Os textos aqui compartilhados querem se unir às lutas, às ações e às reexões
dos professores que, diuturnamente, têm se dedicado ao processo de formação
de crianças, jovens e adultos, mas que nem sempre encontram guarida e apoio
teóricos e práticos à labuta cotidiana. Esperamos que ao lerem todos ou alguns
dos capítulos desta coletânea, fortaleçamos o diálogo entre a pesquisa e o ensino,
entre a Universidade e a escola para o nosso bem estar mental, físico, intelectual
e moral bem como nos reanimem e nos dê o suporte necessário para novas des-
cobertas, encontros, construções e desconstruções em nossos modos de ser, de
estar, de agir, de pensar, enm, de viver a educação.
O tema da ética é sempre atual
e tem proporcionado bons debates no
campo da educação, sobretudo pelas
situações vivenciadas por professores e
professoras na sala de aula. Os desaos
que emergem daí estão longe de serem
resolvidos apenas com os instrumentos
conceituais e práticos que têm circula-
do e sido trabalhados desde a formação
nos cursos de licenciatura. A perspecti-
va epistemológica é insuciente em dar
respostas aos problemas e às necessida-
des que a prática docente tem enfrenta-
do no ambiente escolar. A mera trans-
missão de conhecimentos e o privilégio
dado à dimensão cognitiva atende até
certo ponto as expectativas e as nali-
dades que os projetos educacionais, os
planos de ensino e de aula têm se pro-
posto realizar.
Em meio a todas às demandas,
gritos de socorro e lamentações por
parte dos/das docentes na sala de aula,
o conjunto de textos aqui publicado vi-
sam, cada um a seu modo, lançar luz
e colaborar nas reexões e atitudes que
são experienciadas especialmente em
um momento bastante singular que é
a aula. Sugiro a cada leitor e leitora que
procure estabelecer um diálogo profí-
cuo e profundo com a sua própria vida
e prática formativa, tendo em vista que
cada um e cada uma nós tivemos ou
temos, de alguma maneira, vivências e
convivências desaadoras, problemá-
ticas, imprevistas e surpreendentes no
interior ou partir da escola.
Esta coletânea de textos, oriun-
dos da disciplina Ética e Educação,
oferecida junto ao Programa de Pós-
-graduação em Educação, da Unesp/
Marília, completada por contribuições
de colegas convidados e convidadas, se
funda na hipótese de que a natureza da
formação ética é diferente da natureza
da formação cognitiva, como também
da formação afetiva e que é necessário
ampliar e expandir a nossa compreen-
são acerca do que seja o ato educativo.
Essa expansão quer ser pensada a partir
de um outro olhar sobre nossa formação
histórico-cultural, marcadamente colo-
nial, o que exige de cada um nós, novos
e atuais professores e professoras, uma
postura e um compromisso decolonial,
de modo a tornar-se transformadora a
educação que praticamos em nossas es-
colas e em nossas universidades, como
já propunha Paulo Freire.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0039/2022
Processo Nº 23038.001838/2022-11
Educação, Ética e Decolonialidade
Educação, Ética
e Decolonialidade
Alonso Bezerra de Carvalho
(organizador)
contribuições para a formação
de professores e a prática docente
Alonso B. Carvalho (org.)
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Educação, Ética e Decolonialidade:
contribuições para a formação de professores e a prática docente
Alonso Bezerra de Carvalho
(organizador)
Alonso Bezerra de Carvalho
(organizador)
Educação, Ética e Decolonialidade:
contribuições para a formação de professores e a prática docente
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2024
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Edvaldo Soares
Franciele Marques Redigolo
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Henrique Tahan Novaes
Aila Narene Dahwache Criado Rocha
Alonso Bezerra de Carvalho
Ana Clara Bortoleto Nery
Claudia da Mota Daros Parente
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto
Daniela Nogueira de Moraes Garcia
Pedro Angelo Pagni
Auxílio No 0039/2022, Processo No 23038.001838/2022-11, Programa PROEX/CAPES
Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq (Processo 100540/2024-4 / Pós-
Doutorado Sênior)
Parecerista: Doriele Silva De Andrade Costa Duvernoy - UPE
Capa: Imagem de David Zydd por Pixabay (gratuita)
Ficha catalográfica
E24 Educação, ética e decolonialidade: contribuições para a formação de professores e
a prática docente / Alonso Bezerra de Carvalho (org.). Marília : Oficina
Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2024.
