“Se fosse ensinar a uma criança a arte da
leitura, não começaria com as letras e
as sílabas. Simplesmente leria as estórias
mais fascinantes que a fariam entrar no
mundo encantado da fantasia. Aí então,
com inveja dos meus poderes mágicos,
ela desejaria que eu lhe ensinasse o se-
gredo que transforma letras e sílabas em
estórias.
É muito simples. O mundo de
cada pessoa é muito pequeno. Os livros
são a porta para um mundo grande. Pela
leitura vivemos experiências que não fo-
ram nossas e então elas passam a ser nos-
sas. Lemos a estória de um grande amor
e experimentamos as alegrias e dores de
um grande amor. Lemos estórias de ba-
talhas e nos tornamos guerreiros de es-
pada na mão, sem os perigos das batalhas
de verdade. Viajamos para o passado e
nos tornamos contemporâneos dos di-
nossauros. Viajamos para o futuro e nos
transportamos para mundos que não
existem ainda.
Lemos as biogra as de pessoas
extraordinárias que lutaram por causas
bonitas e nos tornamos seus companhei-
ros de lutas. Lendo, fazemos turismo sem
sair do lugar. E isso é muito bom.”
Como Ensinar de Rubem Alves
9 786559 544998
ISBN 978-65-5954-499-8
A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO:
ENTRE ESTRATÉGIAS E TÁTICAS
Mariana Montanhini da Silva
Mariana Montanhini da Silva
A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO:
ENTRE ESTRATÉGIAS E TÁTICAS
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2024
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Edvaldo Soares
Franciele Marques Redigolo
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Henrique Tahan Novaes
Aila Narene Dahwache Criado Rocha
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Claudia da Mota Daros Parente
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto
Daniela Nogueira de Moraes Garcia
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Auxílio Nº 0039/2022, Processo Nº 23038.001838/2022-11, Programa PROEX/CAPES
Parecerista: Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira (Unesp/Assis)
Capa: Daniella Bordin Barreira
Ficha catalográfica
Silva, Mariana Montanhini da.
S586f A formação do leitor literário: entre estratégias e táticas / Mariana Montanhini da
Silva. Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2024.
290 p. : il.
CAPES
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-499-8 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-500-1 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-500-1
1. Leitura Ensino elementar. 2. Educação de crianças. 3. Crianças Escrita. 4.
Literatura. I. Título.
CDD 372.62
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Copyright © 2024, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Às minhas amigas.
Sem elas nada disso seria possível.
Gosto
Se eu gosto de poesia?
Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho,
papos amenos, amizade, amor.
Acho que a poesia está contida nisso tudo.
Carlos Drummond de Andrade
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BNCC - Base Nacional Curricular Comum
CONESP - Companhia de Construções Escolares do Estado de São
Paulo
EFAP - Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores
EEPG - Escola Estadual de Primeiro Grau
EMEIF - Escola Municipal de Educação Infantil e Fundamental
FEMA - Fundação Educacional do Município de Assis
HE - Hora de Estudos
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
MEC - Ministério da Educação
PCNP - Professor Coordenador de Núcleo Pedagógico
PC - Professor Coordenador
PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais
PNLD/Literário - Plano Nacional do Livro Didático Literário
PROFA - Programa de Formação de Alfabetizadores
Prof.ª - Professora
SARESP - Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de
São Paulo
SEE/SP - Secretaria do Estado da Educação de São Paulo
SME - Secretaria Municipal de Educação
Sumário
Prefácio | Raquel Lazzari Leite Barbosa………………….………..13
Apresentação…………………………………………………….17
Catando feijões uma introdução…………………………….….21
1 - Para tornar o mundo um lugar habitável uma potência chamada
literatura……………………………………………….………..31
2 - Pasárgada entre os textos e os contextos dessa investigação…...41
Agreste caipira a cidade de Assis
Desaprender para reaprender o novo EMEIF. Maria Amélia
Carregando bandeiras as participantes desse estudo
3 - Ler e Escrever? uma análise sobre o Programa………………..63
Meu Gigante Adamastor parâmetros legais
Entre as letras e as vidas o Programa Ler e Escrever
Ler... – a leitura para o Programa Ler e Escrever
Ler... o que? a literatura para o Programa Ler e Escrever
Como ler literatura? O ensino da literatura para o Programa Ler e
Escrever
4 - Gosto de gente análises das falas e dos modos de fazer………..95
Representações de mundo estruturas para as práticas
Sobre leitura
Afinal, o que é leitura?
Sobre literatura
Afinal, o que é literatura?
5 - Normas x Modos de fazer………151
Sobre o Ler
Sobre a formação continuada
Afinal, e as relações entre as estratégias e as táticas?
6 - E tudo foi tão de repente... Algumas considerações…………..197
Referências Bibliográficas………………………………………205
Sobre a autora…………………………………………………..215
13
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-500-1.p13-16
Prefácio
Conheci Mariana, primeiramente, por meio dos meus filhos
e das conversas em reuniões familiares. Aos poucos, em meio aos
encontros e mensagens, a pesquisadora foi se revelando para mim. O
entusiasmo com os estudos sobre práticas de leitura, ensino, literatura,
entre outras temáticas, ampliava-se com o seu envolvimento em nosso
grupo de estudos e pesquisas na Unesp. Com o amadurecimento das
conversas iam aparecendo as revelações sobre seus interesses, suas
práticas profissionais e de formação. Por suas narrativas fui
descobrindo a "construção" dos espaços de leitura e de formação de
leitores de literatura no interior do ambiente escolar tendo como
referência o Programa Ler e Escrever.
Mariana revelou-se para mim como uma pesquisadora séria e
comprometida, que tinha um ingrediente a mais para o seu sucesso: a
paixão pela leitura. A vontade da autora de mergulhar fundo na
formação do leitor literário e de conhecer detalhes e lembranças dos
entrevistados, foi complementada pela outra paixão revelada, pela
escola ou, mais precisamente, pela leitura na escola, características que
proporcionaram vir à tona a investigadora rigorosa e a escritora de
grande envergadura que ela tem demonstrado ser.
O texto de Mariana nos remete a outros tempos. Na
introdução Catando feijões - o texto já nos cativa com suas
definições sobre leitura e literatura e também com sua doçura e clareza
na apresentação da obra. Em Para tornar o mundo um lugar
14
habitável; Pasárgada; Agreste caipira; Desaprender para reaprender o
novo e Carregando bandeiras, Mariana fala da curiosidade e do prazer
de uma menina com seu livro (brinquedo preferido), da trajetória de
formação de uma leitora descobrindo as aventuras dentro das práticas
de leitura, a importância da literatura, o papel da família no percurso
de formação da leitora, além disso nos apresenta a escola e as grandes
personagens participantes da pesquisa. Tudo isso envolvido por
poesia, literatura, análises e narrativas de pesquisa.
A seguir em Ler e Escrever?; Meu Gigante Adamastor; Entre
as letras e as vidas; Ler; Ler... o que?; Gosto de gente; Representações
de mundo e Sobre leitura - a autora nos presenteia com elementos da
pesquisa desenvolvida, seu contexto e marcos legais, de uma forma
leve, rigorosa e recheada de poesia, predicados que somente alguns
escritores conseguem alcançar.
Na sequência a autora nos apresenta o “coração de sua
pesquisa”, a qual retrata o entrelaçamento de sentimentos e
racionalidades que permeou todos os momentos da investigação. Ao
compromisso com a pesquisa de boa qualidade reuniram-se a vontade
e a alegria em descobrir mais sobre a formação do leitor, o leitor de
literatura, a leitura na escola, o programa Ler e Escrever oferecido pelo
governo, enfim as táticas e estratégias que permeiam todos esses
processos.
A dinâmica da obra "A FORMAÇÃO DO LEITOR
LITERÁRIO: ENTRE ESTRATÉGIAS E TÁTICAS” está exata-
mente no entrelaçamento da leitura escolar, a formação do leitor, o
leitor literário, a trajetória de formação da Mariana, a leitura no
programa do governo e a delicadeza, a candura e o prazer de ler a
composição aqui apresentada.
15
O texto fala do passado e da nostalgia presente nos leitores,
mas o livro que Mariana Montanhini da Silva nos apresenta é muito
mais que tudo isso. É um convite delicioso para mergulhar na leitura,
na literatura e nas memórias dela e dos professores em Assis, e
partilhar o seu cotidiano, suas dificuldades, alegrias e problemas
enfrentados, principalmente pelas mulheres. Mais ainda, é ver as
táticas utilizadas, as estratégias impostas, suas transformações e
adensamento, o movimento das formações, as instituições e os novos
acordos que surgem a cada instante. Um pouco além, o livro nos faz
refletir sobre o papel da leitura e do autor na vida dos leitores, as
marcas que permanecem na memória, as transformações que
produzem nos comportamentos, nos pensamentos e nos sentimentos.
Em um momento, como o da atualidade, em que autores e
livros - como muitas outras manifestações da cultura - são
considerados descartáveis, em que o excesso de informações, oriundas
dos mais diversos meios de comunicação, invade o nosso cotidiano e
nos obriga a esquecer, mais do que lembrar... o texto nos convida a
viajar nas memórias para outros tempos e espaços.
Dessa forma entre a diversidade de problemas que envolvem
a dinâmica da formação de leitores e também, entre as incontáveis
transformações sociais que vêm ocorrendo, insere-se a necessidade de
permanente discussão dos objetivos, das funções da leitura tanto sob
os ângulos pedagógicos e científicos quanto sob as perspectivas
políticas e sociais. Pode-se afirmar que a presença da leitura no
cotidiano das pessoas figura entre os aspectos mais impactantes da
experiência humana. Nesse contexto cabe ressaltar a atualidade e a
relevância do livro aqui apresentado. Em um momento em que se
multiplicam estudos que, muitas vezes, se limitam a produzir
variações em torno do já feito, a publicação desse livro é muito bem-
vinda, pois a proposição é relevante e original o os modos usados para
16
concretizá-la se destacam pelo rigor científico e também pela beleza,
clareza e fluidez.
Raquel Lazzari Leite Barbosa
Assis, novembro de 2023
17
Apresentão
Transformar o resultado de minhas investigações durante a
pós-graduação em livro, não foi uma tarefa fácil. Primeiramente
porque adaptar uma dissertação, repleta de meandros academicamente
científicos em um outro texto, mais conciso, claro e acessível, foi um
lancinante exercício de edição em que o entrelaçamento das duas
obras, a resultante de minha pesquisa e a publicada em formato de
livro, deveria ser tecido sem deixar pontas soltas. Cortar trechos
inteiros, aparar passagens e costurar as palavras foram a episteme desse
processo de reelaboração do meu antigo texto no texto que segue ao
fim dessas poucas linhas de apresentação.
O segundo entrave veio com a questão do tempo. Talvez por
influência das leituras realizadas para a reunião do GEPLENP1, grupo
de pesquisa que sempre me proporciona encontros com autores que
se tornarão, em algum momento de minha vida, estruturantes do meu
pensamento, a ação de revisitar meu texto acadêmico foi
acompanhada por questionamentos que Ricoeur insistentemente
sussurrava em meus ouvidos. Uma vez que a correlação existente entre
a atividade de narrar uma história e o carater temporal da experiência
humana apresenta uma forma de necessidade transcultural, o texto
apenas atinge seu pleno significado quando transpõe a barreira
cronológica para tornar-se uma condição da existência temporal
1 Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Linguagem, Ensino e Narrativas de Professores, ou
GEPLENP, é um grupo de pesquisas vinculado à Unesp - Assis, sob a liderança dos
Professores Raquel Lazzari Leite Barbosa e Sérgio Fabiano Annibal.
18
(RICOEUR, 1994). Dessa forma, para que um texto seja interessante,
ele deve continuar fazendo sentido para além do tempo em que fora
produzido. Assim, transformar minha pesquisa realizada há alguns
anos em um texto publicável na atualidade fez com que eu refletisse
sobre sua possível vigente relevância.
Com esse estudo, procurei compreender de que modo ocorre
a formação de leitores de literatura dentro do ambiente escolar. Para
tanto, foi importante traçar duas principais categorias de análise: as
estratégias e as táticas (CERTEAU, 1998). As estratégias são
compreendidas como os esquemas impostos no meio social,
geralmente de forma verticalizada e, no caso específico dessa
investigação, a categoria estratégia foi composta pela análise, sob o
recorte da formação do leitor literário, do Programa Ler e Escrever. Já
as táticas correspondem à forma com que os indivíduos se relacionam
com as estratégias, reproduzindo-as ou até mesmo subvertendo-as.
Assim, a análise tanto da prática docente, quanto da fala dos
professores entrevistados compôs a categoria tática desse texto. E para
um entendimento ainda mais aprofundado, foi preciso recorrer a
análise das representações (CHARTIER, 1990) que ancoravam as
táticas docentes e as estratégias do Programa Ler e Escrever.
No entanto, o tempo, esse senhor tão inventivo2, inventou em
transformar completamente a realidade social no entremeio temporal
entre minha pesquisa acadêmica e o livro publicado, sejam por
questões políticas, sejam por questões pandêmicas. E essa
transformação social refletiu diretamente na educação escolar. O
estudante de hoje não é o mesmo estudante de ontem. Tampouco o
Programa Ler e Escrever. Tampouco o professor, suas práticas e seus
2 Referência à canção Oração ao tempo de Caetano Veloso e A outra banda da Terra, de 1979.
19
saberes. Se o tempo, o espaço e os personagens estão tão diferentes,
ainda há condição de existência temporal nesse texto?
Acredito que a existência temporal desse texto, sua relevância
será determinada pelo seu leitor. Talvez essa obra possa servir como
fonte para consulta de alguns conceitos dos autores que alicerçam esse
trabalho, Certeau, Chartier, Barthes aah, esses franceses! Talvez essa
obra proporcione algumas breves considerações sobre políticas
educacionais e práticas docentes. Talvez esse livro possa ser um
exemplo de como fazer uma pesquisa acadêmico-científica. Ou um
exemplo de como não fazer uma pesquisa acadêmico-científica.
Talvez essa obra possa servir como peso de papel se bem que sua
publicação em formato digital já descartaria essa possibilidade.
Mas, sobretudo acredito que a relevância dessa obra está na
defesa da Literatura enquanto fonte para a formação, inclusive de
leitores, até mesmo da própria Literatura. Ao reconhecer o papel da
Literatura como uma importante Professora para o ser humano, esse
livro intenciona que seu possível leitor reflita, para além de tantas
possibilidades de reflexões, sobre suas próprias relações com o texto
literário. E talvez, a partir dessas ponderações, ao terminar a leitura
desse livro, esse leitor imediatamente abra um outro livro, de ficção
ou poesia, que realmente seja relevante e que transponha sua condição
a-temporal.
20
21
Catando feijõesuma introdução
Catar feijão se limita com escrever:
Jogam-se os grãos na água do alguidar
E as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo;
pois catar esse feijão,
soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
João Cabral de Melo Neto.
Assim como a escrita, as ciências da natureza e as operações
matemáticas, a leitura na escola também é um tema para o ensino na
instituição escolar. Dessa forma, para que se transforme igualmente
em um objeto de aprendizagem para as crianças, requer a construção
de significados por parte do estudante. A atividade de leitura deve
responder à realização de produção de sentidos para o leitor.
A leitura, para Chartier (1990), é um ato concreto, pois
requisita que qualquer processo de construção de sentidos seja
encarado no entrecruzamento de leitores dotados de competências
específicas, identificados por suas posições e disposições e caracteri-
zados por sua prática leitora, e os textos cujos significados se
encontram dependentes de seus dispositivos discursivos formais.
Logo, a leitura é um processo de produção de sentidos nada
arbitrário, pois ao mesmo tempo em que se estabelece como atividade
criativa e produtora de sentidos únicos pelo sujeito-leitor; é conduzida
22
pelo texto propriamente e por todo o seu processo de produção, que
compreende desde sua autoria à sua editoração, antecedendo sua
publicação.
Por um lado a leitura é prática criadora, atividade produtora de
sentidos singulares, de significações de modo nenhum redutíveis
às intenções dos autores de textos ou dos fazedores de livros [...]
Por outro lado, o leitor é sempre pensado pelo autor, pelo
comentador e pelo editor, como devendo ficar sujeito a um
sentido único, a uma compreensão correta, a uma leitura
autorizada. Abordar a leitura é, portanto, considerar
conjuntamente a irredutível liberdade dos leitores e os
condicionamentos que pretendemrefreá-la. (CHARTIER, 1990,
p. 123)
O conceito de Morte do Autor de Barthes (2012) complementa
essa concepção de leitura pautada na recepção dos textos. O escritor
considera que o autor é uma personagem moderna, advinda da
descoberta e apreciação da pessoa humana por meio do pensamento
empírico e racional, pensamento esse originado a partir da Reforma
da Igreja, durante o período que compreendia o fim da Idade Média
e o inícioda Idade Moderna.
Dessa forma consolidou-se o Império do Autor, o qual Barthes
designa como sendo o centro da crítica literária a imagem do e
s
critor,
sua pe
ss
oa,
s
ua hi
s
tória,
s
e
us
g
os
t
os
,
s
ua
s
paixões. (BARTHES,
2012, p. 58)
No entanto, o escritor e filósofo francês afirma que a
escritura/escrita é a destruição da voz original, ou seja, da voz autoral
do texto. Declara ainda que o texto escrito traz a perda de “toda
identidade, a começar pela do corpo que a escreve.”
(BA
RT
H
E
S
,
2012, p. 57)
23
Para o autor,
Abrir um texto, propor o sistema de sua leitura, não é apenas
pedir e mostrar que podemos interpre-lo livremente; é
principalmente, muito mais radicalmente, levar a reconhecer que
não há verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas
verdade lúdica; e, ainda mais, o jogo não deve ser compreendido
como uma distração, mas como um trabalho [...], ler é fazer o
nosso corpo trabalhar (sabe-se desde a psicanálise que o corpo
excede muito em nossa memória e nossa consciência) ao apelo
dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e
que formam como que a profundezaachamalotada das frases.
(BARTHES, 2012, p. 29)
Sendo assim, a leitura somente é realizada quando há um
processo de atribuição de sentidos que parte do sujeito-leitor. E esse
processo de construção de significados não é aleatório, está atrelado
aos recursos enunciativos presentes no texto. Contudo, a relação
estabelecida entre o texto e a leitura realizada por cada leitor é ao
mesmo tempo dialógica e contraditória, pois, ainda que se encontre
dependente da estrutura textual, o processo de atribuição de sentidos
pelo sujeito-leitor pode valer- se, inclusive, da subversão desses
mesmos recursos textuais.
[...] toda leitura ocorre no interior de uma estrutura (mesmo que
múltipla, aberta) e não no espaço pretensamente livre de uma
pretensa espontaneidade: não leitura
natural
,
selvagem
: a leitura não ex
tr
av
as
a da e
s
trutura; fica-
lhe
s
ubmi
ss
a; preci
s
a dela, respeita-a; mas perverte-a.
(BARTHES, 2012, p. 33)
Chartier (1990, p. 131) traça um percurso histórico das
práticas de leitura ao longo dos tempos, considerando o reconheci-
24
mento de paradigmas de leitura li
dos
para uma comunidade de
leitores, num momento e num lugar determinados.
Esses paradigmas de leitura se transformam, por sua vez, nos
próprios arquétipos de compreensão, apreensão e manejo da mesma.
Portanto, a leitura é entendida como prática cultural, já que tal
atividade é adquirida por meio do tempo e da cultura social em pleno
desenvolvimento.
Ao compreender a leitura como prática cultural, seu ensino
nas escolas também deve ser compreendido de forma distinta,
distanciada dos conceitos puramente tecnicistas como a decodificação
dos códigos linguísticos, conceitos esses amplamente adotados num
determinado momento histórico passado, e que incluía as práticas de
leitura adotadas pela cultura social atual.
Para Arena (2010), ler é uma experiência cultural que
configura o pensamento humano e se reconfigura ao longo da história
como ato herdado e legado pelos homens às gerações que se sucedem.
Desse modo, o leitor escolar não adquire a leitura como a
geração que o ensina atualmente a adquiriu.
A
leitura, para e
ss
e leitor
aprendiz, é de
s
envolvida como cultura rearranjada e transmitida pela
mesma geração que alterou e foi alterada pela ação de ler.(ARENA,
2010, p. 35)
A inserção da criança na cultura letrada por meio da literatura
infantil provoca a produção de sentidos fundamentais para a
efetividade da atividade leitora. A literatura infantil atiça, nos
pequenos, a necessidade de conhecer e de apropriar-se da cultura,
da língua, do literário e da história do ser humano no decorrer das
épocas, segundo Arena (2010, p. 17),
O ato de aprender a ler literatura, de construir sentidos pelos
enunciados verbais escritos, é, ao mesmo tempo desafiante,
25
estruturante, constituinte, mas mutante, estabilizante, todavia
instabilizante, no processo de apropriação da cultura, do literário
e da língua como traço cultural.
A criança enquanto leitor literário aprendiz, passa pelo
processo de atribuição de sentidos ao texto, mediado, principalmente,
pela própria literatura infantil.
A literatura infantil conquistou seu espaço nas escolas, a partir
da década de 1980, associando os primeiros contatos dos pequenos
estudantes com a língua escrita por meio da leitura de textos literários.
Simultaneamente ao reconhecimento escolar da literatura infantil,
houve o crescimento do setor de autoria, do campo editorial e da
produção de livros literários voltados para as crianças.
Esse destaque dado à literatura para crianças no final do século
XX, elevou o conceito de literatura infantil como um gênero
intrínseco do campo literário. Tal evento, para Colomer (2003),
propicia os estudos sobre as especificidades constituintes desse novo
gênero literário, tais como sua literariedade, suas produções editoriais
e gráficas e seu leitor específico.
Esse leitor específico da literatura infantil é a criança
leitora aprendiz, que busca, mediante o processo de construção de
sentido junto do texto sua inserção no mundo diversificado da cultura
humana por meio de seus primeiros passos na cultura letrada.
Candido (1999) conceitua a literatura como a capacidade de
confirmar a humanidade do homem. Nesse sentido, encontra-se a sua
função humanizadora, pois atua no desenvolvimento do homem
social de forma notória, promovendo o seu resgate diante da barbárie.
A literatura é capaz de retratar e, sincronicamente, é capaz
também de formar o ser humano. Segundo o autor,
26
[...] as camadas profundas da nossa personalidade podem sofrer
um bombardeio poderoso das obras que lemos e que atuam de
maneira que não podemos avaliar. Talvez os contos populares, as
historietas ilustradas, os romances policiais ou de capa-e-espada,
as fitas de cinema, atuem tanto quanto a escola e a família na
formação de uma criança e de um adolescente.(CANDIDO,
1999, p.84)
Dessa forma, a literatura contribui para a formação integral do
indivíduo, desde sua personalidade até questões educativas formais.
Consequentemente, a formação de leitores de literatura complementa
a formação integral da criança enquanto indivíduo histórico-cultural.
E, por conseguinte, este é um trabalho fundamental das escolas.
Para Barbosa (2009, p.36), as práticas de leitura em
instituições escolares adquirem, frequentemente, um caráter de
obrigatoriedade”. Essa leitura forçosa está vinculada ao uso dos textos
que aparecem nos livros e manuais didáticos. A leitura institucio-
nalizada pela escola acaba por entravar a multiplicidade de
compreensões do texto, pois por possuir objetivos antecipadamente
estabelecidos, não permite ao leitor vivenciar a sua leitura. De acordo
com Barbosa:
A ideia de existência de um sentido acabado pode fazer com que
a leitura adquira, para o aluno leitor, um caráter de coisa
obrigatória que, além de não ser de livre escolha, traga embutido
um conhecimento que, por razões as mais diversas, esse leitor
pressupõe não poder alcançar ou aceitar. (BARBOSA, 2009,
p.37)
Por conseguinte, essa prática de leitura interiorizada nas
escolas acaba por gerar mais conflitos que soluções diante da questão
da formação de leitores de literatura, já que muitas vezes, os
27
estudantes associam a leitura a um sentimento de desprazer e de não
realização.
Essa presente obra procurou compreender como ocorre a
formação de leitores de literatura em uma escola do município de
Assis, interior do estado de São Paulo, analisando a relação existente
entre a estratégia (CERTEAU, 1998) proposta pelo Programa Ler e
Escrever, e as táticas (CERTEAU, 1998) dos professores.
Na obra A invenção do cotidiano, o historiador Michel de
Certeau propõe que as práticas culturais e seus modos de consumo sejam
estudados a partir das operações subversivas realizadas pelos
indivíduos durante o processo de interação social. Sendo assim, o
historiador inverte a perspectiva de análise científica sociológica,
até então centrada sob a ótica das relações de poder dominante na
sociedade.
Certeau (1998) classifica as práticas culturais em táticas e
estratégias. Para o autor, as estratégias são o “cálculo das relões de
forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito
de querer e poder é isolável de um ambiente(p. 46). As estratégias
são, dessa forma, os poderes derivados das autoridades reconhecidas
pela sociedade.
as táticas são as ações realizadas pelos indivíduos em suas
práticas sociais corriqueiras. A tica é o lculo que não pode
contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que
distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o
do outro.(CERTEAU, 1998, p. 46)
Assim sendo, as táticas são os modos de fazer do homem
comum em suas práticas culturais diante das estratégias impostas pelas
relações de poder vigentes em cada esfera social. Sob a premissa dos
conceitos de Certeau a respeito das práticas culturais, a obra A
formação de leitores literários: entre estratégias e táticas, primeiramente
28
apresentada como trabalho para a obtenção de título na pós
graduação, propôs uma análise qualitativa diante das as estratégias
postuladas pelo programa Ler e Escrever, e das práticas docentes,
consideradas como ticas, com o objetivo de compreender de que
modo ocorre a formação de leitores de literatura no interior do
ambiente escolar.
Para tanto foram realizadas observações de campo e
entrevistas com as professoras participantes, sobre suas atuações com
o Programa Ler e Escrever, assim como sua importância para a
formação de leitores literários. As entrevistas também tiveram o
propósito de retratar
as
r
e
pr
e
s
entaçõe
s
, ou
os
esquemas intelectuai
s
incorpora
dos
que criam a
s
figura
s
graças as quais o presente pode
adquirir sentido (CHARTIER, 1990, p.17) em relação à leitura
e à literatura das professoras integrantes desse estudo.
Também foram realizadas análises documentais do Programa
Ler e Escrever. Estas buscaram explorar a temática das estratégias e
verificaram suas contribuições para a formação do leitor de literatura.
As observações de campo e as entrevistas procuraram caracterizar as
táticas dos docentes e averiguar suas atuações para o desenvolvimento
dos leitores de literatura.
O primeiro capítulo está delineado pelos princípios
norteadores da investigação realizada para a composição dessa obra.
Inicialmente apresento minha trajetória de formação enquanto
sujeito leitor e suas contribuições para o desenvolvimento desse livro.
O segundo capítulo dispõe da contextualização histórica,
social e cultural do município de Assis, bem como da escola cenário
dessa pesquisa. Pautada em documentos oficiais, arquivos pessoais e
relatos orais de pessoas ligadas à EMEIF. Esse capítulo apresenta a
escola como meio social para a realização da pesquisa e ambienta a
análise das informações obtidas. Bem como apresenta os sujeitos
29
participantes dessa pesquisa enquanto professoras atuantes nas séries
iniciais do Ensino Fundamental, suas formações acadêmicas e
períodos de exercício no magistério.
O terceiro capítulo trata da análise documental do Programa
Ler e Escrever a partir sua implementação. A análise busca
compreender as teorias que embasaram o conceito de leitura e de
literatura presentes no Programa.
O quarto capítulo trata da análise dos dados obtidos por
meio das entrevistas, com o intuito de compreender as representações
das participantes da pesquisa acerca da leitura e da literatura, e está
pautada no conceito de representação de Chartier, sendo significativa
para contextualizar as práticas docentes diante do ensino da literatura
em sala de aula.
O quinto capítulo propõe a análise dos dados coletados sob
a perspectiva das táticas e das estratégias de Michel de Certeau
(1998). Dessa maneira busca apresentar de forma detalhada os
conceitos do escritor, associando-os com os resultados dos dados
obtidos durante a pesquisa.
Por fim, algumas considerações são tecidas diante da trajetória
da pesquisa realizada, propondo uma reflexão sobre a formação de
professores para formar os leitores de Literatura.
30
31
1.
Para tornar o mundo um lugar habitável
Uma potência chamada literatura
Meu primeiro brinquedo relevante foi um livro. O patinho
feio, em sua capa dura azul anil, com ilustrações pop up 3 que saltavam
das páginas era o meu favorito, meu passaporte ao País das
Maravilhas. Nele, o Patinho era deslumbrante.
Como ainda não sabia ler, a melhor parte do meu dia era ouvir
cada palavra contada, ora por meu pai, ora por minha mãe. Mesmo
porque meus pais não me pertenciam totalmente. Havia a obrigação
de dividi-los com meu irmão caçula que acabara de nascer e que
fazia chorar.
Meu pai concluiu apenas o Ensino Médio e sempre foi
trabalhador braçal. Paradoxalmente, também sempre foi um ávido
leitor, principalmente de quadrinhos e revistas pulp4. A leitura o
carregava para seu universo mágico no fim do dia, o qual passava
horas vivenciando as aventuras de fantásticos guerreiros cimérios5 ,
3 Segundo Lins (2003), livros pop up possuem em seu projeto gráfico editorial, encaixes
e dobraduras de papel formando esculturas instantâneas ao virar de página.
4 Segundo França (2013) as Pulp Magazines são revistas de ficção de baixo custo e de baixo
valor estético, para os padrões da crítica literária da época. Seu nome deriva do tipo depapel
de pouca qualidade em que eram impressas, o papel derivado da polpa da celulose. Eram
repletas de narrativas pouco sofisticadas, violentas, sexistas e apelativas. Vendidas em bancas
de jornal consistiam em uma alternativa barata para o público de baixa renda.
5 O escritor americano Robert E. Howard utilizou o nome "cimérios" para descrever o povo
32
magos e feiticeiras, que o transportavam dos seus problemas do
cotidiano para lugares maravilhosos, onde, apesar de toda violência, o
bem sempre vencera o mal.
Meu pai foi quem primeiro me revelou o desejo de ler.
Barthes (2012) apresenta a leitura imbuída por um desejo
quase carnal, uma vez que não se pode desligar o objeto da leitura ao
ato de ler. Esse anseio pela leitura está amplamente vinculado ao
interesse pelo livro material, bem como ao momento da relação com
esse objeto.
Para o autor,
[...] ao fechar-se para ler, ao fazer da leitura um estado
absolutamente separado, clandestino, no qual o mundo inteiro é
abolido, o leitor identifica-se com dois outros sujeitos humanos
[...], o sujeito apaixonado e o sujeito místico. (BARTHES, 2012,
p.37)
O sujeito apaixonado é aquele que aprecia sua relação com o
livro, unindo-se isoladamente ao seu objeto de desejo, como, ainda
segundo Barthes (2012), o Apaixonado fixado ao rosto do amado, ou
a criança colada à Mãe. o sujeito místico aproxima a leitura ao ato
da meditação, da oração mental, do escape ao mundo exterior.
Sendo assim, o leitor é um sujeito que está exilado ao
imaginário, pois, durante a leitura, esse sujeito-leitor desliga-se de suas
relações externas para vivenciar relações com as histórias, com seu
livro.
A imaginação é parte da composição humana, está presente
no nosso dia a dia, em todas as nossas ações autorais, sendo a base
para toda a atividade criadora que
s
e revela nos at
os
da vida diária.
do qual seu personagem mais conhecido, Conan, o Bárbaro, seria descendente.
33
P
ara
Arena (2010, p. 30),
imaginar é inventar, criar, romper com o
já construído para encontrar o ainda desconhecido. É uma faculdade
do homem, social e historicamente aprimorada, além de constituinte
do desenvolvimento do nosso pensamento.
Já para Candido (1999), um dos papéis da literatura é suprir
a necessidade de fantasia e ficção inerente ao homem, pois aparece
invariavelmente em sua vida, como indivíduo e como grupo, ao lado
da satisfação das necessidades mais elementares.
Ao observar meu pai em suas leituras, pude compreender a
relevância do ato de ler que, se antes era entendido como uma
decifração de códigos pertencente ao universo dos adultos, agora
estava ampliado para uma necessidade quase fisiológica.
Por conseguinte, eu saboreava cada palavra dita pelos meus
pais durante a leitura do livro O patinho feio. Esse momento da leitura
com meus pais, ao mesmo tempo me religava às minhas origens
familiares e me desligava do mundo externo, sendo um refúgio para
meu próprio mundo, esse sem choro de bebê.
Lima (1998), em um estudo sobre Barthes, afirma que o texto
tem sabor e essa é a justificativa para que se utilizem metáforas
culinárias para simbolizar o prazer gustativo diante da leitura.
O texto saboroso é como água de cacimba, vem com o sabor da
terra, com suas vitaminas de barro, de humus. O texto precisa de
sombra, da ideologia dominante. Precisa do tempero dos
fantasmas, das ventilações do ar que respiramos. O texto tem que
ser esponjoso, pulmonar, para que transite pelosseus poros, o
hálito do meu povo. O texto é também como um trampolim,
uma catapulta, dele eu fruo, a partir dele eu alço voo, decolo
como pássaro epifânico. (LIMA, 1998, p. 20)
34
Era tudo tão palatável, todos os momentos de contação de
história com meus pais, a beleza da produção editorial dessa obra, seu
enredo, sua história, seu aroma, que comi, literalmente, o livro.
Mastiguei cada página, numa tentativa antropofágica de possuir
aquela felicidade de ler o tempo todo.
No final de um ano de um relacionamento intenso com o
meu Patinho Feio, não havia sobrado nenhum pedacinho de papel
para contar história. Talvez por isso que eu não consiga comer pato
até hoje. Nenhum pato superou o patinho do chef Andersen.
Segundo Barthes (2007) a escritura faz do saber uma festa. O
autor francês nos recorda que as palavras saber e sabor possuem a
mesma origem etimológica, não podendo ser dissociadas. Desse
modo, a leitura e o prazer em ler não podem ser apartados.
[...] a escritura se encontra em toda parte onde as palavras têm
sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia) [...] Na
ordem do saber, para que as coisas se tornem o que são, o que
foram, é necessário esse ingrediente, o sal das palavras. É esse
gosto das palavras que faz o saber profundo, fecundo.
(BARTHES, 2004, p. 20-21)
A apresentação da cultura escrita por meio do contato com a
obra literária durante minha infância foi basilar para a composição do
sujeito-leitor que sou atualmente. Por meio do conto de Hans
Christian Andersen compreendi a importância da língua escrita para
a construção e difusão dos saberes dos homens, bem como o prazer
de possuir todo esse conhecimento nas palmas das minhas mãos, por
intermédio daquele objeto tão significativo que era um livro.
Dessa forma, esse saber do texto atrelado ao sabor da leitura
possibilitou que meu Patinho feio de capa azul permanecesse
guardado em minha memória desde sempre.
35
Chartier (2007) afirma que a imaterialidade da obra literária,
ou seja, sua permanência atemporal na história, depende
principalmente de sua materialidade, isto é, a forma de como essa
obra está veiculada.
A alegação do historiador é ilustrada pela fala de Jorge Luís
Borges, escritor argentino, em um fragmento de sua autobiografia,
publicada em 1999. Nesse fragmento, o poeta portenho recorda sua
relação com a obra Dom Quixote, relação essa completamente
associada à materialidade da encadernação vermelha com títulos
dourados da edição. Esse volume foi lido durante sua infância, e tido
por Borges como o verdadeiro Dom Quixote, como se faltasse algo às
outras edições, fato que, para o argentino, transformara as demais
encadernações em inverídicas.
A anedota sobre Borges e seu Dom Quixote evidencia a
afirmação de Chartier sobre as
relações entre a obra literária e sua
concretude, pois
algumas obras se amarram n
os
objet
os
ou nas
práticas de cultura escrita de seu tempo” (CHARTIER, 2007, p. 16).
Assim como o verídico Dom Quixote de Borges possuía capa vermelha
e letras douradas, meu Patinho feio sempre terá sua capa dura azul anil
e imagens saltitantes.
Fui alfabetizada pela minha mãe, em casa. Dessa forma,
não cursei educação infantil e meus primeiros passos escolares foram
por um caminho ligeiramente suave no Ensino Fundamental. Minha
mãe é professora sem formação universitária. Foi normalista e seu
título de instrução lhe concedeu o direito de formar outras pessoas
nas escolas, trabalhando por cinco anos com a alfabetização de jovens
e adultos. Depois que nasci, tornou-se minha professora particular e
fui sua primeira aluna mirim por longos quatro anos. Após o
nascimento de meu irmão, nossas aulas práticas se tornaram teóricas,
nas quais tracei e li minhas primeiras linhas em um caderno. Já havia
36
sido apresentada ao universo das letras pelo meu pai, mas graças a
minha mãe, as letras agora me pertenciam.
Para Barbosa (2009, p. 38) ler não é somente passar do oral
para o escrito, é uma maneira de pensar o raciocínio gráfico, é uma
maneira de pensar, um pensar novo”. Do mesmo modo em que a
língua oral se relaciona com o tempo, a língua escrita se relaciona com
o espaço. Logo, são modos diversos de organização do pensamento e
da composição do raciocínio, sendo que essa divisão entre as diferentes
formas de pensar, o pensar oral e o pensar gráfico, po
ss
ibilita,
s
egundo
Barbosa (2009, p. 39) exercícios diferencia
dos
de pode
r
nos
múltipl
os
nichos sociais.
A cultura escrita é a forma de conhecimento de maior valia
nas sociedades ocidentais. Ter os primeiros contatos com esse
respeitável universo por meio da mediação de meus pais foi um
grande privilégio.
O gesto inaugural dessa entrada na cultura escrita, tanto na escola
como em casa, é abrir um livro il
us
trado para fazer com que uma
criaa ainda
analfabeta
possa experimentar os efeitos que a
leitura produz (interesse, prazer, surpresa, riso, emoção): estamos
lhe ensinando assim que a leitura é um ato de recepção.
