a reconhecer o quanto o próprio desenvolvimento
das cosmovisões ocidentais modernas deve ao encontro, à recusa e
à destruição desses outros modos de compreensão e experiências da
vida, do mundo, dos seres humanos e não humanos.
Não menos relevante, por fim, é o fato de que pensamos do
ponto de vista de uma certa periferia do mundo globalizado.
Nós, ocidentais periféricos urbanos, falantes de uma língua latina,
herdeiros de complexas tradições de pensamentos e culturas
majoritariamente ocidentais, somos também atravessados, em
nosso contexto local, em nossas identidades, queiramos ou não,
pelas histórias e culturas ameríndias e africanas. Atentar para esses
elementos constituintes, suas tensões e aporias, valorizá-los, assumi-
los como elementos essenciais de nossas percepções, preocupações,
afetos e questionamentos não é mera opção, salvo como uma
cegueira antifilosófica muito suspeita diante das condições de
nosso próprio pensamento, como Oswald nos ajuda a reconhecer.
Trazer tal tomada de consciência para o centro desse exercício
que chamamos de “filosofia” – exercício de pensamento cujas
estruturas, peculiaridades e finalidades parecem indissociáveis da
história do Ocidente, do colonialismo, do patriarcado feminicida,
dos etnocídios e genocídios ainda hoje praticados contra indígenas
e afrodescendentes – tem a ver com o sentido mesmo que a filosofia
pode ter entre nós, nos trópicos, ao menos na medida em que nos
colocamos seriamente a questão acerca do que significa, tanto
ontem como hoje, filosofar nos trópicos (Ceppas, 2021, p. 26-27).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
88
A questão que este texto leva a pensar é: se a filosofia parte de pensar
problemas, de que modo podemos colaborar enquanto filósofos/as/es a partir
deste território, considerando a pluralidade de formas de perceber o mundo?
A luta pelo filosofar é uma luta pelo reconhecimento da humanidade e dig-
nidade, pois a ausência de reconhecimento da capacidade racional-reflexiva
está no cerne de processos de desumanização, ainda hoje. O distanciamento
filosófico é um reflexo de um distanciamento social entre as universidades e a
sociedade em geral, que precisa ser transformado para que possamos realizar
uma filosofia propriamente dita no contato com os problemas. Contudo,
promover o filosofar no ensino e na formação pode contribuir para promo-
ver processos de humanização e os direitos humanos. Reconhecer a filosofia
como um direito humano, significa reconhecer que todes são capazes de
filosofar, sem distinção de raça, classe e gênero. É necessária uma luta pelo
direito ao filosofar, dentro e fora das universidades.
Esta luta começou em minha vida a partir da luta do filósofo Prof.
Trajano. Iniciei o capítulo com uma frase dele que sempre me acompanhou
em meus estudos: “Não se deixe dominar pela inércia do hábito”. Este
texto existe por causa das questões iniciais colocadas em aula pelo Prof.
Trajano acerca da filosofia no Brasil. Talvez eu não tivesse me aprofundado
na pesquisa sobre este tema se ele não tivesse cultivado em suas aulas um
espaço de questionamento da nossa própria situação enquanto estudantes
e filósofos/as/es, rompendo com os hábitos enraizados sobre nossa posição
enquanto discente, mas também enquanto docente, já que na maioria dos
casos, seja no ensino superior, seja na educação básica, os/as formados/as
se tornam professores/as. Hábitos que nos colocam distantes do filosofar.
Será que o panorama descrito pelo Prof. Trajano se alterou? Os cur-
sos de Filosofia estão ocupados em formar filósofos/as/es? Mais do que um
objetivo de aula, trata-se de criar condições para o filosofar nas salas de
aula, da educação básica ao ensino superior. A preocupação em afirmar se
algo é ou não filosofia não pode ser anterior ao reconhecimento da huma-
nidade e racionalidade própria dos diferentes grupos sociais existentes, isto
é, o reconhecimento do direito ao filosofar, seja homem, mulher, europeu,
brasileiro/a, indígena, negro/a, LGBTQIAPN+, pessoa com deficiência
etc. Nesse sentido, a filosofia pode ter muito a contribuir para os problemas
Amizade e Sabedoria
89
contemporâneos, e, especialmente, problemas que emergem do território
brasileiro. O que temos direito a pensar, hoje?
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91
Filosoa brasileira?
Reinaldo Sampaio PEREIRA 1
Quer-nos parecer que o debate acerca de uma possível Filosofia
Brasileira tem se intensificado nos últimos anos e suscitado uma série de
questões que levam a possíveis controversas respostas. A pergunta sobre o
que seria uma Filosofia Brasileira parece permitir múltiplas e até mesmo
conflitantes respostas e exigir uma pergunta que lhe é anterior: podemos
dizer que há, de fato, uma Filosofia Brasileira? Neste texto visitaremos um
ou outro problema implicado no referido debate. Desde já, observemos
que o propósito deste texto não é, de modo algum, sustentar se há ou se
não há uma Filosofia Brasileira. Sendo assim, não será também propósito
Professor do Departamento de Filosofia/Faculdade de Filosofia e Ciências/UNESP/Marília/SP/Brasil/
reinaldo.pereira@unesp.br
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p91-102
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
92
deste texto apresentar um possível entendimento acerca de em que con-
sistiria uma possível Filosofia Brasileira, uma vez que não nos conside-
ramos em boas condições para levar a cabo tal empresa. Isto porque não
somos consumidores da literatura especializada que discute a possibilidade
da existência de uma Filosofia Brasileira e, havendo tal Filosofia, em que
ela consistiria. Portanto não acompanhamos, a não ser de modo bastante
distante, os debates concernentes a uma possível Filosofia Brasileira. Posto
isto, observemos que o nosso propósito neste texto é tão-somente apre-
sentar algumas condições que, ‘aos nossos olhos’ (talvez bem míopes para
tal debate), precisariam ser atendidas para considerar a existência de uma
Filosofia Brasileira.
Evidentemente a apresentação de alguns problemas, de alguns ques-
tionamentos acerca de uma possível Filosofia Brasileira, como não poderia
ser diferente, será feita a partir de uma perspectiva bem particular de aná-
lise, em muito influenciada e direcionada por um certo repertório próprio
de leituras, por certos interesses no debate filosófico, pelas nossas prefe-
rências (por diversos motivos) por alguns debates e não por outros, pelas
nossas escolhas etc. Em uma palavra: tal debate aqui a ser apresentado é
resultante de uma série de particularidades, as quais conferem um olhar
bem particular dentre os múltiplos olhares possíveis para tais questões.
Tivesse sido outro o nosso repertório de leitura, a partir de outros autores,
com debates bem distintos daqueles que costumamos acompanhar, talvez
fossem outras as condições a serem apresentadas aqui para caracterizar algo
como Filosofia Brasileira.
Convém ainda observarmos que o questionamento sobre se há ou
não há uma Filosofia Brasileira não nos parece em nada desmerecer o que
se faz aqui no Brasil em Filosofia, não nos parece significar que não haja ex-
celentes teóricos críticos de Filosofia aqui no Brasil. Muito diferente disso:
quer-nos parecer que temos muitos bons teóricos críticos de Filosofia no
Brasil, assim como bons historiadores da Filosofia. Em relação à História
da Filosofia, convém notar que não entendemos que fazê-la seja apenas e
necessariamente pisotear o mesmo gramado pisado pelos filósofos discu-
tidos pela História da Filosofia, ou apenas interpretar o que tais filósofos
propuseram em suas filosofias. Ademais: consideramos que uma boa com-
Amizade e Sabedoria
93
preensão do que grandes filósofos propuseram já pode ser muita coisa.
Valer-se das filosofias de tais filósofos para, por exemplo, examinar os seus
alcances, as suas possíveis vulnerabilidades etc., não nos parece pouca coisa.
Podemos nos apropriar de tais filosofias para sofisticadas análises sobre os
seus objetos, como nos apropriarmos de teorizações sobre a democracia
(as quais remontam à antiguidade grega antiga, como em célebres textos
do século IV a.C., como a República de Platão ou a Política de Aristóteles)
para nos auxiliarem a compreender a nossa jovem e frágil democracia bra-
sileira, sem que, para isso, necessitemos desenvolver uma filosofia sobre a
democracia. Somos daqueles que não acreditam que se invente a roda ou
se realize outras grandes invenções com certa frequência na Filosofia, mas
acreditamos que, assim como houve e há a criação dos mais engenhosos
modelos de rodas para serem usados para diversos propósitos, do mesmo
modo quer-nos parecer haver certos usos e adaptações das mais variadas
filosofias para dar conta dos mais variados problemas. Nesse sentido, a
História da Filosofia revela excelentes estudos de ‘correções’, complemen-
tações, adaptações de filosofias para dar conta de diversos problemas. Aqui
neste texto não vamos sequer levantar o questionamento se esses empregos
dos diferentes usos da Filosofia podem ser considerados filosofias. Esse não
é o ponto que nos interessa aqui.
Apresentadas essas observações iniciais, retomemos o questionamen-
to do qual partimos, atentando para uma das grandes lições deixadas por
Platão, qual seja: antes de discutir sobre algo, é preciso perguntar pelo ‘ti
estin’, é preciso perguntar pelo ‘o que é’ esse algo, sob pena de, ao não ser
formulada e minimamente respondida tal pergunta, realizar-se um longo
debate sobre o objeto investigado (neste caso sobre a Filosofia Brasileira)
e, após longo debate, descobrir que o entendimento acerca do objeto do
debate não ser o mesmo entre os debatedores, de modo a, segundo o en-
tendimento particular que possui cada debatedor, posições bem distintas, e
até mesmo conflitantes, serem defensáveis. Comecemos então questionan-
do o que seria uma Filosofia Brasileira. Sendo esta uma espécie de Filosofia,
questionemos primeiramente o que é a Filosofia, questionamento esse que
parece levar a múltiplas possíveis respostas.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
94
Se é possível haver múltiplos entendimentos acerca do que algo é,
múltiplas distintas coisas podem ser entendidas como sendo o mesmo algo,
como no caso da duplicação do entendimento do que é mãe. Se podemos
considerar mãe tanto uma mulher que gera um filho como a que o cria sem
tê-lo gerado, neste caso, se uma mulher que gerou um filho, o qual foi criado
por outra mulher, em certo momento, reclama na justiça a ‘devolução’ da
criança gerada, um grande problema judicial pode se seguir, visto que, tendo
sido duplicado o entendimento acerca do que é mãe, ambas as mulheres
podem, de um certo modo, reivindicar que são mães da mesma criança. O
mesmo problema não ocorreria se o entendimento acerca do que é mãe fosse
uno (ou a mulher que gera ou a mulher que cria). Se é uno o entendimento
acerca do que algo é, então apenas um certo tipo de coisa pode ser entendido
como sendo tal: se triângulo é, por exemplo, uma figura geométrica com três
lados e três ângulos (cuja somatória –dos ângulos internos– perfaz 180º),
e se tal conhecimento dessa figura for uno e evidente, ninguém ficará em
dúvida se uma figura qualquer é ou não é um triângulo, isto é, se uma figura
geométrica tem ou não tem três lados e três ângulos. Em casos como esses
(diferentemente do caso anterior, o caso da mãe), as opções contrárias são
excludentes: ou uma figura é ou não é triângulo.
A possibilidade de entendimento acerca do que é a Filosofia parece
muito distante da possibilidade de um certo entendimento uno, como no
exemplo do triângulo. A possibilidade de entendimento acerca do que é a
Filosofia parece mais próxima do entendimento do exemplo de mãe, mas
não com o entendimento do termo ‘Filosofia’ sendo apenas duplicado, mas
multiplicado muitas vezes. Nesse sentido, a Filosofia parece ser entendida
de múltiplos modos, o que nos possibilita compreender múltiplas coisas
como Filosofia. Se questionássemos ‘o que é a Filosofia’ considerando a
Filosofia grega antiga, talvez a tarefa de responder a tal pergunta fosse bem
menos árdua que a tarefa de responder ‘o que é a Filosofia’ na modernida-
de ou na contemporaneidade. Hoje, parece muito longe de ser suficiente
recorrer aos termos gregos filia e sofia para responder à pergunta sobre o
que é a Filosofia.
Acerca do que é a Filosofia parece não haver nem um entendimen-
to uno nem mesmo entendimentos muitas vezes aproximados que gozem
Amizade e Sabedoria
95
do consenso daqueles que dela se ocupam, sejam estes Historiadores da
Filosofia, filósofos etc. Dada a talvez impossibilidade de responder ‘o que
é a Filosofia’ de modo uno e afirmativo, tentemos, então, primeiramente,
buscar uma certa compreensão negativa acerca dela, uma certa compre-
ensão do que ela parece não ser. Comecemos essa apresentação negativa
pelo seu objeto de estudo: quer-nos parecer que há objetos de análise que
talvez possam não ser apropriados à Filosofia, como os hábitos alimentares
específicos de alguns grupos ribeirinhos ou de alguns grupos de pescado-
res. Tais objetos de investigação parecem bem mais apropriados a outras
disciplinas, como a Antropologia. Mas se perguntarmos: haverá um modo
apropriado à Filosofia de estudar ribeirinhos ou grupos de pescadores? Tal
resposta pode sinalizar para um certo modo de investigação apropriado
à Filosofia. Nesse sentido, não parece razoável à Filosofia nem examinar
objetos de análise muito particulares, nem os examinar de modo muito
particularizante. Não nos parece próprio à Filosofia, por exemplo, analisar
um regime de governo de um país em um certo período determinado,
portanto em um certo contexto espaço-temporal, exceto quando tal análise
possibilita, de algum modo, exames mais generalizantes acerca do obje-
to contextualizado espaço-temporalmente. Análises mais particularizan-
tes acerca de um regime de governo, como a análise das particularidades
da democracia no Brasil pós 1985, parecem mais apropriadas à Ciência
Política que à Filosofia Política.
Se entendermos que cabe à Filosofia Política empreender de modo
particularizante tal análise de um certo regime de governo contextualizado
espaço-temporalmente, então em que, neste caso, a análise da Filosofia
Política distinguir-se-ia da análise da Ciência Política? E aqui é impor-
tante notar que evidentemente não estamos querendo sugerir que cada
disciplina deve ter seus objetos próprios de investigação e que tais objetos
não possam ser próprios a outras disciplinas. Isso nos parece absurdo. Um
mesmo objeto de investigação, como o homem (homem aqui entendido
como anthropos, como todo indivíduo que faz parte da espécie humana),
pode ser analisado de múltiplas perspectivas por diversas disciplinas, como
a Filosofia, a Antropologia, a História, a Psicologia etc. Tais análises po-
dem ser efetuadas de modos distintos, segundo cada disciplina. Com isso,
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
96
também não estamos querendo sugerir que não possa haver certos pontos
comuns de análise de disciplinas distintas, como a Filosofia Política e a
Ciência Política. Certamente há! Mas, se os objetos da Filosofia Política e
da Ciência Política podem ser os mesmos e, podendo também ambas as
disciplinas analisarem do mesmo modo os seus objetos, então retomemos
a nossa pergunta: nesse caso, em que a Filosofia Política distinguir-se-ia da
Ciência Política?
Tratando agora positivamente tanto o objeto da Filosofia como o
modo de análise mais próprio a ela, quer-nos parecer que é mais próprio
à Filosofia objetos mais universais, investigados de modo universalizante.
Valendo-nos do nosso exemplo supramencionado: quer-nos parecer mais
apropriado à Filosofia Política analisar não a democracia em um contexto
espaço-temporal bem específico, mas a democracia de modo geral, análise
essa que poderá ser utilizada no exame de diversos contextos particulares,
como no exame da democracia pós 1985 no Brasil ou em algum outro
contexto espaço-temporal específico. Não estamos, com isso, entendendo
que seria necessário pensarmos um sentido uno de democracia válido para
todo contexto espaço-temporal. Não nos parece haver um sentido uno de
democracia que abarcaria os múltiplos regimes de governo considerados
enquanto tais. A democracia direta da Atenas do séc. V a.C. em muitos as-
pectos difere da democracia representativa no Brasil. São modelos distintos
de democracia. Sendo assim, evidentemente a análise acerca das democra-
cias pela Filosofia Política deve contemplar particularidades, mas não par-
ticularidades bem específicas cuja especificidade seja dada concretamente
pelo contexto espaço-temporal (de uma localidade, como em um certo
país, e em certa época específica), como no Brasil pós 1985. Quer-nos
parecer que cabe à Filosofia Política analisar tipos distintos de democracias
em condições distintas em que elas poderiam ser implementadas, mas tais
análises deveriam ser feitas de um modo geral. Por exemplo: a democracia
de um certo tipo, sob tais e tais condições gerais. Essas análises gerais de
tipos de democracia sob condições gerais distintas, parecem-nos próprias à
Filosofia Política. A investigação concernente a particularidades ‘concretas
de um tipo de democracia em um tal país e em tal época, isso quer-nos
parecer que já não é tão próprio à Filosofia Política, mas sim a outras dis-
Amizade e Sabedoria
97
ciplinas, como a Ciência Política. E aqui convém ainda observar que evi-
dentemente os limites entre o que seria próprio à Filosofia Política e o que
seria próprio à Ciência Política não são dados por uma linha delimitadora
de ambos os domínios, mas por regiões comuns que separam ambos os
domínios, cada qual com as suas especificidades próprias.
Voltando agora o olhar para o que talvez possamos afirmar positi-
vamente acerca da Filosofia: podemos encontrar várias características que
seriam próprias a ela, como ser uma disciplina crítica. Tal característica,
apesar de necessária à análise filosófica, não parece suficiente para caracte-
rizar uma análise como filosófica e distingui-la da análise própria a outras
disciplinas, como a História ou as Ciências Sociais, às quais também cabe
analisar criticamente os seus objetos. Poderíamos sugerir outras tantas ca-
racterísticas positivas que consideramos próprias à Filosofia, mas que tam-
bém não seriam suficientes para distingui-la das demais disciplinas. Não
nos parece ser o caso aqui de arrolarmos tais características. Uma caracte-
rística que nos parece própria às demais disciplinas, mas que nos parece
mais apropriada à Filosofia é a análise conceitual detalhada, rigorosa, mui-
to embora também essa característica talvez não possa ser entendida como
critério suficiente para considerar uma análise conceitual detalhada como
sendo necessariamente filosófica.
Se a Filosofia não se distingue das demais disciplinas (como a
História, as Ciências Sociais etc.) por suas análises críticas ou pelo exame
cuidadoso da sua malha conceitual, talvez ela possa ser entendida (como
já começamos a sugerir anteriormente) como uma disciplina que tende
a tratar os seus objetos de análise de modo mais universalizante. E aqui
mencionamos ‘mais universalizante’ supondo a possibilidade de afirmar
graus e modos distintos de universalização. Chamemos a atenção aqui para
o emprego de ‘universal’ em dois sentidos distintos. Em um primeiro sen-
tido: uma cadeira singular de uma sala, de um certo modo, é um particular
em oposição ao universal ‘conjunto das cadeiras da sala’. ‘O conjunto de
cadeiras da sala’, por sua vez, quando considerado em relação às cadeiras
existentes, talvez possa ser considerado, de uma certa perspectiva, um par-
ticular em relação ao universal que o abarca, a saber, as cadeiras existentes.
Em relação a possíveis ‘graus’ de universalidade, parece razoável esperar
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
98
que a Filosofia procure a máxima universalização na medida em que os
seus objetos de investigação assim o permitam.
Um segundo entendimento de universalidade diz respeito a múl-
tiplas perspectivas como algo pode ser considerado, como ocorre no
seguinte caso: podemos considerar uma cadeira que se encontra ago-
ra à minha frente como um particular, levando em conta todas as suas
particularidades (várias das quais podem ser distintas de outras cadeiras
particulares, como a sua cor, os materiais de que ela é formada etc.). Mas
essa mesma cadeira à minha frente pode ser considerada de um segundo
modo, como um universal cadeira. Enquanto tal, não levamos em con-
sideração as particularidades desta cadeira (várias das quais distintas de
outras cadeiras particulares), mas consideramos o que é comum a todo
objeto que tomamos como cadeira, como ele ser composto de pés, encos-
to, assento, possuir uma certa função, isto é, sendo composto por aquilo
que talvez pudéssemos chamar de atributos essenciais da cadeira, atribu-
tos essenciais esses que nos permitem reconhecer tal objeto como uma
cadeira e não como uma mesa ou outra coisa qualquer. Podemos ainda
considerar tal cadeira particular de um terceiro modo (não mais como
um singular cadeira e não mais como uma cadeira universal), modo este
mais generalizante que quando a consideramos como um universal ca-
deira: podemos considerar a cadeira enquanto corpo. Neste sentido, não
mais sendo relevante se tal objeto possui pés, encosto, assento e uma
certa função, mas sendo talvez relevante apenas considerar que tal obje-
to é um existente que ocupa lugar no espaço, portanto possuindo ma-
terialidade. Podemos ainda considerar esse mesmo objeto, a cadeira à
minha frente, de um outro modo ainda mais universalizante. Podemos
considerá-la como um ser. Neste caso, talvez importando apenas que ele
é um existente, independentemente se ocupa ou não lugar no espaço,
independentemente, portanto, se possui materialidade. Talvez um modo
de considerar a Filosofia seja enquanto uma disciplina que tende a fazer
análises mais generalizantes dos seus objetos, assim como (em um exem-
plo maximamente universalizante) era próprio à Metafísica antiga (como
em Aristóteles), a qual teve como um dos seus grandes objetos de estudo
justamente o ser.
Amizade e Sabedoria
99
Posto isso, muito embora não tenha sido apresentada uma definição
de Filosofia, parte-se aqui de um certo entendimento primeiro acerca do
que a Filosofia está sendo considerada neste texto, a saber, uma disciplina
crítica, que trabalha com rigor a sua malha conceitual e trata dos seus
objetos de análise do modo mais universalizante possível. Se obviamente
também cabe à Filosofia análises de objetos com menor grau de universa-
lidade (em comparação, por exemplo, com o estudo do ser), as análises de
tais objetos talvez devam, em geral, ser realizadas do modo mais universa-
lizante possível. Se é assim, vejamos algumas consequências para pensar o
problema de certa universalização em relação à proposta de uma possível
Filosofia Brasileira. Mas, antes, examinemos, ainda que muito rapidamen-
te, o que poderia significar o ‘brasileira’ na expressão ‘Filosofia Brasileira’.
Nesse sentido, queremos aqui sugerir cinco possibilidades do emprego do
adjetivo ‘brasileiro(a)’ para verificar se eles nos auxiliam de algum modo a
entender o ‘brasileira’ na expressão ‘Filosofia Brasileira’.
1) Uma primeira tentativa de caracterizar uma Filosofia como bra-
sileira seria pelo idioma. Nesse sentido, uma Filosofia poderia ser carac-
terizada como brasileira por ser elaborada no idioma falado no Brasil,
o português? Do mesmo modo, uma Filosofia poderia ser considerada
francesa por ter sido escrita em francês? É possível uma Filosofia Francesa
escrita em outro idioma que não o francês? Uma Filosofia não parece
poder ser caracterizada como tal por conta do idioma em que ela é ela-
borada. Não parece razoável sugerir que uma Filosofia é de um certo tipo
por ser elaborada em um certo idioma. Nesse sentido, não parece razoá-
vel sugerir que uma Filosofia seria brasileira por ter sido feita no idioma
falado no Brasil, o português, assim como não parece fazer sentido ca-
racterizar a Filosofia Francesa por ter sido elaborada em francês. Se assim
fosse, um mesmo conteúdo filosófico elaborado: i) em um primeiro caso,
em português do Brasil e, ii) em um segundo caso, em francês, faria com
que um mesmo conteúdo gerado, i) no primeiro caso, fosse caracterizado
como Filosofia Brasileira; ii) no segundo caso, como Filosofia Francesa,
o que não parece razoável.
2) Parece desnecessário gastar muita tinta com a sugestão que uma
Filosofia seria considerada brasileira por ter sido produzida por brasileiros.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
100
Não parece plausível, após a elaboração de um certo conteúdo filosófico,
necessitar examinar os documentos de identidade do(a) elaborador(a) de
tal Filosofia para verificar se se trata ou não de um(a) brasileiro(a) e, sendo
o caso, aí então tal Filosofia poder ser considerada brasileira. Ademais,
recebendo tal autor(a) uma segunda nacionalidade, como a francesa, tal
Filosofia passaria a ser franco-brasileira?
3) O território em que tal Filosofia é elaborada também não parece
ser suficiente para caracterizá-la como sendo de um certo tipo. Nesse sen-
tido, não parece razoável caracterizar uma Filosofia como brasileira por ter
sido produzida em solo brasileiro, assim como caracterizar uma Filosofia
como francesa por ter sido produzida em solo francês. Considerar o solo
como condição suficiente para denominar uma Filosofia como brasileira
não parece razoável. Alguém que produzisse certa Filosofia em parte no
Brasil e em parte na França faria com que tal filosofia fosse considerada
franco-brasileira?
4) Quer-nos parecer que uma possibilidade bem mais razoável para
caracterizar uma Filosofia como brasileira diria respeito ao modo de fa-
zer Filosofia no Brasil, ao modo de fazer Filosofia com um ‘jeitão’ bra-
sileiro. Se a Filosofia Brasileira assim pode ser caracterizada por se tratar
de uma Filosofia com ‘jeitão’ brasileiro, assim como se diz do ‘jeitão’ do
futebol brasileiro ou do ‘jeitão’ do futebol sul-americano, então, no caso
da Filosofia, seria necessário responder: o que seria esse ‘jeitão’? O que o
caracterizaria? Qual o modo específico de fazer Filosofia que lhe conferiria
um ‘jeitão’ brasileiro? E aqui novamente nos vemos em dificuldade. Que
‘jeitão’ de fazer Filosofia seria próprio ao Brasil?
5) Uma outra possibilidade que também nos parece mais razoável é
entender que o que caracterizaria a Filosofia Brasileira seria um certo obje-
to específico que lhe seria próprio. Mas qual poderia ser esse objeto? Que
características tal objeto deveria possuir? Certa vez ouvi em um evento da
Filosofia (no campus I da Unesp de Marília) um palestrante sugerindo que
um bom objeto de estudo para a Filosofia Latino-americana seria a ideia
de ‘emancipação’. Imagino que, assim como essa (ao que nos parece) boa
sugestão de objeto de análise para uma Filosofia Latino-americana, haja
outros bons temas bastante caros à América Latina e especificamente caros
Amizade e Sabedoria
101
a alguns dos países latino-americanos, como o Brasil, temas esses que po-
deriam engendrar interesses para além das fronteiras brasileiras. Mas que
temas seriam esses?
Em relação a um possível tema próprio à Filosofia Brasileira, faça-
mos uma distinção entre dois distintos entendimentos sobre como ele
poderia ser considerado como tal: um primeiro sentido de um tema bra-
sileiro seria este apresentado com o exemplo da emancipação como tema
para a Filosofia Latino-Americana. Mas, então, qual ou quais temas se-
riam apropriados a uma Filosofia Brasileira? Um segundo entendimento
que talvez possamos ter acerca de um tema considerado próprio a uma
Filosofia Brasileira seria o de um tema concernente a uma realidade ex-
clusivamente ou quase exclusivamente brasileira. Assim, se ‘x’ fosse uma
realidade apenas ou quase apenas própria ao Brasil, parece razoável con-
siderar que ‘x’ poderia ser um tema propriamente brasileiro. Mas, se o
estudo de ‘x’, feito de modo universalizante, talvez possa gerar interesse
a muitos que se ocupam com ‘x’ no Brasil, talvez tal estudo tenha pou-
co interesse a estudiosos da Filosofia de outros países, exceto talvez em
casos como ‘x’ ser analisado a título de exemplo para uma investigação
mais ampla, ou então se houver a possibilidade de ‘x’ de algum modo
consistir em uma realidade própria também a outras localidades, a ou-
tros países. Se tais objetos de análise não despertassem interesse ou des-
pertassem pouco interesse investigativo fora do Brasil, então talvez essa
Filosofia Brasileira conversaria apenas ou quase apenas consigo própria.
Neste caso, a extensão dos ecos dos seus debates seria curta. O alcance
de tal Filosofia talvez não se estendesse para além dos interesses de inves-
tigadores daqui do Brasil e de alguns outros poucos investigadores que
porventura tivessem algum interesse em tais objetos de estudos especí-
ficos aqui do Brasil. Evidentemente que tal campo restrito de interesses
deste debate filosófico fora do Brasil não implicaria necessariamente em
esvaziar a importância de tal estudo, mas tal Filosofia não teria o alcance
de estudos como o de grandes temas examinados na História da Filosofia.
Se a Filosofia Brasileira for considerada uma Filosofia crítica, que
examina com certo rigor a sua malha conceitual, uma disciplina que
tem seus objetos próprios e seu modo particular de analisá-los, então
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
102
seria talvez necessário agora dizermos quais objetos seriam esses e de que
modo próprio à Filosofia Brasileira eles seriam analisados, e qual grau de
universalidade tais análises possuiriam. É evidente que tais questões são
apenas algumas das muitas que poderiam ser formuladas acerca de uma
possível Filosofia Brasileira. É claro que essa abordagem feita aqui é de
uma perspectiva bem particular, vista (com alto grau de miopia) de uma
posição pouco privilegiada de quem não acompanha de perto o debate
sobre uma possível Filosofia Brasileira. Como acreditamos que proble-
mas como esse (sobre a existência de uma possível Filosofia Brasileira)
são mais bem visualizados (e consequentemente examinados) a partir de
uma composição de múltiplos olhares para eles, deixemos registrado aqui
neste capítulo de livro o nosso míope olhar para o problema em questão.
Voltemos agora o olhar para aqueles que olham para tal problema com
menor grau de miopia.
103
Valores cognitivos revisitados:
uma perspectiva pragmático-
epistemológica feminista
Edna Alves de SOUZA 1
Introdução
É bastante comum a pergunta se um determinado enunciado
consiste em juízo de valor ou em asserção de fato. Quando é feito esse
tipo de questão, a pressuposição é a de que, se for um juízo de valor, não
poderá ser uma asserção de fato. E, provavelmente, que juízos de valor
são subjetivos.
1 Curso de Filosofia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CFCH-
UFAC), Rio Branco, Acre, Brasil, E-mail: edna.souza@ufac.br
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p103-127
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
104
A perspectiva segundo a qual os juízos de valor não são afirmações
fatuais e a subsequente inferência de que, não sendo factuais, objetivos,
então, são subjetivos, tem uma trajetória duradoura na história da filo-
sofia ocidental. Tradicionalmente, asserções de fato foram associadas aos
enunciados que expressam o que as coisas são, como são e por que são, en-
quanto juízos de valor foram associados aos enunciados que avaliam ações,
acontecimentos, sentimentos e intenções, ou que expressam não o que são
as coisas, mas o que ou como elas deveriam ser. Os primeiros constituiriam
o corpus da ciência e os segundos o da ética.
Esta perspectiva, no entanto, tem sido ampla e profundamente criti-
cada, sobretudo por argumentos pós-modernos. Tais argumentos são cha-
mados de pós-modernos devido ao foco crítico dado por eles aos ideais e
práticas científico-filosóficas que tiveram origem na guinada epistemológi-
ca moderna e que se tornaram e permanecem, culturalmente, dominantes.
Putnam (2002), Lacey (2008) e Longino (2017) ocupam um lugar
reconhecido como tradicional no contexto da filosofia analítica, ao procu-
rarem mostrar os limites e “perigos” de radicalizações pós-modernas. No
entanto, ao considerarmos suas investigações, podemos constatar que eles
se inserem e engrossam, de certo modo, a corrente de pensadores que,
provenientes não apenas da filosofia, procuram refletir sobre o papel que
os valores desempenham na forma de efetivação da ciência (algo que os
aproxima de pensadores ditos pós-modernos, apesar das marcadas diferen-
ças existentes entre eles).
O nosso objetivo consiste em refletir sobre uma possível relação
existente entre fatos e valores à luz de algumas das ideias de tais pensadores
contemporâneos – Putnam (2002), Lacey (2008) e Longino (2017) – para,
então, revisitarmos os valores cognitivos, de uma perspectiva pragmático-
epistemológica feminista.
Para atingirmos o nosso objetivo, em um primeiro momento, ana-
lisaremos a elevação da mera distinção de fato e valor, aparentemente
inofensiva, à categoria de uma dicotomia absoluta e engessadora. E, en-
tão, consideraremos como, em reação a essa última, levanta-se a proposta
da tese da imbricação entre fatos e valores. Em seguida, apresentaremos
Amizade e Sabedoria
105
uma caracterização das epistemologias feministas ou abordagens feminis-
tas da ciência, com destaque para proposta empirista feminista, segun-
do a qual a objetividade do conhecimento científico é contextualizada:
não há dados puros, tampouco valores são apartados da realidade efe-
tiva. Revisitaremos, então, os valores cognitivos ortodoxos, contrapon-
do-os às virtudes alternativas defendidas por epistemólogas feministas.
Finalizaremos com uma reflexão sobre o papel dos valores ou virtudes
pragmático-epistemológicas feministas frente a alguns dos desafios atuais
a serem enfrentados pela humanidade.
1 Da dicotomia à imbricação entre fato e valor
Para compreender a tese da imbricação entre fato e valor, há de se
considerar, em primeiro lugar, a diferença existente entre uma distinção
(ordinária) e uma dicotomia (metafísica); em segundo lugar, o processo
histórico que nos legou a arraigada dicotomia fato/valor; e, finalmente, a
razoabilidade da proposta de uma revisão do cenário dicotômico que, por
sua vez, implicaria ou no reconhecimento da mera distinção entre fato e
valor, mas não da dicotomia entre eles, ou na defesa da tese da imbricação
de fato e valor.
A distinção é um procedimento heurístico ou didático-metodológi-
co comum na vida diária ou na atividade acadêmica, científica, o qual pode
ser exemplificado pela realização de classificações, tipologias. É o que es-
tamos fazendo agora ao elencarmos características peculiares de ‘distinção
ordinária’ para contrapô-las às de ‘dicotomia metafísica’ ou, o que faremos
a seguir, ao contrapormos as epistemologias feministas à tradicional. Sendo
assim, a distinção pode ser entendida como a ação de separar aspectos,
caracteres, qualidades etc. que diferem uma coisa de outra. Não é a esse
procedimento que críticas serão dirigidas.
Já a dicotomia é uma espécie de polarização, feita nessas mesmas áre-
as, que encobre relações complexas, que é limitante, segregadora. Pode ser
exemplificada com a divisão de um elemento em duas partes, via de regra,
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
106
entendidas contraditoriamente ou contrariamente, como o bem e o mal,
o dia e a noite, o branco e o preto. Dizer que a cor branca difere da preta
não é o mesmo que dizer que branco é contrário de preto. Outro aspecto
revelador da falsidade dicotômica é mostrar dois pontos de vistas de uma
situação, como se fossem as únicas opções, e, ainda, excludentes entre si,
quando podem existir outras opções, não levadas em consideração, ou não
haver contradição (ou qualquer outro impedimento) para que ambas se-
jam escolhidas ao mesmo tempo.
