Resultado de uma rigorosa pesquisa, Autoeducação, práticas formativas e
relações de gênero numa Cooperativa de Catadoras/es de Materiais Reci-
cláveis, de Bruna Oliveira Martins, debruça-se sobre a análise de um setor
da classe trabalhadora precarizado, em especial, colocando em perspectiva
a formação educacional e as relações de gênero. A submissão das mulheres
é prática observada desde os tempos mais remotos, em praticamente todas
as sociedades, que cumpre uma função socioeconômica. Ao mesmo tempo
também se observa a resistência e a luta das mulheres contra a subordina-
ção e pela igualdade. No caso da Cooperativa, por meio de atividades de
autoeducação e de práticas formativas, as/os trabalhadoras/es conseguiram
reetir sobre as relações de gênero. As mulheres catadoras passaram a se re-
conhecer como trabalhadoras iguais aos homens e a questionar o acúmulo
de funções destinadas a elas, tanto dentro quanto fora do empreendimento.
Convido as pessoas interessadas no debate sobre a temática à leitura desta
obra, pois se trata de um estudo signicativo e relevante, especialmente no
atual cenário político brasileiro.
A temática sobre o trabalho de catadoras/es
de materiais recicláveis no Brasil tem privi-
legiado aspectos ambientais, econômicos e
sociais, ou mesmo a articulação entre eles.
Trata-se de pessoas excluídas do mercado
formal de trabalho que encontram na cata-
ção, ainda que de forma bastante precária, o
próprio sustento e de seus familiares. Em ge-
ral, trabalhadoras/es com baixa escolaridade
e vivência de trabalhos anteriores também
precários, sendo a grande maioria forma-
da por mulheres negras. A organização de
catadoras/es em associações e cooperativas
de trabalho, na perspectiva da Economia
Solidária, tem possibilitado alguns avanços
para esse segmento da classe trabalhadora,
seja pelo protagonismo de catadoras/es, pelo
acesso a políticas públicas e/ou pela contra-
tação de seus serviços de coleta seletiva pelas
Prefeituras. Com o propósito de contribuir
para a organização coletiva de catadoras/
es, diversas entidades de apoio e fomento
vêm prestando assessorias a associações e
cooperativas, entre as quais destacam-se as
universidades, por meio de suas Incubado-
ras de Cooperativas Populares. Esse livro é
resultante de primorosa pesquisa acadêmica
realizada em uma cooperativa de catadoras/
es, com o objetivo de analisar a autoforma-
ção e as práticas formativas desenvolvidas
pela equipe da Incubadora, na modicação
das relações de gênero. A autora, uma jovem
pesquisadora, aponta, a partir de sua pers-
pectiva crítica e capacidade de olhar o micro
e o macro concomitantemente, os limites e
desaos para a ocorrência de modicações
mais efetivas nas relações de gênero na co-
operativa (e na sociedade). Neste sentido, a
obra contribui para que as questões de gê-
nero, raça e classe, sejam tratadas a partir da
interseccionalidade, na luta pela construção
de uma sociedade mais justa e igualitária.
Bruna Oliveira Martins é graduada em
Psicologia pela Universidade Estadu-
al Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(Unesp), Campus de Assis. Mestra em
Educação pela Faculdade de Filosoa e
Ciências da UNESP, campus de Marí-
lia, com a pesquisa “A autoeducação e o
papel formativo da Incubadora de Co-
operativas Populares da Unesp Assis na
modicação das relações de gênero da
Cooperativa de Catadores de Materiais
Recicláveis de Assis e Região”. Atual-
mente cursa doutorado no Programa de
Pós-Graduação em Educação da Facul-
dade de Filosoa e Ciências - UNESP/
Marília, com o projeto intitulado “For-
mação das mulheres negras para o tra-
balho autogestionário no Movimento
Nacional de Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR)” e Especialização
em Psicoterapias de Orientação Psica-
nalítica na Faculdade de Medicina de
Marília - FAMEMA. Atua como psicó-
loga clínica na cidade de Assis/SP. Foi
bolsista de mestrado pelo CNPq. Par-
ticipa do Grupo de Pesquisa “Organi-
zações e Democracia” (Unesp/Marília).
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0039/2022
Processo Nº 23038.001838/2022-11
Autoeducação, práticas formativas e relações de gênero numa Cooperativa de Catadoras/es
de Materiais Recicláveis
NEUSA MARIA DAL RI | UNESP Marília
Bruna Oliveira Martins
ANA MARIA RODRIGUES DE CARVALHO
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Autoeducação, práticas formativas e relações de
gênero numa Cooperativa de Catadoras/es de
Materiais Recicláveis
Bruna Oliveira Martins
Bruna Oliveira Martins
Autoeducação, práticas formativas e relações de gênero
numa Cooperativa de Catadoras/es de Materiais
Recicláveis
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2024
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Edvaldo Soares
Franciele Marques Redigolo
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Henrique Tahan Novaes
Aila Narene Dahwache Criado Rocha
Alonso Bezerra de Carvalho
Ana Clara Bortoleto Nery
Claudia da Mota Daros Parente
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto
Daniela Nogueira de Moraes Garcia
Pedro Angelo Pagni
Auxílio Nº 0039/2022, Processo Nº 23038.001838/2022-11, Programa PROEX/CAPES
Parecerista: Aline Cristine Ferreira Braga do Carmo do Departamento de Ensino - IFMT - Instituto Federal de
Educação Ciência e Tecnologia do Mato Grosso
Ficha catalográfica
Martins, Bruna Oliveira
M386a Autoeducação, práticas formativas e relações de gênero numa cooperativa de
catadoras/es de materiais recicláveis / Bruna Oliveira Martins. Marília : Oficina
Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2024.
265 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-451-6 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-452-3 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-452-3
1. Autoeducação. 2. Relações de gênero. 3. Cooperativas. 4. Catadores de lixo
Assis (SP). 5. Incubadoras de empresas Assis (SP). 6. Economia solidária Assis (SP).
I. Título.
CDD 334
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Copyright © 2024, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - Campus de Marília
O saco de papéis estava muito pesado e um operário
ajudou-me erguê-lo. Esses dias eu carreguei tanto papel
que o meu ombro esquerdo está ferido.
Quando eu passava na Avenida Tiradentes, uns operário
que saíam da fábrica, disse-me: - Carolina, já que gosta
de escrever, instiga o povo para adotar outro regime.
Um operário perguntou-me:
- É verdade que você come o que encontra no lixo?
- O custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada.
Temos que imitar os animaes.
Carolina Maria de Jesus, 2014, p. 95
Lista de Abreviaturas e Siglas
ABIHPEC - Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal,
Perfumaria e Cosméticos
ARCOP - Associação Regional de Catadores do Oeste Paulista
BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior
CBO - Classificação Brasileira de Ocupações
CEMPRE - Compromisso Empresarial para a Reciclagem
CFES - Centros de Formação em Economia Solidária
CNPJ - Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico
CONAES - Conferência Nacional de Economia Solidária
COOCASSIS - Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis
de Assis e Região
COOPAMARE - Catadores de Papel, Aparas e Materiais
Reaproveitáveis
COOPERCOC - Cooperativa de Trabalho de Materiais Recicláveis
do Município de Otacílio Costa
COOPERCOP - Cooperativa de Trabalho de Produção Central e
Regional de Catadores de Materiais Recicláveis do Oeste Paulista
COVID-19 - Coronavírus
EAs - Empresas e Cooperativas de Autogestão
EES - Empreendimento Econômico Solidário
EP - Educação Popular
EPIs - Equipamentos de Proteção Individual
ERTs - Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores
ES - Economia Solidária
FAES - Fórum Assisense de Economia Solidária
FBB - Fundação Banco do Brasil
FBES - Fórum Brasileiro de Economia Solidária
FCL - Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Assis
FHC - Fernando Henrique Cardoso
FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos
FOCOPES - Fórum Oeste e Centro-Oeste Paulista de Economia
Solidária
FSM - Fórum Social Mundial
FUNASA - Fundação Nacional de Saúde
FUNDUNESP - Fundação para o Desenvolvimento da Unesp
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
INCOP UNESP ASSIS - Incubadora de Cooperativas Populares
da Unesp Assis
INSEA - Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável
ITCPs - Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares
ITCP/UNIPLAC - Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares da Universidade do Planalto Catarinense
MDS - Ministério do Desenvolvimento Social
MNCR - Movimento Nacional de Catadores de Materiais
Recicláveis
MCT - Ministério da Ciência e Tecnologia
MPOG - Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
MS - Ministério da Saúde
MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MTE - Ministério do Trabalho
NEPEM - Núcleo de Estudos e Pesquisas da Mulher
OAF - Organização de Auxílio Fraterno
OMS - Organização Mundial da Saúde
OTAs - Organizações de Trabalho Associado
PACS - Projetos Alternativos Comunitários
PET - Polietileno Tereftalato
PNES - Plenárias Nacionais de Economia Solidária
PNRS - Política Nacional de Resíduos Sólidos
PROEX - Pró-Reitoria de Extensão Universitária
PRONINC - Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas
Populares
PT - Partido dos Trabalhadores
REDE ITCPS - Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas
de Cooperativas Populares
REDLACRE - Rede Latinoamericana e do Caribe de Catadores
SCA - Sistema Cooperativista dos Assentados
SCIELO - Scientific Electronic Library Online
SEMUC-SP - Secretaria Estadual de Mulheres Catadoras de
Materiais Recicláveis
SENAES - Secretaria Nacional de Economia Solidária
SIES - Sistema de Informação em Economia Solidária
TA - Trabalho Associado
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
WIEGO - Women In Informal Employment Globalizing and
Organizing
Sumário
Prefácio | Henrique Tahan Novaes................................................13
Introdução..................................................................................19
Capítulo 1: Trabalho e a catação de materiais recicláveis...............37
O trabalho no capitalismo e no neoliberalismo
Trabalho Associado e o movimento da Economia Solidária como
lutas de resistência ao capitalismo
O trabalho da catação de materiais recicláveis como alternativa de
trabalho e renda no capitalismo neoliberal
As organizações e o movimento social das/os catadoras/es: as lutas
de resistência da categoria ao capitalismo neoliberal
O funcionamento atual de trabalho na COOCASSIS
Capítulo 2: Gênero, trabalho e as/os catadoras/es de materiais
recicláveis....................................................................................97
As relações de gênero e de trabalho no capitalismo e neoliberalismo
As relações de gênero nas organizações de Trabalho Associado e de
Economia Solidária: potencialidades e reprodução das relações
capitalistas
Gênero e as organizações das/os catadoras/es
As relações de gênero na COOCASSIS
Capítulo 3: A autoeducação e o papel da universidade nas
organizações de trabalho das/os catadoras/es...............................141
A autoeducação nas organizações de Trabalho Associado e da
Economia Solidária: trabalho como princípio educativo
A autoeducação nas organizações de catadoras/es
O papel da universidade na autoeducação das/os trabalhadoras/es:
a relação universidade-movimentos sociais
Autoeducação, formação e gênero: a luta das/os catadoras/es de
materiais recicláveis
Capítulo 4: A autoeducação e as práticas formativas na
COOCASSIS: modificação das relações de gênero?....................185
A COOCASSIS e a Incop Unesp Assis: trilhando um caminho
educativo
A autoeducação e gênero das/os trabalhadoras/es na COOCASSIS:
o trabalho, o movimento social e as práticas formativas como
princípios educativos
A modificação das relações de gênero a partir da autoeducação e das
práticas formativas na COOCASSIS
Conclusão.................................................................................231
Referências................................................................................239
13
Prefácio
O Mundo do Trabalho vem passando por profundas
transformações desde os anos 1970. O que os gestores do capital
chamam de “globalização” na verdade é uma nova etapa de uma
longa mundialização do capital, iniciada em 1.500 por Portugal e
Espanha. A reestruturação produtiva iniciada nos anos 1970 teve um
impacto gigantesco no Brasil. Destruiu cadeias produtivas, levou ao
nocaute a nossa indústria (que já não era lá essas coisas), criou
trabalhadoras e trabalhadores terceirizados e quarteirizados, enfim,
nos levou a uma reversão neocolonial.
O “colapso da modernização” brasileira pode ser visto nas
estatísticas do que os economistas liberais chamaram de Belíndia, ou
o que Eric Hobsbawm chamou de melhor exemplo de abismo social
do neoliberalismo, este país chamado Brasil com seus condomínios
de luxo e favelas se multiplicando, enorme concentração fundiária,
riqueza e miséria convivendo lado a lado, extrema desigualdade
educacional, enorme produção de produtos primários convivendo
com a fome no campo e na cidade, destruição de alguns poucos
serviços públicos, e por aí vai.
Muitas trabalhadoras e trabalhadores que foram lançados no
mercado de trabalho nos anos 1960-70 perderam a sua fonte de
trabalho com a crise do desemprego dos anos 1980-90 e não tiveram
outra alternativa senão se juntar para fundar uma cooperativa ou
associação de catadoras ou catadores de materiais recicláveis.
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-452-3.p13-20
14
A dissertação de mestrado de Bruna Oliveira Martins, que
tive a honra de orientar e agora fazer o prefácio, traz uma
contribuição fundamental para uma melhor compreensão do que
venho chamando de Mundo do Trabalho Associado e Embriões de
educação para além do capital.
Este Mundo do Trabalho Associado foi ignorado e muitas
vezes subestimado pela academia brasileira, que em grande medida
só queria narrar os “frutos da industrialização” dos anos 1930-1970,
do Brasil que “dava certo”, do Brasil que se modernizava e
“alcançava” a tecnologia das nações centrais, como se todos os países
do mundo estivessem no trilho da “modernidade” e como se não
houvesse imperialismo ou desenvolvimento desigual e combinado.
O Mundo do Trabalho Associado latino-americano é
complexo, dinâmico e contraditório. Para não ir mais longe, ele é
filho da grave crise estrutural do capital na região, que não gera mais
emprego com carteira assinada, que produz crimes ambientais de
grande envergadura, e inviabiliza o futuro dos jovens e adultos da
classe trabalhadora mais pauperizada.
Este Mundo do Trabalho Associado e da Educação para
além do capital envolve um complexo leque de experiências criadas
por uma parcela da classe trabalhadora que foi arrebentada pelo
neoliberalismo e passa a se organizar (mais pela dor do que pelo
amor) em cooperativas, associações e outras formas de experiência
coletiva. Este leque passa por fábricas recuperadas complexas e
grandes do Rio Grande do Sul, costureiras no Rio de Janeiro,
associações de produtores familiares no nordeste, cooperativas
agroecológicas do MST, catadoras de materiais recicláveis, dentre
inúmeras outras experiências de produção associada, consumo,
assistência e educação em todas as partes da América Latina: escolas
15
autônomas zapatistas, escolas autogeridas do MST, ONGs que
apoiam a chamada Economia Solidária, dentre outras.
É verdade que a crise estrutural empurrou esta parcela da
classe trabalhadora para fora do “mercado de trabalho”, mas também
é verdade que houve uma decisão consciente e pioneira,
principalmente de certas lideranças, que criaram ações para a criação
destas experiências e obrigaram o Estado brasileiro a criar as
chamadas políticas públicas que favorecem o mundo do trabalho
associado.
Dada a urgência ontológica da sobrevivência humana, não
tiveram como ficar esperando a melhoria do mercado de trabalho,
tiveram que lutar onde podiam e com as armas que tinham: as suas
próprias mãos e a força do trabalho coletivo.
A dissertação de mestrado de Bruna Martins foi defendida
no Programa de Pós-Graduação em Educação (Unesp/Marília) em
2023. A pesquisa teve o objetivo de analisar como a autoeducação e
as práticas formativas propiciadas pela Incop UNESP Assis
modificaram as relações de gênero da Cooperativa de Catadores de
Materiais Recicláveis de Assis e Região (COOCASSIS).
Cabe destacar que a Incubadora de Cooperativas da UNESP
de Assis é um ótimo exemplo de como grupos de ensino, pesquisa e
extensão se curvaram a esta nova necessidade social: atender um
público completamente ignorado pela universidade até então, as
catadoras e catadores de materiais recicláveis, numa lógica distinta
do assistencialismo e do pragmatismo.
Bruna Oliveira Martins observou que, apesar das
contradições e dos limites existentes (conjuntura desfavorável em
todas as suas dimensões: social, econômica e política das/os
catadoras/es e da universidade), algumas positividades foram
16
encontradas dentro das negatividades do Mundo do Trabalho
Associado e da Educação para além do capital.
Martins destaca que as mulheres catadoras: a) participaram
do movimento social de catadores, o que por si só já é uma tarefa
hercúlea, dada a dificuldade de organizar localmente, regionalmente
e nacionalmente trabalhadoras/es numa atividade singular e
complexa como a catação; b) discutiram sobre a temática de gênero
no cotidiano, o que as levou a questionar e lutar contra a divisão
sexual do trabalho e o trabalho reprodutivo na sociedade capitalista;
c) assumiram cargos de liderança e funções nunca antes pensadas,
ajudando a quebrar a separação patriarcal da “liderança” (onde os
homens ocupam o papel estratégico) e a divisão do trabalho
intelectual-manual e d) questionaram os catadores homens acerca do
acúmulo de trabalho destinado a elas.
Se não bastasse tudo isso, Bruna Martins também destaca
de forma geral - a relação das universidades públicas com as
catadoras e de forma particular - a atuação decisiva da Incoop
UNESP Assis junto a estas trabalhadoras e trabalhadores associados,
em inúmeras atividades formativas que ajudaram trabalhadoras e
trabalhadores associados a pensar a sua própria existência e as
possibilidades e urgências da produção associada.
Os desafios e as contradições existentes no processo de
construção da autogestão nas cooperativas de catadoras e catadores
não são poucos, especialmente num contexto de turbocapitalismo,
onde a naturalização do lucro, da acumulação, do individualismo e
da competitividade atingem a “perfeição”, e principalmente, o
controle da cadeia produtiva da reciclagem pelas grandes
corporações transnacionais que agora dizem “cuidar do meio
ambiente”.
17
No que se refere aos processos de formação política, Bruna
Martins analisou como a autoeducação, isto é, o processo de
autoeducação que ocorre “naturalmente” entre trabalhadoras e
trabalhadores ao se associarem (e construírem o conhecimento
associado) e como as práticas formativas propiciadas pela Incop
UNESP Assis modificaram as relações de gênero da Cooperativa de
Catadores de Materiais Recicláveis de Assis e Região
(COOCASSIS).
Aqui cabe um parêntese, pois o marxismo do século XX,
com honrosas exceções, tendeu a ignorar ou a subestimar as questões
étnicas, ambientais e de gênero. A classe trabalhadora era explorada
e ponto!, sem se observar (ou em grande medida subestimando)
fenômenos como a dupla ou tripla exploração das mulheres, a
reprodução social numa ampla jornada de trabalho que envolve
desde a ida para o trabalho num meio de transporte desumano, a
exploração do trabalho na fábrica, além de lavar roupa e educar os
filhos/as, quando estão fora da escola.
Por sua vez, a questão ambiental foi tratada, mesmo na
URSS, como uma questão secundária ou na melhor das hipóteses,
uma questão que seria tratada depois da revolução. Neste aspecto o
estudo de Bruna Martins traz uma contribuição decisiva para
“desinvisibilizar” a realidade das trabalhadoras associadas, na sua
complexa atividade produtiva e reprodutiva: a catação de materiais
recicláveis.
Ademais, ao também colocar o dedo em outra ferida da
sociedade capitalista, isto é, a produção destrutiva, a produção
desenfreada visando a acumulação de capital, a autovalorização do
capital e a obsolescência planejada de mercadorias supérfluas, será
possível a leitora e ao leitor constatar que o maior “lixo” de todos é
18
o próprio modo de produção e reprodução capitalista, que deverá
ser “descartado” com a maior brevidade possível pela humanidade
nas próximas décadas. Poderemos reciclar este modo de produção?
O que sobrará dele? O que poderemos catar e o que deverá ser jogado
na lata de lixo da história?
Por ser uma dissertação de mestrado, não foi possível a
pesquisadora desenvolver boa parte das dimensões do fenômeno
estudado. Cabe lembrar também que as mestrandas e os mestrandos
ainda se encontram num estágio intermediário da apropriação da
totalidade dos fenômenos sociais e de sua formação política, que
provavelmente se dará no seu doutorado e em outras lutas cotidianas
travadas pelos pesquisadores/as. Mesmo assim, Bruna Martins se
destaca ao conseguir relacionar as múltiplas determinações do
fenômeno estudado, ao fazer uma ampla pesquisa bibliográfica,
documental e empírica (especialmente através de entrevistas e
pesquisa de campo). Não posso deixar de destacar sua atuação na
Incubadora antes de vir fazer o mestrado, como intelectual militante
e pesquisadora, atuando junto aos movimentos sociais de Assis. Esta
experiência certamente contribui para que este livro ficasse tão
bonito!
Cumpre sublinhar também que a pesquisa foi realizada em
tempos de pandemia do Coronavírus (COVID-19), onde
vivenciamos um aprofundamento das desigualdades sociais e
econômicas. A pandemia criou muitas dificuldades para a realização
da pesquisa, e mais do que isso, as cooperativas e associações de
trabalhadores e trabalhadoras foram duramente atingidas pelas
políticas destrutivas da vida levadas a cabo por Jair Bolsonaro.
19
Quer entender mais sobre a dura realidade das catadoras e
suas vitórias ao criar cooperativas de trabalho? Quer saber mais sobre
as relações de gênero na produção associada? Quer se formar
politicamente sobre os conflitos de classe e as lutas travadas entre
homens e mulheres no trabalho singular de separação e gestão de
uma cooperativa? Quer entender como uma Incubadora de
Cooperativas auxiliou a criação de uma cooperativa, atuando seja em
questões elementares no campo jurídico, seja na ajuda a uma
organização regional e nacional? Quer entender as questões
ambientais, para além da aparência da mera “separação” de materiais
recicláveis? Eis o belo livro de Bruna Oliveira Martins! Uma
contribuição decisiva para a compreensão das contradições da
produção livremente associada, das questões de gênero e da educação
para além do capital.
Henrique Tahan Novaes
Marília, 26 de dezembro de 2023
20
21
Introdução
O trabalho apresentado neste livro decorre da minha
dissertação de mestrado
1
defendida em 2023 no Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências
(FFC), Campus de Marília, da Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho” (Unesp).
O interesse pela temática da pesquisa teve origem no
segundo ano de estágio que realizei em cooperativas de catadoras/es
de materiais recicláveis na região do Oeste Paulista no ano de 2019
a 2021, por meio da Incubadora de Cooperativas Populares da
Unesp Assis (Incop Unesp Assis), no curso de graduação de
psicologia. No cotidiano do trabalho com os empreendimentos, a
equipe da Incubadora e as/os trabalhadoras/es percorrem por
diversas contradições no que tange à realidade em que estamos
inseridas/os e à realidade que desejamos construir, na luta dentro do
movimento da Economia Solidária (ES). Tais contradições me
afetaram e me levaram ao desejo de compreender e de analisar uma
especificidade que demanda mais atenção dentro da Economia
Solidária e da categoria das/os catadoras/es de materiais recicláveis:
as relações de gênero. Não é qualquer mulher que encontramos
1
A pesquisa recebeu financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), Código de Financiamento 001, e do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo 161300/2021-9.
22
nesses locais, ela tem classe social e tem raça específicas: são negras e
são pobres e precisam sustentar uma família.
Para a realização desta pesquisa, foi necessário o
estabelecimento de categorias centrais: o Trabalho Associado, a
Economia Solidária, as relações de gênero e a formação, sob os
termos de autoeducação e práticas formativas. O estudo procurou
focalizar as categorias centrais, de modo a cumprir com os objetivos
traçados e a responder o problema de pesquisa. A escolha pelo
recorte de gênero se deve à compreensão de que as desigualdades
decorrentes do patriarcado não só são reajustadas no capitalismo,
mas servem como elemento extremamente importante para sua
perpetuação.
O trabalho ainda é uma questão complexa para muitas
mulheres, inclusive para as mulheres catadoras. O capitalismo e as
relações sociais e de trabalho capitalistas não permitem a inserção de
todas as pessoas no mercado de trabalho. Ainda que o surgimento
do capitalismo tenha inserido as mulheres trabalhadoras em
trabalhos considerados “produtivos”, fora do ambiente doméstico,
essa inserção foi realizada de forma precária, em trabalhos que já não
eram mais tão valorizados pelos homens, e desde que elas
continuassem a efetuar suas tarefas dentro de casa (SAFFIOTI,
2013).
O trabalho doméstico e o cuidado das/os filhas/os ainda são
considerados socialmente como trabalho reprodutivo e não
produtivo, atribuídos à mulher, por meio da reprodução de uma
ideia de que as características de cuidado e da delicadeza são
exclusivas das mulheres. O uso dessa ideia para justificar a tipificação
e a hierarquização da posição da mulher no âmbito pessoal e
profissional produz inúmeras consequências tanto para as mulheres
quanto para os homens. Essa realidade se torna ainda mais drástica
23
a partir da ascensão do neoliberalismo, com o processo de
flexibilização dos contratos trabalhistas, com a redução do poder de
sindicatos e com a retirada de muitos dos direitos das/os
trabalhadoras/es.
No neoliberalismo, os princípios e os valores do capitalismo,
como a competitividade, individualismo, exploração e precarização
são aprofundados. O desemprego estrutural e as formas
desregulamentadas de trabalho são algumas das consequências das
transformações implementadas pelo neoliberalismo (ANTUNES,
2009). Por representar uma possibilidade de trabalho para as pessoas
excluídas do mercado de trabalho formal, inclusive para mulheres
que não possuem disponibilidade de horário para exercer seu
trabalho de forma integral, devido às incumbências que o trabalho
doméstico e o cuidado das/os filhas/os requerem, o trabalho da
catação de materiais recicláveis teve crescimento significativo na
década de 1990.
Com o aumento do consumo e da geração de produtos que
possuem pouca durabilidade, embrulhados em embalagens
descartáveis, expandiu-se também a quantidade de resíduos sólidos
(papel, vidro, metal, plásticos, etc) nos aterros e nos lixões, bem
como o número de pessoas que catam esses materiais para vender e
para, assim, sobreviver. A emergência de outra destinação para os
materiais recicláveis se deu a partir da inviabilidade de alocar tantos
resíduos nos aterros e lixões e do crescimento desse segmento de
trabalho, que foi se desenvolvendo na medida que o processo de
reciclagem foi sendo viabilizado. A reciclagem, enquanto nova
destinação para os resíduos sólidos, só foi praticada em larga escala
na economia brasileira com o barateamento da tarefa de coleta, por
meio da desvalorização do trabalho das pessoas que realizam, em sua
24
maioria, as tarefas de coleta e de triagem, e dos baixos investimentos
tecnológicos destinados ao setor (BOSI, 2008).
Entretanto, conforme crescia o número de catadoras/es de
materiais recicláveis, crescia também a necessidade de melhorar suas
condições de trabalho. Apesar de fundamental para a limpeza
pública e para a mobilidade urbana, o trabalho dessas pessoas ainda
encontra-se extremamente precarizado, uma vez que grande parte
dessas/es trabalhadoras/es são informais e não possuem seus direitos
assegurados. Além disso, diante dos princípios e valores do
capitalismo, a preocupação ambiental e social não são prioridades,
ao menos não mais do que o lucro que qualquer campo e/ou
processo produtivo pode proporcionar para as camadas mais altas
das classes sociais. Para Karl Marx (2002), no sistema capitalista,
os/as donos/as do meio de produção vão, cada vez mais, receber o
maior valor possível de excedentes para acumular, nem que para isso
as classes trabalhadoras estejam sujeitas às piores condições
trabalhistas e sociais possíveis.
A organização do trabalho da catação na forma coletiva, por
meio da criação de associações e cooperativas populares pautadas nos
princípios da Economia Social e Solidária, da Autogestão, do
Trabalho Associado e/ou do cooperativismo das/os trabalhadoras/es,
em articulação com o Movimento Nacional de Catadores de
Materiais Recicláveis (MNCR), possibilitou o fortalecimento desta
parcela das classes trabalhadoras e o movimento de resistência por
melhores condições de trabalho (CARVALHO, 2008). Em
contraposição aos valores de disputa e de individualismo pautados
pelas relações capitalistas, o Trabalho Associado e a Economia
Solidária emergem na América Latina como uma forma da classe
trabalhadora lutar pela sobrevivência de um grande contingente da
população e a favor do exercício de poder das classes trabalhadoras.
25
Quando organizado a partir da Economia Solidária, o
trabalho pode promover um enfrentamento à precarização do
trabalho, processo inerente ao sistema em que estamos inseridas/os
e, principalmente, ao aprofundamento dele. No Brasil, a Economia
Solidária surge na década de 1990, não só como uma alternativa de
geração de trabalho e renda, mas como possibilidade de construir
uma nova forma de produção por meio da posse coletiva dos bens e
dos meios de produção e novas relações de trabalho pautadas pela
igualdade, pela cooperação e pela solidariedade (SINGER, 2002).
As organizações de trabalho pautadas pela Economia Solidária são
denominadas de iniciativas, quando não formalizadas, e quando
formalizadas, de Empreendimentos Econômicos Solidários (EESs).
Essas organizações podem ter diversas frentes de trabalho, como por
exemplo, de produção, de artesanato, reciclagem, agroecologia e etc.
Ao decorrer dos capítulos, apesar de traçar um recorte a partir da
frente da reciclagem, realizo algumas aproximações e/ou distinções
entre as várias especificidades de trabalho dentro do Trabalho
Associado e da Economia Solidária.
Pode-se afirmar, por exemplo, que uma aproximação entre
esses diversos tipos de empreendimentos é a constituição dos grupos.
A organização de uma cooperativa e/ou de uma associação popular,
mesmo que pautadas pelo Trabalho Associado ou pela Economia
Solidária, implica a inserção das/os trabalhadoras/es no sistema
econômico e social vigente. As relações sociais e de produção na
economia capitalista operam de acordo com uma diferenciação e de
uma hierarquização das posições dos indivíduos a partir de uma
estrutura de poder embasada na inferiorização do sujeito perante a
classe social, o sexo e a raça (SAFFIOTI, 2013). Assim, inicialmente,
as experiências autogestionárias eram lugares de homens, e só
passaram a ser destinadas às mulheres quando abandonaram o
26
caráter de ameaça para o capitalismo e quando as lutas das classes
trabalhadoras estavam enfraquecidas (WIRTH, 2010). No entanto,
os estudos sobre as relações de gênero nessas experiências são escassos
e é apenas nos últimos anos que esse tema está sendo olhado pelas/os
pesquisadoras/es.
Para realizar as análises que decorrem dos dados desta
pesquisa, foi necessário o estabelecimento de uma articulação entre
a categoria do gênero e do trabalho no capitalismo, já que, é a partir
do surgimento do capitalismo que novas desigualdades foram
aparecendo, e antigas desigualdades, como a desigualdade de gênero,
foram tomando novas formas (WIRTH, 2010).
Como dito anteriormente, é após o desenvolvimento das
relações capitalistas que as mulheres são inseridas em massa (de
forma precária) no processo produtivo, ainda que as mulheres negras
e pobres já trabalhassem fora de casa anteriormente, o que revela
também uma desigualdade de classe social e de raça. As dimensões
da desigualdade de gênero e de raça são recentemente incorporadas
no discurso dos movimentos sociais, especialmente no movimento
da Economia Solidária e das/os catadoras/es de materiais recicláveis.
Levando em consideração que as mulheres são a maioria nessas
organizações, é necessária a inserção da dimensão de gênero como
um princípio específico dos movimentos, a fim de desocultar a
realidade das mulheres que vivem submetidas à condições de vida
muito precárias (LEITE; SOUZA, 2010, HILLENKAMP;
GUÉRIN; VERSCHUUR, 2014, GUÉRIN, 2005, SCHNEIDER,
2010).
Grande parte das catadoras de materiais recicláveis está
inserida no trabalho como uma forma de gerar sobrevivência para
elas mesmas e para suas famílias (SILVA; MENEGAT, 2016).
Segundo o MNCR (2014), ao final de 2013, o Instituto de Pesquisas
27
Econômicas Aplicadas (IPEA) divulgou o resultado de uma pesquisa
que demonstra que as mulheres são 70% da categoria das/os
catadoras/es, “mulheres negras e chefes de família”. Para o
movimento, no entanto, este número pode ser reavaliado porque
algumas mulheres consideram o trabalho da catação como
complementar, e entendem que o trabalho doméstico é o trabalho
principal.
A partir da incubação, podemos entrar em contato com a
realidade local dessas trabalhadoras e verificar as estatísticas
nacionais. É possível afirmar que no Oeste Paulista, a partir de
pesquisas (CARVALHO, 2008, CARVALHO; RONDINI, 2017,
SILVA, 2014), que as mulheres são a maioria nessa frente de
trabalho e que muitas delas são negras, pobres, possuem baixo nível
de escolaridade e exercem o trabalho doméstico dentro de suas casas
e nas casas de outras pessoas e o cuidado das/os filhas/os. O
protagonismo das mulheres negras no trabalho da catação nos
permite a reflexão sobre a importância do processo de formação que
essas/es trabalhadoras/es precisam obter para lutar contra as diversas
opressões que sofrem perante essa realidade.
O processo de formação para o trabalho coletivo, seja
pautado pelo Trabalho Associado ou pela Economia Solidária,
requer a construção de uma consciência crítica para a superação da
alienação produzida pelo modo de organização capitalista, que
promove consequências não só para as mulheres, mas para os
homens de classes mais baixas, uma vez que, ao marginalizar as
mulheres da mesma estrutura ocupacional, serve aos interesses das
classes dominantes, que detêm o poder econômico (SAFFIOTI,
2013). A transformação do trabalho e a desalienação do trabalho
devem ser amparadas pela construção de uma educação
emancipatória, que incorpore discussões para além do capital, com
28
a finalidade de realmente permitir outro modelo de relações
econômicas e sociais (NOVAES, 2015).
A formação pode compreender tanto processos de
autoeducação a partir de modos de aprender com o próprio
processo do trabalho e com as experiências de troca na vivência
coletiva (participação em assembleias, organização de comissões,
participação em eventos e em movimentos sociais), como com
práticas formativas propiciadas por entidades de apoio e fomento
com os empreendimentos. A autoeducação (VIANA, 2018, LÖWY,
2014), diz respeito a um retorno ao significado real da categoria
trabalho humano, como atividade necessária, satisfatória e
educadora (MARX, 2002, NOVAES, 2018).
As práticas formativas que são proporcionadas tanto para
organizações de trabalho quanto para movimentos sociais, em geral,
são elaboradas por meio da metodologia da Educação Popular (EP),
que tem Paulo Freire (1979) como precursor. Quando nos referimos
à Economia Solidária, temos como principais entidades de apoio e
de fomento o poder público, a Igreja Católica e as Incubadoras
Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs). As ITCPs
surgem para promover e incentivar o trabalho coletivo a partir de,
em sua maioria, atividades e projetos de extensão universitária
responsáveis pelo apoio técnico e por ações de formação, compostas
por alunas/os, professoras/es e funcionárias/os (SINGER, 2002).
Por meio do desenvolvimento de tecnologias sociais e da
aproximação das/os trabalhadoras/es com o poder público, as
Incubadoras exercem um papel essencial para a inserção produtiva,
para a construção de políticas públicas e para a formação de
trabalhadoras/es para o trabalho coletivo.
A fim de fomentar uma aproximação da universidade com
os movimentos sociais e com a comunidade, o presente estudo
29
possui o objetivo geral de, dado os desafios e as contradições
existentes no processo de construção de autonomia, autogestão,
igualdade e gestão democrática nos empreendimentos, frente aos
princípios capitalistas de lucro, acumulação, individualismo e
competitividade (CARVALHO, 2008), analisar se e como a
autoeducação e as práticas formativas propiciadas pela Incop Unesp
Assis modificam as relações de gênero da Cooperativa de Catadores
de Materiais Recicláveis de Assis e Região (COOCASSIS). Os
objetivos específicos são: analisar as relações de gênero no
empreendimento; analisar o processo de autoeducação das/os
trabalhadoras/es; e analisar as práticas formativas realizadas pela
Incop Unesp Assis no empreendimento.
Em tempos de pandemia da Coronavírus (COVID-19),
vivenciamos um aprofundamento das desigualdades sociais e
econômicas. Paralelo a isso, presenciamos um desmonte dos serviços
públicos, especialmente da universidade, e uma precarização do
acesso à educação, principalmente diante das orientações necessárias
de distanciamento social: nem todas as pessoas e nem todos os
empreendimentos possuem acesso à internet e os que possuem têm
dificuldades no que tange à sua qualidade. Nesse cenário, é de grande
relevância o problema de pesquisa que é levantado por meio desse
estudo: o processo de autoeducação e as práticas formativas
realizadas pela Incop Unesp Assis modificam as relações de gênero
estabelecidas na COOCASSIS? Se sim, como?
Adotamos os procedimentos metodológicos da pesquisa
bibliográfica, pesquisa documental e pesquisa empírica. A pesquisa
bibliográfica compreendeu um levantamento por meio das palavras-
chave: catadoras/es de materiais recicláveis; Trabalho Associado;
Economia Solidária; gênero; autoeducação; incubadoras de
cooperativas populares, seleção, leitura e análise dos dados coletados
30
dos principais livros, teses, capítulos de livro e artigos científicos no
google acadêmico, na base de dados da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e na
Scientific Electronic Library Online (SciELO). Na pesquisa
documental, utilizamos os principais documentos da Incop Unesp
Assis e da Cooperativa, bem como os principais registros de
preparação das práticas formativas realizadas com a Cooperativa.
Para localizar esses documentos (como Estatuto Social, Regimento
Interno, relarios de atividades e da Pró-Reitoria de Extensão
Universitária- PROEX, etc) utilizamos o arquivo físico da
Cooperativa e o drive do e-mail da Incubadora. Também,
investigamos os registros de preparação das principais oficinas,
grupos de trabalho e dinâmicas realizadas com a Cooperativa nos
cadernos de registro físicos e virtuais e nos sites da Cooperativa,
Incubadora e MNCR.
A pesquisa empírica foi realizada por meio da observação e
de entrevistas individuais semiestruturadas. A Cooperativa em
questão foi escolhida de acordo com a sua grande relevância para a
cidade e para a região onde está localizada e à relação duradoura de
confiança que estabelece com a Incubadora. A Incop Unesp Assis
teve origem em 2006 com o financiamento do Programa Nacional
de Incubadoras de Cooperativas Populares (PRONINC) e por meio
da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), do
Ministério do Trabalho (MTE) e da Financiadora de Estudos e
Projetos (FINEP), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).
Caracterizada como projeto de extensão universitária e também
como núcleo de estágio profissionalizante do curso de psicologia, a
Incop Unesp Assis é composta por docentes, estagiárias/os e
extensionistas.
31
A Incop Unesp Assis busca, na atuação direta com as/os
trabalhadoras/es da Economia Solidária, contribuir para a
construção de uma consciência crítica da realidade, e
consequentemente, para a promoção da igualdade (CARVALHO;
LADEIA; FELÍCIO, 2017). Percebe-se que a presença de lideranças
femininas nas cooperativas de catadoras/es e o trabalho de formação
destas promovido pela Incubadora é uma realidade. A educação para
a participação igualitária, transparência, cooperação, e outros
princípios e valores da Economia Solidária representa uma luta
contra as desigualdades vividas por uma parcela das classes
trabalhadoras no âmbito social.
O objeto de estudo da pesquisa, a COOCASSIS, é um EES
incubado pela Incop Unesp Assis, que surgiu e se desenvolveu por
meio da interlocução da universidade-sociedade. Antes de se
consolidar, em 2001, a Cooperativa era uma iniciativa de um grupo
de trabalhadoras/es desempregadas/os que, juntamente à
universidade, por meio de atividades de extensão, desenvolvia um
trabalho composto por discussões a respeito da problemática do
desemprego, tão relevante para a questão econômica, social e política
brasileira, com o intuito de desenvolver espaços de reflexão acerca
do fenômeno e das suas repercussões na vida deste grupo
(CARVALHO, 2008).
Com o apoio do poder público, da Cáritas Diocesana de
Assis e da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(Unesp), campus de Assis, o grupo de trabalhadoras/es começou a
aumentar e a construir o modo de organização do trabalho, até ser
oficialmente formalizada em 2003, com a aprovação de Estatuto
Social e com a eleição de seus Conselhos de Administração e Fiscal.
Nos dias atuais, a Cooperativa possui mais de 100 trabalhadoras/es,
que realizam a tarefa de coleta dos materiais recicláveis nas
32
residências, instituições e nas ruas, triagem, prensagem,
enfardamento, armazenamento e comercialização.
A COOCASSIS é considerada uma referência para as
cidades da região do Oeste Paulista devido a sua grande relevância,
tanto para Assis quanto para municípios vizinhos. Funciona em
quatro setores: na coleta seletiva nas ruas, no barracão (onde realizam
a maior parte das funções do trabalho), na frente do lixo orgânico
(que não nos aprofundaremos na presente pesquisa) e na
coordenação do empreendimento (Conselho de Administração e
Conselho Fiscal). Ao adotarem os princípios e valores da Economia
Solidária no trabalho, com a participação da Incop Unesp Assis,
as/os catadoras/es buscam colocar em prática a autogestão, gestão
democrática, cooperação e solidariedade.
A COOCASSIS e a Incop Unesp Assis possuem um longo
caminho em conjunto, cheio de desafios, dificuldades e
potencialidades. O desenvolvimento das instituições se deu de forma
mútua, na construção e no compartilhamento de saberes. Assim,
trabalhadoras/es e universidade ampliam e fortalecem as lutas,
articulando-as por meio de práticas que conciliam dois campos
inseparáveis: educação e trabalho. Compreendemos que o recorte de
gênero traz novos olhares sobre essas categorias. Ao desvelar relações
entre gênero, catadoras/es, trabalho e educação, aprofundamos ainda
mais as análises sobre o quão contraditórios o capitalismo e o
neoliberalismo podem ser e o quanto afetam, de forma ainda mais
intensa, as protagonistas desta pesquisa: as mulheres catadoras.
A observação foi realizada de acordo com a preparação de
um cronograma e de um roteiro, que estabeleceu algumas pré-
categorias a serem estudadas no empreendimento. Após
apresentação da proposta e autorização da presidenta da Cooperativa
para o desenvolvimento da pesquisa no local, negociamos um
33
cronograma que poderia ser viável tanto para nós quanto para as/os
trabalhadoras/es. Durante o período de duas semanas e meia,
observamos o trabalho no barracão da Cooperativa por duas
manhãs, dois almoços e duas tardes. Ademais, acompanhamos dois
caminhões da coleta seletiva por dois setores distintos, no período
da manhã até a tarde, um caminhão dirigido por um homem e um
caminhão dirigido por uma mulher.
Em cada período/dia, nos atentamos às seguintes pré-
categorias: 1) funcionamento da Cooperativa: 1.1) processos e
funções do trabalho; 1.2) instrumentos de trabalho; 1.3) gestão
administrativa; 2) relações de gênero: 2.1) divisão sexual do trabalho
na Cooperativa; 2.2) relações sociais estabelecidas pelas/os
cooperadas/os e 3) autoeducação e processos formativos.
Tendo como base a pesquisa bibliográfica e a pesquisa
documental, os roteiros de entrevistas foram elaborados, de acordo
com a especificidade do sujeito: foram entrevistadas/os tanto
trabalhadoras/es do empreendimento quanto membros da Incop
Unesp Assis. Desenvolvemos, portanto, um roteiro específico para
as/os catadoras/es e um para os membros da Incubadora,
modificando tanto o teor de análise quanto a linguagem das
perguntas. Como as entrevistas foram feitas de forma
semiestruturada, foi possível, ao longo das entrevistas e após o
processo da observação, desenvolver e aperfeiçoar algumas delas.
Inicialmente, as entrevistas seriam realizadas por meio de
videochamadas na plataforma do Google Meets. No entanto, após a
vacinação das três doses, foi possível analisar que o período da
pandemia da COVID-19 estaria mais favorável à realização de
entrevistas presenciais. Mediante apresentação e autorização das/os
participantes por meio do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), realizamos entrevistas presenciais de acordo
34
com as orientações do uso de máscaras e de distanciamento social.
Foram providenciadas máscaras descartáveis para as/os
trabalhadoras/es que não tinham.
Foram entrevistadas três mulheres catadoras e dois homens
catadores, uma ex- integrante, uma coordenadora e um coordenador
da Incop Unesp Assis que continham as informações necessárias para
o andamento da pesquisa. No total, foram realizadas, portanto, oito
entrevistas. As entrevistas foram transcritas e analisadas. É
importante ressaltar que, devido a alguns fatores, apenas a entrevista
com a ex-integrante da Incubadora foi realizada de forma virtual,
pela plataforma do Google Meet, e foi gravada e armazenada no
drive do email da pesquisadora.
A escolha das/os entrevistadas/os foi feita de forma
estratégica, de modo a permitir a obtenção de diferentes
perspectivas, diferentes lugares dentro da Cooperativa e dentro do
viés de gênero. Foi entrevistada uma cooperada que ocupa o cargo
de representação de presidenta do empreendimento, uma cooperada
técnica de segurança do trabalho considerada uma das pessoas que
mais representa a Cooperativa em outros espaços como nos fóruns e
nos eventos dos movimentos sociais da categoria e da Economia
Solidária e uma cooperada que não está e que não possui interesse
nos postos de representação, apesar de já ter participado de alguns
eventos e capacitações promovidos pelo movimento nacional e
regional e pela Incubadora.
Foi entrevistado um cooperado que ocupa o cargo de
representação de secretário no Conselho de Administração do local,
e que já esteve bastante envolvido com as ações tanto do movimento
nacional quanto do movimento regional da categoria e um
cooperado mais distante dos postos de representação. Entrevistamos
também a coordenadora, o coordenador e uma ex-integrante da
35
Incubadora que acompanhou o empreendimento durante o período
de dois anos, o que produziu visões, ao mesmo tempo, diferentes e
parecidas da realidade, o que proporcionou um rico conteúdo a ser
analisado.
A forma de análise de dados é analítico-explicativa, baseada
no registro, análise e interpretação do fenômeno em busca de
identificar causas e efeitos. Buscamos demonstrar as tendências de
seu desenvolvimento e as forças que o determinam. As principais
categorias que utilizamos são: história, formação, gênero, conflito
social e contradições. Partimos do movimento do real e, portanto,
levando em consideração o processo contraditório da realidade,
conforme suas particularidades.
Pretendemos, por meio desse estudo, contribuir para a área
da educação e para a aproximação das universidades com o
enfrentamento dos problemas sociais e econômicos perpetuados
pelo modo de organização do trabalho e modelo societário vigente.
Todas as/os entrevistadas/os construíram sua história, tanto na
Incubadora quanto na Cooperativa, durante um longo período de
tempo, umas e uns mais do que as/os outras/os, o que favoreceu uma
construção histórica das duas instituições e conferiu à pesquisa uma
produção de resgate a memória, aos afetos, às nostalgias e às
dificuldades, de forma não romantizada, mas real. Perante os
desmontes feitos nos governos passados (após o Golpe de 2016) e
especialmente na gestão de Jair Bolsonaro (2018-2022),
especialmente na vida desta parcela das classes trabalhadoras e das/os
discentes, docentes e funcionárias/os empenhadas/os em projetos
que vislumbram outra realidade possível, recordar é o primeiro passo
para construir novas lutas.
Este livro está estruturado em quatro capítulos, de acordo
com as principais categorias estudadas na pesquisa. No Capítulo 1,
36
Trabalho e a catação de materiais recicláveis, realizamos um
apanhado teórico acerca da realidade socioeconômica do mundo do
trabalho no sistema capitalista de produção, e buscamos
compreender o desenvolvimento das organizações de trabalho das/os
catadoras/es de materiais recicláveis em um contexto mais amplo,
considerando o percurso histórico dos fenômenos do Trabalho
Associado e da Economia Solidária como fundamentais para a luta
de resistência das classes trabalhadoras. A partir da construção de
novas relações sociais e de trabalho, as/os catadoras/es se articulam
em organizações de trabalho, visando a transformação da realidade
na qual estamos inseridas/os. Apresentamos o funcionamento atual
de trabalho da COOCASSIS, a fim de analisar, posteriormente, o
objeto de estudo.
No Capítulo 2, Gênero, trabalho e as/os catadoras/es de
materiais recicláveis, refletimos acerca das articulações existentes
entre as categorias gênero, trabalho e as organizações de trabalho
coletivo, principalmente de catadoras/es de materiais recicláveis. A
fim de, no próximo capítulo, identificar e analisar as potencialidades
e as dificuldades da modificação das relações de gênero nas relações
sociais e de trabalho a partir de projetos e processos de autoeducação
praticados nos grupos, especialmente em EESs de catadoras/es de
materiais recicláveis, procuramos, antes, investigar se e como as
reproduções das relações de gênero estabelecidas no capitalismo
acontecem nas organizações de Trabalho Associado e da Economia
Solidária, bem como as transformações possibilitadas pela vivência
associada/cooperativa e pelas ações coletivas. Consideramos a
modificação das relações de gênero como um fator principal para a
transformação social, visto que, para a construção de novas relações
sociais e de trabalho pautadas na solidariedade, na igualdade e na
democracia, é necessária a produção de relações de gênero mais
37
igualitárias. Analisamos as relações de gênero existentes na
COOCASSIS e traçamos paralelos com outras organizações de
catadoras/es.