(CHARTIER, 2016, p. 291)
A entrada na escola foi bem agradável. Como já sabia ler, logo
caí nas graças de minha professora, contudo minha leitura não era a
leitura esperada de uma estudante. Na escola aprendi meu ofício de
al
una
. Chartier (2016) classifica esse ofício de aluno como
s
endo a
leitura de textos funcionais, de instruções, as consultas documentais
com a finalidade dos trabalhos escolares, o cumprimento dos
protocolos avaliativos e as interpretações das observações escritas do
professor. Segundo a autora, o letramento é a capacidade de ler textos
37
considerados, em um determinado tempo, como socialmente
necessários(CHARTIER, 2016, p. 26).
Desse modo, a leitura de textos funcionais, a leitura utilitária,
com objetivos claros e previamente definidos, está imbricada no
contexto escolar. Contudo, Chartier (2016) afirma que ao mesmo
tempo em que essas leituras informam e esclarecem, também
solicitam informações e esclarecimentos de seu leitor.
Com esse meu novo ofício de aluno, percebi a leitura enquanto
prática conduzida pelo texto para a construção de significados. Na
escola aprendi a ler buscando os significados e sentidos necessários
para a compreensão dos diferentes tipos de textos e contextos. Tornei-
me uma ávida leitora, assim como meu pai. Porém, meus projetos de
leitura se tornaram muito diferentes dos seus projetos.
Segundo Foucambert (2008), ler pode ser uma atividade
significativa porque a leitura está inserida no centro de um projeto
pessoal.
[...] ler, quer se trate de um jornal, de um romance, de uma bula,
de um poema, de um relato de teatro, trata-se sempre de uma
atividade que encontra sua significação porque está inscrita no
interior de um projeto. Pode- se discutir o valor do projeto, mas
isto posto, a leitura é uma: trata-se sempre de tomar as
informações que escolhemos tomar. (FOUCAMBERT, 2008, p.
63)
Assim, cada leitor possui seu projeto particular de leitura, pois
os objetivos buscados pela atividade leitora dependem do seu processo
de atribuição de sentidos que é único.
Minha vida durante a Escola Básica foi, ora em sala de aula,
ora na biblioteca escolar. Escapulia das aulas de Educação Física nas
38
quadras, principalmente nos dias de muito sol e calor. Meu
esconderijo sempre foi a biblioteca.
Logo me transformara em amiga íntima da bibliotecária, dona
Emília, que em pouco tempo me dera permissão para ultrapassar o
balcão e adentrar na fascinante sala do acervo. Escolhia minhas
próximas leituras, por meio do contato com os livros, fato esse não
permitido pela diretora do colégio aos demais alunos. Acredito que a
diretora tampouco tinha conhecimento desses meus episódios, já que
nunca fui repreendida. Suspeito que jamais fui delatada por dona
Emília.
Meu apreço pela literatura foi o responsável pela opção em
cursar Letras no Ensino Superior e, posteriormente, pesquisar seu
ensino escolar nos estudos de Pós-Graduação. A formação de leitores
literários complementa a formação integral do ser humano. Como
Candido (1999, p. 85) bem disse, a literatura o c
orrom
pe, ne
m
edifica. E
s
tá qualificada para formar o ser humano por meio de
vivências indiscriminadas, sem preconceitos estabelecidos ao longo
do desenvolvimento das questões morais e cívicas da sociedade.
Os homens são forjados pela sociedade. São feitos do que os
outros seres humanos lhes oferecem, desde o núcleo familiar aos que
circundam em seu entorno. A literatura abre imensurável
possibilidade de interação com os outros, fato que enriquece
infinitamente a capacidade humana. Causa empatia por vivências
semelhantes, transforma o mundo em um lugar onde todos, sem
discriminações, têm o direito de existir e de atuar ao seu redor. Traz
em si a beleza de viver.
No atual período histórico, grande parte das crianças não
é apresentada ao universo das letras pelos seus pais, como ocorreu em
minha infância. Hoje, cabe à escola introduzir os pequenos ao
39
domínio da cultura escrita. E a escola não deve deixar essa grande
professora, que é a literatura, passar despercebida.
Mediados pela literatura, os primeiros passos de uma criança
no mundo letrado são transformados em um percurso muito mais
aprazível e significativo aos pequenos. Digo por experiência própria.
40
41
2.
Pasárgada
Entre os textos e os contextos dessa investigação
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Manuel Bandeira
Sou assisense de nascença. Sempre morei nessa cidade, salvo
o único ano na minha infância em que vivi com minha família na
zona rural de Florínea, outra cidade pequena do interior do estado de
São Paulo.
Já no final da adolescência, decidi continuar na minha cidade,
com minha família. Diferentemente de outros colegas, que queriam
alçar voos mais longínquos, deixando o município para estudar fora,
optei por permanecer debaixo das asas de meus pais, cursando Letras
na Unesp de minha cidade. Minhas asas ainda não estavam prontas
para voos muito distantes.
Na faculdade, um apelido inesperado me acompanhou pelos
quatro anos de estudo: Minhoca. Minhoca, pois é um bicho da terra.
E como todo bicho da terra, eu não havia saído da minha terra natal.
Fato interessante é que durante toda minha infância, minha mãe me
chamava de Minhoca. Dizem que as mães são intuitivas, mas a minha
mãe poderia ser uma versão feminina melquiadeana a la Gabriel
García Márquez6.
6 Referência ao personagem Melquíades, cigano, místico e profeta, que previu o futuro de
42
Após a formatura no Ensino Superior, trabalhei em várias
escolas estaduais, em diversas cidades vizinhas, como professora
eventual. Contudo, tive a oportunidade de me tornar professora efetiva
nas escolas municipais de Assis. Em 2010, me tornei professora
permanente de língua inglesa na EMEIF. Prof.ª Maria Amélia de
Castro Burali.
Foi nessa escola que tive minhas primeiras experiências
docentes enquanto responsável direta pela turma. Foi essa escola que
introduziu em minha rotina as intermináveis reuniões de HE
semanais, os infindáveis Conselhos de Classe ao final de cada bimestre
e as inesgotáveis reuniões de pais e mestres.
Foi nessa escola que o peso da responsabilidade em atribuir
conceitos e notas a outras pessoas recaiu sobre mim, transformando-
me em uma pessoa muito mais consciente e crítica com relação ao
sistema educacional posto. Essa foi, e ainda é, a escola que me ensinou
e ensina a ser professora.
Chartier (1990) aponta que é impossível compreender uma
determinada cultura dissociada de seu contexto. Sendo assim,
descrever o cenário onde ocorreu essa investigação permite
compreendê- lo também como fonte de dados, uma vez que é possível
perceber as condições econômicas, sociais e culturais dos envolvidos na
pesquisa científica dentro das ciências da sociedade. Contextualizar
esse espaço é apresentar mais informações que contribuam com as
análises desse estudo. Também significa compreender a relação entre
as práticas das professoras participantes e o meio social em que elas
atuam.
Macondo, no romance Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, de 1967.
MÁRQUEZ, G.G. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, 18ª edição
43
Para mais além, contextualizar o espaço onde essa pesquisa foi
realizada é contextualizar uma parte significativa da minha vida.
Agreste caipira
a cidade de Assis
Assis é a cidade de Tieta7. A mais amada dentre todas as
mulheres de Jorge Amado. Ao menos é o que dizem. Relatos apontam
que o escritor baiano visitou minha cidade algumas vezes, durante os
anos 1970, pois um amigo seu acabara de se instalar no município
como médico da próspera comarca do oeste paulista. E nessas visitas,
Jorge teria conhecido Antonieta, a proprietária da respeitada casa
situada na zona de meretrício da cidade.
[...] Antonieta foi a musa de Jorge Amado para o livro Tieta.
Ligações para explicar essa inferência são feitas a partir de um
outro fato: Jorge Amado tinha um amigo que residia na cidade e
algumas vezes teria vindo visitá-lo e que, ao conhecer Antonieta
usou desse contato para escrever um livro, cujo título expressaria
o relacionamento. (SIMILI, 1995, p. 09)
Assim como a Antonieta sertaneja, a Antonieta caipira teve
forte influência, inclusive política, para o desenvolvimento do
município. Graças a sua ligação com poderosos, o território urbano
da cidade foi expandido, pois mesmo sofrendo uma enorme pressão
da Diocese, a zona de meretrício mais famosa do estado de São Paulo
não poderia fechar as portas.
Consequentemente, a
Casa da Antonieta (localizada próxima
ao centro da cidade, no início da rua
Jos
é
V
ieira da Cunha e
S
ilva)
se
7 Referência à personagem Tieta, da obra de Jorge Amado, Tieta do Agreste, de 1977.
AMADO, J. Tieta do Agreste. Rio de Janeiro: Record, 1977.
44
tra
nsformou na
Chacrinha da Antonieta”, uma propriedade com
características da zona rural uma chácara situada ao fim dessa
longa rua, levando todo um ramo do comércio e venda de produtos
secos e molhados para esse canto esquecido da cidade, ampliando a
área urbanizada de Assis.
Mas antes de ser conhecida como quenga, minha cidade já foi
chamada de princesa. Em 30 de agosto de 1936, o jornal municipal
A Notícia trazia o apelido de Princesa da Alta Sorocabana para a cidade,
em razão do processo de urbanização e do crescimento dos prédios
construídos, fato que colocava a comarca em sexto lugar nas
estatísticas de municípios em desenvolvimento do estado de São
Paulo.
Assis já não tinha mais a aparência de vilarejo antigo como os
pequenos municípios vizinhos. Suas novidades arquitetônicas
abandonavam as pequenas casas de madeira em prol de edificações em
alvenaria. A única cidade maior que Assis nesse período, em toda
região da Alta Sorocabana, era Presidente Prudente, com cerca de
apenas 80 prédios a mais em território urbano.
Em vista de todo esse progresso, a cidade tornou-se um centro
de referência atrativo para as pessoas da região, tanto pelo comércio
disponibilizado quanto pelas atividades culturais existentes.
Incontestavelmente, Assis tornou-se polo de atração e
concentrou atividades econômicas e sociais, impulsionadas pelo
adensamento populacional, o que alterou as práticas de
sociabilidades. Cinemas, clubes, bares e praças despontavam na
paisagem urbana do município, oferecendo diversificadas opções
de lazer a seus frequentadores. O universo lúdico abrangia o
Clube Recreativo e a Associação Atlética Ferroviária, lugares
frequentados pelas elites e onde se organizavam bailes e jantares
requintados, diferente das ruas e dos cinemas, pontos de
45
encontro que reuniam as classes mais populares ansiosas pelo dia
em que podiam interromper a rotina e desfrutar de momentos
de lazer, prestigiar os desfiles de carnavais na avenida central e
os filmes recém lançados da época. (SOUZA, 2018, p. 26)
No entanto, todo esse progresso da década de 1930 foi um
reflexo que veio depressa, veio correndo, veio na toda8, com a velocidade
que somente os vapores mais modernos, movidos a muito café com
pão9 poderiam oferecer. A ligação da Estrada de Ferro Sorocabana,
diretamente da capital do estado, em 1914, possibilitou o trânsito de
pessoas e mercadorias, oportunizando o surgimento de empregos na
cidade em expansão.
Ferroviários seduzidos por excelentes oportunidades de
trabalho transformaram Assis em sede para suas residências, fato que
muito estimulou a economia local. Em 1915, Assis já era reconhecida
como um distrito, e em 1917, se tornou um município oficialmente
firmado.
[...] a Estrada de Ferro Sorocabana, implantada em 1914,
demonstrou grande relevância para o desenvolvimento da
cidade, sendo um importante marco para o crescimento do local
e fator decisivo para a elevação de Assis a Distrito de Paz, em
1915, e a município, em 1917, por meio da lei estadual nº. 1.581,
de 20 de dezembro de 1917. (DAVID, 2009, p. 30)
Entretanto, a história de Assis tem um princípio bastante
violento, sem glórias ferroviárias ou literárias. José Teodoro de Souza,
mineiro da cidade de Pouso Alegre, chegou à região do Vale do
8 Referência à poesia Trem de Ferro, de Manuel Bandeira, de 1936. BANDEIRA, M.
AntologiaPoética. São Paulo: Global, 2013.
9 Id., Ibid.
46
Paranapanema, ou Sertão do Paranapanema, como era conhecida, em
1885. Com as terras registradas em seu nome, José Teodoro dividiu a
propriedade em glebas que foram vendidas a outros desbravadores. O
Capitão Francisco de Assis Nogueira adquiriu, nesse período, uma
grande área que mais tarde se tornaria Assis.
Contudo, essas terras eram habitadas pelos povos Kaigang,
Xavante e Caiuá. E essa conquista” geográfica só foi possível depois
de muita luta contra esses povos. O site oficial do município de Assis
(2020) descreve essa parte da história do município por meio dos
termos extermínio, expulsão e domesticação dos povos originários
habitantes da região, dando uma dimensão desse passado sombrio que
principiou o desenvolvimento de Assis.
O povoado que se originou tomou o nome do doador, Assis, e se
desenvolveu em torno da modesta capela de pau-a-pique coberta
de sapé, erguida no local onde hoje se situa a Catedral. Após o
extermínio, expulsão ou domesticação dos Xavante e Caiuá, os
novos ocupantes tiveram como atividade econômica
predominantemente a plantação de roças de milho, de fumo e a
criação de porcos. (ASSIS, 2020, grifo nosso)
Souza (2018) apresenta a ideia de que os exploradores
admitiam uma visão de mundo etnocêntrica, que supunha a
superioridade do homem branco. Sendo assim, os indígenas eram
tidos como empecilhos para o progresso e para a apropriação das
terras conquistadas. Infelizmente, em pleno século XXI, essa
percepção sobre os povos indígenas ainda se faz presente.
Os exploradores compartilhavam uma visão de mundo
etnocêntrica, ancorada na crença da superioridade do homem
branco e no desprezo aos indígenas, vistos como entraves para a
apropriação de terra
s
e a implantão de infrae
s
trutura
47
nece
ss
ária, seja ao cultivo de subsistências ou à exploração pelo
capital. Não admira que, na região de Assis, a necessidade do
primeiro cemitério tenha nascido justamente pela alta taxa de
mortalidade dos nativos. (SOUZA, 2018, p. 24)
Já em domínio de suas terras, Francisco de Assis Nogueira
transformou a região na Fazenda Taquaral. E, em 1º de julho de
1905, o capitão doou cerca de oitenta alqueires de sua fazenda para a
construção de uma capela além da fundação de um vilarejo que anos
mais tarde se tornaria o município de Assis. A origem do nome de
minha cidade é justamente uma homenagem ao seu fundador. E
também ao santo padroeiro do município, São Francisco de Assis.
O clima de Assis é quente e seco, com uma vegetação típica
do cerrado paulista, possuindo o solo arenoso, um grande diferencial
em relação às cidades vizinhas. Inclusive, esse foi o fator para minha
família se mudar para o município.
Meu avô paterno, o senhor José Franco da Silva, morador da
cidade de Santa Mariana, no norte do Paraná, foi diagnosticado com
problemas de respiração, em meados da década de 1950. O doutor de
sua cidade aconselhou que meu a procurasse outro município para
residir, com um clima menos úmido e com temperaturas mais
elevadas.
Logo, seu Franco lembrou-se daquele vilarejo abafado e
quente, com solo arenoso, que havia conhecido em suas aventuras na
época da mocidade, no interior do estado de São Paulo, antes de
conhecer, se apaixonar e fugir com dona Adelina, minha avó. E assim
meus avós se mudaram de mala, cuia e sete filhos para aquela cidade
de “areião, que para parecer com praia só faltava o mar, como meu avô
dizia, em 1960.
48
Já instalados em Assis, a família do meu pai se tornou vizinha
da dona Aparecida e do senhor Alberto, italianos nada discretos que
também tinham sete filhos e que, por licença poética da vida, também
era a família da minha mãe. E assim meus pais se conheceram, no auge
de sua infância, mal sabendo o que o futuro lhes reservava.
Meus pais estudaram na mesma escola: o Grupo Escolar Lucas
Thomas Menk, o Grupinho. Nessa época, havia uma outra
importante escola em Assis, conhecida pelo nome Grupão, o Grupo
Escolar João Mendes Junior. Segundo Barbosa (2001) o Grupo
Escolar João Mendes Junior foi uma das mais relevantes escolas do
município no século XX, criado a partir da incorporação das três
primeiras escolas de Assis, datada a partir de 1919. Para meus pais,
essas escolas ainda são o Grupinho e o Grupão.
Em 2021, Assis possuía 32 escolas, das quais treze estão sob a
administração estadual e as demais estão sob a administração
municipal. Inclusive as escolas que meus pais estudaram e a escola que
também serviu de contexto para minha pesquisa.
Desaprender para aprender de novo10
A EMEIF Maria Alia
Fui professora dessa escola por mais de dez anos. Em todo esse
tempo de casa, passei pela administração de quatro equipes gestoras
distintas, conheci professores que chegaram na escola para dar aulas,
despedi-me de professores que saíram da escola por motivos diversos.
Auxiliei no processo de formação de inúmeras crianças. Ensinei um
pouco da língua e da cultura inglesa e aprendi muito sobre a vida com
essas crianças. Fiz muitos amigos.
10 Ruben Alves
49
Sempre fui encantada inclusive pelo espaço físico dessa escola.
São dois blocos de salas de aulas, um mais antigo, com salas menores,
e outro mais recente, com salas amplas e arejadas. Todo o espaço é
gramado, cercado por árvores de porte médio, plantas características
do cerrado paulista.
O segundo bloco de salas de aula foi concedido à escola pela
Fundação Educacional do Município de Assis, a FEMA, uma
instituição de ensino de nível superior. Esse conjunto de salas de aulas
pertencia à faculdade, que cedeu para a escola, já que são duas
instituições vizinhas, separadas apenas por uma cerca de alambrado.
Educação Básica e Educação Superior no mesmo terreno.
Figura 1: Ligação entre os dois blocos de salas de aula
Fonte: Arquivo Pessoal
50
A escola está localizada em uma via de circulação urbana
importante para a periferia da zona norte da cidade de Assis, ligando
as cercanias da Rodoviária aos bairros mais afastados do centro
comercial. Por estar situada na periferia da cidade, a escola atende à
crianças com perfil socioeconômico baixo, que residem tanto nos
bairros vizinhos quanto na zona rural da cidade.
Em 2021 havia cerca de 300 crianças matriculadas na
instituição, desde a Educação Infantil aos anos iniciais do Ensino
Fundamental, de 1º a 5º ano, divididas entre os períodos matutino e
vespertino. A escola também apresentava um corpo docente formado
por dezessete professoras pedagogas responsáveis pelas classes, além
dos demais docentes de Educação Física, Línguas Estrangeiras e
Tecnologia.
Havia também três agentes escolares, uma funcionária
responsável pela cozinha, três auxiliares de serviços gerais, uma
secretária escolar, uma coordenadora pedagógica, uma diretora e uma
vice-diretora. A escola também contava com três estagiários bolsistas
acompanhantes dos três alunos portadores de necessidades especiais:
uma criança cadeirante, uma criança com baixa mobilidade física e
uma criança com Transtorno do Espectro Autista.
A escola foi criada em 31 de janeiro de 1985, para a
bsorver
parte do excesso de alunos da EEPG Léo Pizzato e da EEPG Francisca
Ribeiro Mello Fernandes, e por isso ela está localizada entre as duas
instituições (ASSIS, 2019, p. 06). Neste mesmo ano, sem prédio
próprio, cinco classes criadas para a nova escola funcionaram
provisoriamente junto às instalações da EEPG. Prof. Léo Pizzato,
enquanto uma classe foi instalada junto à EEPG. Prof.ª Francisca
Ribeiro de Mello Fernandes, totalizando seis turmas iniciais.
A EEPG Vila Rodrigues, assim chamada inicialmente, foi
construída no ano de 1985, pela Prefeitura Municipal de Assis, em
51
convênio com a CONESP. A entrega oficial do prédio ocorreu em 14
de março de 1986, com a escola em pleno funcionamento nas
próprias instalações, desde o dia 17 de fevereiro daquele ano letivo.
Figura 2: Placa de inauguração oficial do prédio da escola
Fonte: Arquivo Pessoal
A EEPG Vila Rodrigues foi renomeada para EEPG Prof
Maria Amélia de Castro Burali no mesmo ano de sua inauguração,
como homenagem à professora e diretora de escola Maria Amélia de
Castro Burali, que havia falecido em 11 de outubro de 1985. Desde
então a imagem da patrona da escola está ao lado da sua placa de
inauguração.
52
Figura 3: Imagem da patrona da escola
Fonte: Acervo Pessoal
A partir de 1987, a EEPG Prof.ª Maria Amélia de Castro
Burali passou por um processo de ampliação de classes, num total de
doze novas turmas, entre 1ª e 5ª séries do Ensino Fundamental, bem
como duas novas turmas de Ensino Supletivo. Em 30 de abril de 2000
o primeiro ciclo do Ensino Fundamental foi oficialmente
municipalizado em Assis, fato responsável pela mudança do nome da
EEPG Prof.ª Maria Amélia de Castro Burali para EMEIF Prof.ª
Maria Amélia de Castro Burali, totalizando dez salas de Ensino
Fundamental e uma de Educação Infantil.
53
Figura 4: Fachada da EMEIF Prof Maria Amélia de Castro Burali
Fonte: Arquivo Pessoal
Minha história com essa escola teve início em maio de 2010.
Recém-contratada como professora efetiva de língua inglesa, optei
por escolher as aulas disponíveis nessa EMEIF por ser muito próxima
à residência de meus pais.
Nasci enquanto professora na EMEIF Maria Amélia. Foi
nessa escola que entendi meu ofício de ensinar e de aprender. Essa
escola foi a responsável pela minha edificação profissional. Sou
professora graças a ela. Consequentemente, foi essa escola que
despertou em mim o interesse por investigar os domínios da
educação. E hoje em dia, mesmo cumprindo com meu atual papel de
pesquisadora, mesmo que minha casa antiga tenha sido em partes
54
demolida, quem disse que eu me mudei?11. Como diria o poeta, a gente
continua morando na velha casa em que nasceu.12
Carregando bandeiras
As participantes desse estudo
Com toda licença poética, carregar bandeira é cargo para
mulher13. Ainda mais as bandeiras da educação brasileira. Segundo os
dados do Censo Escolar de 2018, 80% dos professores da Educação
Básica são mulheres. Elas são a base da Educação dita Básica. O corpo
docente da EMEIF Prof.ª Maria Amélia de Castro Burali sempre foi
praticamente composto por mulheres, com apenas poucos homens
como professores ao longo dos anos. Coincidência ou não, a palavra
escola pertence ao gênero feminino.
Ao apresentar meu projeto de pesquisa para os professores
no início do ano de 2019, cinco grandes mulheres se voluntariaram
como participantes da investigação. E como grandes mulheres,
também são grandes professoras. Cada uma com sua história de vida
distinta, que as transformaram em seres ainda mais admiráveis.
A Professora 1 tinha cinquenta e dois anos e lecionava na
EMEIF Maria Amélia há quatro anos. Atuava no ciclo de
alfabetização e, desde 2017, trabalhava com os 1º anos. Frequentou o
extinto curso de Magistério, concluindo seus estudos na área da
educação em 1988, com o curso superior em Pedagogia, pelo Instituto
Educacional de AssisIEDA.
11 Referência ao poema Quem disse que me mudei?, de Mario Quintana, publicado
na obra: QUINTANA, M. Quintana de bolso: rua dos cataventos & outros poemas. Porto
Alegre: L&PM, 2007.
12 Id., Ibid.
13 Referência ao poema Com licença poética, de Adélia Prado, publicado na obra:
PRADO, A. Bagagem. Rio de Janeiro, Record, 2003
55
Recentemente havia concluído uma Pós-graduação na área da
Gestão Escolar. Contudo, a professora garantia que seu grande
envolvimento pela educação se concretizava na ão desenvolvida em
sala de aula.
Professora 1
- Eu fiz Magistério, na sequência, pedagogia no IEDA,
e somente a três anos eu consegui fazer uma Pós-graduação no São
Braz. Fiz uma Pós- graduação em gestão escolar, mas não é a minha
praia. (ENTREVISTA, 24 de junho de 2019)
Ao utilizar a expressão não é a
m
inha
pr
aia, a Professora 1
deixou evidente
s
ua predileção pelo fato de lecionar, pois essa
sentença extremamente coloquial significa justamente a falta de
habilidade para determinado assunto. Ao ser coloquial, a Professora 1
também deixou transparecer que não se sentia incomodada pela
situação da entrevista. Quando questionada sobre seu tempo de
atuação em sala de aula, a Professora 1 respondeu:
Professora 1
- Eu atuo com elas desde [...] eu me formei em 88,
trabalhei até 90 com o projeto Educar, fui convidada pela prefeitura,
que é o antigo Obra. Me casei em noventa e tive que parar [de
lecionar] por quatro anos, e retornei em 95.
Pesquisadora
– E não parou mais [...]
Professora 1
- Não. Nem pretendo parar! (ENTREVISTA, 24 de
junho de 2019, grifo nosso)
Após o casamento, a Professora 1 parou de lecionar. Sua
carreira profissional foi posta ao lado para privilegiar unicamente o
início da construção de sua família. Para as mulheres da sua geração,
esse sempre foi o comportamento esperado. Quando complementou
sua resposta ao dizer que retornou às salas de aula em 1995, e que não
pretende parar mais de lecionar, fica subentendido que seu hiato
56
profissional ocorreu não por vontade própria, mas por uma pressão
de uma determinada convenção social que ditava regras para o
comportamento feminino.
A Professora 2 tinha cinquenta e quatro anos e atuava como
professora da EMEIF há 10 anos. Também se identificava com o ciclo
de alfabetização do Ensino Fundamental,
lecionando para um 2º ano
em 2019, ano em que conclui minha pesquisa de campo. Sobre sua
formação a Professora 2 respondeu:
Professora 2 -
Bom, meus estudos foram assim: até a 8ª série fiz
normal. Fiz o 1º colegial, mas tive que parar de estudar para ir
trabalhar [...] trabalhei em lanchonete a noite, trabalhei muitos
anos, então não tinha como estudar. Quando voltei, estudei, fiz o
supletivo do colegial e do colegial [...] logo após terminar o
supletivo eu já fiz a faculdade. Terminei a faculdade em 2005, fiz
no IEDA, Pedagogia [...] meu sonho era ser professora. Em tempo
de criança eu via as professoras dando aula e ficava me imaginando
dando aula também. Adorava, achava lindo, maravilhoso [...] daí
eu resolvi fazer a Pedagogia, fiz e fiquei um tempo sem trabalhar,
porque passei no concurso e fiquei esperando ser chamada [...]
enquanto eu fiquei desempregada arrumei um serviço na Casa da
Menina como monitora. Trabalhei 4 anos lá como monitora de
creche. Foi o tempo que correu para eu ser chamada no Concurso.
Quando estava para caducar o Concurso eu fui chamada, com a
graça de Deus! Então agora em fevereiro faz 10 anos que eu estou
aqui no Maria Amélia. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019,
grifo nosso)
A Professora 2 demonstrou toda dificuldade que teve para
conseguir sua formação. Em virtude da situação socioeconômica de
sua família, essa mulher foi forçada a não concluir seus estudos de
maneira tradicional. Ainda muito jovem, a Professora 2 foi lançada
ao mercado de trabalho para auxiliar economicamente sua família.
57
Somente quando adulta a entrevistada pode concluir seus estudos, por
meio do projeto de Educação de Jovens e Adultos, conseguindo
concluir o Ensino Médio e iniciando em sequência, sua formação na
Educação Superior.
Essa pressa em dar segmento entre o término do Ensino
Médio e o início dos estudos na Educação Superior aponta o grande
desejo da Professora 2 pela Educação. E esse interesse pelo campo
educacional se torna evidente quando a Professora diz que seu sonho
era ser professora.
Pesquisadora
Então você tinha vontade de virar professora!
Professora 2
Eu sinto que realizei meu sonho[...] é um serviço que
eu gosto, é um trabalho que eu gosto, eu amo dar aula. É um
trabalho que as vezes a gente fica nervosa, muito papel, essa [...] como
se diz [...] burocracia,[...] mas aí, você entra na sala para dar aula, e
uma criança vem, te fala uma coisa, te fala outra [...], sabe,
desmonta [...] aquilo tudo passa [...] dar aula mesmo é bom demais,
é maravilhoso [...] você vê que ele [o aluno] aprendeu[...] nossa, é
uma delícia! (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019, grifo nosso)
Para essa mulher, a educação sempre foi uma possibilidade de
libertação de sua realidade. Desde a infância, a Professora 2 se sentia
inspirada pela escola, por meio da figura do professor. E foi
justamente a possibilidade de retornar à escola que transformou sua
realidade social, pois a partir da conclusão de seus estudos a
Professora 2 se estabilizou no emprego como docente.
Ao trazer para sua resposta as situações de sala de aula sob sua
perspectiva, a Professora 2 seguiu evidenciando sua visão de educação
libertária. Quando responde que se sentia desmontada pelo
comportamento das crianças, seguido das expressões é bom demais, é
maravilhoso, além de citar que se sentia deliciada quando percebia que
58
o aluno evoluira, a Professora 2 demonstrou que a educação ainda a
resgata, agora num nível emocional, pois lecionar transformava sua
vida cotidiana, encantando os seus dias com as alegrias que encontrava
na escola.
A Professora 3 tinha quarenta e sete anos e atuava na EMEIF
há 10 anos. Concluiu sua segunda graduação em 2019 com o curso
de Psicologia pela Universidade Paulista UNIP. Sobre sua formação
na área da educação, a Professora 3 disse:
Professora 3
Eu comecei o magistério, fiquei grávida e tive que
parar com meus estudos, para cuidar da minha filha. Quando
retomei os estudos já não havia mais o curso de magistério. Então
cursei Pedagogia licenciatura plena lá na Unesp, me identifiquei
com a profissão [...] desde criança me identificava com o papel social
do professor. Porque pra mim, todos exercemos papéis sociais, e a
identidade do professor me encantava. No entanto estou tentando
me desfazer desse papel nesse momento, porque sinto que meu
chamado, minha subjetividade nesse momento está me levando para
clinicar na área da psicologia. Quero abrir uma clínica para atender
crianças e mulheres, com todos seus dilemas [...] (ENTREVISTA,
14 de novembro de 2019)
Assim como a primeira mulher entrevistada, a Professora 3
também teve sua carreira interrompida por um momento devido às
convenções sociais. Ao engravidar, a Professora foi obrigada a parar
de estudar, tentando retomar sua formação anos mais tarde, com a
filha já crescida. Percebe- se que o intervalo entre os estudos da
Professora 3 foi um pouco extenso, pois ao retornar para sua formação
já não havia mais o curso Magistério, tendo que concluir o Ensino
Médio regular para cursar a Educação Superior.
A Professora 3 também demonstrou que se identificou com a
profissão docente num primeiro momento, da mesma forma que a
59
segunda entrevistada. Contudo, diferentemente de sua colega, a
Professora 3 não sentia mais o encantamento pela educação, pois
relatou que seu interesse profissional, naquele momento, havia
pendido para a área da psicologia clínica, já que concluira sua
segunda graduação na área.
Professora 3
Estou em Assis desde 2006, quando passei no
concurso. Gosto de ser professora, mas na Educação Básica, o papel
do professor é muito desvalorizado. Somos supervisionados o tempo
todo, e não gosto de trabalhar assim. Quero mais liberdade, mais
autonomia. Por isso quero trabalhar como psicóloga clínica.
(ENTREVISTA, 14 de novembro de 2019)
Para a Professora 3, o docente da Educação Básica era
desvalorizado e a entrevistada justificou sua afirmação por meio da
falta de autonomia e liberdade que encontrava ao lecionar, por se
sentir sempre supervisionada pelos gestores.
Professora 3
Sou formada em psicologia, em pedagogia, tenho um
curso de gestão na área escolar, a nível de pós-graduação. Contudo
acredito que não seria uma boa gestora, pois sou muito sensível. Uma
escola tem muitas particularidades, as pessoas são muito diferentes,
muitas subjetividades, e no exercício de sua função, a gestão
pode desautorizar uma professora, tirar a autoridade dela e pra mim
ser professor é sagrado. E ser gestor é lidar com tudo isso, demitir,
contratar [...] eu não seria uma boa gestora porque não consigo lidar
com tudo isso. Eu não estou preparada para assumir a gestão de uma
escola nos moldes tradicionais. (ENTREVISTA, 14 de novembro de
2019)
Ao mencionar que não seria uma boa gestora por ser sensível
demasiadamente, a Professora caracteriza o cargo da gestão escolar
como uma área burocrática na qual a pessoa responsável deveria ter,
60
entre outras características, a falta de sensibilidade no trato com os
seres humanos. Ao mesmo tempo, com a expressão eu não estou
preparada para assumir a gestão de uma escola nos moldes tradicionais”,
a entrevistada criticou os moldes da educação formal, por
compreender que esse exemplo de gestão escolar é resultante da escola
tradicional.
A Professora 4 tinha cinquenta anos e atuava há trinta anos
na Educação Básica. Possuía dois cargos, um como professora, tendo
uma jornada de 60 horas semanais. A entrevistada foi graduada em
Psicologia, no entanto, antes de sua formação no Ensino Superior, a
Professora 4 frequentou o curso Magistério, não o Ensino Médio
comum. E foi justamente essa formação que a permitiu ministrar
aulas às crianças.
Com a mudança na LDB em 2009, a qual designava a
formação superior na área da educação para professores da Educação
Infantil e também do Ensino Fundamental, a entrevistada retomou
os estudos com o curso de Pedagogia como complementação de
segunda habilitação para a docência.
Professora 4
- Psicologia foi na Unesp, Pedagogia foi na [...] esqueci
[...] numa faculdade do Paraná, mas esqueci o nome. Era de final
de semana só, foi só uma complementação pedagógica que eu fiz.
(ENTREVISTA, 25 de junho de 2019)
O fato da entrevistada não se recordar do nome da instituição
que cursou Pedagogia é bastante significativo, pois manifesta que a
relação da professora com essa segunda formação foi apenas
burocrática, unicamente para estar de acordo com a nova legislação e
manter seu vínculo empregatício.
A Professora 5 tinha quarenta e dois anos e atuava há quinze
anos na Educação Básica em Assis, tanto na Educação Infantil, quanto
61
nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Assim como a Professora
4, também possuía uma carga horária semanal de 60 horas. Sobre sua
formação educacional, a entrevistada respondeu:
Professora 5
- Eu comecei, digo [...] fiz Magistério, curso de [...]
como que se fala mesmo? Profissionalizante? O Magistério. Depois
fiz, ah [...] eu fiz Letras e por fim, Pedagogia. Mas a pedagogia foi a
distância, porque como eu tinha a licenciatura, então eu fiz em
dois anos, a distância lá em Bauru. O curso de Letras eu fiz aqui em
Assis mesmo na Unesp. (ENTREVISTA, 26de junho de 2019)
Assim como as demais colegas, salvo a Professora 2, a
Professora 5 também frequentou o curso Magistério durante o
Ensino Médio. A entrevistada também cursou Letras como primeira
graduação. Após essa primeira formação, a Professora 5 também se
formou em Pedagogia em um curso EAD, em Bauru.
Da mesma maneira que a Professora 4, a Professora 5 não se
recordava do nome da instituição que ofereceu o curso de Pedagogia,
demonstrando que sua segunda licenciatura também fora uma
solução burocrática. Mas a entrevistada evidenciava essa relação com
a formação em Pedagogia, pois citou em sua resposta, o fato de já
possuir uma licenciatura anterior.
As cinco participantes dessa investigação possuem histórias de
luta e de conquistas. Para as Professoras 4 e 5, a formação superior na
área específica da Pedagogia foi resultante da pressão vivida para a
adequação de seus títulos com a legislação vigente.
Para as Professoras 1 e 3, as convenções sociais atrapalharam
sua formação profissional, uma vez que foram obrigadas a parar de
trabalhar e/ou estudar devido ao casamento e à gravidez. A Professora
3 ainda encontrava dificuldades em relacionar-se hierarquicamente na
62
escola. para a Professora 2, fatores de ordem socioeconômicos
dificultaram seu acesso à educação formal desde muito cedo.
Em todos os casos, nenhuma dessas mulheres desistiu da
Educação. Sejam as barreiras sociais, econômicas ou legislativas, essas
professoras mantiveram-se firmes em seus sonhos de docência. E
continuam ainda hoje inaugurando linhagens e fundando reinos. Pois
ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável.14
14 Referência ao poema Com licença poética, de Adélia Prado, publicado na obra:
PRADO, A. Bagagem. Rio de Janeiro, Record, 2003
63
3.
Ler e Escrever?
uma análise sobre o Programa
Para Certeau (1994), as estratégias correspondem ao resultado
das relações de forças empreendidas por sujeitos detentores de algum
tipo de poder, que postulam um determinado lugar que serve de base
para conduzir suas relações externas. Sendo assim, no ambiente
escolar, as estratégias são entendidas como as ações implantadas por
superiores diante do sistema hierárquico educacional.
Sob a perspectiva da criança, a estratégia é a imposição do
professor para que determinada regra seja cumprida, ou para que
determinada atividade seja desenvolvida. Já sob a perspectiva do
professor, a estratégia é a política educacional estabelecida pelos seus
superiores, que deve conduzir seu trabalho pedagógico em sala de
aula.
Dessa forma, minha investigação considerou o Programa Ler e
Escrever a partir do ponto de vista dos professores, sob a premissa da
estratégia certeauniana, já que o Programa foi adotado pela Secretaria
Municipal de Educação de Assis em 2010, como um plano de política
educacional para o ensino da leitura e da escrita nos anos iniciais do
Ensino Fundamental.
O Ler e Escrever é uma sequência do Programa Letra e Vida,
que promoveu, durante o início dos anos 2000, a formação
continuada de professores da alfabetização que lecionavam nos
primeiros anos do Ensino Fundamental no estado de São Paulo. Além
64
da formação continuada, o Programa Ler e Escrever também era
composto pelo Material do Aluno e pelo Guia voltado ao Professor.
