Produzir conhecimento, através
de pesquisas cientí cas, sobre educação,
direitos humanos e diversidade, tendo o
currículo como foco, é uma das exigências
e imperativo para a construção de um novo
projeto que busca fortalecer a Democracia
como bem maior, de forma a contribuir
para a garantia de uma sociedade com
justiça social, inclusiva e respeito à
diversidade.
É com esse compromisso que
especialistas comprometidos com esse
projeto de sociedade desenvolveram
estudos e pesquisas, buscando desvelar essa
importante tetica, ao compreenderem a
educação como vetor de transformação e
emancipação do ser humano.
Este livro, portanto, apresenta uma
grande contribuição para a formação e
humanização das pessoas, diante da riqueza
dos estudos realizados, re etindo sobre os
marcos legais das legislações educativas,
resultado do compromisso dos seus autores
com a efetivação de uma sociedade justa e
igualitária, no respeito à diversidade.
Os temas aqui desenvolvidos
são muito caros para a formação dos
pro ssionais, em especial da educação,
ao fazer diálogo com o currículo escolar
centralizado em questões de gênero e
sexualidade, permeando a sala de aula,
a formação dos educadores e, buscando
inseri-los nas poticas públicas.
Diante da história recente
da sociedade brasileira, nos últimos
quatro anos, com a vigência de governo
negacionista do conhecimento cientí co,
reaciorio, autoritário, homofóbico, com
práticas de estímulo às diversas formas
de violências, entre elas, a de gênero,
em total desrespeito as orientações
sexuais, poticas, religiosas e à dignidade
das pessoas, este livro torna-se leitura
obrigatória para todos/as educadores/
as, estudantes e pro ssionais das diversas
áreas de conhecimento.
Entendemos que a construção de socieda-
de democrática só é possível com o envol-
vimento de pessoas que detêm o instru-
mental do conhecimento sobre os direitos
humanos, de forma consciente, e que lutam
por uma sociedade inclusiva, com justiça
social, desenvolvimento socioambiental,
em que as pessoas possam ser respeitadas
na sua condição de ser humano.
abril de 2023.
Diante da recente conjuntura de ataques às poticas públicas que
contemplam os temas gênero e sexualidades, erigimos a presente obra,
que teve como proposta abordar resultados de pesquisas, concluídas e/ou
em andamento, que tratam da intersecção dos direitos humanos e temas
relativos à diversidade com a Educação, especialmente aquelas que pensam
a dimensão curricular nessa intersecção.
O livro reuniu 18 capítulos de pesquisadoras e pesquisadores vinculadas(os)
a diferentes Instituições de Ensino Superior (IES) do país e pertencentes às
cinco regiões brasileiras, a saber: a UFT (Região Norte); as UNEB, UESB,
UFBA, UFS, UFMA, UECE e UFCA (Região Nordeste); as UNEMAT,
UEMS, IFG e UnB (Região Centro-Oeste); as UNESP, UNIMEP, UFF,
UFRRJ e a UFU (Região Sudeste); e as UEL, UTFPR, FURG e o IFSul (Região
Sul); assim como também capítulo de autoria de pesquisadores(as) de
instituições internacionais, da Leuphana Universität Lüneburg (Leuphana),
na Alemanha, e da Universidade de Coimbra (UC), em Portugal.
Assim, esperamos que, com este livro, tenhamos uma amostra representativa
da variedade de pesquisas desenvolvidas nas diferentes regiões do país
que, então, interseccionam os temas direitos humanos e temas relativos
à diversidade com a Educação. Esperamos, também, que seja de grande
proveito para pesquisadores(as) iniciantes e mais experientes, para
estudantes de graduação, pós-graduação, professores(as) e demais
pro ssionais da Educação e áreas a ns que se interessam pelos temas ou
que procuram, a partir do estudo deles, uma nova perspectiva de vida.
EDUCAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E DIVERSIDADE
o currículo em foco
PROFA. DRA. AIDA MARIA MONTEIRO SILVA
Professora Titular aposentada da
Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE)
9 786559 546084
ISBN 978-65-5954-608-4
EDUCAÇÃO, DIREITOS HUMANOS
E DIVERSIDADE:
o currículo em foco
Matheus Estevão Ferreira da Silva
Wagner Antonio Junior
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
(Organizadores)
Matheus Estevão Ferreira da Silva
Wagner Antonio Junior
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
(Organizadores)
EDUCÃO, DIREITOS HUMANOS
E DIVERSIDADE:
o currículo em foco
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2025
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIASFFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Ana Clara Bortoleto Nery
Vice-Diretora
Dra. Cristiane Rodrigues Pedroni
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Edvaldo Soares
Franciele Marques Redigolo
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Henrique Tahan Novaes
Aila Narene Dahwache Criado Rocha
Alonso Bezerra de Carvalho
Ana Clara Bortoleto Nery
Claudia da Mota Daros Parente
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto
Daniela Nogueira de Moraes Garcia
Pedro Angelo Pagni
Auxílio 0039/2022, Processo 23038.001838/2022-11, Programa PROEX/CAPES
Parecerista: Ana Klein (UNESP/São José do Rio Preto)
Ficha catalográfica
E24 Educação, direitos humanos e diversidade: o currículo em foco / Matheus Estevão
Ferreira da Silva, Wagner Antônio Júnior, Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo
(Organizadores). Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica,
2025.
458 p. : il.
CAPES
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-608-4 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-609-1 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-609-1
1. Educação básica - Currículos. 2. Direitos humanos. 3. Pluralismo cultural. 4.
Gênero. 5. Identidade de gênero. I. Silva, Matheus Estevão Ferreira da. II. Antônio Júnior,
Wagner. III. Brabo, Tânia Suely Antonelli Marcelino. IV. Título.
CDD 370.9
Catalogação: André Sávio Craveiro BuenoCRB 8/8211
Copyright © 2025, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
SUMÁRIO
PREFÁCIO .................................................................................... 9
Aida Maria Monteiro Silva
APRESENTAÇÃO ...................................................................... 13
Matheus Estevão Ferreira da Silva, Wagner Antonio Junior, Tânia
Suely Antonelli Marcelino Brabo
EDUCAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E CURRÍCULO: UM
DIÁLOGO NECESSÁRIO ......................................................... 19
Tiago Dionisio da Silva, Nilcelio Sacramento de Sousa, Abinalio
Ubiratan da Cruz Subrinho
DIREITOS HUMANOS NO HORIZONTE: A IMPORTÂNCIA
DA HORIZONTALIDADE NA EDUCAÇÃO SOBRE
DIREITOS HUMANOS ............................................................ 41
Célia Regina Rossi, Rafael Gonzaga Macedo, Tiago Cerqueira Lazier
CAMINHOS POSSÍVEIS? UMA BRECHA PARA ALCANÇAR
HUMANOS DIREITOS ............................................................ 61
Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti, Antonio Carlos da Silva
“O QUE [QUEM] ESTÁ DISTANTE” DOS DIREITOS
HUMANOS? UMA ANÁLISE CULTURAL SOBRE
CURRÍCULO E DIFERENÇAS A PARTIR DO PROGRAMA
RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA/CAPES ..................................... 89
Claudiene Santos, Elaine de Jesus Souza, Carlos Thailan de Jesus
Santos
DIREITOS HUMANOS E EDUCAÇÃO: INTERCONEXÕES
ENTRE CURRÍCULO, GÊNERO E SEXUALIDADE ........... 113
Dayenne Karoline Chimiti Pelegrini, Thiago Pelegrini
CURRÍCULO, GÊNERO E EDUCÃO FÍSICA:
ESTRATÉGIAS DE UMA EDUCÃO MENOR ................. 137
Júlia Moita Gaubert, Paula Regina Ribeiro
EDUCAÇÃO SICA ESCOLAR E RELAÇÕES ÉTNICO-
RACIAIS EM FOCO: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A
PRÁTICA COMO COMPONENTE CURRICULAR NOS
CURSOS DE FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORAS E
PROFESSORES ........................................................................ 159
Vagner Matias do Prado
BORDANDO IDENTIDADES: UMA EXPERIÊNCIA
PEDAGÓGICA PARA A DIVERSIDADE A PARTIR DO
CURRÍCULO ........................................................................... 183
Elisandra Gewehr Cardoso, Patrícia Vieira da Silva Pereira, Thalita
Coelho Dantes
RELAÇÕES DE GÊNERO NO ESPAÇO RURAL E O ACESSO
À EDUCAÇÃO: RETRATOS DE DUAS GERAÇÕES DE
MULHERES, FILHAS DE AGRICULTORES DO PERÍMETRO
CURU-PARAIPABA (CE) ........................................................ 199
Virzângela Paula Sandy Mendes
A VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA E SUA ARTICULAÇÃO COM
AS NORMAS REGULATÓRIAS DE GÊNERO ..................... 223
Keith Daiani da Silva Braga, Arilda Inês Miranda Ribeiro
A DISCIPLINA EDUCAÇÃO PARA SEXUALIDADE COMO
PRÁTICA DE RESISTÊNCIA: O CONTEXTO HISTÓRICO E
POLÍTICO DAS TRANSFORMAÇÕES CURRICULARES .. 247
Vinicius Mascarenhas dos Passos, Marcos Lopes de Souza
QUAL O IMPACTO DE UMA DISCIPLINA SOBRE GÊNERO
E SEXUALIDADES NA FORMAÇÃO INICIAL EM
PEDAGOGIA? .......................................................................... 271
Matheus Estevão Ferreira da Silva
NERO, DESIGUALDADES E EDUCAÇÃO EM FOCO: A
FORMAÇÃO INTEGRAL NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA ..................................... 297
Gislaine Gabriele Saueressig, Daniela Medeiros de Azevedo Prates
NA PERSPECTIVA DOS ESTUDOS HISTÓRICOS E AS
POLÍTICAS CURRICULARES: CURRÍCULO PARA SER
INCLUSIVO OU PRÓ-FORMA? ............................................ 323
Dabel Cristina Maria Salviano, Tânia Suely Antonelli Marcelino
Brabo
NERO E SEXUALIDADE NA CONSTRUÇÃO DOS
SABERES DOCENTES E EM POLÍTICAS EDUCACIONAIS
DO BRASIL E DO MARANO ........................................... 347
Rosyene Conceição Soares Cutrim, Sirlene Mota Pinheiro da Silva
EDUCAÇÃO PARA A IGUALDADE RACIAL: REFLEXÕES
SOBRE O CURRÍCULO NO EXTREMO SUL DO BRASIL 371
Taís Mendes Alves, Amanda Motta Castro
NOSSAS VOZES SÃO ALENTOS PARA QUEM? UMA
CONVERSA SOBRE TURISMO, IGNORÂNCIA E
ENCRUZILHADAS DE GÊNERO E RAÇA ........................... 393
Michel Alves Ferreira, Lindamir Salete Casagrande
INTOLENCIA RELIGIOSA: EMPECILHO PARA A
APLICAÇÃO DE UM CURRÍCULO QUE CONTEMPLE A LEI
10.639/03? ................................................................................. 415
Flaviana de Freitas Oliveira, Juliana dos Santos Costa, Ana Maria
Klein
POSCIO ............................................................................... 437
Éderson Luís da Silveira
SOBRE AS AUTORAS E AUTORES ....................................... 443
9
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-609-1.p9-11
PREFÁCIO
Produzir conhecimento, através de pesquisas científicas, sobre
educação, direitos humanos e diversidade, tendo o currículo como
foco, é uma das exigências e imperativo para a construção de um novo
projeto que busca fortalecer a Democracia como bem maior, de forma
a contribuir para a garantia de uma sociedade com justiça social,
inclusiva e respeito à diversidade.
É com esse compromisso que especialistas comprometidos
com esse projeto de sociedade desenvolveram estudos e pesquisas,
buscando desvelar essa importante temática, ao compreenderem a
educação como vetor de transformação e emancipação do ser humano.
A educação entendida como um direito humano, conforme
expressa a Constituição Brasileira de 1988, requer da sociedade
conhecimento dos direitos básicos em busca da materialização, na
medida em que as pessoas se reconheçam como sujeitos de direitos,
sem qualquer forma de discriminação. Isso ganha realce diante de
uma sociedade desigual, com raízes escravocratas, colonialistas,
permeada por práticas de diferentes formas de violências, em que essas
práticas são compreendidas como “normalidades”.
Essa educação se constitui processo formativo sistemático,
contínuo que desenvolve conhecimentos específicos na área dos
direitos humanos, a subjetividade das pessoas em relação aos
comportamentos, atitudes e formas de ser e agir, bem como, ações
efetivas de cidadania ativa em defesa dos direitos humanos.
Nessa direção, o que se busca é uma educação que tenha como
eixo orientador os fundamentos teórico-metodológicos que
10
perpassem os processos educativos, nos âmbitos formal e informal,
em todos os níveis e modalidades de ensino, nas pesquisas, atividades
de extensão e, nas diferentes áreas de conhecimento.
É importante destacar que a Educação calcada na defesa
intransigente dos Direitos Humanos e, na reclamação quando da
violação dos direitos, é possível ser desenvolvida em regimes
democráticos, no respeito às diferenças e na valorização da diversidade
como riqueza social, cultural, étnica. Ao contrário dos regimes
autoritários, conservadores e neoliberais, cuja ênfase é a garantia de
resultados e a não valorização dos processos coletivos de construção
de conhecimentos, que estimula a competitividade sob a ótica de
responder ao mercado e aos interesses do capital, a educação em
direitos humanos é vista como ameaça, razão pela qual é desvalorizada.
Este livro, portanto, apresenta uma grande contribuição para
a formação e humanização das pessoas, diante da riqueza dos estudos
realizados, refletindo sobre os marcos legais das legislações educativas,
resultado do compromisso dos seus autores com a efetivação de uma
sociedade justa e igualitária, no respeito à diversidade.
Os temas aqui desenvolvidos são muito caros para a formação
dos profissionais, em especial da educação, ao fazer diálogo com o
currículo escolar centralizado em questões de gênero e sexualidade,
permeando a sala de aula, a formação dos educadores e, buscando
inseri-los nas políticas públicas.
Diante da história recente da sociedade brasileira, nos últimos
quatro anos, com a vigência de governo negacionista do
conhecimento científico, reacionário, autoritário, homofóbico, com
práticas de estímulo às diversas formas de violências, entre elas, a de
gênero, em total desrespeito as orientações sexuais, políticas, religiosas
e à dignidade das pessoas, este livro torna-se leitura obrigatória para
11
todos/as educadores/as, estudantes e profissionais das diversas áreas
de conhecimento.
Entendemos que a construção de sociedade democrática é
possível com o envolvimento de pessoas que detêm o instrumental do
conhecimento sobre os direitos humanos, de forma consciente, e que
lutam por uma sociedade inclusiva, com justiça social,
desenvolvimento socioambiental, em que as pessoas possam ser
respeitadas na sua condição de ser humano.
Boa leitura!
abril de 2023.
Profa. Dra. Aida Maria Monteiro Silva
Professora Titular aposentada da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
12
13
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-609-1.p13-17
APRESENTAÇÃO
São várias(os) as(os) autoras(es) (UNBEHAUM; CAVASIN;
GAVA, 2010; VIANNA, 2010; 2012) que ressaltam a crescente
promulgação de documentos e parâmetros legais que preveem os
direitos humanos e temas relativos à diversidade humana, como
gênero, sexualidades, raça-etnia, entre outros, no sistema educacional
brasileiro, pelo menos desde o processo de redemocratização do país.
Assim, tendo-se a Constituição Federal de 1988 (BRASIL,
1988) como ponto de partida, à medida em que esse campo
normativo educacional foi se constituindo, consolidaram-se as bases
legais para abordagem e discussão desses temas nas instituições de
ensino, da Educação Básica à Superior.
É imperativo salientar, no entanto, que a elaboração e
promulgação desses documentos, por conseguinte, dessas políticas
públicas educacionais, deram-se principalmente pela atuação de
movimentos sociais junto da sociedade civil organizada, ao cobrarem
e reivindicarem direitos e transformações sociais, de várias naturezas,
dentro da realidade nacional que historicamente é caracterizada por
desigualdades e pela marginalização de determinados sujeitos e grupos
sociais.
Embora em tempo mais recente essa legislação tenha sofrido
ataques de diversos setores da sociedade, sobretudo políticos e
religiosos, como resposta a tais avanços arduamente conquistados no
âmbito da elaboração de políticas públicas, pode-se ainda considerar
que “[...] existe um arcabouço legal que autoriza, fundamenta e
entende o desenvolvimento de atividades e projetos que abordem as
14
relações de gênero[, direitos humanos e demais temas relativos à
diversidade] em sala de aula” (BARREIRO; MARTINS, 2016, p. 98).
Desencadeados sucessivamente em uma crescente onda
conservadora e que constituíram uma atual conjuntura reacionária
nas políticas públicas educacionais, podem-se citar alguns desses
ataques, tais como a retirada dos termos gênero e orientação sexual dos
Planos Municipais, Estaduais (PMEs e PEEs) e Nacional de Educação
(PNE), a criação da narrativa “ideologia de gênero”, que se sustenta
em confusões teóricas e usos inadequados dos Estudos de Gênero, a
promulgação do Estado da Família em 2015, que postura que família
se define apenas pela união de um homem com uma mulher e filhos
desse casamento, os ataques à Lei 10.639/03, que obriga o ensino
sobre história e cultura afro-brasileira nas escolas, e o veto dos
cadernos do Programa Brasil sem Homofobia1, na época referidos
pejorativamente como “kit-gay”.
Essa recente conjuntura apenas demonstrou a consolidação
tênue da inserção dos temas gênero e sexualidades na Educação
brasileira, apesar de sua mencionada aparente consolidação do ponto
de vista legal. E pôde demonstrar, também, a quão pertinente e
necessária continua a inserção dos temas e sua discussão na
escolarização de formandos(as) nos mais diferentes níveis de ensino.
É diante dessa conjuntura que erigimos a presente obra, da
qual tinha como proposta inicial abordar resultados de pesquisas,
concluídas e/ou em andamento, que tratassem da intersecção dos
direitos humanos e temas relativos à diversidade com a Educação,
especialmente aquelas que pensam a dimensão curricular nessa
intersecção. Sendo o currículo um espaço de disputa e de poder
1 Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB (Gays, Lésbicas,
Transgêneros e Bissexuais) e de Promoção da Cidadania de Homossexuais Brasil sem
Homofobia”.
15
(LOPES, 2014), os efeitos disparados pela referida conjuntura
política educacional “antigênero” podem ser vistos na elaboração dos
currículos que orientam o cotidiano escolar, universitário, de espaços
educativos não-formais e etc., e nas próprias práticas curriculares, que
podem tanto sucumbir a esse atual movimento de censura na
Educação brasileira como resisti-lo.
Feito todo o trabalho de organização, pudemos reunir, ao
final, 18 capítulos de pesquisadoras e pesquisadores vinculadas(os) a
diferentes Instituições de Ensino Superior (IES) do país. Além de
constatarmos a qualidade das discussões aqui reunidas, tivemos a
grata surpresa de verificar que as IES que tais autoras e autores dos
capítulos se vinculam pertencem às cinco regiões brasileiras, a saber:
a Universidade Federal do Tocantins (UFT) (Região Norte); as
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (UESB), Universidade Federal da Bahia (UFBA),
Universidade Federal de Sergipe (UFS), Universidade Federal do
Maranhão (UFMA), Universidade Estadual do Ceará (UECE) e
Universidade Federal do Cariri (UFCA) (Região Nordeste); as
Universidade do Estado de Mato Grosso “Carlos Alberto Reyes
Maldonado” (UNEMAT), Universidade Estadual de Mato Grosso
do Sul (UEMS), Instituto Federal de Educação de Goiás (IFG) e
Universidade de Brasília (UnB) (Região Centro-Oeste); as
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Universidade
Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ) e a Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
(Região Sudeste); e as Universidade Estadual de Londrina (UEL),
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR),
Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e o Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia-Sul-riograndense (IFSul) (Região
16
Sul); assim como também capítulo de autoria de pesquisadores(as) de
instituições internacionais, da Leuphana Universität Lüneburg
(Leuphana), na Alemanha, e da Universidade de Coimbra (UC), em
Portugal.
Assim, esperamos que, com este livro, tenhamos uma amostra
representativa da variedade de pesquisas desenvolvidas nas diferentes
regiões do país que, então, interseccionam os temas direitos humanos
e temas relativos à diversidade com a Educação. Esperamos, também,
que seja de grande proveito para pesquisadores(as) iniciantes e mais
experientes, para estudantes de graduação, pós-graduação,
professores(as) e demais profissionais da Educação e áreas afins que se
interessam pelos temas ou que procuram, a partir do estudo deles,
uma nova perspectiva de vida.
Matheus, Wagner e Tânia
(Os organizadores)
Referências
BARREIRO, Alex; MARTINS, Fernando Henrique. Bases e
fundamentos legais para a discussão de gênero e sexualidade em sala
de aula. Leitura: Teoria & Prática, v. 34, n. 68, p. 93-106, 2016.
LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth. Teorias de
currículo. São Paulo: Cortez, 2014.
UNBEHAUM, Sandra; CAVASIN, Sylvia; GAVA, Thais. Gênero e
sexualidade nos currículos de Pedagogia. In: Fazendo Gênero, 9.,
2010, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 2010. p. 1-10.
17
VIANNA, Cláudia Pereira. Gênero, sexualidade e cultura escolar:
desafios para as políticas e práticas educativas. In: BRABO, T. S. A.
M. (Org.). Gênero, educação, trabalho e mídia. São Paulo: Ícone,
2010. p. 151-171.
VIANNA, Cláudia Pereira. Gênero, sexualidade e políticas públicas
de educação: um diálogo com a produção acadêmica. Pro-Posões,
Campinas, v. 23, n. 2, p. 127-143, maio/ago., 2012.
18
19
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-609-1.p19-40
EDUCAÇÃO, DIREITOS HUMANOS
E CURRÍCULO:
UM DIÁLOGO NECESSÁRIO2
Tiago Dionisio da SILVA3
Nilcelio Sacramento de SOUSA4
Abinalio Ubiratan da Cruz SUBRINHO5
Considerações Iniciais
No presente estudo discutimos a Educação e Direitos
Humanos, de modo mais específico a experiência de inserir e
oportunizar este debate nos currículos da escola básica. Nesse
segmento, amparamos as nossas reflexões, além das construções
teóricas-metodológicas-epistemológicas, também no desenvolvimen-
to de oficinas pedagógicas cujo eixo central foi a comemoração dos
70 anos da proclamação dos Direitos Humanos Universais, realizada
no Colégio Estadual Dom Pedro I. A Semana dos Direitos Humanos
foi uma demanda sugerida pela Secretaria de Educação do Estado do
2 Parte das informações construídas e dialogadas neste texto estão presentes também em Silva,
Sousa e Rodrigues 2021).
3 Mestre em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e atua
na Coordenadoria de Articulação e Elaboração de Projetos Educacionais Inovadores
(COAEP/SUPPES/SUBPAE/SEEDUC-RJ), Rio de Janeiro, Brasil.
E-mail: tiago_dionisio@hotmail.com.br
4 Professor Adjunto na Universidade Federal do Tocantins (UFT), Tocantins, Brasil. E-mail:
nilsousa@mail.uft.edu.br
5 Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Bahia, Brasil.
E-mail: ubiratansobrinho80@gmail.com
20
Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ), que solicitou às unidades escolares o
desenvolvimento de atividades sobre o tema ao longo do s de abril
de 2019.
Essa proposição da SEEDUC fez parte de uma preparação das
unidades escolares para o projeto “Para Nunca Esquecer: Pela
valorização da vida, em memória do holocausto”, realizado pelo
Governo do Estado do Rio de Janeiro em parceria com a referida
Secretaria, com foco nos direitos humanos, e ocorrido no mês de maio.
Na ocasião da abertura realizada dia 20 de maio de 2019, no auditório
da SEEDUC/RJ, na ocasião o secretário estadual de Educação, a
época, Pedro Fernandes, proferiu um enfático discurso, no qual
chama atenção a natureza combativa e resistente do projeto: “O poder
público tem que fazer um trabalho preventivo no combate ao bullying,
à discriminação, à homofobia e a qualquer tipo de desrespeito que
possa vir a acontecer dentro das nossas escolas. Isso é fundamental
para formar cidadãos melhores”.
Além desse seminário de abertura, também foi promovido um
concurso no qual os estudantes desenvolveriam atividades e ações
criativas, associando a temática do holocausto a questões
contemporâneas, como o combate ao racismo e à segregação
impetrada contra outros sujeitos, o respeito à diversidade, a defesa da
dignidade humana e dos direitos humanos, entre outros temas. Então,
pensando na preparação dos nossos estudantes, foram realizadas as
oficinas pedagógicas sobre as referidas temáticas. Embora tenha sido
uma atividade extensa, que oportunizou diversas experiências, este
artigo se restringiu a refletir e analisar o desenvolvimento das oficinas
pedagógicas sem exaurir os temas abarcados porquanto o espaço
disponível é insuficiente para tal tarefa.
21
Por considerarmos a escola um espaçotempo6 político e ético
de (re)construção e sistematização do conhecimento científico, além
de ser também um lugar de convívio da juventude, tomamos as
diretrizes indicadas pela SEEDUC/RJ e optamos por elaborar oficinas
pedagógicas. Na tensão entre uma sugestão que soará como uma
imposição do órgão central e as possibilidades existentes no ambiente
escolar, a decisão tomada foi discutir a importância, violação e a
garantia dos Direitos Humanos a partir do contexto social,
econômico, cultural, sexual e racial da juventude inserida no
ambiente escolar. Dessa forma, percebemos nesse espaçotempo da
escola um lócus propício e fecundo para o trabalho de temáticas
historicamente invisibilizadas pelas políticas curriculares oficiais. Esse
espaçotempo é dotado de multiplicidades de culturas, sentidos,
experiências, hibridismo e negociação que contribuem para a
(re)construção da cultura da paz, do respeito aos direitos humanos e
à cidadania e, ainda, propicia o fortalecimento da democracia.
Queremos, contudo, chamar atenção para o fato de que
compreendemos a cidadania enquanto política, ação que é capaz de
conscientizar, politizar e contribuir para a inserção dos grupos
subalternizados nos espaços historicamente negados. É preciso, ainda,
destacar que as discussões e os deslizamentos teórico-epistemológicos
em torno da temática que contempla os direitos humanos não se
restrinjam a uma educação para a cidadania mutilada7 (SANTOS,
2000), mas que avance na perspectiva de uma educação que “[...]
possibilite o reconhecimento e a defesa intransigente dos direitos
6 O princípio da juntabilidade está em diálogo com os estudos nos/dos/com os cotidianos
(ALVES, 2021). Entendendo que conceito vistos como dicotômicos no bojo da
Modernidadeprecisam ser superados, numa perspectiva de conhecimento tecido em rede.
7 O autor lança mão desse conceito para analisar a cidadania da população afrodescendente
no Brasil, que, devido às convecções escravocratas presentes na sociedade brasileira, torna-se
arraigado e estereotipado.
22
fundamentais para todo ser humano na defesa e fortalecimento da
democracia(SILVA, 2010, p. 43).
Norberto Bobbio (2004) aponta que esses direitos não são
resultados de uma concessão, mas de uma luta que a sociedade política
precisa empreender e garantir. Assim, os Direitos Humanos são
inerentes ao homem e à mulher enquanto condição para sua
dignidade. Nessa mesma compreensão, Kant (2003) nos afirma o
direito genuíno de todos os seres humanos em ser respeitado pelos
seus semelhantes e ter resguardada a sua dignidade.
Assim, as oficinas no Colégio Estadual Dom Pedro I foram
construídas tendo como característica central a abertura de espaços de
diálogo e aprendizado que buscavam colocar os sujeitos aprendentes
no centro do processo. Nesse sentido, objetivando potencializar a
autonomia dos(as) estudantes através da escolha das temáticas que
lhes interessaram mais, foi oferecido uma série de possibilidade de
oficinas: 1) genocídio da juventude negra; 2) população LGBTI+; 3)
feminicídio; 4) gênero, classe e raça; e 5) direito à cidade. Como é
possível perceber pelas temáticas escolhidas pelos(as)
praticatantespensantes dos cotidianos escolares, todas as oficinas
ministradas versavam sobre a igualdade entre os sujeitos. Nessa
direção, é oportuno considerar Mary Rangel (2017, p. 24) ao afirmar
que, para a construção de um mundo baseado na igualdade de direitos
e para “um mundo plural e, ao mesmo tempo, mais humano”, é
necessário a construção de relações baseadas na valorização da
diversidade epistemológica do mundo, no respeito e na superação dos
processos de exclusão sociais.
As oficinas foram ofertadas para as(os) estudantes do Ensino
dio Regular e Curso Normal (Formação de Professores(as) em
vel de Ensino Médio) e cada oficina contou com 40 vagas. Os(as)
estudantes tiveram a liberdade de eleger as temáticas que mais lhes
23
interessassem, levando em conta o período das aulas, bem como a
agenda das avaliações. As inscrições ficaram a cargo do Grêmio
Estudantil. Nosso intuito foi desenvolver estratégias para construção
da autonomia discente sem a tutela dos(as) professores(as) e da equipe
diretiva na condução obrigatória de participação nas atividades.
Assim, apesar da imposição inicial por parte da SEEDUC/RJ,
buscamos construir uma liberdade com responsabilidade junto aos(às)
discentes, ou seja, a dinâmica foi construída de modo que os(as)
docentes interferissem o mínimo possível. A autonomia está implícita
no processo educacional. o é um conteúdo a ser ensinado
teoricamente. Aprende-se a ter autonomia praticando a autonomia.
Para Paulo Freire (1983, p. 16), “só aprende verdadeiramente aquele
que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com
o que pode, por isto mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de
aplicar o aprendido-apreendido a situações existenciais concretas”.
Logo, a autonomia no processo educacional não deveria ser
uma permissão, uma doação, algo que alguém detém e passa para o
outro que não tem. o deveria se configurar como uma relação de
poder, mas sim como desenvolvimento intrínseco com os(as)
estudantes para que eles/elas construam a capacidade de intervir de
forma consciente nas suas próprias vidas e na realidade em que estão
inseridos(as).
As oficinas foram realizadas por profissionais ligados(as) à
Educação Básica, externos à unidade escolar, graduandos(as),
mestrandos(as), mestres, doutorandos(as) e doutores(as) com
desenvolvimento de pesquisas sobre os temas elencados
supramencionados. O evento foi realizado com o apoio da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) através do
Laboratório de nero, Educação e Sexualidade (LEGESEX) e do
24
Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos
(GEPEJA).
Vera Maria Candau (2008) aponta que, desde a década de
1980, as experiências sobre Educação em Direitos Humanos têm se
multiplicado, porém, essa preocupação é mais recente no campo
escolar e ocorre muito mais por intermédio de organizações não
governamentais (ONGs) e por iniciativa de poucos sistemas de ensino.
Essa preocupação se deu porque inúmeros países da América Latina
passaram por governos ditatoriais, momento em que inúmeros
direitos civis, políticos e sociais foram desrespeitados.
Sob a perspectiva acima, discutir a temática dos direitos
humanos no espaçotempo escolar, em especial com os discentes, é
importante e imprescindível com o fim de combater os resquícios
culturais dos governos ditatoriais. Entretanto, ressaltamos que é
necessário cuidado, uma vez que, quando isso se torna uma demanda
ou imposição por parte da Secretaria de Educação, sem uma discussão
prévia, diálogo com a comunidade escolar, a intenção pode ser
reduzida a um cumprimento burocrático, ou seja, sem a devida
compreensão da importância política, social e cultural dos Direitos
Humanos.
Partindo, então, de uma demanda administrativa,
considerando a importância da temática e levando-se em consideração
o contexto social dos discentes da nossa escola, buscou-se ressignificar
a questão dos Direitos Humanos para além de mais um conteúdo a
ser trabalhado de forma apartada da realidade da nossa juventude.
Retomamos as ideias de Freire, ao defender a necessidade de se
incorporar aos conhecimentos escolares tanto os conhecimentos
produzidos historicamente pela humanidade quanto os conheci-
mentos de experiência agregados pelos(as) educandos(as) nas suas
vivências cotidianas.
25
Ressaltamos que, para Freire (1981), a realidade concreta é
composta pela realidade objetiva mais a percepção que os educandos
possuem dessa realidade. Portanto, a realidade é a relação dialética
entre objetividade e subjetividade. Sua compreensão e incorporação
ao contexto escolar é condição indispensável para a seleção e
organização dos conteúdos no currículo crítico-libertador.
Esse artigo está organizado em duas seções, incluindo as notas
introdutórias e notas (não) conclusivas. Na primeira seção,
denominada Aproximações entre direitos humanos e educação”,
discutimos as implicações da educação e da escola com a questão dos
direitos humanos e defendemos sua materialização em práticas
pedagógicas para além do que se expressa na letra da lei. Na segunda
seção, “Oficinas pedagógicas como táticas para desvendar o real”,
além de apresentarmos as oficinas, refletimos sobre seu processo de
construção a partir de eixos que dialogam com o cotidiano dos(as)
estudantes e as parcerias construídas para a sua realização.
Aproximações entre Direitos Humanos e Educação
A educação é um processo amplo e que não tem a escola como
um fim, mas sim como ponto de partida em um movimento dialético
que vai do local ao global, encharcado pela complexidade da vida em
sociedade. Olhando por este prisma, a educação não pode ser restrita
às salas de aulas, aos conteúdos curriculares descolados da realidade,
tampouco ser um aparato enciclopédico que os(as) estudantes
decoram para tirar boas notas que serão descartadas em seguida.
A educação engloba a escola, mas não se reduz a ela; uma vez
que extrapola limites, a educação é necessária para o bom
funcionamento das relações sociais. Portanto, necessitamos ser
educados(as) para compreendermos o mundo e atuar nele,
26
transformando-o e sendo por ele transformados(as). No processo
educacional, o ser humano pode desenvolver sua capacidade reflexiva
para se posicionar no mundo e com o mundo, ou seja, a educação
pode contribuir para o conhecimento do status quo dos sujeitos sociais
e para o desenvolvimento de ferramentas que os ajudem a se
posicionar frente às demandas do mundo. Com base em hooks8
(2019, p. 42), acreditamos que o espaçotempo escolar pode contribuir
para que os sujeitos tenham o direito de definir suas próprias
realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas
próprias histórias”.
Freire (1975, p.33) ressalta que “não basta saber ler
mecanicamente que Eva viu a uva’. É necessário compreender qual a
posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para
produzir uvas e quem lucra com esse trabalho”. Na Abertura do
Congresso Brasileiro de Leitura, em 1981, Paulo Freire partilhou a
ideia da não existência de uma verdade explicativa única da realidade,
mas de caminhos explicativos que nos ajudam a compreender a
complexidade da vida em sociedade. No que concerne leitura, nas
palavras do próprio estudioso: “A leitura do mundo precede a leitura
da palavra, d que a posterior leitura desta não pode prescindir da
continuidade da leitura daquela [...]. O ato de ler o mundo implica
uma leitura dentro e fora de mim. Implica na relação que eu tenho
com esse mundo”. (FREIRE, 1981, p. 33).
Nesse sentido, mesmo na escola, a educação deve ser
abrangente de modo a permitir uma interpretação dos problemas
enfrentados diariamente pela juventude. Nesta perspectiva, a escola
tem um papel central, visto que a mesma possibilita uma leitura
8 A grafia em minúscula se deve a uma posição da teórica e ativista do feminismo negro bell
hooks, que respeitaremos no corpo do texto sem perder de vista o respeito à ABNT nas
referências finais.
27
crítica do mundo [codificação e descodificação] (FREIRE, 1975)
através dos conteúdos curriculares e atividades extracurriculares. A
escola precisa atentar para o fato de que as relações sociais e sua
dialética com o espaçotempo vêm passando por assombrosas
transformações e que tais mudanças afetam também a sua dinâmica e
a interação de seus principais agentes o aluno e o professor
(PONTUSCHKA, 1999).
Sendo assim, defendemos que a educação não deve ficar
reduzida a aspectos legais, como a Declaração Universal dos Direitos
Humanos e, em especial, ao artigo 26, que afirma: “toda pessoas
têm direito à educação”. Também não deve se restringir a leis
brasileiras específicas, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBN) e dos artigos da Constituição Federal que tratam
do acesso e da obrigatoriedade do ensino formal, nos artigos 205 ao
214, pois é consenso que a educação é “um direito de todos e uma
obrigação do estado e da família (BRASIL, 1988).
Ao afirmarmos que a educação extrapola os aspectos legais,
uma vez que ela possibilita a dignidade humana, não negamos a
importância dos aparatos legislativos para a garantia do acesso à
educação e a permanência nos espaços educativos. Apenas ressaltamos
que precisamos ir além, ou seja, vestirmo-nos de uma concepção
educativa como um direito que defende a condição humana de existir.
Entendemos, ainda, que a escola não prepara para a vida, mas é nela
na escola que a vida em preparação constante acontece
cotidianamente. Para Brandão (1981):
Porque a educação aprende com o homem a continuar o trabalho
da vida. A vida que transporta de uma espécie para a outra,
dentro da história da natureza, e de uma geração a outra de
viventes, dentro da história das espécies, os princípios através dos
28
quais a própria vida aprende e ensina a sobreviver e a evoluir em
cada tipo de ser (BRANDÃO, 1981, p. 13).
Assim dito, entendemos que ninguém escapa à educação,
mesmo sendo mínima. Entretanto, é preciso entendermos que a
educação é necessária enquanto um direito humano, pois ela nos faz
humanos. Em outras palavras, educação significa socialização e
humanização, visto que ela é a resposta consciente de que somos seres
inacabados, convidados a todo momento a nos construirmos e
reconstruirmos frente às demandas a que somos expostos socialmente.
To rnamo -nos humanos, na medida em que convivemos com os
outros humanos e nessa convivência nos educamos” (ANDRADE,
2008, p. 56), que ninguém educa ninguém, ninguém educa a si
mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”
(FREIRE, 2005, p. 78).
A educação é um direito perfeito, é um instrumento
privilegiado para a legitimação da dignidade humana. Portanto, é
imperativo compreender que todos os seres humanos são
absolutamente valiosos. Consequentemente, como processo de
humanização, a educação não pode ser valorizada nem mercantilizada,
pois ela está relacionada à dignidade humana. Isso faz da educação
uma arena de disputa, uma vez que ela imprimirá as orientações de
qual tipo de ser humano queremos humanizar e de qual humanização
estamos falando. Entretanto, apesar de a educação ser um direito
humano fundamental à dignidade da vida do ser humano, o que se
percebe a partir do universo da escola Básica é o desrespeito em
diferentes graus a este direito. Na escola, reflete-se o que percebemos
na sociedade como um todo, ou seja, o crescente aumento da
mortalidade da juventude, em especial da juventude negra, o
feminicídio, agressões físicas e verbais à população LGBTI+
29
(HOOKS, 2019; LOURO, 2017; MBEMBE, 2018). Essas são
provas que ainda temos um grande caminho para percorrermos na
consolidação dos Direitos Humanos.
Sob essa perspectiva de negação dos direitos, para além de
lamentarmos e denunciarmos, se faz necessário apontarmos caminhos,
propormos agendas para o fortalecimento do regime democrático e
ressignificar os direitos e deveres dos cidadãos e cidadãs. Portanto, de
forma prática, defendemos as oficinas pedagógicas com uma tática
pedagógica constituinte para o fortalecimento dos Direitos Humanos.
Entendemos, no entanto, ser necessário fugir da armadilha
tecnocrática das imposições que as secretarias de educação fazem ao
longo do ano ao definir temáticas a serem trabalhadas nas escolas.
Embora saibamos que as temáticas propostas pelas secretarias se fazem
necessárias e urgentes no atual contexto de violação e supressão de
direitos, independentemente das intenções dos dirigentes da educação,
a realidade vivida pelos(as) estudantes que estão no centro do
desrespeito aos Direitos Humanos é o vetor a partir do qual as
temáticas devem ser escolhidas.
A escola, como lócus de construção do saber, da
ressignificação didática de conteúdos produzidos pela sociedade
humana, precisa ser protagonista nas formas de transformar a
legislação ou as determinações emanadas das secretarias de educação
em algo conectado à vida do ser humano, para que cada estudante
possa se compreender, se posicionar e transformar a realidade à sua
volta.
Assim, os direitos humanos não são direitos simplesmente por
estarem expressos legalmente em documentos de âmbito internacio-
nal e nacional. “É um direito humano porque nos a possibilidade
de seguirmos conscientemente sendo tão somente humanos em busca
de sermos mais humanos” (ANDRADE, 2008, p. 61).
30
Oficinas Pedagógicas como Táticas para Desvendar o Real
Amélia Luísa Damiani (1999, p. 161, grifos da autora) propõe
que “O cotidiano se torna um vel de análise do real importante
quando a reprodução social atinge inteiramente a reprodução da vida”.
Os(as) discentes, como agentes espaciais inseridos(as) em um
contexto temporal, possuem grandes contribuições para se pensar
sobre os Direitos Humanos. Também a escola, como potencializadora
do fortalecimento e defesa dos referidos direitos, tem um importante
papel a cumprir ao inserir intencionalmente conteúdos sobre os
Direitos Humanos e transformar o que antes era Lei ou determinação
de dirigentes da educação.
Quando à atividade teórica, soma-se a ela a prática em porções
do espaçotempo de vivência dos sujeitos estudantes e, desse modo, a
educação sai bastante favorecida. A educação escolar realizada desta
forma é desmistificada e torna-se muito mais prazerosa. Afinal, o
aluno precisa sentir a aplicabilidade do objeto de estudo em sua vida.
Ao professor, cabe proporcionar ao educando momentos de
construção de seu próprio conhecimento como sujeito do processo.
Através da ação pedagógica, o(a) aluno(a) deve ser incitado a
compreender o objetivo ativamente, e não receber o conhecimento
pronto como normalmente se concebe a prática. Segundo Freire
(1996), a educação não se resume à transferência de conhecimento,
mas sim à criação de situações que possibilitem a sua constrão.
Então, partindo dessa perspectiva, foi realizado o evento “70
anos da proclamação dos Direitos Humanos: juventudes, diversidade
e educação no Colégio Estadual Dom Pedro I. Os temas das oficinas
surgiram de uma conversa prévia com parte dos(as) estudantes,
ocasião que possibilitou a identificação das temáticas que lhes
interessavam. Assim, foi necessário conversar com os(as) estudantes
31
para sabermos temas mais urgentes levando em consideração os
anseios e contextos vivenciados por eles/elas, uma vez que não
queríamos construir um evento que fosse pensado de cima para baixo,
mas que tivesse a intensa e efetiva participação do corpo discente, isto
é, que existisse sentido nas discussões que seriam realizadas.
O evento contou com as seguintes oficinas:
Tabela 1 – Título das oficinais e perfis dos oficineiros
Título das oficinas
Nomes
01 Direitos e o genocídio da
Humanos Juventude Negra
Olga Gonçalves Batista da Silva
(Pedagoga/UFRRJ)
Matheus Fortunato da Silva
(Graduando em Pedagogia/UFRRJ)
02 Direitos Humanos e a população
LGBTI+?
Leonardo da Silva Pereira
(Mestrando em Educação pela
UFRRJ e professor da SME de
Queimados)
Leandro Sales Rodrigues
(Graduando em Letras/UFRRJ)
03
Estéticas Negras Positivas:
reflexões decoloniais em prol da
amenização da branquidade e do
racismo na conjuntura atual
Wudson Guilherme de Oliveira
(Especialista em Educação e
Relações Raciais/PENESB/UFF e
professor da Educação Básica)
04 Educação em Direitos Humanos:
uma estratégia autobiográfica
Guilherme Pereira Stribel
(Doutor em Educação/UERJ e
professor da Universidade de
Estácio de )
05
Exclusão ou formação? Direitos
humanos, raça, gênero e
sexualidade no espaço escola
João Gomes Júnior
(Mestre em História pela UFF e
professor da Educação Básica)
32
06
Direitos Humanos e Feminicídio:
“cê vai se arrepender de levantar a
mão pra mim!”
Oliveira
(Graduanda de
Pedagogia/UFRRJ)
Natalia Rodrigues Stoco
(Mestranda em
Educação/UFRRJ)
07 Direitos Humanos, pertencimento e
circulação: quem sou eu na cidade?
(Mestrando em Literatura e
professor da Educação Básica)
Sandro Aragão Rocha
(Mestrando em Literatura/UFF e
professor da SME de Nilópolis)
Fonte: Acervo pessoal dos autores
Com duas semanas de antecedência as oficinas foram
divulgadas em todas as salas. Essa divulgação, bem como a lista de
inscrições ficou a cargo do Grêmio Estudantil. Assim, os(as)
estudantes puderam escolher os horários e as temáticas segundo seus
interesses pessoais. A unidade escolar vivenciou intensamente a
semana sobre Direitos Humanos, uma vez que foram afixadas faixas
em lugares estratégicos para a divulgação do evento, além de um
banner dispondo informações como: horário, sala e nomes das
oficinas para que os(as) estudantes tivessem uma orientação mais
assertiva. Somado a isso, parte das(os) professoras e professores
retomaram as discussões nas avaliações bimestrais. No intuito de não
atrapalhar a dinâmica das aulas e não causar grandes ausências em
determinados dias letivos, as oficinas foram distribuídas ao longo da
semana em horário estratégico para que os(as) discentes pudessem
encaixá-las nas horas vagas das aulas.
Por fim, ao fazer a inscrição, os(as) estudantes forneciam o
endereço de e-mail para que recebessem o certificado de participação
33
nas oficinas. Isso causou uma grande discussão, pois muitos
estudantes nunca tinham recebido um certificado e a maioria tinha e-
mail apenas para fazer cadastros em redes sociais, mas não possuem o
hábito de usá-lo como mais um canal de comunicação e/ou trabalho.
Figura 1 – Faixa anunciando o evento
Fonte: Acervo pessoal dos autores
As oficinas contaram com boa participação dos(as) estudantes,
uma vez que todas as 40 vagas que foram disponibilizadas para cada
oficina foram preenchidas rapidamente e, nos dias de seu
acontecimento, houve a presença de todos(as) os(as) estudantes que
se inscreveram. Assim, vimos como foi positivo, que o evento
provocou uma intensa mobilização do corpo discente, funcionando
como um processo de (re)construção de sentidos cuja adesão refletiu
nas práticas educativas elucidadas por temáticas escolhidas pelos(as)
praticantespensantes que habitavam o espaçotempo da escola.
Afirmando assim o que nos diz Freire (1976, p. 35), nenhuma ação
educativa pode prescindir de uma reflexão sobre o homem e de uma
análise sobre suas condições culturais. o educação fora das
sociedades humanas e não homens isolados”.
34
Considerações (Não) Conclusivas
Inúmeras questões foram debatidas ao longo das oficinas,
porém, por conta do limite de páginas, destacamos apenas ts pontos
instigantes que revelam a potência da proposta metodológica de
Educação em Direitos Humanos que foi realizada no Colégio
Estadual Dom Pedro I. Mesmo tendo sido originada por uma
determinação da SEEDUC/RJ, o trabalho foi organizado em eixos
articuladores que deram materialidade ao tema “Direitos Humanos”.
Os referidos eixos, por sua vez, emergiram da vida cotidiana dos
estudantes, considerada refencia permanente para a ação educativa
em conexão com as problemáticas vivenciadas na sociedade.
O primeiro ponto instigante foi sobre a questão de gênero e
sexualidade. Na oficina que tratou sobre os Direitos Humanos e a
população LGBTI+, muitos estudantes, ao se inscreverem, queriam
saber o significado da sigla e também como seriam as oficinas.
Durante a realização, percebemos uma intensa participação dos
estudantes através de perguntas dos mais variados conteúdos: desde se
um casal homoafetivo tem direito a adotar filhos até o
questionamento acerca dos termos ativo e passivo numa relação
homossexual.
Notamos especificamente neste ponto algumas problemáticas
interessantes para pensar o comportamento e a participação dos(as)
estudantes nesta oficina. A primeira problemática diz respeito à
curiosidade dos(as) alunos(as) sobre as temáticas e as dúvidas
referentes às questões sobre homossexualidade. Sobre este aspecto
descortina um cenário de invisibilidade e de repressão dessas
identidades dentro da escola.
Nesse sentido, a repressão e a invisibilidade provocadas pela
escola leva-nos a refletir sobre a segunda problemática: a inscrição de
35
alunos(as) no turno oposto como forma de preservar suas identidades
contra o preconceito e a discriminação no espaço escolar.
Confirmando esta interpretação está o fato de que, ao final da oficina,
alguns/algumas estudantes que se mantiveram atentos ao que estava
sendo discutido se recusaram a ser fotografados(as). Essa recusa, como
mencionamos, possivelmente se deu por não se sentirem à vontade
ou por temerem ser identificados(as) como homossexual, que
estavam em uma oficina sobre a referida temática.
Contudo, esse comportamento não é estranho e não foge ao
que é discutido e descortinado pelas pesquisas realizadas nas escolas
sobre a temática. Em pesquisa realizada por Rangel (2017) acerca das
representações sociais da escola para alunos(as) LGBTI+, foi
confirmado o espaço escolar como produtor de discriminação,
invisibilidade e medo. Além disso, Marcio Rodrigo Vale Caetano,
Treyce Ellen Silva Goulart e Marlon Silveira da Silva (2016) afirmam
que o espaçotempo escolar muitas vezes em seus currículos pensados e
praticados contribuem para a constituição e manutenção de uma
lógica dicotômica entre homens e mulheres, baseada na
heteronormatividade compulsória, que coloca à margem os sujeitos
que não fazem parte desse modelo redutor de subjetividades.
A homofobia ultrapassa as expressões do corpo e as práticas
sexuais desdobram-se nas identidades de gênero. Isto nos leva a
afirmar que somos todos os dias interpelados por determinações
regulamentares que nos ensinam sobre como devemos avaliar,
classificar e hierarquizar os sujeitos, produzindo, em última
instância, relações assimétricas heterocentradas. Os sistemas
normativos operam verdades nos discursos e produzem modos
de subjetivação que funcionam como marcos regulatórios de
nossos comportamentos e miradas sobre o mundo (CAETANO;
GOULART; SILVA, 2016, p. 10).
36
O segundo ponto instigante que destacamos diz respeito às
relações étnico-raciais. Chamou-nos atenção o fato de alguns/algumas
estudantes negros(as) questionarem os(as) oficineiros(as) de pele clara
estarem discutindo sobre racismo, pois, para esses(as) estudantes,
saber e sentir de fato o que é racismo somente sendo negro(a). Sem
minimizar o impacto do racismo e o sofrimento por ele causado em
pessoas que têm a marca da negritude em seus corpos, como o cabelo
crespo e a pele preta, os oficineiros(as) problematizaram que o racismo
é um problema de toda a sociedade, principalmente da parcela branca,
uma vez que é ela que goza dos privilégios da branquitude.
Desse modo, o diálogo colocou em pauta o lugar de fala:
diversas perspectivas para tratar racismo e uma não anula a outra; é
preciso que apenas saibamos identificar os lugares de fala e os
lugares/recepção de escuta. Além disso, o enfrentamento do racismo
requer o envolvimento de toda a sociedade, considerando, sobretudo,
que essa prática é estrutural e, portanto, sistemática. Como assinala
Djamila Ribeiro (2019, p. 12-13), reconhecer o caráter estrutural do
racismo pode ser paralisante. [...] No entanto, não devemos nos
intimidar. A prática antirracista é urgente e se nas atitudes mais
cotidianas”.
O terceiro ponto que destacamos refere-se ao feminicídio,
mais especificamente no que diz respeito à Lei Maria da Penha, que
respaldo legal e proteção às mulheres vítimas de agressão. Também
foi debatido o fato de muitos estudantes homens encararem o
feminicídio como algo genérico e banal, reiterando uma violência que
não é, na opinião de muitos deles, direcionada às mulheres. Nesse
ponto, recuperamos hooks (2019a, p. 48): “o conhecimento sobre
feminismo é para todo mundo”.
Sobre esse posicionamento dos estudantes homens é
compreensível, considerando o quadro histórico mais amplo da
37
discussão do sexismo e do patriarcalismo, o que reforça a necessidade
ainda mais latente de continuar a discussão em torno dessa temática
tão cara para um país com altos índices de violência contra a mulher.
Contudo, a discussão deve perpassar também por uma noção mais
ampla de violência doméstica e violência patriarcal, atentando para
todas as formas de violência, como destaca hooks:
No entanto, enfatizar a violência de homens contra mulheres de
maneira a sugerir que é mais horrível do que todas as outras
formas de violência patriarcal não servem para promover os
interesses do movimento feminista. Isso ofusca a realidade de que
muito da violência patriarcal é direcionada às crianças por
mulheres e homens sexistas (hooks, 2019b, p. 97).
A experiência mostrou, por fim, que uma proposta de
educação em direitos humanos não pode reduzir-se a uma série de
técnicas didáticas ou dinâmicas de grupo. Também não pode ser
reduzida a uma série de conhecimentos ou atividades isoladas. o
pode também estar desvinculada das práticas sociais. Do mesmo
modo, ela não pode ser uma atividade pontual, mesmo que pensada
e executada pela própria comunidade escolar. Ela precisa ser constante
e fazer parte do currículo amplo da escola em todas as suas dimensões,
visto que todos os temas discutidos nas oficinas fazem parte da vida
dos(as) estudantes em seus múltiplos contextos existenciais.
A prática pedagógica eficaz conjuga nossos sentimentos,
desejos e sonhos. Essa é a perspectiva que nos parece importante ter
presente na hora de desenvolver qualquer proposta de educação em
direitos humanos, na escola ou em âmbitos de educação escolar e,
também, na educação não formal.
38
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DIREITOS HUMANOS NO HORIZONTE:
A IMPORTÂNCIA DA HORIZONTALIDADE NA
EDUCAÇÃO SOBRE DIREITOS HUMANOS
Célia Regina ROSSI1
Rafael Gonzaga MACEDO2
Tiago Cerqueira LAZIER3
Introdão
Um dos grandes desafios que afeta a pesquisa em Direitos
Humanos, para além das dificuldades teóricos e conceituais que o
objeto coloca, é de natureza prática: como conscientizar as pessoas da
importância do conceito, particularmente, no cenário brasileiro, no
qual grande parte da população experiência, em termos concretos, a
falta de materialidade ou lastro discursivo, ou, em outras palavras, a
ausência e não a presença de direitos humanos básicos? Tanto o
sentido como a importância dos Direitos Humanos, por não serem
vivenciados por grande parte da população brasileira, passam
frequentemente desapercebidos ou incompreendidos.
1 Professora Associada aposentada do Departamento de Educação do Instituto de Biociências
(IB), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Rio
Claro, e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar e Educação Sexual da
Faculdade de Ciências e Letras (FCLar), UNESP, Campus de Araraquara, São Paulo, Brasil.
E-mail: celiarr@rc.unesp.br
2 Professor Titular da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), São Paulo, Brasil.
E-mail: rafael.gonzaga.macedo@gmail.com
3 Lecturer (Professor) da Leuphana Universität Lüneburg (Leuphana), Alemanha. E-mail:
tclazier@gmail.com
42
Considerando-se as muitas intervenções acadêmicas sobre o
tema, nota-se que a dimensão prática, de maneira geral, e, em
particular, a carência de lastro no discurso, permanece uma
preocupação secundária ou insatisfatoriamente elucidada, vis-à-vis a
relevância e a premência de um processo educativo e de
conscientização mais amplo. Tal disparidade talvez não seja acidental.
Aqueles que escrevem sobre direitos humanos gozam de acesso à
educação superior, e, frequentemente, também, a uma larga gama de
direitos humanos, enquanto, a maioria da população brasileira sofre
com a ausência dos mesmos. Este artigo reconhece este viés e a partir
desta ciência propõe o exercício que se segue: uma reflexão prática e
teórica sobre a importância do lastro da horizontalidade para a
educação sobre direitos humanos.
O diagnóstico que aqui apresentamos, e que retomaremos na
próxima seção, embasa dois projetos que desenvolvemos, em caráter
experimental: o projeto “Com.partilha”, com o curso “Cidadania
Política e Direitos Humanos”, em formato de roda de conversa, e o
projeto “Espaço Arte e Cidadania”. Nosso objetivo com este artigo é,
pois, apresentar os pressupostos teóricos das nossas propostas, bem
como, compartilhar alguns dos resultados preliminares das atividades.
Na primeira seção, o texto retoma o problema da falta de
lastro discursivo e apresenta a horizontalidade como recurso material
ou prática comunicacional que oferece materialidade ao discurso dos
direitos humanos. Na segunda e terceira seção, o texto apresenta,
respectivamente, o projeto “Com.partilha e o projeto “Espaço Arte e
Cidadania”, prestando particular atenção em como tentam conceber
e executar um processo educativo em direitos humanos, tendo em
vista o diagnóstico previamente elucidado. Ao decorrer do artigo, se
defenderá a tese de que a roda de conversa se coloca como estratégia
43
política e pedagógica fundamental para a construção do horizonte dos
direitos humanos.
A Roda de Conversa como Lastro do Discurso
em Direitos Humanos
Os Direitos Humanos são um daqueles conceitos cuja
relevância epistêmica não é apenas, ou, mesmo, primordialmente,
intelectual. A relevância do conceito para o conhecimento é,
invariavelmente, atrelada a sua prática e realização política. O
entendimento, explícito ou implícito, de que seria possível conhecer
os direitos humanos na teoria, sem uma prática política subjacente,
postularia algo impossível: um conhecer sem o objeto que é conhecido,
um ser cognoscente que não conhece a si mesmo.
Esta não é a realidade operacional de muitos conceitos. A
definição de bósons 4 na física quântica, por exemplo, obtém
relevância epistêmica, independentemente da compreensão ou
incompreensão pública. “Públicoou político são aqui as palavras-
chaves. A relevância epistêmica do conceito de bóson é, tanto quanto
a dos direitos humanos, necessariamente, prática. As verdades da física
testam-se na capacidade dos conceitos permitirem a manipulação dos
elementos naturais em favor da obtenção de resultados controláveis.
A práxis da sica quântica, porém, não é política e não se direciona
ao público; a de direitos humanos, sim.
4 Bósons são as partículas responsáveis pela interação existente entre os rmions.
Diferentemente deles, essas partículas não apresentam problema em ocupar o mesmo lugar
no espaço e ao mesmo tempo. Apresentam spin inteiro, não possuem massa e podem
apresentar carga elétrica. O bóson ou bosão é uma partícula que possui spin inteiro e obedece
à estatística de Bose-Einstein. Ele tem este nome em homenagem ao físico indiano Satyendra
Nath Bose.
44
É daqui, portanto, que precisamos e queremos partir. A
relevância epistêmica do conceito de direitos humanos deriva-se de
sua verificação prática, cujo natureza, posta pelo objeto, é política ou
pública. Em outras palavras, sua relevância, em última instância,
deriva-se de sua aceitação. Se os direitos humanos não forem aceitos
ou defendidos politicamente, se o conceito não for acolhido pela
população que deles carece, logo eles perderiam também sua
relevância e validade epistêmica. Em casos extremos, os direitos
humanos se tornariam exercícios vazios de uma intelectualidade não
apenas narcisista, mas também mplice e beneficiária de sua
inexistência5 . Em casos limites, a ideia dos direitos humanos se
tornaria incompreensiva.
O desafio epistêmico que se coloca diante do conceito não é,
portanto, a postulação de uma base transcendental, fora da política,
acompanhada de uma lista definitivas de direitos, mas o praticar da
política, no sentindo arendtiano da ação dialógica (Arendt, 1998),
a fim de que o conceito prove seu valor prático, ao se apresentar como
uma referência, capaz de convidar, aglutinar e catalisar a ão coletiva,
em um processo recorrente de construção de direitos.
Como coloca Arifa (2018, p.148), a abordagem dos direitos
humanos “pode ser feita a partir de uma enorme variedade de
perspectivas, enfoques e disciplinas, pois se trata de uma ideia
aplicável às mais diversas esferas da vida humana”. Ele acrescenta,
porém, que “é necessário questionar se existe, de fato, um conceito do
que sejam os direitos humanos ou se, ao contrário, o seu significado
e alcance apresentam um desacordo generalizado e amplo”. De acordo
com a perspectiva aqui defendida, poderíamos dizer que o desacordo
5 Ver a crítica que Arendt (2007) faz ao idealismo no artigo The jew as Pariah: the hidden
tradition.
45
generalizado decorre da natureza do conceito, cujo desafio epistêmico
é, em última instância, político e não filosófico.
A filosofia presta suporte na construção da referência, mas está
permanece questionável, em sua relevância epistêmica, na mesma
medida em que fica incumbido à política a responsabilidade de testar
a teoria. Com isso, damos um passo para trás, filosoficamente e
sociologicamente, para pensar, juntamente com Flores (2009), os
direitos humanos como uma dinâmica social de construção de
direitos ou como a afirmação, propriamente política e não filosófica,
do direito a ter direitos, feita famosa por Arendt (2004).
A tarefa, simultaneamente política e epistêmica, que cabe ao
conceito dos direitos humanos, é, particularmente, desafiadora, visto
que o conceito surge não para definir ou referir-se a uma prática
estabelecida, mas para notar e apontar para uma ausência no alcance
de direitos, que, de acordo como uma certa prática política subjacente,
se postulariam como universais. A pergunta que nos desafia, portanto,
é a seguinte: como explicar a referência e conscientizar as pessoas da
importância do conceito, quando a materialidade do direito a ter
direitos não se verifica, a priori, na realidade a ser transformada?
O discurso em direitos humanos precisa de lastro.
Com isso, não estamos corroborando uma afirmação ingênua
da primazia da materialidade sobre a discursividade, nem postulando
um sistema filosófico dicotômico. A resposta que apresentamos aqui,
e que embasa nossos projetos pedagógicos, depende da superação do
pensamento dualístico. Mais adequadamente, precisamos pensar o
discurso em sua materialidade prática. Isto é, pensar a verdade de sua
prática, e não o discursar de uma verdade anterior a prática, a qual,
de fato, por inferir-se descolada das realidades concretas,
permaneceria incomensurável com elas, ou, ao menos, com a
46
experiência daqueles que carecem de direitos, os quais postulamos
defender universalmente.
o se nega, assim, a existência de uma lacuna ou de um
atraso entre a ocorrência do lastro prático do discurso em direitos
humanos que de obter materialidade em algum lugar e a
(falta de) implementação dos referidos direitos pelos governos. Esta
lacuna, porém, deveria ser pensada não como a lacuna entre a teoria
e a prática, e, sim, entre os diferentes níveis ou círculos da práxis.
Como vimos, o preenchimento ou a ocupação desta lacuna coloca-se,
substancialmente, como um projeto político.
Nas palavras de Arendt (2004, p. 301), em As origens do
totalitarismo6:
s não nascemos iguais, porém, nos tornamos iguais, como
membros de um grupo, em virtude da força da nossa decisão de
garantir a nós mesmos direitos mutuamente iguais. Nossa vida
política baseia-se na suposição de que nós podemos produzir
igualdade por meio de organização, pois o ser humano pode agir,
mudar e construir um mundo comum, junto com seus iguais, e
apenas com seus iguais.
Nota-se nesta passagem um aparente paradoxo, que a própria
autora não reconhece ou elucida. Ao mesmo tempo em que ela
postula, com primazia, os direitos humanos como uma tarefa política,
inacabada, de construção de igualdade, ela invoca a materialidade da
igualdade entre pares, que se obtém mesmo na ausência da
implementação da igualdade a nível governamental. Isto é, ainda que
a igualdade, ou os direitos humanos que pares se conferem
6 Tradução própria do original: We are not born equal; we become equal as members of a group
on the strength of our decision to guarantee ourselves mutually equal rights. Our political life rests
on the assumption that we can produce equality through organization, because man can act in
and change and build a common world, together with his equals and only with his equals”.
47
mutuamente, postule-se como a tarefa por excelência da política, a
possibilidade de execução desta tarefa dependeria de uma
materialidade da igualdade que é previamente praticada e
vivenciada, ou posta.
A própria Arendt (2004) elucida a realidade e a natureza desta
igualdade subjacente a sua carência, isto é, carente de atualização
como projeto político de autogoverno. A autora encontra a referência
posta, não propriamente a priori, porém intrinsecamente, na ação
dialógica ou na prática do diálogo.
A verdade da prática do discurso em direitos humanos, como
defesa da igual e comum dignidade, corresponderia à verdade da
prática do diálogo, per se, cuja verdade é a materialidade de corpos
que dispõem horizontalmente, em rodas, para ouvir e falar. Embora
o discurso, evidentemente, se operacionalize de muitas formas,
colocando-se como veículo tanto da igualdade como da hierarquia e
da ideologia, o ato do ouvir e do falar mobilizaria, intrinsicamente,
ainda que apenas momentaneamente, uma arquitetura horizontal de
corpos. Ou, dito de outra maneira, o ato de ouvir e o ato de falar
produziria, intrinsicamente, em sua prática, igualdade.
Em suma, (a) a horizontalidade da prática do diálogo validaria,
conceitualmente, o discurso dos direitos humanos; (b) mas ofereceria
também lastro, materialidade ou concretude aos direitos de igualdade
que se afirmam em sua ausência; (c) sendo que está horizontalidade,
ao carecer de verticalidade, se organizaria, por definão,
circularmente.
Onde dois ou mais conversam, eis uma roda de conversa!
Se a horizontalidade do diálogo forma a materialidade
subjacente ao discurso em direitos humanos, se está horizontalidade
se organiza circularmente, então, a estratégia por excelência do
48
processo político e pedagógico de conscientização sobre a importância
dos direitos humanos seria, claro, a roda de conversa.
A prática da roda conversa, atenta e consciente à
horizontalidade do diálogo, haveria de ser capaz de chamar a atenção
e de convidar a consciência a tomar nota da realidade concreta e do
valor da organização horizontal, de corpos que se presenteiam
mutuamente dignidade ou direitos humanos.
Segundo llo et al (2007), a discussão de temas no formato
da roda de conversa favorece o processo dialógico. A elaboração e o
desenvolvimento de posições autônomas e distintas, mesmo que
contraditórias, instiga a troca, a escuta e o aprendizado, oportunizan-
do um processo de autorreconhecimento e melhor reconhecimento
da realidade, numa perspectiva democrática. Ou, talvez possamos
dizer, o pôr-se horizontalmente ou circularmente em diálogo ensina a
importância e o valor da igualdade, ao dar exemplo ou materialidade
a uma prática que, então, é concreta.
Os dois projetos que discutiremos a seguir partem deste
diagnóstico e tentam operacionalizar, em termos pedagógicos, a
horizontalidade da roda de conversa como o verdadeiro educador
em direitos humanos.
As metodologias que elaboramos são flexíveis e podem ser
adaptadas e implementadas em diferentes situações e contextos, com
públicos de idade diferente. O projeto Com.partilha foca no público
adulto, enquanto o projeto “Espaço Arte e Cidadania foca no
público infantil.
A roda de conversa ensina ao convidar a roda. O aprendizado
é encorajado, mas não está garantido ensinar e aprender não são
processos lineares. A aceitação do convite depende de um processo de
reconhecimento que segue no seu tempo e mantém sua autonomia.
49
Projeto COM.PARTILHA
Com esta percepção de trazer os Diretos Humanos mais
próximos das pessoas, para que elas, ao compreender, busquem
alternativas políticas, sociais, culturais, educacionais, para viver com
os direitos aos quais todos deveríamos ter acesso, assim, montou-se as
rodas de conversas do Projeto Com.partilha, na cidade de Piracicaba,
estado de São Paulo, no ano de 2021, com temas interligados entre si,
como um grande mosaico, a expressar os diferentes sentidos e
perspectivas sobre os Direitos Humanos.
Tal mosaico, que em sua natureza é plural em formas e
significados, abarca muitos temas, como direito à cidade, gênero,
diversidades, sexualidade, ética, dignidade, crenças, valores, moral,
costumes, migração, refúgio, entre outros. O mosaico construiu-se
gradativamente, por meio de diálogos promovidos pela Escola do
Legislativo do munícipio de Piracicaba, em que os idealizadores do
projeto promoveram discussões sobre temas sensíveis, como Direitos
Humanos, relações étnico-raciais e meritocracia partindo do senso
mais comum e tornando-o complexo na própria dinâmica das rodas
de conversa.
É justamente nesse sentido que as rodas de conversas se
mostraram uma abordagem metodológica muito efetiva, pois tiraram
as pessoas do lugar de ouvintes passivos, colocando-os como atores
principais do processo, para formarem reflexões, novas significações
substanciais sobre os Direitos Humanos. O cerne da questão sobre a
Roda de Conversa é que todos aqueles que participam de sua
constituição se colocam como sujeitos ativos na elaboração e
construção de consensos e conclusões mesmo que passageiras,
constituindo, assim, um modelo de participação que evoca o sentido
50
de político como aquele que partilha, fazendo, os rumos da
comunidade.
A roda de conversa se mostrou uma importante ferramenta
uma possibilidade para a comunicação produtiva, reflexiva e muito
significativa na construção de diálogo sobre a temática dos Direitos
Humanos, apresentando-se como um rico e importante instrumento
como prática metodológica de aproximação entre todas as pessoas que
participaram das rodas dentro de uma perspectiva horizontal,
possibilitando trocas, conhecimentos e novos significados em suas
vidas. Isto é, ela é uma metodologia de trabalho que promove o
protagonismo a todos e todas participantes.
A roda de conversa se deu em vários momentos, uma delas,
foi na Câmara Municipal da cidade de Piracicaba, do qual, tivemos a
abertura para levar a proposta e se iniciou com o tema central: O que
é Direito Humano? Quando surgiu? Como surgiu? Por que surgiu?
Qual a responsabilidade da política pública? E ela foi sendo desvelada
à medida que todos/as contribuíam, como se fosse uma colcha de
retalhos sem uma hierarquia de saberes formais ou informais à priori.
Significado que se completavam no próprio elã da Roda de Conversa,
costurando-se e se entrelaçandocomo no encontro de lavadeiras
beira do rio, construindo-se e se desconstruindo como uma pintura
de paisagem que a cada carga do pincel reconfigura o real e o formal
em novos contornos no suporte da imagem.
A Roda de Conversa é, sobretudo, o suporte que se concretiza
no ato. Ou, trazendo uma referência da antropologia, assemelha-se
com a magia, no sentido de Marcel Mauss (2003), em que a diferença
entre ‘as coisas sempre foram assim, manda quem pode e obedece
quem tem juízo’ e somos todos iguais sentados ao redor desta távola-
redonda está nas condições para que a crença faça sentido no aqui e
agora.
51
Assim, a riqueza do trabalho, é que todos/as se respeitavam
nas colocações que surgiam e sempre levantavam um ponto sensível à
sua experiência vivida no sentido que destrinchavam pontos que
ainda eram herméticos para o grupo.
A roda invocou um plano de imanência em que diferentes
forças se entrecruzaram e formaram um eixo, uma síntese abertura,
isto é, consensos não instituídos por um saber superior, mas cuja
existência depende justamente da conflagração de diversos polos que,
no conjunto, formam um mosaico compreensível.
A roda foi criando entrelaçamentos, e as pessoas se
reconheciam na falta de direitos humanos que os/as atingia ou o
privilégio que tinham, em detrimento de outros/as, surgindo assim, a
horizontalidade dos direitos humanos na forma de como o concebiam.
A colcha não terminou, ela é gigante, abarca muitos temas,
como direito à cidade, gênero, diversidades, sexualidade, ética,
dignidade, crenças, valores, moral, costumes, migração, refúgio, etc.
Estamos apenas iniciando, mas a muito que compartilhar. A riqueza
do trabalho, é que todos/as se respeitavam nas colocações que surgiam
e sempre levantavam um ponto nevrálgico ou destrinchavam pontos
que ainda eram herméticos para o grupo.
A autonomia intelectual das práxis advém do exercício
epistemológico, sistemático e metodológico construído cotidiana-
mente pelas pessoas em seu processo contínuo de ação e reflexão dos
conhecimentos acumulados, que traz a alusão a vários pensadores/as
que se dedicaram ou ainda se dedicam aos direitos humanos.
Paulo Freire, por meio de suas obras, representa este grupo de
pensadores que o tem como referência o repensar o papel da escola,
dos professores/as, dos/as estudantes e de todos/as os envolvidos no
processo de ensino e aprendizagem, dentro de uma concepção
epistemológica pautada nos direitos humanos. Ele sempre incluiu a
52
luta contra a desigualdade, da qual, invariavelmente, perpassa os
direitos de todos e todas, em sua plenitude de direitos.
Além de Paulo Freire, que sempre é amplamente discutido e
refletido nas rodas, houve busca e embasamento em outros tantos
pesquisadores, assim como também vários organismos nacionais e
internacionais que produziram materiais para formalizar a garantia
dos direitos humanos e pouco conhecido pelas pessoas que
participaram da roda. Entre eles foi discutido e entendido, do qual,
tudo iniciou, a Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH,
que é um documento marco na história dos direitos humanos.
“Elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e
culturais de todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de
dezembro de 1948, como uma norma comum a ser alcançada por
todos os povos e nações. Ela estabeleceu, pela primeira vez, a proteção
universal dos direitos humanos”. A Declaração Universal dos Direitos
Humanos foi a que teve maior tradução da história, foram 500
idiomas, e forneceu subsídios para a construção das constituições de
muitos Estados e democracias atuais.
Temos no Brasil, muitas organizações e se apresentado uma
muito participativa nas temáticas dos direitos humanos, o Conectas,
que tem uma representação consultiva na ONU, e nasceu como
organização não governamental, mas, são parte de um grande
movimento global que luta pela igualdade de direitos. O Conectas
está dentro de uma grande rede de parceiros no Brasil e no mundo,
para que os espaços de decisões ouçam e contribuam para avançar nos
direitos humanos, ainda pouco efetivo, no que tange a proteção e
ampliação dos direitos de todos/as, mais particularmente dos/as mais
inviabilizados/as e dos/as vulneráveis.
53
O Conectas está na linha de frente propondo soluções,
lutando por retrocessos, denunciando violações, e buscando
produções equitativa e igualitárias, para transformação. Temos ainda
vários órgãos não governamentais, pela luta diária das pessoas
invisibilizadas, marginalizadas e vulneráveis, como LGBTQIA+,
pessoas negras, pessoas deficientes, refugiadas, indígenas, camponesas
e mulheres.
Mas o Brasil, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos -
CNDH, é o órgão governamental federal, considerado o mais
importante, na temática dos direitos humanos no país. Ele é
vinculado ao Ministério da Justiça, que tem por objetivo a promoção
e a defesa dos direitos humanos, mediante ações preventivas,
corretivas, reparadoras e sancionadoras das condutas e situações que
lhes são contrárias e atuam juntamente com vários ministérios, como
o da Educação, da Saúde, do Meio Ambiente, entre outros.
O CNDH é um órgão blico, ele foi criado em 2014, com
o objetivo de promover e defender os direitos humanos em todo o
Brasil. Mesmo com um caráter público, ele compõe entidades
privadas que representam diretamente a sociedade civil na proteção
dos direitos humanos. Muitas pessoas na roda de conversa não tinham
essa dimensão e nem sabiam que existiam esse órgão governamental,
por isso, falamos da importância e de como no Brasil estamos
alinhavados com a Declaração dos Direitos Humanos, assinada por
todos os governos até os dias de hoje, mesmo que enormes falhas
na garantia desses direitos, por políticas mal estabelecidas e
prejudiciais aos mais pobres, vulneráveis e as minorias sociais.
Mas também as rodas de conversa proporcionaram o
conhecimento de outros órgãos que atuam na defesa de direitos, como
polícias e delegacias especializadas (Delegacia de Atendimento à
Mulher, Delegacia de Atendimento à Terceira Idade, Delegacia de
54
Proteção ao Meio Ambiente, Delegacia de Homicídios, Delegacia de
Repressão aos Crimes de Informática, Delegacia de Crimes contra a
Saúde Pública); Conselhos Tutelares; ouvidorias e entidades de defesa
de direitos humanos incumbidas de prestar proteção jurídico-social e
Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Cedeca.
Com essas rodas de conversa, procurou-se desmitificar alguns
desses órgãos, e conversar sobre a importância dos movimentos sociais,
ascendendo assim, luzes para que todos/as que fizeram parte dessa
roda, pudessem entender que nós todos/as somos agentes principais
desse processo dos direitos humanos, votando em pessoas, partidos
que os contemplem os direitos todos das pessoas e lutem por eles além
de, participar ativamente nos processos municipais, estaduais e
também federais de construção de leis, proposições, para que
possamos viver em todas as áreas sociais, com direitos humanos, sem
distinção.
As rodas também foram importantes para que pudéssemos
pontuar que a educação é a única maneira que se constrói, entende,
conhece, todos os elementos dos direitos humanos, para que
estudantes possam vivenciá-los nas comunidades que vivem.
Estudantes precisam saber da importância desses direitos na vida de
todas as pessoas, independente de classe social, econômica, de raça,
de gênero, de credo e as instituições escolares são os espaços ideais
para essa construção.
O grupo que esteve presente nas rodas de conversas na
Câmara Municipal, teve a oportunidade de reconstruir, de refletir e
conhecer novos arsenais que garantiram excelentes discussões,
pontuações, assim como, novas elaborações individuais e coletivas,
desvelando possibilidades de atuar com, para e nos direitos humanos,
sob vários prismas que não conseguiam perceber nos seus cotidianos.
Eles/as identificaram que eram agentes diretos de todos os direitos, e
55
que esses deveriam fazer parte cotidianamente da vida de todos/as
equitativamente e igualmente.
Traremos a seguir, mais um projeto que compõe o grupo
Com.partilha. Neste trabalho também se levou a roda de conversa e
para embasá-la, utilizou-se a reconstrução de um jogo que serviu para
que estudantes que participaram do projeto, mas o diálogo,
exercitassem a escuta e a fala, esses elementos fizeram parte de um
processo fundamental, para que os/as estudantes pudessem dialogar,
refletir e construir novos conhecimentos a respeito de temas dos
direitos humanos, como o direito à cidade dentro de uma perspectiva
social e política. Te m a importante para entender onde vivem e o
porquê de não poderem fazer parte da vida na cidade com dignidade,
assim a roda de conversa e o jogo com crianças e adolescentes,
puderam fazê-los/as compreender que também têm direito à cidade e
devem buscar formas nas instâncias públicas que possam dar essa
condição e assim, viverem com dignidade.
A escola sempre foi trazida por eles/as, como um aporte
principal para buscar subsídios, primeiro entendendo e conhecendo
os problemas e como buscar soluções. O texto mostrará um pequeno
recorte do projeto, uma vez que ele foi intenso, teve longa duração e
os resultados foram surpreendentes, na medida que alimentaram
crianças e adolescentes na imersão dos direitos humanos e a
importância dele na vida cotidiana deles/as e de suas famílias. O
conhecimento que mesmo um adulto tem direito ao lazer, mesmo
trabalhando, foi fundamental, para a construção do conceito de
dignidade.
56
A Cidadania Como Experiência Vivida no Território
No ano de 2021, um dos membros do grupo Com.partilha se
tornou educador em um projeto social chamado Espaço Arte e
Cidadania com fomento do Fundo Municipal dos Direitos da
Criança e do Adolescente (FUMDECA) do município de Piracicaba
e apoio da Casa do Amor Fraterno, uma Organização Social que atua
na periferia da cidade 27 anos. Este projeto atende, desde então,
crianças e adolescentes de 7 a 17 anos de idade que vivem no bairro
Novo Horizonte.