No Capítulo 3, A autoeducação e o papel da universidade
nas organizações de trabalho das/os catadoras/es, discorremos sobre
o conceito de autoeducação e analisamos como os projetos e
processos autoeducativos se efetivam no cotidiano em um
empreendimento de Trabalho Associado e da Economia Solidária e
no movimento social. Também, apresentamos o papel da
universidade, por meio das ITCPs, em potencializar os processos de
autoeducação das/os trabalhadoras/es, com base nas práticas
formativas promovidas por essas entidades. Ao se articular com as
organizações, buscando o diálogo e a construção de novos saberes
com as/os trabalhadoras/es, as ITCPs cumprem a função social que
a universidade deve desempenhar, por meio de, principalmente,
atividades de extensão universitária. É a partir da autoeducação e da
formação que ocorre entre os grupos, o movimento social e as
ITCPs, que pode-se vislumbrar o debate acerca das relações de
gênero, para, enfim, modificá-las. Exploramos, primeiramente, um
cenário mais geral, a fim de aprofundarmos a análise da realidade
das/os catadoras/es de materiais recicláveis.
Por fim, no Capítulo 4, A autoeducação e as práticas
formativas na COOCASSIS: modificação das relações de gênero?,
apresentamos a relação da COOCASSIS com a Incubadora e
evidenciamos um histórico do caminho conjunto percorrido pelas
duas instituições. Analisamos a localização da COOCASSIS no
movimento social nacional, regional e local, e o papel do processo
da autoeducação e das práticas formativas na formação das/os
catadoras/es para exercer o trabalho coletivo e, posteriormente, suas
funções na modificação das relações de gênero do empreendimento.
38
39
Capítulo 1
Trabalho e a catação de materiais recicláveis
Por meio do trabalho, os seres humanos produzem e se
reproduzem. O trabalho, historicamente, conferiu sentido
fundamental à existência humana, e é, portanto, uma das categorias
mais importantes utilizadas para a análise da constituição e do modo
de funcionamento das estruturas sociais. No decorrer da história,
várias formas de trabalho foram surgindo até a construção do
trabalho como conhecemos hoje, a partir do surgimento do
capitalismo e, posteriormente, do neoliberalismo.
O trabalho da catação de materiais recicláveis surge e é
expandido a partir do capitalismo, e especificamente, no cenário
neoliberal. A catação só se torna uma profissão, no entanto, quando
as/os catadoras/es se unem em um movimento social, após o
crescimento da produção de resíduos sólidos pelas indústrias, do
consumo pela população e da quantidade de pessoas que exercem
esse trabalho para garantir, minimamente, a sobrevivência. Neste
capítulo, traçamos reflexões sobre algumas das categorias centrais
estudadas na presente pesquisa: o trabalho da catação de materiais
recicláveis, o Trabalho Associado e a Economia Solidária, as
organizações de trabalho e o movimento das/os catadoras/es.
Para compreendermos essas categorias, precisamos,
primeiramente, analisar algumas categorias periféricas que compõem
40
a realidade na qual estamos inseridas/os: o trabalho no capitalismo,
as relações capitalistas, a ascensão do neoliberalismo e o cenário de
precarização do trabalho que dele decorre. Diante da realidade
neoliberal, a catação é uma alternativa precarizada de trabalho e
renda para uma boa parte das pessoas, e, especialmente, as brasileiras.
Aqui, tratamos mais das/os catadoras/es brasileiras/os, devido ao
recorte da cooperativa estudada; no entanto, traçamos paralelos com
realidades aproximadas de outros países, principalmente os países
latino-americanos, nos quais as/os catadoras/es também são
numerosas/os.
O trabalho no capitalismo e no neoliberalismo
Para Karl Marx (2002) e David Harvey (2013), a expansão
do capitalismo é um processo em movimento, que possui a geração
de excedentes cada vez maiores como principal objetivo. A partir da
promoção de um esgotamento dos recursos naturais e de um
esgotamento físico e psicológico das/os trabalhadoras/es, o
capitalismo se constitui enquanto um sistema que reproduz a si
próprio a partir de um crescimento infinito do mercado de trocas
das mercadorias e da massa de trabalhadoras/es. Estas/es
trabalhadoras/es, por sua vez, não possuem outra escolha a não ser
realizar um trabalho compulsório, gerador de sofrimento, repetitivo
e sem sentido para sobreviver e para garantir a sobrevivência de suas
famílias, o que viabiliza uma alienação de si próprias/os e da
realidade na qual estão inseridas/os.
A alienação é uma ferramenta utilizada no capitalismo para
manter as/os trabalhadoras/es em um tipo específico de trabalho: o
trabalho que aprisiona, degrada, explora e que é, consequentemente,
esvaziado de sentido. Karl Marx (2002, p. 788), ao considerar a
41
relação da trabalhadora e do trabalhador com o trabalho, com o
produto do trabalho, com as/os colegas de trabalho e com a natureza,
descreve o processo de alienação das/os trabalhadoras/es no
capitalismo, afirmando que a classe trabalhadora consome por meio
de uma “reconversão dos meios de subsistência, alienados pelo
capital em troca da força de trabalho, em nova força de trabalho a
ser explorada pelo capital”.
No processo de alienação do trabalho, “o trabalhador só se
sente junto a si fora do trabalho e fora de si no trabalho” (NOVAES,
2018, p. 17). Para David Harvey (2013), as relações capitalistas de
trabalho possuem algumas limitações e contrastam com a ideia de
que o trabalho é uma atividade de expressão da criatividade humana.
A busca por excedentes cada vez maiores centraliza o capital como
essencial para a continuidade de trabalho, e, em contrapartida, as
condições sociais e trabalhistas de quem realmente é essencial para
que o capitalismo gire ficam à espreita, ou seja, da trabalhadora e do
trabalhador. As/os trabalhadoras/es, portanto, nunca recebem pelo
tanto que trabalham e trabalham porque precisam sobreviver, de
forma desgastante, porque precisam oferecer produtividade e
promover lucro para permanecerem em seu trabalho.
Paul Singer (2002), que foi economista e sociólogo, ex-
secretário Nacional de Economia Solidária (ES), do Ministério do
Trabalho e do Emprego (MTE), e também considerado pai da ES
no Brasil, considera que o capitalismo tornou-se tão influente que
tendemos a naturalizá-lo. Seus princípios e valores são tomados
como características que estão presentes nos seres humanos desde
que nascemos: a competitividade e a consequente polarização
produzida pelo capital são dadas como uma mera consequência da
vida, resultante das escolhas individuais ou até de alguma ordem
42
divina. Analisa que o capitalismo não é só produtor de desigualdade,
mas utiliza-a como mecanismo de acumulação de capital.
[...] o capitalismo produz desigualdade crescente, verdadeira
polarização entre ganhadores e perdedores. Enquanto os
primeiros acumulam capitais, galgam posições e avançam nas
carreiras, os últimos acumulam dívidas pelas quais devem pagar
juros cada vez maiores, são despedidos ou ficam desempregados
até que se tornam inempregáveis, o que significa que as derrotas
os marcaram tanto que ninguém mais quer empregá-los.
Vantagens e desvantagens são legadas de pais para filhos e para
netos. Os descendentes dos que acumularam capitais ou
prestígio profissional, artístico etc., entram na competição
econômica com nítida vantagem em relação aos descendentes
dos que se arruinaram, empobreceram e foram socialmente
excluídos. O que acaba produzindo sociedades profundamente
desiguais (SINGER, 2002, p. 9).
Tal processo fica evidente no campo da cadeia da reciclagem:
com o aumento catastrófico da produção e do consumo de produtos
com durabilidade cada vez menores, a geração de lixo também
cresce. Ou seja, “tudo o que antes já ia para o lixo agora vai para o
lixo muito mais rapidamente” (WIRTH, 2010, p. 95). No entanto,
é a partir do momento que a reciclagem se torna vantajosa para o
capital que começa a ser uma ferramenta empregada e estimulada
pelos governos, porque passa a ser utilizada para a acumulação e,
concomitantemente, para a precarização do trabalho da catadora e
do catador de materiais recicláveis. Para naturalizar essas relações, no
entanto, o capitalismo exerce a dominação das massas, que ficam
alienadas do real objetivo por trás do discurso de que tal processo é
necessário para a promoção de mais oportunidades de trabalho, ou que
43
atua como uma forma de compensação pelas tantas faltas que o
capitalismo promove.
Mas o capitalismo não possui uma atuação de compensação.
Carlos Loureiro (2007) analisa que o mercado capitalista não
cumpre o papel de satisfazer as carências, de promover mais
oportunidade para as/os trabalhadoras/es, pelo contrário, se
direciona para uma superprodução e um superconsumo para a
minoria e um subconsumo, exploração e expropriação para a
maioria, sob um ideal de uso acelerado do que a natureza tem a
oferecer para aconservação” da vida humana. Marília Tozoni-Reis
(2007, p. 193) analisa que o processo de alienação não se dá apenas
nas classes trabalhadoras, mas também nas elites que, ao
centralizarem o capital em suas vidas, vivem submetidas a ele:
A alienação transforma, portanto, as relações sociais entre
pessoas em relação entre “coisas” mercadoria. Este
movimento, constituinte das relações sociais, transforma
também os proprietários dos meios de produção que, ao se
submeterem à lógica desse mercado, são também seres
humanos alienados. O capital aparece para todos como
“naturalmente” determinante das vidas das pessoas e das classes
sociais. A alienação, que reifica as relações sociais,
transformando pessoas em “coisas”, e o fetiche por ela gerados
(Chauí, 1981), levam à compreensão das atividades humanas
como alheias, independentes, autônomas, à vontade dos
homens, gerando ideologias [...].
Algumas relações compreendidas como naturais socialmente
jamais seriam humanamente aceitas caso fossem entendidas como
sociais, e é na desalienação, justamente, que esse processo ocorre. A
partir da desalienação, é possível encontrarmos as contradições
presentes entre as dimensões econômicas, produtivas e sociais do
44
capitalismo. O encontro com essas contradições promove diversas
crises e sérios conflitos sociais, o que impulsiona, no capitalismo, a
necessidade da adoção de novas estratégias que deem conta de
manter a alienação e de conduzir o capital ao seu objetivo último:
acumular. Assumindo novas roupagens, mas partindo do mesmo
pressuposto, o sistema capitalista se utiliza de alguns instrumentos
para se esquivar das crises de superprodução e dos conflitos
comerciais e sociais gerados devido às contradições encontradas na
concorrência e na competitividade entre as empresas, nas injustiças,
na pobreza, na opressão, na desigualdade e no desemprego.
No decorrer do tempo, a conservação desse modo de
organização foi alicerçada em fundamentos liberais e,
posteriormente, neoliberais. Reginaldo Moraes (2001) examina que
a constituição do liberalismo representou uma estratégia de instituir
a necessidade da concorrência de mercado no mundo com a
finalidade de substituir e de negar o mercantilismo, sistema de
valores capitalista anterior ao liberal. Em oposição ao sistema das
hierarquias, os autores liberais defendem as possibilidades de
ascensão da burguesia e a liberdade individual, a partir do incentivo
à divisão social (sexual, racial e internacional) do trabalho, à
dedicação plena e a recompensa pelo trabalho, à defesa da
propriedade privada e à limitação do poder público pela lei.
A doutrina liberal é constituída, genericamente, por ideais
que abarcam a busca pelo lucro e a motivação pelos interesses
individuais. O liberalismo clássico pressupõe o incentivo à livre
concorrência de mercado, à livre iniciativa, à desregulamentação e
privatização das atividades econômicas e à redução do papel do
Estado na economia. Para os pensadores desta doutrina, sem a
intervenção do Estado nos interesses e nas necessidades individuais
e privadas, a sociedade dividiria, “naturalmente”, o capital, de acordo
45
com o que a população deseja. A expansão do modelo liberal seria
comprometida, portanto, pela intervenção do Estado, pelo
socialismo e pelas políticas sociais (MORAES, 2001).
A expansão do liberalismo no mundo foi marcada pelas crises
e pelos conflitos sociais. Na década de 1970, o mundo passa por uma
crise estrutural do capital, compreendida como um período de queda
significativa das taxas de lucro, de esgotamento das formas de
acumulação de capital e de insatisfação social. A estratégia
empregada para a superação desta crise foi aplicar uma modificação
no modo de organização do trabalho e uma atualização do
pensamento liberal, com a expansão do neoliberalismo (SANTOS;
PAIXÃO, 2014). Para Ricardo Antunes (2008, p. 43), a crise dos
fins da década de 1960 e início de 1970, fez com que o mundo
produtivo passasse por um processo de reestruturação com a
finalidade de realizar uma “recuperação do seu ciclo de expansão, e
ao mesmo tempo, recompor seu projeto de dominação societal, que
foi abalado pela confrontação do trabalho dos anos 60, que
questionou alguns dos pilares da sociabilidade do capital”.
O capitalismo neoliberal, enquanto corrente de pensamento
e processo de redirecionamento capitalista, compreende um
aprofundamento da alienação e da exploração do trabalho
(SANTOS; PAIXÃO, 2014). A fim de intensificar a produtividade,
de aplacar as lutas sociais e de reconstruir a capacidade de
acumulação do capitalismo, o projeto neoliberal orienta o mundo
para uma mundialização do capital, que visa reforçar e expandir uma
hegemonia de classe. O neoliberalismo implementa formas de
acumulação flexível, a partir do modo toyotista ou japonês de
produção, como o trabalho polivalente, multifuncional e qualificado
e uma estrutura empresarial mais “horizontalizada e integrada”. As
consequências dessas transformações acentuam o ataque aos direitos
46
sociais e ao papel de intervenção do Estado, aprofunda o livre
comércio e reforça a ideia de que, para obter liberdade individual, é
necessário que o Estado exerça um papel mínimo de preservação da
ordem institucional básica (MORAES, 2001).
Segundo Sonia Draibe (1993, p. 86), o neoliberalismo
“reproduz um conjunto heterogêneo de conceitos e argumentos,
“reinventando” o liberalismo mas introduzindo formulações e
propostas muito mais próximas do conservadorismo político”. As
transformações colocadas como uma resposta à crise, para Ricardo
Antunes (2008), intensificaram as configurações do trabalho já
existentes, muito mais convenientes aos capitalistas do que às/aos
trabalhadoras/es. Ou seja, o capital instala tanto elementos de
continuidade do modelo produtivo anterior quanto elementos de
descontinuidade, mas “retendo o caráter essencialmente capitalista
do modo de produção vigente e de seus pilares fundamentais”
(ANTUNES, 2008, p. 44).
Em um plano discursivo, o projeto neoliberal coloca um
determinado “envolvimento participativo” de trabalhadoras/es,
mesmo que, na prática, ataque as principais conquistas realizadas
pelo movimento das/os trabalhadoras/es, ao privatizar serviços,
desregulamentar e terceirizar o trabalho, mercantilizar os campos da
saúde, da educação, da seguridade social, etc, cortar direitos
trabalhistas e colocar no sujeito a responsabilidade por si mesmo e
pelo seu sucesso e/ou seu fracasso pessoal e profissional. Para
Thayene Santos e Thaylla Paixão (2014), o sujeito, para o
neoliberalismo, é “a-histórico”, determinado por meio de seus
interesses individuais e deslocado da coletividade.
O indivíduo para o neoliberalismo é, portanto, o resultado da
“sorte”, que determina as suas aptidões e capacidades naturais.
47
É fruto de uma medida arbitrária que estabelece o tipo de
família, o meio cultural e as oportunidades que aparecem ao
longo da vida sem a intervenção do outro (BIANCHETTI,
2005). É um sujeito “a-histórico” que se move por meio de seu
interesse e dispensa a noção de totalidade [...] (SANTOS;
PAIXÃO, 2014, p. 74).
A mundialização do capital eleva o processo de expansão do
capital para outro nível, perante o surgimento de novos setores, de
novas formas de fornecer serviços e de novos mercados. A
conjuntura mundial, nesse período, se torna bastante instável,
dispondo de um alto índice de desemprego estrutural e de uma
marginalização dos países periféricos com relação a uma
concorrência internacional intensa e produtora de grandes conflitos
comerciais. A classe trabalhadora, diante da forma flexibilizada de
acumulação capitalista embasada na empresa enxuta e na
reengenharia, fragmentou-se e complexificou-se. Se, por um lado,
em alguns setores, houve uma intelectualização do trabalho, de outro
lado, muitos campos do trabalho foram desqualificados e
precarizados. De todas/os as/os trabalhadoras/es, no entanto, seja em
uma empresa principal ou em uma empresa terceirizada, exigem-se
flexibilidade, eficiência e criatividade para sua conservação no
trabalho.
Ricardo Antunes (2008, p. 48) analisa que “quanto mais se
distancia das empresas principais, maior tende a ser a precarização
do trabalho”. Quanto maior a precarização do trabalho, mais os
processos de alienação e de exploração do trabalho se aprofundam.
No neoliberalismo, o trabalho precarizado e alienado é, cada vez
mais, externo ao trabalhador, na medida que degrada a vida e as
condições de existência do sujeito (SANTOS; PAIXÃO, 2014).
Assim, o sujeito só permanece em um trabalho tão degradante
48
porque não tem outra oportunidade, outra opção. Essa realidade é
vivenciada por Rita (2022), uma catadora que trabalha na
COOCASSIS há mais de dez anos: “a gente que é mais velho aqui
na Cooperativa quer que os mais novos arrumem um trabalho
melhor. A gente tá aqui porque não tem mais oportunidade lá fora,
ainda mais pra quem é mais idoso”.
No Brasil, o neoliberalismo avança no contexto da década de
1980, a partir das reformas neoliberais implementadas pelo governo
brasileiro, amplamente apoiadas pelos Estados Unidos (SCOLESO,
2017). O impacto das reformas neoliberais no Brasil se deu de forma
acentuada porque promoveu, cada vez mais, a precarização da classe
trabalhadora, num país em que os direitos sociais e trabalhistas já
eram frágeis. A partir da promessa da modernização, o capitalismo
neoliberal impulsionou, principalmente em países periféricos, o
crescimento da pobreza, das dívidas, da inflação e da dependência
aos países centrais.
Perante o ideário neoliberal, a precarização do trabalho no
Brasil conduziu as classes trabalhadoras a um alto índice de
desemprego, exploração, condições insalubres de trabalho, ausência
de perspectivas de carreira e a um mercado de trabalho escasso e
inconsistente. Segundo Fabiana Scoleso (2017, p. 203), as novas
categorias de trabalho, que emergem em um cenário de flexibilização
e desregulamentação, orientou as/os trabalhadoras/es a uma
“fragmentação/individualização das suas relações de fabris que
criaram grandes dificuldades para preservar os laços de solidariedade
tão presentes em décadas anteriores no movimento operário e
sindical”.
Henrique Novaes e Julio Okumura (2020) assinalam que a
miséria e o desemprego cresceram significativamente, aproxima-
damente, na década de 1990. Foi, então, na gestão de Fernando
49
Henrique Cardoso (1995-2003) que o neoliberalismo se
aprofundou, com a reforma do Estado e com as privatizações. A
partir da intensificação do nível de desigualdade social, o país
incorpora, de um lado, alguns poucos ricos que acumulam riquezas
e constroem diversas mansões, e de outro, muitos pobres, que
recebem um salário mínimo (ou, muitas vezes, não chega nem a um
salário mínimo) trabalhando em bicos e/ou procurando por alguma
alternativa de trabalho e renda. Tendo isso em vista, ponderam:
[...] a juventude periférica do norte ao sul do país, que estuda
em escolas precárias, com famílias desestruturadas (onde pais e
mães não encontram facilmente emprego com carteiras
assinada), não encontrará emprego e um posto no disputado
mercado de trabalho. Nos anos 1990 multiplicam-se no país
todas as formas de subemprego, trabalho informal e trabalho
precário. O Estado passa a difundir as práticas do
“empreendedorismo” e do cooperativismo (com viés bastante
pragmático). São realizados inúmeros cursos de “reciclagem”
para trabalhadores tentarem encontrar uma forma de
sobrevivência, fora dos marcos da relação assalariada [...]
(NOVAES; OKUMURA, 2020, p. 150).
O processo de fragmentação da classe trabalhadora impactou
diretamente o movimento social das/os trabalhadoras/es.
Entretanto, com a ascensão ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2011), do Partido dos Trabalhadores (PT), a estratégia de
conciliar classes e conceder políticas de melhoria dos direitos das/os
trabalhadoras/es foi colocada em prática, o que parecia ser uma
esperança para as/os trabalhadoras/es. Esperança que se transformou
em um cenário desanimador, quando o Brasil passa por um golpe
em 2016, na gestão da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), que,
ao se opor à gestão política conciliadora de Lula, sofreu um Golpe,
50
que estava sendo articulado desde 2013. Tal cenário culminou na
eleição de Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) como principal
figura, que busca exterminar de vez com qualquer possibilidade de
conciliação ou de esperanças para as classes trabalhadoras
(NOVAES; OKUMURA, 2020).
A construção de políticas que auxiliassem as alternativas de
trabalho e renda, que garantiam a sobrevivência de muitas pessoas,
foi, entre o governo de Lula e Dilma, necessário uma vez que não há
trabalho no mercado formal no neoliberalismo para uma grande
parte das/os trabalhadoras/es. Uma das alternativas de trabalho e
renda encontrada pelas/os trabalhadoras/es foi o trabalho da catação
de materiais recicláveis. Em sua maioria, as pessoas não são catadoras
e catadores, mas se tornam. Zélia (2022), catadora que, nos dias
atuais, é motorista de um dos caminhões da COOCASSIS afirma
que não chegou no local interessada no trabalho porque “pensava
que tinha que revirar o lixo, para encontrar os materiais recicláveis.
Mas depois eu vi que era mais organizado, então eu fui me
acostumando e fui ficando […]”. Rodolfo, um dos fundadores da
Cooperativa, revela que
[...] não era catador antes. Eu trabalhava em empresa, em
fábrica. Mas fiquei desempregado e comecei a participar de um
grupo que se reunia sempre lá na Unesp, para falar do
desemprego, para arranjar emprego pra gente. No começo não
tinha nada, eu cheguei a trabalhar 90 dias sem receber nada, foi
muito difícil.
A união de trabalhadoras/es de alternativas de trabalho e
renda em grupos e organizações de Trabalho Associado e/ou em
iniciativas e Empreendimentos Econômicos Solidários por meio de
articulações realizadas, principalmente, pelos movimentos sociais e
51
pela universidade, inclusive na especificidade da categoria das/os
catadoras/es de materiais recicláveis, tem demonstrado ser
possibilidades no que tange ao enfrentamento ao desemprego, uma
vez que esses tipos de trabalhos, quando feito de forma
individualizada, submete a trabalhadora e o trabalhador a relações
de maior exploração, sem laços trabalhistas e ainda mais alienadas e
instáveis. Pode-se pensar, no entanto, em uma política de destruição
dessas organizações, movimentações e políticas na gestão de
Bolsonaro, o que aprofundamos mais adiante.
Trabalho Associado e o movimento da Economia Solidária como
lutas de resistência ao capitalismo
Como vimos anteriormente, a partir do neoliberalismo, o
discurso da falsa existência de uma compensação entre os setores
econômicos, sociais e políticos é expandido de forma mais perversa,
com o propósito de precarizar ainda mais o trabalho, o que
intensifica a exploração e a capacidade de acumulação de capital.
Diante desse cenário, movimentos contrários se fazem emergentes,
de modo que consigamos sonhar e construir uma reconstrução das
estruturas, das relações e das práticas sociais, ainda que esse processo
seja complexo e demorado. Neusa Dal Ri (2010, p. 7) afirma que “a
história do capitalismo, desde o seu aparecimento, é também a
história das lutas de resistência e crítica aos seus valores e práticas
[...] é também a história do movimento operário popular”. Como
lutas de resistência ao capitalismo, o Trabalho Associado (de viés
democrático) surge na América Latina e a Economia Solidária
emerge no Brasil.
O Trabalho Associado é um fenômeno que surge a partir do
movimento de resistência das/os trabalhadoras/es, especialmente do
52
cooperativismo de trabalhadoras/es do início do século XIX. Na
Europa, diante das consequências sociais geradas pela revolução
industrial no século XIX, o associativismo emergiu como uma reação
das/os operárias/os e camponesas/es, sob formas de organização e de
gestão autônomas (GAIGER, 2009). O pensamento de Robert
Owen foi a fundamentação das primeiras comunidades cooperativas
e as teorias associativistas de Pierre Proudhon e Charles Fourier
contribuíram para a fundação das primeiras cooperativas de
trabalhadoras/es. Como teoria social, o associativismo possui como
pressupostos fundamentais a busca por uma economia de mercado
pautada por princípios não-capitalistas de cooperação e a defesa por
formas de organizações pluralistas (DAL RI, 2010).
O Trabalho Associado, no entanto, surge na década de 2000.
As Organizações de Trabalho Associado (OTAs), em princípio, se
davam por meio das cooperativas de trabalho e, após um tempo,
outras formas de organização foram aparecendo. Neusa Dal Ri
(2010, p. 7) analisa que há, no capitalismo, “uma tendência
estrutural à formação de organizações de trabalho associado”, e a
expansão dessas organizações ocorre de forma diferente nas diversas
épocas históricas, conforme o contexto social, econômico e político
estabelecido. Em épocas de crises econômicas e conflitos sociais,
períodos nos quais a insatisfação e o desequilíbrio provenientes das
contradições vividas pelo povo no capitalismo gera oposição e
resistência, o Trabalho Associado tende a se fortalecer.
Na Argentina, após a crise de 2001, o Trabalho Associado
foi marcado pela recuperação e ocupação de fábricas, decorrentes do
processo de falência e de fechamento das empresas. As/os
trabalhadoras/es, em fábricas recuperadas e ocupadas, se negam a
perder o posto de trabalho e começam a gerir a empresa
coletivamente (WIRTH, 2010). Henrique Novaes (2018) analisa
53
que, no Brasil, com o aprofundamento do neoliberalismo conduzido
pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), as
Organizações de Trabalho Associado também ganharam destaque a
partir da estratégia de recuperação de fábricas. Para o pesquisador,
De forma geral, as experiências que surgiram desde os anos
1980 e, sobretudo, nos anos 1990 no Brasil, foram motivadas
em grande medida pela crise profunda no mercado de trabalho,
e procuravam evitar o fechamento das empresas e dos postos de
trabalho envolvidos. Desde o início, não houve uma preocupa-
ção em constituir com as ERTs [Empresas Recuperadas pelos
Trabalhadores] um modelo alternativo de organização do
processo de produção que fosse além da geração de trabalho e
renda e pudesse servir de parâmetro para novos tipos de luta nas
demais empresas [...] (NOVAES, 2018, p. 124-125).
Para Neusa Dal Ri (2015), o Trabalho Associado surge com
o crescimento do cooperativismo das/os trabalhadoras/es, da
economia social, da Economia Solidária, dos empreendimentos de
autogestão, e outras denominações que abrangem as formas de auto-
organização das/os trabalhadoras/es. A partir da proliferação das
Organizações de Trabalho Associado, pode-se analisar que elas nem
sempre possuem a mesma origem e nem sempre adotam a mesma
perspectiva e ideologia. Contudo, partilham de uma mesma
característica: quando adotam um viés mais democrático de
trabalho, podem ser considerados potenciais movimentos de
resistência às relações capitalistas de produção (SCOLESO, 2017).
Ioli Wirth (2010) analisa que o Trabalho Associado no Brasil
pode englobar diversas experiências e iniciativas de auto-organização
das/os trabalhadoras/es: cooperativas populares, associações de
trabalho agrícola ou urbano, empreendimentos informais e bancos
populares, nos quais, a partir da posse coletiva dos meios de
54
produção, da prática da autogestão e da distribuição de rendimentos,
exercem o trabalho. Para Neusa Dal Ri (2015, p. 117-118), as
Organizações de Trabalho Associado são formadas, ou por meio de
empresas falidas, ou por meio da decisão de um grupo, e são
constituídas a partir da aprovação, formal ou informalmente, de
uma regulamentação acerca das relações de trabalho da organização.
Tanto em uma modalidade, quanto em outra,
[...] a elaboração desta constituição corporativa é realizada pela
instância máxima de tomada de decisões que é a assembleia
geral dos trabalhadores. Diferentemente do assalariado que
pode ser demitido da empresa a qualquer momento, o
trabalhador de uma OTA, uma vez admitido como associado,
integra-se à comunidade de trabalho. [...] Em síntese, é
mediante um ato de vontade política societária que os
trabalhadores decidem constituir uma associação para organizar
o seu próprio trabalho, estabelecendo as normas e
procedimentos que definem parte significativa das relações
sociais do empreendimento de trabalho associado [...]
As organizações democráticas de Trabalho Associado
adotam características importantes para a luta das classes
trabalhadoras, uma vez que, ao rejeitar a prática e a ideologia do
trabalho assalariado, quando o excedente econômico do trabalho é
concentrado em apenas um grupo ou um/a das/os
socioproprietárias/os, no TA ele pode ser dividido entre todas/os
as/os trabalhadoras/es em partes iguais.
Além disso, as decisões dentro das Organizações de Trabalho
Associado são tomadas a partir de uma prática horizontalizada, das
assembleias gerais, com órgãos responsáveis por debater e por criar
propostas para a resolução de problemas. Nas OTAs em que o poder
se dá de forma mais descentralizada, há um envolvimento do
55
coletivo de trabalhadoras/es que possibilita oportunidade de tanto
homens quanto mulheres participarem das experiências
administrativas e políticas de uma gestão. Para Neusa Dal Ri (2015),
esse modo de organização do trabalho pode delinear relações de
trabalho que se diferem das que são constituídas nas empresas
capitalistas, nas quais as/os trabalhadoras/es não possuem nenhum
poder.
No entanto, como o capitalismo e a estrutura da sociedade
de classes promovem a desigualdade e se utilizam desta como
ferramenta de acumulação de capital, a gestão em uma OTA pode
reproduzir alguns princípios e valores capitalistas. Submetidas/os ao
sistema capitalista, a luta das/os trabalhadoras/es pela igualdade se
dá de forma complexa dentro de uma Organização de Trabalho
Associado, uma vez que questões referentes à desigualdade podem
nunca estar verdadeiramente solucionadas. Ainda que tentem
potencializar e desenvolver políticas para a educação, igualdade de
gênero e para preservação do ambiente, questões cada vez mais
emergentes para a constituição de práticas democráticas e
autogestionárias, que resistem ao trabalho assalariado e alienado,
transformam os valores e as relações sociais e produzem
conhecimento dentro do movimento das/os trabalhadoras/es, “o
trabalho associado na vigência da dominação do capital encontra-se
pressionado e o risco de involução democrática ou mesmo de
extinção aceira cada OTA” (DAL RI, 2015, p. 117). Para Neusa Dal
Ri (2015), as práticas de Trabalho Associado no capitalismo se
constituem enquanto experiências contraditórias, e as relações
democráticas que, em tese, podem ser construídas, e que são
favoráveis às/aos trabalhadoras/es, estão submetidas a essas
contradições.
56
O fenômeno da Economia Solidária também emerge como
um movimento de resistência ao capitalismo, e engloba experiências
e relações potentes, mas contraditórias em sua prática. É importante
ressaltar, antes de detalharmos o fenômeno, que ele se diferencia
teórica e epistemologicamente do Trabalho Associado, apesar de
encontrarmos pontos em comum entre eles.
Dentro do próprio fenômeno da Economia Solidária,
encontramos divergências no que se refere às perspectivas das/os
pesquisadoras/es da área. Não existe, portanto, “qualquer tipo de
unanimidade no que se refere ao conceito de Economia Solidária”
(LEITE, 2009, p. 34). Aqui, tratamos a Economia Solidária como
um movimento que emerge de forma mais consolidada
posteriormente, na década de 1990, como uma possibilidade de
geração de trabalho e renda e como outro modo de organização,
diferenciado do modo capitalista. Se estrutura, portanto, como uma
reação frente à crise no mercado de trabalho, como uma forma de
inserir o contingente de trabalhadoras/es desempregadas/os na
cadeia produtiva. Para Paul Singer (2002), a Economia Solidária
pode ser considerada uma saída não-capitalista para o desemprego,
enquanto a economia social não é estabelecida, cujos princípios
principais são baseados na propriedade coletiva.
No Brasil, ao ganhar destaque na segunda metade da década
de 1990, a Economia Solidária se consolida enquanto um
movimento social com o auxílio de organizações não
governamentais, ações governamentais, outros movimentos sociais,
sociedade civil e instituões de ensino superior. É a partir dos
Projetos Alternativos Comunitários (PACS) financiados pelas
Cáritas Diocesana, de fábricas recuperadas pelas/os trabalhadoras/es,
do Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA) e dos grupos
populares de produção incubados pelas Incubadoras Tecnológicas
57
de Cooperativas Populares (ITCPS) que a Economia Solidária se
desenvolveu de forma mais intensa (SINGER, 2002).
No início, as experiências de Economia Solidária apareciam
como iniciativas econômicas pautadas pela livre associação, pela
cooperação e pela autogestão. Após sua expansão, possibilitada por
diversas atrizes e atores sociais, as práticas se ampliaram, e
atualmente, elas abarcam diferentes categorias sociais e modos de
organização, como unidades informais de trabalho, associações de
produtores e consumidores, empreendimentos recuperados pelas/os
trabalhadoras/es, empreendimentos de várias frentes de trabalho,
como artesanato, costura, agroecologia, reciclagem e etc (GAIGER;
KUYVEN, 2019).
Nos dias atuais, as/os trabalhadoras/es podem se organizar
formalmente a partir dos Empreendimentos Econômicos Solidários
(EESs). Os EESs são associações e/ou cooperativas populares formais
que adotam os princípios da ES no modo de organizar e de realizar
o trabalho. Para Aline dos Santos (2014, p. 196), os EESs
“configuram formas coletivas de organização do trabalho em que a
relação entre capital e trabalho não está posta da forma tradicional”.
O desenvolvimento de um EES, para a pesquisadora, se dá a partir
de um tipo de gestão que detém importante significado cultural e
político, que pode oferecer condições para a superação da situação
de privação das habilidades políticas e materiais das/os
trabalhadoras/es, um ponto que podemos refletir que a Economia
Solidária possui em comum com o Trabalho Associado.
A Economia Solidária, enquanto movimento social, possui
não só o objetivo de possibilitar a posse coletiva dos bens e dos meios
de produção, mas também o de “difundir no país (ou no mundo)
um modo democrático e igualitário de organizar atividades
econômicas” (SINGER, 2002, p. 16). A consolidação da Economia
58
Solidária enquanto um movimento social se intensifica a partir do
primeiro Fórum Social Mundial (FSM)
2
, em 2001. Nesse primeiro
encontro, foi articulado um Grupo de Trabalho de Economia
Solidária - GT Nacional, espaço pensado para a mobilização de
iniciativas para caracterizar o movimento. Os representantes do GT
Nacional desenvolveram debates regionais e estaduais antes do
próximo fórum, a fim de reunir as perspectivas de todas/os as/os
envolvidas/os com a temática, principalmente as/os
trabalhadoras/es. Essa articulação fomentou a origem das Plenárias
Nacionais de Economia Solidária (PNES). As plenárias, diante de
tantas questões, levavam encaminhamentos ao poder público, na
gestão do Lula, e em especial, a questão da formação do Fórum
Brasileiro de Economia Solidária - FBES (SANTOS, 2014).
Com as plenárias, construiu-se uma comissão encarregada de
negociar, junto à gestão do Lula, a introdução das políticas públicas
de Economia Solidária na agenda do governo. Tal mobilização deu
origem à SENAES, alocada no Ministério do Trabalho e Emprego,
em 2003. Após a posse de Paul Singer, como secretário nacional da
Economia Solidária, o FBES foi criado. Quando o movimento
começa a ganhar evidência, com o planejamento e efetivação de
políticas públicas, os fóruns estaduais, regionais e municipais
começaram também a aparecer, incentivados por processos
estipulados pela SENAES e pelo FBES, como por exemplo por meio
de grupos de trabalho. Em 2006, com a Conferência Nacional de
Economia Solidária (CONAES), diretrizes para a política de
Economia Solidária foram discutidas e deliberadas. Para Aline dos
2
O Fórum Social Mundial (FSM) é um espaço de articulação entre as organizações da
sociedade civil, os movimentos sociais, redes e ONGs, no qual o debate, a reflexão e a troca
de experiências democráticas são aprofundadas, de modo a constituir uma luta contra as
políticas neoliberais e ao capitalismo como um todo.
59
Santos (2014, p. 200), o evento “foi de suma importância para o
movimento que constituiu bases para uma política de Estado, e não
só de governo, e também porque aproximou o debate entre Estado
e sociedade”. A CONAES deu base para a elaboração do Conselho
Nacional de Economia Solidária.
A criação do FBES e de uma Plataforma da Economia
Solidária se concretizam na terceira plenária, na mesma época em
que a SENAES foi implementada. Para Gabriela Cunha e Aline dos
Santos (2011), a constituição das instâncias da Economia Solidária
no plano nacional acontece em um mesmo momento histórico, por
meio de processos interligados. A quarta plenária representou um
avanço importante do movimento, uma vez que as discussões
giraram em torno das bandeiras levantadas pelo movimento. Dentre
essas bandeiras, destaca-se a ideia de que o movimento da Economia
Solidária é plural, constituído por uma diversidade de atrizes e atores
sociais. Além das/os trabalhadoras/es organizadas/os em muitas
frentes de trabalho, agentes do poder público, instituições e
entidades de apoio e fomento vinculadas a outros movimentos
sociais e às universidades também compõem o movimento.
Gabriel Kraychete (2021) analisa que, a partir da década de
2000, o termo da Economia Solidária é inserido nos estudos
acadêmicos, no discurso dos movimentos sociais e nas discussões
políticas em programas governamentais. Para o autor,
Em geral, por “economia solidária” entendem-se as diferentes
iniciativas econômicas desenvolvidas de forma autogestionária
pelos trabalhadores. Ou seja, abrange as diferentes modalidades
de trabalho associativo para a produção, comercialização,
prestação de serviços, trocas, crédito e consumo, tendo, entre
os seus traços característicos, a gestão autônoma, participativa e
democrática, a exemplo das associações e grupos de produtores;
60
cooperativas de agricultura familiar; de coleta e reciclagem;
empresas recuperadas e assumidas pelos trabalhadores; redes de
produção, comercialização e consumo; bancos comunitários;
cooperativas de crédito e clubes de trocas, cujos sócios são
trabalhadores urbanos e rurais, que realizam atividades de
produção de bens ou serviços materiais ou simbólicos
(KRAYCHETE, 2021, p. 58).
Para Ana Maria de Carvalho (2008, p. 38), a Economia
Solidária, nos dias atuais, é constituída por algumas práticas, como,
por exemplo, as “redes de troca ou de compra e de venda, o
consumo solidário, o apoio mútuo, as cooperativas de crédito e as
políticas públicas que viabilizam os empreendimentos populares”.
As ideias e princípios que fundamentam a Economia Solidária
decorrem da possibilidade do desenvolvimento de uma economia
que se ampare no trabalho, e não no lucro. Assim, as experiências de
trabalho na Economia Solidária, como nas experiências de Trabalho
Associado, podem ser compreendidas como diferentes das
experiências de trabalho hegemônica, o que significa novos hábitos,
novas práticas, novos saberes orientados por uma outra estruturação
do trabalho, da gestão e das relações sociais, na qual a trabalhadora
e o trabalhador voltam a se relacionar diretamente com o produto
do seu trabalho, uma vez que, em tese, a gestão é participativa,
coletiva e democrática e as relações sociais são horizontais e não
verticais.
As práticas de Economia Solidária também podem, no
entanto, reproduzir os princípios e valores capitalistas, o que se
constitui enquanto uma contradição a ser analisada. Apesar disso, as
experiências da Economia Solidária estabelecem alguns processos de
mudanças na categoria do trabalho e nas relações sociais, o que
caracteriza “um contraponto significativo ao capital” (SANTOS,
61
2014, p. 198). Estas experiências revelam a necessidade de uma
organização complexa, capaz de contestar a sociedade desigual e é de
suma importância compreender como a união destas experiências faz
da Economia Solidária um movimento social com perspectiva de
luta.
Apesar da existência de uma pluralidade de experiências e de
perspectivas dentro do próprio movimento brasileiro de Economia
Solidária, o protagonismo das/os trabalhadoras/es é uma
compreensão comum entre elas. O empreendimento e/ou a
iniciativa de Economia Solidária são considerados como centrais
para as relações solidárias, o que vai além da relação de produção,
uma vez que a formação de sujeitos coletivos “capazes de contrapor-
se ao capital não advém apenas do contraponto próprio do processo
de produção, mas também de um processo de luta mais geral que vai
além da relação de produção” (SANTOS, 2014, p. 197). As
experiências de Economia Solidária tiveram grande destaque no
cenário econômico, político e social brasileiro, de forma que,
atualmente, mobilizam cerca de doze bilhões de reais por ano, com
mais de 6,8 mil cooperativas cadastradas no país, responsáveis pela
geração de aproximadamente 400 mil trabalhos (RBA, 2019).
As/os trabalhadoras/es da Economia Solidária constroem em
conjunto com outras instituições, como a universidade, motivações,
recursos e lutas (DEMOUSTIER, 2006). Os grupos e
empreendimentos populares, da Economia Solidária e de Trabalho
Associado, podem possibilitar o aprendizado mútuo e o
estabelecimento de articulações, ao relacionar o poder de decisão à
participação nas atividades do empreendimento e não à propriedade
do capital. No entanto, isso não quer dizer que os empreendimentos,
no contexto capitalista no qual estão inseridos, não enfrentam
diversos desafios no que tange à tarefa de articular e conciliar as
62
lógicas econômicas, culturais, sociais e políticas, a vida individual e
o engajamento coletivo. Muitas contradições são postas no cotidiano
das/os trabalhadoras/es da Economia Solidária e do Trabalho
Associado. Mas, ao procurarem realizar um trabalho coletivo com
viés democrático a partir de relações mais horizontalizadas, o
trabalho recupera seu potencial educativo, o que aprofundamos mais
adiante sob o termo de autoeducação.
Segundo o último mapeamento realizado pela SENAES em
2013, existem 591 empreendimentos de Economia Solidária no
Brasil atuando no campo da reciclagem (ATLAS, 2014). A maior
parte dos grupos se encontra na informalidade, seguida pela forma
de associação e de cooperativa. Além disso, a maior parte dos
empreendimentos está localizada na região sudeste do país, com
maior participação de mulheres sócias. Sendo assim, muitas/os
trabalhadoras/es informais se organizam e atuam nos princípios da
Economia Solidária, buscando se amparar na propriedade coletiva
e/ou associada, pela distribuição de rendimentos de maneira mais
igualitária e lutam pela solidariedade e pela atribuição de sentido ao
trabalho e de atribuição de valor às trabalhadoras e aos trabalhadores
(GAIGER, 2009). Como as/os trabalhadoras/es passam uma boa
parte dos dias no ambiente de trabalho, o local, as relações ali
construídas, e o próprio fazer do trabalho configuram novas relações,
uma vez que a categoria do trabalho está diretamente relacionada à
formação de identidade e ao sentimento de pertencimento do
sujeito.
Paul Singer (2002) examina que a pesquisa é fundamental
para a obtenção do conhecimento sobre a realidade da Economia
Solidária no Brasil e em outros países, porque é por meio dela que
podemos sistematizar as experiências e traçar análises sobre elas para
a geração de conjecturas e orientações teóricas para tornar essas
63
economias mais efetivas. Pelas pesquisas, pode-se perceber que a
situação atual da política de Economia Solidária no Brasil apresenta
um grande retrocesso, visto que a política voltada para a Economia
Solidária atualmente é gerenciada apenas por meio do
acompanhamento de poucos projetos que foram contemplados em
editais, elaborados na gestão anterior.
Além disso, com o desmonte da SENAES em 2017 e
extinção em 2019, a Economia Solidária foi retirada como tema
importante na agenda do governo. Com o MTE também extinto, a
temática da Economia Solidária passa a ser então minimamente
alocada no Ministério da Cidadania e na Secretaria de Inclusão
Social e Produtiva Urbana. Nesse cenário, os trabalhos em
Economia Solidária se transformam em políticas de assistência social
e renda (CHIARELLO, 2020). A economia é dominada pelo capital
e outras economias se constituem enquanto formas de sobrevivência,
que vão sendo atacadas conforme as estratégias de dominação e
tomando rumos complexos e difíceis.
Caio Chiarello (2020) assinala, a partir da análise de dados
do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), que
o orçamento destinado à Economia Solidária sofreu grande queda
de 2013 a 2019, época em que o golpe já estava sendo articulado e
executado. No gráfico a seguir, elaborado por Wagner Molina et al.
(2020, p. 178), podemos visualizar tal retrocesso de forma mais
nítida, que acompanha os demais retrocessos e desmontes
implementados a partir do neoliberalismo nos campos da educação,
saúde, assistência social e etc:
64
Durante o período de crise sanitária decorrente da pandemia
da COVID-19, políticas emergenciais foram adotadas pelos
governos dos países como forma de enfrentar problemas financeiros
e sociais. No entanto, especialmente no Brasil, no qual as políticas
sociais já eram frágeis, elas têm sido poucas, insuficientes e incapazes
de abranger todo o contingente de pessoas em situação de
desemprego e/ou de vulnerabilidade. Para Wagner Molina et al.
(2020), a pandemia deixa ainda mais exposta a lógica de produção
das desigualdades brasileiras, na medida que a orientação de
isolamento social, principal medida de proteção ao vírus, é
impossível de ser colocada em prática pela maioria da população do
país, o que gera uma sobrecarga dos serviços de saúde e um
crescimento significativo do índice de mortes pela doença.
Mesmo antes da pandemia, as iniciativas e redes de
Economia Solidária têm proporcionado a subsistência econômica e
a inclusão socioprodutiva de uma boa parcela da população. A
pandemia colocou em evidência a importância da promoção da
Economia Solidária enquanto estratégia de redução das
consequências e das desigualdades da atual conjuntura brasileira e
65
demonstrou as potencialidades da Economia Solidária em meio às
crises: ainda que os vínculos e as condições de trabalho fossem
dificultados, as estratégias elaboradas em rede para o enfrentamento
desta conjuntura possibilitaram novos caminhos para essas/es
trabalhadoras/es.
Wagner Molina et al. (2020) analisa algumas das estratégias
adotadas por algumas ITCPs
3
para o acompanhamento e
andamento do trabalho nos empreendimentos de Economia
Solidária, nas quais fizeram campanhas de arrecadação de produtos
de higiene para as/os catadoras/es, devido à ausência da promoção
de condições para essas/es trabalhadoras/es realizarem seu trabalho
de forma mais segura, por parte do poder público, com quem as/os
trabalhadoras/es tinham contrato. Assim, várias ITCPs e redes de
Economia Solidária se juntaram para viabilizar doações, trocas,
serviços, aquisição de produtos, cestas agroecológicas, o que auxiliou
as/os trabalhadoras/es no enfrentamento das consequências drásticas
que a pandemia da COVID-19 potencializou em suas vidas.
Para além de uma construção de alternativas de trabalho e
renda para pessoas que não foram e não são inseridas no mercado de
trabalho formal por diversas questões, o movimento da Economia
Solidária tem demonstrado possibilidades no que tange à luta por
um futuro diferente, por processos de trabalho não alienados e
produtores de sentido à vida humana, ao buscar a constituição de
redes, da produção responsável e respeitosa com os bens naturais, de
uma economia que não perca de vista o social e que vislumbre a
distribuição e não a concentração de riquezas.
A disseminação do coronavírus e as consequentes medidas
de segurança promovidas pela Organização Mundial da Saúde
3
Veremos, no Capítulo 3, mais considerações sobre as ITCPs.
66
(OMS), principalmente em países periféricos, têm demonstrado a
insuficiência das políticas neoliberais que vêm sendo
implementadas. No cenário brasileiro, presencia-se uma
necropolítica
4
implementada pelo desgoverno que terminou em
2022, na qual, há uma dicotomia entre a vida e a economia, e quem
morre, geralmente, é quem precisa lutar. Este processo, no entanto,
segundo Wagner Molina et al. (2020), é escancarado com a
pandemia, já que a gestão do governo Bolsonaro (2018-2022)
operou um genocídio escancarado dos pobres, trabalhadoras/es,
das/os catadoras/es de materiais recicláveis e de mulheres,
especialmente mulheres negras. As políticas e os recursos voltados,
por exemplo, para as/os trabalhadoras/es e para as entidades de apoio
e de fomento à Economia Solidária se encontram enfraquecidas, em
prol da promoção dos interesses da classe privilegiada, o que indica
que “a crise econômica decorrente da irrupção da epidemia se
sobrepõe a uma outra crise - econômica e política - deflagrada
anteriormente e que não havia sido superada” (MOLINA et al.,
2020, p. 173).