As orientações do Ler e Escrever estavam alinhadas com a
teoria construtivista, pautadas nos estudos de Emília Ferreiro e Ana
Teberosky, voltadas para o aprendizado da leitura e da escrita pela
criança.
Seus objetivos principais, segundo o documento apresentado
pelo site oficial (PROGRAMA LER E ESCREVER, 20--) eram:
- apoiar os professores regentes na complexa ação pedagógica de garantir
aprendizagem de leitura e escrita a todos os alunos, até o final da 2ª
série do Ciclo I / EF;
- criar condições institucionais adequadas para mudanças em sala de
aula, recuperando a dimensão pedagógica da gestão;
- comprometer as universidades com o ensino público;
- possibilitar a futuros profissionais da Educação (estudantes de cursos
de Pedagogia e Letras), experiências e conhecimentos necessários sobre
a natureza da função docente, no processo de alfabetização de alunos do
Ciclo I / EF.
Consequentemente, o Ler e Escrever apresentava propostas
que envolviam desde a formação continuada dos profissionais da
educação, à parceria com as universidades. Durante meus anos na
educação municipal em Assis, ouvi muitas críticas ao Programa que
partiam de professores e também de gestores. No entanto, o material
não me parecia de todo ruim. Aparentemente, eu acreditava que o
caminho estava um pouco mais suave com a inserção do Programa Ler
e Escrever no Ensino Fundamental. Principalmente, para a formação
de leitores de literatura. Logo, decidi investigar.
Parti em busca das fontes primárias oficiais, isto é, os
documentos publicados em plataformas legitimadas que poderiam
responder à pergunta inicial que permeava meus pensamentos: por
65
que o Ler e Escrever foi desenvolvido? Quais seriam as justificativas
para a implantação de um projeto político-educacional sobre leitura e
escrita dessa dimensão?
Encontrados esses documentos, outro problema surgiu em
minha investigação: a leitura dessas leis. Como compreender os
preâmbulos, os capítulos, os artigos? Porque os artigos das legislações
têm cabeças caput em latim? As cabeças dos artigos científicos estão
presentes em suas elaborações e em suas leituras, mas não fisicamente
no corpo do texto.
Para quê tantos parágrafos? E por que usar símbolos para
descrever esses parágrafos? Nem os decassílabos mais heroicos de
Camões são tão complexos quanto as estruturas das leis brasileiras.
Sendo assim, minha nova epopeia foi em busca de documentos
secundários, que me auxiliariam na compreensão de todo esse material
encontrado. Graças a Hernandes (2008), Bauer (2011), Carvalho
(2016), Trevelin (2016) e Silva (2016), pude compreender um pouco
melhor tudo aquilo que aquelas palavras burocráticas estavam
querendo me dizer. Dessa forma, apesar desse Gigante Adamastor15
atormentar minhas investigações científicas, pude contorná-lo para,
enfim, navegar em águas nem tão tempestuosas, ao menos para
mim.
15 Referência ao personagem da epopeia os Lusíadas (1572), de Luís Vaz de Camões, que, no
plano histórico da obra portuguesa, representaria a superação do trecho marítimo mais
custoso da viagem de Vasco da Gama à Índia. CAMÕES, L. V. Os Lusíadas. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2018.
66
Meu
Gigante Adamastor
Parâmetros legais
A leitura é umas das capacidades humanas mais prestigiadas
nos tempos atuais. Saber ler é imprescindível em nossa sociedade. Das
tarefas mais simples às mais complexas, a leitura está na base da
construção organizacional da nossa rotina diária.
Ler é fundamental em nossa sociedade porque tudo o que somos,
fazemos e compartilhamos passa necessariamente pela escrita. Ao
nascer, recebemos um nome e um registro escrito. Ao morrer,
não é diferente. Precisamos da escrita para atestar nossa morte.
Entre um ponto e outro que tece a linha da existência, somos
crianças e os brinquedos, como o vídeo-game, demandam que
saibamos ler. A televisão a que assistimos está repleta de palavras
escritas, mesmo naquelas situações em que o locutor leu o texto,
oralizando a escrita. As músicas que cantamos foram antes
escritas. Tiramos carteira de motorista e precisamos conhecer as
leis que estão escritas. Namoramos e trocamos as cartas pelos e-
mails e torpedos para falar de amor com suas palavras truncadas.
Casamos e temos filhos, assinamos contratos, seguimos
instruções e lemos o jornal de domingo. A vida é, a todo
momento, permeada pela escrita. (SOUZA; COSSON, 2011, p.
101)
Sendo assim, a leitura está imbricada em nosso cotidiano. E a
presença intensa dessas letras em nosso dia a dia coloca o sujeito não
leitor à margem da sociedade, transformando a ausência da leitura em
um grande problema de ordem social.
De todas as competências culturais, ler é, talvez, a mais valorizada
entre nós. Em nossa sociedade, a presença da leitura é sempre vista
de maneira positiva e sua ausência de maneira negativa.
Inúmeros são os programas e as ações destinadas a erradicar o
67
analfabetismo, com este verbo mesmo, pois não saber ler é uma
praga e o analfabeto uma espécie que ninguém lamenta a
extinção. (SOUZA; COSSON, 2011, p. 101)
Dessa forma, há muitos programas voltados para a tentativa
de diminuir os índices referentes à população não leitora. Em 2021,
ano em que essa pesquisa foi concluída, estava em vigor no Brasil, o
decreto 9.765, de 11 de abril de 2019, que instituía a Política
Nacional de Alfabetização, a qual propunha um resgate de práticas
“baseadas em evidências científicas” para a promoção da alfabetização
no país.
Art. 1º Fica instituída a Política Nacional de Alfabetização, por
meio da qual a União, em colaboração com os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, implementará programas e ações
voltados à promoção da alfabetização baseada em evidências
científicas, com a finalidade de melhorar a qualidade da
alfabetização no território nacional e de combater o
analfabetismo absoluto e o analfabetismo funcional, no âmbito
das diferentes etapas e modalidades da educação básica e da
educação não formal. (BRASIL, 2019)
Essas práticas estavam pautadas no conceito de alfabetização
como ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema
alfabético, a fim de que o alfabetizando se tornasse capaz de ler e
escrever palavras e textos com autonomia e compreensão (BRASIL,
2019).
Sendo assim, as práticas para a alfabetização que compunham
o documento reassumiam o posicionamento de leitura enquanto
decodificação apenas para a compreensão do escrito, postulando a
noção de consciência fonêmica e de instrução fônica sistemática como
as principais regentes para o ensino da leitura.
68
De acordo com o 3º artigo desse decreto de lei, a justificativa
para essa proposta estava pautada na adoção de
r
efe
r
enciai
s
de
política
s
públic
as
exit
osas
, nacionai
s
e e
s
t
r
angei
ras
, baseadas em
evidências científicas.” (BRASIL, 2019, grifo nosso)
O caderno oficial da Política Nacional de Alfabetização
apontava quatro parâmetros para designar uma evidência científica
válida: a análise da metodologia dos estudos, a análise da qualidade
dos dados, o respaldo da comunidade científica e o uso de metanálises
(BRASIL, 2019, p. 20).
Sob uma premissa pautada no experimentalismo, a concepção
de evidências científicas válidas apresentada no documento oficial da
PNL considerava apenas os estudos pautados em métodos
experimentais e empíricos relacionados à Educação como suportes
teóricos para autenticar a nova política de alfabetização. Os estudos
científicos sobre aquisição da língua escrita embasados sob uma
perspectiva filosófica e sociológica foram desconsiderados pelo
documento.
Sendo assim, como referencial teórico e científico, a Política
Nacional de Alfabetização adotou a Ciência Cognitiva da Leitura
para embasar suas novas práticas educacionais. Essa área de estudos é
uma ramificação da psicologia cognitiva, aliada à neurociência e à
neurolinguística, que propõe o estudo das reações físico-neurais
durante o aprendizado da leitura.
Segundo a Política Nacional de Alfabetizão (2019, p. 28),
ler seria identificar palavra
s
com precisão fluência e velocidade,
dentro e fora de textos, com o objetivo de compreender o que está
escrito”. Para tanto, seria necessário desenvolver diferentes
habilidades e capacidades relacionadas à compreensão da linguagem e
ao digo alfabético.
69
Dessa forma, a PNA compreendia a leitura como um ato
mecanizado de decodificação dos códigos linguísticos. E para que o
aluno aprendesse a ler seria necessário estímulos linguísticos que
provocassem reações em uma estrutura biológica neural. O grande
problema dessa compreensão sobre a leitura e sobre o seu ensino, além
de transformar o ato de ler como algo mecânico que ocorreria de
maneira uniforme em todos os indivíduos, é ignorar as variantes
sociais as quais os mais diversos textos escritos foram produzidos e nas
quais os indivíduos estão inseridos atualmente.
Contudo, as orientações para a alfabetização no Brasil
anteriores ao Decreto Nº 9.765 de 11/04/2019, estavam ancoradas
na psicogênese da língua escrita, de Emilia Ferreiro, que considera a
aquisição da língua escrita como um processo de construção de
significados por parte do aluno.
A pesquisa sobre a psicogênese da língua escrita chegou ao Brasil
em meados dos anos 80 e causou grande impacto,
revolucionando o ensino da língua nas séries iniciais e, ao mesmo
tempo, provocando uma revisão do tratamento dado ao ensino e
à aprendizagem em outras áreas do conhecimento. Essa
investigação evidencia a atividade construtiva do aluno sobre a
língua escrita, objeto de conhecimento reconhecidamente
escolar, mostrando a presença importante dos conhecimentos
específicos sobre a escrita que a criança já tem, os quais, embora
não coincidam com os dos adultos, m sentido para ela.
(BRASIL, 1997, p. 32, grifo nosso)
As orientações para a alfabetização apontadas nos Parâmetros
Curriculares Nacionais ou PCNs, de 1997, compreendiam a
alfabetização como um processo gradual, o qual partia dos
conhecimentos prévios do aluno com relação à escrita. Dessa forma,
a criança seria inserida no processo educacional como um dos
70
protagonistas no desenvolvimento do ensino e da aprendizagem da
língua escrita.
Sendo assim, a aquisição da língua escrita na escola brasileira,
a partir do final do século XX, com a criação dos PCNs de língua
portuguesa, partia do princípio do uso social dessa mesma língua,
apresentando aos alunos o contato com os mais diversos gêneros
textuais.
Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora
do convívio com textos verdadeiros, com leitores e escritores
verdadeiros e com situações de comunicação que os tornem
necessários. Fora da escola escrevem-se textos dirigidos a
interlocutores de fato. Todo texto pertence a um determinado
gênero, com uma forma própria, que se pode aprender. Quando
entram na escola, os textos que circulam socialmente cumprem
um papel modelizador, servindo como fonte de referência,
repertório textual, suporte da atividade intertextual. A
diversidade textual que existe fora da escola pode e deve estar a
serviço da expansão do conhecimento letrado do aluno.
(BRASIL, 1997, p. 28)
Por conseguinte, se fazia necessário um programa de
capacitação profissional para os professores atuantes nessa etapa da
educação escolar. Logo, a Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério da Educação MEC, no ano de 2001, promoveu um
curso de aperfeiçoamento para professores alfabetizadores, o PROFA
(Programa de Formação de Alfabetizadores). O objetivo desse
programa era desenvolver competências fundamentais para o
professor que ensinava a ler e a escrever, de acordo com as novas
propostas para o processo de alfabetização, estipuladas nos
documentos oficiais.
71
O PROFA contava com uma capacitação de 160 horas, sendo
75% desse tempo destinado a formação em grupo, e os 25% restantes
destinados ao trabalho pessoal. O curso partia das situações
encontradas em sala de aula, pela perspectiva dos professores,
disponíveis em materiais escritos e visuais, divididos em três módulos.
Quando adotado pelo estado de São Paulo, o PROFA foi
adaptado como o Programa Letra e Vida, com uma carga horária
diferenciada de 180 horas, as quais 75% ainda seriam dedicadas aos
estudos e as 25% restantes seriam dedicadas ao trabalho pedagógico,
da mesma forma prevista pelo PROFA.
Segundo Hernandes (2008), o público-alvo do Programa
Letra e Vida era o professor alfabetizador de e séries, sendo as
vagas remanescentes voltadas aos professores do Ciclo I do Ensino
fundamental, professores coordenadores, professores de projetos de
reforço escolar, professores de 5ª a 8ª séries, Assistentes Técnicos
Pedagógicos e Supervisores de Ensino que possuíssem interesse.
O curso era realizado por meio da formação continuada,
orientada por um professor coordenador de núcleo pedagógico
PCNP ao professor coordenador PC, que por sua vez, realizava
a formação aos professores alfabetizadores e aos demais participantes
do curso. Os encontros de formação duravam três horas semanais,
dedicadas aos estudos das propostas sobre o ensino da leitura e da
escrita, aos processos de aprendizagem, e também ao
compartilhamento de práticas pedagógicas aplicadas pelos docentes,
sugeridas pelo Programa.
Os temas abordados no curso Letra e Vida podem ser
classificados em duas áreas de conhecimento. A primeira diz
respeito ao ensino da Leitura, da Escrita e os processos de
aprendizagem, a segunda área de conhecimento contemplada
72
nos conteúdos estudados no curso está relacionada aos
conhecimentos didáticos. (HERNANDES, 2008, p.48)
De acordo com os Parâmetros Curriculares para o ensino da
língua portuguesa, o Programa Letra e Vida também estava ancorado
nos conceitos sobre aquisição da língua escrita de Emilia Ferreiro e de
Ana Teberosky. Para Hernandes (2008), o Programa ainda trazia a
relação entre alfabetização e letramento, considerando o letramento
enquanto o conhecimento sobre o uso da leitura e sua prática social,
como um recurso para a alfabetização.
Segundo Bauer (2011), o Programa Letra e Vida foi
importante para modificar o discurso dos professores. Entretanto,
esse novo discurso nem sempre estava alinhado com as reais práticas
pedagógicas desenvolvidas em sala de aula. Para a autora, diversos
fatores explicariam as dificuldades de implementação dos pressupostos
do Programa.
Algumas delas [as dificuldades] são macroestruturais, entendidas
aqui como características da política educacional mais ampla,
com suas tensões e contradições; outras mesoestruturais, ligadas
a problemas de estrutura e organização das escolas que interferem
no trabalho escolar. Finalmente, no nível microestrutural, estão
as dificuldades dos próprios professores compreender a teoria
disseminada no Programa e transpô-la para a sala de aula.
(BAUER, 2011, p. 206, grifo nosso)
Concomitante às dificuldades sistêmicas de implementação do
Programa Letra e Vida, os resultados do Sistema de Avaliação do
Rendimento Escolar do Estado de São Paulo SARESP de 2005
apontaram um baixo rendimento dos alunos do Ciclo I com relação
à leitura e à escrita. Em decorrência desses resultados, a Secretaria do
73
Estado da Educação de São Paulo SEE/SP instituiu o Programa Ler
e Escrever para as escolas estaduais de Ciclo I do Ensino Fundamental,
na região metropolitana da cidade de São Paulo.
A Secretária de Estado da Educação, considerando:
- a urgência em solucionar as dificuldades apresentadas pelos
alunos de Ciclo I com relação às competências de ler e escrever,
expressas nos resultados do SARESP 2005;
- a necessidade de promover a recuperação da aprendizagem de
leitura e escrita dos alunos de todas as séries do Ciclo I;
- a imprescindibilidade de se investir na efetiva melhoria da
qualidade de ensino nos anos iniciais da escolaridade, resolve:
Art. 1º Fica instituído, a partir do ano de 2008, o Programa
Ler
e Escrever
, com o
s
seguintes objetivos:
I - alfabetizar, até 2010, a todos os alunos com idade de até
oito anos do Ensino Fundamental da Rede Estadual de Ensino;
II - recuperar a aprendizagem de leitura e escrita dos alunos de
todas as séries do Ciclo I do Ensino Fundamental. (SÃO
PAULO, 2007, p.23)
Sendo assim, o Programa Ler e Escrever surgiu como uma
proposta desdobrada do programa de formação docente Letra e Vida,
como alternativa político-educacional, com a intenção de diminuir a
defasagem educacional apontada pelos resultados das avaliações
externas. Para Carvalho (2016, p. 116-117),
A precariedade da alfabetização na rede de ensino, apoiada em
índices de avaliação externa, a ineficiência dos processos de
formação continuada, identificada pela ausência de impacto na
formação das crianças, o fracasso escolar observado a partir de
dados de pesquisa por amostragem, a oficialidade conferida às
condições que deveriam ser garantidas para a implementação de
práticas prescritas para o ensino de leitura e escrita, todos esses
elementos reunidos, sustentaram a implementação de determi-
74
nada política educacional que pretendeu legitimar um conjunto
de representações que ora apresentamos: a necessidade de um
tipo determinado de formação aos professores, a necessidade de
uma determinada gestão pedagógica da escola, a necessidade de
reversão de um quadro identificado de fracasso escolar, a
prescrição de determinadas práticas de ensino de leitura e escrita
referenciadas no construtivismo.
Com esses contornos e nessa perspectiva, o Programa Ler e
Escrever prioridade da escola municipal pode ser compreendido
como a síntese que traduziu um conjunto de representações de
práticas e concepções teórico- metodológicas numa determinada
política educacional.
Entre as
letras
e as
vidas
o
Programa Ler e Escrever
Segundo Chartier (1990) as publicações, as escolhas editoriais
e a materialização das obras são os fatores que determinam a forma de
leitura e de compreensão sobre o texto. Para o autor é impossível
desvincular o texto do suporte que o permite ser lido, por
conseguinte, não se pode desvincular o texto de seu processo de
escolhas editoriais e de publicação.
[...] é necessário recordar vigorosamente que não existe nenhum
texto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão de
um escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas
através das quais ele chega ao seu leitor. Daí a necessária
separação de dois tipos de dispositivos: os que decorrem do
e
s
tabelecimento do texto, da
s
e
s
tratégia
s
de e
s
crita, da
s
intençõe
s
do
autor
; e
os
dispositivos que resultam da passagem a livro
ou impresso, produzidos pela decisão editorial ou pelo trabalho
da oficina... (CHARTIER, 1990, p.126-127)
75
Apoiada em Chartier, Carvalho (2016) alega que a forma com
que os documentos oficiais relacionados ao projeto de política pública
para a educação em São Paulo foram apresentados, antes do Programa
Ler e Escrever, tanto em relação à ordem cronológica de publicação,
quanto à materialidade eleita para sua divulgação, foi realizada de
maneira estratégica para garantir que os profissionais da educação e as
escolas admitissem, efetivamente, a instauração desse projeto de
política pública educacional.
Indubitavelmente, prepararam os profissionais da rede de ensino
para a implementação de um programa de ações que previa a
prescrição de práticas de ensino de leitura e escrita [...] o
convencimento e persuasão dos profissionais envolvidos eram
estratégicos para que a política pública fosse assumida nas
escolas. (CARVALHO, 2016, p. 96)
Dessa forma, o Programa Ler e Escrever nasceu de maneira
legitimada, uma vez que o principal suporte eleito para a publicação
das exigências e dos anseios políticos-educacionais relacionados com o
Programa foi o Diário Oficial.
Desse modo, a escolha do Diário Oficial, para materializar os
argumentos e pretensões político-educacionais dessas gestões,
parece se justificar pela legitimidade oficial que este suporte
sempre conferiu a elas (CARVALHO, 2016, p. 99)
A legitimidade garantida pela veiculação, no Diário Oficial
dos documentos sobre essa nova perspectiva político-educacional,
aliada ao conjunto de ações que inicialmente dariam suporte para a
implementação do Programa, como o projeto Bolsa Alfabetização
(uma parceria entre as escolas municipais de São Paulo e as
76
universidades, que direcionariam estudantes de Pedagogia e de Letras
como professores auxiliares nas turmas que participassem do
Programa ) influenciaram a adesão massiva dos professores à nova
proposta educacional. Para Carvalho (2016, p. 101), as estratégias de
convencimento e persuasão, somadas à escolha específica de uma
determinada materialidade o Diário Oficial –, desencorajaram o
professor na escolha de outro caminho ou proposta de trabalho.
O Programa Ler e Escrever foi oficialmente instituído como
política educacional no ano de 2007. Inicialmente direcionado às
escolas estaduais de Ciclo I no Ensino Fundamental na grande São
Paulo, foi ampliado posteriormente para todas as Diretorias de
Ensino da Região Metropolitana da capital paulista, e, em 2009, foi
estendido também para o interior litoral do mesmo estado. Seu
objetivo inicial era alfabetizar todos os alunos com oito anos
completos até 2010, além de resgatar o ensino/aprendizagem da
leitura e da escrita no Ciclo I do Ensino Fundamental.
Ainda, em 2009, há a publicação do Decreto Nº 54.553 de
15 de julho de 2009, que institui o Programa de Interação Estado/
Munipio, autorizando a Secretaria da Educação a representar o
Estado de São Paulo na celebração de convênios com a Fundação para
o Desenvolvimento da Educação - FDE e municípios paulistas, tendo
por objeto a implementação do aludido programa. (SÃO PAULO,
2009, p. 01)
Dessa forma, o programa foi ampliado para todo o estado de
São Paulo, incluindo as cidades que ofertavam o Ciclo I do Ensino
Fundamental, por meio do processo de descentralização e
municipalização da educação da década de 1990, que redirecionou a
responsabilidade pela Educação Infantil e pelo Ciclo I do Ensino
Fundamental aos municípios.
77
As ações de caráter geral propostas pelo programa incluíam:
a.
Formação do Trio Gestor (Supervisores, Diretores, ATP);
b.
Formação do Professor Coordenador, responsável pelo Ciclo I;
c.
Acompanhamento pelos Dirigentes de Ensino;
d.
Formação do Professor Regente;
e.
Publicação e distribuição de materiais de apoio à sala de aula;
f.
Critérios diferenciados para regência das turmas que
participaram dos Projetos. (SÃO PAULO, 2007, p. 23)
O trio gestor era composto por Supervisores de Ensino,
Diretores de Escolas e Assistentes Técnicos Pedagógicos. Com
encontros mensais junto aos formadores do Programa, para aprimorar
os conhecimentos sobre os processos pedagógicos envolvidos na
alfabetização. Essa equipe tinha por responsabilidade acompanhar de
forma minuciosa os avanços da aprendizagem dos alunos e o Professor
Coordenador tinha o compromisso em atuar na formação dos
professores regentes no Ciclo I. Para tanto, houve a disponibilização
de uma formação contínua, promovida pela Coordenadoria de
Estudos e Normas Pedagógicas CENP, e pela Fundação do
Desenvolvimento da EducaçãoFDE.
A responsabilidade pela implantação e pelo desenvolvimento
do Programa nas escolas ficou a cargo dos Dirigentes de Ensino. Esse
acompanhamento teria a finalidade de verificar e analisar os avanços
e as dificuldades ocorridas no processo de implantação do Ler e
Escrever. Ao professor regente foi direcionada a formação continuada
na própria escola, em horário designado para o estudo em equipe, pela
atuação direta do Professor Coordenador. Dessa forma, particula-
ridades encontradas nos diferentes ambientes escolares poderiam ser
discutidas e solucionadas in loco, respeitando assim, a autonomia de
cada escola participante do Programa. Já os critérios diferenciados para
78
a regência das turmas participantes do projeto tinham a incumbência
de adequar o perfil profissional às características de cada etapa
apresentada pelo Programa Ler e Escrever.
Além da formação do professor regente para cada turma, o Ler
e Escrever também oferecia material específico referente à rie em
que seria trabalhado, composto pelo Guia de Planejamento e
Orientações Didáticas destinado aos professores, pelo Material do
Aluno, além do Livro de textos do aluno.
A cidade de Assis, em parceria com a SEE/SP, adota o Ler e
Escrever desde 2010, completando dessa forma, uma década de ensino
da leitura e da escrita por meio do Programa. Coincidentemente
também sou professora da rede pública municipal há uma década.
Minha investigação partiu do pressuposto de que grande parte dos
professores não aceitavam o Programa, mesmo este sendo
desenvolvido por tanto tempo no município. Assim, acompanhei as
aulas de cinco professoras voluntárias, por dois meses, com a intenção
de compreender o motivo desse relacionamento conturbado entre o
professor regente e o material disponibilizado pelo Ler e Escrever.
A edição do material utilizado pelas professoras e que fizeram
parte desta pesquisa durante minhas observações (em 2019) era de
2014 para os 1º, 2º e 3º anos, e de 2015 para os e anos. Por
consequência, essa investigação esteve pautada nas análises dos
materiais destas edições. Contudo, uma nova edição do material
disponibilizada pelo Programa Ler e Escrever, atualizada e de acordo
com o Currículo Paulistadocumento elaborado em parceria entre
as redes municipais, estadual e privadas do estado de São Paulo, de
acordo com a BNCC.
79
Ler...
a leitura para o
Programa Ler e Escrever
Para o Programa Ler e Escrever, a leitura é um processo de
atribuição de sentidos que parte do leitor em atividade leitora
constante com o texto. Dessa forma, o Programa indica que os leitores
ditos plenos são participantes competentes da cultura escrita, capazes
de compreender o uso da leitura em diferentes âmbitos sociais.
Ler é, acima de tudo, atribuir significado. Além disso, se
queremos formar leitores plenos, usuários competentes da leitura
e da escrita em diferentes esferas, participantes da cultura escrita,
não podemos considerar alfabetizados aqueles que sabem apenas
o suficiente para assinar o nome e tomar o ônibus. (SÃO
PAULO, 2014b, p. 20)
Por conseguinte, o Programa compreende a leitura e o ensino
da leitura por meio de três conceitos principais. O primeiro conceito
trata da questão dos usos sociais da leitura da língua e
s
crita.
P
ara o
G
uia de
P
lanejamento do ano, ler, mai
s
do que um proce
ss
o
individual, é uma prática social. Quer dizer, diferentes práticas de
leitura que se realizam nos mais variados espaços sociais, nos quais as
pessoas circulam. (SÃO PAULO, 2014a, p. 305)
Dessa forma, o Programa sugere que a escola disponibilize ao
aluno os mais variados exemplos da cultura escrita, tomando por base
a leitura que acontece fora da própria escola. Segundo o Guia para o
professor do ano,
Trata-se então de trazer para dentro da escola a escrita e a leitura
que acontecem fora dela. Trata-se de incorporar, na rotina, a
leitura feita com diferentes propósitos e a escrita produzida com
diferentes fins comunicativos para leitores reais. Enfim, trata- se
de propor que a versão de leitura e de escrita presente na escola
80
seja a mais próxima possível da versão social e que, assim, nossos
alunos sejam verdadeiros leitores e escritores. (SÃO PAULO,
2014b, p.21)
O conceito de leitura enquanto atribuição de sentidos dotados
pelo leitor, que não deve ser dissociado de seu contexto social está de
acordo com a leitura para Chartier. Para o autor francês há diferentes
práticas de leitura, que variam de acordo com o tempo histórico e com
os mais variados lugares onde a cultura escrita está inserida.
A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de
significados [...]. Apreendido pela leitura, o texto não tem de
modo algum ou ao menos totalmente o sentido que lhe
atribui seu autor, seu editor, seu publicador. Toda história da
leitura supõe, em seu princípio, esta liberdade do leitor que
desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Mas
essa liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por
limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que
caracterizam em suas diferenças as práticas de leitura. Os gestos
mudam segundo os tempos e os lugares, os objetos lidos e as
razões de ler. (CHARTIER, 1999, p. 77)
Um segundo conceito sobre a leitura que embasa o Programa
Ler e Escrever complementa o sentido de leitura enquanto atribuição
de significados contextualizada em sua prática social. Contudo, essa
prática leitora sempre deve estar vinculada aos recursos linguísticos
constituintes dos mais diversos textos escritos.
Desde que a produção teórica da linguística nos permitiu
compreender a linguagem como processo de interlocução, como
interação entre sujeitos, que se sabe que ler não é descobrir
sentidos colocados nos textos pelos seus produtores, mas
interpretar os possíveis sentidos dos textos lidos a partir do
81
conjunto de referências semânticas por eles constituídos. (SÃO
PAULO, 2014a, p. 303)
Barthes (2012) traz o conceito de afastamento do autor do
texto escrito, uma vez que a leitura se realiza com o processo de
compreensão e de atribuição de significados ao texto pelo leitor. Dessa
forma, a concepção atual da leitura não está mais no que o autor disse,
mas sim no que o leitor compreende. Para Barthes, esse afastamento do
produtor da obra ocorre justamente porque a matéria prima de sua
produção é a língua escrita, responsável pela perda da identidade
autoral, justamente por ser a condutora da atividade leitora.
[...] já não pode acreditar, segundo a visão patética de seus
predecessores, que tem a mão demasiado lenta para o seu
pensamento ou para sua paixão e que, consequentemente,
fazendo da necessidade lei, deve acentuar esse atraso e
trabalhar indefinidamente a
s
ua forma; para ele, ao contrário, a
mão, di
ss
ociada de qualquer voz, levada por um puro gesto de
inscrição (e não de expressão), traça um campo sem origem ou
que, pelo menos, outra origem não tem senão a própria
linguagem, isto é, aquilo mesmo que questiona continuamente
sua origem. (BARTHES, 2012, p.61 62)
Sendo assim, ler é um processo pelo qual o leitor constrói
vínculos significativos com o escrito por meio dos recursos linguísticos
pelo texto apresentados, estando social e historicamente contex-
tualizados.
Uma terceira concepção de leitura da língua escrita
apresentada pelo Programa Ler e Escrever outorga para essa leitura a
responsabilidade de construir sentidos sobre o mundo. Para tanto, é
necessário reconhecer a importância da língua escrita como recurso
82
de representação das mais variadas visões e conceitos sobre a
sociedade.
Ler a palavra, nessa perspectiva, é construir sentidos sobre o
mundo, pela via do conhecimento dos sentidos que os outros
também dão a esse mundo. Por isso, ler a palavra é ler o mundo.
É esse o sentido mais profundo dessa expressão tão banalizada
nos círculos educacionais, utilizada, muitas vezes, para significar
a leitura de textos não verbais, o que, por vezes, provoca a perda
do objeto efetivo da leitura: a palavra, o verbo. (SÃO PAULO,
2014a, p. 308)
Dessa forma, o Programa Ler e Escrever traz a palavra como
fonte inesgotável de saberes, carregada dos mais diversos valores
ideológicos que dependem e estão atrelados aos mais diversos
contextos sociais. Para o Programa, o leitor capacitado é quem
consegue identificar esses valores contidos no texto, e, desse modo, se
posicionar de forma crítica, iniciando um processo de diálogo com o
escrito.
[...] lê melhor quem consegue identificar os valores e apreciações,
estéticas, éticas e afetivas veiculados nos textos, de maneira
crítica, de maneira a conversar com elas. Quanto mais se lê,
maior será o contato com opiniões diferentes, que dialogam entre
si. Nessa perspectiva, também lê melhor aquele que articula
apreciações diferentes a respeito do mundo, dos fatos e das
pessoas, pois é essa articulação, derivada da apreciação crítica,
que possibilita a constituição dos valores pessoais de maneira
mais consistente. (SÃO PAULO, 2014a, p. 309)
Para Volóshinov (2006) a palavra é uma arena em miniatura
onde há um embate entre os mais diversos valores ideológicos sociais,
que se encontram e se entrecruzam nesse mesmo signo linguístico.
83
Sendo assim, o ato de ler também é perceber as mais variadas cargas
ideológicas presentes nas palavras, para que o leitor consiga manter
um posicionamento crítico e dialógico diante do texto lido.
De acordo com os conceitos atuais sobre a leitura e a
linguagem, o Programa Ler e Escrever compreende a leitura e seu
ensino como um processo de atribuição de sentidos, contextualizado
histórica e socialmente, vinculado aos recursos enunciativos presentes
no texto e capaz de promover o pensamento crítico que estabelece um
diálogo entre o leitor e o texto lido. Desse modo, a leitura possibilita o
desenvolvimento da criança de forma integral, pois atua diretamente
na formação de seu pensamento diante do período histórico e da
sociedade em que está inserida.
Ler... o quê?
A literatura para o
Programa Ler e Escrever
O Programa Ler e Escrever garante um lugar de destaque à
literatura no processo de aquisição da língua escrita. Segundo o Guia
de Planejamento e Orientações Didáticas do Professor Alfabetizador
– 1º ano,
O contato com textos literários, especialmente aqueles voltados à
cultura da infância, é uma excelente maneira de aproximar as
crianças do universo da escrita. Os contos tradicionais despertam
o fascínio das crianças e faz com que esse seja um canal
privilegiado para garantir uma aproximação favorável entre os
pequenos e o mundo dos livros. (SÃO PAULO, 2014a, p. 40)
Desse modo, as crianças inseridas no universo da cultura
escrita, por meio do contato com os textos literários, constroem uma
relação mais próspera e intensa com a língua utilizada na forma escrita
dos mais diversos gêneros textuais.
84
Para o Programa, essa ligação entre a criança e a literatura
ocorre principalmente porque a literatura permite que “as crianças
entrem em contato com um univer
s
o gico, em que as fronteiras
geográficas se dissipem e é possível penetrar mundos distantes,
personagens encantados, rechear a imaginação de seres maravilhosos
(SÃO PAULO, 2014a, p. 41). Segundo o Ler e Escrever, a literatura
promove o encantamento necessário para a vida do dia a dia.
Abrir as portas da imaginação, recheando-a de seres mágicos,
engraçados, aterrorizadores, encantadores, belos, malvados,
corajosos, ardilosos, ingênuos, bondosos, ampliar olhares para
grandes aventuras, ao mesmo tempo que se observam detalhes,
nos quais pode estar escondido o mistério, a literatura permite
que as crianças, assim como os adultos, incluam em seu cotidiano
o encantamento das histórias. (SÃO PAULO, 2014a, p. 42)
O texto literário visto como transporte para um universo
mágico, capaz de encantar o cotidiano está de acordo com uma das
funções da literatura segundo Candido (1999). Para o autor, uma das
atribuições primordiais da literatura seria a sua função psicológica, que
se baseia na necessidade de ficção constituinte de todos os seres
humanos.
Um certo tipo de função psicológica é talvez a primeira coisa que
nos ocorre quando pensamos no papel da literatura. A produção
e fruição desta se baseiam numa espécie de necessidade universal
de ficção e de fantasia, quede certo é coextensiva ao homem, pois
aparece invariavelmente em sua vida, como indivíduo e como
grupo, ao lado da satisfação das necessidades mais elementares. E
isto ocorre no primitivo e no civilizado, na criança e no adulto,
no instruído e no analfabeto. A literatura propriamente dita é
uma das modalidades que funcionam como resposta a essa
necessidade universal [...]. (CANDIDO, 1999, p. 82 83)
85
Sendo assim, uma vez que a literatura é responsável por
satisfazer a carência por fantasia existente no cotidiano do ser
humano, ela também se torna a responsável por criar vínculos com
seu objeto de materialização, a língua escrita. Desse modo, a criança
em processo de aquisição da escrita, exposta à literatura, tende a
construir uma identidade muito mais afetiva e efetiva com a cultura
escrita.
Ainda para Candido (1988), a literatura é capaz de organizar
o pensamento humano, por meio da forma estruturada do texto
literário que corresponde à maneira pela qual sua mensagem foi
construída.
Essa materialização do texto presume a escolha por
determinado acordo inicial de ideias. E essa formatação estabelecida
pelo texto literário propõe ao leitor a própria organização do
pensamento humano. Para Candido (1988, p.178), toda obra
literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo
especial das palavras e uma proposta de sentido.
A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo
articulado, este é o primeiro nível humanizador, ao contrário do
que geralmente se pensa. A organização da palavra comunica-se
ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a
organizar o mundo. (CANDIDO, 1988,p. 177).
O Programa Ler e Escrever também apresenta a literatura
como fonte de acesso para a construção e para a organização do
pensamento, por meio da linguagem utilizada. O Guia de
Planejamento (2014a, p. 42) aponta que
as crianças têm a
oportunidade de ace
ss
ar um novo modo de construir a linguagem,
que se diferencia daquele que se usa no cotidiano”.
86
Para tanto, além de conhecer o enredo narrativo que conduz
a história lida, as crianças têm a oportunidade de conhecer também
os recursos textuais utilizados para organizar a estrutura do texto e,
dessa forma, transformá-los em seus próprios recursos linguísticos
estruturais.
O Programa Ler e Escrever também compreende a literatura
como representações das mais diversificadas realidades existentes nos
amplos contextos sociais. Segundo o Guia de Planejamento (2014a,
p. 42) é pela literatura que “as crianças entram em contato com
realidades distintas que lhes permitem relativizar seu próprio modo
de vida, enriquecendo assim seus conhecimentos de outras épocas e
lugares.” O Programa ainda afirma que a literatura infantil em toda
sua multiplicidade garante à criança o contato com essas realidades
muitas vezes tão distintas da sua própria.
A rica literatura infantil, que a cada dia ganha novos autores,
ilustrações cheias de humor e desafios estéticos, projetos
editoriais inovadores, convive com os contos tradicionais, em
geral originados na tradição oral de diferentes povos, que trazem
a vida em realidades muito diferentes daquela vivida pela criança
que acompanha tais narrativas (SÃO PAULO, 2014a, p. 41)
Candido (1988) também define os textos literários como
expoentes, de forma intencional ou não, das representações dos
pontos de vista e das emoções de quem o elaborou conforme a
sociedade da época em que foram concebidos. Dessa forma, a
literatura permite o contato com outros modos de ver o mundo e
satisfaz a necessidade de conhecer os sentimentos alheios e a
sociedade, ajudando o leitor a se posicionar em face a essa amplitude
de sentimentos e sociedades externos a si próprio (CANDIDO, 1988,
p. 180).
87
Consequentemente, a literatura transmite o conhecimento
sobre as mais diversas produções do homem socialmente inserido. Os
textos literários são permeados por temáticas em que o seu eixo
articulador são as conquistas humanas aperfeiçoadas pelo tempo.