Além disso, como observa Putnam (2002), distinções ordinárias têm
âmbitos de aplicação determinados e não há surpresas se elas não se apli-
cam sempre. Pelo contrário, distinções ordinárias têm um propósito prag-
mático bem definido. O mesmo não é válido para as dicotomias que têm a
pretensão de universalização.
Ao considerarmos a diferenciação mencionada entre distinção e di-
cotomia, já podemos observar alguns problemas concernentes ao estabe-
lecimento de dicotomias em geral. Agora, gostaríamos de focar em um
caso particular de dicotomia, aquela entre fato e valor, e em seu legado
problemático.
Em O colapso da dicotomia fato e valor e outros ensaios, Hilary Putnam
(2002), como sugerido no título, apresenta uma crítica à dicotomia fato
e valor e, ainda, argumenta a favor da imbricação entre fatos e valores. A
proposta da imbricação entre fato e valor é bastante provocativa e signifi-
cativa, pois coloca em questão a imagem dos valores tal como tradicional-
mente entendidos e adotados.
Segundo Putnam (1981), o problema da imbricação entre enuncia-
do de fato e juízo de valor é urgente e, diferentemente de outros temas fi-
losóficos, de interesse geral para reflexão de quaisquer intelectuais. Afirma,
ainda, que a distinção entre os mesmos é tão aceita a ponto de se tornar
uma espécie de instituição cultural.
Putnam (2002) percorre a história da dicotomia fato/valor de David
Hume à filosofia recente. Para ele, Hume formulou a máxima segundo a
qual de um juízo de fato, questão sobre o que é, não se pode retirar qual-
quer conclusão sobre valores, o que deve ser ou, em outros termos, que
Amizade e Sabedoria
107
não se pode inferir um ‘deve’ a partir de um ‘é’. A interpretação do que
realmente disse Hume e se ele de fato enunciou essa máxima, que ficou
conhecida como a lei de Hume, é ainda objeto de discussão.
A passagem da obra de Hume (2009, p. 509) que mais se aproxima
ao que lhe é imputado, de acordo com nossa pesquisa, é a seguinte:
Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre
notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum
de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo
observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente,
surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais
usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não
esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança
é imperceptível [à primeira vista], porém da maior importância.
Pois como esse deve ou não deve expressa uma nova relação
ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo
tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece
totalmente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser
deduzida de outras inteiramente diferentes.
No excerto citado, podemos observar que Hume (2009) tem um
pressuposto implícito e, como tal, parafraseando-o, imperceptível à pri-
meira vista, porém, da maior importância. Ele assume uma dicotomia en-
tre “questões de fato” e “relações de ideias”, em decorrência, ao que parece,
de sua concepção metafísica do que é um fato. É dessa concepção que
infere a inderivabilidade dos ‘deves’ a partir dos ‘és’, sem fazer qualquer
questionamento sobre o seu caráter metafísico e absolutista.
Putnam (2002) explica que o critério de Hume para o que era uma
questão de fato pressupunha uma semântica figurativa, imagética. As ideias
são figurativas, ou seja, elas só podem representar uma questão de fato
assemelhando-se, de alguma maneira, a ela. Mas e quanto às ideias que
possuem propriedades claramente não-figurativas? Para preservar o critério
figurativo das ideias, Hume considerou aquelas que não podiam ser figura-
das como algo à parte: sentimentos, emoções etc.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
108
Além disso, como indica Putnam (2002), Hume faz mais do que
afirmar que não se pode inferir um deve a partir de um é, “ele afirma mais
amplamente que não há ‘questão de fato’ acerca do correto e tampouco da
virtude”. Essa imagem dicotômica das questões de fato versus questões de
valor perdurou, dominantemente, até a contemporaneidade, encontrando
no Positivismo Lógico o seu auge, seguido de um declínio considerável.
Os positivistas lógicos classificam os nossos juízos putativos em duas
categorias dicotômicas: (1) naqueles que são ‘sintéticos’ (juízos empirica-
mente verificáveis ou falsificáveis) ou ‘analíticos’ (juízos verdadeiros ou fal-
sos somente com base nas regras lógicas); e (2) naqueles que são cogniti-
vamente carentes de significado cognitivo, notoriamente, todos os nossos
juízos éticos, metafísicos (sejam ônticos ou epistêmicos) e estéticos.
O problema central surge, portanto, não da elaboração de distin-
ções, que são muito úteis em determinados contextos, mas da sua eleva-
ção ao status de dicotomia, vale dizer, ao de uma tese metafísica; no caso
exemplificado, a de que a ética não trata de questões de fato, o que mostra
não só uma autocontradição do positivismo lógico (que queria se expurgar
da metafísica ao mesmo tempo em que subjacentemente a adotava), mas
também uma das consequências desastrosas da dicotomia assumida (des-
vincular a ética de sua base na realidade).
As caracterizações tradicionais de ética e ciência, como campos abso-
lutamente diferentes, com objetos e objetivos diferentes, explicitam o fun-
damento de afirmações, como a de Poincaré ([1905] 1958, p. 12): “Ética
e ciência têm seus próprios domínios, que se tocam, mas não se interpe-
netram”. Em outras palavras, tais caracterizações, supostamente, sustenta-
riam uma imagem comum da ciência, denominada por Lacey (2008, p.
19) de “ciência livre de valores”, segundo a qual “o conhecimento cientí-
fico é neutro, o conhecimento científico em si não serve a nenhum valor
particular, mas pode ser aplicado em favor de quaisquer valores”. Apesar
do feitiço/fetiche provocado por essa imagem da ciência livre de valores,
podemos reconhecer que, tanto histórica como efetivamente, o campo da
ciência está estreitamente vinculado ao da ética, pois suas questões basilares
mantêm interdependência entre si. Em vez da incessante busca por aper-
feiçoamento teórico e metodológico para se atingir a objetividade (estéril)
Amizade e Sabedoria
109
idealizada e tão almejada, o que deveria estar na base das motivações da
pesquisa científica seria a compreensão das intrincadas interrelações (cog-
nitivas, emocionais, psicológicas, culturais, políticas, econômico-sociais
etc.) de apreensão humana contextualizada da realidade.
Se essas considerações estiverem corretas, as avaliações éticas devem
ser consideradas no momento de descrever ou determinar como deve ser
não apenas a conduta do cientista, mas o procedimento científico como
um todo. Por isso, as considerações de pensadores como Lacey (2008),
Putnam (2002) e Longino (2017) – que veremos a seguir – se desenvol-
vem como uma tentativa de responder a algumas questões que, tradicio-
nalmente, recobrem áreas da filosofia que não costumam ser misturadas.
Desse modo, embora seus trabalhos manifestem clara afinidade com o que
denominamos de filosofia analítica da ciência, abordam questões que, mais
ligeiramente, classificaríamos como éticas ou políticas.
Nessa esteira, em Valores e atividade científica 1, por exemplo, Lacey
(2008) esclarece que a motivação de seu programa de pesquisa consiste em
responder às seguintes questões: 1. Como conduzir a pesquisa científica? 2.
Como estruturar a sociedade? 3. Como desenvolver o bem-estar humano?
Para ele, essas questões não podem ser isoladamente respondidas, pois exis-
te uma relação dialética entre elas, que reflete a interação estreita existente
entre ciência e valores.
Tal motivação, no entanto, é considerada uma intromissão preju-
dicial à correta realização da atividade científica, quando, segundo Lacey
(2008, p. 15-16), se tem aquela imagem moderna de ciência “livre de va-
lores”: imparcial, neutra e autônoma. A legitimação, o prestígio e o supos-
to valor universal da ciência estão vinculados à imagem da ciência livre
de valores e das práticas científicas que permitem aplicações tecnológicas,
as quais transformaram sobremaneira o mundo nos tempos atuais. Sendo
assim, sua tentativa de descrever apropriadamente o modo de efetivação
da ciência, com a indicação do papel exercido pelos valores cognitivos e
sociais nesse processo, bem como o seu modo de apreciar a ciência, não
apenas pelo valor cognitivo de seus produtos teóricos, mas também, de
maneira mais ampla, por sua contribuição para a justiça social e para o
bem-estar humano, desafiam a lógica estabelecida da tradição epistemo-
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
110
lógica. Segundo a concepção tradicional, a ciência é caracterizada pelas
teses mencionadas acima da imparcialidade, neutralidade e autonomia. A
ciência é imparcial porque somente aceita uma teoria como científica se ela
manifestar “os valores cognitivos num alto grau à luz dos dados empíricos
disponíveis e de outras teorias apropriadamente aceitas; como ela se rela-
ciona com os valores morais e sociais nada tem a ver com a aceitabilidade
de uma teoria”; neutra, pois a ciência, “em princípio, pode ser aplicada
na prática independentemente dos valores que são sustentados” por uma
comunidade ou indivíduo. Por extensão, a ciência é autônoma uma vez
que não está sujeita às “influências externas”, satisfazendo os requisitos
anteriores de imparcialidade e neutralidade.
Notemos que a imparcialidade tem como pressuposto uma distin-
ção entre valores cognitivos e valores morais/sociais. Essa diferenciação é
crucial para se interpretar apropriadamente o modelo de interação entre ci-
ência e valores tal como propõe Lacey (2008), e para tornar compreensível
a sua defesa da imparcialidade, ao mesmo tempo que, diferentemente do
ponto de vista tradicional, não sustenta a manutenção dos valores morais e
sociais fora do núcleo da atividade científica.
Como esclarece o mesmo Lacey em entrevista concedida em 2014
ao Instituto de Ciências Avançadas da USP, no modelo, por ele proposto,
da relação entre valores e atividade científica são identificados momentos
(etapas) logicamente (não temporalmente) distintos da atividade cientí-
fica, dentre os quais: M1 consistiria na adoção da estratégia da pesquisa;
M2 seria o empreendimento da pesquisa, propriamente dita; M3 faria a
avaliação cognitiva das teorias e hipóteses; M4 trataria da disseminação dos
resultados científicos; e M5 corresponderia à aplicação do conhecimento
científico. Como se pode notar, não se trata aqui da clássica distinção entre
o contexto da descoberta e o contexto da justificação.
Na perspectiva de Lacey (2014), os valores epistêmicos ou cognitivos
servem como critérios para avaliar cognitivamente teorias e hipóteses em
M3. Essas avaliações são cognitivas na medida em que têm por objetivo es-
tabelecer o alcance de teorias e de hipóteses no que diz respeito à explicação
adequada dos fenômenos investigados, ou seja, à portabilidade (ou não) de
Amizade e Sabedoria
111
conhecimento. Adequação empírica, poder explicativo e consistência de
teorias e hipóteses são, dentre outros, exemplos de valores cognitivos.
Os valores morais e sociais, por sua vez, têm vários papéis nos demais
momentos da atividade científica e são, por vezes, apropriados e, por outras,
inapropriados. Esse tipo de valores diz respeito aos ideais de uma sociedade
considerada boa ou desejável (como aquela que apresenta progresso, justiça
social etc.) e de comportamentos e relações humanas considerados exem-
plares, aceitáveis ou obrigatórias (como honestidade, autonomia, solidarie-
dade etc.). Na base da distinção entre valores cognitivos e valores morais/
sociais subjaz o ideal de imparcialidade. Em M3, os enunciados acerca de
conhecimento científico são fundamentados apenas em valores cognitivos,
de modo a não pressupor, nem a implicar, comprometimento com valores
morais e/ou sociais.
A partir desse modelo complexo, Lacey (2008) pretende rejeitar o
objetivismo positivista bem como o relativismo pós-moderno: o primeiro
por recusar a influência de valores em quaisquer etapas/momentos da ati-
vidade científica; o segundo por não só negar a dicotomia, mas até mesmo
contestar a distinção entre valores cognitivos e valores morais/sociais.
De acordo com a proposta de Lacey (2008), uma vez que se des-
creve apropriadamente o modo de efetivação da ciência; que se indique
o papel desempenhado pelos valores cognitivos e sociais nesse processo;
que se reflita sobre o problema das imensas disparidades existentes entre as
partes mais ricas e as mais pobres do mundo, dentre outras formas de de-
sigualdade e opressão, resta voltar-se para ações que possam, efetivamente,
contribuir para o florescimento humano.
Nesse cenário em que o caminho para o florescer humano é sinalizado
na práxis, destacamos o pensamento feminista da filósofa Longino (1990,
2002, 2017). Antes, porém, de apresentarmos a proposta de Longino, fare-
mos uma breve exposição do contexto no qual está inserida a sua proposta:
o das Epistemologias Feministas ou Abordagens Feministas das Ciências.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
112
2 Epistemologias Feministas 2
Afirmar a existência de epistemologias feministas é muito sugestivo:
primeiro, indica, por exemplo, a existência de outro tipo de epistemologia,
comumente chamado de tradicional (cuja lógica é hegemônica, patriarcal,
imperialista, capitalista), ao qual se propõem como alternativas a serem
consideradas; segundo, marca de forma explícita uma resistência à opres-
são que mulheres têm sofrido, ao longo da história, tanto no campo práti-
co como no âmbito teórico. As abordagens feministas da ciência, embora
constituam um movimento dentro da filosofia da ciência, não são prove-
nientes apenas dessa área, mas também de outras tradições, como da teoria
marxista, do pós-estruturalismo e da ética aplicada; emergem de diferentes
perspectivas dentro do feminismo (desenvolvidas desde as pioneiras), bem
como dos desafios impostos pelas questões não só de gênero, mas tam-
bém de raça, classe, necessidades especiais etc. Assim, não existe, de fato,
a Epistemologia Feminista Unificada, mas uma variedade de abordagens
feministas (no plural) da ciência, das quais lançaremos mão de algumas
de suas ideias-chave. A diversidade de sua origem, bem como a proposta
de desconstrução das binaridades dicotômicas que alimentam o patriarca-
do imperialista e capitalista, explicam o uso plural em sua denominação.
Apesar da (bem-vinda) diversidade, uma característica comum e basilar
dessas vertentes epistemológicas feministas é a apresentação de uma lógica
epistêmica contra-hegemônica, que se opõe à Epistemologia Tradicional
e abre espaço para diálogos horizontais de saberes diversos (Souza, 2017).
Tal como as entendemos, as epistemologias feministas não cons-
tituem um ramo “novo” da epistemologia, mas sim consistem em uma
maneira especial de se fazer epistemologia. Uma maneira que visa à trans-
formação nesse campo para melhor, ao oferecer abordagens que incluem a
questão do gênero, bem como de outras bases de opressão como raça/etnia,
classe, deficiência/necessidades especiais. Assim, a prática das epistemolo-
2 O empirismo feminista de Longino, aqui sumarizado, fora tratado mais amplamente e em contraposição a
outras perspectivas tradicionais e feministas em nosso capítulo denominado “A Objetividade Científica sob
a Ótica da Epistemologia Feminista”. Para dados completos da publicação, confira a seção de referências
bibliográficas.
Amizade e Sabedoria
113
gias feministas desnuda relações naturalmente existentes, mas que foram
encobertas pela tradição, a qual alimenta, ao mesmo tempo, um ideal ina-
tingível e uma cadeia de interesses que procura invisibilizar as relações de
poder e dominação também no campo epistemológico.
A proposta feminista não é de substituição de uma epistemologia
absolutista por outra, mas de um diálogo epistemológico aberto que vise
a um maior alcance de resultados positivos para a ciência e para a vida
cotidiana. Nessa abordagem epistemológica plural, procura-se manter em
comum, dentre outros, o compromisso de compreender, criticar e revisar
(sugerir correções visando melhorias) como o gênero opera em nossos sis-
temas de conhecimentos, crenças, práticas e abordagens metodológicas,
seja no âmbito da ciência, da vida comum ou da ética. Ademais, seja qual
for o foco das epistemólogas feministas, outra característica amplamente
compartilhada de seus trabalhos é a atenção dada ao poder, ao privilégio de
alguns em detrimento de outros, cujo acesso a bens sociais seria limitado.
Por que o conhecimento científico, incluindo metodologias e prá-
ticas, “adquiriu gênero”? Quais os problemas decorrentes de se privilegiar
um sujeito universal masculino? O que fazer para romper com o andro-
centrismo? Qual o papel dos valores cognitivos na prática científica? Quais
as virtudes pragmático-epistemológicas endossadas por pensadoras femi-
nistas da ciência e em que se diferem dos valores cognitivos tradicionais,
muitas vezes, indiscriminadamente adotados? Essas indagações constituem
pontos de partida para o desenvolvimento de uma proposta que vise a
atender à demanda de revisão de princípios e critérios de fundamentação e
de escolhas teóricas, uma vez que, potencialmente, revelam como as rela-
ções sociais de gênero moldaram, e ainda moldam, a prática científica que,
não obstante exitosa em vários aspectos, noutros é preocupante (quando
não desastrosa); por exemplo, conduzindo-nos às circunstâncias parado-
xais atuais da tecnociência, às crises sociais e ambientais hodiernas.
Destaca-se o empirismo feminista no contexto dessa problematiza-
ção, cuja meta consiste em desfamiliarizar uma política de conhecimen-
to opressora, de modo a incitar transformações situacionais e estruturais
profundas no campo epistemológico. No centro de sua posição empirista,
Longino (2002, p. 310) mantém a tese realista segundo a qual o mundo re-
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
114
almente existe independentemente de ser ou não percebido por um agente
cognitivo e que, “pelos métodos tradicionais das ciências naturais”, pode-se
obter conhecimento sobre ele. Porém, o conceito de método científico não
é entendido por Longino (2002) de forma absoluta, universal, como o é na
imagem tradicional de ciência.
Longino (2002) propõe um pluralismo metodológico que, todavia,
evita vincular-se a uma perspectiva antirrealista ou relativista, segundo a
qual “vale tudo”. “As evidências empíricas restringem (constrains) as teo-
rias científicas, suficientemente, de maneira a não ocasionar um vale-tudo,
tampouco a encapsular o conhecimento em uma fórmula reducionista
(Souza, 2017, p. 164). Mas para as teorias científicas avançarem por essas
restrições purificadoras é necessário que a comunidade científica seja aber-
ta à diversidade de perspectivas e adotar como uma orientação aquilo que
entendemos por paradigma da complexidade.
Segundo o paradigma da complexidade, um problema é analisado
não (apenas) por sua divisão e atenção voltada para as partes mais simples,
mas sim por consideração de sua multidimensionalidade, isto é, por consi-
derar as suas várias escalas e perspectivas de análise, bem como as relações
complexas existentes entre elas. Objetos de estudo são entendidos como
sistemas, ou seja, conjuntos de múltiplas relações entre agente e ambiente
formando um domínio com partes interligadas entre si, um todo funcio-
nal, uma estrutura. Por isso, uma análise de suas partes simples e individu-
alizadas é ineficiente para sua compreensão mais ampla.
Da perspectiva do paradigma da complexidade, em que se reconhece
que o mundo é multifacetado, multicultural, o conhecimento científico é
entendido, portanto, como contextualizado. Ele não é resultado da ação
metodológica independente de um indivíduo isolado, despido de sua pró-
pria subjetividade quando na realização de suas pesquisas. Em vez disso, o
conhecimento científico resulta do trabalho interativo de diversas pessoas
e em muitos contextos diferentes. Essa perspectiva vai ao encontro da pro-
posta feminista, segundo a qual “a comunidade científica é científica não
por ser composta exclusivamente por cientistas [tal como tradicionalmente
entendida], mas por pessoas interessadas em questões científicas, sejam elas
cientistas ou leigas” (Souza, 2017, p. 164).
Amizade e Sabedoria
115
Para Longino (1990, p. 76), um método de investigação é “objetivo
na medida em que permite a crítica transformadora”. A crítica transfor-
madora, por sua vez, é alcançada pela comunidade epistêmica desde que
atendidos os seguintes requisitos: conceder vias para a crítica, compartilhar
normas e valores cognitivos, captar, de fato, as críticas e promover a igual-
dade de autoridade intelectual dentro da comunidade.
Neste sentido, o empirismo contextual de Longino (1990), dialógico
e produtivo, está em consonância com a ideia de John Stuart Mill (2003),
segundo a qual crenças (sendo elas verdadeiras ou falsas) jamais deveriam
ser simplesmente descartadas. Dada a falibilidade humana, crenças apa-
rentemente implausíveis podem ser verdadeiras e, inversamente, aquelas
que parecem plausíveis podem ser falsas. Sendo elas falsas, podem, ainda
assim, conter algo de verdadeiro, o que já justificaria a sua preservação
em certa medida. No caso de serem inteiramente falsas, elas podem ainda
assim contribuir de algum modo para a articulação e defesa de crenças, de
fato, verdadeiras.
“Na epistemologia, assim como na lógica, é possível reconhe-
cer outros valores cognitivos, lógicos, além do verdadeiro e do falso”.
Ilustrativamente, podemos falar de aproximações da verdade, em vez
de sermos categóricos em termos de atribuição de verdade ou falsidade
a uma proposição. “A bivalência é substituída aqui pela multivalência,
a fim de se dar conta da complexidade envolta no processo cognitivo
(Souza, 2017, p. 166).
Longino (1990) considera, acertadamente, que o aumento da diver-
sidade não assegura, mas amplia, simetricamente, as possibilidades de os
preconceitos científicos serem revelados e desnaturalizados. Segundo Souza
(2017, p. 169-170), o conhecimento científico não existe de forma isolada
dos indivíduos que o descobre e fundamenta. Esses indivíduos, por sua
vez, também não existem de forma isolada, mas sim de forma interati-
va entre si e com o seu meio ambiente ao qual pertencem. Em meio a
essa dinâmica e interações complexas exitosas entre indivíduo e realidade
que se pode chegar ao conhecimento e fundamentá-lo. “Se considerarmos
que uma teoria não pode ser reputada como absolutamente certa, pois
deve permanecer aberta à revisão de perspectivas diversas, então, falar so-
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
116
bre conhecimento só faz sentido se localizarmos esse conhecimento dentro
de uma comunidade”. Esse é o tipo de objetividade que nos é possível: a
objetividade humana, situada e corporificada, e, consequentemente, em
alguma medida perspectivista.
De acordo com Souza (2017), a abordagem feminista empirista ge-
ralmente concede mais razoabilidade à imagem do conhecimento situa-
do, dos saberes localizados, do que àquela imagem tradicional do conhe-
cimento absoluto, revelado por fatos e valores cognitivos engessadores.
Assim, a seguir, revisitaremos os valores cognitivos tradicionais apenas para
aquilatarmos, paralelamente, uma proposta pragmático-epistemológica
feminista.
3 Valores cognitivos revisitados
Os valores cognitivos estão relacionados àquelas propriedades, quali-
dades ou características de uma teoria que a qualifica como minimamente
digna de apreciação, bem como plausível ou merecedora de aceitação pela
comunidade científica. A ausência desses valores, por outro lado, torna a
teoria suspeita ou mesmo passível de rejeição.
Lacey (2008) mostrou a presença de valores cognitivos tradicionais
na avaliação de teorias, bem como de valores sociais em diversos momen-
tos da prática científica, ao mesmo tempo em que subscreveu a diferença
existente entre esses tipos de valores. Longino (2017), por sua vez, vai
além e elege valores pragmáticos (identificados em trabalhos feministas),
como alternativas viáveis àqueles cognitivos tradicionais. Ligados à práxis,
à experiência vivida, tais valores transpõem a linha de cisão entre valores
cognitivos/valores sociais.
Nas palavras de Longino (2017, p. 40): “Os temas feministas podem
ser lidos não apenas como crítica, mas também como versões de valores
positivamente expressos, que contrastam com aqueles tradicionalmente
evocados”.
Amizade e Sabedoria
117
Dentre os valores (virtudes ou heurísticas, na terminologia preferi-
da por Longino) de uma investigação tipicamente feminista e/ou aqueles
endossados ou advogados pelas epistemólogas feministas, está a adequa-
ção empírica, que é sustentada em comum por pensadores não-feministas.
Ademais, são incluídos a novidade, a heterogeneidade ontológica, a com-
plexidade ou mutualidade de interação, a aplicabilidade às necessidades
humanas e a descentralização do poder ou o empoderamento universal.
Virtudes essas que contrastam significativamente com os valores epistêmi-
cos mais comumente difundidos pelos filósofos da ciência ditos tradicio-
nais, que são: a consistência da teoria em outros domínios, a simplicidade,
o poder explicativo e generalidade, a fecundidade e a refutabilidade.
Nesse sentido, as virtudes epistemológico-pragmáticas feministas
podem ser um meio de conduzir as considerações de responsabilidade
social ao centro da investigação científica. Por exemplo, da perspectiva
dos valores feministas, a pesquisa em agricultura que assiste e empodera
pequenos agricultores, ou seja, a agricultura familiar, é preferida àquela
que assiste ao agronegócio de capital intensivo (Longino, 2017, p. 43).
Isso porque a ciência deve estar a serviço das pessoas (e não o contrário).
Aqui, ilustrativamente, temos dado precedência ao valor da aplicabilidade
às necessidades humanas em detrimento da comumente feita priorização do
valor da mera fecundidade.
Revisitemos, então, alguns dos valores (virtudes) cognitivos men-
cionados, de uma perspectiva feminista, a fim de compreendermos quais
e por que são recomendados, e no que esses diferem daqueles ortodoxos,
comumente difundidos na dita tradição.
Adequação empírica
A adequação empírica, como já mencionado, é um valor basilar e
sustentado em comum por feministas e não-feministas. Esse valor consiste
na “concordância das afirmações observacionais de uma teoria com os da-
dos” (Longino, 2017, p. 40). Assim, uma teoria é empiricamente adequa-
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
118
da quando “salva os fenômenos”, ou seja, quando encontra aderência nos
dados observacionais. Não vamos questionar aqui o estatuto desse ajuste
entre teoria e dados, tampouco o que seriam os ‘dados’, algo, por si só, já
bastante problematizado ao longo da história da filosofia, mas fazer notar
que a adequação empírica, mesmo quando suplementada pelo requisito
da existência de consequências empíricas ou observacionais estendidas que
atestem a aderência da teoria ou modelo aos dados inventariados, não é um
critério suficiente para a escolha entre duas ou mais teorias competidoras,
conforme o argumento da subdeterminação da teoria pelos dados.
De acordo com Pierre M. M. Duhem ([1906] 1954), resumidamen-
te, o argumento da subdeterminação teórica é baseado na tese segundo a
qual a elaboração e/ou escolha de uma teoria científica é subdeterminada
pelos dados de observação. Quine (1953) também afirma que a “ciência
total”, matemática, natural e humana, é subdeterminada pela experiência.
O argumento da subdeterminação pode ser construído da seguinte
forma:
Supõe-se que T seja uma teoria que envolva (suposições sobre)
processos e/ou entidades inobserváveis [como é comum na
ciência contemporânea]. T pode ser toda e qualquer teoria sobre
inobserváveis. É possível logicamente haver uma infinidade de
teorias que sejam empiricamente equivalentes a T, mas que difiram
dela (e entre si) no que dizem sobre os eventos inobserváveis. Uma
vez que T é empiricamente equivalente a cada uma delas, então,
todas fazem exatamente as mesmas afirmações sobre os resultados
das observações ou experimentos. Assim, nenhuma evidência
empírica poderia favorecer uma delas em detrimento das outras.
Uma vez que T pode ser toda e qualquer teoria sobre inobserváveis,
o conhecimento sobre fatos inobserváveis é impossível (Souza,
2015, p. 37).
A solução encontrada para a dificuldade acima é lançar mão de outros
valores cognitivos a fim de se fechar a lacuna entre evidência e hipótese.
A quais valores se recorre, tipicamente, representa um posicionamento
tradicional (não-feminista) ou feminista. Vejamos alguns dos principais
Amizade e Sabedoria
119
valores adicionais nos quais pesquisadores e teóricos se apoiam, rendendo-
se a uma perspectiva tradicional ou feminista:
Consistência das teorias em outros domínios ou Novidade?
Como é sobejamente reconhecido, historicamente, as mulheres e
outras minorias foram excluídas da prática científica. Essa situação fez com
que o conhecimento científico, incluindo metodologias e outras práticas,
adquirissem gênero: o masculino. Assim, a ciência reforçou-se como uma
atividade classista, parcial e excludente, cuja especificidade de sua lingua-
gem não é (ou é pouco) dominada pelas minorias subjugadas, não obs-
tante sua pretensa universalidade. Tal inadequação (juntamente com os
mais diversos fracassos da ciência) é abafada pela propaganda massiva dos
resultados científicos parciais obtidos, que servem como um dos meios ide-
ológicos de calar outras vozes e perpetuar sua dominância sobre as demais,
em um círculo vicioso difícil de ser rompido.
A teorização tradicional, que é constrangida pelo objetivo de con-
sistência com as teorias e os modelos explicativos vigentes, pode conduzir,
mesmo que inconscientemente, à perpetuação do sexismo e do androcen-
trismo. O sexismo consiste na discriminação baseada no gênero ou no sexo
de uma pessoa, enquanto o androcentrismo é a perspectiva que leva em
consideração o homem – branco, hétero, classe alta etc. – como foco de
análise do todo (da humanidade em sua diversidade genuína).
A novidade, enquanto desiderato feminista, não diz respeito à des-
coberta de novas entidades preditas pela teoria (como é considerada na or-
todoxia). Trata-se, no contexto feminista, da novidade do princípio teórico
explicativo a ser adotado, ou seja, uma abertura para a instauração da “no-
vidade em relação aos sistemas de referência do entendimento” (Longino,
2017, p. 41).
Tendo em vista que o conhecimento é contextual, assim como as
narrativas (mesmo as científicas), a abertura dos sistemas de referência
e conceitual é um ponto de partida para a visibilidade, a denúncia e o
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
120
abandono do sexismo e do androcentrismo na ciência, ao apresentar novas
categorias e formas de análises dos fenômenos a serem investigados, que
incluam a genuína diversidade do real.
Simplicidade ou Heterogeneidade ontológica?
Teorias estipulam ou implicam uma ontologia, no sentido de espe-
cificar o que pode ser considerada uma entidade causalmente efetiva em
seu domínio. Um domínio homogêneo, simples, contém apenas um tipo
de entidade, enquanto um domínio heterogêneo possui tipos diferentes de
entidades. Lidar com um domínio ontologicamente homogêneo, simples,
é mais fácil do que com um heterogêneo, porque os modelos do domínio
têm que abarcar apenas propriedades e comportamentos de um tipo, de
modo que um membro, seja ele qual for, poderá representar todo e qual-
quer outro membro. Ao optar pela simplicidade, então, pode-se ganhar em
facilidade e rapidez nos resultados das pesquisas, mas ao preço de camuflar
as especificidades próprias da heterogeneidade.
Da perspectiva feminista, por sua vez, é preferível a heterogeneidade,
ou seja, o endosso de teorias e modelos que resguardam a heterogeneidade
no domínio sob investigação, ou que, no mínimo, não a eliminam já em
princípio. “Uma abordagem de investigação que requer espécimes unifor-
mes, isto é, homogeneidade ontológica, pode facilitar a generalização, mas
ela corre o risco de perder diferenças importantes, de modo que o ma-
cho da espécie acaba sendo tomado como paradigmático para a espécie
(Longino, 2017, p. 42).
Ao se privilegiar um sujeito universal masculino, temos a invisibili-
zação da riqueza da diversidade constituinte da realidade e, mais do que
isso, a destruição de outros modelos epistemológicos. A esse processo de
destruição, dominação e exploração de outras formas de conhecimento
tem se dado o nome de epistemicídio e colonização do saber.
Amizade e Sabedoria
121
Poder explicativo e generalidade ou Complexidade?
O poder explicativo ou a generalidade teórica facilita um certo tipo
de entendimento panorâmico de fenômenos que apresentam interrelações
complexas. Mas, para tal, elimina a consideração da diversidade, da não-li-
nearidade, de relações existentes. Desse modo, da perspectiva feminista, o
foco da investigação deve voltar-se não apenas ou preferencialmente para o
atendimento desse poder ou capacidade de generalização, mas sim para o
alcance da complexidade, para compreensões e intuições sugeridas a partir
da consideração da complexidade das relações. “As feministas que endos-
sam essa virtude [da complexidade] expressam uma preferência por teorias
que representam as interações como complexas e envolvendo não apenas
relações simultâneas, mas também relações mútuas e recíprocas entre os
fatores de um processo” (Longino, 2017, p. 43).
A complexidade, reciprocidade ou mutualidade da interação acom-
panha, processualmente, a virtude da heterogeneidade ontológica. A hete-
rogeneidade ontológica refere-se à existência de diferentes tipos de coisas,
já a complexidade, por sua vez, caracteriza as diversas e diferentes intera-
ções entre tais coisas.
Considerar os fenômenos em termos de suas relações complexas
pode significar, por um lado, a perda, em alguma medida, do poder expli-
cativo ou generalidade teórica, mas, por outro lado, pode conduzir às com-
preensões e intuições que não seriam atingidas nos modelos tradicionais.
Fecundidade ou Aplicabilidade às necessidades humanas
Não se nega que a fecundidade teórica seja um desiderato da investi-
gação científica: buscamos teorias que possam ser desenvolvidas, amplian-
do o seu alcance, rendendo heuristicamente. O caso é que dentre uma
teoria ou programa de pesquisa aparentemente fértil e uma que tenha apli-
cabilidade às necessidades da vida humana, superando-se a lógica opressiva
do capital, seria mais razoável que a balança pendesse para a última, para
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
122
o bem comum. Como exemplificamos acima, com o caso da priorização
da agricultura familiar, é comum feministas endossarem a ideia de que “a
ciência deveria ser para as pessoas”; que pesquisas que visam a atender às
necessidades humanas, em especial àquelas necessidades que mulheres ti-
picamente atendem, como o cuidado de crianças, jovens, fracos, enfermos
ou idosos, bem como o cuidado de alimentar os famintos, deveriam ser
preferidas do que pesquisas para propósitos militares, financeiro-comer-
ciais ou somente para fins de conhecimento (Longino, 2017, p. 43).
É importante fazermos uma observação neste ponto: as epistemólo-
gas feministas não rejeitam totalmente a curiosidade como um ensejo para
a investigação científica. Tal rejeição soaria até mesmo como uma atitude
antifilosófica. O caso é que elas procuram colocar mais ênfase na dimen-
são pragmática da pesquisa e da produção do conhecimento científico. A
curiosidade pode vincular-se ao pragmatismo feminista. Esse não trata de
qualquer pragmatismo, mas daquele em conexão com a virtude, tratada a
seguir, da descentralização do poder.
Refutabilidade ou Descentralização do poder?
Tem-se repetido, na literatura da filosofia da ciência, a crítica ao
princípio da refutabilidade, em que uma hipótese deve ser abandonada
ao se mostrar incompatível com os resultados da experiência empírica, de
modo que tal proceder implique em uma depuração das teorias aceitas.