Mas este processo não se deu sem resistência, ou seja, sem os
movimentos populares e sem a sua articulação com a sociedade civil,
que denuncia e cobra por políticas de garantia de direitos. Um desses
movimentos é constituído pelas iniciativas de autogestão, de
Trabalho Associado e de Economia Solidária, que ao resgatar o papel
social da economia, enfrenta a classe hegemônica, as dificuldades e
as injustiças.
Em uma pesquisa realizada por Adalberto Azevedo et al.
(2022, p. 20) com organizações de catadoras/es de materiais
recicláveis foram identificados diversos impactos da ausência de
4
Necropolítica é um termo cunhado por Achille Mbembe (2017) para explicar a política
de morte implementada pelo Estado.
67
gestão da pandemia da COVID-19, em 32 cidades do estado de São
Paulo. Ainda que muito expostas/os aos riscos de contaminação pelo
vírus, “pouco foi feito pelos parceiros públicos e privados em termos
de prevenção”. Grupos que contam com a parceria do poder público
e de outras entidades conseguiram mais apoio financeiro durante o
período, mas consistiu em uma assistência bastante precária e mal
distribuída. Nas 32 cidades estudadas, o suporte fornecido às
organizações pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR) e de redes de cooperativas foi extremamente
importante para a continuidade dos empreendimentos.
A categoria das/os catadoras/es de materiais recicláveis tem
se organizado, nos últimos anos, pela Autogestão, pelo Trabalho
Associado e/ou pela Economia Solidária, como forma de obter
melhores condições de vida e de trabalho. No Anuário da
Reciclagem, foram encontradas e analisadas 1.850 organizações de
catadoras/es distribuídas por todos os estados do país. É também a
partir dos princípios do cooperativismo das/os trabalhadoras/es que
a categoria tem trabalhado, que, para Marcio Magera (2003), podem
ser definidos como: cooperação entre os grupos, preocupação com a
comunidade, adesão livre e voluntária, controle democrático
pelas/os sócias/os, participação econômica, autonomia e
independência, educação, treinamento e informação. Portanto, em
uma cooperativa popular de catadoras/es, as/os trabalhadoras/es
“tomam as decisões em assembleias, realizando assim uma gestão
democrática e participativa, contemplando as ideias e opiniões de
todos os membros” (PEREIRA; SECCO; CARVALHO, 2014,
176).
68
O trabalho da catação de materiais recicláveis como alternativa de
trabalho e renda no capitalismo neoliberal
Para Antônio Bosi (2008, p. 102), “a existência de pessoas
que vivem do lixo não é recente no Brasil”. Quando Manuel
Bandeira escreve o poema O Bicho, em 1947, revela a existência de
pessoas que catam comida entre os resíduos nos lixos e anuncia a
desigualdade econômica e social já vivida anteriormente no país.
As/os catadoras/es de materiais recicláveis, no entanto, se expandem
em um contexto diferenciado, no qual alguns materiais descartados
pela sociedade e pelas instituições podem ser reutilizados e vendidos
enquanto mercadorias. Alguns estudos revelam que as/os
catadoras/es de materiais recicláveis já exerciam o trabalho desde o
início do século vinte (LESSA, 2000). No Brasil, há estudos que
constatam a presença das/os catadoras/es desde a década de 1950
(SILVA, 2006).
Contraditoriamente, é “o capitalismo que gera a matéria e
que exclui estes trabalhadores” (MARTINS et al., 2016, p. 88).
Como já visto anteriormente, a partir da década de 1970, o mundo
passa por diversas transformações no que tange à crise do capital e à
expansão do neoliberalismo. Uma delas consiste na geração e na
gestão dos resíduos sólidos, que eram destinados aos aterros
sanitários e aos lixões, com o lixo orgânico. A emergência de outra
destinação para os materiais recicláveis se torna uma questão
ambiental pública preocupante uma vez que, com a urbanização e
com as modificações do processo produtivo, o consumo exacerbado
de embalagens recicláveis é acentuado de forma significativa, o que
acelerou a poluição e o aquecimento global. Ademais, devido ao
cenário de desemprego estrutural e de desregulamentação do
trabalho, o trabalho da catação de materiais recicláveis se tornou
69
uma alternativa de trabalho e renda para uma parcela das classes
trabalhadoras.
Para Ioli Wirth (2010), a geração intensa de resíduos sólidos
demonstra a insustentabilidade da conservação do processo
capitalista. É só a partir do momento que a reciclagem passa a ser
um projeto viável para o capital que a temática se transforma em
uma demanda pública. A reciclagem de resíduos sólidos revelou-se
como uma necessidade na América Latina quando o segmento de
trabalhadoras/es que vive do trabalho da catação de materiais
recicláveis nos lixões e nas ruas começou a se expandir e a se
consolidar enquanto categoria bastante numerosa no mundo do
trabalho. No início, tal atividade era exercida apenas de forma
individual, mas, nos últimos anos, a categoria tem trabalhado sob a
forma de cooperativas e/ou associações de trabalho (WIRTH,
2010).
A gestão dos resíduos sólidos passa a ser, não só uma questão
ambiental, mas uma séria questão social. A partir da segunda metade
dos anos 1980, com a proliferação das associações e das cooperativas
de catadoras/es nas capitais e em algumas cidades do interior e com
o crescimento da quantidade de catadoras/es individuais é que a
reciclagem em larga escala pôde ser viabilizada no Brasil. Com o
barateamento da tarefa de coleta e da separação dos materiais e com
a estipulação de uma remuneração para as/os catadoras/es que
compensassem os investimentos tecnológicos empregados no setor,
o projeto se mostrou lucrativo. Na cadeia produtiva da reciclagem,
iniciada pelas indústrias por meio da produção de mercadorias, as/os
catadoras/es realizam a maior e a mais precária parte do trabalho,
que detém, no entanto, o menor valor agregado (BOSI, 2008).
Ainda, pelo fato do país não reciclar tudo o que deveria, perdiam-se
aproximadamente oito bilhões de reais todos os anos, o que é
70
lamentável quando nos deparamos com a renda mensal da catadora
e do catador.
Fabiana Grecco (2016) pondera que se, por um lado, o
processo da reciclagem reduz o impacto danoso da extração de
matéria-prima das fontes naturais e o descarte impróprio dos
produtos na última etapa do consumo, por outro, isenta a indústria
que usa a matéria-prima reciclada e oferece a ela a simpatia das/os
consumidoras/es preocupadas/os com a ‘sustentabilidade’ e diminui
as despesas com os processos produtivos, ampliando, por sua vez, as
taxas de lucro. Para Antonio Cezar Leal et al. (2002, p. 179), a
reciclagem é considerada, hoje, como uma possibilidade de
recuperar o lucro dos resíduos sólidos utilizados no ciclo de
produção das mercadorias, o que pode indicar um interesse central
do sistema produtivo na obtenção de lucro e não na preservação do
meio ambiente, visto que há uma contradição muito grande: “como
preservar e estimular o consumo ao mesmo tempo?”.
O funcionamento da cadeia da reciclagem promove,
portanto, a falsa visão de que tal ação é essencialmente benéfica, que
auxilia na preservação ambiental e na solução de um dos maiores
problemas da humanidade nos dias atuais: a destinação do lixo.
Entretanto, a reintrodução dos resíduos sólidos no ciclo produtivo
não tem a preservação como objetivo fundamental, mas sim, a
reprodução do capital:
Os resíduos recicláveis, que apesar de estarem abandonados e
poderem ser coletados livremente pelos trabalhadores
catadores, não brotam naturalmente aqui ou acolá feito erva
daninha, são produtos do trabalho, uma matéria sob a qual
incidiu a energia e o potencial criativo humano que o
transformou em um objeto, mercadoria, que mesmo depois de
ter sido utilizado e descartado, ainda continua contendo em si
71
essa qualidade que o diferencia dos demais objetos sob os quais
ainda não houve a incidência do trabalho humano (LEAL et al.,
2002, p. 183).
Esse cenário evidencia as condições precárias do trabalho da
catação. Expandido enquanto alternativa de geração de trabalho e
renda no contexto de crise do capital e de expansão do
neoliberalismo, o trabalho da catação é uma forma de perpetuar a
precarização do trabalho. O capital absorve um contingente de
trabalhadoras/es excluídas/os e promove “oportunidades”de trabalho
na cadeia da reciclagem como uma falsa solução para a problemática
do desemprego, ao passo que essas/es trabalhadoras/es subsistem em
meio a uma baixa remuneração, a elevados riscos de acidentes de
trabalho, ao alto nível de periculosidade e, em alguns casos, de
insalubridade e à ausência de direitos trabalhistas e de
reconhecimento social pelo poder público e pela sociedade, ou seja,
pelos próprios geradores de resíduos sólidos (GALON;
MARZIALE, 2016).
Segundo Cheila Basso e Ivone Silva (2020), as/os
catadoras/es, como trabalhadoras/es informais, não são
amparadas/os pela legislação trabalhista ou organização sindical,
precisando, muitas vezes, acatar as condições precárias de trabalho já
que não possuem outras opções. Ao analisar como o trabalho desse
segmento perpassa o corpo de uma parte das/os trabalhadoras/es, no
município de Erechim, Rio Grande do Sul, as pesquisadoras
observaram uma intensa mobilização do corpo no trabalho, como
“os agachamentos frequentes que realizam para pegar e rasgar as
sacolas plásticas nas quais chegam os materiais a serem reciclados
(BASSO; SILVA, 2020, p. 6).
72
As/os catadoras/es em questão relataram um grande desgaste
físico, sem distinção de gênero e/ou faixa etária. Revelaram também
uma adaptação à precariedade do trabalho e a outros riscos,
chegando até mesmo a deixar de senti-los na mesma intensidade,
como, por exemplo, riscos à pele e ao cheiro do local de trabalho. A
adaptação a essa realidade representa o quão cruel é a inclusão da
catadora e do catador no mundo do trabalho, cuja/o corpo “parece
bem treinado para se adaptar à imprevisibilidade do cotidiano de
quem sempre foi descartado pelo mercado de trabalho qualificado”
(MACIEL; GRILLO, 2009, p. 242).
Por meio da presente pesquisa na COOCASSIS, foi possível
observar reclamações e expressões de dores nas costas realizadas
pelas/os cooperadas/os: carregam bags
5
pesados, tambores e até
mesmo eletrodomésticos. Realizam a maior parte do trabalho em pé,
com posturas muitas vezes desconfortáveis e desfavoráveis à saúde,
especialmente na esteira, onde as mulheres catadoras, em sua maioria
de baixa estatura, precisam alcançar o material para efetuar a
separação. Rita (2002) declara o quão difícil foi se acostumar com o
cheiro do local, principalmente porque quando começou a trabalhar
na Cooperativa, o lixo orgânico também era triado na esteira.
Quando eu vim pra cá, na realidade eu não me
acostumava…por causa do cheiro do lixo, né?! Mas depois que
eu me acostumei com o cheiro do lixo, e vi que o pessoal que
era muito unido, sabe, então eu me acostumei mais aqui.
Sempre trabalhei de costureira mesmo. Aí quando eu vim pra
cá, aí me acostumei, aí tanto faz, ó, 14 anos! Bastante anos. Mas
no começo eu queria sair, por causa do cheiro. Eu passava o dia
sem pôr nada na minha boca, porque eu tinha nojo, sabe?
5
Os bags são sacos grandes que comportam os resíduos sólidos, para posteriormente serem
enfardados e estocados.
73
Depois você vai se acostumando, e tá nem aí…você nem tá
mais com o cheiro. É a mesma coisa como se não tivesse cheiro
(RITA, 2022)
Além do costume aos desgastes físicos do trabalho, as/os
catadoras/es também são colocadas/os em um lugar de adaptação a
situações de humilhação, opressão e negligência, seja pelo poder
público ou pela sociedade. Para Fabrício Maciel e André Grillo
(2009), a invisibilidade social que a catadora e o catador sofrem,
principalmente no cenário brasileiro e em outros países periféricos
nos quais a desigualdade social e econômica é intensa, vai além de
não perceber a presença física dessas/es trabalhadoras/es: as pessoas
percebem, mas ainda assim, mesmo sem intencionar, ignoram-na
totalmente, pronunciando uma irrelevância social.
Como mencionado, nem só para dormir na rua é preciso ser
invisível. Afinal, quem quer ver a miséria estampada em sua
paisagem cotidiana, quem quer encarar diariamente sua aversão
(velada, ou não) pela sujeira e degradação? Assim, para um
catador transitar pelos bairros dignos, mexer nos lixos
burgueses, deve respeitar o acordo tácito da invisibilidade. Basta
não buscar chamar a atenção que passará despercebido. Assim,
o cidadão de classe média pode evitar seu incômodo, e o
subcidadão que cata lixo pode evitar a humilhação. Ou melhor,
deixá-la latente (MACIEL; GRILLO, 2009, p. 266-267).
Cláudia da Costa e Cláudia Pato (2016) afirmam que, ao
sobreviver das sobras da sociedade consumidora, as/os catadoras/es
são vistas/os também como sobras. A catadora e o catador, vivendo
em uma situação de miséria extrema, muitas das vezes possuem
sentimentos que se relacionam de forma paradoxal: “vergonha,
quando sobrevive em condições desumanas e é comparado ao
74
produto que lhe gera renda e condições de sobrevivência”, mas
“orgulho, quando descobre a sua importância como agente
ambiental que contribui para as questões de preservação e
conservação” (COSTA; PATO, 2016, p. 99).
Segundo Marcio Magera (2003) e Mauro Scarpinatti (2008)
essas/es trabalhadoras/es chegam a carregar duzentos quilos de
materiais em um único dia de trabalho, circulando
aproximadamente 20 quilômetros e realizando jornadas intensas, de
pelo menos dez horas por dia. Existe uma preponderância do
trabalho individual da catadora e do catador, que, com seus
carrinhos e sacos de lixo, andam pela cidade a procura de materiais
descartados pela sociedade para comercializar com centros de
processamento, atravessadoras/es, sucateiras/os intermediárias/os,
pessoas e/ou instituições que geralmente possuem mais acesso aos
bens de produção, exercem outras etapas da cadeia de reciclagem que
não apenas a coleta e a triagem, e vendem os materiais diretamente
para a indústria, e que, geralmente, dispõe de uma infraestrutura que
as/os catadoras/es não possuem.
Quando exercem o trabalho de forma individual, acabam
vendendo os recicláveis por preços mínimos, o que demarca uma
relação mais profunda de exploração (PEREIRA; SECCO;
CARVALHO, 2014). O trabalho das/os catadoras/es em outros
países, como na Colômbia, chegou a ser proibido por lei, devido ao
preconceito e às péssimas condições de trabalho; em algumas cidades
brasileiras, inclusive, as/os catadoras/es já foram proibidas/os de
circular com suas carroças e carrinhos (BORTOLI, 2013).
A lógica capitalista tende ainda a colocar a catadora e o
catador como um sujeito inferior, que não possui conhecimento e
nem capacidade para produzir saberes. Segundo Jean Alves et al.
(2020), a sociedade capitalista atual não permite o reconhecimento
75
dos espaços e dos sujeitos marginalizados, atingidos pela miséria e
excluídos do mercado de trabalho formal. No entanto, a organização
das/os catadoras/es em empreendimentos de autogestão, Trabalho
Associado e em Empreendimentos Econômicos Solidários, em
articulação com a união da categoria em um movimento social, tem
demonstrado enorme potencial no que tange à melhoria de
condições sociais e de trabalho, à autoeducação, à formação e à
organização política que ocorrem nesses locais.
Para Ana Magni e Wanda Günther (2014), a participação
das/os catadoras/es em experiências de trabalho coletivo promove
uma identificação política, além de relações sociais embasadas na
solidariedade, tendo em vista um objetivo em comum: a oposição à
exploração, opressão e o individualismo que são impostos nas rotinas
das/os trabalhadoras/es a partir de princípios e de valores
perpetuados pelo capitalismo. Paul Singer (2002) avalia que a
formação de cooperativas populares de trabalho consiste em uma
alternativa construtiva para as/os catadoras/es de materiais
recicláveis, sendo necessária a união como defesa da exclusão
propiciada pelo mercado de trabalho formal e pelo sistema
capitalista como um todo. Logo, por meio de uma cooperativa de
catadoras/es, “é possível dar visibilidade ao trabalho realizado,
perante o poder público, firmando convênios, concorrendo a editais
para aquisição de equipamentos” (PEREIRA; SECCO;
CARVALHO, 2014, p. 176).
A união dessas/es trabalhadoras/es em organizações e em um
movimento social possibilitou as lutas pelo reconhecimento da
catadora e do catador no Brasil, o que viabilizou a identificação da
profissão, em 2002, pelo Ministério de Trabalho, no número de
5192 na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Segundo essa
classificação, as/os catadoras/es de materiais recicláveis são
76
responsáveis pela coleta, seleção, preparação e venda dos resíduos
sólidos, manutenção do local e dos equipamentos de trabalho,
divulgação do processo da reciclagem, e garantia da administração e
da segurança do trabalho (BRASIL, 2002).
Cinthia (2022), presidenta da COOCASSIS, analisa
mudanças sentidas pelas/os catadoras/es do local com as conquistas
realizadas por meio da união e da luta pelo reconhecimento das/os
catadoras/es enquanto trabalhadoras/es: “na rua, a gente era tratado
que nem mendigo, catando lixo, lixeiro…hoje não, hoje a gente já é
considerado como uma classe trabalhadora, porque a catação já é
uma profissão”. Leonardo (2022), secretário do Conselho de
Administração da COOCASSIS, declara que, nos últimos anos,
devido a um maior reconhecimento da categoria e à união do
segmento em um movimento social, não percebe a humilhação e a
invisibilidade social por parte da comunidade ou do poder público
da mesma forma que sentia no início do trabalho.
Antigamente, o pessoal humilhava bastante a gente aqui. Hoje,
melhorou bastante, porque naquela época, quem conhecia a
gente achava que a gente era mendigo, que a gente era lixeiro,
que a gente era saco de lixo, falava um monte né, hoje
não…hoje a gente é bem conhecido nas Cooperativas né, a
gente é conhecido no mundo inteiro, né? Até fora do Brasil a
gente é conhecido. Então a gente tem o movimento nosso assim
tem bastante conhecimento, com um monte de gente, antes
não, ficavam meio desfazendo da gente. Eu sentia um pouco de
vergonha porque a gente era humilhado, né? A gente era
excluído, a pessoa se desfazia da gente, você ia comprar uma
coisa, aí o cara falava que que você…né…o cartão que a gente
ia fazer, a gente falava que era catador de material reciclável,
alguns não conheciam, então desfaziam da gente, aí a gente
ficava meio sentido…hoje não, hoje qualquer lugar que você
77
vai, nossa, a gente é conhecido pra caramba. A catação hoje é
conhecida no mundo inteiro.
Apesar das/os catadoras/es de materiais recicláveis exercerem
o trabalho da catação de forma individual há mais de cinquenta anos
no Brasil, houve uma indefinição do número delas/es por um longo
período de tempo, até que as/os pesquisadoras/es se debruçassem
sobre o tema. Segundo o perfil estatístico traçado pela Women In
Informal Employment Globalizing and Organizing (WIEGO)
(2021), mais de 281 mil são reconhecidas/os enquanto catadoras/es
de materiais recicláveis informais no país. Nos últimos anos, o
número absoluto de catadoras/es aumentou, mas a porcentagem da
participação das/os catadoras/es na taxa de emprego total é de 0,1 e
0,4%. Outros estudos indicam que existem cerca de 400 a 600 mil
catadoras/es no Brasil, e destes, apenas 10% estão organizadas/os
formalmente em empreendimentos de trabalho (PAIVA, 2016).
Para Jean Alves et al. (2020, p. 125), “pouco se sabe sobre
estas pessoas, mas sabe-se menos ainda sobre como elas se articulam
em associações e movimentos sociais pautados pelas lógicas da
chamada Economia Solidária”. Ainda hoje, o mapeamento dessas/es
trabalhadoras/es é considerado uma tarefa complexa, tanto devido às
condições precáricas de vida que vivem as/os trabalhadoras/es que
desempenham a catação de forma individual quanto à complexidade
existente de formas de organização de catadoras/es. A seguir, vemos
algumas dessas possibilidades.
78
As organizações e o movimento social das/os catadoras/es: as lutas
de resistência da categoria ao capitalismo neoliberal
Quando unidas/os em um movimento social e em
organizações de trabalho coletivo, as/os catadoras/es podem possuir
alguns dos direitos garantidos, como o direito de recolhimento da
previdência social, descanso anual e semanal remunerados, dentre
outros, que modificam as condições de trabalho e de renda de forma
significativa. Ademais, por meio do movimento social e das
organizações de trabalho, as/os trabalhadoras/es podem negociar o
material coletado em uma maior quantidade e melhor qualidade, e
podem comercializar os produtos diretamente com as empresas e
indústrias, sem passar por atravessadoras/es ou intermediárias/os e/ou
sucateiras/os (PINHEL; ZANIN; MÔNACO, 2011).
Para Carlos Fé e Maurício Faria (2011), a realização do
trabalho da catação em organizações de trabalho coletivo de
catadoras e catadores é um fenômeno relativamente novo, que
estabelece uma nova realidade para o trabalho, anteriormente
exercido apenas de forma individualizada nas ruas e nos depósitos de
lixo. Maria Santos et al. (2011) descreve a primeira cooperativa
formada por catadoras/es que se tem registro no Brasil: a
Cooperativa de Catadores de Papel, Aparas e Materiais
Reaproveitáveis (Coopamare), fundada em 1989 na cidade de São
Paulo, inicialmente enquanto associação. A Coopamare é conhecida
como a primeira cooperativa a incorporar um programa de gestão
compartilhada dos resíduos sólidos, estabelecido pela prefeitura
municipal de São Paulo em 1990. No início, o empreendimento
contava com apenas vinte catadoras/es associadas/os, advindas/os de
projetos de apoio às/aos moradoras/es de rua da Organização de
Auxílio Fraterno (OAF).
79
Diogo de Sant’Ana e Daniela Metello (2016) analisam que
desde a década de 1960, muitas organizações não governamentais e
experiências apoiadas pela Igreja Católica buscavam uma
aproximação com o segmento das/os catadoras/es e da população de
rua (de onde advém muitas/os das/os catadoras/es de materiais
recicláveis), o que poderia apontar para a formação de um embrião
do movimento da categoria. Mas foi a partir da formalização do
Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis
(MNCR), em 2001, que a movimentação política desse grupo se
desenvolveu, e a luta pelas políticas públicas relativas ao setor pôde
ser intensificada.
A partir da organização de associações e cooperativas e de sua
articulação em um movimento social, o Movimento Nacional
dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), os catadores
têm se colocado como força política que influencia as políticas
públicas para o segmento. Essas políticas estão concentradas
principalmente em atividades de capacitação e para aquisição
de máquinas e equipamentos que gerem melhorias nas
condições de trabalho (WIRTH; FRAGA, 2012, p. 310).
O surgimento do MNCR se deu em um contexto de
expansão de diversas organizações de Autogestão, Trabalho
Associado e de Economia Solidária e dos movimentos sociais das/os
catadoras/es por toda a América Latina. Na década de 1990 a 2000,
com a intensificação da organização de grupos de diferentes níveis
de complexidade, os movimentos sociais do segmento passaram a se
mostrar necessários, e mais fortes se articulados. Por meio de
encontros e congressos, os Movimentos Nacionais de Catadores de
Materiais Recicláveis latinoamericanos se consolidaram com o
objetivo de representar os interesses do segmento. A Rede
80
Latinoamericana e do Caribe de Catadores (RedLACRE) foi uma
das organizações formadas por diversos Movimentos Nacionais de
Catadores de Materiais Recicláveis que emergiu com o I Congresso
Internacional de Recicladores na Colômbia. A Rede foi construída
com o objetivo de fortalecer a categoria, atuar coletivamente e
realizar uma articulação multissetorial. Atualmente, a Rede possui
17 países membros (REDLACRE, 2020).
O MNCR é um dos movimentos que compõem a
RedLACRE. O MNCR surgiu no ano de 1999 com o 1º Encontro
Nacional de Catadores de Papel. Foi formalizado em junho de 2001
com o 1º Congresso Nacional dos Catadores de Materiais
Recicláveis de Brasília, evento que reuniu mais de 1.700
catadoras/es. O movimento busca organizar as/os trabalhadoras/es
pelo Brasil e região em prol da valorização da categoria, e visa colocar
em prática seus principais princípios: a autogestão do trabalho, o
combate à exploração e à precarização do trabalho, o controle da
cadeia produtiva de reciclagem pelas/os catadoras/es e a
solidariedade de classe (MNCR, 2008).
O MNCR pretende, portanto, garantir o protagonismo do
segmento na cadeia da reciclagem, que é um ambiente de disputa e
de ampla exploração da categoria das/os catadoras/es. Os grupos
associados ao movimento, geralmente, pautam-se pela metodologia
da Autogestão, mas alguns organizam o trabalho a partir da
Economia Solidária. A estrutura organizativa do MNCR é composta
por uma Equipe de Articulação Nacional, com cinco membros (um
de cada região do país), por Coordenações Estaduais, Comitês
Regionais e Bases, que são cooperativas e associações vinculadas ao
movimento (MNCR, 2014). O MNCR é resultado de muita luta
nas relações de espaço e de poder existentes e intensificadas pelo
imperativo do capital. O movimento social e as primeiras
81
experiências de organização de catadoras/es se constituíram,
portanto, como “experiências políticas, que visavam, mais do que ao
simples reconhecimento da ocupação, ao exercício da cidadania”
(BASOLI; COSTA, 2017, p. 136).
Foi por meio da luta das/os catadoras/es, em articulação com
o MNCR e com outras entidades, que o Comitê Interministerial de
Inclusão Social de Catadores de Materiais Recicláveis foi criado, no
âmbito do governo federal, em 2003. Também, foi por meio do
decreto 5.940, de 2006, que as repartições públicas da administração
direta ou indireta começaram a precisar realizar a coleta seletiva e a
doar os resíduos sólidos para as organizações de catadoras/es dos
municípios brasileiros. Pela Lei 11.445/07, que prevê a alteração da
Política Nacional de Saneamento, a contratação, com dispensa de
licitação, das organizações de catadoras/es de materiais recicláveis
pelas administrações públicas foi permitida. No Ministério do
Desenvolvimento Social (MDS), iniciaram-se ações de apoio às/aos
catadoras/es, a fim de incluí-las/os em nível social e produtivo
(PEREIRA; TEIXEIRA, 2011).
Os programas de apoio foram desenvolvidos com a
participação do MNCR; antes de 2003, as/os catadoras/es recebiam
apoio com ações isoladas da Fundação Nacional de Saúde
(FUNASA), do Ministério da Saúde (MS) e da Fundação Banco do
Brasil (FBB), em parceria com o Compromisso Empresarial para a
Reciclagem (CEMPRE). Em 2003, a SENAES também começou a
atuar junto ao setor e às Fundações; mas é a partir de 2008 que um
programa específico para catadoras/es é criado e realizado: o
Programa Cataforte, da SENAES e do FBB. Este Programa possuía
o objetivo de fomentar “ações variadas de capacitação,
assessoramento técnico para consolidação dos empreendimentos de
catadores, bem como um plano de atuação em rede (SANT’ANA;
82
METELLO, 2016, p. 30). O Programa teve algumas edições como
o Cataforte - Logística Solidária em 2010, para a capacitação e
elaboração de planos de logística bem como para a doação de
caminhões para redes de catadoras/es e o Cataforte 3 - Negócios
Sustentáveis em Redes Solidárias, em 2013, com a capacitação,
construção e reformas dos locais de trabalho, aquisição de bens de
produção e assessoramento técnico.
As políticas públicas e os programas de apoio às/os
catadoras/es foram criados e estimulados no período do governo do
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), e de sua sucessora, Dilma
Rousseff (2011-2016). Tanto as/os catadoras/es quanto a população
de rua adquiram algum reconhecimento pelo poder público, por
meio dessas políticas, de programas e de normas. Tal realidade
corroborou para a elaboração da Lei nº 12.035/2010, que institui a
Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), a maior política
brasileira no que se refere à gestão de resíduos sólidos, à
corresponsabilização pelos materiais recicláveis, às condições de
trabalho das/os catadoras/es, à promoção de reciclagem por meio de
cooperativas de trabalhadoras/es e à consolidação do movimento da
catadora e do catador enquanto figuras centrais e essenciais nas
discussões acerca da temática da reciclagem e da questão ambiental
(SANT’ANA; METELLO, 2016).
Ioli Wirth e Cristiano Oliveira (2016, p. 219) analisam que
a PNRS “reconhece o trabalho das cooperativas e das associações de
catadores, e define que elas sejam priorizadas na contratação para a
execução dos serviços de limpeza urbana”. Entretanto, examinam
que a implementação da lei ocorre num cenário em que “as práticas
municipais de manejo dos resíduos sólidos estão contaminadas por
interesses privados e em que o controle social sobre a prestação deste
serviço público é quase inexistente”. Como a origem do manejo dos
83
resíduos sólidos no Brasil decorre da importação de modelos de
gestão europeus e norte-americanos, a gestão brasileira dos resíduos
sólidos se baseia fundamentalmente na relação entre o poder público
e a iniciativa privada. A PNRS modifica este formato em teoria, mas
sua prática depende de outros fatores: muitas/os catadoras/es ainda
estão em lixões a céu aberto ou em aterros sanitários, já que eles não
foram ainda erradicados, como estabelecido em lei.
A transformação das formas de gestão dos resíduos sólidos
exige o reconhecimento da importância das/os catadoras/es. Este
reconhecimento é e será resultado das lutas de resistência da
categoria, tanto por meio da mobilização dentro das organizações de
trabalho e grupos populares quanto pelo movimento social das/os
catadoras/es. A implementação atual das políticas públicas relativas
ao setor, principalmente a PNRS, determina de fato as condições de
vida dessas/es trabalhadoras/es:
No entanto, é o formato da implementação da política que
determinará se de fato estes sujeitos passarão a ocupar um lugar
distinto que o de sua margem. À medida que cooperativas e
associações são contratadas para a prestação do serviço de coleta
seletiva, o trabalho da catação passa a assumir uma nova
condição. Em vez de apêndices dos sistemas de limpeza urbana,
conforme figuravam nos modelos anteriores, passam a ser a
organização responsável pela execução deste serviço público.
Nesse formato, o erário favorece a distribuição de renda e a
construção de uma nova lógica de funcionamento em que os
saberes, a experiência e os interesses dos trabalhadores
associados podem constituir uma dinâmica que suplante o
controle burocrático e o imperativo mercantil instaurados pelos
modelos anteriores (WIRTH; OLIVEIRA, 2016, p. 226).
84
Segundo consultoria contratada Secretaria Geral da
Presidência da República, as ações do governo federal apoiaram
1.017 EESs de catadoras/es de materiais recicláveis em 526 cidades
brasileiras (SANT’ANA; METELLO, 2016). Dentre esses
empreendimentos, estão 739 cooperativas, 828 associações, 191
grupos informais e 40 redes de cooperação. Foram contempladas/os
30.240 catadoras/es e 57% delas/es são mulheres (SILVA, 2014). A
COOCASSIS foi uma das cooperativas apoiadas pelos programas de
apoio e pelas políticas públicas de catadoras/es.
Atualmente, em 651 organizações constantes de catadoras/es
cadastradas no Banco de Dados e analisadas a partir do Anuário da
Reciclagem 2021, apenas 358 delas informaram o número de
catadoras/es associadas/os e/ou cooperadas/os. O Anuário da
Reciclagem de 2021 conseguiu integrar apenas 9.754 catadoras e
catadores de materiais recicláveis espalhadas/os pelo Brasil. As
organizações de catadoras/es se expandem a partir de algumas
perspectivas teóricas e metodológicas diferentes, como a Economia
Solidária, Economia Popular e Autogestão. Essas perspectivas,
apesar de divergirem, possuem em comum o fato de se constituírem
como força de resistência ao modo de organização capitalista, tendo
em vista as condições sociais e financeiras desta parte da classe
trabalhadora (WIRTH, 2010). Enquanto categoria, independente
de qual perspectiva
6
os grupos e empreendimentos dessas/es
trabalhadoras/es se organizam, a luta se direciona no sentido
contrário do capitalismo e do neoliberalismo.
A luta de resistência das/os catadoras/es aponta para uma
construção de saberes e de conhecimentos diversos, que demonstram
tanto potencialidades quanto contradições em seu desenvolvimento.
6
Aqui, tratamos apenas de perspectivas de viés democráticos.
85
Para Jean Alves et al. (2020, p. 127), “os saberes produzidos e os
espaços vivenciados por atores sociais como as populações de rua e
os catadores de materiais recicláveis são plurais”, e, seja por meio dos
movimentos sociais, pelas formas de organização do trabalho ou pela
relação com outras instituições, como por exemplo a universidade,
os saberes construídos nesses espaços, tendo em vista o modo de
organizar e realizar o trabalho no coletivo, são compartilhados
pelas/os trabalhadoras/es por meio de uma autoeducação do
trabalho, o que aprofundamos no capítulo 3. A autoeducação pode
permitir que a trabalhadora e o trabalhador internalize e viva
mudanças nas suas relações sociais e de trabalho, no
desenvolvimento do seu trabalho e na sua identidade, enquanto
catadora e catador.
A fala do catador Leonardo (2022), da COOCASSIS, pode
evidenciar que a autoeducação a partir do trabalho realizado na
Cooperativa estudada implica o desenvolvimento de mudanças nas
relações sociais e de trabalho estabelecidas pelas/os trabalhadoras/es,
quando comparamos com o trabalho assalariado capitalista, uma vez
que as decisões são tomadas em grupo, por meio de assembleias,
grupos de trabalho, comissões, eleições, etc. Ao adotar a Economia
Solidária como perspectiva de trabalho, a COOCASSIS é formada
e organizada a partir da construção de relações mais solidárias,
igualitárias e democráticas, que colaboram para o desenvolvimento
de autonomia:
Porque antigamente, você vê, você vai trabalhar pra fora, você
tem um patrão. Um patrão que te manda. Se ele falar pra você
vai varrer o chão, você tem que varrer. Agora, na Cooperativa
não, você não tem patrão, o patrão é você mesmo, entendeu?
Eu acho assim…da minha parte…o patrão da gente é a gente.
A gente vai fazer isso, vai fazer aquilo, mas só que tem um grupo
86
pra decidir junto, entendeu? Mas bem legal a Cooperativa, é
bem melhor do que trabalhar empregado.
Ainda que as relações sociais em organizações de trabalho
das/os catadoras/es, especialmente as que adotam a Economia
Solidária como perspectiva teórica e metodológica, sejam embasadas
na solidariedade e na igualdade e que demonstram potencialidades
no que tange a um maior grau de autonomia e de desalienação da
trabalhadora e do trabalhador, as iniciativas e os empreendimentos
estão inseridos no sistema capitalista, com todas as suas contradições,
princípios e valores. Acontecem portanto, reproduções destes
fundamentos no trabalho coletivo pautado por valores mais
democráticos, uma vez que dentro e fora do trabalho, a trabalhadora
e o trabalhador que atuam nessas experiências estão submetidas/os
ao mesmo capitalismo que todos os outros setores da classe
trabalhadora.
A situação se agrava diante da expansão do neoliberalismo
nos países periféricos, principalmente no Brasil, e do cenário de
pandemia da COVID-19. Para Elaine Araújo et al. (2021), na
maioria dos países da América Latina, no decorrer da pandemia, a
coleta seletiva foi suspensa pelos municípios, mas sem prover
nenhum apoio financeiro às/aos catadoras/es de materiais recicláveis.
As/os catadoras/es não conseguiam vender seus materiais, e quando
conseguiam, vendiam por um preço irrisório. No Brasil, muitas/os
catadoras/es continuaram com a coleta seletiva; no entanto, apenas
a coleta continuou, mas as mobilizações e os meios de subsistência
da categoria estagnaram. Muitas organizações de catadoras/es nas
cidades brasileiras “tiveram suas prestações de serviço dispensadas
pelas prefeituras, uma vez que eles recebem apenas pela
produtividade” (ARAÚJO et al., 2021, p. 108).
87
Na África do sul os catadores de materiais recicláveis estão
vendendo seus sapatos para comprar pão. Quando tentam
deixar suas casas para reciclar, são espancados pelo exercito ou
pela polícia (Trust, 2020). Na ausência de apoio do governo,
não poder trabalhar significa não ter dinheiro para comprar
comida (Wiego, 2020). Diante do quadro de incerteza, grupos
têm levantado à bandeira de que os catadores de materiais
recicláveis devam retornar a coleta seletiva, de forma a garantir
que os avanços alcançados relacionados à coleta seletiva na fonte
geradora, até o momento, não seja perdido (Abrelpe, 2020). A
ideia é de que se alguma autoridade interromper toda a coleta
de reciclagem durante a crise, a mensagem para os cidadãos será
de que a coleta seletiva não é importante. Promover a
universalização da coleta seletiva após a pandemia, depois de
anos buscando esse propósito, será difícil, se não impossível
(Iswa, 2020). Nessa perspectiva, os representantes de catadores
de materiais recicláveis de Cuiabá/MT enviaram uma carta
aberta, ofício n°016/2020, solicitando apoio para garantir a
permanência das cooperativas e associações que realizam o
serviço de coleta seletiva (ARAÚJO et al., 2021, p. 108-109).
Dada a realidade marcada por retrocessos e perda de direitos
conquistados nas gestões anteriores, para além do cenário
pandêmico, a PNRS “perde espaço cada vez mais na agenda
governamental” (SILVA; MARTINS, 2022, p. 70), e as políticas
públicas destinadas às/aos catadoras/es se tornam ausentes; o
trabalho da catação fica cada vez mais ameaçado ao passo que os
investimentos financeiros se direcionam para a incineração. Nesse
sentido, o decreto 11.044, publicado pelo Governo Federal em
2022, colabora para “dificultar a implementação da logística reversa
voltada as embalagens em geral, além de descaracterizar o papel
central dos catadores e catadoras de materiais recicláveis” (MNCR,
2022).
88
Tal realidade não ameaça apenas o trabalho das/os
catadoras/es, mas sua dignidade, sua integridade física e social, que
elas/es tanto lutaram e lutam para construir. As ações coletivas e o
movimento social são primordiais para possibilitar a luta de
resistência contra esse cenário. Um exemplo disso pode ser o apoio
que o MNCR e outras organizações da Economia Solidária
realizaram nas eleições de 2022 para o candidato Lula. Essa
articulação política demonstra a indignação e a força da mobilização
social das/os catadoras/es, que desejam e lutam por outro quadro
político, social e econômico (MNCR, 2022).
O início do trabalho na COOCASSIS contou com a
participação do MNCR e de alguns sindicatos de trabalhadoras/es.
A presença das/os catadoras/es nesses espaços políticos foi
imprescindível para a consolidação e para o fortalecimento do
empreendimento, tendo em vista o compromisso com o coletivo
enquanto primordial para o bom andamento do trabalho, além da
luta por melhores condições de trabalho e de bens e meios de
produção. O trabalho atual na Cooperativa é fruto de muita luta
das/os catadoras/es, em articulação com a universidade e com o
poder público.
O funcionamento atual de trabalho na COOCASSIS
Atualmente, a Cooperativa possui mais de 100
trabalhadoras/es, que realizam a coleta seletiva dos materiais
recicláveis nas residências, nas instituições e nas ruas, bem como a
triagem, enfardamento, estocagem e comercialização.
As/os catadoras/es na COOCASSIS trabalham, basica-
mente, em quatro frentes: na coleta seletiva dos resíduos sólidos nas
casas e instituições; nos processos de pesagem, triagem, prensagem,
89
enfardamento e armazenamento, que acontecem dentro do barracão
(ou galpão, local onde a maioria das/os trabalhadoras/es
desempenham o trabalho); coleta de lixo orgânico e na coordenação
ou administração do empreendimento. Hoje, a COOCASSIS é
composta por 118 cooperadas e cooperados e 70% delas/es são
mulheres.
A maioria das/os catadoras/es são mais velhas/os, de forma
que, as/os catadoras/es mais novas/os são estimuladas/os pelas/os
próprias/os trabalhadoras/es do local a procurar outros tipos de
trabalho (principalmente trabalhos de carteira assinada) e a
completar os estudos, já que uma boa parte delas/es não tiveram essa
oportunidade.
As catadoras/es da Cooperativa procuram realizar o trabalho
de aproveitamento do máximo de resíduos que coletam a fim de
obter uma maior retirada: papelão, garrafas PET, latinhas, papéis,
vários tipos de plástico, etc. Buscam pautar o trabalho pelos
princípios e valores da ES, e, portanto, a autogestão é um elemento
muito importante e muito valorizado pelo grupo. Possuem um
contrato com a prefeitura do município desde 2003, o que
aprofundamos no item 4.4, quando traçamos um histórico a respeito
da relação entre o empreendimento e a Incop Unesp Assis. Por ser
formalizada desde esse período, a Cooperativa possui Regimento
Interno e Estatuto Social, além de um Cadastro Nacional de Pessoa
Jurídica (CNPJ). Com o crescimento da Cooperativa, as/os
catadoras/es puderam realizar a contratação de serviços de terceiros,
que são essenciais para a administração e para o bom funcionamento
do empreendimento, como por exemplo um escritório de
contabilidade, técnico administrativo para o auxílio na gestão do
local e advogado, para representar os interesses das/os cooperadas/os
perante a justiça e outras entidades e instituições.
90
Na coleta seletiva nas casas e instituições, as/os catadoras/es
fazem o processo de catação com o caminhão, organização dos
materiais dentro do caminhão
7
e direção do caminhão; após a coleta,
as/os catadoras/es levam os materiais para o barracão, onde realizam
a pesagem dos resíduos a partir da pesagem do caminhão, a descarga
dos materiais na talisca
8
, a triagem na esteira, a troca de bags, a
prensagem e o enfardamento dos resíduos por meio das prensas e
construção de fardos, o desmonte de peças eletroeletrônicas, o
cuidado com as garrafas de Polietileno Tereftalato (PET) (as/os
catadoras/es furam as garrafas devido à estratégia de retirar o vácuo,
o que garante um maior peso no fardo), a fragmentação de papéis na
máquina fragmentadora, o armazenamento por meio das
empilhadeiras e a venda ou comercialização dos materiais.
A seguir, detalhamos cada frente de trabalho do
empreendimento (coleta seletiva, barracão, coleta de lixo e
coordenação) bem como cada função desempenhada dentro delas.
Também, realizamos um fluxograma de destinação dos materiais
recicláveis na Cooperativa. As/os catadoras/es que já estão há mais
tempo no trabalho, em sua maioria, já realizaram a maior parte ou
todas as funções do trabalho existentes; porém, atualmente, essas
funções estão sob responsabilidade mais fixa de trabalhadoras/es, o
que pode facilitar o processo de trabalho, mas o que pode também
fragmentá-lo.
7
Os caminhões são de gaiola, portanto, não prensam o material. Além disso, alguns
caminhões foram cedidos por meio de projetos com o BNDES, Banco do Brasil, Cataforte,
e outros foram comprados pela Cooperativa posteriormente, após o seu crescimento.
8
A talisca aqui é um acessório de um tipo de esteira utilizada para a melhor elevação de
materiais e otimização de tempo e de custos de transporte.
91
Figura 1: fluxograma de destinação dos materiais recicláveis na COOCASSIS
Coleta Seletiva
A coleta seletiva é dividida por setores de forma que, cada
setor compõe alguns bairros da cidade. É realizada por meio de seis
caminhões, que saem do barracão todos os dias para a realização da
coleta nos diferentes setores. Possui a duração de cinco a dez horas
por dia, a depender do tamanho do setor. Antes da pandemia, a
coleta era realizada não só com caminhões, mas com carrinhos,
elaborados por meio de uma parceria da Incubadora com alunas/os
92
do curso de engenharia da Unesp
9
. Durante o período da pandemia,
as/os catadoras/es e as/os integrantes da Incubadora consideraram
que a coleta deveria ser feita apenas com os caminhões: as/os
moradoras/es deixam os materiais recicláveis na frente de suas casas
e prédios, bem como as/os trabalhadoras/es de instituições, e assim,
as/os catadoras/es não possuem tanto contato com as pessoas, e
entram em contato com um menor nível de risco de contágio pela
doença.
No início e ao decorrer do trabalho, com o desenvolvimento
da Cooperativa, a realização de um processo denominado abordagem
com a população da cidade foi essencial para a implementação da
coleta seletiva na cidade. Nesse processo, as/os catadoras/es se
apresentavam e explicavam, de porta em porta, como a coleta seletiva
é feita e como as/os moradoras/es deveriam realizar a separação dos
materiais recicláveis, junto a entrega de folhetos com todas as
informações necessárias. Hoje, a Cooperativa realiza a coleta seletiva
em uma boa parte da cidade, o que é resultado do trabalho de
abordagem feito ao longo dos anos.
Para chamar a atenção e avisar as/os moradoras/es que a
coleta seletiva está passando, inclusive das pessoas que, mesmo após
a abordagem, não separam e não doam os resíduos sólidos para a
Cooperativa, as/os catadoras/es colocam uma música do MNCR
para tocar: as/os catadoras/es, junto a Incop Unesp Assis, escreveram
um texto falado para incorporar na música e para facilitar e agilizar
a coleta. A música toca durante todo o percurso da coleta e as/os
catadoras/es devem ouvi-la o tempo todo, o que pode ser bem
cansativo, mas que elas/es enunciam que estão acostumadas/os.
9
Os carrinhos disponíveis no mercado não são apropriados para as necessidades das/os
catadoras/es, uma vez que exigem mais força física e não oferecem as condições de trabalho
que poderiam oferecer, caso fossem adaptados para essas/es trabalhadoras/es.
93
A organização deste trabalho, atualmente, é realizada por
duas/dois catadoras/es nas ruas, coletando os materiais de casa em
casa, um/a catador/a no caminhão para organizar os materiais no
caminhão e um/a catador/a dirigindo o caminhão. As/os
cooperadas/os dividem o caminhão em duas ou três partes por meio
da construção de paredes de papelão, com a finalidade de ordenar os
materiais recicláveis, para comportá-los no caminhão e para não
caírem na rua na medida que o caminhão realiza curvas mais
acentuadas ou anda mais rápido.
Muitas/os moradoras/es fornecem para as/os catadoras/es
um saco com os materiais recicláveis e pedem o saco de volta para
reutilizarem nos próximos dias, o que acaba atrasando a coleta. As/os
moradoras/es das casas que fornecem os materiais já são
conhecidas/os pelas/os cooperadas/os, de modo que, as/os
catadoras/es se dirigem especificamente para elas/es ou para o saco
de coleta que já está alocado na frente das residências e instituições.
As/os catadoras/es realizam algumas pausas para ir em banheiros
específicos, como os de lugares públicos, estabelecimentos, ou casas.
Algumas/alguns (poucas/os) moradoras/es oferecem água gelada,
lanche e café para as/os cooperadas/os e algumas/alguns possuem
uma boa relação com elas/es. Quando chove, as/os catadoras/es só
não saem do barracão para a realização da coleta se a chuva estiver
muito forte. Caso contrário, trabalham da mesma forma, e vestem
capas de chuva.
Barracão
No barracão, os trabalhos realizados são a pesagem, a
operação da talisca, a descarga dos materiais na talisca, a triagem na
esteira, troca de bags, prensagem e enfardamento, desmonte de peças
94
eletroeletrônicas, o cuidado das garrafas PET, limpeza do local,
cozinha, armazenamento dos materiais e comercialização. O
barracão é composto majoritariamente por mulheres, e as/os
catadoras/es ficam sempre em pé, com posturas muitas vezes
desconfortáveis, carregam muito peso e expressam reclamações de
dores no corpo.
A pesagem do caminhão, e portanto, dos materiais
recicláveis, é feita por meio de uma balança com indicador digital e
uma catadora mais velha é responsável por esta função
10
. A talisca
compreende tanto a operação do equipamento quanto a descarga
dos materiais, a fim de passarem pela esteira para serem separados;
uma pessoa é encarregada da operação da talisca e quatro pessoas
descarregam os resíduos dos caminhões, com o auxílio de vassouras
e rodos. A esteira é elétrica, local onde é realizado o processo de
triagem ou separação dos resíduos sólidos; aproximadamente vinte
catadoras realizam o trabalho na esteira. A troca de bags é feita por
quatro pessoas, na medida que as catadoras triam os materiais e
colocam-os em bags diferentes, de acordo com o tipo de material.
Esses bags vão enchendo, e a troca vai sendo feita, para que o trabalho
na esteira não pare.