Cabe à literatura “tornar o mundo compreensível transformando a
sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas
intensamente humanas” (COSSON, 2006, p. 17). A literatura
provoca a redescoberta do mundo pelas crianças, ampliando seus
repertórios, fazendo com que os pequenos possam repensar,
ressignificar e reorganizar as suas próprias realidades. Ou nas palavras
de Petit (2010, p. 17),
Eu apresento a você os que o precederam e o mundo de onde
vem, mas apresento também outros universos, para que tenha a
liberdade, para que não seja muito subordinado aos seus
antepassados. Eu te dou as canções e as narrativas para que possa
escrever a sua própria história entre as linhas lidas. Para que você
possa, pouco a pouco, tirar de mim, pensar-se como um sujeito
distinto; depois, elaborar as múltiplas separações que deverá
enfrentar. Entrego a você os fragmentos de conhecimentos e as
ficções para que não tenha muito medo das sombras e que possa
fazê-las dançar.
Como ler literatura?
O ensino da literatura para o
Programa Ler e Escrever
Ao considerar os aspectos sociais da leitura e da língua escrita,
o Programa Ler e Escrever apresenta variados textos dos mais
diversificados contextos sociais, incluindo o conceito de letramento
como um dos segmentos do processo de aquisição da língua escrita.
Souza e Cosson (2011, p. 102) definem por letramento:
88
[...] os usos que fazemos da escrita em nossa sociedade. Dessa
forma, letramento significa bem mais do que o saber ler e
escrever. Ele responde também pelos conhecimentos que
veiculamos pela escrita, pelos modos como usamos a escrita para
nos comunicar e nos relacionar com as outras pessoas, pela
maneira como a escrita é usada para dizer e dar forma ao mundo,
tudo isso de maneira bem específica.
Para os autores há diversos letramentos, uma vez que a escrita
pode ser usada para diferentes finalidades. Sendo assim, o letramento
também pode ser literário, uma vez que a literatura também é uma
forma de uso social da língua escrita.
O letramento literário faz parte dessa expansão do uso do termo
letramento, isto é, integra o plural dos letramentos, sendo um
dos usos sociais da escrita. Todavia, ao contrário dos outros
letramentos e do emprego mais largo da palavra para designar a
construção de sentido em uma determinada área de atividade ou
conhecimento, o letramento literário tem uma relação
diferenciada com a escrita e, por consequência, é um tipo de
letramento singular. (SOUZA; COSSON, 2011, p. 102)
O letramento literário favorece a criança no processo de
inserção no universo da cultura escrita, já que a própria literatura
possui uma relação única com a palavra escrita. Segundo Souza e
Cosson (2011, p. 102),
[...] o letramento feito com textos literários proporciona um
modo privilegiado de inserção no mundo da escrita, posto que
conduz ao domínio da palavra a partir dela mesma. Finalmente,
o letramento literário precisa da escola para se concretizar, isto é,
ele demanda um processo educativo específico que a mera prática
de leitura de textos literários não consegue sozinha efetivar.
89
Paulino e Cosson (2009) definem o letramento literário como
um processo de apropriação da literatura enquanto uma construção
literária e constante de sentidos e significados. Sendo assim, o
letramento literário busca ressignificar o mundo por meio dos textos
em que a língua se manifesta de modo singular.
Nessa definição, é importante compreender que o letramento
literário é bem mais do que uma habilidade pronta e acabada de
ler textos literários, pois requer uma atualização permanente do
leitor em relação ao universo literário. Também não é apenas um
saber que se adquire sobre a literatura ou os textos literários, mas
sim uma experiência de dar sentido ao mundo por meio de
palavras que falam de palavras, transcendendo os limites de
tempo e espaço. (SOUZA; COSSON, 2011, p. 103)
O Programa Ler e Escrever compreende a literatura como uma
importante agente no processo de aquisição da língua escrita,
justamente por apresentar o universo das palavras de forma capaz de
criar vínculos entre as crianças e a cultura letrada. Dessa forma, o
Programa traz o texto literário para o cotidiano escolar, apresentado
tanto pelo material do aluno, como em sugestões de leitura pelo
professor.
Os Guias de Planejamento e Orientações Didáticas do
Professor Alfabetizador do 1º e do 2º ano, bem como o Guia de
Planejamento e Orientações Didáticas do Professor do 3º ano
sugerem que o professor faça a leitura de textos literários aos alunos
todos os dias, por ao menos quatro vezes na semana.
Já os Guias de Planejamento e Orientações Didáticas do
Professor do 4º e do 5º ano sugerem que o professor intercale a leitura
90
dos textos literários com textos utilitários e jornalísticos, para que os
alunos tenham contato com outros gêneros textuais.
Em todos os casos, o Guia sugere a escolha por livros de
qualidade literária, atentando para o uso estético da linguagem, para
o enredo instigante que provoque o interesse das crianças, e para os
recursos estilísticos que envolvem a construção do texto. Também há
a sugestão para o professor optar por leituras de textos literários que
necessitem a mediação, de acordo com a idade e a maturidade de cada
turma. Há ainda a recomendação para que os professores não
escolham livros com conteúdos moralizantes em detrimento da
qualidade estética da obra.
A Coletânea de Atividades do aluno do 1º ano traz poesias,
parlendas, canções e cantigas tradicionais. A coletânea de Atividades
do aluno do 2º ano também conta com poesias e canções, com o
diferencial de atividade permanente com parlendas e a sugestão para
projeto didático com cantigas populares.
A Coletânea de Atividades do aluno do 3º ano também
apresenta poesias e canções, com a inclusão das atividades de
sequência didática e o projeto didático “Quem reescreve um conto
aprende um tanto!”, a partir de contos fantásticos. A Coletânea de
Atividades para o aluno do 4º ano apresenta como atividade
permanente a leitura compartilhada de crônicas, além dos gêneros
literários já trabalhados como poesias e contos. Também conta com
o projeto didático “Confabulando com fábulas”, que propõe análises
dos recursos literários por meio das fábulas.
A Coletânea de Atividades do aluno do 5º ano também
trabalha a partir de poesias e crônicas como textos para as sequências
didáticas. Traz ainda o projeto didático “Contos de mistério”, para o
estudo das estruturas da narrativa, como objetivo da escrita de um
conto a partir dos recursos narrativos apresentados.
91
Vale ressaltar que todos os textos literários são apresentados
de forma integral aos alunos pelo Programa Ler e Escrever, sem recortes
que direcionariam a leitura ou que sugestionem o uso do texto
literário apenas como pretexto para alguma atividade de origem
linguística. Contudo, apesar de apresentar textos de qualidade
literária completos, todas as versões das Coletâneas de Atividades dos
alunos estavam disponibilizadas por uma publicação sem recursos
visuais que estimulem o interesse das crianças pelos textos escritos.
A leitura, para Chartier (2014), é conduzida pela forma da
impressão e da publicação do texto. Para o autor, há poderes na
impressão capazes de modificar o modo como o texto é lido. Dessa
forma, a cada revolução do processo de escritura, do livro em rolo ao
códex, e atualmente, do livro publicado em papel ao livro digital, há
uma ruptura com a maneira de relacionar-se com a leitura.
Quando a nova forma de livro substitui o rolo, foi uma primeira
revolução que permitiu ações que antes eram totalmente
impossíveis, tais como folhear a obra, encontrar uma passagem
específica com facilidade, usar um índice ou escrever no decorrer
da leitura. O período que vai do século II ao século IV introduziu
a nova forma de livro herdada pela impressão, formando a base
para a sedimentação histórica no muito longo prazo que, até a
revolução digital, definiu tanto a ordem de discursos como a
ordem de livros. (CHARTIER, 2014, p. 122)
Segundo Chartier (2014) a leitura de textos em telas é
bastante diferente da leitura determinada pelas publicações em papel,
já que demonstra características de uma maneira de ler nova,
segmentada e descontínua. Em consequência desse fato, as atuais
gerações de leitores não se identificam com a leitura estipulada pelos
textos publicados em papel.
92
Esse desafio é particularmente marcante para as gerações mais
jovens de leitores, que (pelo menos em meios suficientemente
abastados e nos países mais desenvolvidos) penetram na cultura
escrita diante de uma tela de computador. No caso deles, uma
prática muito imediata e muito espontânea de leitura
acostumada à fragmentação de textos de todos os tipos colide
frontalmente com categorias forjadas no século XVIII para
definir obras com base em sua singularidade e sua totalidade.
(CHARTIER, 2014, p. 125-126)
A criança abarcada pelo Programa Ler e Escrever, mesmo
estando em processo de aquisição da língua escrita, pertence a essa
nova geração de leitores digitais. Independente das condições
socioeconômicas, esse aluno tem mais acesso à palavra escrita por
meio de uma tela, como o telefone móvel/celular dos pais, do que à
palavra escrita no papel, como os livros literários.
E, além de pertencer a uma geração que compreende a leitura
de uma maneira distinta da leitura ensinada nas escolas, o aluno que
utiliza a Coletânea de Atividades do Ler e Escrever ainda é muito
imaturo, já que sua idade média está entre os cinco e os dez anos.
Sendo assim, o estímulo visual, como ilustrações, imagens e cores,
ainda é o principal chamariz para manter sua atenção no objeto de
leitura.
Dessa forma, a opção gráfico-editorial da Coletânea de
Atividades do aluno do Programa Ler e Escrever, mesmo propondo a
leitura de textos literários completos, muitos deles pertencentes ao
campo da literatura infantil, não está de acordo com seu público-alvo,
pois não se apresenta de maneira interessante aos pequenos leitores
em formação. E sem esse estímulo visual inicial, o material se torna
bastante pesado se não conduzido de maneira encantadora pelo
professor.
93
Ou seja, O Programa Ler e Escrever, para garantir o sucesso em
sua proposta inicial, precisa da condução do professor. É a estratégia
dominante e imposta dependente das táticas dos consumidores
comuns. Ou, nas palavras do próprio Certeau (1994, p. 47), as
maneiras de fazer: vitórias do fraco sobre o mais forte (poderosos,
a doença, a violência das coisas ou de uma ordem, etc.), pequenos
sucessos, artes de dar golpes, astúcias de caçadores, mobilidades
da mão de obra, simulações polimorfas, achados que provocam
euforia, tanto poéticos quanto bélicos.
94
95
4.
Gosto de gente
análises das falas e dos modos de fazer
Essas maneiras de fazer do homem comum irrompem de
forma despretensiosa, conforme a ocasião permitir. Contudo, não são
em nada espontâneas. As táticas são manifestações da inteligência
humana, e portanto, estão ancoradas no conjunto de saberes que
constituem o pensamento do homem ordinário.
Para Certeau (1994, p. 47) “essas performances operacionais
dependem de saberes muito antigos”. Assim sendo, o estudo das
táticas também presume o estudo desses saberes.
Antes de adentrar no universo dos modos de fazer das
professoras participantes dessa pesquisa, precisei buscar compreender
de que forma essas mulheres percebiam o mundo da leitura e da
literatura ao seu redor. Sendo assim, para analisar suas ticas, era
necessário conhecer as representações que constituem seus
pensamentos.
Representações de mundo
estruturas para as práticas
Em outubro de 2005 estava prestes a me formar no curso de
Letras, e havia conseguido algumas aulas no processo de atribuição da
Diretoria de Ensino da minha cidade. Minha primeira aula como
professora foi justamente na escola em que me formei no Ensino
96
Médio, coincidentemente para a turma do meu irmão, que já não era
mais um bebê chorão, apesar da chatice que ele, como todo
adolescente com seus quinze anos, insistia em sancionar como modo
de vida.
Durante minha caminhada de anos como educadora,
experimentei diferentes realidades escolares. Trabalhei em escolas
públicas e privadas, em cidades pequenas e em outras cidades
menores ainda. Atuei na Educação Infantil, no Ensino
Fundamental, no Ensino Médio e até com o ensino de Jovens e
Adultos. Conheci muita gente. Com meus vinte e poucos anos,
iniciando meu ofício docente, imaginei que teria um mundo todo
pela frente. Mas nunca pensei que me depararia com um universo
gigantesco, com múltiplas possibilidades de ser e de existir, tecido
pelas mãos dos mais diversificados tipos de mulheres e homens,
cujo objetivo comum sempre foi o educar. O universo infinito da
Educação escolar no nosso país.
O que mais me encantou nesse início profissional na Educação
e que todavia segue me encantando são as pessoas que educam.
Enquanto estudante, sempre tive apreço pelos professores. Hoje
tenho total admiração. O professor é antes de tudo, um forte16. Para
realizar sua tarefa de educar, precisa desencadear todas as energias
adormecidas17. São pessoas que colocam suas forças e visões à
disposição da sociedade, com a finalidade de transformá-la em algo
melhor, por meio de suas práticas docentes.
Tais práticas, no entanto, nunca são idênticas. Cada professor
tem seu modo peculiar de fazer Educação. O mesmo conteúdo, por
exemplo, é trabalhado de diferentes formas por diferentes professores,
16 Trecho extraído da obra Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, de 1956. ROSA,
J. G. Grande sertão: veredas. São Paulo: Cia das letras, 2019.
17 Id., Ibid.
97
demonstrando que as práticas dos professores estão arraigadas em suas
representações de mundo.
As representações, para Chartier (1990) são esquemas mentais
incorporados que refletem determinada cultura e meio social os quais
impulsionaram sua produção, sendo capazes de ressignificar o
presente, de dar sentido ao espaço e de compreender as práticas do
outro.
Ao contar com a participação de cinco professoras neste
estudo nos deparamos com cinco olhares diferentes diante da cultura
e da sociedade, portanto, cinco práticas distintas de educar. O
objetivo desse capítulo foi tentar desvendar as representações diante
da leitura e da literatura dessas mulheres educadoras, para que suas
práticas fossem contextualizadas e compreendidas de forma mais
densa e significativa.
Sobre leitura...
O que é ler? Qual a imporncia da leitura? De que forma ela se
realiza? Esses são exemplos de perguntas que nortearam meu
pensamento durante a condução da primeira parte das entrevistas.
Dessa forma, procurei vasculhar as representações acerca da leitura
para as professoras participantes, uma vez que essas representações
fundamentavam suas práticas docentes sobre o ensinar a ler. Conhecê-
las, consequentemente, se torna essencial para compreender de
maneira mais profunda as práticas das professoras participantes desse
estudo.
Uma das primeiras perguntas que realizei durante o
andamento das entrevistas com as professoras participantes foi
relacionada aos seus interesses pessoais pela leitura. Ao serem
questionadas, as professoras participantes responderam:
98
Professora 1
- Sim, eu gosto muito de leitura, principalmente
livros novos. Aqueles livros que são voltados para o público infantil.
Porque, como eu gosto de alfabetizar, atuo há seis anos na
alfabetização, procuro estar sempre buscando inovações para os meus
pequenos. (ENTREVISTA, 24 de junho de2019)
Professora 2
Eu gosto de ler, assim [...] eu acho que antigamente
eu tinha mais tempo para leitura, hoje em dia meu tempo é bem
curto mesmo para a leitura. [...] mas livro mesmo normalmente eu
leio mais é o Ler e Escrever, o EMAI, é o que eu tô lendo. Os livros
didáticos, para a aula [...] os livros de leitura fruição que eu gosto
muito de ler antes, para saber a história, os livros da escola mesmo,
da biblioteca. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Professora 3
Gosto muito. Eu considero o livro como um
elemento de salvação, no sentido de que os livros me proporcionaram
uma possibilidade de libertação. Eu tive uma infância muito difícil,
muito humilde e foi através dos livros que descobri outros mundos,
outras formas de ser e de estar [...], poque o livro era a única forma
de me esconder daquele mundo, daquela tristeza, que a gente
começava trabalhar com 07 anos [...] na escola eu leio muito para
meus alunos, porque quero que eles tenham as mesmas
oportunidades que tive por meio dos livros. (ENTREVISTA, 14
de novembro de 2019)
Professora 4 -
Eu gosto [...] eu gosto de ler bastante. Mas eu gosto
de contos [...] livros assim, que falem sobre política [...] desse tipo de
texto que eu gosto. Eu gosto também de contos engraçados assim,
sabe? Tipo crônicas, eu adoro. Eu gosto de biografia também [...]
(ENTREVISTA, 25 de junho de 2019)
Professora 5
- Eu gosto de ler, mas, assim [...] não é toda leitura
que me atrai.
Pesquisadora
- Sobre o que você gosta de ler?
99
Professora 5
- Então, eu gosto bastante assim [...] de romance, de
mistérios. Eu acho que é o que a gente mais vê no dia-a-dia com as
crianças, então a gente acaba gostando e lendo com mais frequência,
porque o tempo também [...] pra leitura [...] eu não leio muito.
(ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Segundo Barbosa (2009, p.35) “uma leitura envolve
s
empre a
hi
s
toricidade do leitor.
O
sentido é construído também na prática da
leitura, nas condições presentes no ato de ler”. As práticas de leitura
de grande parte das professoras entrevistadas, no contexto escolar,
mediadas pelo Programa Ler e Escrever, orientam suas tendências de
leitura, inclusive fora da escola.
A Professora 1 relaciona seu gosto aos livros que são voltados
para o público infantil, já que por atuar com alfabetização está sempre
à procura desse material. A Professora 2 também relata que gosta de
ler os livros presentes na escola, que estão direcionados para a leitura
fruição. Sendo assim, as entrevistadas buscam suas leituras a partir dos
textos sugeridos à faixa etária das crianças com as quais trabalham.
As Professoras 4 e 5, ao citarem, respectivamente as crônicas
e os mistérios como parte de suas preferências literárias, evidenciam a
influência do Programa Ler e Escrever na construção de suas
predileções leitoras. A versão do Ler e Escrever voltada para o uso no
ano propõe como Atividade Permanente a leitura compartilhada
de crônicas. Já a proposta de Projeto Didático do material para o
quinto ano do Ensino Fundamental é o trabalho com os contos de
mistério.
A Professora 5 ainda cita a falta de tempo para realizar suas
leituras. Por meio do trecho (...) porque o tempo também [...] pra
leitura [...] eu não leio muito, a entrevistada constata, concomitan-
temente à sua resposta, que não muito fora da escola.
100
Contudo, a leitura ocupa um lugar de destaque para a
Professora 3. Ao declarar o livro como um elemento de salvação, a
entrevistada traz para a discussão o caráter libertário que a leitura
proporciona ao seu leitor. Esse elemento de salvação pode ser
compreendido por duas perspectivas.
A primeira que compreende a leitura como fomento para
ascensão futura na esfera socioeconômica, já que a entrevistada alega
ter tido uma infância muito carente de recursos materiais, e sua
realidade atual é bastante diferente. E a segunda perspectiva, que
entende a leitura como um escape da realidade social, no exato
momento em que ela é desenvolvida.
Segundo Petit (2010, p. 32),
em tempos de crise tem-
s
e, mai
s
do que nunca, necessidade de bens culturais, e particularmente, de
suportes escritos, para conter o medo e transformar as apreensões ou
as tristezas em ideias. Dessa forma, a leitura é uma fonte de
transmissão cultural que permite o contato com realidades diversas,
possibilitando a transformação da própria realidade do leitor.
Eu apresento a vocês os que o precederam e o mundo de onde
vem, mas apresento também outros universos, para que tenha a
liberdade, que não seja muito subordinado aos seus antepassados.
Eu te dou as canções e as narrativas para que possa escrever a sua
própria história entre as linhas lidas. Para que você possa, pouco
a pouco, tirar de mim, pensar-se como um sujeito distinto; depois
elaborar as múltiplas separações que deverá enfrentar. Entrego a
você os fragmentos de conhecimentos e as ficções para que não
tenha muito medo das sombras e que possa fa-la dançar.
(PETIT, 2010, p 17)
Em seu depoimento, a entrevistada apresenta que não teve
boas experiências em sua infância, uma vez que declara ter começado
101
a trabalhar com sete anos. E o livro, consequentemente a leitura, era
sua única possibilidade de entrar em contato com sua infância que
não estava sendo vivenciada.
Dessa forma, a Professora 3 reconhece a importância da
leitura como um ingrediente capaz de mudar a realidade do leitor.
Justamente por esse motivo, a entrevistada diz ler muito na escola para
seus alunos, uma vez que deseja que as crianças tenham as mesmas
oportunidades que os livros lhe ofereceram.
Questionadas sobre leituras desvinculadas à escola, ou seja,
sobre leituras realizadas para sua realização leitora pessoal, a Professora
5 admitiu que não lê muitos livros fora da escola. A participante
reconheceu que não tem contato com a leitura literária nos momentos
em que poderia escolher seus textos, evidenciando que busca
informações em jornais e na internet. Esse fato destaca a importância
que a entrevistada atribui à prática de leitura utilitária, realizada
unicamente para adquirir novas informações, de forma prática e um
tanto objetiva:
Pesquisadora
Você consegue deixar uma horinha da semana para
ler alguma coisa pra você?
Professora 5
Não, ultimamente [...] livros mesmo, uma leitura
literária, não. O que eu leio bastante, onde eu busco informação é
mais em jornal. Eu acompanho os jornais, leio também, procuro, na
internet, ficar atualizada. Assim, ultimamente livro para deleite
não. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
A
expre
ss
ão liv
r
o
par
a deleite a
ss
ociada à expre
ss
ão leitura
literária utilizada
s
pela entrevistada, carregam uma noção de que há
um tipo de leitura que aconteceria apenas para a satisfação do leitor e
que estaria relacionada com a literatura. E essa leitura deleite, associada
102
à literatura, desconsideraria a função formativa e informativa do texto
literário, colocando-a apenas como fonte de prazer.
Para Candido (1999, p. 86), uma das características da
literatura é sua função como “representação de uma dada realidade
social e humana, que faculta maior inteligibilidade com relação a esta
realidade”. Dessa forma a literatura é considerada como um
importante elemento para a formação humana também pelo seu
caráter informativo do universo social, por ser ela mesma, uma forma
de representação dessa sociedade.
Barthes (2012) apresenta que toda leitura pressupõe um
trabalho do corpo diante das estruturas do texto para a construção da
significação mais profunda que possa surgir do contato entre o leitor
e o escrito. Mesmo as leituras estabelecidas enquanto deleite
proporcionam ao seu leitor o momento do esforço, que
a leitura
s
eria o ge
s
to do corpo (certamente é com o corpo que se lê) que, com
um mesmo movimento, coloca e perverte a sua ordem” (BARTHES,
2012, p. 33). Essa perversão da leitura, para Barthes (2012) reside no
fato de que enquanto leitores, nós somos capazes de imprimir certa
postura ante o texto lido. Essa capacidade, no entanto, somente é
possível graças a uma ação regulada entre os elementos do próprio
texto.
Dessa forma, a leitura é prazerosa justamente por
proporcionar desafios ao leitor. Seja por meio do contato com
determinadas palavras desconhecidas, seja por meio do prazer
metonímico da história, da curiosidade despertada pelo que está por
vir, ou seja, pelo desejo de escrever conduzido pela atividade leitora,
a leitura e, consequentemente o prazer em ler, estão sempre atrelados
ao esforço do leitor.
O texto literário, por sua vez, segundo Pound (1976),
apresenta a linguagem carregada de sentido, no mais alto grau
103
possível. Sendo assim, uma das principais características desse texto é
a sua polissemia, já que esse uso desviante da linguagem pela literatura
provoca múltiplos significados que as palavras podem abarcar. E o
prazer da leitura do texto literário vem justamente da impossibilidade
desse ter um sentido único da palavra.
A representação de leitura literária para a Professora 5 es
associada ao prazer da distração que a literatura proporciona,
desconsiderando nesse momento, tanto o caráter formativo do texto
literário, bem como todo o trabalho interpretativo conduzido pelos
elementos discursivos presentes no texto
As Professoras 2 e 4 também assumiram que não são leitoras
fora do ambiente escolar, ao serem questionadas especificamente
sobre suas leituras pessoais.
Pesquisadora
Você tira algum momento do seu dia e diz “agora
eu vou ler pra mim, não vou ler mais pra escola”?
Professora 2
Eu lia em casa [...] agora eu não consigo, não dá
mais tempo. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Professora 4
[...] faz tempo que eu não ando fazendo isso, não.
Não tem dado muito tempo. Eu fazia muito antigamente, mas agora
não está dando muito tempo não. (ENTREVISTA, 25 de junho de
2019)
Com a
s
expressões agora eu não consigo, não mais tempo e
eu fazia
m
uito antigamente, mas agora não está dando muito tempo não,
as entrevistadas confessam que não costumam ter momentos de
leitura de textos não relacionados com a sua rotina escolar.
Ao ser questionada sobre o principal motivo por não realizar
sua leitura pessoal, a
Professora 2 res
ponde que atualmente e
s
m
eio
pe
r
dida ent
r
e a leit
ur
a e
ass
i
s
ti
r
alguma coisa, relatando que a leitura
104
não pertence ao seu universo particular, pois prefere filmes e séries
aos livros.
Pesquisadora
Por que não “dá mais tempo” para fazer suas
leituras?
Professora 2 –
Porque eu gosto muito de assistir filme, assistir série,
então eu fico meio perdida entre a leitura e assistir alguma coisa,
sabe [...](ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Para Balogh (2002), vários fatores compõem o motivo pelo
qual muitas pessoas deixam de ser leitores para se tornarem
expectadores. A velocidade da contemporaneidade, aliada à vida do
homem atual, que possui suas relações cada vez mais mediadas pelas
máquinas, são subsídios que constituem a inclinação de determinadas
pessoas pelo produto cultural gerado pela televisão.
O livro, objeto privilegiado das estórias prévias, pode ser
adquirido e lido num ritmo determinado pelo leitor. Um filme
não dura no geral mais do que duas horas e hoje as fitas de vídeo
podem ser adquiridas com maior facilidade. A televisão, em
termos de recepção, es sempre conosco em nossos lares
[...](BALOGH, 2002, p. 17)
Atualmente o acesso aos bens culturais produzidos
exclusivamente para a televisão é ainda mais facilitado pela
popularização das plataformas de streaming, já que o alcance desses
produtos de entretenimento é ainda maior.
A Professora 2 relata a preferência por filmes a livros, já que
esse tipo de produção cultural promove o entretenimento que busca
nos momentos em que se encontra livre para realizar suas atividades
pessoais. Outros fatores estão relacionados a essa predileção como o
acesso aos filmes e produções televisivas amplamente disponibi-
105
lizados, além de ser economicamente mais viável que a aquisição dos
livros, objetos culturais de consumo com preços elevados para a
maioria da população brasileira.
A Professora 4 quando questionada sobre o principal motivo
pelo qual não conseguiria realizar suas leituras, associa essa
circunstância com a falta de tempo, uma vez que é responsável por
duas turmas na escola, uma no período da manhã e outra à tarde.
Professora 4
- Porque eu tenho dois períodos, né? Mas assim, fora o
[livro] da escola mesmo, é difícil estar lendo agora, apesar de eu
gostar muito. (ENTREVISTA, 25 de junho de 2019, grifo nosso)
A participante ainda pontua o fato de gostar de ler, na
tentativa de conquistar uma certa redeão individual uma vez que
não lê livros fora da escola. Essa espécie de redenção, segundo Barbosa
(2001, p. 20), é
entendida como uma receita mítica que,
se
aviada
(?),
s
eria capaz de redimir o indivíduo, a sociedade e a própria
nacionalidade”.
Ao enfatizar seu gosto pela leitura, a Professora 4 também
reconheceu a importância do ato de ler, principalmente a leitura
literária, fora do ambiente escolar. A representação da leitura para a
entrevistada é caracterizada aqui como um ato ilustre e significativo,
pois, ainda que não a realize em outros contextos, a participante
considera necessário justificar-se por meio da expressão [...] apesar de
eu gostar muito, manifestando seu apreço pela ação de ler.
Quando questionadas anteriormente sobre o gostar de ler,
tanto a Professora 4, quanto a Professora 5 responderam afirmativa-
mente, citando crônicas e mistérios, respectivamente, como
preferências literárias. Esses tipos textuais estão presentes nos
106
Programa Ler e Escrever direcionados ao e ao 5º anos do Ensino
Fundamental.
Esse fato demonstra a influência do Programa na formação
das experiências leitoras das próprias professoras e transforma o
Programa Ler e Escrever, praticamente, na única fonte de textos
literários das participantes, já que a leitura literária das entrevistadas
não existe fora do contexto escolar. Mesmo reconhecendo o seu valor,
as professoras não incluem a literatura em seu dia a dia pessoal.
Contudo, as Professora 1 e 3, quando questionadas especifica-
mente sobre leituras não relacionadas à escola, diferentemente das
demais participantes, confessaram serem ávidas leitoras:
Pesquisadora
- Você livros além dos obrigatórios para a escola,
para seus alunos? Tem aquele momento que você tira na semana e
fala: “agora eu vou ler pra mim”?
Professora 1
- Sim. Aos domingos, geralmente eu reservo no
mínimo umas duas horas pra fazer uma leitura sozinha.
Pesquisadora
Que bom! E o que você gosta de ler nesses domingos?
Professora 1
- Geralmente, livros novos mesmo, com textos
diversificados[...] não tem assim, um gênero textual específico.
(ENTREVISTA, 24 de junho de 2019)
Pesquisadora
Você lê livros além dos obrigatórios para a escola,
par suas aulas? Você consegue tirar um tempo para ler pra você”?
Professora 3
Sim eu encontro tempo para ler sim. Eu tô relendo
um livro agora, que fala sobre o desenvolvimento desde a concepção
até a morte, da Diane Papalia, muito bom, que li no curso de
psicologia e que comecei a ler de novo agora. Pela internet, no
computador, também comecei o livro do Eben Alexander, Uma
prova do u, que fala sobre questões relacionadas sobre avida após a
morte. No início do texto, eu achei muito chato porque ele[o autor]
tem um ego muito grande. Por isso eu me questiono se ele realmente
teve essa experiência de quase morte, ou se isso é um convencimento
pessoal, uma ilusão dele que ele quer passar para outras pessoas para
107
ser admirado [...] mesmo assim eu admiro a coragem dele, por ser
um neurocirurgião renomado e escrever sobre religião, espiritismo,
coisas do censo comum. Estou lendo porque gosto do assunto, mas
não tenho a obrigatoriedade de ler [...] então estou lendo porque
quero, porque gosto [...] queria começar também uma ficção, mas
ainda estou procurando, porque não me interessa muito.
(ENTREVISTA, 14 de novembro de 2019)
A Professora 3 relata ser leitora fora do ambiente escolar,
descrevendo suas atuais leituras extra escolares. A entrevistada cita
duas obras que compõem suas leituras atuais: uma produção científica
na área da psicologia, da professora Diane E. Papalia e um texto
biográfico do neurocirurgião Eben Alexander, o qual a entrevistada
aponta questionamentos que apenas um leitor poderia realizar.
Entretanto, sua preferência leitora não está relacionada aos textos
literários. Ao relatar suas leituras atuais e ao dizer que não se interessa
muito por ficções, a entrevistada se afasta do texto literário e se
aproxima do texto científico e informativo.
Isso porque encara a leitura como uma fonte que permite o
acesso a outra realidade socioeconômica, que a entrevistada relatou
anteriormente que, por meio dela, conquistou oportunidades de
ascensão dentro da esfera social. Sendo assim, a entrevistada
compreende a leitura sob uma perspectiva prática, com o objetivo de
transformar a realidade material que a cerca. E, consequentemente, a
leitura literária, para a professora, é considerada, a princípio, como um
elemento de distração e de fuga da realidade.
Dando seguimento à entrevista com a Professora 1, ficou
comprovado que a entrevistada tinha o hábito de ler literatura fora do
ambiente escolar, já que além de citar seu livro predileto, a
entrevistada soube sintetizar o enredo do livro que estava lendo
naquele momento:
108
Pesquisadora
- Já que você gosta de ler e você lê aos domingos, você
lembra o título do último livro que você leu?
Professora 1
Estou lendo o livro „Procura-se um marido”.
Pesquisadora
[risos] que título engraçado! Do que se trata?
Professora 1
É sobre uma mocinha que tem que arranjar um
marido para conseguir a herança do avô [...] mas eu ainda não
consegui chegar no final [...] depois eu te conto tudo!
Pesquisadora
Fiquei curiosa agora! Vou cobrar! [risos]. Você tem
um livro favorito?
Professora 1
- O meu livro favorito foi “O caçador de pipas”. Me
marcou muito. Fiquei muito emocionada com esse livro [...]
(ENTREVISTA, 24 de junho de 2019)
A leitura literária tem um grande valor para a Professora 1,
pois a entrevistada declara que reserva um tempo para ler livros não
relacionados à escola em sua rotina semanal. Para a entrevistada, suas
leituras ocorrem aos domingos. Sendo o domingo considerado como
o dia de descanso domiciliar das atividades relacionadas ao mundo
profissional; para a Professora 1, a atividade de leitura está
relacionada ao estar em casa, pois reserva o dia em que permanece em
seu lar para realizá-la. Dessa forma, a participante reconhece a leitura
como uma forma prazerosa de passar o tempo.
S
egundo
P
etit, (2010, p. 22), “os be
ns
culturai
s
, e
os
liv
ros
,
em e
s
pecial, têm a ver com a morada, com uma segunda pele, uma pele
da alma”. Para a autora, todos os seres humanos têm a necessidade de
abrigar-se em sua cultura. E a leitura é uma das formas mais intensas
de tra
ns
mi
ss
ão de
ss
a cultura humana.
P
ara
P
etit (2010, p. 22), “a
leit
ur
a é
m
eu paí
s
, quando eu lia, era como se eu estivesse em uma cabana
numa árvore. A leitura está próxima das artes das cabanas, esses
lugares da intimidade e da aventura. E é em si mesmo o que
construímos”.
109
A leitura enquanto constituinte e simultaneamente
constituída pela cultura tem a
s
erventia de refúgio contra a
s
adve
rs
idade
s
da vida cotidiana para o
s
er humano, pois, “em tempos
de crise tem-se, mais do que nunca, necessidade de bens culturais e,
particularmente, de suportes escritos, para conter o medo e
transformar as apreensões ou tristezas em ideias”. (PETIT, 2010, p.
32)
Sendo assim, ao dedicar o domingo para sua atividade leitora
não relacionada com suas obrigações profissionais, a Professora 1
também relaciona a leitura enquanto uma prática prazerosa de
transmissão cultural, capaz de proporcionar uma ligeira fuga da
realidade material para um universo ideal.
Sob outra perspectiva, segundo a tradição cristã ocidental, o
domingo igualmente é considerado como o dia consagrado, dedicado
à oração. Ao reservar os domingos para sua prática leitora, as
representações de leitura para a Professora 1 também podem ser
relacionadas com a concepção de Barthes (2012) sobre a leitura
desejante. Para o autor francês, uma das características da leitura
desejante é o fato de que, ao nos fecharmos separadamente do resto do
mundo para ler, nos aproximamos de uma esfera
quase mística, que
transformaria a própria leitura como “s
ubstituta da orão mental”
(BARTHES, 2012, p.37). Dessa forma, a representação de leitura
para a Professora 1 está atrelada ao imaginário e à fuga da realidade,
mediados pela sua relação pessoal com o livro.
Com relação ao suporte para a realização de suas leituras, as
Professoras 1, 3 e 5 responderam, categoricamente, que preferem o
papel:
Professora 1
- Eu prefiro os de papel. Porque vou manusear, é mais
fácil [...] (ENTREVISTA, 24 de junho de 2019)
110
Professora 3
[...] Gosto de livro impresso [...] eu gosto do cheiro
do livro. Quando eu estudava na Unesp, as pessoas ficavam
intrigadas comigo, porque eu entrava na biblioteca e ficava
cheirando os livros enquanto escolhia qual eu iria levar [...] eu tenho
uma relação visceral com livro. (ENTREVISTA, 14 de novembro
de
2019)
Professora 5
- Papel [...] porque, eu já tenho problema de visão e
parece que cansa muito mais rápido quando a gente está só lendo
pela tela, embaralha mais rápido as letras. E outra coisa, você
também perde tempo em ficar ampliando a tela e diminuindo [...]
então, eu prefiro o papel ali, físico, tocar mesmo, sabe?
(ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
A Professora 3 relata que tem uma relação visceral com o livro.
Para Barthes (2012) um certo erotismo na leitura, uma vez que seu
desejo está ligado à presença do objeto que a proporciona, no caso, o
livro. O autor francês destaca a necessidade do leitor em manter esse
contato com o livro, de modo que a leitura se realiza num estado
quase que clandestino, separado dos demais, afastando-se do mundo
para consolidar a relação entre o leitor e a leitura.
Ao citar o cheiro do livro, a entrevistada apresenta sua relação
com o objeto de forma que o desejo da leitura reassume essa posição
erotizada citada por Barthes (2012), já que os aromas são
estimuladores do olfato, um dos cinco sentidos humanos, provocando
diversas sensações no corpo humano.
Bembibre e Strlič (2017) também relacionam o hábito de
cheirar os livros como resgate dos odores vindos do passado. Para os
autores, esses odores são como uma herança cultural para os seres
humanos, tanto do ponto de vista histórico quanto psicológico. Dessa
forma, o hábito de cheirar livros está relacionado também com a
111
apropriação dessa herança histórica, que além de compor a cultura,
desperta as mais intensas reações emocionais.
Sendo assim, ao cheirar os livros, a Professora 3 também
relaciona à materialidade do objeto parte do processo de apropriação
cultural e emocional que a atividade leitora proporciona.
Já as Professoras 1 e 5 justificaram sua escolha pelo livro de
papel por meio da facilidade de manipulação do objeto. Para Chartier
(1999, p. 77),
A leitura é sempre apropriação, invenção e produção de
significados [...] Toda a história da leitura supõe, em seu
princípio, esta liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo
que o livro lhe pretende impor. Mas essa liberdade leitora não é
jamais absoluta. Ela é cercada por limitações derivadas das
capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas
diferenças, as práticas de leitura. Os gestos mudam segundo os
tempos e os lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Do rolo
antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico,
várias rupturas maiores dividem a história das maneiras de ler.
Elas colocam em jogo a relação entre corpo e o livro, os possíveis
usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua
compreensão.
Sendo assim, a forma como nos relacionamos com o objeto
escrito é determinante das nossas maneiras de ler. As Professoras 1 e
5 preferem o livro impresso no papel não somente pela facilidade de
manejo com o instrumento, mas também por estarem adaptadas a
esse tipo de leitura correspondente à maneira de ler do texto escrito
no papel, que tem por característica principal a fluidez sequencial da
prática leitora.