A ideia básica do projeto era constituir um espaço de
formação para cidadania política, civil, social. Segundo Bobbio (2004,
p.61), “[...] os direitos civis reservam ao indivíduo uma esfera de
liberdade em relação ao estado; os direitos políticos lhe garantem a
liberdade no Estado; e os direitos sociais significam liberdade através
ou por meio do Estado Desde o princípio, o objetivo comum foi
constituir um espaço de vivência da cidadania em sua concepção mais
ampla, do que falar sobre a cidadania. Na formação de historiador e
prática de escritor estabeleceu-se como princípio que a vivência se
daria através da apropriação dos beneficiários do projeto de
ferramentas e consciência da cidadania por meio da construção de
histórias sobre suas próprias vidas, dos seus familiares e do território
em que residem.
Tendo isso como pano de fundo, nos primeiros meses do
projeto foi incentivado os/as estudantes, para que a) investigassem
como suas famílias foram parar naquele bairro; b) contassem a sua
própria história nesse bairro; c) o que elas gostariam de ver no bairro
para que ele melhorasse; d) o que poderiam mudar e, e) começassem
a imaginar como o bairro seria se a eles/as, fossem dados o poder de
decidir o que fazer e o que construir. Neste ponto é importante
57
ressaltar que o projeto começou no pior ano da pandemia de Covid-
19, sendo que a Casa do Amor Fraterno, por muitas vezes, era o único
espaço de socialização de muitas crianças e adolescentes muitas delas
com grandes lacunas de aprendizagem e alfabetização.
Esse processo de autoconhecimento permitiu que muitas
crianças e adolescentes, que antes desprezavam o bairro, percebessem
que o mesmo fora construído por seus próprios pais e avós através de
muito trabalho e que o problema do bairro não estava exatamente em
seus moradores ou suas deficiências no tempo presente, mas na
incapacidade da sociedade em retribuir os esforços dos trabalhadores
que o habitam, com políticas públicas que dessem dignidade aos
moradores do bairro Novo Horizonte. Muitas continuaram despre-
zando o bairro por motivos díspares, mas a maioria deles/as que fazi-
am parte do projeto passaram a perceber o bairro com outras vistas”.
No processo cotidiano do projeto Espaço Arte e Cidadania
foram propostas as seguintes atividades as crianças e adolescentes: o
educador incentivava os/as estudantes a começarem uma história no
bairro e os/as restantes deveriam usar sua imaginação para dar
continuidade e terminá-la. E, na sequência, deveriam ilustrar essa
história. Com o tempo, essas histórias se tornaram mais complexas e,
a eles/as, foi apresentado maneiras de construir roteiros que deveriam,
depois, ser lidos e gravados com a ajuda de um celular. Muitas dessas
histórias se transformaram em episódio de um podcast criado quase
que inteiramente pelos/as beneficiários/as do projeto e que foi
batizado como “Bairro de outra vista”, acessível em diferentes mídias
de transmissão, como o Spotify. Foi também elaborado com eles/as
um jogo de cidade circular, do qual perceberam a importância da
escola, como ferramenta para o acesso a um conhecimento mais
elaborado.
58
Todas as histórias, por mais fantasiosas que fossem, falavam
da realidade e tocaram em assuntos caros, dentro dos direitos
humanos, como meio ambiente, violência policial, pobreza, esperança
e cuidados. Todo o processo de criação, construção da narrativa,
personagens e efeitos sonoros foram feitos pelas crianças com a ajuda
e facilitação do educador.
O projeto caminha por mais criações, avanços do qual,
crianças e adolescentes são os/as protagonistas, construindo novos
jogos, novas brincadeiras, novas ações, novas significações e novos
olhares para suas condições, de suas famílias e de seus bairros,
buscando por meio desses novos olhares e significações, construir o
direito à cidade.
Considerações Finais
Assim como o horizonte dos direitos humanos permanece em
construção, também permanecem os projetos aqui apresentados. Em
cada roda de conversa, diferentes vias de diálogo e aprendizado se
abriram, levando a novos temas e tópicos, a novas discussões,
conversas e reflexões. O diálogo confortou, mas também provocou
desconforto, pois sugeriu novas formas de olhar a cidade, a política, a
cultura, a educação e o papel de cada um/a na transformação de
nossos horizontes sociais.
Em um mundo onde a conversa parece não ter vez, e a
agressão revela-se corriqueira e cotidiana, encontrar maneiras de
conversar sobre o tema dos direitos humanos é acolher o/a outro/a em
sua experiência particular da realidade, na expectativa de que, mais do
que o discurso formal, a prática do diálogo ensine a possiblidade e o
valor da igualdade e da dignidade humana.
59
No Brasil, a compreensão dos Direitos Humanos se faz
necessário e urgente, pois a ciência dos direitos, quando bem
praticada, de convidar, aglutinar e catalisar a ão coletiva,
necessária para que os direitos que postulamos universais não mais
tolerem discriminação baseadas em ideias torpes de raça, sexo,
nacionalidade, etnia, idioma, religião, entre outras.
As rodas de conversas iniciaram com grande impacto em
apresentar os Direitos Humanos não apenas como um conjunto de
princípios morais para informar e organizar a sociedade, mas como
princípios que norteiam e refletem, intrinsicamente, o sentido da ação
coletiva. Os direitos humanos permanecem um projeto em
construção, de corpos que optam por se organizaram horizontalmente.
Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Editora
Forense Universitária LTDA, 1993.
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University of Chicago Press, 1998.
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https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-609-1.p61-88
CAMINHOS POSSÍVEIS?
UMA BRECHA PARA ALCANÇAR
HUMANOS DIREITOS
Vanessa Ribeiro Simon CAVALCANTI7
Antonio Carlos da SILVA8
Introdão
Atingimos um ponto relevante de composição de agendas e
decisões mundiais em prol de defesa e de promoção de direitos
humanos, tomando pactos e estruturação jurídico através de direito
internacional. Entretanto, também se matizam impasses e frequentes
paradoxos em plena crise sanitária, política e de esfera global,
determinada no biênio 2020 e 2021. Conseguimos nos tornar mais
tolerantes, mais respeitadores, mais sustentáveis?
Justamente após-II Guerra e dinâmicas político-econômicas
bipolares, houve intensões e tensões em caminhos pactuados e
consensuados nas dimensões dos Direitos Humanos. Paradoxalmente,
também as crises estruturais e intermitentes se avizinharam. São
abordagens urgentes e que tomam conta, cada dia mais, das
emergências de um “ponto sem retorno”. O futuro é tempo presente
7 Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres,
Gênero e Feminismo (PPGNEIM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Bahia, Brasil.
E-mail: vanessa.cavalcanti@ufba.br.
8 Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail:
carlossilva@ces.uc.pt.
62
e não é possível desconsiderar planos, agendas e estratégias de e para
a vida comum.
Tendo essa premissa, o texto compreende uma análise
descritiva-histórica, de caráter ensaístico e pautada em revisão
historiográfica contemporânea, versando sobre interfaces entre
Direitos Humanos, História, Ética e Política. Apresenta recorte no
Tempo Presente e toma como objetivo analisar o processo que
compreende as efemérides das oito décadas da Declaração Universal
dos Direitos Humanos (DUDH, 1948) e das três cadas da
Constituição Federal do Brasil, compondo dimensões internacional e
nacional na promoção e princípios enquadrados no campo dos
Direitos Humanos.
Utilizando metodologia qualitativa, descritiva e com viés
histórico, traça um panorama de ranços e avanços almejados e
conquistados, levando em considerações contextos que tencionam
regimes totalitários e democráticos, ademais do intenso paradoxo
(Teoria Crítica) como foco analítico. A base documental atrela-se à
produção transdisciplinar e promovida por grupos acadêmicos
europeus e latino-americanos, indicando categorias analíticas e
interpretações sobre o atual estágio do capital e de seu
desenvolvimento e violências sobrepostas. Resultados de caráter
analítico, apontando para a urgência de identificar e reconhecer
processo histórico, institucional e internacional alcançados como
pressupostos de desenvolvimento sustentável e em prol de/para
Direitos Humanos, em suas múltiplas dimensões.
Entre Urgências e Emergências
Ponto de impasse em plenas vésperas de 2020. no 31 de
dezembro do ano anterior se anunciava a passagem das duas primeiras
63
décadas do século XXI com graves situações globais (crises
econômicas, pandemia decretada, novíssimas guerras e conflitos locais,
violações e suspensão de direitos pactuados, alerta ambiental, etc).
Mesmo sem definições religiosas ou teleológicas, a virada de ano”
sempre traz votos, desejos e promessas de tempos melhores e mais
esperançosos.
Conseguimos nos tornar mais intolerantes, mais violentos,
mais consumidores. Ou as manifestações antidemocráticas em vários
países, furor negacionista frente a uma pandemia severa como a
Covid-19 e que desnudou ainda mais pessoas vulnerabilizadas e
desprotegidas (MATA et al., 2022). Fomos impelidos a pensar e
repensar a vida, o cotidiano e as prioridades. Os últimos oitenta anos
foram intensos e tensos: diretrizes foram semeadas, mas a efetivação
nem sempre caminhou no mesmo passo.
Uma pausa estrutural e sistemática aconteceu com o ano de
2020. No campo da saúde e da educação as urgências foram
deflagradas e assinalaram as linhas abissais coabitantes nos
contextos que englobam as duas primeiras décadas.
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal.
Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo
que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis
são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a
realidade social em dois universos distintos: o universo deste
lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. A divisão é
tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto realidade,
torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente.
Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser
relevante ou compreensível. (SANTOS, 2007, p. 71).
Buscamos ser sustentáveis e conscientes ou teremos dias
contados, como espécie e como grupo relacional? São abordagens
64
urgentes e que tomam conta, cada dia mais, das emergências de um
ponto sem retorno (LOVEJOY & HANNAH, 2018). A brecha
para “(re)fundar o social como elemento ético, estético e plural
projeta-se como potência anti-precarização de todos os aspectos das
vidas” (CAVALCANTI & SILVA, 2020) recebeu mais uma
oportunidade para coletiva e globalmente checarmos em que ponto
estamos”.
Are we at the failsafe point? No. We still have time to act upon
the recognition that our planet is an intricately linked
biological and physical system that holds yet-to-beunderstood
capacity to heal and clean itself. We still have tools and
opportunities to effectively manage the living planet and its
biodiversity for the benefit of humanity and all life
(LOVEJOY; HANNAH, 2018, p. 1, grifos nossos).
Das propostas advindas da Rio+20, saltamos décadas de
tentativas, estudos, alertas globais e locais. As urgências se
transformam em atos de decisão, política, social e ética. Por isso, vale
lembrar que “o primeiro ato histórico foi a criação de uma nova
necessidade”. Recuperar vertente clássica do século XIX nos coloca
exatamente frente ao tempo que urge, que corre digitalmente.
[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e,
portanto, de toda a História, é que os homens devem estar em
condições de viver para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, é
preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e
algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a
produção dos meios que permitam a satisfação destas
necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este
é um ato histórico, uma condição fundamental de toda história,
que ainda hoje, como milhares de anos, deve ser cumprido
65
todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os
homens vivos. (MARX; ENGELS, 2007, p. 39).
No atual estágio, sem dúvida, precisamos de novos atos,
porque resulta impossível responder com êxito o desafio de nosso
tempo histórico sem a criação de necessidades capazes de garantir não
somente a sobrevivência da humanidade, mas principalmente a
emancipação desta “jaula de ferro que subjuga a sociedade global. O
desafio é a sustentabilidade da justiça social. Estranhamente, em
tempos sombrios (ARENDT, 2016), o significado das palavras,
conhecidas pela sabedoria, sofre com o jogo mesquinho e rancoroso
que confunde o ato político ao incitar ódio ao exercício da liberdade
política. Violação de direitos, frases sem argumentos, linguagem chula
e ameaças cotidianas causam indigestão, falta de pensar presente-
futuro, de reconhecimento do passado. Esse ponto de
insustentabilidade tem chegada com uma velocidade que
historiadoras/es não são capazes de marcar.
O atual estágio é um binômio vivido, pois configura-se como
um drama coletivo, um escândalo”, e como uma verdadeira
catástrofe”, podendo inclusive ocorrer simultaneamente em
diferentes partes do Globo. Causam inquietações e se sustentam em
sentimentos de vulnerabilidade, desproteção e insegurança”.
Demonstram que os rumos tomados mais recentemente sinalizam
para uma experiência humana circunscrita no medo e não em uma
integração positiva (INNERARITY, 2017).
Se a linha mestra for ainda a individualidade sem objetivar
que vivemos em comunidade planetária, as consequências sempre
serão desastrosas. Abriremos mão dos pontos consensuados e
pactuados como elementais para a vida coletiva. Afinal, “o espaço
público não é uma conversa de salão entre intelectuais; as emoções
66
fazem parte da sociedade de massas, assim como uma certa
dramatização (INNERARITY, 2017, p. 148).
Dentre as dimensões dos Direitos Humanos, vale sempre
recuperar a noção de que não são de outros. São nossos, coletivos e
indivisíveis. Abarcam e estão vinculados às alteridades étnicas, raciais,
territoriais e de gênero. Portanto, exigem uma leitura crítica do atual
estágio da crise estrutural do capital e, por conseguinte, do papel do
Estado na modernidade - a estatalidade (KURZ, 2010). Da
compreensão de que não diferenças nas perspectivas do Estado e
do Mercado para mediar e regulamentar a estabilidade da forma social
vigente. São dois polos do mesmo campo histórico que cumpriram
com a tarefa de inserção dos sujeitos históricos na lógica mercantil.
Por conseguinte, as soluções apresentadas para enfrentar a
crise sistêmica em sua expressão mais brutal, que se alastra sem limites
pela chamada economia real, nada mais são do que alternativas para
assegurar os privilégios unilaterais obtidos por intermédio das leis do
Mercado e do recrudescer do tripé conservadorismo, aversão ao Outro
e autoritarismo (BUTLER, 2018). Isto porque, na modernidade, o
Mercado é entendido com a economização abstrata do mundo através
da utilização empresarial do “indivíduo e da natureza (KURZ, 2015),
o que resulta no reconhecimento de direitos apenas àqueles/as que
estão na categoria de “seres solventes”.
Onde foi que perdemos o traço empático, essa necessidade
imprescindível para contrapor a razão do mal que teima em persistir?
Quando crianças e jovens são alvos de violações e perdem a sua
representação como indivíduos, tornam-se seres coisificados”.
Quando mulheres e meninas ainda são alvos de violências doméstico-
familiares, o reconhecimento ético desta valiosa alteridade é
negligenciado. Quando o racismo é cotidiano e dominante em ambas
as esferas (pública e privada), não liberdade, tampouco a
67
possibilidade em realizar a Justiça (VAZ, 2017; RADASI, 2018;
NOOR DAVIDS, 2019; FREITAS, 2021).
Neste contexto, o Estado nacional, de organizador do poder
político e representação dos interesses coletivos para garantir a “boa
vida” aristotélica, assume uma postura operacional típica da
concorrência privada ao suplantar a participação política dos seus
cidadãos/ãs e mascarar a essência democrática. Com isso depõem
contra os princípios que sustentam os 80 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948) e os 30 anos da
Constituição Federal do Brasil. Quiçá caricaturas de uma cidadania
corrompida e de uma democratização tardia que legitima o ethos
coletivo (leia-se, legitimação ideológica).
Ao longo desse período, verificamos que a segregação e a
dominação de uns em relação aos outros ultrapassam as fronteiras
identitárias e ocupam alteridades cruéis. Transformam-se em novas
configurações através dos ciclos temporais, camuflando-se, por tantas
vezes, gerando permanências e mesmices. As violências são cotidianas,
brutais e compactuadas por alguns setores da sociedade, dentro de
cenário permeado por intransigências, banalizando e
espetacularizando o que de mais humano: o direito à vida, à
dignidade e à igualdade (CAVALCANTI, 2018).
Documentos formulados - em agosto de 1948 e outubro de
1988 respectivamente - após graves violações de Direitos Humanos,
praticadas durante a II Grande Guerra e a ditadura militar no Brasil,
compõem o nosso plano inicial e configuram o cenário trágico que
tiveram como expectativa enfrentar e erradicar violências decorrentes
das intolerâncias políticas, étnicas, geracionais, ocorridas em espaços
geográficos e tempos não tão diferentes, mas interdependentes de uma
nova configuração de poderes e consagração da ideia de progresso e
de justiça social (SEN, 2011).
68
A esperança de observar um processo de democratização foi,
nos finais dos anos 1980, parte de intensas agendas e
instrumentalização de tempos diferentes, de construção de
acessibilidade e de governação pautadas em práticas de promoção
social e atenção/respostas à sociedade internacional. Neste primeiro
quartel, com maior ênfase a partir de 2015, temos matizado
configurações de tempos intensos e conflituosos que exigem novos
ventos e interpretações atuais para problemas recorrentes para evitar
contínuos retrocessos nas dimensões e etapas dos Direitos Humanos
(CAVALCANTI & SILVA, 2018).
Atentos a uma realidade latino-americana, com destaque ao
caso brasileiro, ao completarmos o último quartel de século de um
marco legal estruturante (e representante de letras jurídicas de base
democrática), as constituições em vigor sinalizavam para uma
composição coabitada pelas dimensões dos Direitos Humanos.
Lembrando, ademais, que muitas delas são posteriores à DUDH e
que foram matizadas em processos pós-ditaduras para o continente.
Em sua maioria, responderam aos anseios de movimentos sociais, da
proeminente necessidade de (re)democratização algumas em fase
transitória -, às novas agendas (específicas e especializadas,
coadunando também com organizações internacionais e locais). o
obstante e paradoxalmente, as políticas sociais foram alvo de intensas
instabilidades e movimentação não homogênea, apontandopara as
últimas décadasque são moedas de troca e eleitoreiras”, portanto,
diretamente as mais atingidas por decisões de governação e de reforma
de instituições vinculados ao processo de valorização do valor como
sujeito automático da sociedade (KURZ, 2015).
As influências na educação deixaram de restringir-se a uma
escala nacional e a relevância do global-local deverá ser considerada
para melhor compreendermos o fenômeno da mercantilização da vida.
69
Nessa perspectiva, seria a síndrome da Torre de Babel” para a
construção histórica dos múltiplos discursos que conectam,
interferem e dimensionam os Direitos Humanos (QUINTEIRO,
2018). Entretanto, predominam em demasia, a “torre de papel”,
burocratizando a vida, institucionalizando a experiência social
paradoxalmente entre regimes democráticos e ditatoriais (vide o caso
brasileiro dos últimos anos).
No último quinquênio do século XX ocorreram mudanças
sociais e políticas de tal maneira que as reflexões sobre ranços e
avanços, sobre garantias e políticas posteriores ao ordenamento
jurídico concomitantemente assinalam limites e não conformidades
no cumprimento. Tal fato exige a abordagem de múltiplas dimensões
não somente da própria democracia brasileira, mas especialmente da
relação ética e direitos humanos. Interfaces entre abordagens teóricas,
institucionais e, com destaque, às relações e interligações entre
categorias tais como cidadania, multiculturalismo, cultura, lei, poder,
identidades, discriminações.
O que desejarmos para futuro se consequência de nossa
interpretação do presente em contínuo diálogo com o passado, ou seja,
da relação valor/História. Em outras palavras, dos fatos ontológico-
sociais que desvelam as causas e finalidades da “vida moderna (que
não necessariamente coadunam com o plano dos direitos e do
reconhecimento do humano em uma esfera política consagrada pelo
espaço econômico: o da concorrência e acumulação).
Sob a égide da mercantilização e do fetichismo, enfatizamos a
questão dialética, como excluir expressões de humanidade e não
promover a diversidade? Quais trabalhos e que mercado são passíveis
de superação desta economização abstrata anteriormente aludida?
Como é fácil de intuir, apesar do forte componente dialético,
a instituição escola não ficaria incólume aos desafios advindos desta
70
conjuntura complexa, sendo ocupada por outros públicos e culturas,
ampliada na essência e multifacetada na composição, com o objetivo
de pensar (para além da “não exclusão”) outras formas de
emancipação, de superação de toda e qualquer forma de Poder. Isto
porque, na sociedade mercantilizada e individualizada, não o
espaço para criação de saberes e fazeres, quiçá, de promoção da paz e
da diversidade como pressupostos da ação em coletividade, constantes
nas duas referências jurídico-éticas.
Apesar de haver várias educações, uma educação para o nosso
tempo, sintonizada com os direitos humanos e com a justiça
social, precisa de ser repensada de modo a reganhar ser e
sentido, a sua raison d’être, de modo a que as anormalidades
possam ser denunciadas e superadas e os desassossegos possam
também ser amainados pela afirmação de valores que estruturem
o nosso existir com dignidade, o nosso existir com direitos.
(ESTEVÃO, 2018, p. 20, grifos nossos).
No âmbito de políticas sociais, a Constituição elencava
ações específicas, mas a legislação mais pontual somente ganhará seu
texto em finais de 2006 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB). A educação (formal ou não) pode estar se
distanciando de seu propósito de criticidade e formação para a
cidadania, além de estar submetendo-se às idiossincrasias da sociedade
contemporânea, produtora de mercadorias, baseada tão somente em
resultados e “linha de produção onde a representação social
fetichizada importa como eixo central. Consoante anunciado acima,
em tempos de anormalidades (ESTEVÃO, 2015), é nesse campo que
podemos denunciar e vislumbrar um presente-futuro no existir com
dignidade”.
71
As consequências são relevantes e sinalizam impactos de longa
duração e, muitas vezes, violadores de garantias e direitos pautados.
Exemplos vivenciados e que ocupam assentos escolares podem ser
absentismo galopante, distanciamento de transformações sociais
significativas, grande desinteresse entre sujeitos envolvidos,
introdução de fatores de instabilidade e violências (desde micro, de
gênero ou racismo) nas esferas cotidianas.
Podemos apontar a redução do empenho nos processos
práticos de aprendizagem-ensino (revogando o que se pretendia com
força no processo constituinte, inclusive incentivando à esfera
privada). Da justa e ética educação idealizada, o acesso e a qualidade
na formação cívica e cidadã, bem como reconhecimento de
identidades e da pluralidade da vivência social (segunda dimensão dos
Direitos Humanos) não estão realizados em sua plenitude: acima de
tudo e com destaque aos processos jurídico-institucionais específicos,
o que fica mais visível e notório é uma instalação gradual da
indiferença individual e do menosprezo coletivo pelo próprio valor do
saber (BALLESTEROS, 2018).
Em conjuntura nacional, imerso nas incertezas com relação ao
devir, são anunciadas necessidades de analisar, interferir e construir
instituições (para além do Estado nacional e do Mercado global) e
práxis pautada em Direitos Humanos, não fragilizados e direcionados
apenas àqueles seres solventes e submissos à lógica da reprodução do
capital.
Relevante reiterar que dos anos 80 até agora, delimitam-se
agendas para e pelos direitos humanos: desde efetivação de projetos
existentes até o enfrentamento a partir de uma perspectiva ética que
nos vincule à alteridade. A realização da Justiça por intermédio da
difusão de conhecimento, criação de redes e ampla educação. Uma
agenda pautada nas necessidades históricas imediatas, não o contrário.
72
À luz da precisão teórico/práxis, precisamos inquirir que lugar
ocupam tais direitos no devir histórico? A resposta pode ser
simplificada na ideia de que a educação para e pelos direitos humanos
é aquela que desperta “indignados/as (retomada em diversos
momentos históricos e, especialmente agora, relativizando impactos
no regime, mas questionando a validade e a eficiência/eficácia do
texto constitucional) para o agir livre como razão de ser da Política
(ARENDT, 2016). Da realização de um mundo possível e para além
das estruturas vigentes o campo histórico da contemporaneidade
constituído pelo sistema produtor de mercadorias - não existe solão
possível sem uma nova composição teórica.
A difícil questão para nós é: quanto tempo pode a perversa
normalidade de uma ordem socioeconômica e política
antagônica, com sua irreprimível tendência de afirmação global
de seu domínio, manter sua dominação sem destruir a própria
humanidade? Esse é o tamanho da montanha que devemos
escalar e conquistar (MÉSZÁROS, 2015, p. 35).
O Futuro é Agora
Violações cotidianas em um cenário de forte crescimento
econômico, não sustentável, contextualizam a distância em engendrar
o real Desenvolvimento e desvelar uma agenda imensa para promoção
do acesso à justiça e à cidadania frente ao recrudescer da desigualdade
e de emergências sociais importantes. Eis um quadro da
contemporaneidade brasileira, anunciando necessidades de observar,
analisar, interferir e construir instituições e práxis solidária os
parâmetros éticos para inserção da moral na política. Em contexto de
violências sobrepostas (CAVALCANTI, 2018) e de dimensões nos
âmbitos da justiça e da cidadania, enveredar por campo de tensões e
73
de constituição de redes de proteção e apoio são essenciais, ainda mais
com a delimitação escolhida.
Apesar do incremento, tendo os anos 1980 como referência,
de agenda e ações específicas para e pelos direitos humanos, ainda
muito que fazer: desde efetivação do marco legal-institucional
existente até o enfrentamento histórico-estrutural do processo de
juridificação do Estado moderno, que de responsável pela garantia do
consumo social tornou-se refém do processo de autofagia do capital
(KURZ, 2007). que marcar as nuances de um “sonho ético-
político da superação da realidade injusta (FREIRE, 2000, p. 43).
O debate atual sobre os Direitos Humanos precisa, por isto,
partir de um questionamento básico que se situa no quadro teórico
específico das Ciências Humanas e Sociais: como se configura nosso
mundo histórico hoje e que lugar m os direitos
humanos/fundamentais em geografia brasileira e em momentos cujos
quadros são paradoxais e apontam para tempos sombrios?
Educação para os direitos humanos na perspectiva da justiça é
certamente aquela educação que desperta os dominados para a
necessidade da ‘briga’, da organização, da mobilização crítica,
justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem
manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção
do poder (FREIRE, 2000, p. 99).
O acesso ao conhecimento, quer através do ensino formal, quer
por iniciativas não formais de promoção dos níveis de literacia
das pessoas, qualquer que seja a sua idade, assume um papel
incontornável no combate às desigualdades. É verdade que a
garantia de acesso à escolaentendida em sentido lato –, por si,
não resolve os dilemas sociais, mas as pessoas com menos
oportunidades de domínio de conhecimentos que se adquirem
para além do vivido tendem a ser mais pobres, mais propensas a
sofrer atropelos aos seus direitos e a ser mais vulneráveis em
74
situações que exijam autonomia de decio. (ALVAREZ,
VIEIRA & OSTROUCH-KAMINSKA, 2017, p. 9).
Promotores dos direitos humanos alegam, difundem e
reafirmam que todo indivíduo tem direito à educação (Artigo 26 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos). Tal assertiva baseia-se
principalmente na premissa de que o direito à educação ênfase na
educação básica para todos desenvolve as habilidades sociais e o
fomentar ético que nos vincula à alteridade, ao Outro (BUTLER,
2018).
Como se fosse possível separar uma categoria da outra
interpretar e transformar - aqui nossa reflexão dialética perpassa por
questionar os aspectos unilaterais de uma interpretação dos Direitos
Humanos sob a égide (apenas) do formalismo jurídico em um mundo
regido pelas normas do Mercado e da acumulação do capital. Isto
posto, compreendemos que uma relação direta da fundamentação
conceitual dos Direitos Humanos com a realização de Justiça e
promoção do real Desenvolvimento, porque, não obstante a ideia de
qualquer pessoa, em qualquer rincão deste mundo, possuir direitos
básicos que devem ser respeitados, ou seja, a eficácia política em
contraposição a supremacia do capital, precisamos estabelecer os
Direitos Humanos como imperativos globais por intermédio,
parafraseando Hannah Arendt (2008), da culpa organizada e da
responsabilidade universal (devir histórico).
As rotinas, os cuidados e a negligência/abandono na educação
de criança podem produzir consequências para toda a sociedade. Isto
porque, se entendermos o Estado como o conjunto de instituições
disponíveis e imponíveis de uma determinada sociedade, portanto,
responsável pela organização do poder político em uma sociedade
regida pela valorização como sujeito automático da sociedade (teoria
75
fundamentada no pensamento marxiano), a realização da justiça
como fundamento para o real desenvolvimento somente será possível
com uma educação para além do capital (MÉSZAROS, 2007).
Com o aporte da Teoria da crítica do valor e, principalmente,
da crítica do fetichismo moderno, não podemos ocultar do processo
de análise o paradoxo da modernidade entendido como a separação
do sujeito/objeto na concepção dos valores morais. Em outras palavras,
que sob a égide de um sistema de reprodução de mercadorias, o
indivíduo passível de construção de seu devir histórico (HELLER,
2016), entendemos que a categoria circunstância é o outro polo
deste mesmo campo da modernidade) e substituído pelo Estado e as
instituições destinadas à manutenção/regulação da sociedade. Neste
contexto, os Direitos Humanos, também sob uma perspectiva
dialética, devem ser entendidos como representação de um mundo no
qual a dialética negativa é condição sine qua non para suplantar as
barreiras que impedem o acesso à Justiça.
Consoante François Dubet (2004, p. 541), “[...] não existe
solução perfeita, mas uma combinação de escolhas e respostas
necessariamente limitadas”. Melhor, sem dúvida, é termos caminhos
possíveis que não mais chance de escolhas. No entanto, a História
nos apresenta uma grande diversidade de formas familiares, isto é,
modos de organizar material e subjetivamente o seu dia a dia. É a
experiência familiar que diferencia as culturas e promove as
transformações sociais.
De unidade de produção e reprodução passou a unidade
socioafetiva e de caráter institucional a caráter instrumental. A
convivência violenta afeta todos os integrantes e abre espaços para
além do privado, impondo debates, diálogos e marcos legais-
institucionais capazes e eficazes na promoção da justiça e liberdade
sociais, bem como acesso à cidadania e ao bem-estar coletivodesde
76
que apreenda neste embate que as relações sociais, no campo histórico
da modernidade, são determinadas não pelos próprios indivíduos,
mas por uma representação simbólica na forma mercadoria. Destarte,
uma separação entre as composições públicas e privadas, na qual a
política é exercida não com liberdade na ação e para além dos
atributos da vontade e do pensamento, mas como reprodução das
estruturas de poder despóticos advindos de uma relação econômica
abstrata (ARENDT, 2008; KURZ, 2015).
O princípio advém da DUDH (1948), mas também vai
matizar a construção textual da Constituição (1988):
Artigo 7.º (DUDH, ONU, 1948)
Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual
protecção da lei. To dos têm direito a proteção igual contra
qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra
qualquer incitamento a tal discriminação.
Art. (CFB, 1988)
Todos o iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade [...].
A educação e, com destaque a escola, em tempo presente
apresenta-se contaminada pela gica da concorrência, da
mercantilização e da acumulação. Neste contexto, torna-se uma seara
de culturas voltadas à violência; para a não compreensão do Outro
como sujeito ético-moral. A ideia emancipatória, todavia, “pode
abrir-se ao mundo sem passar pela escola (DUBET, 2004, p. 542),
afastando-se de uma abordagem fragilizada pela sociologia da luta de
classes e compreendendo a universalidade abstrata da forma
mercadoria que pode, desta forma, alterar as conhecidas matrizes
institucionais que atestam a legitimidade da divisão social e,
77
concomitantemente, do não reconhecimento do outro como ser
humano se não estiver inserido nos processos de produção e consumo
(CAVALCANTI & SILVA, 2018).
Denúncias, investigações e busca de configurações e
ordenamentos que assegurem e promovam as diretrizes dos Direitos
Humanos - pelo menos o que convém chamar de discurso dos
mínimos - são destaques do contexto internacional e nacional.
Direito à vida, à dignidade, à segurança e à liberdade constam desde
o texto constitucional até nos programas e ações específicas sob os
auspícios do Estado brasileiro.
A violência como fenômeno e processo social pode ser
compreendida de diferentes maneiras, com um olhar
multireferenciado, mas a assertiva a seguir estabelece relações com o
privado (CAVALCANTI, 2018). Outro fator de sobreposição e de
agravamento é que, em geral, a violência é acometida por parceiros,
pessoas próximas e de relações diretas. Tal fato confirma que a
violência se expressa através do poder nas estruturas familiares,
compreendida como a educação ou sujeição imposta por avós, pais e
agregados, de onde parte a aceitação e reprodução de um modelo de
educação e cultura que confirma a expressão da cultura patriarcal
(COSTA & NEVES, 2017; BAYER, 2018) no centro da economia
das trocas simbólicas.
Ampliando Lentes a Partir da Produção Crítica
o como manter latente, em qualquer processo de análise
sob orientação da Teoria Crítica (valor, dissociação do valor e fetiche
da mercadoria), que a transfiguração do espaço privado para o público
é uma acepção dialética. Por meio do Direito, as relações
domínio/propriedade são abarcadas pelo Estado que se torna o órgão
78
regulador desta Res Publica. Entretanto, como esse mesmo Estado
não produz nenhuma atividade econômica voltada para o Mercado é
institucionalmente dependente de uma mais-valia futura apenas
confirmada se o crescimento econômico for realizado de forma
sustentada.
O sujeito histórico, nesta relação dialética, confirma o câmbio
do indivíduo em objeto, de ação transformadora propriamente dita
para a ideia do possível. De realizador de sua própria história, para
objeto (leia-se coisificação) determinado pelas relações sociais de
produção.
A aparente contradição se dissolve se perguntamos pela definição
de ser humano que subjaz a esse paradoxo. A primeira fórmula
dessa definição reza: "O ser humano" é em princípio um ser
solvente. O que naturalmente significa, por consequência, que
um indivíduo inteiramente insolvente não pode ser em princípio
um ser humano. (KURZ, 2003).
Mais do que uma agenda de políticas públicas, uma
demonstração de vontade e de possibilidades de justiça social, sugere-
se mais vinculação com as dimensões instauradas e acordadas em
vel internacional, com destaque aos direitos fundamentais.
As objeções e o indignar-se frente à violência ética é um
pressuposto à crítica. Mas sem uma abordagem ontológica do ser,
uma crítica categorial das contradições inerentes do sistema de
reprodução social do capital, a representação histórica e não
natural, são elementos-chave para, seguindo a observação
daqueles que escreveram os parágrafos de uma narrativa dialética
da história, não basta apenas interpretar o mundo de várias
maneiras; a emancipação depende de mudá-lo (CAVALCANTI
& SILVA, 2020, p. 76).
79
Os paradigmas e as epistemologias do Tempo Presente
justificam a necessidade de observar o vivido e o narrado nesse último
século, analisando e construindo bases mais consistentes. As urgências
e as emergências (especialmente de agendas específicas e somente
indicadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na
Constituição Cidadã) configuram que as relações sociais e
intermediadas pelo Estado e pelas instituições demandam mais que
estratégias de mobilização e prática democráticas (BATTHYÁNY &
ARATA, 2022). incrementos no que se refere ao diálogo entre
mundo acadêmico, políticas públicas e movimentos sociais
(intensificados nas duas últimas décadas), justamente com o intuito
de assinalar reflexão conjunta, crítica e propositiva. No intervalo entre
uma declaração e o atual estágio vivido, a criação de agendas e de
tecnologias que pudessem vislumbrar lacunas e brechas em prol de
erradicar inequidades estruturais.
A teoria crítica, entrementes, foi a lente encontrada para
analisarmos e refletirmos sobre o atual estágio do capital, sendo
considerada parte do pressuposto de que o mundo tal como o
conhecemos não é sustentável, viável e ético (DIETRICH,
CAVALCANTI & BATISTA, 2020).
Conclusões
A proposição inicial remete à dualidade indivíduo/poder.
Uma contribuição à crítica dos condicionantes do atual estágio da
crise do capital (nova qualidade e novo estágio estrutural) que,
interdependentes da forma valor e do fetichismo da mercadoria,
procuram ordenar as relações sociais com as instituições por meio da
violência, não da liberdade como razão de ser da política. Por
80
conseguinte, desvelam uma governação totalitária sob a scara da
democracia (a legitimação ideológica supracitada).
Uma vez que o ser humano real, o indivíduo vivo, não nasce de
modo algum conforme um automatismo biológico na qualidade
de sujeito da valorização e do direito, abre-se uma lacuna
sistemática entre a existência real dos indivíduos e essa forma
social. De certo modo, essa lacuna não é apenas uma lacuna
ontogênica’, atinente aos homens individuais, mas também
filogênica’, ligada ao desenvolvimento histórico da sociedade.
Pois a constituição do capitalismo e da forma jurídica universal
correspondente foi tão pouco natural que somente na
modernidade esse sistema surgiu e se impôs contra as vigorosas
resistências do ser humano. Originariamente o trabalho abstrato
não foi um ‘direito’ pelo qual todos teriam ansiado, mas uma
relação de coerção, imposta com violência de cima para baixo, a
fim de transformar os seres humanos em máquinas de fazer
dinheiro (KURZ, 2003).
A educação para e pelos Direitos Humanos dedicada a
conhecer, a promover e a difundir princípios mínimos de
ordenamento social contemporâneo - podem ser desafios utópicos e
inalcançáveis neste campo histórico da modernidade. Isso se dará de
maneira mais acirrada em tempos incertos; mas, sobretudo, quando
os princípios orientadores da educação formal (família e escola)
estiverem atrelados à uma lógica de conformidade-conformismo
impositiva com o capital. Sem direcionar-se por movimentações
intensas e pró-ativas para diálogos e intercâmbios conscientes e
ampliados, não haverá possibilidade de ir “além do capital”,
encontrando caminhos e práticas abrangentes como “a própria vida”.
A educação formal e informal não poderá, entrementes, ser
emancipadora e realizadora, muito menos anunciar sustentabilidade,
acesso à justiça e à cidadania.
81
Vale a pena descobrir que se os elementos progressistas da
educação forem bem-sucedidos “em redefinir a sua tarefa num
espírito orientado pela perspectiva de uma alternativa hegemônica a
ordem existente”, ai sim, haverá contribuição vital para romper com
a lógica do capital não no seu próprio limitado domínio”, mas
ampliado para o campo social como um todo (MÉSZÁROS, 2007).
Qualquer iniciativa para emancipação social comprometida
com o seu devir histórico - para além das categorias conhecidas de um
sistema autônomo de relações fetichistas e formas sociais dogmáticas
- precisa “escovar a história a contrapelo e engendrar a globalização
de uma nova crítica social, de uma real compreensão dos direitos e
necessidades humanas.
Até que ponto estes dois polos que no momento parecem estar
essencialmente afastados um do outro: uma crítica de princípio
da mercadoria por um lado e, por outro lado, o movimento
prático de oposição, será que a gente não podeneste momento
unir estes dois polos mais do que estamos acreditando que seja
possível? (KURZ, 1997).
As violações continuam cotidianamente a tomar conta de
vidas. Fome, guerras, desigualdades abissais, migrações forçadas,
ambientais e em busca de novas oportunidades, não acesso e não
efetivação de conquistas que estão no papel. A contagem para
reversão está a ficar cada vez mais apertada e irreversível. Os alertas
sobre os problemas globais estão nos quatro cantos e ventos.
Sob os ditames do atual sistema de produção social do capital,
a liberdade é uma linha tênue entre a vida e a morte. Ao mesmo tempo,
pode ser o nosso dom mais precioso, como alude Miguel de Cervantes
(Dom Quijote, 1605), ou uma mortífera conclusão, nas palavras de
Álvaro de Campos (heterónimo pessoano, 1923). As guerras de
82
ordenamento mundial” (KURZ, 2015), processo em que as forças do
capital, não mais preocupadas em estabelecer conquistas territoriais,
buscam dizimar uma parcela significativa da população mundial
excluída do processo de criação de riqueza. Os chamados “povos do
abismo (Jack London, 1903), aqueles inúmeros e invisibilizados
corpos humanos que vagam sem destino. A espera da morte, pelas
ruas das cidades, são contrariados pelas promessas do Progresso e
encontram no Estado a face mais hostil da barbárie: a alienação de
políticas públicas e a violência cotidiana.
Existem brechas, pequenas brechas e possibilidades de turning
point (ONU, 2022). A Divisão de Análise Econômica e Política do
Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU
(EAPD/DESA) apresentou (julho de 2022) informações sobre o
impacto de múltiplas crises na realização dos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as intensificação de tensões no
âmbito político com suas consequentes implicações. Quase num
caminho de contramão”, pessoas e instituições internacionais tem
reforçado interatividade e urgência para promoção e assegurar as
linhas estratégicas da que compõem a Agenda 2030
(https://www.undp.org/sustainable-development-goals).
Os ODS podem ser, dentro desse processo, oportunidades
para enfrentar e buscar pactos internacionais relativos às diversas
desigualdades, incluindo a temática de igualdade de gênero. Em todas
as esferas interseccionais, a assinatura por parte de Estados-membro
da ONU e de políticas públicas mais locais também associadas a
esses princípios podem configurar-se como condicionalidades de
bem-estar e bem comum planetário. As metas para 2030 foram
pensadas para um ciclo de quinze anos de promoção e estão logo ali.
Por isso, as urgências de compromisso social e assegurar todas as
garantias políticas para eliminar situações abissais. Os ventos da
83
mudança, desde a América Latina, estão a soprar. E, parafraseando
Robert Frost (2016), poeta norte-americano vencedor de prêmios
Pulitzer, temos uma promessa a cumprir com a Liberdade e caminhos
a percorrer antes de definitivamente morrer”.
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“O QUE [QUEM] ESTÁ DISTANTE DOS
DIREITOS HUMANOS? UMA ANÁLISE
CULTURAL SOBRE CURRÍCULO E DIFERENÇAS
A PARTIR DO PROGRAMA RESIDÊNCIA
PEDAGICA/CAPES
Claudiene SANTOS1
Elaine de Jesus SOUZA2
Carlos Thailan de Jesus SANTOS3
Introdão
A discussão sobre Direitos Humanos (DH) na escola
demanda maior inserção nos cursos de licenciaturas, a fim de articular,
aprofundar e aproximar os debates acadêmicos à comunidade escolar.
Tal inserção pode propiciar espaços para que educadoras/es
promovam cotidianamente em sua atuação pedagógica ações e
reflexões voltadas à mudança do atual quadro de violações, violência,
1 Professora do Instituto de Ciências Humanas do Pontal da Universidade Federal de
Uberlândia (ICHPO/UFU), Ituiutaba, Minas Gerais, e do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Cinema (PPGCINE) da Universidade Federal de Sergipe (UFS), São
Cristóvão, Sergipe, Brasil. E-mail: claudiene.ufu@gmail.com
2 Professora do Instituto de Formação de Educadores (IFE) da Universidade Federal do
Cariri (UFCA), Brejo Santo, Ceará, e Professora Permanente do Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PPGECIMA) da Universidade Federal de
Sergipe (UFS), São Cristóvão, Sergipe, Brasil. E-mail: elaine.js.sd@hotmail.com.
3 Professor do Departamento de Morfologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e do
Programa de Pós-Graduação em Biologia Parasitária da mesma instituição, São Cristóvão,
Sergipe, Brasil. E-mail: carlosthailan@hotmail.com.
90
marginalização e exclusão. As políticas públicas de formação docente,
como o Programa de Residência Pedagógica/CAPES possibilitam a
interação universidade-escola, por meio da formação inicial e
continuada, e resultam na promoção da inclusão social, no
aprimoramento de práticas pedagógicas e na educação em Direitos
Humanos nos espaços escolares (MACIEL, 2016).
No currículo da licenciatura em Ciências Biológicas da
Universidade Federal de Sergipe, as disciplinas Corpo, Gênero e
Sexualidade (CGS) e Perspectivas culturais no Ensino de Biologia e
Educação, que “ao colocar em ação um campo polifônico com
distintas identidades e diferenças, vozes ecoantes além da Biologia
(SOUZA, 2018, p. 185), evocam debates sobre diversidade sexual e
de gênero, raça/etnia, violências, dentre outros e, os Direitos
Humanos.
Os ecos destes debates ultrapassam os muros da universidade
e reverberam nas ações de ensino, pesquisa e extensão. Assim, a análise
cultural empreendida neste trabalho, ocorreu a partir da inserção e
intervenção escolar em que objetivamos analisar materiais
audiovisuais produzidos por discentes, de um colégio atendido pelo
Programa Residência Pedagógica/CAPES/Biologia/UFS, por meio da
articulação com Direitos Humanos e difereas.
Direitos Humanos e Diferenças
Na articulação entre Direitos Humanos (DH), intercultura-
lidade e educação, torna-se imprescindível reconhecermos as
múltiplas identidades/diferenças que nos constituem como sujeitos de
uma cultura plural, a partir de uma perspectiva multicultural crítica
(a interculturalidade). Entretanto, Maknamara (2011) ressalta que
reconhecer o currículo como um artefato político e cultural que
91
produz saberes, identidades/diferenças e sujeitos costuma causar certo
estranhamento, pois ainda costumam ser disseminados “[...] em
diferentes espaços escolares e não escolares, assim como em
universidades e diferentes faculdades, enunciações que se referem ao
currículo como uma “grade” a ser definida burocraticamente por uma
cúpula de legisladores/as e técnicos/as em diferentes níveis de ensino.”
(MAKNAMARA, 2011, p. 14). Nesse caminho, um currículo
intercultural seria construído a partir de uma polifonia de vozes,
linguagens, narrativas, relações, espaços, conhecimentos, representa-
tividades, identidades e diferenças culturais (REIS, 2017),
reconhecendo artefatos e pedagogias culturais (a exemplos das
imagens, vídeos e fotografias) como potentes para (re)criação de
estratégias didático-metodológicas, que possibilitem educar e, nesse
caso, ensinar uma Biologia atenta aos Direitos Humanos, de
múltiplas formas.
Embora a diferença seja um conceito contestado, na
perspectiva dos estudos culturais, engloba representações que separam
uma identidade da outra, delimitando oposições binárias
(homem/mulher, heterossexual/ homossexual, docente/discente, etc.)
que reforçam relações de poder assimétricas. A identidade é relacional,
cambiante e marcada pela diferença estabelecida por representações
simbólicas (WOODWARD, 2014). Em uma “[...] sociedade
hegemonicamente masculina, branca, heterossexual e cristã, têm sido
nomeados como diferentes todos aqueles que não compartilham
desses atributos [...]” (LOURO, 2005, p. 86).
Ao falarmos sobre identidades/diferenças de estudantes, faz-se
imprescindível olhar a situação da escola e de jovens como um todo e
percebermos a necessidade de protagonismo juvenil nesse espo. Este
termo, discutido nas Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio
(DCENM), constitui o meio legal mais importante para sua difusão
92
(FERRETTI; ZIBAS; TARTUCE, 2004). Nas DCENM, o termo
protagonismo aparece seis vezes, em eixos que abrangem a
organização curricular, estrutura curricular e o sistema de ensino
(BRASIL, 2018), desta forma é possível notar as bases legais para o
protagonismo juvenil. Mas, o que acontece entre a base legal e o
espaço escolar? Por que jovens, por vezes, não ocupam este lugar?
Como (re)criar condições para que haja o protagonismo juvenil na
escola de hoje?
Os Direitos Humanos estão contemplados como temas
transversais nos Parâmetros Curriculares Nacionais/PCN (BRASIL,
1998), reiterando a dimensão transdisciplinar, ao dizer que “[...]
experiências pedagógicas brasileiras e internacionais [...] com direitos
humanos, educação ambiental, orientação sexual e saúde [...] sejam
trabalhadas de forma contínua, sistemática, abrangente e integrada e
não como áreas ou disciplinas (BRASIL, 1998, p.25). Contudo, os
PCN não pressupõem obrigatoriedade, por seu caráter orientador, o
que por vezes ocasiona a não inclusão destes temas na escola.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino dio
(DCNEM) afirmam no inciso seis da seção 1, sobre a estrutura
curricular que:
Devem ser incluídos temas exigidos por legislação e normas
específicas, na forma transversal e integradora, tais como o
processo de envelhecimento e o respeito e valorização do idoso;
os direitos das crianças e adolescentes; a educação para o trânsito;
a educação ambiental; a educação alimentar e nutricional; a
educação em direitos humanos; e a educação digital (BRASIL,
2018).
Uma ferramenta que pode guiar escolas e professores/as é o
Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH)
93
(BRASIL, 2018), que objetiva destacar o papel estratégico da
educação em Direitos Humanos, enfatizar seu papel na construção de
um país mais justo, propor a transversalidade da educação em DH
nas políticas públicas, estimulando o desenvolvimento institucional
nos mais diversos setores (educação, saúde, comunicação, cultura,
segurança e justiça, esporte e lazer, dentre outros).
Almeida (2006), em investigação sobre como docentes de
Ciências de Camaçari- BA abordavam esses temas de maneira
transversal, destaca algumas questões como:
A falta de estímulo pessoal de alguns professores é (...) empecilho
para a abordagem dessas temáticas. Outro ponto negativo e
equivocado é que os professores concebem os Tema s Transversais
como conteúdo adicional ao das disciplinas, cuja abordagem
prejudicaria o cumprimento do conteúdo programático
planejado para as aulas. A prioridade dada aos conteúdos
conceituais, em detrimento dos procedimentos e atitudinais, e a
concepção rígida de planejamento também são fatores que
impedem que as escolas estejam atentas e compromissadas
pedagogicamente com a abordagem dos Temas Transversais
(ALMEIDA, 2006, p.12-13).
Para a autora, mostra-se necessário planejar ações de forma
consistente e executar um plano de forma flexível” (ALMEIDA,
2006), criando alternativas criativas que levem a escola a cumprir seu
papel, que não é meramente de transmitir informações, mas, sim, de
preparar estudantes para a vida.
As atividades culturais, como o audiovisual, o uso do cinema
na educação tem se mostrado instrumentos pedagógicos importantes
diante das transformações tecnológicas e da disseminação de imagens
(ALMEIDA; ACKER, 2017), e que podem ser potentes como
pedagogias culturais dos Direitos Humanos e diversidade. A
94
popularização das tecnologias de informação e comunicação, torna o
diálogo mais acessível e familiar às/aos estudantes e docentes e, a
produção de materiais audiovisuais pode favorecer o protagonismo
juvenil, em temas de seu interesse, na escola.
A formação continuada é relevante para a compreensão do
fazer docente na promoção de processos educativos para a formação
da cidadania, o desenvolvimento de práticas transversais sobre
Direitos Humanos e em favor de uma postura afirmativa das
diferenças, fazendo sua prática pedagógica algo coerente com aquilo
que pretende ensinar (PEREIRA, 2011). Experiências como a de
Carvalho et al. (2004), no projeto “Direitos Humanos na escola”, que
desenvolveram uma proposta de política pública em aperfeiçoamento
de práticas docentes, concluem que a inseão de atividades culturais
(como apresentação de filmes, leituras, peças de teatro, etc.) podem
tornar mais concretas discussões complexas do ponto de vista
conceitual, como as que, entre outras, dizem respeito à violência social,
à democracia e ao racismo, aproximando-as do contexto sociocultural
da comunidade escolar.
Uma educação pautada nos Direitos Humanos é
assumidamente política e engajada na construção de uma sociedade
menos desigual e mais justa e humana. (FURLANI, 2011). Nesse
contexto, salienta-se que o “[...] momento atual aponta para um
processo escolar que, em todos os níveis, esteja minimamente
articulado com políticas públicas que possam combater e minimizar
as injustiças e as desigualdades sociais (FURLANI, 2011, p. 23).
Caminhos Metodológicos
A pesquisa foi realizada com uma turma de 18 estudantes do
Ensino Médio, de uma escola estadual localizada no entorno da
95
Universidade Federal de Sergipe participante do Programa de
Residência Pedagógica/CAPES/PRP/Biologia/UFS, em 2019, em
uma região periférica e economicamente precária de São Cristóvão/SE.
A fim de promover o protagonismo juvenil e a relação com os
Direitos Humanos na escola foram utilizados os dispositivos do
Projeto “Inventar com a diferença”, produzido pela Universidade
Federal Fluminense/UFF. Tal projeto visava construir metodologias e
processos, que pudessem ser disponibilizados para docentes do país,
com autonomia suficiente para definir suas práticas e estabelecer suas
próprias dinâmicas de produção no campo da educação. A partir da
compilação das experiências, foi publicado os “Cadernos do Inventar
com a Diferença” (MIGLIORIN et al., 2016), com dispositivos, que
podem ser utilizados na prática docente seguindo o roteiro
estabelecido ou apenas utilizando alguns deles, na ordem de escolha
da/o usuária/o. Cada dispositivo contido no material é fundamentado
em um direito humano e é autoexplicativo. Uma câmera de celular e
o protagonismo daquela ou daquele que filma, são suficientes para a
execução do projeto.
Assim, a metodologia foi dividida em três etapas, com a
criação de conteúdos digitais (fotos e vídeos), para que as/os
estudantes expressassem alguma questão relacionada aos Direitos
Humanos relacionadas à escola.
1. Oficina de fotografia com o celular: as/os estudantes tiveram
acesso a técnicas de enquadramento que permitissem aproveitar
melhor as câmeras dos celulares que estivessem disponíveis. Após
o momento de apresentação da oficina, partimos para a prática
fotográfica por meio da observação da escola. As/os discentes
deveriam enviar suas melhores fotografias com uma descrição do
que sentiram e/ou quiseram mostrar ao fotografar aquele
momento.
96
2. Criação de textos e filmes na escola: Para a criação do material
audiovisual foi utilizada a prática espelhos do autorretrato”, que
faz parte dos “Cadernos do Inventar com a Diferença”
(MIGLIORIN et al., 2016), descrita a seguir: Escrever um texto
com uma duração de dois minutos sobre “A relação do que está
perto e o que está distante de mim”. A distância pode ser sica,
simbólica, cultural ou de classe. Divide- se a turma entre quem
filma, quem os textos e quem os escreve. Uma pessoa, diferente
da que escreveu o texto a ser lido, filma o reflexo da pessoa que
está lendo o texto, enquanto segura o espelho.
3. Divulgação dos trabalhos para a comunidade escolar: Na etapa
final, as/os participantes divulgaram as produções por meio de
cartazes com as fotos e comentários e da exposição do material
audiovisual gravado pela turma.
Cabe destacar que apresentaremos aqui um recorte analítico a
partir de textos e deos produzidos pelas/os estudantes na segunda
etapa. Após a produção desses materiais audiovisuais, utilizamos a
análise cultural como procedimento analítico, que constitui um modo
de descrever o artefato de maneira atenta e detalhada, pois esse
processo descritivo permite visualizar aspectos importantes acerca das
ferramentas conceituais, indicando as múltiplas relações,
representações e os sentidos produzidos a partir das pedagogias
culturais (WORTMANN, 2007). Essa análise favorece a valorização
de experiências cotidianas, reconhecendo a cultura como uma
instância educativa que excede os limites do espaço escolar, ao
observar os diferentes modos de produção dos discursos e como os
indivíduos são posicionados nas relações de poder. A análise cultural
foca seu interesse em uma ótica mais precisa dos objetos produzidos
por intermédio de práticas sociais e linguagem, que assume um
97
importante papel na produção de sentidos e significados constituintes
de representações (WORTMANN, 2007).
Análise Cultural das Prodões Audiovisuais
Luz, câmera e ão!
Após a percepção do espaço escolar e envio dos materiais
produzidos pelas/os discentes na primeira etapa, foi realizada a
segunda etapa, com a gravação de vídeos utilizando a cnica
espelhos de autorretrato (MIGLIORIN, et al., 2016). Devido à
timidez das/dos participantes, houve a alteração da atividade com a
produção de texto A relação do que está perto e o que está distante de
mim, a fim de aprofundar a relação das/dos discentes com seu entorno.
Além disso, o espelho foi trocado pelas superfícies reflexivas que
existiam na escola (janelas de vidro, televisões, reflexos na água e no
celular) escolhidas por elas e eles. A Figura 1 ilustra a atividade
realizada.
Figura 1– Superfícies espelhadas percebidas e utilizadas pelas/os participantes
como alternativa aos espelhos requeridos para a técnica utilizada
Fonte: Produção das/dos discentes participantes (2019)
98
Foram produzidos seis textos e seis vídeos pelas/os
participantes da atividade e os principais discursos abordados foram
agrupados em 3 categorias analíticas: Discurso religioso como prática
cultural (texto 1), De que infância e juventude falamos? (texto 2) e O
racismo nosso de cada dia... (textos 3 e 4).
Discurso Religioso como prática cultural
Texto 1: “Religião é uma fé. [...] Todos os tipos de religiões
têm seus fundamentos. Algumas se baseiam em diversas
filosofias que explicam o que somos e por que viemos ao
mundo. Religião é também um conjunto de princípios,
crenças e práticas de doutrinas religiosas, baseadas em livros
sagrados, que unem seus seguidores em uma mesma
moral chamada igreja”.
Segundo Pierucci (2012), o Brasil é um país de maioria cristã
e isso se deve a seu processo nada pacífico de colonização. Dados do
Censo 2010 (IBGE) mostram que a situação do cristianismo ocupa o
primeiro lugar (com cerca de 87%) das religiões professadas aqui.
Todavia, é importante salientar o grande número de cultos (e da falta
deles), que vem crescendo nas últimas décadas, sendo a religião um
aspecto cultural de grande relevância no contexto brasileiro.
O discurso religioso faz parte do cotidiano, implícita ou
explicitamente, inclusive no ambiente escolar e, embora o Estado seja
laico, as crenças religiosas são, frequentemente, pautadas em
fundamentalismos. O texto 1 apresenta basicamente um relato acerca
do entendimento do que significa religião para este/a participante,
com base em suas vivências e na dimensão sociocultural vigente. Na
escola-campo onde o trabalho foi realizado, era possível ver
99
mensagens que falavam de Deus (com o “D” maiúsculo simbolizando
o Deus cristão) e suas bênçãos, como também a prática
institucionalizada de comemorar datas religiosas como o São João,
scoa e Natal. Valente e Setton (2014) apontam que, embora essas
datas tenham perdido muito de seu valor religioso, é notório que
remetem a uma herança cristã, ainda presente e de grande impacto
nas representações socioculturais, no cenário nacional.
Essas/es jovens constantemente encontram em suas vidas a
simbologia religiosa dentro de suas casas, bairro, grupos de amigos,
linguagens e na escola. No texto 1, o entendimento de religião como
que abrange fundamentos, creas e doutrinas, evidencia a
importância de discutir o conceito de religião na escola,
reconhecendo-a como prática cultural, isto é, um modo de vida que
abrange distintos significados e culturas. Esta definição pode ser
utilizada para problematizar tanto a intolerância religiosa e
fundamentalismo religioso, tão presentes atualmente em nossa
sociedade, quanto o direito de expressar as práticas culturais religiosas
sem medo.
Xavier (2017) destaca que a religião pode ser pensada como
um dispositivo regulador de identidades e diferenças, que constituem
corpos, gêneros/masculinidades, feminilidades e sexualidades. Nesse
sentido, a igreja e a religião constituem artefatos pedagógicos, posto
que, (re)produzem um conjunto de normas e padrões sociais na
tentativa de governar corpos e sujeitos por meio de discursos
reiterados em distintos espaços, sobretudo a religião de matriz
judaico-cristã. Muitos currículos escolares disseminam discursos
religiosos cristãos, embora a laicidade seja prerrogativa constitucional,
o que acaba favorecendo a fé judaico-cristã.
Nessa direção, o fundamentalismo religioso, alicerçado em
dogmas e na crença de uma interpretação literal de livros sagrados,
100
reitera o sistema patriarcal que ocasiona submissões, preconceitos e
discriminações contra todos os sujeitos que ousam questionar esse
padrão disciplinar e regulador. Assim, os currículos escolares
demandam reformulações, visando incitar o questionamento de
valores e práticas sociais que desrespeitem princípios dos DH,
incluindo a liberdade e a diversidade religiosa.
De que infância e juventude falamos?
Texto 2: “Quando eu era menorzinho, era massa, pois
os moleques se juntavam na rua pra brincar de diversas
brincadeiras. De tarde nós jogamos bola, e de noite nós
brincávamos de queimado até nossas mães chamarem.
[...] O tempo passou e foi diminuindo a quantidade de
moleques na minha rua, teve um tempo que eu fui
pra brincar, mas, infelizmente, não encontrei os
moleques, daí eu fui de casa em casa dos moleques, mas
quando eu chamei, a maioria dos moleques estavam
viciados no celular, outros achavam que era criancice,
que isso não era coisa de homem mais; eu fui pra casa,
mas eu não tava aceitando que minha infância tinha ido
embora. Quando eu fui para casa, minha mãe perguntou
o porquê eu cheguei cedo em casa, eu disse que os
moleques não querem brincar mais, ela falou que
minha infância tinha acabado. Daí eu me tranquei
também”.
O texto 2 relata uma representação de ruptura da infância
vivenciada pelo jovem participante associada ao cio pelo celular
(nomofobia). Nele, evidenciamos a quanto a cultura (re)produz
101
estereótipos acerca da infância, adolescência e/ou juventude pautados
em determinismos biológicos e identidades de gênero assimétricas.
Schoen-Ferreira, Aznar-Faria e Silvares (2010) fazem uma
revisão histórica (desde a Grécia antiga até a atualidade) sobre a
adolescência mostrando que, as modificações nesta fase não são
apenas efeitos biogicos, mas são marcadas pela cultura e pelo
momento histórico que estes jovens se encontram. Para eles, o caráter
biológico e reprodutor da puberdade era (e ainda hoje é) algo tão
característico quanto as transformações sociais e psicológicas que as/os
jovens vivenciam, porém, estas mudanças sociais e psicológicas são,
muitas vezes, banalizadas, reduzindo-as a uma fase de contestação e
autoafirmação, sem levar em conta os anseios juvenis e os diversos
marcadores sociais da diferença (raça/etnia, classe socioeconômica,
gênero, identidade sexual etc.).
Os enunciados em destaque no texto 2, colocam em jogo
processos culturais que delimitam significados acerca de infância,
adolescência/juventude e gênero. Nesse sentido, os próprios
currículos escolares e demais instâncias sociais veiculam discursos
(biológicos, médicos, pedagógicos, religiosos e midiáticos, entre
outros) que delimitam, sobretudo na infância e juventude, “um
processo de masculinização ou de feminização com o qual o próprio
sujeito se compromete” (LOURO, 2017, p. 75-76), visto que por
meio de “uma multiplicidade de sinais, códigos e atitudes produz
referências que fazem sentido no interior de uma cultura e que
definem (pelo menos momentaneamente) quem é o sujeito.
(LOURO, 2016, p. 85).
Assim, a construção dos sujeitos masculinos ou femininos
precede o nascimento do bebê e isso é reiterado por diferentes
discursos. “Sexo e gênero começam a se fazer, pois, desde essa cena
inaugural e são apresentados como estreitamente unidos, um é tido
102
como consequência do outro. Essas verdades do corpo se repetem
tantas vezes que acabam por parecer naturais [...]” (LOURO, 2017,
p. 56).
Ao investir em uma educação pautada nos Direitos Humanos
e contrária às assimetrias de gênero, vale questionar o modo como os
discursos constroem diferenças de gênero, em distintas instâncias
sociais, que prosseguem na vida adulta. Sobretudo, na era das redes
sociais, em que jovens estão imersos em conteúdos digitais, com
muitas informações e poucas reflexões, os currículos escolares
demandam a (re)criação de estratégias didático-metodológicas que
contribuam para desconstrução de representações estereotipadas
acerca da infância, juventude e de gênero e promova a cidadania, o
autoconhecimento e a autonomia.
O Racismo nosso de cada dia...
Texto 3: Andando na rua com medo de ser presa. Por
medo de ser negra, pobre, sujeita a qualquer tipo de
malvadeza [...] o vou esquecer do homem confundido
com um assassino, porque os dois eram pretos, “tudo a
mesma coisa”! o vou esquecer das mães e pais negros
tendo que ensinar seus filhos como se comportar na rua:
“em hipótese alguma corra se ver um policial! [...] o
vou esquecer do segurança da loja indo atrás de mim pra
ver se eu não iria fazer nada de errado! o vou esquecer
da vereadora morta a tiros, que até hoje nos perguntamos:
quem a matou? o vou esquecer das mulheres e homens
negros que alisaram seus cabelos para se sentirem aceitos por
uma sociedade preconceituosa! [...] Esses casos não foram
os primeiros e não serão os últimos, mas eu luto, sonho e
103
rezo pela proteção do meu povo, que tanto sofreu e nem
mereceu e nem merece! A qualquer momento eu faço a
minha prece: Deus, nos protege!”.
Texto 4: “Parando para pensar um pouco, este tema é tão
complicado e pode englobar tantos outros temas. O que está longe de
mim? A pergunta certa a se fazer é: o que não está longe de lugares
periféricos e carentes como o que vivemos excluídos e afastados do que
de melhor para a sociedade? [...] Existem muitas coisas que estão longe de
mim enquanto pessoa que está inserido numa sociedade que deveria
garantir direitos iguais a todos nela presente, mas nós sabemos que não
é bem assim que acontece. Embora eu lute a cada dia para conquistar
espaço na sociedade, existem coisas que estão longe do meu alcance.
Sabe o que é mais interessante? Existem pessoas que não precisam de
tanto para conseguir diversos direitos básicos que eu tanto almejo. Você
deve estar se perguntando que direitos são esses, não é? Pois bem, vou
dizer: Acesso à educação de qualidade deveria ser assegurado a qualquer
pessoa, mas enquanto algumas pessoas têm ar-condicionado em suas
salas confortáveis, quantos estudantes têm aula em salas com quarenta
alunos e a maioria sem ventilador? Isso sem contar que muitos vêm
cansados do trabalho ou tem que ajudar em casa a cuidar dos irmãos.
Você consegue perceber que, embora haja escola, direitos não são
assegurados da mesma forma para todos. Você quer outro exemplo?
Vamos falar da saúde. Se mesmo que uma pessoa carente pode se
comparar a uma pessoa com mais condições financeiras? Bem... Na
constituição todos têm direito de acesso à saúde de qualidade, mas sabemos
que na prática isso não acontece. Sabemos como é precária a saúde
pública que pessoas carentes utilizam e pessoas ali que não dependem
desses recursos. As pessoas que deveriam lutar para melhorar a saúde
pública não fazem nada, porque eles não dependem disso para viver”.
104
Os textos 3 e 4 (d)enunciam o racismo estrutural e ressaltam
as inúmeras práticas racistas que lesionam Direitos Humanossicos,
como liberdade, igualdade, saúde, educação e segurança, que
deveriam ser assegurados, independente das identidades/diferenças
étnico-raciais, sexuais, de gênero, classe social, entre outras. Ademais,
descrevemos o conceito de racismo, sutil ou manifesto, a partir da
subjetividade juvenil e do modo como a cultura (re)produz
representações estereotipadas acerca das pessoas pretas/negras.
Bernardo e Maciel (2015) destacam que as sutilezas do
racismo no ambiente escolar podem ser captadas tanto na esfera
discursiva que nesta pesquisa se observa na construção desses textos,
que o expõem como algo próximo das alunas e alunos como nos
quadros estatísticos reveladores (e desoladores) das desigualdades
entre pessoas brancas e negras nas escolas brasileiras.
Schwarcz (2012) adverte que o povo brasileiro, de modo geral,
é “uma ilha de democracia racial rodeado por um mar de racismo”,
posto que costumamos delegar a outra pessoa os atos racistas e o
afastamos ao máximo de nosso plano pessoal e, isto é característico do
nosso processo de construção como povo: a inclusão das pessoas e
exclusão da cultura, se pautam em omitir, silenciar e normatizar essas
relações a ponto de não perceber ou assustar-se com o racismo
explícito.
A sutileza característica da forma como o racismo foi moldado
na sociedade brasileira, ligada ao mito de sermos um país livre do
racismo, faz com o preconceito racial seja banalizado por quem apenas
o observa sem vivenc-lo. Isso pode ser evidenciado, ao acreditar-se
que, ao chegar a um espaço onde negras e negros consigam se enxergar
em um mural pintado exaltando seus traços (como o existente na
escola) e que possam cultivar seus cabelos livres do alisamento ou
corte, não haveria o racismo. Todavia, o racismo permeia distintos
105
espaços sociais e, consequentemente, margeia e invade os currículos
escolares, revelando-se nos discursos de (re)conhecimento desta
situação, como vimos nos textos 3 e 4.
Embora os temas raciais hoje consigam ser conversados em
sala de aula e que educadoras e educadores venham cada vez mais
assumindo este debate, ainda falta equacionar em profundidade os
aspectos graves de violação dos DH e compreender as nuances que
envolvem a questão racial na escola, destacando os mitos, as
representações e os valores (GOMES, 2002) e, intervindo por meio
da educação antirracista consistente, contínua e sistemática. Ou seja,
é urgente problematizar a linguagem e a cultura racistas, visando dar
visibilidade às formas simbólicas por meio das quais homens e
mulheres negras constroem suas identidades dentro e fora do
ambiente escolar.
Um dos caminhos para a ampliação da intervenção sobre as
questões raciais no campo da educação, na tentativa de compreender
a sua relação com o universo simbólico, pode ser a construção de um
olhar mais alargado sobre a educação como processo de humanização,
que inclua e incorpore os processos educativos não-escolares,
antirracistas, não sexistas e inclusivos na perspectiva dos DH. Como
forma de conseguir trabalhar a imagem de si mesmo, a autora
aconselha o que se procurou fazer neste trabalho: desenvolvimento de
uma escuta sensível e atenta, por parte de educadoras e educadores,
ao que pessoas negras têm a dizer sobre suas vivências, dentro e fora
dos muros da escola (GOMES, 2002).
Além da dimensão racial, no contexto em que estas e estes
jovens se encontram - em sua maioria negras/os, pobres e
periféricas/os, marcadas/os socialmente por um estigma de classe que
renega papéis centrais na sociedade e que lhes associa à criminalidade
(como pode ser visto nos elevados números da violência contra jovens
106
negras e negros), visão que é enunciada em suas falas - faz-se
necessário entender que as violências (raciais, sexuais, de gênero e
classe) se intercruzam constituindo a interseccionalidade que, para
Crenshaw (2002), “são formas de capturar as consequências da
interação entre duas ou mais formas de subordinação: sexismo,
racismo, patriarcalismo”. A educação antirracista urge por acontecer!
Para Finalizar...
O Que [Quem] Está Distante dos Direitos Humanos?
A partir desse questionamento, recorremos a Furlani (2011),
que ressalta a importância de uma Educação (Sexual) pautada na
abordagem dos Direitos Humanos para problematizar e desconstruir
marginalizações e representações negativas impostas histórica e
socioculturalmente a sujeitos que não se enquadram nas normas e
simbolizam identidades/diferenças excluídas, como os/as negros/as, as
mulheres, grupos LGBTQIA+, entre outras. Esse processo
educacional é assumidamente político e engajado na construção de
uma sociedade mais igualitária, mais justa e humana, desenvolvido
através de uma abordagem inter e transdisciplinar voltada ao
reconhecimento da diversidade sexual”, de gênero e étnico-racial.
A partir deste trabalho, evidenciamos a importância de
trabalhar as diversas temáticas relacionadas aos Direitos Humanos,
sendo imprescindível que os currículos escolares incorporem artefatos
(imagens, fotos, vídeos, filmes, músicas...) e pedagogias culturais, de
forma integrada ao projeto político pedagógico, visando
problematizar discursos sobre DH. Mais do que o currículo turístico,
restrito a datas comemorativas, endossamos a construção contínua e
sistemática de um currículo democrático e pluralista.
107
Ressaltamos a valorização de projetos de formação docente
inicial e continuada e o fortalecimento e ampliação políticas de
formação docente como o Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação à Docência (PIBID) e Programa de Residência
Pedagógica/CAPES, de forma a garantir que novas práticas
pedagógicas e intervenções sejam incorporadas nas escolas,
contribuindo para que a temática dos Direitos Humanos se efetive no
cotidiano escolar, tornando-o cada vez mais humano, diverso, atrativo,
cultural e político.
Mo (2013, p.83) corrobora esta ideia ao salientar que “o
século XXI caminha em direção a uma escola na qual” alunas e alunos
sejam ouvidas/os e consideradas/os; uma escola que, de modo efetivo,
promova o desenvolvimento e a criticidade, “tendo como alvo a vida
em todas as suas dimensões. Portanto, “[...] precisamos introduzir na
escola todos os instrumentos capazes de fazer com que a pessoa
aprenda sem perder o humano. O humano é fundamental. [...]”
(MOSÉ, 2013, p.146). Nesse horizonte, salientamos a relevância de
um currículo intercultural alicerçado nos direitos humanos e em
múltiplos saberes que favoreçam o (re)conhecimento das
identidades/diferenças e garanta sua expressão, sem preconceitos e
segregações.
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https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-609-1.p113-136
DIREITOS HUMANOS E EDUCAÇÃO:
INTERCONEXÕES ENTRE CURRÍCULO,
GÊNERO E SEXUALIDADE
Dayenne Karoline Chimiti PELEGRINI1
Thiago PELEGRINI2
Introdão
Nesse capítulo propomos um debate acerca das conexões entre
educação, currículo, sexualidade, gênero e direitos humanos a partir
da leitura da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) e
documentos correlatos. Como fundamento dessa proposição
compreendemos os direitos humanos como termos-chave, entradas
possíveis para a inclusão da sexualidade e gênero no debate
educacional. Partindo de uma análise documental objetivamos
compreender esses textos, expor alguns de seus limites e de suas
potencialidades para fomentar o debate curricular para a inserção de
gênero e sexualidade sob a ótica dos direitos humanos.
Os direitos humanos apresentam em linhas gerais, ideais
como liberdade, igualdade, justiça. Essas noções estiveram presentes
em diferentes civilizações ao longo da história, ainda que nem sempre
resguardados por lei. Decorrentes de uma cultura iluminista europeia,
1 Professora do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL),
Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: dayenne.psicologia@gmail.com.
2 Professor do Departamento de Estudos do Movimento Humano da Universidade Estadual
de Londrina (UEL), Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: thiago.pelegrini@uel.br
114
os direitos humanos, apesar de surgirem dos interesses da classe
burguesa eurocêntrica e serem baseados em um racionalismo
reducionista, na avaliação de Cardoso (2016, p. 81), são o que de
melhor “a cultura ocidental moderna produziu, enquanto conjunto
de valores ético-políticos”.
Segundo Viola (2021) os direitos humanos tiveram um
aumento progressivo das participações populares e foram, no decorrer
do século XIX, marcados pelo movimento dos trabalhadores, e na
primeira metade do século XX, foram influenciados por outros
movimentos sociais, como o movimento feminista, no bojo das lutas
pelos direitos sociais e civis.
Entretanto, chamamos atenção para o fato decisivo que a
criação desse pacto mundial, chamado terceira geração de direitos
humanos3, foi consequência da consciência dos horrores vivenciados
pelas guerras do início do século XX, em especial a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945). As atrocidades cometidas evidenciaram a
necessidade de criação de um pacto para que isso não ocorresse
novamente.
Essa preocupação foi materializada na Declaração Universal
de Direitos Humanos (DUDH), de 1948. Esse documento foi um
marco histórico para a luta dos direitos e garantias individuais, pois
postulou que os direitos humanos seriam balizadores da relação entre
os governantes e a sociedade.
Para alcançar os objetivos propostos na declaração foram
criados pactos e convenções que tiveram como resultados, alguns
documentos internacionais fundamentais para a proteção desses
direitos e outros decorrentes que podem ser considerados marcos da
3 Para ver os marcos da primeira e segunda geração, consultar Maciel, Silva e Brabo (2017).
115
atual geração de direitos humanos4. Vale ressaltar que no Brasil um
marco importante para os direitos humanos foi a promulgação da
Constituição de 1988 focada na criação de instituições democráticas
sólidas e no estabelecimento de garantias para o reconhecimento e o
exercício dos direitos e das liberdades dos brasileiros.
A DUDH teve o intento de alcançar todas as nações,
utilizando esse instrumento como embasamento para suscitar o
debate sobre esses direitos nas mais diferentes sociedades. Sua criação
e divulgação transformaram-se em uma via importante para promover
e difundir a ideia de uma educação em direitos humanos, levando essa
preocupação para o campo educacional, incluindo o currículo.
Com o intento de esmiuçar esse processo dividimos o texto
nos seguintes tópicos “Declaração Universal de Direitos Humanos: a
quem se destina esses direitos?”, “Para além da Declaração de Direitos
Humanos: gênero e sexualidade em outros textos oficiais”, “A
Educação em Direitos Humanos e a valorização do debate sobre
gênero e sexualidade nos currículos”. Por fim, seguem nossas
considerações finais nas quais buscamos alinhavar esses conceitos e
expor suas inter-relações.
4 Declaração dos Direitos da Criança (1959); Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial (1965); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
(1966); Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); Declaração
sobre a Eliminação da Discriminação contra Mulher (1967); Declaração dos Direitos do
Deficiente Mental (1971); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (1979); Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos
ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (1984); Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989); e Declaração de Salamanca sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das
Necessidades Educativas Especiais (1994) (FISCHMANN, 2009; MACIEL; SILVA;
BRABO, 2017).
116
Declaração Universal de Direitos Humanos:
A Quem se Destina Esses Direitos?
A DUDH, publicada em dezembro de 1948 reafirma em seu
preâmbulo, o reconhecimento da dignidade humana a partir dos
direitos iguais entre homens e mulheres. Elege como fundamentos a
liberdade e a justiça e foi produzida como reação as barbáries ocorridas
na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Nesse sentido, é
importante clarificar seu conteúdo e demonstrar como as questões
relacionadas a gênero e sexualidade estão imbricadas nessa discussão,
sobretudo no campo educacional.
Em seu primeiro e segundo artigos a declaração assinala
respectivamente que “todas as pessoas nascem livres e iguais em
dignidade e direitos e que devem ter condições para usufruir desses
direitos “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política ou de outra natureza” (ONU, 1948).
Logo, o documento tem a intenção de incluir todas as pessoas,
independentemente de qualquer diferença. No entanto, o termo sexo
diz respeito a diferenças exclusivamente biológicas, não contem-
plando o universo de significações que abrange as variadas identidades
sexuais e de gênero. A autora Salih (2018) compreende que nos
tornamos sujeitos quando assumimos e formamos nossa subjetividade.
Essa subjetividade é composta por diferentes identidades constituídas
a partir das estruturas de poder, dentre elas a identidade de gênero. A
DUDH, então, para além da compleição de direitos iguais, versa
sobre a valorização dessas diferentes identidades. Contudo, ao assumir
o sujeito universal, não espaço para o contestável, não oferece as
condições para o reconhecimento pleno daquelas identidades e
subjetividades que estão fora das normas. Análogo a uma concepção
117
recorrente nas políticas educacionais de uma educação para todos,
sem distinção.
De acordo com Lopes (201 2, p. 705) “toda linguagem
envolve processos de representação, na medida em que falamos com
a intenção de que nossas palavras possam representar dados objetos e
concepções ausentes no processo de fala”. Para a autora, dentro de
uma política democrática, tal qual se pretende a declaração, importa
considerar essa representação como um espaço de disputa em uma
arena incerta em que a luta pelas identidades deva ser constante. Esse
universal deveria ser um espaço livre, no qual a negociação de quem
ocuparia esse lugar deveria ser provisória e contingencialmente,
encarnando o universal e ao mesmo tempo subvertendo sua
característica particular (LOPES, 2012, p. 705).