Além de tal princípio da investigação ser idealizado, mas, em muitos casos,
não tão simplesmente aplicado na prática científica, essa expansão teórica,
direcionada empiricamente, se dá no interior de um contexto de investiga-
ção autoencerrado, delimitado, servindo de reforço ao mainstream.
Por descentralização do poder, por sua vez, se entende o empodera-
mento universal, i.e., de todos, incluindo as minorias. Destacamos que “a
relevância do empírico na visão tradicional está no interior de um contexto
da pesquisa autoencerrado”, enquanto o empoderamento, diferentemen-
te, é direcionado “para o meio social e prático, externos ao contexto de
Amizade e Sabedoria
123
pesquisa” (Longino, 2017, p. 43). A crítica transformadora, proposta pelo
empirismo feminista, é fruto de um processo de descentralização do poder
e não de um procedimento interno e autoencerrado da pesquisa desvincu-
lada de seu contexto externo e social.
Notemos que os dois primeiros valores da listagem feita acima são
requisitos formais das teorias ou modelos científicos, os dois seguintes são
aspectos substantivos deles e os dois últimos são virtudes feministas prag-
máticas, a serem consideradas nesses modelos. Esperamos, assim, abarcar a
presença dos valores na multidimensionalidade da prática científica.
Em suma, apesar das virtudes epistemológicas tradicionais serem fre-
quentemente invocadas para preencherem o hiato existente entre evidência
e hipótese, revelado, dentre outros, pelo argumento de subdeterminação,
não é evidente que elas sejam capazes de propiciar uma discriminação entre
o mais ou o menos provável e, tampouco, entre o verdadeiro e o falso. E,
nesse sentido, as virtudes feministas são epistemologicamente equivalen-
tes às virtudes tradicionais. Tanto as primeiras como as segundas possuem
poder heurístico, porém não possuem poder probatório (Longino, 2017).
Por que deveríamos, então, não apenas lograr às virtudes feministas
o mesmo estatuto dos valores cognitivos mais tradicionais, mas propô-las,
em alguns casos, como alternativas viáveis a eles? A vantagem da proposta
feminista consiste em sua clara e distinta adequação a um projeto de políti-
ca do conhecimento inclusiva: elas são virtudes pragmático-epistemológi-
cas e estão de acordo com o projeto humanista de florescimento humano,
enquanto os valores cognitivos tradicionais, muitas vezes, carregam, de for-
ma velada ou não, a marca da incoerência do sexismo e do androcentrismo
que há muito tempo já deviam ter sido abolidos da prática científica, nosso
modelo de procedimento racional.
Um modo relevante de desafiar essa lógica opressora da tradição
epistemológica é adotar virtudes epistêmicas feministas, nos casos em que
se mostrarem mais adequadas do que as mais comumente adotadas. É as-
sim que, contrapondo-se à chamada epistemologia tradicional, sexista e
androcêntrica, as epistemologias feministas, tipicamente, apresentam uma
lógica epistêmica contra-hegemônica e consideram o modo como o gênero
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
124
influencia a concepção de conhecimento, as práticas de investigação, os
critérios de fundamentação teórica etc.
Entendemos que pesquisar como as relações sociais de gênero mol-
dam as práticas científicas é um ponto de partida para a elaboração de uma
proposta de revisão desse modelo adotado, a qual considere uma maior
equidade nas relações e, consequentemente, melhorias no âmbito da con-
vivência ambiental e social, e da prática científica.
Considerações Finais
A diferenciação entre asserção de fato e juízo de valor é uma prática
arraigada em nossa sociedade. Essa diferenciação nos legou o estabeleci-
mento de uma perspectiva epistemológica dicotômica sobre fato e valor.
Esta perspectiva, no entanto, tem sido ampla e profundamente criticada,
principalmente, por duas frentes. Por um lado, são apresentados argumen-
tos contrários à preservação dessa dicotomia, admitindo-se apenas uma
diferenciação entre fato e valor, e a presença de ambos em determinados
momentos da prática científica. Por outro lado, a ideia contrária à neu-
tralidade, imparcialidade e autonomia de enunciados factuais, mesmo no
campo da ciência, bem como a compreensão da “objetividade forte” dos
juízos de valores, quando fundados em realidades humanas concretas, têm
conquistado um espaço crescente nas discussões correntes, levando à apos-
ta na existência de uma imbricação entre fatos e valores.
Ao refletirmos sobre as teses da diferenciação e da imbricação entre
fatos e valores, à luz de algumas das ideias de Putnam (2002), Lacey (2008)
e Longino (2017), sem ignorar a distância que elas mantêm entre si, che-
gamos em considerações de que: valores morais e sociais atuam, de modo
especial, no favorecimento de uma estratégias de pesquisa em detrimento
de outras; o modo (enviesado) como essa escolha de estratégia de pesquisa
é feita explica porque no âmbito científico são preferidos programas de
pesquisa importantes da perspectiva, por exemplo, dos interesses ligados ao
crescimento econômico (não distributivo) e às políticas que o defendem,
Amizade e Sabedoria
125
mas que são pouco relevantes da perspectiva dos interesses das “minorias
(maiorias) marginalizadas, dos movimentos populares e outras formas de
articulações sociais. Desafiar essa lógica, a partir da promoção de uma edu-
cação transformadora (da básica à científica), do desenvolvimento de pes-
quisas alternativas às correntes hegemônicas, parece ser um caminho que
se desenha para mantermos um lugar para a razoabilidade humana em vez
de uma racionalidade instrumental.
Não se trata de descartar a narrativa científica (falocêntrica) ainda
predominante, mas sim de reconhecer que ela, como qualquer outra nar-
rativa, está situada. Reconhecer o lugar de cada discurso conduz à compre-
ensão de que, apesar de sua dominância, a linguagem científica tradicional,
pretensamente universalista, não é neutra, objetiva, imparcial. Ao contrá-
rio, a linguagem científica tradicional apresenta uma perspectiva específica
(patriarcal, capitalista, imperialista) que dominou o cenário científico, não
obstante suas deficiências.
Argumentamos a favor da importância de abordagens feministas da
ciência que buscam o estabelecimento de um diálogo horizontal entre di-
versos saberes, de modo a acomodar, inclusive, grandes questões da atua-
lidade, como o papel da tecnociência frente à crise ambiental e social em
avanço.
Além do problema dos benefícios do progresso tecnocientífico não
serem distribuídos, uniformemente, entre ricos e pobres, a aceleração
da produção da tecnociência, nas condições socioeconômicas vigentes,
ultrapassou a capacidade suportável pelo planeta Terra, contribuindo
causalmente para o atual colapso ambiental em curso, que ameaça provocar
uma devastação irreversível no meio ambiente e no meio social. Mesmo
assim, a pesquisa científica não tem primado por produzir conhecimento
adequado para tratar desta crise instaurada, mas persiste em atender aos
anseios comercial-financeiros e políticos dominantes, seguindo uma tra-
dição, em alguns aspectos, já falida. É preciso recuperar a perspectiva da
horizontalidade das relações de saber, da colaboração, da solidariedade, do
respeito ao outro (entendido como ser humano, ser vivente ou mesmo a
natureza mais ampla).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
126
Desse modo, atingimos nosso objetivo se esse texto, para além de
trazer considerações sobe a questão dos valores cognitivos/sociais no do-
mínio de uma filosofia da ciência, provocar também uma reflexão sobre
as nossas próprias práticas, em escala individual (como nos relacionamos
com a natureza e a sociedade) e coletiva (como nos engajamos em pro-
jetos comunitários e em políticas de conhecimento), no que diz respeito
ao enfrentamento consciente das consequências nefastas do que tem sido
chamado genericamente de Antropoceno.
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São Paulo, São Paulo, 2015.
128
129
A Accademia Dei Lincei
A história de uma das
primeiras academias
cientícas1
Kleber CECON 2
1. Introdução
O estudo e a forma de organização das academias científicas parece
possuir muitas vantagens e é muito enriquecedor para análise da própria
ciência (Cecon, 2020). Dado isso, a história das academias científicas ad-
quire uma nova conotação para investigação da história da ciência e tam-
bém para a filosofia da ciência.
Gostaria de agradecer a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo
financiamento, assim como ao professor Daniel Garber por sua colaboração.
Livre-Docente em História e Filosofia das Ciências Naturais. Departamento de Filosofia/Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC)/Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)/Marília/São
Paulo/Brasil/e-mail: kleber.cecon@unesp.br
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p129-163
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
130
Paolo Rossi considera que a primeira organização científica foi a
Accademia dei Lincei (Rossi, 2001), ignorando, com base em alguns pos-
síveis critérios já discutidos na literatura secundária (Cecon, 2021), tanto
a Academia Secretorum Naturae (1560) de Giambattista della Porta (1535-
1615) como a Accademia Telesiana3. Ao contrário do que se poderia pensar,
aquela (que por muitos autores é considerada como a primeira academia
científica da história) não foi fundada por grandes e prestigiosos personagens
e nem mesmo em condições favoráveis. O fundador dessa academia era um
jovem nobre que, juntamente com três amigos (que, por sinal, não pos-
suíam muito prestígio social), fundaram uma academia em Roma. Depois
de seis meses, apenas um membro permaneceu lá, com os outros três es-
palhados numa larga faixa geográfica (Drake, 1970, p. 79). Essa academia
foi a Accademia dei Lincei. Uma possível tradução para o português seria
Academia dos Linces”, e ela teria sido fundada oficialmente em 1603, por
Federico Cesi (1585-1630), aos 18 anos (Rossi, 2001, p. 195), então segun-
do marquês de Monticelli (Drake, 1999, p. 129). De acordo com Scott,
seu pai também se chamava Federico Cesi (1562-1630), era marquês de
Monticelli, duque de Acquasparta e também feito posteriormente príncipe,
pelo Papa Paulo V (Scott, 2001, p. 94), de San Paolo e Sant’Angelo.
O fundador da Accademia dei Lincei nasceu no dia 13 de março de
1585 em um palácio da família em Roma. Era oriundo de uma família um-
briana influente, seu avô contraiu casamento com um membro da família
Caietani e sua mãe era membro da família Orsini. Seu tio Bartolomeo
chegou a ser cardeal em 1596 e seu pai era possuidor de muitos bens, entre
eles a residência oficial da família, onde Cesi passou sua infância, na pe-
quena cidade interiorana de Acquasparta, aos pés dos montes Apeninos na
região da Umbria (Freedberg, 2002, p. 66). Cesi foi privadamente educado
e se interessou muito por história natural desde pequeno e, enquanto esse
interesse teve forte oposição por parte de seu pai, ele foi intensamente en-
corajado por sua mãe (Scott, 2001, p. 94). Nas colinas próximas ao castelo
dos Cesi, especialmente nas regiões vizinhas de Dunarobba e Sismano, é
possível encontrar ao ar livre diversos restos de fósseis (Freedberg, 2002,
Antiga Accademia Cosentina, assumida por Benardino Telesio (1509-1588), que lhe deu um direcionamento
para a filosofia da natureza.
Amizade e Sabedoria
131
p. 69), além de flora e fauna exóticas. Cesi, durante sua infância, explorou
colinas, coletou fósseis e plantas, procurou animais e conheceu muito bem
cada pedaço de terra de sua região (Freedberg, 2002, p. 66). É possível
imaginar o infante Cesi caminhando entre os fósseis e se perguntando so-
bre sua origem (se mineral ou vegetal), observando diversas plantas e fun-
gos e se perguntando sobre sua reprodução, ou até mesmo observando ao
longe aqueles animais que já se imaginava terem uma visão melhor do que
a dos humanos: a águia e o lince, ambos existentes na região4.
O pai de Cesi (duque de Acquasparta e marquês de Monticelli)
não parecia compartilhar os mesmos interesses do filho. De acordo com
Freedberg, ele parecia ter sido de natureza hedonista, perdulário e com
fortes tendências “anti-intelectuais” (Freedberg, 2002, p. 66). Ele foi hostil
para com a academia fundada por seu filho desde o princípio, talvez em
parte por considerar o intenso estudo da natureza como um comporta-
mento inapropriado para um jovem nobre romano da época, ou talvez
porque não gostasse ou não tivesse confiança em algum dos membros da
academia (Drake, 1999, p. 131). Com o tempo essa diferença de tem-
peramentos iria colaborar para que Cesi procurasse colegas de interesses
similares em ambientes extrafamiliares.
2. Elementos 5 primários da academia: amigos e colegas com
interesses comuns
Durante sua juventude, o jovem Cesi acabou tendo relações de ami-
zade com outros garotos que também compartilhavam de sua curiosidade e
admiração pelo mundo natural. Alguns com pouca afinidade, e outros até
mesmo com personalidades antagônicas. Três amigos em especial o acom-
panhavam em seus devaneios sobre o mundo físico. Entre eles, Johannes
Heckius (1579-1616), Francesco Stelluti (1577-1652) e Anastasio de Filiis
Mais detalhes podem ser encontrados em Freedberg, 2002, obra que, por sinal, será muito referenciada
neste trabalho.
‘Elemento’ é um termo utilizado aqui para designar uma unidade básica de agregação (dentro de um
determinado grau de complexidade) em um processo organizacional. Para saber mais, favor consultar
Cecon (2020).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
132
(1577-1608). Esse grupo de amigos cujos membros tinham em comum
uma enorme simpatia para com assuntos da filosofia da natureza, teve seus
vínculos fortalecidos com o tempo, e esse laço continuou até que Cesi
decidiu oficializar a união desses naturalistas (Ornstein, 1924, p. 74). Em
uma reunião dos quatro amigos no Palácio da família em Roma, no dia 17
de agosto de 1603, foi oficializada a Accademia dei Lincei (Drake, 1999,
p. 130). Numa reunião do Natal de 1603, Cesi foi declarado príncipe da
academia (Freedberg, 2002, p. 68). O nome da academia foi dado prin-
cipalmente devido ao lince, um animal pequeno, de grande acuidade vi-
sual, que podia ser encontrado ocasionalmente nas colinas da região da
Umbria (Freedberg, 2002, p. 66). De acordo com Plínio, o Velho, em sua
História Natural, de todos os animais, o lince é o que vê mais claramente
(Freedberg, 2002, p. 68). Além disso, outra influência para o nome foi
o fato de que Lyncaeus era como era chamado o argonauta que possuía a
melhor visão (Freedberg, 2002, p. 66). Tudo isso para expressar o desejo
dos membros da Accademia dei Lincei de conseguir enxergar as minúcias
do mundo físico, seja na terra ou no céu, além da visão comum e ordinária.
Todos os integrantes da recém-formada academia eram muito jovens
e nenhum deles tinha mais do que vinte e seis anos (Freedberg, 2002, p.
67). Federico Cesi tinha apenas dezoito anos ao fundar a academia e foi seu
único financiador desde sua fundação até 1630, quando faleceu. (Drake,
1999, p. 129). Johannes Heckius era um médico holandês da cidade de
Deventer e era o mais letrado membro da formação inicial da academia
(Drake, 1999, p. 129-130). Ele era um homem de temperamento explo-
sivo. Francesco Stelluti era um devotado amigo de Cesi desde muito cedo
(Freedberg, 2002, p. 67), tinha uma personalidade amigável e fiel e um
talento especial para editar e comentar o trabalho de colegas. Anastacio
de Filiis era um homem nobre oriundo de Terni, era o membro funda-
dor com pior educação formal, não tinha o conhecimento do latim e era
dependente de seus colegas quanto a informações da natureza; portanto,
tinha uma desvantagem nesse sentido em relação aos seus colegas (Drake,
1999, p. 130).
A maneira como eles se conheceram foi curiosa. Heckius havia se
mudado da Holanda para a Itália. Ele estudou medicina na Universidade
Amizade e Sabedoria
133
de Perugia e tinha começado sua prática na Itália. Em junho de 1603, ele
foi aprisionado por ter assassinado um farmacêutico com quem ele tinha
indisposição desde longa data. Heckius acabou sendo preso em Roma,
onde ficou até chamar a atenção do jovem Cesi. Devido à mediação e
influência de Cesi e seu fiel amigo Stelutti, Heckius foi libertado. Depois
disso, Heckius e Cesi passaram a ser grandes amigos e Heckius passou a
viver na casa de Cesi. O médico bem instruído, e conhecedor de astrono-
mia e botânica, parece ter sido de grande influência para Cesi, e sua relação
com ele pode tê-lo inspirado para a criação de uma sociedade de mútua
instrução (Drake, 1999, p. 131).
Inicialmente existia um forte simbolismo na Accademia dei Lincei
e um formalismo muito próximo das místicas academias renascentistas.
Cada um dos quatro membros tinha um símbolo específico e um codino-
me interno. No caso de Federico Cesi, o segundo Marques de Monticelli,
ele tinha como codinome secreto Coelivagus6 e seu símbolo era uma águia
iluminada pelo sol segurando o globo terrestre com suas garras. Johannes
Heckius tinha como codinome Illuminatus7, seu símbolo era uma meia-lua
iluminada por um triângulo do sol. Francesco Stelluti tinha como codino-
me Tardigradus8 e seu símbolo era o planeta Saturno, considerado o mais
lento dos planetas conhecidos na época. Anastacio de Filiis era conhecido
internamente como Eclipsatus9, e seu correspondente emblema era exata-
mente o de um eclipse lunar (Drake, 1999, p. 130).
3. Um velho lince e um novo lince
A Accademia dei Lincei não permaneceu constante em toda sua
formação. Na verdade, sua identidade foi construída ao longo de um
Uma tradução livre para este termo seria “Admirador dos Céus”.
Uma tradução livre para este termo seria “O Iluminado”.
8 Uma tradução livre para este termo seria “O Lento”. Talvez seja importante frisar que esse termo não
se refere a uma lerdeza de intelecto, mas sim a uma posição na qual a verdade e o conhecimento são
considerados frutos de uma lenta e demorada empreitada.
Uma tradução livre para este termo seria “O Eclipsado”. Neste caso, parece que o símbolo, assim como o
codinome, procede de uma sensação de inferioridade intelectual de Anastácio em relação a seus colegas.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
134
processo, e não terminou com a adoção de um nome ou com a composição
de determinados membros. Em seus primórdios, a academia adotou uma
série de estruturas que ainda eram remanescentes do romantismo das
academias renascentistas, como um nome secreto, um símbolo específico,
um motto, um juramento de irmandade, anéis que evidenciavam associa-
ção e até mesmo um código para cifrar informações entre seus membros
(Drake, 1999, p. 129).
O emblema da sociedade permaneceu por toda sua existência e nele
existia um lince, animal, como já dito, de característica acuidade visual,
atacando e destruindo com suas garras o Cérbero10. Enquanto destrói a
infame criatura, o lince direciona seus olhos para o céu. A destruição da
horrenda criatura, enquanto visa algo superior e sublime, é uma represen-
tação adotada pela sociedade da aniquilação da ignorância pelo verdadeiro
conhecimento. O curioso é que esse emblema era associado com ativi-
dades mágicas, visto que esse mesmo símbolo estava na página de rosto
da edição napolitana de uma versão expandida da obra Magiae naturalis
de Giambattista della Porta, publicada em 1589 (Drake, 1999, p. 130).
Della Porta criou a Academia Secretorum Naturae ainda no século XVI.
Ela possuía um forte enfoque na filosofia da natureza, mas que visava mais
a satisfação de seus próprios membros e era praticamente uma socieda-
de secreta. Era uma academia local, sem contato com outras academias,
não patrocinou, nem realizou nenhuma publicação, não publicava seus
resultados e não tinha nenhum membro distinto além do próprio Della
Porta. O grupo chegou a enfrentar acusações formais de práticas de magia
(Drake, 1999, p. 128). Essa estrutura parece se encaixar bem nas acade-
mias do século XVI, e até pareceu uma inspiração, apenas inicial, para a
Accademia dei Lincei, não sendo impossível a existência de um caráter um
pouco místico na sua formação. Até mesmo Paolo Rossi (2001, p. 195)
admite que havia, pelo menos inicialmente, um clima de segredo e certa
orientação “paracelsiana” no grupo. Freedberg também comenta que os
10 Cérbero, na mitologia grega, era o cão que guardava a entrada do mundo dos mortos, o cão de guarda do
Hades. Ele impedia os mortos de sair e os vivos de entrar. Geralmente, é descrito como uma besta assustadora
de três cabeças com serpentes pelo corpo. A captura do Cérbero era um dos doze trabalhos de Hércules.
Amizade e Sabedoria
135
próprios membros da academia inicialmente se descreviam como “sagazes
investigadores das arcanas da natureza 11:
Algumas vezes o trabalho dos Linces pode ser visto como
acentuadamente antiquado e derivativo, muito avesso às antigas
autoridades e muito acrítico do que poderíamos chamar agora
de explicações “mágicas”. Eles nunca conseguiriam se livrar
completamente da história natural aristotélica, e frequentemente
eram muito menos avançados do que eles mesmos acreditavam
ser. Inicialmente eles se descreviam como sendo “os mais sagazes
investigadores das arcanas da natureza e dedicados às disciplinas de
Paracelso” (Freedberg, 2002, p. 67).12
Pelo que foi exposto nos parágrafos anteriores, parece que a Accademia
dei Lincei inicialmente flertou com atividades herméticas e com filosofias
renascentistas das academias seiscentistas, daquelas que Yates (1988, p.
2-3) dizia serem, sobre certo aspecto, mais religiosas até mesmo do que as
filosofias medievais. Porém, não parece que tais atividades sobrepujaram o
foco da Accademia dei Lincei, pelo menos não por muito tempo e nem de
forma muito efetiva. Drake (1999, p. 130) afirma que, quando a academia
já adicionava novos membros em 1610, ela já havia abandonado noções
místicas associadas a juramentos de irmandade, ideia romântica de codino-
mes secretos e símbolos emblemáticos para seus membros.
Com o desenrolar das atividades da academia, o foco da mesma era
a discussão de novas ideias a partir do material coletado por seus mem-
bros. As atividades dos Linces eram diversas. A presença nas reuniões era
importante. Nelas imperava um espírito sinceramente crítico e cada um
dos membros deveria ensinar aos outros o resultado de seus estudos. Além
disso, dentre as atividades de campo estavam a coleta de espécimes e o
subsequente exame, registro e classificação do que quer que eles encontras-
11 Arcana” é um termo alquímico usado para designar um antigo e hermético segredo passado discretamente,
tanto via tradição oral como por textos codificados.
12 At times the work of the Linceans can seem cripplingly old-fashioned and derivative, far too deferential
to ancient authority and much too uncritical of what we would now call ‘magical’ explanation. ey
could never hope to free themselves altogether from Aristotelian natural history, and often they were less
advanced they thought themselves to be. Early on they described themselves as ‘most sagacious investigators
of the arcanities of nature and dedicated to the Paracelsan disciplines’” (Freedberg, 2002, p. 67).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
136
sem, fosse animal, vegetal ou mineral. Eles trocavam informações sobre
os movimentos de astros celestes e discutiam sobre filosofia da natureza e
metafísica. Dentre as atividades estava também a de construção de instru-
mentos, como um complexo astrolábio e um planisfério (onde eles marca-
vam as constelações e os planetas). Eles até mesmo estudavam o árabe para
ler os manuscritos de grandes escritores árabes da Idade Média. A base de
suas reuniões era sempre a discussão de ideias e o intercâmbio de informa-
ções a respeito de tudo que era coletado (Freedberg, 2002, p. 68). Foram
determinados estatutos que regiam o comportamento dos membros e as
regras de admissão de novos membros da academia. Esse documento es-
crito por Cesi foi chamado de Linceographo. O documento tinha poucas
regras práticas e, de acordo com Rossi (2001, p. 196), nunca foi publicado.
Uma dessas regras foi sempre seguida à risca e chama a atenção: a proibição
expressa de qualquer um dos membros da Accademia dei Lincei pertencer
a uma ordem religiosa. Essa proibição, teoricamente, decorreria do fato de
que a academia queria manter-se distante de discussões desse cunho e já
existia uma retórica de conhecimento independente de assuntos religiosos
e políticos. A ideia era que outros assuntos não invadissem o foco da dis-
cussão dos fenômenos naturais (Rossi, 2001, p.196). Rossi confirma essa
tendência na academia:
Como todas as academias científicas, os Lincei aspiravam
reivindicar (dentro de certos limites) o direito ao conhecimento
independente, mantendo o não conflito entre ciência e religião e
ciência e sociedade. Os membros dos Linces, “explicitamente nos
termos de seu estatuto baniram todas as discussões de assuntos
não naturais ou matemáticos e consideraram discussões políticas
como não bem vindas, e que deveriam ser deixadas para outras
pessoas” (Olmi, 1981:193). Elementos que marcaram as atividades
dos Lincei como “científicas” incluíam seu foco em matemática e
experimentos naturais, as disputas com as universidades [...] e a
insistência da natureza “pública” do conhecimento (Rossi, 2001,
p. 196).13
13 “Like all scientific academies, the Lincei aspired to claim (in a limited sphere) the right to independent
knowledge, maintaining the non-conflict between science and religious and science and society. Members
of the Lincei, ‘by explicit virtue of their constitution, have outlawed all discussion of subjects not natural
or mathematical and have deemed political discussions as unwelcome, and so to be left to others’” (Olmi,
1981, p.193) “Elements that clearly marked the activities of the Lincei as ‘scientific’ included their focus on
mathematics and natural experiments, the quarrel with universities […] and the insistence of the ‘public’
Amizade e Sabedoria
137
O enfoque da filosofia natural tomava, pelo menos em teoria, um
aspecto independente e autônomo. Com o tempo, eles se convenceram de
que cada vez mais o resultado de seus debates os afastava das antigas teorias
da natureza e abria uma grande e ampla gama de possibilidades cujo único
juiz não poderia ser o comentário de um autor clássico. Acima de tudo, o
que eles perceberam é que, no lugar de confiar cegamente na autoridade
dos antigos autores, era crucial realizar atividades práticas e experimentos,
assim como observações em primeira mão, diretamente da natureza. A
orientação experimental e de cunho matemático, para ler o livro da natu-
reza, já estava presente nas suas Praescriptiones da academia14:
A Academia dos Linces deseja conhecimento verdadeiro, assim
como seus membros filósofos que estão ansiosos por ele, e que se
entregarão ao estudo da natureza, especialmente da matemática;
[...] Pois existem muitas oportunidades filosóficas para todos por
conta própria, particularmente se esforços forem tomados na
observação de fenômenos naturais e no livro da natureza, que
está sempre à mão; ou seja, os céus e a terra. ... Que os membros
adicionem aos seus nomes o título de Linces [...] Os Linces ficarão
em silêncio sobre todas as controvérsias políticas e todos os tipos
de brigas e disputas mundanas, especialmente as gratuitas que dão
ocasião à dissimulação, a inimizade e ao ódio, como homens que
desejam a paz e procuram preservar seus estudos de molestações
e que evitam quaisquer tipos de distúrbio. E caso alguém por
ordem de seus superiores, ou por qualquer outro tipo de obrigação,
for forçado a lidar com tais questões, deixe que suas obras sejam
impressas sem o nome dos Linces, já que estão alheios às ciências
físicas e matemáticas e, portanto, aos objetos da academia (Drake,
1999, p. 128-129).15
nature of knowledge” (Rossi, 2001, p. 196).
14 As prescrições da Accademia dei Lincei, embora redigidas em 1604 – 1605, foram publicadas apenas
em 1624.
15 “e Lincean Academy desires as its members philosophers who are eager for real knowledge, and who will
give themselves to the study of nature, and especially to mathematics; […] For there is ample philosophical
employment for everyone by himself, particularly if pains are taken in observation of natural phenomena
and the book of nature which is always at hand; this is, the heavens and the earth. … Let members add
to their names the title of Lincean […] e Linceans will pass over in silence all political controversies
and every kind of quarrels and wordy disputes, especially gratuitous ones which give occasion to deceit,
unfriendliness and hatred, as men who desire peace and seek to preserve their studies from molestation
and would avoid any sort of disturbance. And if anyone by command of his superiors or some other
requirement shall be reduced to the handling of such questions, let those be printed without the name of
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
138
O interessante é que consta no texto o termo “livro da natureza”.
Essa é uma expressão que ressoou nos escritos de muitos membros da aca-
demia, como na obra Il Saggiatore (1623) de Galileu Galilei, por exemplo.
Essa era uma analogia para contrapor ao livro de uma grande autoridade
clássica, visto que o livro da natureza pode ser consultado diretamente
por qualquer pessoa, a qualquer momento, pois este é composto do céu
e da terra, abertos a todos. O livro a ser comentado não era das grandes
autoridades clássicas, mas o próprio mundo, diretamente. Esse livro não
seria destinado para um dado grupo de seguidores, mas para todos. Porém,
a leitura desse livro exigiria olhos aguçados e atentos, e até mesmo as len-
tes corretas. Ela poderia apenas ocorrer se fosse penetrada a superfície das
coisas. Para isso, um levantamento de dados inicial era necessário. Plantas
que cresciam ao redor de fósseis, os fósseis, os fungos, animais, tudo era
coletado e catalogado. Um grande número de desenhos foi feito, visando
registrar toda riqueza natural coletada. Animais e plantas foram observa-
dos e dissecados (Freedberg, 2002, p. 68), e até mesmo testes com fósseis
foram realizados.
Cesi insistia que era necessário desenhar tudo que fosse visto no
mundo natural para posteriormente publicar seus resultados. Essa dissemi-
nação do conhecimento era importante, pois todos os dias a natureza pare-
cia revelar aspectos até então desconhecidos ou pelo menos não registrados
pelos antigos e até mesmo por seus contemporâneos (Freedberg, 2002, p.
98). Cesi e seus amigos continuamente descobriam mais e mais da natu-
reza, daquilo que parecia ter escapado aos olhos de outros, assim como
faziam perguntas que pareciam ainda não terem sido feitas. Afinal, como
se reproduzem as samambaias? O que são os fósseis? São de origem animal,
vegetal ou mineral? Por que alguns brilhavam no escuro? Porque alguns
esquentavam quando imersos na água (Freedberg, 2002, p. 69)? Sem dú-
vida, o mundo era mais do que os olhos podiam ver, e para desvendar os
segredos da natureza seriam necessários novos olhos, olhos de um lince.
Lincean, since they are alien to physical and mathematical science and hence to the objects of the Academy
(Drake, 1999, p. 128-129). As prescrições da Accademia dei Lincei também podem ser encontradas em
Pirro (2005, p. 207-218).
Amizade e Sabedoria
139
4. A caça ao lince
Seguramente a natureza hedonista, perdulária e “anti-intelectual”
(como definida por Freedberg) do pai de Federico não permitiu que ele
apreciasse muito as atividades sociais do filho, a saber, uma sociedade de
investigadores da natureza. Freedberg afirma que mais tarde o acirramento
entre pai e filho chegou ao ponto de que aquele (pai) retirou de Cesi seus
direitos de primogênito, e que ele apenas conseguiu o título de príncipe de
Sant’Angelo e San Paolo pela concessão do Papa Paulo V, numa espécie de
compensação por terem sido retirados dele seus direitos de primogenitura
(Freedberg, 2002, p. 66). Outra evidência de perseguição foi a sistemática
oposição que o pai de Cesi exerceu sobre a academia de seu filho, objeti-
vando que ela cessasse suas atividades, coisa que, por pouco, não foi bem
sucedida. Já no final do ano de 1603, o pai de Federico tinha começado
suas artimanhas contra a Accademia dei Lincei, fazendo tudo que podia e
que estava ao seu alcance para separar seus quatro integrantes. Ele parece
ter acreditado que Heckius, um assassino já condenado, era um protestan-
te que queria convencer seu impressionável filho a ir embora com ele para
a Holanda. O pai de Cesi, assim como todos os outros membros de sua
residência, ficou paranoico com a escrita criptográfica que os Linces desen-
volveram para se comunicarem entre si (Freedberg, 2002, p. 69). Ele asso-
ciou potencialmente o clima de segredo da academia do filho com algum
complô político. Depois de não conseguir persuadir o filho a desistir da
ideia da academia, o velho Cesi tentou aprisionar Heckius novamente, pri-
meiro recorrendo às autoridades civis e, depois, às eclesiásticas. Como mé-
dico, Heckius sabia como preparar venenos, situação da qual o velho Cesi
tentou se aproveitar para expulsá-lo por duas vezes (Drake, 1999, p. 131-
132). Depois disso, o pai de Cesi fez um processo formal contra Heckius,
acusando-o de heresia (Freedberg, 2002, p. 69). De acordo com Drake,
nenhuma dessas artimanhas funcionou; porém, a situação tornou-se tão
insuportável e desagradável que, no início de maio de 1604, Heckius dei-
xou Roma escoltado por guarda-costas de Cesi. Pouco depois disso, Stelluti
retornou para Fabriano, e De Filiis deixou Roma para retornar a sua casa
natal em Terni (Drake, 1999, p. 132). Logo, de qualquer forma, dentro
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
140
de alguns meses, tanto o instável e nervoso Heckius, assim como o calmo
e tranquilo e “bem ajustado” Stelluti foram expulsos de Roma (Freedberg,
2002, p. 69). O duque de Monticelli conseguiu o que queria, e assim afas-
tou os membros da Accademia dei Lincei para longe. Infelizmente, para ele,
seu filho continuaria obstinadamente a se recusar a participar da vida social
da cidade como seu pai exigia (Drake, 1999, p. 132).
A situação da academia não parecia muito boa. O Lince estava fe-
rido. Stelluti não foi mais longe do que Parma, enquanto Heckius viajou
por toda Europa e acabou ficando um tempo em Praga com o nome falso
de Gisberto Tacconi. A situação se agravou ainda mais quando De Filiis
morreu em 1608, gerando uma gravíssima lacuna no grupo. Fora o patro-
no, um dos membros estava morto e os outros dois fora de Roma. Uma
solução seria sair de Roma e iniciar a adição de novos membros. Antes
mesmo da morte de De Fillis, Cesi havia saído de Roma para se juntar a
Stelluti e tentar se aproximar de seus amigos e encontrar novos interessa-
dos em suas atividades. Acabou em Nápoles, onde pretendia estender a
Accademia dei Lincei. Lá encontrou Fabio Colonna (botânico), Ferrante
Imperato (dono de museus e colecionador de itens de história natural),
além do próprio Giovanni Battista della Porta (Freedberg, 2002, p. 71-72).
Aparentemente, a empatia de Cesi com o autor da Magiae naturalis (1558)
foi imediata e recíproca. Em algum tempo, Della Porta já era o mais novo
membro da Academia, o quinto a integrar o grupo. A publicação de um
livro de alquimia sobre destilação, De distillatione, no final de 1608, já fora
lançado sobre os auspícios da academia. Na prática o grupo continuava
pequeno, pois De Filiis havia morrido, e Heckius estava enlouquecendo
em suas andanças pela Europa, apesar de ainda manter contato (Freedberg,
2002, p. 73). Em 1611, devido às suas observações astronômicas, um jo-
vem promissor chamado Galileu Galilei seria convidado a se tornar o sexto
membro da Accademia dei Lincei, convite aceito com muita honra.