112
Contudo, segundo Chartier (1999), essas diferentes formas de
manuseio promovidas pelo texto escrito em papel e pelo texto escrito
na tela são responsáveis por uma revolução das maneiras de ler:
Existe propriamente um objeto que é a tela sobre a qual o texto
eletrônico é lido, mas este objeto não é mais manuseado
diretamente, imediatamente, pelo leitor. A inscrição do texto na
tela cria uma distribuição, uma organização, uma estruturação
do texto que não é de modo algum a mesma com a qual se
defrontava o leitor do livro em rolo da Antiguidade ou o leitor
medieval, moderno e contemporâneo do livro manuscrito ou
impresso, onde o texto é organizado a partir de suas estruturas
em cadernos, folhas e páginas. O fluxo sequencial do texto na
tela, a continuidade que lhe é dada, o fato de que suas fronteiras
não são mais tão radicalmente visíveis, como no livro que encerra,
no interior de sua encadernação ou de sua capa, o texto que ele
carrega, a possibilidade para o leitor de embaralhar, de
entrecruzar, de reunir textos que são inscrito na mesma memoria
eletrônica: todos esses traços indicam que a revolução do livro
eletrônico é uma revolução nas estruturas do suporte material
do escrito assim como nas maneiras de ler. (CHARTIER, 1999,
p. 12-13)
Essa nova maneira de ler estaria associada a uma leitura mais
segmentada, descontínua, mais “apropriada para textos como
enciclopédias” (CHARTIER, 2014, p.125).
Para as Professoras 2 e 4, a leitura por meio do suporte
tecnológico é mais adequada, justamente por proporcionar pesquisas
que essa nova maneira de ler é capaz de oportunizar aos leitores:
Professora 2
Eu gosto de ler, no celular eu adoro ler. Essas
mensagens, essas coisas que mandam, as informações [...] Google, eu
vivo procurando as coisas que tenho dúvidas no Google, adoro ler na
113
tela do celular [...] Eu acho que é mais prático, em qualquer lugar
que você tiver, não assim aqui naescola, mas no médico, esperando
alguma coisa, eu abro o celular e vou lendo [...] pra mim é mais
prático, eu acho. Agora o livro você tem que carregar o livro na
bolsa, pode esquecer, perder [...] (ENTREVISTA, 26 de junho de
2019)
Professora 4
- Eu não tenho dificuldade, nem no papel, nem na
internet, pra mim tanto faz. Eu gosto até mais de ler na tela, porque
você pode ampliar a letra, já busca o que não entendeu na internet,
já pesquisa [...] porque eu nunca fui muito de grifar o texto fazer
anotações, eu sou mais objetiva. Ficoumuito mais fácil agora no
celular. (ENTREVISTA, 25 de junho de 2019)
No entanto, Chartier (2014) alerta para as armadilhas que
esse novo modo de ler pode propiciar, dependendo do gênero textual,
uma vez que há tipos de texto cuja apropriação pressupõe uma leitura
contínua que o perceba como uma criação coerente e original.
Ler em uma tela é geralmente uma leitura descontínua, que usa
palavras- chave ou pistas temáticas para encontrar os fragmentos
desejados um artigo num periódico eletrônico, um trecho de
livro, uma informação num site da web - e isso é feito sem que o
operador necessariamente tenha qualquer conhecimento da
identidade daquele fragmento ou de sua inerente coerência
dentro da totalidade textual da qual ele é extraído. (CHARTIER,
2014, p. 124),
Dessa forma, a leitura realizada por meio do suporte
tecnológico pode trazer um problema para a compreensão de textos,
já que as ferramentas existentes nas plataformas tecnológicas facilitam
recortes textuais mesmo em obras que necessitem uma leitura integral
e contínua para sua apreensão.
114
Afinal, o que é leitura para as entrevistadas?
Em síntese, as representações de leitura para as professoras
participantes dessa investigação se aproximam em certos pontos e se
distanciam em outros. Todas as participantes reconhecem a
importância da leitura, principalmente pelo fato de que, por meio da
prática leitora, o repertório pessoal de conhecimento é ampliado.
Para as Professoras 2 e 4, a leitura é uma ação pragmática, com
objetivos prévios estabelecidos. Quando evidenciam sua preferência
pelo suporte tecnológico da leitura, as participantes revelam que suas
práticas leitoras são direcionadas para pesquisar algo não
compreendido, buscando investigar suas dúvidas surgidas a partir do
contato com o texto por meio das consultas à internet.
Ao afirmar [...] porque eu nunca fui muito de grifar o texto,
fazer anotações, eu
s
ou mais objetiva, a Professora 4 esclarece que sua
representação acerca da leitura está de acordo com a função utilitária
da prática leitora. Por isso suas predileções leitoras são textos
objetivos, como as biografias e os escritos que falem sobre política.
a
Professora 2, ao dizer
[...] eu vivo procurando
as
coi
s
a
s
que tenho vida
s
no Google, adoro ler na tela do celular, afirma a
praticidade do texto em tela justamente por possibilitar a pesquisa por
conteúdos desconhecidos. Para a entrevistada, a leitura está
relacionada com a aquisição desse conhecimento prático, mas não
com o prazer que a leitura proporciona, uma vez que em suas horas
livres, a Professora 2 prefere assistir à produções audiovisuais ao
contato com a leitura.
Para a Professora 5, existem duas representações de leitura: a
primeira é a leitura utilitária, pragmática e objetiva, com a intenção de
realização imediata do leitor por satisfazer
as
finalidade
s
previamente
115
e
s
tabelecida
s
, ou na
s
palavra
s
da própria entrevi
s
tada, para ficar
atualizada.
A Professora 5 também reconhece a leitura, principalmente
de textos literários, como fonte de prazer. No entanto, nesse primeiro
momento da entrevista, a professora não conseguiu associar essa leitura
como fonte de prazer ao esforço mental que todos os tipos de texto
exigem do seu leitor, nem com o caráter formativo do homem que a
literatura manifesta.
Para a Professora 3, a leitura tem um papel fundamental para
o resgate e para a ascensão social do ser humano. A entrevistada encara
a atividade de leitura como um processo de aquisição de novos
conhecimentos, capazes de transformar a realidade social do leitor.
Consequentemente, sua predileção leitora está relacionada com textos
informativos e científicos, mantendo um distanciamento dos textos
ficcionais e/ou literários.
a Professora 1 compreende a leitura como uma fonte de
inovões e de transmissão cultural que, ao mesmo tempo em que
exige um esforço mental, provoca uma sensação prazerosa no leitor.
Ao isolar-se para a realização de suas leituras, a participante
demonstra que ler é uma prática que exige concentração e trabalho,
que não pode ser efetivada de forma não individual. Entretanto,
também é uma prática que proporciona momentos agradáveis, já que
reserva seus dias de descanso para esse exercício. A leitura para a
Professora 1 é um grande e difícil passatempo.
Sobre literatura...
A literatura está presente no nosso dia a dia, contudo
identificá-la não é uma tarefa fácil. O que é literatura? - talvez essa seja
uma das perguntas mais difíceis de se responder, pois a literatura de
116
hoje nem sempre o foi, e ninguém tem garantias de que sempre
seguirá sendo. Literatura, para
Abreu (2006, p. 112) “
não é apena
s
uma que
s
tão de g
os
to: é uma que
s
o política”.
Em sequência na entrevista, procurei interrogar as professoras
participantes desse estudo acerca da literatura. Conhecer as
representações das entrevistadas sobre a literatura é fundamental para
a compreensão da forma com que elas praticam o seu ensino escolar.
Uma das maiores polêmicas em se tratando de literatura é a
representação acerca do termo boa leitura, uma vez que o juízo de
valor que está imposto aos textos literários depende também, além da
sua imanência, de questões político-sociais que conduzem o
julgamento sobre seu valor estético.
Sobre literatura, a primeira pergunta que realizei às
participantes foi a respeito do que seria uma boa leitura. Para as
Professoras 2 e 4, a boa leitura está relacionada com a história
i
ns
tigante, aquela que prende a atençã
o
do leitor:
Professora 2
Eu acho que é pegar um livro bom, que você goste,
que você ouviu falar [...] alguém as vezes indica um livro bom pra
gente ler, e pegar e ler até o final [...] Eu gosto de romance, de suspense
[...] livro do Sherlock Holmes, meu sobrinho está com um livro do
Sherlock Holmes lá da escola dele, eu já falei pra ele me emprestar
quando terminar de ler. Eu gosto dessas coisas, sabe. Eu não tenho
assim, uma preferência, sabe. Pra mim é uma história que dá
vontade de ler até o final. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Professora 4
[...] é aquilo que eu gosto, que me prende a atenção,
que eu quero ver logo o final [...] eu acho que isso é uma boa leitura.
(ENTREVISTA, 25 de junho de 2019)
Para Barthes (2012), um dos prazeres que a leitura provoca é
justamente o prazer metonímico da narração, ou seja, está ligado à
117
observação do desenrolar da história, do desvendar o que está oculto,
o que ainda não foi apresentado pela narrativa.
[...] o leitor é, por assim dizer, puxado para frente, ao longo do
livro por uma força que é sempre mais ou menos disfarçada da
ordem do suspense: o livro vai se abolindo pouco a pouco, e é
nesse desgaste impaciente, arrebatado que reside o gozo; trata-se
principalmente do prazer metonímico de toda a narração, sem
esquecer que o próprio saber ou a ideia podem ser contados,
submetidos a um movimento de suspense [...] (BARTHES,
2012, p.38-39)
As Professoras 2 e 4 identificam enquanto boa leitura os textos
cuja narrativa é surpreendente e instigante. Dessa forma, para as
entrevistadas, a representação de boa leitura está diretamente
relacionada à estrutura do texto, à forma com que determinada
produção textual foi elaborada, considerando os elementos presentes
na narrativa. A Professora 1, ao ser questionada sobre o que seria
uma boa leitura, respondeu:
Professora 1
- Sou apaixonada por poema. Pra mim, poema é
uma boa leitura.
Pesquisadora
Por quê?
Professora 1
Porque me emociona [...] (ENTREVISTA, 24
de junho de2019)
Para a Professora 1, uma boa leitura está relacionada com a
poesia porque a deixa consternada, emocionada. Em sua origem, a
poesia é lírica, ou seja, uma espécie de composição textual
sentimentalista para ser cantada com o acompanhamento de
instrumentos musicais. Assim sendo, entende-se por texto lírico
aquele que expressa sentimentos e pensamentos íntimos.
118
Os textos literários expõem, intencionalmente ou não, as
representações dos pontos de vista e das emoções de quem o elaborou
conforme a sociedade da época em que foram concebidos. De certa
forma, a literatura permite que leitor tenha contato com outros modos
de ver o mundo, fato que satisfaz a necessidade de conhecer o que o
outro pensa e o que o outro sente. E conhecer os sentimentos alheios
causa empatia por meio da percepção de vivências semelhantes. Para
Petit (2008, p. 07),
A leitura tem o poder de despertar em nós regiões que estavam
até então adormecidas. Tal como o belo príncipe do conto de
fadas, o autor inclina-se sobre nós, toca-nos de leve com suas
palavras e, de quando em quando, uma lembrança escondida se
manifesta, uma sensação ou um sentimento que não saberíamos
expressar revela-se com uma nitidez surpreendente.
No entanto, o emocionar-se através das palavras, para Petit
(2008) nem sempre é divertido, contudo, atua diretamente na nossa
construção. Sendo assim, a representação de boa leitura para a
Professora 1 implica na leitura que exerce uma função de formação
do imaginário por meio da sensibilidade provocada mediante o
contato com o texto. E essa sensibilização é parte fundamental da
constituição humana.
as Professoras 3 e 5, ao serem questionadas sobre a boa
leitura:
Professora 3
Uma boa leitura é aquela que você consegue unir
essa leitura a sua subjetividade, na sua questão de valores. Você
consegue entender o que o autor está falando, que você consegue ter
uma posição crítica daquilo que você está lendo ao mesmo tempo que
você aprecia aquilo que o autor trouxe pra você da maneira como ele
apresentou seu ponto de vista diante do mundo [...] Pra mim a
119
leitura é a que te envolve [...] a boa leitura é essa, não é pela
superficialidade [...] a gente tem que entrar fundo no livro. Quando
eu entro num livro, entro ali para morar [...] sou muito intensa.
(ENTREVISTA,14 de novembro de 2019)
Professora 5
- Então, uma boa leitura, a gente costuma associar
com um a literatura mesmo. Então assim, desses livros que já são
indicados pelos nossos professores desde a época do colégio, na
faculdade. Eu acredito que esses livros que vão ampliar a visão de
mundo pra gente, vão aumentar o repertório. Tem uma linguagem
mais diferenciada que vai ampliar o conhecimento. Eu acho que
isso seria uma boa leitura, que vai aumentar a bagagem pra você.
(ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
A Professora 3 apresenta a boa leitura como aquela que
envolve profundamente o leitor.
S
egundo a entrevi
s
tada, “quando
ela ent
r
a num livro, entra ali para mora
r”
.
A
lém de poética, essa
metáfora que associa o livro com uma morada indica a compreensão
escapista que a leitura proporciona diante da realidade social do leitor:
Os
be
ns
culturai
s
e o
s
livro
s
em e
s
pecial têm a ver com a morada,
com uma
segunda pele
, uma
pele da alma
, como diz uma
bibliotecária colombiana, Con
s
uelo
M
arín, que faz a leitura às
crianças que perderam a casa que as protegia. (PETIT, 2010, p.
22)
A Professora 3 compreende a boa leitura como um lugar de
refúgio, onde ela consegue habitar e dessa forma, transformar sua
realidade num lugar melhor. A entrevistada também associa a boa
leitura com sua subjetividade e, principalmente com os valores que
podem ser agregados ao seu espaço de interpretação pessoal sobre os
eventos externos. Ao reconhecer a fala do autor no texto, a
entrevistada permite se posicionar de forma crítica diante das diversas
120
visões de mundo apresentadas pelo texto. Para Candido (1999, p. 84),
a literatura
Serve para ilustrar em profundidade a função integradora e
transformadora da criação literária com relação aos seus pontos
de referência na realidade. Ao mesmo tempo, a evocação dessa
impregnação profunda mostra como as criações ficcionais e
poéticas podem atuar de modo subconsciente e inconsciente,
operando uma espécie de inculcamento que o percebemos.
Quero dizer que as camadas profundas da nossa personalidade
podem sofrer um bombardeio poderoso das obras que lemos e
que atuam de maneira que não podemos avaliar.
Dessa forma, o conceito de boa leitura para a Professora 3 está
alinhado com a proposta de transformação pessoal e de formação do
homem que Candido traz em sua obra.
a Professora 5 associa a boa leitura com a literatura que está
consagrada enquanto Literatura erudita. Ao citar os [...] livros que
são indicados pelos nossos profe
ssores
de
s
de a época do colégio, na
faculdade, fica evidente que a entrevistada valoriza o tipo de texto
indicado por outras pessoas, que considera especializadas no assunto.
Abreu (2006) reflete sobre essa diferenciação entre a boa
literatura e as demais literaturas, pois, para a autora, essa classificação
corresponde muito mais com a influência social de quem a determina,
do que com fatores puramente estéticos relacionados com o texto em
si.
O problema é que o parisiense, o professor, o crítico literário, o
homem maduro tem mais prestígio social [...] Por isso
conseguiram que seu modo de ler, sua apreciação estética, sua
forma de se emocionar, seus textos preferidos fossem vistos como
121
o único (ou correto) modo de ler e de sentir. (ABREU, 2006,
p.58)
Logo, para a Professora 5, a representação de boa leitura está
vinculada com a literatura de prestígio entre os acadêmicos e os
especialistas no assunto. No entanto, a entrevistada descreve a boa
leitura como os [...] livros que vão ampliar a visão de mundo pra gente,
vão aumentar o repertório. Tem uma linguagem mais diferenciada que
vai ampliar o conhecimento. Eu acho que isso seria uma boa leitura, que
vai aumentar a bagagem pra você. Para a Professora 5, a boa leitura está
associada à literatura que promove a emancipação do leitor,
compreendendo, dessa maneira, o motivo pelo qual determinados
livros são chamados de cânones.
Sua descrição está de acordo com Candido (1988, p. 176) que
compreende a literatura a partir de pelo menos três definições:
1.
ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e
significado;
2.
ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão
do mundo dos indivíduos e dos grupos;
3.
ela é uma forma de conhecimento como incorporação difusa e
inconsciente.
Candido (1988) apresenta a literatura como uma organização
estruturada e significativa por meio da linguagem, que expressa
emoções e manifesta visões diversas de mundo, que são incorporadas
pelo leitor como novas formas de conhecimento. Para a entrevistada,
uma das referências da literatura é sua linguagem diferenciada que,
por conseguinte, amplia o conhecimento de quem lê, aumentando
seu repertório prévio por meio das diferentes visões de mundo
apresentadas pelos textos literários.
122
Dessa forma, a Professora 5 associa a boa leitura à literatura e
sua justificativa se encontra de acordo com a teoria literária,
apresentada por especialistas no assunto. Essa compreensão de leitura
de qualidade pela participante reflete sua formação acadêmica, pois é
a única participante da pesquisa que além de graduada em Pedagogia,
também tem formação superior no curso de Letras. Para a Professora
5, a boa leitura está associada ao cânone literário, não pelo seu
prestígio social, mas pelo caráter emancipatório que o contato com
esses textos promove no leitor.
Ao rever a famosa conferência O que é um autor, de Michel
Foucault, Chartier (2014) categoriza a noção de autor enquanto sua
função, ou seja, sua relação metonímica diante da obra produzida, e,
consequentemente, o grau de notoriedade que o social atribui a essa
produção:
[...] essa
função autor” marcada pelo nome próprio é, de início,
uma função de classificação dos discursos que permite as
exclusões e as inclusões em um corpus, atribuível a uma
identidade única. Ela é, nesse sentido, fundadora da própria
noção de obra e caracteriza certo modo de existência em comum
de alguns discursos que são atribuídos a um único lugar de
expressão e por isso, ela própria é a responsável pela noção de
escrita. (CHARTIER, 2014, p.29)
Dessa forma, conhecer a predileção autoral das entrevistadas
significa deslocar-se para muito além de conhecer apenas o gosto
pessoal das participantes. A predileção autoral revela também a
importância que as professoras outorgam à produção literária.
Ao ser questionada sobre bons autores, a Professora 4
respondeu:
123
Professora 4
[...] eu gosto Rubem Alves, adoro ele. Gosto do
Verissimo, lá das crônicas, eu acho legal. Eu gosto das literaturas de
Machado de Assis, esses livros eu acho bons. [...] Gosto do Fernando
Pessoa, das poesias dele [...] (ENTREVISTA, 25 de junho de 2019)
P
ara a entrevi
s
tada,
os
bons autore
s
s
ão Rubem Alves,
Veríssim
o
, Machado de Assis e Fernando Pessoa. Citar os autores
consagrados pela crítica indica que a
Professora
4 tem conhecimento
sobre a notoriedade social acerca do cânone literário, que impõe
determinados autores como indiscutíveis.
Para Abreu (2006, p. 45), “a assinatura confere autoria à obra
e a inscreve em uma convenção a partir da qual os críticos e o público
especializado olham para ela”. Sendo assim, ao mencionar autores
aclamados da literatura de língua portuguesa, a entrevistada
demonstra que reconhece a opinião dos especialistas em literatura
como o único pensamento válido e possível, mesmo que esse
pensamento não esteja de acordo com suas próprias opiniões.
Para a Professora 3, os bons autores são:
Professora 3
O Eben Alexander, sobre espiritualidade. Tem o
Sidney Sheldon, a Agatha Christie [...]autores brasileiros, deixa eu
pensar [...] Clarice Lispector. Clarice Lispector é de arrepiar! Gosto
também da Ana Maria Machado, da Ruth Rocha [...]
(ENTREVISTA, 14 de novembro de 2019)
A entrevistada apresenta autores populares, consagrados pela
mídia como best sellers, como Sidney Sheldon e Agatha Christie, antes
de apresentar Clarice Lispector, autora consagrada pelo cânone
literário brasileiro. Dessa forma, a Professora 3 demonstra que não se
vale do juízo de valor imposto à literatura pela academia, assumindo
seu gosto pela ficção pouco reconhecida pelos especialistas, tanto
124
quanto seu gosto pela literatura emancipatória, não se importando
com a imagem social que sua declaração poderia lhe atribuir.
Os livros que lemos (ou não lemos) e as opiniões que
expressamos sobre eles (tendo lido ou não) compõem parte da
nossa imagem social. Uma pessoa que queira passar de si uma
imagem de erudição falará de livros de James Joyce, mas não de
obras de Paulo Coelho. Essa mesma pessoa, se tiver de externar
ideias sobre Paulo Coelho, dirá que o desaprova. Mesmo que não
tenha entendido nada de Ulisses ou tenha se emocionado lendo
O Alquimista. (ABREU, 2006, p. 19)
A entrevistada também reassume sua posição enquanto leitora
de textos não literários ao citar Eben Alexander, pois esse autor escreve
livros pertencentes ao gênero informativo. Ao mesmo tempo, ao
trazer autoras da literatura infantil para sua resposta, como Ana
Maria Machado e Ruth Rocha, a Professora 3 demonstra reconhecer
o cânone da literatura infanto juvenil brasileira. Dessa forma, fica
evidente que a entrevistada tem uma preocupação com a qualidade
estético-literária das obras que para seus alunos, sendo que essa
preocupação não é a principal condutora da busca por suas leituras
pessoais.
Quando questionada sobre bons autores, as Professoras 1 e 2
responderam:
Professora 1
- Eu gosto da Ana Maria Machado, da Ruth
Rocha, pra trabalhar bastante com os pequenos, são as mais
marcantes pra mim.
Pesquisadora
- E de adulto? Livro assim, pra você? Você sabe
algum?
Professora 1
- Olha, no momento [...] não me recordo.
(ENTREVISTA, 24 de junho de 2019)
125
Professora 2
Tem a Ana Maria Machado [...] tem um livro do
nosso autor (da cidade de Assis) Marcio Ribeiro que eu adoro. Eu
gosto de indicar autor para as crianças. Tem a Ana Terra, também
[...]
Pesquisadora
E livro para adultos? Você lembra de algum?
Professora 2
[...] não lembro não [...] (ENTREVISTA, 26 de
junho de 2019, grifo nosso)
Citar os autores específicos de literatura infantil Ana Maria
Macha
do
, Ruth Rocha, Marcio Ribeiro e Ana Terra demostra que as
entrevistadas valorizam a autoria em se tratando da leitura
direcionada a seus alunos, fato que as aproxima da Professora 3.
No referente às suas leituras pessoais, no entanto, as
entrevistadas dizem não ter lembranças sobre nomes de bons autores.
A Professora 2 não é leitora nos momentos em que não está na escola,
uma vez que prefere o conteúdo audiovisual disponibilizado pela
televisão e pelos serviços de streaming. Logo, o fato de não se lembrar
de expoentes da literatura para o público adulto está coerente com suas
respostas anteriores.
Contudo, ao dizer que não se recorda dos autores de literatura
destinada aos adultos, a resposta da Professora 1 se torna contraditória,
uma vez que a entrevistada se considera um sujeito leitor.
Dessa forma, a fala da Professora 1 revela que a participante
não atribui importância à influência que o nome de determinados
autores carrega. Para a entrevistada, assim como para a Professora 3,
suas leituras também ocorrem de forma desprendida dos juízos de
valores impostos pela crítica literária, elegendo obras para leitura
conforme seus gostos pessoais. Ambas as entrevistadas, as Professoras
1 e 3, são consumidoras de literatura de massa. No entanto, a
Professora 3 admite que também o cânone literário, ao mencionar
Clarice Lispector.
126
P
ara
Aranha e Batis
ta (2009, p. 122) a literatura de ma
ss
a é
um tipo de texto que “por
s
er um produto dirigido às massas, de
grande penetração, esta literatura sofre influência direta dos fatores
de mercado, tendo sido estimulada pelo incremento da capacidade de
reprodução e distribuição dos bens culturais”.
E, para Candido (1988), todas as obras literárias são
importantes para a formação do nosso pensamento. Tanto as obras
consagradas quanto as obras não consagradas pela crítica compõem
uma determinada “massa de significados” c
ons
tituinte
s
da
noss
a
c
ons
ciência.
Isso não quer dizer que só serve a obra perfeita. A obra de menor
qualidade também atua, e em geral um movimento literário é
constituído por textos de qualidade alta e textos de qualidade
modesta, formando no conjunto uma massa de significados que
influi em nosso conhecimento e nos nossos sentimentos.
(CANDIDO, 1988, p. 182)
Logo, para a Professora 1, a literatura é uma questão pessoal,
suas leituras são realizadas a partir da curiosidade em conhecer novas
obras. O juízo de valor imposto pela academia pouco influencia em
suas decisões literárias pessoais.
Para a professora 5, um bom autor é Graciliano Ramos. Apesar
de também mencionar um nome sancionado pela academia, a
entrevistada justifica sua resposta a partir de elementos encontrados
na produção do autor:
Professora 5
- Esse daqui mesmo [a professora estava segurando o
livro do PNLD literário no momento da entrevista], o Graciliano
Ramos. Eu li Vidas Secas, é um livro que não me esqueço, lembro
certinho da cachorrinha, a Baleia [...] eu gostava bastante, porque
retratava a realidade. Quando eu li aquilo era super jovem, eu lia
127
e imaginava: “está mostrando como é o Nordeste”. E como faz a
gente pensar e refletir sobre quantos problemas sociais a gente tem e,
ninguém faz nada. Então, eu acho que é por aí o caminho da leitura.
(ENTREVISTA, 26 de junho de 2019, grifo nosso)
Candido (1988) afirma que uma das características
humanizadoras da literatura é seu papel de denunciante crítica das
injustiças presentes na sociedade. Para o autor,
[...] o fato do romance de tonalidade social ter passado da
denúncia retórica, ou de mera descrição, a uma espécie de crítica
corrosiva que podia ser explícita, como em Jorge Amado, ou
implícita, como em Graciliano Ramos, mas que em todos eles foi
muito eficiente naquele período, contribuindo para incentivar os
sentimentos radicais que se generalizaram no país. Foi uma
verdadeira onda de desmascaramento social, [...] que
contribuíram para formar o batalhão de escritores empenhados
em expor e denunciar a miséria, a exploração econômica a
marginalização o que os torna como os outros, figurantes de uma
luta virtual pelos direitos humanos. (CANDIDO, 1988, p. 185)
A
o dizer [...] era super jovem, eu lia e imaginava:
e
stá mostrando
como é o Nordeste. E como faz a gente pensar e refletir sobre quantos
problemas sociais a gente tem e, ninguém faz nada, a entrevistada
demonstra que, além de realmente ter tido uma vivência leitora no
passado, entrando em contato com determinados autores renomados
pela crítica, aprecia sua obra pela construção estética que a envolve,
associando a qualidade da obra com o prestígio social que traz o nome
do autor.
Sendo assim, a Professora 5 reconhece o motivo pelo qual
determinados autores se transformam no cânone da literatura,
128
compreendendo desde as questões intrínsecas ao texto, como as
provocações que o texto literário promove durante o ato da leitura.
Talvez a pergunta mais difícil no decorrer da entrevista,
segundo minhas observações enquanto pesquisadora, tenha sido o
que é literatura pra você?”. Em todos os casos, essa questão foi seguida
por um interminável momento de silêncio, antes da resposta
verbalmente expressada, o que revelou muito mais do que o esperado.
A partir desse silêncio, pude compreender que a literatura nunca havia
sido realmente pensada pelas professoras. E que, naquele momento,
um lampejo de entendimento acerca do literário começou a brotar em
seus pensamentos.
Ao questionar as professoras diretamente sobre sua
compreensão do que é literatura, a Professora 2 respondeu:
Professora 2
[...] pra mim a literatura é a leitura. Só vem uma
coisa na minha cabeça: literatura é leitura. Entender o que você está
lendo, interpretar o que você está lendo [...] fazer uma boa leitura.
Pra mim a literatura engloba a parte da leitura, mas não sei se estou
errada [...] (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
A
palavra literatura vem do latim litte
r
i
s
que significa letras.
Logo, a partir de
s
ua origem etimológica, ela carrega um sentido
intimamente ligado à escrita e, portanto, à leitura.
O termo literatura também é usado atualmente, por extensão,
como referência a um conjunto de textos relativos a determinados
campos, como a literatura médica e literatura técnica, por exemplo.
Ao
relatar que [...] a literatura é a leitura, fica evidente que a
Profess
ora 2
compreende a palavra literatura por sua definição mais abrangente
que abarca a todas as produções escritas.
No entanto, mesmo estando coerente, essa visão para a
entrevistada está incompleta, pois, ao relacionar a literatura apenas
129
com a escritura, a professora desconsidera as diferentes finalidades e
os diversos usos sociais os quais direcionam a criação dos textos
escritos.
Dessa forma, a Professora 2 não compreende a literatura
enquanto um gênero textual imanente, com características específicas,
como o uso particular da linguagem polissêmica. E a prática da
leitura, descontextualizada socialmente, se transforma apenas em
decodificação de signos linguísticos.
Contudo, ao dizer [...] mas não sei se estou errada, a Professora
2 admite que ainda precisa de muito estudo e reflexão sobre o tema.
E admitir a possibilidade do equívoco é o primeiro passo para
construir novos saberes diante dos conceitos inadequados e enraizados
que compõem o pensamento humano.
Para a Professora 4, a literatura é:
Professora 4
[...] pra mim literatura é o que a gente trabalha em
sala de aula com os alunos, os textos literários que são os contos, os
textos [...] assim, tudo pra mim é literatura. Mas eu acho que existe
uma divisão pra isso. Dos livros paradidáticos, os contos e textos para
trabalhar com as crianças, os outros tipos de textos [...] eu acho que
tudo isso está encaixado na literatura. Posso estar enganada, mas
acho que tudo está encaixado na literatura até os textos [...] as
poesias, os outros tipos de textos, como as fábulas, as lendas, eu acho
que tudo está na literatura. Só que eu acho que tem as divisões nos
tipos de textos. Pra mim é isso. (ENTREVISTA, 25 de junho de
2019)
A representação de literatura para a entrevistada está próxima
do que Antonio Candido definia por literatura. Para Candido (1988),
a literatura era compreendida de uma forma mais ampla, englobando
textos poéticos, dramáticos e de fantasia, desde lendas folclóricas a
textos requintados linguisticamente. Ao dizer [...] as poesias, os outros
130
tipos de textos, como as fábulas, as lendas, eu acho que tudo está na
literatura, a Professora 4 caracteriza a literatura como a produção
escrita capaz de transmitir as mais variadas culturas dos mais
diversificados períodos históricos.
Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as
criações de toque poético, ficcional, ou dramático em todos os
níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde que
o chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas
e difíceis da produção escrita das grandes civilizações.
(CANDIDO, 1988, p. 174)
No entanto, ao incluir [...] os livros paradidáticos no campo
literário, a Professora 4 comete um equívoco. A principal
característica da literatura é a múltipla significação a partir do uso
especial da linguagem. Já os livros paradidáticos têm o objetivo de
aprofundar os conteúdos, complementando o material didático.
Sendo assim, a linguagem utilizada pelos textos paradidáticos não
pode ser considerada como literária, uma vez que a ambiguidade de
significação característica da literatura não compõe a obra
paradidática.
Para as Professora 1 e 3, a literatura é:
Professora 1
- [...] é despertar para um momento inesquecível. É
algo que você não conhece. É você pegar um livro, e a partir do
momento que você abre a primeira página, você ir sonhando, você ir
usando a sua imaginação, né? Pra saber qual é o final, qual é o
encerramento [...] pra mim a literatura seria um sonho. É sonhar, é
estar sonhando sempre. Estar viajando além do seu universo.
(ENTREVISTA, 24 de junho de 2019)
Professora 3
[...] o Ferreira Gullar fala que a vida precisa de arte,
porque a vida só não basta. [...] a literatura dá sentido para o ser e
131
para o estar [...] tudo o que você conhece do mundo, todos os
estímulos que você recebeu para ser quem você é vieram de um
conhecimento acumulado, e onde estão esses conhecimentos? Nos
livros, mais do que em qualquer outro lugar. Então literatura é vida.
(ENTREVISTA, 14 de novembro de 2019)
Com as expressões [...] pra mim a literatura seria um sonho. É
sonhar, é estar sonhando sempre, para a Professora 1, e com a expressão
[...] literatura é vida, as entrevistadas demonstram seu envolvimento
com a literatura. Sonhar e viver são dois verbos que remetem a ações
prazerosas no contexto do cotidiano. Viver não é sinônimo de
sobreviver, pois indica muito mais o apreciar a vida. E sonhar remete
ao imaginar, ao almejar e ao idealizar, atitudes tão estimadas para
trazer alegria ao cotidiano.
Ao comparar a literatura com um sonho, para a Professora 1,
e ao dizer que a literatura atribui sentido para o ser e para o estar, para
a Professora 3, as entrevistadas manifestam também a importância da
literatura para a constituição psicológica, pois o ato de sonhar é vital
para o desenvolvimento saudável da nossa consciência. E com o
consciente saudável, a vida social tem mais sentido. Para Candido
(1988, p. 175)
[...] podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das
civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio
psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio
social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de
humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua
humanidade, inclusive porque atua em grande parte no
subconsciente e no inconsciente.
A Professora 3 também reconhece a literatura como fonte de
transmissão cultural. Ao dizer [...] tudo o que você conhece do mundo,
132
todos os estímulos que você recebeu para ser quem você é vieram de um
conhecimento acumulado, e onde estão esses conhecimentos? Nos livros,
mais do que em qualquer outro lugar, a professora revela o papel dos
livros, e portanto, da leitura como origem para a expansão dos
conhecimentos adquiridos.
De forma um pouco mais poética, a Professora 1 também
revela esse caráter edificante da literatura. A metáfora [...] estar
viajando além do seu universo revela a literatura, como fonte de
transmissão cultural responsável por ampliar o repertório e o
conhecimento de mundo do leitor, já que ir para além do universo é
conhecer o desconhecido, é expandir as possibilidades no espaço
infinito.
Qual é o sentido desses gestos e, mais amplamente, qual é o
sentido da transmissão cultural? Parece-me que é isso: apresento
a você o mundo que os outros me passaram e de que me apropriei,
ou apresento a você o mundo que descobri, construí, amei.
Apresento a você o mundo que nos cerca e que você olha,
surpreendido, por exemplo, o céu para o qual levanta os olhos, e
me aponta um pássaro, uma estrela, um avião. (PETIT, 2010,
p.14)
Já a Professora 5 explica a literatura como textos escritos, por
meio do uso sofisticado da linguagem:
Professora 5
[...] então, é difícil a gente explicar isso, porque na
verdade a literatura, é [...] quando escritor pensa em que tipo de
linguagem vai usar, pensa em todos aqueles outros recursos literários
que a gente vê, sentido figurado, tudo aquilo que aparece nesses textos
mais complexos e mais difíceis. Então, pra mim, a literatura é esse
tipo de texto mesmo, que são bem elaborados que tem ou podem ter
a linguagem poética ou outro tipo de linguagem [...] Como eu vou
dizer? Que amplia mesmo o conhecimento da gente, abre portas, que
133
apresenta palavras desconhecidas, ou então dialetos, algumas coisas
que usavam antigamente [...] Então, eu acho que é isso, é como se
você tivesse ali um texto que informa desde o passado, o presente e o
futuro, uma coisa assim, bem abrangente mesmo. Agora, eu não sei
explicar direito. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Ao citar [...] a literatura é esse tipo de texto mesmo, queo bem
elaborados que tem ou podem ter a linguagem poética ou outro tipo de
linguagem, a entrevistada afirma que há uma diferença entre os textos
literários e os não literários, sendo essa diferença caracterizada pelo
uso especial da linguagem. Sua representação acerca dos textos
literários está de acordo com a definição de literatura para Lajolo
(2018, p.47):
Literatura pode ser entendida como resultado de um uso especial
de linguagem que, por meio de diferentes recursos, sugere o
arbitrário da significação, a fragilidade da aliança entre o ser e o
nome. No limite, ela encena a irredutibilidade e a
permeabilidade de cada ser, pois participa de uma das
propriedades da linguagem: a capacidade de simbolizar e de,
simbolizando, simultaneamente afirmar e negar a distância entre
o mundo dos símbolos e o dos seres simbolizados.
Para a entrevistada, a linguagem literária é o diferencial que
particulariza a obra literária dos demais textos. O excerto [...] que
tipo de linguagem vai usar, pensa em tod
os
aquele
s
outros recursos
literários que a gente vê, apresenta palavras desconhecidas, ou então
dialetos, algumas coisas que usavam antigamente, revela não somente a
importância que os recursos linguísticos do texto literário têm para a
professora, como também sua maneira de ler a literatura.
Para Barthes (2012), um dos prazeres que a leitura do texto
promove é o prazer de se encontrar com a língua. Segundo o autor
134
francês, essa leitura inebriada pela percepção das c
ons
truçõe
s
ling
s
tica
s
é c
ons
iderada como um “tipo de leitura poética”.
[...] o leitor tem, com o texto lido, uma relação fetichista: tira
prazer das palavras, de certas palavras, de certos arranjos de
palavras; no texto, delineiam-se plagas, isolados, em cuja
fascinação o sujeito-leitor se abisma, se perde: esse seria um tipo
de leitura metafórica ou poética; para provar esse prazer, haverá
necessidade de uma vasta cultura linguística? Não se tem certeza:
mesmo a criancinha, no momento do balbucio, conhece o
erotismo da palavra, prática oral e sonora oferecida à pulsão.
(BARTHES, 2012, p. 38)
Sendo assim, mesmo a única fonte atual de textos literários da
Professora 5 sendo o material disponível na escola, a participante
dirige à literatura uma maneira de ler diferenciada dos textos não
literários. Seu modo de ler destinado às obras literárias, está mais
próximo da leitura metafórica ou poética, uma vez que as construções
de linguagem do texto literário também são fontes de deleite para a
entrevistada.