Reafirmando essa assertiva entendemos que é necessário que
os direitos humanos sejam ressignificados, saindo de uma perspectiva
pautada em uma globalização hegemônica para surgirem, a partir das
capilaridades localizadas em grupos e organizações sociais, e operarem
como interculturais. Nessa monta, alertamos para o risco de que a
superação de uma cultura universal, muitas vezes incorre no erro de
impor uma única cultura para todos.
Outro artigo que elencamos e que aponta sobre como essas
identidades são ignoradas é o artigo quinto que entende que
ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante” (ONU, 1948). Esse excerto nos leva a
pensar nas instituições de ensino. Nesses espaços, a heteronor-
matividade na maior parte das vezes é tomada como regra, ou seja,
como um “conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais
de regulação e controle” para “formar todos para serem heterossexuais
ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente,
superior e natural’ da heterossexualidade (MISKOLCI, 2009, p.
118
157). Nesse sentido, as pessoas que não se encaixam nesse espectro,
acabam por sofrer duramente dentro das instituições de ensino,
lidando com todos os tipos de violência e sendo obrigados a se
adequar ou acabam, em muitos casos, sendo expulsos do espaço
educativo.
De acordo com Junqueira (2009, p. 15) as instituições
educativas se delineiam como espaços de opressão, discriminação e
preconceitos, no qual e em torno do qual existe um preocupante
quadro de violência”. As pessoas que não se enquadram nas normas e
padrões acabam por vivenciar “de maneiras distintas, situações
delicadas e vulneradoras de internalização da homofobia, negação,
autoculpabilização, auto aversão e muitas vezes enfrentam essa
aflição, ao mesmo tempo, em que lidam com a negligência e o
silenciamento da família, da escola, da universidade, da sociedade e
do Estado.
Peres (2009) quando desenvolveu sua pesquisa com travestis,
isto é, um exemplo desses corpos que não se enquadram nas normas,
reafirma que a magnitude da discriminação e do desrespeito às quais
elas são expostas gera reações virulentas e revoltas, resultando no
abandono ou na expulsão das instituições de ensino. O autor fez
diversas entrevistas com as travestis, sobre a época em que elas
frequentavam a escola, e no relato de uma delas, ela utiliza o termo
tortura para relatar as experiências vividas no contexto educativo.
Suas vivências de agonia, e as de tantos outros estudantes que
não se encaixam, incluem desde xingamentos e chacotas até estupro,
pedradas e surras. A partir desses tristes exemplos, entendemos o
quanto é necessário reafirmar esses princípios para uma educação em
direitos humanos, sobretudo porque a estrutura institucional acaba,
por vezes, promovendo exclusões e discriminações, papel avesso do
que preconiza a DUDH.
119
Outro ponto que merece ser mencionada da DUDH é o
artigo sexto que expõe que “toda pessoa tem o direito de ser, em todos
os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei” (ONU, 1948). Ser
reconhecida como pessoa, em todos os lugares, inclusive, e
especialmente, nos espaços de ensino deveria ser um direito basilar,
condição mandatória à dignidade. Por isso reafirmamos a importância
de incluir as diferentes identidades, seja nas políticas educacionais,
seja nos currículos com intuito de garantir mais esse direito.
Corroborando essa assertiva, buscamos em Fraser (2002) a
necessidade de reconhecimento das lutas de gênero. Para a autora essa
ação é crucial, principalmente no que tange a justiça de gênero, pois
ela engloba as questões de representação, identidade e diferença. A
autora considera uma das principais características da injustiça de
gênero o androcentrismo, padrão que garante valor superior às
questões masculinas enquanto desvaloriza o que é codificado como
feminino.
Um exemplo desse androcentrismo institucionalizado são as
políticas educacionais que advogam em nome da não discriminação e
da valorização das difereas, mas que mantêm uma linguagem
exclusivamente masculina. Fraser (2002, p. 64-65) afirma que
padrões de valores androcêntricos, que tendem a ser constantemente
institucionalizados, acabam criando amplos sulcos de interação
social”. O exemplo da linguagem ser predominantemente masculina,
em detrimento de regras ortográficas, é parte dessa visão
androcêntrica que auxilia na manutenção das desigualdades e nas
relações díspares de poder. A língua é política e se transforma ao longo
dos tempos, incorporando ou retirando àquilo que passa a ser
obsoleto. Logo, algumas de suas permanências, como o uso do
masculino como gênero “neutro, acaba por criar e ajudar a manter
120
esses abismos de inclusão das mulheres ou de outras possibilidades de
vivências de gênero, por excluir e não contemplar outros sujeitos.
Outros artigos que sustentam a importância e a urgência da
adoção e inserção dos direitos humanos contidos na DUDH e que
tangenciam direta ou indiretamente às questões relacionadas a gênero
e sexualidade, são: “não sofrer qualquer tipo de ataque à honra e a
reputação; direito à liberdade de locomoção; de contrair matrimônio
e constituir família; acesso ao serviço público; direito à segurança
nacional; direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua
dignidade; e direito a instrução (ONU, 1948).
Destacamos o direito à instrução, como forma de viabilizar a
transformação social a partir da potencialização dos sujeitos para
participarem e tomarem decisões na defesa dos seus direitos e
dignidade”, e é o que vai dinamizar todo um conjunto de
compromissos em relação à educação em e para os direitos humanos
(ZENAIDE, 2007, p. 16). Esse direito a educação é o que pode
promover, a partir da edificação de uma conscientização sobre se
entender como um sujeito de direitos, a transformação para a
construção de sociedades mais democráticas e humanizadas
(CANDAU, 2021b).
Essas ações abrangem a garantia que as pessoas que não estão
na norma sexo-gênero-desejo possam estar nos espaços de ensino, em
segurança, podendo frequentar essas instituições de acordo com sua
identidade sem qualquer tipo de violência ou opressão. Entretanto,
alertamos para o fato de que o direito a instrução ainda não está
plenamente efetivado e precisa ser refirmado, e o Estado e a sociedade
precisam prover as condições para o usufruto desse direito.
Para reforçar esse argumento, lembramos Dallari (2007) que
corrobora com essa assertiva quando declara que mesmo passados
tantos anos da Constituição de 1988 (Brasil) que incluiu os direitos
121
fundamentais pautados pela DUDH, a sociedade ainda espera sua
aplicação. Para o autor ainda persistem, muitas exclusões e
marginalizações e as injustiças sociais mais do que evidentes
continuam a existir (DALLARI, 2007, p. 47).
Entretanto, mesmo reconhecendo essas limitações na DUDH,
reafirmamos que os valores erigidos por ela são uma premissa
fundamental para uma sociedade e uma educação democrática. No
entanto, é fundamental assumir esse compromisso que viabiliza,
favorece e justifica ações coletivas e defesas de sujeitos excluídos. A
DUDH instituiu a premissa de uma educação em direitos humanos
e a partir de sua redação foi possível vislumbrar um alargamento do
debate sobre direitos sociais e um aprofundamento da discussão sobre
as diferentes identidades, entre elas gênero e sexualidade.
Para Am da Declaração de Direitos Humanos: Gênero5 e
Sexualidade em Outros Textos Oficiais
Gêneros e sexualidades, de acordo com Wolkmer (2002),
foram incluídos a partir da terceira geração dos direitos humanos,
decorrentes de lutas e transformações sociais, pela amplitude dos
sujeitos coletivos, além das especificidades de subjetividades e
diversidades.
No entanto, como alertam Maciel, Silva e Brabo (2017), a
DUDH suprimiu alguns direitos de grupos específicos, dentre eles os
sujeitos afetos aos temas envolvendo orientação sexual e identidade de
gênero. Para Tedeschi e Colling (2014), “a desigualdade de gênero é
5 Para Scott (1995, p. 72), o uso do termo pelas feministas americanas, indicavam a
dimensão relacional das “definições normativas da feminilidade”. Mesmo as que se
preocupavam “pelo fato de que a produção de estudos sobre mulheres se centrava nas
mulheres de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o termo gênero’ para
introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário analítico” (p. 72).
122
uma afronta à igualização proposta pelos Direitos Humanos desde a
sua fundação no século XVIII”, pois por muito tempo as mulheres
eram vistas apenas como filhas e esposas, não consideradas humanas
dotadas de direitos.
Atualmente esses direitos foram legitimados e foram
debatidos reiteradamente nas conferências internacionais e nos
documentos oficiais de políticas públicas dos países que seguem a
DUDH. Essa foi uma conquista dos movimentos sociais de grupos
historicamente marginalizados, como no caso das mulheres e lésbicas,
gays, bissexuais, transexuais (LGBT), mesmo diante de forte reação
conservadora.
Nesse sentido, a Conferência Mundial dos Direitos Humanos,
realizada em Viena, Áustria, em junho de 1993, apontou no seu artigo
18 que, para além dos direitos do homem e das crianças, os direitos
das mulheres são parte “inalienável, integral e indivisível dos direitos
humanos universais e que deve ser garantido a plena participação e
igualdade das mulheres na vida política, civil, econômica, social e
cultural”, em todos os níveis, além da erradicação de todas as formas
de discriminação com base no sexo” (ONU, 1993). O documento
apresenta esses itens como objetivos fulcrais, que as violências de
gênero sejam elas assédio, exploração sexual, preconceitos culturais,
tráfico internacional” são antagônicos com os princípios da dignidade
humana e devem ser extintas (ONU, 1993).
Dessa forma, os responsáveis pelo documento reafirmam que
os direitos das mulheres são fundamentais e convocaram as
instituições a intensificarem seus esforços com o objetivo de garantir
e proteger os Direitos Humanos das mulheres e das meninas.
Com a mesma intencionalidade, a IV Conferência Mundial
sobre a Mulher, em Beijing, China, em 1995, reafirmou que as
violências de gênero são um impedimento para que se alcancem os
123
objetivos da DUDH, pois lesam o usufruto dos direitos fundamentais.
Essa conferência trouxe uma importante contribuição quando lançou
o conceito de gênero e o inseriu na agenda internacional,
reconhecendo que a sociedade precisa se reorganizar estruturalmente
para criar condições de igualdade de gênero visando o interesse
universal e beneficiando a todos.
Em sua plataforma de ação recomendou uma série de medidas
que devem ser adotadas pelos governos com a finalidade de combater
a violência contra as mulheres, entre elas: aplicar e manter atualizadas
as leis, com foco na preveão, que sejam eficazes para a eliminação
da violência contra as mulheres; garantir o acesso a remédios justos e
eficientes contra as vítimas, bem como formas de indenização por
prejuízo e danos decorrentes da violência; adotar medidas
educacionais que visem à mudança de hábitos e condutas para o
enfrentamento de preconceitos e estereótipos de gênero; criar e
fortalecer mecanismos institucionais que viabilizem, com condições
dignas, denúncias e registro de violências cometidas contra as
mulheres; ampliar a formação, em todos os espectros sociais,
sobretudo de serviços públicos, para evitar condutas recorrentes que
mantém as formas de violências, com intuito de assegurar tratamento
justo às vítimas (ONU, 1995).
Importa ressaltar, de acordo com Pimentel, Schritzmeyer,
Pandjiarjian (1998), que as formas variadas de violência contra as
mulheres, dadas sua recorrência e amplitude, acabaram se tornando
foco nos documentos produzidos nas conferências de direitos
humanos, bem como parte do aparato jurídico internacional de
proteção aos direitos humanos. Nessas violências são incluídos
diversos tipos de agressão, entre elas a sexual, a física, a psicológica,
sejam elas praticadas dentro e/ou fora do contexto doméstico-familiar.
124
Vale destacar também com relação ao debate sobre o gênero
nos direitos humanos a “Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a MulherConvenção de Belém
do Pará (OEA), que ocorreu em junho de 1994, e foi ratificada pelo
Brasil em 27 de novembro de 1995. Essa convenção marcou uma
vitória no movimento de mulheres que trabalharam participaram e
contribuíram ativamente, trazendo ganhos importantes na luta em
favor dos direitos das mulheres.
Destacamos que esse documento trouxe uma grande
contribuição para a luta. Entre outras questões, a definição de
violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no
gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada
(OEA, 1994, s/p). Realçamos, também, a inclusão do termo gênero
que demonstra mais um desses avanços. Além disso, em seu segundo
artigo amplia-se a noção da agressão para qualquer relação
interpessoal, cometida por qualquer pessoa, ou pelo Estado e seus
agentes.
O documento reafirma que as mulheres devem ser
reconhecidas e terem seus direitos garantidos sob a perspectiva dos
direitos humanos e que, portanto, devem estar livres de qualquer
forma de discriminação, como informa o sexto artigo, inclusive de
padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e
culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação
(OEA, 1994, s/p). Em síntese, ficaram definidos como objetivos a
prevenção, a punição e a erradicação de todas essas formas de violência
e discriminação contra a mulher.
A esse respeito, as autoras Pimentel, Schritzmeyer,
Pandjiarjian (1998, p. 63) acentuam que mesmo após a redemocra-
tização, o Poder Judiciário continua reproduzindo, acriticamente,
125
estereótipos e preconceitos sociais, inclusive de nero, impedindo,
assim, a efetivação da igualdade, calcada em princípios de
solidariedade, equidade e justiça”. Ainda é preciso caminhar no
sentido de promover essas mudanças, e a educação é uma dessas vias.
Caminhando conjuntamente com o debate sobre o nero,
Lionço e Diniz (2008), consideram que os direitos relacionados a
sexualidade e a diversidade sexual também devem ser baseados nos
direitos humanos. Todavia, para que isso aconteça devem ser
alicerçados os fundamentos de uma sociedade democrática pautada
na desconstrução da naturalização do sexo.
A partir dessa ótica é possível reconhecer e legitimar outras
vivências para além de uma visão limitada fundada no biologicismo
que sustenta estereótipos heteronormativos. Para as autoras é decisivo
assegurar a “igualdade de status social a pessoas e grupos que
vivenciam laços amorosos não-heterossexuais e performances sociais
de gênero não condizentes com os estereótipos do masculino e do
feminino fixados na diferença biológica dos sexos (LIONÇO,
DINIZ, 2008, p. 318).
Rios (2006) ratifica essa ideia, quando afirma que é urgente
que se faça um exame tanto dos direitos humanos, quanto dos direitos
constitucionais para desenvolver o que ele chama de direito
democrático da sexualidade, na qual inclua a proteção das mais
variadas manifestações da sexualidade humana. Assim, propõe que se
ampliem essas noções abarcando orientação sexual homossexual,
heterossexual, bissexual, transexualidade e travestismo (RIOS, 2006,
p. 79). O autor ainda deixa claro que não se trata de classificar e fixar
identidades ou práticas sexuais, pois a rigidez dessas questões poderia
auxiliar na manutenção de rótulos e imposições ancorados no
machismo e no heterossexismo (RIOS, 2006).
126
Para pensar nessa relação entre sexualidade e direitos humanos,
Gorisch (2013) ressalta que em 2008 a Organização dos Estados
Americanos (OEA) aprovou uma declaração que afirmou que a
orientação sexual e o gênero deveriam ser protegidos pelos direitos
humanos. A mesma autora indica que o ano de 2011 foi decisivo, pois
foi o ano que a ONU reconheceu, após um longo percurso de
enfrentamentos, que os direitos de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais
e Transgêneros (LGBT) são direitos humanos. Essa resolução
concluiu que os países que não garantirem e protegerem a população
LGTB, não estarão cumprindo os compromissos assumidos nos
Tratados Internacionais de Direitos Humanos (GORISCH, 2013).
Rios (2006, p. 84) entende que a situação de vulnerabilidade
[...], assume a perspectiva da igualdade e da dignidade,
contextualizando-as nos cenários de injustiça, discriminação, opressão,
exploração e violência que assolam inúmeras identidades e práticas
sexuais que são marginalizadas. Desta maneira, considerar gênero e
sexualidade dentro dos valores e princípios dos direitos humanos
requer reconhecimento do igual respeito às diversas manifestações da
sexualidade e do igual acesso de todos, sem distinções, aos bens
necessários para a vida em sociedade (RIOS, 2006, p. 88).
No Brasil ainda temos dificuldades em manter o acesso e a
garantia dos direitos humanos. Essa dimensão se agrava quando se
trata de populações não normatizadas no que tange a gênero e a
sexualidade. Como visto, as violências de gênero e sexualidade
demoraram a ser reconhecidas como violadoras de direitos e as
políticas para seu combate são pouco efetivas. Um dos caminhos
possíveis para potencializar essa discussão e os enfrentamentos
primordiais nas lutas por reconhecimento e direitos de gênero e de
sexualidade é a inserção da educação em direitos humanos, com
especial atenção aos temas gênero e sexualidade, nos currículos oficiais.
127
A Educação em Direitos Humanos e a Valorização do Debate
Sobre Gênero e Sexualidade nos Currículos
Segundo Magendzo (1999) a educação em direitos humanos
foi instituída na década de 80 (séc. XX), a partir de lutas sociais e
populares, com bases na redemocratização de países que foram
duramente afetados por violações reiteradas aos direitos fundamentais
tanto das pessoas quanto das instituições. Nesse sentido, deveria servir
como um fundamento ético para se constituir um novo paradigma
educacional pautado em uma educação libertadora, que transformasse
a sociedade a partir do cultivo de uma postura cidadã, aliada ao
enraizamento de uma cultura de paz.
A noção de educação em direitos humanos parte da própria
DUDH, sendo, portanto, bastante recente na história. Fischmann
(2009) afirma que muitas vezes acabamos por aprender sobre os
direitos humanos a partir do sofrimento de violações, pois as dores
sentidas nos alertam para perceber o direito que nem sabíamos que
tínhamos. Isso não deveria ser assim, a educação em direitos humanos
pode contribuir para mudar esse quadro, a partir da formação da
consciência do direito a ter direitos.
Em 1994, a Assembleia Geral da ONU publicou a Década da
Educação em Direitos Humanos (1994-2004) com o objetivo de
validar a importância da educação em direitos humanos como parte
do direito a educação, ou seja, do direito de ter informações, conhecer
seus direitos para poder reivindicá-los e protegê-los (ZENAIDE,
2007).
Para Candau (2021a, s/p) educação em direitos humanos é
um processo sistemático e multidimensional orientado a formação
do sujeito de direito e a promoção de uma cidadania ativa e
participante”. Isto deve ser efetivado a partir da articulação entre o
128
conhecimento, atitudes, sentimentos e práticas sociais que ratifiquem
os direitos humanos dentro e fora do espaço educativo. Esse trabalho
deve ser realizado com a finalidade de conscientizar sobre a dignidade
humana dentro de um espectro social, ético, político e cognitivo,
individual e coletivamente.
A necessária inserção da educação em direitos humanos nas
instituições educativas tem como possibilidade de entrada a discussão
sobre o currículo. Compreendemos, a partir da leitura de Goodson
(1997), o currículo como um artefato social, multifacetado, que é
construído para alcançar objetivos específicos, dentro de diferentes
arenas e disputas que “[...] encontram-se na intersecção de forças
internas e externas (GOODSON, 1997, p. 28). Desse modo, o
currículo é “o resultado de uma seleção: de um universo mais amplo
de conhecimentos e saberes e por isso pode ser compreendido
também como uma questão de identidade e de poder (SILVA, 2009,
p. 16). Ao eleger um tipo de conhecimento realiza-se uma seleção
cultural demarcada por disputas e tensões. A educação em direitos
humanos como possível constituinte do currículo passa por esse
mesmo processo.
Somando a essa perspectiva Mota (2020) afirma que a
educação em direitos humanos tem como fim propiciar a
instrumentalidade desse direito, ou seja, fazer com que seja além de
acessível, legítimo e possa ocupar diferentes espaços do currículo, de
maneira que atenda de modo efetivo as necessidades dos estudantes.
Candau (1998, p. 36) entende que ela potencializa uma atitude
questionadora, desvela a necessidade de introduzir mudanças, tanto
no currículo explícito, quanto no currículo oculto, afetando assim a
cultura escolar e a cultura da escola”.
Candau (2021a) enfatiza também o que deve ser evitado, a
fim de não comprometer a educação em direitos humanos, a saber:
129
atividades aleatórias e isoladas em temas correlatos aos direitos
humanos sem articulação alguma; campanhas restritas a temas
específicos; conteúdos inseridos em algumas disciplinas ou áreas
curriculares; formação em valores; a aprendizagem trivial de alguns
conceitos sobre direitos humanos ou documentos referenciais.
Grifamos esses itens, pois os conteúdos relacionados a gênero e
sexualidade, por vezes são inseridos nos currículos de forma isolada e
parcial não sendo contemplados como integrantes da educação em
direitos humanos, ou mesmo, sendo ignorados (PELEGRINI, 2021).
Sublinhamos que a falta de articulação desses temas nos currículos,
gera uma compreensão parcial e insuficiente, não atendendo aos
anseios de uma formação ampla e humanizadora.
Magendzo (1999) lembra que a assunção da educação em
direitos humanos deve ser vista como um processo de modernização
do campo educacional, que foi incluído nos currículos de quase todos
os países. Contudo, o autor lembra que na maior parte dessas
inserções predominou seu entendimento como tema transversal e
concomitante com outras temáticas. Essa perspectiva tinha como
finalidade uma formação cidadã para a vida em democracia e por isso
tinha como embasamento os valores de respeito à vida, a liberdade, a
justiça, a solidariedade, a honestidade, a igualdade, etc.
Para alcançar esses pressupostos de uma educação em direitos
humanos faz-se necessário utilizar metodologias participativas e de
construção coletiva valendo-se da pluralidade de linguagens,
materiais, rompimento de paradigmas, visando provocar mudanças
nas práticas individuais e coletivas (CANDAU, 2021a, s/p). A partir
dessa perspectiva, as instituições de ensino têm um papel decisivo para
a construção da cidadania, para a apropriação dos direitos
fundamentais, para o respeito à pluralidade e a diversidade sexual,
étnica, racial, cultural, de gênero e crenças religiosas.
130
Mota (2020) reafirma ainda que não basta às teorizações e
discursos sobre os direitos humanos, é necessário vivenciar, respeitar
e defender os direitos humanos cotidianamente. Para tanto, não se
pode perder de vista que se trata de um conhecimento historicamente
acumulado de avanços sociais da humanidade, e que é
constantemente ampliado de acordo com as demandas de cada tempo
e povo, que deve ser sistematizado e tido como conhecimento basilar,
tanto quanto as disciplinas ditas tradicionais. Dessa forma, para a
autora não cabe apenas uma inserção de maneira transversal, uma vez
que, esses conteúdos são fundantes para uma formação que considere
a dignidade da pessoa humana.
Entendemos, portanto, que a educação em direitos humanos
deve se constituir em um eixo, um pilar organizador dos currículos.
Nos baseando em Cardoso (2016) destacamos quatro princípios
fundamentais que devem ser incorporados na constituição dos
currículos: considerar a construção histórica e social do sujeito; incluir
a pluralidade e singularidade humana; assumir o direito à igualdade
social; desenvolver a sensibilidade e a empatia à condição humana.
Além disso, frisamos que cabe às instituições educativas manter ativa
essa discussão e zelar para sua efetivação.
Nessa mesma linha Viola (2001) ratifica essa dimensão da
educação em direitos humanos e é taxativo ao dizer que os direitos
humanos devem ser introjetados de tal modo que não sejam
facilmente revertidos ou abalados a cada novo governo, e isso se
alcançado pela educação. Formar cidadãos, sujeitos da própria história,
que tenham condições justas e dignas de participar da construção de
uma sociedade democrática, solidária, livre e igualitária.
Importante destacar que por se tratarem de iniciativas recentes,
marcadas por contradições, ainda deve-se considerar outras questões
para a efetividade de uma educação em direitos humanos. Mota (2020)
131
aponta que além das questões estruturais do sistema educacional
brasileiro, que inclui desde ausência de formação especializada, a
permanente falta de recurso, a contumaz dificuldade nas implantações
de políticas públicas educacionais, ainda se somam, as oposições de
ordem político-ideológicas.
Apesar dos inúmeros desafios constatados defendemos que a
inclusão da educação em direitos humanos, com um olhar atento a
gênero e a sexualidade, nos currículos é imprescindível para uma
educação efetivamente acolhedora e democrática, capaz de provocar
mudanças sociais positivas e promover direitos sociais.
Considerações Finais
Apresentadas as relações entre educação, currículo,
sexualidade, gênero e direitos humanos, buscamos defender a
potência de seu enredamento para a formação humana, porém sem
deixar de demonstrar os obstáculos que precisam ser enfrentados.
Dessa maneira, defendemos que as discussões acerca das políticas
educacionais sobre direitos humanos, gênero e sexualidade caminhem
juntas e sejam contempladas solidamente no processo educacional.
Contudo, é necessário e urgente que essa ação provoque uma
transformação que promova a liberdade de existências fora dos
padrões e normas.
Essa intenção pode ser materializada por tensionamentos
curriculares que enfrentem a produção e a manutenção das opressões.
A perspectiva da educação em direitos humanos seria uma via
importante para o robustecimento dessa luta pela não discriminação,
contra os preconceitos e pelo direito de as pessoas serem livres,
independentemente de seu gênero e de sua sexualidade.
132
Mais uma vez é importante ressaltar a consolidação da
educação em diretos humanos como uma forma de promover uma
educação inclusiva e democrática, além de prevenir e superar
quaisquer violências recorrentes e naturalizadas. Longe de ser a única
forma, defendemos a inserção da educação em direitos humanos no
currículo como um importante instrumento para ampliar seu alcance
e contribuição e agregar esforços para levar o debate sobre múltiplas
identidades incluindo as de gênero e de sexualidade para o território
educativo.
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CURRÍCULO, GÊNERO E EDUCAÇÃO FÍSICA:
ESTRATÉGIAS DE UMA EDUCAÇÃO MENOR
Júlia Moita GAUBERT1
Paula Regina RIBEIRO2
Gênero e Sexualidade: Temas Contemporâneos
As discussões das temáticas de gênero e sexualidade, no
âmbito da Educação, têm provocado problematizações no panorama
curricular brasileiro. Após mais de vinte anos do lançamento dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)3, que apresentavam temas
transversais como gênero e sexualidade, suscitando o debate em
diferentes espaços como no interior das escolas, nas universidades e
nos cursos de formação de professores/as, temos a apresentação da
Base Nacional Comum Curricular (BNCC), promulgada em 2017,
um documento de três versões que, em sua primeira exposição,
propunha estabelecer discussões sobre corpo, gênero e sexualidade.
1 Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Educação em Ciências da Universidade
Federal do Rio Grande (FURG), Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:
ju.mgaubert@hotmail.com.
2 Professora do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Rio
Grande, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: pribeiro.furg@gmail.com.
3 Destacamos que PCNs ainda estão em vigor e não foram substituídos pela BNCC. Nesse
texto, entendemos os dois documentos estão pautados numa perspectiva de educação maior
que conforme Gallo (2013, p. 64), é “aquela dos planos decenais e das políticas públicas de
educação, dos parâmetros e das diretrizes, aquela da constituição e da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, pensada e produzida pelas cabeças bem-pensantes a serviço do
poder. A educação maior é aquela instituída e que quer instituir-se, fazer-se presente, fazer-
se acontecer”.
138
Contudo os movimentos sociais e políticos do ano de
lançamento da terceira versão não eram favoráveis às discussões dessas
temáticas na escola e houve uma exclusão das menções de gênero e
uma redução da ênfase à sexualidade, temas considerados indevidos
para as crianças a partir de uma visão conservadora de diferentes
setores da sociedade (FREITAS, 2018). Tal fato se comprova à medida
que, durante um pronunciamento em rede nacional de TV, o ministro
da Educação de 2017 afirmou “[...] a Base está sendo entregue aos
brasileiros sem ideologia de gênero” (BRASIL, 2017). O discurso
representava a rejeição do governo federal frente às problematizações
de gênero e sexualidade.
Entretanto, dentro do próprio documento, existem algumas
brechas que possibilitam a reflexão dessas temáticas:
[...] cabe aos sistemas e redes de ensino, assim como às escolas,
em suas respectivas esferas de autonomia e competência,
incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem
de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala
local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e
integradora [...] bem como saúde, vida familiar e social, educação
para o consumo, educação financeira e fiscal, trabalho, ciência e
tecnologia e diversidade cultural. (BRASIL, 2018, p. 19-20).
Todavia, ao sermos interpelados/as por citações como essa, é
possível questionar: gênero e sexualidade não seriam “temas
contemporâneos”? Questões de “saúde, vida familiar e social, ciências
e diversidade cultural” não abarcam gênero e sexualidade? Esses
assuntos não afetam “a vida humana em escala local, regional e global”?
Dessa forma podemos observar o cerceamento frente às
discussões de gênero e sexualidade em discursos ultraconservadores
que buscam “instaurar um clima de pânico moral contra grupos
139
sociais e sexualmente vulneráveis e marginalizados, por meio do
acionamento de variadas estratégias discursivas, artifícios retóricos,
repertórios, redes de intertextualidade, etc.” (JUNQUEIRA, 2017, p.
29).
Para Lara Pereira, Paula Ribeiro e Juliana Rizza (2020, p. 109):
Esses discursos contra o gênero atingem diretamente a prática
pedagógica das/os professoras/es, pois buscam controlar os
currículos, bem como coibir e proibir a discussão de gênero e de
sexualidade na escola. Desse modo, sendo a escola um espaço
generificado e sexualizado, potente para o debate dessas temáticas,
visando a equidade de gênero e possibilitando um olhar para as
múltiplas formas de viver a sexualidade, o slogan “ideologia de
gênero criaria estratégias para controlar materiais didáticos e
criminalizar docentes.
Esse movimento denominado “antigênero” ganhou força em
2014, quando houve a elaboração e instauração do Plano Educacional
de Educação (PNE), que determina diretrizes, metas e estratégias para
a política educacional no período de 2014 a 2024. Antes de sua versão
final ser modificada, o plano objetivava a “superação das
desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade
racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Contudo, após
votação na Câmara dos Deputados, passou a defender apenas a
erradicação de todas as formas de discriminação” (REIS; EGGERT,
2017).
Nessa perspectiva, pode-se observar que por meio de planos,
políticas públicas e demais documentos norteadores são produzidos
discursos que determinam o que merece ou não ser dito. Com isso há
um embate de forças que se estabelece dentro das relações de poder
ao qual nada se escapa (FOUCAULT, 1979). Dessa forma, o poder
140
está presente no tecido social, mas ele não é uma realidade concreta.
Não é algo que se possua, nem um lugar que se ocupa. Está
disseminado na sociedade de forma capilar, sem uma concentração
exclusiva do Estado.
Portanto, entendemos o poder como uma força fluida, em que
os sujeitos ora exercem-no, ora sofrem com suas ações e resistem a ele
(FOUCAULT, 1979).
Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a
não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz
com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente
que ele não pesa como uma força que diz não, mas que de fato
ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz
discurso. Deve-se conside-lo como uma rede produtiva que
atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância
negativa que tem por função reprimir. (FOUCAULT, 2018, p.
44-45).
Essa rede produtiva está em constante movimento. Não é uma
força exercida de cima para baixo, mas está presente nas diferentes
relações cotidianas: pais, mães e filhos/as; professores/as e estudantes;
homens e mulheres... Cada uma delas com seus métodos e
mecanismos próprios que determinam o funcionamento do poder.
Aqui vale ressaltar que ele só se mantém por haver brechas
para resistir e “porque há possibilidade de resistência e resistência real
que o poder daquele que domina tenta se manter com tanto mais
força, tanto mais astúcia, quanto maior for a resistência
(FOUCAULT, 2015, p. 227). Desse modo, onde há poder há
resistência. Ambas as forças fazem parte da mesma relação, pois onde
não houver possibilidade de resistir temos uma situação de violência
e não de poder.
141
Todavia, quando problematizamos gênero e sexualidade
dentro do espaço escolar, nos deparamos com o exercício de um poder
que hierarquiza e busca a restauração da norma. Nesse cenário,
observamos que alguns discursos são legitimados a partir de sua
permissão para o debate e colocamos à margem todos os sujeitos que
não se enquadram nos padrões perpetuados.
Contudo, sempre há forças que resistem a esse poder. Há
aqueles sujeitos que abrem “todo um campo de respostas, reações,
efeitos, invenções possíveis” (FOUCAULT, 2010, p. 288) e fazem
com que o poder seja caracterizado como uma ação sobre ações. A
educação menor surge nessa trama como um ato de revolta e
resistência contra as imposições e preceitos, estando presente em
diferentes espaços como nas salas de aula e nas práticas pedagógicas
de cada professor/a (CARVALHO, 2020).
Silvio Gallo (2015, p. 84) opta por “chamar de educação
menor esse jogo de ‘suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que
escapam ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de
superfície ou volume reduzidos”. Dessa forma, é necessária a
compreensão de que o currículo é um artefato cultural produzido
pelos e para os indivíduos, sendo produzido tanto pelas subjetividades
que o cercam como pelo contexto histórico-social que está inserido,
não se tratando, portanto, de um objeto neutro (SILVA, 2011).
No momento em que a educação maior se propunha a
controlar e produzir indivíduos dentro de um currículo único, a
educação menor se opõe a esse sistema de ensino, pois é pautada em
uma aprendizagem que não é homogênea e difícil de prever, “gerando
possibilidades de aprendizado insuspeitadas naquele contexto
(GALLO, 2002, p. 175).
Essas possibilidades de aprendizado devem integrar o
currículo a partir da ação pedagógica dos/as professores/as. Como
142
defende Marlucy Paraíso (2016), é preciso que o professor/a crie
possíveis. Através da escrita, da leitura e da pesquisa deve-se fugir do
controle que destitui os direitos e deixa os currículos e as salas de aula
mais tristes. Para isso, torna-se necessário que a resistência esteja
presente no cotidiano e nas pequenas ações de um currículo que
discute e inclui a diferença de sujeitos e de realidades.
Ainda sobre a resistência, Deleuze (2001, p. 100) diz que
sentimos necessidade de resistir para “impedir que a estupidez seja tão
grande”, pois a tentativa de controle dos currículos tem tido como
efeito um sentimento de necessidade de resistência. “Resistir à
estupidez”. Resistir à tentativa de controle da prática pedagógica
dos/as professores/as. Resistir à proibição de um pensamento crítico e
político na escola. Resistir à proibição da discussão sobre gênero e
sexualidade.
Frente ao cenário de resistir às imposições, a Educação Física
escolar pode ser utilizada como possibilidade de um espaço libertário
da educação menor, pois através dela é possível a utilização de
pequenas fissuras para trazer ao cerne das discussões cotidianas
temáticas relevantes como gênero e sexualidade.
Afinal, a proposição do movimento dentro do currículo da
Educação Física também interfere na construção das identidades e na
produção de subjetividades dos sujeitos presentes no âmbito escolar
estudantes, professores/as pois são veiculadas diferentes visões de
mundo, de sociedade e de ideologias (SILVA, 2011).
Nesse viés, sendo o Brasil um dos países que mais mata a
população LGBTIA+ no mundo 273 pessoas LGBTIA+ morreram
de forma violenta no ano de 2022 (BENEVIDES, 2023) torna-se
cada vez mais emergente no cenário escolar a promoção de estratégias
menores para a compreensão da realidade, valorização das diferenças
e fuga dos discursos maiores, governamentais e homogêneos, de modo
143
a possibilitar que os/as estudantes sejam críticos e capazes de
ultrapassar as relações superficiais e excludentes que vêm sendo
perpetuadas em nossa sociedade.
Assim, esse texto tem como proposta apresentar movimentos
de uma pesquisa realizada com crianças no espaço da Educação Física
escolar em que traçamos algumas estratégias que estamos tomando
como educação menor a fim de promover a construção de uma
disciplina plural pautada na equidade e igualdade de gênero, em que
meninos e meninas tenham possibilidades de exploração da cultura
corporal do movimento.
Movimentos da Pesquisa
Em busca do desenvolvimento desse protagonismo estudantil,
foi realizada uma pesquisa de dissertação com 86 crianças do 3º e 4º
ano dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental de uma escola da rede
privada do município do Rio Grande/RS. Através dela, objetivou-se
dar voz às crianças e investigar suas narrativas e percepções sobre
igualdade e equidade de gênero no cenário das práticas corporais.
Aqui, vale destacar a diferença entre igualdade e equidade de
gênero, termos comumente confundidos. A igualdade reconhece que
homens, mulheres, meninos e meninas devem ter os mesmos direitos
e oportunidades, considerando que há comportamentos e
necessidades diferentes. A equidade, por sua vez, é como tratamos
esses sujeitos de acordo com suas necessidades específicas, porém
considerando que eles/as têm os mesmos direitos e oportunidades.
Mayra Reis (2017) exemplifica ao apontar que na igualdade
de gênero é criado um ponto de partida para que todos/as tenham as
mesmas condições, sem levar em consideração o gênero a que
pertencem. Já quando falamos em equidade é criado um ponto de
144
chegada para essas pessoas, dando-lhes o suporte necessário para que
o façam.
O movimento de investigação das narrativas justifica-se por
sermos nós, seres humanos, contadores de histórias, organismos que
vivem situações relatáveis (CONNELLY; CLANDININ, 1995). Para
registro e organização da pesquisa, optou-se pela construção de diários
de campo que eram estruturados sempre após cada encontro com
os/as estudantes.
Nessa perspectiva, observa-se a importância do registro escrito
por meio de diário de campo dos questionamentos, das curiosidades,
das hipóteses e saberes das crianças por entender que ele será de
grande importância na construção da narrativa. Maria do Carmo
Galiazzi (2007, p. 239) justifica a importância desse recurso ao
apontar que:
O diário pode ser um dos instrumentos empregados pelo
professor pesquisador para problematizar a sua própria prática
docente e para compreender aspectos relacionados à dimensão
discente, como as aprendizagens conceituais, procedimentais e
atitudinais. Temos a convicção de que a inserção do diário na
perspectiva do professor pesquisador possibilitaria uma
sistematização das aprendizagens por meio da investigação. Além
disso, a pesquisa proporciona a socialização do conhecimento
construído com outros coletivos para além daquele que esteve
envolvido na produção do diário, pois a validação do
conhecimento produzido em comunidades ampliadas é uma das
características de todo processo de investigação.
Ao total, foram produzidos 30 diários que trazem dinâmicas
repletas de experiências vivenciadas durante as aulas semanais de
Educação Física. Jorge Larrosa (2002, p. 21) corrobora com o
conceito de experiência ao afirmar ser ela aquilo “que nos passa, o que
145
nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece
ou o que toca” e, dessa forma, os acontecimentos narrados através dos
diários deram forma à pesquisa.
Vale ressaltar que os/as participantes envolvidos/as foram
convidados a participarem da pesquisa através de um Termo de
Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) produzido para eles/as.
Aqueles/as que demonstraram interesse receberam também um
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para que
seus/suas responsáveis autorizassem o envolvimento4.
A partir disso, foi criada uma tabela com o nome daquelas
crianças que quiseram e foram autorizadas a participar. Ao lado do
nome de cada estudante, foi adotado um codinome como estratégia
de proteção da identidade. Os codinomes escolhidos são de atletas
brasileiros medalhistas olímpicos no período de 1920 a 2021. Vale
ressaltar que os nomes foram escolhidos aleatoriamente e que a tabela
criada não foi divulgada.
Apresentamos a seguir, algumas estratégias que tomamos
como práticas de educação menor na disciplina de Educação Física,
ou seja, criações de possibilidades dentro do espaço instituído do
currículo escolar da educação maior.
Estratégias de Educação Menor na Disciplina de
Educação Física Escolar
Para realizar uma aproximação das crianças com esse
aprendizado que era considerado “insuspeito” frente a uma educação
maior, utilizamos durante o ano de 2021, a Unidade Temática dos
Esportes, prevista na BNCC, como forma de resistir e abordar a
4 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FURG (CEP) parecer número
4.794.785.
146
Olimpíada de Tóquio e suas possíveis problematizações acerca da
temática de gênero no currículo da Educação Física escolar.
Com isso dialogamos em nossos encontros sobre as
possibilidades de práticas corporais ofertadas para meninas e para
meninos, os padrões de brinquedos e brincadeiras que segregam e
minimizam as subjetividades de cada criança, os salários e as diferentes
condições de emprego de homens e mulheres, os cargos de
superioridade e poder que correspondem aos moldes perpetuados
culturalmente e também sobre a espetacularização do corpo feminino
através dos uniformes utilizados pelas atletas.
Como ferramenta analítica, tomamos o conceito de gênero
como construções culturais e históricas que, ao correlacionar
comportamentos, linguagens, representações, crenças, identidades,
posturas, inscreve tais constructos no corpo, através de estratégias de
poder/saber.
Para tecer tais discussões, diferentes estratégias foram
utilizadas. Em grande parte, elas estavam em torno do maior evento
esportivo do mundo, as Olimpíadas. Além de todos os valores já
preconizados por ele, o evento marcado para 2020 e realizado em
2021 trouxe um diferencial para a discussão acerca da equidade de
gênero no esporte: um recorde de participação feminina. Mais de 120
anos após a estreia das mulheres nos Jogos de 1900, a marca de 48,8%
de atletas mulheres no quadro de atletas participantes foi atingida.
Ao levantar esse assunto, imediatamente as crianças
denunciaram em suas falas o machismo estrutural presente em nossa
sociedade, que cria estereótipos de gênero e determina o que é
aceitável para meninos e meninas (NUNES et. al., 2021). Dessa
forma, ao estigmatizar certos comportamentos e gostos, as meninas
são colocadas à margem inclusive de algumas práticas corporais e, por
147
isso, por tanto tempo estiveram presentes em menor quantidade no
quadro de atletas olímpicos.
Portanto, a inserção das mulheres no mundo do esporte
amador e/ou profissional já ultrapassou diferentes barreiras da
feminilidade para que atingisse uma consolidação nos dias atuais. No
entanto, ainda é considerado um espaço ambíguo, pois “fazia vibrar a
tensão entre a liberdade e o controle das emoções e também de
representações de masculinidade e feminilidade” (GOELLNER,
2004, p. 367).
A temática despertou grande interesse nas crianças e algumas
partilharam algumas vivências prévias: “uma vez eu tava jogando bola
lá no meu condomínio com meus amigos, aí chegaram umas meninas
que são minhas amigas e elas queriam jogar. Eles já saíram falando
que não e eu fui tentar falar com eles né... Disse que elas tinham que
jogar que nem nós porque o condomínio é delas também. Eles não
queriam deixar só porque são meninas”.
E, em seguida, César seguiu argumentando que “a gente tem
sempre que brigar quando vê essas coisas. Porque assim... As
meninas... Elas tão no mesmo lugar dos negros... Eles tão sempre
sozinhos e as pessoas tem preconceito com eles de graça. Acabam
tirando o direito de existência dessas pessoas”.
Com isso, é possível observar traços de resistência na narrativa
do estudante. Na medida em que ele observou um poder excludente
sendo exercido sobre as meninas e sobre os negros, ele se posicionou
e alertou os/as demais para a existência dessa possibilidade. Afinal, a
partir do momento em que há uma relação de poder, há uma
possibilidade de resistência.
Outra estratégia utilizada para abordar gênero dentro do
currículo da Educação Física foram as principais representatividades
femininas dentro das Olimpíadas. Com isso, não poderíamos deixar
148
de falar sobre Miraildes Maciel Mota, a Formiga. Algumas
curiosidades acerca da carreira da atleta foram apresentadas a eles/as
que logo se mostraram curiosos para conhecer mais sobre a história
da jogadora de futebol.
Com isso, conversamos sobre a falta de apoio no início da
carreira de Miraildes, afinal seus irmãos e seu pai eram contra esse
movimento. Aos sete anos ela ganhou dos padrinhos uma boneca e o
seu irmão foi presenteado com uma bola. De imediato, ela arrancou
a cabeça da boneca e a transformou também em uma bola para que
pudesse jogar.
As crianças adoraram a atitude da atleta, mas a fala sobre os
brinquedos fez com que elas refletissem. Uma menina disse: “prof., eu
tenho um irmão pequeno né, tu sabe... E lá em casa não tem essa de
brinquedo de menina e de menino. Brinquedo é de criança”. Em
seguida, seu colega ponderou: “eu acho nada a ver isso gente... Porque
ela não pode ganhar uma bola? Aposto que agora eles tão chorando
que ela é a maior jogadora das mulheres!”.
Assim, entendemos o brincar como um espaço crucial para o
desenvolvimento das crianças, pois possibilita que ela lide com
diferentes tipos de situações, seja jogando futebol, um jogo ou
brincando de casinha. De acordo com Maria Ângela Carneiro e Janine
Dodge (2007, p. 59), “o movimento é uma forma de expressão e
mostra a relação existente entre ação, pensamento e linguagem”.
Ademais, o brincar está presente na Lei 8.069, de 13 de julho
de 1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Em seu Capítulo II, Art. 16°, Inciso IV ela aponta que “toda criança
tem o direito de brincar, praticar esportes e divertir-se”. No entanto,
quando restringimos o acesso às brincadeiras com base no corpo
biológico das crianças estamos inviabilizando também seu
desenvolvimento integral.
149
Através dos posicionamentos dos/as estudantes, podemos
notar que alguns/mas deles/as transitam entre as brincadeiras sem a
preocupação de que ela seja culturalmente adequada ou não. Daniela
Finco (2003, p. 95) corrobora dizendo que “são os adultos que
esperam que as meninas sejam de um jeito e os meninos de outro”.
Vale ressaltar a importância de ouvir as crianças e de torná-las
sujeitos construtores desse currículo que busca as fissuras de uma
educação menor. Com isso, um estudante levantou uma questão
importante: “Prof.! Eu não sei se tu viu que na Olimpíada de Tóquio
deu um problema com as roupas das jogadoras. Eu vi com a minha
mãe que eles obrigam as mulheres a usarem biquíni no vôlei de praia,
mas os homens ficam de bermuda e camiseta”.
O relato dos/as alunos/as acerca dos diferentes tipos de
uniformes assombra as atletas de diferentes modalidades esportivas
devido à espetacularização de seus corpos. Existe um assédio moral de
caráter erótico no modo como se referem às atletas, subvalorizando o
esporte como sua ocupação profissional. Dessa forma, além das
mulheres serem boas atletas, elas ainda precisam ser “atletas boas” e
belas, sendo a beleza melhor valorizada do que seu desempenho
esportivo (GOELLNER, 2012).
Todavia, após anos sem ter o controle de seus corpos e de seus
uniformes esportivos, as mulheres vêm fugindo da zona de submissão
e se opondo às tradições e regras impostas a elas. Exemplos desse
movimento aconteceram nos Jogos Olímpicos de Tóquio quando a
equipe de ginástica da Alemanha substituiu seus tradicionais
uniformes por trajes de corpo inteiro e quando o time de Handebol
na Noruega substituiu as calcinhas do biquíni por shorts.
Desse modo, regulamentos são contestados para que as atletas
tenham autonomia para definir suas vestimentas e tenham
150
reconhecimento por seus méritos desportivos, trazendo o assunto à
tona em diferentes espaços de nossa sociedade.
Ademais, também resistimos às impressões da educação maior
ao abordar na sala de aula as diferentes categorizações do esporte.
Dentre elas, abordamos o Atletismo que pertence aos esportes de
marca. E como falar sobre essa modalidade sem abordar a história de
Aida dos Santos? A única mulher presente na delegação brasileira da
Olimpíada de Tóquio em 1964. Mesmo sem patrocínio, treinador,
uniforme e sapatilha, a atleta atingiu o quarto lugar na competição,
sendo considerada um dos maiores ícones brasileiros no atletismo e
no esporte.
A situação vivenciada por Aida dos Santos, infelizmente,
ainda é uma realidade para as mulheres no âmbito esportivo. Mesmo
com o aumento do número de mulheres no campo das práticas
corporais e esportivas seja no esporte de rendimento, no lazer e na
Educação Física escolar a visibilidade conferida pela mídia, as
oportunidades de acesso e permanência, os valores de algumas
premiações e os cargos de poder ainda são inferiores quando
comparados aos homens.
Outra importante atleta que esteve presente em nossas
discussões foi Alline Calandrini, ex-jogadora de futebol profissional
que defendeu Santos, Corinthians e a Seleção Brasileira ao lado de
Formiga. A ex-zagueira foi entrevistada durante a realização da
pesquisa e revelou que, durante a infância, ela era reconhecida como
um menino por demonstrar habilidades esportivas. Seu apelido era
Bebeto e o de seu irmão Romário.
Além disso, quando as crianças conheceram a história de
Alline, também apontaram que sofrem restrições ao brincar, pois
precisam atender a padrões desejados. Dessa forma, é possível
observar que há muito tempo as relações de gênero são hierarquizadas
151
nas aulas dessa disciplina com dominação masculina. As meninas,
quando demonstram interesse ou aptidão, têm sua sexualidade posta
à prova, pois deixam de corresponder aos padrões de feminilidade
impostos pela sociedade e, assim,os sujeitos aprendem a ser homens
e mulheres adaptando-se ou aprendendo a comportar-se de acordo
com esses papéis” (GOELLNER, 2007, p. 179). Portanto, quando
não se enquadram, acabam sendo rotuladas.
Com isso podemos observar que, embora os tempos de
proibição da figura feminina no cenário esportivo tenham ficado no
século passado, alguns mecanismos de impedimento ainda são
impostos. Dessa forma, as diferentes formas de educar os corpos de
meninos e meninas resultam em um envolvimento distinto com as
práticas corporais e em diferentes habilidades motoras adquiridas
(ALTMANN, 2011).
Nesse viés, ao longo da história do esporte e da Educação
Física escolar, encontramos com cerca frequência a figura masculina
vinculada com as práticas corporais que requerem força, velocidade,
resistência e potência muscular. Já para as mulheres são relacionadas
atividades que demandam flexibilidade, agilidade, leveza e suavidade
(GOELLNER, 2004), reduzindo assim suas possibilidades de
desenvolvimento nas práticas corporais.
Através desse cerceamento, apontamos uma única forma de
ser menino e de ser menina. No entanto, não é possível falar de um
corpo que se esgota no biológico e em rótulos femininos ou
masculinos. É preciso pensar para além e levar em consideração as
subjetividades que o constituem. Afinal,
um corpo não é apenas um corpo. É também o seu entorno. Mais
do que um conjunto de músculos [...], o corpo é as intervenções
que nele se operam, os sentidos que nele se incorporam. o são,
portanto, as semelhanças biológicas que o definem, mas
152
fundamentalmente os significados culturais e sociais que a ele se
atribuem. (GOELLNER, 2008, p. 28).
Contudo é preciso atentar ao que os corpos das crianças vêm
denunciando em escolas, parques e nos diferentes espaços de práticas
corporais. Existe uma categorização do que pode ou não ser feito de
acordo com sexo biológico que nasceram. Dessa forma, há uma
limitação nas vivências proporcionadas aos corpos das crianças, o que
restringe a aquisição de habilidades para ambos.
Assim, viver sua subjetividade significa fugir da norma social
produzida no interior do dispositivo da sexualidade ou, como
denominou Judith Butler (1999), da heteronormatividade que
garante espaço somente para a correspondência entre corpo e
comportamento, aquilo que se espera para cada gênero.
Por tanto, as características desses corpos devem ser
valorizadas de acordo com as individualidades de cada sujeito por
meio da socialização e da interação com a diversidade de realidades e
experiências, não através de um sistema normativo que apresenta um
único padrão possível. É preciso proporcionar às crianças aquilo que
elas já perceberam que precisam: a interação, o respeito e o
aprendizado através de um currículo que valorize as diferenças e não
as semelhanças.
Apresentando Algumas Considerações
Por fim, destacamos a necessidade de resistir e pensar no
campo do currículo em articulação com a resistência. Ou seja, uma
resistência que opere possíveis nos currículos. Segundo Deleuze (1995,
p. 100) é preciso extrair dessa relação de forças a resistência que
favoreça “uma vida mais ampla, mais ativa, mais afirmativa, mais rica
153
em possibilidades”, além de tornar real um currículo rico em vida e
em possibilidades.
Para alcançarmos esses possíveis, é necessário questionar as
verdades que encontramos em nossos cotidianos, pois são essas
perguntas que impulsionarão a reavaliação dos comportamentos
culturais, possibilitando a ressignificação dos discursos de dominação.
E, nessa perspectiva, a Educação Física assume um papel importante
quando problematiza o corpo, os lugares/espaços, gestos que
meninos/as produzem e assegura a equidade de oportunidades a
todos/as no âmbito das práticas corporais.
As narrativas das crianças nos encorajam a “esperançar” um
futuro mais humano, pautado nas diferenças, no respeito e eficaz no
combate às discriminações para que nossos/as estudantes tenham as
mesmas condições de desenvolvimento conforme preconiza a Agenda
2030 em seu artigo de número 5: “alcançar a igualdade de gênero e
empoderar todas as mulheres e meninas” (ONU, 2018).
Nessa perspectiva temos à disposição de nosso professorar as
estratégias de uma educação menor que servem como um exercício de
produção de multiplicidades. O currículo e a prática pedagógica de
professores/as podem agir para desterritorializar as premissas de uma
educação maior a partir de atos cotidianos, criando fissuras,
trincheiras, minando espaços e oferecendo resistências através dessa
relação de micropoderes.
Para isso é necessário priorizar o respeito às subjetividades para
a construção de uma consciência igualitária através de uma Educação
Física plural, que permita a meninas e meninos, indiscriminadamente,
as mesmas vivências a um corpo que pensa, sente, age e se constrói
através do movimento.
Portanto, resistir é possível! Através das possibilidades de
aprendizado insuspeitas, desterritorializamos os princípios e as
154
normas. Dentro das grandes máquinas como a escola, podemos seguir
buscando as brechas de uma educação menor que escapa a qualquer
controle, opondo resistência e criando outras possibilidades de
abordar temáticas silenciadas como gênero e sexualidade.
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EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR E RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS EM FOCO:
PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A PRÁTICA COMO
COMPONENTE CURRICULAR NOS CURSOS DE
FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORAS E
PROFESSORES
Vagner Matias do PRADO1
Introdão
O capítulo ora apresentado se refere a um relato de
experiência que compôs parte da avaliação da disciplina “Prática
Pedagógica e Diversidade Humana PIPE 04” (PIPE 04),
componente obrigatório do currículo do então curso de graduação
em Educação Física (Bacharelado e Licenciatura) da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). O componente curricular atende a
Resolução n° 2 de 2015 do Conselho Nacional de Educação que, em
seu artigo 13°, parágrafo 1° regulamentou a inserção da Prática como
Componente Curricular (PCC) nos currículos dos cursos de
formação de professoras e professores, a partir de “400 (quatrocentas)
horas de prática como componente curricular, distribuídas ao longo
do processo formativo”, para além de 400 (quatrocentas) horas de
estágio supervisionado e das “200 (duzentas) horas de atividades
1 Professor da Faculdade de Educação Física e Fisioterapia e do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, Minas Gerais,
Brasil. E-mail: vagner.prado@ufu.br.
160
teórico-práticas de aprofundamento em áreas específicas de interesse
dos estudantes” (BRASIL, 2015, p. 11).
A disciplina objetivava2 exercitar um (re)pensar da noção de
“inclusão”, de forma ampliada, não a limitando a ideia de
deficiência”. A proposta era a de considerar a necessidade de
compreender o termo a partir de problematizações sobre o processo
de construção cultural das diferenças e seu marcadores sociais, bem
como mapear práticas de preconceito, discriminação e violência
direcionadas a grupos humanos vulnerabilizados por relações
hierárquicas e assimétricas, produzidas pelos dispositivos de gênero,
raça”/etnia, sexualidade, deficiência, classe social, geração entre
outros (UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA [UFU],
2009).
O conteúdo desenvolvido na disciplina dialogava diretamente
com elementos desenvolvidos em um componente curricular anterior,
intitulado de “Educação Física e Diversidade Humana”. Este era pré-
requisito para cursar o PIPE 04, o qual, considerando a proposta da
PCC, e dentre os conteúdos propostos para o semestre, objetivou
aproximar estudantes de uma futura atuação pedagógica na área da
Educação Física Escolar a partir de discussões sobre as relações étnico-
raciais, por meio de atividades motoras ministradas a estudantes da
educação básica. Como desdobramento específico, intencionava
possibilitar a experimentação de princípios teórico-metodológicos
ensinados anteriormente e que tinham como objetivo principal
auxiliar os e as alunos em formação inicial a compreenderem a
Educação Física Escolar como componente curricular obrigatório da
2 O currículo em que a disciplina constava na “grade” se encontra em extinção devido a então
criação de dois novos cursos de Educação Física, os quais passaram a habilitar os e as
estudantes em Licenciandas/os e Bacharéis, de forma específica.
161
Educação Básica que pode contribuir para (re)produzir ou subverter
práticas de violência entre escolares (UFU, 2009).
A fim de descrever as atividades que foram conduzidas junto
a onze estudantes de graduação 3 e 30 estudantes do ensino
fundamental, após esta breve introdução, apresentam-se breves
apontamentos conceituais sobre a produção sociocultural das
diferenças, assimetrias estruturadas a partir da noção fictícia de “raça
e a estruturação do racismo e preconceito racial que, dentre outros
espaços sociais, reverbera nas escolas. Posteriormente, descrevem-se os
procedimentos metodológicos adotados para a efetivação da proposta,
seguidos de alguns dos resultados e discussões. Por fim, explicitam-se
algumas considerações e provocações sobre possíveis desdobramentos
curriculares futuros a partir dos dados e problematizações geradas pela
PCC inserida nos currículos de cursos de formação inicial de
professoras e professores de Educação Física.
“Raça”, Racismo e Discriminação: Um Problema Educacional?
A Prática como Componente Curricular (PCC) envolve uma
preocupação junto a formação de professoras e professoras na qual,
ainda durante a primeira metade da formação inicial nos cursos de
graduação, os e as estudantes possam contabilizar experiências
formativas em futuros ambientes de atuação profissional. Nesse
sentido, para além dos estágios supervisionados que, geralmente, são
componentes alocados ao final do processo formativo, a PCC almeja
3 Agradecimento aos e às discentes do curso de Educação Física: Diego Xavier Borges,
Marcelo Mendes Cunha Filho, Mayara Cristina de Freitas Gonçalves, Murilo Soares Braga,
Nicolas Keit Caetano, Rhyllare Lucilla Alves Moreira, Richard Siqueira de Oliveira, Saide
Henrique Rodrigues Vieira, Tássia Magnabosco Sisconeto, Tayna Tamires Aparecida Borges
e Walisson Amarães.
162
contribuir para uma formação ancorada na realidade do contexto
educacional brasileiro.
40 anos depois a dimensão prática na formação docente
mantém-se atual no cenário brasileiro, estando presente nas
DCN para a formação docente inicial e continuada como
elemento ainda necessário de ser implementado nos cursos de
formação de professores do País. (BRASIL, 2015, p. 1).
Bisconsini e Oliveira (2018) argumentam que a PCC é
potente para articular saberes distintos relacionados à formação
profissional, disciplinar, curricular e experiencial e promove a
aproximação entre estudantes de curso iniciais nas diferentes áreas das
licenciaturas com profissionais já atuantes e com a escola como campo
de trabalho. Para a autora e o autor a PCC amplia as referências dos e
das acadêmicas em relação aotornar-se” professores/as, inserindo no
currículo estratégias que diversificam contextos de ensino e de
aprendizagem. A estratégia contribui ainda para ampliar
possibilidades de problematização sobre a intervenção pedagógica e
posicionamento crítico durante a prática profissional.
No Parecer CNE/CP 9/2001 inicia-se a constituição dos
propósitos das práticas curriculares, mencionando-as como
atividades que perpassam as reflexões sobre a intervenção
profissional. o Parecer CNE/CP 28/2001 define a prática e o
estágio como componentes curriculares distintos, utilizando, de fato,
o termo “Prática como Componente Curricular”. Ambas as ações
deveriam contemplar propostas de articulação com a Educação
Básica e constarem nos currículos dos cursos [...] a Resolução
CNE/CP 1/2002 aponta a realização da PCC desde o início do
curso com desenvolvimento ao longo da graduação, a Resolução
CNE/CP 2/2002 especifica a carga horária da PCC (400 horas)
e a Resolução CNE/CP 2/2015 reforça esses pontos das normas
163
anteriores, além de incluir outros elementos gerais acerca da
formação de professores. (BISCONSINI; OLIVEIRA, 2018, p.
456, grifos meus).
A PCC incluída no curso de Educação Física da Universidade
Federal de Uberlândia ora analisado, se materializava por meio dos
PIPEs. Esses componentes objetivavam possibilitar a aproximação das
e dos graduandos de possíveis intervenções que poderiam encontrar
no mundo do trabalho. Dentre elas, a temática da “Diversidade
Humana” era contemplada e se propunha a provocar
questionamentos sobre processos de produção sociocultural de
diferenças e as relações de preconceitos, discriminação e violências
direcionadas a grupos considerados como minoritários.
Um dos conteúdos tratados no PIPE 04 foi a Educação para
as Relações (ou hierarquias?) étnico-raciais no contexto escolar. Assim,
temas como a construção histórica da noção de “raça”, racismo e
preconceito racial foram comtemplados. Para além das
problematizações conceituais, o componente possibilitou com que as
e os estudantes em formação tivessem contato com estudantes do
ensino fundamental de uma escola da rede pública estadual de
Uberlândia-MG com a intenção de propor atividades motoras que
poderiam contribuir para (re)pensar essas relações no âmbito da
Educação Básica e debater aspectos referentes a valorização da
negritude.
Segundo Zamora (2012) raça” é um termo fictício que fora
cunhado para o exercício do controle e subalternização de povos “não
europeus”. Assim, é um termo que, embora não exista como dimensão
biofisiológica específica para a materialização das corporeidades, sua
força discursiva engendra efeitos de verdade que nomeiam, classificam,
164
hierarquizam e submetem a população negra a práticas
discriminatórias.
Já o termo racismo “consiste na idéia de que algumas raças são
inferiores a outras, atribuindo desigualdades sociais, culturais,
políticas, psicológicas, àraça” e, portanto, legitimando as diferenças
sociais a partir de supostas diferenças biológicas” (ZAMORA, 2012,
p. 565). Ainda, para este debate, é preciso destacar a expressão
preconceito racial” que diz respeito a materialização de injúrias,
hostilizações e manifestações, explícitas ou implícitas, de
discriminação e violência contra a população não branca. No caso
brasileiro, a negritude é o exemplo mais visível do impacto dessa
forma de violência contra vidas.
Kabengele Munanga (2009, p. 7-8) argumenta que:
Com efeito, com base nas relações entre “raça” e racismo, o
racismo seria teoricamente uma ideologia essencialista que
postula a divisão da humanidade em grandes grupos chamados
raças contrastadas que têm características físicas hereditárias
comuns, sendo estas últimas suportes das características
psicológicas, morais, intelectuais e estéticas e se situam numa
escala de valores desiguais. Visto deste ponto de vista, o racismo
é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas
pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o
intelecto, o físico e o cultural.
No Brasil, a incidência de comportamentos racistas,
preconceituosos, discriminatórios e exploratórios ainda pauta o
cotidiano de muitas e muitos sujeitos, posicionando-os/as como
expressões de vida inferiores, por conta dos efeitos de verdade
acionados por discursos em torno do marcador social de “raça”.
Discursos racistas ganham visibilidade nas diferentes mídias, esporte,
escola, sistema jurídico e demais esferas do cotidiano.
165
Todavia, segundo Munanga, o mito da democracia racial em
território nacional pode ser considerado como uma estratégia de
captura que intenciona ocultar a realidade vivida por mulheres,
homens e demais expressões de gênero que se autorrepresentam em
suas negritudes. Para o autor, no que se refere à Educação,
[...] o mito de democracia racial bloqueou durante muitos anos
o debate nacional sobre as políticas de ação afirmativa e
paralelamente o mito do sincretismo cultural ou da cultura
mestiça (nacional) atrasou também o debate nacional sobre a
implantação do multiculturalismo no sistema educacional
brasileiro. (MUNANGA, 2009, p. 11).
A eliminação da discriminação racial é o ponto central a ser
alcançado. Em reforço contra o preconceito racial em todo o mundo,
em 1966, a Organização das Nações Unidas (ONU), instituiu o Dia
Internacional contra a Discriminação Racial, celebrado anualmente
no dia 21 de março. Em território nacional, segundo a Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, o racismo deve ser
repudiado e “constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à
pena de reclusão, nos termos da lei” (BRASIL, 1988, p. 1).
Nesse contexto, o trabalho pedagógico sobre as relações
étnico-raciais na escola é de fundamental importância para o
enfrentamento de atos de preconceitos e discriminação raciais. Com
isso, o professor e a professora possuem um papel fundamental e
relevante na desconstrução do racismo.
Nesse âmbito cabe destacar a promulgação da Lei Federal n°
10.639 de 09 de janeiro de 2003, no então governo do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva que tornou obrigatório em instituições de
ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, o ensino sobre
História e Cultura Afro-Brasileira. A lei destaca ainda que:
166
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste
artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a
luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil (BRASIL, 2003, p. 1).
No campo da Educação Física, as discussões a respeito de
questões étnico-raciais têm se mostrado muito aquém do que o
componente curricular poderia mobilizar. Bins e Neto (2016) e
Oliveira (2012) enfatizam como o desempenho dos e das professoras
quanto às questões raciais tem se mostrado abaixo do esperado e bem
longe de um caminho jurídico-normativo.
Na pesquisa realizada por Bins e Neto (2016) ficou
evidenciado como as relações étnico-raciais não tem o alcance
necessário durante as aulas de educação física nas escolas.
Argumentam ainda que o não cumprimento da Lei 10.639/03 é
observável na prática pedagógica de professores/as da área. Para a e o
autor, tal fato se deve ao desconhecimento e despreparo, ou seja, de
uma formação inicial de professores e professoras que apresenta
lacunas em relação às atribuições docentes na educação básica
brasileira.
Estudos como os de Bins e Neto (2017) e Oliveira e Ribeiro
(2014) comprovam que trabalhar as relações raciais em aulas de
educação física não se mostra um assunto muito complicado, desde
que o/a professor/a disponha de um bom conhecimento teórico sobre
o tema. Oliveira e Ribeiro (2014) ainda citam as infinidades de
caminhos em que as relações étnico-raciais poderiam ser trabalhadas
em aulas de educação física na escola, tais como as danças, rodas,
cantigas e jogos acerca de cultura africana e indígena.
167
A contribuição das práticas contextualizadas das brincadeiras,
brinquedos e jogos de origem afro-brasileiros e indígenas vem
auxiliar no combate a discriminação étnico-racial, despertando
para conscientização e valorização dessa cultura. (OLIVEIRA;
RIBEIRO, 2014, p. 11).
Assim, fica evidente que é possível trabalhar as questões
étnico-raciais no ambiente escolar em todas as disciplinas, explorando
diversos recursos educativos. Isso demanda dos professores e
professoras aprofundamento do assunto para que possam embasar
suas práticas pedagógicas e implementarem processos de ensino e de
aprendizagem problematizadores que sejam capazes de desvelar as
nuances de uma sociedade preconceituosa e racista.
Procedimentos Metodológicos
O trabalho foi desenvolvido com 30 alunos, em sua maioria
do gênero feminino, estudantes do 2º ao 9º ano do ensino
fundamental de uma escola pública do município de Uberlândia-MG.
A proposta foi implementada durante o 1º semestre de 2018, sob
orientação do docente responsável pela disciplina “Prática Pedagógica
e Diversidade Humana PIPE 04”, por graduandas/os do curso de
Educação Física da Universidade de Uberlândia. Reitera-se que a
disciplina em tela atende a resolução n° 02/2015 do Conselho
Nacional de Educação sobre a inserção da Prática como Componente
Curricular nos currículos dos cursos de formação de professoras e
professores.
Os e as estudantes do Ensino fundamental participavam do
“Projeto Escola de Tempo Integral” (PROETI), instituído pelo
governo do estado. O citado projeto possibilita com que as e os
estudantes permaneçam na escola por dois turnos. Um no qual
168
cursam componentes curriculares do ensino fundamental e outro em
que permanecem na escola para a realização de atividades diversas, tais
como: práticas de exercícios físicos, reforço escolar, projetos etc.
A escolha dos/das participantes e da unidade escolar se deu,
principalmente, pela proximidade da escola do campus Educação
Física da Universidade Federal de Uberlândia, local no qual as
atividades foram ministradas. Cabe ressaltar que a escola pública em
destaque ainda mantém parceria com a universidade para
desenvolvimento de projetos de extensão e articulação com a PCC do
currículo do atual curso de Educação.
Os e as alunos se deslocavam da escola ao campus
supervisionados por duas professoras. As atividades foram
desenvolvidas às quartas-feiras, das 14:00 às 16:30 horas, dia e horário
disponibilizado pela disciplina PIPE 04, referente ao processo de
formação dos e das graduandas em educação física. Para orientar e
direcionar a ação durante o semestre, foi elaborado um instrumental
de sistematização, com planejamento de 16 aulas (referência de 50
minutos para cada aula), que contemplou a utilização dos jogos
recreativos e as modalidades esportivas de Atletismo e Basquetebol.
Inicialmente, as atividades ocorreram em um dos ginásios
esportivos da Faculdade de Educação Física e Fisioterapia da
Universidade Federal de Uberlândia (FAEFI/UFU), com todos os
estudantes (2° ao 9° ano) juntos, sem separações por faixa etária. No
entanto, diante das dificuldades de ministrar as aulas para duas turmas
com idades diferentes, os/as onze estudantes de graduação optaram
por separar o grupo em dois, ministrando as atividades em dois
ginásios, simultaneamente.
Com o grupo composto pelos e pelas estudantes com mais
idade (jovens) (7°, 8° e 9° ano), foram ministradas atividades mais
complexas relacionadas com a introdução aos esportes (Atletismo e
169
Basquetebol). Com as crianças (2° e 3° ano), as atividades, a partir da
linguagem lúdica, compreenderam jogos e brincadeiras.
Quadro 1 – Atividades desenvolvidas com estudantes de e ano
do Ensino Fundamental
Encontro
(100
minutos)
Objetivo Procedimentos
1
Conhecer a turma e
professores,
introduzindo o tema das
questões raciais.
Foi proposto: apresentação dos alunos e
conteúdo por meio de um filme, apresentação
dos alunos.
Foi realizado: brincadeiras como bandeirinha
estourada, pega-pega e carimbada.
2
Instigar a turma a
conhecerem sua própria
história
Primeira parte da aula: os alunos desenharam
uma árvore (genealógica) com seus familiares
dentro.
Segunda parte da aula: os alunos colarem
bolinhas coloridas para enfatizar as diferenças
de cada um. (Discussão sobre raça)
3 Conhecer o Basquetebol
e suas diversidades
Primeira parte da aula: foram realizadas
atividades em que os alunos conheceram e
vivenciaram alguns fundamentos e o jogo de
Basquete.
Segunda parte da aula: Foram realizadas
atividades com fotos de atletas negros
brasileiros e estrangeiros e discussão sobre os
atletas e sobre a diversidade no esporte.
4
Vivenciar algumas
modalidades do
atletismo e conhecer as
diversidades desse
esporte
Primeira parte da aula: foram propostas
atividades de corridas e saltos nas quais os/as
alunos puderam vivenciar essas provas do
Atletismo.
Segunda parte da aula: Foi apresentado os
discos masculinos, femininos e adaptados
utilizados na prova de Lançamento de Disco,
breve apresentação da modalidade e discussão
sobre atletas e diversidade no esporte.
Obs.: Nesta aula, os alunos receberam um
“prêmio” motivacional (chocolate), por terem
participado da gincana.
Fonte: Dados da pesquisa
170
Quadro 2 – Atividades desenvolvidas com estudantes de 7º, e ano do
Ensino Fundamental
Encontro
(100
minutos)
Objetivo Procedimentos
1
Conhecer a turma e
professores,
introduzindo o tema das
questões raciais.
Foi proposto: apresentação dos alunos e
conteúdo por meio de um filme, apresentação
dos alunos.
Foi realizado: brincadeiras como bandeirinha
estourada, pega-pega e carimbada.
2
Instigar a turma a
conhecerem sua própria
história
Primeira parte da aula: os alunos desenharam
uma árvore (genealógica) com seus familiares
dentro.
Segunda parte da aula: os alunos colarem
bolinhas coloridas para enfatizar as diferenças
de cada um. (Discussão sobre raça)
3 Conhecer o Basquetebol
e suas diversidades
Primeira parte da aula: foram realizadas
atividades em que os alunos conheceram e
vivenciaram alguns fundamentos e o jogo de
Basquete.
Segunda parte da aula: Foram realizadas
atividades com fotos de atletas negros
brasileiros e estrangeiros e discussão sobre os
atletas e sobre a diversidade no esporte.
4
Vivenciar algumas
modalidades do
atletismo e conhecer as
diversidades desse
esporte
Primeira parte da aula: foram propostas
atividades de corridas e saltos nas quais os/as
alunos puderam vivenciar essas provas do
Atletismo.
Segunda parte da aula: Foi apresentado os
discos masculinos, femininos e adaptados
utilizados na prova de Lançamento de Disco,
breve apresentação da modalidade e discussão
sobre atletas e diversidade no esporte.
Obs.: Nesta aula, os alunos receberam um
“prêmio” motivacional (chocolate), por terem
participado da gincana.
Fonte: Dados da pesquisa
171
Resultados e Discussão
A movimentação dos e das estudantes do ensino fundamental,
correndo, brincando e se divertindo ao logo no primeiro encontro4,
segundo Fernandes (2008, p. 10) se relaciona com o fato de que “o
movimento e a cognição estão inteiramente ligados a um ciclo
contínuo de estímulos, pois para absorver informações o ser humano
precisa ouvir, olhar, mover-se, tocar e sentir os vários estímulos”. As
duas primeiras aulas contaram com a participação de todos e todas as
estudantes do ensino fundamental (2° ao 9° ano).
Todavia, após a dificuldade experimentadas pelos e pelas
graduandas em educação física, foi proposta a divisão das turmas em
relação a proximidade de faixas-etárias. A partir disso, optou-se por
iniciar os alunos jovens (7°, 8° e 9° ano) a duas modalidades esportivas
e com as crianças (2° e 3° ano) trabalhar atividades lúdicas.
No segundo encontro, os e as estudantes de graduação se
dividiram em dois grupos. Cada um responsável por um coletivo de
estudantes do ensino fundamental, como destacados nos quadros 1 e
2. A partir dessa estratégia, as atividades foram elaboradas de maneira
mais adequada de acordo com a faixa etária dos e das crianças e jovens.
Tal divisão também possibilitou um melhor desenvolvimento
pedagógicos dos e das futuras professoras em formação.
As atividades relacionadas as questões étnico-raciais foram
desenvolvidas com os dois grupos, de formas específicas. Para o grupo
com maior idade, foi proposto com que as e os estudantes do ensino
fundamental elaborassem uma árvore genealógica. Nessa atividade foi
solicitado com que elas/es desenhassem pessoas e escrevessem os
nomes de seus familiares. Logo após, os e as alunas foram
4 Cada encontro corresponde a 100 minutos, ou seja, duas horas-aula da Educação Básica.
172
identificando, com “bolinhas” de EVA coloridas, quais de seus
familiares consideravam como negros/as.
Quando as árvores estavam montadas, foi realizada uma roda
de conversa para discutir um pouco sobre suas famílias. A dinâmica
da atividade possibilitou desvelar algumas situações preconceituosas
vivenciadas pelas e pelos estudantes do ensino fundamental. O grupo
demonstrou grande interesse na conversa e, em suas palavras, sentiram
uma espécie de conforto.
Com o grupo formado pelas crianças menores também foi
trabalhado a atividade da árvore genealógica. As crianças gostaram
muito da atividade se divertiram ao colorir os desenhos, explicando
quem era a pessoa marcada como “diferente” neles. A partir dessa
abordagem e estratégia lúdica, as crianças foram estimuladas a
pensarem na questão da negritude, levando em consideração a
valorização de suas raízes e na história de vida de suas famílias.
A ancestralidade e valorização de suasorigens” representam
um importante aspecto para as culturas africanas e afro-brasileiras no
que se refere ao desenvolvimento de ações educativas para as relações
étnico-raciais no Brasil. Segundo Nogueira, Andrade e Vásquez (2016,
p. 174):
A ancestralidade é um traço comum que se pode estabelecer com
a maior parte das diversas culturas existentes em África. Os
ancestrais, além disso, parecem estabelecer a ligação entre estes
homens e mulheres do mundo contemporâneo com a África
mítica, quase em uma ligação simbólica com o útero da mãe.
Uma das marcas da ancestralidade africana no Brasil é o samba,
tendo como ancestral o batuque africano.
No que se refere aos e às estudantes do curso de Educação
Física, notou-se, a partir de uma reflexão coletiva que, como futuros
173
professores e professoras, deveriam buscar saber mais sobre os e as
alunas. A bagagem cultural e os históricos de vida são elementos
fundamentais para compreender o processo relacional destes com a
Educação e potencializar o planejamento de práticas pedagógicas
comprometidas com o reconhecimento e respeito às singularidades
humanas. Tal fato, possibilitaria estabelecer conexões de amizade,
dimensão ética de vida que pode produzir relações de confiança,
respeito, reconhecimento e permitir a horizontalidade do ensino e das
aprendizagens mútuas, entre professores/as e alunos/as.
É comum a visualização do/a professor/a de educação física
como um/uma amigo/a ou conselheiro/a (KRUG; KRUG, 2008). A
partir disso, a abertura que os e as alunos estabeleceram com os e as
futuras profissionais de educação física em formação inicial
possibilitaram com que estes/as percebessem que, em alguns casos, o
diálogo e a relação de confiança para relatar histórias de vida são
facilitadas se comparada com professores de outras áreas da Educação.
Tal relação “legitima uma prática de Educação Física que leva à
perpetuação do papel do professor “camarada”, “amigo”,
companheiro”, para fazer com que o clima da aula seja positivo,
deixando de lado o papel de professor (KRUG; KRUG, 2008, p. 1
aspas dos autores).
No terceiro encontro, com o grupo de estudantes do 7° ao 9°
ano foram desenvolvidas atividades relacionadas à iniciação esportiva
de Basquetebol, visibilizando atletas negros de alto rendimento. Foi
elaborado um “quebra-cabeças” que, em sua junção, revelava a
personalidade esportiva em destaque e os e as graduandas em
educação física apresentavam informações sobre a vida dos/das atletas
e sobre como se despontaram no cenário esportivo.
Ao final da aula foi realizada a roda de conversa na qual, em
seu centro, ficaram expostas as fotos dos/das atletas negros (quebra-
174
cabeças resolvido). Foi questionado aos e às estudantes do ensino
fundamental quem gostava de Basquete e se algum/alguma deles/delas
conhecia os atletas apresentados. As respostas permitiram visibilizar
de forma positiva a negritude, sendo que os e as estudantes acabaram
por se identificar com as histórias de vidas de alguns dos/das atletas
apresentados.
Ao partir do trabalho de Munanga (2009), Nogueira,
Andrade e Vásquez destacam que:
[...] pela busca de sua identidade, que funciona como uma
terapia do grupo, o negro, instrumentalizado, é capaz de
despojar-se do seu complexo de inferioridade e colocar-se em
de igualdade com os outros oprimidos, condição preliminar para
uma luta coletiva. A recuperação dessa identidade começa pela
aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de atingir
os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e psicológicos,
pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da
identidade (NOGUEIRA; ANDRADE; SQUEZ, 2016, p.
170).