A partir deste ano, a academia expandiu-se muito, embora nem
todos tenham nela permanecido. Logo depois de Galileu, Cesi convidou
três alemães para a academia: O primeiro foi Johannes Schreck, botânico,
também se tornou membro dos Linces em 1611, mas teve que renunciar
posteriormente, pois se tornou jesuíta e o estatuto da academia não per-
Amizade e Sabedoria
141
mitia a quem a compunha fazer parte de ordens religiosas (porém conti-
nuou a dar suporte, enviar informações, cartas e amostras para a academia,
mesmo não sendo um membro oficial); o segundo foi Johannes Faber,
médico, professor de medicina e superintendente do Jardim do Papa; o
terceiro foi Markus Welser (que também foi membro da Accademia della
Crusca) de Augsburg ingressou em 1612 e foi para ele que Galileu enviou
sua carta sobre as manchas solares em 1613. Um jovem nobre notável
chamado Virginio Cesarini (influente membro da igreja católica) tornou-
-se um grande apoiador de Galileu e foi também membro integrante da
academia em 1618, assim como Giovanni Ciampoli, alto oficial da corte
papal que também se tornou membro, e Cassiano del Pozzo (que teve
grande papel na publicação dos trabalhos da academia), entre muitos ou-
tros. (Freedberg, 2002, p. 74). Alguns membros podem ter sido aceitos por
indicação em respeito a outros membros, podendo ser o caso de Filesio,
filho de Della Porta, que foi aceito aos 18 anos, provavelmente por uma
apreciação pelos trabalhos de seu pai à academia, ou Angelo de Filiis, ir-
mão do falecido Anastasio. Seguramente esse não foi o caso dos oriundos
de Nápoles, Nicolò Stelliola (que já tinha dividido prisão com Giordano
Bruno e Tommaso Campanella16) e Fabio Colonna. Também foram mem-
bros o grande geômetra e astrônomo Luca Valerio (censor e revisor das
publicações dos Linces a partir de 1616), o especialista em árabe Diego
de Urrea Conca e o matemático Filippo Salviati (Freedgerg, 2002, p. 113-
116). Os Linces procuraram membros importantes e pessoas de alta po-
sição que estivessem interessados em suas atividades, entre eles o cardeal
Francesco Barberini. Um grande apoiador deles, apesar de nunca ter sido
membro, foi Maffeo Barberini, amigo de Galileu e que viria a se tornar
o Papa Urbano VIII. Cassiano chegou a mencionar que um homem bri-
lhante chamado Francis Bacon17, que seguramente poderia ser convidado
para se tornar um membro, mas que infelizmente morava muito longe
(na Inglaterra) (Freedgerg, 2002, p. 75-76). Outro membro estrangeiro
16 Giovanni Dominico Capanella, conhecido como Tomasso Campanella (1658-1639), foi um filósofo e
teólogo dominicano, apoiador de Galileu e ativista político. Devido às suas atividades políticas contra o
domínio espanhol no reino de Nápoles, Campanella foi aprisionado.
17 Apesar de ter preconizado a importância das instituições científicas, Middleton diz que aparentemente
Lorde Chanceler jamais participou de nenhuma sociedade, e parece não ter ficado em contato com nenhum
grupo que realizava atividades experimentais em seu próprio tempo (Middleton, 1971, p. 3).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
142
que foi proposto para participar da academia, mas não foi efetivado, foi
Johannes Kepler (Drake, 1999, p. 140).
Pode-se dizer que a Accademia dei Lincei, depois de ter sido quase
destruída pela perseguição exercida pelo pai de Cesi18, tornou-se depois de
pouco tempo uma das mais poderosas e bem relacionadas sociedades de
sua época. O número de membros da organização só cresceu e chegou a
atingir a marca de 32 membros ativos19 (Ornstein, 1924, p. 74). O Lince
foi caçado, ferido e agonizou, porém sobreviveu, ganhou força, adquiriu
novos membros, tornou-se forte. Estava na hora de mostrar suas garras,
atacar o Cérbero e olhar para o céu.
5. Os olhos dos linces voltados para o céu: o telescópio
Galileu Galilei foi provavelmente o mais famoso membro da
Accademia dei Lincei. Quando foi convidado para fazer parte da academia
ele já era muito conhecido devido às suas observações dos céus. No início
do século XVII, na região dos Países Baixos, havia sido desenvolvido e dis-
18 Na verdade, dependendo da interpretação, esse pode até ter sido o caso. Ornstein, por exemplo, afirma que
a sociedade foi efetivamente desfeita, “mas em 1609 eles foram reorganizados em larga escala” (Ornstein,
1928, p. 74). O mesmo afirma Rossi: “[A] família de Cesi era contra sua participação no grupo, e então
ele foi dissolvido. A academia foi revivida, entretanto, em 1609” (Rossi, 2001, p. 195). Nesse caso, parece
mais razoável a interpretação de Drake, o qual afirma que pela situação em que a academia se encontrava,
ela deveria ter colapsado. Ainda assim, ela sobreviveu e continuou seu propósito (Drake, 1999, p. 127).
Essa interpretação parece estar totalmente de acordo com as informações apresentadas por Freedberg, que
não fala nem em quebra, nem em dissolução, mas num período difícil em que as atividades da academia
continuaram e que, para todos os fins, ela continuou existindo mesmo em circunstâncias extremamente
desfavoráveis (Freedberg, 2002, p. 69-73). Heckius, em 1606, chegou a retornar em segredo algumas vezes
para alguns encontros em Roma, mas sempre fugia novamente, totalmente alucinado e paranoico. Cesi
mudou de ambiente de Roma para Nápoles. Stelluti tinha mudado para Parma e ia e voltava de Fabriano,
sua cidade natal. De Filiis ficou a maior parte do tempo em Ferni, antes de sua morte. A situação era
incômoda, mas eles continuaram nesse período suas pesquisas em história natural, “especialmente em
fósseis, fungos, e plantas, observando e coletando o máximo que podiam” (Freedberg, 2002, p. 101).
19 Eis a lista completa: Federicus Caesius, Joannes Eckius, Franciscus Stellutus, Anastasius de Filiis, Joannes
Baptista Porta, Galilaeus Galilaeus, Joannes Terrentius, Joannes Faber, eophilus Molitor, Antonius Persius,
Philesius Porta Costantius, Nicolaus Antonius Stelliola, Fabius Columna, Didacus de Urrea Conca, Angelus
de Filiis, Lucas Valerius, Joannes Demesianus, Marcus Velserus, Philippus Salviathus, Cosmus Rodulphius,
Vincentius Mirabella, Philippus Pandolfinus, Virginius Caesarinus, Joannes Ciampolus, Carolus Mutus,
Claudius Achillinus, Cassianus Puteus, Josephus Nerius, Franciscus Barberinus, Marius Guiduccius, Caesar
Marsilius, Justus Riquius. Esta lista foi extraída do Catálogo em latim com os nomes originais dos 32
membros da Accademia dei Lincei (Pirro, 2005, p. 219-221).
Amizade e Sabedoria
143
seminado o uso de um objeto visando observações a longas distâncias, uma
espécie de luneta. Esse objeto permitia observar coisas distantes mais defi-
nidas e inicialmente teve objetivos bélicos, pois, afinal, era possível obser-
var com maior precisão a movimentação de tropas e navios. Galileu gostou
muito do aparelho e chegou a adaptá-lo, já em 1609, com outro objetivo,
o de poder observar os céus. Della Porta chegou a afirmar em uma carta
para Cesi, naquele mesmo ano, que os princípios básicos do telescópio já
estavam descritos no capítulo 9 de sua obra De Refractiones Optices (1593)
havia muito tempo e arrogava a autoria do aparelho; porém, nessa época,
Galileu tinha um instrumento muito mais sofisticado do que Giambattista
della Porta tinha vislumbrado e já havia realizado diversas observações rele-
vantes (Freedgerg, 2002, p. 101). Em outra mensagem para Cesi em 1610,
ele admite que apesar de já ter descrito anteriormente os princípios básicos
de funcionamento do telescópio, Galileu estava muito à frente tanto no
uso como no desenvolvimento do aparelho:
Eu lamento dizer que a invenção de lentes em um tubo foi minha,
mas o Professor de Pádua Galileu a adaptou, e com isso ele
descobriu quatro planetas no céu, centenas de novas estrelas fixas, e
também muitas, nunca vistas antes, na Via Láctea, e grandes coisas
na superfície da lua, deixando o mundo perplexo (Della Porta apud
Freedgerg, 2002, p. 102).20
As observações astronômicas de Galileu faziam no céu o mesmo que
as coleções de Cesi e seus amigos faziam em terra. Com suas coletâneas
e experimentos de rochas, fósseis, plantas e animais, eles estavam todos
reunindo informações nunca antes registradas pelas autoridades clássicas,
preferindo checar por si mesmos o grande livro da natureza. No caso de
Galileu, suas observações poderiam até mesmo servir como evidência de
que a teoria celeste de Aristóteles poderia estar equivocada. Antes mesmo
do uso do telescópio, algumas observações do céu já trilhavam esse cami-
nho. É o caso da observação de uma estrela que surgiu, brilhou fortemente
20 “I regret to say that the invention of the eyeglass in a tube was mine, but the Professor from Padua Galileo
adapted it, and with it he has found four other planets in the sky, and thousands of new fixed stars, and just
as many, never seen before, in the Milky Way, and great things on the orb of the moon, which fill the world
with astonishment” (Della Porta apud Freedgerg, 2002, p. 102).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
144
por dias e gradualmente desapareceu do céu. Esse fenômeno foi observado
na região centro-sul da Europa no ano de 160421. O fenômeno foi larga-
mente debatido pelos astrônomos da época e dividia opiniões (Freedgerg,
2002, p. 81).
Para os escolásticos ortodoxos ligados às universidades, o fenômeno
da estrela nova só poderia ser sublunar,22 fenômeno que, por alguma razão
nunca tendo sido observado pelos antigos, depois, por algum motivo, de-
sapareceria novamente. Galileu, em suas palestras sobre a nova estrela, em
1604, defendia que o fenômeno da estrela nova estava acontecendo para
além da camada sublunar, localizando-o na região das estrelas fixas onde
nenhuma nova estrela poderia surgir. Ele defendia essa teoria baseado na
ausência de paralaxe23 observada nesta nova estrela (Freedgerg, 2002, p.
85). Para ele, a física defendida pela ortodoxia tinha algo de errado, e esta
nova estrela era uma clara evidência disso. Questões como essa da paralaxe
desta estrela não encontravam muito lugar dentro das universidades, pois
a estrutura rígida dela não permitiria uma interpretação que confrontasse
a ortodoxia aristotélica. Por isso mesmo, um grupo cada vez maior de pen-
sadores, assim como suas estranhas teorias, observações e experimentos,
encontrava lugar fora da universidade e dentro das academias. Não é que
esses fenômenos não fossem discutidos dentro das universidades; evidente-
mente que sim, mas todos interpretados à luz de comentários dos grandes
autores clássicos. No caso da questão específica da paralaxe, o assunto era
deixado como uma incógnita, uma anomalia, ou simplesmente se afirmava
que a paralaxe não era um bom modo de medir distâncias. Posteriormente,
o que aconteceu é que cada vez mais situações como esta fortaleciam o tom
agressivo das academias, aumentando assim o tom defensivo das universi-
dades e, com o tempo, o embate endureceu a ambas24.
21 Esse fenômeno poderia ser descrito por astrônomos contemporâneos como a explosão de uma supernova.
22 Era necessário manter esse fenômeno fora da região celeste, depois da lua, pois essa é uma área que não está
sujeita nem à geração, nem à corrupção, de acordo com a física aristotélica.
23 A paralaxe é um fenômeno ótico. Quando um objeto é observado de perto, ele parece se mover quando é
visto a partir de diferentes posições. Quanto mais distante esse objeto estiver, menor será a paralaxe. Como
a nova estrela observada em 1604 não apresentava nenhuma alteração perceptível entre os diferentes locais
onde fora observada, Galileu afirmou que ela deveria estar muito mais distante do que a Lua, que apresenta
uma clara paralaxe.
24 Não era a primeira vez que uma supernova era observada. Um caso semelhante de outra nova ocorrera em
1572, assim como um cometa que gerara questões similares em 1577. Isso levou Tycho Brahe a conclusões
Amizade e Sabedoria
145
Um ponto interessante digno de nota é que Galileu não acreditava
que essa estrela fosse um corpo ígneo puramente celeste, e nem mesmo
um corpo fixo e combustível, mas sim uma massa composta de vapores
e exalações terrestres. Ou seja, essa estrela teria origem terrestre e móvel,
que atingiria a região das estrelas fixas, sendo assim responsável pelo fenô-
meno da estrela nova, que seria basicamente apenas o efeito da reflexão da
luz em gases terrestres (Freedgerg, 2002, p. 84, 91). Esta mesma teoria é
a que ele iria aplicar aos cometas anos mais tarde, especialmente no caso
daquele de 1618, em que teve uma disputa acirrada com Orazio Grassie
do Observatório Romano, jesuíta que mantinha serem os cometas corpos
ígneos reais e em combustão que permaneciam dentro da região sublunar
e, portanto, fora da esfera celeste (Redondi, 1991)25.
Em 1604, Galileu recebeu críticas de suas palestras, em Pádua (onde
foi professor na Universidade de Pádua), a respeito do uso da paralaxe para
determinar a posição do fenômeno da nova estrela. Em resposta, escreveu
em italiano vulgar um irônico, satírico e engraçado diálogo anônimo entre
os personagens Matteo e Natale que irritou os jesuítas (Freedgerg, 2002,
p. 86-89). O sucesso da obra pode ter sido uma maneira pela qual Galileu
percebeu que a língua vulgar pode ser mais útil que o latim para disseminar
uma ideia, já que nos ambientes acadêmicos elas podem ser simplesmente
ignoradas, caso levem a conclusões indesejadas pelo status quo. Os Linces
na época estavam a par dessa discussão, e Cesi chegou a financiar um trata-
do de Heckius (na época em Praga) sobre a nova estrela em 1605. Essa foi,
por sinal, a primeira publicação sobre a égide dos Linces (Freedgerg, 2002,
p. 91). Parece que foi apenas em 1609 que Galileu voltou seu telescópio
para os céus, e aí suas observações tiveram um impacto tremendo e auxilia-
ram a fornecer novos dados sobre o mundo celeste. Ele avistou montanhas
similares às de Galileu, de que o modelo Ptolomaico estava comprometido e que a teoria das esferas celestes
sólidas e fixas precisava ser modificada. Isso o levou a propor um sistema misto, que tentava adequar suas
novas observações sem aceitar o heliocentrismo do modelo copernicano. Sua postura foi quase como a dos
jesuítas, que viam claramente que existia um problema com o sistema ptolomaico, mas que por ortodoxia
negavam-se o direito de apoiar as consequências de um modelo copernicano, tentando ajustar os dados à
visão ortodoxa vigente (Freedberg, 2002, p. 82-83).
25 Para mais informações ver o livro de Redondi (1991). Independente das conclusões gerais do autor a
respeito do julgamento de Galileu, Redondi dá um excelente panorama das discussões de Galileu com os
jesuítas do observatório romano, especialmente com Orazio Grassi a respeito dos cometas.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
146
e crateras da lua26, as estrelas de Orion e Touro, incontáveis estrelas da via
láctea e nebulosas (Freedgerg, 2002, p. 102). Galileu colocou todas as suas
observações juntas e publicou um livro chamado Sidereus nuntius (1610),
que, completo sucesso, chamou ainda mais a atenção dos Linces para ele e
ajudou a colocá-lo na corte dos Médici. Galileu dedicou a obra ao Grão-
duque Cosimo II de Médici. Em sua dedicatória a ele, lê-se:
Eu irei, nesse pequeno tratado, trazer grandes notícias para aqueles
que têm o habito de contemplar a natureza. As coisas são grandes
não apenas devido à sua beleza, mas também devido ao instrumento
através do qual elas se apresentam (Galileu apud Ornstein, 1924,
p. 26-27).27
Dentre as estrelas que Galileu descobriu estavam quatro satélites que
orbitavam ao redor de Júpiter. Galileu as chamou de “Estrelas dos Médici”
e associou cada uma a cada um dos quatro irmãos Médici que governa-
vam durante o período. Com isso, Galileu inscreveu o nome da poderosa
família nos céus e associou seu poder com a eternidade celeste. O uso do
telescópio garantiu a Galileu uma posição na corte como matemático e
filósofo, o que lhe rendeu um patronato pelo resto de sua vida com altos
salários e uma tremenda ascensão social. Essa era uma posição muito dese-
jada por intelectuais, e também era muito vantajoso para a corte se utilizar
desses novos representantes da elite cultural europeia visando aumentar seu
prestígio e status de patrono (Boschiero, 2007, p. 20). Galileu aceita então
o patronato, assim como uma posição de professor da Universidade de
Pisa (mas sem a necessidade de dar aulas) e assume a posição de filósofo e
matemático do Grão-duque Cosimo II de Médici. Nesse mesmo período,
é aceito oficialmente como membro da Accademia dei Lincei no dia 25 de
abril de 1611 (Freedgerg, 2002, p. 112). Este deve ter sido um período de
extrema satisfação para Galileu.
26 O que é um sério problema para a teoria celeste de Aristóteles, que prediz que os planetas são como
esferas perfeitas.
27 “I shall in this small tract bring great news to those who are in the habit of contemplating nature. ings
great not only on account of their beauty, but also on account of the instrument through which they
presented themselves” (Galileu apud Ornstein, 1924, p. 26-27).
Amizade e Sabedoria
147
As observações astronômicas continuaram e Galileu registrou as
manchas solares, também sinal de imperfeições nos astros celestes, consta-
tou as diferentes fases de Vênus, fazendo ganhar força a teoria heliocêntri-
ca. Publicou diversas obras sob a égide da academia, que tiveram grande
impacto, como é o caso de O Ensaiador (1623) e o Diálogo sobre os dois
máximos sistemas de mundo (1632). O auxílio e apoio dos membros da
Accademia dei Lincei foram relevantes para a publicação de algumas de
suas obras.
6. A censura, galileu exegético e a publicação do Il Saggiatore
Por mais incrível que pareça, a relação inicial de Galileu com os je-
suítas e com a Igreja não era tão problemática como ficou no final de sua
condenação. Foi uma situação que foi se agravando paulatinamente. No
início do século XVII, parece que a postura da Igreja não era tão rigorosa,
mas se tornou assim no decorrer do tempo. Inicialmente, a Igreja manti-
nha-se relativamente despreocupada sobre a posição de alguns astrônomos
que, como Galileu, estavam começando a acreditar no sistema heliocêntri-
co do universo. Foi assim com Tycho Brahe e até mesmo Copérnico, pois a
realidade efetiva de seu modelo não era uma preocupação28 (Cohen, 1987).
Muitos jesuítas do próprio Colégio Romano29, um dos bastiões do aristo-
telismo na época, assumiram tais posições em suas palestras (Freedberg,
2002, p. 85).
28 Copérnico claramente distingue sua teoria de uma pura instrumentalização matemática, como é o caso
do modelo ptolomaico. Sua proposta de “esferas”, e não “círculos”, infere uma hipótese de filosofia da
natureza. Porém, ele ainda era interpretado dentro de uma tradição na qual a astronomia era uma área da
matemática, e não da física. A questão se seu modelo era a real estrutura do universo (ou não) era uma
questão secundária, se não terciária. Por isso mesmo, muitos historiadores da ciência estabelecem que a
chamada “Revolução Copernicana” só foi efetivada muito tempo depois com Kepler, Galileu e Newton,
e não propriamente com Copérnico. Para saber mais, favor consultar COHEN, 1987 (especialmente o
capítulo III, item 7).
29 O colégio romano era considerado uma das mais eminentes instituições de ensino das artes e da religião.
Era responsável pela educação de membros das mais poderosas famílias romanas e era orientado por jesuítas
de conhecido rigor intelectual e moral. A teologia tinha um currículo e orientação tomistas e as ciências
naturais tinham um viés estritamente aristotélico. O cardeal Bellarmino, outrora jesuíta, tinha suprema
influência junto a ele (Freedberg, 2002, p. 106-107).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
148
Depois da publicação do Sidereus Nuncius, Galileu queria apresentar
seus resultados para apreciação do Colégio Romano. O cardeal Bellarmino,
que teve inicialmente uma atitude muito cordial com Galileu, organizou
uma comissão de quatro jesuítas para se pronunciar a respeito da validade
das observações do autor do Sidereus Nuncius. Galileu foi acompanhado
de Federico Cesi, que o apoiou e incentivou os eventos envolvendo sua
apresentação no Colégio Romano (Freedberg, 2002, p. 107). Os Linces
sabiam, por suas diárias descobertas, que existia realmente mais na terra e
no céu do que aquilo que é imediatamente perceptível aos olhos humanos.
Era importante que mais pessoas pudessem ver aquilo que os Linces viam,
e assim pudessem alçar voo para mais longe do que os textos dos grandes
autores clássicos poderiam permitir.
Na noite de 14 de abril de 1611, a comissão se reuniu e todos obser-
varam os céus através do telescópio (chamado na época ainda de cannoc-
chiale) de Galileu. O aparelho foi testado para ver objetos conhecidos que
estavam distantes em terra, e depois foi usado nos céus. Durante toda noite
aquele grupo ficou admirando as estrelas, a lua e os planetas com crescente
entusiasmo. Não existiam mais jesuítas, Linces, professores ou comissão, o
que havia ali eram pessoas focadas nos fenômenos celestes obtidos via te-
lescópio. Esse era o atrator30, o elemento sincronizador da atenção de todos
naquela noite. Nela, Cesi foi um Lince mais do que nunca, e jamais seu
codinome secreto, Coelivagus, fez tanto sentido. Curioso como a formação
aristotélica não pareceu influenciar tanto o resultado daquela comissão.
Para os aristotélicos, tudo nos céus deveria poder ser visto através dos olhos
nus, exceto por ilusão de ótica ou por uma falha nas lentes; “novos astros
não poderiam ser observados. Independente disso, aquela comissão de ri-
gorosos jesuítas resolveu aprovar todas as observações de Galileu, apesar
de não aceitarem necessariamente as conclusões copernicanas decorrentes
delas. No dia 8 de maio de 1611 (Galileu então já formalmente um Lince),
os jesuítas fizeram uma recepção glamorosa para Galileu e Cesi. Nela esta-
vam cardeais, príncipes, prelados e jesuítas celebrando o autor do Sidereus
30 Atrator’ é um termo técnico que designa uma estrutura que engendra agregação em um sistema
organizacional. Para saber mais, favor consultar Cecon, 2020.
Amizade e Sabedoria
149
Nuncius e suas observações. O Lince ali estava sendo coroado dentro do
próprio Colégio Romano (Freedberg, 2002, p. 108-110).
A famosa recepção de Galileu no Colégio Romano em maio de 1611
irritou professores de filosofia e teólogos. Galileu não estava fazendo hipó-
teses como Copérnico, e também deixava claras as consequências de suas
observações. Uma celebração daquele porte para um defensor do heliocen-
trismo copernicano no bastião do aristotelismo jesuíta foi algo que alarmou
os defensores mais ortodoxos e gerou uma contrarreação. Independente da
vontade dos indivíduos envolvidos, os mesmos jesuítas que lhe prepararam
aquela bela recepção sabiam que, caso Galileu continuasse insistindo que
o heliocentrismo copernicano era a consequência necessária de suas obser-
vações, eles acabariam por se tornar seus inimigos. Não demorou muito
(duas semanas) para que o líder da ordem, Claudio Acquaviva, enviasse
mensagem aos jesuítas exigindo um retorno a uma doutrina sólida e uni-
forme. Os jesuítas são conhecidos por sua obediência a seus superiores.
Independentemente de qualquer simpatia por Galileu por parte de muitos
membros, aquela mensagem de Acquaviva era um claro sinal de que uma
oposição deveria ser assumida (Freedberg, 2002, p. 110-111).
Galileu gozava de grande prestígio com diversos membros dentro
da Igreja, dentre eles muitos membros da Accademia dei Lincei que, apesar
de não serem membros de ordens religiosas, poderiam ter cargos relacio-
nados com a Igreja ou fazer parte da corte papal. Mesmo entre os jesuítas
existia pelo menos um antigo membro dos Linces, Johannes Schreck, que
na prática era um ativo entusiasta, simpatizante e apoiador da academia.
Talvez Galileu mesmo não tivesse percebido a mudança de situação para
ele, e assim continuou realizando suas observações e também, de forma
cada vez mais intensa, sua defesa do sistema copernicano. Os Linces es-
tiveram muito envolvidos na publicação das observações sobre manchas
solares. Autores na Alemanha já afirmavam ter visto as manchas solares e a
academia tinha que correr para publicar o material. Um jesuíta que havia
publicado a respeito afirmava que o fenômeno era apenas uma estrela pas-
sando em frente ao sol, mas Galileu defendia que as manchas eram do sol,
e indicavam que ele girava em torno do próprio eixo. Foi decidido então
que a academia iria apoiar Galileu a publicar seu trabalho sobre as manchas
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
150
solares como uma carta em linguagem coloquial. O texto começaria com a
correspondência entre Welser e Galileu a respeito das manchas (Freedberg,
2002, p. 119). Foi assim que foi publicado o Istoria e Dimostrazioni intorno
alle Macchie Solari (1613).
Cesi alertava que não seria uma boa ideia pressionar os jesuí-
tas, pois isso poderia ser problemático, e então não se fez muita men-
ção ao fato de que Galileu havia avistado primeiro as manchas solares
(Freedberg, 2002, p. 122). Inicialmente, a obra iria começar com um
trecho da Bíblia; porém, problemas com os censores fizeram com que
se mudasse de ideia e se colocasse uma citação de Horácio. Galileu e os
Linces tiveram outros problemas com relação à censura da obra no que
tange a citações bíblicas. Galileu insistia na inserção de trechos bíblicos.
Na época, o cardeal Bellarmino já dava sinais de que seria melhor não
se pronunciar muito sobre isso. Mesmo assim era possível encontrar tre-
chos de Galileu afirmando que a incorruptibilidade dos céus era contra a
Bíblia (Freedberg, 2002, p. 123).
não apenas falsa, mas errada e repugnante às indubitáveis verdades
das Sagradas Escrituras, as quais em tantos lugares, clara e
abertamente, referem-se à instável e imperfeita natureza da matéria
celeste (Galileu apud Freedberg, 2002, p. 123).31
Galileu começava a insistir que sua hipótese era mais adequada às
Sagradas Escrituras; portanto, longe de colocar as ideias de Copérnico
como uma hipótese, não só as afirmava como obviamente verdadeiras, mas
também como suportadas pelos textos bíblicos. Ele estava começando a
trabalhar como exegeta e não apenas como filósofo da natureza. Galileu
não tinha uma visão negativa das escrituras e, como católico, nem poderia
tê-la. A questão era mais a posição delas no estudo da filosofia da natureza.
Uma carta de Galileu de 1613 chegou a ser enviada para a Inquisição para
exame. Nela não foi encontrado nada de errado, apesar de ela mencionar
uma opinião que poderia ofender ouvidos mais piedosos: a de que, para
31 “[N]ot just false, but erroneous and repugnant to the undoubted truths of the Sacred Scripture, which in
so many places openly and clearly refer to the unstable and failing nature of celestial matter” (Galileu apud
Freedberg, 2002, p. 123).
Amizade e Sabedoria
151
analisar e compreender questões sobre a natureza, as passagens bíblicas de-
veriam ser consideradas apenas em último lugar. Isso se deve ao fato de que
a interpretação da Bíblia era uma das coisas mais complexas e difíceis de
serem feitas; portanto, ela só deveria acontecer depois que todos os outros
conhecimentos disponíveis fossem considerados (Drake, 1999, p. 158).
Não colocar as Sagradas Escrituras como primeira fonte de informação
sobre a natureza não era, necessariamente, um demérito para elas, mas um
reconhecimento de sua complexidade. Logo, Galileu no lugar de usar as
Sagradas Escrituras para interpretar o mundo físico, estava se utilizando do
mundo físico para interpretar as Sagradas Escrituras. Isso provavelmente
não foi algo estrategicamente sensato naquele momento. Foi o que o car-
deal Maffeo Barberini disse a Galileu. Maffeo gostava de Galileu, era seu
amigo e colega, apoiava o trabalho dos Linces e tinha por eles um enorme
carisma. Ele mesmo teve interesse em tornar-se um Lince. Em uma con-
versa de Maffeo com Giovanni Ciampoli (quase já um dos membros da
academia), o cardeal faz um alerta (Freedberg, 2002, p. 130). Uma carta
do futuro Lince é enviada para Galileu em fevereiro de 1615, avisando da
necessidade de cautela ao citar as Escrituras.
O máximo de cuidado é necessário ao lidar com os argumentos de
Copérnico e Ptolomeu, e não devem ser ultrapassados os limites da
física e da matemática, porque a explicação das Escrituras é restrita
aos teólogos que lidam com tais assuntos.. É muito importante
enfatizar frequentemente que é necessário se submeter à autoridade
daqueles que tem jurisdição sobre a razão humana na interpretação
das Escrituras (Ciampoli apud Freedberg, 2002, p. 130).32
A situação começa a ficar cada vez mais tensa entre os jesuítas e
Galileu. Em fevereiro de 1616, a Sagrada Congregação coloca no Index
Librorum Prohibitorum a obra De Revolutionibus Orbium Coelestium de
Copérnico. O sinal era claro: a Igreja não iria tolerar mais a defesa das teo-
rias de Copérnico. Na mesma época, o cardeal Bellarmino chama Galileu
32 “[G]reater caution is needed in dealing with the arguments of Copernicus and Ptolemy, and one should
not exceed the limits of physics and mathematics, because the explication of the Scriptures is restricted to
theologians who deal with such matters . . . it is very necessary to emphasize frequently that one should
submit to the authority of those who have jurisdiction over human reason in the interpretation of the
Scriptures” (Ciampoli apud Freedberg, 2002, p. 130).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
152
para uma audiência e ele é advertido para não mais as ensinar ou as de-
fender. Como foi possível então ele ter publicado a obra Il Saggiatore (O
Ensaiador) em 1623? Como a posição da Igreja havia endurecido, a nova
saída encontrada pelos Linces foi tentar estratégias como a do Ensaiador
para conseguir publicar seus trabalhos. A edição e preparação de um dos
trabalhos mais robustos de Galileu foi feita por Linces como Cesi, Cassiano
del Pozzo, Ciampoli e Faber. Em agosto de 1623 o amigo e apoiador de
Galileu, Maffeo Barberini, torna-se Papa Urbano VIII. Foi então que os
Linces Cassiano, Cesi, Faber e Ciampoli tiveram a ideia de enviar o tex-
to subversivo na forma de uma carta para Cesarini, amado por Maffeo,
membro dos Linces e agora novo Maestro di Camera no Vaticano. Foi uma
inteligente estratégia psicológica. O que o Papa e sua família poderiam
ter contra um texto que foi endereçado de forma tão simpática a alguém
tão próximo a ele? E como os Jesuítas devem ter ficado desconcertados
pela proximidade de Galileu e do novo Papa, alguém que apoiava tanto a
ordem deles e pensou em fazer parte dela! O fato é que O Ensaiador ga-
nhou seu imprimatur e conseguiu ser publicado sem censura. A estratégia
funcionou. E eles precisavam cada vez mais de apoio de pessoas próximas
ao Papa, e realmente o obtiveram. O cardeal Francesco Barberini, sobrinho
de Maffeo, foi também convidado para tornar-se membro da Accademia
dei Lincei. Ele tinha interesse por filosofia da natureza, gostava dos Linces,
era a pessoa mais próxima ao Papa e com muita influência no Vaticano,
além de possuir uma crescente fortuna. Ele tornou-se membro, tinha gran-
de interesse nos estudos dos Linces, auxiliou-os politicamente e financiou
inúmeros de seus projetos (Freedberg, 2002, p 74-75).
7. Os olhos dos linces voltados para baixo: o microscópio
Não foi apenas o telescópio que ajudou a revolucionar a atividade dos
Linces. Outro aparelho ajudou os Linces a enxergarem melhor o mundo
para além das páginas dos grandes autores clássicos. Os intelectuais do status
quo aristotélico rejeitavam ou defletiam as descobertas dos Linces como se
apenas antigos autores pudessem ter acesso ao magnífico livro do mundo.
Amizade e Sabedoria
153
Eu acredito que não são poucos os peripatéticos neste lado dos
Alpes que filosofam sem nenhum desejo de aprender a verdade ou
as causas das coisas, pois eles negam essas novas descobertas ou
não as levam a sério [...] e eles defendem a inalterabilidade do céu,
uma visão que o próprio Aristóteles provavelmente abandonaria se
estivesse em nossa época (Galileu apud Freedberg, 2002, p. 122).33
[C]omo se este grande livro do universo tivesse sido escrito para
ser lido por ninguém mais além de Aristóteles, e como se os olhos
dele tivessem sido destinados a ver tudo para a posteridade (Galileu
apud Freedberg, 2002, p. 125).34
Desde um encontro em Acquasparta em abril de 1624, Galileu já
havia conversado com Cesi sobre o novo aparelho, chamado por ele de
occhialino e capaz de ampliar objetos. Ele chegou a ir até Roma para uma
demonstração para alguns cardeais. A ideia de ampliar imagens próximas
com lentes data desde muito tempo, talvez até mesmo antes dos óculos.
Porém, o uso combinado de lentes objetivas com uma focal parece ser
algo realmente original do século XVII. Talvez tenha surgido na região
dos países baixos, que estavam realizando grandes avanços com as técnicas
de lentes no período. O fato é que Galileu desenvolveu um microscópio
composto para si e o entregou para Cesi e sua esposa em 23 de setembro
de 1624 (Freedberg, 2002, p. 151).
Eu estou enviando para vossa Excelência um occhialino para ver as
coisas mais pequeninas como se estivessem próximas. Eu espero que
isso agrade ao senhor e lhe divirta muito, assim como divertiu a mim.
Eu demorei um pouco para lhe enviar isso porque inicialmente eu
não estava conseguindo aperfeiçoá-lo, pois tive alguma dificuldade
em encontrar o modo correto de cortar os cristais perfeitamente.
. . . Eu contemplei muitos animaizinhos com infinita admiração:
entre eles a pulga é a mais horrenda, o mosquito e a mariposa são
muito bonitos; Eu também vi com muito prazer como as moscas
33 “I believe that there are not a few Peripatetics on this side of the Alps who go about philosophizing without
any desire to learn the truth and the causes of these things, for they deny these new discoveries or jest about
them … and they go around defending the inalterability of the sky, a view which Aristotle himself would
probably abandon in our age” (Galileu apud Freedberg, 2002, p. 122).