A Professora 5 também cita a questão da atemporalidade dos
textos literários, uma vez que ao mencionar [...] eu acho que é isso, é
como se você tivesse ali um texto que informa desde o passado, o presente
e o futuro, uma coisa assim, bem abrangente mesmo, fica evidente que
para a entrevistada, um texto literário carrega traços de um
determinado passado em que foi produzido, e que pode ser
relacionado com o presente e com a projeção de um futuro.
A participante também menciona a atemporalidade do texto
literário. Para a professora, o texto literário [...] informa desde o
passado, o presente e o futuro [...], ou
s
eja, a literatura dedica-se a
assuntos pertinentes aos seres humanos no decorrer de diferentes dos
135
períodos históricos. Calvino (1993) se refere à temporalidade da
literatura, principalmente dos textos tidos como clássicos. Para o
autor, um texto clássico é aquele em que toda leitura será uma nova
leitura e não releitura, já que a passagem de tempo contextualiza tanto
a obra, quanto o leitor em outro período histórico. Sendo assim, os
clássicos seriam atemporais, tratando de informar desde o passado, o
presente e o futuro, como revela a Professora 5.
Por isso deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a
revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros
permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de
uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza também
mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente nono.
(CALVINO, 1993, p. 11-12)
Calvino (1993) considera essa particularidade acrônica uma
característica dos clássicos da literatura, que se relacionam com as
obras que os antecederam e com as múltiplas leituras que podem
provocar nos mais diferentes leitores:
Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo
consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de
si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que
atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos
costumes). (CALVINO, 1993, p. 11)
Para a Professora 5, a boa literatura não está relacionada
apenas com os textos produzidos a partir de uma certa preocupação
com a linguagem estética, mas, principalmente, se encontra
aproximada dos clássicos, ou seja, se aproxima daqueles textos que
compõem o cânone literário, pois compreende os fundamentos
136
emancipatórios que determinam os clássicos serem chamados de
clássicos. A Professora 5 entende o porquê ler os clássicos.18
Historicamente, o ensino da literatura infantil nas escolas
surge a partir do reconhecimento social da infância. Para Lajolo e
Zilberman (1988, p. 17), a criança “[...] passa a deter um novo papel
na sociedade, motivando o aparecimento de objetos industrializados
(o brinquedo) e culturais (o livro) ou novos ramos da ciência (a
psicologia infantil, a pedagogia ou a pediatria) de que ela é
destinatária”.
A identificação desse sujeito-criança enquanto um ser social
fez com que a sociedade desenvolvesse meios específicos para a
educação infantil. Aliada à escola, a literatura para crianças aparece
como uma ferramenta pedagogizante específica para o
desenvolvimento cognitivo e emocional dos pequenos indivíduos.
A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas
igualmente os meios de controle do desenvolvimento intelectual
da criança e a manipulação de suas emoções. Literatura infantil e
escola, inventada a primeira e reformada a segunda, são
convocadas para cumprir esta missão (ZILBERMAN, 1985, p.
13).
Nesse sentido, a relação entre escola e literatura infantil é
cultural e histórica, com raízes consolidadas no caráter pedagógico
que envolve a literatura voltada aos pequenos leitores. Questionar as
professoras participantes dessa investigação sobre o ensino escolar da
leitura literária foi fundamental para perceber suas representações
acerca da importância da literatura na vida cotidiana.
18 Por que ler os clássicos é uma obra de Ítalo Calvino, publicada no Brasil em 1993.
137
Quando questionadas sobre a relação literatura e escola, as
Professoras participantes responderam:
Professora 1
Acho que sim, porque a criança não vai aumentar o
repertório dela com os textos didático. A criança não vai parar. A
gente almeja que eles façam uma faculdade, que eles realmente
gostem daquilo, não simplesmente pra falar que fez, pra falar que
tem uma profissão. A leitura te abre grandes portas, realmente
asas pra você voar e utilizar muito sua imaginação.
(ENTREVISTA, 24 de junho de 2019)
Professora 2
Acho superimportante. Porque o leitor que consegue
entender tudo o que tá lendo, porque não é só ler, né, ler sem
compreender o que está lendo não adianta [...] ele vai ser um bom
cidadão, ele vai saber votar, ele vai saber ler a história do Brasil e
entender [...] vai saber o que está acontecendo no mundo, e isso é
muito importante. [...] eles têm que saber de tudo, saber o que
acontece. Então é importantíssimo a leitura e a formação de leitor,
pra mim é o principal. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Professora 4
- Eu acho importante. Porque como eu sempre falo
para as crianças, quando a gente lê, a gente tem, assim [...] mil
possibilidades, né? Uma pessoa que lê, vai ser uma pessoa que vai ter
mais oportunidades, porque ela vai saber interpretar melhor as
coisas, até interpretar a vida mesmo, né? Uma pessoa que não
aproveita, que não lê, não vai ter tantas oportunidades. Que nem,
por exemplo na hora de procurar um trabalho, na hora de se
expressar, de falar. Uma pessoa que lê tem mais [...] até mais
repertório pra poder conversar com as outras pessoas, pra poder fazer
qualquer tipo de coisa. Então, eu acho que a leitura é muito
importante, e eu sempre falo isso pra eles, né? Que a oportunidade
agora, de eles estarem criando um repertório mesmo, pra mais pra
frente eles poderem estar lendo mais, escrevendo melhor [...] então,
eu acho que a leitura vai muito de encontro com isso. Até tem criança
aqui que fala “nossa, quando a gente tá lendo, parece que a gente
vai pra outro mundo, né tia?” e a leitura é muito isso mesmo. É você
138
estar indo mesmo, estar revendo seus conceitos, olhando aquilo que a
gente vive no momento, e ir associando com aquilo que a gente já
viveu a algum tempo. Então, isso é muito importante, eu acho.
(ENTREVISTA, 25 de junho de 2019)
A literatura ensinada pela escola, para as entrevistadas,
complementaria o conteúdo formal na ampliação de repertório
pessoal do aluno. Para Colomer (2007, p. 73), por meio da literatura
infantil “[...] aprende-
se
a inter-relacionar a experiência vital com a
experncia cultural fixada pela palavra e domina-se progressivamente
um grande número das convenções que regem este tipo de texto.
Desse modo, a literatura é um objeto de transmissão cultural
fixada pela palavra que permite a construção de saberes mediados
pelas relações entre o conhecimento prévio e o conhecimento
apresentado pela ação da leitura. Sendo assim, a literatura é
fundamental para aumentar o repertóri
o
da criança.
Colomer (2007) ainda evidencia o caráter atual da literatura
para crianças sob a perspectiva social, uma vez que o texto voltado para
o público infantil reflete os valores das sociedades contemporâneas.
Isto significa que os textos destinados às crianças descrevem, em
grande medida, as sociedades ocidentais mais avançadas, as
que se qualificam de pós-industriais e democráticas, e refletem
seus novos valores e as formas educativas de transmiti-los.
(COLOMER, 2007, p. 77)
Mesmo trabalhando com uma turma de primeiro ano do
Ensino Fundamental, a
Professora 1 reconhece ess
e tro
s
ocial da
literatura infantil. Ao dizer [...] a gente almeja que eles façam uma
faculdade, que eles realmente gostem daquilo, não simplesmente pra falar
que fez, pra falar que tem uma profissão, a entrevistada relaciona a
139
leitura literária na infância com os valores culturais da nossa sociedade
destinados ao universo adulto, como cursar uma instituição de Ensino
Superior e trabalhar.
Contudo, ao dizer que apenas os textos didáticos não seriam
suficientes para a formação do indivíduo, a professora atenta para a
temática do material didático, que a cada dia apresenta mais textos
literários que textos informativos. Dessa forma, a Professora 1 não
compreende a distinção entre o texto não literário e o texto literário
vinculados no manual didático.
A Professora 2 também relaciona a importância do ensino da
literatura para a formação do indiduo. Com o excerto [...] ele vai
saber votar, ele vai saber ler a hi
s
tória do Brasil e entender [...] vai saber
o que está acontecendo no mundo, e isso é muito importante, a
entrevistada demonstra, assim como a Professora 1, que o ensino da
literatura na infância é significativo para que a criança possa se
desenvolver como um adulto participativo na sociedade.
A Professora 4 relaciona o aumento de repertório gerado pela
leitura de textos literários com maiores oportunidades. E como exemplo
disso a entrevi
s
tada traz para a discussão a questão da procura por
emprego, também refletindo os valores sociais contemporâneos,
destinados aos adultos.
Segundo Candido (1988, p. 175) a literatura é responsável
por expor tanto os princípios valorizados pela sociedade, quanto os
considerados adversos.
Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera
prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção,
da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega,
propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade
de vivermos dialeticamente os problemas.
140
Dessa forma, a produção literária é capaz de construir o
pensamento crítico no leitor, já que repre
s
enta a vida
s
ocial com toda
s
as
s
ua
s
incoerência
s
.
P
ara a Professora 4, [...] uma pessoa que lê, [...]
vai saber interpretar melhor as coisas, até interpretar a vida. Ao afirmar
que o leitor de obras literárias tem uma maior capacidade de
compreensão diante das vivências, a participante também delega para
a literatura uma certa função educadora informal, que prepara o leitor
não apenas para o mercado de trabalho, mas também para a vida.
Contudo, em sua resposta, a Professora 4 também menciona
o desenvolvimento da escrita por meio da leitura. Barthes (2012,
p.39) aponta que um dos prazeres que a leitura promove é justamente
o desejo de escrever.
[…] a leitura é condutora do Desejo de escrever [...] Não é
que necessariamente desejemos escrever como o autor cuja leitura
nos agrada; o que desejamos é apenas o desejo que o escritor teve
de escrever, ou ainda: desejamos o desejo que o autor teve do
leitor enquanto escrevia, desejamos o ame-me que está em toda
leitura.
Para o autor francês, a leitura desperta o anseio por escrever,
uma vez que o leitor quer vivenciar a experiência do autor diante da
s
ua produção e
s
crita.
A
partir da declarão [...] pra mais pra frente
eles poderem estar lendo mais, escrevendo melhor, a entrevistada
evidencia e valoriza esse vínculo entre a leitura e a escrita, delineando,
dessa forma, mais um importante aspecto da literatura para a
educação escolar.
Já a Professoras 3 e 5 responderam, ao serem questionadas
sobre a relação entre a literatura e a escola,
141
Professora 3
Sim, é importante ensinar literatura na escola,
justamente pelo fato dela ser a construtora até da nossa
personalidade, da nossa subjetividade. [...] até para o aluno
desenvolver o seu pensamento crítico, pra ele poder estar reavaliando
a sua personalidade e se construindo enquanto pessoa e [ênfase]
enquanto cidadão [...]e criar também o seu aparato de moralidade,
de ser e de estar no mundo. (ENTREVISTA, 14 de novembro
de2019)
Professora 5
- É porque assim, a gente fica pensando que muitas
questões envolvidas, por exemplo, quando você lê um livro literário,
você conhece um pouco como aquele escritor pensava, qual era a
visão dele em relação a nossa sociedade, o mundo em si. Você
encontra um tipo de linguagem mais rebuscada que você aprende, e
tem a ideologia que você vai percebendo ali [...] ela transmite as
coisas e você tem que saber lidar muito bem com tudo aquilo, pra
depois você fazer o seu julgamento. Então, eu acho que a literatura é
importante por causa disso, porque ela vai ampliar o conhecimento
em tudo, em várias questões; e aprender a utilizar a língua
portuguesa que é tão difícil.(ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Candido (1999, p. 81) classifica a literatura enquanto sua
capacidade de confirmar a humanidade do homem. Para tanto,
segundo Candido (1988), o processo de humanização pela literatura
ocorre mediado por três fatores fundamentais, ligados e
interdependentes, que envolvem o texto literário: sua estrutura, sua
forma de manifestação de sentimentos e visões de mundo e sua forma
de conhecimento.
Para Candido (1988), a estrutura do texto literário
corresponde à maneira pela qual sua
mensagem foi construída. Sendo assim, o primeiro grande
traço humanizador da literatura está no fato de ela própria ser um
objeto materializado pelo homem.
142
Essa materialização do texto presume a escolha por
determinado acordo inicial de ideias. E essa formatação estabelecida
pelo texto literário propõe ao leitor a própria organização do
pe
ns
amento humano.
P
ara Candido (1988, p.178), “toda obra
literária pre
ss
upõe e
s
ta
s
uperação do caos, determinada por um arranjo
especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido”.
A forma estruturada do texto traz em si uma enorme
capacidade humanizadora devido à coerência mental que pressupõe e
que sugere, ou seja, organiza o pensamento humano e o faz atuante
no âmbito social.
A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo
articulado, este é o primeiro nível humanizador, ao contrário do
que geralmente se pensa. A organização da palavra comunica-se
ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a
organizar o mundo. (CANDIDO, 1988, p. 177).
Ao citar [...] você encontra um tipo de linguagem mais rebuscada
que você aprende, e [...] aprender a utilizar a língua portugue
s
a que é o
difícil, a
Professora
5 pontua o aspecto linguístico estrutural da
literatura como uma característica importante para seu aspecto
educativo, como fonte de aprendizado de novas palavras, bem como
de organização do pensamento.
Num segundo momento, a entrevistada ressalva a
apresentação das diversas perspectivas pela literatura. Para a professora
[...] você conhece um pouco como aquele escritor pensava, qual era a visão
dele em relação a nossa sociedade, o mundo em si.
Candido (1988) declara que um segundo traço humanizador
da literatura está no fato de o texto literário apresentar as
representações de mundo de todos que o elaboraram. Sendo assim,
por meio da literatura, o leitor entra em contato com os mais
143
diversificados pontos de vista diante dos conflitos emocionais e sociais,
o que auxilia o próprio leitor a posicionar-se em face desses mesmos
problemas postos pelo texto literário.
A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na
medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante. Isso posto, devemos lembrar
que além do conhecimento por assim dizer latente, que provém
da organização das emoções e da visão do mundo, na
literatura níveis de conhecimento intencional, isto é, planejados
pelo autor e conscientemente assimilados pelo receptor. Estes
níveis são os que chamam imediatamente a atenção e é neles que
o autor injeta as suas intenções de propaganda ideologia, crença,
revolta, adesão etc. [...] Nestes casos a literatura satisfaz, em
outro nível, à necessidade de conhecer os sentimentos e a
sociedade, ajudando-nos a tomar posição em face deles.
(CANDIDO, 1988, p. 180)
Ao identificar que o texto literário também possui ideologias,
a Professora 5 reconhece que a literatura promove o pensamento
crítico no leitor diante dos problemas apresentados. Para a
participante, a literatura [...] transmite as coisas e você tem que
s
aber
lidar muito bem com tudo aquilo, pra depois você fazer o seu julgamento.
Professora 3, assim como as demais colegas, também
relaciona o ensino da literatura na infância com a prática da cidadania
na vida adulta: [...] até para o aluno desenvolver o seu pensamento
crítico, pra ele poder estar reavaliando a sua personalidade e se
construindo enquanto pessoa e [ênfase] enquanto cidadão [...]e criar
também o seu aparato de moralidade, de ser e de estar no mundo. Ao
citar a construção do aparato da moralidade para poder atuar
enquanto cidadão no mundo, a participante relaciona o ensino escolar
dos textos literários com a formação social das crianças.
144
P
ara a entrevi
s
tada, a literatura é uma construtora a da
noss
a
pe
rs
onalidade, da no
ss
a subjetividade. Candido (1999) menciona a
função psicológica da literatura, justamente por atuar no
subconsciente de forma não perceptível, ajudando, dessa forma, a
construção da personalidade.
Ao mesmo tempo, a evocação dessa impregnação profunda
mostra como as criações ficcionais e poéticas podem atuar de
modo subconsciente e inconsciente, operando uma espécie de
inculcamento que não percebemos. Quero dizer que as camadas
profundas da nossa personalidade podem sofrer um bombardeio
poderoso das obras que lemos e que atuam de maneira que não
podemos avaliar. (CANDIDO, 1999, p. 84)
Para Candido (1999) a literatura tem a capacidade de atuar
no meio social, justamente por interferir na construção da identidade
do indivíduo. Dessa maneira, o texto literário propõe o pensamento
reflexivo diante dos problemas sociais, fazendo com que o leitor tome um
posicionamento ante a sociedade.
Sem procurar decidir, limitemo-nos a registrar as três posições e
admitir que a obra literária significa um tipo de elaboração das
sugestões da personalidade e do mundo que possui autonomia de
significado; mas que esta autonomia não a desliga das suas fontes
de inspiração no real, nem anula a sua capacidade de atuar sobre
ele. (CANDIDO, 1999, p. 85-86)
Ainda segundo Candido (1988), a literatura exerce uma
função humanizadora por transmitir o conhecimento sobre as mais
diversas produções do homem histórico-cultural. Os textos literários
são permeados por temáticas em que o eixo articulador são as
conquistas humanas aperfeiçoadas pelo tempo.
145
Para a Professora 5, [...] a literatura é importante [...] porque
ela vai ampliar o conhecimento em tudo, em várias questões. Dessa
forma, a entrevistada reconhece a literatura como uma produção
cultural a respeito da própria cultura humana, capaz de proporcionar
uma formação humanizada por meio dos diálogos entre o leitor e o
próprio texto literário.
A Professora 3 também reconhece o valor da literatura na
formação do homem. Ao mencionar a literatura como [...]
construtora da personalidade [...] para o aluno de
s
envolver seu
pensamento crítico, pra ele poder estar reavaliando a sua personalidade e
se construindo enquanto pessoa e [ênfase] enquanto cidadão a
entrevistada reafirma o poder da literatura em formar pessoas para
transformar a sociedade.
Afinal, o que é literatura?
Em síntese, para as participantes desse estudo, a literatura é
uma manifestação de aspectos singulares da própria cultura de um
povo, mediada pela linguagem. No entanto, cada professora
reconhece traços distintos para a valorização do literário nos textos
escritos.
A Professora 2 compreende a literatura por todas as
manifestações da língua escrita, que promovam a formação da
cidadania no leitor. Sem conseguir distinguir os diferentes gêneros
textuais, a participante relaciona a literatura com a leitura, com a
finalidade de entender o que você está lendo, interpretar o que você está
lendo [...]. Contudo, para que o leitor compreenda e interprete sua
leitura, é necessário ter o conhecimento sobre a contextualização
social, ou seja, sobre o porquê determinado texto foi produzido. Dessa
forma, a confusão entre os diferentes gêneros de texto escrito também
146
pode provocar uma confusão entre as diferentes formas de leitura que
os textos exigem do leitor, fato responsável por prejudicar a atividade
leitora.
Para a Professora 4, a literatura é responsável por auxiliar a
formação do acervo de vivências do sujeito leitor. Ao enunciar [...]
uma pessoa que tem mais [...] até mais repertório pra poder conversar
com as outras pessoas, pra poder fazer qualquer tipo de coisa, a
entrevistada esclarece que a literatura é fundamental para a formação
intelectual do ser humano, pois a partir das leituras, o sujeito é capaz
de se comunicar e de conviver em sociedade. Logo, é a única
participante que relaciona diretamente a leitura literária com a
produção escrita.
A entrevistada também reconhece que esse repertório
construído a partir de textos literários é prestigiado na esfera social,
uma vez que ao citar os cânones da literatura de língua portuguesa,
como Fernando Pessoa e Machado de Assis, a participante revela que
a formação intelectual deve ser ratificada pela academia e pelos
especialistas nos mais diversos assuntos, assim como determinados
autores o são.
A Professora 4 deposita na literatura o processo de
desconstrução de convicções, a partir do relacionamento entre o que
está sendo lido com o que foi vivenciado, já que, segundo a
entrevistada, ler literatura é [...] estar revendo seus conceitos, olhando
aquilo que a gente vive no momento, e ir associando com aquilo que a
gente já viveu há algum tempo.
Sendo assim, mesmo cometendo um equívoco ao
compreender que textos paradidáticos são literários, a literatura, para
a Professora 4, é representada como uma criação influente da cultura
humana, capaz de construir e até mesmo modificar o repertório
147
adquirido por meio de outras vivências, sendo a base fundamental
para a comunicação entre os homens.
Já a Professora 1 menciona ser apaixonada pela poesia. A
paixão é um sentimento humano intenso e profundo, marcado pelo
grande envolvimento da pessoa apaixonada pelo agente motivador da
paixão. A paixão é capaz de alterar algumas particularidades do
comportamento e do pensamento da pessoa, que passa a demonstrar
um excesso de admiração por aquilo que lhe causa paixão. A poesia
historicamente despontou como uma espécie de composição textual
emotiva, lírica, para ser acompanhada por instrumentos musicais,
como a lira. No sentido figurado, a poesia é tudo que comove, que
emociona.
Para a Professora 1, a literatura é importante por atuar de
forma sensível no desenvolvimento do ser humano. A professora
destaca a relação de construção do imaginário pela literatura, já que,
em suas próprias palavras, a literatura é responsável por [...] dar asas à
imaginação [...], quando questionada sobre a importância do ensino
da leitura literária na escola.
Suas construções verbais durante a entrevista também
demonstram a relevância que a participante concede à literatura. Ao
enunciar que a literatura é despertar para um momento inesquecível
ao mesmo tempo em que a literatura seria um sonho, a professora traz
lirismo ao seu discurso, mediado pelo uso das antíteses metafóricas
relacionadas ao despertar e ao sonhar. A literatura é tão significativa
para a entrevistada, que até mesmo sua linguagem é organizada graças
aos exemplos encontrados em suas leituras literárias.
A Professora 5 reconhece a importância da literatura para a
construção do repertório pessoal, valorizando principalmente a
linguagem literária como paradigma para essa composição de
vivências. Durante a entrevista, a participante menciona a linguagem
148
rebuscada, poética e elaborada como fonte de distinção dos textos
literários em comparação aos textos não literários. Consequente-
mente, a Professora 5, assim como a Professora 3, também reconhece
a literatura como uma forma de arte. Essa clareza em perceber as
nuances entre a linguagem presente na obra literária e a linguagem de
textos não literários é consequência de sua formação acadêmica, pois
a entrevistada é graduada em Letras, além da Pedagogia.
A participante também menciona a atemporalidade do texto
literário. Para a professora, o texto literário [...] informa desde o
passado, o presente e o futuro [...], ou seja, a literatura dedica-se a
assuntos pertinentes aos seres humanos, em diferentes períodos
históricos.
A literatura para a Professora 5 também é responsável por
fazer [...] a gente pensar e refletir sobre quantos problemas sociais a gente
tem e ninguém faz nada. Sendo assim, a partir do contato com o texto
literário, o leitor consegue construir seu pensamento analítico diante
do meio social.
Assim sendo, a Professora 5 compreende por literatura os
textos construídos a partir de um trabalho diferenciado com a
linguagem, que se permite como arquétipo para a formação do
intelecto, uma vez que apresenta temas referentes aos mais diversos
dilemas humanos e que auxiliam no desenvolvimento do pensamento
crítico do sujeito-leitor.
Diferentemente de suas colegas, a Professora 5 é a única
participante que demonstra um conhecimento teórico da crítica
literária bastante aprofundado, consequência de seus estudos durante
a graduação em Letras.
A Professora 3 reconhece a literatura como uma manifestação
artística. Ao citar Ferreira Gullar Porque o Ferreira Gullar fala que a
vida precisa de arte, porque a vida só não basta a participante reconhece
149
o texto literário como uma forma de escritura a partir da preocupação
estética.
A Professora 3 também admite o caráter formativo da
literatura, assim como as demais participantes: [...] desenvolver o seu
pensamento crítico, pra ele poder estar reavaliando a sua personalidade e
se construindo enquanto pessoa e [ênfase] enquanto cidadão [...]e criar
também o seu aparato de moralidade [...]. Sendo assim, a professora
encara a literatura como uma expressão artística que auxilia o leitor a
se tornar um cidadão crítico e consciente dos problemas sociais, para
que dessa forma, ele possa atuar e modificar a sociedade ao seu redor.
150
151
5.
Normas x Modos de Fazer
Trabalhar na mesma escola por quase dez anos, como
professora de inglês, trouxe-me muita proximidade com os colegas de
profissão. Posso até dizer que alguns se transformaram em amigos
daqueles com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual,
desarmado, sem precisar de saber o porq é que é. 19
A partir desse companheirismo conquistado ao longo dos
anos, muitas confidências, principalmente sobre nossas atuações
profissionais, foram trocadas. Contudo, quando o assunto adentrava
nas malhas da gestão escolar, da política implantada por determinada
equipe pedagógica e por determinado sistema de ensino, a fala que
mais se repetia entre meus amigos era: nada importa...quando fecho as
porta
s
da minha
s
ala, faço do meu jeit
o
. Por mais que essa fala também
representasse a minha postura diante de minha própria prática
escolar, escutá-la repetidas vezes foi fator determinante para a escolha
do aporte teórico que nortearia as análises dessa pesquisa, já que tentar
compreender como as práticas docentes poderiam ser caracterizadas
como distantes dos padrões estabelecidos pelos documentos oficiais se
tornaria um dos objetivos dessa investigação.
Encontrei em Michel de Certeau a resposta para a busca por
uma teoria que abarcasse esse modo de fazer do homem cotidiano em
19 Trecho extraído da obra Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, de 1956. ROSA,
J. G. Grande sertão: veredas. São Paulo: Cia das letras, 2019.
152
oposição às determinações impostas pelo sistema, nesse caso, o sistema
educacional. Com suas ticas e estratégias, Certeau (1998) propõe
uma nova maneira de estudar a sociedade cultural. Para o autor
francês, as estratégias são as normas impostas pelos grupos
dominantes, “o cálculo das relações de forças que se torna possível a
partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de
um ambiente”. (CERTEAU, 1998, p. 46)
J
á a
s
tic
as
são as práticas cotidianas do homem comum, ou
a própria deci
s
ão, ato e maneira de aproveitar a ocasião” (CERTEAU,
1998, p. 47). Na maioria dos casos, as táticas não estão em total
harmonia com as estratégias, uma vez que “o cotidiano se inventa com
mil maneiras de caça não autorizada.” (CERTEAU, 1998, p. 38)
Sendo assim, por mais que existam estratégias de
direcionamento ao trabalho docente dentro das escolas, cada
professor realiza sua prática da maneira que achar conveniente. Ao
fechar as portas da classe, são as táticas docentes que se tornam o
coração da pedagogia.
Sobre o Ler ...
Ao ser questionada sobre o Programa Ler e Escrever, a
Professora 1 respondeu:
Pesquisadora
- Você gosta de usar o Programa Ler e Escrever nas
suas aulas?
Professora 1
Sim [...] faz parte do nosso currículo,
[...] mas não pode parar no Ler e Escrever, não. Porque o
material não é tão rico. Ele deixa a desejar. Então, você tem de
pegar o Ler e Escrever, trabalhar antes e estudar, porque se você
vir com o Ler simplesmente, você não consegue atingir o seu
objetivo. E, uma vez que o Ler e Escrever apresenta muitos erros,
tanto os ortográficos, como as falhas em uma cruzadinha [...]
(ENTREVISTA, 24 de junho de 2019)
153
Apesar de dizer gostar de trabalhar com o Programa Ler e
Escrever, a Professora 1 passa o tempo todo criticando a proposta do
material. Além de citar erros de publicação, como a
s
fal
has
na
c
ruz
adinha, a entrevistada diz que o material [...] deixa a desejar, no
sentido de que ela necessita trazer atividades complementares para
alcançar os objetivos estipulados.
Dessa maneira, a resposta afirmativa da professora, à pergunta
sobre gostar do Ler e Escrever, adquire um outro sentido, pois, na
realidade, a entrevistada tem ressalvas com relação a proposta.
A
afirmativa
s
i
m
seguida da frase faz parte do currículo revela o caráter de
obrigatoriedade do trabalho pedagógico a partir do Programa. Sendo
assim a Professora 1 demonstra que esta não seria sua primeira opção
como proposta pedagógica para o 1º ano.
Durante as observações realizadas em sua turma, pude notar
que as práticas aplicadas oscilavam com o trabalho pedagógico a partir
das atividades sugeridas pelo Ler. A prática da leitura diária,
orientação direcionada ao professor pelo Guia de Planejamento e
Orientações Didáticas Professor Alfabetizadorano, sempre fora
realizada com muita fluidez e empenho pela docente. Justamente por
ser leitora fora da escola, a professora garantia a seus alunos um
momento de contação de história interessante, por meio de uma
ótima entonação de voz e com o auxílio de recursos extra, como
fantoches e brinquedos, para que seus alunos tivessem a atenção
voltada para esse momento.
Contudo, a escolha dos livros para a leitura diária não estava
de acordo com a sugestão mencionada pelo
G
uia do profe
ssor
alfabetizador. O
Programa Ler e Escrever
orienta que “
a atividade de
leitura em voz alta pelo professor deve ocorrer diariamente com
prioridade para textos da esfera literária como contos de fada e
populares, mitos, etc.” (SÃO PAULO, 2014a, p. 40)
154
Nos meses em que presencie ias aulas, a Professora 1 trazia
para os momentos de leitura diária muitos livros paradidáticos e/ou
livros de ficção com um valor estético muito empobrecido, tanto por
meio da construção escrita quanto pela produção gráfico-editorial,
sem apresentar informações básicas, como autoria e ilustração.
Deste modo, os livros selecionados para a prática da leitura
diária, em sua grande maioria ou não eram literários, ou não
necessitariam da mediação leitora da professora, por possuir uma
narrativa muito simplificada, fazendo com que os próprios alunos
conseguissem compreendê-los com autonomia.
O Guia de Planejamento e Orientações Didáticas do Professor
Alfabetizador 1º ano explicita as condições para a seleção das obras
que serão lidas pelo professor em sala de aula:
Ao selecionar os livros que serão lidos, é importante que você
tenha em mente que, para aproximar as crianças da literatura, o
mais importante é buscar boas histórias, que além de contarem
com um bom enredo (são engraçadas, misteriosas ou líricas),
estão escritas de maneira interessante. É preciso evitar os textos
em que a linguagem é empobrecida, pois é lidando com um
vocabulário mais rico que as crianças realmente ampliarão suas
possibilidades linguísticas. (SÃO PAULO, 2014a, p. 44)
O Programa também orienta que as mensagens moralizantes
e/ou pedagogizantes, presentes nos livros paradidáticos, não sejam
critérios para a escolha das obras que serão lidas diariamente pelo
professor.
Da mesma forma, não é interessante escolher livros pela
mensagem moral
que a história carrega, mesmo que traduza
valores muito prezados atualmente (a defesa da natureza, das
minorias raciais ou os direitos das pessoas com necessidades
155
especiais, por exemplo). Mesmo considerando a importância da
formação das crianças, não é possível colocar tais ensinamentos
como critério de escolha mais importante do que a qualidade
literária (tanto do texto quanto da imagem): tal procedimento
compromete o objetivo principal dessa proposta, ou seja,
favorecer que os alunos construam um repertório amplo de boas
histórias, tenham oportunidade de apreciar um livro bem escrito
(do ponto de vista literário) e aprendam os diferentes elementos
e possibilidades que compõem as narrativas. (SÃO
PAULO,2014a, p. 44)
Sendo assim, ao optar por livros paradidáticos e/ou com baixa
qualidade estético- literária, a Professora 1 demonstrou que a escolha
dessas obras para a realização da leitura diária era um reflexo, não das
orientações presentes no Programa Ler e Escrever, mas da reprodução
de suas representações pessoais sobre a literatura.
Apesar de ser uma leitora, a Professora 1 desconhece a teoria
crítica literária canônica, fato que aproxima suas leituras extra
curriculares dos livros contemporâneos de baixa qualidade estética,
classificados como literatura de massa. Assim, essa mesma não
percepção sobre a qualidade estética das obras é o elemento
norteador das escolhas de leitura para sua turma.
Nos meses de observação das aulas também pude
acompanhar a realização de uma atividade com poesia, proposta pela
Coletânea de Atividades do Aluno. Intitulada como Atividade com
Poema, a proposta direcionada aos alunos pedia às crianças que
circulassem determinadas palavras no texto apresentado, indicadas
pelas imagens presentes na página. A atividade tomava por base a
poesia Chatice, de José Paulo Paes.
A professora pediu que os alunos encontrassem a página da
atividade. As crianças estavam sentadas em duplas produtivas, uma
156
maneira de organizá-las de forma que consigam ajudar os próprios
colegas, mesclando alunos com maior ou menor domínio sobre a
língua escrita. Após alguns minutos, todos os alunos estavam com
suas coletâneas abertas na poesia. Desse modo a Professora 1 iniciou
um pequeno diálogo com as crianças:
Professora 1
Vocês sabem o que é um poema, ano?
Alunos
Não, tia!
Professora 1
Poema é uma maneira que uma pessoa chamada
poeta resolveu escrever. Cada palavra ou frase é chamada de verso.
Com que letra começa a palavra Poema?
Alunos
Com “P” de Peteca!
Professora 1
Isso! Com “P” de peteca! (OBSERVAÇÃO, 10 de
abril de 2019)
O espaço físico da sala de aula destinada ao ano contém,
dentre outros estímulos vi
s
uai
s
, um alfabeto il
us
trado.
A
letra “P”
tem por il
us
tração uma peteca. Logo,
as
criança
s
associaram a letra
inicial da palavra Poema com a palavra Peteca.
Em seguimento à explanação da atividade com poesia, a
professora perguntou aos alunos sobre o tulo do texto:
Professora 1
O que é chatice?
Aluno 1
É fazer alguma coisa que as pessoas não gostam.
Professora 1
Isso mesmo! E quais são os desenhos que aparecem
na atividade?
Alunos
Tem sapato, pé e jacaré [...]
Professora 1
Isso mesmo, pessoal! (OBSERVAÇÃO, 10 de abril
de 2019)
157
Após essa conversa inicial, a professora realizou a leitura do
poema, sempre com uma ótima entonação. Finalizada a leitura, a
participante da investigação retomou a poesia com as crianças:
Professora 1
Por que será que o jacaré pegou no dele?
Alunos
Não sei, tia [...]
Aluno 2
Pra morder o pé dele!
Professora 1
Sim [...] mas tamm pode ser porque o sapato era
feito de couro de jacaré [...] será que o jacaré pensou que o sapato
era a sua namorada?
Alunos
[Risos] não tia! (OBSERVAÇÃO, 10 de abril de 2019)
Em sequência a esse diálogo a professora explicou a atividade
para as crianças, pedindo que encontrassem e circulassem no poema
as palavras determinadas pelas imagens. Em seguida, a professora
pediu aos alunos que as procurassem no texto escrito. Após conferir
as respostas com os alunos, de mesa em mesa, a professora solicitou
que as crianças copiassem a poesia no caderno, para que a proposta
fosse finalizada, e dessa forma, a professora pudesse ter um tempo para
corrigir, individualmente, as atividades dos seus alunos.
O Guia de Planejamento e Orientações Didáticas do
Professor Alfabetizador orienta que essa atividade seja realizada em
duplas e que o professor permita que as crianças realizem com
autonomia.
- Antes da aula, organize as duplas de crianças, procurando
organizar duplas produtivas de trabalho, o que significa que os
níveis de conhecimentos de ambos os integrantes não sejam
idênticos, e sim próximos;
[...];
158
- Enquanto trabalham, circule entre as duplas para fazer
intervenções e ajudar os alunos que necessitarem do seu apoio.
(SÃO PAULO, 2014a, p. 90)
A condução da atividade pela professora esteve de acordo com
as orientações direcionadas pelo Guia do professor do Programa Ler e
Escrever. No entanto, ao enfatizar a cópia do poema no caderno pelos
alunos, sem proporcionar um momento de explanação do texto
literário, a Professora 1 se apresentou muito mais comprometida com
a reprodução da atividade proposta, do que com a formação do leitor
literário. A fruição do texto foi muito suscinta, tendo como foco, em
todos os momentos, a proposta ortográfica da atividade.
O pouco tempo destinado para a explicação sobre o poema
enquanto gênero textual, bem como a falta de diálogo sobre o
entendimento do texto pelos alunos, não estão de acordo com as
orientações didático-pedagógicas propostas pelo Programa Ler e
Escrever.
Após a leitura, é importante que os alunos sejam convidados a dizer
o que pensaram ou sentiram a partir da história. No início, tais
comentários são bastante simples, mas com o tempo tendem a ganhar
qualidade, especialmente se contarem para isso com intervenções do
professor. Ele tanto pode fazer perguntas que permitam aprofundar
o que os alunos disseram inicialmente, como fazer os seus próprios
comentários sobre o livro[...] (SÃO PAULO, 2014a, p. 45)
Ao pedir que os alunos copiassem o texto no caderno, a
professora concentrou os esforços muito mais na reprodução da
escrita à formação de leitores autônomos, objetivo inicial da
proposta da atividade. Mesmo se mostrando como leitora, a
Professora 1 não conseguiu trabalhar a literatura de forma envolvente
em sala de aula, apresentando o texto literário de forma escolarizada,
159
unicamente com o propósito de garantir a aquisição da escrita para os
alunos.
Para Soares (1988), o problema não é a escolarização da
leitura, um processo realmente necessário. A maior adversidade vem
das consequências dos modos como esse ensino da leitura vem sendo
experienciado nas escolas. Consequentemente, a leitura deve ser
escolarizada de forma adequada, deve sempre estar contextualizada e
direcionada para a formação do leitor.
Toda função formativa e humanizadora da literatura é
ignorada porque, para a Professora 1, o texto literário inserido no
manual didático é empregado somente como subterfúgio para a
realização dos objetivos preexistentes determinados pela proposta
didática. Desse modo, perde-se muito com esse processo de
didatização da literatura. Ao ser questionada sobre a reação de seus
alunos diante do material do Programa Ler e Escrever, a Professora
1 respondeu:
Pesquisadora -
E as crianças? Elas gostam do Ler?
Professora 1
- Gostam.
Pesquisadora
Eu percebi que eles aceitam bastante, né?
Gostam de trabalhar com o material [...] você arriscaria dizer o
porquê?