Nos próprios escritos de Munanga a valorização da identidade
negra é condição para a produção de resistências. Ao compreender
que a subjugação da negritude é uma produção sociocultural, faz-se
possível se autorrepresentar positivamente e problematizar que as
“hierarquias” étnico-raciais nos remete a questionar discursos
legitimados pelo social que criam efeitos de verdade, promovendo
capturas normativas de subjetividades. Assim, visibilizar, de forma
potente, a presença da negritude em nossas histórias, participação em
diferentes setores sociais, artes, política, ciência e nas práticas
esportivas pode ser uma estratégia interessante para enfrentar o
racismo e subverter a negatividade que envolve diferentes expressões
da negritude.
175
Como a identidade cultural se constrói com base na tomada de
consciência das diferenças provindo das particularidades
históricas, culturais, religiosas, sociais, regionais, etc. se delineiam
assim no Brasil diversos processos de identidade cultural,
revelando um certo pluralismo tanto entre negros, quanto entre
brancos e entre amarelos, todos tomados como sujeitos históricos
e culturais e não como sujeitos biológicos ou raciais.
(MUNANGA, 2009, p. 15).
Já no terceiro encontro com os e as alunas de 1° e 2° ano,
foram propostas uma atividade de pintura corporal e uma gincana,
voltadas para brincadeiras africanas. As crianças foram divididas em
etnias” e diferenciadas pelas pinturas em seus corpos (rosto ou
braços). O objetivo das brincadeiras foi o da apresentação da cultura
africana, diferenças étnicas e suas relações com as culturas brasileiras.
Ao término, em círculo, as crianças relataram o que aprenderam na
aula sobre culturas africanas e diferença entre os termosraça” e etnia.
A ludicidade e as brincadeiras são de extrema importância
para a educação de crianças. O aprender brincando, além de
prazeroso e permitir maiores possibilidades associativas entre o
realizado e contextualizado, atende a linguagem lúdica. Esta, por sua
vez, compreendida como forma de expressão que permite a criança
estabelecer relações sobre si e sobre o ambiente que a cerca.
A dimensão lúdica na infância, entretanto, como afirmam
Marcellino (2007), Brougère (1998) e Sarmento (2008), vem sendo,
categoricamente, furtada da experiência infantil. A expressão “furto
do lúdico”, refere-se à imposição da lógica de preparação para o futuro
que inculca, desde cedo, a necessidade das crianças se envolverem com
atividades consideradas como de “utilidade”, que ocupem o seu
tempo ocioso ou que as mantenha ocupadas. Nesta perspectiva, o que
se observa em relação à criança é a impossibilidade de vivência do
176
presente, em nome de um futuro que ainda não lhe pertence e a
desconsideração da criança enquanto produtora de cultura
(MARCELLINO, 2007).
No que se refere à negritude, Gomes (2017) argumenta que
as africanidades contemplam alguns valores civilizatórios, dentre os
quais a ludicidade é um de seus elementos constitutivos e
contributivos à formação de subjetividades. O autor, ao citar
contribuições de Edileuza Souza para o debate sobre a dimensão
lúdica presentes nas culturas africanas e afro-brasileiras, complementa
que “[...] o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira
alimenta a educação pluricultural e possibilita, por meio de atividades
lúdicas e estéticas, conhecer as singularidades africanas [...]” ou afro-
brasileiras “[...] num contexto da história geral da humanidade [...]”.
(SOUZA, 2008 citada por GOMES, 2017, p. 194 aspas do autor).
Ainda, temos que:
As africanidades comportam um imenso repertório, podendo ser
identificados no país como valores civilizatórios afro-brasileiros
(...) elementos como circularidade, oralidade, energia vital axé,
ludicidade, memória, ancestralidade, cooperativismo, musicali-
dade, corporeidade e religiosidade se interligam. (GOMES, 2017,
p. 211).
No quarto Encontro com os jovens, foi inserida a iniciação
esportiva a algumas das provas do Atletismo. Foi apresentado alguns
instrumentos oficiais e realizada uma espécie de gincana, na qual os e
as alunas foram divididas e trabalharam de forma competitiva. Ao
final, em uma roda de conversa, foi abordado temas como a
modalidade Atletismo, seus fundamentos, quem estava presente nesse
esporte, e a presença de atletas negros e negras que nele competiam.
177
Já com as crianças, estudantes do 1° e 2° ano do ensino
fundamental, foi trabalhada a musicalidade africana com músicas ao
som de tambores. Foi realizada uma atividade livre, na qual as crianças,
de olhos fechados, deveriam executar movimentos corporais de
acordo com a música, da maneira que quisessem. Após a atividade,
foram apresentados alguns jogos cantados de matrizes africanos.
Bins e Neto (2017, p. 249) destacam que “em um jogo, o fato
de o professor e os alunos não enfatizarem a questão do ganhar ou
perder, mas valorizarem que o colega não queira sair do jogo,
valorizarem a diversão em si; é importante trabalhar e fazer os alunos
entenderem o ubuntu”. Para a autora e o autor a possibilidade de
desenvolvimento do ubuntu, por meio do jogo, possibilita
compreender o termo como:
[...] um conceito filosófico [ubuntu] que permeia o continente
africano, a palavra significa ‘‘eu sou por que nós somos’. ‘Esse
conceito tenta explicar a realidade social em que o self não existe
a não ser por produto’’ (Turrion, 2013, s.p.). Ele foca nas alianças
e nos relacionamentos das pessoas umas com as outras, em uma
relação de respeito, apoio, partilha, comunidade, cuidado,
confiança e altruísmo. Segundo Tutu (1984), uma pessoa com
ubuntu es aberta e disponível aos outros, não preocupada em
julgar os outros como bons ou maus, e tem consciência de que
faz parte de algo maior e que é o diminuída quanto os seus
semelhantes que são diminuídos ou humilhados, torturados ou
oprimidos (BINS; NETO, 2017, p. 249).
Com isso, as práticas pedagógicas que envolvem os vetores de
conteúdo a serem desenvolvidos pelo componente curricular
Educação Física na Educação Básica (Atividades Circenses; Atividades
Rítmicas; Esporte; Ginásticas; Jogos e Brincadeiras e Lutas em todas
suas variações) permitem com que diversas temáticas possam ser, por
178
meio deles, problematizadas. Dentre essas problematizações, as
relações étnico-raciais, os processos culturais de marcação de
diferenças, as estratégias discursivas de nomeação, classificação,
hierarquização e subjugação de subjetividades e a construção de
atitudes preconceituosas, discriminatórias e violentas contra corpos
posicionados no social como “não brancos”, poderiam transpassar as
práticas escolares da Educação Física.
Todavia, para que isso ocorra é preciso com que os currículos
dos cursos de formação de professores e professoras da área promovam
espaços formativos que produzam conhecimentos que possam
estabelecer as conexões necessárias entre conceitos e vivências,
demonstrando que a dicotomia teoria-prática é falsa e precisa ser
superada. Durante esse processo, a Prática como Componente
Curricular pode construir novas e inovadoras estratégias para que, de
fato, a Lei 10.639, política pública educacional sancionada no
Governo Lula, possa se materializar e ser ampliada nas experiências
vivenciadas na Educação Física Escolar.
Considerações Finais
Considera-se, a partir deste relato de experiência, que teve
como objetivo aproximar estudantes de uma futura atuação
pedagógica na área da Educação Física Escolar, com ênfase no
desenvolvimento de discussões sobre as relações étnico-raciais por
meio de atividades motoras, que a Prática como Componente
Curricular (PCC) pode contribuir para descortinar e problematizar
situações de preconceito, discriminação e violência contra
determinados gruposmarcados” por certos discursos sociais como
negros. A inserção da PCC no curso de formação inicial em Educação
Física da Universidade Federal de Uberlândia permitiu o
179
desenvolvimento de um trabalho inicial que, para além de aproximar
os e as graduandas em educação física de possíveis locais de trabalho
e vivenciarem experiências “práticas” sobre o desenvolvimento da
intervenção pedagógica na Educação Física Escolar, contribuiu para
que as e os alunos do ensino fundamental envolvidos pudessem
vivenciar novas modalidades esportivas, vislumbrar atletas negros que
eles não conheciam, vivenciar novas experiências e refletirem sobre as
contribuições das culturas africanas e afro-brasileiras na produção da
história.
A partir das rodas de conversa foi possível desvelar situações
nas quais algumas “brincadeiras” são formas de invisibilizar
comportamentos e atitudes preconceituosas. A proposta desenvolvida
no componente curricular PIPE 04, de certa maneira, contribuiu para
que os e às estudantes, tanto do Ensino Fundamenta quanto da
formação inicial em Educação Física, estabelecessem análises críticas
sobre como o preconceito racial e a negativização da negritude estão
presentes no cotidiano, inclusive no interior das escolas. Dessa
maneira, abriu-se espaços para o questionamento do racismo na
condição de matriz estrutural de relações socioculturais no Brasil e a
necessidade de desconstrução de discursos que legitimam práticas
preconceituosas relacionadas às corporeidades marcadas como “não
brancas”.
Considera-se que a PCC inserida nos cursos de formação
inicial de professoras e professores de educação física é potente para
estimular com que futuras e futuros profissionais da área, que atuarão
na Educação Básica, possam conhecer, problematizar e elaborar
planos de intervenção para a educação das relações étnico-raciais e
enfretamento do racismo e do preconceito racial no Brasil. Os e as
graduandas puderam vivenciar situações em que as relações étnico-
raciais atravessam a vida e a produção das subjetividades de crianças e
180
jovens em fase escolar e problematizar possibilidades de intervenção
para contribuir para a composição de uma sociedade mais equitativas
ao compreenderem a urgência da materialização da Lei Federal n°
10.639/03 que altera “a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir
no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências
(BRASIL, 2003, p. 1 aspas do texto).
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9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede
de Ensino a obrigatoriedade da temáticaHistória e Cultura Afro-
181
Brasileira”, e outras providências. Brasília: Governo Federal,
2003.
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formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de
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183
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-609-1.p183-198
BORDANDO IDENTIDADES: UMA EXPERIÊNCIA
PEDAGÓGICA PARA A DIVERSIDADE A PARTIR
DO CURRÍCULO
Elisandra Gewehr CARDOSO1
Patrícia Vieira da Silva PEREIRA2
Thalita Coelho DANTES3
Introdão
Entre as obras expostas na 34ª Bienal de São Paulo (2021),
dois bordados se destacaram. Um trazia a palavra “Amor numa faixa
erguida por dois pássaros e um coração sangrando e o outro, não
menos lírico, fazia referência a dois uniformes diferentes um
marinheiro e um almirante sustentando juntos o peso de uma
âncora e as palavras ordem e “liberdade”. Além dos pontos delicados,
esses bordados chamaram a atenção por seu autor: João Cândido, o
almirante negro”, um dos líderes da Revolta da Chibata (1910)4.
1 Mestre em Poéticas Contemporâneas pela Universidade de Brasília (UnB) e Professora da
Educação Básica pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, Brasília, DF, Brasil. E-
mail: cardoso.elisandra@gmail.com.
2 Mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UnB) e Professora da Educação Básica
pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, Brasília, DF, Brasil. E-mail:
patriciavieirasp74@gmail.com.
3 Doutoranda em História pela Universidade de Brasília (UnB) e Professora da Educação
Básica pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, Brasília, DF, Brasil. E-mail:
thalitacdantes@gmail.com.
4Apesar de abolida, as práticas de tortura física, em especial a chibata, permaneciam
recorrentes na Marinha. Em 22 de novembro de 1910, marinheiros tomaram o controle dos
encouraçados São Paulo e Minas Gerais e ameaçaram disparar contra a capital, o Rio de
184
A costura não era uma novidade na Marinha, que os
marinheiros precisavam fazer pequenos reparos a bordo, mas os
bordados de João Cândido, feitos durante sua prisão (1910 - 1912)
quando viu 16 dos seus 17 companheiros de cela morrerem asfixiados
causaram imensa surpresa e demonstraram mais um aspecto
desconhecido desse personagem histórico. Apesar de serem vistos
como algo menor na história política na qual João Cândido se inscreve,
esses bordados demonstram o papel da arte como expressão de luta.
O bordado foi tradicionalmente associado às mulheres, ao
doméstico e até mesmo ao ócio, mas assim como João Cândido,
artistas plásticos como Leonilson e Artur Bispo do Rosário,
trabalhadores e principalmente trabalhadoras da indústria têxtil do
início do século passado, fizeram do bordado uma expressão da sua
identidade.
O projeto “Bordando Identidades realizado desde 2019 é um
projeto interdisciplinar que visa o fortalecimento das identidades
individuais em suas singularidades para a construção de um ambiente
escolar que valorize as diversidades, o pensamento crítico e autônomo,
a partir dos pressupostos do “Currículo em Movimento5 do Distrito
Federal, tendo a prática do bordado como ferramenta artístico-
pedagógica6.
Janeiro, caso suas reivindicações, entre elas o fim dos castigos físicos, não fossem atendidas.
Apesar das promessas, o governo traiu os marinheiros e os revoltosos foram encarcerados na
Ilha das Cobras, onde apenas João Cândido e outro marinheiro sobreviveram. Livres da
prisão, foram expulsos da marinha. Apenas em 2008, João Cândido e os demais revoltosos
foram simbolicamente anistiados. Sobre os bordados expostos na Bienal, ver:
http://34.bienal.org.br/enunciados/9058
5 Essa proposta curricular do Distrito Federal, elaborada com a participação de professores,
está em vigor desde 2013. Em 2018, houve uma reformulação para adequação a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), no entanto, foram mantidos os pressupostos teóricos
que distanciam a proposta curricular do DF da BNCC.
6 Agora, inserido em uma nova realidade inaugurada pela pandemia da Covid-19, este
projeto se expande e se vincula de maneira permanente ao cotidiano escolar, interagindo com
os muitos temas e outros projetos interdisciplinares que acontecem na escola durante o ano.
185
A proposta curricular do Distrito Federal, embasada pelas
Teorias Crítica e s-Crítica, valoriza a ideia de “Educação Integral”
propondo uma organização curricular que, entre outros aspectos,
valoriza a autonomia do/a professor/a e da escola para o planejamento
do trabalho pedagógico, a definição de objetivos e conteúdos
contextuais, flexíveis, interdisciplinares e a indissociabilidade entre
teoria e prática através de eixos transversais como “Educação para
Diversidade” e “Cidadania em e para os Direitos Humanos” e o eixo
integrador “letramento7. Dessa forma, construímos ao longo do ano
atividades interdisciplinares em Arte, Língua Portuguesa e História
que visaram a resolução de problemas e transformação social.
O projeto surgiu da necessidade de trabalharmos a questão do
respeito às diversidades de forma que envolvesse mais efetivamente
os/as estudantes. Buscamos com o projeto evidenciar as memórias
individuais e coletivas dos/as alunos/as e professores/as dando voz a
diversas identidades, valorizando noções como alteridade e diferença,
representação, cultura, gênero, raça, etnia e sexualidade.
Projeto “Bordando Identidades
Iniciamos o projeto a partir da leitura do livro “Cabelo ruim?
A história de três meninas aprendendo a se aceitar 8 , de Neusa
Baptista Pinto - que apresenta a maneira como ts meninas negras
superaram o preconceito com seus cabelos crespos e também com a
7 ainda o eixo transversal “educação para sustentabilidade e o eixo integrador
“Letramento e Ludicidade”.
8 PINTO, Neusa Baptista. Cabelo Ruim? A História de Três Meninas Aprendendo a Se
Aceitar. 3 ed. Cuiabá: Tanta Tinta Editora, 2010.
186
leitura imagética de obras da artista visual Rosana Paulino,
principalmente as que tratam de racismo e preconceito9.
O bordado, como procedimento artístico e atividade principal
do projeto interdisciplinar, foi realizado nas aulas de arte e em
momentos coletivos em que estudantes e professores/as bordaram e
compartilharam saberes. Cada participante bordou seu nome e seu
tipo de cabelo sobre tecido (20x20cm) no qual também foi impressa
uma foto dos participantes, reforçando suas identidades ali presentes.
Também foram trabalhadas as trajetórias de vida de mulheres
negras: Rosana Paulino, Carolina Maria de Jesus (escritora) e Marielle
Franco (socióloga e política), que foram homenageadas em bordados
feitos coletivamente.
Figura 1 – Bordado coletivo produzido no projeto
Fonte: Dados da pesquisa
9 Foram trabalhadas imagens das obras da série “Bastidores”, “Parede da memória”, da série
“Assentamento”, desenhos da série “Tecelãs” e “Ama de leite”.
187
Experiências plástico-visuais oportunizam a vivência de um
imenso campo de exploração sinestésica de cores, texturas, cheiros,
efeitos plásticos, dentre outras propriedades dos elementos da
linguagem visual. Estabelecendo uma conexão entre a produção
artística dos/as estudantes e a realidade em si, as leituras de imagens
de obras instrumentalizam a interpretação e a análise crítica do
imenso universo visual que permeia o cotidiano.
Nesse sentido, Ana Mae Barbosa (2005), alerta para a
necessidade de um processo integral de envolvimento com a arte,
levando ao pensamento inteligente sobre a criação de imagens aliado
à leitura e julgamento sobre a qualidade dessas imagens oriundas da
arte ou da cultura visual. A conjugação entre a prática artística, a
leitura das imagens e sua contextualização fazem parte de um
combinado que encaminha para possibilidades significativas de
conhecimento em arte integrado à própria vida, questionando-se a
existência de uma imagem, suas causas e consequências, os
procedimentos utilizados para sua elaboração e a possibilidade de
praticá-los.
Assim, na primeira edição do projeto, as leituras de imagens
das obras de Rosana Paulino se potencializaram na própria natureza
do trabalho interdisciplinar. Imagens das obras da artista10 foram
perenes nas aulas de arte pela importância de seu trabalho sobre a
questão racial, principalmente sobre as vivências da mulher negra na
sociedade brasileira. Nas palavras da artista11:
10 A artista fala no uso irônico do bordado, considerando algumas obras mais como costuras
e suturas.
11 Entrevista para o Jornal da Universidade (UFRGS). Disponível em:
https://www.ufrgs.br/jornal/somos-muito-ingenuos-em-relacao-ao-poder-da-imagem-
afirma-rosana-paulino/. Acesso em 09 jan. 2023.
188
Eu tenho certeza de que imagens curam imagens. A gente é
muito ingênua, no Brasil, em relação ao poder da imagem. Talvez
a maioria do que é colocado como preconceito, principalmente
racial, não é colocado em palavras. É colocado em imagensou
na ausência delas. o é ter uma imagem negativa, é não ter
as imagens e referências positivas. Isso vai formando um
imaginário (PAULINO, 2021).
O projeto “Bordando Identidades é uma iniciativa que
permite um novo olhar para as práticas e eventos de letramento12
realizados na escola, uma vez que tem como um dos seus objetivos a
ressignificação do trabalho de leitura que passa a ser vista não como
um fim em si mesma, mas como uma fonte de autoconhecimento,
conscientização e empoderamento.
Nas aulas de Língua Portuguesa buscou-se ampliar o processo
de letramento dos estudantes, entendendo este em sua integralidade,
como um contínuo social no qual estão inseridas as práticas de leitura
e escrita que permeiam a vida dos sujeitos históricos. Nesse intuito,
foram lidos em sala de aula poemas e biografias cujas temáticas
estavam relacionadas a questões de gênero e raça, ampliando por meio
desse conjunto de leituras o repertório sociocultural dos/as alunos/as,
fomentando questionamentos e suscitando possíveis respostas, ao
mesmo tempo em que se reforçava a importância da palavra escrita
nas sociedades letradas.
Lendo e problematizando os relatos do diário de Carolina
Maria de Jesus em sua obra “Quarto de Despejo”, por exemplo, os/as
estudantes perceberam que a leitura e a escrita servem não apenas
como ferramentas para auxiliar na apreensão dos conteúdos
tradicionais curriculares, mas também para a produção dos sentidos
12 Eventos permeados pela língua escrita.
189
do mundo que os cercam enquanto sujeitos, cidadãos e agentes de
transformação social.
A leitura de biografias como a de Conceição Evaristo e de
poemas de Sérgio Vaz também foram essenciais para o
desenvolvimento do projeto, uma vez que nesses textos estavam
representadas questões identitárias e discussões a respeito da luta para
as emancipações cultural, racial e de gênero, tratadas no eixo para a
diversidade do Currículo em Movimento.
É importante ressaltar que, em uma sociedade desigual como
a brasileira, a escola ocupa lugar privilegiado de acesso à cultura
letrada, sendo a maior entre as várias agências de letramento
(KLEIMAN, 1995) das quais os/as estudantes podem participar:
família, grupos de igreja, associações de bairros, entre outras. Para os
jovens que estão do lado menos favorecido dessa sociedade desigual e
perversa, a inserção no ambiente de letramento e o convívio com
leitores experientes se dá, de forma mais contundente, no chão da
escola blica.
Por estar presente em todas as salas de aula, a leitura traz em
si o princípio da interdisciplinaridade sob o qual se pauta o Currículo
em Movimento. Essa característica, tornou-se elemento integrador
entre as três disciplinas co-participantes do Projeto, estimulando o
diálogo e a troca entre as professoras e proporcionando novos olhares
sobre o fazer pedagógico. Isso significa dizer que o trabalho textual
não ficou restrito às aulas de Língua Portuguesa, como costuma
acontecer: lia-se e analisava-se poemas nas aulas de Arte e História,
trazendo distintas percepções dessas leituras que, se restritas às aulas
de Língua Portuguesa, não aconteceriam.
Assim, pensando na escola como lugar privilegiado de usos da
escrita, no espaço da diversidade e do pertencimento, das intersecções
dos saberes dentro e fora das salas de aula, o Projeto “Bordando
190
Identidades abriu espaço para leituras de gêneros textuais variados,
rodas de conversas, trocas entre pares sobre percepções acerca dos
textos, contribuindo para a ampliação do processo de letramento, ao
mesmo tempo que proporcionou reflexões a partir dos lugares e papéis
sociais que esses/as estudantes ocupam na sociedade.
Na disciplina de História, os/as estudantes foram instigados a
desenvolver uma aprendizagem de si, seu passado e a relação com as
biografias lidas. A partir do estudo das multivisões históricas, foi
possível compreender que existem várias histórias, sujeitos e que não
existe uma hierarquia entre elas, mesmo que a história oficial nem
sempre traga a luz para esses sujeitos invisibilizados. O objetivo foi
reconhecer-se como participante da história e portanto, agente de sua
transformação. Para isso, a disciplina investigou histórias de mulheres
próximas dos estudantes - mães, avós, tias, entre outras - que foram
relacionadas ao contexto histórico do Brasil e do DF e as
problemáticas de gênero, raça e classe.
Embora a Base Nacional Comum Curricular traga habilidades
que tratam da história das mulheres e das questões de gênero e o Plano
Nacional do Livro Didático incorpore como critérios de avaliação dos
livros didáticos o combate ao sexismo e ao racismo, ainda uma
aprendizagem histórica da desigualdade de gênero presente nos
currículos e, principalmente, nos livros didáticos, marcada pelo
essencialismo e pelo universalismo, gerando generalizações e
homogeneizações do passado que colocam o gênero como algo a-
histórico, naturalizado, que determina as relações binárias/
hierárquicas entre homens e mulheres como sempre existentes
(OLIVEIRA, 2019).
O perigo dessa leitura essencialista do gênero é que ela não
deixa espaço para indagação do passado e, consequentemente, de
conscientização sobre o presente. Nesse sentido, os livros didáticos são
191
fundamentais, pois são um dos mais eficientes dispositivos da cultura
histórica. Quando desenvolvemos o projeto notamos que havia
poucas referências de mulheres negras nos livros didáticos e que a
forma como eram representadas, via de regra, era de maneira
subalternizada e faltavam representações femininas que escapassem a
subalternidade e/ou que fossem vistas como excepcionais 13
(OLIVEIRA, 2019).
Dessa forma, as biografias foram trabalhadas na perspectiva
da história do possível, ou seja, a partir de um tratamento desses
passados sensíveis, como esses que envolvem as questões de gênero e
raça, de forma a não reificar as imagens de violência contra as
mulheres na história, buscando a alteridade, conferindo visibilidade
aos passados estranhos reveladores de saberes e práticas que escapam
às convenções e normas de sociedades classificadas como patriarcais,
avançadas, modernas e civilizadas (OLIVEIRA, 2019), ou seja,
biografias de mulheres próximas e históricas, tanto do passado como
do presente destacando-as como agentes sociais e sujeitos históricos,
revelando portanto outras representações de mulheres diferentes
daquelas generalizadas, estereotipadas, vitimizadoras, racistas e
sexistas que predominam na cultura histórica escolar.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento do projeto
“Bordando Identidades baseia-se nos princípios de educação integral
que orientam o Currículo em Movimento do Distrito Federal (DF) e
que objetiva uma educação para a prática social, ou seja, para seu uso
13Conforme Oliveira (2019), os livros didáticos seguem a tendência da cultura midiática de
usar os corpos femininos como expressão de sofrimento humano, quando o as narrativas
de excepcionalidade como “mulheres à frente de seu tempo” apenas para reafirmar a força
do patriarcado no destino das mulheres ao longo do tempo, onde elas aparecem em um
determinado momento histórico e desaparecem logo em seguida. Como exemplo podemos
citar Maria Quitéria, que lutou nas guerras de independência do Brasil vestida de homem e
quando não pode se alistar após os fins dos conflitos retirou-se da vida pública, casando-se e
tornando-se mãe.
192
social, ultrapassando a educação bancária, conteudista e acrítica.
Segundo o Currículo em Movimento:
[...] pretende-se assim que as diversas manifestações da arte e da
cultura formem um indivíduo plural, capaz de conhecer a
história construída pela humanidade, o patrimônio do mundo e
de se comunicar de forma criativa e sensível a fim de que se
fortaleça laços de identidade. (SEEDF, 2013).
O Currículo em Movimento é um currículo de educação
integral, que compreende que os sujeitos são formados nas relações
sociais e elas são produzidas ao longo da história. Por isso, ao abordar
as identidades, em especial aquelas ligadas a gênero e raça, o projeto
discutiu como essas identidades são instituídas, legitimadas e
reproduzidas no âmbito da cultura. Sendo o currículo parte dessa
política cultural institucionalizada, é necessário problematizar as
marcas de repetição que os padrões culturais impõem e como tais
marcas afetam nossos discursos e práticas enquanto educadores
(ANDRADE, 2007).
Ao discutirmos com estudantes os sentidos que são atribuídos
às questões de gênero e raça, nossa proposta era que esses
reconhecessem como estão inseridos em um mundo interpretado,
cujas representações sociais não são neutras, mas que, se
compreendidas, podem possibilitar novas formas de atuação e reflexão,
influenciando diretamente na formação da identidade desses sujeitos
para a transformação social, como objetiva a educação integral.
Essa perspectiva de formação das identidades foi adotada pela
centralidade que o tema recebe no “Currículo em Movimento”, que
tem como referência a Pedagogia de Multiletramentos, cuja prática
deve considerar o mundo e a escola pela lente da diversidade e da
193
multiplicidade de linguagens e culturas e também a formação de
cidadãos críticos.
O termo multiletramentos proposto pelo Grupo de Nova
Londres na década de 1960 surgiu em contraposição à intransigência
manifesta com a diversidade. O multiletramento valoriza a
pluralidade cultural e as diversas linguagens, no sentido de ampliar as
práticas que devem ser exercitadas para compreensão de diferentes
contextos culturais.
O conceito de multiletramentos proposto pelo Currículo em
Movimento propõe o empoderamento dos/as estudantes na
perspectiva de uma participação ativa na sociedade do conhecimento,
caracterizada pela circulação de um grande e diversificado volume de
informações, proporcionando um maior grau de autonomia,
criticidade e engajamento social.
Por isso, adotou-se a Pedagogia por Projetos como referência
para implementação das perspectivas descritas acima. Embora não
haja um modelo ideal de Pedagogia por Projetos, nessa abordagem os
indivíduos se envolvem para produzir ou descobrir algo novo,
procurando respostas ou problemas reais. (PRADO, 2005).
O objetivo com a adoção desses referenciais foi reconhecer a
diversidade e a singularidade de cada indivíduo e a autonomia na
prática escolar e social de educadores e estudantes em relação aos
temas dos eixos transversais. A crescente onda conservadora tem
transformado cada vez mais esses temas, em especial as questões de
gênero e raça, em polêmicas, por isso desenvolver uma prática
pedagógica com vistas a mudanças na prática social dos/as estudantes
não efetiva as proposições dos multiletramentos, mas
principalmente promove a emancipação dos indivíduos no sentido de
empoderá-los frente às situações de discriminação que lhes poderão
ser impostas.
194
A ideia do empoderamento foi trazida como uma perspectiva
de ação, na qual os/as estudantes se identificaram e reconheceram sua
própria autoria. O termo empoderamento relaciona-se à Pedagogia
do Oprimido, de Paulo Freire, no entanto, uma outra perspectiva
sobre o termo, advinda do movimento feminista do terceiro mundo,
em especial das educadoras populares que sentiam a necessidade de
discutir a mudança da posição das mulheres na sociedade, para além
da perspectiva tradicional de ideologia de gênero e divisão do trabalho
(SARDENBERG, 2009).
Nessa perspectiva, a noção de empoderamento se atrela a
interesses estratégicos que implicam em transformações das estruturas
de subordinação por meio de mudanças profundas nas leis, direitos
de propriedade e outras instituições que reforçam e reproduzem a
dominação masculina. Sardenberg (2009), citando Batliwala (1994,
p.129), aponta que poder é “controle sobre recursos materiais,
intelectuais e ideologia”. Portanto, empoderamento é o processo de
questionar esse controle de recursos materiais e ideológicos, cujo
objetivo é transformar a natureza em direção das forças que
marginalizam mulheres e outros setores excluídos.
Nesse sentido, empoderamento é, simultaneamente, processo e o
resultado desse processo, sendo que, no caso das mulheres, esse
processo tem como objetivos: (1) questionar a ideologia
patriarcal; (2) transformar as estruturas e instituições que
reforçam e perpetuam a discriminação de gênero as desigualdades
sociais; e (3) criar as condições para que as mulheres pobres
possam ter acesso e controle sobre recursos materiais e
informacionais (SARDENBERG, 2009, p. 6).
Para empoderar, é preciso questionar as estruturas patriarcais,
o que parte de um reconhecimento de uma ideologia que legitima a
195
dominação masculina e que para isso requer um processo de
conscientização. Nesse sentido, os bordados confeccionados pelos/as
estudantes têm duplo sentido, são resultado do processo de
conscientização e mudança na prática social, bem como um processo
de empoderamento, à medida que se dispunham a atuar como agentes
desse processo ao refletirem sobre construções da masculinidade e da
feminilidade que expressavam em seus bordados.
Considerações Finais
Considerar a realidade pela lente da diversidade, da
multiplicidade de linguagens e culturas, favorece o empoderamento,
posto que além do respeito às diferenças, permitem a apropriação de
diversas formas de participação social e de protagonismo,
aumentando as condições para o exercício da cidadania, favorecendo,
assim, a formação integral de estudantes.
Desse modo, o projeto “Bordando Identidades foi uma
forma de disputar o território dentro do currículo, enxergando-o
também como um espaço de negociação e de tradução onde as
desigualdades sociais, econômicas e políticas, as relações e os conflitos
de poder da sociedade não são mantidos ocultos, mas reconhecidos e
confrontados.
A inclusão de temáticas ligadas às minorias invisibilizadas nos
currículos, em especial às questões de gênero e raça, refletem como
esse território em disputa que é o currículo responde às demandas
dos movimentos sociais e políticos, que buscam problematizar e
transformar seu o caráter historicamente homogeneizante e
massificador.
O Currículo em Movimento, ao adotar como objetivo a
educação integral em caráter transversal, demanda a necessidade de se
196
pensar a questão da diversidade de grupos e sujeitos historicamente
excluídos do direito de aprendizagem, e de modo mais geral dos
demais direitos como mulheres, pessoas com deficiências, negros,
povos indígenas, população LGBTQIA+, quilombolas, pessoas do
campo e pobres, entre outros.
O projeto buscou dentro do currículo problematizar essas
narrativas negligenciadas a partir de uma concepção de igualdade
baseada no reconhecimento das diferenças como forma de combater
os preconceitos e discriminações. Como explicita o próprio currículo:
“Não é possível uma educação que se predisponha a ser integral, sem
que se considerem as bandeiras que os movimentos sociais vêm
fazendo dos Direitos Humanos” (SEDF, 2013, p. 59).
Dessa forma, observa-se uma indissociabilidade entre a
concepção de educação integral e educação em e para os direitos
humanos, diversidade e cidadania, que são os eixos transversais que
materializam a concepção de sujeito da educação integral, ou seja, “o
ser multidimensional, com identidade, história, desejos, necessidades,
sonhos, isto é, um ser único, especial e singular, na inteireza de sua
essência e complexidade (S E D F, 2013, p. 10).
O bordado e o projeto proporcionaram, portanto, uma
prática de individuação baseada na aprendizagem compartilhada,
quando estudantes e docentes bordavam juntos, se ajudavam e
ensinavam mutuamente, de experimentação sensível e afetiva, de
valorização das identidades individuais e coletivas especialmente no
contexto da negritude e da história brasileira - e auto aceitação dessas
identidades com liberdade e criatividade para expressar-se da maneira
como desejassem, contribuindo para um sentimento de
empoderamento pessoal.
Os relatos produzidos pelos/as estudantes demonstram como
a educação integral nos permitiu, além de transmitir conhecimentos,
197
transformar por meio do questionamento e transgredir nossa prática
para liberdade, ultrapassando a noção de espaço escolar como
carregados de disciplina e hierarquização (HOOKS, 2013).
Referências
ANDRADE, Andreza de Oliveira. Currículo, Gênero e práticas
culturais: desafios ao ensino de história. In: XXIV Simpósio
Nacional de História (ANPUH). Anais... São Leopoldo. 2007.
BARBOSA, Ana Mae T. B. A imagem no ensino da arte. 6. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2005.
DISTRITO FEDERAL. Currículo em movimento da educação
básica, 2013.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática
da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
KLEIMAN, Ângela B. (Org.) Os significados do letramento: uma
nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas:
Mercado de Letras, 1995.
PRADO, Maria Elisabette Brisola Brito. Pedagogia de projetos:
fundamentos e implicações. In: ALMEIDA, Maria Elizabeth
Bianconcini de; MORAN, Jo Manuel (Org.). Integração das
tecnologias na educação. Brasília: Ministério da
Educação/SEED/TV Escola/Salto para o Futuro, 2005.
OLIVEIRA, Susane R. Violência contra as mulheres: cultura,
subjetivação e ensino de histórias do possível. In: Gênero,
subjetivação e perspectivas feministas. SILVA, Edlene Oliveira;
OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska. (Orgs.).
Brasília, DF: Technopolitik, 2019.
198
SARDENBERG, Cecília M. B. Conceituandoempoderamento na
perspectiva feminista”. In: I Seminário Internacional: Trilhas do
Empoderamento de Mulheres. Anais... Salvador, Bahia,
NEIM/UFBA. 2006.
199
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-609-1.p199-221
RELAÇÕES DE GÊNERO NO ESPAÇO RURAL E O
ACESSO À EDUCAÇÃO: RETRATOS DE DUAS
GERAÇÕES DE MULHERES, FILHAS DE
AGRICULTORES DO PERÍMETRO CURU-
PARAIPABA (CE)1
Virzângela Paula Sandy MENDES2
Aspectos Introdutórios
Quem atravessa o Perímetro Curu-Paraipaba, no Ceará,
especialmente no Setor D2, na Rodovia do Sol Poente, não se admira
ao visualizar crianças indo para a escola situada às margens da estrada,
próxima de suas casas. o pouco se surpreende ao avistar jovens
apostos em pontos estratégicos à espera do ônibus escolar público que
os conduz até a sede do município (rumo à escola de ensino médio)
ou mesmo à capital, para acessarem às universidades públicas e
faculdades privadas.
Embora saibamos que não se trata de uma realidade universal,
é pertinente destacar que o acesso à educação vem evoluindo
consideravelmente nos últimos anos: se observarmos, por exemplo,
em relação à taxa de analfabetismo no Brasil, temos que em 1996 esta
era de 14,7%, enquanto dados recentes revelam uma queda para 6,6%
1 Artigo apresentado no Seminário Internacional Fazendo Gênero, edição de 2021, com
algumas alterações.
2 Professora Adjunta do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE),
Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: virzangela.sandy@uece.br.
200
(IBGE, 2019)3 . Assim, em vinte e dois anos, o Brasil conseguiu
reduzir cerca de 47% seus índices de analfabetismo. Apesar dos
avanços, a Região Nordeste ainda tem uma média maior que a
nacional, ou seja, 13,9%, representando mais que o dobro.
Vale destacar que a taxa de analfabetismo para os homens de
15 anos ou mais de idade foi 6,9% e para as mulheres, 6,3%. Para as
pessoas pretas ou pardas (8,9%), a taxa de analfabetismo foi mais que
o dobro da observada entre as pessoas brancas (3,6%), revelando as
marcas das desigualdades raciais, fruto de nossa herança escravocrata,
que corroboram para que essa população permaneça à margem da
condição de cidadania em termos de acesso à direitos constitucionais
garantidos. Em 2019, cerca de 14,7 % dos/as cearenses negros/as de
15 anos ou mais de idade eram analfabetos, enquanto entre os/as
brancos/as esse percentual ficou em 10,4%. entre as pessoas de 60
anos ou mais, a taxa de analfabetismo entre a população pretas ou
pardas atingiu a marca de 40%, enquanto entre os/as brancos/as esse
percentual ficou em 24,7%.
Outro índice que permite analisar o sistema educacional
brasileiro refere-se ao vel de instrução da população que, segundo
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019),
apesar dos avanços acumulados nos últimos anos, ainda não colocou
o país próximo ao patamar internacional (IBGE, 2019, p. 84).
Por outro lado, um estudo coordenado pelo Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP),
publicado em 2006, identificou que, em relação à população residente
nas áreas urbanas, “os cerca de 32 milhões de pessoas”, os quais
residiam em áreas rurais, estavam “em franca defasagem, tanto em
3 Veja o Relatório “Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da
população brasileira” em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf.
Acesso em: 10 mar. 2022.
201
termos de capital físico (recursos financeiros) quanto de capital
sociocultural (escolaridade e frequência à escola)” (2006, p. 15). Essa
defasagem, apesar dos avanços, permaneceu visível nos dados do
censo demográfico de 2010: enquanto “a taxa de analfabetismo
agregada no Brasil em 2010 foi de 10,2%”, tínhamos “7,54% de
analfabetos no meio urbano e 24,64% no meio rural” (PEREIRA;
CASTRO, 2019. p. 65).
Valendo-se de dados do Atlas do Desenvolvimento Humano
no Brasil (2013), os mesmos autores observaram que, enquanto as
áreas urbanas computavam 59,7% de pessoas acima de 18 anos com
o ensino fundamental completo, no espaço rural, somente 26,5%
detinha tal escolaridade (PEREIRA; CASTRO, 2019). Vale
argumentar que o Ceará apresentou os melhores índices, com 48,8%
de sua população maior de 18 anos com o ensino fundamental
completo. O estado também é destaque quanto a quantidade de anos
de estudo, com 9,82 anos. praticamente um empate no
comparativo urbano e rural, sendo “9,94 anos no urbano e 9,51 no
rural” (PEREIRA; CASTRO, 2019, p. 67). em termos de
indicadores nacionais temos que enquanto “o Brasil apresentou 9,4
anos em 2010, mostrando um incremento de 0,78 entre 2000 e
2010”, se desmembrarmos o urbano do rural, teremos que o primeiro
alcançou 9,79 anos de estudo, enquanto o rural, “em 2010, ainda
apresenta taxa menor que a média nacional de 2000” (idem).
Dados do Censo Escolar de 2017 revelaram que 67,0% das
escolas de educação básica (conforme a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação/LDB, instituída pela Lei 9.394/96 engloba a Educação
Infantil, o Ensino Fundamental obrigatório de nove anos e o Ensino
Médio) estão localizadas em áreas urbanas. Isso não representa
necessariamente um problema se considerarmos que cerca de 84,72%
202
da população brasileira situa-se nas chamadas áreas urbanas (PNAD,
2015).
Por outro lado, o Censo Escolar de 20164 traz dados que
ressaltam as discrepâncias em termos educacionais nos espaços
urbanos e rurais. Quanto à disponibilidade de infraestrutura, em
relação aos anos iniciais do ensino fundamental, temos que “79,1%
dos matriculados de escolas urbanas têm acesso à biblioteca ou sala de
leitura”. A situação dos matriculados da zona rural é diferente, que
“35,4% deles têm acesso a esses espaços na escola em que estudam”
( I N E P, 2016, p. 14).
O acesso ao ensino médio é mais complicado para as
populações rurais, pois 89,8% dessas escolas estão na zona urbana e
10,2% na zona rural ( I N E P, 2017, p. 9). Esse dado pode revelar que
muitos jovens, para dar continuidade aos estudos, precisam se
deslocar de suas casas. O Perímetro Curu-Paraipaba, campo deste
estudo, não possui escola de ensino médio e os jovens precisam se
deslocar para a sede do município, que por sua vez possui duas escolas
estaduais e uma privada nessa modalidade.
Situado esse panorama muito geral da educação, o presente
artigo tem como propósito tecer considerações sobre processos de
inserção, permanência e desistência em ambientes educacionais, a
partir da análise das trajetórias e biografias de duas mulheres, filhas e
netas de agricultores familiares, os velhos colonos residentes no
Perímetro Curu-Paraipabaprojeto implantado pelo Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), na década de 1970.
Trat a-se de um estudo pautado em uma abordagem
metodológica qualitativa, utilizando-se como estratégia a pesquisa
4 As Notas Estatísticas do Censo Escolar de 2017, 2018 e 2019 mudaram a metodologia de
divulgação dos dados e não fazem a comparação de dados entre as áreas urbanas e rurais. Por
isso, para o que nos interessa nesse artigo, usamos os dados de 2016.
203
bibliográfica e a pesquisa etnográfica, fruto da observação direta, num
período compreendido entre os anos de 2015 e 2018. Através de
entrevistas semiestruturadas e conversas informais, fruto de uma
longa imersão em campo.
Por meio das narrativas autobiográficas de duas mulheres de
gerações diferentes (Nira e Bruna), o leitor caminha por suas
trajetórias de vida, marcadas por idas e vindas, como bem salientou
Bourdieu (2005, p. 81), compreendida enquanto alocações e […]
deslocamentos no espaço social”, são testemunhos da experiência
vivida (BERTAUX, 2010, p. 65).
Através das narrativas autobiográficas, procurei apreender
como seus projetos de vida foram construídos e efetivados (ou não)
ao longo de suas trajetórias. São trajetórias circunscritas em um dado
contexto em que se deslocam e sistematizam suas pretensões subjetivas,
num cenário de base tradicional que, em tese, seria um espaço de
reprodução da agricultura familiar.
Como lembrou Luciane De Conti (2012, p. 148), “as
narrativas de vida se constituem antes de tudo em um meio para
compreender a vida e a nós mesmos porque permitem estabelecer um
elo entre o passado, o presente e o futuro [...]”, potencializando “a
elaboração das memórias de si, apoiadas naquilo que nos contaram e
falaram sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre nossa história
pessoal e/ou coletiva (idem).
Um Pouco do Cenário da Pesquisa: O Perímetro Curu-Paraipaba
Inserido numa estratégia de modernização agrícola do
Governo Militar, o objetivo do Estado autocrático era garantir
matéria-prima e mão de obra para a agroindústria da cana-de-açúcar
(Agrovale), cabendo a esta autarquia implantar a infraestrutura de
204
irrigação e selecionar os chamados colonos e suas famílias para
ocupar aquele território (BURSZTYN, 2008; CARVALHO, 1987;
DINIZ, 2002; MENDES, 2018).
Os relatos dos colonos que vivenciaram aquela época
salientaram a intensidade com que se desenvolviam o trabalho
agrícola sob o controle dos técnicos do DNOCS, os quais exigiam
uma dinâmica familiar que determinava desde a definição das culturas
a serem plantadas, como também às formas de cultivo, manejo e
tratos culturais, até a comercialização, que era viabilizada através de
uma cooperativa (criada e gerenciada por técnicos da autarquia
(MENDES, 2011; 2018).
Herdeiros de uma tradição camponesa, as famílias de colonos
têm em sua estrutura a demarcação tradicional dos pais de gênero.
Através dos seus relatos (MENDES, 2018), nota-se que o trabalho
das mulheres era caracterizado como ajuda” 5 , especialmente em
relação ao trabalho no lote. Sob o comando do colono, todos os
membros da família (filhos, filhas e esposa) participavam
intensamente deste trabalho (MENDES, 2011; 2018). É possível
perceber, portanto, que no espaço rural um cruzamento entre as
atividades produtivas, tidas como masculinas e as reprodutivas,
classificadas como femininas (FISCHER, 2006).
São relações de gênero moldadas pelo modelo patriarcal,
respaldado pelo DNOCS em suas dinâmicas cotidianas na gestão do
Perímetro (MENDES, 2018), conferindo lugares e atribuições
5 Autores, a exemplo de Magalhães (2005), destacam em seus estudos uma divisão de tarefas
na agricultura familiar, cabendo ao homem as atividades voltadas para a geração de renda e
para as mulheres as tarefas reprodutivas e direcionadas ao autoconsumo. Assim, quando um
dos dois atua fora de seu espaço de dominação, sua participação na execução da tarefa é tida
como uma ajuda. Quando as mulheres são protagonistas nas atividades de geração de renda
(no caso do PAA e PNAE), o trabalho do homem é considerado uma ajuda, como veremos
mais adiante.
205
distintas a homens (colonos) e mulheres (esposas de colonos) e sua
prole. Saffioti (2011) é uma das estudiosas que defendem a
importância do conceito de patriarcado para entender as relações de
gênero na sociedade brasileira, marcadas, por sua vez, pela
subordinação da mulher ao poder de mando masculino
(pai/marido/chefe da família). Esta determinação de espaços e
condutas foi se modificando (ainda que não totalmente) ao longo do
final dos anos 1980, sobretudo a partir da abertura democrática,
embora ainda mantenha suas características vivas nas relações entre
homens e mulheres no espaço rural.
“Ou a Gente Estudava, ou a Gente Trabalhava”: Narrativas e
Trajetórias de Nira
Minhas conversas com Nira se deram nos vários momentos
em que estive no Perímetro. Ela, com seus 36 anos, é neta de colono,
mas foi “criada como filha”, pois desde pequena conviveu na casa dos
avós. Sua mãe casou cedo e veio para o Projeto (morar com os pais),
acompanhada do marido, de Nira e de seu irmão. Ela relatou que no
início “o pessoal do DNOCS não queria aceitar, mas depois deu certo.
[...] O DNOCS era muito rígido e não deixava outra família vir morar
com uma família de colono. que depois a mãe veio. o sei como
o meu avô resolveu pelo DNOCS!”.
Íamos conversando (enquanto ela fazia o almoço) sobre os
jovens do seu tempo: “O DNOCS escolhia quem tinha muito filho
pra ajudar na produção. Aqui os colonos tinha de oito a dez filhos”,
disse-me sobre os critérios de seleção dos colonos e da participação
dos filhos no trabalho agrícola naquela época. Ela me disse que
quando os seus avós chegaram ao Projeto ela ainda “nem tinha
nascido”. Seus avós chegaram em 1977 e ela nasceu em 1980. Ela
206
informou que acompanhou o avô desde o começo e lembra “de muita
coisa”. Eu pergunto: Você se lembra com quantos anos começou a
andar com seu avô no lote? Ela disse: “lembro. Olha, quando a gente
era criança o meu pai [seu avô] tinha esse costume, ele acordava muito
cedo pra tirar leite. E a gente ia piar6 as vacas pra ele”. Nira, com seus
cinco anos, acompanhava o avô na ordenha do gado da família.
Durante sua narrativa, Nira contou que aos oito anos, “já grande”,
passou a acompanhar o pai/avô nas atividades do lote: “Ele trazia a
gente pra apanhar feijão, mudar as redes de cano dentro da cana”.
Analisando atentamente a narrativa, é possível observar que
ela tem uma visão diferenciada em relação ao que se denomina
legalmente como trabalho infantil. Ou seja, na mesma perspectiva
trazida pelos relatos de outros colonos (MENDES, 2018), uma pessoa
de oito anos era considerada “grande e, portanto, assim como os
demais membros da família, deveriam se envolver nas tarefas do lote.
Os estudos de Moura (1978, p. 21)7 apontam que os filhos de
agricultores, “a partir da faixa de idade de 8 anos, 9 anos”,
participam do trabalho na roça”. Desse mesmo modo, no Perímetro,
“todo mundo ajudava”, inclusive as crianças. Perguntei como era a
divisão das tarefas em sua casa, que havia muitos filhos e ainda
alguns netos. Ela explicou:
assim, no começo a gente tinha o roçado perto do Seu
Romildo e tinha o lote, os meninos iam pro lote plantar capim,
tinha cana também, o pai plantava também macaxeira, tinha
uma parte que era mamão, teve uma parte num tempo que era
tomate. Era assim, o meu tio era o que cuidava mais do gado.
Cortar capim, forragem, essas coisas eram com ele. E os outros
6 Ato de amarrar o gado para facilitar a ordenha.
7 Resultado de uma pesquisa de dissertação realizada com famílias de “sitiantes”, pequenos
agricultores, moradores de um bairro rural de Minas Gerais, chamado de São João da Cristina.
207
vinham pro lote capinar. Quando era pra espalhar a cana,
vinha todo mundo, pra plantar era todos. Tinha muita coisa
pesada que a mulher num fazia. Por exemplo, quando o pai ia
plantar o feijão nós [mulheres] num ia cavar. A gente ia plantar.
Eles, os meninos, iam cavando na enxada e nós ia botando os três
carocinhos de feijão na cova, milho era do mesmo jeito. Quando
a gente ia plantar a roça eles iam cavando e o pai ia ensinando
nós como plantar a mandioca, com o talozinho pra cima. A e
a mãe ficavam em casa e iam fazer o almoço pra todo mundo.
Tinha galinha, elas cuidavam das galinhas. Elas iam botar água
pro gado. [...].
A interlocutora fala sobre como era a rotina de trabalho na
agricultura, onde todos exerciam papéis necessários ao funciona-
mento do sistema produtivo familiar: havia tarefas destinadas aos
meninos e às meninas e havia atividades em que todos os membros se
envolviam, como é o caso de espalhar” e plantar a cana”. As
mulheres, além de fazerem os trabalhos de casa”, quando iam para o
lote, assim como as crianças, desenvolviam atividades agrícolas, ainda
que consideradas mais leves. O patriarca era o coordenador dos
serviços.
Desse modo, sob a coordenação masculina, na agricultura
tradicional, praticada no início do Perímetro, cabia ao grupo de
mulheres o trabalho de processar os alimentos advindos do lote, bem
como o preparo dos alimentos e as tarefas ditas domésticas (lavar,
passar, limpar a casa etc.). A casa é o espaço feminino, sendo que tanto
o trabalho das mulheres como o das crianças era considerado como
uma ajuda e, consequentemente, menos valorizado em relação ao
trabalho masculino, representando a divisão de papéis no meio rural,
própria das relações de gênero, conforme ressaltado. Durante nossas
conversas, perguntei-lhe como era o acesso à educação no Perímetro:
208
A escola do Projeto era até a série. Depois foram ampliando
até a oitava série. O DNOCS era responsável pelas escolas e a
gente usava uma farda que tinha como mbolo um trator, era
uma saia verde lodo e uma blusa creme de tecido. Os homens
usavam calça da mesma cor e a blusa da mesma cor também.
Todo dia a gente cantava o hino do Brasil, era obrigatório. o
me lembro quando foi que passaram as escolas pro município,
foi entre oitenta e quatro e oitenta e cinco. Tinha os desfile de
sete de setembro, era muito animado, tinha a cavalaria, tinha os
tratores, as máquinas, os funcionários do DNOCS participavam,
tinha uma pipa de puxar água, tinha as motos, tinha um
caminhão do leite, tinha o ônibus também. Era como se fosse
um grande cortejo e passava pelas ruas do projeto. Os alunos
desfilavam mesmo. Depois se acabou e ficou na sede mesmo.
Percebo na narrativa que a escola repassava os valores daquele
tempo, ou seja, a valorização da agricultura (“a gente usava uma farda
que tinha como símbolo um trator, era uma saia verde lodo e uma
blusa creme de tecido”), era uma escola para filhos de agricultores.
Também reflete os costumes do tempo da ditadura militar, o espírito
cívico, simbolizado pelo slogan ordem e progresso e materializado
no desfile de 7 de setembro”. A Cooperativa dos colonos e o
DNOCS aproveitavam para apresentar em cortejo todos os
“benefíciosdirecionados aos irrigantes.
Segundo Nira, esse era um momento apreciado pelas famílias
locais, que participavam ativamente do evento. A narradora mantinha
uma relação de proximidade com o pai/avô, que a levava para os
trabalhos agrícolas e, aproveitava essa interação para incentivá-la nos
estudos: “[...] Ele dizia que a gente tem que aprender as coisas, porque
a gente nunca sabe o dia de amanhã. […] Ele incentivava os estudos,
ele comprava caderno, essas coisas. Ele dizia que não podia fazer um
doutor, mas o que ele pudesse fazer ele fazia”.
209
Assim, observa-se a relação de pai e filha como mestre e
aprendiz”, o educador que ensina, através do trabalho, valores éticos
e morais que devem ser seguidos por toda a vida. O trabalho aqui
assume o caráter de aprendizagem. Neste discurso, o trabalho das
crianças se distancia do trabalho classificado como penoso e
degradante, atualmente alvo das políticas públicas e da legislação
(Estatuto da Criança e do Adolescente). A entrevistada fala ainda que
a continuidade dos estudos era algo dificultoso para os filhos de
colonos, o que justificaria a desesperança do avô em “formar um filho
doutor”.
A este respeito, Nira destaca:
Quem queria continuar os estudos tinha que conseguir uma vaga
na sede. tinha a Escola Altino Laranjeira, que é do município,
era pra quem tinha mais de 18 anos e o Flávio Grangeiro, que
era estadual, mas funcionava durante o dia. O pai foi na
Prefeitura e o prefeito não liberou a vaga pra todo mundo estudar
na CENEC ou CIEP (que tinha vaga à noite), mas era pequenos,
tinha pouca vaga. Eram escolas particulares e tinha convênio com
a prefeitura. Mas era pros escolhidos, porque nem todo colono
podia pagar. Era priorizado àqueles mais inteligentes, que tinham
notas boas e tinha que conseguir a bolsa. Por exemplo, uma casa
que tinha 10 filhos, às vezes um conseguia. Às vezes o pessoal
do DNOCS, que tinha influência, conseguia uma bolsa. Depois
acabou a bolsa e os colonos tiveram que pagar. Às vezes o pai
atrasava e a minha tia não podia fazer prova. Era ela e um monte
de gente. em casa foram quatro que conseguiram estudar e
hoje dois o professores, uma trabalha na secretaria da escola e
outro trabalha como segurança na Ypióca.
Nessa época (anos 1980), portanto, o acesso à escola não era
algo simples nem era considerado um direito, como aponta o texto
constitucional em vigor. Narrativas como esta demonstram o quanto
210
era restrita a continuidade dos estudos, havendo um processo seletivo
no âmbito da família, pois eles não tinham condições financeiras de
arcar com os custos das mensalidades escolares. Além disso, eles
precisavam estudar à noite, porque trabalhavam durante o dia:
Eu não estudei mais porque foi a seguinte maneira: ou a gente
trabalhava, ou estudava, porque as coisas era difícil. A gente tinha
que ir pra Paraipaba, a gente ia de caminhão, era muito cansativo,
a gente chegava tarde e no outro dia a gente tinha que ajudar.
Quem estudou mais foi a Silvana. Eu tinha pena dela, porque ela
não era muito ligeira pra fazer as coisas em casa, lavar a roupa,
essas coisas.
Aqui temos novamente a dicotomia escola x trabalho e suas
dificuldades de conciliação. Por outro lado, havia uma espécie de
separação de papéis a partir das habilidades dos filhos e filhas:
aqueles/as mais aptos para o trabalho no âmbito familiar (agricultura
e tarefas domésticas, no caso das mulheres) ficavam em casa e se
despediam da escola, enquanto outros/as eram escolhidos para dar
continuidade aos estudos. À medida que eles iam crescendo, também
crescia a sua responsabilidade perante o cleo familiar e, também, a
“vontade de ter o seu próprio dinheiro, pois os pais não pagavam
pelos serviços prestados no lote.
No caso da narradora, a mesma se casou aos 18 anos de idade
e foi incentivada pelo esposo a encerrar os estudos: “ele tinha ciúmes,
dizia que mulher casada não estudava, tinha que cuidar da casa”. A
sua inexperiência e a internalização dos valores morais da época a
fizeram concordar com as ponderações do esposo e ela parou seus
estudos no oitavo ano do ensino fundamental. Estudar à noite, na
sede do município, sem transporte garantido, era muito desafiador
para uma jovem recém-casada. O esposo, por sua vez, exerce o seu
211
poder, marca das relações de gênero nos espaços rurais tradicionais. A
esse respeito, Scott (1991, p.14) salienta que “o gênero é um elemento
constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos, o gênero é um primeiro modo de dar
significado às relações de poder”.
Nira carrega a essência de seu nculo com a agricultura
familiar. Ser agricultora, para ela, está relacionado a um modo de vida,
de ser e de estar no mundo, de se relacionar com a natureza, que a
socorre nos momentos em que ela não tem a moeda para efetuar as
suas trocas. Hoje se considera uma mulher mais empoderada, embora
não tenha terminado os estudos”. Junto com outras mulheres formou
a Associação das Mulheres Agricultoras Familiares de Paraipaba, uma
entidade que vem comercializando seus produtos através do Programa
Nacional de Alimentação Escolar PNAE e com isso, atingiram certa
autonomia em relação aos maridos, especialmente porque passaram a
também encarregar-se das funções provedoras (MENDES;
MARINHO; PAULINO, 2019), embora isto não signifique que elas
tenham superado totalmente essas relações de dominação masculina.
“Eu Pretendo Seguir na Área de Gestão Educacional, Fazer
Mestrado e Doutorado”: Narrativas e Trajetórias de Bruna
Meu primeiro contato com Bruna aconteceu em 29 de julho
de 2016. Ela contava 20 anos e fazia faculdade de pedagogia, em
Fortaleza, na Universidade Federal do Ceará - UFC. Ela morava na
residência universitária desde março daquele ano. Conversei com ela
na cozinha de Nira. Esse ambiente informal e familiar propiciou uma
boa interação, deixando-a à vontade para expor suas percepções. Pedi
de início que ela falasse um pouco sobre os jovens do Perímetro.
212
Ela, por sua vez, expôs sua preocupação com os meninos que
não querem estudar e acabam vislumbrando no coco a única
possibilidade de ganhar o sustento. Para ela, se os jovens não
procurarem refletir sobre o próprio existir, sobre o futuro, então um
dia aquilo não vai mais ser próprio pra ele. Ele vai ter vontade de
crescer, de ser algo melhor, que ele não buscou enquanto estava na
juventude”. A juventude, para Bruna, é uma etapa em que se deve
aproveitar para estudar, para construir as bases de um futuro. Quem
não aproveitar essa etapa, poderá se arrepender no futuro.
Segue sua narrativa:
Bruna: Eu me lembro quando a minha dizia: “Bruna, estude,
sempre continue a estudar, porque vai ter um dia que você vai
querer crescer, e se vo não estudar vai chegar um dia na sua
velhice que vo vai querer e não vai poder mais. Então eu penso
muito nisso. Eu vejo que tem muitos jovens que ficam nisso,
no coco, e não pensam numa forma de sair disso. […] Mas eu
vejo que a maioria que terminam o segundo grau querem
continuar os estudos.
Eu: Aqui tem muita gente que faz faculdade?
Bruna: Pelo menos os que terminaram comigo estão fazendo
uma faculdade, ou um curso, ou trabalhando, ou se preparado
pra entrar na faculdade. Mas tem uns que estão trabalhando nos
restaurantes, porque aqui é um local turístico, essas coisas. a
pessoa se contenta em lavar prato. Eu acho pra mim que isso é
um trabalho digno. Mas por que não pegar esse trabalho digno e
estudar também?
Bruna, desde cedo, foi incentivada a estudar e a família
ofereceu as condições necessárias para que ela frequentasse um curso
superior, embora sejam pessoas simples, com pouca instrução formal:
“Principalmente minha mãe, sempre me incentivou. Ela sempre dizia
‘busque, estude, porque se você quiser ter algo melhor pra sua vida
213
você vai ter que estudar e outra coisa eu não vou poder lhe oferecer’”.
Ela explicou: “a mãe nunca teve condições, aliás a minha família. A
minha mãe é agricultora, meu pai é agricultor. Minha família
sobrevive da agricultura. Somos quatro filhos no total, contando
comigo, tenho ts irmãos”.
Bruna sempre foi uma menina estudiosa e dedicada (como
enfatizou Nira), sendo que o resultado de seus esforços foi passar em
uma universidade pública, servindo-se da política de cotas. Sem essa
política pública com vistas a democratizar o acesso ao ensino superior,
mediante aprovação da Lei 12.711/20128, talvez Bruna e tantos
outros jovens como ela, teriam maiores dificuldades em ascender ao
título universitário.
Bruna, diferentemente de outros jovens do Perímetro e de
outros centros urbanos e cidades rurais, viveu o tempo de moratória
juvenil. O acesso às políticas públicas inclusivas possibilitou vivenciar
um período que, segundo Margulis e Urresti (2008), é mais
vivenciado por jovens pertencentes às classes mais abastadas da
sociedade e não pelos das classes populares. Ou seja, “los jóvenes de
sectores medios y altos tienen, generalmente, oportunidad de estudiar,
de postergar su ingreso a las responsabilidades de la vida adulta: se
casan y tienen hijos más tardíamente, gozan de un período de menor
exigencia [...]” (2008, p. 2).
8 A Lei 12.711/2012 garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas
universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia “a alunos
oriundos integralmente do ensino dio público, em cursos regulares ou da educação de
jovens e adultos”. Segundo o Portal do MEC: “As vagas reservadas às cotas (50% do total de
vagas da instituição) serão subdivididas metade para estudantes de escolas públicas com
renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e metade para
estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio. Em
ambos os casos, também se levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma
de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”.
214
Esse período de adiamento das responsabilidades inerentes ao
mundo dos adultos (trabalhar, sustentar-se e casar-se, por exemplo)
trata-se de uma realidade vivenciada atualmente por alguns jovens das
classes populares e especificamente por jovens do interior que vão
cursar uma universidade. o se trata aqui de generalizar, mas de
expor algumas mudanças (ainda que lentas e limitadas) vivenciadas
por alguns grupos de jovens. Por isso, como nos lembrou Novaes
(2006), não é possível homogeneizar as vivências juvenis, ou seja,
qualquer que seja a faixa etária estabelecida, jovens com idades iguais
vivem juventudes desiguais (p. 105).
Voltando à conversa com Bruna, perguntei a ela sobre o que
os jovens do Perímetro gostam de fazer e ela me respondeu que é
muito tímida: “Às vezes eu me sinto uma velha [risos], porque eu
gosto mais de ficar em casa, de ler, estudar”. Ela não se sente como os
demais jovens: agora o que eu reparo que os jovens gostam mais de
fazer aqui é conversar, ir pra praça, pra festa, badalar, ir pra quadra,
mas é coisas que não estou acostumada a fazer”. Ela se define como
uma pessoa de poucos amigos: “aqui são mais as pessoas que
estudaram comigo. Por exemplo, o Leandro, a Leane, essas pessoas,
mas os demais, não. Eu sou muito simpática, falo com todos, mas
amigo mesmo, assim, são poucos”.
Bruna contou que mora com os pais e os irmãos menores: “o
do meio de 17 anos, estuda, está terminando o Ensino Médio. A
menina de 14 anos está terminando o Ensino Fundamental. E a mais
nova, de 3 anos, começou a estudar este ano”. Nenhum dos irmãos e
nem ela própria ajudou os pais na agricultura. Sua mãe também faz
parte da Associação das Mulheres Agricultoras Familiares de
Paraipaba, vende bolo e tapioca, mas é o pai quem responde pelas
despesas da casa, segundo ela.
215
Bruna não teve vivências na agricultura como muitos jovens
do Perímetro, diferentemente da geração de Nira, uma geração de
jovens que conciliava os estudos com a lida no lote. Esse modelo
socializador vem se alterando ao longo das novas gerações (compostas
por netos e bisnetos de colonos), aparentemente se configurando
como ruptura com o modelo tradicional de participação nas
atividades agrícolas do tipo familiar (MENDES, 2018).
Representando essa nova geração, Bruna carregou as
expectativas da família para a sua ascensão profissional vinculada aos
estudos. Os pais, mesmo desenvolvendo atividades relacionadas à
agricultura, desejam outro futuro para seus descendentes e, nesse
sentido, se mobilizavam para garantir as condições necessárias a esse
projeto de vida.
Retomando a conversa com Bruna, perguntei sobre suas
perspectivas em relação ao futuro e ela destacou que primeiramente
eu espero terminar o meu curso. E sim eu quero terminar o meu curso
de pedagogia”. Ela enfatizou o curso de pedagogia, porque cogitou,
no início, mudar de curso, mas foi se identificando com o mesmo à
medida que foi avançando nos semestres na universidade. Em suas
palavras: “eu sempre quis fazer Direito. Sempre tive isso em mente,
mas acabei não passando em Direito. Então eu pensei que se é pra eu
ingressar em alguma área Eu nunca quis parar, porque se eu parasse,
eu não saberia se continuaria depois”. Desse modo, como passou em
pedagogia, antes de tentar mudar de curso, passou “a gostar da
pedagogia”.
A narradora vinha trilhando os passos para alcançar seus
objetivos: fazia parte de um grupo de pesquisa, era bolsista e fazia um
curso de inglês. Ela destacou que a faculdade exigia muita leitura e
por isso mesmo vinha se dedicando aos estudos, pois tinha
consciência de que haveria uma ampla concorrência a ser ultrapassada,
216
a fim de atingir seus objetivos. Bruna relatou que sua imersão no meio
universitário contribuiu para alargar suas expectativas sobre o mundo
e sobre seus projetos futuros.
Freitas (2015, p. 190), ao discutir sobre trajetórias de jovens
universitários de uma cidade do interior do Ceará destacou o quanto
esta inserção representou uma ação significativa na (re) elaboração de
visões de mundo e projetos de vida”, representando “uma ampliação
da visão de mundo que lhes permite atualmente repensar a relação
com o seu meio de origem (p. 200). Nesse sentido, Bruna considera
algumas distinções entre os jovens com quem ela convive em Fortaleza
e os jovens do Perímetro:
Bruna: Com certeza, porque primeiramente os daqui são mais
relaxados, são mais calmos. Acho que, como as próprias pessoas
de Fortaleza chamam, eles chamam de rurais, eles chamam a
gente de rurais [risos]. As pessoas de Fortaleza, geralmente, são
mais abertas. Eles falam de assuntos, assim, que do nada eles
voltam para aquele tema com facilidade e falam muitos palavrões,
principalmente [risos]. São mais abertos, mais comunicativos,
mais festivos. E os daqui a gente que são pessoas mais dadas,
pessoas mais amigas mesmo. E as pessoas da capital são pessoas
que falam de temas, assim, conversam com todo mundo. o
mais abertos.
Eu: Que temas?
Bruna: Tema s desde raça, religião, cor, sexo, gênero. Essas coisas
que as pessoas da capital falam com abertura muito mais grande.
E aqui não. As pessoas evitam falar desses assuntos. Digamos que
as pessoas da capital têm a mente mais aberta. Tanto é que
quando eu passei a morar em Fortaleza mesmo nesse semestre eu,
tipo, eu conversava com os jovens lá, mas agora meu contato é
maior. Eu saio à noite, mas eu tenho muito medo da violência.
E eu vejo que as pessoas conversam assim, com uma liberdade de
expressão! É uma diversidade! Então, realmente é uma
universidade! E você começa a conhecer.
217
A fala da jovem sintetiza como a entrada na universidade pode
ampliar as perspectivas de vida de uma jovem que nasceu e mora em
um determinado espaço rural. Fazer parte do mundo universitário foi
um divisor de águas na vida de Bruna, oferecendo-lhe novas
oportunidades de se colocar no mundo e de interagir com outras
pessoas diversas. Viver da agricultura não fazia parte dos planos dessa
jovem. A valorização dos estudos (por parte dela, principalmente, e
da família, que a incentivou), somada às oportunidades trazidas pelas
políticas inclusivas, viabilizou seu acesso a um novo mundo.
A trajetória de Bruna representa experiências juvenis marcadas
pelas incertezas e instabilidades próprias do tempo presente. Seus
percursos e itinerário demonstram “que é próprio da experiência
social humana encontrar-se em permanente fluxo (p. 241). Será que
Bruna continuará seus estudos e se dedicará ao mestrado? Será ela uma
gestora educacional? Ou até mesmo uma professora? Embora
saibamos que jovens como ela vão se deslocando em um determinado
contexto, que por vezes extrapola suas individualidades, seus desejos
e possibilidades de escolha, o acesso às políticas públicas de educação
é, sem dúvida, uma marca dessa nova geração, que pode sonhar ter o
vel superior e, quem sabe, ascender socialmente. A trajetória,
construída e mobilizada pela busca de realização de seus projetos,
portanto, é a objetivação resultante da interação entre os agentes e os
campos de possibilidades (VELHO, 2013).
Vale ressaltar que Bruna faz parte de uma geração de jovens
de escola blica que são incentivados e preparados por seus
professores/as para tirar uma boa pontuação no Exame Nacional do
Ensino dio ENEM. Suas expectativas de ascender socialmente
via escolarização se inserem nesse contexto, consolidadas sobretudo
durante o Governo Lula, quando testemunhamos a
218
expansão/democratização/interiorização do Ensino dio e do
Ensino Superior no Brasil.
A respeito das políticas blicas de educação durante o
Governo Lula, é salutar suas características paradoxais, pois ao mesmo
tempo que financiou a iniciativa privada, também foi o responsável
pela ampliação do ensino superior público. Nesses termos, merece
destaque a criação, em 2005, da Universidade Aberta do Brasil (UAB),
que tinha o propósito de ampliar “e interiorizar a oferta de cursos e
programas de educação superior no País” (CARVALHO, 2014, p.
217), registrando um aumento de 73% na oferta de cursos superiores.
Merece destaque, como mencionado, a proposta de
implantação das políticas afirmativas, as quais abrangiam o acesso às
universidades por parte de estudantes pretos, pobres e egressos da
escola blica, que beneficiou estudantes como Bruna. Embora a
efetivação dessa política tenha ocorrido a partir de 2012, com a lei
12.711, quando ficou estabelecido que até agosto de 2016 todas as
instituições de ensino superior destinariam metade de suas vagas para
estudantes com o perfil citado, o aporte de recursos públicos na
iniciativa privada, durante este governo, foi essencial para melhorar os
índices de taxa de escolaridade líquida, amenizando as distâncias entre
pretos/as e brancos/as (CARVALHO, 2014).
Considerações Finais
Uma análise das trajetórias das mulheres entrevistadas, as
quais representam duas gerações distintas, possibilitou apreender
como a intervenção do Estado, notadamente em relação às políticas
públicas de educação, interferiu nos planos, projetos e experiências
das mesmas. Nira representa a primeira geração de jovens do
Perímetro, neta de colonos originalmente assentados pelo DNOCS.
219
Essa primeira geração carrega em sua trajetória as
características próprias de uma família de tradição camponesa, os
quais foram socializados através do trabalho na roça. A ausência ou o
difícil acesso à escola talvez tenha fortalecido esse modelo de conduta
dos pais. Dar continuidade à profissão de agricultor era, talvez, o
futuro provável ou o mais possível diante de tantas limitações. Desse
modo, havia um vínculo com a terra desde a infância como uma
estratégia de sobrevivência coletiva da família. O trabalho, desse
modo, tem um valor moral, disciplinador.
Bruna, por outro lado, diferente de gerações passadas, quando
estudar era considerado “um luxo”, um privilégio de poucos, teve
acesso ao ensino superior, viabilizado pela política de cotas, que pre
condições diferenciadas, no caso, para estudantes advindos de escolas
da rede pública. Estudar, cursar uma universidade desponta como
uma possibilidade de ascensão social ou mesmo mobilidade em
termos de renda, o que representa uma possibilidade, um alento para
quem mora no interior e que sonha com um futuro longe da
agricultura.
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https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-609-1.p223-245
A VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA E SUA
ARTICULAÇÃO COM AS NORMAS
REGULATÓRIAS DE GÊNERO
Keith Daiani da Silva BRAGA1
Arilda Inês Miranda RIBEIRO2
Introdão
Este capítulo tem o objetivo de debater o conceito de
homofobia, sua origem, usos e articulações. Acreditamos que tal
discussão teórica seja importante no atual momento em que vivemos
no Brasil, de recrudescimento dos discursos homofóbicos, da
desigualdade de gênero e do pensamento ultraconservador no campo
da educação. O trabalho é fruto das elaborações teóricas
empreendidas na pesquisa de mestrado “Homofobia na escola: análise
do Livro de Ocorrência Escolar (BRAGA, 2014)3, financiada pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP),
1 Professora do Instituto Federal de Educação de Goiás (IFG). Goiás, Brasil. E-mail:
keith.braga@ifg.edu.br.
2 Professora Titular aposentada do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e
Tecnologia (FTC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Câmpus de Presidente Prudente, São Paulo, Brasil. E-mail: arildainesribeiro@gmail.com.
3 Trata-se de amplo estudo que buscou analisar a homofobia presente em registros escolares
de escolas públicas da cidade Presidente Prudente-SP, em que a metodologia empregada foi
a análise documental e o referencial teórico composto por autores e autoras ligadas a
perspectiva Pós-Estruturalista e da Teoria Queer. O presente capítulo é um recorte desse
estudo.
224
no Programa de s-Graduação em Educação da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Unesp.
Utilizaremos neste texto o termo homofobia para falar de uma
forma genérica. Partimos desse posicionamento, por um lado por essa
palavra ter ainda bastante apelo em diversos setores não acadêmicos,
por outro e em decorrência disso, devido nosso interesse em trabalhar
o seu conceito no artigo. Todavia, pontuamos que não cremos que
lesbofobia e transfobia, por exemplo, estejam de forma satisfatória
contempladas no conceito de homofobia.
Em nosso ponto de vista, é importantíssimo ao estudar
sujeitos dissidentes da heterossexualidade lançarmos mão de
conceituações que abordem as especificidades destes sujeitos. Isso
porque acreditamos que ao falar de modo geral, não evidenciamos de
fato as relações particulares de violência e discriminação sofrida por:
lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e outras identidades
dissidentes.
O capítulo está organizado em duas partes: incialmente em
“O conceito de homofobia falaremos sobre a origem da palavra e os
diferentes sentidos e limitações que ela carrega, na segunda parte
abordamos de que maneira a homofobia se articula com as normas
regulatórias de gênero no sentido de atuar como guardiã da
superioridade heterossexual e sua forma obrigatória de ajustamento
da sexualidade e gênero dos sujeitos. Encerramos nas considerações
finais, seguidas das referências bibliográficas.
O Conceito de Homofobia
A homofobia se desenvolve em todas as esferas sociais e
compromete as vivências não somente de sujeitos considerados
não heterossexuais. As discussões acerca do tema tornam-se cada vez
225
mais comuns, e o termo habitualmente evocado pela mídia,
profissionais da saúde, educação entre outros, é associado, geralmente,
ao preconceito e discriminação alimentados pelo medo, repulsa e
rejeição às homossexualidades (SMIGAY, 2002).
Quando o uso da ideia de preconceito, podemos associá-lo
ao campo da Psicologia, preconceito é comumente compreendido
como: conjunto de percepções mentais negativas associadas a
determinados grupos ou sujeitos que são de alguma forma,
socialmente desvalorizados.
quando falamos em discriminação, evocado com maior
frequência pela área jurídica, é entendido como a materialização do
preconceito e se expressa por meio de ações despóticas que resultam
em cerceamento de direitos, exposição a situações constrangedoras,
tratamentos pejorativos e desiguais a esses grupos ou sujeitos, histórica
e socialmente inferiorizados (RIOS, 2009).
Ao destacarmos o fragmento: conjunto de percepções
mentais negativas da definição de preconceito, rapidamente notamos
a semelhança que essa concepção possui com a noção de homofobia
mais recorrente nos debates políticos e na mídia. O que revela uma
abordagem em comum, ou seja, o viés psicológico. Isso se explica pelo
fato de que, desde sua gênese, o termo homofobia4 foi direcionado
para a compreensão da intolerância contra sujeitos considerados não
heterossexuais apenas pelo caráter psicológico e particular, o que ainda
é marcante nos dias atuais.
4 Rios (2009) indica que referências ao termo Homofobia anteriores à década de 1920
(conforme registro do Oxford English Dictionary). O termo “homoerotophobia”, aparece
para alguns como precursor, donde se derivou “homofobia (utilizado por Wainwright
Churchill, no livro Homosexual Behavior among Males: a cross-cultural and cross-species
invetigation, de 1967). Borrillo (2010) indica que as primeiras preocupações em conceituar
Homofobia se deram na década de 1970, por K. T. Smith em um artigo publicado em 1971
e pelo psicólogo G. Weinberg em 1972.
226
Com esse sentido, o termo costuma ser empregado quase que
exclusivamente em referência a conjuntos de emoções negativas (tais
como aversão, desprezo, ódio, desconfiança, desconforto ou medo)
em relação a pessoas homossexuais ou assim identificadas. Essas
emoções, em alguns casos, seriam a tradução do receio (inconsciente
e doentio”) de a própria pessoa homofóbica ser homossexual (ou de
que os outros pensem que ela seja). Assim, seriam indícios (ou
sintomas”) de homofobia o ato de se evitarem homossexuais e
situações associáveis ao universo homossexual, bem como a repulsa às
relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Essa repulsa,
por sua vez, poderia se traduzir em um ódio generalizado (e, de novo,
patológico”) às pessoas homossexuais ou vistas como homossexuais
(JUNQUEIRA, 2007, p.04).
Nessa linha de pensamento, a homofobia ao resumir-se a uma
sensação ruim, sentida individualmente por sujeitos com problemas
internos e específicos ligados à sua suposta homossexualidade e/ou
expressões de gênero, oculta entre outros aspectos, o caráter social do
fenômeno. Sem uma visão menos personalizada, nos limitamos na
adoção de medidas paliativas de minimização da violência e
ineficientes nas problematizações de políticas de enfrentamento
(PRADO et al, 2009).
O problema em relação ao conceito está na gênese do próprio
termo, como ressalta Borrillo (2010), ainda na década de 1970. Por
considerarem o termo predominantemente ligado ao universo das
fobias psicológicas, vários autores propuseram outras denominações
na tentativa de encontrar uma nomenclatura mais adequada. Uma das
primeiras críticas publicada foi a análise de J. Boswell (1985) que
atentou para a abertura interpretativa que a palavra poderia gerar, pois
ao considerar homo derivação do grego que significa igual com
fobia que significa medo –, a homofobia poderia ser lida como
227
medo do mesmo, do idêntico e não necessariamente do homossexual
(BORRILLO, 2010).