370 p. : il.
CAPES
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-464-6 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-465-3 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3
1. Colonização América Latina. 2. Educação - Filosofia. 3. Prática de ensino.
4. Professores - Formação. I. Carvalho, Alonso Bezerra de. II. Título.
CDD 370.71
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Copyright © 2024, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
SUMÁRIO
Apresentação | Alonso Bezerra de Carvalho......................................9
Capítulo 1 - Pensar outra ética na educação: apontamentos à luz da
filosofia da diferença......................................................................19
Álefe de Souza Almeida
Capítulo 2 - Reflexões para decolonizar a prática docente: as paixões
humanas na sala de aula .................................................................39
Alonso Bezerra de Carvalho
Capítulo 3 - A relevância histórica da inter-relação entre ética e
educação no processo pedagógico...................................................59
Clayton Ribeiro da Trindade
Capítulo 4 -Ética, educação e formação de professores/as................83
Cristina Miranda Duenha Garcia Carrasco
Capítulo 5 - Devir-escola: por saberes que não se reduzam ao
uno.............................................................................................103
Camila Rodrigues Batista Neta
Jessyca Eiras Jatobá Santos
Jaqueline Ferreira Rodrigues
Capítulo 6 - A violência no ambiente escolar: bullying e seus
desdobramentos..........................................................................125
Gelci Saffiotte Zafani
Fabiola Colombani
Thaís Yazawa
Capítulo 7 - Aprendendo com os povos indígenas a decolonizar o
imaginário: educação intercultural e decolonial na formação de
professores/as..............................................................................149
Genivaldo de Souza Santos
Reinaldo Matias Fleuri
Capítulo 8 - A ética da alteridade e do diálogo são possíveis na Base
Nacional Comum Curricular?.....................................................167
Iranilde Ferreira Miguel
Capítulo 9 - Um olhar afetivo para a educação: a imanência dos afetos
em Espinosa……………………………………………………189
Mariane da Costa Santos
Capítulo 10 - Educomunicação, ética e fake news: o papel da escola
no combate a notícias falsas..........................................................207
Naiana Leme Camoleze Silva
Capítulo 11 - A educação emocional, cognitiva e moral pode
contribuir para a melhoria do ensino-aprendizagem?....................229
Regina Helena da Silva Leite
Capítulo 12 - Ywypóry rekó e'y rupi em sala de aula........................255
Sueli do Nascimento
Capítulo 13 - A Ética em Espinosa e a Educação: uma
introdução..................................................................................277
Viviane Mayumi Resende Uenaka
Capítulo 14 - As relações movidas pela ética e alteridade na educação:
escola e formação do indivíduo…………………………...…….297
Zelina Cardoso Grund
Capítulo 15 - A prática docente em Paulo Freire e as implicações de
uma postura afetiva no processo educativo...................................327
Ricardo Francelino
Rafael Santos de Aquino
Capítulo 16 - O caráter intercultural da educação: fundamentos de
uma filosofia inclusiva em tempo de (des) colonização..................351
Manuel João Mungulume
9
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3.p9-18
Apresentão
O tema da ética é sempre atual e tem proporcionado bons
debates no campo da educação, sobretudo pelas situações vivenciadas
por professores e professoras na sala de aula. Os desafios que emergem
daí estão longe de serem resolvidos apenas com os instrumentos
conceituais e práticos que têm circulado e sido trabalhados desde a
formação nos cursos de licenciatura. A perspectiva epistemológica é
insuficiente em dar respostas aos problemas e às necessidades que a
prática docente tem enfrentado no ambiente escolar. A mera
transmissão de conhecimentos e o privilégio dado à dimensão
cognitiva atende até certo ponto as expectativas e as finalidades que
os projetos educacionais, os planos de ensino e de aula têm se
proposto realizar.