Professora 1
Acho que eles gostam por causa das parlendas, das
músicas das poesias [...] eles adoram as parlendas porque já conhecem
de memória, então fica fácil [...] (ENTREVISTA, 24 de junho de
2019)
Ao citar os textos apresentados pelo material como
justificativa, tais como as parlendas e as canções, a professora 1
menciona a importante informação de que as crianças gostam do Ler
porque já conhecem a maioria dos textos de memória. Isso significa
160
que o trabalho de apresentação à cultura da língua escrita desde a
Educação Infantil faz toda a diferença quando a criança inicia seus
estudos no Ensino Fundamental.
A Professora 2, quando questionada sobre o uso do Programa
Ler e Escrever em suas aulas, respondeu:
Pesquisadora
Você gosta de usar o ler e Escrever em suas aulas?
Professora 2
eu vou falar a verdade [...] o do ano eu estou
gostando, porque tem umas atividades que encaixaram bem [...]
tem a leitura, tem o
recorte de parlenda, as cantigas de roda, adivinhas [...] umas coisas
que deram para trabalhar bem com eles. O [Ler e Escrever] do
ano eu gostei. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019, grifo nosso)
A Professora 2 diz gostar do Ler e Escrever do ano
justamente pela diversidade de textos que o material apresenta. Um
dos pilares do Programa voltado para o ano é justamente a
apresentação de diferentes produções escritas.
Um dos elementos fundamentais para a construção das
competências leitoras é o contato com diferentes gêneros de texto
(cartas, contos, divulgação científica, poemas, reportagens, entre
outros. Assim, durante o 2º ano, é importante que, além dos
poemas, cantigas e parlendas, que se constituem textos
privilegiados para o trabalho com a consolidação da escrita
alfabética, seja proporcionado também o contato do aluno com
diversos textos literários e informativos. Esse contato permitirá
que os alunos construam conhecimentos sobre os gêneros
tratados e também sobre procedimentos, atitudes e valores
relacionados ao comportamento leitor: definir os diferentes
propósitos pelos quais lemos um texto; estabelecer relações entre
textos do mesmo gênero e entre o conteúdo do texto lido com
outros conhecimentos; utilizar estratégias para prosseguir na
leitura. (SÃO PAULO, 2014b, p. 22-23)
161
Sendo assim, a exposição aos mais diversificados tipos
textuais, na fase da aquisição da língua escrita, proporciona a criança
formular suas hipóteses de conhecimento sobre os gêneros textuais,
suas funções, estabelecer conexões e criar novas estratégias de leitura.
O Guia de Planejamento e Orientações Didáticas do Professor
Alfabetizador ano, também sugere que o professor leia textos
literários aos alunos todos os dias. Dessa forma o estudante poderá
construir seu repertório para que possa buscar a leitura autônoma.
Porque, lendo todos os dias, você garante que a leitura se torne
parte integrante da rotina da escola. É esse contato frequente,
diário e constante que permite que os alunos construam uma
crescente autonomia para ler, familiarizem-se com a linguagem
escrita, sintam prazer com a leitura, conheçam uma diversidade
de histórias e autores, entre outros ganhos. (SÃOPAULO, 2014b,
p. 23)
Durante minhas observações na classe da Professora 2,
acompanhei, dentre tantos momentos, a leitura diária realizada na
sala. Da mesma forma que o Guia do professor do 1º
ano, o material
do 2º ano também sugere que “
a atividade de leitura em voz alta pelo
professor deva ocorrer diariamente, com prioridade para textos da
esfera literária contos de fadas e populares, mitos, etc” (SÃO
PAULO, 2014b, p. 56). A Professora 2 realizava essas leituras sempre
no início das aulas, assim que as crianças entravam na sala. Após a
acolhida inicial, a professora apresentava a obra aos alunos, dizendo
qual o gênero textual (narrativo, poema, fábula etc.), o autor, o
ilustrador e a editora.
Em seguida, a participante realizava a contação da história
de forma muito didática, com uma excelente entonação e pausas para
162
que as crianças pudessem observar as imagens. Diferentemente da
Professora 1, a Professora 2 permitia pequenas intervenções dos
alunos durante a leitura, para que as crianças pudessem tecer breves
comentários sobre a obra.
Acompanhei a leitura de obras da literatura infantil de
excelente qualidade estética, como o conto Menina bonita do laço de
fita, de Ana Maria Machado, Para saber voar, de Ana Terra, e A
história de Emilia, de Monteiro Lobato. Após a leitura das obras, a
Professora 2 sempre reservava um tempo da aula para a discussão
sobre o texto lido.
Professora 2 –
Gostaram da história?
Alunos
Sim!
Professora 2 –
E das ilustrações da Taline Schubach?
Aluno 1
A madrasta era tão feia que não precisava nem virar
sapo!
Professora 2
[Risos] isso mesmo! E sobre o que era essa história?
Quem tava contando?
Aluno 2 –
A Emília
Aluno 1
que é a Emília que conta essa história, então é uma
história dentro de outra história, tia?
Professora 2
Isso mesmo, Davi! (OBSERVAÇÃO, 08 DE
MAIO DE 2019)
Mesmo admitindo não ser uma leitora fora do ambiente
escolar, a Professora 2 elegia obras de qualidade estética para a leitura
com seus alunos, e conduzia sua leitura de forma muito interessante,
permitindo que as crianças realizem suas inferências e fizessem as
conexões que são imprescindíveis para o processo de atribuição de
sentidos pela leitura.
Q
uando o
A
luno 1 reconhece que e
ss
a narrativa
é [...] uma história dentro de outra história fica evidente que o
desenvolvimento da leitura pela professora em sala de aula é tido
163
como um processo para atribuir sentidos, pois esse tipo de percepção
sobre a construção do texto escrito não é comum para leitores dessa
faixa etária.
Contudo, durante as observações também presenciei a leitura
de livros paradidáticos. Apesar da qualidade dos paradidáticos eleitos,
houve a confusão por parte da professora em
apres
entá-l
os
como
poesia, por apre
s
entarem rima
s
em
s
ua
s
c
ons
truçõe
s
. A confusão entre
os gêneros textuais ocorreu, pois, a Professora 2 desconhece a teoria
crítico-literária, fazendo com que as produções híbridas, como um
texto informativo sobre a dengue escrito por meio de rimas, sejam
realmente muito difíceis de apresentar definições.
Mesmo reconhecendo apenas o caráter informativo e
formativo da leitura, e não compreendendo a diferença existente entre
os gêneros textuais, a escolha das obras de leitura para a classe e a
realização dessas leituras pela Professora 2 estava de acordo com o
Guia de Planejamento do Programa Ler e Escrever para Professores do
2º ano, pois o material trazia como orientação que “uma boa hi
s
ria
não é definida pelo
s
eu tamanho, ma
s
,
s
im, pela
s
ua trama. O texto
pode nem ter ilustração, mas, se ele divertir e emocionar a meninada,
o sucesso é garantido”. (SÃO PAULO, 2014b, p. 68)
Para a realização da leitura, a Professora 2 também acolhe as
sugestões direcionadas pelo Ler e Escrever, que propõem a
apresentação dos paratextos e das informações pertinentes sobre
autoria, ilustração e enredo antes da leitura, a aceitação de
comentários breves durante a leitura e a discussão sobre a história ao
final da leitura.
- Informe os alunos sobre o texto que será lido, antecipando parte
da trama da história, seus personagens, o local onde ela se passa
como se fosse um anúncio da próxima novela. Isso ajuda os
164
alunos a se interessarem pela leitura e fornece elementos para que
eles possam antecipar o conteúdo do texto e se situar durante a
leitura. Para tanto, é preciso ler o livro antes, informar-se sobre
seu autor/ilustrador, selecionar aquilo que pretende destacar etc.
- Faça comentários sobre a trama e seus personagens e convide os
alunos a falarem também. Caso a conversa se estenda e a leitura
fique dispersa, leia novamente o texto (no mesmo dia ou em
outra ocasião). Ao planejar o momento de leitura, selecione para
comentar as passagens que lembram outras histórias/
personagens, aquelas que despertam sentimentos fortes (medo,
alegria, tristeza) ou então aquelas que lembram acontecimentos
recentes, da sua vida ou do dia a dia dos alunos, e também
passagens que encantam pela beleza de sua construção discursiva.
Mostre também algumas ilustrações, ressaltando a relação entre
elas e o texto.
- Compartilhe com o grupo por que você gostou da história,
pergunte do que eles mais gostaram, compare com outras histórias
lidas ou já conhecidas do grupo, releia alguns trechos, retome
ilustrações, convide-os para folhearem o livro mais de perto, com
as próprias mãos [...] (SÃO PAULO, 2014b, p. 66- 67)
Ao ser questionada sobre a relação de seus alunos com o
material, a Professora 2 reportou:
Pesquisadora
As crianças gostam do Ler?
Professora 2
Eles gostam muito do Ler. Trabalho umas três vezes
por semana com o Ler. Essa semana mesmo de avaliação ainda não
peguei o Ler nenhuma vez, vou ver se pego amanhã, porque as
crianças sentem falta, ficam perguntando “e o Ler, professora?” Eles
adoram, principalmente o Livro de Textos, que mando pra casa nos
finais de semana pra eles poderem ler o que quiserem.
(ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
165
A Professora 2 reconhecia que seus alunos gostavam do
Programa Ler e Escrever. Para a entrevistada, um dos motivos seria o
Livro de textos do aluno, que apresentava várias propostas de leitura
as quais os estudantes poderiam realizar de forma mais autônoma.
Pude presenciar esse interesse pelo material durante as
observações de campo, em que testemunhei a sala toda discutindo os
pontos positivos e negativos da escola no ano de 2019, para
elaboração de cartazes que seriam levados ao Conselho de Classe
Participativo. O Conselho de Classe Participativo é uma estratégia
implantada pela Secretaria Municipal da Educação que inclui os
alunos representantes de sala num primeiro momento das reuniões
bimestrais do Conselho. Para os alunos, um dos pontos positivos do
2º ano era o material do Programa Ler e Escrever:
Professora 2
O que vocês gostaram no bimestre, classe? O
que aconteceu que vocês falam que foi bom?
Aluno 4
Eu sei! O recreio!
Aluno 2
Eu gostei do Ler, tia [...]
Professora -
[surpresa] por quê?
Aluno 2
Porque tem atividades mais legais que as do ano.
Alunos
Verdade, tia! (OBSERVAÇÃO, 24 de abril de 2019)
As crianças sentiram maior identificação com o material do
Programa Ler e Escrever para o 2º ano, por possuir mais atividades
dinâmicas, com o uso de tesoura e cola, além de apresentar textos que
já faziam parte do repertório pessoal dos estudantes. Dessa forma, os
alunos sentiam mais autonomia e confiança para a realização das
tarefas.
Ao ser questionada sobre o uso do Programa Ler e Escrever em
suas aulas, a Professora 3 contestou que avanços conquistados por
166
meio do Programa, mas que também é necessário repensar o material,
uma vez que acredita ser muito complexo para o 3º ano.
Professora 3
Eu gosto [...] inicialmente eu era muito contra esse
material estruturado pelo governo. Mas aí comecei a pensar em todas
as práticas que vi e que realizei [...] observo que antes desse material
chegar, as coisas eram muito sem nexo, cada professor fazia do seu
jeito [...] os alunos que chegavam de outras escolas ou estavam aquém
ou além da sua turma. Acredito que é um bom material, mas que
deva ser aprimorado com o tempo. Há uma demanda muito séria
no nível de dificuldade para as crianças[...]e mesmo o professor
complementando com atividades específicas para cada dificuldade de
aprendizagem, aquela criança que não conta do Ler se sente
excluída, como se não fizesse parte do grupo. (ENTREVISTA, 14 de
novembro de 2019)
A Professora 3 afirma que gosta do material, porém com
ressalvas. Para a entrevistada, a parceria entre a Secretaria Estadual da
Educação e o município, por meio da adoção do Programa Ler e
Escrever foi proveitosa, já que permitiu uma padronização entre todas
as escolas do município. Ao mencionar [...] antes de
ss
e material
chegar, a
s
coi
s
a
s
eram muito sem nexo, cada professor fazia do seu jeito
[...] os alunos que chegavam de outras escolas ou estavam aquém ou além
da sua turma a professora confirma que a opção pelo Programa foi
vantajosa.
No entanto, a entrevistada também critica o material. Para a
professora, o Programa Ler e Escrever apresenta uma proposta muito
acima da competência dos alunos no 3º ano. Ao
relatar que
uma
demanda muito
s
éria no vel de dificuldade para
as
crianças
[...]
, a
professora evidencia que seus alunos apresentavam muitas
dificuldades com o Programa, uma vez que, sendo o 3º ano a última
etapa do ciclo de alfabetização, as crianças chegavam do ano
167
apresentando diferentes níveis de conhecimento da língua escrita. A
Professora 3 ainda concluiu sua resposta, dizendo que as crianças que
não conseguiam acompanhar as propostas do material se sentiam
excluídas, que mesmo apresentando atividades complementares,
alguns alunos não conseguiam alcançar os níveis de conhecimento da
língua escrita exigidos por determinadas atividades.
Durante os meses que acompanhei suas aulas testemunhei a
execução principalmente das atividades do Projeto Didático Quem
reescreve um conto aprende um tanto!. Esse Projeto Didático propõe
situações de aprendizagem da língua escrita por meio do trabalho com
contos tradicionais. Para tanto, algumas expectativas de
aprendizagem norteiam o desenvolvimento da proposta:
- Alguns novos conhecimentos sobre a linguagem e os recursos
discursivos presentes nos contos tradicionais.
- Reapresentar uma história conhecida, considerando não
apenas seu conteúdo, mas também a forma de contá-la
(reescrita).
- Criar um novo final para um conto desconhecido.
- Alguns comportamentos de escritor, como:
- planejar um texto e escreve-lo;
- preocupar-se em reapresentar o conteúdo da história;
- preocupar-se em utilizar recursos discursivos para tornar a
história mais interessante, compreensível e com linguagem
próxima a da literária.
- Refletir sobre os aspectos discursivos, adequando-os a melhor
compreensão do público que lera os textos. (SÃO PAULO,
2014c, p. 120)
Segundo o Guia de Planejamento e Orientações Didáticas do
Professor 3º ano,
apresentação dos contos tradicionais aos alunos
“t
alvez seja a forma mais
s
egura de introduzir os alunos no universo
168
literário.” (SÃO PAULO, 2014c, p. 117) Os contos tradicionais são
textos advindos da tradição oral, geralmente de autoria desconhecida,
que perpassam pelas gerações, carregado por traços históricos e
culturais da humanidade. Dessa forma são importantes para a
formação das crianças, por colocá-las em contato com diversas
histórias da tradição de diferentes povos.
Os contos tradicionais são textos que, por seu conteúdo mágico,
fascinam crianças e adultos. Em geral, são histórias de autoria
desconhecida, que fazem parte da cultura de um povo e se
perpetuaram, como todos os textos da tradição oral, pela sua
passagem de geração em geração. (SÃO PAULO,2014c, p. 120)
Como produto final, a proposta pedagógica desse projeto
didático é a produção de um livro de contos reescritos pelas crianças.
Uma das atividades que presenciei foi a escrita do final de um conto
desconhecido. Com os alunos divididos em duplas produtivas, a
professora pediu para que as crianças encontrassem a página da
atividade na Coletânea de Atividades do aluno. Passados alguns
minutos, a professora explicou a proposta lendo o conto em seguida:
Professora 3
E agora? O que será que vai acontecer?
Aluno 1
Vai explodir de sopa!
Professora 3
Qual parte você mais gostou?
Aluno 1
Da sopa caindo [...]
Professora 3
Muito bem. Todos entenderam o que é pra fazer?
Alunos
Sim, tia!
Aluno 2
Eu não sei o que é pra fazer ainda...
Professora 3
Você lembra da atividade de reescrita que fizemos
com o conto dos cabritinhos? É a mesma coisa, mas agora com esse
conto aqui, A boa sopa. Você vai pensar num final pra essa história,
com personagens e desfecho [...]
Aluno 2
Entendi!
169
Professora 3
Então vamos fazer. (OBSERVAÇÃO, 11de abril
de 2019)
Nos momentos seguintes a professora circulou pela sala com
o propósito de auxiliar às crianças durante a execução da proposta. O
Guia de Planejamento e Orientações Didáticas para o Professor 3º
ano sugere que essa atividade seja feita pelas duplas produtivas, e que
a professora ofereça assistência enquanto as crianças escrevem o final
do conto. O Guia também propõe que a primeira leitura seja realizada
pela professora e que seja destinado um momento para a conversa
sobre o texto.
Ao final da leitura do conto, a professora iniciou uma
conversa muito suscinta sobre a história, apenas com a intenção de
elucidar algumas palavras desconhecidas. Seguidamente, o foco da
explanação se voltou para a explicação da atividade, onde a professora
recorreu a uma proposta que já havia realizado com seus alunos
anteriormente. Ao relembrar a atividade de reescrita, a participante
demonstrou que sua grande preocupação naquele momento era a
realização da atividade de escrita, não a discussão da obra literária.
Candido (1999) menciona que a literatura possui uma função
educativa mas não pedagogizante, pois educa por exemplos de
vivências construídas.
Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica (esta
apoteose matreira do óbvio, novamente em grande voga), ela age
com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como
ela, com altos e baixos, luzes e sombras. Daí as atitudes
ambivalentes que suscita nos moralistas e nos educadores, ao
mesmo tempo fascinados pela sua força humanizadora e
temerosos da sua indiscriminada riqueza. E daí as duas atitudes
tradicionais que eles desenvolveram: expulsá-la como fonte de
170
perversão e subversão, ou tentar acomodá-la na bitola ideológica
dos catecismos. (CANDIDO, 1999, p. 84)
Dessa forma, assim como a Professora 1, a Professora 3 não
aproveita toda a potência humanizadora da literatura inserida no
material didático, usando o texto apenas como pretexto para atingir os
objetivos estabelecidos previamente pela proposta pedagógica. Com
relação às leituras diárias, o Guia de Planejamento e Orientações
Didáticas do Professor ano indica que seja realizada por meio dos
textos literários.
Faça a leitura de textos literários diariamente. Escolha histórias
de boa qualidade: com uma trama instigante, engraçada ou
emocionante, linguagem que se diferencie da linguagem falada,
personagens bem construídos. E importante considerar também
que os textos escolhidos devem partir do pressuposto de que os
alunos podem não conseguir fazer a leitura por si só, ou por não
ter acesso, ou pela complexidade, limitando de alguma forma a
leitura com autonomia. (SÃO PAULO, 2014c, p. 31)
O
Programa
deixa explícito que as
hi
s
tória
s
eleita
s
devam
s
er
de boa qualidade, “[...] com uma trama instigante, engraçada ou
emocionante, com uma linguagem que se distancie da linguagem
falada e personagens bem construídos (SÃO PAULO, 2014c, p.
32). A Professora 3 realizou a leitura de livros literários para as
crianças durante os meses em que observei suas aulas.
Fábulas de Esopo, contos de fada clássicos, contos modernos
como o livro A bisa fala cada coisa, de Carmem Lucia Campos, e
poesias com o ABC do Dromedário, de Alexandre Azevedo, fizeram
parte da leitura diária da professora. A leitura sempre ocorria durante
o primeiro momento da aula, logo após a acolhida. A professora
171
mostrou o livro para as crianças e todos ficaram em silêncio. Essa obra
é uma coletânea de poesias que alia o alfabeto aos animais, e toda
semana a professora escolhe um poema para ler com as crianças.
Professora 3 –
Hoje nós vamos ler a letra F [mostrando a imagem
às crianças]
Alunos
É a foca!
Professora 3
Isso! E quem se lembra da música da foca? Vamos
cantar?
Alunos
[cantando] quer ver a foca ficar feliz? (OBSERVAÇÃO,
23 de maio de 2019)
Após a canção, a professora leu o poema para as crianças, que
estavam atentas e curiosas para conhecer mais esse texto do livro. A
leitura da Professora 3, no entanto, não foi realizada com boa
entonação de voz, nem com recursos para que os alunos prestassem
atenção. Dessa forma, a concentração das crianças só permaneceu
durante a leitura porque o texto era relativamente curto. Também
não houve um momento para que os alunos conversassem sobre a
poesia depois da leitura da professora.
Assim, o momento da leitura diária realizado pela professora
respeitava as orientações do Programa Ler e Escrever, pois a professora
trazia o texto literário para a aula. Contudo, essa leitura era realizada
de forma desmotivada, não instigante aos alunos, como sendo apenas
mais uma obrigação a ser cumprida.
Essa desmotivação visível da Professora 3 no momento da
leitura diária foi um reflexo de sua insatisfação profissional enquanto
docente. Por apresentar constantemente seus posicionamentos, que
nem sempre estavam de acordo com as propostas da direção escolar,
a participante se tornou alvo de perseguições e assédio moral por parte
da equipe gestora que estava na administração da EMEIF durante o
período em que realizei essa investigação.
172
Sobre a relação de seus alunos com o Ler e Escrever, a
Professora 3 respondeu:
Pesquisadora
Seus alunos gostam de trabalhar com o Ler e
Escrever?
Professora 3
Chega nessa época do ano, as crianças estão tão
saturadas, tão cansadas [...] o material é muito pesado pra eles.
Textos extensos, palavras dificílimas [...] (ENTREVISTA, 14 de
novembro de 2019)
Para a Professora 3, as crianças não gostam do Ler e Escrever,
por ser um material que exige demais de seus alunos. Como a
entrevista foi realizada em novembro, a participante disse que as [...]
crianças eso o saturadas [..
.]
nessa época do ano, uma vez que
os
encaminhamentos estavam sendo finalizados.
Em minhas observações de campo percebi que as crianças
apresentavam um grande interesse pelos textos literários extraídos do
Programa, contudo, sempre houve muita dificuldade por parte das
crianças em realizar as atividades da Coletânea de Atividades do
Aluno.
As dificuldades apresentadas pelas crianças no
desenvolvimento das atividades refletiam também, as da própria
professora com o trabalho pedagógico por meio do Ler. Apesar de seu
discurso vanguardista sobre a leitura e a literatura, bastante próximo
das teorias estruturantes do Programa Ler e Escrever, a Professora 3
apresentou uma prática pedagógica divergente da proposta pelo
material. Essa negação das práticas colocadas pelo Ler e Escrever pode
revelar que a professora não aceita essas proposições porque foram
impostas pelos superiores, e porque, para a entrevistada, não estariam
de acordo com a realidade das salas de aula.
173
A Professora 4, ao ser questionada sobre o uso do Programa
Ler e Escrever, respondeu:
Professora 4
[...] olha, eu já tive muitas críticas sobre ele, porque
eu acho que é um material muito difícil pras crianças. Você tem que
pesquisar bastante pra poder conseguir passar pras crianças de uma
forma que elas vão entender. O [material] do quarto ano é bom, eu
estou usando ele esse ano, não é ruim. Você vai trabalhar ortografia,
você vai trabalhar os projetos da sequência didática, tudo a partir
de um texto e eu acho isso importante. Então, estou gostando do
quarto [...] Mas, tem coisas boas e coisas ruins. Tudo vem por trás
de um texto, começa por um texto, pra criança ter uma visão geral
do que vai acontecer do início até o final, o que vai ser produzido
naquele projeto, isso é bom, isso eu acho realmente importante, a
criança ter essa rotina, saber no final o porquê de ela estar fazendo
aquilo. Então. O Ler e Escrever ensina isso. Uma coisa que eu acho
um pouco difícil e que eu não gosto é [...] alguns textos eu acho que
não estão muito “assim” com a vivência da criança, com o dia-a-dia
dela, que tem palavras muito difíceis [...] Eu acho que é um material
que tem coisas boas, mas tem outras coisas que eu não acho boas,
não. (ENTREVISTA, 25 de junho de 2019)
A Professora 4 pontua como positivo, o fato do Programa Ler
e Escrever apresentar todos os conteúdos trabalhados a partir de um
texto. Para a entrevistada, o trabalho com o texto é importante pois
permite que a criança tenha [...] uma visão geral do que vai acontecer
do início a o final, o que vai ser produzido naquele projeto, isso é bom,
isso eu acho realmente importante, a criança ter essa rotina, saber no final
o porquê de ela estar fazendo aquilo.
Outro destaque dado pela Professora 4 são as questões
relacionadas à ortografia. O Guia de Planejamento para os professores
do ano do Ensino Fundamental é o único material do Programa
Ler e Escrever destinado aos professores que define especificamente
174
que
s
e
s
relacionadas com os “Padrões de Escrita
no eixo
Expectativa
s
de
Aprendizagem
(SÃO PAULO, 2015a, p. 25). O
Programa define como Padrões de Escrita o uso apropriado dos
recursos de pontuação, a segmentação correta das palavras, a
acentuação adequada, o respeito à morfologia verbal e à ortografia de
palavras comumente utilizadas no geral. (SÃO PAULO, 2015a, p.
25) Sendo assim, o discurso enunciado pela Professora 4 está alinhado
à estratégia apontada pelo Programa Ler e Escrever. No período de
observações de suas aulas, pude constatar esse acordo entre as
estratégias e as táticas da professora.
No período de dois meses, acompanhei o desenvolvimento do
Projeto Didático Confabulando com Fábulas. Uma das primeiras
atividades propunha a leitura e explanação de trê
s
fábula
s
distintas,
cujo objetivos eram “ampliar o repertório de hi
s
ria
s
; comparar
diferentes fábulas escritas em diferentes tempos, por diferentes
autores, observando diferentes estilos e observar diferentes formas de
introduzir o discurso direto”. (SÃO PAULO, 2015a, p. 161)
A sala foi organizada em grupos de três a quatro alunos e, após
a leitura em voz alta dos textos, realizada pela professora e por outros
quatro alunos voluntários, iniciou-se a explanação do conteúdo:
Professora 4:
Quem pode me contar a fábula de que mais gostou
com suas próprias palavras?
Aluno 1:
é a história de uma cachorrinha que queria um pedaço de
carne maior mas acabou perdendo o pedaço que ela tinha porque
caiu no rio [...]
Professora 4:
Isso mesmo! E qual poderia ser outra moral para essa
história?
Aluno 2:
o pode ser invejoso[...]
Aluno 1:
Tem que dar valor ao que a gente tem [...]
Professora 4:
Muito bem! E alguém gostou de outra fábula para
contar pra gente?
175
Aluno 3:
Eu gostei do ratinho que foi visitar o amigo na cidade, e
levou o maior susto.
Professora 4:
E você daria outra moral pra essa fábula?
Aluno 3:
[...] É melhor ser livre do que ter luxos e medo.
(OBSERVAÇÃO,11 de abril de 2019)
Após esse momento de compreensão textual, o objetivo
relacionado à compreensão dos recursos estilísticos do texto,
proposto inicialmente pelo Guia do professor para essa atividade,
foram retomados:
Professora 4:
Agora vamos retomar os objetivos dessa atividade:
“observar as diferentes formas de introduzir o discurso direto”. Quem
sabe me responder como o discurso direto está escrito na primeira
fábula?
Aluno 4:
Não tem travessão, tia [...]
Professora 4:
Não tem, mas o que é que tem que faz a gente
perceber que é a fala do personagem?
Aluno 1:
as aspas?
Professora 4:
Isso! As aspas. Então como podemos anotar isso no
caderno? Nem sempre usamos o travessão para [...]
Vários alunos:
Para escrever as falas. As vezes usamos as aspas.
Professora 4:
Muito bem pessoal! Anotando no caderno [...]
(OBSERVAÇÃO, 11 de abril de 2019)
A condução dessa atividade demonstra que a prática usada
pela professora está de acordo com a proposta apresentada pelo
Programa, uma vez que o foco de discussão dos textos realizado em
sala de aula foi a observação e compreensão dos recursos estilísticos
para a marcação do discurso direto, ressaltando os objetivos propostos
pela atividade.
Para a Professora 4, os textos não estão de acordo com as
vivências das crianças, apre
s
entando palavras muito difíceis.
176
Entretanto, quando questionada sobre a aceitação do Programa Ler e
Escrever pelas crianças, a participante respondeu:
Professora 4
Gostam [...] Eles gostam sim, eles [...] eles entendem
bem o que é passado, estamos trabalhando fábulas esse ano, então, é
uma coisa gostosa, eles gostam de ver a moral da fábula, essas coisas.
Então, eles gostam bastante. (ENTREVISTA, 25 de junho de 2019)
Apesar da entrevistada dizer que os textos apresentam palavras
muito difíceis, também relata que as crianças gostam do material.
Dessa forma, a questão do vocabulário não é vista como um
empecilho pelos alunos.
a Professora 5, quando questionada sobre o uso do Programa
Ler e Escrever, ressaltou a importância do trabalho com os gêneros
textuais nas aulas de Língua Portuguesa:
Pesquisadora
- Você gosta de usar o Ler nas suas aulas?
Professora 5
- O Ler, o ponto que [...] que é o mais importante do
Ler é que ele trabalha com todos os gêneros literários. Então, ele
oferece ali a oportunidade da criança conhecer todos os tipos de texto
e de gêneros textuais. E daí, no dia-a-dia, quando vai preparar uma
aula e você foca só na crônica ou esquece de um ou de outro, com ele
não, você já tem preparado pra trabalhar com todos os gêneros. Só
que, eu acho uma linguagem muito difícil pra criança. Aparece uns
textos ali que, realmente, tem um vocabulário complicado, um
enunciado complicado, então eu acho uma complexidade mais difícil
pra criança. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Segundo o Guia de Planejamento e Orientações Didáticas do
Programa Ler e Escrever direcionado a
os
profe
ssores
do ano
(O
PAU
L
O
, 2015b, p. 19) o
s
alunos deverão
estar habilitados a ler
diferentes textos, considerando as características dos gêneros textuais
e seus propósitos comunicativos”. Ao descrever as Expectativas de
177
Aprendizagem para o 5º ano do Ensino Fundamental, o Programa
apresenta o conceito de gêneros textuais por meio de exemplos
variados, como contos, fábulas, mitos, lendas, crônicas, poemas,
textos teatrais, textos da esfera jornalística etc.
O destaque dado pela Professora 5 aos gêneros textuais como
o ponto mais importante do material revela a correlação de seu
discurso com o argumento proposto pelo Programa Ler e Escrever.
Essa correlação discursiva entre a fala da professora e a estratégia
apontada pelo programa está presente em sua prática docente diária.
Ao observar suas aulas, pude constatar seu trabalho com uma
atividade de Sequência Didática do Ler e Escrever, que tinha por
objetiv
os “
constituir um repertório de marca
s
gráfica
s
poss
ívei
s
de
s
erem utilizada
s
para marcar o discurso direto”. (SÃO PAULO,
2015b, p.94)
Por meio de um trecho de uma crônica de Luis Fernando
Veríssimo, os alunos deveriam observar a pontuação utilizada para
delimitar o discurso direto no texto. Antes da leitura, no entanto, a
professora iniciou um diálogo com seus alunos acerca do gênero
crônica, seus usos, suas funções e suas linguagens, que no caso
específico desse texto proposto, é permeada pelo humor.
Após a leitura, em voz alta e realizada de forma coletiva pelos
alunos, a professora iniciou uma nova conversa com os estudantes,
com o objetivo de esclarecer possíveis dúvidas surgidas durante o
processo de leitura:
Professora 5:
Entenderam? Onde se passa essa história? Com quem?
Aluno 1:
Não entendi... Eles estão numa loja? Tem o vendedor e o
comprador[...]
Professora 5:
Isso! E teve comunicação, que o título é
Comunicação?
Aluno 1:
Não [...]
178
Professora 5:
Então qual é a graça da história? Onde está o humor
desse título?
Aluno 1:
[...]
Professora 5:
É engraçado porque a história contradiz o título. É
um texto que chama Comunicação, mas que narra uma situação
que não tem comunicação. (OBSERVAÇÃO, 08 de maio de
2019)
Somente após essa conversa é que a professora partiu para a
atividade em si, construindo as respostas sobre os sinais gráficos com
os alunos, para que as crianças pudessem registrá-las em seus
cadernos, alcançando, dessa forma, os objetivos iniciais propostos por
essa tarefa.
Contudo, ao final dos registros feitos pelos alunos, a
professora retomou o texto, com o auxílio da lousa digital (recurso
instalado em todas as salas de aula das escolas de Ensino Fundamental
do município). A professora projetou o texto completo, referente ao
trecho trabalhado nas páginas do Ler. Desse modo, os estudantes
tiveram acesso à crônica na íntegra, fato que possibilitou a retomada
das discussões sobre o texto entre a professora e os alunos:
Professora 5:
E agora, vocês entenderam? Gostaram?
Maioria dos alunos:
Sim [...]
Professora 5:
Então quem está falando esse trecho?
Aluno 2:
O narrador.
Aluno 3:
O cliente.
Aluno 2:
O narrador que é o cliente! Ele participa da história [...]
Professora 5:
Isso Maria! Muito bem! [...] E o que ele queria
comprar, turma?
Maioria dos alunos:
Um alfinete?
Professora 5:
Isso mesmo, um alfinete. (OBSERVAÇÃO, 08 de
maio de 2019)
179
A professora ainda retomou uma crônica de uma atividade
anterior, a qual já fazia parte do repertório de leitura das crianças,
para salientar ainda mais as características do gênero textual e as
marcas do discurso direto. Por fim, como as crianças tiveram dúvidas
sobre o objeto alfinete, citado na crônica, a professora buscou a
imagem de um alfinete na internet e apresentou aos alunos.
A prática docente da Professora 5, de ordem tática, evidencia
a apropriação das estratégias apontadas pelo Programa Ler e Escrever,
já que o encaminhamento dessa atividade presente no Guia de
Planejamento e Orientações Didáticas propõe ao professor, dentre
outras condutas, que:
- Leia a crônica, contextualizando-a para os alunos, perguntando
se conhecem o autor, se já leram suas obras, se gostam das obras
que leram. [...]
- Além de comentar sobre o autor, pergunte aos alunos o que
imaginam encontrar em um texto com o título
Comunicação
,
con
s
iderando que
se
trata de uma crônica de humor. Enfim,
procure fazer perguntas que ativem o repertório dos alunos, de
modo que eles antecipem possíveis sentidos do texto.
- Em seguida leia com eles o trecho da crônica e provoque uma
reflexão a partir das questões apresentadas na atividade. [...]
depois leia a crônica inteira com eles, verificando em cada trecho,
as hipóteses levantadas, confirmando-as ou não. (SÃO PAULO,
2015b, p.9495)
A respeito da relação entre os alunos e o material, a Professora
5 respondeu:
Professora 5
- o é bem aceito, porque os textos são longos, bem
extensos, as vezes a gente precisa trabalhar uma semana inteira com
o mesmo texto. O caso do “Fantasma da Quinta Avenida” é um
exemplo, [...] a gente ficou várias semanas com o mesmo texto. E não
180
tem ilustração, eles não “curtem” muito, porque eles gostam mais
dessa parte visual do livro. Então, eles cansam muito, como é muito
extenso e os enunciados muito elaborados, eu percebo que eles se
sentem desmotivados pra resolver os exercícios. (ENTREVISTA, 26
de junho de 2019)
A participante destacou que seus alunos não gostam do Ler e
Escrever. Percebi a falta de aprovação das crianças durante as aulas
observadas, pois toda vez que a professora pedia que os alunos
abrissem o material, uma chuva torrencial de onomatopeias censurava
esse momento da aula. Vários ai, de novo não!”, “aff!” e“humpf,
que chato” saiam em uníssono das pequenas bocas juvenis daquela
turma de quinto ano. Para a professora, o maior problema da falta
de aceitação do Programa pelos alunos é a produção gráfica-editorial,
uma vez que o material não tem ilustrações, fator responsável pela
falta de interesse dos alunos.
Chartier (1999) aponta que o suporte dos textos escritos
conduz os modos de ler dos leitore
s
.
A
partir da era digital, o “novo
s
uporte do texto permite
usos
, ma
nus
ei
os
e intervenções do leitor
infinitamente mais numerosos e mais livres do que qualquer uma das
formas antigas do livro” (CHARTIER, 1999, p. 88).
Os alunos da Professora 5 já não gostavam de ser chamados
de crianças. A idade média entre eles é de 10/11 anos, sendo
estudantes de uma outra geração, com acesso à tecnologia desde o
nascimento. Para eles, o material do aluno do Programa Ler e Escrever
não é interessante, pois suas maneiras de ler não se encaixam na leitura
proposta pelo material.
Dessa forma, a Professora 5 percebe que a escolha gráfica-
editorial do Programa não é atraente aos seus alunos, já que as maneiras
de ler dessas crianças estariam muito mais alinhada
s
à
s
m
anei
ras
de le
r
181
do mundo digital, ou na
s
palavra
s
da participante, eles gostam mais
dessa parte visual do livro [...] eles cansam muito [...] é muito extenso.
Apesar do discurso alinhado ao Programa Ler e Escrever,
grande parte das entrevistadas teceram comentários sobre a
dificuldade que as crianças teriam com o material. Para a Professora
5 a linguagem é muito difícil pra criança. Aparece
uns
texto
s
ali que,
realmente, tem um vocabulário complicado, um enunciado complicado
[...].
P
ara a profe
ssora 4,
[...] é um material muito difícil pra
s
crianças.
J
á para a
Profes
sora 3, [...] o material é muito pesado pra eles.
Para a Professora 1 [...] o material não é o ric
o
.
A única entrevistada
que admite que o material é condizente com a maturidade de seus
alunos é a Professora 2. Em todos os casos, observei que o material
despertava ao menos um interesse mínimo nos alunos. Como as
crianças gostam do material se os textos não condizem com suas
vivências? Ao relatar as dificuldades das crianças com o Ler e Escrever,
as professoras estão representando parte de suas dificuldades com o
uso do Programa. O material fornecido é vasto, complexo e o Guia de
Planejamento do Professor tem orientações sobre como conduzir as
propostas de atividades, contudo, o Programa Ler e Escrever não
apresenta soluções prontas, o que transforma o material do
professor em um guia que traz muito mais dúvidas que respostas.
Para tanto, a proposta inicial do é “desenvolver um conjunto
de linhas de ação articuladas que inclui formação, acompanhamento,
elaboração e distribuição de materiais pedagógicos e outros subsídios,
constituindo- se dessa forma como uma política blica para o Ciclo
I” (PROGRAMA LER E ESCREVER, 20--). No entanto, uma
deficiência na questão da formação continuada e no acompanha-
mento do Programa Ler e Escrever no município, bem como na escola
em questão.