Ao longo dos anos foram levantadas outras problemáticas, tais
como: o prefixo homo ao ser equivocadamente interpretado do latim,
que significa homem, reforçar o risco de, ao se empregar o conceito,
dirigir-se apenas ao preconceito sofrido por homens homossexuais,
negligenciando outras violências como: a lesbofobia, bifobia e
transfobia (JUNQUEIRA, 2007).
Em publicações acadêmicas brasileiras encontramos diferentes
termos e expressões alternativas como preconceito sexual” e
violência contra não-heterossexuais”. Também notamos que alguns
autores e pesquisadores adotam na tentativa de ampliar a
visibilidade de outras identidades termos como: LGBTfobia
Lésbicas, Gays, Travestis, Transexuais e Transgênero fobia. Alguns,
inclusive, incluíram no grupo os: Queers, Questionadores,
Intersexuais, Assexuais e Aliados, ficando o termo da seguinte forma:
LGBTQIAfobia (MELLO et al, 2012; MASIERO, 2013; SALA &
GROSSI, 2013; OLIVEIRA JÚNIOR et al, 2013).
Sendo assim, não é possível problematizarmos a homofobia
sem questionarmos que ela não se expressa apenas pela aversão a
sujeitos homossexuais. A violência homofóbica precisa ser pensada
levando em conta que esta auxilia a preservação da superioridade da
heterossexualidade, a única forma de sexualidade que pode ser
propagandeada em todos os lugares, grupos e instituições.
O autor Daniel Welzer-Lang (2001) contribuiu para a
ampliação do conceito ao apontar a necessidade de se estudar a
homofobia sob duas óticas: geral e específica. Como específica, a
compreensão da homofobia restringe-se a figurar a hostilidade sofrida
pelos homossexuais. E como geral, aponta um sistema sexista que tem
como alvo os sujeitos que não transportam consigo mesmos as
228
características esperadas para seu gênero e, consequentemente,
deixam de cumprir seus papéis de nero previamente estabelecidos
nessa sociedade sexista (WELZER-LANG 2001; RIOS, 2009;
BORRILLO, 2010).
Dito de outra forma, a homofobia geral age como elemento
necessário para a manutenção do sistema que regula os sujeitos por
meio da sexualidade. Manifestações de violência, hostilidade,
restrições de direitos entre outras discriminações são acionadas contra
os sujeitos que apresentam comportamentos, gostos, vestimentas que
não são previstas para o seu gênero. Isto ocorre porque, os sujeitos
considerados homens ou mulheres ao nascerem são criados para se
constituírem, arbitrariamente, como masculinos ou femininos. E,
para que esse processo de aquisição da masculinidade, no caso do
homem, ocorra, é preciso que ele rejeite o feminino e diferencie-se do
homossexual. No caso da mulher, a feminilidade é alcançada pela
mesma via: a negação do masculino (WELZER-LANG, 2001;
BORRILLO, 2010).
Neste desenvolvimento forçado, os corpos que escapam dessa
lógica predeterminada precisam ser realocados a seu suposto lugar de
origem”. E é justamente neste contexto que os mecanismos
homofóbicos são acionados, pois por meio da homofobia é possível
“[...] denunciar os desvios e deslizes do masculino em direção ao
feminino e vice-versa, de tal modo que se opera uma reatualização
constante nos indivíduos ao lembrar-lhes sua filiação ao gênero
correspondente’” (BORRILLO, 2010, p. 26).
Deste modo, a percepção de homofobia geral, parece
distanciar o conceito de homofobia psicológica, empregado em sua
gênese, como suficiente para explicar a violência e inferiorização de
sujeitos que desviem do padrão de sexualidade hegemônico. O que
podemos perceber é que o deslocamento do olhar particular,
229
individual, e medicalizante para o da denúncia de um conjunto de
disposições e estruturas que fazem da homofobia um problema
também social.
Homofobia e Normas Regulatórias de Gêneros Articuladas
em Prol da Heterossexualidade Compulsória
A partir do que debatemos na primeira parte, podemos inferir
que a homofobia atua também como guardiã da superioridade
heterossexual, que por meio de seus efeitos violentos sejam eles
físicos, psicológicos ou de restrição de direitos os sujeitos são
lembrados, constantemente, sobre o que ocorre quando desviam do
padrão hegemônico de sexualidade. Processo que se torna ainda mais
explícito quando a subversão do desejo é acompanhada da subversão
de gênero de quem expressa o desejo, evidente na enorme hostilização
e exposição a diversas exclusões e até homicídios sofridos com maior
frequência por travestis e transexuais (PELUCIO, 2005; PERES,
2004).
A fala de Berenice Bento (2011, p. 553) nos ilumina que: “os
gêneros inteligíveis estão condicionados à heterossexualidade, e essa
precisa da complementaridade dos gêneros para justificar-se como
norma”. Daí advém a violência brutal e a patologização das
identidades trans, como tentativa de evitar que se coloque em risco a
norma heterossexual.
A gica obedece à ideia de vagina-mulher-feminino versus
pênis-homem-masculino (BENTO, 2008). o fortemente reafirma-
da e ensinada que em alguns contextos para ofender ou ridicularizar
alguém basta lhe atribuir algo não previsto nessa sequência.
A filósofa estadunidense Butler (1987, p. 143) aprofunda que,
é suficientemente constrangedor e passível de sofrimento para muitos,
230
a alegação de que “[...] exercem sua masculinidade ou feminilidade
inadequadamente. O que desvela o quanto as normas de gênero
interferem na subjetividade dos sujeitos. Ressaltando que tais normas
são, frequentemente, justificadas a partir das diferenças anatômicas
sexuais que colocam homens e mulheres como seres biologicamente
opostos e, portanto, complementares.
Como apresentado por Pedro (2005), essas justificativas,
muitas vezes, se baseiam na ideia de que o gênero é alocado no campo
das questões sociais e culturais e o sexo é tomado como algo fixo e
natural. No entanto, a partir das contribuições de Laqueur (1992) e
Butler (1990) a autora indica que “as relações de gênero que
instituíram o sexo” e que o sexo é um efeito do gênero”, ou seja, tais
diferenças biológicas entre homens e mulheres nem sempre foram
vistas dessa forma (PEDRO, 2005, p. 90-91).
Até o início do século XVIII, estudiosos acreditavam que as
genitálias (feminina e masculina), por meio das identificadas ligações
morfológicas entre o pênis e o clitóris, os lábios vaginais e o escroto,
e, os ovários e os testículos, poderiam indicar que ambos os sexos
derivavam de um denominador comum, uma mesma origem fetal
(LAQUEUR, 2001). Nesta percepção, o masculino era considerado
o corpo desenvolvido e o feminino como sua versão invertida,
imperfeita (WEEKS, 1999, p.57). É válido destacar que o corpo da
mulher, ainda que inferiorizado, não era visto como oposto ao do
homem. Essa perspectiva foi alterada após a rediscussão do novo
estatuto social da mulher e do homem (BENTO, 2011; LAQUEUR,
2001).
Nessa linha de pensamento dos autores entendemos que, as
diferenças anatômicas entre o corpo do homem e da mulher, ainda
que percebidas num determinado momento histórico, passaram a
merecer atenção e necessitar de urgente reinterpretação num contexto
231
político, econômico, social e cultural (LAQUEUR, 2001; WEEKS,
1999; BENTO, 2011).
Borrillo (2010) considera que uma alternativa para se pensar
as diferenças sexuais é deslocar o olhar da questão biológica para
perceber uma elaboração mais política em torno do sexo. Foucault
(1985 [1976], p. 145) ressalta que “não se deve imaginar uma
instância autônoma do sexo que produza, secundariamente, os efeitos
múltiplos da sexualidade” (p. 145). Para o autor, o sexo é um elemento
muito mais especulativo, um ponto ideal tornado necessário pelo que
ele chamou de dispositivo da sexualidade. A partir do século XVIII, a
sexualidade enquanto dispositivo histórico passou a se articular sobre
o corpo dos sujeitos e produzir uma série de discursosinstitucionais
sobre o sexo, no intento de manter o controle sobre os sujeitos e as
populações (CESAR, 2009).
Partindo da perspectiva foucaultiana, o sociólogo Miskolci
(2012, p. 17) explica que:
Dispositivo é um termo que se refere ao conjunto de discursos e
práticas sociais que criam uma problemática social, uma pauta
para políticas governamentais, discussões teóricas e até mesmo
embates morais. A sexualidade é um desses dispositivos históricos,
e surgiu, aos poucos, a partir do século XVII, até adquirir os
contornos presentes, que fazem com que as pessoas se
compreendam a partir de sua sexualidade.
O filósofo francês se contrapõe à hipótese repressiva ao
mostrar que a história da sexualidade moderna, a partir do culo
XVIII, não se trata de uma história de constante repressão sexual, pelo
contrário, trata-se de uma estimulação, proliferação de discursos sobre
o sexo. E complementa mostrando que, de certo modo, pensar que:
232
[...] o sexo não seja reprimido”, não é de fato uma asserção
muito nova. muito tempo foi dito por psicanalistas. Eles
recusaram a maquinaria simples que facilmente se imagina ao
falar em repressão (FOUCAULT, 1985[1976], p. 79).
No entanto, temos que ter cautela ao pensarmos no que
Foucault propôs a partir do questionamento da hipótese repressiva,
pois como o autor explica:
[...] eu nunca afirmei que não tenha havido repressão da
sexualidade. Eu apenas me perguntei se, para decifrar as relações
entre o poder, o saber sobre o sexo, o conjunto da análise estava
obrigando a orientar-se segundo o conceito de repressão, ou se,
não se podia compreender melhor inserindo interdições,
proibições, prescrições e dissimulações em uma estratégia mais
complexa e mais global que não estivesse ordenada à repressão
como objetivo principal e fundamental (FOUCAULT, 2006, p.
137).
Para o autor, compreender o dispositivo da sexualidade
implica primeiro em se distanciar das concepções de poder ligadas às
noções jurídicas, ou seja, das concepções de leis. Isso porque, segundo
o filósofo “O dispositivo de sexualidade deve ser pensado a partir das
técnicas de poder que lhe o contemporâneas (1985 [1976] p. 141).
Para tanto, o poder em suas características jurídicas, atreladas ao sexo,
estabelecem que: este seja percebido a partir do regime binário do que
é lícito e do ilícito, daquilo que é proibido e do que é permitido; tem
para o sexo apenas o “não” como resposta; haja censura: que não se
fale sobre isso, haja vista, que não é permitido evocar o que é proibido,
etc. (FOUCAULT (1985 [1976]); CASTRO, 2009).
O abandono dessas concepções de poder e seu entrelaçamento
com a sexualidade é uma necessidade:
233
Primeiro, porque se trataria de um poder pobre em seus recursos,
econômico em seus procedimentos, monótono nas tácticas que
utiliza, incapaz de invenção e como que condenado a se repetir
sempre. Em segundo lugar, porque é um poder que teria a
potência do “não” incapacitado para produzir, apto apenas a
colocar limites, seria essencialmente anti-energia; esse seria o
paradoxo de sua eficácia: nada poder a não ser levar aquele que
sujeita a não fazer senão o que lhe permite. Enfim, porque é um
poder cujo modelos seria essencialmente jurídico, centrado
exclusivamente no enunciado da lei e no funcionamento da
interdição. Todos os modos de dominação, submissão, sujeição
se reduziriam, finalmente, ao efeito de obediência (FOUCAULT,
1985 [1976] p. 83).
Para Foucault (1985 [1976]), o poder na sociedade moderna
não operou com o dispositivo da sexualidade nos moldes do poder
soberano de caráter jurídico, regido como mencionado, por leis.
Nesse sentido, o poder não pode ser resumido a algo ruim, uma força
negativa que opera de cima (dominadores) para baixo (dominados) e
com única finalidade de restrição. Deste modo “[...] suponhamos que
a análise histórica tenha revelado a presença de uma verdadeira
tecnologia do sexo muito mais complexa e, sobretudo, mais positiva
do que o efeito excludente de uma proibição (FOUCAULT,
1985[1976] p. 87).
Dentro dessa linha de pensamento, o filósofo francês propõe
que tomemos o poder nas seguintes formulações:
[...] o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe,
algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de
inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e moveis [...] as
relações de poder não estão em posição de superestrutura, com
um simples papel de proibição ou de recondução; possuem,
onde atuam, um papel diretamente produtor [...] que o poder
234
vem de baixo; isto é, não há, no princípio das relações de poder,
e como matriz geral, uma oposição binaria e global entre os
dominadores e os dominados [...] deve-se ao contrário supor que
as correlações de força múltiplas se formam e atuam nos
aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e
instituições, servem de suporte a amplos efeitos de clivagem que
atravessam o conjunto do corpo social.[...] não poder que se
exerça sem uma série de miras e objetivos. Mas isso não quer dizer
que resulte da escolha ou da decisão de um sujeito
individualmente [...] onde poder resistência e, no entanto
esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação
ao poder (FOUCAULT, 1985[1976] p. 89- 91).
Nesse sentido, por meio dessas características do poder
moderno em que, a partir do século VXIII se assentaram as quatro
importantes formas de desenvolver os dispositivos de poder e saber
sobre a sexualidade: a histerilização do corpo da mulher, a
pedagogização do sexo das crianças, a socialização das condutas
procriadoras e a psquiatrização dos prazeres perversos. (CASTRO,
2009; FOUCAULT, 1985[1976]).
A histerilização do corpo da mulher, conforme pontua Castro
(2009), foi realizada a partir de um triplo processo:
[...] pelo qual o corpo da mulher foi analisado como
integralmente saturado de sexualidade foi integrado ao campo
das práticas médicas e, finalmente, estabeleceu-se sua
comunicação orgânica com o corpo social, o espaço familiar e a
vida dos filhos (CASTRO, 2009, p. 400).
Foi então, neste contexto, que o sexo passa a ser concebido de
três modos: algo que é do homem e da mulher, mas que é de
pertencimento do homem e passa a ser lido como constitutivo do
próprio corpo da mulher (CASTRO, 2009).
235
No que tange a pedagogização do sexo infantil foi tomada por
meio da rejeição a práticas sexuais como a masturbação que
passavam a ser vistas como perigos gravíssimos para as crianças, que
tenderiam a crescer na imoralidade, colocando em risco inclusive seu
desenvolvimento físico. Deste modo, as crianças são vistas como seres
com corpos que possuem de sexo somente a anatomia (órgãos
genitais), mas ausente de atividade sexual. Cabendo, por fim, aos pais,
médicos e pedagogos a responsabilidade de vigiar e cuidar desses
corpos infantis para que não pratiquem as atividades perigosas
(FOUCAULT, 1985[1976]).
Na socialização das condutas procriadoras, inicia-se uma
política de incentivo ou de restrição da reprodução, os casais são
incitados à fecundação e os médicos e a ciência de controlar os
nascimentos (FOUCAULT, 1985[1976]; CASTRO, 2009).
Por último, em relação à psiquiatrização dos prazeres
perversos: “o instinto sexual foi isolado como um instinto biológico e
psíquico autônomo, as suas anômalas foram clinicamente analisadas,
as condutas foram normalizadas e patologizadas (CASTRO, 2009, p.
400). Deste modo, o sexo passa a se referir a funções biológicas
justificadas e entendidas a partir de suas características anatômicas
fisiológicas. Mas, o instinto sexual pode se desviar apresentando,
assim, condutas pervertidas (FOUCAULT, 1985[1976]; CASTRO,
2009).
É assim que a sexualidade a partir do século XIX é analisada,
conferida, esmiuçada, investigada com tanto empenho e atenção,
suspeitando de todo e qualquer detalhe se examina a todos, inclusive
acompanha-se sua manifestação nos primeiros anos de vida das
crianças, no corpo das mulheres, das condutas tidas como estranhas.
Em síntese: o sexo toma então a centralidade da política.
236
Para Foucault (1985[1976]), isso ocorre porque o sexo se
encontra na ligação entre dois eixos por meio dos quais longamente
se aplicou toda uma tecnologia da vida. Reside em um eixo, as
disciplinas do corpo: docilização, distribuição no espaço, articulação
das forças, economia das energias. No outro, o controle das
populações, por meio das incitações ou limitações à procriação,
controle estatístico de nascimentos, socialização de campanhas
ideológicas para moralizar os sujeitos, entre outros (FOUCAULT,
1985[1976]; CASTRO, 2009).
Nessa linha de pensamento, as estratégias de controle e
incitação supracitadas não são formas de barrar o sexo, de impedir a
sexualidade, pelo contrário, trata-se de articulá-la, organizá-la, poder
produzi-la:
[...] estamos em uma sociedade do “sexo”, ou melhor “de
sexualidade”: mecanismos do poder se dirigem ao corpo, à vida,
ao que a faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua
capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser utilizada. Saúde,
progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o
poder fala da sexualidade e para a sexualidade; quanto a esta, não
é marca ou símbolo, é objeto e alvo [...] O poder a esboça,
suscita-a e dela se serve como um sentido proliferante de que
sempre é preciso retomar o controle para que não escape; ela é
um efeito com valor de sentido (FOUCAULT, 1985[1976], p.
138).
Por intermédio da sexualidade, enquanto aparato, é que
estratégias e técnicas para internalização de normas sociais foram
empregadas pelo Estado e suas instituições que passaram a controlar
os sujeitos. Neste contexto foram produzidas, muitas das teorias e
creas que embasam, ainda hoje, a compreensão dominante de
sexualidade (SPARGO, 2006; MISKOLCI, 2012).
237
E, como explica Foucault “[...] É pelo sexo efetivamente,
ponto imaginário fixado pelo dispositivo da sexualidade, que todos
devem passar a ter acesso à sua própria inteligibilidade (FOUCAULT,
1985 [1976], p. 145-146). Assim, os saberes acerca das diferenças
anatômicas entre homens e mulheres foram reforçados politicamente
a partir da perspectiva diferencialista. Bento (2011) nos explica que
através dessa ótica é sustentado o argumento de que:
[...] a mulher e o homem são portadores de diferenças
irrelativizáveis. Da espessura da pele, ao tamanho do crânio, da
estrutura psíquica aos complexos, tudo é diferença. A refinada
engenharia da diferença sexual esquadrinhou os corpos com o
objetivo de provar que não nada em comum entre o feminino
e o masculino. O único momento de encontro possível
aconteceria no ato sexual. A heterossexualidade, portanto, seria
uma expressão natural e normal dos corpos (BENTO, 2011, p.
09).
A essa expressão natural e normal dos corpos em que
homens se inclinam para o masculino e desejam as mulheres e
mulheres inclinam-se para o feminino e expressam desejo pelos
homens Judith Butler (2003 [1990]) chamou de inteligibilidade do
gênero, que seria a continuidade estabelecida entre a lógica: sexo-
gênero-desejo.
Os gêneros inteligíveis:
[...] são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm
relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática
sexual e desejo. Em outras palavras, os espectros de
descontinuidade e incoerência, eles próprios concebíveis em
relação a normas existentes de continuidade e coerência, são
constantemente proibidos e produzidos pelas próprias leis que
buscam estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre
238
o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a
expressão ou efeito de ambos na manifestação do desejo
sexual por meio da prática sexual (BUTLER, 2003[1990], p. 38).
Articulando toda essa discussão da sexualidade e do gênero
com a homofobia, passamos a compreender que sua ação possui uma
relação umbilical com as normas regulatórias de gênero, pois a
inteligibilidade do nero é um imperativo para a vigência do padrão
heteronormativo.
Dentro do sistema de regulação dos sujeitos, na ótica
heterocentrada, a função maior dos processos homofóbicos
empregados para que os sujeitos permaneçam na norma é impedir que
a própria norma, calcada na lógica sexo-gênero-sexualidade, perca sua
força. Portanto, como argumenta Borrillo (2010), somos reféns desse
sistema que invariavelmente nos conduz a ser homem ou mulher.
Nessa perspectiva, o gênero é entendido como uma categoria
que nos definiria como humanos, pois, como Butler (2008 [1993])
explica na obra Cuerpos que importan, antes de nos ser atribuído
arbitrariamente o gênero masculino ou feminino não somos lidos
como tais, então a partir da interpelação “é um menino ou uma
menina?” é que se inicia todo um processo de aquisição do gênero que
será reatualizado durante toda a vida:
Consideremos el caso de la interpelación medica que (a pesar de
la reciente incorporación de otros apelativos más generales) hace
pasar a un niño o una niña de la categoría de “el bebé a la de
niño o niña y la niña se feminiza mediante esa
denominación que la introduce en el terreno del lenguaje y el
parentesco a través de la interpelación de género. Pero esa
feminización de la niña no termina allí; por el contrario, las
diversas autoridades reiteran esa interpelación fundacional a lo
largo de varios intervalos de tempo para fortalecer o combatir
239
este efecto naturalizado. La denominación es a la vez un modo
de fijar una frontera y también de inculcar repetidamente una
norma (BUTLER, 2008[1993], p. 25-26).
Dito de uma maneira diferente, a atribuição do gênero
presente no ritual do nascimento, faz parte de um amplo projeto
desenvolvido no campo discursivo da sexualidade, onde a partir da
delimitação se qualifica aquilo que poderá fazer parte da categoria
“humano (BUTLER, 2003 [1990]). O gênero se coloca deste modo,
como o conjunto de tecnologias acionadas e reiteradas responsável
pela produção de corpos-sexuais (BENTO, 2011).
Essa produção é feita pelos corpos e nos corpos dos sujeitos.
De modo, o gênero, na perspectiva de Butler (2003[1990]) pode ser
entendido como a:
[...] estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos
no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual
se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma
substância, de uma classe natural do ser (BUTLER, 2003, p. 59).
A partir desse processo de sujeição e aquisição do gênero,
corpos que não se conformam e descontinuam a ordem sexo-gênero-
desejo (considerada natural”). E, como consequência, tanto os que
expressam seu desejo para o gênero ou sexo que não é esperado
(homossexuais) quanto os que não performatizam o gênero nos
padrões hegemônicos de sexualidade (pessoas trans) são colocados à
margem do social e se configuram como vítimas de diversos processos
discriminatórios, como a homofobia. Isso acontece, porque, segundo
Butler (2008 [1993], p.334) “la homofobia con frecuencia opera
atribuyendo a los homosexuales um género perjudicado, fracasado”,
o que não raras vezes, qualifica os gays como afeminados” e as lésbicas
240
a “macho- fêmeas”. O fracasso do gênero ocorre devido à sua
performance não estar prevista nos moldes heterocêntricos.
Bento (2008, p. 34) justifica que quando se age e tenta
reproduzir o modelo de homem e mulher verdadeiro”, “[...] nem
sempre o resultado corresponde àquilo definido e aceito socialmente
como atos próprios a um homem/mulher”. Especialmente nesses
casos, a violência homofóbica é aplicada como forma de ensinar a
norma, bem como afastar as práticas distantes do considerado
normal”.
Assim, a partir dos gestos, comportamentos, expressões que
se localizam nos corpos se qualifica os sujeitos normais e anormais
em torno de identidades masculinas e femininas tomadas como
naturais”:
[...] os atos e gestos, os desejos articulados e postos em ato criam
a ilusão de um núcleo interno e organizador do gênero, ilusão
mantida discursivamente com o propósito de regular a
sexualidade nos termos da estrutura obrigatória da heterossexual-
lidade reprodutora (BUTLER, 2003[1990], p. 195).
Preciado (2002) apresenta uma ampliação do conceito de
gênero, compreendido como performático por Butler (1990). Em sua
perspectiva, o gênero também atua como uma tecnologia de controle
sobre os corpos. Os gêneros também são produzidos pelas
intervenções cirúrgicas, medicamentosas, cosméticas, tais como o
silicone, os hormônios, as próteses, que se tornam constituintes dos
corpos (LIMA, ALVARENGA, 2012).
Por meio das tecnologias de gênero, se produz um controle
político dos sujeitos antes deles nascerem. A determinação menino
ou menina inicia-se antes do nascimento. Os corpos têm sua história
previamente inscrita num roteiro específico de masculinidade ou
241
feminilidade que se confirma no parto, mas que estava sendo
articulado anteriormente. Deste modo, gênero é uma tecnologia de
governo dos corpos dos sujeitos com o intuito de produzir neles e
através deles aquilo que compreendemos como homens e mulheres e,
ao mesmo tempo, alinhar essa concepção à materialidade biológica
para, então, estabelecer sua complementaridade (PRECIADO, 2002).
Dessa forma, com as contribuições de Preciado (2002) e de
Butler (2003), podemos pensar que não somente o gênero é
construído, mas também o sexo. o corpo macho nem corpo
fêmea. A própria leitura dicotômica da anatomia humana é produzida
a partir da tecnologia de gênero. Os sujeitos desde o nascimento são
produzidos por meio de brinquedos, jogos, roupas entre outros
recursos para se reconhecerem na determinação imposta pelo nero
e sexo construídos arbitrariamente em seus corpos. Nesse processo
são empregados mecanismos homofóbicos, pois é necessário vigiar e
não interromper essa construção contínua, nunca acabada de
masculinidades e feminilidades heterocentradas.
Considerações Finais
Buscamos ao longo do texto abordar o conceito de homofobia
fora de uma perspectiva psicológica e individual, e sim ampliarmos o
debate para um fenômeno social preocupante que compromete a vida
de sujeitos que não tem seu desejo e ou performatizações de gênero
alinhados na heterossexualidade.
Buscamos argumentar que o conceito de homofobia deve ser
compreendido a partir de sua ligação com as normas regulatórias de
gênero. Em nosso ponto de vista, a sustentação dos processos
homofóbicos precisa ser analisada levando em conta sua ação no
242
processo contínuo de produção de corpos masculinos e femininos
centrados na heterossexualidade.
Para finalizar, sintetizamos que em sua expressão, a homofobia
relaciona-se a atitudes de violência (física, psicológica) e a
posicionamentos que mesmo implícitos quando materializados,
atuam como um mecanismo de interdição, controle e vigilância de
comportamentos sexuais (ainda que expressados por sujeitos
heterossexuais) não heterocentrados e/ou não representados pelos
padrões identitários de gênero (JUNQUEIRA, 2007; BUTLER,
2003 [1990], PRECIADO, 2002).
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A DISCIPLINA EDUCAÇÃO PARA SEXUALIDADE
COMO PRÁTICA DE RESISTÊNCIA: O
CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO DAS
TRANSFORMAÇÕES CURRICULARES
Vinicius Mascarenhas dos PASSOS1
Marcos Lopes de SOUZA2
Apontamentos Iniciais
Devido à sua potencialidade na produção de sujeitos, em meio
às relações de saber-poder, o currículo escolar se constitui, muitas
vezes, como um sistema de regulação moral e de controle das
identidades. Portanto, por meio do currículo são selecionados os
conhecimentos utilizados para (des)privilegiar alguns grupos e
construir subjetividades, garantindo a permanência de referenciais
hegemônicos e, poucas vezes, legitimando lugares para os grupos
subalternizados (SILVA, 2010; LOPES; MACEDO, 2010).
Apesar de o currículo ser utilizado para nomear, classificar,
hierarquizar e regular, também é um território de conflito,
contestação e luta. Com base nesta perspectiva, quando alguns
1 Doutorando e Mestre pelo Pós-Graduação em Educação Científica e Formação de
Professores (PPGECFP) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Campus
de Jequié, Bahia, Brasil. E-mail: vini-mascarenhas@hotmail.com.
2 Professor Pleno do Departamento de Ciências Biológicas e docente permanente do
Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade (PPGREC) e do
Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Formação de Professores
(PPGECFP) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Campus de Jequié,
Bahia, Brasil. Email: markuslopessouza@gmail.com.
248
espaços curriculares produzem diálogos sobre questões marginalizadas,
como diversidade de gênero e sexual, em tempos de ódio e
perseguição à comunidade LGBTTQIAPN+ (lésbicas, gays,
bissexuais, travestis, transgêneras(os), queer, intersexo, assexuais,
pansexuais, não-bináries e demais dissidentes de gênero e sexuais),
estes lugares podem se constituir como resistências.
Pensando dessa maneira, em 2005, no município de Jequié
(BA), foi criado o componente Educação para Sexualidade (EPS),
como parte da matriz curricular dos anos finais do ensino
fundamental regular e 2° segmento da Educação de Jovens e Adultos
(EJA). A implementação nessa etapa da educação básica foi possível
por entenderem que esses/as discentes teriam uma idade
considerada adequada para discutirem sobre sexualidade (AZEVEDO;
SOUZA, 2016).
Ter um componente curricular específico para abordar essas
questões foi possível por meio da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) n. 9.394/96. No artigo 26 é dito que o
currículo do ensino fundamental deve ter uma base nacional comum
complementada por uma parte diversificada de acordo com as
características locais, regionais e culturais das/os discentes (BRASIL,
1996). No início, a disciplina foi criada com o intuito de controlar o
aumento dos casos de gravidez na adolescência e Infecções
Sexualmente Transmissíveis (IST), sendo solicitada a sua integração
na parte diversificada do currículo do e ano do ensino
fundamental das escolas municipais (AZEVEDO; SOUZA, 2016).
Nesses 19 anos de existência do componente curricular
Educação para Sexualidade houve modificações e permanências que
estão associadas a uma compreensão de educação perpassando pelos
diferentes governos. Em tempos que se presenciam fortes embates e
disputas dos grupos conservadores, ao desejarem controlar, regular,
249
limitar e impedir os avanços e conquistas históricas das discussões de
gênero e sexualidade, pensamos a disciplina EPS como uma forma de
resistência e, dependendo da proposta curricular, até subversiva.
Por compreendermos a importância de resistir em toda essa
conjuntura, tomamos esse conceito como fundamental para analisar
a construção e o desenvolvimento dessa disciplina. Com base nos
ensinamentos de Michel Foucault (1988), a resistência é uma força e
atua como parte do poder, sempre havendo possibilidades de resistir
por meio dessas relações. Esse fato nos instiga a questionar: como esse
componente vai se constituindo enquanto disciplina escolar? Portanto,
nesse trabalho analisamos o contexto histórico e político das
transformações curriculares da disciplina Educação para Sexualidade
desde sua implementação em 2005, nas escolas municipais da cidade
de Jequié (BA).
Direcionamentos Metodológicos
s rejeitamos um manual metodológico linear e fixo, ou seja,
um roteiro cheio de afirmações decisivas que qualquer pessoa possa
seguir para chegar em um mesmo resultado. Certamente, essa
proposta desestimularia o pensamento e o questionamento. Portanto,
com base nos estudos foucaultianos, pós-críticos e pós-estruturalistas,
podemos pensar a constrão das disciplinas escolares com base em
um contexto histórico de rupturas e continuidades.
Aproximamo-nos da vertente s-estruturalista por nos levar
a desconfiar das verdades universais e estáveis, admitindo a incerteza
e a dúvida. Temos aprendido a operar com a provisoriedade, sem
considerar que vale tudo na construção e realização das pesquisas. s
nos implicamos em realizar pesquisas com rigorosidade, mas
praticando o autoquestionamento. Abandonamos a pretensão de
250
dominar o assunto, por compreendermos que a tarefa de conhecer é
incompleta. Lidamos com contradições e pensamos que algo pode ser,
ao mesmo tempo, isso e aquilo. Portanto, buscamos experimentar a
pluralidade (LOURO, 2007).
Valorizamos e operamos com o local e as particularidades da
disciplina Educação para Sexualidade no município de Jequié (BA),
analisando as influências nacionais que repercutiram em seu contexto
e vice-versa. Entendemos que qualquer verdade é provisória, estando
ancorada em determinada época para um grupo ou sociedade. Sendo
assim, as relações móveis e fluidas entre saber-poder se estendem por
toda parte, produzindo conhecimentos, discursos, objetos e verdades
de acordo com o contexto histórico (SILVA, 2010).
Para a constituição do material empírico dessa pesquisa,
delimitamos que as/os participantes seriam docentes e (ex)docentes
que atuam/atuaram na disciplina de EPS e (ex)profissionais da
Secretaria Municipal de Educação (SME) de Jequié que estavam/estão
envolvidas/os na sua construção ou na gestão desse componente
curricular. Com o fechamento das escolas, devido ao cenário
pandêmico imposto pela covid-19, em dezembro de 2020, o primeiro
autor desse trabalho buscou orientações na SME de Jequié para
conseguir o contato telefônico (WhatsApp) dessas/es profissionais.
Antes de iniciar a produção do material empírico, essa
pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Jequié
(BA), número CAAE: 45529021.6.0000.0055. Além disso, todas/os
as/os participantes foram informadas/os acerca da investigação e sobre
a possibilidade de dirimir quaisquer dúvidas. As pessoas que aceitaram
participar, confirmaram por meio da assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Na busca pela
preservação do anonimato das/os participantes, atribuímos nomes
251
fictícios em memória das pessoas LGBTTQIAPN+ assassinadas na
Bahia, em 2019, de acordo com os dados do Grupo Gay da Bahia
(GGB).
Como instrumento de produção de informações, utilizamos
das entrevistas narrativas. Conforme mencionado por Sandra
Jovchelovitch e Martin W. Bauer (2012), as entrevistas narrativas
encorajam e estimulam as/os participantes a comentarem sobre os
acontecimentos marcantes do contexto que viveram, abordando
pontos de vista singulares. Dessa forma, as/os entrevistadas/os
lembraram dos fatos que envolveram a disciplina EPS e relataram suas
histórias, até mesmo com certo saudosismo.
As entrevistas foram realizadas individualmente e de forma
virtual pela plataforma do Google Meet. Neste trabalho traremos
análises das entrevistas realizadas com duas (ex)profissionais da SME
e duas (ex)docentes da disciplina EPS. No que diz respeito aos dados
pessoais das técnicas da SME, Cristiane e Priscila se identificam como
mulheres cis, heterossexuais e cristãs. Cristiane possui cor branca e
Priscila é parda. Possuem idades, respectivamente, de 41 e 58 anos.
Cristiane atuou profissionalmente na SME de 2006 a 2008 e Priscila
trabalha desde 2006.
Analisando o perfil das (ex)docentes, Bruna preferiu não dizer
seu gênero, orientação sexual e cor, identificando apenas sua
religiosidade católica. Enquanto Mônica afirmou ser uma mulher cis,
heterossexual, branca e de religião protestante. Possuem idades,
respectivamente, de 40 e 55 anos. Ambas são da área de Ciências da
Natureza, sendo Bruna licenciada em Química e Mônica em Ciências
com habilitação em Biologia, concluindo seus cursos em 2005 e 2002,
respectivamente.
Bruna exerce a profissão docente 22 anos e Mônica exerceu
por 30 anos, sendo, atualmente, aposentada. Bruna é professora
252
efetiva, ministra a disciplina EPS, atualmente, e a assumiu desde o
início da implementação curricular, com exceção de poucos anos.
Mônica ministrou esse componente curricular por dois ou três anos
no início da sua implementação.
Além das entrevistas, neste artigo também trabalhamos com
as pesquisas desenvolvidas sobre a disciplina Educação para
Sexualidade como material de análise. Assim sendo, utilizamos a
monografia de especialização de Maria José Barreto Queiroz
(2007) e as dissertações de mestrado de Suse Mayre Martins Moreira
Azevedo (2013), Suzane Nascimento Cabral (2016), Laís Machado
de Souza (2017), Thaís Santos Santana (2020) e Vinicius
Mascarenhas dos Passos (2022).
Para realizarmos as análises, nos pautamos nos estudos
foucaultianos, pós-críticos e pós-estruturalistas. Neste texto,
focalizaremos como a disciplina EPS foi se constituindo ao longo dos
seus dezenove anos, em meio a movimentos de fortalecimento dos
debates sobre sexualidade na escola, incentivados pelos movimentos
sociais e pelas políticas públicas e também de contramovimentos
pautados no fundamentalismo religioso.
A Res(ex)istência da Disciplina Educação Para Sexualidade Diante
do Contexto Histórico e Político Conservador
Ao longo dos seus anos de existência, na disciplina EPS, houve
disputa entre os conhecimentos incluídos ou excluídos para serem
ministrados. Entre as definições que são dadas para disciplina escolar,
André Chervel (1990) assemelha seus sinônimos como matérias
ou conteúdos de ensino, entendendo-a como aquilo que se ensina.
Frequentemente, isso demonstra uma posição política de educação
253
para responder a necessidade de determinados conhecimentos em
nossa sociedade.
Por não ter ocorrido nenhuma iniciativa de projeto e
formação para a disciplina EPS, nos últimos anos, durante o contexto
pandêmico, em julho de 2021, a coordenação dos anos finais do
Ensino Fundamental da SME realizou um convite às/aos
professoras/es deste componente curricular, bem como às/aos
coordenadoras/es das respectivas escolas, para uma roda de conversa.
Este momento de diálogo ocorreu via online, com a participação de
uma docente da UESB/Jequié, para apresentar o projeto “Educação
para prevenção: uma questão de saúde sexual e reprodutiva”. Apesar
de não sermos docentes da disciplina EPS, mas por estarmos
pesquisando esse componente curricular, ao ter ciência desse convite,
o primeiro autor deste trabalho se interessou em saber mais sobre essa
proposta e participou dessa reunião.
Analisando a fala da coordenadora e os escritos do projeto de
extensão que foi projetado por meio de um slide, a proposta desse
projeto visava promover, apoiar e incentivar a saúde sexual e
reprodutiva da comunidade acadêmica e extra-acadêmica em parceria
com a Secretaria Municipal de Educação (SME) e o cleo Territorial
de Educação do Estado da Bahia (NTE). Sua ação seria desenvolvida
entre maio e dezembro de 2021. Nesse sentido, foi reconhecido que,
devido ao grande mero de jovens e adolescentes
desconhecedoras(es) das questões envolvendo a saúde sexual e
reprodutiva, esse projeto auxiliaria a disciplina a ser um espaço
(in)formador a fim de que houvesse as mudanças desejadas. Assim,
foram desenvolvidas oficinas, rodas de conversa e apresentações de
vídeos com discussões em grupo por meio das plataformas digitais
com o apoio de discentes do curso de saúde da UESB/Jequié.
254
Esta preocupação com a saúde sexual e reprodutiva deve ser
considerada, contudo, não podemos cair na armadilha de relacionar
o sexo sempre com a reprodução compulsória ou com as doenças,
entendendo-o como imundo e pecaminoso, algo muito comum na
história da Educação Sexual no Brasil. Recentemente, a ex-ministra
Damares Regina Alves, titular do Ministério da Mulher, da Família e
dos Direitos Humanos (MMFDH) defendia que as discussões sobre
Educação para Sexualidade nas escolas deveria incentivar as/os jovens
a adiarem o momento da primeira relação sexual, realizando a
abstinência como forma de evitar as IST e a gravidez. Essa proposta
se consolidou na campanha Tu d o tem o seu tempo: adolescência
primeiro, gravidez depois”. Esse pensamento reitera o sexo como
perigoso, causando medo e desvinculando-o do prazer. Ela contesta o
sexo por prazer, produzindo um discurso de que este deve estar
subjugado ao amor idealizado entre homem e mulher cis.
Percebemos que essas propostas preventivas se assemelham às
condições de emergência da disciplina EPS, implementada em 2005,
no qual, pautaram a prevenção as IST/HIV/AIDS e gravidez na
adolescência. A disciplina EPS foi implementada em um período
marcado em âmbito nacional e internacional na busca pelo direito à
dignidade e respeito à diferea como um reflexo aos avanços da luta
dos movimentos sociais que foram duramente conquistados.
Sobretudo, pensava-se a educação como um espaço
preventivo (CÉSAR, 2009), havendo um investimento para que a
escola assumisse esse debate. É possível supor que as instituições
sociais, em especial a família e a religião cristã, experimentaram, em
determinado período histórico, a necessidade de determinar tarefas
educacionais às instituições escolares, que conduzissem determinados
objetivos educacionais dos seus interesses (CHERVEL, 1990).
255
Além dessa iniciativa, no final da década de 1990, o governo
brasileiro havia proposto um conjunto de reformas curriculares,
produzindo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Esse
documento foi tematizado como uma resposta aos diversos problemas
que a escola foi convocada a intervir, tais como a ética, pluralidade
cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual, trabalho e
consumo. Essas temáticas deveriam ser abordadas de forma transversal
entre as diversas áreas do conhecimento. Com o estímulo dos PCN
para que houvesse as discussões sobre sexualidade com as/os
adolescentes na escola, pensando em nível local, de acordo com Maria
José Barreto Queiroz (2007):
A Câmara de Vereadores da cidade de Jequié-BA, no ano de 1998,
encaminhou um documento à Secretaria Municipal de Educação
solicitando a inclusão da disciplina Orientação Sexual no
currículo das escolas de Ensino Fundamental como disciplina
obrigatória. Porém, o parecer do Conselho Municipal de
Educação de Jequié-BA, naquele momento foi contrário,
admitindo que o tema poderia ser abordado conforme
propunham os PCN. Porém, em 2004 a disciplina Orientação
sexual começou a ser oferecida em uma das escolas da rede
municipal e, em seguida, em 2005 a disciplina Educação para a
Sexualidade passou a fazer parte do currículo na parte
diversificada do conhecimento (CONSELHO MUNICIPAL
DE EDUCAÇÃO DE JEQUIÉ-BA, 1998 apud QUEIROZ,
2007, p. 16).
Compreendemos que, em primeira instância, o projeto de
inserção de um componente sobre sexualidade nas escolas municipais
de Jequié (BA) foi rejeitado, em 1998, não pela recusa das discussões,
mas, em virtude do entendimento de que essas temáticas não
deveriam ser disciplinares e, sim, transversais, perpassando por todas
256
as áreas do conhecimento. Entretanto, consideramos que ter um
componente específico sobre sexualidade é interessante por permitir
com que muitos conhecimentos deixem de disputar espaços no
currículo com os de outras disciplinas e, por muitas vezes, perdendo
para outros conhecimentos considerados mais lidos.
Nesse ínterim, é possível perceber como o estímulo das
políticas nacionais acabam refletindo localmente, ainda que, devido
ao conservadorismo político, não se efetivaram enquanto políticas
públicas e propostas curriculares. Pensando em nível nacional, é
possível citar que, em 2004, no primeiro mandato do governo de Luís
Inácio Lula da Silva, houve o advento de programas e ações da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (SECADI) buscando reduzir as desigualdades educacionais,
promovendo o pleno acesso à escolarização e à participação das/os
discentes com equidade e reconhecimento das diferenças.
Com as iniciativas da SECADI, nesse mesmo ano, o governo
federal, por meio da articulação entre algumas secretarias, criou o
programa Brasil Sem Homofobia para combater a violência e a
discriminação contra a chamada população LGBT, respeitando a
especificidade de cada um desses grupos populacionais, e garantindo
sua cidadania. Entre as ações, estava o direito à educação com a
elaboração de diretrizes que orientassem as instituições de ensino e à
formação das/os docentes na implementação de iniciativas que
promovessem o respeito e a não discriminação pela orientação sexual
(BRASIL, 2004).
Outro programa que consideramos importante foi o Gênero
e Diversidade na Escola (GDE), criado em 2006, destinado às/aos
docentes dos anos finais do ensino fundamental, visando auxiliar, à
distância, na formação continuada para o combate a atitudes e
257
comportamentos preconceituosos em relação às questões de gênero,
raça e orientação sexual (BRASIL, 2009).
Sendo assim, consideramos esses projetos como um marco
histórico na luta pelo direito à dignidade e pelo reconhecimento das
diferenças, em especial, no que tange à diversidade de gênero e sexual.
Apesar disso, compreendemos que essas medidas não se firmaram
enquanto políticas de Estado, mas atreladas ao governo do Partido
dos Trabalhadores, tanto que, com o golpe do mandato de Dilma
Rousseff, em 2016, esses projetos deixaram de existir por conta das
mudanças de interesse dos que assumiram a presidência.
Esse contexto nacional das políticas blicas repercutiu em
âmbito estadual e, consequentemente, municipal, afetando a
disciplina EPS. Pensando localmente, na cidade de Jequié (BA), ao
longo da existência da disciplina EPS, seis representantes distintos, de
diferentes partidos políticos, assumiram o comando da prefeitura.
Conforme relatado nas entrevistas narrativas, Bruna (docente da
disciplina EPS, entrevista realizada em 18/08/2021) e Cristiane (ex-
técnica pedagógica da SME, entrevista realizada em 13/04/2021)
destacaram que, nos primeiros anos de criação da disciplina EPS,
foram desenvolvidos alguns projetos (ex. Semana do Adolescente),
fóruns e a implementação de um cleo da diversidade na SME.
De acordo com Bruna e Cristiane, a potencialidade de eventos,
como o da Semana do Adolescente, foi importante para promover
com que as/os discentes e todo o corpo escolar difundissem os
conhecimentos abordados na disciplina EPS para toda a comunidade.
Esse projeto era promovido pela SME de Jequié, havendo um
envolvimento do município e do estado para a sua realização.
Nesse sentido, percebemos que, entre 2005 e 2008, embora
com algumas críticas, a disciplina vai se consolidando e sendo
reconhecida como um importante elemento político em Jequié. A
258
construção desses espaços fortalecia e ampliava as discussões sobre
sexualidade. A intenção era que, anualmente, fosse feito um rum
Municipal da disciplina Educação para Sexualidade, como foi
realizado em 2007. Entretanto, conforme apontado por Cristiane, as
mudanças de gestões interferiram na manutenção desses debates.
Dessa forma, após esse período, poucas iniciativas foram realizadas e
a disciplina foi sendo menos visibilizada. Apesar disso, destacamos
que ela não foi retirada com as mudanças de governo.
Nesse período, o fortalecimento da disciplina EPS também
está relacionado com as pesquisas e cursos em torno desta temática
que passaram a ser desenvolvidos na universidade. Dessa forma, um
ponto importante destacado no decorrer das entrevistas, por algumas
profissionais da SME e docentes da disciplina EPS, foi a criação do
Órgão de Educação e Relações Étnicas (Odeere) da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Jequié, no ano de
2005.
Dentre suas atividades, o Odeere proporciona uma maior
interação com a comunidade ao promover cursos de Extensão, tais
como o de “Formação continuada de educadoras e educadores nas
temáticas relativas às identidades de gênero e sexuais”, oferecido em
2009, 2010, 2011 e 2013 e o de Gênero, Raça e Diversidade sexual,
ofertado entre 2015-2019 e entre 2022 até o momento atual. De
acordo com as entrevistadas, Bruna, Priscila (técnica pedagógica da
SME, entrevista realizada em 23/08/2021) e nica (ex-docente da
disciplina EPS, entrevista realizada em 30/08/2021), os cursos
contribuíram para a sua formação e de outras/os docentes e segmentos
da sociedade.
Diante da importância das discussões destas temáticas, a
formação de professoras/es para o debate destas questões tem sido um
grande desafio. De modo geral, as/os docentes têm dificuldades em
259
abordar essas questões em sala de aula, muitas vezes, devido a um
currículo de licenciatura que privilegia determinados conhecimentos
e silencia outros, tais como gênero e sexualidade. Desta forma,
percebemos como isso interfere na formação destas/es, impedindo
que rompam com estruturas do modelo eurocêntrico,
cisheteronormativo e binário nas práticas pedagógicas. As
preconcepções das/os docentes, enraizadas por equívocos que geram
discriminações acerca do “eu” e do outro”, orientam as formas de
conduzir as atividades educativas, sendo necessária a existência de
espaços de formação inicial e continuada que auxiliem as/os
educadoras/es a discutir e atuar frente a essas questões.
Cristiane e Priscila ressaltaram que os professores Ms. Josmar
Barreto Duarte e Dr. Marcos Lopes de Souza, ambos da UESB,
campus de Jequié (BA), contribuíram para os diálogos e debates em
relação à disciplina Educação para Sexualidade. O Prof. Marcos
coordena o Acuendações Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero,
Sexualidade e Relações Étnico-raciais e havia realizado algumas
aproximações com a disciplina EPS, entre os anos de 2005 e 2008,
inclusive, em parceria com a SME de Jequié. Ao longo desse percurso,
foram desenvolvidas algumas pesquisas, participações em eventos e
formações relacionadas à disciplina EPS. Essas aproximações
ocorreram em momentos pontuais, sendo um reflexo do cenário
nacional e municipal de valorização das discussões sobre sexualidade.
Contudo, ao longo do tempo iniciativas como essas deixaram de
existir. Apesar dos esforços empregados, atualmente não se observa o
mesmo empenho por parte de outros setores da esfera municipal.
Na medida em que a luta dos movimentos sociais avança,
grupos reacionários entendem que suas visões de mundo e verdades
estão sendo ameaçadas. Sendo assim, esses grupos passaram a resistir
a inserção de gênero e sexualidade, principalmente, no âmbito escolar.
260
Uma das iniciativas mais consistente dos ataques conservadores foi o
Movimento Escola sem Partido, fundado em 2004 e finalizado pelo
seu idealizador em 2019. Segundo informações do antigo site deste
movimento, seu objetivo era “inibir a prática da doutrinação política
e ideológica em sala de aula e a usurpação do direito dos pais dos
alunos sobre a educação moral dos seus filhos3. Para esse grupo, ao
falar sobre essas questões nas instituições escolares, as/os docentes
estariam doutrinando as/os alunas/os e indo de encontro aos valores
morais e éticos da família tradicional brasileira.
O fortalecimento das interdições sobre essas temáticas levou a
proliferação do slogan mentiroso intitulado de “kit gay”4, se referindo
ao material “Escola sem Homofobia”, no ano de 2011. Segundo Toni
Reis e Edla Eggert (2017), notificações extrajudiciais começarem a ser
entregues nas escolas pelos familiares para impedir com que essas
informações circulassem, intimidando os/as profissionais de educação.
O kit anti-homofobia seria distribuído pelo Ministério da Educação
(MEC) para as instituições públicas do ensino médio com o objetivo
de orientar as/os docentes e discentes a lidar com o preconceito em
relação à diversidade de gênero e sexual. Contudo, a bancada cristã e
conservadora da Câmara de Deputados considerou que esse
conhecimento estimularia as/os discentes a serem LGBTTQIAPN+.
Argumentos apoiados por esta bancada da Câmara de Deputados, que
barraram a divulgação das cartilhas, demonstram o preconceito, a
3 Disponível em: <https://www.escolasempartido.org >. Acesso em: 14 de setembro de 2020.
4 A bancada conservadora da Câmara de Deputados criticou o conteúdo da cartilha contra a
homofobia, desenvolvido com a parceria entre o Ministério da Educação (MEC) e a
organização não-governamental Ecos Comunicação em Sexualidade, apelidando
pejorativamente de kit gay. Contudo, esse material é construtivo, didático, pedagógico e
respeita o tempo de formação das crianças para o desenvolvimento de uma sociedade que
lute contra a violência e a discriminação em relação à comunidade LGBTTQIAPN+.
261
falta de conhecimento sobre a sexualidade e o desinteresse em acabar
com a LGBTTQIAPN+fobia.
Nos últimos anos, houve também a eclosão de um movimento
religioso conservador que passou a utilizar o termo “ideologia de
gênero ao referenciamento contra os estudos de gênero. Dessa forma,
foram desenvolvidas ações políticas que reafirmaram e impunham
valores cristãos tradicionais e dogmáticos, buscando conter a garantia
ou ampliação de direitos voltados para as mulheres e
LGBTTQIAPN+. Sendo assim, tem sido realizado um forte
investimento para que haja uma (re)naturalização do conceito de
família, da cisgeneridade e da heterossexualidade. Nesse sentido,
busca-se a defesa de uma família representada como a “única natural”,
criada por meio do matrimônio cisheterossexual reprodutivo e
apresentada como aquela que deve ser protegida, pois é ameaçada
constantemente (JUNQUEIRA, 2017).
Como efeito das discussões do Movimento Escola sem Partido
e do Movimento Contra a Ideologia de gênero, por meio da
tematização dos “riscos ao serem inseridas essas discussões nas
instituições escolares, foram pautadas reformulações curriculares.
Pensando em nível local, no município de Jequ (BA), desde 2015,
ocorreram muitos confrontos desde que iniciaram as Audncias
Públicas para as discussões do Plano Municipal de Educação (PME),
período de 2015 a 2025.
Como resultado dessas audiências, o debate centrou-se na
retirada das questões de nero e sexualidade por movimentos
conservadores apoiados, sobretudo, pelas igrejas católicas e
protestantes. Dessa forma, questões referentes à eleição direta para a
diretoria escolar e a melhoria da alfabetização foram consideradas
menos importante devido ao receio de que houvesse a inserção de
gênero e sexualidade nesse PME. No documento final do PME, as
262
diretrizes relacionadas à gênero e sexualidade foram retiradas, porém
o componente curricular não foi excluído das escolas (SANTANA;
SOUZA, 2019).
Dado o atual contexto social, político e histórico que reitera
diversos ataques e acusações sobre as discussões de gênero e
sexualidade na escola, esse retrocesso direciona nossa atenção para
criarmos resistências, combatendo esses ataques e estimulando as
discussões e pesquisas nessas áreas. Destarte, ter um componente
curricular que fale sobre sexualidade, na educação básica, é persistir
diante das investidas ao nosso trabalho. De acordo com Judith Revel
(2005), inspirada nos conceitos essenciais de Foucault, a resistência
acontece por meio das relações de poder como uma possibilidade de
criar um espaço de lutas e possibilidades de transformações por toda
parte.
A articulação dos grupos conservadores, além de impedir com
que conquistas históricas sejam garantidas e promovidas, buscam
controlar e limitar o debate e a proliferação de saberes que poderiam
romper com o patriarcado e a cisheteronormatividade em nossa
sociedade. Conforme destacado nessa breve análise histórica, é
possível compreender que resistir é ir contra o processo de controle e
disciplinamento das/os corpas/os que tem raízes profundas em nossa
sociedade (FOUCAULT, 1988). Dessa forma, resistir é construir
novas possibilidades de viver as vidas que ainda não foram pensadas.
Para Michel Foucault (1988), as correlações de poder não
podem existir sem que haja diversas regiões de resistências, presentes
em todo o emaranhado da rede de poder. Portanto, esse autor nos
aponta que existem: “[...] resistências, no plural, que são casos únicos:
possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias,
planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao 264
263
compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício [...]”
(FOUCAULT, 1988, p. 106).
Nessas lutas e embates, as relações de força encontram-se por
todas as partes. Como aponta Michel Foucault, “[...] o poder não é
uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de
que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica
complexa numa sociedade determinada. (FOUCAULT, 1998, p. 89).
Apesar de estarmos envolvidos em relações assimétricas de poder, é
importante nos mobilizarmos ativamente para criar, transformar,
articular e (re)construir práticas de resistência visando a modificação
da realidade.
Com a intensificação dos movimentos conservadores e
retirada das discussões de gênero e sexualidade do currículo das
instituições escolares, a disciplina Educação para Sexualidade
continua sendo desenvolvida no município de Jequié, desde 2005.
Embora não tenha havido investimentos na formação para o trabalho
com o componente EPS, compreendemos que os governos
municipais não foram contrários ao seu desenvolvimento.
Ao longo do tempo, a disciplina Educação para Sexualidade
vai ganhando contornos diferentes conforme quem vai assumindo
esse componente curricular. Docentes mais jovens m trazendo
novas discussões e ressignificando sua proposta curricular. Assim,
compreendemos essa disciplina como multifacetada, ou seja,
dependendo de quem a assume, esta(e) pode dar conotações
singulares para o componente curricular. De qualquer forma,
consideramos um avanço o fortalecimento desses debates que,
durante muito tempo, se mantiveram ausentes das instituições
escolares ou restritas aos momentos pontuais.
Embora tenha sido criada para trazer discussões numa
perspectiva preventiva e, algumas vezes higienista, pesquisas de
264
Azevedo (2013), Cabral (2016), Souza (2017), Santana (2020) e
Passos (2022) destacam que as discussões na disciplina também se
configuram como um local de escapes. Nessas pesquisas,
algumas/alguns professoras/es afirmam que discutem, em suas aulas,
questões relacionadas à diversidade sexual, identidades de gênero,
intersexualidade, masturbação, violência sexual.
Ainda percebemos que a disciplina EPS tem dialogado pouco
sobre o desejo e o prazer sexual. Apoiados em Deborah Britzman
(2001), reiteramos a necessidade de o debate sobre sexualidade não se
limitar ao perigo e ao contágio das IST e da aids. Inclusive, as
pesquisas realizadas por Queiroz (2007) e Passos e Souza (2019)
salientam que as(os) discentes consideram a disciplina EPS relevante
e manifestam o desejo de que, além do que é dito, a disciplina
também aborde de maneira mais contundente as relações e os prazeres
sexuais.
Isso nos faz refletir sobre os processos de subjetivação que
envolvem essas/es discentes. Afinal, que sujeitos desejam formar
introduzindo esses conhecimentos nas discussões? De acordo com
Anderson Ferrari (2010), entendemos a educação como campo
privilegiado para a construção de sujeitos e subjetividades, seja por
meio de uma educação mais formal no que se refere à formação
docente, currículo, cotidiano escolar, ou mesmo aquela que diz de um
propósito mais amplo. Portanto, esses processos de construção dos
sujeitos e das subjetividades nos permitem colocar a cultura e a
sociedade em debate.
Diante disso, defender a continuidade desse componente
curricular é um desafio para nós que acreditamos na necessidade da
construção de uma sociedade que reconheça as diferenças e possibilite
a vivência da sexualidade contestando a ordem regulatória
265
cisheteronormativa e patriarcal. Por isso, precisamos continuar
res(ex)istindo.
Reflexões Infindáveis
O estímulo de políticas nacionais, tais como os PCN, em
1998, provocou a iniciativa para as discussões sobre sexualidade na
escola. A criação da SECADI, do Programa Brasil Sem Homofobia e
do Curso Gênero e Diversidade na Escola também foram importantes
para o reconhecimento e fortalecimento do debate sobre diversidade
de gênero e sexual na escola, embora, não tenham se firmado
enquanto políticas de Estado. Em contrapartida, possivelmente, o
estímulo desses projetos refletiu na criação, em 2005, da disciplina
Educação para Sexualidade em escolas municipais de ensino
fundamental em Jequié (BA).
No início, as discussões da disciplina EPS foram fortalecidas
e ampliadas por meio de projetos, fóruns e núcleo da diversidade.
Entretanto, as mudanças de gestões políticas interferiram na
manutenção desses debates. As narrativas indicaram que as pesquisas
do grupo Acuendações e os cursos fornecidos pelo Odeere
fortaleceram sua permanência.
Entre os ataques realizados no município de Jequ em relação
às questões de gênero e sexualidade, houve a retirada das diretrizes
sobre sexualidade do PME (2015-2025), por pressões de movimentos
religiosos católicos e protestantes e outros grupos conservadores.
Apesar disso, a disciplina EPS continua sendo desenvolvida e resiste,
embora, esteja, de alguma forma, ameaçada.
Ao longo do tempo, as(os) docentes da disciplina Educação
para Sexualidade centralizaram os debates das aulas em torno das
questões da prevenção à gravidez na adolescência e ao contágio das
266
IST/aids, contudo, nos últimos anos têm havido novos enfoques,
especialmente em relação à diversidade de gênero e sexual e à violência
sexual, embora nem sempre as(os) professoras(es) se sintam seguras(os)
e confortáveis em desenvolver essas discussões.
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270
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QUAL O IMPACTO DE UMA DISCIPLINA SOBRE
GÊNERO E SEXUALIDADES NA FORMAÇÃO
INICIAL EM PEDAGOGIA?
Matheus Estevão Ferreira da Silva1
Introdução
A expansão das iniciativas de formação de professores(as)
sobre os temas gênero e sexualidades é uma realidade vivenciada no
país fortemente nas duas últimas décadas, com diversas experiências
reportadas na literatura (FRANÇA; CALSA, 2010; GESSER et al.,
2012; DESLANDES, 2015; SOARES, 2018). Como mencionam
vários(as) autores(as) (DESLANDES, 2015; SILVA; BRABO; 2021;
VIANNA, 2012), isso se tratou de um longo processo que se deu
junto às atividades de movimentos sociais, em especial os
Movimentos Feminista e LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais,
transexuais, transgêneros em geral, queer, intersexuais, assexuais, etc.)2,
por meio de mobilizações populares, assim, como também decorre do
compromisso afirmado pelo país em tratados internacionais de
direitos humanos, dos quais historicamente sempre foi signatário, em
1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP), Campus de Marília, e Professor Bolsista na graduação em Pedagogia da mesma
instituição, São Paulo, Brasil. E-mail: matheus.estevao2@hotmail.com.
2 A primeira sigla para denominação do movimento foi GLS (gays, lésbicas e simpatizantes),
posteriormente expandida para GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros), alterada para
LGBT sob reinvindicação das feministas sbicas, e, atualmente, tem-se utilizado a referida
sigla LGBTQIA+.
272
sua maioria emitidos pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), como o Programa
Mundial para Educação em Direitos Humanos (PMEDH).
Dessa forma, para implementação dessas políticas, as referidas
iniciativas para capacitação de profissionais na área da Educação
cresceram à medida em que tais políticas eram promulgadas.
Professores e professoras, em especial, assumem posição privilegiada
para essa implementação, pois “se colocarão entre o que pre esse
campo normativo (e movimentos sociais que o reivindicam) e a sua
realização na escola, [sendo] os(as) principais responsáveis pela abor-
dagem e discussão de gênero e sexualidade com os(as) formandos(as)”
(SILVA; BRABO, 2021, p. 211), como também consideram Gesser
et al. (2012), Ribeiro e Faria (2014) e Soares (2018).
Em concomitância a esse quadro, ainda que aos poucos, a
legitimidade dos temas foi reconhecida nos cursos de formação inicial
de professores(as)especificamente pelas graduações em Pedagogia e
licenciaturas –, os quais incluíram gênero e sexualidades como parte
de seu conteúdo curricular programático, embora em boa parte isso
tenha acontecido sob muita reivindicação e embate, conforme rela-
tam muitos(as) professores(as) universitários(as) envolvidos(as) nesse
processo de inclusão dos temas nos respectivos cursos de graduação
em que atuam (LEÃO, 2009; UNESCO, 2014; SOARES, 2018).
É importante salientar que essa inclusão se dá, na maioria das
vezes, a partir da inclusão de uma disciplina específica sobre gênero,
sexualidades e temas relacionados na grade curricular desses cursos,
como uma disciplina optativa ou obrigatória, apesar de que em parte
dessas experiências também se considere a inclusão da transversalidade
dos temas (RIBEIRO; FARIA, 2014), seja ela prevista em todo o
curso, seja em determinadas disciplinas que a princípio aparentam são
273
ser específicas, mas que são potenciais para a abordagem e discussão
de gênero e sexualidades.
Diante desse cenário, torna-se pertinente questionar, na
perspectiva dos(as) estudantes, futuros(as) educadores(as), sobre quais
as possibilidades que profissionais da Educação dispõem para uma
formação em gênero e sexualidades desde a graduação, se essa
formação é ofertada para além de uma disciplina específica, se
acontece de modo transversal em outras disciplinas e/ou em
atividades semi e extracurriculares, além de também se questionar se
essa formação, de fato, concretiza-se.
Este capítulo, portanto, aborda parte dos resultados de uma
pesquisa desenvolvida a nível de Mestrado Acadêmico, concluída em
2022 (SILVA, 2022)3, que, dentre outros objetivos, buscou analisar
a percepção de graduandos(as) em Pedagogia sobre as possibilidades
de formação em gênero e sexualidades no seu curso. Essa pesquisa foi
proposta como continuidade de uma pesquisa anterior de Iniciação
Científica (IC), realizada entre 2017 e 2018 (SILVA, 2018)4, que
investigou a formação em gênero, sexualidades e ética de
graduandos(as) em Pedagogia de uma Universidade pública paulista.
Posto que nessa pesquisa anterior se inferiu haver uma fragilidade
formativa nesses aspectos investigados, na pesquisa de Mestrado
buscou-se verificar se esse resultado condiz com outras realidades e
3 Intitulada Competência moral, gênero e sexualidades, e religiosidade na formação inicial
pública paulista em Pedagogia e Psicologia, foi financiada pelo CNPq pelo processo de n.º
131735/2020-9, no período de 01/03/2020 a 31/10/2020, e pela FAPESP pelo processo de
n.º 2020/05099-9, com vigência de 01/11/2020 a 31/01/2022, orientada pela Dr.ª Patrícia
Unger Raphael Bataglia e co-orientada pela Dr.ª Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo.
4 Essa pesquisa anterior teve como título Educação em direitos humanos, gênero e sexualidades,
e desenvolvimento moral na formação docente: conhecimentos, concepções e condutas de
graduandos(as) em Pedagogia de uma universidade pública do estado de São Paulo, financiada
pela FAPESP pelo processo de n.º 2017/01381-9, com vigência de 01/05/2017 a
31/12/2018, sendo orientanda pela Dr.ª Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo e co-
orientada pela Dr.ª Alessandra de Morais.
274
ambientes universitários, expandindo a investigação. Nessa expansão,
adicionou-se mais um curso de Pedagogia, considerando a presença
de uma disciplina específica sobre gênero e sexualidades na sua grade
comum curricular. Assim, foram dois cursos participantes, um curso
que tem gênero e sexualidades como conteúdos curriculares e outro
curso que não os têm, ambos localizados no contexto universitário
pública paulista.
Dada a impossibilidade de se produzir uma discussão que
abrangesse todos os resultados encontrados com ambos os cursos
participantes, delimitamos este artigo para abordagem dos resultados
obtidos com o curso de Pedagogia que dispõe de uma disciplina
específica sobre os dois temas na sua grade comum curricular.
Metodologia
A metodologia consistiu na aplicação de um questionário
composto por perguntas abertas e fechadas. Tratou-se do mesmo
questionário elaborado e utilizado na pesquisa anterior de IC, mas
que teve de passar por um processo de adaptação na pesquisa de
Mestrado. Compuseram-no 13 perguntas que questionavam sobre a
percepção dos(as) graduandos(as) sobre os aspectos curriculares de seu
curso no que tange às possibilidades de formação em gênero e
sexualidades.
Esse questionário foi aplicado no curso de Pedagogia de uma
Universidade pública paulista, curso escolhido pelo critério de os
temas gênero e sexualidades estarem previstos como parte de seu
conteúdo curricular programático, nomeadamente dispondo de uma
disciplina específica sobre os temas na sua grade comum curricular.
Então aplicado em formato eletrônico, em razão da Pandemia de
COVID-19, responderam ao questionário cerca de 105 sujeitos
275
(N=105), contemplando graduandos(as) matriculados(as) nos quatro
anos que o curso tem de duração.
Além disso, antes das perguntas que questionavam a
percepção dos(as) graduandos(as) sobre os aspectos curriculares, havia
ainda algumas perguntas de caráter sociodemográfico para
caracterização dos sujeitos, na identificação das variáveis da amostra.
A partir delas, pôde-se identificar que a amostra foi composta por 26
graduandos(as) matriculados(as) no primeiro ano (24,8%), 34
matriculados(as) no segundo ano (32,4%), 24 matriculados(as) no
terceiro ano (22,9%) e 21 matriculados(as) no quarto ano (20,0%),
segundo a varável ano de matrícula, totalizando 105 participantes
(N=105); 98 eram mulheres cisgênero (93,3%), 06 homens cisgênero
(5,7%) e 01 sujeito não-binário (1,0%), segundo a varável gênero; 30
sujeitos indicaram ser bissexuais (28,8%), 65 heterossexuais (62,5%),
06 homossexuais (5,8%), e 03 pansexuais (2,9%), segundo a varável
orientação sexual; 10 sujeitos classificam-se como pretos (9,6%), 14
pardos (13,5%), e 80 brancos (76,9%), segundo a varável raça-etnia;
33 sujeitos indicarem ser agnósticos(as) (31,7%), 03 ateístas (2,9%),
01 indicou ser budista (1,0%), 31 católicos (29,8%), 05 espíritas
(4,8%), 26 evangélicos (25,0%), 01 indicou ser umbandista (1,0%),
01 indicou ser cristão (1,0%) e 03 da religião Wicca (2,9%), segundo
a varável religião; e 91 sujeitos indicaram a graduação em Pedagogia
em andamento ser sua primeira graduação (87,5%) e 13 indicaram
possui outra graduação (12,5%), segundo a varável nível de formação.
Trata-se, portanto, de uma amostra em sua maioria composta por
mulheres cisgênero, heterossexuais, brancas, de religião de base cristã
(católica e evangélica) e que tinham a Pedagogia em andamento como
primeira graduação.
Não obstante, embora tenha sido objetivo do estudo analisar
a percepção dos(as) graduandos(as), incluiu-se a análise do Projeto
276
Político-Pedagógico (PPP) e da grade curricular do curso em questão,
a partir do procedimento de análise documental, para uma avaliação
pormenorizada do lugar que os temas ocupam no conteúdo curricular
programático do curso e posterior comparação com as respostas
dos(as) graduandos(as), contrastando o que é previsto formalmente e
o que é relatado realmente acontecer no que tange à formação em
gênero e sexualidades.
Resultados
Análise do Projeto Político-Pedagógico (PPP) e da grade curricular
Para a análise do PPP do curso, algumas categorias foram
eleitas como forma de norteá-la, sendo elas: 1) aspectos formais
(duração, período e organização); 2) estágios e relação entre teoria e
prática; e 3) atividades acadêmico-científicas e culturais.
Consta no texto do PPP, como dois de seus objetivos
específicos, que o curso deve “buscar, de forma criativa, inovadora e
com responsabilidade social, responder às demandas surgidas em seu
tempo de atuação profissional”, assim como deve “comprometer-se
com a superação de quaisquer práticas excludentes presentes nos
rituais educativos” (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO). Tais
objetivos se mostram potenciais para a abordagem de gênero e
sexualidades.
O documento também sumariza algumas das principais
características formais do curso: 1) duração, “o curso tem um total de
3.600 horas distribuídas e organizadas em 08 (oito) semestres letivos,
perfazendo um total de 04 (quatro) anos”; 2) período, “o curso
funciona no período noturno, incluindo-se atividades aos sábados.
[...] o desenvolvimento de atividades de Estágios Supervisionados está
277
previsto para o período diurno”; 3) organização, “este curso é
constituído [...] por núcleos: um núcleo de estudos básicos, constando
as respectivas disciplinas obrigatórias (de formação geral e
profissional); um núcleo de aprofundamento e diversificação de
estudos, relativos às disciplinas obrigatórias de aprofundamento,
disciplinas optativas e o TCC; um cleo de estudos integradores,
relacionados as atividades do PI e atividades acadêmico-científicas e
culturais, e ainda; os Estágios Supervisionados” (PROJETO
POLÍTICO-PEDAGÓGICO).
Sobre a iniciação às práticas investigativas, no documento se
ressalta que “A formação de professores [...] exige que seja inscrita na
conduta desses futuros profissionais uma postura investigativa” e,
dessa forma, que “a preocupação com o incentivo às práticas
investigativas que se materializam, neste projeto, da seguinte forma:
1. Exigência de elaboração de Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC), e 2. Exigência da participação em eventos de natureza
científica e/ou cultural, sob a forma de atividades acadêmico-
científicas e culturais” (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO).
Além do TCC e participação em atividades acadêmico-científicas e
culturais, que foi a última categoria de nossa análise, também a
possibilidade do pleito de bolsas de pesquisa e extensão no curso,
embora o PPP não seja explícito quanto a isso.
Findadas essas categorias que traçamos para a presente análise,
pode-se concluir, em síntese, que o curso de Pedagogia parece, pelo
menos na perspectiva burocrática, proporcionar aos discentes uma
formação qualificada e integral, na qual se incluem as formações em
gênero e sexualidades, em que os(as) alunos(as) têm, no âmbito da
pesquisa e extensão, diversas bolsas de apoio para isso, assim como
também têm disponíveis grupos de estudos e núcleos integradores.
Outros recursos nesse sentido são os eventos acadêmicos, científicos e
278
culturais. Além disso, o texto do PPP é explícito pontualmente e
implícito por diversas vezes quanto à preocupação dessa formação nos
aspectos formativos que nos interessam: a abordagem de gênero e
sexualidades.
Quanto à análise da grade curricular do curso, são oferecidas:
34 disciplinas obrigatórias, pertencente ao núcleo de estudos básicos;
11 disciplinas de aprofundamento; e 09 disciplinas optativas, das
quais os(as) graduandos(as) devem escolher cursar pelo menos duas.
Além dessas, eles(as) também m a opção de cursar como disciplinas
optativas outras disciplinas oferecidas em outros cursos de graduação
do campus. Cabe ressaltar que esse curso foi escolhido para participar
em nossa pesquisa por dispor de uma disciplina específica,
pertencente ao cleo de estudos básicos e, portanto, obrigatória, para
abordagem e trabalho junto aos temas gênero e sexualidades. Essa
disciplina conta com a carga horária de 60 horas e é oferecida no
quinto semestre (terceiro ano) do curso.
Além desta disciplina, como anunciado na análise do PPP, são
várias outras disciplinas, obrigatórias, de aprofundamento e optativas,
que compõem a grade curricular do curso. No entanto, não foi
encontrada nenhuma outra disciplina que aborde os temas como o
seu assunto central ou como um assunto privilegiado em sua proposta.
Para se saber se os temas são abordados transversalmente ao longo do
curso, inclusive nessas outras disciplinas, recorreu-se às perguntas que
compuseram o questionário aplicado, parte delas que interrogavam
sobre a percepção dos(as) estudantes sobre dados curriculares do curso,
como a abordagem transversal dos temas.
279
Sobre as possibilidades de formação em atividades curriculares
Schillinger-Agati (2006) fornece uma das várias classificações
disponíveis na literatura sobre as atividades acadêmicas. Com base
nessa autora, podemos dividir as atividades acadêmicas em pelo
menos três dimensões: em curriculares, sendo essa primeira dimensão
referente às atividades obrigatórias para a formação do(a) estudante e
desenvolvidas em sala de aula ambiente tradicional em que ocorre
o processo formativo; em semicurriculares, referente às atividades
obrigatórias para a formação, mas que ocorrem para além da sala de
aula; e em extracurriculares, referente às atividades não obrigatórias
para a formação, porém que contribuem para essa formação.
As perguntas de nosso questionário foram organizadas de
modo a contemplar essas três dimensões no que tange à formação em
gênero e sexualidade em Pedagogia. Assim, as suas perguntas de
número 01 e 02 concerniram à dimensão curricular; as perguntas 03,
04, 05 e 06 concerniram à dimensão semicurricular; e as perguntas
07, 08 e 09 concerniram à dimensão extracurricular. Aqui,
apresentamos primeiro a análise das respostas dos(as) participantes às
perguntas da dimensão curricular, prosseguindo às análises das
respostas das demais dimensões em seguida.
O gráfico da Figura 1, disposto a seguir, representa a pergunta
de número 01 do questionário: “No curso de Pedagogia, você se
lembra de ter recebido alguma formação em relação aos temas gênero
e sexualidade até o momento?”.
280
Figura 1 – Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se receberam alguma
formação em relação aos temas gênero e sexualidade no curso
Fonte: Dados da pesquisa
Como mostra a Figura 1, a maioria dos(as) graduandos(as),
69 sujeitos, afirmou que não recebeu uma formação sobre gênero e
sexualidade, embora no curso haja uma disciplina específica sobre os
temas. Verificando a progressão das respostas de ano a ano, do
primeiro ao quarto, observa-se que a maioria dos(as) graduandos(as)
aponta não receber essa formação até o segundo ano, sendo que a
partir do terceiro ano uma mudança nas respostas, no qual 18
sujeitos afirmaram -la recebido em contraponto a 11 sujeitos que
afirmam não a ter. No quarto ano, essa mudança é reafirmada com
18 sujeitos que afirmam ter recebido e 03 sujeitos que afirmam que
não.
Ressalta-se que a disciplina específica aos temas gênero e
sexualidades é oferecida no terceiro ano, evidenciando o motivo para
essa mudança nas respostas a partir do terceiro ano. Ainda assim, com
a afirmação negativa nos anos anteriores, infere-se que os temas não
estão sendo trabalhados de forma transversal nas disciplinas não
0
10
20
30
40
50
60
70
Primeiro
ano
Segundo
ano
Terceiro
ano
Quarto
ano
Total
2 2
13 18
35
24
31
11
3
69
Sim Não
281
específicas aos temas no curso, visto que a maioria dos(as)
graduandos(as) reconhecem ter recebido esse tipo de formação
depois de passarem pela disciplina específica.
A Figura 2, disposta a seguir, representa a pergunta de número
02: “Você produziu, apresentou ou assistiu trabalhos ou seminários
em classe que abordaram os temas nero e sexualidade?”.
Figura 2 – Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se produziram,
apresentaram ou assistiram trabalhos ou seminários em classe que abordaram os
temas gênero e sexualidade
Fonte: Dados da pesquisa
A maioria dos(as) graduandos(as), 72 sujeitos, assinalou que
não desenvolveu/assistiu trabalhos que abordam os temas, em
contraponto a 31 sujeitos que assinalaram positivamente. Essa
maioria prevalece em quase todos os anos do curso, ainda que parte
da amostra afirme ter desenvolvido/assistido esse tipo de atividade.
Apenas no quarto ano o número foi maior de sujeitos que afirmam
ter desenvolvido/assistido trabalhos sobre os temas, 13 sujeitos, em
contraponto a 08 sujeitos. Nesse sentido, é importante salientar o
0
20
40
60
80
Primeiro
ano
Segundo
ano
Terceiro
ano
Quarto
ano
Total
10
2613
31
16
30
18
8
72
Sim Não
282
quão preocupante é, em um curso que dispõe de uma disciplina
específica para a abordagem dos temas, sua maioria assinalar não ter
participado do desenvolvimento dessas atividades, nem de pelo
menos -las assistido.
Ainda assim, se se observar a progressão no curso dos 31
sujeitos que assinalaram ter participado dessas atividades, pode-se
inferir que, depois da oferta da disciplina específica no terceiro ano, a
maioria dos sujeitos passa a ser de quem assinala ter participado das
atividades, ou seja, a participação nessas atividades apresenta uma
aparente dependência com a disciplina específica do curso.
Sobre as possibilidades de formação em atividades semicurriculares
Quanto à dimensão semicurricular das atividades de formação
em gênero e sexualidade (SCHILLINGER-AGATI, 2006), o gráfico
a seguir representa as perguntas de número 03 e 04 do questionário,
sendo elas, respectivamente: “Na instituição que você cursa, são
realizados eventos científicos sobre os temas gênero e sexualidade?” e
“Se sim [há eventos], você os frequenta ou teria interesse em
frequen-los?”.
283
Figura 3 – Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se são realizados eventos
científicos sobre os temas gênero e sexualidade na instituição em que cursa e se
os frequenta
Fonte: Dados da pesquisa
Primeiro cabe ressaltar que atividades acadêmico-científicas e
culturais, tais como eventos científicos, caracterizam-se como
atividades semicurriculares, pois são requisitos para conclusão do
curso. Sendo esses dois tipos de atividade de formação desenvolvidos
fora do ambiente tradicional de ensino em disciplinas, na sala de
aula –, como ressalta Schillinger-Agati (2006), a obrigatoriedade é o
principal fator que distingue as atividades semicurriculares das
extracurriculares.