Neste sentido, esta coletânea de textos, oriundos da disciplina
Ética e Educação, oferecida junto ao Programa de Pós-graduação em
Educação, da Unesp/Marília, completada por contribuições de
colegas convidados e convidadas, e com o apoio do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq
(Processo 100540/2024-4 / Pós-Doutorado Sênior), se funda na
hipótese de que a natureza da formação ética é diferente da natureza
da formação cognitiva, como também da formação afetiva e que é
necessário ampliar e expandir a nossa compreensão acerca do que seja
o ato educativo. Essa expansão quer ser pensada a partir de um outro
olhar sobre nossa formação histórico-cultural, marcadamente
colonial, o que exige de cada um nós, novos e atuais professores e
10
professoras, uma postura e um compromisso decolonial, de modo a
tornar-se transformadora a educação que praticamos em nossas
escolas e em nossas universidades, como já propunha Paulo Freire.
Em meio a todas às demandas, gritos de socorro e lamentações
por parte dos/das docentes na sala de aula, o conjunto de textos aqui
publicado visam, cada um a seu modo, lançar luz e colaborar nas
reflexões e atitudes que são experienciadas especialmente em um
momento bastante singular que é a aula. Sugiro a cada leitor e leitora
que procure estabelecer um diálogo profícuo e profundo com a sua
própria vida e prática formativa, tendo em vista que cada um e cada
uma nós tivemos ou temos, de alguma maneira, vivências e
convivências desafiadoras, problemáticas, imprevistas e surpreen-
dentes no interior ou partir da escola.
O primeiro capítulo, intitulado Pensar outra ética na educação:
apontamentos sobre ética à luz da filosofia da diferença, de Álefe de
Souza Almeida, tem como objetivo perspectivar conceitos da filosofia
da diferença para o problema da ética na educação, por meio de uma
pesquisa de revisão narrativa sobre perspectivas educacionais que
foram privilegiadas nas escolas brasileiras durante o século XX. A
partir de pensadores contemporâneos da filosofia, o texto tem o
intuito de ressoar seus conceitos na educação, entendendo-os como
guias de leitura do cotidiano e do pensamento possível e vigente nas
escolas, convidando-nos a uma reflexão acerca dos conceitos de afeto,
encontro e movimentos aberrantes.
No segundo capítulo de Alonso Bezerra de Carvalho, Reflexões
para decolonizar a prática docente: as paixões humanas na sala de aula,
objetivo é considerar as paixões como uma dimensão humana que
pode favorecer e indicar boas possibilidades para interpelarmos e
problematizarmos a dimensão racional que, muitas vezes, cumpre um
11
papel colonizador e (pre)dominante no processo pedagógico e na
prática docente. A partir de um problema educacional bastante
concreto, que é o desafio de exercer a docência em uma sala de aula,
as reflexões apresentadas são resultado de uma cuidadosa revisão
bibliográfica, em que se realiza um diálogo entre questões e desafios
que emergem no ambiente escolar e ideias e categorias que compõem
o universo conceitual-filosófico. Como conclusão, considera que
ensinar e aprender pode ir além da razão, o que supõe o risco passional
de sairmos do que está cristalizado por um processo de colonização
do saber, do ser, do existir, do viver e ... do educar e da prática
docente.
No capítulo A relevância histórica da inter-relação entre ética e
educação no processo pedagógico, Clayton Ribeiro da Trindade faz uma
reflexão sobre ética e educação, na qual considera a primeira como
uma disciplina da filosofia responsável pela área do conhecimento que
estuda o comportamento do ser humano, podendo servir e contribuir
com a sua formação, uma vez que o ser humano, desde a mais tenra
idade, é orientado por princípios morais e éticos, visando promover a
sua autonomia para a vida social.