A Cooperativa possui três prensas
11
, duas pequenas e uma
grande, e em cada uma delas trabalham duas pessoas, realizando
tanto a prensagem quanto o enfardamento. Uma pessoa trabalha no
10
As/os catadoras/es do local procuram não colocar as/os catadoras/es mais velhas/os para
exercerem funções do trabalho que demandem muita força física, apesar de não existirem
tantas funções neste tipo de trabalho que as/os trabalhadoras/es não precisem de força física
para desempenhá-las.
11
As prensas não possuem dispositivos de segurança, o que pode promover acidentes de
trabalho. Ademais, ao prensar o plástico duro, as/os trabalhadoras/es podem se machucar
com pedaços afiados do material.
95
desmonte de peças eletroeletrônicas para aproveitamento e venda e
uma pessoa desempenha o trabalho de cuidado com as garrafas PET.
Uma/duas catadoras ficam encarregadas de realizar a limpeza do
empreendimento, e muitas vezes, exercem essa função junto a
alguma outra durante a semana e o dia. Uma catadora fica
responsável pela cozinha, ela prepara o café da manhã, alguns
acompanhamentos para o almoço (as/os catadoras/es se organizam
para comprar marmita, o que foi modificado ao longo do tempo
devido ao tempo de trabalho e ao preço dos alimentos) e o lanche da
tarde. O armazenamento dos materiais recicláveis é realizado
durante o processo do trabalho, na medida que os fardos vão sendo
produzidos, com o auxílio da empilhadeira.
As/os trabalhadoras/es realizam uma escala semanal de
trabalho dentro do barracão. Nessa escala, as posições nas quais as/os
trabalhadoras/es alternam são: esteira, troca de bags e limpeza. Uma
catadora é técnica em segurança do trabalho e fica também
responsável pela aquisição de Equipamentos de Proteção Individual
(EPIs) para a Cooperativa.
Coleta de lixo
A coleta do lixo orgânico é uma frente de trabalho composta
apenas por homens cooperados. Não nos aprofundamos na
compreensão desta frente, uma vez que o foco da pesquisa é na
catação de materiais recicláveis e, também, não conseguimos ter
contato com os trabalhadores que estão nesta função. No entanto,
foi possível observar que, atualmente, essa frente está mais distante
de outras funções do trabalho da Cooperativa, já que os
trabalhadores não estão tão presentes no barracão e na gestão de
resíduos sólidos.
96
No período inicial do trabalho da COOCASSIS, o lixo
orgânico também era coletado, mas era triado e alocado junto aos
materiais recicláveis, dentro do barracão. Devido à insalubridade (ao
cheiro, à mistura dos materiais e etc), o lixo parou de ser separado
dentro do barracão da Cooperativa. Hoje em dia, ele é apenas pesado
e levado para o aterro de outra cidade próxima, na região do Oeste
Paulista.
Coordenação
A Coordenação da Cooperativa é dividida em cargos de
representação no Conselho de Administração e no Conselho Fiscal.
O Conselho de Administração é composto pelos cargos de
presidenta/e, diretor/a administrativa/o, diretor/a secretária/o, e
duas/dois suplentes. O Conselho Fiscal integra os cargos de
coordenador/a, secretária/o, conselheira/o efetiva/o e três suplentes.
As/os catadoras/es veem as/os integrantes do Conselho de
Administração como as/os que realizam mais funções de
coordenação. Os cargos de representação tanto do Conselho de
Administração quanto do Conselho Fiscal são eleitos a partir da
formação de chapas elaboradas pelas/os trabalhadoras/es e da
votação de todas/os as/os trabalhadoras/es realizada em assembleia.
Dentre as atribuições das/os integrantes do Conselho de
Administração, estão a deliberação da admissão e/ou exclusão das/os
trabalhadoras/es e da convocação de assembleias e reuniões,
elaboração de orçamento anual sobre as despesas, verificação do
estado financeiro do empreendimento, contratação de funciona-
rias/os externas/os e, quando necessário, de serviços de auditoria e
de assessoria técnica, realização de pesquisas sobre preços,
representação da Cooperativa, etc. As/os representantes do Conselho
97
Fiscal são responsáveis por, dentre outras funções, conferir o saldo
da Caixa da Cooperativa, verificar se os extratos bancários conferem
com o estado financeiro emitido pelo Conselho de Administração,
averiguar se existem reclamações das/os cooperadas/os acerca do
funcionamento cooperativo bem como se existe algum conflito entre
elas/es, informar ao Conselho de Administração se houver alguma
irregularidade, e convocar uma assembleia geral caso observem
ocorrências graves, etc.
A inserção das/os trabalhadoras/es em cargos de
representação permite um maior exercício de liderança e uma
necessidade de apreensão de diversos saberes e de informações, o que
é essencial para a construção de autonomia das/os catadoras/es e do
empreendimento perante as entidades e o poder público. Nos
últimos anos, quem mais se interessou por esses cargos dentro da
COOCASSIS, foram as mulheres, que possuem uma atuação
significativa tanto dentro do local quanto no movimento social de
catadoras/es. É possível analisar a existência de relações pautadas
pelo gênero na Cooperativa, que em certa medida, reproduzem
relações patriarcais e machistas, mas que produzem novas
possibilidades no que tange às posições e aos papéis de gênero.
Para Bruna Vasconcellos (2017, p. 197), os estudos sobre as
catadoras de materiais recicláveis demonstram potencialidades e
limitações das suas lutas e do trabalho, principalmente do seu
trabalho coletivo e diante do cenário político, social e econômico
que estamos inseridas/os. Destacam, portanto, um processo de
construção de autonomia “para tomar decisões sobre o
funcionamento das cooperativas, mesmo que em constante processo
de tensionamento entre as amarras capitalistas”. A articulação das
iniciativas de Trabalho Associado e de Economia Solidária de
catadoras/es é uma característica importante no que tange à
98
consolidação e à mobilização das lutas do movimento social.
Entretanto, a construção tanto do movimento quanto das
organizações possui contradições vividas na organização do trabalho,
na elaboração das regras e na gestão do trabalho, diante de todo
contexto analisado até agora (SILVA, 2014).
No primeiro capítulo pudemos compreender o surgimento
e a expansão das organizações de catadoras/es de materiais recicláveis
no contexto mais amplo do capitalismo neoliberal, para
compreendermos a realidade da cooperativa estudada e em que lugar
ela está localizada na história. No capítulo seguinte, buscamos traçar
articulações entre o trabalho das/os catadoras/es e outra categoria
central da pesquisa: gênero. A diferenciação e a hierarquização de
gênero é um dos valores reproduzido em organizações de trabalho
coletivo das/os catadoras/es. Para compreender como esse valor é
reproduzido em experiências autogestionárias de catadoras/es e
como ele é ainda aprofundado com o neoliberalismo, especialmente
na gestão governamental brasileira que se encerrou em 2022, é
necessário entendermos tanto como a desigualdade de gênero é posta
no mercado de trabalho e no sistema em que vivemos, bem como
apreender as características desse fenômeno no trabalho coletivo e
autogestionário, em especial no trabalho das/os catadoras/es de
materiais recicláveis.
99
Capítulo 2
Gênero, trabalho e as/os catadoras/es de
materiais recicláveis
Para compreendermos a situação das mulheres no cenário do
trabalho coletivo, é necessário traçarmos paralelos entre as categorias
do patriarcado, divisão sexual do trabalho, da reprodução social e
relações sociais pautadas no gênero. Tais categorias se fazem
essenciais para analisarmos sob quais mecanismos o capitalismo se
ancora para se reproduzir e se manter, ainda que criados antes de seu
surgimento. Procuramos abordar algumas perspectivas dos
feminismos marxistas, devido a nossa linha teórico-metodológica;
no entanto, traçamos alguns paralelos entre algumas outras teorias
feministas, a fim de realizar um apanhado histórico.
Nas organizações de trabalho, nos grupos que buscam
colocar em prática a Economia Solidária e nas lutas populares de
resistência, em geral, é apenas recentemente que as discussões e a
pauta sobre as relações de gênero ganham visibilidade, enquanto um
fator de suma importância para a análise e para a luta por melhores
condições de vida e de trabalho das/os trabalhadoras/es. Na luta
das/os catadoras/es, apesar das mulheres serem a maioria em
organizações de base, os homens são quem as representam na
instância nacional, o que começa a ser problematizado pelas
catadoras nas associações, grupos e cooperativas e no movimento
100
social. A desigualdade dos papéis de gênero é então levantada,
atualmente, como uma pauta da categoria.
O que buscamos evidenciar neste capítulo é que, buscar
estabelecer relações mais democráticas e mais igualitárias de trabalho
não faz sentido se não destacarmos a necessidade de olhar para os
seres humanos como desiguais, mesmo dentro de uma organização
ou de um grupo popular que agrupa perfis socioprofissionais
semelhantes de pessoas: pobres, negras, mulheres, mães, com pouca
escolaridade, etc. Dentro das organizações de Trabalho Associado
e/ou de Economia Solidária as relações também são desiguais,
embora procurem lutar contra a desigualdade: são relações que
reproduzem o patriarcado e o capitalismo. As desigualdades de
gênero precisam ser colocadas, portanto, no seu contexto histórico.
As desigualdades de raça não foram aprofundadas nesta pesquisa,
devido a uma necessidade de recorte e de maior apropriação sobre o
tema. No entanto, consideramos a análise destas desigualdades,
especialmente nas organizações de catadoras/es, também como
fundamentais para a luta pela modificação das relações sociais: o
capitalismo não só se ancora no patriarcado, como também em um
sistema de diferenciação e de hierarquização de raça, criado antes de
seu surgimento. Percebe-se que a própria branquitude da
pesquisadora foi elemento limitante para pensar-se na inclusão da
raça enquanto uma categoria de análise indissociável de gênero, ao
considerar, especialmente, o presente objeto de estudo.
As relações de gênero e de trabalho no capitalismo e
neoliberalismo
A massa de trabalhadoras/es não pode se perpetuar sem o
trabalho reprodutivo historicamente destinado às mulheres. De
101
forma genérica, o capital e o Estado devem manter a capacidade
biológica de produzir novas/os trabalhadoras/es para que a força de
trabalho continue existindo para ser explorada. Para garantir a
existência da força de trabalho, é necessário que o capitalismo crie
e/ou mantenha estratégias de controle sobre a reprodução, a família,
a educação das crianças, etc, o que conserva uma ordem de gênero
estimulada por um sistema patriarcal.
O patriarcado
12
, para Heleieth Saffioti (2015), socióloga
considerada uma das pioneiras em articular o feminismo e o
marxismo, se constitui enquanto um sistema de exploração/
dominação anterior ao capitalismo, mas que se reconfigura perante
às relações capitalistas e permanece enquanto elemento social
constitutivo na cultura ocidental. Trata-se, portanto, de um sistema
de poder no qual o homem explora/domina a mulher, que fica
submetida a diversos tipos de consequências: violência, abuso,
ausência de autonomia e atribuições sociais consideradas inferiores,
direcionadas às mulheres com a justificativa de que a mulher teria
um instinto natural para estas atividades, como por exemplo, o
cuidado da casa e das/os filhas/os e as tarefas domésticas (trabalhos
não remunerados e não reconhecidos socialmente), o que significou
uma exclusividade da participação das mulheres nessas atividades.
Este discurso opera até a atualidade: de que o cuidado é elemento
exclusivo das mulheres.
A atribuição social do cuidado ao feminino limitou muitas
mulheres a terem seus trabalhos reconhecidos. O trabalho que
oferecia reconhecimento social, no entanto, era destinado aos
homens, o que produzia a manutenção de uma ordem de gênero
12
Patriarcado e gênero não são a mesma coisa: o primeiro se refere a um conceito que
explica um sistema de poder e o segundo é uma categoria de análise das relações sociais
(SAFFIOTI, 2015).
102
(SILVA; MENEGAT, 2016). Para Luana de Sousa e Dyeggo
Guedes (2016), os homens eram tidos, então, enquanto provedores e
as mulheres, como cuidadoras, com justificativas que excluem o
homem da participação em algumas atividades e que só contribuem
para a conservação do patriarcado. No sistema patriarcal, as
mulheres trabalham e ainda assim são consideradas subjugadas ao
trabalho do homem; isso porque, o trabalho da mulher não é
igualmente valorizado. Heleieth Saffioti (2013, p. 62) analisa que
uma parcela das mulheres, mesmo antes do capitalismo, “trabalhava
nos campos e nas manufaturas, nas minas e nas lojas, nos mercados
e nas oficinas, tecia e fiava, fermentava a cerveja e realizava outras
tarefas domésticas”. A separação de atribuições de acordo com papéis
de gênero, ou seja, a divisão e hierarquização de trabalhos diferentes
para um ou outro gênero, são denominadas de divisão sexual do
trabalho.
A divisão sexual do trabalho, enquanto um elemento
patriarcal de organização do mundo do trabalho e da sociedade
como um todo, é estruturada a partir das esferas produtiva e
reprodutiva, não se referindo apenas à categoria do trabalho, mas às
relações sociais estabelecidas entre homens e mulheres: relações de
subordinação da segunda pela primeira. A esfera reprodutiva,
destinada às mulheres, nesse sentido, é submetida à esfera produtiva,
destinada aos homens, já que essa divisão não significa apenas a
atribuição de um tipo de trabalho à mulher e outro tipo de trabalho
ao homem, mas uma hierarquização desses tipos de trabalho, na qual
o trabalho do homem é mais importante e mais respeitável e,
portanto, mais valorizado (KERGOAT, 2002). Tal cenário favorece
e possibilita um maior exercício de poder dos homens socialmente.
A divisão sexual do trabalho estabelece, portanto, uma
relação assimétrica, que gera e que reproduz desigualdades perante o
103
funcionamento social. É, portanto, um dos “mecanismos de
sustentação das relações sociais de sexo, ao estabelecer a designação
prioritária das mulheres para a reprodução e a dos homens para a
produção” (ÁVILA; FERREIRA, 2020, p. 117). Ao dividir os
trabalhos de acordo não só com a tipificação mas com a
hierarquização dos trabalhos da mulher e do homem, as relações
sociais desiguais, de exploração e de opressão são perpetuadas
(SOUSA; GUEDES, 2016). Estas relações são a base da organização
social e da divisão do trabalho
13
.
Para Heleieth Saffioti (2013), entretanto, mesmo antes do
surgimento do capitalismo, uma parcela das mulheres dividia seu
tempo entre o trabalho reprodutivo e o trabalho produtivo. A
mulher de camadas menos privilegiadas sempre possuiu a
necessidade de complementar a renda da família, não sendo,
portanto, limitada ao trabalho reprodutivo.
A tradição de submissão da mulher ao homem e a desigualdade
de direitos entre os sexos não podem, contudo, ser vistas
isoladamente. Sendo a família a unidade econômica por
excelência nas sociedades pré-capitalistas, a atividade trabalho é
também desempenhada pelas mulheres das camadas menos
privilegiadas. Embora não se possa falar em independência
econômica da mulher (esta é uma noção individualista que
nasce com o capitalismo), pois o trabalho se desenvolvia no
grupo familial e para ele, o mundo econômico não era estranho
13
Angela Davis (2016, p. 17) pontua que “proporcionalmente, as mulheres negras sempre
trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs brancas”. No sistema escravista, para o
exercício do trabalho pesado, as mulheres negras eram “desprovidas de gênero”, uma vez
que trabalhavam em tempo absoluto para os seus proprietários. Nesse sentido, essas
mulheres não efetuavam trabalho apenas na esfera privada: eventualmente eram mães,
donas de casa e esposas. O trabalho produtivo ocupa um espaço significativo na vida das
mulheres negras desde o período da escravatura, no qual, não só as mulheres eram vistas
como inferiores, mas como bens rentáveis e como objetos de prazer e opressão.
104
à mulher. Não se trata de indagar aqui se o papel econômico da
mulher lhe tirava posição social compensatória de sua
submissão ao de decisões da família: o homem. Trata-se, isto
sim, indagar-se, não obstante sua incapacidade decisória, a
mulher encontra via de integração nas sociedades pré-
capitalistas [...] (SAFFIOTI, 2013, p. 63).
Para Neusa Dal Ri (2015, p. 122), “em todos os tipos de
sociedade, desde as pretéritas e antigas até a capitalista, o volume de
trabalho realizado pelas mulheres sempre foi imenso, o que mudou
foi a forma desse trabalho”. Segundo Heleieth Saffioti (2013), o
capitalismo trouxe uma dupla desvantagem à mulher: conforme o
desenvolvimento das forças produtivas, a mulher era integrada de
forma periférica, em funções menos prestigiosas, trabalhos mais
precarizados e repetitivos
14
. A inserção da mulher no mercado de
trabalho, no capitalismo, se deu como uma ferramenta de
reconstruir a capacidade de acumulação capitalista, para abafar as
contradições do sistema e enfrentar as crises cíclicas do capital. É a
partir do capitalismo, portanto, que a mulher é separada da sua
família e que deve se sacrificar, não só para garantir sua
sobrevivência, mas em prol do capital.
Perante as transformações socioeconômicas e a busca pela
melhoria das condições de trabalho da mulher, uma série de
desvantagens é destinada a ela no que tange a sua atuação social e
econômica (SOUSA; GUEDES, 2016). Karl Marx (2002) considera
que, a partir do emprego da maquinaria, os donos do meio de
14
A força de trabalho livre (principalmente a da mulher) é parcialmente remunerada, o que
cria o sobretrabalho, fonte da mais-valia, do instrumento fundamental da acumulação
capitalista. Assim, funções de trabalho mais precarizadas criam ainda mais sobretrabalho,
porque promovem mais exploração, por meio da má remuneração e do baixo oferecimento
de condições mínimas de trabalho.
105
produção se empenharam em se beneficiar do trabalho das mulheres
e das crianças, uma vez que a maquinaria possibilita a admissão de
trabalhadoras/es sem força muscular ou com um “aporte físico
incompleto”. A falta de força física da mulher para o exercício do
trabalho sempre foi, de acordo com Neusa Dal Ri (2015, p. 123),
“uma das justificações ideológicas para relegá-la a um status inferior
na sociedade”. A fraqueza física da mulher, que em tese a distancia
do trabalho produtivo, a aproxima do trabalho reprodutivo e de uma
fraqueza social, a desigualdade de gênero.
Na década de 1970, em meio à crise estrutural do capital, a
mulher passa a ser incorporada de forma mais intensa no mercado
de trabalho. Junto às transformações do mundo do trabalho e do
cenário socioeconômico, as revoluções culturais e os movimentos
feministas trouxeram diferentes configurações de trabalho à mulher,
o que enfraqueceu a divisão sexual do trabalho tida até então. Luana
de Sousa e Dyeggo Guedes (2016, p. 123) realizam, no entanto, a
importante análise de que a separação entre as esferas
“público/privado que está associada ao trabalho remunerado/não
remunerado e que contribui com a divisão sexual do trabalho é
reconfigurada, mas sem mudança significativa, ou estrutural, em sua
essência”.
Os homens continuaram, dessa forma, dispensados das
atribuições domésticas e do cuidado com as/os filhas/os; essas
atividades são, em grande parte, ainda delegadas às mulheres, uma
vez que, desde sempre, a família deve ser encarada como objeto de
devoção, deve ser controlada, e a negação da identidade da mulher
trabalhadora serviria, também, para negar o processo de
reconfiguração da estrutura familiar, de destituição dos valores
tradicionais. Para Luana de Sousa e Dyeggo Guedes (2016), quanto
maior a desnaturalização da atribuição social do cuidado à figura
106
feminina, maior tende a ser a introdução das mulheres no mercado
de trabalho formal. Analisam, portanto, que apesar da mulher ser
incorporada de forma mais acentuada no mercado de trabalho, essa
inserção é mais precária, com trabalhos mais informais, com
jornadas de trabalho parciais e remunerações inferiores.
A partir do movimento de massa das mulheres trabalhadoras,
o lugar exclusivo do cuidado da casa e das/os filhas/os atribuído a
elas foi questionado, de modo a ser tratado como uma circunstância
negativa e injusta (ANDRADE, 2015). Com as teorias feministas
socialistas, as mulheres trabalhadoras puderam “teorizar o trabalho
doméstico como parte integrante do modo de produção capitalista”
(FERGUSON; MCNALLY, 2017, p. 28).
O estudo e a elaboração da categoria gênero também foi
muito importante para a compreensão das articulações existentes
entre a diferenciação e a hierarquização da mulher no trabalho.
Evidenciado em 1970, o termo “gênero” caracteriza a construção
social do que é “ser homem” e “ser mulher” (WIRTH, 2010). Pode-
se compreender o gênero, portanto, como uma disposição social das
diferenças entre os sexos, que estabelece um significado para elas. Ioli
Wirth (2010, p. 56)) analisa que “à medida que o conceito de gênero
aponta para a construção social da hierarquização masculino-
feminino, contribui para desestabilizar um dos pilares fundamentais
do poder”, ou seja, contribui para a desnaturalização de mitos (como
por exemplo de que a mulher tem um talento ou um dom natural
para o cuidado) criados a partir do patriarcado e conservados no
capitalismo, a fim de controlar a massa de trabalhadoras/es e de
manter uma ordem, utilizando a desigualdade de papéis de gênero
como uma ferramenta de exploração e de acumulação de capital.
O gênero, nesse sentido, pode ser compreendido como o
saber que indica os significados que as diferenças corporais entre os
107
seres humanos assumem social e historicamente. A conceituação de
gênero possui um papel relevante no que concerne à compreensão
das diferenças sociais, econômicas e políticas construídas entre os
sexos e à luta para desvelar e desnaturalizar as hierarquias que são
produzidas com base nelas. Investigar as relações de gênero
representa também examinar as relações de poder que são instituídas
baseadas nos sexos
15
(WIRTH, 2010). A igualdade de gênero pode
ser compreendida, portanto, não apenas como a equivalência entre
elementos masculinos e os femininos, mas como uma busca pela
“igualdade substantiva na vida social, na qual mulheres e homens de
diferentes raças/etnias, orientação sexual e identidade de gênero,
possam vivenciar sua diversidade sem opressão” (OLIVEIRA;
SANTOS, 2010, p. 13).
Helena Hirata e Daniele Kergoat (1994) analisam que as
relações de gênero e as relações de classe são estruturantes e essenciais
na sociedade, visto que permeiam todos os sujeitos. Não há
homogeneidade entre as classes e entre o gênero das pessoas, mas
todas as relações de classe são sexuadas e todas as relações de gênero
são classistas. Essa análise indica a existência de relações desiguais
socialmente construídas, que coexistem, se sobrepõem e se
superpõem. Mirla Cisne e Silvana Santos (2018) indicam que a
categoria do trabalho, na sociedade capitalista, possui algumas
divisões estruturais: a divisão social embasada nas relações
estabelecidas entre as classes sociais; a divisão racial, justificada pelas
relações sociais de raça e a divisão sexual, existente entre as relações
sociais de sexo. Essas relações, segundo as autoras, são “mediadas por
antagonismos e hierarquias que processam a produção e a
15
Heleieth Saffioti (2015, p. 31) afirma que “na ordem patriarcal de gênero, o branco
encontra sua segunda vantagem. Caso seja rico, encontra sua terceira vantagem, o que
mostra que o poder é macho, branco e, de preferência, heterossexual”.
108
reprodução sociais, permeadas pela exploração da força de trabalho
e pelas opressões a elas vinculadas” (CISNE; SANTOS, 2018, p.
25).
As relações sociais e de trabalho construídas a partir da
categoria do gênero demonstram ainda mais a alienação, o
estranhamento e a precarização, na medida em que funções que são
extremamente importantes para a conservação da existência humana
são desvalorizadas e perpetuadas por meio do sobretrabalho de
mulheres (especialmente as mulheres negras) que, cada vez mais,
aumentam suas responsabilidades, ao passo que o Estado diminui as
dele (NOBRE, 2003). Para Alexa Coelho et al. (2018, p. 7), quando
observamos a realidade dos homens brancos e das mulheres negras,
“existe um abismo entre as ocupações e rendimentos de ambos,
permanecendo a mulher negra em situações de evidente
desvantagem”.
A situação é invertida quando se comparam mulheres
brancas e homens negros: o que revela uma diferenciação no que
tange às relações sociais olhadas pela perspectiva da divisão racial.
Dados esses aspectos, pode-se analisar que as possibilidades de acesso
a recursos tanto financeiros quanto intelectuais, estão vinculadas ao
gênero, à raça e à interação entre essas categorias dentro e fora do
mercado de trabalho.
O trabalho da catação, atualmente, pode ser considerado um
trabalho no qual há uma presença majoritária e significativa de
mulheres negras (SEMUC-SP, 2017). Tal realidade pode ser
explicada pela verificação de que em todas as regiões do país, as
mulheres negras apresentam as maiores taxas de desemprego, além
de uma maior inserção nos subempregos, postos de trabalho mais
precários e atividades consideradas não qualificadas. Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020), a taxa
109
de desemprego é maior entre as mulheres e entre os homens pretos
e pardos. Ainda que exerçam a mesma função, as mulheres brancas,
pretas e pardas possuem rendimento menor que homens da mesma
cor. Entre pretas/os e pardas/os, no entanto, essa diferença é menor
devido à inserção em trabalhos que oferecem rendimentos mais
baixos, embasados no valor mínimo (IBGE, 2018). Para Ana Maria
de Carvalho (2022), coordenadora da Incop Unesp Assis, a questão
de gênero e de raça nos empreendimentos de catadoras/es e,
inclusive, na COOCASSIS, é emergente, uma vez que em sua visão,
“são muitas mulheres negras nos empreendimentos”.
Mesmo ingressando de forma maciça no mundo econômico
produtivo, as mulheres ainda vivem as desvantagens do patriarcado
e da divisão sexual do trabalho. De acordo com uma pesquisa
divulgada pelo Observatório Brasil da Igualdade de Gênero (2015,
p. 1), o Brasil é o país que apresenta uma das maiores taxas de
disparidade salarial. Nesse sentido, os homens recebem mais que as
mulheres em todas as faixas etárias, tipo de empresa ou de trabalho,
níveis de instrução, etc. A pesquisa que é realizada anualmente pela
Catho (2021) indicou que, em fevereiro de 2021, ainda que
ocupando os mesmos cargos e realizando as mesmas funções, as
mulheres chegavam a receber 34% a menos que os homens.
As conquistas das mulheres representam uma revolução
inacabada, porque, em sua maioria, as mulheres ainda assumem as
tarefas referentes ao espaço privados sozinhas, o que marca limites
no que diz respeito à quantidade e à qualidade de tempo que se
dedicam ao trabalho produtivo. Se a qualificação ocupacional da
mulher, portanto, interfere na sua posição social e ocupacional, a
sociedade de classes intervém para manter o seu próprio equilíbrio
(SAFFIOTI, 2013).
110
O ingresso das mulheres no mundo econômico não equilibra
as funções atribuídas aos sexos, ao contrário, reforça as
desvantagens vividas pelas mulheres que atualmente
compartilham com os homens, de forma equânime ou não, a
provisão financeira da família juntamente com a
responsabilidade da esfera reprodutiva. A saída do lar e as
conquistas cada vez mais visíveis no âmbito público
representaram uma revolução incompleta, uma vez que as
mulheres ainda assumem praticamente sozinhas as atividades
do espaço privado, o que perpetua uma desigual e desfavorável
divisão sexual do trabalho para elas (SOUSA; GUEDES, 2016,
p. 125).
Nesse sentido, a inserção parcial da mulher no mercado de
trabalho apresenta relações profundas com a insuficiência de
recursos de conciliação entre o trabalho e a família para a maioria
das mulheres, especialmente aquelas mais pobres que não
conseguem delegar as tarefas domésticas para outras pessoas ou para
instituições privadas de provisão de cuidados. Na visão da catadora
Rita (2022), a mulher é “muita coisa. É dona do lar e trabalha fora.
A mulher é muito importante”. As mulheres catadoras, em sua
maioria, advêm da classe baixa; na COOCASSIS, as mulheres se
apresentam, em geral, como chefes de família, dotando a
responsabilidade pelo cuidado e sustento das/os filhas/os. Muitas
delas são separadas e poucas delas foram ou são casadas formalmente.
Elis (2022), catadora e técnica de segurança do trabalho da
COOCASSIS, revela que se separou do seu marido para continuar
na Cooperativa. Diz que “trabalhava de segunda a segunda” e que
tomou a decisão de se dedicar mais ao empreendimento. É possível
identificar que, nas organizações de Trabalho Associado e/ou de
Economia Solidária, as relações desiguais de gênero são também
perpetuadas, porém com algumas modificações e potencialidades.
111
As relações de gênero nas organizações de Trabalho Associado e
de Economia Solidária: potencialidades e reprodução das relações
capitalistas
A participação das mulheres em experiências autogestio-
nárias dependeu do grau de ameaça conferido a esse trabalho para o
capitalismo e na medida que esses trabalhos deixaram de ser
essenciais aos homens (NOBRE, 2003). No entanto, embora
restrito e não devidamente registrado, o trabalho das mulheres em
organizações de trabalho sempre foi uma realidade. A necessidade
sentida pela mulher de classe mais baixa de complementar a renda
familiar promovia uma demanda por algum tipo de inserção dela no
mundo do trabalho produtivo; foi a partir da sua atuação em
cooperativas, associações e grupos populares que muitas mulheres
trabalhadoras adentraram ao trabalho produtivo, quando o
cooperativismo de trabalhadoras/es já não ameaçava o capital, no
século XIX. Nesse período, as cooperativas de consumo femininas
começaram a se expandir, o que ocasionou a redução de custos na
obtenção de alimentos (NOBRE, 2003).
Com a expansão das Organizações de Trabalho Associado na
América Latina, a inserção das mulheres em postos de trabalho
nesses locais foi intensificada. Bruna de Vasconcellos (2017, p. 166)
analisa que “os registros sobre a atuação das mulheres populares na
América Latina refletem o papel socialmente constituído delas como
cuidadoras.” A organização de mulheres populares também denotou
uma união frente às crises, em prol da garantia da sobrevivência:
diversos grupos populares de mulheres “em algum momento de sua
existência se empenharam em gerar renda, nem que fosse apenas
para garantirem o funcionamento do próprio grupo” (NOBRE,
112
2003, p. 2). Inclusive, diversos grupos foram formados a partir de
uma intensa presença de mulheres, mas, na medida em que
cresceram, alcançaram uma geração de renda e conseguiram mais
recursos com doações ou empréstimos, foram se masculinizando.
Para Miriam Nobre (2003), o cooperativismo das/os
trabalhadoras/es como um todo ressurge como um enfrentamento
ao capitalismo, mas não leva em consideração a questão da
desigualdade de gênero. Entretanto, logo no início, as relações
sociais pautadas no patriarcado e a divisão sexual do trabalho foram
também colocadas aos grupos, às organizações de trabalhadoras/es e
às primeiras cooperativas de trabalho. Carla de Avila (2019, p. 87)
analisa que “a articulação de classe, raça e gênero, está obtendo
recente visibilidade no cenário atual de produção sobre as
desigualdades sociais”. Na área das ciências sociais, é apenas
recentemente que se considera relevante o que há muito tempo as
intelectuais negras já defendiam: que as dimensões de raça e de
gênero são fundamentais para a compreensão dos processos de
produção tanto das desigualdades quanto das lutas e organizações
sociais das/os trabalhadoras/es.
O crescimento da participação de mulheres nessas
organizações não significou mudanças nas estruturas sociais. As
inovações tecnológicas, por exemplo, não representaram uma
modificação de papéis e atribuições sociais destinados às mulheres e
aos homens: reforçaram uma divisão sexual do trabalho já conhecida
anteriormente. A tecnologia aparece hierarquizada com relação ao
recorte de gênero, tanto em empresas capitalistas como nas
cooperativas de trabalho, nas quais as modificações técnicas
“ratificam a divisão sexual do trabalho previamente estabelecida,
valorizando funções masculinizadas e de algum modo precarizando
as funções feminizadas” (VASCONCELLOS, 2017, p. 208).
113
Há, portanto, na auto-organização de trabalhadoras/es, uma
exploração de trabalhos feminizados. Reforça-se, assim, uma
naturalização da diferenciação e da hierarquização do trabalho,
ancorando o trabalho tecnológico “às características físicas e à
demanda de força física pontual e justificando construtos sociais de
gênero através de atributos biológicos” (VASCONCELLOS, 2017,
p. 209). É possível afirmar que a construção do processo histórico,
o modo de organizar o trabalho e as relações de trabalho dentro de
Organizações de Trabalho Associado, apesar de tender a se
diferenciar das empresas capitalistas, encontram-se dentro de uma
cultura social dominante, capitalista e machista ou seja, muitas
das normas sociais estão presentes na rotina dos coletivos de
trabalhadoras/es. Para Neusa Dal Ri (2015, p. 121),
[...] um marco de diferenciação profissional entre os gêneros
encontra-se na distribuição dos/as trabalhadores/as pelos
diversos ramos da economia. Verificamos que nas EAs
[Empresas de Autogestão] as mulheres encontram-se
concentradas naqueles ramos tradicionalmente vistos como
femininos, tais como confecção, têxtil e preparação de
alimentos. Em outros ramos, como, por exemplo, metal-
mecânica, mineração, dentre outros, a participação das
mulheres ou é muito pequena ou inexiste.
Apesar de observar uma reprodução da cultura social
machista dominante, Neusa Dal Ri (2015) assinala que, embora
apresente contradições, as/os associadas/os nas OTAs, ao construir
configurações coletivas, um local de trabalho menos burocrático
com menos cargos e funções menos rígidas e menos hierárquicas,
constroem e exercitam o poder ao indicar e eleger suas e seus
representantes, o que indica uma liberdade na expressão de ideias e
114
de discussão. Assim, percebe a promoção de uma constituição de
relações sociais mais próximas, baseadas na democracia e na
equidade. Analisa, no entanto, um comportamento de subordinação
das mulheres em relação aos homens, ainda que nada as proíba de
adotarem uma atitude mais independente.
As Organizações de Trabalho Associado podem, portanto,
possibilitar relações de gênero mais igualitárias, uma vez que as
diferenciações entre homens e mulheres podem ser diminuídas. Em
teoria, a gestão e a administração do local de trabalho são coletivas e
pertencem a todas e todos as/os que ali trabalham. Mesmo que, na
prática, as/os trabalhadoras/es encontrem dificuldades no que tange
a essa modalidade de gestão, ela “permite às mulheres ascenderem a
funções de responsabilidade e a cargos de direção em proporções
maiores do que as encontradas usualmente” (DAL RI, 2015, p.
125). Ao investigar as transformações nas relações sociais e de
trabalho em OTAs, especialmente referentes às questões de gênero,
ações educacionais e participação política das mulheres, Neusa Dal
Ri (2015, p. 131) conclui:
A análise da realidade das OTAs mostra que a ideologia
patriarcal não se encontra suprimida nos empreendimentos
autogestionários e nem nos movimentos sociais estudados,
aparecendo sob diversas manifestações. Esse fato é coerente
com a situação socialmente excêntrica dessas organizações, com
condição de propriedade privada dos meios de produção e
produtoras de mercadorias e, ademais, com o fato de que
seguem vivendo sob a hegemonia social, econômica, ideológica
e cultural do capitalismo. Ao mesmo tempo, constatamos que
elementos de igualdade política em geral, e de gênero em
particular, foram adotados por essas organizações, o que
beneficia as trabalhadoras das OTAs. Esses elementos ficam
mais claros quando a situação de trabalho e de inserção política
115
das associadas às OTAs é comparada com a situação da mulher
no mercado de trabalho assalariado.
Os principais elementos de igualdade entre os gêneros nas
OTAs estudadas foram destacados pela pesquisadora:
1) direitos juridicamente iguais aos dos homens no que diz
respeito à condição de associadas; 2) igualdade quanto às
remunerações percebidas pelo mesmo trabalho realizado; 3)
oportunidades expressivamente maiores do que as existentes
nas empresas tradicionais para o exercício de funções de
responsabilidade e cargos de direção; 4) subsistência de uma
atmosfera de relações de trabalho que destoa dos valores
socialmente predominantes, na medida em que se busca
valorizar a igualdade, a cooperação e a solidariedade entre os
trabalhadores; 5) reeducação imanente derivada das práticas de
relações de trabalho democráticas, as quais se manifestam em
posturas e intervenções que revelam um crescimento da
autonomia e da autoconfiança femininas; 6) disposição em
elaborar políticas específicas para a igualdade de gênero (DAL
RI, 2015, p. 131-132).
Nas organizações, nas políticas e no movimento da
Economia Solidária, há também uma ausência de introdução das
dimensões de gênero e raça enquanto categorias de análise das lutas
e dos grupos (LEITE; SOUZA, 2010). É muito comum que as
pessoas que participam do movimento pensem que, por traçar a
igualdade, a solidariedade e a democracia como princípio, a
Economia Solidária automaticamente já englobe a pauta de gênero.
No entanto, apesar de a Economia Solidária ter a solidariedade e a
igualdade como princípios e valores pelos quais os grupos populares
procuram se orientar, existe um limite de garantia da igualdade entre
116
os diferentes grupos de pessoas, dada as relações capitalistas que
ainda os permeiam (FLEURI, 2003).
Isabelle Hillenkamp, Isabelle Guérin e Christine Verschuur
(2016, p. 2) analisam que poucos estudos trabalharam a intersecção
entre as categorias de gênero, teorias feministas e Economia
Solidária. No geral, para as autoras, os estudos da área consideram
que o campo trabalha “necessariamente a favor das mulheres”, o que
torna as relações entre estas categorias invisíveis, inviabilizando a luta
por demandas específicas de mulheres nos EESs e contribuindo para
que as/os trabalhadoras/es não entrem em contato com as
reproduções decorrentes da parceria que o capitalismo realiza com o
patriarcado, que acontecem também dentro dos empreendimentos.
Para Marcia Leite e Silvana de Souza (2010), os dados de
gênero disponíveis no Sistema de Informação em Economia
Solidária (SIES) sinalizam uma situação muito desfavorável para as
mulheres nos empreendimentos. Pelo levantamento realizado em
2007, é possível aferir que as mulheres estão localizadas em frentes
de trabalho similares ao trabalho doméstico, como observado
também no mercado de trabalho assalariado. Nesse sentido, as
mulheres se concentram nos setores de costura, alimentação,
calçados e reciclagem; existe uma presença maior de mulheres nas
frentes de costura e alimentação, já que há uma presença masculina
também acentuada nos setores de reciclagem e de calçados. A
expressiva presença de homens nas fábricas recuperadas e em
empreendimentos de profissionais qualificados e a precariedade das
organizações dos setores de costura, calçados, alimentação e
reciclagem, revelam a conjuntura das mulheres na Economia
Solidária.
Segundo o mapeamento nacional de EESs feito pela
SENAES em 2013, podemos aferir que em cerca de 20 mil EESs no
117
país, mais de 600 mil pessoas são mulheres e mais de 800 mil são
homens. Mais de 80 mil são as mulheres que ocupam cargos de
coordenação e/ou direção do empreendimento, enquanto que mais
de 60 mil são os homens nessas funções. A maior parte das/os
trabalhadoras/es se autodeclara parda (ATLAS, 2014). Estes
números podem ser reavaliados nos dias atuais, já que o último
mapeamento foi concluído há algum tempo e, para serem mapeados,
os empreendimentos devem seguir alguns requisitos.
Os setores onde as mulheres são a maioria ou estão inseridas
de forma parcial revelam uma preponderância de grupos informais
como forma de organização, além de se constituírem enquanto
grupos menores e com tipos de infraestrutura inferiores, em sua
maioria com instalações temporárias cedidas por terceiros. Em
empresas recuperadas e nos empreendimentos de profissionais
qualificados, há maior predominância das formas de organização
cooperativas, o que significa uma maior formalização e um grupo
maior de associadas/os. Segundo Marcia Leite e Silvana de Souza
(2010), os rendimentos entre esses empreendimentos também são
diferentes: em setores onde predominam ou inserem-se parcialmente
mulheres, os rendimentos são inferiores ao salário mínimo, muito
baixos ou até inexistentes. Dessa forma, ponderam:
Essas constatações indicam as dificuldades para que as
trabalhadoras e os trabalhadores se fixem nesses
empreendimentos, o que ocasiona instabilidade e pouca
probabilidade de consolidação e de sobrevivência a longo prazo.
Cabe ressaltar que, nesse contexto, as empresas recuperadas e os
empreendimentos dos profissionais qualificados estão em
melhor situação seja quanto ao patamar da remuneração de seus
associados (em cerca de 20% desses empreendimentos, os
rendimentos são maiores do que dois salários mínimos), seja
quanto ao acesso a certos direitos trabalhistas, parecendo
118
indicar maior consolidação, bem como melhor adaptação
dessas organizações às condições de mercado (LEITE; SOUZA,
2010, p. 210).
As mulheres são maioria em várias iniciativas e grupos de
Economia Solidária (HILLENKAMP; GUÉRIN; VERSCHUUR,
2014). As organizações de Economia Solidária e o movimento como
um todo são atravessados por relações de gênero, e cabe às/aos
pesquisadoras/es investigar até que ponto as mulheres encontram
meios para a emancipação a partir da Economia Solidária ou, ao
contrário, acabam reproduzindo as estruturas da exploração.
Podemos pensar que essas contradições também fazem parte das
lutas pela emancipação das/os trabalhadoras/es.
Élen Schneider (2010, p. 15) analisa que a presença
significativa de mulheres nas iniciativas e em empreendimentos de
Economia Solidária pode ter origem na conciliação quase impossível
entre a vida familiar e a vida profissional, das responsabilidades
múltiplas que são direcionadas às mulheres e da dificuldade de acesso
tanto à propriedade quanto ao crédito. Nesse sentido, avalia que são
“as primeiras a se auto-organizarem ou receberem incentivos para
organização nas comunidades em que vivem”. As mulheres
entrevistadas pela pesquisadora na quarta Plenária Nacional de
Economia Solidária relatam uma preocupação na
forma que desenvolvem suas atividades. Demonstram desejar
que os espaços de trabalho sejam lugares nos quais possam
“exercer seus direitos”, que tenham “tempo” de cuidar da saúde
e também de sua família um pensamento ainda muito
presente: a responsabilidade pelo cuidado da família e
principalmente que possam trabalhar sem abrir mão do seu
“desenvolvimento humano”. Nos empreendimentos, segundo
as lideranças, embala-se um ideal de (re)significação da noção
119
de trabalho. Nos depoimentos a definição está aliada à reflexão
de que “o trabalho precisa ser diferente do que na economia
vigente”. “Alternativo”, “mais humano”, “sem escravidão”,
“onde se é dono(a), patrão(a)”. Mas percebe-se, também, a
percepção de que este carece de oferecer direitos e garantias, que
por enquanto parecem “improvisados” pelos grupos, na medida
em que vai havendo a necessidade das pessoas participantes
(SCHNEIDER, 2010, p. 18).
Na Economia Solidária, em cargos de representação, na
movimentação e mobilização social é possível aferir que as mulheres
podem aperfeiçoar e se afirmar enquanto sujeito que possui ideias,
que pode participar e reivindicar os seus direitos, uma vez que no
cotidiano do trabalho, a abertura para o diálogo é maior do que em
empresas capitalistas, a depender do nível de autogestão e de
democracia do empreendimento. Podem-se observar possibilidades
no que tange ao debate sobre as desigualdades de gênero ali
existentes (SCHNEIDER, 2010).
Ioli Wirth (2013, p. 133) afirma que “com a Economia
Solidária, as mulheres passam a poder ocupar um lugar de maior
reconhecimento e de dar um caráter político a essas funções em vez
de entendê-las como femininas e naturalizadas.” Identificar e
analisar as reproduções das desigualdades nas relações de gênero em
locais essencialmente cooperativos nos mostra como elas operam, e
como podem ser modificadas: podemos analisar que não são relações
naturais, e sim, sociais.
Para Isabelle Guérin (2005), a participação das mulheres na
Economia Solidária pode sim significar uma possibilidade da
conquista de autonomia, levando em consideração a geração de
renda, a atuação em movimentos sociais e populares, as ações
coletivas, sociais e comunitárias das mulheres trabalhadoras, etc. O
120
trabalho que as mulheres realizam dentro das associações e das
cooperativas de trabalho, quando não integrais e sem a priorização
de rendimento financeiro para a valorização do trabalho, mistifica o
quão precários são os processos de trabalho nessas organizações. Esse
cenário reproduz e auxilia a expansão do sistema capitalista.
Há, portanto, dentro da Economia Solidária, uma
contradição muito grande devido ao, por um lado, oferecimento de
uma alternativa de trabalho e renda para as mulheres,
principalmente para as mais pobres, e, por outro, a uma reprodução
da lógica de que a mulher é a única responsável pelo trabalho
doméstico e pelo cuidado no ambiente familiar, já que estão dentro
das iniciativas e empreendimentos de Economia Solidária para terem
maior disponibilidade para conciliar as duas jornadas de trabalho.
A Economia Solidária pode traçar um diálogo com a
Economia Feminista na medida que a segunda procura demonstrar
como o trabalho reprodutivo sustenta o trabalho produtivo, apesar
de não ser valorizado pela economia. Tanto a Economia Solidária
quanto a Economia Feminista atuam no sentido de construir outro
sentido para o trabalho e para a economia. Para Ioli Wirth (2010, p.
64), “a ampliação da noção de trabalho é uma questão chave para
possibilitar a articulação entre trabalho e gênero”; a categoria do
trabalho, portanto, deve ser recuperada enquanto atividade de
produção da vida, e partir das condições que a natureza fornece,
baseada não em uma relação de exploração, mas em uma relação de
troca.
Ao se inserir nas organizações de Trabalho Associado e/ou
de Economia Solidária e em movimentos sociais, ou ao lutar por
uma Economia Feminista, as mulheres desafiam e se contrapõem ao
capitalismo e às destruições que dele decorrem. Assim, as mulheres
dessas organizações estão
121
construindo novas formas de existência que rejeitam a lógica de
mercado e as políticas mais recentes sobre a reprodução da vida
cotidiana, canalizando o poder das relações afetivas que
tradicionalmente caracterizaram a esfera doméstica na
produção da solidariedade social. Seus esforços redefinem
aquilo que entendemos por “política” e “democratização” e
recodificam o feminismo, transformando o trabalho cotidiano,
social e reprodutivo em ação coletiva que converte os bairros
em comunidades de resistência à exploração capitalista
(FEDERICI; VALIO, 2020, p. 3).
As mulheres de organizações populares podem refletir sobre
questões de gênero por meio da autoeducação. Podem levantar
acontecimentos do trabalho, discutir sobre a desvalorização do
trabalho que realizam, buscam retomar o controle de seus corpos e
podem resistir às várias violências que sofrem dentro e fora dos
empreendimentos. Ao viver as contradições em seus cotidianos e nas
organizações, podem reconhecer as consequências do patriarcado e
do capitalismo.
Ao pesquisar sobre a realidade das mulheres catadoras,
Camila Paiva (2016) analisa que há uma relação direta entre o
crescimento do número de mulheres dentro das cooperativas e
associações de catadoras/es e a precarização do trabalho. Essa relação
pode ser justificada tanto pelo nível de escolaridade e pela ausência
de oportunidades no mercado de trabalho formal quanto pela
flexibilidade que as organizações de catadoras/es possibilitam para as
mulheres no que tange ao estabelecimento de regras de trabalho, o
que promove uma melhor conciliação da mulher entre o trabalho
produtivo e o trabalho reprodutivo. As mulheres catadoras
começaram recentemente a se mobilizar e levantar suas pautas, no
que diz respeito à desigualdade de gênero existente nos grupos e no
movimento social da categoria.
122
Gênero e as organizações das/os catadoras/es
As mulheres catadoras estão inseridas em um contexto de
vulnerabilidade econômica, social e trabalhista. Como vimos
anteriormente, em sua maioria, as catadoras estão submetidas a um
sobretrabalho devido às responsabilidades domésticas a elas
destinadas em casa (e por vezes, trabalham como empregadas
domésticas nas casas de outras pessoas), além de estarem sujeitas a
uma ocupação precária, informal e arriscada. As trajetórias de vida
dessas mulheres, geralmente, revelam marcas do desemprego, do
trabalho infantil, do casamento, de poucas oportunidades de
escolarização e da maternidade como limitações para a vida
profissional (COELHO et al., 2018). Muitas delas foram mães na
adolescência, foram ou são vítimas de violência doméstica e possuem
dependência de álcool e/ou drogas (QUEIRÓS; LEAL; FUZZI,
2020).
Ainda que a necessidade de um maior emprego de força física
no trabalho da catação apareça também como uma justificativa para
inserir os homens catadores nesses postos de trabalho, muitas
mulheres catadoras se sentem equiparadas aos homens, negando
uma diferenciação de habilidades e de capacidades (COELHO et al.,
2018). Tanto as mulheres quanto os homens reestruturam sua
identidade pessoal e profissional por meio da organização da
categoria e é possível considerar que algumas características da
divisão sexual do trabalho e das relações sociais, analisadas pela
perspectiva de gênero, são modificadas nessas organizações. No
entanto, ainda que as mulheres possuam forte liderança nos grupos
populares de catadoras e catadores, as desigualdades e o
estabelecimento de relações assimétricas entre homens e mulheres a
123
partir de uma hierarquização de gênero e de raça podem ser
encontrados em empreendimentos de catadoras/es.