Assim, voltando-se aos dados, a maioria dos(as)
graduandos(as), 66 sujeitos, assinalou que não são realizados eventos
sobre os temas e permaneceram como a maioria em quase todos os
anos, com exceção do quarto ano, mas em sútil diferença. Cerca de
18 desses 66 sujeitos também responderam à pergunta seguinte, de
número 07, junto aos que assinalaram conhecer a realização desses
eventos. Assim, desses 18 sujeitos junto aos 39 que responderem
0
20
40
60
80
Primeiro
ano
Segundo
ano
Terceiro
ano
Quarto
ano
Total
3379
22
710 11 7
35
17 26
15 8
66
Tem interesse
Não tem interesse
Não há eventos ou desconhece
284
conhecer essa realização de eventos, 22 assinalaram que frequentam
ou têm interesse em frequentar eventos científicos sobre gênero e
sexualidades, ao passo que 35 sujeitos assinalaram que não. Quem
assinalou negativamente permaneceu como maioria em quase todos
os anos, também com exceção do quarto ano e em sútil diferença.
O gráfico da Figura 4 abarca as respostas às perguntas de
número 05 e 06: “Você realizou/está realizando estágio em escola?”
e “Se sim [exerce estágio], os temas gênero e sexualidade foram
abordados em algum momento?”, respectivamente.
Figura 4 – Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se realizaram/estão
realizando estágio em escola e se os temas nero e sexualidade foram abordados
em algum momento no estágio
Fonte: Dados da pesquisa
A maioria dos(as) graduandos(as), 66 sujeitos, assinalou que
exerce a atividade de estágio, enquanto 39 sujeitos assinalaram que
não exercem. Essa maioria aparece em maior número a partir do
segundo ano, uma vez que é a partir desse ano que o estágio
obrigatório é ofertado e o estágio remunerado tem seu exercício
0
10
20
30
40
50
60
Primeiro
ano
Segundo
ano
Terceiro
ano
Quarto
ano
Total
132612
9
21
14 10
54
19 14
51
39
Foram abordados Não foram abordados
Não desempenha estágio
285
permitido ao(à) estudante. Conforme a Figura 4, dos 66 sujeitos
estagiários, esses foram divididos entre quem assinalou que os temas
gênero e sexualidades foram abordados no estágio, 12 sujeitos, e quem
assinalou que não houve essa abordagem, 54 sujeitos. Assim, sendo a
maioria de quem assinalou não haver a abordagem, a progressão entre
os anos do curso mostra que em todos os anos prevalece essa não
abordagem dos temas no estágio.
Sobre as possibilidades de formação em atividades
extracurriculares
No que se refere à dimensão extracurricular
(SCHILLINGER-AGATI, 2006), produziu-se o gráfico a seguir que
representa a pergunta 07: “Você exerce atividade de pesquisa de
Iniciação Científica, Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e/ou
extensão, com ou sem bolsa, sobre os temas gênero e sexualidade?”.
Figura 5 – Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se exercem atividade de
pesquisa sobre os temas gênero e sexualidade
Fonte: Dados da pesquisa
Foram poucos(as) os(as) graduandos(as) que passaram por
esta experiência de pesquisa e/ou extensão no curso, sendo apenas 04
0
50
100
Primeiro
ano
Segundo
ano
Terceiro
ano
Quarto
ano
Total
00224
25 34 22 19
100
Sim Não
286
deles(as) em toda a amostra, e somente a partir dos anos finais no
curso, terceiro e quarto anos. Cabe salientar que o desenvolvimento
de TCC ocorre no último ano e que a abordagem dos temas nessa
atividade depende do interesse do(a) graduando(a) em abordá-los,
uma vez que a escolha de seu tema de pesquisa é livre. O mesmo
ocorre nas atividades de Iniciação Científica e bolsas de extensão, que
geralmente são assumidas pelos(as) graduandos(as) depois de terem
concluído alguns semestres no curso, além de depender do escopo de
pesquisa de seu(sua) orientador(a) para gênero e sexualidades serem
os temas dessas atividades.
O último gráfico, disposto a seguir, caracteriza as perguntas
de número 08 e 09: “Na instituição que você cursa, Grupos de
Pesquisa sobre os temas gênero e sexualidade?” e Você os frequenta
ou teria interesse em frequentá-los?”.
Figura 6 – Respostas dos(as) graduandos(as) sobre se Grupos de Pesquisa
sobre os temas gênero e sexualidade na instituição em que cursa e se teriam
interesse em frequentá-los
Fonte: Dados da pesquisa
0
20
40
60
80
100
Primeiro
ano
Segundo
ano
Terceiro
ano
Quarto
ano
Total
20 27 21 16
84
532515
15 29 17 14
75
Tem interesse
Não tem interesse
Não há Grupos ou desconhece
287
Do total da amostra (N=105), 75 sujeitos assinalaram que
desconhecem se Grupos de Pesquisa na Instituição em que cursam
Pedagogia, enquanto 30 sujeitos assinalaram que conhecem. Em
todos os anos do curso, prevaleceu essa maioria de quem desconhece.
Porém, 69 desses 75 sujeitos também responderam à pergunta
seguinte, de número 09, junto aos que assinalaram saber sobre os
Grupos de Pesquisa. Logo, a maioria foi de 84 graduandos(as) que
assinalou que frequenta ou que teria interesse em frequentá-los, em
contraponto a somente 15 sujeitos que assinalaram não frequentar ou
ter interesse, prevalecendo como maioria entre todos os anos do curso.
Discussão e Conclusão
Buscamos, neste artigo, analisar a percepção de
graduandos(as) em Pedagogia sobre possibilidades de formação em
gênero e sexualidades. O curso de graduação escolhido dispunha de
uma disciplina específica sobre os dois temas na sua grade comum
curricular, com carga horária semelhante às demais disciplinas. Costa
(2009, p. 115) ressalta que a carga horária diz muito sobre o quanto
o curso os temas como importantes: quando colocados em uma
disciplina com carga horária reduzida ou como disciplina optativa,
“fica latente é a ideia de que trabalhar com sexualidade e relações de
gênero na escola, apesar de importante, não é uma prioridade na
formação de um(a) cidadão(ã) [...] o que nos levaria à hipótese de que
são pouco enfatizados durante o curso”.
A análise que fizemos da grade curricular do curso mostrou
que essa disciplina específica, ofertada no terceiro ano, é a única que
traz os temas como seu assunto central ou privilegiado. No entanto,
como mostrou a análise do PPP, o curso sugere proporcionar aos(às)
discentes uma formação em gênero e sexualidades para além da
288
disciplina específica apenas (atividades curriculares), contando com
uma série de recursos para isso (como bolsas, Grupos de Pesquisa,
eventos acadêmicos, científicos e culturais sobre os temas, e etc.), ou
seja, também em atividades semi e extracurriculares na Universidade.
E isso se confirmou com a análise da percepção dos(as)
graduandos(as).
Embora não seja a maioria, uma parte significativa dos(as)
graduandos(as), aproximadamente 30% dos(as) 105 participantes,
mostrou saber da ocorrência de eventos científicos (39 sujeitos) e de
Grupos de Pesquisa (30 sujeitos). Além disso, analisando os dados
segundo a progressão no curso, viu-se que esses(as) graduandos(as) ou
passaram a ter maior incidência em relação aos anos anteriores ou até
chegaram a ser a maioria, de modo a inferir que à medida que
progridem no curso, eles(as) passam a ter mais conhecimento sobre a
Instituição que frequentam, sobre os recursos e atividades de
formação oferecidos, inclusive aqueles voltados a gênero e
sexualidades. Tal resultado, de mudança dos dados ao longo do curso,
repetiu-se quando foram perguntados(as) sobre se têm interesse ou
frequentam os eventos científicos e Grupos de Pesquisa sobre os temas.
Com isso, contrasta-se ao que se constatou com a análise do
PPP, pois, pareceu-nos que apesar do curso oferecer possibilidades
para a formação em questão, inclusive em atividades semi e
extracurriculares, a maioria dos(as) graduandos(as) parece
desconhecê-las, de modo que sua concretização depende da iniciativa
e interesse dos(as) graduandos(as), cabendo a eles(as) procurá-la para
além da disciplina específica. No estudo de Costa (2009, p. 116), que
entrevistou cerca de 07 universitárias de Pedagogia de uma
Universidade pública, erigiu-se um resultado semelhante, marcado
pelo “desconhecimento e a falta de interesse por parte destas alunas
quanto ao estudo da sexualidade e das relações de gênero em grupos
289
de estudos, como também a escassa participação em eventos sobre
esses temas (congressos, simpósios, mesas redondas)”.
Sem querer procurar por explicações reducionistas, uma série
de fatores podem ser elencados para justificar esse tipo de resultado,
desde o perfil do(a) estudante do curso em questão até a compressão
que os temas gênero e sexualidades dispõem na sociedade brasileira
em geral.
Sendo este curso ofertado no período noturno, Morais et al.
(2017) evidenciam que, no contexto universitário, geralmente
menor participação de estudantes do período noturno em atividades
semicurriculares e extracurriculares, que em sua maioria ocorrem ao
longo do dia (manhã e tarde), uma vez que trabalham e/ou residem
em outra cidade, não havendo estratégias institucionais que supram
as necessidades desse perfil de alunado. Dessa forma, tais estudantes
apresentam poucas possibilidades de participação nessas atividades de
formação dispostas durante o período diurno.
Além disso, autores(as) como Silva (2018) e Soares (2018)
apontam que, na cultura brasileira, determinados temas, como gênero
e sexualidades, são permeados por polêmicas e resistências, oscilando
em compreensão e sobre fortes referências religiosas. Embora na
História recente transformações nas ordens do gênero e das
sexualidades tenham sido encetadas, transformações marcadas pelas
reinvindicações dos Movimentos Feminista e LGBT (DESLANDES,
2015; SILVA; BRABO; 2021), as significações a respeito das duas
temáticas ainda são hegemonicamente influenciadas por posições
culturais e religiosas, que condenam tais movimentos, seus sujeitos
protagonistas e classifica gênero e sexualidades como temas
moralmente indesejáveis.
Todavia, se se viu o interesse em eventos científicos dos(as)
graduandos(as) aumentar conforme progrediam no curso; a maior
290
parte deles(as) ter mostrado interesse em Grupos de Pesquisa e
interesse que se manteve em todos os anos; e quem exercia pesquisa
ou extensão encontrava-se matriculado no terceiro ou quarto ano,
pode-se inferir sobre uma possível influência da disciplina específica
ofertada no terceiro ano. Se fora da Universidade os(as) alunos(as)
têm contato com os temas gênero e sexualidades apenas por meio de
artefatos culturais (RIBEIRO; FARIA, 2014) que reforçam
preconceitos e/ou transmitem conhecimentos equivocados a respeito
de seus reais significados, dentro da Universidade, e mediante essa
disciplina especialmente, eles(as) podem desconstruir tais
preconceitos e conhece-los a partir de referências teóricos científicos
e potenciais para subsidiar sua futura atuação profissional junto aos
temas.
Quando os(as) graduandos(as) foram questionados(as) sobre
se receberam alguma formação em relação aos temas, a maioria
afirmou que não, mas que, se distribuída entre os quatro anos,
manteve-se como maioria somente nos primeiro e segundo anos. Ou
seja, a partir do terceiro ano, os(as) graduandos(as) passaram a
assinalar que receberam essa formação, o que coincide com a oferta
da disciplina específica e, portanto, indica que gênero e sexualidade
não são abordados de modo transversal ao longo do curso, ficando
restritos a uma única disciplina.
Segundo Leão (2009, p. 35), a transversalidade diz respeito à
“possibilidade de se estabelecer relação entre os conhecimentos
tradicionalmente abordados pela escola e as questões do cotidiano dos
alunos. Assim, eles dão espaço para tratar de aspectos presentes na
realidade dos alunos”. Em ntese, abordar transversalmente um
conteúdo é articulá-lo aos conteúdos instituídos em disciplinas como,
na Educação Básica, com a Matemática, Biologia, Geografia, etc. Na
Educação Superior, abordar gênero e sexualidades transversalmente
291
seria trabalhá-los junto a temas como, por exemplo, História da
infância, da família, da profissão docente, etc., como também
ressaltam Costa (2009) e Leão (2009), que são temas recorrentes nas
disciplinas do curso de Pedagogia.
No Brasil, a proposta de transversalidade ganhou espaço com
os PCNs (BRASIL, 1997, p. 26), a partir dos Temas Transversais, sob
a justificativa de serem temas intensamente vividos pela sociedade,
pelas comunidades, pelas famílias, pelos alunos e educadores em seu
cotidiano [...] são questões urgentes que interrogam sobre a vida
humana, sobre a realidade que está sendo construída e que demandam
transformações”. E, desde os PCNs, gênero e sexualidades tiveram
a sua necessidade de abordagem transversal evidenciada, por meio de
seu caderno de volume 10, intitulado “Pluralidade cultural e
Orientação sexual” embora a proposta dos PCNs tenha suas críticas
e limitações para essa empreitada (COSTA, 2009; RABELLO, 2012).
Quanto a terem produzido, apresentado ou assistido trabalhos
ou seminários em classe sobre os temas, a maioria afirmou não ter
passado por essa experiência, porém que, novamente, a partir dos anos
finais do curso, e especificamente no quarto ano, a maioria se torna
de quem passou por ela, coincidindo com a oferta da disciplina
específica. Esse resultado reitera a importância da disciplinaridade na
abordagem dos temas, principalmente quando não é garantida a
transversalidade, tal como mostraram os dados anteriores. Conforme
ressalta Soares (2018, p. 49), “por essa razão”, uma transversalidade
que deveria ocorrer, mas não ocorre, “as disciplinas [específicas]
ofertadas no curso de Pedagogia exercem papel relevante como
formadoras de profissionais da Educação”.
Costa (2009, p. 106, grifos meus) também defende a
necessidade da disciplinaridade estar atrelada à transversalidade para
a abordagem de gênero e sexualidades, combinando-as, e, no caso da
292
primeira, visando “uma formação acadêmica que abarque o trabalho
destes temas como disciplinas obrigatórias”. Nesse sentido, talvez a
principal vantagem da disciplinaridade é garantir a presença dos
temas nero e sexualidades, considerando que nem os(as)
próprios(as) alunos(as), que poderiam demandar a sua abordagem nas
aulas, ou mesmo os(as) docentes em suas respectivas disciplinas não
específicas, podem se interessar ou estarem dispostos a abordá-los.
Todos esses resultados aqui apresentados demonstram que, no
caso do curso investigado, embora gênero e sexualidades estejam
aparentemente incluídos como parte de seu conteúdo curricular
programático e inclusão prevista nas modalidades disciplinar e
transversal, como informa seu PPP –, eles se restringem à disciplina
específica que o curso dispõe para sua abordagem. Desse modo,
infere-se sobre a dependência com a disciplinaridade que os temas são
submetidos para fazerem parte da formação dos(as) seus(suas)
graduandos(as). Em outras palavras, mesmo que garantidos pela
disciplina específica obrigatória, não parece haver articulação desse
conteúdo com os demais conteúdos abordados ao longo do curso, o
que enriqueceria, caso essa articulação acontecesse, a formação em
gênero e sexualidades que nele é ofertada.
É importante relembrar que “as/os profissionais habilitadas/os
em Pedagogia atuarão basicamente na Educação Infantil e nas séries
iniciais do Ensino Fundamental”, conforme expõe Soares (2018, p.
49), “devendo ter tido uma formação que lhes possibilite trabalhar no
ambiente escolar no enfrentamento às discriminações e na promoção
da igualdade e reconhecimento da diversidade”. É diante dessa
responsabilidade que a profissão que carrega que foram erigidas as
iniciativas para capacitação desses(as) profissionais desde a graduação,
de estratégias como cursos de formação de curta duração (VIANNA,
2012; DESLANDES, 2015; CATHARINO, 2006; FRANÇA;
293
CALSA, 2010) até a inclusão de disciplinas específicas aos temas nos
cursos de licenciatura (LEÃO, 2009; UNESCO, 2014; SOARES,
2018).
Diante disso, cabe continuar a defender a importância de se
incluir uma disciplina específica na grade comum dos cursos de
graduação, mas sabendo que essa não deve ser a única iniciativa para
se alcançar a desejada formação em gênero e sexualidades de qualidade
necessária aos(às) futuros(as) educadores(as). Uma abordagem mista,
disciplinar e transversal, e em atividades curriculares, semicurriculares
e extracurriculares, parece-nos a melhor alternativa nessa empreitada.
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CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E
TECNOLÓGICA
Gislaine Gabriele SAUERESSIG5
Daniela Medeiros de Azevedo PRATES6
Gênero, Desigualdades e Educação: Notas Preambulares
Em 2018, a Declaração dos Direitos Humanos completou 70
anos em um contexto internacional de crescente hostilidade contra os
Direitos Humanos e contra os avanços e conquistas de direitos de
gênero, étnicos e outras minorias. No contexto nacional, em maio de
2016, após o impedimento da primeira Presidenta da República,
acompanhamos a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade
Racial e dos Direitos Humanos. Os Ministérios passaram a ser
ocupados predominantemente por homens. No Congresso, Projetos
de Lei cerceadores de Direitos Humanos, como o Estatuto do
Nascituro7, discursos violentos e discriminatórios, apologia à tortura
5 Assistente em Administração do Departamento de Administração e de Planejamento do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia-Sul-riograndense (IFSul), Sapucaia do
Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: gislainesaueressig@ifsul.edu.br.
6 Professora do Departamento de Pesquisa, Ensino e Extensão (DEPEX) e Docente
Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica
(ProfEPT) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia-Sul-riograndense (IFSul),
Charqueadas, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: danielaprates@ifsul.edu.br.
7 O Estatuto do Nascituro é um Projeto de Lei (PL 478/2007), que visa garantir a proteção
integral ao nascituro, pois considera que a vida humana começa na concepção. Dessa forma,
298
e até assédios sexuais de parlamentares a suas colegas mulheres
passaram a ser notícias frequentes.
O assassinato da Vereadora do Rio de Janeiro, a socióloga
Marielle Franco, e de seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de
março de 2018, marcou o contexto político nacional. Mulher, negra,
lésbica, mãe, moradora da Favela da Maré/RJ, Marielle militava pelos
Direitos Humanos, tinha discursos assertivos na Assembleia e traçava
uma carreira ascendente na política. O carro em que estava foi
atingido por 13 tiros, disparados por ex-policiais militares. O
atentado ficou conhecido como um caso de feminicídio político. O
Assassinato da vereadora é visto como um golpe ao Estado
Democrático de Direito e tomou visibilidade internacional.
O Brasil é um país hostil com mulheres e LGBTQI+. A taxa
de feminicídio no Brasil é a quinta maior do mundo. Segundo a
Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de assassinatos
chega a 4,8 para cada 100 mil mulheres. Apenas entre 2003 e 2013,
houve aumento de 54% no registro de mortes de mulheres negras. Na
maior parte das vezes, são os próprios familiares (50,3%) ou
parceiros/ex-parceiros (33,2%) os que cometem os assassinatos
(WAISELFISZ, 2015). Estima-se que cerca de 90% da população de
mulheres transexuais e travestis do país, devido à não aceitação no
mercado formal de trabalho, acaba recorrendo à prostituição, e por
conta disso são ainda mais expostas à violência (ALMEIDA;
VASCONCELLOS, 2018).
Além disso, as mulheres têm maior escolarização, trabalham
mais horas por dia, e são menos remuneradas. Segundo o IBGE
o aborto seria proibido em todos os casos, inclusive os previstos em lei, como estupro, risco
à integridade física da gestante e anencefalia do feto. Se aprovado o PL, o aborto passa a ser
considerado crime hediondo. Paralelamente também a PEC (Proposta de Emenda à
Constituição) 29/2015, conhecida como PEC da Vida, que altera o art. da Constituição
Federal para explicitar que o direito à vida é inviolável desde a concepção.
299
(2018), no Brasil, mulheres ganham, em média, 76,5% do
rendimento dos homens. A carga de afazeres e responsabilidades
domésticas e com pessoas dependentes e o baixo número de mulheres
que ocupam cargos gerenciais são alguns aspectos que colaboram para
essa situação.
A baixa representatividade feminina na política brasileira é
histórica, e não apresenta progresso significativo, apesar de 52% da
população brasileira ser composta por mulheres. Segundo o Mapa
Mulheres na Política 2019, o Brasil ocupa a posição 134 no ranking
de representatividade feminina no Parlamento, do total de 193 países
pesquisados. No ranking da representação feminina no governo atual
o país ocupa a posição 149, de 188, com 9% de representatividade
feminina, quando a média mundial é de 20,7% (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2019).
Durante a pandemia de Covid-19 as desigualdades de gênero
são intensificadas e particularizam os efeitos econômicos, sociais e
sanitários para as mulheres no Brasil, principalmente mulheres negras
e pobres (BARROSO, GAMA, 2020; DE BRITO, 2020; ESTRELA
et al., 2020; INSFRAN, MUNIZ, 2020). Dentre as desigualdades de
gênero intensificadas neste período estão acesso à renda e ao trabalho,
divisão de trabalhos domésticos e de reprodução da vida, violência
doméstica e intrafamiliar, direitos sexuais e reprodutivos. De acordo
com Agência Brasil (2020), em abril de 2020, as denúncias de
violações aos direitos e à integridade das mulheres aumentaram 36%
se comparado ao mesmo período de 2019. Com maiores taxas de
desemprego (BARROSO, GAMA, 2020; DE BRITO, 2020), a
sobrecarga do trabalho não remunerado e a perda da conexão com
outras mulheres devido ao distanciamento social, intensificam-se o
silenciamento, a invisibilidade e a dificuldade de quebrar o ciclo de
violência contra mulheres no espaço doméstico.
300
Essas desigualdades historicamente construíram um mundo
aberto ao exercício do espaço público aos homens e de dependência
às mulheres, o que no Brasil pode ser visibilizado no fato de as
mulheres passarem a exercer profissões de forma expressiva somente a
partir da década de 80. ainda que sob a divisão entre profissões
socialmente construídas como masculinas e outras femininas. Trat a-
se de desigualdades presentes em diferentes âmbitos, inclusive
educacionais como na Educação Profissional e Tecnológica (EPT) e
nos Institutos Federais (IFs). Em sua pesquisa, Lopes (2016) realizou
um levantamento da participação feminina na EPT, e constatou a
maior presença de meninas e mulheres nas áreas com ocupações
relacionadas ao cuidado, como estética, cuidado pessoal ou de idosos,
alimentação, etc. Enquanto que as áreas com menor presença
feminina eram as áreas fortemente ligadas às ciências aplicadas, com
alto desenvolvimento tecnológico (funcionamento de aeronaves,
mecânica, mecatrônica, etc.). Diante deste contexto, a Educação
Profissional e Tecnológica se constitui um espaço propício a
reproduzir desigualdades de gênero em suas diferentes formas.
Para o exercício deste ensaio, propomos discutir a tríade
gênero, violência e educação, reconhecendo disputas em torno do que
a escola deve ensinar, suas implicações no currículo escolar e na
Educação Profissional e Tecnológica. O que apresentamos a partir das
seguintes notas. Em “Quem educa é a família? Ditos e interditos na
cruzada antigênero: notas sobre implicações no currículo escolar
procuramos situar como discursos e interdições aparentemente
dispersos na cruzada antigênero comungam a expansão da esfera
privada, da família, na disputa pela legitimidade de definir e limitar o
que a escola deve ensinar. O que traz implicações ao currículo escolar,
em especial a uma formação voltada a viver no espaço público, de
diversidade, e que busca romper com desigualdades historicamente
301
presentes na sociedade, como desigualdades de gênero nas relações de
trabalho, conforme tratamos nas notas Gênero nas relações de e com
o trabalho e “Gênero e violência: qual o papel da escola?” Por fim,
em “Institutos Federais e formação integral: notas para uma educação
humanizada”, direcionamos nossa atenção para a necessidade de
discussão acerca do papel dos Institutos Federais na formação integral
de suas alunas e alunos, no que tange a questões de igualdade de
gênero. Tr at a-se de uma outra forma de pensar e organizar o currículo
escolar na Educação Profissional voltada ao desenvolvimento da
capacidade crítica e a atuação humana dessas e desses profissionais que
estão sendo preparadas(os) para o mundo do trabalho, neste sentido,
permitindo fortalecer futuras profissionais para identificarem e
resistirem às violências, e cidadãs(ãos) que não as reproduzam.
Quem Educa é a Família? Ditos e Interditos na Cruzada
Antigênero: Notas Sobre Implicações no Currículo Escolar
Nos últimos anos, com a falsa ideia de “ideologia de gênero
e a cruzada antigênero e antifeminista, juntamente com a defesa do
conceito de família nos moldes heterossexuais e aos esforços
conservadores para fortalecer a dominação masculina heterossexual,
-se revigorada na Educação Escolar, a necessidade de atuação como
espaço de luta e de resistência frente a recorrentes ataques a propostas
educacionais sustentadas na perspectiva da educação para a
diversidade, fundamental para a formação integral.
Setores ultraconservadores atacam a diversidade, a liberdade
de cátedra e tentam evitar que crianças e jovens tenham acesso a
modos diferentes de ver e compreender o mundo, constituindo um
cenário nacional de confronto aos princípios de igualdade e
302
reforçando estereótipos de gênero (MARAFON e SOUZA, 2018;
SARAIVA e VARGAS, 2017).
Como exemplos recentes temos o Projeto de Lei 867/2015
Programa Escola Sem Partido, também conhecido como Lei da
Mordaça, que, em seu texto, proíbe o uso dos termos gênero e
orientação sexual” nas escolas. Também veta o que chama de
“ideologia de gênero”, sem especificar do que se trata exatamente.
Expressar opiniões, preferências ideológicas, religiosas, morais e
políticas também estão na lista de restrições. A intenção é de que
professoras(es) abordem apenas temas que estejam de acordo com as
convicções das famílias das(os) alunas(os). O movimento consti um
ambiente de censura, punição e perseguição a docentes no ambiente
escolar: os seguidores do “Escola sem Partido promovem inúmeras
tentativas de coagir professoras e professores, violando a liberdade de
cátedra e, ironicamente, usando crianças e adolescentes para práticas
de vigilância dentro das salas de aula. O movimento pode ser visto
como resistência a transformações sociais que promovam a inclusão,
com o intuito de manter a posição hegemônica de alguns grupos
(SARAIVA e VARGAS, 2017). Este cerceamento toma proporções
nos Planos Municipais, Estaduais e Nacional de Educação, em que
foram retirados termos centrais como gênero e orientação sexual,
também observado ao longo do debate sobre a Base Nacional Comum
Curricular. Em 2015, foi promulgado o Estatuto da Família,
reduzindo a noção de família somente a união heterossexual e filhos
pertencentes a este casamento, a proibição dos cadernos do Programa
Brasil sem Homofobia.
Entre outros retrocessos, temos ainda o PL 1.338/2022,
aprovado na Câmara dos Deputados, o qual regulamenta a oferta
domiciliar na Educação Básica, o chamado homeschooling, expressão
do que parece ser um movimento de privatização da esfera blica,
303
tomada na busca de legitimação da negação do direito à educação
através da escolarização. O que nos permite questionar: Que
acontecimento torna plausível e aceitável a visibilidade de discursos
que propõem a inversão dos modos de educar crianças e jovens através
da escolarização doméstica em detrimento da escola? Que efeitos a
desescolarização traz para o currículo? E para a escola? O que faz a
escola como espaço comum público?
o é nosso objeto analisar tais questões, mas tomamos como
provocações para pensar que, entre diferentes formas de cerceamento
da educação, do que faz a escola enquanto espaço público, temos em
comum a expansão da esfera privada. Entendemos que não é novidade
o cerceamento sobre as relações de nero e sexualidade como pauta
marcante de movimentos conservadores, mesmo se olharmos apenas
para o período recente da nossa história. Weeks (2016) defende que
um crescente sentimento de crise da sexualidade, advinda da crise
nas relações entre os sexos. Essas relações são desestabilizadas
rapidamente com mudanças sociais, principalmente pelo impacto das
críticas aos padrões de dominação masculina trazidas pelo feminismo.
Historicamente, temos considerado o sexo algo perigoso,
perturbador e fundamentalmente antissocial (WEEKS, 2016, p. 74),
e, portanto, posições morais como casamento, heterossexualidade,
vida familiar e monogamia seriam vistas como capazes de controlar as
práticas sexuais.
Nos anos 1960, concepções liberais tinham como premissa
um governo que permitia liberdade na vida privada, mas que
mantinha a decência pública. Como resultado, “[...] não envolveram
um endosso positivo à homossexualidade, ao aborto, ao divórcio, nem
às representações sexuais explícitas na literatura, no cinema, nas artes”
(WEEKS, 2016, p. 75). Nasce, assim, nas décadas de 1970 e 1980,
uma mobilização conservadora, pautada em medos:
304
- a ameaça a família;
- o questionamento aos papéis sexuais, particularmente aquele
feito pelo feminismo;
- o ataque à normalidade heterossexual, particularmente através
das tentativas dos movimentos gay e lésbico para alcançar a
completa igualdade para a homossexualidade;
- a ameaça aos valores colocada por uma educação sexual mais
liberal, a qual era vista como induzindo as crianças a aceitar
comportamentos sexuais a então inaceitáveis; [...] (WEEKS,
2016, p. 76).
Todos esses medos eram reforçados por uma grave crise na
saúde, associada ao HIV e a AIDS, símbolos da crise sexual naquela
época, e vistos como o efeito necessário do excesso sexual” (WEEKS,
2016, p. 37). É notável a semelhança com as preocupações dos setores
conservadores atuais: família, posição relativa de homens e mulheres,
diversidade sexual e filhos.
A questão que parece se colocar na atualidade é uma aproxi-
mação improvável de linhas de força, de diferentes racionalidades, que
se misturam e comungam o desmantelamento do social”, entendido
como local em que experimentamos um destino comum,
reconhecemos e construímos a noção de bem comum, para viver na e
com a diversidade, fundamental à democracia, conforme permite
depreender Brown (2020, p. 38):
[...] local em que cidadãos de origens e recursos amplamente
desiguais são potencialmente reunidos e pensados como
conjunto. [...] admitidos como cidadãos com direitos políticos [e]
reunidos politicamente (não meramente cuidados). [...] O social
é o local em que somos mais do que indivíduos ou famílias, mais
do que produtores, consumidores ou investidores econômicos e
mais do que meros membros da nação.
305
Neoliberalismo e neoconservadorismo se associam, reconfigu-
rando as regras do jogo e abrindo caminho para o que Brown (2020)
entende como corrosão política, social e moral de valores como
democracia, justiça e respeito a pluralidade. O que é extremamente
perigoso às minorias políticas, como as mulheres, especialmente
negras, a população LGBTQIA+ e, podemos acrescentar, povos
indígenas.
Conforme a análise da autora e que pode ser pensada no
contexto atual brasileiro estamos vivenciando uma privatização
econômica neoliberal que não é propriamente novidade, com a
dissolução do social em nome do mercado, do capital financeiro, a
partir de uma gica que individualiza e fragmenta o social, portanto,
subverte a democracia, legitima desigualdades, exclusões e justifica a
apropriação privada do comum.
O que parecia improvável é a associação a uma extensão do
que denomina esfera pessoal protegida por meio da familiarização e
cristianização. Entende que se trata de um duplo movimento de
privatização que se estende a própria nação: a expansão da liberdade
individual contra a justiça social, o público, o que é comum. Ao
mesmo tempo, legitima como valores públicos a extensão da esfera
pessoal e protegida, em uma liberdade individual desenfreada,
destituída de ética, gestada por séculos pelo niilismo e intensificada
pelo neoliberalismo (BROWN, 2020).
Trat a-se de uma política de indiferença ao outro, de
desintegração de um pacto social alimentada pela valorização
neoliberal da liberdade desinibida de qualquer limite ético, moral ou
compromisso com o outro. Esta liberdade desenfreada coloca em cena
o que entende como masculinidade branca ressentida, formada em
parte por indivíduos que, destituídos de melhores condições de vida,
não reconhecem sua situação como efeito da expansividade do
306
próprio neoliberalismo e buscam nas práticas persecutórias o inimigo
imaginado: mulheres, negras(os), imigrantes (BROWN, 2020).
É neste duplo movimento que se (re)configuram discursos e
práticas sustentados no ataque ao que é público, a educação numa
perspectiva de formação para viver no espaço comum, de diversidade.
Neste contexto, torna-se fundamental defendermos a escola, o que faz
a escola enquanto espaço potencial de constituição de subjetividades
plurais, lócus de alteridade onde perpassam diversos sujeitos,
trajetórias e histórias, espaço privilegiado para aprender a viver na e
com a diversidade (PICHETTI, 2014; SEFFNER e PICHETTI,
2016), perspectiva que precisa ser defendida nos currículos escolares.
Santomé (2009) considera que uma das finalidades
fundamentais do currículo é constituir cidadãs e cidadãos para uma
sociedade democrática, através de modelos de conhecimentos,
atitudes, normas e valores. Em outra perspectiva, Silva (2009)
argumenta que o currículo não é meramente uma operação cognitiva
de determinados conhecimentos transmitidos aos sujeitos, nem
mesmo uma operação que permitiria revelar uma essência humana
pré-existente à linguagem, ao discurso e à cultura. O currículo pode
ser entendido como um discurso que corporifica determinados modos
de pensar e agir sobre os indivíduos e a sociedade, estando envolvido
num processo de constituição do indivíduo como um determinado
tipo de sujeito e de seu múltiplo posicionamento na sociedade. Nele
se inscrevem narrativas que, como histórias, nos contam, fixam
noções particulares sobre grupos sociais, legitimam quais formas de
conhecimento são válidas ou não, indicam o que é certo e o que é
errado, o que é moral ou imoral, bom e mau. Assim, o currículo é
produzido em sua vinculação aos saberes e às formas desiguais de
poder a que se implicam mutuamente numa relação necessária. Ou
seja, o currículo pode ser compreendido como a corporificação do
307
saber, estreitamente articulado ao poder que nele se inscreve, ao
selecionar, classificar e definir o que e como ensinar.
A esta relação imbrica-se os modos de pensar presentes em
cada sociedade e as diferentes formas culturais que se articulam na
constituição de sujeitos em determinado momento e que se colocam
em disputa. No cerne de diferentes linhas de força que buscam
legitimar no currículo o limite das formas de regulação dos corpos nas
relações de gênero e sexualidade, reconhecemos o duplo movimento
anunciado por Brown (2020) que pode ser tomado como lente de
inteligibilidade para compreendermos o que se coloca em questão nas
disputas que tentam cercear o direito à educação na perspectiva da
diversidade, da igualdade.
Gênero nas Relações
De
e
Com
o Trabalho
Dentre as diversas desigualdades existentes na sociedade
brasileira, podemos dizer que uma das mais evidentes se refere às
relações de nero. Relegadas à esfera privada e às atividades
domésticas, no único “mundo reconhecido como “do trabalho”,
homens e mulheres, trabalhadoras e trabalhadores, não têm os
mesmos direitos, deveres ou oportunidades, tampouco são atingidos
de maneira igual em situações de retirada de direitos ou de
precarização (ANTUNES, 1999).
Mesmo com a crescente participação das mulheres no
ambiente produtivo, a desigualdade salarial entre os sexos é presente
no mundo todo. Além disso, a presença de mulheres é mais comum
no universo do trabalho part time, precarizado e desregulamentado.
No ambiente fabril, é comum mulheres (assim como imigrantes e
pessoas negras) serem destinadas a postos que necessitem menos
qualificação, com funções mais elementares e carga intensiva de
308
trabalho, enquanto que os homens estão presentes nos ambientes com
capital intensivo (máquinas e investimentos em tecnologia) e,
diferentemente das mulheres, participam dos processos de tomadas
de decisões (ANTUNES, 1999). Casamento e maternidade (ou a
possibilidade dela) também são fatores que influenciam nas relações
de trabalho, quando se é mulher (NETO et Al., 2010; OGIDO e
SCHOR, 2012).
Culturalmente uma “construção social sexuada”, em que as
relações de gênero implicam relações sociais, de poder, de classe, de
trabalho etc. Isso alerta para a importância da interferência
estatal/legislativa nas práticas trabalhistas e do peso da construção
cultural e histórica das relações de trabalho (YANNOULAS, 2002).
O capitalismo soube utilizar-se dessa divisão sexual, de forma a
intensificar a exploração de diversas formas diferentes, igualmente do
trabalho formal, informal, remunerado ou não.
Federici (2017 e 2018) analisa como o capital apropria-se do
trabalho doméstico e do trabalho reprodutivo das mulheres de acordo
com seus interesses, desde o período de acumulação primitiva,
perpassando a revolução industrial. Segundo a autora, o capital aliou-
se à igreja e aos nobres/burgueses para confinar mulheres ao papel de
reprodutoras da vida e da força de trabalho. Inclui-se aqui todas as
funções maternas e de suporte à vida e à família: gestação, aleitamento
e cuidado com as crianças, a sexualidade, o cuidado com pessoas
idosas e doentes, o alimento, a limpeza, entre outras funções. Além
da opressão na vida privada e doméstica, a autora também cita a
exploração das mulheres pelo capital nas fábricas, considerando-as
mais dóceis e menos propensas a revoltas, mais dedicadas ao trabalho,
e pagando menos do que aos homens por conside-las fisicamente
fracas. O capital se apropria diferentemente da força de trabalho
feminina, e intensifica a desigualdade: a precarização dos salários, das
309
condições de trabalho, dos direitos das mulheres trabalhadoras tem
sido mais intensa do que dos homens (ANTUNES, 1999).
A ampliação da participação feminina no mundo produtivo é
vista como parte importante do processo de emancipação das
mulheres nas últimas décadas. O acesso a uma vida financeira
minimamente independente e a possibilidade de buscar capacitação
profissional propiciaram às mulheres autonomia para lutarem contra
diversas formas de opressão masculina, tanto nos ambientes públicos
quanto privados. Porém, é inegável que as relações com o trabalho
estão envolvidas em uma trama mais complexa, que envolve, entre
outras esferas, raça e classe social. Enquanto que o direito ao trabalho
representa emancipação para mulheres brancas, mulheres negras
sempre trabalharam mais fora de casa, e têm sua força de trabalho e
seus corpos explorados por um sistema produtivo que mantém raízes
no escravagismo, até os dias atuais (DAVIS, 2016).
Segundo Dias (2008), uma das formas mais graves de
violência praticadas contra mulheres no ambiente de trabalho é o
assédio sexual: comportamento de conotação sexual, indesejado pela
vítima, que pode se manifestar de forma física, verbal ou não verbal.
O objetivo é criar um ambiente intimidativo, hostil, humilhante e
ofensivo, violar a integridade sica e moral da vítima, acabando por
ofender o seu desempenho e progresso profissionais. O assédio sexual
é uma afronta à dignidade das trabalhadoras e impede as mulheres de
agirem de acordo com suas capacidades. Comportamentos que, às
vezes, devido à ideologia patriarcal e à posição social e econômica das
mulheres em relação aos empregadores, não são reconhecidos pela
sociedade e até pela justiça como assédio sexual (DIAS, 2008),
tampouco como violência.
O assédio sexual é um comportamento normatizado numa
sociedade em que a prevalência de uma cultura de violência, onde
310
as relações de gênero são construídas sob a intersecção do sexo e do
poder. O assédio sexual representa “uma expressão exacerbada do
sexismo e uma das formas mais nefastas (e sutis) de violação das
mulheres (DIAS, 2008, p. 14).
Gênero e Violência: Qual o Papel da Escola?
Historicamente, a escola tem desempenhado papel ativo na
produção, reprodão e fortalecimento de diferenças e desigualdades
sexuais e de gênero. Além de separar meninos e meninas, também
dividiu e priorizou distintas formações de acordo com idade, classe
social, raça, etnia e religião das(os) estudantes. As práticas educativas
normatizadas têm contribuído para a escolarização de corpos e mentes.
Essas lições produzem diferença, uma vez que crianças e jovens
acabam por incorporar comportamentos que, com o passar do tempo,
se tornaram socialmente naturalizados, além de marcadores de gênero,
como habilidades, preferências, gestos, movimentos, sentidos, que
constituem o que podemos chamar de identidades escolarizadas
(LOURO, 2012; 2014; COSTA; RODRIGUES; PASSOS, 2011).
No Brasil, o direito à presença feminina em sala de aula,
novidade no século XIX, foi uma conquista importante para as
mulheres, apesar de trazer consigo sintomas do sexismo pungente. No
levantamento histórico realizado por Louro (2012), a pesquisadora
afirma que a formação de meninas priorizava princípios morais,
formação de caráter e valores cristãos e considerava a instrução algo
supérfluo: as mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas,
uma vez que, enquanto esposas e mães, informação e conhecimento
não seriam necessários. O caráter secundário da educação feminina e
a preparação para a atuação em âmbito doméstico, além do currículo
escolar, são demonstrativos de que a educação feminina refletia o
311
papel designado para mulheres na sociedade (OLIVEIRA; AMARAL,
2015). Assim também a transformação do Magistério em trabalho
de mulher”, por ser considerado uma extensão da maternidade, faz
parte do contexto sexista e contribuiu para a construção da docência
como um exercício de vocação e de amor, com uma imagem
desprofissionalizada e disciplinadora (LOURO, 2012).
A sexualidade está presente na escola, pois faz parte dos
sujeitos. o é algo que se possa separar ou de que se possa despir
uma pessoa (LOURO, 2014). E assim como a escola precisa repensar
suas práticas no que concerne a gênero e sexualidade, também precisa
problematizar outros marcadores, como de raça, de classe social, de
etnia, pertencimento religioso, região de origem ou de habitação,
deficiência física ou mental, geração, arranjo familiar a que pertence,
aparência física como obesidade etc., que entram no ambiente escolar
no momento em que entram sujeitos (SEFFNER, 2011).
É preciso questionar o que é naturalizado, problematizar de
forma ampla e complexa a normatização cotidiana, naturalizada e
continuada dos comportamentos e das sexualidades dos sujeitos, pois
essa também é uma forma de violentar jovens e adultos nos ambientes
escolares (LOURO, 2014).
[...] a escola é o espaço que concebemos para estimular a reflexão,
o aprendizado e o desenvolvimento de comportamentos mais
compatíveis com a diversidade e a democracia. Situações em que
mulheres e meninas estejam em desvantagem e tenham seus
direitos violados não podem ser negligenciadas ou minimizadas
pela escola. (LINS et al. 2016, p. 63-64).
Portanto, é de grande importância que a escola seja um espaço
comprometido a evitar reproduzir as desigualdades vividas na
sociedade, transformando currículos, práticas em sala de aula,
312
procedimentos de avaliação e espaços de convivência em ferramentas
para garantir igualdade, democracia e justiça social.
Freire (2011) expressou em mais de uma oportunidade seu
desejo de que a escola fosse um ambiente que respeitasse as
individualidades das pessoas, suas identidades culturais, seus desejos e
suas necessidades. Para Freire (2011), tornar-se racista, machista,
classista, é transgredir a eticidade que nos faz humanos, é uma ruptura
com a decência. “Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela
é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos
a enfrentar (FREIRE, 2011, p. 59).
Institutos Federais e a Formação Integral:
Notas Para Uma Educação Humanizada
A Rede Federal de Educação Profissional, Científica e
Tecnológica e os Institutos Federais de Educação, Ciência e
Tecnologia foram criados em 2008, através da Lei 11.892, com o
objetivo principal de serem espaços de vinculação entre ambiente
educacional e ambiente produtivo, tendo como proposta uma
educação integrada, de modo a proporcionar educação básica e
profissional à população jovem e adulta. De acordo com o Artigo
da referida Lei:
Art. 2o Os Institutos Federais são instituições de educação
superior, básica e profissional, pluricurriculares e multicampi,
especializados na oferta de educação profissional e tecnológica
nas diferentes modalidades de ensino, com base na conjugação
de conhecimentos técnicos e tecnológicos com as suas práticas
pedagógicas, nos termos desta Lei.
Na Seção III, Dos Objetivos dos Institutos Federais, Art. 7º,I:
313
I - Ministrar educação profissional técnica de nível médio,
prioritariamente na forma de cursos integrados, para os
concluintes do ensino fundamental e para o público da educação
de jovens e adultos.
O Art. delimita os campos de atuação das instituições, mas,
ao dar prioridade aos cursos integrados, retoma a concepção de
uma instituição que contribua para o alcance de transformações
sociais por meio da formação integral. O foco na formação de
profissionais comprometidos com o bem coletivo e capazes de
fazer uma análise crítica à sociedade e às práticas produtivas
reitera a importância da educação voltada para o
desenvolvimento das diferentes dimensões: social, econômica e
cultural (SILVA, 2009).
Segundo Ramos (2008) e Frigotto e Ciavatta (2011), as
reivindicações para a educação nacional no período de
redemocratização do país (década de 1980) buscavam garantir uma
educação voltada para a classe trabalhadora. O objetivo centrava-se na
concepção de uma Educação Unitária (sem a dicotomia trabalho
intelectual x trabalho braçal) e politécnica (acesso aos processos
básicos de produção), tendo a integralidade física, mental, cultural,
política e científico-tecnológica como um ideal. Ou seja, uma
Educação Omnilateral.
A Educação Unitária exclui das diretrizes, principalmente, a
dualidade da formação para o trabalho: a Educação Básica e
Profissional deveria superar as diferenças entre formação para o
trabalho manual e para o trabalho intelectual (RAMOS, 2008;
SAVIANI, 1989; CIAVATTA, 2008). Além disso, era imprescindível
que fosse igual para todas(os), afinal, estava se firmando como um
direito institucional, e não deveria ser apresentada de maneiras
diferentes para classes sociais diferentes.
314
Ramos (2008, p. 3) sustenta que Politecnia significa uma
educação que possibilita a compreensão dos princípios científico-
tecnológicos e históricos da produção moderna, de modo a orientar
os estudantes à realização de múltiplas escolhas. Para Saviani et Al.
(2007, p. 161), Politecnia se refere a “[...] especialização como
domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas
utilizadas na prodão moderna.”, conceito que havia sido
trabalhado por Frigotto (1988).
Nesse sentido, a formação de politécnicos se difere da
formação de profissionais técnicos especializados, uma vez que se
concentra na formação integral do ser humano, tornando-o capaz de
produzir sua própria existência através do trabalho não alienado, e
possibilitando seu acesso e conhecimento de processos básicos de
produção. Isso não significa formar um profissional capaz de atuar
com uma única técnica, mas com domínio dos fundamentos de
diversificadas técnicas de produção, com autonomia e capacidade de
tomar decisões em um contexto de múltiplas escolhas, capaz de
questionar práticas produtivas impostas pela gica do mercado e
propor novas possibilidades.
o conceito de omnilateralidade é um sentido filosófico
atribuído à Educação Integral. É um conceito marxista que orienta a
reflexão acerca da Educação e pode ser aplicado tanto à Educação
Básica quanto à Educação Superior. Ele expressa uma concepção de
Educação Integral, pois compreende as dimensões da vida humana,
que estruturam a prática social: o trabalho, a ciência e a cultura.
Trabalho como condição humana de transformação do meio e como
prática econômica, ciência como a produção de conhecimento pela
humanidade, e a cultura como valores éticos e estéticos (RAMOS,
2008).
315
Educação Unitária e a Educação Politécnica constituem,
então, segundo Ramos (2008), os dois pilares conceituais para a
Educação Integrada. Uma educação que propicie acesso ao
conhecimento, à cultura, às condições necessárias para a formação
com domínio em diferentes técnicas de produção, com a valorização
do saber que vem do trabalho. Uma Educação vinculada ao mundo
real, que leve em consideração as diferentes realidades e cotidianos de
alunas e alunos.
Estes princípios de educação aproximam-se de Freire (2011),
que argumenta sobre a responsabilidade de educadoras(es) na missão
de manter uma postura vigilante perante práticas de desumanização
presentes na sociedade e, portanto na escola, através de práticas
educativas transformadoras, que levam em consideração a bagagem
de vida das(os) estudantes, suas individualidades, sua autonomia,
identidade cultural etc.
Essa concepção de Educação aliada ao Ensino Médio como
formação necessária para todas e todos, nos proporciona uma
perspectiva de currículo diferenciada a partir do Ensino dio
Integrado.
Gênero, Desigualdades e Educação: Notas Finais
A presente pesquisa se propôs a problematizar as relações de
gênero na Educação Profissional e Tecnológica, discutindo o sexismo
e a violência contra mulheres, presente nas mais diversas dinâmicas
sociais. Desenvolveu-se essa problematização no sentido de articular
o conceito de formação integral a que se propõem os Institutos
Federais, aos estudos de gênero, com o objetivo de fomentar o
desenvolvimento de espaços de formação menos desiguais e mais
acolhedores para alunas e trabalhadoras, lançando um olhar às
316
constituições e movimentos das perspectivas sociais concernentes ao
currículo escolar como ambos: resultado da associação improvável do
neoliberalismo ao neoconservadorismo e caminho possível para a
transformação social.
Este estudo não teve a pretensão de esgotar as discussões sobre
Educação Profissional e Tecnológica, tampouco sobre relações de
gênero e violência contra a mulher. O sexismo, os assédios, as fobias
e os preconceitos relacionados a gênero e sexualidade estão presentes
nas relações entre sujeitos nas mais diversas tramas sociais e, por
entendermos que sexualidade e gênero fazem parte das nossas
vivências enquanto seres humanos íntegros, completos, essas questões
também se fazem presentes em sala de aula, de modo que não
formação integral sem esforços pela igualdade de gênero.
Algumas violências são visivelmente reconhecidas, outras,
passam despercebidas nas tramas das relações sociais, devido à
histórica naturalização da hegemonia branca, masculina e
heteronormativa a que estamos submetidas(os). A Educação
Profissional e Tecnológica tem uma conexão direta com o mundo do
trabalho e com o uso de tecnologias e, por ser um ambiente
educacional que abrange áreas de conhecimento técnico, comumente
relacionadas ao “mundo masculino”, constitui um ambiente propício
à produção e reprodução de comportamentos violentos com meninas
e mulheres. Esses comportamentos prejudicam o desempenho escolar
e desencorajam o investimento profissional nessas áreas, por parte das
alunas, e não prepara cidadãs e cidadãos para a atuação profissional
pautada no pensamento crítico e democrático, pilares da Educação
Integrada.
Assim, se pensamos a escola como espaço de resistência ao
neoconservadorismo, às práticas violentas e discriminatórias, também
317
o currículo deve pautar a constituição de subjetividades plurais, na
perspectiva do comum, do social e do diverso.
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NA PERSPECTIVA DOS ESTUDOS HISTÓRICOS E
AS POLÍTICAS CURRICULARES: CURCULO
PARA SER INCLUSIVO OU PRÓ-FORMA?
Dabel Cristina Maria SALVIANO1
Tânia Suely Antonelli Marcelino BRABO2
Introdão
Desde a ascensão do ser humano como um animal dotado de
inteligência, o vemos aprender, aprender para se desenvolver, para
sobreviver, para se constituir quanto sociedade, enfim, para criar as
ferramentas necessárias a evolução que vemos agora.
Como consequência dessa necessidade, o homem definido
com o substantivo masculino e segundo o dicionário Eletrônico
Houaiss da Língua Portuguesa tem, entre suas definições de homem,
mamífero da ordem dos primatas, único representante vivente do
gên. Homo, da espécie Homo sapiens, caracterizado por ter
cérebro volumoso, posição ereta, mãos preênseis, inteligência
dotada da faculdade de abstração e generalização, e capacidade
1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP), Campus de Marília, São Paulo, e Professora Efetiva do Curso de Direito da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail:
dabel_salviano@hotmail.com.
2 Professora Associada do Departamento de Administração e Supervisão Escolar (DASE) da
Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP), Campus de Marília, e do Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGE) da mesma instituição, São Paulo, Brasil. E-mail: tamb@terra.com.br.
324
para produzir linguagem articulada; a espécie humana; a
humanidade; o ser humano considerado em seu aspecto
morfológico, ou como tipo representativo de determinada região
geográfica ou época.
Entretanto a utilização da palavra homem, tem seu alicerce
em sociedades machistas onde o sexo masculino era visto como sexo
dominante em detrimento das mulheres que eram vistas como frágeis
e fracas. Com o advento do movimento feminista, grandes debates e
lutas, surge a preferência por termos neutros, como ser humano,
pessoa ou humanidade em detrimento do uso supostamente neutro
da palavra homem.
Assim, com grande capacidade de aprendizagem, o ser
humano se constituiu em sociedade onde a aprendizagem espaço a
educação para desenvolvimento de suas potencialidades. A sociedade
passa a se constituir de indivíduos sedentários, arando, plantando,
cultivando e cuidando de seus animais.
Passamos a ter longas jornada de trabalho onde a agricultura,
era desempenhada por todos os membros da família. Para dar conta
de todas as atividades, as famílias passaram a ter uma quantidade
maior de filhos, onde as crianças maiores ajudavam a alimentar e
sustentar todo o seu grupo familiar.
A vida rural muda o cenário da evolução humana, as famílias,
em sociedade, passam a habitar os locais onde plantam ou cuidam de
seus animais, adquirindo assim propriedades. E as crianças, deixam
de ter uma vida “livre e passam cada vez mais tempo no trabalho a
serviço da família.
O modo de produção rural, associado as propriedades,
transformam os indivíduos que passam a acumular propriedades
criando diferenças sociais que os possuidores das terras passam a
325
angariar riquezas e os que não a possuíam tornam-se dependentes
destes, trabalhando ou lhes servindo.
Neste sentido o estudo de Engels, em sua obra A origem da
família e a propriedade privada do Estado, nos elucida que três
grandes épocas na sociedade a partir do desenvolvimento social
humano, sendo a saber “estado selvagem, barbárie e civilização [..] E
subdivide cada uma das duas em três estágios: o inferior, o
intermediário e o superior, de acordo com os progressos ocorridos em
cada um na produção dos meios de subsistência”. E ainda conclui seu
pensamento nos afirmando que:
A habilidade nessa produção é decisiva para o grau de
superioridade humana e domínio sobre a natureza; de todos os
seres vivos, apenas o ser humano chegou a um domínio quase
incondicional da geração de alimentos. Todas as grandes épocas
do progresso humano coincidem de modo mais ou menos direto
com as épocas de ampliação das fontes de sustento. (ENGELS,
1891, p. 37).
não temos mais a aprendizagem “livre”, temos indivíduos
servindo ao trabalho e aos detentores de riquezas, sistemas de
escravidão e outras formas de servidão passam a se desenvolver.
Passamos assim todo a idade média e isso não se modificou com a
industrialização, pessoas, incluindo as crianças trabalhavam até o
limite de sua exaustão, em fábricas insalubres, superlotadas.
No século XIX, a Inglaterra aprova leis limitando trabalho
infantil e em 1883 proíbe a indústria têxtil de empregar crianças
menores de nove anos e limita o trabalho semanal a uma jornada de
48 horas.
Com o passar dos séculos a industrialização se torna uma
realidade, e sua automatização termina com a necessidade constante
326
de mão de obra (o que hoje é uma realidade em alguns países como
Japão por exemplo, em que existem lojas ou hotéis que não se utiliza
de mão de obra humana), fazendo com que gradualmente a
necessidade de mão de obra infantil diminua.
Começa então, uma nova fase na evolução do indivíduo, surge
o entendimento de que a infância é uma etapa na vida do ser humano
em que se deve aprender espalhando-se assim, a ideia de escolas para
as crianças.
Essa ideia surge na Europa, entre os séculos XVI até o XIX,
com o advento das religiões protestantes, quando Martinho Lutero
declara que a salvação dependia da leitura individual das escrituras,
assim, cada pessoa deveria ler, pois a salvação dependia do
entendimento das escrituras.
Os países que se destacam na criação de escola são a Alemanha
ao final do século XVII, com a gestão feita pela igreja Luterana e os
Estados Unidos, na metade do século XVII, no Estado de
Massachussetts, criando a obrigatoriedade da educação com o
objetivo de criar bons puritanos. Com o crescimento e a centralização
das Nações, seus líderes viam a escola como ferramenta para se obter
futuros soldados e patriotas servis. os grandes detentores do poder
econômico como os proprietários de indústrias, viam na escola
oportunidade de criação de melhor mão de obra que conseguisse
satisfazer as especificidades do trabalho, como pontualidade, seguir
instruções, estarem aptos a longas jornadas de trabalho e uma
habilidade mínima para ler e escrever.
A sociedade brasileira tem um histórico de desigualdade social
cujo padrão de desenvolvimento excludente é notório. Antes do
século XX, as políticas de desenvolvimento social brasileiras,
inclusive os referentes ao campo da educação, estavam
direcionadas ao desenvolvimento das cidades, cuja matriz
327
cultural era voltada às questões políticas e econômicas, gerando,
portanto, a marginalização de grupos específicos que não se
enquadravam nos padrões culturais da época. Dessa forma, as
discriminações em relação à raça, à etnia, a gênero, à orientação
sexual, entre outras tantas manifestações de ser e estar no mundo,
tornam-se ferramentas de poder que colocam à margem e negam
aos indivíduos o direito de cidadania. (RODRIGUES, 2017).
O método desenvolvido na criação das escolas era o de
repetição e memorização (que até hoje a meu ver, continua a ser
desenvolvido), tentando inculcar valores preconcebidos à época e
julgo eu, até hoje.
Assim, o trabalho no campo e nas fábricas, pelo menos para
as crianças, vão sendo substituído pela escola. A rígida rotina de
trabalho vai sendo substituída pela rotina escolar, as determinações
dos detentores do poder são transmutadas para o currículo escolar,
que trazem as ideologias de quem detêm o poder e o capital.
pode pensar-se no conhecimento como sendo algo distribuído
desigualmente entre classes sociais e econômicas e grupos
ocupacionais, diferentes grupos etários e com grupos com poder
diferenciado. Assim, alguns grupos têm acesso ao conhecimento
que lhes é distribuído e não é distribuído a outros [...]. O défice
de determinados tipos de conhecimento [de um determinado
grupo social] relaciona-se, sem dúvida, com a ausência de poder
político e económico que esse mesmo grupo revela na sociedade.
Tal relação entre a distribuição cultural e a distribuição e controlo
da capacidade económica e política ou, mais claramente, a
relação entre conhecimento e poder é notoriamente de
compreensão muito difícil. No entanto, a compreensão sobre a
forma como o controle das instituições culturais permite o
aumento do poder que determinadas classes para controlar outras,
providencia a capacidade de uma profunda penetração
intelectual sobre a forma como a distribuição da cultura se
328
encontra relacionada com a presença ou ausência de poder em
grupos sociais (PARASKEVA, 2002, p. 133).
Crianças começaram a ser definidas e identificada pela
seriação escolar, assim como os adultos são identificados pelo labor
que exercem. Surge desse processo, o conceito de educação,
proveniente do latim, educare, educere, significando conduzir para
fora ou direcionar para fora, onde nos ambientes escolares o indivíduo
adquirindo conhecimentos se torna hábil a exercer funções pessoais e
profissionais no meio em que estiver inserido. Paraskeva (2002) nos
elucida tal questão ao mencionar os estudos de Apple que afirma ser
“esta preocupação com a problemática do conhecimento e a forma
como se imiscui nas dinâmicas desiguais de poder e de controlo, no
qual o processo de escolarização não é inocente”.
No Brasil, a educação não nos chega de modo diferente, vem
com a chegada dos portugueses e o sistema educacional jesuíta no
Brasil colônia, passa pelo período Imperial, Proclamação da República,
Ditadura Militar, consolidando-se nas escolas públicas até chegar à
atualidade.
Nesse texto, a temática parte das premissas de como a
educação se consolidou em terras brasileiras, sua importância,
aspectos legais e as influências políticas no currículo. Quem se
beneficia com os conteúdos curriculares, e quem está à margem nesse
processo.
Gênero e Currículo:
Conflitos Entre Políticas Públicas e Formações Para o Trabalho
A educação no Brasil, surge com a chegada dos Jesuítas, em
1549, dando origem à primeira instituição escolar, os objetivos
329
traçados pelo padre Manoel da Nóbrega era ensinar a doutrina cristã,
a ler e escrever, aprendizado profissional e agrícola, basicamente,
impondo aos povos originários, com o intuito de catequizá-los e
assimilá-los a cultura branca.
Com o passar dos anos, houve um descontentamento por
parte dos proprietários de terras (colonos), e a Coroa Portuguesa com
relação aos Jesuítas, pois a Companhia de Jesus tinha o objetivo de
servir os interesses da Igreja e não os da coroa, e eles acabam sendo
expulsos de Portugal e de suas colônias.
Passa-se então, em 1759, com a reforma pombalina, que
instituiu o fechamento dos colégios Jesuítas, a introduzir as aulas e
essas serem mantidas pela coroa, atendendo-se assim aos interesses do
Estado. É instaurado, no lugar do sistema mais ou menos unificado
pelos jesuítas, que se baseava na seriação dos estudos, voltados para a
elite da população, o ensino no Brasil passou a ser fragmentado e
disperso, leigos adquirem o direito a ter acesso à educação, porém a
base do ensino não muda, que a maioria dos professores eram
jesuítas.
A reforma educacional foi mais uma estratégia na tentativa de
modernizar a sociedade, para que esta contribuísse no desenvolvi-
mento econômico para a manutenção e fortalecimento de Portugal.
Com o advento da chegada e permanência da família real
portuguesa no Brasil, início de 1808, pois Portugal não tinha
condições de resistir às tropas francesas lideradas por Napoleão
Bonaparte, cujo objetivo era a conquista de novos territórios, D. João
VI opta pela transferência da Coroa de Lisboa para o Rio de Janeiro,
que após 1815 passaria a ser a capital do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves. Logo após a chegada da família real, muitas
mudanças aconteceram na educação, no Rio de Janeiro ocorre a
implantação da Academia de Belas Artes, a Academia da marinha,
330
Academia Real Militar, entre outras, e em Salvador/BA, cria-se cursos
de cirurgia, economia, agricultura, entre outras.
A independência do Brasil é declarada no dia 07 de setembro
de 1822, por Dom Pedro I, filho de Dom João VI, que se torna o
primeiro Imperador do Brasil, independente, o país promulga a
primeira Constituição em 1824, que mantém o regime monárquico,
a escravidão e reconhece a religião Católica, Apostólica Romana como
oficial, além de conceder direito à educação primária gratuita a todos
os cidadãos (artigo 179, 32) importante ressaltar que negros e escravos
alforriados não eram considerados cidadãos e os povos originários se
quer foram citados.
Em 15 de outubro de 1827, foi aprovada a primeira lei sobre
o Ensino Elementar, com a criação de escolas de primeiras letras em
todas as cidades, vilas e lugarejos (artigo I) e escolas de meninas nas
cidades e vilas mais populosas (artigo XI). Muitos obstáculos foram
encontrados, encontrar professores dispostos a trabalhar por baixos
salários, falta de recursos em construir escolas e fornecimento de
matérias pedagógicos necessários ao desenvolvimento das atividades.
Em decorrência dessas dificuldades, em 12 de agosto de 1834,
pela lei n. 16, foi aprovado o Ato Adicional, que dentre tantas outras
mudanças políticas, cria as assembleias legislativas provinciais com
poderes para legislar sobre economia, justiça, educação, entre outros.
Descentraliza-se assim o ensino, caberia agora às províncias, a
responsabilidade de promover o ensino gratuito.
na República Brasileira, ato político-militar ocorrido em 15
de novembro de 1889, que instaurou a forma republicana federativa
presidencialista de governo no Brasil, derrubando a Monarquia do
Império do Brasil e, por consequente, pondo fim à Soberania do
Imperador D. Pedro II, filho de Dom Pedro I, é promulgada em
fevereiro de 1891, a primeira Constituição Republicana.
331
Diante de tais fatos históricos é fundamental que entendamos
estes a partir da ótica da historicidade e da reflexão sobre os aconteci-
mentos históricos, como ressalva Schueler e Magaldi (2008. p. 34):
No embate entre memórias da educação republicana, buscamos
apreender a historicidade e os lugares de produção e enunciação
destas representações em disputa, de modo a perceber o quanto
estas visões permanecem impregnadas pelas próprias concepções
produzidas pelos atores e sujeitos que vivenciaram as tensões e as
lutas do processo histórico [...] Próprias do jogo de construção/
reconstrução de memória, lembranças e esquecimentos, luzes e
sombras, estas representações em disputa permanecem
circunscritas ao âmbito das clássicas análises diagnósticas e
prognósticas. Num segundo movimento de reflexão, a pretensão
é de levantar algumas questões sobre a temática educacional na
Primeira República, tendo como base a historiografia da
educação brasileira recente, que vem sendo alimentada por uma
crescente aproximação com os rios campos da pesquisa em
história, especialmente o da história cultural. Estas análises vêm
lançando seu olhar para os debates, projetos, iniciativas e ações
efetivadas por vários sujeitos históricosas ações implementadas
pelo Estado, mas também por indivíduos e grupos variados da
sociedade no campo educacional. Preocupados em
compreender a República que foi, os historiadores da educação
vêm reconstruindo o processo tenso de disputas, internas e
externas, decorrentes da crescente especialização e legitimação do
campo educacional. Nesta perspectiva, flagram o processo de
constituição da escola primária moderna (seriada, graduada,
circunscrita a espaços e tempos específicos) como modelo ideal e
hegemônico, como lugar social de educação da infância.
Conhecida historicamente como primeira república, a
Constituição de 1891, consagrou a divisão do sistema de ensino e
distanciou a educação da elite, ou seja, a da classe dominante, que
332
teria acesso às escolas secundárias acadêmicas e superiores, a da
educação concedida ao povo, ou seja, da classe dominada, que teria
acesso apenas as escolas primárias e escola profissional. Com a reforma
conhecida como “Reforma Benjamin Constant”, ainda se garantia à
educação liberdade e laicidade do ensino, bem como a gratuidade da
escola primária.
O período conhecido como Segunda República, parte da
história do Brasil conhecido como Era Vargas, teve três fases sucessivas:
governo de transição de 24 de outubro a 03 de novembro, o período
do Governo Provisório de 1930 a 1934 e o período da Constituição
de 1934.
Esse período traz algumas melhoras para a educação, pois o
país pretendendo crescimento, necessitava de profissionais
qualificados, então havia que se investir, nasce o Ministério dos
Negócios da Educação e Saúde Pública (Ministério da Educação),
decreto n. 19.402, de 14 de novembro de 1930, um dos primeiros
atos do Governo Provisório de Getúlio Vargas.
Com a publicação desse decreto, o Ministério da Educação
passa a controlar: o Instituto Benjamin Constant, a Escola Nacional
de Belas Artes, o Instituto Nacional de sica, o Instituto Nacional
de Surdos e Mudos, a Escola de Aprendizes Artífices, a Escola Normal
de Artes e Ofícios Wenceslau Braz, a Superintendência dos
Estabelecimentos do Ensino Comercial, o Departamento de Saúde
Pública, o Instituto Oswaldo Cruz, o Museu Nacional e a Assistência
Hospitalar. Em 01 de dezembro de 1930, com a edição do decreto n.
19.444, com a organização do Ministério, passa-se a subordinar ainda
a Universidade do Rio de Janeiro, as Escolas Superiores Federais, o
Colégio Pedro II (internato e externato), a Biblioteca Nacional, o
Museu Histórico Nacional, a Casa Rui Barbosa e o Observatório
Nacional.
333
Em 11de abril de 1931, através do decreto n. 19.850, cria-se
o Conselho Nacional e Estadual de Educação, sem “[...] atribuições
de ordem administrativa (art. 4), mas como “[...] órgão consultivo
do ministro (art. 1), destinado a colaborar com os “[...] altos
propósitos de elevar o nível da cultura brasileira e de fundamentar, no
valor intelectual do indivíduo e na educação profissional apurada, a
grandeza da Nação (art. 2), devendo:
1. a) colaborar com o Ministro na orientação e direção superior
de ensino;
2. b) promover e estipular iniciativas em benefício da cultura
nacional, e animar atividades privadas, que se proponham a
colaborar com o Estado em quaisquer domínios da educação;
3. c) sugerir providencias tendentes a ampliar os recursos
financeiros, concedidos pela União, pelos Estados ou pelos
municípios à organização e ao desenvolvimento do ensino, em
todos os seus ramos;
4. d) estudar e emitir parecer sobre assumptos de ordem
administrativa e didática, referentes a qualquer instituto de
ensino, que devem ser resolvidos pelo Ministro;
5. e) facilitar, na esfera de sua ação, a extensão universitária e
promover o maior contato entre os institutos técnicos-científicos
e o ambiente social;
6. f) firmar as diretrizes gerais do ensino primário, secundário,
técnico e superior, atendendo, acima de tudo, os interesses da
civilização e da cultura do país (BRASIL, 1931a, art. 5)
Funcionando em sua primeira fase até o ano de 1936, quando
foi extinto e reaberto sob novas regras, mais rígidas, às vésperas do
Estado Novo. Em 1932, um grupo de 26 educadores, dentre eles
Fernando Azevedo, Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço filho,
Roquete Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília
Meireles, traz à Nação o documento com o título “A reconstrução
334
educacional no Brasil: ao povo e ao governo”, que ficou conhecido
como Manifesto dos Pioneiros, buscava uma escola pública, de ensino
laico e gratuito que garantisse a educação para todos independente de
classe ou gênero. O grupo defendia transferir do terreno
administrativo para os planos político-sociais a solução dos problemas
escolares”, a educação nova, segundo o manifesto, propunha “servir
não aos interesses de classes, mas aos interesses do indivíduo, e que se
funda sobre o princípio da vinculação da escola com o meio social”,
ou seja, o objetivo era ter “um ideal condicionado pela vida social
atual, mas profundamente humano, de solidariedade, de serviço social
e cooperação”.
A democracia era um dos pontos abordados no manifesto de
1932, a educação era vista como um instrumento para esse propósito,
pois permitiria a integração dos diversos grupos sociais.
Neste contexto, surge a ideia de formação integras e da escola
de tempo integral, essa proposta surge para criar uma função social à
escola que a excluiu de nosso país desde o Brasil colônia. A
Constituição de 1934, em seu Capítulo II, Da Educação e da Cultura,
dispõe:
Art. 148 - Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer
e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e
da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o
patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao
trabalhador intelectual. [...].
E em seu artigo 149:
A educação é direito de todos e deve ser ministrada, pela família
e pelo Poderes Públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a
brasileiros e a estrangeiro domiciliados no País, de modo que
possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação,
335
e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da
solidariedade humana.
O sistema de educação/ensino brasileiro, adquiri uma nova
estrutura baseada em quatro etapas:
1 Primeira etapa, composta de ensino pré-primário, por escolas
maternais e jardins da infância;
2 – Segunda etapa, composta por ensino primários, de 4 anos;
3 Terceira etapa, composta pele ensino médio que aconteceria
em duas outras etapas: o ginasial, de 4 anos e o colegial, de 3 anos,
que por sua vez compreendem o ensino secundário e o ensino
técnico (industrial, agrícola, comercial e de formação de
professore) e,
4 - Quarta etapa, composta do Ensino superior.
Com o fim da ditadura do Estado Novo, em 1945, por
pressão das forças políticas de oposição, tanto de caráter elitista
quanto popular, esta é substituída por um regime tido como
democrático e são realizadas eleições para a Assembleia Constituinte
e para a Presidência da República, vencida pelo general Eurico Gaspar
Dutra, que governou de 1946 a 1951.
A Constituição Federal de 1946 estipula normas
programáticas para descentralizar a educação da esfera da União,
possibilitando que Estados e o Distrito Federal tenham seus sistemas
de ensino reconhecidos, podendo eles próprios agora, irem da pré-
escola ao ensino superior.
Em 31 de janeiro de 1951, Getúlio Vargas, eleito por voto
direto, volta ao governo do Brasil como Presidente da República.
Com o grande incremento e crescimento do setor industrial, precisa-
se cada vez mais de mão de obra qualificada, o governo então equivale
os cursos técnicos ao nível secundário de educação.
336
Getúlio Vargas governa até 24 de agosto de 1954, quando se
suicida.
Em 1961, o então presidente João Goulart, sanciona-se a lei
n. 4.024, cujo embrião se originou na Assembleia Constituinte de
1934, que dedicou um capítulo exclusivo determinando que a União
elaborasse e conseguisse aprovar um plano nacional e uma lei que
traçasse as diretrizes da Educação Nacional. Assim em 1961 cria-se a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conhecida pela sigla
LDB, um marco na educação brasileira.
A LDB define todos os princípios, diretrizes, estrutura e
organização do ensino, abrangendo todas as esferas e setores. Em geral,
a lei dava mais autonomia aos órgãos estaduais de educação e
regulamentou a existência dos Conselhos Estaduais e Federal de
Educação, além de garantir o empenho obrigatório de recursos do
Orçamento da União, dos Estados e dos Municípios para
investimentos na área.
A LDB de 1961, permitiu ainda, o ensino experimental, o
ensino religioso facultativo e tornou obrigatória a formação mínima
exigida para os professores, de acordo com o nível de ensino, e a
matrícula obrigatória dos alunos nos quatro anos do ensino primário.
Surge ainda, à luz da LDB de 1961, o primeiro Plano
Nacional de Educação, em 1962, como uma iniciativa do Ministério
da Educação e Cultura. Basicamente era um conjunto de metas a
serem alcançadas num prazo de oito anos.
Com o golpe militar de 1964 e o advento da ditadura militar
que perdurará até 1985, houve uma burocratização do ensino público,
mas as metas do Plano Nacional de Educação sofrem uma revio no
ano de 1965, sendo introduzidas normas descentralizadoras e
estimuladoras no que tange a elaboração de planos de ensinos
Estaduais. Em 1966 as metas do Plano Nacional de Educação voltam
337
a sofrer revisões, essas novas revisões ficam conhecidas como Plano
Complementar de Educação, e introduz alterações nos recursos
federais, beneficiando as implantações de ginásios orientados para o
trabalho e atendimento de analfabetos com mais de dez anos.
A ideia de tornar o Plano Nacional de Educação em lei
ressurge como discussão em 1967, proposta pelo Ministério da
Educação e Cultura, com várias discussões essa proposta não chega a
se concretizar.
Sem algumas importantes iniciativas, em 1971, a LDB é
mudada e adequada às diretrizes da Constituição de 1967 e uma
grande restrição a autonomia dos educadores e educandos se faz sentir.
A LDB de 1971, promulgada pelo presidente Emílio Médici,
transformou os antigos ensinos primários e ginasial, nos igualmente
antigos 1 e 2 graus, além de fixar um ano letivo mínimo de 180 dias,
o ensino supletivo no modo de Educação à Distância (EaD) e a
inclusão de quatro disciplinas obrigatórias, Educação Moral e Cívica,
Educação Artística, Educação Física e Programas de Saúde. A LDB de
1971, traz ainda outra mudança significativa, que é a quebra da
exclusividade do dinheiro para as instituições públicas de ensino, e
permitiu o ensino de 2 grau gratuito, por um sistema de bolsas com
restituição.
A partir da redemocratização em 1985 coloca-se fim ao
período da ditadura militar no Brasil, mas com uma herança muito
pesada, que deixa o país com uma grave crise política e econômica,
grandes índices inflacionários e uma enorme dívida externa,
controlada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Com o advento da Constituição de 1988, no governo de Jo
Sarney, conhecida como Constituição Cidadã, estabelece-se que a
educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, com
acesso ao ensino obrigatório e gratuito como direito público subjetivo
338
(art. 205 da CF/88), as LDBs anteriores foram consideradas obsoletas
e começa uma longa discussão sobre educação.
Em 1990 é eleito, pelo voto popular, Fernando Collor de
Mello. Ele foi o primeiro presidente civil eleito, desde o fim da
ditadura militar, governa por dois anos e devido a escândalos e
denúncias de corrupção sofre um impeachment.
Em 01 de janeiro de 1995, toma posse o presidente Fernando
Henrique Cardoso, também conhecido como FHC. Em 20 de
dezembro de 1996, FHC e seu Ministro da Educação Paulo Renato,
sancionam a LDB de 1996, relatado pelo antropólogo, professor e
senador Darcy Ribeiro, trouxe mudanças significativas em relação às
outras leis, baseando-se no princípio do direito universal à educação.
Passa a determinar entre outras coisas, a carga horária mínima
de 200 dias letivos, fixação de um plano nacional de educação (PNE)
renovável a cada 10 anos, gestão democrática do ensino público e uma
progressiva autonomia pedagógica, administrativa e de gestão
financeira das unidades escolares.
A LDB de 1996 incluiu ainda, a educação infantil (creches e
pré-escolas) como primeira etapa da educação básica e transformou
os antigos 1, 2 e 3 graus em Ensino fundamental, médio e superior,
com uma nova formatação curricular definida na Base Nacional
Comum (BNCC), que à época não foi regulamentada.
O Plano Nacional de Educação (PNE), determinado pela
Constituição de 88 em seu artigo 214, tem previsão pela LDB em
seus artigos 9 e 87, que caberia à União o seu encaminhamento ao
Congresso Nacional. Assim, surge o PNE, cujos objetivos principais
são o aumento do nível de escolaridade da população, a melhoria da
qualidade de ensino, reduzindo a desigualdade social no que se refere
ao acesso e permanência na escola blica, além de democratizar a
339
escola com a participação de professores e da comunidade na
elaboração do projeto pedagógico escolar.
Chegamos até aqui cientes de que, de acordo com a
Constituição Federal de 1988 e com os princípios democráticos de
Direito, a educação é um direito social de todos, assegurados pela
Constituição e de competência comum da União dos Estados, do
Distrito Federal e do Municípios. Junto com a saúde e a segurança
pública, entre outros, é um dos deveres assegurados pelo Estado, por
isso possuir uma significativa legislação que visa a efetivar e garantir
esses direitos, fazendo com que a educação cumpra sua função social.
A seção I do capítulo III da Constituição de 1988, intitulada
“Da Educação define os principais pontos da educação com relação
aos sistemas de ensino, diz o art. 205: pleno desenvolvimento da
pessoa (sem citar gênero), seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho”. Sendo assim, o Estado como um
todo, tem o dever de proporcionar recursos públicos e meios que
garantam a efetivação desses objetivos (artigos 206 e 208 da CF/88).
A Constituição garante ainda, autonomia didática, científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial às universidades
(art. 207), permite a liberdade de ensino à iniciativa privada, desde
que cumpra as normas gerais da educação nacional (art. 209) e
formação básica comum (art. 210).
Mas além da Constituição, o ensino no Brasil ainda é
regulamentado como vimos, por outras leis que abordam questões
mais específicas e com maior profundidade. Entre as mais
fundamentais como vimos estão a LDB e o PNE, cujos objetivos e
diretrizes estão dispostos no art. 214 da Constituição.
Ainda falando da LDB, sua competência legislativa é exclusiva
da União (art. 22 da CF/88) não cabendo aos Estados, Distrito
Federal e Municípios legislar de maneira privativa sobre ela. A LDB
340
em vigor ainda é a de 1996, sendo que sua última modificação é
datada de 12 de julho 2022, no governo do atual presidente Jair
Bolsonaro, para acréscimo do inciso XI ao artigo 4 e um parágrafo
único no artigo 22.
Com relação ao Plano Nacional de Educação (PNE), como
vimos ele é estabelecido pelo artigo 214 da Constituição, criado para
articular o sistema nacional de educação e estabelecer estratégias e
metas para a educação em um plano decenal. Guiadas pelo PNE, se
estabelecem as políticas públicas educacionais e se combate os
problemas do sistema de educação em todas as esferas de governo. O
PNE nos serve para sabermos onde se quer que chegue a educação e
quais serão os caminhos que precisaremos trilhar para alcançar.
O atual PNE é a Lei 13.005/2014, durante a gestão do então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com duração até o ano de 2024.