34 “[A]s if this great book of the universe had been written to be read by nobody but Aristotle, and as if his
eyes had been destined to see everything for posterity” (Galileu apud Freedberg, 2002, p. 125).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
154
e outros pequenos animais caminham nos espelhos e também
como são vistos de baixo [...] Porém, vossa Excelência terá um
grande campo no qual poderá observar milhares de espécimes. Eu
imploro para que me notifique das coisas mais interessantes que o
senhor observar. Resumindo, o occhialino nos dá a possibilidade
de contemplar infinitamente a grandeza da natureza, como ela
trabalha de forma sutil, e com indescritível diligência (Galileu apud
Freedberg, 2002, p. 151).35
O objeto, cuja função parecia a de um telescópio invertido, ti-
nha um potencial incrível para aquilo que os Linces tinham em mente.
Imediatamente, Cesi entrou em contato com os holandeses, que, confor-
me já foi dito, dominavam como ninguém a tecnologia de lentes no perí-
odo. Cesi entrou em contato com alguns holandeses e pediu um aparelho
melhorado, que parece ter sido desenvolvido por Cornelius Drebbel. O
instrumento de Galileu usava uma lente objetiva convexa e uma lente côn-
cava (como o próprio Della Porta já havia proposto), ao passo que o novo
aparelho de Drebbel era um instrumento composto por duas lentes conve-
xas (por sinal, como já descrito por Kepler na sua Dioptrics, em 1611). Os
aparelhos com os quais os Linces trabalharam posteriormente chegaram
a adaptar três lentes biconvexas, duas oculares e uma objetiva (Freedberg,
2002, p. 152).
O efeito desse instrumento que podia ampliar a imagem de objetos
próximos teve um impacto imenso na academia. Era mais uma etapa para
adquirir metaforicamente os olhos do argonauta Lyncaeus. Os Linces já
conseguiam enxergar o mundo longínquo dos planetas e do sol com o
telescópio, e agora podiam enxergar o mundo muito próximo ampliado.
Toda uma nova gama de fenômenos mais uma vez se abria aos seus olhos,
35 “I am sending you Excellency an occhialino to view the smallest things as if from nearby. I hope that you
will derive no small pleasure and enjoyment from it, just as I did. I have been slow in sending it to you,
because as first I was unable to perfect it, having had some difficulty in finding the correct way of cutting
the crystals perfectly […] I have contemplated very many small little animals with infinite admiration:
among which the flea is most horrid, the mosquito and the moth very beautiful; I have also seen with
much pleasure how flies and other little animals walk on mirrors and are also seen from below […] But
your Excellency will have a huge field in which to observe many thousands of specimens. I beg you to
notify me of the most interesting things you observe. In sum, it [the occhialino] gives us the possibility
of infinitely contemplating the grandeur of nature, how subtly she works, and with what indescribable
diligence” (Galileu apud Freedberg, 2002, p. 151).
Amizade e Sabedoria
155
como se uma parte da criação de Deus estivesse escondida e apenas espe-
rando pessoas com os instrumentos certos para desvendá-la. Era como um
novo mundo! Cada vez mais ficava óbvio que o comentário de autores clás-
sicos em nada poderia ajudar. Pois como poderiam fazê-lo se esse mundo
era todo oculto? Como Aristóteles poderia saber qual era o menor animal
se ele nunca pode vê-lo? Em que condição os sentidos nus agora podem
servir como critério de verificabilidade do mundo físico? Faber declara que
utilizar o microscópio é como vislumbrar uma nova criação:
Eu passei ontem à noite com o senhor Galileu, que está hospedado
próximo a Maddalena. Ele presenteou com um belíssimo occhialino
o Cardeal Von Zollern, para entregar para o duque da Bavária. Eu
examinei uma mosca que o próprio Galileu me mostrou; e eu,
permanecendo abismado, disse a Galileu que isto era outro criador,
visto que ele fazia as coisas se apresentarem de uma maneira que
até agora não se sabia que elas tinham sido criadas (Faber apud
Freedberg, 2002, p. 153).36
Finalmente, em abril de 1625 Faber, um dos Linces decide chamar o
novo occhiale de “microscópio”, em oposição ao telescópio, visto que para
ele o microscópio é um telescópio invertido adaptado para ver coisas de
muito perto. O nome depois de alguns meses foi adotado com facilida-
de por todos os membros e tornou-se o termo característico do aparelho
(Freedberg, 2002, p. 153).
As observações dos Linces começaram a se expandir; logo eram ana-
lisados ácaros, moscas, piolhos e lêndeas, fungos, samambaias, rochas, ani-
mais dissecados, partes íntimas de plantas e animais etc. Dentre os diversos
usos do microscópio é possível citar a cuidadosa descrição de espécimes
para a história natural e taxonomia. Diversos desenhos foram feitos, com
incríveis detalhes sobre os mais diversos animais e suas partes que são com-
pletamente invisíveis aos olhos nus. Em outro texto de Faber, sua excitação
a respeito é visível:
36 “I spent yesterday evening with our Signor Galileo, who is staying near the Maddalena. He has given a
very beautiful occhialino to Cardinal Von Zollern for the Duke of Bavaria. I examined a fly which Galileo
himself showed me; and I, remaining astonished, said to Galileo that this was another Creator, given that it
makes things appear that until now one wouldnt know that they had been created” (Faber apud Freedberg,
2002, p. 153).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
156
Já que ele foi feito para observar coisas muito pequenas, eu decidi
chamá-lo de microscópio, por analogia ao telescópio. Eu examinei
um piolho, aquele pequeno e sujo animal, que não poucas vezes
acompanha o homem, e vi não apenas sua boca, mas seus olhos,
barba e dois pequenos chifres na sua testa. Eu examinei seus três
longos e articulados pés em cada lado do seu corpo; cada um
deles tinha duas garras curvadas, uma longa e outra curta, que
substituía o polegar. Com elas ele se agarrava à pele, e então
rastejava se apoiando nela. Quanto cuidado e perfeita diligência a
Natureza devotou para esta pequena garrinha, e para cada similar
detalhe deste abjeto animalzinho (Faber apud Freedberg, 2002,
p. 183-184).37
O uso sistemático do aparelho rendeu incríveis descobertas. Um bom
exemplo é a análise da reprodução de algumas plantas como as samambaias
e musgos. Não foi Bobart que descobriu as sementes das samambaias, nem
Carlos Lineu que descobriu as dos musgos38: ambas foram descobertas por
Francisco Cesi nas atividades de pesquisa dos Linces com o microscópio.
Foram feitas ilustrações dos esporos das briófitas e dos esporângios das pte-
ridófitas (Freedberg, 2002, p. 226), que podiam ser avistados claramente
com o uso do microscópio.
O estudo de espécimes com o auxílio do microscópio também foi de
grande auxilio para investigações morfológicas e taxonômicas de animais
e vegetais, análise de estruturas em rochas, minerais, plantas petrificadas e
fósseis. O microscópio deu a possibilidade aos Linces de investigar mais
profundamente e olhar por baixo da superfície das coisas. A morfologia
de plantas, e até mesmo sua terminologia, era realizada com o auxílio do
microscópio pelo exame dos órgãos de reprodução das sementes e do que
37 “Since it was made for the observation of very small things, I decided to call it a microscope, by analogy
with the telescope. I examined a louse, that dirty little animal, and not infrequent companion of man, and
saw not only its mouth, but its eyes, beard and two little horns on its foreheads. I examined its three very
long and articulated feet on either side of its body; each had two curved claws, one long and one short,
which took the place of the thumb. With these it grasps the skin, and then crawls by fixing its foothold on
it. How much care and perfect diligence Nature devoted to this tiny digit, and to every similar detail of
these most abject little animals” (Faber apud Freedberg, 2002, p. 183-184).
38 Carlos Lineu afirma na sua obra Philosophia Botanica de 1751 que ele descobriu as sementes de musgo e
Bobart as da samambaia.
Amizade e Sabedoria
157
as contém (Freedberg, 2002, p. 237). No caso dos animais, a dissecação
também constituía parte do trabalho (Freedberg, 2002, p. 243).
O microscópio também auxiliou a manter o carisma dos Linces
junto ao Papa. Os Linces ampliaram a anatomia das abelhas e criaram
gravuras com precisão sem precedentes. A combinação de desenhos preci-
sos com a potencialidade de ampliação do microscópio possibilitou obras
como Melissographia, Apes Dianiae e Apiarium (Freedberg, 2002, p. 160-
161). Estas obras foram publicadas em 1625 para celebrar o jubileu do
Papa Urbano VIII cujo símbolo do brasão da família continha três abelhas
(que aparentemente eram vespas, mas acabaram por ser tomadas como
abelhas). As abelhas tornaram-se um símbolo do poder dos Barberini. No
conclave que elegeu o cardeal Maffeo Barberini como Papa, um enxame de
abelhas invadiu o Palácio do Vaticano, o que foi visto como um presságio.
Depois da eleição de Barberini, suas abelhas podiam ser vistas por toda
Roma (Freedberg, 2002, p. 154). A utilização do telescópio de Galileu
na descoberta das “Estrelas dos Médici” (satélites de Júpiter) não parece
ter sido a única vez em que um instrumento de investigação da filosofia
natural colaborou para criar laços com o poder político. Nesse caso, o mi-
croscópio serviu como instrumento político para estreitar ainda mais os
laços dos Linces com o Papa através da publicação das citadas obras em
homenagem a seu jubileu.
Mais tarde, dois grandes projetos de taxonomia, classificação e ilus-
tração ocuparam muito os Linces e, mais particularmente, Cesi. Um de
seus projetos foi a Tabulae Phytosophicae, que basicamente foi uma tentati-
va de compilar todo o conhecimento de espécimes coletadas e observadas
em uma tabela, visando uma classificação de todos os seres da natureza.
Mais tarde ela foi incorporada ao segundo grande projeto, que era ini-
cialmente um trabalho de ilustração de história natural de espécimes do
México, chamado de Tesoro Messicano (Freedberg, 2002, p. 266), coletado
por Francisco Hernández ainda no final do século XVI enquanto traba-
lhava como médico para Filipe II, rei da Espanha, para registrar plantas e
usos medicinais da região no período. Ele acabou realizando um compe-
tente registro da flora e fauna do México e da América Central (Freedberg,
2002, p. 246). A obra acabou mais tarde na mão dos Linces que tentaram
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
158
expandir e aprimorar o trabalho. Nos desenhos originais os Linces ten-
taram dar mais vida e colorir com precisão as ilustrações iniciais da obra
de Hernández. A partir daí, o projeto cresceu cada vez mais, a ponto de a
etapa final de publicação de sua última edição conter até mesmo a Tabela
Fitosófica de Cesi, que queria classificar todo o mundo natural.
8. A morte de Cesi, a condenação de Galileu e o fim dos linces.
Durante toda sua existência, a Accademia dei Lincei agrupou pessoas
de diferentes personalidades, ideias e filosofias. Heckius e Stelluti pareciam
ter personalidades opostas. Galileu e Della Porta foram considerados por
Freedberg (2002, p. 112) como sendo um praticamente a antítese científica
do outro. Heckius em Praga continuou com suas tendências e ligações com
astrologia e com a medicina de Paracelsus, utilizando a posição de estrelas
para realizar diagnósticos médicos e prescrição de remédios (Freedberg,
2002, p. 198). Della Porta também mantinha uma estreita relação com
fitonomia (crença de que os poderes das plantas estão relacionados com os
órgãos das coisas vivas às quais elas se assemelham, como uma teoria das
assinaturas) e fisionomia39 (crença em que o temperamento humano e suas
virtudes são explicados em termos de semelhança do corpo e rosto de uma
pessoa com um animal correspondente) (Freedberg, 2002, p. 355). O que
unia essas pessoas não era uma teoria comum, mas sim a observação e o re-
gistro do mundo. O mundo poderia ser expandido observando os registros
mesmo que fossem de plantas e animais do México ou da América Central,
de fósseis na Toscana, das estrelas e nebulosas, ou mesmo dos chifres de
um piolho. O foco nestes fenômenos e sua divulgação, associado a um viés
antiaristotélico e fortalecido pelo enfrentamento com as universidades e
a Igreja tornou-se um atrator para os elementos desse sistema. As últimas
teorias particulares dos Linces ficaram em segundo plano, para não dizer
em esfera individual.
O afastamento dos membros da academia de questões externas ao
mundo natural não ocorreu de fato, haja vista o envolvimento e as tentativas
39 Della Porta chegou a escrever um livro sobre o assunto: Physiognomia (1598).
Amizade e Sabedoria
159
de Galileu em interpretar trechos da Bíblia para que acomodassem o
sistema copernicano. Ao mesmo tempo, ele acreditava que a melhor
maneira de ler o livro do mundo seria através de caracteres matemáticos40.
Isso faz sentido. Enquanto Bellarmino e Grassi podiam insistir que, como
diversas teorias podem explicar igualmente o mesmo fenômeno, o mais
correto seria suspender o juízo a respeito da veracidade delas e considerá-
las todas igualmente como meras hipóteses físicas. Daí a Bíblia poderia
fazer um papel de desempate. Um viés matemático, porém, introduz um
componente de necessidade à equação. Caso não fosse possível tratar ou
impugnar matematicamente os assuntos da natureza, eles seriam vulneráveis
a questões como hermenêutica (Freedberg, 2002, p. 344) e retórica. No
fundo, para Galileu é como se a matemática possuísse, além de um papel
epistemológico, também um papel de convencimento e de agregação.
Federico Cesi acabou tendo problemas de saúde e no dia 1º. de agos-
to de 1630 faleceu na mansão de sua família em Acquasparta. O homem
que a família tinha pensado que se dedicaria à política, mas que decidiu
ter outro destino. Cesi dizia que odiava a corte e seus membros como a
peste, que eram todos traidores e que não podia confiar em nenhum deles
(Freedberg, 2002, p. 65). A morte do fundador e protetor da academia foi
um duro golpe, mas ela continuou existindo.
No caso de Galileu, sua situação piorou muito depois da publica-
ção da obra Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo, tolemaico e co-
pernicano (1632). Galileu tinha a amizade de Urbano VIII e a influência
de muitos Linces no Vaticano; mesmo assim, isso não impediu que ele
enfrentasse um processo que resultaria em sua prisão domiciliar. O Papa
Urbano VIII parecia ser tolerante: três anos depois de ter sido eleito, liber-
tou Tommaso Campanella e lhe garantiu uma pensão (Rossi, 2001, p. 86).
Maffeo chegou a apoiar a visão antiaristotélica da suspensão dos corpos
na água, de Galileu, ficou entusiasmado com a obra sobre as manchas
solares e até escreveu uma ode em sua homenagem. Quando Bellarmino
chamou Galileu em 1616 para adverti-lo a não mais ensinar e defender
40 Existe uma famosa sentença de Galileu no Il Saggiatore de que o livro do universo está escrito em linguagem
matemática e seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas. Cesi acrescentou que os
caracteres desse livro são figuras matemáticas e experimentos físicos (Freedberg, 2002, p. 390).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
160
o sistema de Copérnico, Maffeo (na época cardeal) foi um instrumento
para impedir que ele fosse, já naquela época, efetivamente condenado por
heresia (Freedberg, 2002, p. 159). Infelizmente, chegou o momento em
que nem mesmo o Papa conseguiu proteger seu teimoso amigo. Qual seria
o motivo?
Leon Tolstói, em sua obra Guerra e Paz (1865-1869), faz uma in-
teressante análise sobre a guerra e chega à conclusão de que não existem
gênios militares” e que é impossível comandar o que acontece em um
campo de batalha. Quanto menor sua posição hierárquica em um exército,
mais facilmente você pode tomar decisões individuais, mas menos poder
você tem para alterar o quadro geral, e, quanto maior sua posição hierár-
quica, mais à mercê da conjuntura geral você fica, e o quadro maior é que
comanda suas ações. Os reis são escravos da história. O Papa não podia
fazer o que bem entendesse. O jogo de forças presente naquele momento
no Vaticano não permitia mais isso, e, naquela situação era impossível até
mesmo para ele proteger Galileu. Paolo Rossi afirma que a condenação de
Galileu pode ter relação com os inimigos dele terem convencido o Papa
de que a figura de Simplício no Diálogo sobre os dois máximos sistemas de
mundo era uma zombaria com a autoridade papal. De qualquer maneira,
a venda da obra foi suspensa e, no dia 1º. de outubro de 1632, Galileu foi
chamado pela Congregação do Santo Ofício. O processo se estendeu por
um longo tempo e, finalmente, a sentença de sete dos dez juízes foi a de
condenação de Galileu no fatídico dia 22 de junho de 1633 (Rossi, 2001,
p. 93-94). Stillman Drake, pessoalmente, acredita que a decisão da con-
denação teve mais um caráter de manter Galileu sobre controle, enquanto
davam a ele condições muito abrandadas de condenação, salvaguardando
assim, também, a imagem do Santo Ofício (Drake, 1999, p. 150-151).
Galileu foi condenado à prisão regular, o que foi comutado posteriormen-
te. Em 1º. de julho de 1633 ele foi transferido para Siena onde foi recebido
como um amigo pelo arcebispo local. A partir de dezembro ele retornou
para a Villa de Arcetri em prisão domiciliar, onde ele deveria manter uma
vida reservada. A filha de Galileu, irmã Maria Celeste, morreu no dia 02
de abril de 1634, e Galileu estava com claros sinais de grave depressão e
melancolia. No final do ano de 1637, Galileu começou a perder a visão e
ficou cego (Rossi, 2001, p. 94). Esse parece ter sido o período de maior
insatisfação pessoal de sua vida. Mesmo cego, Galileu continuou seus estu-
dos e escrevendo, isso com a ajuda de alguns estudantes e discípulos como
Evangelista Torricelli (1608-1647) e Vincenzio Viviani (1622-1703).
Galileu faleceu no dia 8 de janeiro de 1642 (Rossi, 2001, p. 98).
A morte de Cesi e a condenação de Galileu foram dois duros gol-
pes para a Accademia dei Lincei. O desprestígio público da condenação de
1633 parecia se estender de certa forma a todos os seus membros. Com
projetos menos ambiciosos, com a maior parte de seus membros já fale-
cidos e sem o ingresso de novos membros em seus quadros, a academia
começou a definhar. Quando Cesi faleceu, a Accademia dei Lincei, que
chegou a ter um total de 32 membros, possuía apenas oito deles vivos, sen-
do que cinco residiam em Roma (Drake, 1999, p. 140). Boschiero (2007,
p. 15) chega a afirmar que a academia acabou em 1630 com a morte de
Cesi. Porém, é possível traçar atividades dos membros muito posteriores
a isso, como a publicação de obras em que o autor se identifica como
membro da Accademia dei Lincei, esse sendo o caso de Stelluti no Trattato
del Legno fossile minerale, em 1637 (Freedberg, 2002, p. 335). Além dis-
so, Freedberg comenta sobre diversas atividades dos membros muito tem-
po depois da morte de Cesi, tais como: trocas de cartas entre membros
como Stelluti e Cassiano, tratando de assuntos dos Linces que datam de
dezembro de 1650; questões referentes à publicação de edições da obra
Tesoro Messicano41 cuja última foi em 1651 (Freedberg, 2002, p. 272-273).
Ornstein vai um pouco mais longe e afirma que a academia se manteve
ativa até 1657 e, depois disso, sem explicar o porquê desta data específica
(que coincide com o ano da criação da Accademia del Cimento), deixou de
existir (Ornstein, 1928, p. 76).
Depois do fim da organização inicial da Accademia dei Lincei, ne-
nhuma tentativa de renovação foi feita até 1745, quando, por um bre-
ve período, ela foi reconstituída na cidade de Rimini. Em 1801 ela foi
novamente restabelecida em Roma, com 24 membros, por Feliciano
Scarpellini. Quando as tropas de Napoleão ocuparam Roma em 1808, o
41 Essa obra teve diversas edições, algumas bem diferentes de outras. Pelo frontispício é possível datar edições em
1628, 1630, 1648, 1649 e ainda duas versões diferentes do trabalho em 1651 (Freedberg, 2002, p. 267).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
162
governo francês assumiu a nova academia, dando-lhe subsídios estatais.
Depois da derrota de Napoleão, em 1814, ela teve de se manter sem subsí-
dio do governo. Devido à morte de Feliciano Scarpellini, em 1840, a aca-
demia novamente colapsou. Finalmente, em 1847, o Papa Pio IX fundou
a pontifícia Accademia dei Lincei. Em 1875 ela recebeu novo patrocínio
estatal. Por decreto do rei Victor Emmanuel I ela consistiu em 40 mem-
bros regulares em ciências naturais, 30 em ciências morais, 20 membros
estrangeiros e 60 membros correspondentes em cada uma das duas classes
de associação. A maior sociedade científica na Itália, nos dias de hoje, é
a nova Accademia dei Lincei (Drake, 1999, p. 141), também intitulada
Accademia Nazionale dei Lincei.42
9. Considerações Finais
A Accademia dei Lincei parece atender a todos os critérios de uma
verdadeira academia científica. Apesar de seu forte simbolismo e misticis-
mo iniciais, a academia caminhou cada vez mais para uma estrutura aberta
visando tanto o estudo como a divulgação do conhecimento da natureza.
Seus membros não seguiam uma estrutura hierárquica (talvez administra-
tiva, porém seguramente não intelectual), mas agiam todos juntos como
iguais, e com a mesma autoridade a respeito da filosofia da natureza. Não
existiam mestres e discípulos, mas sim colegas atuando conjuntamente
na compreensão do livro da natureza. Ninguém entrava na Accademia dei
Lincei para conhecer a filosofia da natureza de Federico Cesi, mas sim a
natureza em si mesma. A divulgação do conhecimento em uma estrutura
não hermética era um objetivo, assim como a publicação de obras da aca-
demia visando conhecimento público. Teoricamente, ela tentou se isentar,
o máximo possível, de querelas políticas ou de qualquer outra natureza
que não a da filosofia natural. Apesar de toda perseguição inicial a acade-
mia persistiu, coletando dados, sintetizando informações e desenvolvendo
instrumentos. Seus membros conseguiram enxergar melhor que seus con-
temporâneos o mundo à sua volta, seja olhando cada vez mais longe (atra-
42 Cf. “Accademia Nazionale dei Lincei. Disponível em: https://www.lincei.it/it. Acesso em: 14 jan. 2024.
Amizade e Sabedoria
163
vés do telescópio) ou cada vez mais perto (através do microscópio). Neste
sentido, poderíamos até afirmar que possuíam olhos de Lince, ou os dons
do argonauta Lyncaeus.
Referências
BOSCHIERO, L. Experiment and natural philosophy in Seventeenth-Century Tuscany: the
history of the Accademia del Cimento. Dordrecht: Springer, 2007. (Australasian Studies
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164
165
Estrela profanada.
Considerações sobre
a crise em Gaza
Márcio Benchimol BARROS 1
Nesses dias em que tanto se discute sobre o limite do humor e sobre
o “lugar de fala”, eu pergunto ao leitor: existe a piada com lugar de fala? E
eu mesmo respondo: existe, são as que compõem o vastíssimo cabedal do
assim chamado “humor judaico”. Por meio dessa tradição oral e escrita, os
judeus, por séculos, quiçá milênios, exercemos o sagrado e libertador di-
reito de rirmos de nós mesmos, mas também nos criticamos e apontamos
nossas contradições. Peço então licença para introduzir com uma anedota
oriunda desse repertório a discussão de assuntos nada cômicos. O faço
porque a anedota ilustra algo do momento em que vivemos e, além disso,
Departamento de Filosofia/Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC)/Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (UNESP)/Marília/São Paulo/Brasil/e-mail: marcio.benchimol@unesp.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p165-178
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
166
é muito boa. É sobre um judeu muito religioso que viajava em um navio
que bate em um rochedo e vai a pique. Mas ele, que sabia alternar suas
obrigações religiosas com a prática da natação, consegue alcançar uma ilha
deserta, onde passa a viver em condições precárias, porém sem descurar
das orações diárias e do kiddush aos sábados (substituindo o vinho por
água de coco). Meses depois, é resgatado por uma equipe de busca, cujos
membros se surpreendem por verem construídas na ilha não uma, mas
duas sinagogas: uma só não era bastante? Indagado sobre o estranho fato,
o sobrevivente aponta para uma das sinagogas dizendo: é que daquela ali
eu não passo nem perto!
O sentido é claro: ser judeu não é apenas pertencer a um povo, etnia
ou religião, mas implica também contrapor-se a outros judeus. As dissen-
ções internas são parte essencial da identidade judaica e há muitas formas,
discordantes e mesmo contraditórias, de pertencimento àquilo que se cos-
tuma chamar, um tanto descuidadamente, de povo judeu. As circunstâncias
históricas, sociais e políticas que determinam a vida dos judeus espalhados
pelos quatro quadrantes do mundo, e por todas as classes sociais, dá ori-
gem a uma diversidade que apenas de forma artificial poderia ser reduzida
a qualquer unidade homogênea. Eles são magnatas financistas, mas tam-
bém imigrantes proletarizados; são rabinos ortodoxos, mas também ateus
e livres-pensadores; judeus são Rothschild e Rockefeller, mas também o são
Marx e Trotsky.
Nos dias que correm, todas essas tensões internas se decantam dra-
maticamente em uma única e violenta oposição, da qual não se pode rir,
como das duas sinagogas construídas pelo náufrago. O elemento cataliza-
dor desse processo é o massacre atualmente em curso do povo palestino
pelo Estado de Israel, comandado pelo neofascista Benjamin Netanyahu.
Os trágicos acontecimentos que se desenrolam desde outubro passado na
Faixa de Gaza tiveram o efeito de simplificar drasticamente a colorida plu-
rivocidade que sempre caracterizou a comunidade judaica internacional,
fazendo-a dividir-se entre os que sustentam o regime de Netanyahu em suas
investidas contra o povo palestino e os que denunciam o governante como
um sanguinário criminoso de guerra, comparável aos piores exemplares do
gênero. Os pertencentes ao primeiro grupo não costumam inclinar-se a
Amizade e Sabedoria
167
discutir suas posições, mas quando o fazem, por mais racionais que tentem
parecer, sua argumentação logo se perde nas regiões nebulosas do mito. Pois
seu fundamento último será sempre e inevitavelmente o Velho Testamento
que, supostamente, garante o “sagrado direito” dos judeus a toda extensão
do território da Palestina. Ainda que comecem argumentando em termos
do direito internacional, que teçam considerações sobre o direito de
autodeterminação dos povo e sobre o problema do antissemitismo, logo
uma atração irresistível os leva a relembrar a caminhada de Moisés pelo
deserto em busca da “terra prometida”, as guerras bíblicas contra os filisteus
(e não são os palestinos descendentes dos filisteus?), a luta de David con-
tra o gigante, não se detendo antes de finalmente evocar o velho patriarca
Avraham, com suas longas barbas brancas, dividido entre a esposa Sarai e
a escrava Agar. Está claro que quem os acompanha nessa argumentação
abandona toda possibilidade de compreender o que se passa hoje na faixa
de Gaza e o que vem ocorrendo no território palestino desde 1947. Para
que se compreenda objetivamente a natureza desse conflito, que há tantas
décadas perturba a paz do Oriente Médio, é preciso se dispor a considerá-lo
em suas determinantes geopolíticas e econômicas, o que torna necessário
dissipar toda a névoa metafísico-religiosa com a qual os ideólogos sionistas
procuram mistificá-lo. Porém, isso não significa que o texto bíblico não
nos possa auxiliar a entender, não exatamente o conflito israelo-palestino,
mas sim essa dissenção que hoje se produz no seio da comunidade judaica
internacional. E mais do que isso: creio que uma reflexão sobre a simbolo-
gia que envolve o povo judeu, justamente em razão de seu passado bíblico,
nos pode auxiliar a olhar o conflito atual em sua significação universal e em
sua conexão com o tema da emancipação da humanidade.
De fato, no plano simbólico, o povo judeu aparece aos olhos do
Ocidente sob o signo de uma contradição: a contradição entre uma ten-
dência particularizante e outra universalizante, vale dizer: entre a tendência
a fechar-se em torno de si mesmo e a tendência a confundir-se e mesclar-
-se com todos os outros povos, inclusive na perspectiva da construção de
um conceito universal de humanidade. Sob o primeiro ponto de vista, os
judeus aparecem como o misterioso povo do gueto, com suas cerimônias
privadas, seus ensinamentos esotéricos e, para os cristãos, heréticos, seus
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
168
livros supostamente secretos, seu rígido sistema de matrimônio e suas vul-
tosas fortunas que alegadamente permanecem sempre dentro dos muros da
comunidade (se bem que, como bem posso atestar, não se distribua entre
os membros desta). É bastante bem conhecido o quanto essa tendência ao
autoencerramento é consequência das atrozes perseguições, das exclusões e
violências a que esse povo esteve submetido desde o medievo, como o povo
negador” e mesmo “assassino” de Cristo, como corpo estranho incrustra-
do que, no seio da própria cristandade, difundia doutrinas que negavam
o fundamento religioso da civilização cristã. Consequência desta primeira
forma de antissemitismo, o autoencerramento cada vez mais radical do
povo judeu será também um dos principais elementos acusatórios de toda
forma ulterior assumida pelo antissemitismo, culminando essa relação dia-
leticamente em uma situação em que a mais poderosa tendência particu-
larizante da atualidade, o sionismo, encontre no próprio antissemitismo
sua principal justificativa, senão mesmo sua desculpa. É por isso que hoje
em dia quem quer que se atreva a criticar Israel recebe imediatamente a
acusação de antissemita.
Já os elementos universalizantes que se associam à história do povo
judeu são aqueles que, não obstante tudo o que acabou de ser dito, tor-
naram possível que a religião judaica (e sua derivação cristã) se tornasse
uma das fontes da cultura ocidental como um todo. Tais elementos se
manifestam bem cedo na cultura judaica, na própria ideia do monoteís-
mo. É preciso entender que tal ideia não implica apenas a crença de que
há só um Deus, em oposição ao politeísmo, que era regra na Antiguidade.
Considerada mais precisamente, ela implica que há só um Deus verdadeiro,
sendo todos os outros falsos. Como se sabe, na Antiguidade, cada povo
específico tem seus próprios deuses, e cada povo costumava considerar seus
deuses como mais fortes e mais poderosos que os dos outros povos. Mas
não há notícia de que qualquer outra cultura antes da hebraica tenha le-
vantado a reivindicação de que seu deus era o único verdadeiro. De um
ponto de vista puramente lógico e, nesse sentido, exterior à cultura he-
braica, essa reivindicação pode seguramente ser interpretada no sentido de
que, se Yaveh é o único Deus verdadeiro, ele também é o Deus de todos os
seres humanos, independentemente de seu pertencimento a este ou àquele
Amizade e Sabedoria
169
povo. Dois importantes interditos trazidos pela lei mosaica se somam a esse
primeiro elemento promovendo a desterritorialização do Deus hebreu, no
sentido de enfraquecer sua ligação específica com o povo hebreu, conferin-
do-lhe um caráter universal. São eles: a interdição de que se façam imagens
de Deus, com o que este perde qualquer traço étnico que o pudesse vin-
cular exclusivamente àquele povo; e a interdição de pronunciar seu nome,
com o que os vínculos linguísticos que unem esse nome a uma determi-
nada cultura se desfazem. Em lugar do velho Deus tribal Yaveh, começa a
surgir o Deus abstrato e universal que, justamente por ser sem nome e sem
rosto, declara todo nome e todo rosto como máscaras enganadoras que
escondem sua verdadeira natureza universal. Haveria assim, pelo menos
em germe, já na cultura hebraica antiga, a ideia universalista de igualdade
entre os homens, justamente como criaturas do mesmo Deus. E assim, de
fato, foi ela compreendida por muitos intérpretes posteriores, judeus ou
não, da cultura hebraica.
Está claro que tudo isso não significa que os judeus renunciavam à
sua condição de povo específico, distinto de todos os outros. Pelo contrário,
as narrativas bíblicas dão testemunho claro de que a tendência natural do
povo a afirmar sua identidade frente aos outros povos era particularmente
forte entre eles. Porém, a existência desses elementos universalizantes na
religião hebraica antiga nos leva a assumir que essa tendência convivia, em
uma contradição latente, com a tendência oposta de afirmação de uma
igualdade profunda de todos os povos. Mas o que é mais importante notar
é que, no momento em que tais elementos universalizantes se desenvol-
viam, o povo hebreu já havia perdido seu Estado e se encontrava na condi-
ção de escravo. A promessa religiosa era então uma promessa de redenção,
libertação, emancipação, e tinha um significado concreto, terreno: a liber-
tação da condição de escravidão, através do restabelecimento do Estado,
com a vinda do Maschiach (Messias). Porém, a redenção tinha também
uma dimensão teológica e metafísica, que podia ser interpretada como
universal, na medida em que implicava que os outros povos deviam reco-
nhecer o único Deus verdadeiro. Assim sendo, na História do povo hebreu
está contido um simbolismo bastante potente e importante, e ainda mais
importante na era moderna: a ideia de que a emancipação da humanidade
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
170
vem daqueles em que a humanidade foi negada, daqueles que foram mais
desumanizados, pois a escravidão é o símbolo máximo da desumanização.
É claro que os judeus não foram os únicos escravos da Antiguidade, mas
a importância que sua religião alcançou no Ocidente, especialmente em
decorrência do cristianismo, acabou por tornar sua condição em símbolo
privilegiado da desumanização a que os escravizados são submetidos, bem
como em possível ponto de apoio bíblico para uma crítica radical e poten-
cialmente universal da opressão de todos os povos e populações.
Escusado é dizer que todo esse simbolismo da emancipação e re-
denção universal se aprofundam e potencializam substancialmente com a
história do célebre filho de Nazaré. Na época de Jesus os judeus viviam sob
dura opressão do Império romano, embora não estivessem na condição de
escravos. Mas todos os estigmas da desumanização, da violência e da ex-
clusão se concentram na própria figura do menino que nasce entre animais
numa estrabaria para fugir de uma campanha de extermínio e, mais ainda,
na do homem que é preso e torturado barbaramente para, em seguida, ser
morto no crudelíssimo suplício da cruz. Jesus é o pivô do grande cisma do
judaísmo cujas consequências para a cultura do Ocidente dificilmente po-
dem ser superestimadas. Nessa dissenção épica e monumental, se manifes-
ta de forma dramática e pela primeira vez explícita a contradição entre as
tendências particularizantes e universalizantes presentes na religião hebrai-
ca. Jesus se apresenta como Maschiach (ou pelo menos assim é visto), o re-
dentor, que os judeus esperavam havia tanto tempo e em que depositavam
suas maiores esperanças de libertação. Ele promete a libertação, emancipa-
ção e redenção, mas não neste mundo, e sim no mundo verdadeiro, e que,
assim como o Deus mosaico, é verdadeiro para todos, universalmente. A
emancipação, portanto, não seria fruto da restauração do Estado judaico,
como emancipação particular de um povo que afirma sua inquebrantável
unidade e identidade frente aos outros povos, mas sim como fruto de uma
conversão espiritual, através da qual todos os seres humanos se igualam. E
no corpo martirizado de Jesus se repete-se tragicamente a antiga mensagem
de que a redenção universal da humanidade deve surgir exatamente a partir
do lugar em que essa humanidade é total e absolutamente negada.