Cristina Miranda Duenha Garcia Carrasco, no capítulo Ética,
educação e formação de professores/as relata de maneira introdutória a
relação que existe entre a ética e a educação, visto que ambas fazem
parte da realidade humana e estão inseridas no contexto diário da
sociedade. O estudo foi realizado por meio de referencial teórico, com
base nos estudos de diversos autores da área, como base de estudo por
meio de livros, revistas, periódicos, sites, biblioteca digital, entre
outros. Como conclusão, observa-se a relação que existe entre a
disciplina de ética, o estudo da educação e a formação de professores
12
em que uma está interligada a outra e ambas estão em prol de uma
vida qualitativa ao ser humano.
O quinto capítulo, de Camila Rodrigues Batista Neta, Jessyca
Eiras Jatobá Santos e Jaqueline Ferreira Rodrigues, denominado
Devir-escola: por saberes que não se reduzam ao uno, buscou, por meio
da geofilosofia, reconhecer territórios do que está posto para a filosofia
e realizar as devidas aproximações com o campo da educação,
ambicionando novas relações pedagógicas, afastando-se de uma
antropologia como analítica da finitude, como uma imagem dogmática
do pensamento, em direção a um pensamento sem imagem. Em vista do
estudo dos modos de problematização e da subjetivação e da noção de
genealogia de Michel Foucault e de cartografia de Gilles Deleuze e
Félix Guattari a ideia é tornar possível mapear alguns processos que
constituem o sujeito sem que, para isso, precisássemos subjugá-lo ao
universal.
Em A violência no ambiente escolar: bullying e seus
desdobramentos, Gelci Saffiotte Zafani, Fabiola Colombani e Thaís
Yazawa traz uma breve caracterização da violência no universo escolar
dando ênfase ao tema do bullying. Por meio de um levantamento
bibliográfico de pesquisas atuais da área, buscou-se compreender suas
características, o perfil dos envolvidos, as possíveis causas, as
consequências e o cyberbullying - fenômeno recorrente nas últimas
décadas que preocupa a comunidade escolar por seu crescimento e
impacto social. A violência é um fator de risco mutável que se
transforma ao longo da história e sofre influência cultural, o que
aumenta sua complexidade pela própria dificuldade em mapear as
motivações e construir um plano de combate eficaz e duradouro, uma
vez que demanda da compreensão atualizada do cenário e do
território em que essas ações acontecem.
13
O capítulo intitulado Aprendendo com os povos indígenas a
decolonizar o imaginário: educação intercultural e decolonial na
formação de professores/as, de Genivaldo de Souza Santos e Reinaldo
Matias Fleuri se propõe refletir acerca de uma pergunta realizada no
campo da didática e da formação de professores e que pode ser
formulada da seguinte maneira: o que podemos aprender com os
povos indígenas em como decolonizar o imaginário? Trata-se de uma
questão que traz consigo tanto uma carga ético-política, por, de
antemão, reconhecer uma alteridade constitutiva da nossa subjetivi-
dade, e fazendo isso, inverte a relação colonizadora tradicionalmente
estabelecida, que assume a forma da relação dialética entre ser não
ser, na qual o colonizado é destituído de toda potência do ensino, na
medida em que o valor epistemológico dos seus saberes foi/continua
sendo estrategicamente esvaziados e classificados como meras crenças
e superstições.
No capítulo de Iranilde Ferreira Miguel, A ética da alteridade
e do diálogo são possíveis na Base Nacional Comum Curricular?, discute-
se os limites de uma educação como prática de liberdade na
perspectiva do pensamento freireano e da alteridade do pensamento
levinasiano, tendo em vista que as políticas públicas educacionais
reformistas dos últimos 30 anos, entre elas a BNCC, m caminhado
no sentido de transformar a educação em uma mercadoria e a escola
em uma empresa. Recorrendo à pesquisa bibliográfica qualitativa e
tomando as análises marxistas como referência, o texto pretende
indicar as implicações das relações econômicas e sociais no campo
educacional. Sem se prender a este caminho, busca-se dialogar com
outros saberes, o que faz se aproximar do pensamento lévinasiano e
freireano, procurando detectar a presença da alteridade, ética e
dialogicidade na BNCC.