Ao todo o plano possui 20 metas a serem cumpridas, entre elas direito
à educação básica de qualidade, a universalização do ensino
obrigatório, a redução das desigualdades, a valorização da diversidade,
a valorização dos profissionais da educação e o aumento das
oportunidades educacionais. Tais metas mobilizam todas as esferas
administrativas e, por isso, Estados, Distrito Federal e Município
foram obrigados a elaborar seus próprios planos educacionais,
respeitando o Plano Nacional, mas o adequando a suas realidades.
Dentro deste cenário legal, surge ainda a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), em atendimento à LDB e ao PNE, que
é um documento normativo para as redes de ensino e suas instituições
públicas e privadas, referência obrigatória para elaboração dos
currículos escolares e propostas pedagógicas para a educação infantil,
ensino fundamental e médio no Brasil.
Os fundamentos pedagógicos da BNCC possuem dois
pressupostos: o foco no desenvolvimento de competências e o
341
compromisso com a educação integral. Isso implica em discutir o que
educandos devem “saber e o que devem “saber fazer”.
Durante a breve trajetória da legislação educacional em nosso
país, desde à época da Colônia até às principais fontes norteadora do
sistema educacional, pudemos notar que o Estado sempre esteve as
voltas com o destino dos educadores e educandos brasileiros. Nunca
foi um ensino “livre” onde se pudesse constituir qualquer tipo de
ensino, mesmo porque, a própria sociedade nunca esteve livre das
amarras sociais, dos comportamentos legais ou sociais que se impingiu
ao longo da história.
A sociedade brasileira, tem um histórico profundo de
desigualdade social, cujo padrão excludente sempre fez parte de nosso
cenário. Nossa sociedade, ao longo dos séculos, esteve sobre a
crescente preocupação do desenvolvimento econômico, motivada
pela sobrevivência dos indivíduos, dentro desse cenário quem não se
adaptasse aos padrões econômicos, culturais e sociais da época, eram
marginalizados.
Temos então uma intensa marginalização com relação à etnia,
à raça, ao gênero, à orientação sexual, mesmo havendo ferramentas
legais a coibirem, como a CF de 1988 em seu artigo 5 Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza... esta
marginalização se torna ferramenta de poder negando a esses
indivíduos a condição de cidadania.
Neste cenário social, a escola assume a responsabilidade de
representar a sociedade, criando sociedades dentro de seus muros,
ali, naquele espaço vemos várias representatividades sociais, tanto
positivas quanto negativa. Infelizmente quanto à questão da
diversidade, cada vez mais as práticas sociais, no interior das escolas
não tem obtido sucesso, principalmente no que diz respeito a temas
342
como diversidade sexual e relações de gênero. Estas ainda estão
cercadas por preceitos reguladores morais, heteronormativos e sexistas.
Atualmente o movimento LGBTQIA+, vem reivindicando
cidadania plena, com mesmos direitos garantidos a todo e qualquer
indivíduo brasileiro.
O processo histórico/cultural que situa o indivíduo enquanto
homem ou mulher, vem desmistificando o imaginário essencialmente
biológico de antes. Louro (2000, p. 21) diz que: “Para que se
compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa
sociedade, importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo
o que socialmente se construiu sobre os sexos”.
Tornar o indivíduo que não se adequa ao padrão normativo
social e colocá-lo à margem, é a especialidade da sociedade, e isso não
seria diferente no ambiente escolar, principalmente no que diz
respeito a lógica sexo/gênero/sexualidade, pois seus currículos não os
contemplam e nem tem a intenção de contemplar.
No Brasil, a eliminação das desigualdades e a busca pelo
direito igualitário à educação, surge na Lei de Diretrizes e Bases, em
seu artigo 3 que diz: “Constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil: […] IVpromover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação (BRASIL, 1996).
Os parâmetros curriculares da BNCC dos currículos do
ensino fundamental e médio, fazem uma inclusão na perspectiva de
gênero e sexualidade na educação, colocando a pluralidade cultural e
a sexualidade como temas transversais, devendo ser trabalhados com
todos os conteúdos curriculares.
Mesmo com esses parâmetros, o que se encontra é um
ocultamento dessa inclusão nas instituições escolares, educando e
educadores não podem se expressar, se posicionar enquanto
343
homossexuais. As atividades escolares, como por exemplo, trabalhos,
principalmente direcionados ao ensino fundamental, em que família
é representada dentro de sua diversidade sexual, são coibidos pela
gestão com temor à reação da família heterossexual dos educandos.
Louro (2000) entende que o objetivo desse ocultamento é suprimir
esses indivíduos de forma que os educandos normais não os
reconheçam ou sequer os aceite.” A desconstrução histórica de
conceitos como homem e mulher, heterossexual e homossexual,
serão possíveis, através de uma educação realmente inclusiva,
combatendo as desigualdades no território onde os saberes nascem e
se afirmam, colocando a escola como protagonista na luta contra a
ignorância e o desaber”.
Considerações Finais
Com fundamento nos estudos realizados para a construção da
pesquisa intitulada, Formação de Professores para a Educação das
questões sobre Diversidade de gênero: práticas e discursos dissonantes
ante a perspectiva legal no Curso de Pedagogia UEMS Paranaíba/MS,
começamos a ter a percepção que as relações de gênero são uma
construção social, desconstruindo o discurso biológico. As
instituições escolares, foram marcando os sujeitos pelas difereas,
legitimando assim as desigualdades, perpetuando a
heterossexualidade em detrimento da diversidade sexual.
As relações de poder, perpetuadas ao longo da história do
Brasil, através de suas legislações, passam a ser revistas, diante de um
mundo com perspectiva inclusiva, assim, as legislações que
regulamentam a educação passaram a garantir o acesso a todos
enquanto direito de todos, independentemente das limitações de cada
344
um, sendo ainda sua obrigação garantir a permanência desses
indivíduos na escola.
Assim, tanto a sociedade contemporânea, quanto as novas
instituições escolares, tem que estar além de seu tempo,
oportunizando diálogos e debates, fazendo com que os indivíduos se
sintam acolhidos, que deixem de serem seres silenciados para se
sentirem pertencentes.
Que possamos através de uma educação inclusiva, forte,
transparente, condizente com a representatividade verdadeira da
sociedade, possa garantir que os indivíduos tenham condição de
alcançar a cidadania plena em que seus direitos sejam respeitados e
garantidos.
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GÊNERO E SEXUALIDADE NA CONSTRUÇÃO DOS
SABERES DOCENTES E EM POLÍTICAS EDUCACIONAIS
DO BRASIL E DO MARANO
Rosyene Conceição Soares CUTRIM1
Sirlene Mota Pinheiro da SILVA2
Introdão
Este texto, fruto da dissertação do Mestrado Profissional em
Gestão do Ensino da Educação Básica pela Universidade Federal do
Maranhão (UFMA)3, discute alguns dos processos de construção dos
saberes e da formação docente, que podem ser considerados como
fenômenos para subsidiar e contribuir na incorporação da igualdade
de gênero e o respeito à diversidade sexual na escola.
É consenso de militantes, pesquisadores/as e estudiosos/as na
área dos direitos humanos, a necessidade da urgência de trabalho
coletivo, a soma de forças da sociedade civil, estudiosos/as,
movimentos sociais e políticos comprometidos com o estado possam
agir em prol e defesa da educação pública, gratuita, laica e
1 Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Gestão de Ensino da Educação
Básica (PGEEB) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Maranhão, Brasil. E-mail:
rosycutrim@gmail.com.
2 Professora Adjunta do Departamento de Educação I e do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Maranhão, Brasil. E-mail:
sirlene.mota@ufma.br.
3 A pesquisa foi intitulada Educação para a igualdade de gêneros e sexualidades: entre ditos,
interditos e feitos numa proposta de intervenção no Ensino Médio, realizada sob a orientação da
Profa. Dra. Sirlene Mota Pinheiro da Silva (CUTRIM, 2020).
348
democrática no Brasil, que vise a igualdade de nero e sexualidade
num ambiente escolar que seja livre dos medos, humilhações,
preconceitos, discriminações e violências.
Com a clareza que os preconceitos e as discriminações
perpassam por todos os espaços da sociedade brasileira e que,
infelizmente, a escola reproduz e reforça tais processos preconcei-
tuosos e discriminatórios, percebemos que a luta por uma educação
com e para a equidade de gêneros e sexualidades, possa reconhecer,
respeitar e valorizar as diversidades e diferenças individuais.
Compreendemos ser o direito à educação para a igualdade de
gênero e sexualidade, um direito fundamental e assegurado na
Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos. E a
construção dos saberes e da formação docente em gêneros e
sexualidades são temáticas que atualmente vem sendo questionadas,
principalmente por falta de conhecimento e por serem norteadas por
uma falácia que segundo Reis; Eggert (2017) trata-se de uma tentativa
de desconstruir pesquisas de estudiosas/os das áreas, das lutas e
reivindicações dos movimentos de mulheres, feministas,
LBGTQIAPN+4 e dos direitos humanos, desconsiderando todo um
arcabouço de documentos e tratados internacionais que versam sobre
educação quanto a igualdade de direitos. Consequentemente, tais
tentativas de desconstruções vêm influenciando, de forma negativa, a
organização de uma proposta educacional que discuta e garanta os
4 É o movimento político e social que defende a diversidade e busca mais representatividade
e direitos para essa população. Segundo o Manual de Comunicação LGBTI+, elaborado pela
Aliança Nacional LGBTI+ elencou os significados de cada letra da sigla LGBTQIA+:
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexual, Pansexual, Não
Binários e o símbolo “+” no final da sigla aparece para incluir outras identidades de gênero e
orientações sexuais que não se encaixam no padrão cis-heteronormativo, mas que não
aparecem em destaque antes do símbolo.
349
debates críticos sobre gênero e diversidade sexual nos ambientes
escolares.
No desenvolvimento da pesquisa do mestrado, tomou-se
como base as teorias pós-críticas que se fundamentam no pós-
estruturalismo, inserindo-se no contexto da pós-modernidade, numa
tentativa de romper com o positivismo, o racionalismo, o tecnicismo
e toda rigidez que estas correntes teóricas carregam, na tentativa de
dar visibilidade aos excluídos que são postos em uma sociedade
padronizada e excludente.
Assim, apresentamos neste texto, aspectos da construção de
saberes e sobre a formação docente para o tratamento das questões de
gêneros e sexualidades nas práticas pedagógicas nas escolas de ensino
médio, bem como algumas das principais políticas públicas que
tratam das temáticas gênero e sexualidade na educação, em
documentos nacionais e estaduais do Maranhão até o ano de 2020.
Construção dos Saberes e Formação Docente
em Gêneros e Sexualidades
São inúmeras as teorias e estudos científicos sobre os saberes e
formação docente. E não podemos deixar de pontuar que, a variedade
das reflexões críticas sobre estas dimensões, se inserem,
diferentemente, diante do processo social, histórico, político e
econômico vivenciado. As construções dos saberes e a formações
docentes são frutos de interesses individuais de sua classe social, raça,
gênero, orientação sexual, geração, grupo profissional e outras
categorias identitárias que condicionam, ideologicamente e
politicamente, cada ser humano.
Segundo Tardif (2014), nas sociedades contemporâneas, o
sistema de formação em educação está, intrinsicamente, relacionado
350
com a pesquisa científica e erudita, enquanto sistema socialmente
organizado de prodão de conhecimentos. Tal inter-relação, de
modo concreto, se apresenta por meio da existência de instituições,
como as universidades, assumem tradicionalmente e de maneira
conjunta as missões de pesquisa, ensino, de produção de
conhecimentos e de formação com base nesses conhecimentos. Existe,
na verdade, uma rede de instituições e práticas sociais e educativas
destinadas a assegurar o acesso sistemático e contínuo aos saberes
sociais disponíveis.
Em conformidade com os escritos de Tardif, o pesquisador
Gauthier (2013), em seu livro Por uma teoria da pedagogia”, defende
a ótica de que a necessidade de unir a pesquisa à prática, isto é, o
saber se constrói a partir do saber privado (saber experiencial) ligado
e antenado com o saber da ação pedagógica. Ambos devem dialogar,
entre si, objetivando uma profissionalização da pedagogia.
Gauthier (2013), ainda lembra que por mais que se queira,
não podemos identificar no vazio, os saberes próprios ao ensino;
devemos levar em conta o contexto complexo e real no qual o ensino
evolui, senão os saberes isolados corresponderão à formalização de um
ofício que não existe
os escritos de Ramalho (2004), nos revelam a existência de
um modelo formativo identificado como “Modelo Hegemônico da
Formação MHF”, no qual se mistura tendências próprias do
racionalismo técnico e da formação academicista e tradicional. Na
verdade, tal modelo não condiz com resultados que estruturem,
positivamente, a construção dos saberes e formação docente,
tornando evidente a necessidade de um modelo de formação inovador
que Ramalho defende como uma formação que possa contribuir para
a superação dos diferentes obstáculos ao trabalho docente, visando
contribuir com a construção de um Modelo Emergente da Formação
351
(MEF) a ser tomado como uma referência teórica na formação inicial
profissional.
Ramalho (2004) defende que a interligação da reflexão,
pesquisa e crítica supõe a reconstrução de práticas educativas que
estejam baseadas em fenômenos educacionais que se estruturam em
contextos sociais, políticos, ideológicos diferenciados e complexos,
objetivando uma educação que transforme vidas, que reconstrua a
escola e a sociedade como instituições justas, cidadãs e democráticas
cujos saberes, valores e atitudes possam contribuir na formão
integral do indivíduo, a partir da diversidade.
Para Imbernón (2011) também existem, nos últimos tempos,
inúmeros questionamentos em relação à educação, à construção dos
saberes e formação dos/as docentes, o que requer uma redefinição
importante da profissão. Para ele, a formação deve apoiar-se em uma
reflexão dos sujeitos sobre sua prática docente, num processo
constante de autoavaliação que oriente seu trabalho. Nesse sentido, a
construção dos saberes na formação docente terá influência direta, ou
indiretamente, no que diz respeito à contribuição dada ao sistema
educacional para que esta incorpore a igualdade de gênero e o respeito
à diversidade sexual, buscando entender a inclusão ou exclusão de
alunas/os, resultante de uma escola com processos classificatórios e
discriminatórios.
A formação profissional para a Educação Básica e para o
Ensino Superior é dispositivo legal, tanto na Constituição Federal de
1988, quanto Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
Lei 9.394/96. No entanto, considerando a inúmeras transfor-
mações no contexto social, político e cultural, a formação profissional
docente exige mudanças que venham a responder as demandas de
gênero e sexualidade. Nestes termos, Martins (2017, p. 29-30)
descreve:
352
Logo, a inserção das questões de gênero e sexualidade no
currículo configura-se como elemento importante à formação
docente no sentido de nos aproximarmos de algo mais efetivo,
de uma educação sexual emancipatória. Neste sentido, os/as
docentes deverão ser instigados quanto às consequências da
ausência da abordagem das temáticas que envolvem gênero e
sexualidade no processo de (re)construção das teias que
configuram a educação do ser humano. Portanto, repensar a
formação pedagógica à luz das teorias e das práticas voltadas a
essas questões poderá possibilitar o reconhecimento do trabalho
deste/a profissional na mediação dos processos constitutivos da
cidadania democrática a partir do reconhecimento da diversidade
e do pluralismo nos modos de ser das mulheres e dos homens.
Ainda para Martins (2017), as temáticas de gênero e
sexualidade são silenciadas, suscitando a necessidade de enveredarmos
no desvelar do processo de formação nestas áreas de conhecimento. A
autora, em sua pesquisa, percebe que a estrutura pedagógica,
fragmentada em disciplinas, pouco contribuía na conquista dos
saberes, pois a dicotomia teoria-prática fazia-se presente, tal qual a
educação básica.
No olhar de Silva (2019), os cursos de formação dos
profissionais de educação, que deveriam ser um lugar de construção
do saber, produzem muitas vezes, o seu ocultamento, evidenciando,
também, negligência em relação ao tema da diversidade de gênero e
sexual, que comparecem, então apoiados em mitos baseados na cis-
heteronormatividade5. Isso quando não possuem, de forma alguma,
o conhecimento sobre tais temáticas. De tal forma que muitos deles
5 A cis-heteronormatividade defende a ideia de que existe apenas um jeito de ser saudável e
feliz, incluindo: ser uma pessoa heterossexual, aquela que sente atração afetiva/sexual somente
pelo sexo/gênero diferente do seu e ser uma pessoa cis, ou seja, em total acordo com o gênero
atribuído no nascimento. Uma pessoa cis é aquela que, ao nascer, foi classificada como do
gênero masculino ou feminino e aceitou tal classificação para sua vida.
353
não as discutem e muito menos aceitam ser incluídas em seus
currículos. Ela percebe que a carência da discussão acerca do nero,
da sexualidade e mais especificamente da diversidade sexual na
universidade, portanto, faz-se necessário refletir sobre o seu papel na
formação docente e sobre sua contribuição na difusão dos saberes. A
autora também ressalta:
Sem esta formação específica, a/o docente arrisca-se a cair no
senso comum e relativizar aspectos referentes ao gênero e à
sexualidade, os quais deveriam ser tratados como aparatos
teóricos e metodológicos próprios[...]no entanto, é preciso
compreender que grande parte dos/as professores/as ainda guarda
consigo repressões em torno da sexualidade, fazendo com que
cheguem ao ambiente escolar carregados de preconceitos,
ansiedade e insegurança, consequências de uma educação
repressora, em uma sociedade repressora (Silva, 2019, p. 112).
Na prática, todas as construções dos saberes sobre gêneros e
sexualidades em nossa sociedade exercem uma força sobre nosso
cotidiano, estabelece regras, posturas, ações, pensamentos e gostos nas
nossas vidas. Assim, são criadas expectativas fechadas e limitadas do
que se esperar de um ser humano com genitália de fêmea e o outro
com a genitália de macho. Os saberes construídos no cotidiano, ou
aqueles na vida profissional nos indicam propostas pedagógicas que
venham contribuir na formação docente efetivando uma educação
inclusiva e não sexista, não machista, não racista e não
lesbo/homo/bi/transfóbica6.
Segundo Lins (2016), as/os educadoras/es que estão em
constante formação, em reflexão contínua, complexando e transfor-
6 Termo para designar, em conjunto, o ódio, repulsa, medo e aversão às pessoas cuja
identidade de genero e orientacão sexual não estão inseridas na heteronormatividade. Como
as travestis e transexuais, assbicas, os homossexuais e bissexuais.
354
mando seus saberes e práticas pedagógicas, podem construir
mecanismos que promovam e efetivem práticas pedagógicas voltadas
para a superação das desigualdades de gêneros e sexualidades. Isto
posto, a seguir, apresentamos as principais políticas públicas em que
foram ou são incluídas temáticas voltadas ao gênero e suas relações,
bem como sobre as diversas sexualidades, para a formação e práticas
docentes no Brasil e no Maranhão até o ano de 2020.
O Que Dizem os Documentos Oficiais Nacionais e do Maranhão?
O atual contexto político e educacional é bastante desafiador,
especialmente no que se refere ao tratamento das questões de gênero
e sexualidade, visto sofrer diferentes ataques, tanto nos Planos de
Educação, quanto nas políticas curriculares e nas práticas pedagógicas
desenvolvidas nas escolas. Temos como base estruturante, a
implementação de diversos dispositivos legais e, principalmente, da
Constituição Brasileira (1988), que tem em um dos seus objetivos
fundamentais a promoção do bem de todos/as, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
Nos complexos debates em que estão imbricadas as temáticas
de gênero e sexualidade, consideramos necessárias conhecermos, o
que diz alguns dos principais e importantes documentos oficiais que
permeiam a educação no país. Iniciaremos pela Constituição Federal
do Brasil (1988) que ao se reportar à educação, em seu Artigo 205,
Capítulo III, Seção I, “[...] direitos de todos e dever do estado e da
família, se promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania”.
355
A Carta Magna Brasileira, também, constitui objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, em seu art. 3º, inciso
IV, que estabelece a promoção do bem de todos/as, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”. o Art.traz a conhecida afirmação de que “todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e afirma
expressamente a igualdade entre homens e mulheres como preceito
constitucional. Fica claro, portanto, que é por meio da educação que
todos/as, com seus direitos e deveres, podem exercer sua cidadania
plena, reconhecendo as diferenças e desconstruindo as desigualdades,
preconceitos e discriminações.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei 9.
394/96, apesar de não dar visibilidade aos termos de gênero e
sexualidade, assegura “as condições de direito e permanência na
escola para todos/as, independente, de qualquer categoria identitária.
Reconhece o direito humano subjetivo da educação para todos os
indivíduos. E é a partir dela, que surgem os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN’s) aprovados em 1997, que trazem em seu bojo, a
“Orientação Sexual’, no volume 10, dos Temas Transversais, que
deveriam ser trabalhados em todos as disciplinas do currículo escolar
e em todas as faixas etárias. Deste modo, surge, pela primeira vez, de
forma explicita, em documentos oficiais, a necessidade do trato das
questões relacionadas à sexualidade e ao gênero. É verdade que, a
inclusão dos temas se deu pela urgência social e todos os discursos de
problemática que os mesmos insurgiam.
O documento dos PCN’s (1998), ressalta como deveria ser
conduzida a temática da orientação sexual” pelos profissionais de
educação, em parceria com a família e o envolvimento de todos/as da
comunidade escolar, apontando metas de qualidade que ajudam o/a
aluno/a no enfrentamento da complexidade do mundo atual, como
356
cidadã e cidadão participativa/o, reflexiva/o, e autônoma/o que
reconhece os seus direitos e deveres. Nele são apresentados os
objetivos da educação sexual e sugestões de blocos de conteúdo, como
se trabalhar, transversalmente, nas diversas disciplinas. Indica ainda,
orientações didático-pedagógicas e critérios de avaliação.
Em seu artigo 16, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino dio (DCNEM) mencionam, de forma explícita, os temas
aqui estudados:
[...] o projeto político-pedagógico das unidades escolares que
ofertam o Ensino Médio deve considerar: [...] XV valorização
e promoção dos direitos humanos mediante temas relativos a
gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação
sexual, pessoas com deficiência, entre outros, bem como práticas
que contribuam para a igualdade e para o enfrentamento de todas
as formas de preconceito, discriminação e violência sob todas as
formas (Brasil, 1998, p. 6).
Ao analisarmos o primeiro Plano Nacional de Educação (PNE
2001-2010), Lei 10.172, de 9 de janeiro de 2001, não notamos nada
de substancial em relação ao gênero e sexualidade, numa perspectiva
de implantação de políticas educacionais voltadas para a garantia de
um ambiente escolar preocupado com a desconstrução das
desigualdades, preconceitos e discriminações advindas dos
equivocados entendimentos de uma educação não sexista, não
machista, não patriarcal e não lesbo/bi/homo/transfóbica. Nele
encontramos, na educação infantil, a igualdade de gênero somente
como sinônimo de igualdade de sexo nos documentos das matrículas
dos/as alunos/as. (Brasil, 2001)
no segundo plano sob a Lei 13.005, de 25 de junho de 2015,
o Plano Nacional de Educação PNE (2014-2024) pre entre suas
357
diretrizes a "superação das desigualdades educacionais, com ênfase na
promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de
discriminação" assim como no seu artigo 2º, a implementação de
programas e políticas educacionais destinadas a combater “todas as
formas de discriminação existentes nas escolas, entre elas, as que se
referem às desigualdades de gênero, de raça, de orientação sexual e de
identidade de gênero. No mesmo artigo, o PNE pre a promoção
dos direitos humanos e da diversidade na educação brasileira. No
entanto, apesar dos avanços apontados, após debates e embates, essa
proposta acabou sofrendo mudanças e retrocessos, sendo retirados, da
última versão do PNE (2014-2024), todos os termos sobre gênero e
sexualidade. (Brasil, 2014).
Consequentemente, como efeito cascata, nos deparamos com
a remoção nos planos estaduais e municipais de educação, dos
objetivos e estratégias para o trato, à luz dos direitos humanos, das
temáticas de desigualdade racial, de gênero e de orientação sexual que
visavam enfrentar os preconceitos e as discriminações existentes nas
escolas brasileiras. Após forte e contínua campanha, a bancada
evangélica do governo, senadores/as, deputados/as estaduais e
vereadores/as evangélicos/as, católicos/as e conservadores/as conse-
guem vetar, em alguns estados e municípios do país, o termo gênero
do Plano Nacional de Educação PNE e como efeito, nos planos
estaduais e municipais de educação do país, o termo também foi
vetado.
Isso tudo se deu a partir da criação da falácia da ideologia de
gênero7. Termo criado discursivamente” e que tentam desconstruir
bases teóricas (estudos e pesquisas de universidades, ONG’s e outros
sobre mulheres e LGBTQIAPN+) fazendo recortes tendenciosos no
7 Termo conforme utilizado em Reis e Eggert (2017) no artigo Ideologia de gênero: uma
falácia construída sobre os planos de educação brasileiros.
358
intuito de instaurar uma cultura de ódio, desrespeito, intolerância,
violência e medo.
Segundo a Profa. Dra. Jimena Furlani, em entrevista à Revista
A Pública , a ideologia de gênero, é uma narrativa criada no cerne de
uma parte conservadora da Igreja Católica e no movimento pró-vida
e pró-família que se encontra no site Observatório Interamericano de
Biopolítica, que tomou uma proporção imensurável sendo divulgada
por diversos vídeos, textos, cartilhas, documentos da CNBB, palestras,
encontros, fóruns etc. insistindo na retórica da existência de uma
conspiração mundial organizada pela ONU, União Europeia,
governos de esquerda, movimentos feministas e LGBTQIAPN+, cujo
principal objetivo é a destruição da família, alarmando a toda
população, propagando um pânico social e colocando-a contra tudo
que se refere aos estudos de gênero e sexualidade.
Junqueira (2018, p. 47) nos coloca que “[...] sim, existe
‘ideologia de gênero’, mas não conforme descrevem ou denunciam os
cruzados antigênero”, pois embora concorde com as/os estudiosas/os
do feminismo que defendem a ideia de que não existe a ideologia de
gênero e sim, Estudos de Gênero, ele defende a existência da
ideologia de gênero como uma ameaça que deve ser considerada, no
intuito de dar visibilidade e construir estratégias de combatê-la, que
a mesma atua com poderosos dispositivos retóricos reacionários que
visam a instalação de um clima de pânico moral contra grupos sociais
e sexualmente vulneráveis e marginalizados. Do ponto de vista
sociológico para ele ideologia de gênero refere-se propriamente aos:
[...] processos de naturalização das relações de gênero, a
subordinação das mulheres, a assimetria de poder e de acesso aos
recursos por parte das mulheres em relação aos homens. De
acordo com tal entendimento, são manifestações de ideologias de
359
gênero o machismo, o sexíssimo, a misoginia, a homofobia.
(Junqueira, 2017, p. 48)
Atrelado a toda esta discussão surge o Projeto de Lei 7.180/14,
da Escola sem Partido (ESP), chamada popularmente, pela oposição
política, como a “Lei da Mordaça”, pois denotam negociações
intermediadas por demandas conservadoras do Congresso Nacional,
na elaboração de documentos educacionais que permeiam os
currículos escolares, na tentativa de estabelecer limites para a prática
pedagógica do/a professor/a na sala de aula, impedindo, assim os
princípios constitucionais da liberdade de ensinar e de aprender.
Surge em 2004, com seu fundador e coordenador, o procurador do
Estado de São Paulo Miguel Nagib (neoliberal) que, em 2003, acusa
o professor de história de uma de suas filhas de comparar Che
Guevara, um dos líderes da revolução cubana, a o Francisco de Assis,
detonando o movimento ESP que objetiva combater a doutrinação
nas escolas.
A partir de então, o movimento se expandiu em todo país,
com intensa divulgação de comunicação e influência na vida política
do Brasil. Com representantes eleitos, defensores da ideia, o Projeto
se torna uma espécie de estorvo na vida de inúmeros profissionais de
educação, visto difundir que havia uma doutrinação de esquerda e de
gênero no ambiente escolar que influenciava, negativamente, as
crianças e adolescentes, pois incentivava práticas nocivas às suas
formações. A proposta seria de adicionar à LDB a afixação, em lugares
visíveis nas salas de aulas, uma lista com seis deveres dos/as
professores/as. São eles:
1) “O professor não se aproveita da audiência cativa dos alunos
para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções
ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e
360
partidárias.”; 2) “Não favorecerá nem prejudicará ou
constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas,
ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.”; 3) “Não fará
propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus
alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.”;
4) “Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas,
apresentará aos alunos, de forma justa isto é, com a mesma
profundidade e seriedade–, as principais versões, teorias, opiniões
e perspectivas concorrentes a respeito da matéria.”; 5) “Respeitará
o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação
religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias
convicções. 6) “Não permitirá que os direitos assegurados nos
itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou
terceiros dentro da sala de aula. (PL 867/2015).
Segundo escritos de Frei Beto (2019), tudo isso se resume à
uma escola que evite professores/as que tentem promover seus
próprios interesses”, que não tenham opiniões, concepções e nem
preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias; que
não incitem a participação em manifestações, atos públicos e passeatas,
que sejam isentos em qualquer assunto que ultrapasse a matéria a ser
ministrada.
Como afirma Frigotto (2017), o ideário da ESP é o sentido
de ameaça à vivência social e à liquidação da escola pública como
espaço de formação humana, firmado nos valores da liberdade, de
convívio democrático e de direito e respeito à diversidade. Para ele, o
sentido ideológico do ESP se baseia na criminalização das concepções
de conhecimento hisrico e de formação humana que interessam à
classe trabalhadora e em posicionamentos de intolerância e ódio com
os movimentos sociais dos/as trabalhadores/as sem-terra, de mulheres,
de negros, de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros.
361
O autor defende a ideia de que, no ato de ensinar está
implícito o ato de educar e que no seu entendimento, o ato de educar
é o “alvo do conservadorismo das elites empresariais e de grupos
político-religiosos, intermediados por intelectuais e parlamentares
que comprometidos com o atraso em termos inquisitoriais (Frigotto,
2017, p. 8). O ato de educar incomoda os setores conservadores
porque é confronto de visões de mundo, de concepções científicas e
de métodos pedagógicos, desta forma, desenvolve a capacidade de ler
criticamente a realidade, constituindo assim, sujeitos reflexivos e
autônomos.
Porém, tanto o Ministério da Educação- MEC (Brasil, 2015a),
quanto o Conselho Nacional de Educação CNE (Brasil, 2015b)
emitiram notas técnicas que debatiam a importância das temáticas de
gênero e sexualidade nos planos estaduais e municipais de educação e
criticavam, duramente, a retirada das ações voltadas para a igualdade
de gênero e respeito à diversidade sexual.
Outro ponto a ser considerado, é a construção da Base
Nacional Curricular Comum (BNCC), que fora estabelecida pela
LDBEN (1996), em seu artigo 216, diante da necessidade de se
compilar um currículo nacional que seria comum a todo sistema
educacional: “Base nacional comum, a ser complementada, em cada
sistema e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada,
exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura,
da economia e dos educandos (Brasil,1996, art. 2016, p. 8).
A BNCC foi criada com a intenção de um currículo comum
que venha nortear o projeto pedagógico das escolas e orientar o
trabalho docente, levando em consideração a diversidade do país. Em
relação a temáticas de gênero e sexualidade, na segunda versão, são
inseridos apenas na parte introdutória, no subtítulo “Competências
Gerais da BNCC”, na competência 9, que coloca:
362
Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflito e a
cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao
outro, com acolhimento e valorização da diversidade de
indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas
e potencialidades; sem preconceitos de origem, etnia, gênero,
orientação sexual, idade, habilidade/necessidade, convicção
religiosa ou de qualquer outra natureza; reconhecendo-se como
parte e uma coletividade com a qual deve se comprometer. (Brasil,
2016, p. 10)
Também aparece no texto da competência 6, no ensino da
Geografia para o Ensino Fundamental:
Construir argumentos com bases em informações geográficas,
debater e defender ideias e pontos de vistas que respeitem e
promovam a consciência socioambiental e respeito à
biodiversidade e ao outro, sem preconceitos de origem, etnia,
gênero, orientação sexual, idade, habilidade, necessidade,
convicção religiosa ou qualquer outro tipo. (Brasil, 2016, p. 364)
No entanto, em uma terceira versão, divulgada no dia 08 de
abril de 2017, a expressão orientação sexual” foi retirada. E ficam
questionamentos: como lidar com as questões da sexualidade e de
gênero no ambiente escolar, que estas foram inviabilizadas nos
principais documentos norteadores do país? Como lidar com as
diversas situações vivenciadas na escola sobre os ditos e os não ditos
sobre tais temáticas que eclodem diariamente? (Silva, 2019, p. 94)
No Maranhão, em 2002, foram implementadas as Diretrizes
Curriculares Estaduais para a Educação Básica. O documento traz
questões de gênero e da sexualidade somente nos volumes de a
série, na área de matemática, apontando que deve haver um
compromisso de todos/as professores/as nas diversas áreas de
363
conhecimento, e as relações sexuais podem ser compreendidas e
analisadas por meio dos conteúdos matemáticos, por meio de dados
estatísticos O que ao nosso ver, de certa forma é incipiente, diante da
relevância que gênero e sexualidade têm na construção de vidas de
todos/as nós,
Nas Diretrizes Curriculares Estaduais para a Educação sica
do Estado do Maranhão 2012, elaborada em parceria com o Projeto
de Cooperação Técnica do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), em sua terceira versão (Maranhão, 2014,
p. 10), estabelece no seu quarto capítulo o trato dos temas sociais que
dinamizam a aprendizagem escolar e que favorecem o trabalho
escolar embasado nos princípios da interdisciplinaridade e
transversalidade. São eles: educação para as relações de gêneros;
educação para as relações étnico-raciais; orientação sexual; educação
fiscal e educação ambiental”. (Maranhão 2014, p.88). No entanto,
percebemos que não uma consistência teórica e muitos menos
sugestões de práticas pedagógicas que venham fortalecer a relevância
de tais temas no trato de educação plural e cidadã, voltada às
diversidades de nero e sexuais.
Ao analisarmos o Plano Estadual de Educação do Maranhão
(PEE-MA), sob a Lei 10.099, de 11 de junho de 2014, observamos
que este estabelece na Meta 7:
[...] garantir 100% da Educação Básica, níveis e modalidades,
condições de transversalidade para o desenvolvimento de práticas
pedagógicas voltadas para as diversidades e temas sociais (direitos
socioeducacionais), com o foco no combate às desigualdades
étnico raciais, fiscais, ambientais, de gênero, de orientação sexual,
geracional, regional e cultura.
364
Nesse sentido, O PEE/MA (2014), assegura a implantação
das Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação em Direitos
Humanos (DCNEDH)nas práticas educativas das escolas estaduais
do estado, reafirmando os direitos das mulheres e do seguimento
LGBTI, como direitos humanos, respaldado pela Resolão CNE/CP
01/2012 que estabelece parcerias com secretarias responsáveis pelas
políticas públicas das diversidades - Secretaria Estadual de Direitos
Humanos, Secretaria Estadual de Igualdade Racial e Secretaria
Estadual da Mulher; garante dotação orçamentária para as políticas
da diversidade; realização de formação continuada para os
profissionais de educação, em todos os níveis, etapas e modalidades
de ensino, nas temáticas da diversidade; fomenta a produção de
materiais pedagógicos específicos e diferenciados de referência nas
temáticas; e prevê a implantação Secretaria de Estado da Educação e
em todas as Unidades Regionais de Educação (URE’s), um setor ou
equipe técnica especializada e multidisciplinar, da diversidade com o
objetivo:
[...] de realizar, acompanhar, avaliar e monitorar as atividades
referentes à educação em direitos humanos, à educação para as
relações étnicorraciais, para as relações de gênero, identidade de
gênero e diversidade sexual, entre outros dispositivos que
assegurem educação não discriminatória, não sexista, não
machista, não racista, não homofóbica, não lesbofóbica, não
transfóbica (PEE/MA, 2014, p. 19-20).
Além disso, no dia 12 de novembro de 2018, o governo do
estado do Maranhão publicou o Decreto 34.555/201, da “Escola
sem censura que dispõe sobre o exercício de garantias constitucionais
no ambiente escolar da rede estadual, declaradamente em oposição ao
E S P. No artigo diz: “Todos os professores, estudantes e
365
funcionários são livres para expressar seu pensamento e suas opiniões
no ambiente escolar da rede estadual do Maranhão”. O documento
defende a liberdade de expressão de toda comunidade escolar, no
respeito a Constituição Federal de 1988. No art. a Secretaria de
Estado da Educação, tem a incumbência de realizar campanhas de
divulgação nas escolas sobre as garantias asseguradas pelo artigo 206,
inciso II, da Constituição Federal, acerca do ensino: “liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”,
bem como dos princípios previstos da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei 9.394/1996). no art. fica vedado o
cerceamento de opiniões mediante violência ou ameaça, assim como,
no ambiente escolar ações e manifestações baseadas em calúnias,
difamação e injúria, ou atos infracionais e também qualquer pressão
ou coação que represente violação aos princípios constitucionais e
demais normas que regem a educação nacional, em especial quanto à
liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a
arte e o saber. No art. professores, estudantes ou funcionários
somente poderão gravar vídeos ou áudios, durante as aulas e demais
atividades de ensino, mediante consentimento de quem que será
filmado ou gravado (Maranhão, 2018).
Algumas (In)Conclusões
Diante tudo acima descrito, percebemos que discursivamente,
existem estratégias de imposição sobre o que se tem como verdade, a
qual é posta por diversos sujeitos em debate, que divergem ou o,
impregnados por aspectos sociais e ideológicos.
Notamos, portanto, a importância da implantação e
implementação de políticas públicas direcionadas ao enfrentamento e
combate à onda conservadora que tenta se instalar no país e que
366
defenda uma educação de qualidade e sem censura. Entendemos que
ameaças, perseguições e denúncias estabelece um clima tenso, hostil e
perverso no ambiente escolar e que reforça a intolerância e fere a
liberdade de cátedra e expressão e da pluralidade pedagógica. A escola
é espaço para a exposição da diversidade de opiniões e para o debate
respeitoso e plural, que constituem a construção de seres criativos e
críticos.
Dessa forma, a inserção das temáticas de gênero e sexualidade,
nos documentos que norteiam as práticas educativas no Brasil e
consequentemente no Maranhão, foi uma demanda advinda pela
emergência evidenciada na sociedade e pelas próprias expectativas que
as relações de gênero e da sexualidade trazem em seu bojo.
Segundo o Livro de Conteúdo do Curso GDE, publicado em
Brasil (2009), o currículo nas escolas produz resultados que reforçam
preconceitos e discriminações, e não condiz com uma prática
pedagógica voltada para uma perspectiva inclusiva, que este
participa diretamente da construção dos corpos e identidades dos
sujeitos da educação, principalmente de suas/seus alunas/os. Isto se
observa nas pesquisas realizadas que evidenciam currículos e práticas
pedagógicas e de gestão marcadas pelo sexismo, pela misoginia e pela
discriminação contra sujeitos não-heterossexuais ou que descumprem
expectativas hegemônicas de gênero. Neste sentido, Louro (2008, p.
64) diz que: “[...] currículos, normas, procedimentos de ensino,
teorias, linguagem, materiais didáticos, processos de avaliação são
seguramente, loci das difereas de gênero, sexualidade, etnia, classe
são constituídos por essas distinções e, ao mesmo tempo, seus
produtores”.
Mas o que se apresenta, no contexto atual, são desinformações
e desencontros conceituais e de entendimento. Tenta-se invisibilizar a
questão da sexualidade. O livro de formação de professores/as do
367
Curso GDE (Brasil, 2009, p. 115) defende que no cotidiano escolar,
a sexualidade está presente das mais variadas formas: nos pressupostos
acerca da conformação das famílias, dos papéis e do comportamento
de homens e mulheres; nos textos dos manuais e nas práticas
pedagógicas; em inscrições e pichações nos banheiros e nas carteiras;
em olhares insinuantes que buscam decotes, pernas, braguilhas,
traseiros; em bilhetes apaixonados e recadinhos maliciosos; em
brincadeiras, piadas e apelidos que estigmatizam os rapazes mais
delicados e as garotas mais atiradas etc. ou seja, falamos em
gêneros e sexualidades todos os dias por que estes temas permeiam
nossas vidas, nossos corpos, valores e sentimentos. São construções
diárias de vida humana.
Ao nosso ver, práticas educativas devem colaborar para uma
educação comprometida com a igualdade de gênero, orientação
sexual e identidade de nero nas escolas, evidenciando a defesa da
educação pública gratuita, laica e democrática que respeita e educa em
prol de uma sociedade igualitária para mulheres, homens, intersexuais,
cisgêneros, transexuais, travestis, lésbicas, gays, bissexuais e assexuais.
Uma sociedade democrática e justa visa um sistema escolar inclusivo,
com ações específicas de enfrentamento e combate às atitudes
discriminatórias e desiguais.
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371
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EDUCAÇÃO PARA A IGUALDADE RACIAL:
REFLEXÕES SOBRE O CURCULO NO
EXTREMO SUL DO BRASIL
Taís Mendes ALVES1
Amanda Motta CASTRO2
Introdão
O presente texto traz uma reflexão acerca da educação para a
igualdade racial e seus desdobramentos a partir da experiência do
extremo Sul brasileiro, onde é possível perceber fortes influências do
projeto de embranquecimento traçado para o país no século XIX. Isso
também pode ser notado em diferentes esferas da sociedade,
principalmente através dos processos de opressões e privilégios de
determinados sujeitos em detrimento de outros. É apresentada
também uma breve contextualização sobre a trajetória do povo negro
no Brasil e da importante atuação do Movimento Negro.
Destacamos que as reflexões aqui apresentadas foram
produzidas a partir de uma pesquisa de conclusão de curso no ano de
2019. A pesquisa sobre raça, história e cultura afro-brasileira foi
realizada na Escola Estadual de Ensino Fundamental Vicente Di Tolla,
1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade Federal do Rio
Grande (FURG), Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: taismendesalves91977@gmail.com.
2 Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande (FURG), Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: motta.amanda@gmail.com.
372
localizada no município de São Lourenço do Sul, extremo Sul do
Brasil.
O município de São Lourenço do Sul, localizado a 198 km da
capital Porto Alegre, possui uma população estimada de 44.580
habitantes. Sendo considerado como um município de colonização
alemã, com uma grande quantidade de moradores dessa etnia, possui
várias atividades voltadas para essa cultura. Esse fato faz com que
outras populações que, por sinal, já estavam nesse local antes da
imigração alemã e pomerana, sejam invisibilizadas, como é o caso dos
negros, comunidades quilombolas e indígenas da região. Banhada ao
leste pela Laguna dos Patos, as principais atividades desenvolvidas são
a agricultura e a pesca, tendo estabelecido no município uma colônia
de pescadores (z8) e, na zona rural, uma grande quantidade de
propriedades voltadas à produção agrícola, tendo como um de seus
destaques a agricultura familiar.
Figura 1 – Mapa da localização de São Lourenço
Fonte: Wikipedia (2019)
373
A educação é uma das grandes problemáticas brasileiras e,
quando se trata de uma educação voltada para a igualdade racial, isso
é ainda pior. Nota-se uma grande falta de interesse no tema. Na
maioria das vezes, o que vemos nas escolas são atividades realizadas
apenas na semana de 20 de novembro ou pequenos tópicos
desconexos introduzidos em algumas disciplinas fazendo alusão à
temática da cultura, história e do cotidiano da população negra. O
tema é desenvolvido de forma rasa, com pouco embasamento teórico
e prático, dentro daquele conteúdo estudado.
Nesse contexto, a pesquisa realizada buscou compreender
como esse trabalho é realizado na Escola Vicente Di Tolla, situada no
Bairro Medianeira (Lomba), no Município de São Lourenço do Sul,
não apenas do ponto de vista da equipe diretiva, docentes, mas
também buscando compreender a percepção de discentes acerca da
questão estudada.
Contextualização
Como nos bem aponta Miskolci (2013), o fim do século XIX,
no Brasil, foi marcado pela transposição de um sistema monárquico e
escravista para dar início à República. Para a elite, as discussões
giravam em torno do fim, já anunciado, da escravidão e o sonho de
uma nação branca e civilizada. Nesse ponto, porém, deparavam-se
com um grande empecilho, a característica heterogênea e diversa da
população em que o negro simbolizava o oposto de tudo que
buscavam.
O desejo da nação de nossos políticos e intelectuais se constituiu
historicamente por meio de uma avaliação negativa de nosso
povo e de nosso passado que, progressivamente, engendrou ideais
e decisões políticas que se concretizaram, por exemplo, na
374
Abolição da escravatura sem nenhuma política de incorporação
dos libertos ao mercado de trabalho, antes em uma política-pró-
migração europeia, na constituição de um regime republicano
autoritário que via no povo sempre um empecilho a ser
embranquecido, higienizado, civilizado. Isto é perceptível, no
início do século XX, nas reformas urbanas e nas expedições
enviadas ao interior do país. O desejo da nação era um desejo de
modernidade compreendido como a necessidade de reformar a
ordem social por meio de uma intervenção orientada
estrategicamente. Necessidade que se impunha a despeito das
divergentes visões sobre como perseguir o caminho do progresso
deixando para trás nosso passado colonial e escravista.
(MISKOLCI, 2013, p. 10)
De início, é interessante comentar que, como nos relembra o
autor, esse processo de abolição não se deu por pura bondade,
compaixão ou, quiçá, uma repentina tomada de consciência. Foi uma
decisão tomada após muita pressão interna e externa, de países
que haviam abolido o sistema escravocrata, e uma tentativa de
mudar a cara do país apagando essa mancha de nossa história, vez
que o sistema não estava mais alinhado com a imagem de progresso
tão almejada. Embora temido, devido às inúmeras consequências que
poderia trazer, o fim desse sistema era almejado com todas as forças
pela elite, pois significava uma certa harmonia. Sendo as minorias
sociais vistas como desvios”, degenerados”, “imorais e anormais”,
deveriam ser reprimidas e silenciadas (MISKOLCI, 2013).
Um dos medos que perturbava o sono da elite era o receio de
que o movimento abolicionista acabasse dando força a esses sujeitos,
que, assim como nos dias atuais, eram a maioria da população, e isso
impulsionasse revoltas e movimentos de resistência, como os que se
articulavam no interior dos Quilombos. Outro temor era que, após
375
serem libertos, eles buscassem por vingança. Isso tudo instaurou uma
grande nuvem de pavor e insegurança que pairava sobre o país.
Esses corpos passaram a ser ainda mais marginalizados, sendo
demarcados como violentos e hostis, o que promoveu um
distanciamento entre a elite e o povo. Esse ato de desumanização é
uma característica marcante de processos discriminatórios
(ALMEIDA, 2021, p. 29). Mas, apesar desse temor, a lógica
abolicionista falou mais alto. À época, não fazia sentido seguir naquele
sistema, não por reconhecer esses sujeitos como seres humanos, mas
porque acreditavam que a escravidão dificultava o progresso do país.
Como, para a elite, ter esse tipo de mão-de-obra representava um
atraso para o país, começou a ser desenhado um projeto de
miscigenação e embranquecimento da nação. Isso, porém, dava-se
como uma nação sem povo (MISKOLCI, 2013), pois se realizava sem
nenhuma identificação popular e participação do povo nos processos
de tomada de decisões, comandado por uma República elitizada,
branca e heterossexual.
Nessa perspectiva, segundo o autor, deu-se o processo de
miscigenação, protagonizado pelo homem branco. Dentro dessa
lógica, tal processo não poderia ser possível através da mulher branca,
por esta ser mulher, tampouco pelo homem negro, por este ser negro.
A mulher negra nem chegava a entrar nessa equação. Isso porque,
sendo mulher e negra, ocupava a base da sociedade, sendo vista, nesse
contexto, como alguém que estaria ali para servir, um objeto para ser
dominado e possuído.
Os negros e negras libertos/as eram largados/as à própria sorte,
sem casa, comida ou trabalho. Eram vistos/as como mão de obra
barata e desqualificada, pois não tinham acesso à educação. Sem terem
onde ficar, passaram a viver às margens da sociedade sem quaisquer
acessos a direitos mínimos, que, na visão da elite, não eram dignos
376
de tal privilégio. Assim, eram teoricamente livres, mas
economicamente escravizados (GODWIN, 2021, p. 19). Como,
segundo a lógica do embranquecimento, o negro era associado à
degeneração física e moral, aos poucos, essa mão de obra foi sendo
substituída.
[..] Afinal a Abolição se deu sem indenizar os ex-escravos,
tampouco com qualquer política organizada de reincorporação
dos negros como assalariados. Mesmo porque o fim da escravidão,
no final da década 1880, aconteceu em meio a uma crescente
onda imigratória de contratação de trabalhadores europeus e,
portanto, de uma desqualificação dos ex-libertos ou esmo do
elemento nacional na criação do mercado de trabalho livre.
(MISKOLCI, 2013, p. 13)
Com a chegada dos/as imigrantes, acreditava-se estar
resolvendo dois problemas de uma vez: o da mão de obra e o racial.
Diferentemente dos/as negros/as, os/as imigrantes foram recebidos/as
de braços abertos, encontrando aqui trabalho e terras, pois estavam
alinhados/as à proposta traçada para o futuro do país. Faziam parte
desse sonho europeu”, tão almejado pela elite, de seu ideal de
branquitude, mas como algo que se constitui não pela cor da pele,
mas pelo gênero masculino e poder aquisitivo (MISKOLCI, 2013).
A Europa era vista como centro do mundo e fonte de desejo da elite
que buscava o inalcançável padrão eurocêntrico. Como bem nos
aponta Silvio Almeida,
[..] o contexto da expansão comercial burguesa e da cultura
renascentista abriu as portas para a construção do moderno
ideário filosófico que mais tarde transformaria o europeu no
homem universal (atentar ao gênero aqui é importante) e todos
os povos e culturas não condizentes com os sistemas culturais
377
europeus em variações menos evoluídas. (ALMEIDA, 2021, p.
25)
Nas regiões Sul e Sudeste do país, percebem-se facilmente as
influências e as marcas da imigração no país, pois foram regiões onde
se instalaram grandes colônias de imigrantes, como alemães e italianos.
Isso, aos poucos, foi mudando a cara e a economia da região e
causando um apagamento de, principalmente, negros, indígenas e
quilombolas, que residiam nesses espaços antes de os/as imigrantes
chegarem. sendo Esse silenciamento foi tão cruel e esse projeto de
embranquecimento, em certos aspectos, foi tão bem sucedido que
chegamos ao vel de, em alguns estados brasileiros, imaginar-se que
não existam negros/as no Sul. Isso nos leva às palavras de
Chimamanda Ngozi Adichie cujo livro “O perigo de uma história
única” nos faz refletir sobre o poder das histórias e em como elas
precisam ser contadas. Em suas palavras:
As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias
foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser
usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a
dignidade de um povo, mas também podem reparar essa
dignidade despedaçada.
[...] quando rejeitamos a história única, quando percebemos que
nunca existe uma história única sobre lugar nenhum, revemos
uma espécie de paraíso. (ADICHIE, 2019, p. 3233)
Cabe ressaltar a importância que tem a educação nesse sentido,
em contar as histórias que não foram contadas ou que foram contadas
a partir da visão do colonizador. A educação pode fornecer as
ferramentas necessárias para que os sujeitos busquem sua
emancipação após décadas de silenciamento. Para tal, é necessária
uma grande mudança no sistema educacional, com a aplicação efetiva
378
das políticas blicas instituídas de reparação e comprometimento
com uma educação de fato antirracista, o que é uma responsabilidade
de todas as pessoas. Sendo os/as negros/as minoria nos espaços de
tomada de decisões, são necessários muitos/as aliados/as nessa luta,
pois, como bem nos recordava Godwin (2021, p. 25),
um observador de fora da situação naturalmente pergunta por
que os Negros, muitos dos quais servem à sua raça como
professores, não mudaram este programa. Esses professores, no
entanto, são impotentes. Os negros não têm controle sobre a
própria educação e têm pouca voz em outros assuntos pertinentes.
[...] Negros são sempre uma minoria tão estreita que nem
figuram no resultado final do programa educacional. A educação
dos Negros, então, a coisa mais importante na elevação dos
Negros, está quase inteiramente nas mãos daqueles que os
escravizaram e agora o segregam.
Fazendo um recorte para o estado do Rio Grande do Sul, foco
desta reflexão, conseguimos observar, ainda hoje, uma disparidade
gigantesca entre negros/as e brancos/as em diversos âmbitos, como
saúde, educação e acesso ao mercado de trabalho. Dados reunidos
recentemente pelo Departamento de Economia e Estatística (DEE),
vinculado à Secretaria de Planejamento, Governaa e Gestão
(SPGG), apontaram que, apesar de representar 21% da população no
estado, a população negra apresenta as maiores taxas de analfabetismo,
menores níveis de escolaridade, menor acesso a serviços privados de
saúde, maior taxa de desemprego, menor representação política e
maior risco de óbito por Covid-19 para pessoas com mais de 60 anos.
Mesmo sendo a maioria nos cadastros de Unidades de Saúde da
Família, a população preta recebe menos visitas de agentes
comunitários ou de membros da equipe de saúde da família, se
comparada à população branca.
379
A falta de identificação e representatividade dentro dos
espaços escolares, aliada ao fato de ter que se inserir no mercado de
trabalho precocemente, faz com que muitos/as jovens negros/as
acabem abandonando a escola precocemente. Em contextos escolares,
como os presentes na Rego Sul, isso é ainda mais forte, pois os/as
negros/as não se enxergam dentro de sala de aula, o que implica, não
raro, uma perda de identidade e necessidade de se aproximar ao ideal
da branquitude, aceito como o lindo, o belo. Essa alienação, fruto
dessa visão do colonizador, faz com que os sujeitos se adéquem a esse
processo de embranquecimento e acabem alheios à sua identidade,
cultura e história, buscando por essas máscaras brancas” para se
sentirem aceitos e pertencentes àquele grupo (FANON, 2020).
A história e a cultura do povo negro nos vêm sendo negadas
décadas. Quando lhes fazem referência, se lembram do período
escravocrata, invisibilizando-o e negando sua ancestralidade e papel
fundamental na construção deste país. Os conteúdos, muitas vezes,
além de serem transmitidos de forma rasa, não condizem com a
realidade dos/as estudantes, principalmente no que diz respeito a
estudantes negros/as, indígenas, quilombolas, ribeirinhos/as e
camponeses/as, ou seja, as populações subalternas.
Algumas ações foram realizadas no sentido de amenizar essa
situação e tentar pagar essa dívida histórica. Em 09 de janeiro de 2003,
durante o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi
adicionado à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) o Artigo
26, que diz respeito à Lei Federal 10.639/2003, que tornou
obrigatório o ensino da História e Cultura AfroBrasileira e Africana
na Educação sica nas escolas blicas e particulares no Ensino
Fundamental e Ensino dio. Ela também estabelece o dia 20 de
novembro como o “Dia Nacional da Consciência Negra”.
380
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre
História e Cultura Afro-Brasileira.
§ O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do
Brasil.
§ Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História
Brasileiras.
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro
como Dia Nacional da Consciência Negra’. (BRASIL, 2003)
Mas, baseado nos termos do § do art. 66 da Constituição
Federal, foi decidido pelo veto de alguns dispositivos, acrescidos à Lei
9.394 por contrariedade aos interesses públicos. Foram eles:
Art. 26-A
§ As disciplinas História do Brasil e Educação Artística, no
ensino médio, deverão dedicar, pelo menos, dez por cento de seu
conteúdo programático anual ou semestral à temática referida
nesta Lei.
Art. 79-A. Os cursos de capacitação para professores deverão
contar com a participação de entidades do movimento afro-
brasileiro, das universidades e de outras instituições de pesquisa
pertinentes à matéria.
Em 10 de março de 2008, Luiz Inácio Lula da Silva sancionou
a Lei 11.645 que também altera a Lei 9.394 e modifica a Lei
10.639:
381
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de
ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo
da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos,
a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra
e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade
nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e
dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de
todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação
artística e de literatura e história brasileiras.
Esse novo texto, que traz a inclusão dos povos indígenas, serve
de reparação para o texto anterior, trazendo, de modo mais claro, o
seu objetivo, e abrange, de uma forma mais ampla, os diferentes
aspectos relacionados ao povo negro e indígena, resgatando e
valorizando também a participação desses povos na construção da
sociedade brasileira.
No que diz respeito a políticas afirmativas para negros/as no
ensino superior, desde 2000 (no Rio de Janeiro), negros e negras têm
direito de se utilizar das cotas raciais para ingressar na universidade.
Elas foram criadas com o objetivo de proporcionar uma maior
igualdade de oportunidades e acesso e representatividade das
populações negras ao ensino superior e, assim como as demais leis,
surgiram através de reivindicações do Movimento Negro. Essa ação se
consolidou principalmente com a criação da Lei de Cotas, Lei
12.711, de agosto de 2012.
382
Conforme mencionado anteriormente, o Movimento Negro
foi um dos grandes responsáveis pela efetivação dessa e de outras
políticas públicas. Esse movimento teve sua origem ainda durante o
período da escravidão, como forma de resistência a todas as
atrocidades e injustiças sofridas, tendo Zumbi como sua maior
referência desse período. Ao longo de anos de lutas e reivindicações,
ele é, hoje, mesmo que muitos não reconheçam, o maior responsável
por todas as conquistas adquiridas para o povo negro. Após a
abolição”, essa luta se tornou ainda mais necessária. Sobre esse
período, Florestan Fernandes (2017) destaca:
[...] O escravo, o liberto, o homem pobre livre permaneceram
encadeados à colonização, às suas necessidades imperiosas, que o
despojavam de sua condição humana, e às suas consequências
materiais e morais, que os privavam de ser gente. Ter iam de lutar
de lutar arduamente, depois da desagregação da ordem
escravocrata e da implantação da República, para tornarem-se
cidadãos, levando dentro de si, não obstante, essa carga explosiva
de colonizados de terceira ou quarta categorias. Se o negro lutou
contra isso, através de seus movimentos sociais, chegou a fazê-lo
porque tal luta era uma premissa histórica da conquista humana
de ser gente, de converter-se em cidadãos de fato e de direito.
(FERNANDES, 2017, p. 45-46)
Dentre muitas das suas pautas, o movimento continua
lutando até hoje pela reparação da dívida histórica deixada de herança
do período escravocrata, por melhores oportunidades de emprego,
inclusão social, acesso e permanência do/a negro/a nas instituições de
ensino, trabalhando no combate e criminalização do racismo e, acima
de tudo, promovendo o respeito à história e cultura do povo negro.
383
As ações que vêm sendo realizadas pelas organizações negras no
campo da educação expressam-se em diferentes dimensões dessa
temática, incidindo sobre a educação formal nos diferentes níveis;
na produção e avaliação crítica de instrumentos didáticos; em
projetos de formação para o exercício da cidadania, para a
capacitação para o mercado de trabalho e para o fortalecimento
da capacidade de pressão sobre o estado. (CARNEIRO, 2019, p.
139)
O Movimento Negro do município de São Lourenço do Sul
também merece um grande destaque por anos de luta por direitos,
reconhecimento e valorização do/a negro/a no município, trazendo,
através disso, a atenção necessária para questões sociais tão impor-
tantes e demarcando seu espaço nas diferentes esferas.
Prática Docente no Cotidiano Da Escola
Como fora mencionado, foi realizada uma pesquisa, no final
do ano de 2019, na E.E.E.F. Vicente Di Tolla, localizada no
município de São Lourenço do Sul. Utilizando-se como metodologia
a pesquisa participante, os dados coletados foram analisados
qualitativamente. Foram entrevistados/as a atual diretora da escola, 9
(nove) docentes e 32 (trinta e dois estudantes) com o objetivo de
entender como era feito o ensino sobre raça e cultura afro-brasileira
na escola, qual a opinião dos/as estudantes a respeito e como os/as
docentes realizavam esse trabalho, se era feito de forma
interdisciplinar, durante todo o ano letivo ou somente em datas
específicas, e qual seria o impacto daquele fazer na vida das pessoas
envolvidas.
O público participante da pesquisa foram estudantes da escola
(séries finais do Ensino Fundamental e EJA), docentes da escola e a
384
responsável pela instituição, representada pela figura da diretora.
Dentre os/as estudantes participantes da pesquisa, a faixa etária variou
de 13 a 39 anos. Quanto aos/às docentes, a faixa etária variou de 37
a 60 anos. Em relação à identidade de gênero, como todas as docentes
se declararam como mulheres cisgênero, a partir de agora, irei me
referir a elas no feminino.
No que diz respeito à cor/raça, entre os/as discentes, 44% se
autodeclararam como brancos/as, 28% como pardos/as, 13% como
negros/as, 3% como amarelos/as, 3% como indígena e os outros 3%
não responderam. Dentre as docentes participantes, a diferença é
maior, oito delas se autodeclararam brancas e apenas uma negra.
Quanto à diretora da escola, esta se autodeclarou parda.
Figura 2 – Cor/Raça
Fonte: Pesquisadora Taís Mendes Alves (2019).
Conforme citado anteriormente, a responsável pela
instituição, e atual diretora da escola foi entrevistada. Ela relatou que
trabalhava na escola há dez anos, mas estava à frente da direção da
escola desde o começo daquele ano. Anteriormente, trabalhava
44%
19%
28%
3% 3%
3%
Cor/Raça
Branco
Negro
Pardo
Amarelo
Indígena
Não respondeu
385
durante a manhã na coordenação pedagógica da escola e à tarde em
sala de aula, dando aula para as séries iniciais (primeiro e segundo
ano).
Perguntada sobre os projetos que a escola teria em relação à
temática afro, ela disse que o tema estava incluído no plano de ensino
da escola, sendo trabalhado durante o ano todo. Porém, as atividades
se intensificariam mais durante o ano de novembro, quando
procuravam dar uma ênfase maior à cultura negra. Abordavam os
temas relacionados à história e memória do povo negro, mas com um
foco maior nos dias atuais, propondo uma reflexão para o/a estudante
sobre a situação do/a negro/a nos dias atuais, os espaços ocupados,
lutas, reivindicações e resisncia.
Uma das docentes fala que é uma pessoa indagada sobre o
racismo no ambiente escolar, ela disse que, embora tenha sido
presenciado pouquíssimas vezes na escola, ele acontecia. Nessa
situação, costumavam chamar o/a estudante para conversar e refletir
a respeito da sua atitude. Realizavam também momentos de diálogo
com os/as estudantes, às vezes, em sala de aula, sobre o assunto. As
atividades mais específicas sobre o tema, assim como demais assuntos,
se intensificavam mais também durante o mês de novembro com
rodas de conversa, reflexões escritas, feminismo negro, entre outros.
Entretanto, reconheceu que deveriam trabalhar mais sobre o assunto
durante o ano nas aulas e projetos, ressaltando que sempre que surgia
alguma proposta de fora para realizar atividades na escola sobre o
assunto estariam abertos/as a receber.
O objetivo da pesquisa, em relação às docentes, foi entender
como realizavam esse trabalho em sala de aula, seu posicionamento a
respeito e percepção em relação ao retorno recebido por parte dos/as
discentes. A maioria das docentes trabalha há bastante tempo na
escola, o que lhes concede uma maior propriedade para falar sobre
386
isso. Participaram da pesquisa professoras das áreas de: Geografia,
Língua Portuguesa, História, Artes, Ciências, Língua Inglesa e séries
iniciais. Das nove participantes, duas afirmaram não conhecer a Lei
nº 10.639 e, dentre as que conhecem, cinco disseram que já haviam
participado de atividades de formação relacionadas ao tema.
Perguntadas sobre a inclusão dos conteúdos relacionados à
temática negra em sala de aula, todas responderam que deveriam ser
abordados, considerando de extrema importância que isso acontecesse.
As professoras também descreveram um pouco de como procuraram
fazer isso em suas aulas, que destacamos:
- Enaltecer os negros que se destacam em suas áreas.
- Trabalhar os autores e autoras negras na prosa e na poesia.
- Trabalhar arte e populações negras.
- Trabalhar com arte dos povos africanos.
- Diariamente nas reflexões sobre a formação do povo brasileiro e a
diferença de
- Oportunidades entre as populações brancas e negras.
- Trabalhar com charges, filmes, documentários
- A professora deve se manter atento para que a cultura do racismo
não se perpetue.
Quando lhes foi inquirido se já tinham presenciado algum
caso de racismo na escola, a maioria respondeu que não, apontando a
importância de manter um diálogo com os/as estudantes em relação
a isso, de estimular o respeito às diferenças, mantendo, dessa forma,
um bom convívio no ambiente escolar.
Como citado anteriormente, participaram da pesquisa 32
estudantes, das séries finais do Ensino Fundamental e EJA. Todos
responderam a um questionário com oito perguntas sobre o tema. O
objetivo da pesquisa em relação aos/às estudantes era entender qual
sua percepção a respeito do trabalho realizado na escola em relação ao
387
ensino de raça e cultura afro-brasileira e como se desenvolviam nesse
processo.
A respeito das atividades realizadas na escola relacionadas à
temática afro, a maioria dos/as estudantes considerou que elas
aconteciam de fato, a maior parte concordando que essas atividades
ocorriam mais em datas comemorativas.
Os/as estudantes foram questionados/as também sobre a
introdução do tema em sala de aula, se consideravam que isso estava
sendo feito. A grande maioria respondeu afirmativamente.
Questionados/as, posteriormente, se achavam que essa abordagem
estava sendo satisfatória, houve um grande equilíbrio em relação às
respostas, 12% dos/as estudantes consideraram que sim, outros 12%
que não e 11% não responderam.
Em relação ao racismo, 56% dos/as estudantes afirmaram que
nunca sofreram ou presenciaram nenhum caso dentro do ambiente
escolar. Dentre os/as que disseram ter sofrido ou presenciado, 54%
afirmaram que algum docente ou funcionário da escola interviera na
situação.
Por fim, indagados/as se consideravam importante a
abordagem dos temas relacionados à escola e cultura afro-brasileira e
africana nas aulas, 75% dos/as estudantes afirmaram que sim e 72%
disseram que gostariam que tivessem mais atividades dessa temática
na escola.
388
Figura 3 – Mais atividades com a temática afro
Fonte: Pesquisadora Taís Mendes Alves (2019).
O último gráfico mostra que repensar e refazer o currículo
escolar para a igualdade racial é urgente. Trata -se de uma demanda
não do movimento negro, que historicamente reivindica essa pauta
na sociedade como um todo, incluindo a escola, mas também de
estudantes que sentem a necessidade de fazer a inclusão de tal temática
no currículo escolar e não somente em datas comemorativas.
Considerações Finais
As colocações trazidas por Miskolci em sua obra nos trazem
importantes contribuições a respeito desse processo histórico de
construção desta nação como a vemos – e sentimosnos dias atuais.
Podemos observar que todas as formas em que se estruturam os
diferentes setores da sociedade, desigualdades, processos de exclusão e
silenciamentos, são resultantes de um projeto iniciado atrás.
Foi engendrado todo um projeto patriarcal, branco e
heteronormativo de poder que busca eliminar tudo aquilo que é
contrário aos seus interesses e que faz vítimas ainda hoje. Esse ideal de
embranquecimento provocou o apagamento de povos, perda de
identidades étnicas, bem como a negação de suas histórias. Mas, se
vida, luta. Que possamos reescrever e enegrecer estas “histórias
72%
28%
Mais Atividades com a
Temática Afro
Sim
Não
389
únicas”, pensando na educação como a primeira gina de um livro
repleto de possibilidades e histórias a serem deixadas para as gerações
futuras.
Para alguém não negro/a, talvez seja difícil entender a
importância dos marcos legais citados no decorrer deste trabalho,
marcos estes resultados de uma dívida histórica. Imagine-se dentro
de uma sala de aula, onde praticamente nada do que é mencionado
o/a representa, onde, quando falam do seu povo, é para mencionar
que foram escravos/as por mais de 300 anos.
Muitos materiais como teses, dissertações e artigos foram
produzidos nos últimos anos a respeito desse tema, falando sobre a
criação e implementação das Leis 10.639 e 11.645 e como tem
sido difícil fazer com que elas sejam cumpridas. Acredito que existe
um conjunto de fatores que fazem com que isso aconteça. Ressalto a
falta de fiscalização por parte dos órgãos competentes, a falta de cursos
de formação, inicial e continuada, de professores relacionados a esse
tema. Rodas de conversa, diálogos e trocas de experiência entre
professores acerca da história e da cultura afro-brasileira e africana,
bem como formas de abordar o assunto em sala de aula de forma
interdisciplinar, ministrados por pessoas negras são fundamentais.
Falta conversa com os movimentos e, em alguns casos, vontade.
Este trabalho vem no sentido também de mostrar como isso é
possível de se fazer. Após a análise dos dados coletados, pode-se
observar que a Escola Vicente Di Tolla ainda tem um longo caminho
para trilhar, mas está no rumo certo. A escola tem alcançado
resultados significativos e realizado um trabalho lindo, que pode ser
constatado pelo percentual de satisfação dos/as alunos/as e a
baixíssima incidência de casos de racismo no ambiente escolar. Isso é
resultado de muito empenho, dedicação e vontade de fazer diferente.
Sejamos a diferença.
390
Sejamos professores e professoras empenhados/as de fato com
a causa antirracista, trazendo isso para nosso fazer pedagógico e
compreendendo que este é um compromisso de todos nós,
principalmente quando vo é uma pessoa não negra e desfruta de
determinados privilégios apenas por ser quem é, pela cor da sua pele.
E esse é um trabalho diário, que começa com o reconhecimento de
que vivemos em uma sociedade racista e com o autorreconhecimento,
entendendo o lugar que ocupamos nessa sociedade e buscando formas
de romper com esse sistema através de nossa prática docente e vida
cotidiana.
Referências
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Chimamanda Ngozi Adichie. - 1ª ed. - São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
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Almeida. - São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2021. 264 p.
(Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro).
ALVES, Tais Mendes. Raça e CULTURA AFRO-BRASILEIRA no
cotidiano da escolasica de SLS. 2018. Trabalho de Conclusão de
Curso. (Graduação em Educação do Campo) - Universidade Federal
do Rio Grande. 2019.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida / Sueli Carneiro.São
Paulo: len Livros, 2018.
Estudo Mostra Panorama da desigualdade racial no RS. Diário
Popular. Pelotas, 2021. Disponível em: <
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https://www.diariopopular.com.br/geral/estudo-mostra-panorama-
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FANON, Frantz [1925-1961]. Pele negra, máscaras brancas. /
Frantz Fanon; título original: Peau noire, masques blancs. o Paulo:
Ubu Editora, 2020/320pp.
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. – 1º ed. -
São Paulo: Expressão Popular co-edição Editora da Fundação Perseu
Abramo, 2017;
GODWIN WOODSON, Carter, 1875-1950. A (des)educação do
negro. Carter Godwin Woodson. - São Paulo: Edipro, 2021.
MISKOLCI, Richard. O desejo da nação: masculinidade e
branquitude no Brasil de fins do XIX. / Richard Miskolci. - São
Paulo: Annablume, 2013. (Coleção Queer)
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o_Sul.
392
393
https://doi.org/10.36311/2025.978-65-5954-609-1.p393-413
NOSSAS VOZES SÃO ALENTOS PARA QUEM?
UMA CONVERSA SOBRE TURISMO,
IGNONCIA E ENCRUZILHADAS
DE GÊNERO E RAÇA
Michel Alves FERREIRA1
Lindamir Salete CASAGRANDE2
Com Kaô, Sigo em Frente!3 Comando...
Observar e analisar os conhecimentos e saberes diversos,
produzidos por grupos sociais e instituições às quais esses estão
vinculados, remete a enxergá-los para além de simplesmente um
conjunto de produtos e materializações das sociedades: ali
experiências, vivências, disputas entre grupos, rupturas e
aprendizagens concretas, localizadas em um tempo e espaço histórico
particulares. Desta afirmação inicial, é possível sustentar a ideia de
1 Docente do Curso de Bacharelado em Turismo da Faculdade de Ciências Agrárias,
Biológicas e Sociais Aplicadas (FABIS) da Universidade do Estado de Mato Grosso Carlos
Alberto Reyes Maldonado” (UNEMAT), Nova Xavantina, MT, Brasil. E-mail:
maferreiragi@gmail.com.
2 Professora voluntária do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE)
da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail:
lindasc2002@gmail.com.
3 O título de cada uma das seções, assim como do nome deste artigo, é inspirado na canção
Alento, composta por Gusta Proença e Daniel Montelles, interpretada por este último. Tanto
na canção Alento, quanto no EP Imensidão, Daniel Montelles presta reverência aos Orixás,
batendo a cabeça às ancestralidades afro que pauta as suas ações/interações cotidianas.
Referência completa: Proença, Gusta; Montelles, Daniel. Alento. In: Imensidão. Curitiba:
Proeza Mixarte, 2021, faixa 4, EP.
394
que o conhecimento, assim como a ciência, a técnica e as tecnologias
produzidas, está em constante busca de confirmação e/ou
ressignificação de paradigmas, dando inclusive outros sentidos
interpretativos aos tempos e espaços históricos, desmontando a ideia
de uma neutralidade e pureza objetiva4.
É possível conectar esta concepção crítica à neutralidade e
objetividade dos saberes, especialmente quando se pensa em ciência e
tecnologia, às considerações de Milton Santos (1996), ao observar as
metamorfoses, tensionamentos e disputas que ocorrem nos diferentes
espaços, influenciando a percepção e interação entre os espaços e as
paisagens componentes destes, sejam naturais e/ou artificialmente
modificadas. Uma vez que todo espaço, de acordo com o autor, é
resultado da intervenção humana.
As considerações de Santos (1996) são pertinentes para
defender, neste texto, acerca do entendimento do turismo como um
fenômeno sócio/cultural e interdisciplinar, para além de indicadores
técnicos/econômicos e de uma formação profissional prioritariamente
tecnicista, esquecendo a prosa e poesia que decisivamente influenciam
percepções das/os viajantes, de quem apresenta os destinos a estes
sujeitos que querem fugir e/ou reproduzir sua cotidianidade e, por
fim, da própria comunidade.
o é que se esteja desconsiderando, aqui, a importância da
infraestrutura que oferece suporte ao turismo e suas subatividades,
assim como seus aspectos econômicos subjacentes que finalmente
4 Sempre que um autor ou autora for citado pela primeira vez, se posto seu nome completo.
Este é um posicionamento político e teórico dos autores deste texto de visibilizar a
contribuição de sujeitos (principalmente de mulheres, na construção do conhecimento
acadêmico. Além do questionamento de uma universalidade do modo de escrever e produzir
ciência que remete ao imaginário do masculino. Neste sentido, a afirmação desta nota está
fundamentada nos trabalhos de Michel Alves Ferreira e Lindamir Salete Casagrande (2020);
Michel Alves Ferreira (2022); Andrew Feenberg (1995a; 1995b); João Augusto de Souza
Leão de Almeida Bastos (2015).
395
movimentam o Produto Interno Bruto (PIB) de um país e região,
uma vez que o setor de viagens e turismo poderá gerar cerca de dois
milhões de empregos no setor em um prazo de dez anos, de acordo
com projeções do Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTCC,
2022, Online). Do mesmo modo, é importante registrar que o setor
de serviços e, por conseguinte, o turismo, foi um dos mais afetados
pela tragédia da Pandemia Covid-19.
No entanto, igualmente é fundamental perfazer os seguintes
questionamentos, sobretudo mediante o período pandêmico/pós
pandêmico em que o mundo atravessa: que tipo de empregos serão
gerados para trabalhadoras e trabalhadores do setor? As vivências de
viajantes nos destinos turísticos estão fundamentadas em trocas que
valorizam efetivamente as suas diferenças (enquanto pertencentes a
determinados grupos sociais), ou reproduzem majoritariamente
experiências negativas/violentas vivenciadas por sujeitos em razão de
suas características raciais, étnicas, de classe social e suas
expressões/identidades de gênero? Como questões de gênero, classe
social e raça estão postos nas disciplinas ministradas durante a
formação profissional de turismólogas e turismólogos?
Das ponderações e questionamentos iniciais, é delineada a tese
central do texto: de que a liberdade para viajar não apenas é
delimitada por questões de raça, classe social, gênero e território/
espaços, mas que determina como o próprio fenômeno do turismo
pode reproduzir uma ignorância sistêmica frente a estas questões em
suas práticas cotidianas. Ao mesmo tempo, práticas do turismo
podem servir de instrumento de existências/resistências outras, que
obrigam a ressignificação e a análise de um turismo mainstream
excludente, classista, racista e sexista, inclusive quando se é discutido
nos espaços de formação profissional/universitária.
396
Desta tese central se extrai o objetivo: discutir criticamente
como se (ou não) a liberdade para vivenciar o turismo,
especialmente de pessoas negras, a partir de aportes teóricos sobre a
ignorância enquanto uma teoria social.
Quanto a organização teórico-metodológica: se trata de um
texto, escrito a quatro mãos, de natureza interpretativa, situada,
bibliográfica, ensaística e interdisciplinar. Portanto discussões
qualitativas, conforme Herivelto Moreira e Luiz Gonzaga Caleffe
(2008), comuns em trabalhos das ciências humanas, tramam diálogos
que buscam escapar de análises cartesianas, positivistas e estáticas de
eventos diversos em uma costura social, que outras construções
metodológicas poderiam encontrar mais limites ao dialogar com esses
eventos.
Após esta parte introdutória, serão entrelaçados eventos do
cotidiano social e/ou pesquisas publicadas no ano de 2021 com o
conceito de ignorância defendido no texto e, em seguida, discutir
criticamente acerca dessa liberdade (ou não) de viajar. Em seguida,
são realizados breves apontamentos acerca de currículos de cursos
superiores ativos, em turismo, de universidades públicas das Regiões
Sul e Centro-Oeste do Brasil, à época da construção deste texto. O
objetivo da apresentação desses apontamentos concerne a demonstrar
se existem disciplinas, nos respectivos cursos, que versam sobre ética,
direitos humanos, gênero e raça na formação desses/as profissionais.
Como critério de busca dos respectivos cursos e de suas
ementas, foi utilizada primeiramente a base nacional de dados oficiais
dos cursos superiores, (Portal E-Mec). Esta base Online, dentre outras
atribuições previstas em lei, dispõe todos os dados cadastrados das
Instituições de Ensino Superior, tais como os atos autorizativos das
instituições e de cada curso consultado. Em seguida, com a
quantidade de cursos existentes nas regiões selecionadas para a
397
elaboração deste texto, buscou-se ingressar em cada uma das páginas
online dos respectivos cursos superiores em turismo, com a finalidade
de verificar as disciplinas e suas ementas. O período de realização deste
levantamento, bem como dos apontamentos trazidos para este texto,
compreendeu o mês de julho de 2022.
É importante destacar que o texto apresentado neste livro não
pretende esgotar as discussões sobre o tema e está sujeito aos seus
limites temporais, espaciais e analíticos, podendo inclusive suscitar
outras pesquisas mais densas. Portanto este texto é fruto de seu tempo,
momento, cruzamentos e movimentos.
E Aqui as Teorias e Práticas Fazem Fluir...