182
O acompanhamento que deveria acontecer por meio da
Professora Coordenadora presente na instituição escolar não era
desenvolvido. Por problemas de ordem burocrática, a EMEIF estava
há um bom tempo sem um professor no cargo de Coordenador
Pedagógico. Com relação às formações continuadas, há um problema
de gestão pública, que vem sendo arrastado desde administrações
anteriores. Em 2013, com a revogação do cargo de Assistente cnico
Pedagógico, não houve mais cursos de formação relacionados ao
Programa Ler e Escrever pela SME de Assis. De lá pra cá, cursos de
formação como o PNAIC foram proporcionados, no entanto, em sua
grande maioria, esses cursos contemplam apenas os professores da
alfabetização, deixando os docentes responsáveis pelas turmas finais
do ciclo desamparados.
Sobre a formação continuada...
A formação continuada é um dos pilares do Programa Ler e
Escrever. Os cursos de formação foram oferecidos pela Secretaria
Municipal de Educação de Assis entre 2010 e 2015, contemplando
todos os professores que pertenciam a rede municipal. Divididos por
turmas, os docentes realizavam a formação direcionada apenas para
o ano escolar de suas turmas, ou seja, professores de ano,
professores deano, e assim, sucessivamente.
Quando questionadas sobre os cursos de formação que
envolvem o Programa Ler e Escrever, as Professoras 1, 3 e 5
responderam:
Professora 1
- Não, nós só tivemos orientações da prefeitura quando
começou o Ler e Escrever [...]agora teve o PNAIC, que trabalhou
um pouco com o Ler, mas foi pouco [...] só que pra mim não foi
aproveitável, porque eu já tinha estudado o Ler em casa, do meu
183
jeito. Depois, quando ela [a supervisora] passou as atividades, era
praticamente a mesma coisa [...] A maneira de como ela [a
supervisora] conduzia[...] porque, depois da tarefa que ela [a
supervisora] nos dava, era o que a gente já tinha aplicado em sala
de aula com o livro. Ou seja, era atividade que já tinha sido
desenvolvida no primeiro semestre [...] não foi aproveitável pra mim.
E todo ano eles chamam outra turma para o PNAIC [...] geralmente
é sempre a mesma coisa. (ENTREVISTA, 24 de junho de 2019)
Professora 3
A formação continuada do Ler só ocorreu no início,
quando o Programa foi implantando no município [...] os aspectos
técnicos de como
trabalhar com o Ler foram tratados nesse curso [...] e
também foi empurrado „goela
abaixo”, foi imposto [...] Mas acho
desnecessário ter agora, porque para explicar apenas o aspecto
técnico, falar o que está escrito no manual do professor, não precisa
[...]
Pesquisadora
Como assim?
Professora 3
O curso foi superficial, só tratou da parte da
organização, das estruturas[...] inclusive me senti ofendida, pois se
eu tenho determinado material com determinadas designações, eu sei
que vou ter que trabalhar dessa forma, vo tem a consciência e a
sua formação te dá isso [...]não é necessário gastar o tempo
explicando isso, o que é agrupar em duplas ou levantar hipóteses,
isso é um insulto a minha inteligência [...] Quando você joga para o
professor apenas esses aspectos, item por item, você está
desconsiderando a inteligência, está insultando aquele
professor [...] e isso se transforma em uma barreira de aceitação do
material, afinal não sou burra[...] (ENTREVISTA, 14 de novembro
de 2019)
Professora 5
- O curso de formação do Ler, tive a oportunidade
fazer dois anos seguidos, era oferecido pela Secretaria da Educação,
só que o ponto negativo é que, essa formação é dada no segundo
semestre, logo no final do ano. Então, se você trabalha o Ler o ano
todo sem a formação e chega no final ai você falava “Poxa, era
aquilo que eu deveria ter feito!”. E na formação você percebia,
184
realmente, a ligação de tudo que você estava meio perdido, mas era
importante essa informação lá no começo do ano [...] esse é o ponto
negativo. Agora, isso acontecia na gestão anterior, nessa gestão eu
não tenho nada de formação.
Pesquisadora
Faz quanto tempo?
Professora 5
Cinco ou seis anos [...] quando eu tive esse curso
estava acabando, eu tive dois encontros e logo acabou [...] Esses
dias mesmo estava tendo uma formação, que era de ciências, aí
uma professora perguntando sobre um projeto do Ler que ela não
estava conseguindo aplicar. Então, acho que é por causa disso mesmo,
da falta da formação[...] (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Segundo a
Professora 1, o curso oferecido [...] não foi
aproveitável porque a formação ocorreu no final do ano em exercício:
[...] depoi
s
da tarefa que ela [a supervisora] nos dava, era o que a gente
já tinha aplicado em sala de aula com o livro. Ou seja, era atividade que
tinha sido desenvolvida no primeiro semestre. Dessa forma, para a
entrevistada, as reflexões proporcionadas pela formação não puderam
ser aplicadas, uma vez que as propostas estudadas no curso já haviam
sido finalizadas com os alunos.
A Professora 5 também relata esse tema. Para a participante o
ponto negativo da formação oferecida pelo
Programa
era jus
tamente
a oferta apena
s
no
s
egundo semestre: [...] Então, se você trabalha o
Ler o ano todo sem a formação e chega no final ai você falava
Poxa, era aquilo que eu deveria ter feito![...], mas era
importante e
ss
a informação no começo do ano. Dessa forma, para as
duas professoras, o curso de formação oferecido pelo Programa Ler e
Escrever foi descontextualizado, uma vez que fora disponibilizado
apenas no final do ano, impossibilitando as participantes de
redirecionar seu trabalho pedagógico para os alunos.
a Professora 3 realizou duras críticas com relação à
formação continuada proposta pelo Programa Ler e Escrever. A
185
entrevistada relatou que o curso foi superficial, tratando apenas das
partes técnicas e organizacionais das propostas, não oferecendo o
suporte teórico que pautasse essas mesmas proposições. Ao dizer que
se sentiu ofendida, a Professora 3 expôs de forma categórica sua opinião
sobre a formação continuada ofertada: [...] o c
urs
o foi
s
uperficial,
tratou da parte da organização, da
s
e
s
trutura
s[...] inclus
ive me senti
ofendida, pois se eu tenho determinado material com determinadas
designações, e u sei que vou ter que trabalhar dessa forma, você tem a
consciência e a sua formação te dá.
A participante elenca que o curso tratou apenas de explanar
os pontos organizacionais, como a formação de duplas para o trabalho
em sala de aula ou a elaboração de hipóteses de escrita do aluno. E,
para a entrevistada, essas questões não mereceriam tanta atenção, já
que sua formação inicial em Pedagogia teria proporcionado o suporte
necessário para compreender essa dinâmica. Em vista desse
pensamento, a Professora 3 garantiu que seria desnecessário outro
curso de formação nesses moldes. Em consonância com a
participante, está a
Professora 1, que declara o curs
o
s
er [...]
s
empre a
me
s
ma coisa.
A crítica direcionada à formação docente promovida pelo
Programa Ler e Escrever, realizada pelas Professoras 1 e 3, representam,
de certa forma, uma crítica a grande parte dos cursos de formação
continuada. Quer ocorra por uma tentativa de produção em larga
escala de professores para o mercado de trabalho, e/ou para a
manutenção do sistema educacional estabelecido, a maioria dos
cursos de formação continuada apresentam apenas os aspectos
técnicos de determinadas metodologias. Dessa forma, textos
formativos e estruturantes do pe
ns
amento docente
s
ão ignora
dos
,
tra
nsformando ess
e
s
c
ursos
em bricas de certificados.
186
Apesar de criticar a formação ocorrida por estar
descontextualizada no período letivo, a Professora 5 percebe,
diferentemente das colegas, o processo de formação continuada como
s
endo nece
ss
ário: [...] e
ss
e
s
dia
s
me
s
mo e
s
tava tendo uma formação,
s
ó
que era de ciência
s
, aí uma professora perguntando sobre um projeto do
Ler que ela não estava conseguindo aplicar. Então, acho que é por causa
disso mesmo, da falta da formação[...]. Ao citar que presenciou uma
professora com dúvidas sobre as propostas do Ler, em um evento
destinado ao ensino de ciências, a Professora 5 chega à conclusão de
que essa situação é consequência da falta de formação continuada
sobre o Programa Ler e Escrever e de certa forma, afirma a importância
desse tipo de formação destinada aos professores.
Quando questionadas sobre a formação continuada, as
Professoras 4 e 2 responderam:
Professora 4
- Não, até eu acho [...] que a gente que já tem esse
tempo de trabalho, pra gente é mais fácil trabalhar. Agora, pra uma
pessoa que tá começando agora com esse material, porque o Ler e
Escrever não tem respostas, não é que nem o livro didático que vem
as respostas ali. Você tem que pesquisar bastante, você tem que ler o
projeto inteiro antes de passar pras crianças. Então, se você não tiver
uma formação, é difícil conseguir. No início, no começo do Ler e
Escrever, teve formação. Não foi uma formação maravilhosa, mas
deu pra gente aprender a usar o material [...] eu acho que, pra quem
está começando agora e não tem uma certa formação, eu acho que é
muito difícil trabalhar com esse material, não sei como a pessoa
consegue, não sei se dá conta de trabalhar com ele [...] a última vez
que teve foi na época que tinha ATP, faz quanto tempo? Quando
mudou o prefeito? Faz uns quatro ou cinco anos. (ENTREVISTA,
25 de junho de 2019)
Professora 2
Não vou lembrar quando, mas teve sim. Na
secretaria da educação, tinha os HEs coletivos e a ATP dava o curso
187
[...] eu só não lembro o ano que aconteceu. Faz tempo [...]. O
PNAIC falou algumas coisas do Ler, mas nada muito assim [...]
precisaria ter de novo o curso[...] pra mim foi bom, as vezes a gente
reclama que eles estão falando de muita coisa que a gente
já sabe, mas as vezes você sabe, mas você vendo de outra maneira, as
pessoas falando de outro jeito, você consegue entender melhor, né
[...]Só achei que foi pouco tempo, poderia ter sido mais tempo, mas
eu gostei. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
A Professora 4, em consonância ao pensamento da Professora
5, se mostrou preocupada pelo fato de não haver mais a formação
continuada.
Ao
relatar [...] agora, pra uma pe
ss
oa que começando
agora com esse material, porque o Ler e Escrever não tem respostas, não é
que nem o livro didático que vem as respostas ali. Você tem que pesquisar
bastante, você tem que ler o projeto inteiro antes de passar pras crianças.
Então, se você não tiver uma formação, é difícil conseguir, a participante
demonstrou que os cursos de formação são necessários, devido à
complexidade do material, que exige esforço e estudo por parte dos
professores.
Já a Professora 2 critica o tempo de duração do curso de
formação continuada, pois acredita ter sido muito curto. Em
contrapartida, a entrevistada relata que a formação continuada
ofertada pelo Programa Ler e Escrever foi produtiva, porque mesmo
tratando de assuntos por ela já familiarizados, ter contato com esses
temas por meio de outros pontos de vista a fez compreender sob outra
perspectiva, ampliando assim, seu repertório pessoal. Logo, a crítica
ao tempo de duração do curso complementa o caráter de satisfação da
professora diante das propostas trabalhadas pela formação, uma vez
que, pelo curso ter sido proveitoso, ele poderia ter durado mais
tempo.
188
Por meio do trecho [...] às vezes a gente reclama que eles eso
falando de muita coisa que a gente já sabe, mas às vezes você sabe, mas
você vendo de outra maneira, as pessoas falando de outro jeito, você
consegue entender melhor, a professora demonstra que, mesmo não
havendo mudanças sobre o conteúdo da formação, as aulas ajudam a
formar o repertório de compreensão sobre os temas trabalhados.
A
Professora 5 também relatou as
vantage
ns
s
obre a formação,
poi
s
declara que na formação você percebia, realmente, a ligação de tudo
que você estava meio perdido. Dessa forma, a formação foi importante
para a professora compreender as justificativas das propostas
pedagógicas apresentadas pelo Programa, produzindo assim, um
sentido significativo para as orientações do Programa Ler e Escrever.
Sobre o
Ler e Escrever
e a literatura...
A última pergunta que realizei às professoras durante a
entrevista propôs uma reflexão sobre o Ler e Escrever e a formação do
leitor literário:
Pesquisadora -
Você acha que o Ler, ele ajuda na formação de leitor
literário?
Professora 1
- Na minha opinião, não. Porque ali é um
resgate, ali tem muitas cantigas de roda, que é a coisa que você está
trabalhando atualmente, parlendas [...] depois sempre tem
cruzadinhas, tem bingo de nomes, tudo isso você trabalha na sala
[...] (ENTREVISTA, 24 de junho de 2019)
Para a Professora 1, o Programa não promove a formação do
leitor de literatura,
ao
dizer [...] ali é um re
s
gate, ali tem muita
s
cantiga
s
de roda [...] parlendas a entrevistada demonstra que em sua
percepção, a leitura realizada pelas crianças por meio de seu repertório
memorialístico não é leitura. No entanto, para as Professoras 2 e 4, o
189
Programa Ler e Escrever atua na formação do leitor literário,
justamente por resgatar os textos que as crianças já conhecem.
Professora 2
Eu acho que as atividades que têm no Ler ajudam
sim, porque tem as cantigas, tem as parlendas, que muitos já sabem
de memória, porque já trazem da pré-escola [...] tem bastante
parlenda no Ler, como eu falei pra você, o livro de texto é rico nesses
textos, eu gosto muito de trabalhar com ele. Pra mim eu acho que
ajuda muito na formação de leitor sim [...] (ENTREVISTA, 26 de
junho de 2019)
Professora 4
- Ele ajuda, porque as crianças têm contato com todo
tipo de texto, desde o primeiro ano até o quinto ano que a gente
trabalha aqui, eles têm contato desde o primeiro ano com (...) textos
de parlendas, textos de memória, que no segundo com os textos de
memória, textos com rimas[...] Depois, no terceiro com contos, né?
No quarto com as fábulas, no quinto com as lendas, com os textos de
mistério, né? Então, assim (...) em todo processo desde o primeiro ano
eles conseguem, se for bem trabalhado, se for bem conduzido, vão ter
contato com todos os tipos de textos, eles podem até se organizar pra
ver aquilo que eles mais gostam de ler, porque tem coisa que a gente
gosta de ler, tem coisa que a gente não gosta, né? (ENTREVISTA,
25de junho de 2019)
Segundo Ferreira (2003, p. 128), “ler é fazer emergir a
biblioteca vivida, a memória de leituras anteriores e de dados
culturais”. Para a autora, a leitura literária pressupõe o resgate
dialógico dos conhecimentos prévios dos leitores, a fim de que sejam
atribuídos sentidos significativos no processo da leitura. Logo, para ler
literatura é necessário acessar a biblioteca vivida.
[...] construírem uma biblioteca vivida, um lastro mínimo do
conhecimento armazenado pela humanidade, para que
pudessem se utilizar, durante a leitura, da memória transtextual,
190
da memória de leituras anteriores e de dados culturais, e
descobrissem as inúmeras leituras que um texto literário permite
e o diálogo que ele estabelece com outros. Ao realizar essas
operações cognitivas, o aluno se depara com o prazer que o olhar
de descoberta pode ofertar. (FERREIRA, 2009, p. 320)
Para a Professora 2, as atividades propostas pelo Programa
[...] ajudam sim, porque tem as cantigas, tem as parlendas, que muitos
já sabem de memória, porque já trazem da pré- escola. Para a Professora
4, o Ler e Escrever também é responsável pela formação do leitor
literário [...] porque
as
criança
s
m contato com todo tipo de texto, desde
o ano até o ano. Dessa forma, as Professoras 2 e 4 compreendem
que ler literatura requer construir um repertório com o qual a
atividade de leitura possa estabelecer uma relação dialógica, e para
elas, o Ler e Escrever atua no processo de formação dos leitores
literários, justamente por auxiliar na construção desse repertório.
Já a Professora 1 ignora a importância da construção do
repertório prévio para a formação do leitor de literatura. Ao dizer que
o Ler e Escrever não forma o leitor literário porque a proposta parte
do resgate dos textos que os alunos já conhecem, a entrevistada
classifica a didatização da leitura de textos de literatura enquanto
decodificação de signos linguísticos possíveis ou não de promover
sentidos, porém, desconsiderando todo o processo de atribuição de
sentidos que a atividade de leitura promove em seu leitor.
As obras precisam fazer parte da vida do aluno para que
pertençam não somente ao acervo escolar e cultural, mas ao seu
imaginário, à sua história de leitura, ou seja, à sua biblioteca
vivida. A constituição dessa biblioteca integra socialmente o
leitor, pois, ao construí-la, ele se apropria gradativamente do que
sempre lhe pertenceu, ou seja, de seu legado cultural
(FERREIRA, 2009, p. 34)
191
A inclusão dos textos literários nos manuais didáticos, para a
Professora 1, transforma o texto literário em um recurso apenas para
alcançar os objetivos pré-estabelecidos pela proposta pedagógica,
desprezando todo o caráter formativo que permeia a literatura.
Quando questionadas sobre a relação entre o Programa Ler e
Escrever e a literatura, as Professoras 3 e 5 responderam:
Professora 3
Não favorece a formação dos leitores. Vamos pegar
os contos [...]eu acho que esses textos longos e difíceis afastam as
crianças da literatura [...] as crianças com dificuldades se sentem
intimidadas [...] deveriam apresentar textos mais condizentes com a
idade deles. (ENTREVISTA, 14 de novembro de 2019)
Professora 5
[...] eu acho que não, porque [...] desmotiva a
criança, não prende a criança na leitura. Nesse ponto não, porque
tinha que ser uma leitura agradável, alguma coisa. Não sei assim,
direito, mas eu acho que é essa questão mesmo de ser muito extenso
e sem ilustração [...] não chama a atenção das crianças [...] apesar
de ter ali vários textos de escritores que a gente vem estudando desde
que era adolescente mesmo, porque são escritores renomados. Então
eu acho que [...] a publicação afasta a criança desses tipos de textos
[...] a criança vai querer aquelas literaturas, aqueles livros de massa,
como dizem. (ENTREVISTA, 26 de junho de 2019)
Ambas entrevistadas consideram que a apresentação dos
textos pelo Programa Ler e Escrever são responsáveis pelo afastamento
das crianças da literatura. Para a Professora 3, os textos são longos e
difíceis. Já a Professora 5 comenta que o material apresenta textos
extensos e sem ilustrações. Chartier (2014) afirma que a leitura é uma
manifestação cultural que está intimamente ligada ao objeto que a
veicula, ou seja, os livros. Sendo assim, a impressão desses objetos da
192
cultura letrada exerce uma grande influência na relação com a
construção da atividade leitora:
Dentro da longa duração da cultura escrita, toda mudança (o
aparecimento do códice, a invenção da prensa, revoluções em
práticas de leitura) produziu uma coexistência original de ações
do passado com técnicas novas. Toda vez que tal mudança
ocorreu, a cultura escrita conferiu novos papéis a velhos objetos e
práticas: o rolo na era do códice, a publicação manuscrita na era
da impressão. (CHARTIER, 2014, p. 126)
Para as Professoras 3 e 5, as escolhas editoriais relacionadas à
publicação do material do programa Ler e Escrever interferem na
aproximação da criança com a literatura. A professora 3 acredita que
os textos são demasiadamente longos, além de não estarem
condizentes com a faixa etária dos alunos. A professora 5 afirma que,
mesmo apresentando bons textos, de autores renomados, a [...]
publicação afa
s
ta a criaa de
ss
e
s
ti
pos
de text
os
[...] a criaa vai querer
aquela
s
literaturas, aqueles livros de massa, como dizem.
A Professora ainda cita a literatura de massa, por compreender
que há uma diferença entre os textos clássicos apresentados pelo
Programa e os livros em nada emanciparios que seus alunos
geralmente consomem. Para a entrevistada, a forma com que os bons
textos literários são apresentados aos estudantes por meio do
Programa Ler e Escrever, sem instigação imagética, contribui para que
as crianças prefiram as leituras de baixa qualidade estética, porém,
repletas de atrativos que chamem a atenção do leitor mirim.
Afinal, e as relações entre as estratégias e as táticas?
193
As professoras participantes desse estudo têm concepções
bastante diferentes sobre o Programa Ler e Escrever. No entanto, o
traço comum encontrado é uma certa dificuldade em trabalhar com
o material.
As Professoras 1 e 3 não aceitam o Programa Ler e Escrever,
ficando evidente que trabalham a partir das propostas por
obrigatoriedade. Ao dizer que trabalha com o Ler e Escrever porque
faz parte do currículo, a Professora 1 demonstra que na realidade não
aprecia o material, e que apenas o utiliza por ser uma estragia imposta
pela SME de Assis.
A
partir da fra
s
e [...] inicialmente eu era muito contra e
ss
e
material e
s
truturado pelo gove
rno
e das expressões [...] goela abaix
o
,
[...] me senti ofendida, [...] de
s
c
ons
iderando a inteligência, e
s
i
ns
ultando
aquele profess
or
e [...] afinal não
s
ou burra, a Professora 3 escancara
seu enorme descontentamento com relação à aceitação das propostas
do Programa. Para ela a proposta é vista como uma imposição
intransigente de práticas pedagógicas que não estariam adequadas à
sala de aula.
As Professoras 1 e 3 compreendem a leitura como um
processo de decodificação e de atribuição de sentidos vinculado ao
texto, capaz de promover a formação do leitor. Para as entrevistadas,
a leitura também é uma possibilidade de ascensão na esfera social. As
participantes também reconhecem a função social da literatura.
Contudo, por compreender que a literatura também proporciona
prazer ao leitor, as professoras consideram o texto literário no espaço
da escola muito mais próximo dos momentos de distração e
escapismo para os alunos.
A inclusão do texto literário nos materiais didáticos, para
ambas entrevistadas, transforma o texto apenas em subsídio para a
realização da proposta pedagica, fazendo com que as professoras
194
desconsiderem a função humanizadora da literatura presente no
material didático em vista dos objetivos predeterminados pela
atividade. As professoras 1 e 3 não aplicam ao texto literário
didatizado a dimensão dialógica entre o leitor e o texto lido que a
atividade de leitura provoca.
Sendo assim, as táticas das Professoras 1 e 3 estão em
desalinho com as estratégias apresentadas pelo Programa Ler e
Escrever para o ensino da leitura e da literatura, uma vez que as
professoras não conseguem atribuir sentido significativo para essas
sugestões de práticas contidas no manual.
as Professoras 4 e 5 não encontram problemas com o
Programa Ler e Escrever. Suas representações sobre leitura e sobre
literatura se assemelham às representações encontradas no material. As
participantes compreendem que a leitura é uma ação prática de
atribuição de sentidos, que auxilia na construção de um repertório de
conhecimentos prévios no leitor. E que a literatura é uma
manifestação cultural capaz de formar o ser humano de forma
integral, psicologicamente e crítica- social. Sendo assim, as Professoras
4 e 5 incorporam as estratégias propostas pelo Programa Ler e Escrever,
pois para essas participantes, fazem todo sentido.
A Professora 2 apresenta as representações acerca da leitura e
da literatura mais distantes das representações encontradas no
Programa Ler e Escrever. A participante compreende a leitura por
decodificação dos signos linguísticos, e a literatura por leitura, ou seja,
todos os encontros entre leitores e textos escritos. A Professora 2
também foi a única participante que admitiu não ler fora do contexto
escolar, enunciando que preferiria consumir conteúdo audiovisual à
leitura, enquanto todas as outras professoras participantes garantiam
que, ou realizavam leituras extra escolares, ou gostariam muito de
realizá-las, mas por falta de tempo isso não era possível.
195
Contudo, mesmo com tantas diferenças no nível discursivo,
os modos de fazer da Professora 2 estão completamente de acordo com
as estratégias direcionadas pelo Programa Ler e Escrever. Dessa forma, a
professora garante que aprecia o trabalho a partir das propostas
evidenciadas pelo material, sem apresentar críticas muito
significativas. Por apresentar representações sobre a leitura e a
literatura descontextualizadas, e por não conseguir refletir
s
obre e
ss
a
s
vi
s
õe
s
, a
Professora 2 adota o
Programa Ler e Es
crever como
s
eu
manual de receitas pedagógicas”.
196
197
6.
E tudo foi tão de repente...
Algumas considerações
Já disse de nós.
Já disse de mim.
Já disse do mundo.
Já disse agora,
Eu que já disse nunca. Todo mundo sabe,
Eu já disse muito.
Tenho a impressão
Que já disse tudo.
E tudo foi tão de repente...
Paulo Leminski
Para realizar algumas considerações finais é preciso resgatar
algumas considerações iniciais. Paradoxo instaurado, cabe agora
elaborar essa revisão.
Investigar a formação de leitores literários é algo muito íntimo
para mim, pois a tentativa de compreender porque determinadas
pessoas praticamente não sobrevivem sem a literatura é, ao mesmo
tempo, uma proposta de autorreflexão sobre as minhas próprias
práticas de leitura.
A literatura, como a vida, ensina na medida em que atua com
toda a sua gama” (CANDIDO, 1999, p. 84). Ou seja, a literatura é
capaz de formar o ser humano de maneira integral. Sendo assim, a
198
formação do leitor de literatura deve ser considerada sobretudo no
espaço escolar.
Desse modo, decidi investigar a formação de leitores de
literatura na escola. E o espaço eleito para a realização dessa
investigação foi o ambiente onde atuei por mais de dez anos como
professora. Essa escola, assim como todas as outras escolas municipais
de Assis, utilizava o Programa Ler e Escrever como proposta
pedagógica para a introdução e o ensino da língua materna escrita
para as crianças. Consequentemente, a formação do leitor de
literatura na escola pública do município também se desenvolvia em
virtude do Ler e Escrever. Dessa maneira, pude delimitar o esboço de
minha pesquisa, com o objetivo de compreender de que modo ocorria
a formação do leitor de literatura, por meio do Programa, em uma
escola municipal de Assis.
Cartas na mesa, contudo, a primeira pedra no meio do
caminho20 surgiu assim que o traçado da pesquisa se solidificou. Se
num primeiro momento a pergunta norteadora da construção do
pensamento científico era o que investigar?, agora esse questionamento
já não era mais suficiente. Meus pensamentos foram tomados pelo
como investigar?
Para And (2012, p. 42) o estudo do cotidiano escolar
não
pode se restringir a um mero retrato do que se passa no seu cotidiano,
deve envolver um processo de reconstrução dessa prática [...]
recuperando a força viva que nela está presente.” O processo de
reflexão sobre de que maneira realizaria essa investigação me levou a
optar pela abordagem qualitativa na pesquisa científica,
fundamentada pela perspectiva etnográfica.
20 Referência ao poema No meio do caminho, de Carlos Drummond de Andrade, de 1930.
ANDRADE, C. D. Antologia Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
199
Tal abordagem se fez necessária porque é preciso reconhecer
a subjetividade que envolve a área da educação na escola, dado que o
foco do trabalho deve ser voltado ao sujeito como principal integrante
da pesquisa. E a perspectiva etnográfica pois se caracteriza, sobretudo,
pelo contato direto do pesquisador diante da situação pesquisada,
fator que consolida a reconstrução dos processos e das relações que
caracterizam a experiência escolar do dia a dia.
Para conduzir essa investigação foram realizadas observações
de campo e entrevistas com as professoras participantes, sobre suas
atuações com o Programa Ler e Escrever, assim como sua importância
para a formação de leitores literários. Também foram realizadas
análises documentais do Programa. O problema como investigar estava
solucionado.
Parte do caminho percorrido, objeto e métodos definidos,
obstáculos novos apresentados: o que fazer com esses dados?
Adentrar o cotidiano escolar em busca da investigação
científica requer um olhar minucioso voltado inclusive para todos os
pormenores encontrados. Na escola presenciamos as construções das
relações pautadas no poder hierarquizante. E ao mesmo tempo em que
esses mandos e desmandos, se me permitem o trocadilho, ocorrem em
primeiro plano, há, em uma esfera quase clandestina, porém
borbulhante de vivências, as caças não autorizadas do homem comum.
Encontrei em Certeau (1998) a solução para a pergunta o que fazer
com esses dados.
Na obra A invenção do cotidiano, o historiador Michel de
Certeau propõe que as práticas culturais e seus modos de consumo sejam
estudados a partir das operações subversivas realizadas pelos
indivíduos durante o processo de interação social. Dessa forma, o
historiador inverte a perspectiva de análise científica sociológica,
200
até então centrada sob a ótica das relações de poder dominante na
sociedade.
Certeau (1998) classifica as práticas culturais em táticas e
estratégias. Para o autor, as estratégias são
o cálculo da
s
relõe
s
de
força
s
que
s
e torna
poss
ível a partir do momento em que um sujeito
de querer e poder é isolável de um ambiente” (CERTEAU, 1998, p.
46). As estratégias são, dessa forma, os poderes derivados das
autoridades legitimadas pela sociedade, que se impõem no decorrer
da vida cotidiana. Já a tática é o “lculo que não pode contar com
um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro
como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro.
(CERTEAU, 1998, p. 46) Logo, as táticas, são as ações realizadas
pelos indivíduos em suas vivências cotidianas. As táticas são os modos
de fazer do homem comum diante das estratégias impostas pelas
relações de poder vigentes em cada esfera social.
Mediante a teoria oferecida por Certeau (1998) defini que as
análises documentais sobre o Programa Ler e Escrever explorariam a
temática das estratégias enquanto contribuição para a formação do
leitor de literatura. as observações de campo e as entrevistas
procurariam caracterizar as táticas dos docentes e averiguariam suas
atuações para o desenvolvimento dos leitores de literatura.
Não obstante, para que eu pudesse compreender as táticas
docentes no ensino da literatura, era necessário conhecer suas
representações sobre a mesma literatura que estava
s
endo e
ns
inada.
Chartier (1990, p. 17) define
as
r
e
pr
e
s
entaçõe
s
como
os “
esquemas
intelectuais incorporados que criam as figuras graças as quais o
presente pode adquirir sentido”. Sendo assim, as táticas dos
professores ou estão ancoradas nos esquemas estratégicos impostos ou
estão ancoradas em suas representações de mundo.
201
As análises evidenciaram que as cinco professoras participantes
desse estudo possuem diferentes percepções sobre o que é a leitura e
o que é a literatura. Algumas dessas representações se aproximam das
concepções que dão suporte ao Programa Ler e Escrever. Outras estão
muito distantes.
O Programa Ler e Escrever compreendia a leitura e seu ensino
como um processo de atribuição de sentidos, contextualizado
histórico e socialmente, vinculado aos recursos enunciativos presentes
no texto e capaz de promover o pensamento crítico que estabelece um
diálogo entre o leitor e o texto lido.
a literatura é uma forma de expressão por meio da língua
escrita de maneira esteticamente construída. O Programa Ler e
Escrever compreendia a literatura como uma importante agente no
processo de aquisição da língua escrita, justamente por apresentar o
universo das palavras de modo que permite a criação de vínculos entre
as crianças e a cultura letrada.
As representações a respeito da leitura e a literatura das
Professoras 4 e 5 se assemelhavam aos conceitos verificados no
Programa Ler e Escrever. Consequentemente, para ambas a literatura
deve ser ensinada na escola, já que além de apresentar o uso
diferenciado da língua escrita, é estruturante do pensamento e auxilia
na formação crítica e social da criança. Dessa forma, as táticas das
Professoras 4 e 5 incorporavam as estratégias apresentadas pelo
Programa Ler e Escrever para o ensino da literatura, já que para essas
participantes as estratégias eram significativas.
As Professoras 1 e 3 compreendiam, em partes, as concepções
acerca da leitura e da literatura, apresentadas pelo Programa Ler e
Escrever. Para as duas participantes, a leitura era vista como um
processo de decodificação e de atribuição de sentidos, vinculados pelo
texto e que promovia a formação do pensamento crítico. As
202
entrevistadas também enxergavam a leitura como uma possibilidade
de ascensão dentro da esfera social. Entretanto, a relação dialógica
construída entre o leitor e o texto escrito era desconsiderada pelas
mesmas durante sua ação pedagógica.
A literatura, por sua vez, era considerada pelas entrevistadas
como produções da língua escrita, epistemologicamente artísticas,
responsáveis por proporcionar prazer e escape da realidade ao leitor.
As professoras também reconheciam a função social da literatura de
atuar na formação da criança. Contudo, justamente por proporcionar
o prazer, para as Professoras 1 e 3, a literatura na escola estaria mais
próxima dos momentos de passatempo em relação aos momentos de
estudo.
Em vista disso, há um embate entre as táticas das Professoras
1 e 3 e as estratégias apresentadas pelo Programa Ler e Escrever para o
ensino da leitura e da literatura, pois as participantes não conseguiam
atribuir sentido pelas práticas determinadas para o ensino por meio
do Ler.
Já as representações sobre a leitura e a literatura para a
Professora 2 são as mais distantes dos conceitos identificados no
Programa Ler e Escrever. A participante compreendia a leitura como
um processo de decodificação e de atribuição de sentido vinculado ao
texto escrito, de forma pragmática, buscando apenas informações
desconhecidas.
a literatura era vista como o conjunto de textos escritos
que podiam promover a formação cidadã no leitor em
desenvolvimento. Dessa forma, a professora 2 não distingue os
diferentes gêneros textuais, não compreendendo seus usos e funções na
contextualização social. No entanto, as táticas da Professora 2 estão
em pleno acordo com as estratégias propostas pelo Programa Ler e
Escrever. Ao apresentar representações sobre a leitura e a literatura
203
descontextualizadas, e sem o processo de reflexão sobre esses
conceitos, o Programa Ler e Escrever se torna um manual de receitas
pedagógicas para essa professora.
No meio de todos esses embates entre as estratégias e as táticas
está o aluno. Um ser em constante construção de saberes e em pleno
desenvolvimento humano. E as divergências evidenciadas entre os
modos de fazer impostos pelo establishment escolar e os modos de
fazer furtivos pertencentes ao cotidiano da escola não beneficiam as
relações entre o aluno e o saber.
O professor é um dos protagonistas na constituição da
relação ensino-aprendizagem no espaço escolar. Logo, compreender
suas ações e suas motivações implica compreender o como e o porquê
determinadas propostas são aprovadas enquanto outras são
rechaçadas pelos docentes.
A formação continuada do professor talvez seja um dos pontos
mais emblemáticos dessa contextura educacional. No momento da
formação, o sujeito-professor se transforma no sujeito-aprendiz. Ao
mesmo tempo em que leciona durante o dia, esse sujeito assiste a
outras pessoas lecionando à noite, num movimento de inversão de
papéis digno dos enredos mais sofisticados. Esse sujeito, ora professor,
ora aprendiz, tem muito a dizer sobre sua prática docente.
Entretanto, ele é relegado ao foco cnico conteudista, geralmente
presente nesses cursos, fato que transforma a formação continuada em
um grande paradoxo. Se o objetivo dessa formação é provocar, no
professor, a reflexão sobre suas práticas, por que as práticas da
formação continuada não são provocativas?
Apesar do discurso progressista, que geralmente se apresenta
com a proposta de rever as posições estabelecidas, a maioria desses
cursos são, na verdade, mantenedores desse mesmo sistema
educacional atual. Por meio da oferta de conteúdo técnico-
204
metodológico, essas formações não proporcionam o contato com
obras estruturantes e formativas do pensamento docente, subsídios
para que o professor reflita sobre suas práticas. E refletir sobre suas
práticas implica diretamente nos modos de fazer cotidianos desse
professor.
Investir nas pessoas que fazem a educação acontecer não é um
investimento para o futuro. É um investimento para o presente. E a
poesia também está contida nisso tudo21.
21 Referência ao poema Gosto, de Carlos Drummond de Andrade, publicado na obra:
ANDRADE, C.D. et al. Pau Brasil. São Paulo: DAEE, n. 13, ano III, 1986
205
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215
Sobre a autora
Sou natural de Assis, interior do estado de São Paulo. Sempre
frequentei a escola pública, da Educação Básica ao Ensino Superior
(se bem que na década de 1990, ao menos na região de Assis,
conhecíamos a Educação Básica por Escola Primária, Ginásio e
Colegial).
Me graduei em Letras pela Unesp Assis em 2005 e a partir
do diploma em mãos iniciei minha carreira como professora. Foram
10 anos de atuação docente na educação Básica até optar por retornar
à academia junto ao GEPLENP Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Linguagem, Ensino e Narrativas de Professores. Em 2021 me tornei
Mestra em Educação pela Unesp Marília, sob a orientação da
estimada Professora Raquel Lazzari Leite Barbosa. Atualmente sou
doutoranda em Educação pelo mesmo Programa de Pós-graduação,
sob a orientação da mesma querida Professora.
216
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Kamilla Gonçalves
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
“Se fosse ensinar a uma criança a arte da
leitura, não começaria com as letras e
as sílabas. Simplesmente leria as estórias
mais fascinantes que a fariam entrar no
mundo encantado da fantasia. Aí então,
com inveja dos meus poderes mágicos,
ela desejaria que eu lhe ensinasse o se-
gredo que transforma letras e sílabas em
estórias.
É muito simples. O mundo de
cada pessoa é muito pequeno. Os livros
são a porta para um mundo grande. Pela
leitura vivemos experiências que não fo-
ram nossas e então elas passam a ser nos-
sas. Lemos a estória de um grande amor
e experimentamos as alegrias e dores de
um grande amor. Lemos estórias de ba-
talhas e nos tornamos guerreiros de es-
pada na mão, sem os perigos das batalhas
de verdade. Viajamos para o passado e
nos tornamos contemporâneos dos di-
nossauros. Viajamos para o futuro e nos
transportamos para mundos que não
existem ainda.
Lemos as biogra as de pessoas
extraordinárias que lutaram por causas
bonitas e nos tornamos seus companhei-
ros de lutas. Lendo, fazemos turismo sem
sair do lugar. E isso é muito bom.”
Como Ensinar de Rubem Alves
9 786559 544998
ISBN 978-65-5954-499-8