Fabiana Grecco (2016) analisa que quanto menor for a
iniciativa ou o empreendimento, maior será a participação das
mulheres, ou seja, quanto maior for a precarização do trabalho no
local, maior será a participação das mulheres trabalhadoras. Para
as/os técnicas/os do IPEA (2013), a renda média dos homens
catadores chega a ser R$611,10, enquanto a renda média das
mulheres chega a ser 32% menor, aproximadamente R$460,54.
Não só os homens recebem maiores remunerações que as mulheres
no trabalho da catação, o que infere um maior prestígio ao trabalho
realizado por eles, como há uma divisão entre as funções realizadas
por homens e as que são realizadas por mulheres dentro das
associações e das cooperativas de reciclagem. Em geral, as mulheres
estão inseridas em funções que exigem maior atenção, cuidado e
delicadeza, como por exemplo a separação dos materiais recicláveis.
O trabalho na esteira, advindo dos moldes fordistas-tayloristas de
produção, onde existem então divisão de funções e uma rotinização
de movimentos e gestos, demonstram ser ou um espaço distribuído
entre homens e mulheres, e ou lugar exclusivo das mulheres
(GRECCO, 2016).
Segundo o Anuário da Reciclagem (2021), a participação das
mulheres na catação é majoritária em quatro das cinco regiões
brasileiras. Em 358 organizações estudadas, o percentual de
mulheres é maior na região Sudeste: são 2088 mulheres distribuídas
nas organizações de catadoras/es. A maioria das/os trabalhadoras//es
se autodeclaram pardas/os (44,2%) e pretas/os (31,9%) e possuem
o ensino fundamental incompleto (48%), o que indica um recorte
de gênero, raça e de nível de escolaridade no trabalho. A renda
mensal das/os catadoras/es é maior no sul (R$1.256) e menor no
124
norte do país (R$975); pode-se perceber, portanto, que nessa
amostra de catadoras/es, o rendimento é mais alto que no
mapeamento realizado pelo IPEA em 2013.
Esses dados indicam que há uma relação entre as categorias
da feminização e da precarização no trabalho da catação de materiais
recicláveis. O trabalho das mulheres catadoras decorre, de forma
mais acentuada, do cenário de desemprego e da falta de
oportunidades no mercado formal de trabalho. A ausência de
perspectivas de carreira e de qualificação profissional e a necessidade
de conciliar o trabalho da catação com outros trabalhos estão,
portanto, atreladas à destinação de uma alternativa de geração de
trabalho e renda precarizada, mal remunerada e pouco reconhecida
às mulheres, especialmente às mulheres negras.
A tendência à feminização do trabalho e a sua acentuada
precarização continuou a se manter atuante no Brasil durante
esse século. Nesse cenário, a atividade das mulheres catadoras
surgiu como alternativa frente ao estado de desemprego e a falta
de opções de ingresso no mercado de trabalho formal,
conforme atestam os relatos das entrevistadas durante esta
pesquisa. Esse fato corrobora com a ideia de que a falta de
perspectivas e qualificação profissional têm proporcionado o
direcionamento de homens e, sobretudo de mulheres para as
atividades de manuseio de resíduos sólidos, como forma de
gerir sobrevivência para si e para seus familiares (SILVA;
MENEGAT, 2016, p. 271).
Alexa Coelho et al. (2018, p. 7) apontam um “conjunto de
condições que culminaram na restrição das oportunidades e no
sofrimento das trabalhadoras ao longo de sua vida”. A pesquisa
realizada pelas/os autoras/es sobre o trabalho e a saúde de mulheres
catadoras em uma cooperativa em uma cidade do Rio Grande do
125
Sul, identificou que as relações desiguais de gênero existentes nesse
ambiente de trabalho estão correlacionadas a diversas vivências de
insatisfação das mulheres, inclusive a uma sobrecarga de trabalho, o
que indica circunstâncias de adoecimento das trabalhadoras.
Fabiana Grecco (2016) considera que, nas organizações
pautadas pela perspectiva da Economia Solidária, estão presentes
uma rígida jornada de trabalho, uma hierarquia de remunerações e
de funções do trabalho, divisão de tarefas, adequação e seleção de
um perfil específico de trabalhadoras/es e de investimentos em
qualificação técnica, mecanização de movimentos, etc. A
pesquisadora considera que, perante esse contexto, pode-se reiterar
que o “capital opera funcionalmente utilizando formas de trabalho
‘primitivas’ e atualizadas, combinando-as socialmente para expandir
suas taxas de lucro” (GRECCO, 2016, p. 42).
No estudo de caso com duas cooperativas populares de
reciclagem do município de Campinas/SP, Ioli Wirth (2010)
analisou uma “nítida divisão sexual do trabalho”. Nas duas
cooperativas pesquisadas, as funções consideradas pesadas e que
demandam força física intensa, como a prensagem, o carregamento
do caminhão e o manejo de fardos eram direcionadas aos homens.
As funções determinadas como femininas eram distintas para os dois
empreendimentos: em uma das cooperativas, a triagem era tarefa das
mulheres; na outra, as mulheres eram responsáveis pela limpeza, pela
cozinha e pela administração do empreendimento. Também, em
uma delas, durante o primeiro ano de pesquisa, a tipificação dos
trabalhos determinava uma implementação de sistema de retiradas
desigual entre homens e mulheres.
Ao observar a divisão das funções do trabalho dentro das
cooperativas de catadoras e de catadores no Distrito Federal, Ingrid
Martins et al. (2016) salienta que as mulheres ocupam, em geral, as
126
funções de coleta e de triagem, enquanto os homens desempenham
a tarefa de prensar o material. A presença maior de mulheres nas
cooperativas foi uma questão evidenciada pelas/os pesquisadoras/es,
bem como o fato de que muitas mulheres ocupam cargos de
representação e de liderança dentro dos empreendimentos. Relatam
se sentir como mães no local, visto que se importam e cuidam das/os
colegas de trabalho, e não estão preocupadas apenas com o fazer do
trabalho. Na visão delas, quando a presidência do empreendimento
é realizada por homens, eles não se atentam para as questões que
envolvem o cuidado e a integração das/os trabalhadoras/es no
coletivo.
Ao estudar duas Cooperativas de catadoras/es da Argentina,
Verónica Puricelli e Sofía Ardaya (2018) também analisaram as
relações de gênero ali estabelecidas, e encontraram resultados
parecidos com os anteriormente apresentados: a mulher é vista como
quem deve cuidar e ensinar as/os colegas de trabalho. As mulheres
catadoras cuidam e tomam decisões nas cooperativas desde que
continuem a desempenhar suas tarefas em casa, como mães, como
domésticas e como cuidadoras do lar, o que demonstra o elo entre a
precarização do trabalho e a categoria gênero.
Fabiana Grecco (2016) considera que a descrição da divisão
de tarefas e dos processos deste trabalho se mostra relevante, uma vez
que pode desvelar a reprodução dos moldes fordistas-tayloristas de
produção e da separação e hierarquização das funções realizadas por
homens e por mulheres, que repercutem a divisão sexual do trabalho
intrínseca às sociedades capitalistas. Dessa forma, analisa:
Se, por um lado, a chamada Economia Solidária se caracteriza
pela organização dos processos de trabalho via “solidarismo”,
que se oporia ao “competitivo” por meio da propriedade
coletiva dos meios de produção (Laville, 1994; Singer,2001 e
127
2002), por outro, o que se verifica no processo de trabalho no
interior das associações ou cooperativas é a reprodução dos
moldes fordista-taylorista de produção e precárias condições de
trabalho e vida das trabalhadoras e trabalhadores. Da mesma
forma, se os chamados “trabalhos de proximidade” seriam
aqueles realizados por “afeição” ou por “senso de responsa-
bilidade” e, além disso, na realização dessas atividades, a
retribuição financeira não seria algo imediatamente esperado
(Folbre, 1997; Laville, 1994), o trabalho das mulheres no
interior dessas associações ou cooperativas, ao contrário, reflete
as mesmas condições da exploração do trabalho das mulheres
em condições tipicamente capitalistas (GRECCO, 2016, p.
47).
A divisão sexual do trabalho nas cooperativas de reciclagem
também colabora para a construção das representações sociais sobre
a masculinidade (VASCONCELLOS, 2017). Os homens escolhem
o trabalho caso este seja compatível com o que lhes é imposto como
masculino: caso esteja ligado mais à produção do que à reprodução
social, ou seja, se interessam pelo controle do maquinário, mas não
se interessam, por exemplo, pela limpeza ou cuidado dos
empreendimentos. Tal compreensão é também reproduzida pelas
mulheres, que demonstram o mesmo pensamento: os homens
devem ficar em trabalhos que exigem força física intensa e uso de
tecnologia.
Por outro lado, sob a perspectiva das vidas individuais, as
organizações de trabalho das/os catadoras/es possibilitam um nível
de autonomia e de autoconfiança para as mulheres. Para Camila
Paiva (2016), as mulheres catadoras, a partir do trabalho em
organizações de catadoras/es, ressignificam a posição social que
ocupam e se articulam politicamente. Muitas dessas organizações
possuem presidentas mulheres, principalmente nas cidades menores,
128
tendo muitas responsabilidades nos empreendimentos, o que
acarreta uma rotina bem estressante. A participação política das
mulheres nas organizações e no movimento social da categoria
permite que elas construam uma maior autonomia, se sentem mais
valorizadas apesar das inúmeras dificuldades que enfrentam. Fazem
campanhas, protestos, se posicionam, representam o grupo e
subvertem o papel social da mulher, enquanto alguém passiva e
submissa.
mulheres que procuraram a cooperativa devido ao desemprego
e à falta de oportunidade no mercado formal ou que estiveram
desde criança na atividade de catação. Mulheres com baixa
escolaridade e qualificação profissional. Mães e chefes de
família que enfrentam dificuldades em conciliar o tempo entre
o trabalho (produtivo) e o cuidado dos filhos. Mulheres
catadoras que entenderam a cooperativa como um espaço de
trabalho em que é possível conversar e ter seus problemas
validados. Mulheres que assumiram a coordenação da
cooperativa e que se utilizam de “pulso firme” para organizar o
trabalho. Mulheres que voltaram a estudar, que recebem
formação política e que aprendem a importância da
comunicação (PAIVA, 2016, p. 169)
Bruna Vasconcellos (2017, p. 209) traça a reflexão de que,
ainda que os processos de construção de alternativas de trabalho
possam reproduzir as experiências capitalistas, de masculinização do
trabalho técnico, também geram “possibilidades para os trabalhos
feminizados”. Assim, ao analisar uma cooperativa de reciclagem de
Campinas, observa que, na ausência dos homens, as mulheres
assumem todas as funções, o que tanto pode significar uma presença
majoritária de mulheres, um acúmulo de trabalho destinado a elas
129
e/ou uma responsabilização maior pelo empreendimento, pelo
grupo de trabalhadoras/es e pela causa.
Para Fabiana Grecco (2016, p. 47), “o ponto de vista
individual não pode mistificar a exploração capitalista que é
verificada, por exemplo, nas péssimas condições de trabalho dessas
mulheres trabalhadoras”. Para que haja uma inclusão socioeco-
nômica das catadoras, portanto, é preciso que “se atente para a
possibilidade de apropriação do cooperativismo pelo capitalismo.
Este mantém as hierarquias de gênero e raça no seu funcionamento
para explorar” (MARTINS et al., 2016, p. 96).
A luta pelas modificações das relações de gênero pode e é
construída a partir do movimento social do segmento. A inserção da
temática nas pautas do movimento é recente e possui tanto
potencialidades quanto insuficiências: a luta das mulheres catadoras
é uma força a ser ampliada e consolidada, para a valorização da
mulher, especialmente a mulher negra, enquanto catadora. Na
COOCASSIS, percebemos uma evidente divisão social do trabalho
e uma luta a ser traçada pela modificação das relações de gênero.
As relações de gênero na COOCASSIS
Atualmente na COOCASSIS, observamos os trabalhos
classificados como “masculinos” pelas/os catadoras/es da
Cooperativa são compostos pela operação da talisca, pela direção do
caminhão, descarga dos materiais na talisca, manuseio da
empilhadeira, troca e carregamento dos bags, desmonte de peças
eletro eletrônicas e pela prensagem (apenas na prensa maior).
A separação (triagem) dos materiais recicláveis é tarefa
exclusivamente feminina, bem como a limpeza do empreendimento,
a cozinha, a fragmentação de papéis e a pesagem dos materiais
130
recicláveis nos caminhões. A atividade de furar as garrafas PET já foi
exclusivamente destinada aos homens anteriormente no
empreendimento, devido ao risco que ela promove, mas,
atualmente, é um trabalho direcionado às mulheres; a coordenação
do empreendimento, a prensagem nas prensas menores e a catação
dos materiais recicláveis nas ruas são realizadas, em sua maioria, por
mulheres.
A coleta de lixo orgânico é uma frente de trabalho destinada
exclusivamente aos homens e as/os catadoras/es justificam essa
realidade pelo fato de que é uma função específica do trabalho, onde
os trabalhadores carregam sacos muito pesados. Devido a esse fator,
no entanto, eles dificilmente possuem uma participação ativa no
coletivo, em assembleias, reuniões, grupos de trabalho, e convivência
com o grupo. Em geral, esses catadores não frequentam o barracão
todos os dias.
A construção social das diferenças acerca das relações de
gênero é exposta pelas/os catadoras/es quando afirmam a posição da
mulher e a posição do homem na Cooperativa, e como elas/es se
comportam de acordo com a perspectiva de gênero: “mulhereso
mais atentas, esforçadas, cuidadosas”; “homens devem pegar o
trabalho mais pesado”, não se interessam e não participam de
atividades nas quais possam expressar sentimentos, são preguiçosos
e preferem não conviver com todo o grupo. Observamos que dentro
do empreendimento, os homens realizam suas atividades de forma
mais automática e independente, de forma a não precisar, muitas
vezes, ter o conhecimento e a prática de todas as funções e do
funcionamento de todo o processo de trabalho.
As mulheres, por outro lado, em sua maioria, possuem
experiência em quase todas as funções desempenhadas, e trabalham
de forma mais colaborativa: o trabalho de uma depende, muitas
131
vezes, diretamente do trabalho da outra, como por exemplo na
função da esteira, na qual cada uma é responsável por triar um tipo
específico de material, e procuram deixar para trás um número
mínimo de materiais possível. Além disso, o trabalho das mulheres
nessa função é controlado pela tecnologia e por quem a alimenta: as
catadoras da COOCASSIS demandam por um ritmo de trabalho
mais desacelerado, devido ao cansaço que a repetição de movimentos
promove nesta função, o que deixa os catadores muito bravos,
porque almejam o aumento e o controle da produtividade.
Cinthia (2022) traça uma concepção de que a mulher não
aguenta realizar alguns serviços sozinha, como os homens, devido às
suas diferenças físicas, o que reforça o lugar da mulher enquanto
delicada e o do homem enquanto encarregado do que é “mais
pesado”, ainda que as mulheres também sejam. Essa realidade
também está presente e advém do trabalho operário, nas fábricas
capitalistas: ao estudar as relações de gênero nessa modalidade de
trabalho, Lapa (2020, p. 200) observa que há, no trabalho da
montagem, um duplo argumento de que a mulher é delicada e que
o homem é bruto para funções do trabalho que exigem cuidado e o
manuseio, porque para as/os trabalhadoras/es, as mulheres são mais
cuidadosas e dedicadas, e portanto, possuem mais facilidade nessas
frentes de trabalho. Para um dos trabalhadores da pesquisa, existe
uma fragilidade feminina que faz com que as mulheres trabalhem
sentadas, ainda que a maioria das mulheres realizassem o trabalho
em pé dentro das empresas. A pesquisadora relata que este
trabalhador realiza uma reflexão sobre sua própria fala devido a
presença de uma mulher na sua equipe de trabalho que era
alta (“cavalona”) e para ela poderia ser melhor trabalhar de pé.
Sem perceber, seu argumento fundado no sexo desaparece,
132
dando lugar a pensar na altura adequada para o posto. Em sua
própria reflexão ele (nas entrelinhas) “matou a charada”: não
era preciso ter o sexo masculino para operar as máquinas de
testes dos celulares.
Com algumas diferenças, é notória, na COOCASSIS, uma
divisão sexual do trabalho semelhante com a que Ioli Wirth (2010,
p. 179) encontrou em sua análise acerca da divisão sexual das
funções de trabalho em duas cooperativas de Campinas/SP:
Os trabalhos considerados pesados, que demandam grande
força física concentrada e nos quais se utiliza maquinário, como
a alimentação das mesas de triagem, a prensagem, o manejo dos
fardos no estoque e o carregamento de caminhão, são
considerados masculinos nos dois empreendimentos. O
trabalho da triagem, descrito como uma função que demanda
atenção, capricho, habilidades manuais finas como tato e
agilidade é, e sempre foi, majoritariamente feminino nas duas
cooperativas.
Para Camila Paiva (2016, p. 160), “nas cooperativas de
catadores observa-se uma divisão entre o trabalho masculino, ligado
à operação de maquinário e à utilização de força física, e o trabalho
feminino, que envolve habilidade, agilidade e atenção”.
Observamos, na COOCASSIS, que o trabalho do homem tende a
ser mais relacionado ao emprego da tecnologia, e portanto, mais
mecanizado e controlado. A esteira é controlada por um homem, o
que significa que é ele quem acaba ditando o ritmo de trabalho das
mulheres na triagem (VASCONCELLOS, 2017).
Ingrid Martins et al. (2016, p. 95) encontra resultados
parecidos em sua pesquisa sobre as relações de gênero, a divisão
sexual do trabalho em cooperativas de catadoras e de catadores e o
133
papel de lideranças femininas na política pública de resíduos sólidos
no Distrito Federal: as falas de uma entrevistada demonstraram que
o trabalho dos homens segue “uma lógica individualista e alinhada
aos padrões de masculinidade hegêmonica, isto é, associado às
funções de carregar peso e não participar de trabalhos como os de
triagem de materiais”. Para a entrevistada, são as mulheres que
lideram os empreendimentos de base, mesmo que o presidente seja
um homem. Na COOCASSIS, em cargos de representação, as
mulheres são a maioria e os homens, em geral, não assumem cargos
de liderança e não se envolvem com questões burocráticas e políticas
do trabalho.
Para Keicy dos Reis (2022) e para a catadora Laura (2022),
os catadores homens costumam não permanecer na COOCASSIS,
não tanto quanto as mulheres. Keicy dos Reis (2022) pondera que,
para os homens, o trabalho cooperado é mais difícil do que para as
mulheres, uma vez que uma boa parte dos homens possuem
dificuldades com o uso de substâncias e com a participação em
atividades do grupo, ao dividir o poder com as mulheres. O dividir,
tanto o peso quanto o poder, com as mulheres, pode significar
socialmente que os homens “não estão aguentando” ou que não são
homens o suficiente para aguentar, o que é também problemático
para esses trabalhadores.
A observação das/os trabalhadoras/es e das/os integrantes da
Incubadora acerca da facilidade que a mulher catadora possui (ao
menos, mais que os homens) de trabalharem em grupo pode
apreender a diferença de posições dos homens e das mulheres na
relação de exploração/dominação decorrente da vinculação do
patriarcado com o capitalismo. Dividir as funções e o trabalho por
igual significa uma diminuição dessas dimensões, que produzem
desigualdades; o homem, no entanto, ao permanecer em uma
134
posição mais individualista, reproduz o patriarcado e os mecanismos
de exploração do trabalho, ou seja, também se mantém explorado,
já que, como vimos anteriormente, as relações sociais são pautadas
pela diferenciação e hierarquização de gênero, de classe e de raça, e
não estão em lados opostos da exploração capitalista (ÁVILA;
FERREIRA, 2020).
Na COOCASSIS, observa-se que, com a justificativa de uma
menor promoção de sobrecarga destinada às mulheres, as/os
trabalhadoras/es procuram sempre colocar pelo menos um homem
em uma função considerada “pesada”, como por exemplo o
carregamento de bags. Entretanto, as mulheres são maioria no
empreendimento e estão a todo tempo necessitando de muita força
física para desempenharem o trabalho, uma vez que muitas funções
do trabalho da Cooperativa exigem esse tipo de força. Ana Maria
(2022) analisa que, ao mesmo tempo em que os homens estão
presentes em trabalhos ditos “pesados”, como a descarga de
caminhão, muitas mulheres catadoras estão em condições e inclusive
realizam esses tipos de trabalho.
A maioria das/os trabalhadoras/es responsáveis pela coleta
seletiva são as mulheres, que “andam nos estribos dos caminhões”,
carregam tambores pesados, eletrodomésticos, etc. Além disso, duas
das catadoras são motoristas de caminhões, e as/os representantes da
coordenação da Cooperativa observam que as mulheres, em geral,
“são mais atentas à condução, se envolvem em menor número com
acidentes, cuidam melhor do veículo e são mais cuidadosas com a
equipe que tá trabalhando junto”. Ou seja, as mulheres mantêm um
papel de cuidado e de responsabilidade, que é direcionado a elas de
forma naturalizada, socialmente.
No entanto, o homem, em geral, não se submete ao trabalho
que, usualmente, a mulher exerce, como o trabalho na esteira, na
135
limpeza e na fragmentação de papéis
16
. Para Ana Maria (2022), o
homem, quando explica seus motivos para a não realização desse
trabalho, revela um sentimento de vergonha por não desejar realizar
trabalhos tão parados e sem estímulos. Preferencialmente, querem
realizar trabalhos com equipamentos: “querem operar lá em cima a
talisca, que é onde você tem um certo poder, porque você controla
o que vai ou não de lixo para a esteira”. Pode-se dizer que os homens
precisam “se sentir homens” em seu trabalho, e para se sentirem
como tal, precisam responder às construções sociais do que é “ser
homem”: de carregar o fardo pesado, de não expressar dor ou
qualquer sentimento de fraqueza ou de vulnerabilidade, pois, ao
contrário, poderá ser taxado de "mulherzinha", o que revela uma
inferiorização das funções ditas femininas.
A necessidade de cumprir, para além da função, um
estereótipo de masculinidade que ao homem é destinada, faz com
que as/os trabalhadoras/es naturalizem a visão de que ele suporta e
aguenta mais peso e que possui até uma responsabilidade de proteger
e de “tutelar” as catadoras, no sentido de não sobrecarregá-las com
uma função dita “pesada”. Elis (2022) analisa que, em um evento
realizado pela Secretaria das Mulheres, no qual as catadoras falavam
sobre o machismo e sobre o papel do homem na família e no
ambiente de trabalho, refletiram sobre um papel de “defesa” e de
proteção que alguns catadores passaram a ter diante das mulheres na
COOCASSIS: “eles não gostam que mulher pega peso, eles correm
pra pegar o peso e falam desse jeito: mulher tem útero, nós não”.
16
Anteriormente na Cooperativa, a tarefa de fragmentação de papéis também era
direcionada aos homens devido ao risco de acidentes de trabalho que ela oferece. No
entanto, com o tempo, com a mecanização do trabalho e com a inserção de mais mulheres
catadoras na Cooperativa, esta função passou a ser destinada a uma mulher.
136
Ao escrever sobre a realização de uma oficina acerca da
temática de gênero em uma cooperativa de reciclagem em
Campinas/SP, Ioli Wirth (2011, p. 137) pondera como é a
construção social e cultural da força física masculina e como ela
também é prejudicial para as/os catadoras/es:
O homem tem uma capacidade física maior, mas ele também é
educado para ter um corpo mais forte, sobe em árvores desde
pequeno, joga a bola, enquanto as meninas brincam mais no
âmbito doméstico. Essa construção cultural da imagem do
homem forte também faz com que o homem tente responder a
essa imagem, suportando muitas vezes cargas maiores do que
poderia, prejudicando a sua saúde.
Por outro lado, as mulheres transitam bem mais em suas
funções dentro da COOCASSIS, o que pode indicar que a mulher
pode ocupar qualquer posto apenas por ser mulher: por sentir que
não pode escolher pelo trabalho que deseja realizar, por mais que,
no trabalho pautado pela Economia Solidária, exercitem o direito à
voz e ao voto. Dessa forma, ficam nos postos de trabalho que
sobram, que não são escolhidos pelos homens: e tal postura é
essencial para que a Cooperativa gire, uma vez que todas as funções
devem ser realizadas para alcançarem o resultado final, a
comercialização dos resíduos sólidos. Em pesquisa realizada pelo
Instituto Pólis e pela Sempreviva Organização Feminista
(GRINBERG; SILVEIRA, 2012), as catadoras foram consideradas
como multi-tarefas e os catadores, como trabalhadores que desejam
se especializar em uma função do trabalho, o que também foi
observado na COOCASSIS. Nessa mesma pesquisa, foi observado
que há uma maior pressão psíquica e física para as catadoras
mulheres, quando analisamos o nível de adoecimento perante o
137
acúmulo de muitas funções. Entretanto, os homens também
apresentam inúmeras doenças, apesar de se queixarem menos devido
ao papel social de que devem cumprir: “aguentar o peso” e não
“reclamar”.
Laura (2022) considera que, no começo, não queria dirigir o
caminhão da Cooperativa, mas que, como ela era uma das poucas
pessoas que possuía a carta de motorista, a ela foi pedida esta função,
que para a catadora, exige muita responsabilidade: “o Leonardo
pegou pra me mostrar os setores por uma semana, e aí eu fui
perdendo o medo…mas aqui cansa também, viu?! Precisa prestar
atenção e é bem entediante”. O fato das mulheres também ocuparem
funções ditas masculinas pode não corresponder a uma “ascensão”,
mas a uma ocupação de todas as funções do trabalho. Sabe-se que,
socialmente, com a divisão sexual do trabalho, as funções ditas
femininas não possuem o mesmo valor que as funções ditas
masculinas; a diferenciação e a hierarquização dessas funções
promovem um acúmulo de tarefas destinado às mulheres, como uma
forma de “compensar” o peso e a valorização das tarefas consideradas
masculinas. Tal pensamento, no entanto, às vezes, não é colocado
em prática pelas mulheres, porque Laura (2022), além de realizar
uma função dita masculina, chega no barracão após a coleta, e
continua seu trabalho na esteira, ou “onde estiver precisando”.
Leonardo (2022), ao enunciar a frase “agora as mulheres
querem pegar nosso trabalho”, expõe a ideia de que, a esfera pública
é um lugar dos homens e as mulheres, que anteriormente pertenciam
apenas à esfera privada, estão ocupando esse lugar, o que pode
significar uma ameaça ao lugar do homem. Ainda que as mulheres
executem todas as funções, inclusive os cargos de liderança, é no
controle e na condução de equipamentos, ou seja, da tecnologia, e
“na representação social desse lugar como masculinizado que vivem
138
as raízes do processo de construção da divisão sexual do trabalho nas
cooperativas” (VASCONCELLOS, 2017, p. 203-204). O catador
entrevistado revela, em contrapartida, um apoio e uma cooperação
com as colegas de trabalho, além de uma aceitação desse novo lugar
ao ensinar outras cooperadas mulheres a dirigir os caminhões:
Aqui, os trabalhos mais pesados é pros homens, os mais leves
pra mulherada… Mas aqui a gente pode fazer de tudo. Eu
ensinei a Laura a dirigir o caminhão…ela tinha carta mas ela
tinha medo pra ir pra rua, aí eu falei, senta aqui do meu lado
que eu vou te ensinar. Levei ela no caminhão, ela foi
aprendendo os bairros, os setores…aí agora ela já tá
craque…agora tô ensinando a Patrícia também, a Patrícia é do
meu setor. Ela quer tirar a carta, aí eu falei, vai lá, tira e vem
aqui que eu vou te ensinando. Esses dias eu falei pra ela: olha
você já sabe dirigir carro! Daí eu coloquei ela no caminhão,
soltei ela em umas ruas pra ela aprender a fazer coleta.
Para Ingrid Martins et al. (2016, p. 87), “aceitar que
mulheres desempenhem o trabalho essencialmente masculino é de
suma importância para conceber homens e mulheres como iguais no
mercado de trabalho e em outras esferas sociais”. Como há, na
Cooperativa, um alto índice de rotatividade de trabalhadoras/es e
uma presença significativa de mulheres, os trabalhos ditos
masculinos acabaram sendo efetuados pelas trabalhadoras, quando
na ausência de homens trabalhadores que se manteriam no serviço.
A inserção feminina no trabalho é refletida também por Alexandre
(2022), com certo estranhamento mas também com um nível de
aceitação, até se colocando em uma construção social diferente da
usual:
139
Hoje em dia tem mulher que dirige ônibus, caminhão,
carreta…tem outros vários tipos de emprego que a mulher
também encara, eu já vi mulher pedreira, servente, aí que tá o
problema! Pensa numa mulher que trabalha de pedreira? É a
profissão que ela quis exercer, não é que ela precisa daquele
trabalho, mas é assim que funciona lá fora agora. A mulher
tanto faz como o homem, é a mesma coisa. Se eu sou um
pedreiro e a mulher quer ser pedreira também, então vai ser
também! Entendeu? Como eu moro sozinho, graças a Deus,
minha mãe me ensinou a lavar, passar e cozinhar muito bem,
então eu não tenho problema com isso. Porque em casa eu sou
os dois, faço todo o trabalho. Eu me viro sozinho.
Da mesma forma que Alexandre (2022) elucida que, como
mora sozinho, realiza o trabalho doméstico em sua casa, as mulheres
catadoras possuem a especificidade de serem também provedoras do
lar, que além de exercerem o trabalho doméstico e o cuidado das/os
filhas/os, trabalham fora a fim de garantir a sobrevivência da família.
Tais relações demonstram uma inversão dos papéis de gênero
tradicionais. No entanto, apesar do homem não desempenhar o
papel social a ele atribuído de provedor da família, a mulher, quando
desempenha esse papel, não deixa de realizar o seu papel dentro do
lar, no trabalho doméstico e no cuidado das/os filhas/os. A mulher,
portanto, assume uma tripla jornada de trabalho (WIRTH, 2011).
Zélia da Silva (2014, p. 22) escreve, a partir da construção
de um memorial das/os catadoras/es da COOCASSIS, que as
mulheres da COOCASSIS se apresentam como chefes de família
“com a responsabilidade de sustento de seus filhos. Mesmo assim,
indicam que são solteiras, muito embora tenham filhos, alguns
adolescentes e outros já casados e com filhos. Porém, não se trata de
relações fortuitas”. Em geral, quando ocorre a separação entre as
catadoras e seus maridos, o sustento e a educação das/os filhas/os
140
ficam sob suas responsabilidades; o pai acaba se mostrando ausente
e desinteressado no que tange ao futuro das/os filhas/os.
A presença de muitas mulheres na Cooperativa cria, para
Ana Maria (2022), um apoio mútuo entre elas, porque, “parece que
se constrói uma cumplicidade de apoio às competências e aos
desafios que as mulheres podem enfrentar no cotidiano de trabalho”.
Podemos chamar esse apoio de sororidade, o que também foi
analisado na pesquisa de Camila Sopko (2019, p. 148) sobre as
relações de gênero e a divisão sexual do trabalho nas associações de
catadoras e de catadores na cidade de Ponta Grossa/PR:
a sororidade acaba por ser um fator importante nessa pesquisa,
uma vez que as mulheres acabam por compreender e ajudar
uma a outra, esse aspecto fortalece o trabalho das mulheres
dentro da associação e consequentemente ajuda na
permanência das mulheres no trabalho, pois compreende-se a
grande rotatividade que há nas associações de catadores pelo
fato que homens e mulheres acabam por considerar melhor um
emprego formal com direitos trabalhistas garantidos do que o
trabalho dentro das associações de catadores. Sendo assim, a
sororidade que acontece na relação entre mulheres e mulheres
acaba por torna-se um fator de fortalecimento das associações.
Para Ingrid Martins et al. (2016, p. 87), o crescimento do
número de mulheres na catação de materiais recicláveis, de forma
geral, está relacionado a uma desvalorização deste trabalho pelos
homens: “como resultado, porém, ocorre equivocadamente a
desvalorização da mulher perante a sociedade, por ocupar os lugares
‘rejeitados’ pelos homens”. Observamos que essa problemática,
apesar de decorrer da estrutura social e não, especificamente, do local
de trabalho, aparece na Cooperativa mas de forma diferenciada das
empresas capitalistas, o que analisamos de forma mais aprofundada
141
no último subcapítulo. Um exemplo de como essa problemática
surge na Cooperativa de forma diferente, é que a remuneração de
todas as funções exercidas na Cooperativa é realizada de forma igual,
a não ser nas funções do caminhão (onde ficam mais homens, apesar
das mulheres também estarem passando a ocupar esse lugar) e nas
funções de coordenação do empreendimento (onde concentram-se
mais mulheres).
Em pesquisa realizada pelo Instituto Pólis e pela Sempreviva
Organização Feminista (GRINBERG; SILVEIRA, 2012), as
mulheres catadoras apontam que, em geral, tomam mais atitude de
resolução de problemas, e assim, se interessam mais pelos cargos de
representação dos empreendimentos. Quando pensamos nos cargos
de coordenação ou representação das organizações, questionamos
qual poder as/os catadoras/es revelam ter dentro e fora dos locais de
trabalho, na movimentação política da categoria. Nos
empreendimentos de base, como na COOCASSIS, as mulheres
ocupam essas funções; no entanto, sempre colocam pelo menos um
homem em cada Conselho de representação, assim como fazem nos
trabalhos ditos mais “pesados”, como a troca e carregamento de bags.
No entanto, a articulação política das/os catadoras/es dentro e fora
do empreendimento, no movimento social, também demonstram
ser instrumentos de fortalecimento e de apoio às mulheres catadoras
da COOCASSIS.
Neste capítulo, buscamos analisar as relações de gênero
existentes nas organizações de catadoras/es de materiais recicláveis a
partir da compreensão de como elas são embasadas nas relações de
gênero construídas no casamento entre patriarcado e capitalismo,
como são reproduzidas socialmente nas organizações e como podem
ser modificadas. Também, apresentamos como as relações de gênero
142
aparecem na COOCASSIS, traçando paralelos com outras
organizações de catadoras/es.
Como lideranças nas organizações de catadoras/es, o
percurso das trabalhadoras representa uma luta de resistência não só
ao capitalismo, mas a parceria que esse sistema consolida com o
patriarcado e com outros sistemas de poder existentes mesmo antes
do seu surgimento. É a partir da constituição de um processo de luta,
de auto-organização e autoeducação, que as mulheres e homens
catadoras/es podem tomar consciência dessas relações e modificá-las.
143
Capítulo 3
A autoeducação e o papel da universidade nas
organizações de trabalho das/os catadoras/es
Não há transformação social sem educação. Paulo Freire
(1979) escreve que é só a partir da educação que os seres humanos
conseguem se transformar, para transformar o mundo. Não há
transformação sem a reflexão e sem a construção de uma dose de
criticidade sobre o mundo em que habitamos. E não há construção
de igualdade sem a transformação social: não há igualdade de gênero
sem a modificação de como os sujeitos se veem e se colocam no
mundo.
O exercício de poder das classes trabalhadoras nas
organizações de trabalho coletivo possibilita a construção e a prática
de projetos e processos de autoeducação, que podem levá-los a
implementar modificações de papéis, funções, pensamentos,
relações sociais e etc no cotidiano. Esses processos são estimulados e
intensificados por meio da articulação das/os trabalhadoras/es em
movimentos sociais e com as universidades, que promovem
atividades de extensão universitárias especificamente vinculadas às
Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs).
A autoeducação pode proporcionar para as classes
trabalhadoras o resgate do trabalho enquanto um princípio
educativo, uma categoria que não só promove melhores condições
144
de vida, mas também que, a partir dela, o sujeito se educa e se
modifica. A partir da autoeducação, trabalhadoras/es podem
transformar as relações entre si, inclusive as relações entre os gêneros.
A autoeducação nas organizações de Trabalho Associado e da
Economia Solidária: trabalho como princípio educativo
Para Naira Franzoi e Maria Fischer (2015), o campo da
educação abrange não apenas os processos educativos que acontecem
nas instituições de ensino, mas também processos que decorrem da
convivência humana, do trabalho e dos movimentos sociais. Maria
Gohn (2016) analisa que, para além da Educação Formal,
desenvolvida dentro das escolas, os seres humanos também
aprendem por meio da Educação Informal, ou seja, no decorrer do
processo da socialização, ao conviver com a família, colegas de
trabalho e amigos por meio da internalização da cultura e dos
valores, e da Educação Não Formal, a partir do compartilhamento
de vivências, principalmente nas ações coletivas organizadas por uma
temática ou categoria de pessoas específicas. Os processos que
abrangem a Educação Não Formal, segundo Maria Gohn (2016),
não são vistos socialmente como educação, por não se tratarem de
processos escolarizáveis. No entanto, a Educação Não Formal possui
diversas características, e incorpora diversos elementos de
aprendizagem humana:
A educação não formal designa um processo com várias
dimensões, tais como: a aprendizagem política dos direitos dos
indivíduos enquanto cidadãos; a capacitação dos indivíduos
para o trabalho, por meio da aprendizagem de habilidades e/ou
desenvolvimento de potencialidades; a aprendizagem e
exercício de práticas que capacitam os indivíduos a se
145
organizarem com objetivos comunitários, voltadas para a
solução de problemas coletivos cotidianos; a aprendizagem de
conteúdos que possibilitem que os indivíduos façam uma
leitura do mundo do ponto de vista de compreensão do que se
passa ao seu redor; a educação desenvolvida na mídia e pela
mídia, em especial a eletrônica etc. São processos de
autoaprendizagem e aprendizagem coletiva adquiridas a partir
da experiência em ações coletivas, organizadas segundo eixos
temáticos: questões étnico-raciais, gênero, geracionais e de
idade etc [...] (GOHN, 2016, p. 60-61).
O campo da Educação Não Formal traz a constituição de
um caráter educativo do próprio trabalho, quando, por meio dele ou
para realizá-lo, produzimos conhecimento. O trabalho, aqui, pode
ser considerado como “o princípio primeiro para se entender a
sociedade e, portanto, a educação” (FRANZOI; FISCHER, 2015,
p. 151). É por meio do trabalho que realizamos tanto a reprodução
quanto a transformação dos constructos sociais, já que grande parte
das pessoas passa uma boa parte do tempo trabalhando.
Reinaldo Tillmann (2019) analisa que o capitalismo,
enquanto produtor de alienação do trabalho, produz também
trabalhadoras/es que não se educam pelo trabalho, uma vez que o
mundo do trabalho capitalista gera seres humanos funcionais, que
existem e que trabalham para sobreviver e para manter o status-quo
vigente. A emancipação das classes trabalhadoras poderia ser uma
consequência de um processo autogestionário, no qual o trabalho
gera um ser humano integral, que existe e que se forma por meio de
seu trabalho, com o objetivo de transformar o status-quo. Para o
autor, “emancipar é articular as forças individuais dentro de um
contexto coletivo de produção” (TILLMANN, 2019, p. 74).
Henrique Novaes (2018) analisa que o Trabalho Associado
de viés democrático pode ter um grande potencial educativo para
146
as/os trabalhadoras/es: ao colocar em prática a autogestão e a auto-
organização do trabalho, ou seja, ao assumir coletivamente a gestão
da produção e ao se colocar como contrárias/os à divisão social
capitalista do trabalho, as/os trabalhadoras/es podem vivenciar a
construção de novas formas de trabalho e de novas relações sociais
mais igualitárias, democráticas e transparentes, a partir de projetos e
processos de autoeducação. As organizações de Trabalho Associado
e da Economia Solidária podem ser locais de construção de inúmeros
aprendizados, a partir de relações que permitem a troca, a
desalienação e a tomada de consciência.
A autogestão aqui é compreendida não apenas como um
modo de organização do trabalho, mas sim como uma forma das/os
trabalhadoras/es resistirem ao desemprego e de enfrentarem o
capitalismo. Para que a autogestão aconteça, as/os trabalhadoras/es
precisam participar e se inteirar do que ocorre no local de trabalho,
e das possibilidades no que se refere à solução dos problemas.
Portanto, exige um esforço adicional da trabalhadora e do
trabalhador que, além de ser encarregada/o de sua função principal,
deve se atentar aos arredores de onde trabalha: exige que as/os
trabalhadoras/es coloquem em prática projetos e processos
autoeducativos.
O conceito de autoeducação é trabalhado por Nildo Viana
(2018) que, ao analisar as relações entre o marxismo e a cultura,
desenvolve que ele consiste em um processo cultural que produz
concepções revolucionárias e reproduz concepções conservadoras,
mas não em mesmo grau: na medida em que o sujeito se autoeduca,
tende a rejeitar os elementos conservadores presentes na cultura e
passa a aderir conceitos mais revolucionários. Para o autor, a luta do
proletariado, em geral, é um processo de autoeducação e de
autoformação.
147
Pode-se dizer que a autoeducação é possibilitada pela
experiência da ação coletiva. A organização, a conscientização e o
combate são elementos da autoeducação. A luta, portanto, é
cotidiana e é contra a ordem estabelecida: para a luta do
proletariado, é necessária educação política, consciência de classe e
organização, e é na escola da luta e na luta política em si que esse
processo acontece. Michael Löwi (2014, p. 35), a partir dos escritos
de Rosa Luxemburgo, examina que “sem liberdades democráticas é
impossível a práxis revolucionária das massas, a autoeducação
popular pela experiência prática, a autoemancipação revolucionária
dos oprimidos”, ou seja, o exercício de poder das classes proletárias.
Patrícia Adriano (2010, p. 131) considera que a utilização de
práticas autogestionárias no ambiente de trabalho é "um processo
educativo, tanto quanto a elaboração de documentos e instrumentos
de gestão, como o estatuto social, as normas internas, o regimento
interno”. Praticar a autogestão é um desafio para as/os
trabalhadoras/es e se constitui enquanto um processo de construção
de autonomia da trabalhadora e do trabalhador, um processo
educativo que apresenta potencialidades e contradições. Assim como
as pessoas não sabem naturalmente praticar a autogestão, elas foram
ensinadas a vida inteira a praticar a heterogestão (SINGER, 2002).
A prática autogestionária, por sua vez, pode direcionar as classes
trabalhadoras às lutas emancipatórias, uma vez que a união das forças
individuais representa uma união de processos de autoeducação
individuais, longos e difíceis, dotados de um potencial facilitador de
condições objetivas da auto emancipação da trabalhadora e do
trabalhador. Cada trabalhadora e cada trabalhador, no entanto,
possui o seu tempo e o seu próprio processo autoeducativo.
As experiências de autoeducação em organizações de
Trabalho Associado e de Economia Solidária dizem respeito a
148
trabalhadoras/es populares que, a partir do trabalho coletivo, de
ações e de mobilização social, em articulação com algumas
instituições, como as universidades, constroem seus próprios
projetos e processos de autoeducação. Os processos de autoeducação
em um EES, por exemplo, compreendem modos de aprender com a
vida e com as experiências de troca na vivência coletiva no
cotidiano de uma EES, são (re)criados métodos e instrumentos em
diversas frentes, como artesanato, reciclagem, agroecologia,
alimentação e etc (ADAMS et al., 2011). O espaço da organização
coletiva possibilita uma experiência de aprendizagem conjunta e
obrigatória, visto que as perspectivas de futuro dos EES são
viabilizadas pela mobilização e pela resistência dos grupos perante
um sistema opressivo. A necessidade de apreensão das atribuições
políticas sobre a condição de legalização do empreendimento, do
controle das despesas e da organização de reuniões internas e de
assembleias gerais evidencia a importância do domínio de novos
conhecimentos.
Os principais movimentos sociais das classes trabalhadoras
desempenham projetos de autoeducação que englobam atividades e
experiências decorrentes dos princípios de autogestão e de
implantação de lógicas contra-hegemônicas. Segundo Roseli Caldart
(2001), o movimento social possui um enorme potencial educativo,
pois a sua atuação se constitui enquanto processo de formação
humana. O Movimento Zapatista no México e o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil são os maiores
exemplos de experiências autogestionárias que colocam em prática
processos de autoeducação. Ao abordar a trajetória do MST, Roseli
Caldart (2001, p. 212) afirma:
149
[...] este processo também pode ser interpretado como um
processo de formação humana, e mesmo como a materialização
de um determinado modo de produção da formação humana,
cuja matriz é o próprio Movimento como sujeito e princípio
educativo. Isto porque, se fazemos o esforço de buscar
compreender o sentido mais profundo da experiência humana
de ser Sem Terra, ou ser do MST, nos encontramos com um
movimento pedagógico de formação de sujeitos sociais e de
seres humanos, que nos remete às questões de origem da
própria reflexão pedagógica, ou da reflexão da educação como
formação humana: como nos humanizamos, ou nos formamos
como humanos? Como se educa uma pessoa para que se
desenvolva em sua condição humana? Quais os valores que
movem nossa intencionalidade educativa? Para que postura
diante da sociedade nossa prática tem educado? [...]
Existem práticas educacionais e pedagógicas próprias aos
movimentos das classes trabalhadoras que são viabilizadas a partir de
uma formação política do trabalho, por meio da união e da atuação
das/os trabalhadoras/es para alcançar objetivos em comum. A
organização e o movimento das/os trabalhadoras/es podem, nesse
sentido, ser um instrumento político e educativo, visto que a união
dos sujeitos por interesses em comum desenvolve o pensamento
coletivo das necessidades e das possibilidades de fortalecimento do
grupo, e promove inquietações, construção de autonomia, diálogo e
responsabilidade coletiva (PEGORARO, 2015). Para Nildo Viana
(2018, p. 21), “o próprio processo de luta constitui um momento
de autoeducação e autoformação que permite avançar no
desenvolvimento de consciência”.
As ações e as lutas sociais, incorporadas nos movimentos,
segundo Roseli Caldart (2001), produzem processos de
aprendizagem uma vez que, ao visar a reconquista do direito ao
150
trabalho e à dignidade, o sujeito que luta ensina e aprende algo mais
sobre o desenvolvimento da transformação social. Os movimentos
sociais, para a autora, estão se constituindo enquanto espaços de
organização das lutas e de formação dos sujeitos porque“existe uma
pedagogia que se constitui no movimento de uma luta social” e
“uma luta social é mais educativa, ou tem um peso formador maior,
à medida que seus sujeitos conseguem entranhá-la no movimento da
história” (CALDART, 2001, p. 213).
Roseli Caldart (2001) considera que os sujeitos da luta pela
reforma agrária se educam ao participar, direta e indiretamente das
ações da luta pela terra, bem como de outras lutas sociais que foram,
aos poucos, sendo incorporadas na agenda do MST. O sujeito que
luta se educa ao experienciar dois processos: o de humanizar-se,
frente à exclusão a que foi submetido durante sua vida, e o de refazer-
se a partir dos movimentos sociais. As lutas sociais podem promover
transformações históricas por meio da formação de sujeitos capazes
de consolidá-las, que reconstroem a identidade:
Quando, nos assentamentos, os Sem Terra buscam construir
novas relações sociais de trabalho, e novos formatos para a vida
em comunidades do campo, afirmam uma cultura centrada no
bem-estar da coletividade, e se contrapõem, portanto, à
absolutização do indivíduo, que é característica dominante da
sociedade capitalista. Quem visita um assentamento, ou mesmo
um acampamento de Sem Terra, sai com a impressão, e talvez
a reflexão, de que há outras possibilidades de como viver, e que
há questões, saberes, afetos e relações de outra ordem,
acontecendo não muito longe de um tipo de vida que
consideravam como o único possível (CALDART, 2001, p.
216).
151
Ao colocar o processo histórico de formação dos Sem Terra
do MST como facilitador de uma específica matriz pedagógica, na
qual um modo de produção da formação humana possui o movimento
social como princípio educativo, Roseli Caldart (2001) pondera que
o processo educativo está no próprio movimento, no transformar-se
e transformar o sujeito, a história, a pedagogia, etc. Ainda que não
consciente, o sujeito que luta é pedagógico porque em suas ações,
apresenta intencionalidade e um projeto educativo que auxilia o
grupo a construir recursos para se tornar capaz de assumir o próprio
destino histórico e social. A Pedagogia do Movimento Social,
portanto, não inventa uma nova pedagogia, mas a coloca em
movimento, uma vez que incorpora em suas práticas muitas matrizes
pedagógicas.
É o movimento das práticas, diversas, por vezes mesmo
contraditórias entre si, o que educa sujeitos, humaniza. Ativar
este movimento, desencadear processos que combinem
diferentes práticas pedagógicas, e refletir para que constituam
um movimento educativo coerente, no sentido de que
desenvolvido em torno de valores e de princípios comuns, eis a
grande tarefa dos educadores e das educadoras. Tanto mais
daqueles comprometidos com a formação dos sujeitos das
transformações sociais, e do combate pela dignidade humana,
para todos. Exatamente porque em nosso tempo, como em
outros, o princípio da inércia pedagógica geralmente se realiza
nas práticas sociais como politicamente conservador e, até
mesmo, reacionário (CALDART, 2001, p. 219).