14
No capítulo nove, de Mariana da Costa Santos, intitulado Um
olhar afetivo para educação: A imanência dos afetos em Espinosa, o
objetivo é promover uma reflexão sobre uma educação que possa e
estimule os afetos dentro dos processos educacionais. Parte-se da ideia
de que a escola hoje tem função de reproduzir conhecimento de forma
quantitativa, uma vez que as exigências para o mercado de trabalho
são pessoas cada vez mais capacitadas para essa área, sem um olhar
para formação como seres humanos, dotados de subjetividades,
singularidades e de afetividade. Quando isso não ocorre, passamos a
ser "máquinas" de adquirir e de transmitir conhecimentos. Para trazer
um outro olhar para as relações escolares, nos fundamentamos na
teoria dos afetos, que é a relação como os corpos afetam e são afetados
por outros corpos, a unidade entre corpo-mente, o pensamento do
filósofo Baruch de Espinosa é convocado. Assim, como conclusão e
sugestão, considera que no ambiente escolar é possível estabelecer
encontros potentes, que podem promover um ensino ativo e
autônomo, através do reconhecimento e “reconhecimento” dos afetos
como parte da construção educacional e humana, uma vez que eles
fazem parte da nossa natureza.
Naiana Leme Camoleze Silva, no capítulo Educomunicação,
ética e fake news: o papel da escola no combate a notícias falsas
tem como
propósito debater a Educomunicação pela perspectiva da Ética,
promovendo diálogos sobre a importância dos aspectos filosóficos
aplicados à educom, visando contribuir com a capacitação do
professor-educomunicador, discussão está preocupada com a
promoção de práticas educomunicativas inclusivas e com
responsabilidade ética no combate a notícias falsas, ou "fake news".
O capítulo A educação emocional, cognitiva e moral pode
contribuir para a melhoria do ensino-aprendizagem?, de Regina Helena
15
da Silva Leite apresenta como a educação emocional, aliada ao
desenvolvimento moral e cognitivo, pode contribuir para a melhoria
do ensino-aprendizagem e promover mudanças no ambiente social e
psíquico dos alunos e professores por meio de práticas psicopeda-
gógicas, melhorando a inteligência emocional dos envolvidos, assim
como maior participação e concentração dos alunos. Trata-se de um
texto construído por meio de uma pesquisa bibliográfica,
desenvolvida a partir da observação do cenário educacional e da obra
específica sobre educação emocional de Juan Casassus, apoiadas
principalmente pelos referenciais teóricos de Piaget, Kohlberg,
Goleman e outros autores. Os resultados obtidos demonstram cenário
favorável, porém também desafios a serem vencidos e problema-
tizados para que se avance na melhoria do ensino-aprendizagem.
Ywypóry rekó e'y rupi: em sala de aula, de Sueli do Nascimento,
é um capítulo que tem como proposta refletir acerca de nosso
compromisso com os povos originários e com a nossa Pacha Mama,
a Mãe Terra, que requer (re)existir em nossas práticas em sala de aula.
Parte de pesquisa em desenvolvimento, o texto promove diálogos e
reflexões que possam concorrer para proposições por um bem-viver
em nossas práticas pedagógicas, num contexto regido por normas e
estratégias individuais, ou coletivas, apresentadas, muitas vezes, numa
visão sob uma diversidade reduzida às diferenças apreendidas na ótica
da cognição (bom ou mau aluno, entre outros atributos classifica-
tórios de parte de quem ainda se considera colonizador). Na direção
de uma escutatória-dialogal a temática nos convida a partilhar nosso
saber para fortalecer o compromisso entre os povos, a Pacha Mama e
a sala de aula.
No capítulo treze, intitulado A Ética em Espinosa e a Educação:
uma introdução, Viviane Mayumi Resende Uenaka visa compreender,
16
à luz do pensamento espinosano, em que medida esta filosofia,
sobretudo a ética imanentista, dialoga com a filosofia da educação.
Busca-se apontar possíveis heranças pedagógicas deixadas por
Espinosa no campo da educação e, a partir dessas contribuições, faz-
se possível pensar em uma educação mais potente, ou seja, mais ativa
e livre.