Em postagem de 13 de julho de 2021, em uma rede social de
busca de empregos, o ativista negro e colunista de jornal Antonio
Isuperio (2021, Online), a partir de um print de uma funcionária,
branca, do setor de recursos humanos de uma empresa de engenharia
mecânica e industrial, perfaz uma discussão acerca da crença da
meritocracia, isonomia e universalidade na cotidianidade das relações
sociais brasileiras. Isuperio (2021, Online) se utiliza como exemplo
em sua discussão na rede social, ao destacar que embora tivesse toda
a qualificação necessária para assumir os postos de trabalho aos quais
se candidatava, acabava sendo preterido por outro candidato/a: seja
porque seu cabelo não era compatível com o dresscodeda empresa,
seja porque era extremamente qualificado para a vaga, mas não
ofereciam outra em contrapartida.
O que é, no mínimo curioso de se perceber nas discussões
propostas por Isuperio (2021, Online), diz respeito a como a
recrutadora de empregados/as da empresa diz que contrata seres
humanos a partir de suas competências, independentemente de seus
398
“itens”. Itens, para a recrutadora, diz respeito a pessoas negras, pessoas
de afetividades e sexualidades divergentes da norma imposta,
mulheres e pessoas que ela considera gordas. A postagem da
recrutadora, para espanto (mas nem tanto), foi curtida e comentada
positivamente por inúmeros/as outros/as recrutadores/as, de médias e
grandes empresas brasileiras, em sua maioria pessoas brancas.
O caso relatado por Isuperio (2021, Online) pode ser
conectado com o texto da professora e pesquisadora Cassiana
Gabrielli (2021), ao revelar as disparidades nas relações de trabalho
entre homens e mulheres que atuam no turismo, além de uma menor
participação delas no consumo das viagens. Para Gabrielli (2021),
essas disparidades estão diretamente relacionadas a materialização de
estereótipos afetivos, cognitivos e socioculturais que conectam as
atividades femininas exercidas no setor do turismo ao cuidado
imposto, socialmente às mulheres, na criação do lar e de dependentes
e, portanto, com menor valorização, reconhecimento e remuneração
dada pelo mercado. Ou seja: que tipo de emprego realmente se está
oferecendo?
Consequentemente, para Gabrielli (2021), elas têm
dificuldades em viajar mais. Fora as questões relacionadas a violências
às quais mulheres viajantes estão expostas, destacado em outro
trabalho, este da professora e pesquisadora Adriana Piscitelli (2017).
Para Piscitelli (2017) uma cultura estrutural do medo, fundamentada
nas violências contra mulheres e da não discussão/aprofundamento
de questões de gênero em certos grupos sociais, dificulta que elas
possam consumir o turismo, viajar livremente em vários países.
O que as considerações, trazidas brevemente para este texto,
de Isuperio (2021, Online), Gabrielli (2021) e Piscitelli (2017), têm
em comum? As professoras pesquisadoras e o ativista e colunista de
jornal denunciam privilégios estruturais que certos grupos sociais
399
possuem, mas que o discurso da neutralidade, universalidade e
meritocracia mascaram esses privilégios de um grupo perante outro,
traduzindo, às vezes, em uma verdadeira cegueira estrutural.
Mais: esta cegueira estrutural, coletiva, acaba sendo positiva e
produzida reiteradamente, o que faz com que seja complexo e difícil
o seu desmascaramento. Esta cegueira é produzida unicamente com o
objetivo de confundir, enganar, levar ao erro, tomar decisões
equivocadas, a finalmente estabelecer uma narrativa única de
conhecimento e de ignorância, como destacado pelo pesquisador
negro Michel Alves Ferreira (2021a, p. 124), ao desenvolver o seu
conceito de Àìmòtológia5 em sua tese de doutoramento, ao analisar
a formação de novas/os pesquisadoras/es das engenharias e das
ciências humanas de quatro cursos de pós-graduação de duas
universidades tecnológicas: uma brasileira e outra colombiana, afirma:
[...] é um estudo da produção cultural de ignorâncias, uma vez
que estas fazem parte das vivências humanas cotidianas e, ao
mesmo tempo, também podem ser utilizadas para apresentar,
manipular e/ou uniformizar determinadas narrativas às
sociedades.
Esta cegueira coletiva, a Àìmòtológia debatida por Ferreira
(2021), pode ser conectada com o que o pesquisador e professor
jamaicano Charles Wade Mills (2008) irá chamar, em seu texto, de
ignorância branca, ao analisar sociologicamente a questão racial
estadunidense e como isso afeta as noções de universalidade e
5 A palavra Àìmòtológia, colocada para a gira epistemológica na tese de Ferreira (2021),
provém da análise dos termos/noções do Iorubá Àìmò (que remete ao desconhecido, ao que
não se sabe, à ignorância coletiva), a qual dialoga com a noção grega de agnosia e, também,
logos, que poderia ser entendido enquanto noções de razão. O capítulo quarto da tese de
Ferreira (2021) perfaz toda explicação da criação deste termo, inclusive ao valorizar as
ancestralidades negras no debate do conhecimento produzido.
400
democracia naquele país. Em outras palavras: é o reconhecimento
legal dos sujeitos em direitos e deveres e o reconhecimento da noção
de igualdade, mas o não reconhecimento histórico dos privilégios
estruturais que pessoas brancas tiveram, inclusive com o apoio do
sistema formativo cidadão educacional.
Seja na cotidianidade das relações, seja no campo da aplicação
do jurídico, seja nas relações de trabalho, ou mesmo pensando aqui,
no caso da liberdade em viajar. Ou ainda na invisibilização e/ou do
pouco interesse, por grande parte da academia brasileira, em pesquisar
temas relacionados a pessoas negras viajantes, debatido no artigo da
pesquisadora e professora negra Natália Araújo de Oliveira (2021a).
A pesquisadora chega a questionar neste texto: quais são os lugares
dos corpos negros no turismo?
Em outro texto, Oliveira (2021b) constatou, em uma
pesquisa realizada com estudantes do curso de turismo da
Universidade Federal de Pelotas, adjunto a análise dos currículos de
todos os demais cursos de turismo operantes no Estado do Rio
Grande do Sul, que urge uma discussão sobre ética para além da
atuação profissional no setor. Os próprios estudantes, que
participaram da pesquisa, relataram dificuldades em diferenciar a ética
da moral em suas relações cotidianas, assim como nas relações com
instituições presentes na sociedade.
Essas dificuldades, segundo Oliveira (2021), podem decorrer
da não abordagem da ética de modo interdisciplinar na formação
universitária, como também do pouco interesse do mercado do
turismo em discutir ética amplamente. O que, por conseguinte,
também pode ser corroborado com o modo neoliberal como a ética
foi posta, historicamente, em códigos de atuação profissional,
conforme crítica realizada pelo pesquisador e antropólogo hispano
estadunidense Quetzil Castañeda (2012). Para este pesquisador, é
401
fundamental que os códigos de atuação profissional, assim como seus
princípios éticos subjacentes, rompam com uma ideia subliminar de
proteção dos interesses apenas de quem planeja o turismo, em
detrimento das necessidades das comunidades, trabalhadores do setor
e os consumidores, maiores interessados e afetados pela atividade.
Se os textos de Oliveira (2021b) e Castañeda (2012) atentam
na urgência do olhar para as questões éticas no turismo, é
fundamental (e é o que se defende aqui) que esse olhar seja atravessado
por gênero e raça. Especialmente no tocante à formação cidadã e
acadêmica desses/as profissionais, de modo que a meritocracia e a
naturalização dos itens” na não contratação de pessoas, seja posta
efetivamente em debate. E essa cegueira provocada seja, por fim,
reveladas as suas perversidades estruturais. Afinal, que pessoa e
profissional se está formando?
Por essas razões que, ainda em 2021, denúncias realizadas nos
textos de Isuperio (2021, Online) e Gabrielli (2021), e relatadas no
começo desta seção, sejam corriqueiras no Brasil. É, também, uma das
razões de ser tão difícil para certos segmentos da sociedade enxergar
determinados grupos em outras posições que não sejam da violência
imposta, da indignidade, do não direito ao lazer e ao turismo, da
invisibilidade, da não intelectualidade ou da não valorização da sua
força de trabalho. É o que a pesquisadora e professora Lindamir Salete
Casagrande (2021), ao escrever para crianças e adolescentes sobre a
história de Enedina Marques (mulher negra pioneira na engenharia
brasileira), relata sobre a forma desrespeitosa com que a imprensa
paranaense a tratou por ocasião da sua morte, em 1981.
Aliás: em toda sua vida Enedina teve de enfrentar preconceitos
e discriminações de gênero e raça para conseguir viver dignamente em
seu tempo. O que não é muito diferente de hoje (época da publicação
deste texto) para determinados grupos sociais, apesar dos inúmeros
402
avanços percebidos na sociedade brasileira em comparação à época da
vida e morte de Enedina. Passou-se pelo processo de redemocratização
do país depois de uma ditadura civil-militar, a criação de nova moeda
e um relativo período de estabilidade econômica, pela construção de
políticas minimamente estruturadas social, educacional e
economicamente, maior acesso de determinados segmentos às
universidades públicas, institutos e centros tecnológicos, o
reconhecimento de direitos e da dignidade humana em celebrar o
amor, a saúde mental e o corpo (inclusive do ponto de vista jurídico
e de saúde coletiva), dentre outras tantas conquistas realizadas, a partir
das diversas lutas de movimentos sociais e morte de muitas pessoas
militantes, registre-se.
Entretanto, como demonstrou Mills (2008) ao falar sobre a
ignorância branca dentro do contexto estadunidense, mas que pode
ser estabelecido um paralelo com a realidade latino-americana: se não
existe o reconhecimento de privilégios estruturais e estruturantes em
uma sociedade, especialmente no tocante a questões de raça, o que se
tem é uma não efetivação das noções de igualdade de direitos e deveres
no cotidiano das relações, que beneficiaria inclusive toda a sociedade,
não apenas segmentos violentados cotidianamente. Urge entender
como discursos negacionistas, extremistas e aniquiladores das
diferenças ganharam tanta força nas últimas décadas, produzindo
uma escalada de horrores e a maior banalização da violência. Esses
discursos, ademais, instigam pessoas comuns a cometer atos de
violência em todos os níveis.
Basta pensar no modo como a Pandemia Covid-19 foi
conduzida por certos governos. Ou como a proliferação das notícias
falsas produziram mais problemas na sociedade, tal como debatido
brevemente no trabalho de Ferreira (2021). Ou da espetacularização
e banalização das mortes de pessoas negras, reproduzindo táticas de
403
aniquilamento por câmara de gás6. Ou ainda do fetiche de boa parte
da sociedade brasileira em saber sobre a mulher da casa abandonada7,
mas que pouco quer discutir sobre trabalho escravo, privilégios,
desigualdades e, principalmente, racismo e sexismo no país.
Diante das breves considerações costuradas ao longo de todo
o texto, se a liberdade de viajar remete a pensar nas prosas e poesias
da existência e vivência humana, então é preciso colocar em debate
para quem, como, onde e quando essa prosa e poesia estão reservadas
no cotidiano. Talvez por isto a pergunta posta, no fim da década de
1990, pelo professor e pesquisador britânico Colin Michael Hall
(2001, p. 86) em seu livro Planejamento Turístico: políticas, processos
e relacionamentos, ainda seja tão atual, ao se pensar em liberdade para
viajar: “que mundo queremos ou somos capazes de construir por
intermédio do turismo? ”.
Que Eu Deveria Estar Aqui? Breves Apontamentos
Sobre os Currículos Analisados
Quinze foram as universidades públicas, encontradas no
levantamento realizado em julho de 2022 pelos autores deste texto
junto ao Portal E-Mec, que oferecem dezessete cursos de turismo (em
funcionamento) nos três estados da Região Sul brasileira, adjunto ao
Estado de Mato Grosso.
6 Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, brutalmente assassinado em 25 de maio de 2022.
Notícia: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2022/05/policia-rodoviaria-federal-
camara-de-gas-camburao-mata-homem-negro/
7 O Jornalista Chico Felitti, em entrevista à jornalista Rebeca Oliveira (2022), não poderia
dar melhor descrição sobre o podcast realizado em 2022 para a Folha de São Paulo, sobre
Margarida Bonetti: é um retrato de uma sociedade que tem curiosidade em saber dessa
mulher, mas que se recusa a discutir seus privilégios e perversidades de classe, gênero e raça.
Acesso: https://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2022/07/e-um-retrato-do-brasil-diz-
chico-felitti-sobre-podcast-a-mulher-da-casa-abandonada.shtml
404
A Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Universidade
Estadual do Paraná (UNESPAR), oferecem o curso de turismo em
cidades diferentes: a UFPR em Curitiba e Matinhos e a UNESPAR
em Apucarana e Campo Mourão. As demais universidades possuem
apenas um curso de turismo em funcionamento. Com relação a
natureza dessas quinze universidades públicas: nove são instituições
federais, cinco estaduais e uma regional/municipal, a Fundação
Universidade Regional de Blumenau (FURB). Quanto às modalida-
des dos cursos, onze são de habilitação para bacharéis e bacharelas em
turismo e seis para tecnólogos e tecnólogas.
O quadro a seguir apresenta as respectivas informações gerais
Quadro 1 – Caracterização das universidades levantadas para este estudo
Universidade Sigla Locais
Modalidade
do Curso
Instituto Federal de
Educação, Ciência e
Tecnologia de Mato Grosso
IFMT Cuiabá
MT Bacharelado
Universidade do Estado de
Mato Grosso Carlos Alberto
Reyes Maldonado
UNEMAT
Nova
Xavantina
MT
Bacharelado
Universidade Federal do
Paraná UFPR
Curitiba e
Matinhos
PR
Bacharelado
e
Tecnológico
Universidade Estadual de
Ponta Grossa UEPG
Ponta Grossa
PR Bacharelado
Universidade Estadual do
Centro Oeste
UNICENTR
O Irati PR Bacharelado
Universidade Estadual do
Oeste do Paraná UNIOESTE
Foz do
IguaçuPR Bacharelado
405
Universidade Estadual do
Paraná UNESPAR
Apucarana e
Campo
Mouo
PR
Bacharelado
Fundação Universidade
Regional de Blumenau FURB
Blumenau
SC Bacharelado
Instituto Federal de
Educação, Ciência e
Tecnologia de Santa Catarina
IFSC Florianópolis
SC Tecnológico
Instituto Federal de
Educação, Ciência e
Tecnologia Catarinense
IF
Catarinense
Sombrio
SC Tecnológico
Fundação Universidade
Federal do Rio Grande FURG
Santa Vitória
do Palmar
RS
Bacharelado
Instituto Federal de
Educação, Ciência e
Tecnologia Farroupilha
IF
Farroupilha
São Borja
RS Tecnológico
Universidade Federal de
Pelotas UFPEL PelotasRS Bacharelado
Universidade Federal do
Pampa UNIPAMPA
Jaguarão
RS Tecnológico
Universidade Federal de Santa
Maria UFSM
Santa Maria
RS Tecnológico
Fonte: Autoria própria (2022), com base em levantamento realizado no Portal E-
Mec e páginas das universidades.
Em breve análise das respectivas matrizes curriculares e
ementas das disciplinas, de cada um dos 17 cursos de turismo,
constatou-se que em 12 existe a disciplina de ética. Nos outros cinco
cursos onde inexiste a disciplina, foi observado que as discussões sobre
ética estão diluídas nas demais disciplinas dos cursos. Entretanto, a
constatação de que as disciplinas, quase que em sua totalidade,
406
priorizam mais a ética profissional e os seus respectivos códigos,
corroboram com as críticas realizadas nos textos de Castañeda (2012)
e Oliveira (2021b) acerca do caráter neoliberal e individualizante da
ética e moral estudada no turismo, em detrimento das suas relações
cotidianas com os demais agentes envolvidos na atividade: a
comunidade, os espaços, as instituições e os consumidores. Isso pode
explicar, a partir dos estudos de Castañeda (2012) e, principalmente
de Oliveira (2021b), as dificuldades de estudantes e egressos em
definir e aplicar ética em suas vidas.
Quando se observou a respeito de discussões sobre direitos
humanos e/ou direitos humanos aplicados ao turismo, a situação é
um pouco mais complexa: apenas quatro cursos possuem essas
discussões presentes em seus ementários (UNICENTRO, FURB,
UFSM e UFPEL) de modo explícito, seja na disciplina de ética,
legislação ou em outras. Nos demais cursos, as discussões podem ser
associadas indiretamente aos conteúdos presentes nas ementas, desde
que quem ministra as disciplinas possua sensibilidade aos temas de
direitos humanos. O que, certamente, suscita outras pesquisas acerca
dos atravessamentos dos direitos humanos, a formação desses
professores com relação a temática, o lazer enquanto um direito legal
previsto na Constituição Brasileira e porque é pouco mencionado,
explicitamente, nos currículos dos cursos em turismo. É sempre bom
recordar que turismo é um direito social, ainda que circunscrito em
um espectro capitalista.
Finalmente, com relação a disciplinas que abordam questões
étnico raciais e/ou questões de gênero em suas ementas, apenas ts
universidades oferecem disciplinas específicas, todas optativas: FURG
e UFSM, no Rio Grande do Sul, e FURB, no Estado de Santa
Catarina, esta última sendo também a única que consta em sua
ementa discussões que versam sobre gênero. E, neste sentido, as
407
pesquisas de Gabrielli (2021), Ferreira e Casagrande (2020) e Oliveira
(2021a), são exemplos de como essas questões ainda são pouco
discutidas nas formações acadêmicas e/ou são relegadas em um plano
secundário. Ou seja: a ignorância frente a questões de gênero e raça
debatida por Mills (2008) e Ferreira (2021) em seus trabalhos,
certamente influenciará a atuação cidadã e profissional dos futuros/as
egressos/as em turismo.
É importante mencionar aqui que no curso de turismo do
IFMT, em Cuiabá, embora exista uma disciplina intitulada sociologia
do trabalho e gênero, observou-se que na bibliografia registrada no
documento consultado não eram mencionadas referências acerca
desse campo de estudo e, por isso, não foi considerado para este
trabalho. Do mesmo modo, é preciso registrar que o curso de turismo
da UNESPAR, do Campus da cidade de Apucarana, possui em duas
disciplinas optativas do campo da antropologia e cultura, menção
específica à memória das manifestações culturais africanas e afro-
brasileiras.
Neste sentido, a pergunta que intitula esta seção, assim como
as breves considerações registradas, não apenas destaca a necessidade
de uma maior presença desses temas na formação acadêmica de
estudantes dos cursos de turismo. Mas como se , também, essa
formação cidadã e profissional nas universidades. Pois a liberdade de
viajar perpassa, também, pelo reconhecimento de que mulheres e
pessoas negras desejam consumir dignamente o turismo sem serem
violentados/as em sua dignidade e humanidade.
Se Tropo, Não Caio: Considerações Finais?
Este texto procurou, ainda que parcialmente e com algumas
arestas, discutir criticamente como se (ou não) a liberdade para
408
vivenciar o turismo, partindo de aportes teóricos sobre a ignorância
enquanto uma teoria social.
Os aportes teóricos e os exemplos apresentados atestam que a
liberdade para se vivenciar o turismo se no momento em que a
sociedade e seus diversos agentes respeitam as diferenças e radicalizam
a prosa e a poesia para toda ela, não apenas para o viajante. Turismo
precisa ser bom para toda a comunidade e, se existem pessoas que são
impedidas de viajar e experienciá-lo, especialmente em virtude de
cruzamentos de raça, gênero e classe social, se está violando um direito
social que está previsto, inclusive, na Constituição Federal, em seu
sexto artigo.
Por outro lado, de nada adianta se ter o direito ao lazer
assegurado na Carta Magna Brasileira se inexiste o reconhecimento
histórico de privilégios raciais (e mesmo de gênero), prejudicando o
usufruto deste direito por toda a sociedade brasileira. Os conceitos de
ignorância branca de Mills (2008) e de Àìmòtológia, de Ferreira
(2021) demonstraram, ainda que brevemente, sobre isto e podem
suscitar outros trabalhos mais aprofundados.
As breves análises realizadas, nas ementas dos 17 cursos de
turismo dos três Estados da Região Sul e do Estado de Mato Grosso,
além de provocar novas inquietações de pesquisas, registram a
necessidade de uma maior inserção de questões de gênero e raça na
formação desses estudantes. De modo que sejam efetivamente postos
em debate a pouca valorização de determinados grupos sociais nas
relações de trabalho no turismo, conforme os estudos de Ferreira e
Casagrande (2020), Oliveira (2021a) e, especialmente, o de Gabrielli
(2021) demonstraram, este último acerca da condição das mulheres
no mercado turismo e como o cuidado do lar e dependentes, histórica
e socialmente imposto à elas na maioria das sociedades, influencia em
sua remuneração/alcance de postos de trabalho de destaque.
409
Finalmente: a liberdade para viajar remete ter a coragem de
questionar, efetivamente, a que custos as sociedades são formadas e
não abrem mão de seus privilégios, propondo, inclusive, outras
relações de emprego, de ensino, de currículo e disciplinas abordadas
nas universidades, de produção de teorias e outros modos de ver o
próprio turismo nesta lógica capitalista, demonstrado pelos textos de
Oliveira (2021b) e Castañeda (2012). Isso perpassa, também e para
além de questionar/propor outros sistemas, deixar de reproduzir
estereótipos afetivos, cognitivos e morais para quem trabalha com o
turismo e quem viaja, mas não é visto(a)/respeitado(a) enquanto
viajante, apontamentos realizados nos textos de Gabrielli (2021),
Oliveira (2021a) e Piscitelli (2017).
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413
REDE BRASIL ATUAL. Polícia Rodoviária Federal faz ‘câmara de
gás’ em camburão e mata homem negro - Vítima foi abordada em
rodovia por agentes e, segundo parentes, tinha transtorno mental.
Família cobra investigação e polícia diz que homem precisou ser
contido após reação. Em protesto, manifestantes bloqueiam rodovia.
[26 maio 2022]. Disponível em:
https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2022/05/policia-
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415
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INTOLERÂNCIA RELIGIOSA:
EMPECILHO PARA A APLICAÇÃO DE UM
CURRÍCULO QUE CONTEMPLE A LEI 10.639/03?
Flaviana de Freitas OLIVEIRA1
Juliana dos Santos COSTA2
Ana Maria KLEIN3
Introdão
No Brasil, a relação entre currículo e poder tem se dado de
maneira bastante significativa ao longo da história. Diversos
movimentos sociais, que começaram a ter força na metade do século
XX, tiveram suas pautas abafadas com o golpe civil-militar de 1964.
Com a redemocratização, a partir da década de 80, os movimentos
voltaram a ganhar força para que suas demandas fossem ouvidas
dentro da política educacional.
A Lei 10.639/03 dispõe sobre a implementação do ensino de
Histórica Africana nas escolas. Trata-se de uma grande conquista no
1 Professora substituta do Departamento de Educação do Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas (Ibilce) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de São José do Rio Preto,
São Paulo, Brasil, e Doutoranda em Educação na Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC)
da Unesp de Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: flaviana.freitas@unesp.br.
2 Mestre em Ensino e Processos Formativos pelo Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas (Ibilce) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de São Jo do Rio Preto, São
Paulo, Brasil. E-mail: juliana.costa@unesp.br.
3 Professora do Departamento de Educação Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas
(Ibilce) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de São José do Rio Preto, São Paulo,
Brasil. Mestre e doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo (USP), São Paulo, Brasil. E-mail: ana.klein@unesp.br.
416
campo do currículo, considerando que este é uma construção social e,
por muito tempo, esteve sujeito tão somente às forças dominantes da
sociedade. No entanto, a intolerância religiosa, tão presente em nossa
sociedade, pode configurar um empecilho para que de fato a cultura
africana adentre o espaço escolar.
A partir do entendimento de que o currículo é uma
construção cultural e traduz as forças de um determinado momento
histórico, este artigo tem como objetivo analisar a importância da Lei
10.639/03, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a
temática História e Cultura Afro-Brasileira” (BRASIL, 2003), e
como a intolerância religiosa existente no país pode ser um
impedimento para que a cultura africana seja de fato colocada como
um saber nas escolas.
Para isso, foi realizada uma pesquisa bibliográfica em duas
bases de dados: Google Acadêmico e SciELO, com o objetivo de
traçar uma relação entre a intolerância religiosa e a não aplicação da
Lei 10.639/03 na construção de saberes e currículos. Além disso,
utilizou-se textos sobre currículo, cultura e poder de autores que
deram fortes contribuições à temática: Gimeno Sácristan, Michael
Apple e Ivor Goodson. No subtema da negritude, foram utilizadas
referências como Munanga e Nilma Lino Gomes.
As Relações Entre Currículo, Cultura e Poder
Quando se fala em currículo, é necessário atentar-se às
relações existentes com a cultura e o poder. O conhecimento escolar
é um artefato social e histórico sujeito a mudanças e flutuações, e não
uma realidade fixa e atemporal. Assim, determinada construção social
é feita até o presente, o que influencia as notas práticas e concepções
de ensino.
417
Grundy (1987, p. 5) afirma que “o currículo não é um
conceito, mas uma construção cultural. Isto é, não se trata de um
conceito abstrato que tenha algum tipo de existência fora e
previamente à experiência humana. É, antes, um modo de organizar
uma série de práticas educativas”.
Para Sacristán (2000), os currículos são a expressão do
equilíbrio de interesses e forças que gravitam sobre o sistema
educativo em um dado momento, enquanto por meio deles se
realizam os fins da educação no ensino escolarizado.
O currículo, em seu conteúdo e nas formas pelas quais nos
apresenta e se apresenta aos professores e aos alunos, é uma opção
historicamente configurada, que se sedimentou dentro de uma
determinada trama cultural, política, social e escolar; está
carregado, portanto, de valores e pressupostos que é preciso
decifrar. Tarefa a cumprir tanto a partir de um nível de análise
político-social quanto a partir do ponto de vista de sua
instrumentação “mais técnica”, descobrindo os mecanismos que
operam em seu desenvolvimento dentro dos campos escolares
(SACRISTÁN, 2000, p. 17).
A escola ou as instituições de ensino em geral, sob qualquer
modelo de educação, adotam uma posição e uma orientação seletiva
frente à cultura, que se concretiza, precisamente, no currículo que
transmite. O sistema educativo serve a certos interesses concretos e
eles se refletem no currículo. Assim, pode-se dizer que o currículo
reflete, diretamente, a política educacional adotada em um
determinado momento histórico e em um determinado país.
De acordo com Apple (2008), a educação atua no setor
econômico de uma sociedade, reproduzindo aspectos importantes de
sua desigualdade. As escolas podem ser vistas como instituições de
preservação e distribuição cultural, criando e recriando formas de
418
consciência que permitem a manutenção do controle social sem a
necessidade de os grupos dominantes terem se apelar a mecanismos
abertos de dominação. A hegemonia atua para “saturar” nossa própria
consciência, de maneira que o mundo educacional, econômico e
social que vemos e com o qual interagimos, bem como as
interpretações do senso comum que a ele atribuímos, se torna o único
mundo.
As escolas, nas palavras dos sociólogos britânicos do currículo,
não apenas produzem pessoas; também produzem o
conhecimento. São agentes da hegemonia cultural e ideológica
nas palavras de Williams, agentes da tradição seletiva e da
incorporação cultural. Todavia, como instituições, não são
apenas um dos principais agentes da distribuição da cultura
efetivamente dominante; entre outras instituições, e aqui
algumas das interpretações econômicas podem parecer bastante
potentes, ajudam a criar pessoas (com os significados e valores
adequados) que não veem outra possibilidade séria ao contexto
econômico e cultural existente (APPLE, 2008, p. 40).
Levando-se em conta o papel que o currículo possui para
reproduzir ou não a hegemonia, é importante desconstruir seu
processo de fabricação, de forma a mostrar as opções e os interesses
que estão subjacentes a uma determinada configuração do plano de
estudos e das disciplinas escolares.
Goodson (1997) alerta para a necessidade de sublinhar a
dimensão social, uma vez que o currículo está concebido para ter
efeito sobre as pessoas, produzindo processos de seleção, de
inclusão/exclusão e de legitimação de certos grupos e ideias. Logo, por
ter implicação no contexto social, o currículo se consolida como um
curso a ser seguido por aqueles que os definem e o assumem como
uma forma particular e hierarquizada do conhecimento. Não se pode
419
pensar o currículo sem a contextualização mais ampla que o rege,
como por exemplo, o contexto sociopolítico e o efeito que este tem
sobre as pessoas (GOODSON, 1995).
A partir do final dos anos 1960 emerge uma abordagem crítica
e sociológica do currículo, fruto de um cenário de mudanças políticas,
econômica e socioculturais. O chamado movimento de
“reconceptualização do currículo” caracterizou pela problemática da
concepção técnica do sistema educacional até então vigente. Assim, as
desigualdades produzidas pelo sistema educacional que afetavam,
sobretudo, a aprendizagem de crianças das classes populares,
desencadearam reações e insatisfação de teóricos que criticavam o
caráter prescritivo, excludente e burocrático do currículo tradicional
(BHERING, 2020).
A partir destes entendimentos sobre o currículo é possível
analisar a importância da Lei 10.639/03, que estabelece sobre o
ensino de Histórica Africana nas escolas (BRASIL, 2003), para o
currículo brasileiro. Em um país que historicamente traz um currículo
hegemônico e pautado nos interesses das classes dominantes, a Lei
demonstra um avanço para que a pluralidade seja abordada dentro do
ambiente escolar, principalmente no que concerne às relações étnico-
raciais. No entanto, a intolerância religiosa ainda pode ser um entrave
para que um currículo multicultural possa, de fato, se efetivar em
práticas pedagógicas.
A Lei 10.639/03 e os Desafios Para Sua Implementação
A construção identitária étnico-racial do negro no Brasil é
transpassada pela violência, exploração e humilhação, além de ser
pouco valorizada e reconhecida. Essa relação reflete no currículo ao se
verificar, por exemplo, que a representação de personagens negros nos
420
livros didáticos usualmente está atrelada a subalternidade ou
desumanização (SILVA, 2011). Munanga (2020), ao abordar a
identidade negra, afirma que, diferente do que se pensa, a negritude
se constitui através de um olhar ocidental branco, e não baseada
unicamente na cor da pele, e acaba por unir grupos socialmente
distantes, mas que tiveram suas culturas negadas e destruídas. Por isso
que:
Qualquer processo identitário é conflitivo na medida em que ele
serve para me afirmar como “eu” diante de um “outro”. A forma
como esse eu” se constrói está intimamente relacionada como a
maneira como é visto e nomeado pelo “outro”. E nem sempre
essa imagem social corresponde à minha autoimagem e vice-versa.
Por isso, o conflito identitário é coletivo, por mais que se anuncie
individual. (GOMES, p. 28, 2020).
Gomes (2017) aborda a educação como um campo dinâmico
e de conquista árdua para os movimentos sociais de grupos
minorizados. Também destaca o campo educacional como uma das
principais pautas da negritude ao longo dos anos, visto que a não
escolarização dessa parte da população sempre foi um empecilho para
a sua inserção no mercado de trabalho. A escola seria responsável por
fornecer elementos para a construção identitária dos educandos.
Durante a elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Lei 9.394/96 (BRASIL, 1996), o movimento negro defendeu a
inclusão da obrigatoriedade do resgate do ensino da História da
população negra constituinte do nosso território, entretanto esse
projeto foi negado.
A padronização do ensino e das relações no ambiente escolar
faz com que esse espaço não seja capaz de exercer o seu papel de
disseminação de saberes e de valores para a formação plena do sujeito.
421
O racismo ligado a questões históricas está presente em um
currículo que expõe seus alunos a valores, costumes e inclusive a um
calendário europeu, que valoriza heróis e datas comemorativas que
não fazem sentido e não trazem representatividade à negritude e aos
povos indígenas. Nesse ponto, Gomes (2017) afirma que o racismo
se torna uma força propulsora para tornar a branquitude um padrão
a ser almejado.
Dentre todas as violências às quais a população negra tem sido
submetida, a exclusão do sistema educacional, certamente, uma
das mais perniciosas formas de ferocidade. Podemos destacar
dois fatores que corroboram essa afirmativa. Em primeiro lugar,
o mais óbvio: com menos anos de estudo, com aproveitamento
insuficiente dos poucos anos passados nas escolas, a população
negra tem enorme dificuldade em reverter a sua condição
socioeconômica. E o segundo, consequência do primeiro, a
desigualdade no sistema educacional perpetua a condição
desfavorável que os negros encontram no mercado de trabalho.
Assim, as épocas se sucedem sem que o círculo vicioso possa ser
rompido e uma geração possa viabilizar condições melhores para
as gerações futuras. (MULLER; COELHO, 2013).
A promulgação da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), ao alterar
a LDB para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”, consolida uma demanda a uma
revisão histórica que condena o passado histórico negro ao
esquecimento.
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre
História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste
artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a
422
luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História
Brasileiras. (BRASIL, 2003).
A Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) é considerada um
importante avanço para a discussão da temática racial, contribuindo
para currículos que dialogam com saber e vozes silenciadas ao longo
da construção da história brasileira. Boaventura Souza Santos
denomina esse hiato de informações como Pedagogia das Ausências:
uma produção ativa de um não estado, na qual conhecimentos de
origem africana e indígena são suprimidos do contexto escolar
(GOMES, 2017). Segundo Paraiso (2005), é preciso apontar para
currículos que convergem para a diferença e para a transgressão a fim
de propor meios democráticos de lidar com os diferentes saberes e
culturas compartilhados por crianças e adolescentes nas instituições
básicas de ensino.
Nos últimos vinte anos, as lutas e reivindicações dos
movimentos sociais avançaram bastante. As orientações das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
(BRASIL, 2004), por exemplo, fundamentam-se em concepções
críticas, construídas nas lutas por uma educação democrática e de
qualidade, que expressam aproximações com a noção do
multiculturalismo crítico (FAGUNDES; CARDOSO, 2019).
McLaren (1998) conceitua o multiculturalismo crítico da seguinte
forma:
423
Compreende as representações de raça, classe e gênero como o
resultado de lutas sociais mais amplas sobre signos e significações
[...], mas enfatiza a tarefa principal de transformar as relações
sociais, culturais e institucionais nas quais os significados são
gerados [...]. Mas argumenta que a diversidade deve ser afirmada
dentro de uma política crítica de compromisso com a justiça
social, compreendendo que a diferença é um produto da história,
cultura, poder e ideologia. (p. 123).
Apesar dos avanços relacionados à abordagem da cultura afro-
brasileira e africana no currículo, nos últimos anos as reformas
curriculares têm negligenciado as questões das relações étnico-raciais.
A Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2018)
abordou uma perspectiva tecnicista, retomando um modelo de
competências bastante criticado na área educacional.
A forma como a BNCC propõe a organização dos currículos
torna complicado pensar como os estudantes da Educação Básica
poderão ter acesso a conteúdos que focam valores humanos, discutem
alteridade e ressaltam a convivência com os diferentes sujeitos,
culturas e histórias que formam o processo civilizatório brasileiro.
Além das dificuldades enfrentadas com a BNCC, a aplicação
da Lei 10.639/03 ainda tem outros desafios, como: falta de apoio da
gestão escolar; desinteresse por parte de dirigentes municipais;
desconhecimento da história do Brasil e da África; intolerância
religiosa; resistência das famílias, em virtude de suas opções religiosas.
(FAGUNDES; CARDOSO, 2019).
Dentro desse cenário, entende-se a intolerância religiosa como
um empecilho fundamental para o desenho de práticas pedagógicas
em acordo com a Lei 10.639/03.
424
Intolerância Religiosa:
Empecilho Para um Currículo Multicultural
Ainda que a Lei 10.639/03 torne legítimo e obrigatório o
ensino de História da África e dos Africanos, ainda existem diversas
dificuldades para uma abordagem ampla e efetiva das religiões de
matriz africana. Recuperar e valorizar referenciais africanos presentes
na cultura brasileira é ter um olhar mais atento e com menos
estereótipos, e contribuir com uma geração mais tolerante com essas
crenças (SILVA; MARQUES, 2019).
No entanto, percebe-se no Brasil que, apesar da instituição da
liberdade de culto, a intolerância religiosa tem dificultado
significativamente a abordagem da cultura africana nas aulas da
educação básica. As escolas deveriam contemplar todas as religiões de
forma respeitosa. Contudo, o que ainda se verifica é a omissão, o
descaso e a resistência por parte de determinados setores da sociedade.
O ensino religioso no Brasil, desde os tempos do Brasil
Colônia, vem se inserindo no campo educacional. Em princípio, com
intuito de catequisar índios e negros na ordem católica-cristã seguida
pelos portugueses que colonizaram o Brasil.
Atualmente, entende-se pelo termo ensino religioso a
definição dada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Lei
9.394/1996 (BRASIL,1996):
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte
integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental,
assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo. (BRASIL, 1996, n. p).
425
Em 2017, no entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF)
julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.439/2010),
autorizando as escolas públicas brasileiras a ofertar o ensino religioso
no currículo escolar em caráter confessional. Uma das consequências
da decisão do STF é que as religiões majoritárias ganham mais espaço
nas instituições educacionais e, com isso, as aulas de ensino religioso
podem não dar conta de atender toda a pluralidade religiosa dos
educandos (CHADE, 2011; CORREA, 2017).
No Brasil as denúncias de intolerância religiosa em sua
maioria envolvem religiões de matriz africana como a Umbanda
(religião de pilar kardecista e elementos da cultura afro-brasileira) e o
Candomblé, tendo os estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de
Janeiro liderando o ranking de casos (ROCHA; OLIVEIRA; ALVES,
2019).
Para a contenção dessas violências, atualmente tem-se a Lei
9.459/1997, que define os crimes resultantes de preconceito de raça
ou de cor (BRASIL, 1997); o Estatuto da Igualdade Racial - Lei
12.288/2010 (BRASIL, 2010); e o artigo 208 do Código Penal, que
estabelece as sanções penais em caso de intolerância religiosa (BRASIL,
1940).
Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de
crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou
prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto
de culto religioso:
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Se emprego de violência, a pena é
aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à
violência. (BRASIL, 1940, n. p).
426
na legislação educacional, os Parâmetros Curriculares
Nacionais de Ensino Religioso PCNER abordam o Ensino
Religioso em uma perspectiva multicultural e baseada na pluralidade:
Proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que
compõe o fenômeno religioso, a partir das experiências religiosas
percebidas no contexto do educando; subsidiar o educando na
formulação do questionamento existencial, em profundidade,
para dar sua resposta devidamente informada; analisar o papel
das tradições religiosas na estruturação e manutenção das
diferentes culturas e manifestações socioculturais; facilitar a
compreensão do significado das afirmações e verdades de das
tradições religiosas; refletir o sentido da atitude moral como
consequência do fenômeno religioso e expressão da consciência
e da resposta pessoal e comunitária do ser humano; possibilitar
esclarecimentos sobre o direito à diferença na construção de
estruturas religiosas que tem na liberdade o seu valor inalienável.
(BRASIL, 2009, p. 47).
Além das disposições existentes no PCNER, o Parecer
CNE/CP 003/2004 (BRASIL, 2004) defende a diversidade no
currículo escolar, com algumas indicações de como se trabalhar com
a diversidade religiosa nas escolas para que seja mostrada a
importância e a influência dos povos africanos para a constituição da
nossa identidade nacional. A escola precisa trabalhar com o legado
cultural dos povos africanos, ressaltando o respeito aos valores
civilizatórios africanos e para as contribuições dos afrodescendentes
ao processo de formação da sociedade brasileira. Neste contexto está,
também, a abordagem das religiões de matriz africana (SOUZA;
SANTOS; EUGÊNIO, 2015).
Gomes e Silva (2002, p. 29-30) ressaltam que “o trato da
diversidade não pode ficar a critério da boa vontade ou da intuição de
427
cada um. Ele deve ser uma competência político-pedagógica a ser
adquirida pelos profissionais da educação nos seus processos
formadores”.
O esclarecimento em relação às religiões de matrizes africanas
nas escolas se torna imprescindível no processo de combate à
intolerância religiosa, pois estas foram ao longo dos anos da História
do Brasil alvo das mais variadas formas de preconceitos,
discriminações, equívocos, manipulações.
Rocha e Puggian (2012), após pesquisarem a intolerância
religiosa nos terreiros na Baixada Fluminense e transcreverem relatos
de suas vítimas, apontam para uma atual educação familiar e escolar
capaz não apenas de ensinar preceitos religiosos, mas, também, de
incentivar discursos e atitudes desrespeitosas contra o diferente. Por
isso que a:
[...] imagem do candomblé [e das outras religiões afro-brasileiras]
precisa ser esclarecida. O que se ensina [no sentido de transmitir]
na escola sobre o candomblé é um apanhado de preconceitos e
incorreções que reforçam a discriminação que a sociedade
comete contra essa religião. (OLIVEIRA, 2007, p. 50).
Um exemplo da intolerância religiosa que ocorre na
abordagem da cultura africana foi um episódio ocorrido em 2018, em
que a escritora Kiusam de Oliveira teve seu livro Omo-Oba Histórias
de Princesas rejeitado pelo Serviço Social da Indústria (Sesi) de Volta
Redonda, no Rio de Janeiro, a pedido de um grupo de pais. A obra
havia sido escolhida pela equipe pedagógica do Sesi e chegou a ser
suspensa pela instituição (ALVES, 2018).
Por isso, entende-se que a intolerância religiosa dificulta que
a Lei 10.639/03 seja, de fato, implementada nas escolas, que muitos
pais, professores e gestores são contra o ensino envolvendo as religiões
428
de matriz africana, principalmente por contrapor os seus
ensinamentos religiosos. Trata-se de um racismo velado e
institucionalizado, que acaba por atrasar as pautas do movimento
negro em nosso país.
Educação em Direitos Humanos no Combate
à Intolerância Religiosa
A associação entre educação e Direitos Humanos vem desde
a formulação da Declaração Universal dos Direitos Humanos
DUDH (ONU, 1948), que destaca o papel educacional na promoção
dos direitos. De acordo com Klein e Oliveira (2019, p. 227),
“educação é uma via para prevenir o quadro de violações de direitos,
formando pessoas sensíveis aos valores éticos que pautam os Direitos
Humanos”.
O Brasil é signatário da DUDH e tem o compromisso
internacional de garantir a Educação em Direitos Humanos, papel
que tem sido desempenhado por meio da construção de planos e
diretrizes que versam sobre o tema, como o Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos PNEDH (BRASIL, 2006), o
Programa Nacional de Direitos Humanos PNDH-3 (BRASIL,
2010) e as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos
Humanos (BRASIL, 2012).
Além de dispor sobre a educação em seu preâmbulo e no
artigo 26, a DUDH, em seu artigo 18, ainda expressa que “toda
pessoa tem direito a liberdade de religião, consciência e pensamento”
(ONU, 1948). Portanto, o Estado brasileiro também precisa
combater a intolerância religiosa e garantir a laicidade.
As Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos
Humanos (BRASIL, 2012), considerando a importância do combate
429
à intolerância religiosa como um dos pilares da EDH, dispõe sobre a
laicidade em um de seus princípios:
Laicidade do Estado: Esse princípio se constitui em pré-condição
para a liberdade de crença garantida pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 1948, e pela Constituição Federal
Brasileira de 1988. Respeitando todas as crenças religiosas, assim
como as não crenças, o Estado deve manter-se imparcial diante
dos conflitos e disputas do campo religioso, desde que não
atentem contra os direitos fundamentais da pessoa humana,
fazendo valer a soberania popular em matéria de política e de
cultura. O Estado, portanto, deve assegurar o respeito à
diversidade cultural religiosa do País, sem praticar qualquer
forma de proselitismo. (BRASIL, 2012, p. 9).
Guidotti (2019) afirma que, ao se pensar em uma Educação
em Direitos Humanos, é central enfrentar os mecanismos de
normalização e distinção que promovem a intolerância. Somente
dessa forma a escola e a educação poderão colaborar para a efetividade
dos Direitos Humanos. A EDH também precisa estar atenta aos
conteúdos disciplinares que são oferecidos, considerando os temas
centrais como espaço plural de ideias e opiniões. Dessa forma, a escola
não pode estar à mercê de concepções religiosas para selecionar o que
será oferecido nas disciplinas que compõem a matriz curricular.
Sabadini e Klein (2020) afirmam que educar em Direitos
Humanos tem como premissa o reconhecimento da dignidade
humana e o respeito a diversidade, ultrapassando a mera transmissão
de conteúdo. Dessa forma, seria possível contribuir para uma
educação emancipatória, em que o sujeito transpõe o lugar de vítima
e se torna ciente de seus direitos, sendo capaz de reivindicá-los e de se
indignar perante as desigualdades e discriminações.
430
A partir do entendimento da relação existente entre EDH e
pluralidade de ideias, torna-se inconcebível pensar em uma educação
voltada aos Direitos Humanos e que contribua para a intolerância
religiosa. Para uma educação transformadora, é essencial combater os
mecanismos que levam ao preconceito em virtude das crenças e
contribuir para a pluralidade de ideias.
Considerações Finais
O histórico da política educacional brasileira revela um
cenário excludentes nas relações que permeiam a escola. O currículo,
que é uma construção social e revela as forças de cada época, sempre
foi voltado para a população dominante, baseada no homem, rico,
branco, heterossexual.
Por conta disso, a população negra e suas contribuições
cientificas e culturais nunca estiveram presentes, de fato, no currículo
escolar. A Lei 10.639/03 foi um avanço, conquistado pelo
movimento negro, ao alterar a LDB para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.
Ainda assim, um longo caminho a percorrer. A intolerância
religiosa, que se manifesta em várias esferas na sociedade brasileira,
tem se tornado um dos principais empecilhos para que práticas
pedagógicas que contemplem a Lei 10.639/03 sejam colocadas em
prática e que a cultura africana seja, de fato, inserida nos currículos
escolares.
A importância de uma implementação adequada e despida de
preconceitos da Lei 10.639/03 surge, principalmente, em virtude de
a escola ser um dos primeiros espaços de socialização fora do âmbito
familiar e por carregar em si a características contundentes da
diversidade cultural. Logo, é na escola que o indivíduo tem,
431
possivelmente, seu primeiro contato com o outro, convivendo com
vivências e maneiras de ser diferentes do seu cotidiano familiar.
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POSCIO
Para não dizer que não falei das flores
(e dos espinhos também)
Em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão concedeu liberdades e modos de pensar indivíduos de cada
território como suscetíveis a ter uma instância defendida que até então
pouco era efetivada: os direitos humanos. Mais adiante, em 1948
é que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi promulgada.
No Brasil, frequentemente se confunde defesa dos direitos humanos”
com “defesa de bandidos”, ainda que os direitos humanos se voltem
para a defesa de qualquer indivíduo. E não é à toa que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos tenha surgido na década de 1940,
que a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) a tenha precedido. O
resgate da racionalidade humana, na ocasião, adveio da possibilidade
de que outra tragédia pudesse vir a ocorrer e, por isso, a declaração
não diz respeito somente a determinadas pessoas de algumas nações
(que participaram da Guerra), mas a pessoas de todas as nações do
mundo.
Então, se a questão da universalidade é proeminente, é porque
existe um quadro de violações de direitos que a tornou possível. Desse
modo, se violações ou risco para algumas pessoas, é porque, em
algumas situações, para usar a expressão de Judith Butler, sob
inspiração foucaultiana, é porque alguns indivíduos são vistos como
sendo “menos humanos” que outros. Ora, se não houvesse o risco de
violação, tal documento e todos os que vieram depois, cada vez mais
438
específicos, referentes a cada territorialidade singular não teria
necessidade de existir.
Claro que, com a criação dos Direitos Humanos e as
condições efetivas de fiscalização desses direitos em instâncias reais –,
veio, também, a necessidade cada vez mais específica de singularizar
as necessidades de pessoas que tiveram – e têmos direitos violados
no decorrer da história da humanidade. Quando o quadro da
Segunda Guerra Mundial trouxe a questão dos genocídios de
populações inteiras, o mundo também se voltou para quem eram essas
pessoas que morreram pelo “simples fato” de existirem: judeus, negros,
crianças, mulheres, homossexuais, idosos e camponeses, por exemplo.
Então, partindo da premissa de que humanos que são “menos
humanos que outros, a existência de uma legislação específica
voltada para essas pessoas se tornou historicamente não apenas
necessária, mas urgente. Por conseguinte, a necessidade de
coexistirem humanos de direitos socialmente reconhecidos se articula
a uma cultura de desassistência e de negligência acerca da vida dessas
pessoas. Se formos usar as palavras de Mbembe, seria o caso de fazer
morrer, e não apenas deixar morrer, como afirmava Foucault, porque
a negligência não é uma ação passiva, ela é fruto de um constructo
maior de produção de mortes em larga escala ou de condições que
coloquem em risco determinados indivíduos em detrimento de outros
que são protegidos.
Diante disso, cabe acentuarmos que o título deste texto foi
inspirado numa sica de Geraldo Vand que foi proibida, durante
anos, pela ditadura brasileira. Isso porque ela foi utilizada por
indivíduos que se rebelaram contra o golpe militar de 1964. O
referido sujeito chegou a exilar-se depois de passar dias escondido em
uma propriedade rural da viúva de Guimarães Rosa, morto no ano
anterior, tendo, depois, partido para o Chile e, então, para a França.
439
Tal canção chegou a ser usada em 2006, pelo governo, em meio a
uma propaganda de publicização de políticas educacionais, como
PROUNI e ENEM. Tendo sido considerada uma ameaça ao governo
ditatorial, portanto, foi implementada por um governo democrático
na referida ocasião posterior.
Parte da letra afirma que somos todos iguais, braços dados ou
não. No Brasil, o Artigo 5 da Constituição Federal traz, em seu texto,
que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Mas a história do Brasil também é reduto de desigualdades sociais e
violações aos direitos humanos. Podemos, nesse ínterim, começar pela
tese de Marilena Chauí de que não somos gentis, mas fazemos parte
de uma cultura patriarcal, machista, homofóbica, repleta de
preconceitos historicamente compartilhados e reproduzidos.
Essa tese contraria aquilo que Sérgio Buarque de Holanda
teria afirmado sobre o povo brasileiro, caracterizando-o como povo
cordial, por causa de uma suposta propensão à informalidade. E, de
fato, se olharmos para as estimativas de violência contra mulheres,
negros, crianças, pessoas LGBTQIA+, por exemplo, a cordialidade
passa bem longe. Em 2020, órgãos oficiais de denúncias registraram
o equivalente a mil denúncias de violações de direitos por dia por
meio do Disque 100 e do 180. Na ocasião, as informações foram
disponibilizadas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos. Ou seja, a cordialidade passou longe do povo brasileiro e
restou o mito do brasileiro cordial. Não é à toa que, no texto
intitulado “O homem cordial: um mito destruído à força”, Marilena
Chauí vai destronar a o mito de Holanda, e, posteriormente, na obra
Sobre a Violência, ela vai mencionar que um outro mito poderoso
que paira no Brasil: o da não violência.
O mito da cordialidade se aproxima muito daquilo que Susan
Sontag se refere quando fala da insensibilização pública diante de
440
casos de violação de direitos humanos, por exemplo, na obra Diante
da dor dos outros. A autora chega a indagar se teríamos perdido a
característica de nos chocarmos com a realidade alheia, que constitui
a cultura da qual fazemos parte. Não se trata somente de pensar a
violação dos direitos humanos, portanto, mas, também, de averiguar
em que instância nós, como espectadores, a encaramos.
Chegamos, então, ao tema e à especificidade deste livro que o
leitor tem em mãos: a relação entre os direitos humanos e a educação.
Se pensarmos nas (in) definições do próprio conceito de currículo,
sob inspiração dos Estudos Culturais, adentraremos uma questão
peculiar: currículo pode ser pensado como sendo não somente um
papel em que consta uma legislação específica ou diretrizes
relacionadas a instâncias de ensino e aprendizagem. Sob esse viés, o
currículo pode ser pensado como sendo resultado de instâncias
exteriores à instituição escolar e os efeitos destas sobre a escola, por
exemplo. Então, não podemos deixar de lado o fato de que a
globalização se materializou por meio do desemprego, da fome e da
ampliação das desigualdades sociais em uma escala cada vez mais
exponencial. Esses elementos não deixam de existir na escola, porque
fazem parte dos processos de socialização dos indivíduos que a
frequentam.
Daí a importância de uma obra como esta, que parte da
relação turbulenta e complexa entre o universo educacional, os
direitos humanos e a diversidade. Sendo assim, o que os capítulos
deste livro têm em comum é o fato de pairar uma indagação principal:
o que a escola tem a ver com o desenvolvimento de uma cultura dos
direitos humanos? Que políticas e práticas curriculares são
importantes no sentido de corroborar a existência e a defesa da
efetivação dos direitos humanos? A relação entre diversidade, direitos
humanos e currículo é pensada sob este viés. Nesse ínterim, se falamos
441
da violência anteriormente, não estávamos nos referindo somente à
violência física, mas à violência moral, psicológica, patrimonial, etc. Por
isso é que os saberes e os conhecimentos mobilizados por cada autor(a)
partem do campo educacional para um universo de possibilidades de
investigações, resultado de leituras, escritas e práticas colaborativas. O
resultado é uma profícua abordagem multifacetada, com interpretações
que compõem essa complexa e densa rede de tessituras e significações
oriunda dos estudos do currículo (e sua relação com os direitos humanos
e a diversidade).
Resta-nos, portanto, o exercício do ato de contrariar o
paradigma de educação tradicional, que engessa práticas, e que reflete
negligências e insensibilidades diante da dor do outro, para que a
educação não seja relegada às margens do capital, porque isso equivaleria,
nas palavras de István Mészáros (em A educação para além do capital), a
abandonar o objetivo de inserir a educação numa instância de
transformação social. Desse modo, pesquisar, ler, falar, discutir e se
aprofundar acerca da relação entre educação e direitos humanos, é, então,
uma forma de levar o ensino (e a aprendizagem) para além do capital,
rompendo com a lógica do mercado que homogeneiza sujeitos e ignora
alternativas educacionais qualitativamente significativas. Trata-se de
resguardar e debater sobre os limites do liberalismo e de perspectivas
utópicas da educação a ele relacionadas. Isso porque, sem rupturas e
transformações no sistema do capitalismo, não pode haver mudanças
efetivas no sistema educacional e tal abordagem precisa passar pela
questão dos direitos humanos e da diversidade.
Laranjeiras do Sul, 17 de maio de 2023.
Prof. Dr. Éderson Luís da Silveira
Professor Adjunto da
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)
442
443
SOBRE AS AUTORAS E AUTORES
Abinalio Ubiratan da Cruz Subrinho é Doutorando pelo Programa
de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens (PPGEL), Mestre em
Educação e Diversidade e Graduado em Letras-Língua Portuguesa e
Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e
graduado em Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional
(UNINTER). Atualmente é Professor da UNEB pelo Departamento
de Ciências Humanas e Tecnologias (DCHT), Campus XVIIrecê.
Vice-der do Grupo de Pesquisa Linguagem, Estudos Culturais e
Formação do Leitor (LEFOR).
E-mail: ubiratansobrinho80@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5361-3965.
Amanda Motta Castro é Professora do Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Doutora em Educação e mestra em Educação pela UNISINOS. Foi
bolsista Capes durante (2009-2015). Possui Graduação em História
e Pedagogia (2000). Realizou estágio de doutoramento na
Universidad Autonoma Metropolitana del México-UAM. Compõe o
Grupo de Pesquisa Interdisciplinar Lélia Gonzalez. Atualmente,
realiza estágio de pós-doutoramento en Estudios Feministas en la
Universidad Autónoma Metropolitana-UAM.
E-mail: motta.amanda@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0471-1240.
Ana Maria Klein é Professora do Departamento de Educação da
UNESP de São Jo do Rio Preto e do Programa de Pós-Graduação
em Ensino e Processos Formativos (UNESP-São José do Rio Preto -
444
Ilha Solteira - Jaboticabal). Assessora no gabinete da Vice-Reitoria da
UNESP, junto à Coordenação de Educação para Diversidade e
Equidade. É líder do Grupo de Pesquisa CNPq em Direitos
Humanos, Educação e Diversidades (DiHEDi). Doutora e mestra em
Educação pela Universidade de São Paulo (USP).
E-mail: ana.klein@unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0004-1908.
Antonio Carlos da Silva é Doutor em Ciências Sociais e Economista
pela Universidade de León (Espanha). Investigador do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Realizou pós-
doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra (2009-2011). Articulista do Jornal A Tarde (Bahia).
E-mail: carlossilva@ces.uc.pt.
Arilda Inês Miranda Ribeiro é Doutora em Filosofia e História da
Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
Livre-Docente em Estrutura e Funcionamento da Educação Básica e
Professora Titular em História da Educação pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Criou, em
2003, o Núcleo de Diversidade Sexual em Educação (NUDISE), com
sede na Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT/UNESP), Campus
de Presidente Prudente. Possui diversos livros e capítulos de livro
publicados, fruto de seus estudos, sobre os temas: educação feminina,
diversidade sexual, história da educação e história das instituições
escolares. Atualmente, é membro do Instituto Histórico Geográfico e
Genealógico de Campinas (HGGCampinas), São Paulo.
E-mail: arildainesribeiro@gmail.com.
445
Carlos Thailan de Jesus Santos é Mestrando em Biologia Parasitária
pela Universidade Federal de Sergipe/PROBP/UFS. Licenciado em
Ciências Biológicas pela UFS.
Email: carlosthailan@hotmail.com.
lia Regina Rossi é Doutora em Educação pela Universidade de São
Paulo (USP), Mestre em Educação pela Universidade Metodista de
Piracicaba (UNIMEP) e Pedagoga pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora Associada aposentada do
Departamento de Educação do Instituto de Biociências (IB),
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Campus de Rio Claro, e do Programa de Pós-Graduação em
Educação Escolar e Educação Sexual da Faculdade de Ciências e
Letras (FCLar), UNESP, Campus de Araraquara, São Paulo, Brasil.
E-mail: celiarr@rc.unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2903-4955.
Claudiene Santos é Doutora e Mestra em Psicologia pela Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras FFCLRP/USP. Pós-doutorado
realizado no Grupo de Investigación Género, Estética y Cultura
Audiovisual na Universidad Complutense de Madrid. Docente da
Universidade Federal de Uberlândia, no Curso de Pedagogia do
Instituto de Ciências Humanas do Pontal/ICHPO/UFU e do
Programa de s-Graduação Interdisciplinar em Cinema
(PPGCINE) da Universidade Federal de Sergipe/UFS. Líder do
Grupo de Pesquisa Gênero, Sexualidade e Estudos Culturais-
GESEC/UFS/CNPq.
Email: claudiene.ufu@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2337-9370.
446
Dabel Cristina Maria Salviano é Graduada em Direito pelas
Faculdades Toledo de Araçatuba (1994). Pós-graduação em Direito
Civil na Faculdades Toledo de Araçatuba (1997), mestrado em
Educação pela UCDB (2012). - Efetiva (UEMS) desde 2004.
Membro do Grupo de Pesquisa NUDISE - Núcleo de Gênero e
Diversidade Sexual desde 2019. Bolsista CAPES (2022-2024).
E-mail: dabel_salviano@hotmail.com.
Daniela Medeiros de Azevedo Prates é Doutora e Mestre em
Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
com estágio doutoral no Instituto de Ciências Sociais na Universidade
de Lisboa, Portugal. s-Doutorado em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande (FURG). É Professora de Sociologia no
Departamento de Ensino, Pesquisa e Extensão no Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul) e
docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação
Profissional e Tecnológica (ProfEPTl). Integrante do Grupo de
Pesquisa em Educação, Trabalho e Tecnologias (IFSUL/CNPq) e
líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Juventudes e Educação
(GEPEJE/IFSul/CNPq).
E-mail: danielaprates@ifsul.edu.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8185-0087.
Dayenne Karoline Chimiti Pelegrini é Doutora em Educação pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Campus de Marília, Mestre em Educação pela Universidade Federal
de Mato Grosso (UFMT) e graduada em Psicologia pelo Centro
Universitário de Maringá (UniCesumar). Professora Colaboradora da
Universidade Estadual de Londrina (UEL), onde atualmente
realizada s-Doutorado como bolsista Fundação Araucária/SETI/
447
CNPq. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa Currículo,
Formação e Trabalho Docente e do Grupo de Estudos e Pesquisa
Gênero, Currículo e Educação.
E-mail: dayenne.psicologia@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0731-3638.
Elaine de Jesus Souza é Doutora em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Licenciada em Biologia e
Mestra em Psicologia Social pela Universidade Federal de
Sergipe/UFS. Professora Adjunta do Instituto de Formação de
Educadores da Universidade Federal do Cariri/IFE/UFCA. Membro
do Grupo de Pesquisa Gênero, Sexualidade e Estudos Culturais-
GESEC/UFS/CNPq. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Área de
Educação em Ciências (AEC/UFCA/CNPq); Professora Permanente
do Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática/PPGECIMA/UFS.
Email: elaine.js.sd@hotmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3931-0025.
Elisandra Gewehr Cardoso é Mestre em Poéticas Contemporâneas,
Especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas e
Especialista em Educação Continuada e à Distância pela
Universidade de Brasília (UnB) e licenciada em Educação Artística
pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul (Unijuí). Atua como professora de Arte desde 2011 na
Secretaria de Educação do Distrito Federal.
E-mail: cardoso.elisandra@gmail.com.
Flaviana de Freitas Oliveira é Professora substituta do Departamento
de Educação da UNESP de São José do Rio Preto e doutoranda em
Educação na UNESP de Marília, com bolsa da CAPES. Possui
448
mestrado em Ensino e Processos Formativos pela UNESP de São Jo
do Rio Preto. É líder do Grupo de Pesquisa CNPq em Direitos
Humanos, Educação e Diversidades (DiHEDi) e coordenadora
suplente do Núcleo de Memória da Comissão de Direitos Humanos
da OAB/SP. É autora do livro "O que os telejornais falam sobre os
Direitos Humanos?".
E-mail: flaviana.freitas@unesp.br.
Gislaine Gabriele Saueressig é Mestra em Engenharia de Produção e
Sistemas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos),
Mestra em Educação Profissional e Tecnológica pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica (PROFEPT)
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-
grandense (IFSul), Campus Charqueadas, e graduada em Ciências
Econômicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É
servidora técnica administrativa em educação no IFSul, atuando no
Campus Sapucaia do Sul.
E-mail: gislainesaueressig@ifsul.edu.br.
Júlia Moita Gaubert é Mestre em Educação em Ciências e Licenciada
em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande
(FURG) e graduada em Fisioterapia pela Anhanguera Educacional do
Rio Grande. Pós-Graduada em Fisioterapia Desportiva e Ortopédica
pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI). Atualmente é
professora de Educação Física da Educação Infantil e dos Anos
Iniciais em uma escola da rede privada do município de Rio Grande,
RS. E-mail: ju.mgaubert@hotmail.com.
Juliana dos Santos Costa é Mestre em Ensino e Processos Formativos
pela UNESP de São José do Rio Preto. É membra do Grupo de
449
Pesquisa CNPq em Direitos Humanos, Educação e Diversidades
(DiHEDi) e consultora de diversidade, equidade e inclusão.
E-mail: juliana.costa@unesp.br.
Keith Daiani da Silva Braga é Professora do Instituto Federal de
Educação de Goiás com atuação nos cursos de Licenciatura em
Pedagogia Bilíngue e Dança. Possui graduação em Pedagogia (2009)
pela FCT-UNESP, mestrado em Educação (2014) com o
financiamento da FAPESP no programa de Pós-Graduação em
Educação da FCT/UNESP. Doutora em Educação (2019), pelo
mesmo programa e universidade, com período sanduíche no
programa de Posgrado en Derechos Humanos da UACM-México,
financiado pela CAPES. É integrante do grupo de pesquisa NUDISE-
Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual na Educação (Unesp).
E-mail: keith.braga@ifg.edu.br.
Lindamir Salete Casagrande é Pós-Doutora em Estudos
Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora e Mestra em
Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR). Professora voluntária do Programa de Pós-Graduação em
Tecnologia e Sociedade (PPGTE). Escritora de livros infanto-juvenis
sobre histórias das mulheres em diferentes segmentos da sociedade.
E-mail: lindasc2002@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8233-229X.
Marcos Lopes de Souza é Doutor e Mestre em Educação pelo PPGE
da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Licenciado e
Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo
(FFCLRP-USP). Realizou Estágio de Pós-Doutorado pela
450
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). É Professor Pleno do
Departamento de Ciências Biológicas (DCB) da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Campus de Jequié. É
professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e
Contemporaneidade (PPG-REC) e do Programa de Pós-Graduação
em Educação Científica e Formação de Professores (PPG-ECFP),
ambos da UESB. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero,
Sexualidade e Relações Étnico-raciais (ACUENDAÇÕES) da UESB.
E-mail: markuslopessouza@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7174-1346.
Matheus Estevão Ferreira da Silva é Doutorando em Educação pelo
PPGE da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade
Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília, com período
Sanduíche (PDSE/CAPES) na New York University (NYU),
Steinhardt School of Culture, Education, and Human Development,
Estados Unidos. É Mestre em Educação e Pedagogo pela
FFC/UNESP/Marília e Psicólogo pela Faculdade de Ciências e Letras
(FCL), UNESP, Campus de Assis. Foi bolsista de Iniciação Científica
FAPESP em ambas graduações, bolsista de Mestrado do CNPq e da
FAPESP, e atualmente é bolsista de Doutorado da CAPES. Atuou
como 1.º Secretário do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania de
Marília (NUDHUC) nas gestões de 2016-2018 e de 2019-2021 e
como Tutor Pedagógico dos cursos de Pedagogia e licenciaturas EaD
da Universidade de Marília (UNIMAR).
E-mail: matheus.estevao2@hotmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2059-6361.
Michel Alves Ferreira é Doutor e Mestre em Tecnologia e Sociedade
pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
451
Professor Substituto do Curso de Turismo da Universidade do Estado
de Mato Grosso (UNEMAT) Campus de Nova Xavantina. É
membro da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as
(ABPN) e da Associação Brasileira de Turismólogos/as e Profissionais
do Turismo (ABBTUR). E-mail: maferreiragi@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5444-6110.
Nilcelio Sacramento de Sousa é Doutor em Educação pela
Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Educação e
Diversidade e Pedagogo pela Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), Especialista em Gestão, Coordenação e Orientação
Educacional pela Faculdade Católica de Ciências Econômicas da
Bahia (FACCEBA), também é licenciado em Ciências Naturais pela
Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).
Professor Adjunto na Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Líder do grupo de pesquisa ATRAVESSAMENTOS: Estudos e
Pesquisa sobre os cotidianos da formação docente e diferenças (UFT).
Pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisa Escola,
Memória e Cotidiano (GEPEMC/UFF) e ao Políticas do Corpo e
Diferenças (POC’s/UFPel). E-mail: nilsousa@mail.uft.edu.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8908-1841.
Patrícia Vieira da Silva Pereira é Mestre em Educação, com pesquisa
na área de Aprendizagem e Trabalho Pedagógico com foco nas
práticas de letramento, e graduada em Letras-Português pela
Universidade de Brasília (UnB). Atua desde 2000 na Secretaria de
Educação do Distrito Federal. E-mail: patriciavieirasp74@gmail.com.
Paula Regina Ribeiro Professora Titular do Instituto de Educação e
do Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências da
452
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Pesquisadora do
Grupo de Investigación en Educación y Sociedad (GIES), composto
pelas seguintes instituições: Universidad de Castilla-La Mancha,
FURG, Universidad Córdoba, Instituto Politécnico de Coimbra e
Escola Superior de Educação. Editora da Revista Diversidade e
Educação. Líder do Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola (GESE).
Bolsista de produtividade do CNPq.
E-mail: pribeiro.furg@gmail.com.
Rafael Gonzaga Macedo é Doutor e Mestre em História pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e graduado
em História pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP).
Professor Titular da UNIMEP. Historiador, escritor e roteirista. Tem
atuado em diferentes áreas como produtor cultural e ativista social.
E-mail: rafael.gonzaga.macedo@gmail.com.
Rosyene Conceição Soares Cutrim é Mestra em Gestão de Ensino da
Educação Básica, graduada em Pedagogia e em Serviço Social pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Especialista em
Administração e Supervisão Escolar pelas Faculdades Integradas de
Amparo (UNIFIA). Atuou no Conselho Estadual de Direitos
humanos do Maranhão, no Conselho Estadual da Política de
Igualdade Étnico-Racial (CEIRMA), Conselho Estadual da Mulher
(CEM-MA) e no Conselho Estadual dos Direitos de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (CEDLGBT).
E-mail: rosycutrim@gmail.com.
Sirlene Mota Pinheiro da Silva é Doutora em Educação pelo
Programa de s-Graduação da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FEUSP), Mestre em Educação e
453
Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). Especialista em Metodologia do Ensino Superior
(CEMES). (2003). Docente do Departamento de Educação I e do
Programa de s-Graduação em Educação da UFMA. Pesquisadora
e Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Sexualidade
nas Práticas Educativas (GESEPE). Coordenadora do Curso de
Aperfeiçoamento Corpos de Diversidade na Educação (CDE).
E-mail: sirlene.mota@ufma.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2481-4901.
Taís Mendes Alves é Licenciada em Educação do Campo, com ênfase
em Ciências da Natureza e Ciências Agrárias, pela Universidade
Federal do Rio Grande - FURG. Mestranda no Programa de Pós-
graduação em Educação na Universidade Federal do Rio Grande
(FURG). Bolsista Capes PPGEdu/FURG. Compõe o Grupo de
Pesquisa e Estudo Lélia Gonzalez (CNPq). Foi bolsista de mobilidade
acadêmica internacional pelo programa BRACOL (2020), na
Universidade Antonio Nariño, na Colômbia. Áreas de pesquisa e
interesse: educação do campo, história do povo negro, cultura afro-
brasileira, educação popular, políticas públicas e educação antirracista.
E-mail: taismendesalves91977@gmail.com.
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo é Doutora em Sociologia
pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Educação e
Pedagoga pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília. Possui um s-Doutorado em Educação pela Universidade
do Minho (UMINHO), Portugal, e dois Pós-Doutorados em
Educação pela Universidade de Valência (UV), Espanha. Livre-
docente pela UNESP. Atualmente é Professora Associada junto ao
454
Departamento de Supervisão e Administração Escolar (DASE) e ao
PPGE a FFC/UNESP de Marília. Líder do Núcleo de Gênero e
Diversidade Sexual na Educação (NUDISE).
E-mail: tamb@terra.com.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9833-0635
Thalita Coelho Dantes é Doutoranda em História e Especialista em
Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB) e
Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Professora de História da Secretária de Educação
do Distrito Federal desde 2014. Atuou em diversos segmentos do
Ensino Fundamental ao Superior. Foi redatora do componente de
História naedição do Currículo em Movimento.
E-mail: thalitacdantes@gmail.com.
Thiago Pelegrini é graduado em Educação Física pela Universidade
Estadual de Maringá. Mestre em Educação pela Universidade
Estadual de Maringá. Doutor em Educação pela Universidade
Federal de Uberlândia. Professor Adjunto da Universidade Estadual
de Londrina. Líder do GEPHEEF (Grupo de Estudos e Pesquisas em
História da Educação e da Educaçãosica).
E-mail: thiago.pelegrini@uel.br.
Tiago Cerqueira Lazier é Doutor em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Economia Pública,
Direito e Política pela Leuphana Universität, Alemanha, e Bacharel
em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-Minas). Coordenador de projetos e programas
do Instituto Piracicabano de Estudos e Defesa da Democracia
(IPEDD) e membro do GT de Filosofia Política Contemporânea da
455
Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).
Lecturer (Professor) da Leuphana Universität Lüneburg (Leuphana),
Alemanha. E-mail: tclazier@gmail.com.
Tiago Dionisio da Silva é Doutorando em Geografia pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em
Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), Especialista em Educação e Relações Raciais e em Docência
e Educação Básica e graduado em Geografia (Licenciatura e
Bacharelado) pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Desde
2009 é Professor de Geografia da Secretaria de Estado de Educação
do Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ); entre 2015 e 2018, atuou como
Formador da área de Ciências Humanas na UNIVERSEEDUC/RJ;
entre 2019 e 2020, foi Coordenador Pedagógico do CE Dom Pedro
I; e desde 2020 trabalha na Superintendência de Projetos Estratégicos
(SUPPES/SUBPAE/SEEDUC).
E-mail: tiago_dionisio@hotmail.com.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6556-9025.
Vagner Matias do Prado é Doutor e Mestre em Educação e Bacharel
em Educação Física pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP), com estágio no exterior durante o
Doutorado pelo Departamento de Antropología Social da Facultad
de Ciencias Políticas y Sociología na Universidad Complutense de
Madrid (UCM). s-Doutorado pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Docente da Faculdade de Educação Física e
Fisioterapia e do Programa de s-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Uberlândia (UFU). der do Grupo de
Pesquisa Educação, Sexualidades e Performatividades (GPESP) e
pesquisador do cleo de Estudos Néstor Perlongher (NENP).
456
Associado ao GT23 Gênero, Sexualidade e Educação da Associação
Nacional de s-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).
E-mail: vagner.prado@ufu.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8662-2833.
Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti é Doutora pela Universidade de
León, Espanha, Mestre e graduada em História pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-Doutorado pelo
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e em Direitos
Humanos e História Contemporânea pela Universidade de
Salamanca, Espanha. Professora do Programa de Pós-Graduação
Programa em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e
Feminismo da Universidade Federal da Bahia (PPGNEIM/UFBA).
Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra (Portugal) e Integrante do Instituto de Sociologia como
investigadora associada (IS/UPORTO).
E-mail: vanessa.cavalcanti@uol.com.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5689-8206.
Vinicius Mascarenhas dos Passos é Doutorando e Mestre pelo
Programa de s-Graduação em Educação Científica e Formação de
Professores (PPGECFP) da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia (UESB), Campus de Jequié, e Licenciado em Ciências
Biológicas pela mesma instituição. Atualmente participa do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade e Relações Étnico-raciais
(ACUENDAÇÕES) da UESB.
E-mail: vini-mascarenhas@hotmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8910-572X.
457
Virzângela Paula Sandy Mendes é Doutora em Sociologia pela
Universidade Federal do Ceará (UFC) e Mestre em Políticas Públicas
e Sociedade e graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual
do Ceará (UECE). Pós-Doutorado em Sociologia pela UFC.
Atualmente é Professora Permanente do Mestrado Acadêmico em
Serviço Social e Sociedade e Professora Adjunta do curso de Serviço
Social da UECE. Faz parte do Coletivo Gestor do Núcleo de
Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência
(NAH) da UECE. É pesquisadora do Laboratório das Artes e das
Juventudes (LAJUS/UFC). E-mail: virzangela.sandy@uece.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2275-7680.
Wagner Antônio Júnior é Doutor pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília,
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade de São Paulo (USP), graduado em Pedagogia pela
Faculdade de Ciências (FC), UNESP, Campus de Bauru. Atuou por
10 anos no Departamento de Planejamento, Projetos e Pesquisas
Educacionais da Secretaria Municipal da Educação de Bauru (2011-
2021). Atuou na docência do ensino superior em instituições privadas
e públicas. Atualmente é Diretor de Escola na EMEF Profa. “Dirce
Boemer Guedes de Azevedo, membro do Conselho Municipal de
Atenção à Diversidade Sexual (CADS) de Bauru (gestão 2023-2025)
e membro do Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual na Educação
(NUDISE) da FFC/UNESP de Marília.
E-mail: wag.antonio@gmail.com.
ORCID: htpps://orcid.org/0000-0003-3930-3052.
458
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Livia Pereira
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Produzir conhecimento, através
de pesquisas cientí cas, sobre educação,
direitos humanos e diversidade, tendo o
currículo como foco, é uma das exigências
e imperativo para a construção de um novo
projeto que busca fortalecer a Democracia
como bem maior, de forma a contribuir
para a garantia de uma sociedade com
justiça social, inclusiva e respeito à
diversidade.
É com esse compromisso que
especialistas comprometidos com esse
projeto de sociedade desenvolveram
estudos e pesquisas, buscando desvelar essa
importante tetica, ao compreenderem a
educação como vetor de transformação e
emancipação do ser humano.
Este livro, portanto, apresenta uma
grande contribuição para a formação e
humanização das pessoas, diante da riqueza
dos estudos realizados, re etindo sobre os
marcos legais das legislações educativas,
resultado do compromisso dos seus autores
com a efetivação de uma sociedade justa e
igualitária, no respeito à diversidade.
Os temas aqui desenvolvidos
são muito caros para a formação dos
pro ssionais, em especial da educação,
ao fazer diálogo com o currículo escolar
centralizado em questões de gênero e
sexualidade, permeando a sala de aula,
a formação dos educadores e, buscando
inseri-los nas poticas públicas.
Diante da história recente
da sociedade brasileira, nos últimos
quatro anos, com a vigência de governo
negacionista do conhecimento cientí co,
reaciorio, autoritário, homofóbico, com
práticas de estímulo às diversas formas
de violências, entre elas, a de gênero,
em total desrespeito as orientações
sexuais, poticas, religiosas e à dignidade
das pessoas, este livro torna-se leitura
obrigatória para todos/as educadores/
as, estudantes e pro ssionais das diversas
áreas de conhecimento.
Entendemos que a construção de socieda-
de democrática só é possível com o envol-
vimento de pessoas que detêm o instru-
mental do conhecimento sobre os direitos
humanos, de forma consciente, e que lutam
por uma sociedade inclusiva, com justiça
social, desenvolvimento socioambiental,
em que as pessoas possam ser respeitadas
na sua condição de ser humano.
abril de 2023.
Diante da recente conjuntura de ataques às políticas públicas que
contemplam os temas gênero e sexualidades, erigimos a presente obra,
que teve como proposta abordar resultados de pesquisas, concluídas e/ou
em andamento, que tratam da intersecção dos direitos humanos e temas
relativos à diversidade com a Educação, especialmente aquelas que pensam
a dimensão curricular nessa intersecção.
O livro reuniu 18 capítulos de pesquisadoras e pesquisadores vinculadas(os)
a diferentes Instituições de Ensino Superior (IES) do país e pertencentes às
cinco regiões brasileiras, a saber: a UFT (Região Norte); as UNEB, UESB,
UFBA, UFS, UFMA, UECE e UFCA (Região Nordeste); as UNEMAT,
UEMS, IFG e UnB (Região Centro-Oeste); as UNESP, UNIMEP, UFF,
UFRRJ e a UFU (Região Sudeste); e as UEL, UTFPR, FURG e o IFSul (Região
Sul); assim como também catulo de autoria de pesquisadores(as) de
instituições internacionais, da Leuphana Universität Lüneburg (Leuphana),
na Alemanha, e da Universidade de Coimbra (UC), em Portugal.
Assim, esperamos que, com este livro, tenhamos uma amostra representativa
da variedade de pesquisas desenvolvidas nas diferentes regiões do país
que, então, interseccionam os temas direitos humanos e temas relativos
à diversidade com a Educação. Esperamos, também, que seja de grande
proveito para pesquisadores(as) iniciantes e mais experientes, para
estudantes de graduação, pós-graduação, professores(as) e demais
pro ssionais da Educação e áreas a ns que se interessam pelos temas ou
que procuram, a partir do estudo deles, uma nova perspectiva de vida.
EDUCAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E DIVERSIDADE
o currículo em foco
PROFA. DRA. AIDA MARIA MONTEIRO SILVA
Professora Titular aposentada da
Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE)
9 786559 546084
ISBN 978-65-5954-608-4