As atividades autogestionadas, introduzidas no trabalho
pautado pela autogestão, auto-organização e por relações mais
democráticas e nos espaços de mobilização social, podem compor
ações coletivas desempenhadas por meio do método da produção de
152
aprendizagens decorrentes do diálogo de rodas de conversa,
debate de ideias, atividades culturais, troca de informações, oficinas,
e pelo próprio fazer do trabalho. Sérgio Haddad (2020) argumenta
que as práticas autogestionárias são fundamentais para reunir o dia
a dia das lutas individuais e coletivas e as vivências das/os
trabalhadoras/es em dimensão local, regional, nacional ou
internacional. Para o autor, a convergência entre essas práticas
poderia possibilitar “o avanço das lutas sociais, num processo
permanente de diálogo para construção de novas reflexões e
estratégias, uma das dimensões da educação popular” (HADDAD,
2020, p. 9).
Ao visar a transformação social, compreender a realidade é
tarefa necessária do campo da educação e da pedagogia, ainda mais
quando ela se revela de forma tão complexa quanto agora. Participar
ativamente de uma coletividade pode gerar um sentimento de
pertencimento ao ser humano, que pode experienciar o
enraizamento. Enraizamento, para Simone Weil, é uma necessidade
que o sujeito possui de ter laços que possibilitam visualizar tanto o
passado como o futuro (BOSI, 1996). A luta dos movimentos sociais
e das organizações de trabalho, portanto, não podem continuar sem
um projeto de futuro, bem como sem raízes. O Trabalho Associado
e a Economia Solidária são lutas pelo trabalho e pela educação
pelo trabalho enquanto um princípio educativo. As novas relações
de trabalho construídas nas OTAs, por exemplo, na medida em que
são vivenciadas, podem ressignificar os valores, as práticas e as
concepções das/os trabalhadoras/es (DAL RI, 2015).
Há, enfim, um caráter político e educativo nas organizações
de Trabalho Associado e da Economia Solidária, pois, nelas,
encontramos lutas que atravessam não só o sujeito, mas os espaços
em movimento, de Educação Informal e Não Formal. Nas
153
organizações de catadoras/es, encontramos processos específicos de
autoeducação, que abrangem tanto elementos comuns a outras
frentes de organizações de trabalho quanto elementos diferenciados,
próprios da categoria.
A autoeducação nas organizações de catadoras/es
Questionamentos, denúncias e reflexões são produzidos no
dia a dia de grupos e empreendimentos populares de catadoras/es. A
autoeducação da catadora e do catador pode significar uma
“autorreflexão que as levará ao aprofundamento consequente de sua
tomada de consciência e de que resultará sua inserção na História,
não mais como espectadoras, mas como figurantes e autoras”
(FREIRE, 1967, p. 36). Para se tornarem protagonistas da luta e do
seu trabalho, as/os catadoras/es precisam não só de capacitação
técnica para aprenderem a como executar o trabalho e administrar
um empreendimento, mas também de formação para o trabalho
coletivo.
Ao apresentar algumas trajetórias de luta das catadoras de
uma associação de reciclagem do Rio Grande do Sul, Nadia Scariot
e Cassiane da Costa (2019) demonstram a relevância da vivência do
cotidiano das catadoras e as trocas de experiências por elas
estabelecidas aprendem a coletar nas ruas, a triar nas esteiras, a
comercializar os produtos, a negociar com a gestão pública e a gerir
o empreendimento umas com as outras. A gestão de uma
organização de trabalho, no caso de um grupo de catadoras/es de
materiais recicláveis, demanda conhecimentos específicos e
diversificados: são diversas etapas de trabalho que precisam ser
realizadas no local, como a coleta, transporte, triagem, beneficia-
154
mento, prensagem, armazenamento, comercialização dos materiais,
administração do empreendimento e organização interna.
A vivência coletiva pode modificar as relações sociais
estabelecidas pelas/os trabalhadoras/es. Para Ana Maria de Carvalho
(2022), a convivência coletiva na COOCASSIS pode causar alguns
impactos positivos e negativos nas/os trabalhadoras/es que ali estão.
Dentre os vários depoimentos relatados, o cotidiano da Cooperativa
demonstra que as relações sociais são construídas com base no
respeito, no afeto e na amizade. No entanto, alguns relatos
demonstram que o trabalho cooperado pode significar um processo
autoeducativo difícil, por colocar em prática outros princípios.
Nós temos muitas pessoas que entram na Cooperativa e saem
dizendo que é insuportável trabalhar lá. Que tem muita fofoca,
tem muita gente mandando, que é uma bagunça, que não dá
pra conviver e que precisa ter um chefe que manda lá dentro. A
gente conviveu com várias situações desse tipo e sabe disso. Mas
a grande maioria tem essa relação que eu diria que transforma
o sujeito, que ele fica tocado pelo trabalho coletivo, pela
condição de autonomia, pela cooperação, pela solidariedade.
Não sai um sujeito democrático e justo, mas bem tocado pela
convivência com esse coletivo (ANA MARIA, 2022).
A articulação da categoria em um movimento social auxilia
e potencializa os processos de autoeducação das/os trabalhadoras/es,
que, a partir da autorreflexão e tomada de consciência, passam a
procurar exercer a solidariedade de classe e a intercooperação entre
catadoras/es de diversas cidades e regiões. Ao compartilhar
experiências tais como as possibilidades de contratação do local pelo
poder público, a organização das etapas da cadeia da reciclagem, as
relações de poder e a forma como a administração é realizada no
grupo e/ou no empreendimento, as/os catadoras/es podem
155
experienciar diversos momentos formativos. Adriana Alves (2016, p.
39), ao analisar a contribuição da/o pedagoga/o para o fortaleci-
mento da luta das/os catadoras/es de materiais recicláveis, traça a
seguinte reflexão:
Considerar a relação entre educação e movimentos sociais em
seu conjunto de experiências e em seus formatos pedagógicos,
nos permite reconhecer o caráter educativo do MNCR. O
movimento tem participado e proposto experiências pedagó-
gicas, sobretudo, no campo da educação informal e popular.
Essas experiências tem estreita relação com o trabalho que os
catadores desenvolvem, com o modo de produção e consumo
dos resíduos, com as medidas tomadas por agentes externos e,
também, com as iniciativas e bandeiras de lutas que o próprio
movimento levanta [...].
São desenvolvidos, portanto, para além do compartilha-
mento de experiências, projetos culturais, recreativos e educacionais
no movimento da categoria, que, para Jean Alves et al. (2020),
permitem a identificação de demandas. Uma das principais
demandas educativas levantadas pelo movimento nos dias atuais tem
sido “o resgate do papel das mulheres catadoras, que são maioria nas
associações e cooperativas” (ALVES et al., 2020, p. 129). Práticas
formativas específicas são desempenhadas, voltadas para a formação
profissional e educacional dessas catadoras, bem como para a
participação ativa delas na luta. Tais práticas fortalecem e
intensificam os projetos e processos autoeducativos.
O MNCR possui uma frente de projetos educativos
pautados pela metodologia intitulada “de catador para catador”.
Nesta metodologia, são as/os catadoras/es que formam umas/uns
às/aos outras/os: após se formarem enquanto lideranças pelo mesmo
processo, formam novas/os catadoras/es. O movimento disponibi-
156
liza diversas cartilhas para a utilização na formação da catadora e do
catador para sua auto-organização. As cartilhas abordam o histórico
do movimento e fornecem instrumentos pedagógicos e políticos
para a organização de uma cooperativa, associação e/ou grupo não
formalizado de base, para a realização de uma reunião, gritos de luta,
planejamento de ações, conceitos básicos para a análise da realidade,
etc.
É na busca pela autonomia e pela autoeducação das/os
catadoras/es que o movimento social busca, a partir dessa
metodologia, instrumentar as/os catadoras/es para que elas/es
possam gerir um empreendimento e compreender a realidade social
em que estão inseridas/os bem como a função política da categoria,
enquanto agentes ambientais e enquanto sujeitos que pensam e que
tomam decisões. As cartilhas de formação são direcionadas para as/os
militantes que formam e que articulam o movimento nas bases e três
delas estão disponíveis no site do movimento: uma edição de 2005,
uma de 2009 e uma edição especial sobre os direitos humanos e as/os
catadoras/es de materiais recicláveis. Também está disponível um
caderno de formação com atividades que concentram dois módulos:
um sobre a memória histórica do movimento e outro sobre o ciclo
da cadeia produtiva de materiais recicláveis.
157
Cartilha de Formação Nacional do MNCR - 2005
158
Cartilha de Formação Nacional do MNCR - 2009
159
Cartilha de Formação do MNCR: Projeto Direitos
Humanos dos Catadores de Materiais Recicláveis
160
Caderno de Formação Nacional do MNCR - Módulo 1 e 2
As cartilhas e o caderno de formação são bem organizados e
estruturados. Possuem fácil acesso e os principais pontos para as
demandas da luta das/os catadoras/es. São didáticos, cheios de
imagens, músicas, ilustrações, textos, atividades e curiosidades sobre
a categoria. Abordam tanto a história da classe trabalhadora em
geral, quanto sua articulação com o segmento das/os catadoras/es,
discutindo os aspectos, princípios e objetivos do movimento. Os
materiais precisam, no entanto, ser apoiados na metodologia do
movimento, ou seja, precisam ser facilitados por catadoras/es
militantes formadoras/es, já que, muitas vezes, as/os catadoras/es não
sabem ler e/ou podem ter dificuldades no processo de apreensão de
tantas informações. Ademais, a partir da troca entre as/os
161
catadoras/es, esses materiais pedagógicos ficam mais vivos e podem
fazer mais sentido.
Os cadernos de formação nacional possuem, a partir do
sumário, alguns tópicos muito interessantes, que não
necessariamente englobam apenas a categoria, mas um cenário mais
amplo do mundo do trabalho, o que pode auxiliar as/os catadoras/es
em seus processos autoeducativos; ao construir uma totalidade de
forma crítica, a luta das/os catadoras/es pode se fortalecer e abranger
ainda mais temáticas que atravessam sua história e o cotidiano.
Para o MNCR (2005, p. 5), é por meio da formação de
militantes engajados no movimento que a categoria pode se
comprometer coletivamente, para construir a compreensão de que
“criar a cultura do diálogo, debater, estudar, nos formar individual
e coletivamente é dever de todos(as), para que entre nós não haja
mais coitados nem doutores, mas protagonistas, lutadores”. A
catadora e o catador não apenas exercem o seu trabalho, mas se
formam pelo seu trabalho, formam a população para a preservação
do meio ambiente, mobilizam-se em direção à transformação social
(BASOLI; COSTA, 2017).
Para Keicy dos Reis (2022), ex integrante da Incop Unesp
Assis, as/os catadoras/es da COOCASSIS possuem uma participação
ativa no movimento social da categoria e, na sua visão, essa
participação
[...] contribui muito né, a participação nos eventos, jogar o
corpo pro movimento, sair do trabalho, é uma outra forma de
você vivenciar isso, que não é ali fazendo a atividade,
desenvolvendo, porque às vezes você não consegue ter a
dimensão de que você faz parte de algo muito maior, que você
só vai ter dimensão quando você vai pros eventos. Porque eu
acho que os eventos dão esse tom de que “eu não tô sozinho”,
162
tem mais gente, e tem mais gente na mesma situação que eu
lutando pela mesma coisa. Eu acho que os diálogos que iam
acontecendo, as amizades, os vínculos, os contatos de
fornecedores, as conversas pra ver como que é em cada
empreendimento para verificar se contribui de alguma forma,
como são as relações interpessoais, esses diálogos são os diálogos
mais enriquecedores. E eles voltam com muita potência depois
de vivenciar isso.
Por meio da educação as/os catadoras/es se organizam e
organizam outras/os catadoras/es. A metodologia educativa utilizada
pelo movimento para que a luta aconteça cria deslocamentos, e se
constitui enquanto uma proposta e um projeto político. Na
aprendizagem e no compartilhamento de saberes, as/os catadoras/es
reconstroem a identidade, assumem funções e estimulam as/os
colegas de trabalho a lutarem junto. As entidades de apoio e fomento
às organizações de catadoras/es, especialmente as ITCPs,
contribuem para a autoeducação da catadora e do catador, na
medida que, junto a elas/es, constroem novos saberes e
potencializam a luta.
O papel da universidade na autoeducação das/os trabalhadoras/es:
a relação universidade-movimentos sociais
A formação do trabalho coletivo, seja pautado pela
Economia Solidária ou pelo Trabalho Associado, visa uma
transformação da noção da categoria do trabalho. A desalienação do
trabalho assalariado capitalista, que distancia as/os trabalhadoras/es
de si mesmas/os, do próprio trabalho e da realidade, pode acontecer
por meio de uma educação emancipatória que incorpora reflexões
para além do capital, que possibilitem a construção de um outro
163
modelo de relações econômicas e sociais (NOVAES, 2015). Para
Eunice Trein (2007), uma formação crítica, voltada à superação da
alienação produzida no sistema capitalista, pode desvelar as
contradições a que as/os trabalhadoras/es estão submetidas/os.
O processo de formação de uma consciência crítica para a
superação da alienação produzida pelo modo de produção
capitalista pressupõe a apreensão da realidade histórica como
construção de uma totalidade, em que as partes se articulam
dialeticamente, deixando para trás sua aparência, revelando
assim suas contradições. A consciência crítica desvela no
capitalismo a alienação a que estão submetidos os
trabalhadores, que se dá não apenas em relação aos meios de
produção e do próprio ato de produzir. Esta condição se
estende também aos resultados da produção e à própria
liberdade de criar bens de uso, que respondam efetivamente às
necessidades históricas dos sujeitos sociais. A alienação, como
observa Marx, transcende o ato produtivo e se concretiza ao
longo de todo o processo de realização do capital (TREIN,
2007, p. 120).
Os espaços de formação das/os trabalhadoras/es para o
trabalho coletivo são construções contínuas visto que trabalhar a
partir da autogestão e da autoeducação é uma realidade nova para
muitas trabalhadoras e muitos trabalhadores. Somos incentivadas/os
a naturalizar as características do trabalho assalariado capitalista, no
qual a submissão, a fragmentação das atividades, a alienação do
trabalho e a ausência de voz nas decisões políticas são pré-requisitos
para nossa manutenção no trabalho. Ao adotarem a autogestão como
princípio de trabalho, as/os trabalhadoras/es de organizações de
Trabalho Associado e/ou de Economia Solidária partem de um
outro pressuposto, oposto a todas essas características.
164
Segundo Adriane Ferrarini e Telmo Adams (2015), com a
multiplicação dos EESs brasileiros nas três últimas décadas, as/os
trabalhadoras/es começaram a demonstrar demandas crescentes no
que tange à formação política, pedagógica e técnica. Tendo isso em
vista, a criação da Plataforma da Economia Solidária e do FBES
representou a importância da formação, inserida posteriormente na
agenda política do movimento. Essa inserção precisou de uma
construção, iniciada na primeira Plenária Nacional de Economia
Solidária na década de 2000. No ano de 2006, após a realização do
primeiro CONAES, a SENAES iniciou a elaboração de Centros de
Formação em Economia Solidária (CFES), uma estratégia para
implementar a Política Nacional de Formação em Economia
Solidária, criada com a participação de muitas/os atrizes e atores
sociais, inclusive, as/os que integram a universidade.
A universidade, para Ana Maria de Carvalho et al. (2017),
serve muito mais aos interesses da classe dominante do que das
classes populares. Portanto, contribui para a manutenção do status
quo e, consequentemente, para a continuidade da exclusão de uma
boa parcela das pessoas, o que favorece o crescimento das
desigualdades sociais. Mas, a partir da sua relação com os
movimentos sociais, a universidade pode cumprir sua função social
e se posicionar como contrária a essa dinâmica; a potencialização da
autoeducão das/os trabalhadoras/es por meio de práticas
formativas e de auxílio à auto-organização e autogestão dos grupos e
empreendimentos populares é um dos exemplos da relação existente
entre universidade e movimentos sociais.
A formação para o trabalho coletivo pautado pela Economia
Solidária se ancora em princípios da Educação Popular (EP),
enquanto construção de conhecimento que viabiliza a multidiscipli-
naridade de saberes de forma democrática. O movimento da
165
Educação Popular, segundo Paulo Freire (1979), foi uma das muitas
mobilizações de massas no Brasil que consolidou muitos
procedimentos políticos, sociais e culturais para a organização
popular e para a conscientização, buscava a superação da exclusão,
dominação, desigualdade e opressão e o encontro de caminhos para
a emancipação e para o fortalecimento do sujeito e do coletivo.
A Educação Popular abarca tanto a politização de práticas
educativas quanto a pedagogização da política: “o compromisso da
educação popular para com os excluídos em sua luta cotidiana pela
subsistência a levou a valorizar a dimensão produtiva da vida,
reconhecendo o trabalho como via de libertação” (FERRARINI;
ADAMS, 2015, p. 214). As organizações de trabalho em grupos e
empreendimentos coletivos pautados pela lógica da Economia
Solidária são exemplos da sua complementaridade com a Educação
Popular.
A educação popular encontrou na economia solidária um novo
e peculiar espaço de potencialização do trabalho como
princípio educativo para a vida e para a cidadania. A economia
solidária, por sua vez, devido à sua perspectiva autogestionária
e emancipatória, não poderia se coadunar com concepções
educativas tradicionais e verticalizadas, encontrando
ressonância e respostas nos métodos e ações da educação
popular (FERRARINI; ADAMS, 2015, p. 214).
Nadia Scariot e Cassiane da Costa (2019, p. 90) analisam
que “a educação popular entende que é necessário criar a contradição
no sujeito (desacomodá-lo) para que haja a mudança, a emergência
de autonomia”. As atividades de extensão universitária, realizadas
com trabalhadoras/es da Economia Solidária e/ou do Trabalho
Associado são extremamente relevantes para potencializar os
166
processos de autoeducação das/os trabalhadoras/es, por meio das
trocas entre os saberes “acadêmicos” e os saberes “populares”. Essas
atividades se tornaram contínuas a partir do surgimento das
Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs).
As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares
(ITCPs) são consideradas uma ação inovadora para o combate ao
desemprego e para promover espaços formativos que aspiram à
autonomia do sujeito e da organização de trabalho. Segundo Lais
Fraga (2012, p. 125), as principais características das ITCPs nos
levam à compreensão de que a incubação é “uma relação educativa,
fundamentada nas ideias de Paulo Freire, entre universidade e
grupos populares que almejam a geração de trabalho e renda e que
tem, a longo prazo, o objetivo de superar as desigualdades e
injustiças no país”.
As Incubadoras surgem, em sua maioria, como projetos de
extensão universitária para promover e incentivar os espaços de
formação nas iniciativas e organizações de trabalho coletivo a partir
de metodologias ativas e participativas, embasadas na EP, que
auxiliam o desenvolvimento de tecnologias sociais e a aquisição de
recursos para a capacitação técnica das/os trabalhadoras/es. Também
possuem o intuito de aproximar as trabalhadoras e trabalhadores da
gestão pública, o que também as/os permite maior compreensão do
papel do Estado no capitalismo e uma possível viabilização das
políticas públicas para diversas categorias de trabalhadoras/es.
As ITCPS desempenham importante papel com relação às
políticas públicas setoriais voltadas para segmentos mais
atingidos pelas iniquidades sociais, como catadores de materiais
recicláveis, artesãos, usuários de saúde mental, egressos do
sistema penitenciário, agricultores familiares, pescadores,
comunidades tradicionais. Elas têm colaborado para o
167
desenvolvimento de tais políticas, por meio da elaboração e
execução de projetos com esses trabalhadores: acesso aos bens e
meios de produção, desenvolvimento de tecnologias sociais,
inserção produtiva, formação e capacitação técnica na
perspectiva da Economia Solidária. Dessa forma, oferece uma
contribuição visando sempre ao protagonismo dos
trabalhadores e sua organização coletiva (CARVALHO;
LADEIA; FELÍCIO, 2017, p. 17).
A origem das ITCPs é, de alguma forma, similar a das
incubadoras de cooperativas mercantis: as principais diferenças entre
elas são os fundamentos e propósitos, o público atendido (as
empresas capitalistas vs os grupos populares) e a metodologia de
trabalho adotada. A relação estabelecida pelas incubadoras de
empresas capitalistas seria a relação universidade-empresa enquanto
a relação instituída pelas incubadoras de cooperativas populares seria
a relação universidade-movimentos sociais. As ITCPs se expandiram
de forma rápida nas universidades brasileiras, principalmente com o
apoio do PRONINC. Até o ano de 2010, eram mais de 100
incubadoras distribuídas no país, organizadas pela Unitrabalho e
pela Rede Universitária de ITCPs (FRAGA, 2012). Atualmente, são
mais de 40 ITCPs que integram a Rede Universitária (INCOP-
UFOP, 2020).
Aline dos Santos (2014, p. 202) analisa que “os agentes
externos tiveram um papel muito importante na constituição da
economia solidária no Brasil, uma vez que estiveram efetivamente
presentes no fomento e formação das iniciativas de economia
solidária”. Os dados apresentados pelo SIES demonstram que
72,7% dos empreendimentos estudados conseguiram apoio ou
assessoria externa: 40,6% de órgãos governamentais, 22,9% de
ONGs, Igrejas ou associações, 20,4% do “sistema S”, etc. Para Luiz
168
Gaiger (2009, p. 576), os "EESs beneficiados com algum apoio
apresentam um grau de desempenho global mais positivo do que os
demais, exceto no caso de EES apoiados unicamente por órgãos
governamentais”.
O diálogo universidade-grupos populares pode aproximar a
comunidade dos ambientes acadêmicos. A criação do PRONINC
teve como objetivo a inclusão das/os trabalhadoras/es no mercado
de trabalho por meio da formação, qualificação e assessoria na forma
de projetos que utilizam recursos e o conhecimento acadêmico para
o apoio às atividades autogestionárias (GUIMARÃES, 2003). O
papel da extensão universitária e, consequentemente, das ITCPs, na
formação para o trabalho coletivo das/os trabalhadoras/es consiste
na realização de debates teóricos e práticos que podem englobar
tecnologias sociais, desenvolvimento local, finanças solidárias,
modas sociais, comunidades tradicionais e etc (COSTA, 2013).
Para Sonia Kruppa e Fabio José Sanchez (2001), a incubação
possui uma variedade de formas de atuação, tendo como reflexo as
áreas de conhecimento e das especificidades de cada região e
empreendimento. São elaboradas, portanto, diferentes abordagens e
possibilidades de acompanhamento dos grupos populares, mas
sempre focalizando seu fortalecimento. Rosana Kirsch (2007)
analisa que a parceria entre as incubadoras e o poder público local é
um caminho que facilita o acesso, tanto dos indivíduos para as
capacitações quanto das incubadoras para os grupos existentes.
Em um levantamento realizado pelo FBES, em 34
atividades de ITCPs, os conteúdos e as metodologias utilizados
partiam das demandas e emergências dos grupos. Os conteúdos
eram compostos por necessidades técnicas, como questões
administrativas, contábeis e jurídicas e os temas de Economia
Solidária, associativismo, cooperativismo das/os trabalhadoras/es e
169
autogestão. No entanto, “na descrição das experiências, há dados
precários sobre a profundidade e a forma de abordagem destes
assuntos” (KIRSCH, 2007, p. 48).
Pode-se pontuar uma construção de dependência dos
empreendimentos em relação às entidades de apoio e de fomento,
principalmente às ITCPs, já que o aprofundamento de algumas
temáticas requer uma dedicação de tempo que a maioria das/os
trabalhadoras/es não possuem, por não conseguirem deixar suas
atividades econômicas e por, muitas vezes, não considerarem os
debates como parte do trabalho. Para Keicy dos Reis (2022), muitas
vezes,
o próprio trabalho consome as/os trabalhadoras/es, que não
têm tempo, tem uma questão do poder, de quem tem
informação, ter uma posição de poder e ter medo de socializar
o conhecimento, às vezes o próprio grupo não entende essa
parte como processo formativo, como trabalho também, como
uma forma de se capacitar. A equipe da Incubadora também
não tem pernas pra isso, porque é preciso uma dedicação.
Para Marcia Leite e Silvana de Souza (2010), o apoio das
ITCPs e de outras entidades de apoio e fomento, como o poder
público, entidades sindicais e não governamentais (ONGs), projetos
da Igreja Católica, podem minimizar a precariedade do trabalho dos
grupos e podem ser decisivos na constituição de uma grande parte
dos empreendimentos. Por outro lado, não parece ser suficiente para
a melhora das condições de vida das/os trabalhadoras/es e para a
garantia da sobrevivência e da evolução dos grupos.
Na atualidade, pode-se dizer que essa afirmação é ainda mais
emergente. Nos últimos anos, as ITCPs têm vivenciado as
consequências do desmonte de políticas públicas e da crise que
170
atravessa as universidades públicas, diante das políticas neoliberais
que as acometem. Com a pandemia da COVID-19, a situação se
agravou ainda mais, o que levou a elaboração de uma série de
estratégias para dar andamento aos trabalhos minimamente
realizados. Para Wagner Molina et al. (2020, p. 179),
A grande maioria da incubadoras encontra-se sem
financiamento público que viabilize a manutenção de técnicos
nas equipes e a realização de despesas necessárias ao
desenvolvimento de suas atividades. Neste sentido, a crise
advinda da Pandemia, com as novas determinações, sobrepõe-
se às dificuldades já enfrentadas. Com as recomendações para o
Isolamento Social, algumas inclusive por determinação expressa
da Universidade, com suspensão das atividades de campo, em
geral, as equipes buscaram construir estratégias que
viabilizassem, em certa medida, o acompanhamento aos
empreendimentos de economia solidária e de outras iniciativas.
Especialmente por meio de ferramentas de comunicação à
distância, relatam terem estabelecido contatos com as
lideranças visando mapear a situação, compreender os impactos
iniciais da Pandemia, bem como construir alternativas que
pudessem contribuir para a redução das ameaças às quais
estavam todos submetidos. A despeito das limitações de acesso
à comunicação virtual que muitos empreendimentos ou
trabalhadores têm, podem ser destacadas estratégias de
capacitação por meio de cursos on line ou de lives, sobre a
Economia Solidária, a Pandemia da COVID -19 e outras
temáticas transversais, inclusive sobre ferramentas de
tecnologias digitais. Outras estratégias adotadas pelas equipes
das ITCPs visaram a articulação de redes territoriais de
solidariedade e as campanhas de solidariedade junto à
comunidade, conjuntamente com outros atores.
Nas organizações de catadoras/es de materiais recicláveis, as
ITCPs estudadas realizaram ações de aquisição de máscaras,
171
produtos de higiene e luvas e atividades de conscientização sobre a
importância da realização de uma separação correta dos materiais,
por conta do alto risco de contágio pelo vírus. Como houve uma
queda na coleta de resíduos sólidos em função, de forma geral, de
uma diminuição do consumo por parte da população e do
fechamento do comércio, as ITCPs também realizaram ações
voltadas para a construção de estratégias para criar novas redes na
cadeia da reciclagem, em busca da atenuação das/os atravessadoras/es,
sucateiras/os ou intermediárias/os (MOLINA et al., 2020).
Equipes de diferentes Incubadoras relatam o quão
amedrontadas/os e inseguras/os as/os trabalhadoras/es ficaram
durante a pandemia, devido à falta de informações que tinham sobre
o vírus, pela orientação de distanciamento social e pelas ameaças
financeiras que a circunstância representava. Foram identificados
impactos na saúde mental dessas/es trabalhadoras/es por meio de
expressões de angústia, ansiedade, tristeza e negação ao se depararem
com os efeitos da própria doença e da necessidade de uma
manutenção das atividades, ainda que caracterizassem situações de
risco.
É possível analisar que tanto as/os catadoras/es da
COOCASSIS, quanto as/os integrantes da Incop Unesp Assis
compartilham da percepção de que a pandemia foi um fator de
grande distanciamento entre a universidade e os grupos populares.
Entretanto, observam que, antes da pandemia, algumas práticas
formativas já não estavam sendo feitas, como por exemplo as rodas
de conversa e as oficinas sobre temáticas diversas. Ademais, avaliam
que a união e a cooperação dentro da Cooperativa diminuíram, e
as/os trabalhadoras/es estavam, cada vez mais, reproduzindo
princípios capitalistas individualistas dentro do ambiente de
trabalho:
172
Antes o povo da Unesp vinha mais aqui, a gente ia na Unesp,
tinha mais encontro de catador, tinha até teatro aqui e foi por
causa disso que eu gosto tanto de teatro….a gente aprendia
bastante coisa com o pessoal da Unesp viu, eles ensinavam todo
mundo mas pararam de vir aqui (RITA, 2022).
Antigamente a necessidade era maior, a carência era maior mas
a união era maior também. O grupo era mais unido, acho que
devido à necessidade, devido à situação que cada um vivia, de
não ter dinheiro. Hoje a gente sente uma desunião, sabe. E não
foi nem a pandemia, foi antes mesmo. Acabou aquilo de se
preocupar com o outro. Antigamente, a gente trazia marmita e
se ela azedava, a gente se juntava e dava um pouco pra cada um.
Hoje ninguém não tá nem aí se a pessoa comeu se não comeu,
você comendo…tá bom. Mudou bastante o grupo, as pessoas
mudaram. Tem muita falta de interesse um pelo outro, falta de
preocupar um com o outro, de diálogo, de mais roda de
conversa. Porque as formações também ajudam a unir, é um
momento em que você se expressa, tipo assim, vamos fazer uma
roda de conversa, vamos falar sobre direitos humanos por
exemplo, vamos falar da sua situação, da situação dela, da
minha, então eu que vou expor a minha vida, você vai escutar
e eu vou te escutar. Então, vai um pegar um pedacinho da vida
do outro, não é só aquele momento: trabalhar e ir embora
(CINTHIA, 2022).
Gaudencio Frigotto (2021, p. 18) analisa que se deve tomar
um cuidado ao evidenciar a pandemia da COVID-19, uma vez que
as consequências desta não são as causas e que tal situação está
envolta em um contexto amplo, em uma lógica capitalista
dominante que determina relações sociais e de trabalho, natureza do
ser humano, conhecimento e educação. Afirma, portanto, que “o
Brasil pauta-se por uma política econômica, social, e educacional
173
conservadora que aprofunda estas determinações e suas
consequências sociais”, e dentre essas consequências estão a
desigualdade social e a degradação ambiental.
As pandemias têm sua origem em uma dupla perspectiva
destrutiva do “sociometabolismo do sistema capitalista que gera a
ampliação do desemprego estrutural, o aumento permanente e
crescente da pobreza no mundo, a fome, guerras e destruição da
natureza da qual somos parte” (FRIGOTTO, 2021, p. 19). Este
sociometabolismo destrutivo é sustentado por uma visão de natureza
humana, de educação e de conhecimento que reforçam e
reproduzem o capital, as relações sociais capitalistas e a propriedade
privada. Essa visão possui um pressuposto de não historicidade do
sujeito, não relacionando o crescimento da desigualdade, a crise
ambiental, o aumento da pobreza e o surgimento das pandemias
como a da COVID-19 às consequências do sistema em que a
humanidade está inserida.
Desvelar essa realidade e esses fenômenos implica observar e
analisar uma disputa mais ampla, que não é neutra e que não objetiva
a harmonia e o bem-estar dos povos. E essa disputa é reproduzida
em toda esfera social, inclusive no campo educacional e formativo.
A escola é feita para as crianças e jovens que possuem tempo para
estudar e para se preparar para o futuro, enquanto que a classe
trabalhadora necessita rapidamente o ingresso no mundo do
trabalho para complementar a renda da família (FRIGOTTO,
2021). A partir dos dados empíricos, pode-se analisar que, dentro da
COOCASSIS, muitas/os trabalhadoras/es, inclusive as/os mais
novas/os, precisaram optar pelo trabalho devido a um contexto
familiar mais pobre. Muitas catadoras e catadores por inúmeras
razões tiveram que abandonar a escola, e por isso possuem baixa
escolarização. No entanto, se antes abandonavam a escola com 10
174
ou 11 anos para trabalhar, hoje, ou realizam ambas atividades ou
terminam a escolarização para adentrar imediatamente à
Cooperativa.
O aumento da escolaridade tem sido parcialmente
enfrentado pelas ITCPs e por políticas de Educação de Jovens e
Adultos para esta parcela da classe trabalhadora (CARVALHO,
2008). Zélia (2022) revela a realidade da baixa escolarização do
segmento de catadoras/es de materiais recicláveis, que observa na
COOCASSIS:
Entrei na Cooperativa um ano depois que me separei do meu
ex-marido, antes eu era trabalhadora doméstica. Deixei a escola
na 4ª série e depois eu fiz o CEJA…fazem 16 anos que trabalho
aqui. Já fui presidenta, secretária, e agora dirijo o caminhão da
Cooperativa.
Leonardo (2022) também declara: “eu não tenho muito
estudo, não. Estudei até a quarta pra quinta série…porque fui
trabalhar. Eu comecei a trabalhar com 10 ou 11 anos com o meu
pai, ele era pedreiro. Mas eu tenho uma inteligência, de pensar mais
lá pra frente”.
Para Zélia da Silva (2014, p. 24), na COOCASSIS, a entrada
precoce no mercado de trabalho “é explicada como uma decorrência
das dificuldades financeiras da família ou em razão dos constantes
deslocamentos dos pais, situações apontadas para o abandono da
escola na infância”. Esse abandono pode ser justificado por uma
pouca valorização da educação pelos pais, pela pouca escolarização
das garotas que deviam se concentrar na aprendizagem dos serviços
domésticos (cozinhar, lavar, passar roupa, etc).
175
O engajamento, ainda na adolescência, em alguma atividade
remunerada, direciona as suas “escolhas” profissionais para os
serviços domésticos, ou aqueles associados a tais predicados,
como atividade de babá ou equivalente. Essa situação projeta-
se para a idade adulta, na qual, em virtude da baixa
escolaridade, as “opções” de inserção no mercado de trabalho
ficam cada vez mais restritas. O resultado desse processo é a sua
entrada no mercado de trabalho em condições extremamente
desfavoráveis, sempre executando trabalhos domésticos ou
trabalhando em atividades pesadas na roça, como o corte de
cana, coleta de soja, corte de arroz ou na cidade, como a
varredura de rua etc (SILVA, 2014, p. 24).
As práticas formativas realizadas pelas Incubadoras com os
grupos e empreendimentos populares buscam fortalecer a
autonomia e os processos educativos das/os trabalhadoras/es a partir
de metodologias que “partem do pressuposto de que as trocas entre
trabalhadores e universidade sejam a base para a construção de uma
ação educativa coletivizante” (CARVALHO et al., 2017, p. 103). O
encontro dos saberes populares e dos saberes acadêmicos pode
possibilitar a criação de novos conhecimentos direcionados para a
transformação social; assim, os processos coletivos são valorizados,
bem como a implicação do sujeito no coletivo.
É só a partir do desenvolvimento de novas relações sociais
entre as pessoas que a autonomia é também construída. A partir da
responsabilidade, da discussão e da tomada de decisão, o sujeito
experiencia uma gestão democrática, planejando, organizando,
coordenando as ações do grupo, e criando, aos poucos, uma
independência de agentes externos. Pautada em uma lógica para
além do capital, os empreendimentos e as incubadoras podem se
relacionar e construir seus projetos vislumbrando a negação do
trabalho alienado e uma vida marcada pela autogestão. A autonomia
176
das/os trabalhadoras/es é bastante valorizada pelo movimento da
Economia Solidária por, justamente, pressupor o
direito ao trabalho, a não subordinação às estruturas
hierarquizadas ou a agentes externos e, ainda, a renda digna
para as pessoas, condições capazes de romper com a lógica do
assistencialismo, quer do Estado, quer de agentes privados sobre
os pobres, fundamentada em uma concepção moralizante do
trabalho, a qual reforça a exploração e promove o controle dessa
população. Muitas associações constituídas para a geração de
trabalho e renda ainda são vinculadas a programas e projetos da
assistência social dos municípios ou a entidades filantrópicas e
religiosas, que não têm por objetivo final a concessão dos
direitos à livre organização econômica que garanta a superação
definitiva de uma condição histórica de precarização em relação
ao trabalho e à miséria social (CARVALHO et al., 2017, p.
107).
Entretanto, a naturalização do trabalho assalariado e dos
princípios e valores capitalistas, a realidade material e social de
muitas/os trabalhadoras/es e, especificamente, do segmento das
catadoras e catadores, e o contexto atual de calamidade pública e
sanitária da pandemia da COVID-19 evidenciam alguns limites da
repercussão das práticas formativas na vida das/os catadoras/es. Os
conflitos interpessoais e de poder, a não contratação dos
empreendimentos pela gestão pública, a necessidade do
comprometimento na gerência do local e a assunção do papel de
associada/o e/ou cooperada/o são algumas das dificuldades
encontradas, que podem ser e que são trabalhadas no processo de
incubação e de formação.
Para Sandro Silva (2017), sem a formação e capacitação e
sem, portanto, um incentivo ao conhecimento dos princípios
177
cooperativistas, grande parte de associadas/os teriam e possuem mais
dificuldades em diferenciar a condição de associada/o e de
assalariada/o, de modo a não participar dos processos decisórios no
empreendimento, o que pode indicar uma descaracterização do
grupo enquanto autogestionário. Por meio das práticas formativas e
da autoeducação, as/os trabalhadoras/es, e especificamente as/os
catadoras/es, podem apreender a realidade histórica, construir uma
totalidade e entrar em contato com as contradições a que estão
submetidas/os.
Uma dessas contradições é o lugar da mulher no trabalho,
que também desvela seu papel na sociedade, como um todo. Como
vimos, nas organizações de catadoras/es, as relações e contradições
combinadas entre o patriarcado e o capitalismo aparecem, de modo
que, a partir da autoeducação e da formação, articulada com as
entidades de apoio e fomento, principalmente as ITCPs, as/os
catadoras/es podem tomar consciência coletivamente das relações de
gênero existentes dentro e fora do local de trabalho, e lutar para
modificá-las.
Autoeducação, formação e gênero: a luta das/os catadoras/es
de materiais recicláveis
Ao pesquisar e sistematizar as práticas discursivas do MNCR
que se referem às relações de trabalho e de gênero, Teresinha de
Mescouto (2020) analisa o site do movimento, e encontra elementos
históricos, sociais e discursivos complexos. Para ela, o MNCR é um
movimento recente, “cujos sujeitos, por meio da organização,
constroem uma identidade enquanto trabalhadores, levando a
sociedade a repensar os valores sobre os quais se estruturam as
relações sociais de trabalho e de gênero” (MESCOUTO, 2020, p.
178
73). Os discursos encontrados permitiram a análise da pesquisadora
de que o movimento coloca em evidência a constituição da categoria
por homens e mulheres catadores e catadoras e princípios e objetivos
de apoio mútuo e unidade de classe, o que pode indicar uma abertura
para o discurso de igualdade nas relações de gênero.
Entretanto, existem diversos mecanismos discursivos nos
principais documentos do movimento que desvelam uma prática
sexista, na qual os homens aparecem como principais sujeitos da
categoria, e as mulheres são invisibilizadas. Um exemplo dessa
prática é o uso de imagens no folder institucional e nos materiais
mais antigos do movimento que reforçam a figura do catador
homem: as mulheres aparecem mais juntas aos catadores homens, de
forma geral. Nos materiais mais recentes, entretanto, percebe-se uma
presença maior de imagens com a centralização de mulheres
catadoras. Na primeira cartilha de formação do movimento, as ações
apontam uma prática predominantemente masculina, fundada
nas contradições históricas citadas por Cisne (2012), Álvaro
(2013), Saffioti (2004), Souza-Lobo (2011), e Cabral e Diaz
(1998), referente ao lugar do homem e da mulher nos espaços
da produção e da reprodução, no espaço público e privado. Na
maioria das atividades, o trabalho do catador é visibilizado e o
da catadora invisibilizado, principalmente nas atividades
relacionadas à organização política e à produção
(MESCOUTO, 2020, p. 64).
As notícias da categoria presentes no site do MNCR revelam
um desafio no que diz respeito à promoção de debates sobre as
relações de gênero e à existência da divisão sexual do trabalho no
movimento. No entanto, ao analisar as ações e notícias mais
recentes, Teresinha de Mescouto (2020) nota um grande avanço
perante algumas iniciativas que evidenciam a construção de um
179
discurso feminista nas práticas discursivas do MNCR, como por
exemplo uma nota de repúdio contra a misoginia sofrida pela ex
presidenta Dilma Rousseff:
É com muito pesar que nós catadoras, trabalhadoras, mães e
chefes de família, nos deparamos com a intolerância e falta de
valores políticos democráticos retratados em adesivos de carros,
que demonstram um país machista, violando a figura não só da
Presidente da República Federativa do Brasil, mas muito mais,
da mulher que venceu as eleições de forma legítima e
representa, queiram ou os opositores, o Brasil.
Não se trata de debate político, mas sim de gênero, de atos
lesivos aos direitos e garantias das mulheres. Jamais na história
desse país, por maiores as atrocidades cometidas pelos chefes do
poder executivo, a honra e a imagem de um presidente foi
denegrida, com argumentos sexistas e covardes como os que
estão sendo dirigidos a Presidente Dilma Rousseff, personagem
importante na reconquista da democracia do país, na qualidade
de militante pela liberdade.
É por isso, por não admitir violência de qualquer natureza ou
debate político sexista, machista ou covarde que tornamos
público o nosso REPÚDIO às imagens que vem sendo
divulgadas em veículos particulares pelo país (MNCR, 2015).
De acordo com a publicação do MNCR (2014), a questão
da igualdade de gênero vem sendo aprofundada pelo movimento ao
longo dos últimos anos. Dentro do movimento surge, no estado de
São Paulo, a Secretaria Estadual de Mulheres Catadoras de Materiais
Recicláveis (SEMUC-SP). Constituída em 2014 no primeiro
Congresso Estadual, realizado na cidade de Ourinhos, a SEMUC-
SP surgiu com a finalidade de dar visibilidade para as mulheres no
segmento por meio da articulação de comitês regionais do estado de
180
São Paulo. Por meio dessa mobilização das mulheres catadoras, a
eleição de assessoras das diferentes cidades para compor a Secretaria
foi possibilitada. Atualmente a Secretaria é considerada um braço do
movimento que direciona a categoria para a luta pelas necessidades
e pelo empoderamento das mulheres nas associações e nas
cooperativas de base, em suas cidades e no movimento como um
todo.
No ano de 2015, a Secretaria organizou o I Encontro
Estadual de Mulheres Catadoras na cidade de Osasco. Nele foram
realizadas formações que abordaram alguns temas relacionados às
mulheres, como mulheres negras, sexualidade, violência doméstica,
feminicídio, violência psicológica contra a mulher, gordofobia,
organização das mulheres, Economia Solidária, trabalho doméstico,
genocídio da juventude negra, redução da maioridade penal e as
mulheres na política. Essas práticas são consideradas, pelas mulheres
catadoras e pelas entidades, como essenciais para o processo
educativo e para a luta das/os catadoras/es de materiais recicláveis.
O acesso às temáticas que abrangem as vivências dessas mulheres traz
o poder de ter a informação e de uma indignação que é
revolucionária, porque pode transformar a forma como elas veem e
analisam suas próprias experiências dentro e fora do ambiente de
trabalho. O texto do panfleto para divulgação do evento foi realizado
em parceria com a Unesp, com a Incop Unesp Assis, Unicamp,
dentre outras entidades.
Em 2017, foi realizado o II Congresso Estadual na cidade de
Campinas. Desde sua composição, a Secretaria pretendeu contribuir
no processo pedagógico das catadoras, em especial por meio de
debates das leis e dos direitos das mulheres catadoras e das
desigualdades de gênero, “mostrando o machismo existente nas
cooperativas, nas famílias, na política e na sociedade como um todo”
181
(SEMUC-SP, 2017, p. 1). O evento de 2017 contou com a presença
de Caravanas do Estado de São Paulo, com oficinas temáticas sobre
1) Mulher negra e racismo; 2) Saúde da mulher; 3) Mulher na
política e na Economia Solidária; 5) Mulher e cárcere: combate ao
genocídio da população negra; 6) Mulher e diversidade sexual; 7)
Organização de mulheres e feminismo, com uma passeata, debates e
eleição da SEMUC.
Em pesquisa feita pela SEMUC em 2015 chegamos a conclusão
que a maioria das catadoras são negras, somando 73% do total.
Além disso, a maioria das catadoras se situa numa faixa etária
entre 36 e 45 anos. Outro dado importante é que a maioria das
catadoras, antes de trabalhar nas cooperativas e associações
estavam vinculadas ao trabalho doméstico e ao trabalho rural.
Nós catadoras também representamos um número grande de
chefes de família, ou seja, somos a principal responsável pelo
sustento das nossas casas apenas com a renda que obtêm do
trabalho na catação. Dessas mulheres, 75% são negras. [...]
Nossa luta é pela contratação, contra o machismo, e também
contra o racismo, contra o genocídio da população negra.
Fazemos parte de um contingente da população que foi
marginalizado e excluído de muitos direitos humanos e sociais
básicos para a sobrevivência. É por isso que hoje temos
prioridade nos programas sociais do governo federal, no acesso
à moradia e as creches por exemplo. [...] Nossa profissão como
catadora já é reconhecida e deve ser lembrada e valorizada!
(SEMUC-SP, 2017, p. 2).
O MNCR também possui, além da SEMUC-SP, outras
Secretarias de Mulheres, como por exemplo a Secretaria de Gênero
da Unicatadores. Em 2017, com o apoio desta Secretaria, as
mulheres do MNCR iniciaram uma mobilização para a formação de
núcleos de gênero nos empreendimentos de base; a proposta dos
núcleos surgiu para as/os catadoras/es levantarem questões de
182
violência contra a mulher, saúde e empoderamento feminino e para
fortalecer os Comitês Regionais do movimento (MNCR, 2017).
Além disso, até o ano de 2018, pode-se ressaltar a promoção de
alguns encontros e congressos de catadoras/es direcionados
especificamente para a temática das mulheres catadoras e outros
eventos nos quais essas mulheres passaram a exigir um momento
para a reflexão sobre esse braço do movimento.
Para Camila Paiva (2016), as mulheres catadoras, ainda que
sejam a ampla maioria do segmento, não possuem e não alcançam
equidade política dentro do movimento nacional, e apresentam
intensa dificuldade na assunção dos cargos de representação nesta
instância, de maior poder de deliberação e de ação. Ao constituírem
a Secretaria, no entanto, rompem a estrutura do movimento, porque
levantam a necessidade de abrir o debate sobre questões específicas
da vida das mulheres catadoras e das suas condições de saúde e de
trabalho. São as mulheres as mais atingidas pelo desemprego e/ou
pelo trabalho informal e precário e, como visto anteriormente, a
participação nos espaços de decisão pode ser essencial para a
construção da autonomia das mulheres.
Por meio da organização das mulheres em Secretarias de
gênero, as catadoras se autoeducam, se formam e formam seus
colegas homens politicamente. A autoeducação faz-se assim
necessária tanto para a tomada de consciência das relações de gênero
nos grupos e empreendimentos como no próprio movimento social
da categoria. É, portanto, a partir da práxis que ela acontece: a partir
da imprescindível relação entre a teoria e a luta que as/os catadoras/es
podem se conscientizar das relações de gênero, para assim, modificá-
las, dentro da realidade de cada grupo, da categoria como um todo,
e da sociedade.
183
Quando olhamos para a formação sob a perspectiva de
gênero, percebemos que o movimento também utiliza a metodologia
de catadora/catador para catadora/catador: na COOCASSIS, Elis
(2022) enuncia essa realidade quando diz que a Cooperativa recebeu
diversas mulheres assessoras da Secretaria das Mulheres para a
realização de reuniões e trocas de experiências acerca de temáticas
relacionadas à autonomia das mulheres e à transformação das suas
relações com os homens, tanto dentro do empreendimento como
nas suas famílias e nas ruas. Ou seja, é também, de catadora/catador
para catadora/catador, em um processo autoeducativo, que a
conscientização e a modificação das relações de gênero pode ser
possível, na interação e na intercooperação entre as/os catadoras/es e
os grupos.
A universidade se apresenta como uma importante
instituição que auxilia as/os trabalhadoras/es a construírem seus
processos de autoeducação, que as/os ajudam na implicação e
engajamento em suas lutas. Além de participar ativamente do
cotidiano das/os trabalhadoras/es nas organizações, a universidade
também se envolve no movimento das/os catadoras/es em
articulação nacional e regional. Pode-se dizer, por exemplo, que
as/os integrantes da Incop Unesp Assis incentivaram e contribuíram
para a articulação das reuniões e para a inserção de uma catadora da
COOCASSIS na assessoria na SEMUC-SP.