Amizade e Sabedoria
171
Mais de um milênio depois, a tensão entre particularidade e uni-
versalidade no seio do judaísmo moderno é trabalhada por Marx em “A
questão judaica”. Na obra, em contraposição crítica ao escrito homôni-
mo de Bruno Bauer, ele reflete sobre a condição dos judeus na Alemanha
cristã do século XIX e sua reivindicação de direitos políticos iguais aos
dos cristãos. Segundo Bauer, a condição para que os judeus alcançassem a
almejada emancipação política seria sua renúncia ao judaísmo. A condição
universal de cidadão com direitos políticos idênticos a todos os outros se-
ria incompatível com a manutenção da determinação particularizante que
mantinha os judeus presos à sua religião, motivo pelo qual seria necessário
abdicar desta última para conquistar a primeira. A argumentação de Marx
vai no sentido de denunciar como ilusória a universalidade conferida pela
condição de cidadão. Esta última, argumenta Marx, não se confunde com
a condição de ser humano, de modo que seria perfeitamente possível que
todos se emancipassem como cidadãos, permanecendo, porém, como seres
humanos, absolutamente não emancipados, cativos de circunstâncias que
impedem objetivamente sua realização exatamente como seres humanos.
A igualdade de todos como cidadãos perante o Estado teria caráter mera-
mente formal e abstrato, na medida em que mascararia a desigualdade real
em que os seres humanos vivem suas vidas efetivas, imersos que estão nas
relações de opressão, dominação e exploração que caracterizam a socieda-
de civil moderna. O próprio Estado, fonte e fundamento da cidadania,
não passaria ele mesmo de uma universalidade ilusória. Apresentando-se
como instância abstrata, apartada da sociedade civil, sobrepairando altiva
e ameaçadoramente o plano real em que se desenrolam os conflitos entre
os seres humanos, e aparentemente alheio e isento relativamente à luta de
classes, seria ele, não obstante, nada mais que instrumento da dominação
de classe, sendo sua pretensa isenção face a ela apenas o aspecto ideológico
dessa mesma dominação. A verdadeira emancipação humana não poderia,
portanto, ocorrer no plano da cidadania e do Estado, pois pressuporia a
superação justamente da dominação de classe e do poder social do qual o
Estado é apenas um instrumento. Particularmente interessante para nós
é a explicação que Marx dá para o apego dos judeus alemães à sua reli-
gião. O Estado burguês, argumenta ele, impede a realização da verdadeira
emancipação humana ao mesmo tempo em que, enquanto Estado laico,
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
172
desvincula-se da religião. Com isso, ele empurra a religião para a esfera da
vida privada, âmbito no qual ela se torna, para os judeus alemães do século
XIX, a única salvaguarda de uma ideia de emancipação verdadeiramente
humana, ainda que concebida de forma ilusória, já que sua realização não
ocorre no plano real, mas apenas no mundo imaginário das representações
religiosas.
Deveríamos então supor que Marx identifica na religião hebraica a
existência daquela tendência universalista de que estivemos falando? Veria
talvez ele, como Hegel, na matriz religiosa judaico-cristã um prefiguração
mitológico-metafísica de sua própria doutrina? Uma carta sua a Arnold
Ruge parece encorajar essa interpretação. “Nosso lema”, diz ele,
precisa então ser: reforma da consciência não através de dogmas,
mas sim através da análise da consciência mítica e obscura para
si mesma, apareça ela de forma religiosa ou política. Mostrar-
se-á então que o mundo possui há muito tempo o sonho de uma
coisa, da qual ele precisa apenas ter consciência para que a possua
realmente. Mostrar-se-á que não se trata de uma grande cisão
entre o pensamento do passado e o do futuro, mas sim de tornar
realidade o pensamento do passado. Mostrar-se-á, finalmente, que
a humanidade não inicia uma nova tarefa, mas sim que ela realiza
com consciência sua antiga tarefa.2
De fato, não é difícil vislumbrar possíveis analogias. Como as dou-
trinas judaico-cristãs, o pensamento de Marx tem como horizonte uma
emancipação humana universal, e a ela se direciona. Diferentemente de-
las, ele pensa essa emancipação como emancipação real, tendo lugar nesse
mundo e não no mundo espiritual. Porém, em um ponto importante ele
se aproxima das narrativas bíblicas: também para ele a força regeneradora
do mundo tem origem na parte mais desumanizada da sociedade. A revol-
ta contra essa desumanização, encabeçada por aqueles que mais a sofrem,
os escravizados e desumanizados pelo capitalismo, é a energia portado-
ra da revolução e da transformação do mundo. Segundo a perspectiva de
Marx, essa transformação deveria ocorrer em pouco tempo, com a vitória
2 Marx, K. Brief von Marx an Arnold Ruge, September 1843. In: Marx-Engels Werke (MEW). Berlin: Dietz
Verlag, 1981. Band 1, p. 346.
Amizade e Sabedoria
173
da revolução internacional proletária. Porém, o capitalismo mostrou-se
bem mais resistente que o esperado, contrariando esses prognósticos e en-
trando, como diria Lênin, em sua fase superior imperialista. É a fase da
luta das grandes potências e corporações pelo controle mundial, a disputa
encarniçada pelos mercados internacionais, pelas fontes de matéria prima
e pela força de trabalho barata das regiões subdesenvolvidas. O mundo se
enche de progresso e mercadorias, no mesmo compasso em que abundam
os massacres de populações e os genocídios mais variados, consequência
direta e inevitável da corrida imperialista. A marcha triunfal dos impérios
capitalistas é suntuosamente pavimentada com as duas grandes guerras
mundiais. Ambos os conflitos são precedidos pelos movimentos moder-
nizadores de uma nação retardatária na corrida mundial dos impérios, a
Alemanha. Primeiramente com o Reich de Bismark e depois com o de
Hitler, a Alemanha, assim como a Itália de Mussolini, se vale do absolutis-
mo para empreender um processo vertiginoso de industrialização, a fim de
se colocar em condição de disputa com as potências mais adiantadas pelo
domínio mundial.
Na Alemanha nazista a relação conflituosa entre os judeus e o
Estado, problematizada no século anterior por Bauer e Marx, recrudesce
de maneira trágica. Gradativamente eles perdem não apenas os direitos
de cidadania, mas também as posses e, por fim, a própria vida. Na pro-
paganda nazista o judeu aparece de forma ambígua, na qual se manifesta
perversamente a contradição entre particularidade e universalidade. Por
um lado, são estigmatizados como corpo estranho ao Estado alemão, como
sociedade fechada em si mesma no interior da sociedade alemã, às custas
da qual viveria de forma parasitária, sugando suas riquezas e causando a
pauperização geral. No plano econômico visa essa caracterização justificar
a apropriação pelo Estado das fortunas dos magnatas financistas e comer-
ciantes judeus, tornadas necessárias para o esforço de industrialização. Mas,
por outro lado, os judeus também são estigmatizados como os fomentado-
res da revolução socialista internacional, que haveria de destruir todos os
Estados nacionais para implementar o governo único judaico-comunista
universal. As ressonâncias bíblicas da tese que faz do proletariado a classe
revolucionária universal não passaram despercebidas aos nazistas, que delas
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
174
souberam tirar proveito ao interpretar o comunismo como nada mais que
uma forma secularizada de judaísmo. Não é coincidência que uma famo-
sa entrevista concedida por Hitler acabou sendo publicada com o singelo
título de “O Bolchevismo, de Moisés a Lênin”. As consequências dessa
perseguição são conhecidas e estão entre as maiores tragédias humanas do
século XX. O genocídio judeu na Alemanha nazista choca o mundo não
só por sua extensão e brutalidade, mas também pelos métodos racionais
e industriais empregados na sua execução. No quadro geral da História,
porém, ele figura como apenas um dos muitos genocídios ocorridos desde
o início do século, todos eles motivados por uma causa comum: a luta
pelo domínio hegemônico mundial entre as nações imperialistas. Porém,
por razões que não cabe investigar a fundo, mas que se ligam ao que já foi
dito, o Holocausto judeu torna-se o símbolo maior da brutalidade e da
desumanização.
Com o Holocausto, mais uma vez o povo judeu se vê colocado no
centro de eventos que adquirem significação universal, já que trazem para a
ordem do dia internacional a reflexão sobre o fenômeno tragicamente uni-
versal da desumanização do ser humano. Mais do que a própria Segunda
Guerra, a compaixão internacionalmente despertada pela tragédia judaica
é o que faz nascer uma consciência mundial sobre a necessidade de se
combater e eliminar o fascismo. Os nazistas não aparecem ao mundo ape-
nas como agressores de nações soberanas e causadores da deflagração do
conflito, mas também como aqueles que perpetraram um horrendo crime
contra a humanidade, o qual, se não se pode dizer que tenha sido o maior
(pois não há unidade de medida aplicável), foi com certeza o que mais
notoriedade adquiriu junto à opinião pública mundial, e é por isso que
acabou por tornar-se o símbolo máximo da degradação do ser humano. É
a esse título que o Holocausto se torna simbolicamente o limite negativo
da civilização, que passa a definir-se necessariamente em contraste com ele.
Ele passa a valer como materialização daquilo que precisa ser evitado para
que a civilização subsista.
Mas o Holocausto também repercute violentamente sobre a própria
autoconsciência judaica. A estrela amarela com que os judeus eram iden-
tificados na Alemanha nazista torna-se então novo símbolo sagrado a exi-
Amizade e Sabedoria
175
gir constantemente nossa mais profunda reverência e respeito. A partir do
fim da guerra, ser judeu implica de forma incontornável sofrer profunda
e pessoalmente, de alguma forma, o Holocausto, e posicionar-se psico-
lógica, emocional e intelectualmente em relação esse evento catastrófico.
Novamente a antiga contradição entre universalidade e particularidade de-
sempenha um papel importante, pois é ela que irá determinar as duas for-
mas básicas pelas quais os judeus se posicionam a respeito do Holocausto.
A primeira consiste em tomá-lo em sua significação particular, como vio-
lência particular cometida ao povo judeu e como manifestação extrema
do “eterno” antissemitismo. Como em tantas outras ocasiões, o antisse-
mitismo serve como elemento catalizador da ancestral tendência ao auto
encapsulamento. O Holocausto é visto como consequência da debilidade
dos laços que unem os membros do povo judeu entre si e com suas tradi-
ções, ou mesmo como um castigo divino por essa situação. Lamenta-se a
dispersão do povo pelo mundo e condena-se os processos de assimilação.
Evidentemente, essa via fortalece a ideia da necessidade do Estado Judeu.
O sionismo, que havia começado como movimento não religioso ainda no
século XIX, ganha força com o Holocausto, na medida em que este parece
demonstrar que apenas sob a proteção de um Estado o povo judeu poderia
viver livremente e em segurança.
A segunda forma básica de encarar o Holocausto é tomá-lo na sig-
nificação que ele tem não especificamente para os judeus, mas sim para a
humanidade, ou seja, segundo o significado que tornou possível que ele
despertasse a comoção mundial que despertou. Esse significado toma o
judeu não em sua particularidade, mas sim em seu pertencimento ao gê-
nero maior, o gênero humano. Trata-se aqui, não prioritariamente de uma
revolta contra a violência infligida ao povo judeu enquanto tal, mas sim
contra a violência infligida ao ser humano na pessoa do judeu. Segundo esta
perspectiva, ser judeu significa ser capaz de revoltar-se contra qualquer tipo
de crime contra a humanidade, como o são os inúmeros genocídios de que
outros povos são ou foram vítimas, como também implica necessariamen-
te posicionar-se radicalmente contra o fascismo, onde quer ele se manifeste
e sob qualquer forma em que o faça.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
176
O fascismo, porém, nada mais é que manifestação extremada e radi-
calizada do mesmo ímpeto imperialista e expansionista que animava as po-
tências que o venceram. São essas as nações que, em substituição à fracas-
sada “Liga das Nações”, criam a Organização das Nações Unidas (ONU),
com o intuito declarado de tentar impedir novas guerras mundiais e o
recrudescimento do fascismo. O fato, porém, é que a ONU tem, desde seu
surgimento, o caráter de órgão gestor do imperialismo mundial, incum-
bido de fazer a mediação dos interesses das nações que venceram a Guerra
e assumiram o controle global. Se a guerra, na definição de Clausewitz é
a continuação da política por outros meios”, então, pode-se dizer que a
política das Nações Unidas dá continuidade, por outros meios, ao con-
flito de interesses que desencadeou a Segunda Guerra. Essa ambiguidade
constitutiva das Nações Unidas se mostra também em todas as suas prin-
cipais resoluções, como, por exemplo, na criação do Estado de Israel, em
1947. A comoção causada pelo Holocausto contribui para a materialização
da antiga demanda do movimento sionista, com o estabelecimento, na
Palestina, de um Estado autônomo que pudesse abrigar os judeus disper-
sos pelo mundo e protegê-los de novos ataques antissemitas. Porém, essa
motivação humanitária convive com a clara intenção de se estabelecer no
Oriente Médio um posto avançado do imperialismo ocidental e um agente
do interesse das grandes potências. É fora da realidade falar da criação de
Israel fazendo abstração desses interesses. Se não fosse por eles, jamais teria
sido criado, ou possivelmente o teria sido em outro lugar. Sua criação faz
parte da história do imperialismo, faz parte da história de colonização e
extermínio dos povos, a mesma História que gerou o nazismo. Deixar de
reconhecer esses fatos é condenar-se a não compreender toda a História do
conflito israelo-palestino e a deixar-se iludir pela propaganda sionista sobre
a natureza dos fatos que hoje se desenrolam no Oriente Médio.
É apenas esse contexto que nos permite compreender a atuação do
Estado de Israel desde sua fundação, mas especialmente após a Guerra
dos Seis Dias. E é ele também que explica que esse Estado se comporte
como ponta de lança da maior potência imperialista do pós-guerra e como
defensor dos interesses dessa potência no Oriente Médio. É do Estados
Unidos da América, bem como das elites judaicas capitalistas espalhadas
Amizade e Sabedoria
177
pelo mundo, que vêm os recursos que mantém Israel como potência eco-
nômica e militar. E é a partir dali que se difunde pelo mundo todo a nova
ideologia sionista, que se caracteriza por confundir deliberadamente juda-
ísmo, sionismo e defesa incondicional do Estado de Israel. Não é, portan-
to, de se estranhar que a política interna e externa israelense, totalmente
definidas pelo pacto com os americanos, sigam o padrão do imperialismo.
Infelizmente, não se pode estranhar também que surja na boca e na cons-
ciência dos povos e dos líderes mundiais a incômoda comparação entre a
política do Estado de Israel sob Netanyahu e a do Terceiro Reich. De certa
forma, a analogia é inevitável, visto que aparentemente os opressores de
hoje são os oprimidos de outrora. Porém, trata-se de uma identificação
falsa, já que as forças políticas que comandam Israel hoje em dia não repre-
sentam nem o povo judeu como um todo nem as vítimas dos campos de
concentração. Por isso, mais proveitoso do que perguntar qual o papel que
os judeus desempenham hoje, seria perguntar qual é o papel representado
pelos palestinos.
O Holocausto serviu como justificativa histórica para que o consór-
cio das nações imperialistas decidisse presentear os judeus com um Estado.
Nesse Estado eles finalmente conquistam aquilo pelo que lutavam já no
século XIX, na Alemanha de Marx: sua emancipação política. Mas o alme-
jado Estado judeu retrocede do padrão dos Estados-nação laicos do século
XIX, já que faz oficialmente de parâmetros étnicos e religiosos o critério
decisivo para a cidadania. Por isso, o Estado de Israel sempre negou aos
palestinos direitos políticos e de cidadania, assim como a Alemanha cristã
na época de Marx (e mais ainda a de Hitler) os negava aos judeus. A auto-
afirmação dos judeus israelenses como povo se expressa, desde a década de
40, na subjugação e espoliação de outro povo que, como parte de seus as-
cendentes na Alemanha, se apresenta como um corpo estranho que é mas-
sacrado atualmente por um regime abertamente racista. Hoje, de forma
ainda mais clara do que no século XIX, evidencia-se que a almejada eman-
cipação política dos judeus não é de forma alguma emancipação humana,
já que se baseia na negação da humanidade em um determinado povo. É
por esse motivo que esse povo hoje atrai sobre si a atenção e a empatia de
todos os que aspiram pela emancipação do ser humano.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
178
Não há ofensa mais grave à memória do Holocausto do que a estrela
amarela com a inscrição Jude que os porta-vozes israelenses ostentaram
recentemente na ONU ao tentarem justificar o massacre dos palestinos de
Gaza pelo regime de Netanyahu, como se quisessem dizer: “vejam, somos
as vítimas, as eternas vítimas, como poderíamos ser os opressores”?! Na
verdade, os únicos que teriam direito moral a envergar hoje em dia esse
triste símbolo seriam os próprios palestinos, pois são eles que, malgrado
todas as diferenças que possa haver, representam no dia de hoje da forma
mais clara e completa aquilo que os judeus representaram na Alemanha
hitlerista: a desumanização do ser humano. Os palestinos não são o único
povo que hoje é desumanizado, mas são sem dúvida o povo que atualmen-
te carrega de forma mais evidente o estigma da desumanização. São eles
que mais efetivamente atualizam a evidencia inelutável de que é necessária
e urgente a luta contra o fascismo, e aqueles judeus que entendem a sua
condição judaica como imperativo de luta contra a desumanização do ser
humano têm o dever de se colocar a favor desse povo, em cujo sofrimento
se reflete todo o horror que é a vida dos povos na periferia do imperialismo
capitalista mundial. E têm o dever de apontar para o atual Estado de Israel
e bradar: “daquele regime não passo nem perto”!
Referências
MARX, K. Brief von Marx an Arnold Ruge, September 1843. In: MARX-ENGELS
WERKE (MEW). Berlin: Dietz Verlag, 1981. Band 1. p. 343-346.
179
O amor em tempos de cólera.
Amai-vos e rebelai-vos
Ricardo MONTEAGUDO 1
“O amor é forte como a morte”
(Cântico dos cânticos, 8, 6)
“O amor precisa ser reinventado!”
(Rimbaud, Uma estadia no inferno)
Sabemos que vivemos tempos difíceis de crise civilizatória e profun-
das mudanças nas relações pessoais, sociais e humanas. Uma das questões
mais fundamentais da humanidade e bastante ignorada nos dias de hoje é o
amor. Dizemos que há um discurso de ódio que obnubila a visão e o senti-
Departamento de Filosofia/Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC)/Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (UNESP)/Marília/São Paulo/Brasil/e-mail: ricardo.monteagudo@unesp.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p179-192
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
180
mento, elimina o bem e a verdade, colapsa a justiça e polui a beleza. Nada
mais revolucionário hoje do que refletir sobre o amor e privar o discurso
de ódio de seu principal alimento: a intolerância, a mentira, a falsificação
do real, a enganação e a fraude.
Quando o falamos em amor pensamos logo no amor entre as pessoas
ou amor de alguém por alguma atividade. Contudo, há um tipo de amor
que ultrapassa ou transcende os amores singulares, sensuais ou românticos,
uma espécie de amor em si que, no entanto, não se basta a si mesmo, pois,
num primeiro momento, o amor é a busca por algo de que carecemos e
que nos completa, ou ainda algo de que não precisamos, mas que mesmo
assim nos completa. Essa primeira confusão nos recorda um pouco Santo
Agostinho quando nos fala do tempo no livro XI das Confissões. Sabemos
o que é, mas, quando nos perguntam, já não sabemos mais. Parecemos os
sofistas combatidos por Sócrates. Trazemos vários exemplos da literatura e
da poesia, mas não conseguimos abranger a riqueza desse sentimento, ou
dessa paixão. Vamos então propor uma hipótese.
O amor é um sentimento natural que trata de como cada um se
relaciona consigo mesmo e com os outros. Assim, o amor pode ser visto
tanto do ponto de vista singular, quanto do ponto de vista social ou mes-
mo metafísico. Considero que todo ser sensitivo é dotado da capacidade
de sentir e de amar, pois a sensibilidade sem o amor não tem sentido, ou
seja, seria como dizer que seres sensitivos não sentem, não têm sensações
ou percepções, portanto não poderiam ter preferências. Amar significa ter
um leque de opções e selecionar uma opção em detrimento de outras, se-
lecionar justamente o que alegra ou fortalece. Sem amor um ser sensitivo
é um mero objeto. Com amor, um ser sensitivo desenvolve prazer e força
apenas com a presença do sentimento amoroso.
Jean-Jacques Rousseau é talvez o filósofo que melhor tenha qualifi-
cado a importância do amor na vida sensível. Ele considerava que a socia-
bilidade não é natural e que a primeira forma do amor é consigo mesmo,
o amor de si, que exprime certa preferência por si mesmo e uma necessi-
dade imperiosa de auto-conservação para permanecermos vivos. Uma vez
que o homem se sociabiliza, o amor de si continua ativo, mas se perverte
em amor-próprio, que exprime certa soberba ou orgulho do homem em
Amizade e Sabedoria
181
relação com outros seres. Se fosse absoluto, esse amor-próprio tornaria o
homem o pior e mais violento e perigoso dos animais, dos seres sensiti-
vos. Mas esse amor-próprio também é relativo e depende da relação com
outros seres, ou seja, mesmo para se sentir superior é preciso a presença
dos outros. A destruição total dos outros, como afirma Hobbes, não faria
sentido, diz Rousseau. Segundo ele, Hobbes confunde sociedade e natu-
reza. Além do amor-de-si, outro sentimento natural é a piedade natural,
que significa que seres sensitivos não gostam de ver outros seres sensitivos
sofrendo. Ele projeta (“transporta”) sua sensibilidade no outro e vê-se a si
mesmo sofrendo, por isso rejeita o sofrimento do outro. Assim, é como
se o homem tivesse certo amor ou interesse por outros seres vivos com os
quais se relaciona. Os dois sentimentos naturais do homem são amorosos:
o amor-de-si e a piedade natural, que podemos livremente chamar de amor
pelo outro. Lembremos que, em sociedade, estes dois sentimentos naturais
entram em tensão com os mesmos sentimentos das outras pessoas com as
quais a relação social se estabelece. O que era absoluto antes da sociedade
se torna relativo e relacional em sociedade. Nestas relações, as preferências
criam dificuldades, como sabemos.
A partir destas considerações iniciais, vamos discriminar o amor em
seus três principais aspectos: o amor físico, ou natural; o amor moral, ou
social; e o amor metafísico, que concerne a relação de si com o todo, a
própria identidade, e que não é nem físico nem moral.
O amor físico refere-se à necessidade natural e instintiva com o ob-
jetivo de procriar e ocorre em todos os animais sexuados. Trata-se de um
intenso apetite reprodutivo que orienta a atração física (digamos, breve-
mente, que nas pessoas desperta uma necessidade biológica de aproxima-
ção epidérmica). Com as pessoas morais, concerne à expressão através do
contato físico, carícias e intimidade, envolve gestos de carinho, abraços,
toques e a conexão íntima. Em conjunção com o amor moral, pode for-
talecer um relacionamento. É uma manifestação importante de afeto. O
amor físico desempenha um papel significativo na criação de laços emo-
cionais e na satisfação das necessidades emocionais e físicas dentro de um
relacionamento amoroso.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
182
O amor moral implica na escolha do agente amoroso e está na ori-
gem da família e da amizade. Pode também exprimir um compromisso
de agir com bondade, compaixão, respeito e empatia em relação a outras
pessoas. Envolve a preocupação genuína com o bem-estar e a dignidade
de todas as pessoas, independentemente de sua relação conosco. O amor
moral nos motiva a agir de maneira ética, a considerar o impacto de nossas
ações sobre os outros e a buscar o bem comum. Ele se manifesta em atos de
generosidade, solidariedade e na disposição de ajudar quem precisa.
Já o amor metafísico vai além do amor físico e emocional, aborda a
natureza fundamental do amor e sua conexão com a existência humana e
o universo. É um amor sem nenhuma exigência, totalmente gratuito, uma
graça divina. Apenas por ser o que é, já é o que deve ser. Pode ser interpre-
tado como um princípio unificador que dá sentido, permeia a realidade e
conecta todos os seres. Podemos considerar como uma força cósmica ou
espiritual que transcende as limitações humanas e garante a harmonia e a
ordem do universo sem a qual tudo seria caótico. De certa forma, o que
afirmo é que talvez seja necessário um retorno à metafísica do amor para
sustentar uma atitude social ética, generosa, solidária, respeitosa e compro-
metida com a justiça e com a verdade. Somos seres relacionais e simbólicos.
É preciso amor para sermos tolerantes e para expulsarmos o ódio e a vio-
lência de nossas relações. É preciso querer amar para conter a intolerância
e a perversidade.
Um dos recursos para expressar o amor do homem pela humanidade
e pela natureza é tradicionalmente a ideia de Deus. Em muitas tradições
religiosas, o amor é considerado um valor central e uma virtude funda-
mental. O amor pode ser visto como uma expressão do divino ou como
um mandamento de Deus. Assim, amar Deus é cultivar um relaciona-
mento de devoção, fé e gratidão com uma força divina, transcendente e
amorosa, que exprima o conjunto da humanidade. Para muitas pessoas,
amar Deus significa viver com compaixão e bondade, buscar a conexão
espiritual através da oração, meditação e práticas religiosas, e encontrar
conforto, orientação e força com a presença divina em suas vidas. Cada
pessoa pode ter uma interpretação única sobre o que significa amar a Deus,
concebê-lo de outras formas como, por exemplo, Natureza ou Dignidade
Amizade e Sabedoria
183
Humana. Dependendo das crenças e experiências culturais de cada um
essa forma pode ser Jesus, a substância de Espinosa, o élan vital de Bergson,
o n confucionista ou o qí do taoísmo chinês etc. Essa perspectiva impõe
total ecumenismo. O certo é que precisamos de uma força harmônica de
amor e sentido. Uma necessidade metafísica sem a qual a violência se im-
põe. Observe contudo que a violência imporia o caos e extinguiria a vida,
é portanto um absurdo conceitualmente inadmissível, posto que vivemos e
observamos a vida. Como afirmava Tales de Mileto no início da Filosofia:
“Tudo é água”, pois onde não há água, não há vida. Onde não há amor,
não há vida.
Tomemos um texto religioso para analisar uma expressão consagrada
e antiga sobre o amor de nossa tradição greco-romana-judaico-cristã oci-
dental, o Cântico dos cânticos, um dos livros mais enigmáticos da Bíblia.
Trata-se do amor de uma mulher por um homem ungido por Deus. É
uma celebração da intimidade física entre amantes que se procuram e se
desejam. Os versos descrevem com grande sensualidade e beleza a atração
entre um homem e uma mulher. A linguagem utilizada é simbólica, uti-
liza a união física como uma metáfora da união entre Deus e seu povo,
ou entre a alma humana e o divino. Esta abordagem revela a crença na
sacralidade do amor físico uma vez tornado amor moral e sua capacidade
de transcender o plano terreno: “Que ele me beije com boca ardorosa, pois
tuas carícias são melhores do que o vinho” (Ct, 1,2). Além do amor físico
e moral, o Cântico dos Cânticos também evoca uma dimensão metafísica
do amor. Os amantes são retratados como símbolos de aspirações mais
profundas e espirituais: “Se encontrardes meu amado, que lhe direis? Que
estou doente de amor” (Ct, 5, 8). “Não reconheço meu próprio eu: ele me
torna tímida!” (Ct, 6, 12). A busca do amante pela amada reflete a busca da
alma por Deus, uma alma incompleta quando solitária ou fora de uma re-
lação amorosa (conjugal, familiar, amical, divina), a união física representa
a união espiritual e mística. Essa perspectiva transcende o amor terreno,
sugere uma conexão entre o humano e o que representa o divino por meio
do amor, um deixar-se levar e entregar-se pela confiança: A entrega mútua
e a devoção entre o homem e a mulher exemplificam virtudes como fideli-
dade, compromisso e respeito mútuo: “Eu sou de meu amado e seu desejo
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
184
sou eu. Vem, amado meu, vamos ao campo passar a noite” (Ct, 7, 11). O
amor moral é aquele que transcende o desejo físico e a paixão momentâ-
nea, fundamenta-se em valores éticos e em um profundo entendimento
mútuo: “Põe-me um selo em teu coração, um selo entre teus braços, pois
o amor é forte como a morte. Suas chamas são chamas ardentes, um raio
sagrado” (Ct, 8, 6). A necessidade e força do amor para a vida impõe um
renascimento da ordem do sagrado porque nasce um sentido. Estas passa-
gens costumam ser vistas como uma metáfora da união do homem com
Deus. Há contudo uma característica que é a escolha no amor e uma ca-
racterística no Velho Testamento que é a lealdade do povo escolhido. Aqui
o amor é um exercício de justiça e compaixão.
Numa leitura extemporânea do Cântico, essa junção entre o amor
físico e o amor moral sacraliza o amor conjugal sob o modelo do amor
divino, o amor como um fim em si mesmo, o amor que não exige nada em
troca. A devoção, assim, evoca o amor metafísico, um ato gratuito, uma
Graça, como o amor de Deus. A ideia de que o amor é uma graça, algo
que é concedido livremente e sem esperar nada em troca, ressoa profunda-
mente. É uma forma de amor que transcende o egoísmo e se concentra no
bem-estar e na felicidade do outro.
No Novo Testamento, com o acontecimento do cristianismo, o amor
se torna um dos príncípios fundamentais. E, também, é o motivo pelo
qual toda a humanidade deve ser evangelizada. Deus é amor e o amor ao
próximo é uma expressão concreta da fé. “Amarás ao próximo como a ti
mesmo” (Mt, 22, 39) é expressão maior de generosidade e solidariedade.
Se tomarmos esta condição divina como uma projeção do amor sobre toda
a humanidade, teremos a missão de evangelizar. “Toda a autoridade me foi
dada no céu e sobre a terra. Ide, pois, fazer discípulos em todas as nações
(Mt, 28, 18). A conversão é vista como um ato de amor ao próximo e de
reconciliação com a vida, uma contribuição com o bem-estar de toda a
humanidade com justiça, compaixão e paz. A tradição cristã se espalhou
por todo o mundo nos dois últimos milênios e enfrenta resistências de
todo tipo, mas o que interessa aqui é o significado do amor na metafísica
ocidental. Deus cria a humanidade como um ato de amor e de graça. Uma
graça gratuita sem nada em troca. Ora, nada menos capitalista do que isso.
Amizade e Sabedoria
185
Há um amor quiçá menos religioso e com o mesmo sentido: o amor
materno é um sentimento profundo e incondicional que quem exerce a
maternidade tem por seu filho. É um amor que transcende qualquer outra
conexão, é altruísta, protetor e repleto de cuidado, um dos mais fortes e
inabaláveis vínculos emocionais que existem, sob diversas formas, desde
gestos carinhosos até sacrifícios pessoais em prol do bem-estar e felicidade
dos filhos. É um lugar maravilhoso em que o amor-de-si para a preservação
do indivíduo se une à piedade natural para a preservação da espécie.
Retornemos ao Novo Testamento, Epístola aos romanos, um trecho co-
mumente estudado em Filosofia: “Seja todo homem submisso às autoridades
que exercem o poder, pois não há autoridade a não ser por Deus e as que
existem são estabelecidas por Ele” (Rm, 13, 1). Trata-se de uma passagem
conformista e consoladora aos males da política e do poder, que costuma ser
citada para justificar e sustentar várias formas de abuso político. Contudo, a
sequência da passagem condiciona a submissão ao amor mútuo:
Não tenhais nenhuma dívida [culpa] para com quem quer que seja,
a não ser a de vos amardes uns aos outros; pois aquele que ama seu
próximo cumpriu plenamente a lei. Com efeito, os mandamentos
Não matarás, Não furtarás, bem como todos os outros, resumem-se
nesta palavra: Amarás o próximo como a ti mesmo. O amor não faz
nenhum dano ao próximo, portanto o amor é o pleno cumprimento
da lei (Rm, 13, 8-10).
A submissão assim pressupõe o amor, o bem e a justiça. O amor
pressupõe que o exercício do poder seja bem intencionado e jamais pro-
mova nenhum dano ou prejuízo a outrem. É curioso que, mais uma vez,
quando procuramos referências ao amor, adquirimos a certeza de que o
cristianismo é anti-capitalista, pois o compromisso mútuo, a consciência,
a dívida, a culpa devem sempre estar submetidos ao amor. Vejamos outro
exemplo no Sermão da Montanha: “Felizes os que têm coração de pobre,
pois deles é o reino dos céus” (Mt, 5,3). Os poderosos têm uma responsa-
bilidade perante os pobres para preservarem sua consciência cristã.
Por outo lado, como sabemos, o poder e o exercício do poder não
funcionam por regras de ética cristã ou religiosa. O conflito de interesses
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
186
e vontades segue outra lógica. O fundador da ciência política, Maquiavel,
mostrou que os líderes políticos querem principalmente permanecer no
poder e preservar sua autoridade. Em contraste com a visão medieval que
via a autoridade política como derivada da autoridade divina (vox populi,
vox dei), Maquiavel mostra que a religião é um instrumento de dominação
para a política e os políticos. Ele aconselha os governantes a basearem suas
decisões em considerações práticas e na busca pelo poder e estabilidade, em
vez de se preocuparem com questões teológicas ou morais. Ele considera
que é necessário tomar decisões políticas com base nas circunstâncias con-
cretas, em vez de se apegar a princípios éticos abstratos. Maquiavel enfati-
za a importância de separar política e considerações morais, defende uma
abordagem pragmática e realista para a aquisição e manutenção do poder
político. Sabemos que nos dias de hoje este tipo de confusão é um dos
causadores da crise civilizatória que atravessamos: o mau uso da religião
para enganar os povos. Situações em que o ódio é predominante são po-
tencialmente explosivas, revolucionárias. Sem amor, não há vida possível.
Recorreremos mais uma vez a Rousseau para discriminarmos a re-
ligião que atende ao Estado, a religião que orienta a consciência dos de-
votos e a religião do homem consigo mesmo. A “religião do cidadão” é
vista como uma manifestação externa e social da religião, relacionada à
vida em comunidade, às leis políticas e à esfera pública, ou seja, é uma
forma de conter os cidadãos no campo estável da legalidade jurídica. A
religião fortalece o laço entre os cidadãos e é importante para a coesão
social e para a manutenção da ordem. Já a «religião do homem» está ligada
à esfera privada e à consciência individual, baseada na consciência moral de
cada um e no relacionamento direto com o divino. Portanto, há um viés
político, que preserva a vida cívica de um lado, mas de outro lado, permite
aos governantes ou aos líderes religiosos um uso indevido da religião com
fins escusos ou para prejudicar a liberdade de consciência das pessoas, o que
Rousseau chama ironicamente de “religião do padre”. Há também por ou-
tro lado um viés ético, em que há uma relação mais direta do homem com
o divino, numa conexão espiritual autêntica desprovida de formalismos
institucionais, ou seja, fundada na relação consigo mesmo e na liberdade
de consciência, que Rousseau chama também de “religião do coração”.
Amizade e Sabedoria
187
Essa distinção entre a esfera privada da religião e esfera pública refle-
te as preocupações de Rousseau com, de um lado, a coesão social e a estabi-
lidade política em uma sociedade justa, e de outro lado, a forma como cada
um se relaciona consigo mesmo. Observamos aqui que este cenário aponta
para uma metafísica do amor em Rousseau com o fim de garantir a justiça
e a harmonia social de um lado, e, de outro, o equilíbrio e a estabilidade
pessoal. Uma vez que a sociabilidade natural não é admitida na teoria de
Rousseau, a religião natural ocuparia o lugar de uma metafísica do amor
para sustentar uma vida ética e independente. Em outras palavras, a depen-
dência moral que emerge do pacto social precisa de uma metafísica prévia
para não cair no egoísmo violento e na tirania, e para impedir uma guerra
generalizada. Somos livres, mas para amar o outro e não para violentá-lo.
Quando fala em religião natural, Rousseau tem em mente o im-
portante adágio cristão do Novo Testamento, “ama ao próximo como a ti
mesmo”, mais do que o princípio do Velho Testamento, “faça aos outros o
que queres que te façam”, que o direito natural moderno costuma exprimir
de outra forma, “não faça aos outros o que não queres que te façam”. De
fato, não podemos obrigar o outro a se comportar conforme nossa expec-
tativa, mas podemos dar ao outro um exemplo de amor e felicidade que
mude a expectativa dele em relação a nós. Isso é o que qualifica o amor
como um ato gratuito, o ato da Criação. Nada se quer em troca senão uma
expectativa de reciprocidade espontânea, sem obrigação, sem força. É o
que poderíamos chamar de o poder do amor.
Voltemos agora um pouco. Vamos tentar qualificar a violência como
prática do ódio, como um sintoma de ausência, como uma forma de doen-
ça cuja cura é a reversão das condições que a propiciaram. É preciso rebe-
lar-se contra todas as formas de violência e revertê-las em formas de amor.
No Contrato social, há uma passagem célebre de Rousseau em que ele
parece antecipar a Revolução Francesa e de fato faz mais do que isso, fabri-
ca um conceito, cria o conceito de “revolução” como uma reestruturação
social violenta causada por conflitos internos:
A exemplo de algumas doenças que transtornam a cabeça dos
homens, (…) há no decurso da vida dos Estados épocas violentas
nas quais as revoluções ocasionam nos povos o que algumas
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
188
crises determinam nos indivíduos. (…) O Estado, abrasado por
guerras civis, por assim dizer renasce das cinzas e retoma o vigor da
juventude ao escapar dos braços da morte! (CS, II, 8, #3).
Para Rousseau, as guerras civis representam uma consequência pre-
ocupante da corrupção política e social que ocorre quando o Estado se
torna tirânico, quando as pessoas abandonam seus interesses comuns por
interesses privados a ponto de destruir toda coisa pública. As guerras civis
surgem quando as pessoas se tornam divididas por interesses conflitan-
tes, muitas vezes incentivados por desigualdades sociais e políticas, causas
fundamentais das divisões internas que levam à guerra entre os membros
de uma mesma comunidade política. Ele vê a busca egoísta pelo poder
e pelos interesses individuais como um fator que abala a coesão social e
alimenta rivalidades entre os cidadãos. Para prevenir guerras civis e violên-
cias internas, Rousseau defende a criação de instituições políticas justas e
inclusivas que representem e protejam os interesses de todos os membros
da sociedade. Ou seja, é preciso preocupar-se com o outro, dar atenção às
necessidades do outro, ou em termos modernos, preservar o bem público
sem olvidar o bem de todos.
As guerras civis ocorrem quando as relações sociais mútuas deixam
de ser respeitosas e recíprocas, quando deixam de ser, por assim dizer, amo-
rosas. O respeito que se deve a cada um pode ser visto como uma forma de
amor que não exige imediatamente nada em troca, mas que, mediatamen-
te, pressupõe no outro o mesmo tipo de atitude amorosa, caso contrário
caímos na guerra hobbesiana de todos contra todos, na qual o que garante
o respeito é a autoridade política. A ausência de um governo central ou au-
toridade soberana causa um cenário de guerra perpétua e caos, onde cada
indivíduo busca seus próprios interesses particulares sem nenhum contro-
le. Nesse estado, não há leis ou autoridades para impor o respeito mútuo
ou resolver disputas, levando a uma situação de constante insegurança e
conflito. O corpo político unificado, dotado de poder absoluto para impor
a ordem e a segurança na sociedade, é constituído pela vontade de indiví-
duos que concordam em submeter-se a um governo com autoridade total
para estabelecer leis e punir transgressões. Assim, na perspectiva hobbesia-
Amizade e Sabedoria
189
na, relações odiosas que excluem qualquer forma de amor implicam num
governo violento e autoritário.
Estas preocupações éticas contudo estão em todas as culturas e tradi-
ções e se exprimem de formas diferentes. Afinal, como a sociedade humana
poderia perdurar? Tomemos um pequeno exemplo oriental de tradição não
cristã. Há uma obra simples utilizada no ensino dos ideogramas às crianças
chinesas, Clássico de Três Caracteres (三字经 - sān zì jīng). São pequenas
frases poéticas com três ideogramas. A primeira frase é: 人之初,性本善
(rén zhī chū, xìng běn shàn), que pode ser traduzida como: “No princípio
da humanidade, a natureza é intrinsecamente boa”. É uma obra clássica
da literatura chinesa que visa ensinar valores morais e éticos por meio de
versos curtos e simples. A segunda frase é: 性相近,习相远 (xìng xiāng
jìn, xí xiāng yuǎn), que pode ser traduzida como: “As naturezas são seme-
lhantes; os hábitos é que as tornam diferentes”. É interessante como esses
primeiros versos curtos transmitem ensinamentos profundos e nos lem-
bram de Jean-Jacques Rousseau: o homem e a natureza são primariamente
bons; as relações tornam os homens heterogêneos e orgulhosos; o amor e a
humildade devem vencer a soberba nas relações e recuperar o bem intrín-
seco da natureza e da humanidade.
Para sustentarmos nossa hipótese segundo a qual precisamos de uma
metafísica do amor para compreendermos o mundo e a nós mesmos, e
salvar o mundo da dissolução capitalista neoliberal e nós mesmos dessa
interiorização da miséria humana promovida por este sistema, recorrerei à
última grande Filosofia que conhecemos. Hegel renovou os estudos sobre
a metafísica para buscar as verdades mais profundas da realidade aparente
e ultrapassar a aporia entre fenômeno e coisa em si. Tudo o que existe para
ele corresponde à história do espírito rumo ao Absoluto. Por outro lado,
Nietzsche se colocou tanto contra a dialética hegeliana quanto contra a
analítica kantiana e defendia o niilismo total, a recusa de toda metafísi-
ca como expressão de arrogância humana perante a exorbitância de todo
o universo, afirmava o amor fati, o amor aos fatos, a admissão de toda
a realidade imediata e nada mais. Enquanto um dissolve a singularida-
de no Absoluto, o outro exalta a singularidade imediata no puro nada.
Em termos teológicos simples, para um Deus é tudo e para outro Deus é
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
190
nada. Nesse contexto, Kierkegaard recuperou a preocupação socrática fun-
damental, conhece-te a ti mesmo, e inquiriu sobre a existência do puro Eu
em relação aos fatos e ao absoluto. Assim, é preciso retomar a liberdade e
a responsabilidade de cada um em relação à ansiedade e angústia causada
pela existência. Para ele, o amor é uma escolha e um compromisso ativo e
não apenas um sentimento passivo. O verdadeiro amor envolve sacrifício,
renúncia e ação. Amar alguém é comprometer-se a ajudá-lo a se tornar a
melhor versão de si mesmo. Logo, o amor se torna um modelo metafísico
para a liberdade, a responsabilidade e para a Razão, uma referência interna
e externa para a subjetividade. Ou seja, entre o Ser hegeliano e o Nada
nietzscheano temos o Amor, uma referência de sentido para a existência.
Do ponto de vista filosófico, entre o Absoluto e o Niilismo, o Amor resgata
a singularidade, uma condição suficiente e satisfatória de incompletude.
Vivemos hoje um período doentiamente narcisista em que o outro é
reduzido a objeto-espectador com a liberdade de aplaudir e nada mais. Um
jovem filósofo revolucionário de 68, Guy Débord, mostra como a lógica da
indústria cultural e do consumismo induziram à sociedade do espetáculo
e a uma espetacularização da vida no capitalismo avançado. O espetácu-
lo enquanto tal alheia o público e o torna produto de consumo ao invés
de participantes cidadãs na construção de suas próprias vidas, sobretudo
quando cada um se oferece como espetáculo para os outros. Com o evento
dos celulares e das redes sociais, essa tendência de isolamento narcisista
se fortaleceu e debilitou ainda mais as relações de generosidade e solida-
riedade. Nestes tempos pós-modernos, tudo se flexibilizou e fragmentou,
inclusive a questão do amor, muitas vezes confundida com a multiplicação
dos gêneros favorecida pela exposição narcísica.
Muitos pensadores pós-modernos consideram que o amor é uma
construção social moldada por narrativas culturais e contextos históricos
específicos, enquanto outros enfatizam a natureza fluida, líquida e mu-
tável das relações humanas. O amor agora é visto como uma experiência
multifacetada, permeada por questões de poder, identidade e subjetivida-
de. Creio que há aí uma confusão entre amor e prazer, especialmente os
prazeres propiciados pelo uso do próprio corpo. Há aí uma biopolítica
disciplinar que reflete o aspecto complexo e em constante transformação
Amizade e Sabedoria
191
das relações interpessoais na nossa era. Embora estas libertações sejam im-
portantes para as pessoas, sobretudo aquelas que vêem isso como proble-
ma, o que observamos é contraditoriamente um aumento da intolerância,
do discurso de ódio, das ofensas e ameaças propiciadas pelo anonimato
digital, e das mentiras politicamente orientadas (fake news). O narcisis-
mo e a espetacularização das relações produz o contrário do que promete,
as pessoas se sentem diminuídas ao invés de estimadas. Alguns chegam a
propalar a morte da verdade com o potencial abuso da combinação entre
inteligência artificial e dos big data pelos algoritmos.
Ora, justamente. Tudo isso devido à fragmentação neoliberal e pós-
moderna. Contudo, as pessoas permanecem pessoas, alguma coisa reúne a
humanidade e não é obviamente apenas o capitalismo ou o “deus-mercado”,
ou melhor, a metafísica do dólar que reúne para dividir, pelo menos desde
o fim do acordo de Breton Woods em 1973 e com a globalização financeira
neoliberal do capitalismo digital. É preciso resgatar uma metafísica
homogênea de união, que mostre que a fragmentação não elimina o fato
de as pessoas permanecerem pessoas enquanto tais, que vivemos todos
juntos na mesma terra. Se continuarmos acentuando o narcisismo doentio
das redes sociais digitais e a poluição e destrutividade irreversível do meio
ambiente, a sobrevivência da humanidade e também do planeta está em
risco. Precisamos, por isso, lembrar que somos uma única espécie num
único sistema solar e que a união faz a força, mas a desunião enfraquece.
Essa é minha proposta: que a metafísica se funda no amor e no sen-
tido da generosidade.
Referências
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BADIOU, A.; GROSRICHARD, A. et allii. De l’amour. Paris: Flammarion, 1999.
BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
Bíblia – Tradução Ecumênica. São Paulo, Loyola, 1994.
Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
192
BLONDEL, E. L’amour. [Apresentação e seleção de textos]. Paris: Flammarion, 1998.
LEMINSKI, P. Jesus. São Paulo: Brasiliense, 2002. (Coleção Encanto radical).
MILAN, B. O que é amor. São Paulo, Brasiliense, 1983. (Coleção Primeiros passos).
ROUSSEAU, J. J. Contrato social. São Paulo: Abril, 1978. (Coleção Os Pensadores).
ROUSSEAU, J. J. Profissão de fé do vigário savoiano. In: ROUSSEAU, J. J. Emílio. São
Paulo: Martins-Fontes, 1995.
193
O sentido da vida
Ricardo Pereira TASSINARI 1
Introdução: Sobre o Sentido da Vida.
Tem a Vida um Sentido?
Provavelmente muitos de nós, apaixonados pela Filosofia, já nos co-
locamos essa questão no decorrer da vida. Com certeza, ela é uma questão
central da Filosofia, no sentido de que sua resposta condiciona a resposta
de diversas outras questões centrais em Filosofia, como às relacionadas à
Ética, à Estética, à Teoria do Conhecimento, à Política etc.
Livre-Docente em Lógica, Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência. Departamento de Filosofia/
Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC)/Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)/
Marília/São Paulo/ e-mail: ricardo.tassinari@unesp.br.
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p193-207
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
194
Respondê-la, então, não é tarefa fácil. Respondê-la, ainda, com o
devido rigor de uma reflexão profunda sobre o que seria a “Vida”, não é
possível em tão pouco tempo e em tão poucas páginas. Supondo que o
leitor julgue que o autor deste trabalho pode ter algo interessante a dizer
sobre o tema, farei aqui um pequeno ensaio, um sobrevoo, por assim dizer,
sobre como me coloquei a questão do Sentido da Vida e qual foi, em linhas
gerais, a história de sua resposta.
Comecemos nossa jornada observando que, certamente, a resposta a
essa questão depende do que entendemos pelos termos “Sentido” e “Vida”.
Certamente, ainda, uma boa resposta a essa questão envolverá tanto um
ponto de vista pessoal (Eu, Ricardo, julgo que a Vida tem Sentido? Se sim,
qual?) quanto geral ou universal, isto é, que possa servir a maioria ou a todos;
afinal, trata-se da Vida em geral e não, apenas, de uma vida em particular.
Adianto já que minha resposta a essa questão será: Sim, a Vida
tem Sentido!
Tratarei, pois, aqui de explicitar em que sentido a Vida tem Sentido.
Ora, esse duplo emprego do termo “sentido” já nos leva a primeira
questão a ser tratada aqui: a acepção do termo “sentido”. Trataremos tam-
bém minimamente da acepção do termo “Vida”.
Sobre “Sentido” e “Vida”.
O termo “sentido” tem, pelo menos, duas acepções que nos interessa
aqui. A primeira, que parece ser mais fácil de conceituar, refere-se à noção
de finalidade, aquilo ao qual um processo tende. Assim, por exemplo, di-
zemos que estamos construindo um texto no sentido de explicitar nossas
reflexões a respeito de algo, ou ainda, que o leitor está lendo um texto no
sentido de compreender o que o autor pensa a respeito de algo. Perguntar
se a Vida tem sentido, nessa acepção, equivale a perguntar se, no tempo, a
Vida tem uma finalidade (ou seja, se ela, enquanto processo, tende a algo).
Neste caso, trata-se de identificar que algo é esse e como a Vida tende a ele.
Amizade e Sabedoria
195
Uma outra acepção do termo “sentido” que nos interessa aqui (que
está relacionada a primeira e que a completa) é mais difícil de conceituar.
Ela está intimamente unida a elementos que se codefinem reciprocamente
e que, além disso, referenciam-se a si próprios. Segundo essa acepção, po-
demos nos perguntar, por exemplo: Qual o sentido do termo “sentido”?
Esta pergunta já explicita a circularidade inerente a conceituação
desta acepção, bem como, na medida em que a resposta a ela demandará
outros termos, coloca a questão da codefinibilidade de termos, pois, tam-
bém, tratar-se-á de conceituar o sentido desses termos.
Para contornar minimamente o complexo problema de se estabe-
lecer essa segunda acepção do termo “sentido”, de tal forma que ela sirva
para apresentar uma resposta a questão central proposta e que caiba em
um texto como este, de pequena extensão, vamos definir o sentido de
algo, nessa segunda acepção, como a relação que esse algo tem com as
outras coisas e consigo mesmo, podendo essa acepção se referir também
a compreensão desse algo, na medida em que para compreender (ainda que
parcialmente) algo, compreendemos (parte de) a relação dele com outras
coisas e, em retorno, consigo mesmo.
É importante notar que quando nos perguntamos pelo sentido da
Vida, estamos nos referindo preferencialmente à primeira acepção, isto é,
como finalidade, mas não só, pois para estabelecer o sentido da própria
finalidade, temos que mostrar sua relação com os demais elementos.
Perguntar-se, pois, sobre o Sentido da Vida como unidade dessas
duas acepções de “sentido” é se perguntar pelo Motivo da Vida, tanto aqui-
lo em direção a que tende o processo Vida quanto o motor desse pró-
prio processo; e tem-se, pois, aqui um sentido muito próximo ao do télos
aristotélico.
Esclarecidas minimamente (espero) a acepção de “sentido”, precisa-
mos agora tornar clara a acepção do termo “Vida”.
Aqui também nossa tarefa não é fácil, devido a imensa extensão dos
elementos necessários para a rigorosa explicitação desse termo.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
196
Entretanto, no mesmo espírito que antes, ou seja, para contornar
minimamente o complexo problema de se estabelecer essa acepção, de tal
forma que sirva para apresentar uma resposta a questão central proposta
e que caiba em um texto de pequena extensão, vamos definir “Vida
como a plenitude de sentido, na segunda acepção do termo “sentido”,
ou seja, a plenitude das relações entre todo e qualquer elemento que
possa ser considerado.
Essa definição já mostra o quanto sua real explicitação em termos
detalhados é uma tarefa impossível. Contentar-me-ei aqui com uma expli-
citação geral dessas relações entre alguns dos elementos que, julgo, podem
ajudar na solução da questão do Sentido da Vida.
Essa explicitação, como foi comentado na Introdução, terá que ser
tanto geral ou universal, quanto pessoal. E, do lado pessoal, houve para
mim uma história da explicitação do termo “Vida” (como plenitude das
relações entre todo e qualquer elemento que possa ser considerado). Logo,
vou contar um pouco da história dessa explicitação, o que também mos-
trará como foi se delineando para mim uma resposta à questão do Sentido
da Vida.
Em busca de um sentido para a Vida.
Ao pensar sobre a proposta do Prof. Ubirajara R. A. Marques de
que discutíssemos o Sentido da Vida no I Simpósio Antônio Trajano, lem-
brei-me que, aos 14 anos de idade, já tinha me colocado a questão do
Sentido da Vida como um problema filosófico a ser levado a sério e de
extrema importância. Essa não foi minha questão metafísica primeira
(no tempo); a primeira talvez tenha sido: Por que as coisas são como
são? Ou ainda: por que existe alguma coisa? Por que não é apenas nada?
Claro que, naquela época, essa primeira questão era somente espanto (o
thaumaston de que nos fala Aristóteles). Porém, esse não foi o caso em
relação à questão do Sentido da Vida para a qual, na época, julguei ter
encontrado uma resposta.
Amizade e Sabedoria
197
Para contar um pouco desse momento, lembro-me de ir para um dos
clubes de desporto da cidade de minha infância e adolescência, ruminando
aquela questão que me incomodava tanto e não saia de minha mente: pa-
recia não haver solução teórica para ela.
Lá, em certo momento, absorto, contemplando as coisas, veio-me
a resposta:
O Sentido da Vida é a própria Vida!
O Sentido da Vida é Viver!
A Vida era um fim em si mesmo! Perguntar pelo Sentido da Vida
fora dela, não era possível, não fazia sentido...; e, na participação da Vida, a
própria participação nela regula o sentido das coisas, em geral, e da própria
Vida, em especial; assim, o Sentido da Vida era Viver!
De certa forma, essa resposta se mantém até hoje, mas o seu sentido
para mim (na segunda acepção do termo “sentido”, como a relação que a
Vida tem com as outras coisas e consigo mesma), mudaria consideravel-
mente, como veremos.
Naquela época e mesmo depois, no Bacharelado em Física na
UNICAMP, com uma metafísica que buscava a maioria de suas respostas
na ciência, pensava, com Nietzsche, no §1 do Sobre a Verdade e a Mentira
no Sentido Extra-Moral, que não existia para o intelecto
[...] nenhuma missão mais vasta, que [o] conduzisse além da vida
humana [; que,] ao contrário, ele é humano, e [que] somente seu
possuidor e genitor o toma tão pateticamente como se os gonzos
do mundo girassem nele. Mas se pudéssemos entender-nos com as
moscas, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse
páthos e sente em si o centro voante deste mundo (Nietzsche, 1974,
p. 53. [Os trechos entre colchetes foram inseridos por mim]).
Em especial, o pensamento de Nietzsche influenciou profundamen-
te, nesta época, minha concepção de “Vida” e de “Sentido da Vida”. O
§1067 de O Eterno Retorno representava bem para mim, na época, essa con-
cepção, inclusive com certa sistematização da Física (como da Conservação
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
198
da Energia, Mecânica Quântica e Cosmologia Relativística). Reproduzo-o
então aqui, entremeando, no final de certos trechos, entre colchetes, os
elementos que a eles eu correlacionava.
E sabeis sequer o que é para mim o “mundo”? Devo mostrá-lo a vós em
meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de força, sem início,
sem fim; uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna
maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda,
inalteravelmente grande em seu todo; uma economia sem despesas
e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de
nada” como de seu limite, nada de evanescente, de desperdiçado
[Conservação de Energia]; nada de infinitamente extenso, mas como
força determinada posta em um determinado espaço [Cosmologia
Relativística], e não em um espaço que em alguma parte estivesse
vazio”, mas antes como força por toda parte; como jogo de forças e
ondas de força, ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui acumulando-se
e ao mesmo tempo ali minguando; um mar de forças tempestuando
e ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente
recorrentes [Mecânica Quântica]; com descomunais anos de retorno,
com uma vazante e enchente de suas configurações, partindo das
mais simples às mais múltiplas, do mais quieto, mais rígido, mais
frio, ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo
mesmo; e depois outra vez voltando da plenitude ao simples, do
jogo de contradições de volta ao prazer da consonância, afirmando
ainda a si próprio, nessa igualdade de suas trilhas e anos; abençoando
a si próprio como Aquilo que eternamente tem de retornar, como
um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio,
nenhum cansaço – : esse meu mundo dionisíaco do eternamente-
criar-a-si-próprio, do eternamente-destruir-a-si-próprio, esse mundo
secreto da dupla volúpia, esse meu “para além de bem e mal” [A
concepção de um Universo cíclico em Cosmologia Relativística],
sem alvo, se na felicidade do círculo não está um alvo, sem vontade,
se um anel não tem boa vontade consigo mesmo [Concepção de que
o Sentido da Vida é Viver!] -, quereis um nome para esse mundo?
Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós,
vós, os mais escondidos, os mais fortes, os mais intrépidos, os mais da
meia-noite? – Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso!
E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além
disso! (Nietzsche, 1974, p. 405. Os trechos entre colchetes foram
inseridos por mim).
Amizade e Sabedoria
199
Em especial, a parte sobre a “vontade de potência” motivava minhas
interpretações ético-políticas da época e indicavam (para mim) uma das
principais direções de constituição de uma ciência do homem, uma ciência
que verdadeiramente conseguisse, se não prever, pelo menos explicar o con-
junto dos comportamentos humanos em suas especificidades e com rigor.
Por outro lado, meu interesse maior sempre foi a questão do
Conhecimento (por exemplo, de confiabilidade nas teorias, limites, natu-
reza do conhecimento etc.) que permeava e dirigia meus estudos de Física,
Matemática, Lógica, Epistemologia e Filosofia da Ciência, em especial,
meu Bacharelado em Física e em Matemática (este não concluído) e à
minha Iniciação Científica em Lógica, sob a orientação da Profª Drª Itala
Maria Loffredo D’Ottaviano.
Este interesse me levou também a estudar Epistemologia Genética,
sob a orientação da Profª Drª Zelia Ramozzi-Chiarottino, em meu mestra-
do no Instituto de Psicologia da USP. E lá eu descobriria que a constituição
de uma ciência do homem, calcada em noções semelhantes à de “vontade
de potência”, não era tão simples como eu pensava; mais ainda: não era
sequer possível... Mas não adiantemos as coisas.
Sabemos o que é a Vida? A questão do Conhecimento
Quando entrei no Mestrado em Psicologia Experimental, pensava
em aplicar a Teoria do Caos (da qual fizera vários cursos na época) para ex-
plicar o comportamento humano. Estava em busca de modelos, ou ainda,
de formas gerais de modelos que permitissem explicar o comportamento
humano. Nessa busca, no estudo das várias teorias, uma questão epistemo-
lógica se impunha na medida em que meus estudos iam se aprofundando.
Era a questão de que a visão dos fatos é sempre teórico-carregada, ou seja,
que nossos juízos, mesmo os factuais, são sempre condicionados por uma
interpretação.
Dois aspectos, então, saltavam-me aos olhos.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
200
Primeiro, eu percebia que as teorias psicológicas mais delineavam
uma concepção de homem do que respondiam à questão “O que é o ho-
mem?”. Nessa época, eu brincava com tal situação propondo uma possível
consulta psicológica:
— Qual o meu problema? (Pergunta o paciente.)
— Depende (responde o psicólogo); segundo Freud é um problema,
provavelmente com sua mãe, que ocorreu na sua infância; segundo Jung,
essa é uma questão arquetípica; já segundo o Behaviorismo, não é nada
disso, é apenas uma questão de reforço de seu comportamento...
— Mas eu não quero saber o que essas pessoas pensavam (objeta o
paciente), eu quero saber sobre meu problema...
Buscando então uma visão mais ampla e sistemática que conseguisse
explicar o homem, retomei minhas leituras da Ética de Espinosa, no senti-
do de entender melhor as causas do comportamento humano. Em particu-
lar, causava-me admiração a sistematicidade do pensamento de Espinosa;
pois, um pensamento sistemático tem, entre outras, a vantagem de ser
mais estável frente a novidades, já que busca ser uma consideração geral.
Por outro lado, essa sistematicidade levava necessariamente a uma noção
de Deus Natureza como única substância com dois lados (atributos): a
extensão (coisa extensa) e o pensamento (coisa pensante) (cf. Espinosa,
1983, p. 89).
Retornar a ideia de Deus era para mim no mínimo constrange-
dor, devida a arraigada concepção metafísica constituída anteriormente.
Entretanto, uma coisa fazia sentido, o Deus Natureza de Espinosa era oni-
presente (a Natureza está em todo lugar) e onipotente (a Natureza é toda
a potência existente). Ficava em aberto a questão da onisciência e eu me
perguntava, qual o sentido de dizer que a Natureza é onisciente? Percebia
então que uma resposta honesta a essa questão (ou seja, que não fosse já
dada por minhas preconcepções) dependia de se entender bem como nossa
própria consciência é constituída, uma das questões centrais da Filosofia
que se mantém até os dias de hoje.
Amizade e Sabedoria
201
Voltando à questão de que todo fato é teórico-carregado, o segundo
aspecto que me saltava aos olhos era de que o estudo da Epistemologia
Genética de Piaget (em especial, dos experimentos feitos com todo rigor
de detalhe e com um profundo espírito crítico frente a seus resultados)
me mostrava como aquilo que vivemos depende das noções por nós cons-
truídas (em especial das noções de espaço, de causalidade, de conservação
dos objetos no espaço, de tempo, de conservação da substância nas suas
transformações, de número, da relação parte-todo, etc.). Em especial, po-
de-se mostrar que uma criança com um mês de idade não concebe e nem
percebe os objetos físicos nem as pessoas como tais (ou seja, como objetos
físicos ou pessoas).
Isso era especialmente significativo em relação a busca de se esta-
belecer uma reflexão consistente e geral a respeito do ser humano (em
específico) e da Vida (em geral), pois, se lembrarmos que um dia tivemos
um mês de idade e de que a Vida é hoje, para nós, uma multidão de coisas,
concluímos que essa multidão, ou mesmo a Vida, como nós a entendemos
e vivemos, depende das noções por nós construídas.
A passagem abaixo, tirada da análise de experimentos relatados em O
Nascimento da Inteligência na Criança de Piaget, ilustra essa questão.
O “significado” das percepções objetivas, como a da montanha
que vejo da minha janela ou do tinteiro na minha escrivaninha,
são os próprios objetos, definíveis não só por um sistema de
esquemas sensório-motores e práticos (fazer uma ascensão, molhar
a minha caneta no tinteiro) ou por um sistema de conceitos
gerais (um tinteiro é um recipiente... etc.), mas também por suas
características individuais: posição no espaço, dimensões, solidez e
resistência, cor sob diferentes iluminações etc. Ora, estas últimas
características, embora sejam percebidas no próprio objeto, supõem
uma elaboração intelectual extremamente complexa: para atribuir,
por exemplo, dimensões reais às pequenas manchas que percebo
como sendo uma montanha ou um tinteiro, tenho de situá-las
num universo substancial e causal, num espaço organizado etc.
e, por conseqüência, construí-las intelectualmente. O significado
de uma percepção, isto é, o próprio objeto, é, portanto, um ser
essencialmente intelectual: ninguém “viu” jamais uma montanha,
nem mesmo um tinteiro, de todos os lados ao mesmo tempo,
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
202
numa visão simultânea de todos os seus diversos aspectos de
cima, de baixo, de leste e de oeste, de dentro e de fora etc.; para
perceber essas realidades individuais como objetos reais é preciso,
necessariamente complementar o que se vê com o que se sabe
(Piaget, 1975, p. 184).
[…] todo e qualquer objeto concreto é o produto de elaborações
geométricas, cinemáticas, causais, etc. […] (Piaget, 1975, p. 184).
Em termos da minha busca por formas gerais de modelos que per-
mitiriam explicar o comportamento humano, isso implicava que uma boa
explicação do ser humano e da Vida deveria: (1) permitir as diversas con-
cepções da Vida que nós construímos; (2) explicar a relação entre essas
concepções e a ação; e (3) explicar assim o complexo sistema de compor-
tamento de seres.
Uma outra questão epistemológica tão importante quanto a dos
fatos-teórico-carregados, aprendida nas aulas e discussões com o mestre
Gilles-Gaston Granger (que na época viera à USP dar uma disciplina de
pós-graduação), questão que se impunha também nessa busca de compre-
ensão do ser humano, era que todo modelo do comportamento humano
tem uma estrutura que não contém nela própria toda a riqueza da Vida ou
das diversas concepções a respeito da Vida (que movem seres humanos).
Ou seja, parecia não caber em modelos o sentido do termo “Vida” (em
relação à definição adotada aqui, não cabe nos modelos a plenitude das re-
lações entre todo e qualquer elemento que possa ser considerado). E nossa
pesquisa de doutorado viria a confirmar tais suspeitas.
Mas a partir daí surgia então a questão:
O que é a Vida?
Será possível responder a essa questão? (Principalmente consideran-
do-a como a plenitude das relações entre todo e qualquer elemento que
possa ser considerado.)
Seria possível um conhecimento completo da Vida?
Essa questão nos leva a próxima seção.
Amizade e Sabedoria
203
Será possível um conhecimento completo da Vida? A Vida como
Conhecimento.
A questão que intitula e introduz essa seção pode ser entendida de,
pelo menos, duas formas:
(1) Se eu, você ou um grupo qualquer de pessoas, podemos conhecer
completamente a Vida; o que certamente não é o caso; e
(2) Se é possível, em princípio, um conhecimento completo da Vida.
Neste último caso, adota-se uma concepção objetiva de conheci-
mento, que não se reduz ao conhecimento humano, segundo a qual, por
exemplo, não haveria evento sem causa (sem porquê, puro acaso), ou seja,
para tudo existiria uma causa e o que chamamos de “acaso” expressa apenas
nossa ignorância.
Certamente, não é possível decidir experimentalmente essa questão.
Ela é anterior a qualquer experiência e a adotamos, ou não, em vista de
nos ajudar a entender os fatos. Ela é o que se chama de uma questão de
princípio.
Pensando, pois, nas possibilidades de interpretação teóricas, pode-
mos aceitar, ou não, que é possível, em princípio, um conhecimento com-
pleto da Vida.
Penso que ao assumirmos não ser possível um conhecimento com-
pleto da Vida, ou que nem todo evento tem uma causa, corremos o sério
risco filosófico de pararmos de buscar a causa de algo porque julgamos não
ter ele uma causa, quando ele a tem; ou seja, o risco de estagnar e de viver
simplesmente realimentando concepções pré-estabelecidas que não corres-
pondem a como as coisas são.
Ora, mas, estagnar é parar; e na Vida nós não paramos!
Resta então aos que querem sempre continuar sua pesquisa sobre
a Vida (e seu Sentido) não se limitar por princípio. Se não é possível de-
monstrar o princípio de que existe um conhecimento completo da Vida,
também não é possível refutá-lo, e com isso ganhamos novamente, por
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
204
assim dizer, nossa licença para assumir a existência desse conhecimento e
continuar a buscá-lo, cada vez mais.
Mas assumir, em princípio, que existe um conhecimento completo
da Vida tem, a meu ver, uma séria implicação: a de que a Vida pode ser
vista como Conhecimento!
Sim, pois se existe um conhecimento completo da Vida, a Vida é a
expressão desse Conhecimento! Mais ainda, para nós, enquanto seres para
os quais a Vida é o que conhecemos dela, não há diferença entre Vida e
Conhecimento. A oposição entre Vida e Conhecimento seria ilusória.
Segundo essa interpretação, há um equívoco na distinção cartesiana
entre coisa extensa e coisa pensante: a coisa extensa é parte da coisa pen-
sante, ou seja, a extensão é parte do Conhecimento, pois se assim não o
fosse, a extensão nunca poderia ter sido pensada.
Temos, portanto, uma metafísica da subjetividade (em que está
contida a objetividade), oposta àquela metafísica inicial da materialidade
ou naturalista.
Essa concepção explica, em retorno, o porquê das duas questões
epistemológicas encontradas anteriormente: a dos fatos-teóricos-carrega-
dos, e a da impossibilidade de captar o sentido geral da Vida em modelos.
Quanto aos fatos teórico-carregados, os vários sentidos atribuídos
aos fatos por uma pessoa (na segunda acepção de “sentido”, isto é, a relação
que o fato tem com outras coisas e consigo mesmo), depende de quantas
coisas são consideradas por essa pessoa, ou seja, depende do próprio senti-
do da Vida para essa pessoa (na segunda acepção do termo “sentido”).
Quanto à questão da impossibilidade de captar o sentido da Vida
por modelos (como a plenitude das relações entre todo e qualquer ele-
mento que possa ser considerado), isso se dá porque a Vida se apresenta
como um Conhecimento com infinitas causas, com infinitas razões (nunca
cessaremos de descobri-las!).
Assim, àquela minha antiga metafísica (parcial) que supunha, com
Nietzsche (1974, p. 282) que “[...] pensar é apenas uma proporção desses
impulsos [de apetites e paixões] entre si [...]” e que (1974, p. 283) “[...] se
Amizade e Sabedoria
205
teria adquirido o direito de determinar toda a força eficiente univocamente
como: vontade de potência”, caiu por terra e se tratava, pois, de reinter-
pretar o Sentido da Vida, encontrado anteriormente, em vista dessa nova
metafísica; o que nos leva a seção seguinte.