A participação da universidade no movimento de mulheres
catadoras de materiais recicláveis também aparece em outras regiões:
em parceria com a Red LACRE, a Women In Informal Employment
Globalizing and Organizing (WIEGO), o MNCR, o Núcleo de
Estudos e Pesquisas da Mulher (NEPEM), da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) e o Instituto Nenuca de
Desenvolvimento Sustentável (INSEA), realizaram em 2012 um
184
projeto piloto para inserir a temática de gênero na formação das/os
catadoras/es, na América Latina. Esse projeto foi composto por
oficinas com catadoras em regiões do estado de Minas Gerais, nas
quais discutiram as temáticas de masculinidades e feminilidades,
desafios enfrentados no processo de construção de autonomia das
mulheres e sugestões para o enfrentamento da realidade.
Como resultado deste projeto, foi elaborada uma cartilha
para as/os catadoras/es (disponível no site do MNCR) que aborda
alguns tópicos como: as diferenças entre os homens e mulheres; a
situação da mulher atualmente; autonomia da mulher catadora;
violência de gênero; machismo e discriminação; envolvimento dos
homens na luta das mulheres catadoras e etc. Ainda, ao fim da
cartilha, são disponibilizados diversos materiais para auxiliar outras
catadoras e outros catadores a implementarem um programa de
formação de gênero em suas cooperativas, redes e movimentos. A
cartilha possui várias figuras e desenhos e é de fácil compreensão, o
que possibilita que mais catadoras/es tenham acesso a ela.
As ITCPs possuem também um papel importante na
divulgação e no compartilhamento desses materiais com as/os
trabalhadoras/es. Durante o período da pandemia, essa articulação
ficou dificultada, dado o desafio do cenário social e econômico das
cooperativas e/ou associações diante de uma atuação permitida
apenas por meio da tecnologia digital. Yuri Amaral (2021) traça
reflexões sobre o percurso da Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares da Universidade do Planalto Catarinense
(ITCP/UNIPLAC) junto à Cooperativa de Trabalho de Materiais
Recicláveis do Município de Otacílio Costa (COOPERCOC), que
nesse período, continuaram juntas, apesar de muitas dificuldades:
185
A COOPERCOC, segue sua atividade inclusive no período da
pandemia do coronavírus com a participação da
ITCP/UNIPLAC por meio da utilização de tecnologia digital,
tendo por desafio, o cenário eminente a ser enfrentado pela
cooperativa, ou seja, atuação na Central de Gerenciamento dos
resíduos sólidos. Nesta prática, ainda recente, identificamos
descritores que apontam para o desenvolvimento territorial de
base local, isto é, localizado, integrado, endógeno e
participativo. Tem o protagonismo de sujeitos nativos;
ecológico, pois se trata do serviço da coleta seletiva, na qual os
associados da cooperativa realizam ações educativas junto aos
moradores e nas escolas sobre o manejo dos resíduos; social e
culturalmente, busca o bem estar de toda a população; inclusivo
pois a base social da cooperativa é de sujeitos empobrecidos,
com participação ativa de mulheres, uma delas ocupa a direção
administrativa da cooperativa gerando visibilidade nas
relações de gênero. Desafia o estado local na responsabilidade
de ser o indutor do desenvolvimento (AMARAL, 2021, p. 52).
As ITCPs podem e promovem práticas de diálogo, como
rodas de conversa e reuniões, para auxiliar as/os trabalhadoras/es a
refletir sobre a temática de gênero e a validar seus conhecimentos,
suas experiências e seu trabalho. Realizam a capacitação de
lideranças, inclusive lideranças mulheres. Procuram estimular a
articulação das organizações com os movimentos sociais, o que é
extremamente importante para a mobilização da categoria das/os
catadoras/es uma vez que é também pelo movimento social que
elas/es aprendem e que se formam politicamente.
No Capítulo 3, procuramos apresentar o conceito de
autoeducação e demonstrar como os processos autoeducativos
acontecem nas organizações de trabalho coletivo, especialmente nas
organizações de catadoras/es. Analisamos o papel das ITCPS e das
práticas formativas propiciadas por elas nas organizações e
186
articulamos as categorias centrais: autoeducação, formação e gênero,
a fim de analisar a luta das catadoras/es de materiais recicláveis pela
modificação das relações de gênero no movimento social e nos
grupos populares. A seguir, veremos como a autoeducação das/os
catadoras/es da COOCASSIS e as práticas formativas desempe-
nhadas pela Incop Unesp Assis com a Cooperativa podem contribuir
para a modificação das relações de gênero neste grupo.
187
Capítulo 4
A autoeducação e as práticas formativas na
COOCASSIS: modificação das relações de gênero?
Para Auro Mendes et al. (2014), a Unesp tem percorrido
uma trajetória significativa no campo da Economia Solidária. Por
meio de ações de extensão universitária, docentes, servidoras/es
técnica/o-administrativas/os e discentes constroem, junto a outras
instituições e comunidade, alternativas de geração de trabalho e
renda, a fim de promover a inclusão produtiva e social de
trabalhadoras/es em condição de vulnerabilidade econômica e social.
Essas ações, geralmente, são constituídas pelo auxílio na organização
de associações e cooperativas de trabalhadoras/es a partir de algumas
frentes de trabalho, como por exemplo costura, artesanato,
assentamentos rurais, horta comunitária, feira de trocas solidárias,
materiais recicláveis, etc.
A extensão universitária da Unesp no movimento da
Economia Solidária se desenvolveu por meio de um projeto
intitulado “Programa de Cooperativas Populares da Unesp” em sete
unidades: Araraquara, Assis, Bauru, Franca, Ilha Solteira, Ourinhos
e Presidente Prudente.
17
Amelia de Araujo e Loriza de Almeida
17
Outros projetos também foram apoiados pela PROEX, via editais, ao longo dos últimos
anos.
188
(2012) assinalam que o Projeto Cooperativas possuía o objetivo de
auxiliar o desenvolvimento de iniciativas e empreendimentos de
trabalho por meio da incubação de grupos populares, o que poderia
vir a contribuir para a conquista de autonomia das/os
trabalhadoras/es. As experiências em cada unidade eram
“multifacetadas e plurais, o que demonstra as potencialidades
existentes em cada território e suas singularidades” (MENDES et al.,
2014, p. 23). Pela tríade ensino-pesquisa-extensão, pode-se observar
que a Unesp tem atuado em conjunto com a comunidade, e feito
parte do movimento da Economia Solidária.
A unidade de Assis iniciou seu trabalho em 2001 na
Faculdade de Ciências e Letras (FCL). No início, as atividades
extensionistas eram realizadas a partir da temática da geração de
trabalho e renda por meio de um projeto de estágio dentro do curso
de psicologia e, com o tempo, foi se constituindo também enquanto
projeto de extensão universitária. O trabalho era voltado para a
organização e constituição de associações e cooperativas de
catadoras/es de materiais recicláveis e da implementação de
programas de coleta seletiva solidária nas cidades de Assis, Palmital
e Maracaí. Em 2006, foi oficializada formalmente a primeira
Incubadora de Cooperativas da Unesp, com sede administrativa em
Assis e núcleos nas unidades de Bauru, Ourinhos e Presidente
Prudente, financiado pela FINEP, com o apoio do PRONINC e por
meio de um convênio com a Fundação para o Desenvolvimento da
Unesp (FUNDUNESP), desempenhado pela FCL-Assis.
Foi a partir da relação estabelecida com a COOCASSIS,
ainda enquanto grupo de trabalhadoras/es, que tudo começou. A
COOCASSIS é um EES que surgiu em 2001 como iniciativa de um
grupo de trabalhadoras/es desempregadas/os que, juntamente à
universidade, desenvolvia um trabalho composto por discussões e
189
debates críticos acerca da problemática social, econômica e política
do desemprego. Com o objetivo de desenvolver espaços de reflexão
crítica acerca do fenômeno e das suas repercussões na vida deste
grupo (CARVALHO, 2008), apoiado pelo poder público, pela
Cáritas Diocesana
18
e pela Unesp, o grupo de trabalhadoras/es
começou a se desenvolver e a se constituir enquanto um
empreendimento, sendo oficialmente formalizado como
Cooperativa em 2003.
Tanto na administração do empreendimento quanto em
práticas formativas proporcionadas pela Incop Unesp Assis e eventos
organizados a partir das temáticas da catação de materiais recicláveis,
de Economia Solidária e Cooperativismo Popular, observa-se uma
expressiva atuação das mulheres. Por meio do movimento nacional,
regional e local, as/os trabalhadoras/es se autoeducam, refletem sobre
pautas e demandas da categoria, e colocam-nas, em articulação com
outras instituições, como emergentes para a continuidade do
trabalho da catação. Junto à Incop Unesp Assis, as/os catadoras/es
trilham um caminho educativo: aprendem e colocam lutas de
resistência em prática.
A COOCASSIS e a Incop Unesp Assis: trilhando um caminho
educativo
Para analisarmos as relações atuais entre a COOCASSIS e a
Incop Unesp Assis, é preciso historicizarmos essa relação, a fim de
encontrarmos, nas suas conquistas e contradições, elementos que
18
A Cáritas Diocesana é uma organização social da Igreja Católica cuja atuação se dá a
partir da defesa dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável solidário. Em
parceria com os movimentos sociais e com outras instituições, essa organização trabalha
junto às categorias que sofrem de vulnerabilidade social e econômica.
190
explicam e indicam quais caminhos podemos seguir no futuro. A
trajetória da COOCASSIS e da Incop Unesp Assis se inicia em um
mesmo ponto: no projeto Grupos de Discussão com Trabalhadores
Desempregados. É a partir dos diálogos e das trocas realizadas nesses
grupos que uma pergunta abre espaço para a construção de um
caminho, longo e dificultoso: “...mas vai ter trabalho?”, que para Ana
Maria de Carvalho et al. (2013, p. 291) “indicava que discutir a
condição e os determinantes do desemprego com aqueles grupos só
teria sentido se fosse possível vislumbrar alternativas de trabalho e
renda”. Para viabilizar essa alternativa, a equipe de estágio
responsável se articulou com a Cáritas Diocesana, que apresentou o
projeto de mobilização nacional “Luxo do Lixo”, cuja finalidade era
apoiar a organização das/os catadoras/es de materiais recicláveis.
Como o projeto que a Cáritas realizava estava suspenso na
cidade, a equipe responsável pelos grupos foi convidada a retomá-lo;
a organização da Igreja Católica disponibilizou uma infraestrutura
(galpão, balança, prensas, carrinhos para a coleta seletiva, dentre
outros equipamentos), e serviços de um funcionário experiente com
materiais recicláveis. No mesmo ano, articulavam-se também as
mobilizações do MNCR, e, após o 1º Congresso Nacional de
Catadores de Materiais Recicláveis em Brasília, a força do
movimento chegou ao Oeste Paulista, e trouxe ao grupo popular de
Assis “as bases políticas que fortaleceriam o processo local de
organização do trabalho cooperativista” (CARVALHO et al., 2013,
p. 292).
O grupo de Assis formalizou-se enquanto Cooperativa em
2003, na época com 47 cooperadas/os, e recebiam, a cada mês, novas
pessoas desempregadas interessadas pelo trabalho. A formalização do
empreendimento foi resultado do comprometimento de diversas/os
atrizes e atores sociais, que compareceram no ato inaugural, na
191
Câmara Municipal de Assis: as/os catadoras/es, as/os professoras/es
do curso de psicologia da Unesp (Ana Maria Rodrigues de Carvalho
e Carlos Ladeia), o responsável pela Cáritas Diocesana (Roberto
Carlos Santos) e o prefeito da época, Carlos Nóbile (SILVA, 2014).
Ainda em 2003, a Cooperativa firmou seu primeiro
convênio com a Prefeitura Municipal, que transferiu o comando da
manipulação dos materiais recicláveis (antes realizado na Usina de
Reciclagem de Assis) para as/os catadoras/es da Cooperativa, que
iniciaram as atividades de triagem no Parque de Reciclagem.
Segundo Zélia da Silva (2014), o apoio técnico, a operação e a
manutenção das máquinas de trabalho eram responsabilidades de
funcionárias/os da prefeitura, o que prenunciou avanços nas
negociações entre as duas instituições e nos benefícios para a cidade.
Em 2005, com a renovação do contrato, foi implantado um
programa de coleta seletiva solidária na cidade, com vários pontos
de entrega em locais estratégicos: escolas do município,
condomínios e algumas praças. A abordagem com as/os
moradoras/es da cidade era feita pelas/os catadoras/es em parceria
com a Vigilância Sanitária, e eram realizados cursos de capacitação
para a coleta seletiva na Unesp Assis.
Ao mesmo tempo, dava-se contorno também a Incop Unesp
Assis. A Incubadora se formalizou em 2006 com o financiamento
do PRONINC e por meio da SENAES, do Ministério do Trabalho
(MTE) e da FINEP, do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).
Com os objetivos de realizar uma integração entre as tríades teoria,
prática e reflexão e ensino, pesquisa e extensão e de apoiar a
organização e a consolidação dos grupos populares de geração de
trabalho e renda, a Incop Unesp Assis busca, na atuação direta com
as iniciativas de Economia Solidária e com os EESs, em um primeiro
momento, de catadoras e catadores de materiais recicláveis, e com o
192
tempo em outras frentes de trabalho, como EESs de agricultoras/es
familiares e de usuárias/os de saúde mental localizadas/os no Oeste
e Centro Oeste Paulista, contribuir para a construção de uma
consciência crítica da realidade (CARVALHO; LADEIA;
FELÍCIO, 2017).
Após um tempo, a demanda pela implementação da coleta
seletiva pelas/os gestoras/es públicos de outras cidades da região
aumentou significativamente, e também, pela constituição de
grupos populares no segmento da agricultura familiar. A Incubadora
foi crescendo na medida que alunas/os e docentes de outras áreas
começaram a participar do projeto e as/os integrantes começaram a
se articular com outras incubadoras brasileiras, por meio da Rede
Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares (Rede ITCPs).
Nos anos subsequentes, aumentou significativamente a
demanda de gestores públicos à Incubadora para organização
de novos grupos de catadores em outros municípios (em
Cândido Mota, Paraguaçu Paulista, Quatá e Rancharia), e
também no segmento da Agricultura Familiar (no município
de João Ramalho). Considerando-se que a Economia Solidária
pressupõe uma integração de conhecimento de diversas áreas, a
Incubadora passou a contar com a participação de alunos e
docentes das demais áreas, inclusive de outras instituições de
ensino superior. O fortalecimento da articulação com outras
incubadoras universitárias brasileiras decorreu de sua filiação
junto à Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares Rede ITCPs, já em 2006 (MENDES
et al., 2014, p. 23).
Foi por meio da relação educativa entre integrantes da
Incubadora e catadoras/es que ambas/os se desenvolveram:
193
aprendiam e construíram juntas/os alternativas para administrar a
Cooperativa financeiramente, gerir os dados e as informações das/os
catadoras/es e dos diferentes tipos de materiais recicláveis, entregar
os comprovantes de venda dos resíduos, controlar as
comercializações, etc. A situação das/os trabalhadoras/es colocava
as/os integrantes da equipe de incubação em uma demanda contínua
de aprendizagem:
Embora muito desgastante, essa atividade burocrática, vista
como distante do fazer esperado para psicólogos, familiarizava-
nos com aqueles dados e nos permitia pautar discussões com os
cooperados, visando a compreen-los e construir estratégias de
superação, quando a situação requeria. Em reuniões semanais,
a partir dos quadros demonstrativos que construíamos, os
cooperados se apropriavam das evoluções das comercializações,
das entradas e saídas de materiais e recursos da Cooperativa.
Assim, era construído um canal de comunicação aberto,
garantindo a transparência e a socialização das informações,
base para o estabelecimento das relações democráticas
pretendidas para um grupo em processo coletivo
(CARVALHO, 2008, p. 86-87).
A imersão no cotidiano das trabalhadoras e trabalhadores é
uma ferramenta utilizada pela Incop Unesp Assis como forma de
acompanhar o grupo, estreitar laços e captar as principais demandas.
Segundo Felizardo Costa (2020, p. 86), o estreitamento de laços
entre os grupos e a equipe de incubação dos empreendimentos do
Oeste e Centro Oeste Paulista “ transforma-se em confiança,
permitindo que a incubadora participe muitas vezes como única
mediadora nas negociações entre os grupos que acompanham e os
organismos (empresas locais, bancos e prefeitura)”. As atividades
desenvolvidas são compostas por práticas formativas, como oficinas,
194
dinâmicas, reuniões e rodas de conversa, que possibilitam a reflexão
crítica sobre o trabalho, e visam, dentre outras coisas, a
independência financeira e administrativa e a formação de lideranças
no local.
Para Ana Maria de Carvalho et al. (2013), o trabalho de uma
ITCP requer uma integração entre os interesses da universidade e as
demandas das/os trabalhadoras/es. Na Incop Unesp Assis, os
objetivos do trabalho são tanto acadêmicos quanto econômicos e
sociopolíticos: os objetivos acadêmicos consistem na articulação
entre a teoria, a prática e a reflexão, na socialização do conhecimento
da realidade concreta das/os trabalhadoras/es e estimular a
criatividade de discentes para a resolução de problemas sociais,
formando um comprometimento com a transformação da realidade
brasileira. Os objetivos econômicos são os de produzir
conhecimentos sobre e com os grupos populares de geração de
trabalho e renda a fim de apoiar sua organização, incentivando o
desenvolvimento da autogestão e da formação de redes entre os
grupos ao auxiliar na elaboração de convênios, contratos e projetos
para a obtenção de recursos financeiros para os empreendimentos e
iniciativas. Os objetivos sociopolíticos se relacionam com a busca de
construção de uma consciência crítica da realidade, como a
compreensão de conceitos como os da solidariedade, autogestão e
democracia, colaborar para a formação de lideranças e de cidadãos,
estimular a participação das/os trabalhadoras/es e de discentes em
espaços políticos e em movimentos sociais e apoiar a criação e o
acesso às políticas públicas que se referem à inclusão social e
econômica das iniciativas e empreendimentos.
O trabalho que a Incop Unesp Assis realiza com os
empreendimentos e iniciativas é apoiado nos referenciais teórico-
metodológicos da Educação Popular, Economia Solidária e
195
Psicologia Sócio-Histórica, que adotam o pressuposto de que o ser
humano é um sujeito social, histórico e, portanto, ativo. Desse
modo, considera-se que o conhecimento acadêmico é complementar
aos conhecimentos populares, e é apenas no encontro desses
conhecimentos que é possível produzir saberes que possam superar
contradições históricas e transformar a realidade imposta. Por meio
de visitas e de reuniões semanais, oficinas temáticas, eventos, rodas
de conversa e etc, a Incubadora acompanha os grupos populares,
procurando construir intervenções que os desenvolvam, que
construam relações com o poder público e com outras instituições e
que auxiliem a organizá-los politicamente. Essas relações aproximam
as/os trabalhadoras/es da elaboração e da implementação de políticas
públicas de inclusão produtiva e social e também de atividades
relacionadas ao movimento da Economia Solidária, em instância
regional e estadual (MENDES et al., 2014).
Para Zélia da Silva (2014, p. 199), o apoio da Unesp, por
meio da elaboração de projetos elaborados pela Incubadora com
as/os catadoras/es, consolidam “as condições para que a cooperativa
e seus integrantes possam desenvolver o trabalho de reciclagem do
município em condições dignas”. É a partir desses projetos que
convênios firmados com o BNDES e com a FBB asseguraram
condições de infraestrutura, como a obtenção de caminhões,
carrinhos e equipamentos e a constituição do Centro Regional de
Processamento, Transformação e Comercialização de Materiais
Recicláveis de Assis. É, também, a partir de atividades de formação
de diferentes tipos com essas/es trabalhadoras/es que o trabalho pôde
melhor se desenvolver ao longo do tempo, como palestras sobre
diversos temas, atividades de letramento, cursos específicos, círculos
de cultura, atividades políticas como o incentivo à participação em
196
encontros e congressos da categoria e de Economia Solidária,
oficinas, etc.
O apoio da Incop Unesp Assis para o acesso aos editais
contribui para mudanças significativas nos empreendimentos e nos
grupos, uma vez que possibilitam melhorias nas condições de
trabalho das pessoas, das/os catadoras/es. Assim, a infraestrutura, a
produção e a renda delas/es puderam obter um desenvolvimento
expressivo. Além dos editais da FBB, BNDES, FUNASA, Cataforte
2 e 3, a parceria com a iniciativa privada também foi firmada, como
a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria
e Cosméticos (ABIHPEC), que financiou os projetos para a
implementação da PNRS na cidade (CARVALHO; LADEIA;
ZOIA, 2010).
O trabalho da incubação, diante do cenário político, social e
econômico contemporâneo, encontra possibilidades, dificuldades e
desafios a serem enfrentados. A naturalização do trabalho
assalariado, a realidade material e social do segmento das catadoras e
catadores, e o contexto atual de calamidade pública e sanitária da
pandemia da COVID-19 evidenciam alguns limites da repercussão
das práticas formativas na vida das/os catadoras/es. Os conflitos
interpessoais e de poder, a necessidade do comprometimento na
gerência do local e a assunção do papel de associada/o e/ou
cooperada/o são algumas das dificuldades encontradas no trabalho,
que podem ser e que são trabalhadas no processo de incubação
(CARVALHO, 2008).
Hoje, pode-se perceber que a COOCASSIS é um
empreendimento considerado uma referência regional, com uma
boa infraestrutura e relativamente grande comparado com as
associações e/ou cooperativas de catadoras/es da região do Oeste
Paulista. Uma parte das/os catadoras/es do local estão na
197
Cooperativa já há algum tempo ou, até mesmo, desde o início do
trabalho. Muitas/os catadoras/es apresentam falas nostálgicas de
como o grupo era unido anteriormente, quando tinham uma maior
necessidade e quando a Incubadora estava presente de forma mais
emergencial e mais ativa no empreendimento.
Algumas/alguns catadoras/es, entretanto, são novas/os na
Cooperativa, e compreendem o local de trabalho como uma empresa
capitalista e não como um EES. Ainda que as/os catadoras/es mais
antigas/os procurem compartilhar o conhecimento adquirido
durante tantos anos de trabalho e de aprendizagem em conjunto,
com a participação da Incubadora, possuem algumas dificuldades no
que tange à inserção de um contingente de catadoras/es que, em
parte, não ficam por tanto tempo no trabalho, principalmente
quando mais novas/os e quando são homens, porque eles costumam
desejar e procurar por outro tipo de trabalho, geralmente com
carteira assinada.
Ainda que a Incubadora, em 2018 e 2019, tenha tentado
resgatar algumas das práticas realizadas nos anos anteriores com a
COOCASSIS, como por exemplo as rodas de conversa e as oficinas,
nota-se uma descontinuidade de formação para a Economia
Solidária, autogestão e para o trabalho cooperativo. A Incubadora,
após tanto tempo de apoio ativo, se concentrou em um local de
acompanhamento emergencial, burocrático e administrativo do
trabalho, no qual observava-se muitas dificuldades das/os
cooperadas/os, a ponto de, caso não focassem neste aspecto, a
Cooperativa poderia ter consequências drásticas no que diz respeito
a sua continuidade, o que realmente indica um caráter de urgência.
A relação estabelecida entre a COOCASSIS e a Incop Unesp
Assis é de longa duração e revela potencialidades e contradições em
seu desenvolvimento. A partir das demandas das/os
198
trabalhadoras/es, procura-se, por meio de um processo educativo,
potencializar e fortalecer as/os catadoras/es no cotidiano do trabalho
e na sua articulação política, em suas lutas. Atualmente, a
Cooperativa e a Incubadora demonstram um crescimento
significativo, e apresentam, para além de conquistas, desafios e
dificuldades no que tange ao cenário social, político e econômico do
país. A união das duas instituições e as construções realizadas
indicam a potência da relação universidade-movimentos sociais,
que, para além de suprir carências intensificadas pelo capitalismo e
neoliberalismo, planejam e colocam em prática projetos e processos
de autoeducação. Entretanto, o futuro parece ser tortuoso quando
pensamos em recursos, tempo, investimentos, e disponibilidade para
dar continuidade e abrir novas perspectivas para o trabalho,
principalmente quando nos deparamos com outras temáticas
emergentes no local, como a de gênero.
A autoeducação e gênero das/os trabalhadoras/es na
COOCASSIS: o trabalho, o movimento social e as práticas
formativas como princípios educativos
Na COOCASSIS, o trabalho é transmitido de uma/um para
outra/o, de forma que as/os próprias/os cooperadas/os
desempenham o papel de ensinar umas/uns às/aos outras/os:
aprendem a coletar, a triar, a prensar e até mesmo, a dirigir os
caminhões. Para Keicy dos Reis (2022), a inserção de cooperadas/os
novas/os no empreendimento é realizada a partir de um processo
educativo e colaborativo, sendo necessário que as/os cooperadas/os
antigas/os tenham uma atenção redobrada na realização do seu
trabalho, uma vez que, além de reali-lo, deve ensiná-lo a outra
199
pessoa, muitas vezes parando o seu trabalho para explicar e tirar
dúvidas:
Acho que tem esse cuidado deles também né, que não é só
colocar alguém na esteira e falar: olha aí e se vira. É poder ter
alguém ali pra poder contribuir com esse processo, acho que
eles fazem bem isso, de fazer com que a pessoa passe por alguns
setores, para que ela não fique em um setor só, pra poder
também compreender como que é o funcionamento da
Cooperativa, e também ver onde é que ela se desenvolve, pode
ser que ela não consiga ficar na esteira, seja por uma questão
física ou porque ela não se identificou com aquele espaço, não
rolou, não fluiu, então ela pode ir pra um outro lugar.
O crescimento e desenvolvimento do trabalho na
COOCASSIS, com o auxílio da Incubadora e de outras entidades,
foi alicerçado na conquista das políticas públicas para o setor, a partir
do movimento de catadoras/es. A aquisição de condições materiais
mínimas de trabalho possibilita vislumbrarmos transformações
das/os catadoras/es e de suas vidas; o aumento da infraestrutura é
essencial para a continuidade do trabalho e para a autoeducação
das/os catadoras/es, que ao desempenharem seu trabalho da melhor
forma possível, se aproximam, melhoram a produtividade e os
resultados.
Elis (2022) elucida que, antigamente, além disso, devido ao
fato de ela ser uma das únicas pessoas que realizou um curso superior
na Cooperativa, ensinava aos colegas a ler e escrever: “muita gente
aprendeu a ler e a escrever comigo. Eu tô aqui pra ensinar pra eles o
letramento, ensinar de graça”. Elis (2022) e Leonardo (2022)
trazem, em suas vivências, a metodologia “de catador para catador”,
utilizada como instrumento de formação para a autogestão no
trabalho cooperado do MNCR: é por meio tanto das trocas entre
200
as/os cooperadas/os no próprio empreendimento, para ensinar o que
elas/es sabem sobre o trabalho e sobre a vida da catadora e do catador
quanto de visitas em outras cooperativas da região e eventos
promovidos pelo movimento, que as/os catadoras/es compartilha-
vam e auxiliavam outras/os catadoras/es, com a participação de
outras entidades e pessoas.
Elis (2022) relembra, com muita nostalgia e com muito
afeto, da participação das/os catadoras/es da COOCASSIS em um
evento do MNCR:
Quando chegava no fim do ano, olha pra você ver que coisa
mais linda que era, chega até a me arrepiar quando eu lembro
das coisas. A gente reunia o Comitê, reunia todos os catadores
da região inteira, e todo ano tem a ExpoCatador. A
ExpoCatador é um evento muito grande. Tem catador do
mundo inteiro, vem gente do mundo inteiro, tudo que se fala
de meio ambiente vem: promotor, advogado, ambientalista. E
lá, eles fazem oficinas pra você entender de lei, outra oficina de
reciclagem, é muito bom, você fica uns 4 dias lá, sabe? Por conta
do MNCR. Cada ano era numa região: São Paulo, Rio de
Janeiro, e a gente fazia aquela caravana pra ir.
Camila Paiva (2016, p. 170) analisa que é a partir da criação
de laços de afetividade e de reciprocidade, por meio do trabalho em
grupo, da convivência com mulheres catadoras de outras cidades que
vivem realidades diferentes e parecidas ao mesmo tempo, que as
catadoras, em geral, se sentem mais capazes e mais fortes para
conhecer e lutar pelos seus direitos. Muitas mulheres, por meio do
trabalho, se sentem motivadas a participar de congressos, encontros,
cursos, a voltar a estudar e se formar politicamente. E é por meio
dessas formações que elas podem entender “o que é disputa de
gênero dentro das organizações de que participam, percebem a
201
violência doméstica, a discriminação racial e a exclusão social a que
são submetidas. Reconhecem o machismo, a falta de
oportunidades”. Ao se organizarem no trabalho coletivo, portanto,
as mulheres podem ter mais acesso aos postos de trabalho, aos cargos
de representação, às articulações políticas, e assim, podem dar outro
sentido ao seu papel social e às suas vidas.
Na região do Oeste Paulista, as/os catadoras/es de materiais
recicláveis que estão organizadas/os em cooperativas/associações
populares se articulam politicamente desde 2003 a fim de
conseguirem melhorar suas condições de vida e de trabalho. Como
visto anteriormente, desde o princípio, as/os catadoras/es da
COOCASSIS tiveram a participação do MNCR em sua
organização; a organização regional dessas/es trabalhadoras/es se deu
a partir de uma rede da categoria: um Comitê e, posteriormente,
uma associação e uma cooperativa de segundo grau (que agrupava
algumas associações/cooperativas de catadoras/es da região) e um
movimento regional e local de Economia Solidária, sob a forma de
encontros e fóruns, como o Fórum Oeste e Centro-Oeste Paulista
de Economia Solidária (FOCOPES) e o Fórum Assisense de
Economia Solidária (FAES).
O Comitê Regional de Catadores do Oeste Paulista,
formado em 2003 e organizado a partir de três cidades polos (polo
de Ourinhos, polo de Assis e polo de Presidente Epitácio),
sistematizava reuniões gerais com grupos de catadoras/es, gestoras/es
públicos e entidades de apoio e fomento, a fim de debater sobre as
demandas do segmento, trocar experiências e construir estratégias de
luta, como por exemplo políticas públicas para catadoras/es. A
equipe da Incop Unesp Assis participava das ações articuladas pelo
Comitê desde o princípio, principalmente oferecendo assessoria e
202
acompanhamento das organizações de catadoras/es na região de
Assis, uma das três cidades polos.
Vinculado ao MNCR, o Comitê era composto por diversas
associações e cooperativas de base nos três polos. Assim, um
empreendimento com maior experiência e melhor infraestrutura
auxiliava outro grupo popular na sua constituição, orientando,
emprestando equipamentos, auxiliando nas comercializações, ou
seja, realizando a intercooperação a partir da metodologia de
formação “de catador para catador” aqui considerada como um
processo autoeducativo. Pode-se afirmar que essa metodologia
fortalece as relações das/os catadoras/es e estimula a solidariedade
entre elas/es, uma vez que promove o interesse do grupo pelo
crescimento da categoria e não de um ou de outro empreendimento,
de forma individual.
Ao pesquisar sobre o perfil socioprofissional de catadoras/es
que compõe o Comitê, Ana Maria de Carvalho e Carina Rondini
(2017) levantaram que, em 19 empreendimentos (10 associações e
9 cooperativas), 71,9% das/os trabalhadoras/es são mulheres. Por
meio da realização de rodas de conversa sobre, especialmente, a
presença significativa de mulheres nos empreendimentos, as
pesquisadoras analisaram que as/os catadoras/es participantes da
pesquisa possuem, em geral, baixa escolaridade, renda abaixo de um
salário mínimo, sendo que 68,8% das famílias com uma exclusiva
fonte de renda provém de mulheres catadoras. A presença
significativa de mulheres nas associações e cooperativas do Oeste
Paulista pode decorrer, portanto, da “pouca perspectiva de inserção
no mercado de trabalho formal, considerando a baixa escolaridade e
a restrita qualificação que a maioria delas possui” (CARVALHO;
RONDINI, 2017, p. 9).
203
Ainda que a organização das/os catadoras/es em associações
e cooperativas populares pautadas pela Economia Solidária não
garantam a superação da precarização do trabalho, pode promover
uma outra experiência de trabalho diferenciada do trabalho
assalariado capitalista: de responsabilidade pelo coletivo, que, para
Ana Maria de Carvalho (2022), é muito valorizado pelas
trabalhadoras mulheres da COOCASSIS.
O Comitê, após um período de tempo, se formalizou e se
constituiu enquanto Associação Regional de Catadores do Oeste
Paulista (ARCOP); a organização em rede de associações e
cooperativas de catadoras/es na região sempre foi articulada e
estimulada pela Incop Unesp Assis. Em 2011, também foi
constituída a Rede Cataoeste, formada por associações e cooperativas
das cidades de Assis, Maracaí, Cândido Mota, Palmital, Paraguaçu
Paulista e Quatá. A Rede participou de alguns editais, como por
exemplo o edital do Projeto Cataforte, o que auxiliou as/os
catadoras/es na aquisição de bens de produção necessários para
garantir melhores condições de trabalho (FUZZI, 2016).
A Rede Cataoeste foi fundamental para a realização de
capacitações para as/os cooperadas/os e associadas/os, que
transformam as relações de trabalho e as vidas dessas pessoas. A
Rede, junto a Rede Cata-recicla, constituída por outras associações
e cooperativas na região de Ourinhos, realizavam a comercialização
dos resíduos sólidos por meio da Cooperativa de Trabalho de
Produção Central e Regional de Catadores de Materiais Recicláveis
do Oeste Paulista (COOPERCOP). A COOPERCOP é uma
cooperativa de segundo grau que visa a troca de experiências, o apoio
mútuo e a comercialização dos materiais entre as cooperativas; a
COOCASSIS foi bem atuante na formação da Rede e da
COOPERCOP, mas, hoje em dia, as/os catadoras/es do
204
empreendimento percebem um desvio político no que tange às ações
articuladas pelas lideranças dessas entidades.
Observamos que as relações de intercooperação estão se
enfraquecendo atualmente, e um dos motivos levantados pelas/os
catadoras/es e integrantes da Incubadora, é que algumas práticas
formativas também estão enfraquecidas, tanto por conta de um
cenário econômico, social e político mais amplo quanto pelos limites
encontrados pelas/os trabalhadoras/es diante das consequências dos
conflitos gerados pela priorização de interesses individuais de
lideranças perante as relações de poder existentes na movimentação
política, em instância nacional e regional.
Carlos Ladeia (2022) analisa uma repetição feita pelas
lideranças regionais de problemáticas que elas mesmas apontam no
MNCR, como por exemplo, o abuso do poder e a diminuição da
intercooperação e da solidariedade de classe em prol do benefício
próprio ou de um grupo mais próximo de colegas de trabalho. Para
Elis (2022), a atuação da COOCASSIS nos movimentos foi
mudando com o tempo e hoje em dia, considera que as/os
trabalhadoras/es pensam que trabalhar em cooperativa é “coisa do
passado”: a catadora percebe que o desvio nas representações dos
movimentos da categoria também está presente dentro do
empreendimento, o que caracteriza uma contradição inerente à
ocupação de uma posição de poder e a uma modificação das ações e
de atitudes perante o coletivo, em prol do individualismo, e não do
cooperativismo das/os trabalhadoras/es.
A percepção das/os catadoras/es de que os encontros e o
movimento, em geral, estão mais paralisados também denota um
enfraquecimento dos movimentos sociais e das lutas sociais contra-
hegemônicas das/os trabalhadoras/es como um todo. O cenário
neoliberal, composto majoritariamente por trabalhos terceirizados e
205
informais, muitas vezes mais individuais e mais fragmentados,
enfraqueceu os laços sindicais e diminuiu a união das/os
trabalhadoras/es pela mobilização social, uma vez que a
individualização no trabalho se constitui enquanto uma força
contrária aos princípios dos movimentos sociais (DRUCK, 2011).
Pode-se analisar que há, no segmento de catadoras/es, uma
dificuldade no que tange a atualização dos movimentos, como por
exemplo no MNCR, em suas representações e reivindicações. A
SEMUC-SP foi constituída enquanto um órgão para defender e
exigir a participação de mulheres na representação não só em
instâncias locais e regionais, mas também na instância nacional, o
que caracteriza um avanço e uma atualização importante do
movimento e, principalmente, das mulheres catadoras, que ao
questionar suas condições dentro do movimento, dos
empreendimentos e da família, questionam também o lugar dos
homens nesses mesmos locais, o que pode sinalizar um grande passo
na ruptura das relações de gênero estabelecidas e reproduzidas do
laço estreito realizado entre o capitalismo e o patriarcado, no
trabalho coletivo, em organizações de catadoras/es.
A COOCASSIS foi uma das cooperativas que participou dos
eventos de mulheres catadoras promovidos pela SEMUC-SP e,
inclusive, uma das catadoras foi representante na assessoria da
Secretaria. Cinthia (2022) relata que sua participação na Secretaria
era constante e não só nos encontros de mulheres como nos
encontros de catadoras/es em geral; a catadora percebe que o
movimento está “mais parado. Acabou cada um indo pro seu lado,
perdendo o foco. Como tinha bastante capacitação, o movimento
ajudava bastante a gente”.
Elis (2022), ao se lembrar de uma formação que as catadoras
da COOCASSIS participaram sobre o machismo realizada pela
206
SEMUC-SP no empreendimento, relata que as mulheres assessoras
da Secretaria faziam visitas nas cooperativas de base para conversar
sobre a desigualdade presente nas relações de gênero, dentro e fora
da Cooperativa. Conta que as formações feitas pela SEMUC-SP
modificaram os pensamentos e as ideias que as/os catadoras/es
tinham anteriormente, e revela que “o homem também tem que
ajudar a mulher em casa, tem que levar um filho na creche, tem que
ajudar a dar banho num filho, tem que lavar a roupa”. Demonstra
que passaram por um processo autoeducativo nessas reuniões e diz,
de forma bem nostálgica, que “foi uma capacitação tão linda que
muitos casais que estavam ali naquele impasse de separação por
conta do acúmulo de trabalho em um e em outro não, foi abrindo a
cabeça desses catadores, entendeu? Pena que acabou”.
As mulheres catadoras emergem, na atuação na
COOCASSIS e no movimento social, como sujeitos políticos. Para
Ana Maria (2022), a ocupação de um cargo de representação das/os
catadoras/es do empreendimento no MNCR sempre foi um desejo
das lideranças locais e regionais (que, em geral, principalmente no
Oeste Paulista, são mulheres), mas observam que esse lugar é um
“espaço de destaque para os homens”. Consideram, ao analisar as
relações de poder entre instâncias locais, regionais e nacional, que
quem sempre teve visibilidade no movimento, quem delibera e dá a
última palavra, são os homens. Ana Maria (2022) relembra que no
primeiro Congresso realizado pela SEMUC-SP, a pauta era “a
denúncia da primazia dos homens à frente da liderança do
movimento”.
Elas diziam: nós não somos aquelas que vão ficar anotando
recado. Nós queremos estar à frente do movimento. E esses
homens sempre negavam isso, eles diziam que isso era invenção
delas. O MNCR tem à frente hoje a mesma pessoa de quando
207
nós encontramos os catadores no ano de 2000. Então, não é
pouca coisa, são duas décadas. Ainda que a gente tenha
identificado a ascensão de mulheres na liderança, a denúncia
delas sempre foi essa. É interessante que essa leitura que elas
fazem só é possível porque elas se sentiam empoderadas pra
poder fazer a denúncia e enfrentar, e a situação foi de fato de
enfrentamento porque os homens entenderam que esse
Congresso era um enfrentamento. A situação foi bastante
problematizada.
A maioria dos empreendimentos do Oeste Paulista possui
presidentas mulheres; a possibilidade de ocupar esse lugar de
representação, na COOCASSIS, pode ser explicada tanto pela
presença expressiva de mulheres nas cooperativas e associações de
catadoras/es quanto pela força e autonomia que as catadoras
passaram a ter. A autoeducação e práticas formativas foram
instrumentos essenciais para auxiliar as/os trabalhadoras/es a se
fortalecerem e a construir um novo lugar e um novo papel, dentro e
fora da Cooperativa. Ana Maria (2022), no entanto, observa que as
mulheres tentam colocar pelo menos um homem nos cargos de
representação da COOCASSIS, o que pode significar tanto uma
insegurança das mulheres ao exercer o poder quanto uma
necessidade de incluir o homem nesse posto, já que, na Cooperativa,
atualmente, os catadores são considerados mais alheios às questões
políticas e burocráticas locais do trabalho.
Izaque Ribeiro, Henrique Nardi e Paula Machado (2012),
em sua pesquisa sobre as/os catadoras/es de materiais recicláveis e as
articulações sobre trabalho precário e gênero em uma cidade de
Porto Alegre, sinalizam que, apesar de encontrar uma ampla
participação das mulheres na direção e na liderança dos
empreendimentos no contexto estudado, observaram que esta
liderança tinha muito mais reconhecimento no local de trabalho do
208
que nos espaços de discussão e de participação do MNCR. Assim,
em momentos de debate político do movimento nacional, a presença
feminina era evidenciada em número, mas não em termos de
participação em encaminhamentos e discussões, e, nessa situação,
as/os pesquisadoras/es analisam: “observávamos nas instâncias do
movimento que a mulher continuava “administrando a casa”
(galpão), enquanto os homens praticamente tomavam conta das
atividades relacionadas ao “público” - fora do galpão” (RIBEIRO;
NARDI; MACHADO, 2012, p. 251).
As catadoras/es da COOCASSIS, especialmente as mulheres
catadoras, também se fazem presentes no movimento regional e local
de Economia Solidária, principalmente em encontros, nas feiras e
nos fóruns. A participação ativa no FOCOPES e FAES
proporcionou às/aos trabalhadoras/es a inserção em espaços de
formação e de decisão, o que pode promover uma maior
compreensão crítica sobre o trabalho e as articulações possíveis entre
a universidade, a categoria das/os catadoras/es e o poder público. O
FOCOPES foi constituído em 2012 enquanto espaço para
discussão, debates e ações para a consolidação da Economia Solidária
como política pública na região; nesse sentido, reúne iniciativas de
Economia Solidária, EESs, entidades de apoio e fomento e
gestoras/es públicos. Os municípios que englobam o fórum são
Assis, Cândido Mota, Ourinhos, Martinópolis, Maracaí, Palmital,
Paraguaçu Paulista, Rancharia, Marília e João Ramalho. O FAES,
por sua vez, emergiu no ano de 2019, para mapear as demandas
específicas da cidade de Assis, e realizar ações mais focadas, a fim de
levá-las para o debate no fórum regional.
A participação das mulheres em espaços públicos e políticos
pode promover muitas modificações em suas vidas. Segundo Bruna
Vasconcellos (2017, p. 169), “a própria participação política das
209
mulheres já é uma forma de romper com os padrões”, pois, ao se
envolver com as ações coletivas, mobilizações, reuniões de
organização, protestos, entram em contato com outras
possibilidades de se colocar no mundo, e não apenas no trabalho
doméstico, no qual suas vozes não podem ser ouvidas. Cria-se um
local de produção de questionamentos referentes ao seu papel no
trabalho e na família, o que rompe com o funcionamento tanto do
empreendimento quanto da sua vida pessoal.
A relação da Incubadora com a Cooperativa, e a
aproximação que procuram realizar entre com os movimentos
sociais, com outras entidades e com o poder público, são de extrema
importância para os processos autoeducativos das/os catadoras/es, e
para a modificação das posições que as catadoras e catadores
ocupam. A seguir, indicamos algumas das práticas formativas
desempenhadas pela Incubadora durante os anos anteriores e
durante o período de 2020-2021:
Tabela 1: Principais práticas formativas realizadas nos anos anteriores
Práticas
formativas
Temas Ano
Rodas de
conversa
- Trabalho cooperado na perspectiva da
Economia Solidária e da Educação Popular;
- Diferenças entre o trabalho; assalariado e o
trabalho cooperado;
- Importância e significado da gestão
democrática;
- Economia e diferenças entre a economia
capitalista e a Economia Solidária;
diversos
210
Capacitações
técnicas
- Capacitação de lideranças (Conselho de
Administração, Conselho Fiscal e
Coordenadoras/es);
2012
Oficinas
- Planejamento do trabalho (Conselho de
Administração, Conselho Fiscal e representantes
do restante do grupo);
diversos
Reuniões
- Idas semanais ao empreendimento para a
captação de demandas;
diversos
Cursos
- Introdução à Economia Solidária (várias
turmas, anos diversos);
diversos
Dinâmicas
- Dinâmica da teia
- Maquete
- Linhas de sentido
diversos
Outras
práticas
- Teatro (ensaio e apresentação);
- Círculo de cultura;
- EJA - Educação de Jovens e Adultos (MOVA
Brasil);
- Avaliação do trabalho na Cooperativa
- Planejamento estratégico
2017
2010/11
2012
diversos
diversos
Tabela 2: Principais práticas formativas realizadas nos anos de 2020-2021
Temas
conversa
Importância da emissão de parecer do Conselho Fiscal da
Cooperativa
técnicas
Análise da documentação contábil e das ações de
natureza financeira
- Atribuições dos Conselhos Administrativo e Fiscal
211
- Elaboração do parecer do Conselho Fiscal referente a
prestação de contas
Leitura do novo Regimento Interno da Cooperativa
Quando olhamos para a temática de gênero, no entanto,
percebemos que a Incop Unesp Assis não promoveu e não promove
práticas formativas voltadas para o tema de forma específica. O tema
surge de forma espontânea, em rodas de conversa, em eventos e em
oficinas sobre outros temas, como por exemplo, sobre Economia
Solidária, desemprego, Cooperativismo Popular, Trabalho
Associado, etc.
Pode-se observar que durante o período em que os
movimentos sociais regionais e nacionais estavam mais atuantes, e
quando as/os trabalhadoras/es dependiam mais da relação com a
Incubadora para a aquisição de instrumentos e de meios de trabalho,
algumas práticas formativas eram mais frequentes, de modo que, o
tema de gênero repercutiu ainda mais no grupo em um período
anterior ao Golpe. Ana Maria de Carvalho (2022) relembra algumas
rodas de conversa que o tema gênero foi debatido pelo grupo. Umas
delas decorria especificamente da pesquisa que a professora, junto a
Carina Rondini (2015) realizaram no local, nas quais a temática
compreendia como as catadoras enxergavam seu trabalho e como se
viam na Cooperativa. Ao perguntar o motivo pelo qual as catadoras
percebiam uma presença significativa de mulheres na COOCASSIS,
as trabalhadoras disseram que “possuem coragem e devem sustentar
uma família, portanto, trabalham em qualquer lugar e não têm medo
de nenhum trabalho.” Disseram que os homens possuem medo de
alguns trabalhos, que querem escolher trabalho e que querem folgar.
As mulheres catadoras se reconhecem enquanto sujeitos que
212
possuem muita força, que para Ana Maria de Carvalho (2022, grifo
nosso) chega até a assustar, uma vez que a necessidade de tanta força,
sobrecarrega as mulheres.
Eu fiz uma outra provocação naquele momento da roda de
conversa, que tinha esse propósito formativo, eu disse assim:
“vocês nunca pensaram que tem menos homens aqui do que
mulheres porque os homens querem outro tipo de trabalho?”,
pairou um silêncio. Um silêncio. E logo uma disse assim: É
verdade, eles querem trabalhar nas indústrias, né? Eles querem
trabalhar com carteira assinada, né? Eles querem trabalho que
o povo reconheça mais, né?. Mas aí o grupo ficou muito
incomodado, porque eu dei corda pra essa interpretação porque
eu queria que elas compreendessem a estrutura social, né?
Porque qual é a vantagem dali estar sendo um espaço de
muitas mulheres? O que as mulheres ganham com isso?
Os homens não participaram dessas rodas de conversa e, para
Ana Maria de Carvalho (2022), a oportunidade de dialogar sobre o
tema com eles foi mais restrita, tanto devido a uma indisponibilidade
das pesquisadoras quanto dos trabalhadores. Keicy dos Reis (2022)
recorda de algumas rodas de conversa que sua equipe de incubação
fez com as/os catadoras/es, na tentativa de voltar a essa prática, em
2019, uma vez que no período em que incubou o empreendimento,
as rodas de conversa eram práticas formativas que já não estavam
sendo feitas diariamente. Quando o tema gênero aparecia, as/os
integrantes da Incubadora realizavam provocações e escutavam as/os
trabalhadoras/es, que, muitas vezes, traziam vivências de seus
trabalhos anteriores. Diz que considera que a temática no
empreendimento era transversal, ela aparecia “porque faz parte da
realidade deles. Não acho que a gente tenha trabalhado esse tema de
213
forma mais, como pauta única, mais direcionada. Todas as vezes que
aparecia a gente puxava pra discutir.”