O Sentido da Vida.
Vimos, na seção anterior, a consideração de que a Vida é
Conhecimento.
Vimos também que, anteriormente, a resposta encontrada à questão
sobre o Sentido da Vida era que: o Sentido da Vida é Viver, e a participação
da Vida, a própria participação nela, regula o sentido das coisas, em geral,
e da própria Vida, em especial.
Ora, se a Vida é Conhecimento e o Sentido da Vida é Viver, logo, o
Sentido da Vida como Conhecimento só pode ser Conhecer.
E bem entendido, trata-se de um Conhecer concreto da própria
Vida. Logo, quando nós aprendemos uma nova ação, mesmo antes de ad-
quirirmos o pensar abstrato, como, por exemplo, com um mês de idade,
estamos conhecendo; quando um ser vivo em geral se modifica para me-
lhor se adaptar a seu meio, trata-se de um conhecimento novo que ele
adquire. Mais do que buscar sua própria sobrevivência (ou da espécie), o
sentido da Vida é a ampliação da parte do Conhecimento que aquele ser
possui. O mero acaso e a Seleção Natural (apesar de que esta também faz
parte do processo Vida), não conseguem explicar em sua plenitude o pro-
cesso Vida que vai muito além disso e está inscrito no interior da própria
Vida como Conhecimento.
Para aqueles que cultivam um desejo de equiparação dos homens
com os animais, essa não é uma visão muito promissora, pois somente o
homem (daquilo que sabemos hoje, mas isso pode vir a mudar um dia)
tem a capacidade de se tornar consciente da Vida como Conhecimento, o
que, apesar de nos reservar um lugar especial na ordem do mundo, não nos
dá direito de sermos déspotas esclarecidos e nem transformar os animais
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
206
em meras coisas: devemos considerar que eles têm Vida e sensibilidade
(aliás, sou vegetariano!).
Segundo a visão aqui esboçada, o Conhecimento da Vida se torna a
Vida do Conhecimento. Tudo é Conhecimento e vivemos nesse “mar” de
Conhecimento.
E se o Sentido da Vida é Conhecer imanentemente a própria Vida,
ele só pode ter seu sentido mais alto no ato de Contemplação imanente.
Nessa concepção, a Contemplação imanente é participação do
Conhecimento, pois como Conhecimento ele não é apenas por si, como
considerado anteriormente aqui, mas também é para si: o Conhecimento
é por si e para si próprio; e seu ser por si é seu ser para si e seu ser para si é
o seu ser por si.
As considerações feitas aqui foram profundamente influenciadas
pela leitura e estudo da Filosofia Especulativa de Hegel. Em especial, as
considerações a respeito da Vida da seção anterior foram suscitadas, na
época ainda do mestrado, pela leitura da Introdução da História da Filosofia
de Hegel, autor cujo pensamento me cativou (e me levou ao seu estudo de
forma sistemática) desde sua descoberta, em 1993.
Hegel designa pelo termo “Espírito” a Verdade que se sabe e, assim,
podemos aqui concluir com ele que:
O Absoluto é Espírito; eis a mais alta definição do Absoluto. –
Encontrar esta definição e compreender o seu sentido e conteúdo
foi, pode dizer-se, a tendência absoluta de toda a cultura e filosofia;
a este ponto se arrojou toda a religião e toda a ciência; unicamente
a partir deste impulso se deve compreender a História do Mundo
(Hegel, 1992, p. 11).
Considerando que segundo a visão aqui esboçada somos Vida, somos
Conhecimento, podemos concluir que o imperativo inscrito no pórtico do
oráculo em Delfos, que inspirou Sócrates, “Conhece-te a ti mesmo!”, é o
imperativo da própria Vida.
Amizade e Sabedoria
207
Referências
SPINOZA, B. Ética. Demonstrada à Maneira dos Geômetras. São Paulo: Abril
Cultural, 1983 (Coleção Os Pensadores).
HEGEL, G. F. W. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome. V. 3. Filosofia do
Espírito. Lisboa: Edições 70, 1992.
NIETZSCHE, F. Obras Incompletas. São Paulo, 1974. (Coleção Os Pensadores).
PIAGET, J. O Nascimento da Inteligência na Criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
208
209
A fotograa e a “pessoa
do fotógrafo”: 4 captações
[e nenhuma revelação]
Ubirajara Rancan de Azevedo MARQUES 1
1. Se a pessoalidade for definida por um sentido que se escolha, ado-
te, cumpra, consolide, segundo o qual se forje um reconhecimento subjeti-
vo e se estabeleça um padrão de coerência para o norteamento das próprias
ações ao longo da própria existência, a pessoa, ingenitamente livre, será ca-
racterizada pela finalidade e identidade autonomamente construídas, não
menos do que, em função das várias esferas de convívio interpessoal, pelo
disciplinamento, jurídico-político ou não.
A pessoa do fotógrafo”, além de no português, é expressão encon-
trada, por exemplo, também no alemão, espanhol, francês, inglês e italia-
Professor Titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP. Marília,
SP; Brasil. ubirajara.rancan@unesp.br
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-567-4.p209-223
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
210
no,2 e, ao menos nestas duas últimas línguas, já desde o século XIX. Ao
contrário do que se poderia supor, “pessoa” não representa aí um caso de
uso informal da palavra, sendo bastante lembrar, a propósito, que o fo-
tógrafo, desde as primeiras décadas da nova atividade, fora considerado,
com base em seu trabalho, à luz de direitos e obrigações legais. Com isso,
amador ou profissional, já não lhe era permitido “expor em público, repro-
duzir ou fazer reproduzir, vender ou distribuir, mesmo gratuitamente, sem
o consentimento da pessoa fotografada ou de seus herdeiros”, “os clichês
ou provas de retratos obtidos pela fotografia”, os quais “permanecem como
propriedade daqueles dos quais eles reproduzem os traços, e, após sua mor-
te, [como propriedade] de seus herdeiros” (Bigeon, 1894, p. 132-133).3
Afora compreensões ético-jurídicas das atividades exercidas pela
pessoa do fotógrafo” (cf. Renouard, 1838)—melhor: por ela em perspec-
tiva comercial—, o impacto representado pela então nascente fotografia é
muito particularmente sentido pela possibilidade de essa mesma “pessoa
do fotógrafo” abrigar uma componente artística.
2. Como sabido, discutiu-se acerca da suposta artisticidade da foto-
grafia perante a estabelecida longeva artisticidade da pintura. As vantagens
daquela sobre esta—da ordem da fidedignidade ao original representado,
relativas à abundância de detalhes e à nitidez do resultado—, vantagens
proporcionais ao índice de dessubjetivação nela de saída encontrado, situ-
aram-na, a princípio, no âmbito da técnica, não no da arte, ou no da arte
aplicada, não no das belas-artes (cf. De La Blanchère, 1865, p. 72-73).4
Respectivamente: “die Person des Fotografen”; “la persona del fotógrafo”; “la personne du photographe”; “the
person of the photographer”; “la persona del fotografo”. Para as expressões em inglês e italiano, ocorrem
registros já no século XIX.
Assim também se passara no então Reino da Prússia, com o adendo de que, ali—e igualmente noutros
reinos, países, continentes—, a contenda fora legalmente tratada por meio de legislação anterior à data
oficial de invenção da fotografia; cf. Archiv, 1857, p. 625-626.
Quand on jette un coup-dœ’il sur le développement de la photographie, depuis ses premier essais jusqu’à nos jours,
on remarque que, dans le principe, son objet principal était surtout de perfectionner de plus en plus les opérations
mécaniques nécessaires pour obtenir l’image, et d’assurer plus de stabilité à leurs résultats : on cultivait le côté
purement technique de la photographie. On se donnait la main pour comprendre et pour analyser les procédés
physique et chimiques qui, dans l’atelier du photographe, faisaient mystérieusement éclore des images. Plus tard,
on étudia les effets obtenus avec chaque couleur, l’influence de certains agentes employés sur la sensibilité, sur la
rapidité de l’impression, on entra enfin dans le champ de la science photographique. Et c’est à ces efforts tentés, à la
fois, par la pratique e par la science, que la photographie doit incontestablement d’être arrivée à un si haut degré
de perfection. Un seul côté de son domaine est resté presque inexploré jusqu’ici; je veux parler du côté artistique”.
Amizade e Sabedoria
211
A propósito, embora contestada em sua autoria, (cf. Bann, 2001) é
emblematicamente célebre a frase atribuída ao pintor Delaroche, que teria
sido formulada após ele haver conhecido o daguerreótipo: “A partir de
hoje, a pintura está morta”.5 Nenhuma relevância mais havendo no cará-
ter profético dessa sentença datada, importa considerar o cabimento dela
naqueles tempos, para o qual a aceitação geral espontânea do elemento de
cotejo nela posto era o que poderia conferir plausibilidade ao vaticínio que
a notabilizaria. Ou seja: como a pintura, a fotografia é imagem; imagem
então figurativa em ambos os casos, tanto mais perfeita ela será, quanto
mais nítido e preciso o resultado obtido em cada qual.
Tratado o assunto em termos de nitidez e precisão, contudo, ele es-
tava desde logo resolvido a prol da fotografia, pois placa daguerreotípica
e papel, materiais fotossensíveis nos quais se dava a fixação da imagem,
é como se uma e outro nada mais fossem do que o espelhamento do ob-
jeto captado. Assim, reduzida a intervenção humana ao nível do simples
manuseio de um aparato já por si bastante autônomo, a imagem fixada
exibe como que a própria coisa. Nas palavras de André Bazin, havia
pouco mais de um século do surgimento da nova invenção: “A fotografia
se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para a sua repro-
dução”. Do mesmo autor: “A personalidade do fotógrafo entra em jogo
somente pela escolha, pela orientação, pela pedagogia do fenômeno; por
mais visível que seja na obra acabada, já não figura nela como a do pin-
tor”. (Bazin, 1991, p. 22).6
Fotógrafos paradigmatizados pela pintura, pintores convertidos em
fotógrafos, uns e outros já mais ou menos afinados com a estética realista
então nascente [ou com o cientificismo positivista em curso], teria pareci-
do de todo inadequado o arauto da boa-nova representada pela invenção
do daguerreótipo—François Arago, físico e político, “Secretário Perpétuo
A propósito da famosa sentença de Delaroche, da qual, porém, só se teve conhecimento 36 anos após o
fato que a teria ocasionado, e, sobretudo, a respeito das relações que ele estabeleceu—em 1839—entre a
nascente fotografia e a pintura; cf. Lamoureux (2000, p. 116-123).
Cf. ibid., p. 21: “Por mais hábil que fosse o pintor, a sua obra era sempre hipotecada por uma inevitável
subjetividade. Diante da imagem uma dúvida persistia, por causa da presença do homem. Assim, o
fenômeno essencial na passagem da pintura barroca à fotografia não reside no mero aperfeiçoamento
material [...], mas num fato psicológico: a satisfação completa do nosso afã de ilusão por uma reprodução
mecânica da qual o homem se achava excluído. A solução não estava no resultado, mas na gênese”.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
212
da “Academia de Ciências” da França, amigo pessoal do inventor ali exal-
tado—buscar outros termos para lavrar a certidão de nascimento da foto-
grafia, que não aqueles com os quais o fez:
O Sr. Daguerre descobriu telas especiais sobre as quais a imagem
ótica deixa uma impressão perfeita, telas nas quais tudo o que a
imagem continha encontra-se reproduzido até nos mais minuciosos
detalhes, com uma exatidão, com uma fineza7 incrível (Compte
rendu des séances de l’Académie des Sciences, 1839, p. 4).8
Nessa descrição das maravilhas do novo invento, merecerá algum
destaque a expressão “finesse”, que aqui traduzo literalmente por “fineza”,
parte do vocabulário então associado à pintura e à gravura. Com efeito,
dizia-se “fino”, por exemplo, o “pincel”, por referência a “uma maneira
de pintar com toques delicados, leves, aplicados de modo apropriado e
cuidadosamente reunidos” (Compte rendu des séances de l’Académie des
Sciences, 1839, p. 4). A questão, decerto, não seria a de não se compre-
ender as palavras de Arago, mas a de a compreensão alcançada por meio
delas basear-se em associação espontânea com objetos—artísticos—de
cuja descrição, havia muito, “finesse” era parte; ou seja: o quadro e a
gravura. Nesse sentido, ou o fotógrafo seria como que um neopintor, um
neogravador [embora, num caso e noutro, com mais desenvolvidos uten-
sílios de trabalho], ou a fotografia teria de aguardar por uma visão de si
que, enfim, lhe fosse adequada.
Essa alheia conceituação inicial oferecida à nascente fotografia per-
maneceria como que indefinidamente unida à sua especificidade imagéti-
A propósito do significado do original “finesse”, cf. Boutard (1826, p. 293): “FIN [...] Se dit du pinceau, du
burin. Il exprime une manière de peindre par touches délicates, légères, appliquées proprement, et soigneusement
fondues, ou la manière de graver par traits serrés, peu larges et peu profonds. [...] FINESSE [...] Finesse de
pinceau, finesse de burin, exprime les mêmes qualités que pinceau fin, burin fin. (V. fin.)”. Cf. “FINESSE”.
In: Dictionnaires d’autrefois: “Finesse de pinceau, de burin, de touche, etc., Manière de peindre, de graver, de
dessiner légère, délicate et gracieuse; ou L’ effet qui en résulte”. Esse conteúdo do verbete em questão aparece na
sexta edição [publicada em 1835] de Le Dictionnaire de l’Académie française.
8 M. Daguerre a découvert des écrans particuliers sur lesquels l’image optique laisse une empreinte parfaite; des
écrans où tout ce que l’image renfermait se trouve reproduit jusque dans les plus minutieux détails, avec une
exactitude, avec une finesse incroyable”. Esse fragmento de relato é baseado nas palavras de François Arago,
nessa mesma Sessão de 7 de janeiro de 1839, cujo propósito era o de “donner verbalement à l’Académie une
idée générale de la belle découverte que M. Daguerre a faite, et sur laquelle la majeure partie du public n’a eu
jusqu’ici que des notions erronées”.
Amizade e Sabedoria
213
ca, tornando-a uma forma de representação ambígua: nem distintamente
técnico-científica, nem eminentemente artística.
Se a imagem pictórica perdia para a fotográfica em detalhe, nitidez,
precisão, ganhava dela em autonomia, e tanto que, na verdade, já se pode-
ria dizer aquela ser autônoma, esta, em contrapartida, heterônoma.
Assim, se, inversamente à do pintor, a “pessoa do fotógrafo” defi-
nir-se pela heteronomia, as características pessoais da autofinalidade e da
autoidentidade terão sua autoria originalmente prejudicada. Ou seja: se à
maior objetivação e menor subjetivação da fotografia corresponder a maior
subjetivação e menor objetivação da pintura, a identidade subjetiva da pes-
soa do fotógrafo e o padrão de coerência para o norteamento de suas ações
ao longo da própria existência como tal estarão a serviço do [mero] espe-
lhamento da realidade, de uma sua representação—chapada.
.
No fim dos anos 70 do século passado, Roland Barthes dizia:
[A] foto[grafia] não pode ser transcrição pura e simples do objeto
que se dá como natural, mesmo que só por ela ser plana e não em
três dimensões; por outro lado, ela não pode ser uma arte, pois
copia mecanicamente. Eis o duplo infortúnio da foto[grafia]. Se
se quisesse construir uma teoria da foto[grafia], seria preciso partir
dessa contradição, dessa situação difícil (Barthes, 1980, p. 933).9
Tanto num caso [o da transcrição literal], quanto noutro [o da re-
presentação artística], trata-se de um déficit—indelével—proveniente da
estrutura de fixação da imagem fotográfica: no primeiro, ligado ao fato de
a fotografia “ser plana e não em três dimensões”; no segundo, ao de ela “co-
pia[r] mecanicamente”. Naquele, é como se ela não fosse suficientemente
9 [L]a photo ne peut pas être transcription pure et simple de l’objet qui se donne comme naturel, ne serait-ce que
parce qu’elle est plate et non en trois dimensions; et d’autre part, elle ne peut pas être un art, puisqu’elle copie
mécaniquement. C’est là le double malheur de la photo; si on voulait bâtir une théorie de la photo, il faudrait
partir de cette contradiction, de cette situation difficile”.
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
214
hábil na esfera receptiva; neste, como se não na esfera ativa. Pois, com
relação à tridimensionalidade do objeto, a fotografia só poderia captá-la
passivamente; mas, com respeito à artisticidade de sua representação do
mesmo objeto, ela, não estivesse como que originalmente relegada a ser
uma imagem-cópia [e Barthes é quem o diz: ela “copia mecanicamente”],
a captação fotográfica objetiva poderia não ser o único, nem o principal
ponto de chegada, mas ponto de partida para uma diluição do mecânico,
do passivo de que parte.
Como quer que seja com essas palavras de Barthes, o fato é que, se-
gundo elas, a fotografia não pode ser um registro exato, tampouco belo, e,
pois, nem ciência [a despeito de sua dívida para com a química e a ótica],
nem arte [não obstante suas pretensões a tanto, materializadas, já desde o
fim do Oitocentos, no então recém-surgido pictorialismo].
De modo igualmente restritivo face a uma intenção artística da fo-
tografia, assim afirmava Benjamin em passagem de A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica: “[O] trabalho do fotógrafo com a objetiva
gera tanto menos uma obra de arte quanto o de um maestro com uma
orquestra sinfônica; no melhor dos casos, ele realiza uma performance ar-
tística” (Benjamin, 2015, p. 68). Ou seja: o “fotógrafo” está para a “obje-
tiva” como o “maestro” para a “orquestra sinfônica”. Seja um, seja outro,
nenhum dos dois gera uma “obra de arte” em qualquer de seus respectivos
trabalhos, mas, “no melhor dos casos”, ambos alcançam, neles, uma “per-
formance artística”.
A despeito de algo incerta pelas especificidades próprias de “objetiva
e “orquestra” [sinfônica ou não], o que parece tornar pelo menos aceitável
tal comparação é o pressuposto automatismo dos desempenhos de “fotó-
grafo” [ou cinegrafista10] e “regente” face aos conteúdos com que operam.
Um e outro têm na objetiva e na orquestra seus respectivos instrumentos
de trabalho. Ao passo que o primeiro recebe o que for pela objetiva, o se-
10 O texto original, diz: “[D]ie Leistung des Kameramanns am Objektiv schafft ebensowenig ein Kunstwerk, wie
die eines Dirigenten an einem Symphonieorche-ster; sie schafft bestenfalls eine Kunstleistung” (cf. Benjamin,
1991, p. 364). Ou seja: o que, acima, na tradução citada aparece como “fotógrafo”, corresponderá ao
que, diretamente do inglês, diz-se, no próprio português: “cameraman”, ou, então: “cinegrafista”. Assim,
mais literalmente, poder-se-á dizer: “O desempenho do cinegrafista com a objetiva produz tão pouco uma
obra de arte, quanto o de um regente com uma orquestra sinfônica; no melhor dos casos, ele produz um
desempenho artístico”.
Amizade e Sabedoria
215
gundo o dá pela orquestra. Embora, do ponto de vista operacional, aque-
le se mostre relativamente passivo, este, relativamente ativo, o fato é que
nenhum dos dois—fotógrafo e regente—responde pela criação de nada,
mas tão só pelo recebimento ou doação de conteúdo no mais das vezes
não-autoral [a imagem], ou de autoria, na grande maioria das vezes, alheia
[a composição musical]. Nesse sentido, a atuação do fotógrafo no mecanis-
mo pelo qual registra a imagem será tão pouco interferente—vale dizer: tão
pouco autônoma, criadora, artística—quanto a do regente no mecanismo
pelo qual faz soar a partitura.
Se se pensar em Hobbes e no “Capítulo XVI” de seu Leviatã (cf.
Hobbes, 1979, p. 96-99), dir-se-á: nem a pessoa do fotógrafo, nem a do
regente serão pessoas naturais, por autoria, mas, se tanto, pessoas artificiais,
por autoridade, com o descrédito suplementar específico de a pessoa do
fotógrafo só o poder ser, no mais das vezes, em sentido metafórico.
3. Outrora cantada e decantada como reprodução veraz do real, a
fotografia, graças ao avanço tecnológico que redundou na manipulação
digital da imagem, tornou-se um relativo poderoso recurso de falseamento
desse mesmo real, e, não por acaso, elemento de destaque na produção das
chamadas fake news. Contudo, muito mais do que lamentar a descambação
da fotografia para tal posto, muito mais do que se ocupar com devolver-lhe
seu suposto lugar natural de bastião da objetividade imagética será—com
perdão pelo neologismo—tomar transcriativamente11 essa mudança de
perspectiva, tendo-a como uma oportunidade de reatualização paradigmá-
tica da chamada oitava arte.
Sem que ele estivesse a ocupar-se com o que hoje são as fake news,
mas, sim, com o que então se poderia chamar de o falso verdadeiro, apro-
veitemos a reflexão seguinte de Rodin, que, avessa à fotografia, pode tor-
nar-se simpática a uma sua reinvenção:
– Você não me disse várias vezes que o artista devia sempre copiar
a natureza com a máxima sinceridade? – Sem dúvida! E mantenho
11 Ao menos entre nós, brasileiros, “transcriação” é termo cunhado por Haroldo de Campos para referir-se
a sua concepção de tradução poética e a seu próprio trabalho como tradutor de poesia. Sem me haver
ocupado com tal conceito do modo como proposto por Haroldo, penso mesmo assim que o sentido no
qual o emprego não fará injustiça àquele proposto e explorado por ele. (cf. Tápia et al., 201).
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
216
o que disse. – Pois bem. Quando, na interpretação do movimento,
o artista encontra-se em completo desacordo com a fotografia, que
é um testemunho mecânico irrecusável, ele, evidentemente, altera
a verdade. – Não, responde Rodin. É o artista que é verdadeiro;
é a fotografia que é mentirosa. Pois, na realidade, o tempo não
para: e se o artista consegue produzir a impressão de um gesto que
se executa em vários instantes, sua obra é decerto muito menos
convencional do que a imagem científica na qual o tempo é
bruscamente suspenso (Auguste Rodin [...], 1911).12
Ou seja: para abandonar a mentira [o falso verdadeiro] e lançar-se
à verdade [o vero verdadeiro], a fotografia deve ir além do “convencional”
[vale dizer: antinatural] e mirar o belo.
A relação entre verdade e mentira na arte—tema amplo, recorrente,
abordado de modo vário (cf. Roque)—já aparecera também, por exemplo,
em 1867, num “estudo biográfico e crítico” de Zola sobre Manet (cf. Zola,
1867, p.5) [ora não por acaso recordado, pois Manet foi um dos mui-
tos pintores de então a ter presente o olhar fotográfico, ou a servir-se da
própria fotografia (cf. Baudouin, 2018; Daval, 2024)], no qual estudo, a
propósito de Olympia, lê-se:
Quando nossos artistas nos dão as Vênus, eles corrigem a natureza,
eles mentem. Édouard Manet perguntou-se por que mentir, por
que não dizer a verdade; ele nos fez conhecer Olympia, essa moça
de nossos dias, das calçadas, que abraça os magros ombros com um
fino xale de lã desbotada (Zola, 1867, p. 36; cf. “Meurent, Victorine
(1844-1927)”).13
12 - Ne m’avez-vous pas déclaré à mainte reprise que l’artiste devait toujours copier la Nature avec la plus
grande sincérité ? - Sans doute, et je le maintiens. - Eh bien ! quand, dans l’interprétation du mouvement, il
se trouve en complet désaccord avec la photographie, qui est un témoignage mécanique irrécusable, il altère
évidemment la vérité. - Non, répondit Rodin ; c’est l’artiste qui est véridique et c’est la photographie qui est
menteuse ; car dans la réalité le temps ne s’arrête pas : et si l’artiste réussit à produire l’impression d’un geste
qui s’exécute en plusieurs instants, son œuvre est certes beaucoup moins conventionnelle que l’image scientifique
où le temps est brusquement suspendu”.
13 Lorsque nos artistes nous donnent des Vénus, ils corrigent la nature, ils mentent. Édouard Manet s’est demandé
pourquoi mentir, pourquoi ne pas dire la vérité; il nous a fait connaître Olympia, cette fille de nos jours, que
vous rencontrez sur les trottoirs & qui serre ses maigres épaules dans un mnce châle de laine déteinte”. Embora
apareça como uma “moça de nossos dias, das calçadas, que abraça os magros ombros com um fino xale de
lã desbotada”, Victorine Louise Meurent, a modelo de Olympia, e não somente desse quadro de Manet, não
só não era uma prostituta, como, sim, uma pintora.
Amizade e Sabedoria
217
Diferentemente do que faria Rodin [pondo-a numa comparação de
pintura e fotografia, arte e ciência], a relação entre verdade e mentira em
tal comentário é situada por Zola no âmbito da própria arte pictórica, por
meio do confronto entre estética academicista e estética realista. Ou seja:
não só o fotógrafo—como que realista por excelência14—mente [por uma
falha intrínseca à própria fotografia, diria Rodin]; mente também o pin-
tor—mas, nesse caso, por uma opção falha, diria Zola.
A distinção entre mentiroso e veraz dá-se pelo sentido que cada qual
confere à sua arte, pela finalidade a nortear as ações de um e outro ao
longo de suas respectivas existências artísticas. Nesse sentido, o problema
nunca é—pelo menos já desde o começo do século passado—a “pessoa
do fotógrafo” autonomamente optar, por exemplo, pela imagem-cópia [e,
pois, realizar composições cuja estrutura seja eminentemente figurativa],
mas julgar que assim deva fazer; pois, em tal caso, é como se houvesse um
mandamento estético ao qual ela deveria heteronomamente sujeitar-se.
Dito de outro modo: quer faça fotografia “figurativa”, quer “abstrata”, o
fato é que, se à arte ela pretender, será indispensável à “pessoa do fotógrafo
situar-se como tal em relação a ela; ou seja: com autonomia.
Artisticamente embotador, o purismo na fotografia ressuscita a es-
trutura da polêmica entre ela e a pintura, característica dos primeiros tem-
pos da nova invenção. Sob a forma da querela “imagem analógicaversus
“imagem digital”—não raro cristalizada na oposição: “fotografia” e “pós-
-fotografia”—, diz-se sobre uma ser arte, a outra, não, pois, ao passo que
num caso não há praticamente qualquer manipulação—nenhuma subjeti-
vação—, no outro há uma potencial indefinida interferência tecnológica,
operada ou não pelo autor da imagem que for, e, assim, eventual demasia-
da subjetivação.
Antes, face à fotografia nascente, louvava-se a autonomia artística
do pintor; na atualidade, face à máxima interferência da tecnologia digi-
tal—que de forma nenhuma se confunde com a presumida máxima obje-
tividade da fotografia—, louva-se—o quê? Porventura a suposta máxima
autonomia do fotógrafo? Num caso como noutro—quer em seus primór-
14 Tenha-se presente que dos anos 1890 até sua morte, em 1902, Zola se dedicaria com invulgar afinco à própria
fotografia, realizando alguns milhares de imagens; cf. “Émile Zola, sa passion méconnue par la photographie”.
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dios, face à objetividade que representava, quer agora, com a manipulação
digital de imagens—, tem-se que a fotografia, por supostamente não ser
arte, deve permanecer no horizonte da reprodução fiel do real. Primeiro
vista como originalmente desprovida da autonomia do artista, passa a ser
tida por automutiladora da própria identidade. Nesse sentido, é como se,
pela manipulação digital, ela contrariasse sua essência, a de ser mera cópia
fidedigna do que fixa em imagem. Tendo antes negada sua artisticidade,
hoje se lhe nega a fidedignidade com que vem sendo hegemonicamente
caracterizada há aproximadamente 186 anos.
.
4. Um olhar simplista15—do fotógrafo, do espectador, de ambos—
de pronto buscará, na imagem que for, a representação objetiva de algo
cuja identidade lhe seja próxima, mesmo, ou sobretudo, quando nela não
haja rigorosamente nada assim. Tendo por critério o sensível, por limite
o mundo circundante, esse olhar, quando em face do que não reconheça,
formula pergunta que, em tal registro, mostra-se tão falsamente especula-
tiva, quanto artisticamente incongruente: que é isto?
Impondo ao que se lhe apresente a objetividade costumeira, na qual
se reconhece e se reafirma, tal olhar lança um véu pasteurizador sobre as
imagens que encontra, e, assim fazendo, vela a originalidade—distinta e
distante—que elas possam ter.
No âmbito da fotografia, um olhar de mero reconhecimento ter-
mina por reeditar o parecer—tão presente nas primeiras décadas da nova
invenção—de que a arte, em tal caso a pintura, de fato cria; já a técnica,
em tal caso a fotografia, somente recria. Com isso, ir à imagem fotográ-
fica com a prévia intenção de nela reencontrar o conhecido é certificá-la
como imagem-cópia, certificar a fotografia como técnica de fixação de uma
imagem-cópia.
15 Parte dos parágrafos seguintes reproduz algo de argumentação própria já publicada (cf. Marques, 2022, p.
99-106)
Amizade e Sabedoria
219
Obviamente, há campos de atuação da fotografia nos quais ela não
deve ter nenhuma autonomia criadora; por exemplo: a fotografia médica;
a antropologia visual; a astrofotografia; a fotografia forense. Nesses setores,
qualquer autonomia do sujeito estará de antemão subordinada ao princí-
pio da máxima objetividade. Em tais domínios, a imagem-cópia não marca
uma posição estética, mas repercute uma imposição profissional.
Com a manipulação digital de imagem, as possibilidades de compo-
sição da imagem fotográfica cresceram em nível exponencial, de forma que
a imagem fotográfica não está mais limitada, seja à captação original, seja a
uma relativamente pequena, modesta manipulação analógica, encontrada,
de resto, desde as primeiras décadas da fotografia. Agora, com ampla pro-
priedade, pode-se bem falar de uma captação original e de uma imagem fi-
nal, ponto de partida e ponto de chegada de um devir composicional signifi-
cativamente autônomo e potencialmente autoral. Nesse sentido, o que tenha
sido mecanicamente captado na origem, ao fim e ao cabo desse tratamento
digital de imagem pode vir a ser como que artisticamente transcriado.
.
Tal procedimento é [ainda] fotografia? De um ponto de vista estri-
tamente técnico, tendo em conta a fotossensibilidade do instrumento a
captar as coisas que, depois, poderão ser transcriativamente exibidas—
vale dizer: tendo em conta que tal instrumento tem de ser sensível à luz—,
essas imagens são imagens fotográficas. Já a partir do que caracteriza seu
resultado objetivo final, a transcriação de que elas possam ser alvo parece
conferir-lhes um alcance imagético que não será propriamente típico do
universo fotográfico inda hoje bastante comum, em nível profissional ou
amadorístico, de acordo com o qual, mesmo manipuladas digitalmente, as
imagens fotográficas conservam uma sua objetividade primeira, que, nelas,
permanece largamente reconhecível.
Ainda fotografia, essa fotografia transcriativa não tem de ser
necessariamente “abstrata”, havendo vários níveis de transcriação dos di-
Kleber Cecon; Reinaldo S. Pereira e Ubirajara R. de A. Marques [Eds.]
220
ferentes elementos a compor a imagem original, de modo que o resultado
obtido poderá ser, por exemplo, figurativo-abstrato ou figurativo-realista,
abstrato-figurativo ou abstrato-realista, modalidades não só conceitual-
mente possíveis, mas imageticamente efetivas.
Ainda fotografia, essa fotografia transcriativa permanecerá como
obra da mesmapessoa do fotógrafo” que um dia operou o daguerreóti-
po, depois a câmera analógica? Nos dias que correm, se é verdade que um
reduzidíssimo número de fotógrafos terá ou terá tido contato operacio-
nal com o daguerreótipo [aparelho inda hoje construído (cf. Colorado,
2013)], bem como um já reduzido número deles, até mesmo com câmeras
analógicas, não é menos verdade que, por exemplo, o surgimento do pro-
cesso fotográfico do negativo e do positivo, das câmeras fotográficas e seus
filmes de rolo, da fotografia a cores etc., tais coisas terão sido espontanea-
mente assimiladas como melhoramentos de algo cuja identidade não fora
por eles alterada; vale dizer: melhoramentos que não tocavam no processo
químico de fixação da imagem cujo resultado, por sinal, tem qualidade
superior à verificada no processo digital correspondente.
Arte de fixar as imagens”,16 a fotografia tem no processo respecti-
vo sua própria razão técnica de ser. Como tal, ela culmina um percurso
cujos primórdios são identificados com Mozi e Aristóteles (cf. “CAMERA
obscura”). Seja como for com esse percurso retrospectivo, a invenção da
fotografia no século XIX levou a “pessoa do fotógrafo” a confundir-se pri-
meiro com os próprios inventores dela, só depois com quem—inventor e
cientista, ou não—já considerava a coisa a ser reproduzida, o modo como
fazê-lo, pelo que, assim, a fotografia foi aos poucos como que invertendo
o sentido do qual partira: não mais somente trazer o mundo para a câmera
escura, fixando-o na placa ou no papel, mas, abrindo-se para ele, tê-lo à sua
disposição, não mais a câmera a seu dispor.
Nessa inversão de perspectiva, parecerá mau investimento para as
possibilidades da fotografia a “pessoa do fotógrafo” sujeitar-se espontane-
amente à imagem-cópia, reagir passivamente às possibilidades que se lhe
abram, oferecendo-lhes não mais do que sua servidão voluntária.
16 Art de fixer les images de la chambre obscure sur une plaque de métal préparée”. Trata-se aí, em verdade, de uma
definição de “daguerreótipo”, mas perfeitamente extensível à inteira fotografia; cf. Littré, 1873-1874, p. 946.
Amizade e Sabedoria
221
Fotógrafos indefinidamente de prontidão—sabemos tudo poder re-
gistrar, a qualquer instante—, já não nos ocupa, hoje, conseguir trazer o
mundo e fixá-lo [um aprendizado há muito estabelecido], mas tampouco
o colocar ao nosso dispor. Não temos mais o propósito de ir a ele, pois,
mesmo sem disso precisar, trazêmo-lo passivamente a nós, até a caixa à
qual voluntariamente nos sujeitamos. Operamos de dentro dela, autofixa-
dos na memória que não controlamos, mas indefinidamente abastecemos.
Face a essa banalização consolidada, pareceria tolo executar iniciativas
de retorno sistemático à fotografia analógica, como se à fotografia tout court.
Melhor será subverter fotografia digital e tratamento digital de imagem a par-
tir de si mesmas, contestando-lhes a suposta derradeira vocação que, afinal,
nós próprios cedemos a elas. Para isso, contudo, a “pessoa do fotógrafo” ha-
verá de extroverter-se, desencapsular-se—ou, numa palavra: desencaixar-se.
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