Na visão de Keicy dos Reis (2022), os homens cooperados,
nas rodas de conversa, demonstravam uma dificuldade em lidar com
a hierarquia em trabalhos anteriores, de ter um patrão, alguém
mandando neles. Reflete que, dentro da Cooperativa, poderia existir
uma dificuldade dos homens com a vivência cooperativa, ao dividir
o poder, as funções do trabalho e até ao realizar práticas formativas.
É importante ressaltarmos que, não só a COOCASSIS, mas
os empreendimentos de catadoras/es de materiais recicláveis no
Oeste Paulista, em geral, demandam, muitas vezes, e demonstram
mais interesse pelo apoio técnico do que por outras práticas (como
rodas de conversa, oficinas, reuniões, etc), uma vez que muitas/os
delas/es consideram essas práticas como um desperdício de tempo, e
não como parte do trabalho.
Para Ana Carolina Pereira, Letícia Dal Secco e Ana Maria de
Carvalho (2014, p. 180-181), as dificuldades das/os catadoras/es
organizadas/os em considerar práticas formativas como parte do
trabalho, podem estar relacionadas à “representação de um modelo
de escolarização elitista formal, vivenciado por estes trabalhadores
que não considera a realidade dos alunos, ou educandos”. Em geral,
essas pessoas foram rotuladas como “inadequadas”, “incapazes” e
tiveram sua personalidade criticada e julgada por uma escola que
despotencializa o sujeito. O acesso a uma educação que não limita o
conhecimento a uma linguagem inacessível e que assume a realidade
da/o educanda/o como parte da construção do conhecimento, se faz
necessário para essas/es catadoras/es, porque pode promover a
mudança dessa visão e da identidade da catadora e do catador. Ana
Carolina Pereira, Letícia Dal Secco e Ana Maria de Carvalho (2014,
p. 180-181) relatam a construção de um espaço de educação popular
214
na COOCASSIS, enquanto uma conquista e também um desafio,
por meio dos cursos de letramento e no exercício de problematização
sobre temas que atravessam o cotidiano do trabalho.
A COOCASSIS, incentivada pelo MNCR, vivenciou a
experiência do projeto de educação popular MOVA Brasil,
desenvolvido pelo Instituto Paulo Freire e financiado pela
Petrobrás e Federação Única dos Petroleiros (FUP) no período
de outubro de 2006 a junho de 2007. Com este espaço de
educação popular na cooperativa, o MNCR contribuiu para
que o catador se apropriasse de ferramentas para romper com
as organizações tradicionais de trabalho, que os alienavam, e
discutir o significado da catação, dos materiais, bem como a
cadeia produtiva dos mesmos.
Zélia da Silva (2014, p. 25-26) escreve que nos relatos feitos
pelas/os catadoras/es da COOCASSIS, são assinaladas experiências
das/os catadoras/es com cursos de capacitação desde o início da
constituição da Cooperativa, em diferentes níveis. Ressalta “sua
importância para o desenvolvimento pessoal no que se refere à
aquisição de conhecimentos e de autoestima”. Na formação da
Cooperativa, a realização do trabalho em grupo foi amparada por
treinamento e por cursos técnicos para a operação da esteira e de
máquinas, bem como cursos de formação de lideranças e outras
práticas sobre a convivência grupal, todas promovidas e/ou
estimuladas pela Incubadora. Assim, é por meio dos aprendizados
articulados com e pela Incop Unesp Assis que as/os catadoras/es
começam a participar e a assumir várias funções dentro do
empreendimento, como por exemplo se inserir em um cargo de
representação, onde administram e de avaliam o trabalho.
Laura (2022) declara que aprendeu muita coisa na
Cooperativa, mas que “agora não tem mais muita formação e
215
capacitação que nem tinha antes. Mas a gente tinha círculo de
cultura, oficinas…é educação popular que chama né?!”. Rita (2022)
revela que a participação da Incubadora no processo de
desenvolvimento da Cooperativa foi e é fundamental para a
construção e compartilhamento, não só de conhecimento, mas de
afetos e companheirismo.
Eu, quando entrei aqui, nunca tinha ouvido nem falar em lixo,
que podia passar o lixo menina…eu sempre trabalhei de
costureira. Aí eu vim pra cá porque eu tava precisando, aprendi,
aprende fácil, é fácil aprender. Um vai ensinando o outro, antes
era assim, sabe? Ensinava muito quando você entrava, eles
ficavam ali perto de você, te ensinando, sabe? Você aprendia
rapidinho. Eu acho que muita coisa assim que a gente não sabe
né, o pessoal da Unesp ajuda a gente. Sempre tô falando pra
você, que quando as meninas vinham, era tão gostoso. Tinha
teatro, um monte de coisa. Era muito bom, precisava de ver que
gostoso. Os meninos [da Unesp] iam pra rua com a gente.
Algumas práticas formativas também aconteceram durante a
aplicação feita na COOCASSIS e em outros empreendimentos do
Oeste Paulista de uma tecnologia social criada pela equipe da
Incubadora, nomeada Roteiro de Identificação da Situação Atual de
Associações e Cooperativas (RISAAC), na qual se pretende fazer um
diagnóstico participativo e um plano de trabalho a partir dos
resultados obtidos nos EESs de catadoras/es. A estrutura do Roteiro
foi formada a partir da captação, pela Incubadora, de aspectos
relevantes para a construção e desenvolvimento dos
empreendimentos, a partir do seu envolvimento com a rotina das/os
catadoras/es, de discussões com lideranças da ARCOP e do Comitê
Regional. Alguns desses tópicos levantam a formação/capacitação
das/os associadas/os e/ou cooperadas/os e o relacionamento entre
216
elas/es como demandas essenciais (CARVALHO; LADEIA;
BASOLI, 2017). Destaca-se a importância de pautar a temática de
gênero de forma mais diretiva neste tipo de tecnologia social, que
poderia englobar mais fatores do trabalho das/os catadoras/es, para
uma modificação das relações sociais.
Por meio das avaliações e resultados do diagnóstico, as/os
trabalhadoras/es e a equipe puderam compartilhar questionamentos,
em uma oficina ampliada, e até mesmo alterar algumas práticas;
entretanto, apesar de reconhecerem o valor das trocas e da avaliação
do trabalho, ressaltam o quanto precisam se esforçar para debater e
para fazer uma análise do cotidiano: não é uma prática que estão
habituadas/os. O RISAAC também está em forma de cartilha e
disponível para as/os catadoras/es, com uma linguagem mais
acessível e com figuras e imagens, o que a deixa mais interessante.
217
Cartilha do RISAAC
A aplicação do RISAAC na COOCASSIS demonstra uma
dificuldade de socialização do conhecimento com o grupo, já que
nem sempre todas/os podem participar de práticas formativas, tanto
com a Incop como no movimento social. No entanto, a criação de
um espaço para discutir acontecimentos do cotidiano e a realização
de mais rodas de conversa é uma demanda da Cooperativa, apesar
de não serem consideradas tão emergentes quanto outras questões.
Na análise da cartilha, alguns pontos chamaram a atenção,
como por exemplo no eixo temático da Formação e Capacitação:
“membros do grupo participaram de alguma atividade de formação
ou capacitação, nos últimos 12 meses?”. Dentre as temáticas, as que
se destacam são: d) Gênero; e) Liderança; e h) Formação política.
No eixo de Relacionamento entre membros do grupo, destaca-se o
218
questionamento: “existe disposição para mudanças?” (CARVALHO
et al., 2016, p. 26).
Keicy dos Reis (2022) define a relação entre a Incop Unesp
Assis e a COOCASSIS como de muitos altos e baixos mas sempre
de parceria. Analisa que essa relação também se deve aos contextos
de altos e baixos tanto do empreendimento quanto da universidade,
que estão submetidos a uma conjuntura socioeconômica e política.
Compreende que a importância dada às práticas formativas,
principalmente as que abrangem temáticas diversas e não só
burocráticas do trabalho, foi se perdendo ao longo dos anos, na
medida em que a Cooperativa ia crescendo e ganhando
infraestrutura. Keicy dos Reis (2022) observa que as/os catadoras/es,
ainda que realizem a inserção de trabalhadoras/es novas/os de forma
colaborativa, possuem dificuldades no que tange ao
compartilhamento de saberes aprendidos tanto pelo processo da
autoeducação quanto pelas práticas formativas, que atualmente,
ficam centralizadas nos cargos representativos. Desse modo, afirma:
eu acho que também tem uma questão do medo, porque
informação é poder. Então, não compartilhar te deixa nessa
posição de poder também, você tem a reprodução aí das outras
relações que são estabelecidas não só dentro do
empreendimento como fora também. Não tem mais formações
com o grupão, tem formações com pessoas que ocupam espaços
específicos, que já são espaços de poder. E essas pessoas acabam
ganhando mais poder, porque tão ali, têm acesso a todas as
informações, coisa que quem tá no empreendimento, no
coletivo, às vezes não tem.
Pode-se dizer que, com a pandemia, houve uma quebra na
relação das práticas formativas da Incubadora com o
empreendimento. Essas práticas foram alicerçadas a um cenário
219
emergencial, no qual o medo rondava as/os catadoras/es: tanto do
vírus quanto da possível diminuição da quantidade dos materiais
recicláveis e da consequente remuneração pelo trabalho. O caráter
perverso do capitalismo transparece nessa equação: as/os
catadoras/es, unidas/os, necessitam do consumo das embalagens
recicláveis para dar continuidade ao seu trabalho e para garantir a
sobrevivência. Nesse sentido, ainda que a luta se volte na direção
contrária ao capitalismo, é dessa cadeia que essas/es trabalhadoras/es
dependem.
Com a pandemia, os valores disseminados pelo
neoliberalismo exerceram uma pressão ainda mais intensa nas
catadoras/es da COOCASSIS. As/os trabalhadoras/es relatam que o
individualismo foi intensificado e que a necessidade de dar
continuidade ao trabalho, mesmo em meio aos riscos de
contaminação, fez com que as/os catadoras/es olhassem apenas para
o próprio grupo, preocupadas/os com o futuro do empreendimento;
a categoria foi afetada de tal forma que não pôde parar de trabalhar
e cumprir as orientações de distanciamento social, porque não
puderam se assegurar e garantir a sobrevivência sem dar andamento
ao trabalho. Até mesmo o contato das/os catadoras/es com as/os
moradores/as foi afetado, uma vez que elas/es o evitavam, devido ao
vírus.
Percebemos a partir da Tabela 1 e 2 as diferenças entre as
práticas formativas realizadas pela Incubadora no empreendimento
nos anos anteriores e nos anos da pandemia. No ano de 2018, a
equipe de incubação responsável pela COOCASSIS, com o auxílio
da coordenadora e do coordenador da Incop, mapearam alguns
temas que surgiam nas rodas de conversa a serem trabalhados.
Dentre eles, os temas de gênero, relações de poder, relações sociais
na rotina de trabalho, Regimento Interno, catadoras/es
220
autônomas/os, cenário político e ameaças aos direitos das/os
trabalhadoras/es e histórico da Cooperativa (como era/como é)
emergiram. Ainda que nos anos anteriores a prática de roda de
conversa havia parado (principalmente nos anos posteriores ao
Golpe), pode-se dizer que a Incubadora e as/os trabalhadoras/es
começaram, no ano de 2018, a tentar retornar a mobilização e a
discussão acerca de outras pautas, que já não estavam sendo
trabalhadas há um tempo.
Nos anos de 2020-2021, essas práticas foram diminuídas. O
cenário emergencial da pandemia afetou demasiadamente as/os
trabalhadoras/es da catação e a universidade. Com as orientações da
OMS, as práticas formativas foram feitas por meio virtual, o que
acabou impedindo ainda mais que todo o grupo participasse.
Anteriormente, as práticas já eram mais voltadas aos representantes
dos Conselhos e algumas pessoas do grupo, devido à quantidade de
trabalho a ser realizada pela Cooperativa e também a uma falta de
interesse em participar de algumas/alguns cooperadas/os. As equipes
responsáveis pela incubação do empreendimento nesse período
(2020-2021) ressaltam uma baixa adesão das/os trabalhadoras/es às
práticas formativas acerca de temáticas como os princípios e valores
da Economia Solidária.
No ano de 2022, a Incubadora sofreu diversas consequências
no que tange ao corte de docentes efetivos na universidade e a uma
baixa adesão de discentes para dar andamento ao projeto. A Incop
Unesp Assis segue realizando um mapeamento acerca da quantidade,
das condições e do perfil socioprofissional das/os catadoras/es nos
empreendimentos do Oeste Paulista, por meio da Rede Realssam,
uma rede temática de extensão em Resíduos Sólidos, Soberania
Alimentar e Sustentabilidade Socioambiental da Unesp. Ademais, a
coordenadora e o coordenador do projeto continuam realizando
221
visitas e reuniões pontuais na COOCASSIS, como por exemplo a
reunião de apresentação do novo Regimento Interno da
Cooperativa.
Nos anos de trabalho, pode-se perceber que, apesar dos
limites e contradições, a autoeducação e as práticas formativas
promovidas pela Incubadora com a COOCASSIS possibilitaram
algumas modificações na forma como as/os catadoras/es se
relacionam, sob a perspectiva de gênero. Podemos observar que o
processo de transformação das relações sociais das/os catadoras/es
não ocorre apenas devido a uma capacidade das/os catadoras/es de
vivenciar o trabalho pautado pela Economia Solidária, mas também
de uma articulação com entidades externas, com a Incubadora e com
o movimento social.
A modificação das relações de gênero a partir da autoeducação e
das práticas formativas na COOCASSIS
As catadoras/es da COOCASSIS, ao buscar colocar a
autogestão em prática, constituem um espaço que favorece a
realização de debates, de trocas e de discussão, o que gera
aprendizados críticos sobre a realidade. Assim, as relações de gênero,
para além de poderem ser percebidas pelas catadoras/es, podem ser
analisadas de forma crítica, por meio da autoeducação e das práticas
formativas realizadas pela Incubadora.
É perceptível que, apesar da diferenciação e hierarquização
das funções do trabalho ditas femininas e masculinas não serem
eliminadas na Cooperativa estudada e da temática de gênero não ser
explorada diretamente de forma contínua, as/os cooperadas/os
demonstram uma compreensão acerca das relações de gênero ali
existentes e apresentam novas características, diferenciadas das que
222
observamos nos papéis de gênero tradicionais. As relações de gênero
sempre foram vividas pelas/os trabalhadoras/es, mas é apenas
recentemente que passam a ser consideradas como um fator
relevante a ser olhado e debatido, tanto pelas/os catadoras/es da
COOCASSIS e do MNCR como pelas/os integrantes da
Incubadora. A partir da pesquisa foi possível olhar para essa temática
e refletir sobre as relações de gênero que ali se estabelecem e que se
modificam, dentro e fora do empreendimento.
Como dito anteriormente, o capitalismo se materializa na
expropriação e na desigualdade, que já existiam mesmo antes do seu
surgimento. A divisão sexual do trabalho, e, principalmente, a
atribuição do trabalho reprodutivo às mulheres, são ferramentas para
manter as trabalhadoras em uma posição de submissão e de
vulnerabilidade; o capitalismo engendra um mecanismo de
naturalização da condição de subordinação das mulheres uma vez
que divide o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo e coloca o
segundo embaixo do primeiro. Para Nancy Fraser e Rahel Jaeggi
(2020, p. 46),
o trabalhador assalariado não poderia existir nem ser explorado
na ausência do trabalho doméstico, da criação das crianças, da
formação escolar, do cuidado afetivo e de um conjunto de
outras atividades que produzem novas gerações de
trabalhadores, repõem as gerações existentes e mantêm vínculos
sociais e compreensões compartilhadas.
É possível observar que a divisão sexual do trabalho na
COOCASSIS se dá a partir dessa concepção: as mulheres, em sua
maioria, trabalham em postos relacionados ao cuidado, à formação
das/os trabalhadoras/es e ao trabalho doméstico, como por exemplo
a limpeza, a coordenação do empreendimento e a separação dos
223
materiais recicláveis. Os homens realizam trabalhos mais associados
à tecnologia: a condução de equipamentos e o carregamento de
fardos.
No entanto, algo de novo aparece na Cooperativa: mulheres
se unem em prol de ocuparem lugares que anteriormente eram
apenas destinados aos homens, inclusive aos homens que não fazem
parte da Cooperativa. Keicy dos Reis (2022) revela que houve um
período no qual as/os catadoras/es da COOCASSIS contratavam
motoristas de caminhão homens porque raramente as/os
cooperadas/os possuíam a carta necessária para dirigi-lo. As/os
trabalhadoras/es que estavam em cargos de representação no
Conselho de Administração do período, por meio de reuniões e
assembleias, decidiram investir para que algumas mulheres e alguns
homens deste órgão social adquirissem a carta, para que elas/es
também pudessem exercer e tomar posse dessa função do trabalho,
o que demonstra resultados de um processo de fortalecimento e de
desalienação: as/os catadoras/es precisaram olhar para essa realidade
com criticidade e se sentirem capazes para assumirem esse tipo de
conduta, que está em uma direção contrária a da submissão e da
passividade.
Podemos olhar para o crescimento do número de mulheres
no empreendimento e, inclusive, assumindo funções antes
destinadas apenas aos homens, como uma possibilidade de
desconstrução do lugar da mulher catadora, como se ela não pudesse
escolher trabalho e tivesse que assumir postos específicos do
trabalho, relacionados ao cuidado e à delicadeza. Entretanto,
podemos refletir que a feminização da COOCASSIS pode também
significar uma continuidade da precarização dos trabalhos de
mulheres, já que as mulheres catadoras não estão lá por opção: em
sua maioria, estão lá por inúmeros motivos que não englobam o
224
interesse genuíno pelo trabalho da catação. É um espaço que, por
meio da autoeducação e das práticas formativas, as/os
trabalhadoras/es podem desenvolver habilidades e modificar suas
relações sociais e com o trabalho, mas, é também espaço último,
precarizado, por mais que possa ser ressignificado.
Para Ana Maria de Carvalho (2022), a COOCASSIS é um
local onde as mulheres se reconhecem enquanto trabalhadoras
potentes, fortes, que podem e que possuem capacidade de fazer todo
o trabalho, inclusive para liderar e para administrar o
empreendimento. A possibilidade de participação política no
trabalho para as mulheres catadoras da COOCASSIS significa uma
modificação das relações de gênero, uma vez que elas podem
experienciar uma posição de poder nunca vivenciada anteriormente
em outros postos de trabalho e nas outras relações sociais que
estabelecem com outras pessoas, fora do ambiente de trabalho.
Questionamos, contudo, até que ponto, dentro da COOCASSIS, os
cargos de representação passam a ser ocupados pelas mulheres
porque são funções do trabalho que os homens descartam e não
consideram, muitas vezes, como importantes. Ou seja, indagamos se
elas estão inseridas nessas funções porque ninguém as faz e porque
os homens as rejeitam: as mulheres catadoras estariam nas “sobras
do trabalho dos homens”, nas posições que os catadores descartam.
Nos estudos dos empreendimentos de reciclagem no Brasil,
dificilmente encontramos pesquisas nas quais apontam que as
mulheres catadoras dirigem os caminhões, função dita masculina, e,
privilegiada, uma vez que não é qualquer pessoa que possui a carteira
de motorista compatível com esse tipo de veículo. Existe, na
COOCASSIS, uma quebra com o papel tradicionalmente atribuído
às mulheres catadoras, principalmente quando olhamos sob a
perspectiva de um discurso muito propagado socialmente de que as
225
mulheres são péssimas condutoras de automóveis, que andam
devagar e que não possuem o conhecimento necessário para o
controle das máquinas e da tecnologia. Para Bruna Vasconcellos
(2017, p. 211), os lugares ditos masculinos, que são assumidos pelas
mulheres nos empreendimentos de reciclagem, “geram
deslocamentos e abrem brechas dentro de estruturas muito bem
estabelecidas”, o que coloca algumas compreensões hegemônicas em
processo de modificação e tensiona, de alguma forma e em algum
grau, as estruturas de dominação e de exploração.
O reconhecimento da identidade da mulher enquanto
catadora pode produzir, para Laura Basoli e Felizardo Costa (2017,
p. 122) o efeito da “afirmação de um sujeito, uma cidadã de direitos
e uma trabalhadora”. Como visto anteriormente, muitas catadoras
consideram que o trabalho da catação é complementar às funções
que exercem dentro de suas casas e nas casas de outras pessoas, como
domésticas. A luta pela identidade da catadora é fundamental para a
promoção de um sentimento de pertencimento da sua classe,
principalmente porque elas são protagonistas nos empreendimentos.
É a partir dos aprendizados e das trocas feitas no cotidiano do
trabalho e fora dele que a mobilização das/os catadoras/es acontece:
(re)constroem suas identidades e que se reconhecem, o que quebra
o estigma de serem invisíveis socialmente.
Por meio de vivências, histórias, relações sociais e da luta que
as/os catadoras/es criam novos elementos de identidade da catadora
e do catador. O movimento social e as redes produzem força política,
o que também favorece a composição de uma identidade coletiva,
ao mesmo tempo que singular. A desconstrução e a modificação das
relações de gênero são necessárias para que as mulheres catadoras
estejam lutando pela sua representação na esfera pública, até mesmo
226
no MNCR, para que elas se sintam aptas a exercer os mais altos
níveis de poder.
As mulheres catadoras, portanto, não apenas buscam realizar
seu trabalho porque ele significa uma melhor forma de conciliar o
trabalho profissional e doméstico, e reconstroem a identificação que
sentem com a catação de materiais recicláveis. Por trás da conciliação
entre o trabalho produtivo e reprodutivo, está toda a exploração que
o sistema patriarcal e capitalista promove, e quando a luta das
mulheres não é antipatriarcal, antirracista e anticapitalista, “suas
reivindicações não apenas invisibilizam a maioria das mulheres, mas
também são incorporadas as custas dessa maioria, ampliando a
exploração sobre elas” (MORENO, 2020, p. 193-194).
A dificuldade de inserção da temática de gênero na formação
das/os catadoras/es da COOCASSIS pode ser explicada pela
emergência de outras questões do trabalho, que aparecem como mais
importantes para serem solucionadas e pela problemática que este
tema representa frente a uma necessidade de manutenção das
relações de gênero patriarcais e desiguais, não só na COOCASSIS,
mas no capitalismo, ainda mais no panorama de governo de
Bolsonaro no qual enfrentamos diversos desmontes e retrocessos,
principalmente no que tange aos direitos das/os trabalhadoras/es.
Há, ainda, uma negação da importância da temática de
gênero: ainda que presente no coletivo, nos movimentos e na relação
que a COOCASSIS estabelece com a Incubadora, a naturalização de
discursos e de formas de vida muito antigas, que focalizam o
comportamento individual e não o sentido político das relações
sociais coletivas, produzem um apagamento do tema, como se não
houvesse uma necessidade de nos aprofundarmos nessa pauta, como
se ela já tivesse sido resolvida. No entanto, as relações desiguais de
gênero contribuem com a exploração da catadora e do catador,
227
porque elas são mais uma ferramenta utilizada pelo sistema
capitalista exatamente para esta finalidade. Pelo contrário, parece
que a invisibilização do tema dificulta a vida da catadora e do
catador, que poderiam se organizar de forma mais solidária e
igualitária se pudessem observar o modo como enxergam e dividem
as funções do trabalho e como se relacionam entre si.
Pode-se pensar que toda transformação social tem seu ponto
de partida, e que para ocorrerem mudanças nas estruturas sociais que
perpetuam as desigualdades de gênero, o movimento deve ser ainda
maior, e englobar mais atrizes e atores sociais. Pautar o tema gênero
está para além da realização de eventos de mulheres: essa formação
deve ser continuada e conduzida por ações que compreendam não
só mulheres, mas também homens, já que as relações de gênero não
podem ser modificadas apenas pelas mulheres. No entanto, elaborar
e implementar programas de formação de gênero significa realizar
quebras nos empreendimentos, transformações nas/os
trabalhadoras/es e na universidade, modificações nas organizações de
ambas as instituições, e até mesmo um enfrentamento, necessário
mas assustador, ao governo e ao sistema vigente. Para Keicy dos Reis
(2022), falta formação na COOCASSIS
de modo geral, não só em relação a essa pauta, mas em relação
a muitas pautas. Acho que todas as vezes que a gente traz, que
a gente fala sobre, é um pouquinho, né. E é um pouquinho que
pode ser que não seja significativo pra um mas que pode ser
significativo para outras pessoas. Pode ser importante, pode
fazer a diferença pra outras pessoas.
Pode-se observar que uma parte dos trabalhadores da frente
da coleta de lixo possuem a visão de que as/os catadoras/es que
trabalham na frente dos materiais recicláveis não trabalham tanto
228
quanto eles, que o trabalho é muito parado e que elas/es deveriam
ganhar menos por conta disso. Visualizam este cenário como algo
injusto, o que demonstra uma desvalorização de algumas funções do
trabalho da catação, principalmente as funções desempenhadas pelas
mulheres, uma vez que, na frente dos materiais recicláveis, há uma
expressiva participação de mulheres. Entretanto, tanto os trabalhos
realizados dentro como fora do empreendimento, de forma geral,
são igualmente remunerados, o que pode caracterizar que a maioria
das/os cooperadas/os não concorda com essa visão, que permeia o
mundo do trabalho capitalista, no qual as funções femininas ou
funções nas quais as mulheres estão desempenhando são menos
valorizadas e, portanto, são remuneradas de forma desigual.
As mulheres catadoras, no entanto, expressam que seus
trabalhos também são pesados, repetitivos e cansativos e que os
homens não se interessam pelas funções que elas realizam porque
eles “não aguentariam”. Izaque Ribeiro, Henrique Nardi e Paula
Machado (2012, p. 250), ao analisarem as articulações entre o
trabalho precário e as relações de gênero em Porto Alegre, relatam a
fala de uma catadora, que quando questionada sobre os motivos de
existirem tantas mulheres nos trabalhos da triagem e na catação dos
materiais, afirma não saber a resposta ao certo, mas que “não tem
homem que aguente trabalhar aqui. É um serviço muito pesado!”.
Lidiane (2022), catadora da COOCASSIS, manifesta uma visão
parecida quando diz que “as mulheres trabalham bem mais! Os
homens não trabalham nada, eles gostam é de falar!”. Laura (2022)
revela que
Os homens querem receber mas não querem trabalhar pesado.
Na Cooperativa, é bem rotativo, mas é mais rotativo para os
homens: quando cai o primeiro salário, eles já vão embora atrás
de outra coisa, porque o salário não é igual todo mês, vai
229
depender da coleta. Os homens ficam mais lá em cima…não
ficam na esteira, lá é trabalho pesado, cansativo. Tem alguns
que dirigem o caminhão e exigem salário de motorista. Mas é
que aqui a gente é cooperado, não é motorista. Se alguém me
perguntar qual é a minha ocupação, eu vou falar que sou
catadora, não motorista. Chegando na Cooperativa eu ainda
vou trabalhar na esteira, na prensa, fico onde precisa.
Esses relatos das/os catadoras/es explicitam a figura de uma
mulher esforçada e de um homem preguiçoso, que elas/es observam
dentro da Cooperativa. Cinthia (2022) revela que quando os
homens procuram pelo trabalho na COOCASSIS e identificam que
o quadro de trabalhadoras/es é maior de mulheres do que de
homens, parece que “eles fazem mais corpo mole”. Alexandre (2022)
reflete que a única diferença que observa entre homens e mulheres
na Cooperativa é que “as mulheres trabalham mais que os homens”;
considera que, apesar de dividirem as funções do trabalho de acordo
com a perspectiva de gênero, as mulheres também possuem
capacidade e habilidade para exercer a função que é dita masculina,
por exemplo. Pondera, no entanto, que a presença significativa de
mulheres na Cooperativa se deve à existência do trabalho na esteira,
que não é realizado pelos homens.
Para as/os catadoras/es da COOCASSIS, o trabalho na
esteira já foi um trabalho destinado aos homens quando o lixo
orgânico era também triado junto aos materiais, e portanto, o peso
dos sacos era maior. Mas hoje, que apenas o material reciclável é
triado na esteira, eles não se interessam mais por esta função. Para
Elis (2022), as funções dentro do trabalho em uma cooperativa
devem girar e, portanto, todas/os devem ter o conhecimento de todo
o processo de trabalho e funcionamento do empreendimento. Tal
pensamento denota um posicionamento crítico à divisão social e
230
sexual do trabalho existentes na COOCASSIS, que remete ao
trabalho assalariado capitalista, no qual a trabalhadora e o
trabalhador executam apenas uma função do trabalho, sem
necessariamente ter o conhecimento de todas as funções
fundamentais para o exercício do trabalho. Nesse sentido, a catadora
relata que, na COOCASSIS, as/os trabalhadoras/es deveriam
“aprender a ser um pouco homem e um pouco mulher”. Questiona
o fato dos homens não subirem em uma esteira e fazer o trabalho
que é dito como sendo da mulher.
A consciência que as mulheres catadoras da COOCASSIS
possuem da importância do seu trabalho e o questionamento que
fazem sobre os lugares ocupados por elas e pelos catadores,
demonstra um olhar crítico sobre essas relações e uma apropriação
do próprio trabalho, que podem afetar nas decisões do coletivo.
Pode-se dizer que o movimento que as/os catadoras/es fazem, com a
participação da Incubadora, cria uma força de pensamento, na
medida que, não só observam sua realidade, como questionam, se
colocam como contrárias/os às desigualdades ali presentes, mostram
inquietações, que são extremamente importantes para a construção
de aprendizados. A criticidade, para além da relação construída com
a universidade, pode advir da autoeducação que acontece no
trabalho pautado por princípios da autogestão, democracia, e gestão
democrática, na qual as/os trabalhadoras/es observam, a partir da
realidade, que é na sua organização que podem transformar a
percepção tanto delas/es enquanto sujeitos como de quem as/os
percebe socialmente.
Ainda que as práticas formativas realizadas pela Incubadora
não pautaram o tema gênero de forma direta, pode-se afirmar que,
apesar de insuficiente para uma formação de trabalhadoras/es que
tenha a transformação das relações de gênero como objetivo,
231
algumas estruturas são modificadas dentro do empreendimento. A
capacitação de lideranças mulheres, o planejamento e avaliação de
trabalho, as rodas de conversa, oficinas e etc, implicam mudanças de
atitude das mulheres para com os homens e dos homens para com
as mulheres: as/os catadoras/es passam a tratar umas/uns as/aos
outras/os com mais respeito e começam a pensar na coletividade de
forma mais solidária. Para Alexandre (2022), as/os catadoras/es da
COOCASSIS trabalham “de igual pra igual, um tem que ajudar o
outro [...] se todo mundo trabalhar de igual pra igual, ninguém vai
sofrer”. Essa lógica verbalizada pelo catador é contrária à lógica do
capital, na qual a desigualdade é uma ferramenta utilizada para sua
reprodução e para a manutenção de uma ordem de gênero. O
catador, se colocando na posição de colaborador e cooperado,
também se coloca em uma posição de igual para igual, quando
reconhece e admira o trabalho das mulheres catadoras, e observam-
nas como igualmente habilidosas e capazes.
As catadoras emergem como mulheres que questionam suas
posições e as posições dos homens no movimento social, na
COOCASSIS e na família; ao questionar a diferenciação e a
hierarquização dessas posições, as mulheres catadoras procuram lutar
por condições igualitárias de vida e de trabalho, a começar pelas
diferenças existentes entre as/os catadoras/es na divisão das funções
do trabalho. Alterar as funções não leva a um estabelecimento de
igualdade nas relações de gênero, mas sim, pode auxiliar as/os
catadoras/es a valorizar todas as funções do trabalho, principalmente
quando estas são imprescindíveis para todo o processo, como a
triagem dos resíduos sólidos.
Assim, as catadoras da COOCASSIS compartilham
sentimentos de confiança, autoestima e de independência; ao lutar
por outro lugar dentro e fora da Cooperativa, afirmam que “o lugar
232
de uma mulher é onde ela quiser”. Sentem orgulho pelo trabalho
que desempenham, lideram o empreendimento, a família e o
movimento regional, lutam por uma inserção no MNCR,
organizam e cuidam do coletivo com respeito e afetividade. Essas
mudanças nos papéis tradicionais das mulheres no trabalho são
essenciais e são modelos tanto para outras mulheres catadoras como
para outras trabalhadoras e trabalhadores. Porém, algumas dessas
mudanças, como por exemplo como é realizada a divisão sexual do
trabalho, como ela foi modificada com o tempo e a presença
significativa de mulheres na Cooperativa, indicam aspectos
negativos e contradições a serem problematizadas e enfrentadas, não
só pelas/os catadoras/es, mas pelas/os integrantes da Incubadora.
233
Conclusão
Buscamos, por meio do estabelecimento das categorias
centrais: Trabalho Associado, a Economia Solidária, as relações de
gênero e a formação, sob os termos de autoeducação e práticas
formativas, da pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e
pesquisa empírica, alcançar o objetivo principal de analisar se o
processo de autoeducação e as práticas formativas modificam as
relações de gênero da COOCASSIS e os objetivos específicos de
analisar as relações de gênero na COOCASSIS; analisar o processo
de autoeducação das/os catadoras/es e analisar as práticas formativas
propiciadas pela Incop Unesp Assis no empreendimento. Buscou
responder ao problema de pesquisa: o processo de autoeducação e as
práticas formativas realizadas pela Incop Unesp Assis modificam as
relações de gênero estabelecidas na COOCASSIS? Se sim, como?
É possível analisar que as/os catadoras/es da COOCASSIS
aprendem o trabalho umas/uns com as/os outras/os, de modo que,
atualmente, as/os próprias/os catadoras/es realizam todas as funções
do trabalho dentro da Cooperativa, desde a coleta dos materiais
recicláveis até a comercialização. Ainda que possuam dificuldades no
que tange ao compartilhamento de saberes, principalmente aos
conhecimentos técnicos e referentes ao funcionamento cooperativo,
que, em sua maioria, são melhor construídos com a participação da
Incop Unesp Assis e com as/os trabalhadoras/es que estão em cargos
de representação, as/os catadoras/es se desenvolvem e desenvolvem
234
as/os colegas de trabalho, em prol da coletividade e do bom
andamento do local de trabalho.
Percebemos que a divisão sexual do trabalho é evidenciada a
partir de concepções já vistas e já analisadas em pesquisas anteriores
nos grupos e empreendimentos de catadoras/es (GRECCO, 2016,
MARTINS, 2016, PAIVA, 2016, SOPKO, 2019, WIRTH, 2010):
as mulheres, em geral, realizam funções relacionadas ao cuidado e à
delicadeza, à formação das/os trabalhadoras/es e ao trabalho
doméstico, como por exemplo, a limpeza, a cozinha e a coordenação
do empreendimento, a catação e a separação dos materiais
recicláveis. Os homens, por sua vez, desempenham funções que
demandam um maior emprego de força física e conhecimentos
tecnológicos específicos, como a condução dos equipamentos
(caminhão, empilhadeira, prensa, talisca, etc) e o carregamento de
bags e fardos.
As mulheres catadoras são maioria na COOCASSIS e são
descritas como figuras mais atentas, esforçadas e cuidadosas. Já os
homens são caracterizados, tanto pelas entrevistadas como pelos
entrevistados, como mais preguiçosos e manhosos, que desejam
receber, mas que não querem “colocar a mão na massa”. As
cooperadas, portanto, revelam estar mais dispostas e aptas para
ocupar todas as funções do trabalho, inclusive aquelas que são
consideradas como masculinas no empreendimento. É perceptível
que os homens, dentro da COOCASSIS, conseguem “escolher
trabalho”, e, assim, não se dispõem e não estão aptos para realizar
todas as funções.
A realidade descrita demonstra uma desigualdade de papéis
de gênero e um acúmulo de funções do trabalho destinadas às
mulheres catadoras. Ademais, observamos que por meio de uma
reprodução de atribuições e de papéis sociais com base no gênero, as
235
mulheres se sentem mais responsabilizadas pelo local e pelas/os
colegas de trabalho, e, em contrapartida, os homens se vêem mais
concentrados em realizar sua tarefa específica, e obrigados a carregar
os fardos mais pesados, o que reforça um papel materno das
mulheres com relação às/aos colegas de trabalho e ao local e uma
naturalização de justificativas traçadas pela combinação entre o
patriarcado e o capitalismo, de que as mulheres nasceram para o
cuidado, e que os homens nasceram para carregar o peso e para
prover calados.
Analisamos a existência de algumas falas das/os catadoras/es
que reproduzem uma ideia de que as mulheres possuem “mais
facilidade” com determinadas funções, devido a uma certa
naturalização de um talento das mulheres voltado para o cuidado ou
para tarefas que exigem maior delicadeza. Por outro lado, para
elas/es, os homens, por possuírem uma estrutura física
biologicamente mais desenvolvida, estão naturalmente mais aptos
para o carregamento de fardos mais pesados. As/os trabalhadoras/es
e as/os integrantes da Incubadora revelam que os homens
demonstram ser menos cuidadosos com os equipamentos, se
envolvem em um maior número de acidentes e permanecem por
menos tempo na Cooperativa do que as mulheres. As/os
entrevistadas/os também relatam que a tipificação das funções se
alteram ao longo do tempo, mas que ela sempre existiu e que afeta o
cotidiano do empreendimento.
Por meio da autoeducação e das práticas formativas, as/os
catadoras/es conseguem refletir sobre as relações sociais pautadas
pelo gênero. A relação que estabelecem com a Incubadora e com
outras/os catadoras/es de outras organizações potencializam o
processo de autoeducação das/os catadoras/es da COOCASSIS. A
partir de rodas de conversa sobre outros temas, como por exemplo
236
sobre a Economia Solidária, cooperativismo das/os trabalhadoras/es,
autogestão, etc, de reuniões e oficinas em eventos promovidos pelo
movimento social, a equipe da Incubadora e as/os catadoras/es da
Cooperativa conseguiram construir aprendizados sobre as problemá-
ticas referentes ao lugar da mulher tanto no empreendimento quanto
no MNCR, bem como sobre as dificuldades que os catadores
possuem de experienciar o funcionamento cooperativo.
As catadoras da Cooperativa, por terem participado, por
exemplo, de alguns eventos acerca da temática e, inclusive, de cargos
de representação dentro da Secretaria das Mulheres do MNCR,
descrevem um sentimento de pertencimento e de alívio ao se darem
conta de que não estão sozinhas. A troca de experiências com outras
catadoras as auxilia a entrarem em contato com o tema a partir do
cotidiano, de vivências que trazem sentido para elas. Uma das
catadoras revela que, por meio de uma prática formativa feita pela
Secretaria das Mulheres na Cooperativa, as/os catadoras/es puderam
“abrir a mente sobre o acúmulo de trabalho nas mulheres”, dentro e
fora do empreendimento.
As/os catadoras/es da COOCASSIS tomam consciência das
relações de gênero estabelecidas no local e podem modificá-las por
meio da autoeducação que acontece no ambiente de trabalho, de
práticas formativas realizadas pela Incubadora e por meio do
movimento social; repensam as posições que ocupam dentro e fora
do empreendimento. Percebemos modificações nas relações de
gênero quando observamos que as catadoras conseguem se colocar e
se posicionar frente às questões do trabalho, classificam seus
trabalhos na esteira como igualmente pesado, repetitivo e cansativo,
se unem em prol de se formar e de formar o seu grupo politicamente,
afirmam possuir tanta capacidade quanto habilidade para realizar o
mesmo trabalho que um homem faz na Cooperativa uma vez que
237
também dirigem caminhões, carregam fardos pesados e lideram o
local.
Ao se apropriarem do seu trabalho e se depararem com
relações de gênero desiguais, as/os catadoras/es da COOCASSIS
modificam decisões a serem tomadas pelo coletivo e pela categoria
como um todo, no movimento social. Ainda que o tema de gênero
foi recentemente pautado pelo MNCR e que não seja trabalhado de
forma direta e contínua pela Incubadora na COOCASSIS, algumas
estruturas podem ser mudadas dentro e fora da Cooperativa, já que
as mulheres se reconhecem como trabalhadoras fortes e aptas, e os
homens passam a ser questionados e começam a pensar sobre as
relações de gênero. A capacitação de lideranças mulheres, o
planejamento e a avaliação do trabalho, as rodas de conversa, as
oficinas, os debates e a troca de ideias implicam uma construção
contínua de aprendizados na medida que, a partir de um processo
autoeducativo, as/os trabalhadoras/es observam sua realidade, se
questionam, questionam as/os colegas de trabalho, demonstram
inquietações e se colocam como contrárias/os às desigualdades ali
presentes.
Assim, o processo de autoeducação e as práticas formativas
realizadas pela Incubadora na Cooperativa implicam modificações
de atitudes das mulheres para com os homens e dos homens para
com as mulheres: podemos observar que as/os catadoras/es tratam
umas/uns às/aos outras/os com respeito e buscam exercer a
solidariedade, ao assumir a responsabilidade pelo coletivo. No
entanto, encontramos diversos limites e contradições existentes nas
possibilidades de formação sob a perspectiva de gênero na
COOCASSIS, uma vez que há uma insuficiência de práticas
formativas contínuas tanto desenvolvidas pela Incubadora quanto
pelas/os catadoras/es. As/os trabalhadoras/es do empreendimento
238
relatam que possuem questões consideradas mais emergentes no
empreendimento, como por exemplo a formação dos Conselhos
para coordenar a Cooperativa e dar andamento ao trabalho
administrativo. A priorização de questões a serem solucionadas e
trabalhadas nos empreendimentos de trabalho coletivo de
catadoras/es necessita ser realizada devido a um cenário já precário
da categoria desde o seu surgimento e expansão e, principalmente, a
uma atualidade marcada pelos ataques neoliberais às classes
trabalhadoras: no Brasil, as/os catadoras/es estão vivenciando os
desmontes do governo Bolsonaro direcionados às classes populares,
à universidade pública, às mulheres, e às demais minorias sociais.
Podemos indicar que, ainda que presente no coletivo da
COOCASSIS, as relações desiguais de gênero estão naturalizadas e
são encaradas pelas/os catadoras/es como individuais, e não como
políticas, como mais uma ferramenta de exploração, não só da
catadora, mas também do catador. O debate e o engajamento das/os
catadoras/es acerca da temática na COOCASSIS não nos
direcionam para uma modificação significativa dessas relações,
principalmente porque, na medida que o neoliberalismo e o
conservadorismo chega ao seu ápice com o desgoverno estabelecido
a partir do Golpe da gestão da Dilma em 2016, avançando para uma
circunstância ainda pior na gestão do presidente Bolsonaro, hoje
observamos um baixo oferecimento de condições materiais para a
criação de uma formação connua sobre o tema.
Consideramos que há uma necessidade de continuarmos
investigando sobre o tema gênero, tanto na COOCASSIS quanto
em outras organizações de catadoras/es; para uma próxima pesquisa,
seria fundamental a análise de raça, devido a uma presença bastante
significativa de mulheres negras, na categoria e no local. A
solidariedade, cooperação e igualdade que se propõe a Economia
239
Solidária, a autogestão e a gestão democrática do Trabalho
Associado, não questionam algumas raízes do sistema capitalista,
especialmente os laços que estabelece com o patriarcado e com a
questão racial. Dessa forma, uma parte fundamental da exploração
capitalista para com as/os catadoras/es se torna invisível: quem
elas/es (não) são e o que as/os caracteriza enquanto seres (não)
humanos na sociedade.
Podemos vislumbrar novas perspectivas para a categoria com
a eleição do presidente Lula em 2023. Presenciamos um momento
simbólico de muita alegria quando uma catadora, mulher e negra,
representante da Comissão Nacional do MNCR, passa a faixa para
o presidente na cerimônia de posse (MNCR, 2023). Em fevereiro
de 2023, o Governo recria o programa Pró-catador e modifica o
decreto da reciclagem, ao instituir novas ferramentas no modelo
atual de logística reversa e de economia circular (BRASIL, 2023).
Concluímos que, com algumas modificações possibilitadas
pela autoeducação e pelas práticas formativas promovidas pela Incop
Unesp Assis na COOCASSIS, as catadoras continuam sendo
direcionadas a funções específicas do trabalho, e, portanto, a um
oferecimento de cuidado e assunção de uma posição de
responsabilidade para com as outras pessoas, principalmente com
relação às/aos filhas/os e aos colegas de trabalho. Com a pesquisa,
notamos que abordar o gênero na formação das/os catadoras/es
possui mais importância do que usualmente pensamos, e, analisando
as organizações de catadoras/es e de autogestão, podemos visualizar
as desigualdades de gênero ali presentes, para modificá-las e, assim,
avançar para o estabelecimento de relações mais igualitárias nos
empreendimentos.
240
241
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266
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Kamilla Gonçalves
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Resultado de uma rigorosa pesquisa, Autoeducação, práticas formativas e
relações de gênero numa Cooperativa de Catadoras/es de Materiais Reci-
cláveis, de Bruna Oliveira Martins, debruça-se sobre a análise de um setor
da classe trabalhadora precarizado, em especial, colocando em perspectiva
a formação educacional e as relações de gênero. A submissão das mulheres
é prática observada desde os tempos mais remotos, em praticamente todas
as sociedades, que cumpre uma função socioeconômica. Ao mesmo tempo
também se observa a resistência e a luta das mulheres contra a subordina-
ção e pela igualdade. No caso da Cooperativa, por meio de atividades de
autoeducação e de práticas formativas, as/os trabalhadoras/es conseguiram
reetir sobre as relações de gênero. As mulheres catadoras passaram a se re-
conhecer como trabalhadoras iguais aos homens e a questionar o acúmulo
de funções destinadas a elas, tanto dentro quanto fora do empreendimento.
Convido as pessoas interessadas no debate sobre a temática à leitura desta
obra, pois se trata de um estudo signicativo e relevante, especialmente no
atual cenário político brasileiro.
A temática sobre o trabalho de catadoras/es
de materiais recicláveis no Brasil tem privi-
legiado aspectos ambientais, econômicos e
sociais, ou mesmo a articulação entre eles.
Trata-se de pessoas excluídas do mercado
formal de trabalho que encontram na cata-
ção, ainda que de forma bastante precária, o
próprio sustento e de seus familiares. Em ge-
ral, trabalhadoras/es com baixa escolaridade
e vivência de trabalhos anteriores também
precários, sendo a grande maioria forma-
da por mulheres negras. A organização de
catadoras/es em associações e cooperativas
de trabalho, na perspectiva da Economia
Solidária, tem possibilitado alguns avanços
para esse segmento da classe trabalhadora,
seja pelo protagonismo de catadoras/es, pelo
acesso a políticas públicas e/ou pela contra-
tação de seus serviços de coleta seletiva pelas
Prefeituras. Com o propósito de contribuir
para a organização coletiva de catadoras/
es, diversas entidades de apoio e fomento
vêm prestando assessorias a associações e
cooperativas, entre as quais destacam-se as
universidades, por meio de suas Incubado-
ras de Cooperativas Populares. Esse livro é
resultante de primorosa pesquisa acadêmica
realizada em uma cooperativa de catadoras/
es, com o objetivo de analisar a autoforma-
ção e as práticas formativas desenvolvidas
pela equipe da Incubadora, na modicação
das relações de gênero. A autora, uma jovem
pesquisadora, aponta, a partir de sua pers-
pectiva crítica e capacidade de olhar o micro
e o macro concomitantemente, os limites e
desaos para a ocorrência de modicações
mais efetivas nas relações de gênero na co-
operativa (e na sociedade). Neste sentido, a
obra contribui para que as questões de gê-
nero, raça e classe, sejam tratadas a partir da
interseccionalidade, na luta pela construção
de uma sociedade mais justa e igualitária.
Bruna Oliveira Martins é graduada em
Psicologia pela Universidade Estadu-
al Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(Unesp), Campus de Assis. Mestra em
Educação pela Faculdade de Filosoa e
Ciências da UNESP, campus de Marí-
lia, com a pesquisa “A autoeducação e o
papel formativo da Incubadora de Co-
operativas Populares da Unesp Assis na
modicação das relações de gênero da
Cooperativa de Catadores de Materiais
Recicláveis de Assis e Região”. Atual-
mente cursa doutorado no Programa de
Pós-Graduação em Educação da Facul-
dade de Filosoa e Ciências - UNESP/
Marília, com o projeto intitulado “For-
mação das mulheres negras para o tra-
balho autogestionário no Movimento
Nacional de Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR)” e Especialização
em Psicoterapias de Orientação Psica-
nalítica na Faculdade de Medicina de
Marília - FAMEMA. Atua como psicó-
loga clínica na cidade de Assis/SP. Foi
bolsista de mestrado pelo CNPq. Par-
ticipa do Grupo de Pesquisa “Organi-
zações e Democracia” (Unesp/Marília).
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0039/2022
Processo Nº 23038.001838/2022-11
Autoeducação, práticas formativas e relações de gênero numa Cooperativa de Catadoras/es
de Materiais Recicláveis
NEUSA MARIA DAL RI | UNESP Marília
Bruna Oliveira Martins
ANA MARIA RODRIGUES DE CARVALHO
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