No capítulo de Zelina Cardoso Grund, denominado As
relações movidas pela ética e alteridade na educação: escola e formação
do indivíduo, tem como objetivo discorrer sobre os valores morais
necessários na conduta ética das pessoas, as quais devem fazer parte
do conhecimento e cultura escolar, o que requer a implementação de
políticas públicas educacionais voltadas para este fim. Como contri-
buição, neste texto propõe-se fazer um levantamento das produções
acadêmicas publicadas no Portal Brasileiro de Publicações e Dados
Científicos em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
sobre os valores éticos
na educação no período de 2012 a 2021. A metodologia utilizada na
investigação foi a pesquisa bibliográfica “online” e documental.
No capítulo A prática docente em Paulo Freire e as implicações
de uma postura afetiva no processo educativo, de Ricardo Francelino e
de Rafael Santos de Aquino, visa trazer para o debate a contribuição
do Patrono da Educação no Brasil que apontou para o conhecimento
como processo de construção coletiva e que os sentimentos e emoções
são partes constituintes que impulsionam os seres humanos a um
determinado estado de ação, ou muitas vezes de não-ação. Segundo o
texto, Freire buscava por meio de suas práticas despertar em seus
alunos a esperança e a autonomia na perspectiva da transformação da
realidade e a conquista da igualdade social tão almejada, valorizando
o contexto sócio-histórico de cada comunidade periférica, esquecida
e a cultura presente nas vivências cotidianas.
17
Por fim, Manuel João Mungulume,no seu capítulo intitulado
O caráter intercultural da educação: fundamentos de uma filosofia
inclusiva em tempo de (des) colonização, desenvolve a ideia de que a
educação intercultural não deve ser vista como simples lema do nosso
tempo, mais do que isso, deve ser uma categoria que fundamenta os
espaços educativos, permeando a formação humana nas práticas
pedagógicas, pois, vivemos numa época propicia para que a educação
intercultural perpasse em todos os espaços educativos. Defende a
proposta de que o diálogo intercultural é uma necessidade e desafio
da escola, da faculdade e da sociedade em geral, de modo a ultrapassar
as filosofias dominantes e imperialistas, que se colocam como
superiores e protagonistas da ação civilizatória.
Os textos aqui compartilhados querem se unir às lutas, às
ações e às reflexões dos professores que, diuturnamente, têm se
dedicado ao processo de formação de crianças, jovens e adultos, mas
que nem sempre encontram guarida e apoio teóricos e práticos à
labuta cotidiana. Esperamos que ao lerem todos ou alguns dos
capítulos desta coletânea, fortaleçamos o diálogo entre a pesquisa e o
ensino, entre a Universidade e a escola para o nosso bem estar mental,
físico, intelectual e moral bem como nos reanimem e nos dê o suporte
necessário para novas descobertas, encontros, construções e
desconstruções em nossos modos de ser, estar, agir, pensar, enfim,
viver a educação.
Prof. Dr. Alonso Bezerra de Carvalho
Unesp/Marília.
18
19
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3.p19-38
Capítulo 1
Pensar outra ética na educação: apontamentos à
luz da filosofia da diferença.
Álefe de Souza Almeida
1
Introdução
A ética na educação é um tema com diversos trabalhos em
desenvolvimento na atualidade. Baseados em diferentes referenciais
teóricos, abordam não só a formação do educador, mas também a
necessidade de pensar a formação ética de todos os agentes presentes
na escola e o próprio ambiente escolar como questão. Com a
modernidade e o liberalismo caracterizando a educação, tanto a
prática pedagógica quanto a ética tornaram-se mais complexas e,
pouco a pouco, mais a serviço da concentração de capital e dos
dispositivos de formação técnica. O objetivo principal deste artigo é
discutir de maneira modesta alguns elementos conceituais sobre a
potência de uma perspectiva ética à educação, através da filosofia da
diferença e seus precursores, compreendendo este referencial teórico-
1
Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em
Educação, da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita filho, campus Marília. E-mail:
alefe.souza@unesp.br
20
metodológico como uma caixa de ferramenta
2
em que podemos achar
instrumentos para deslindar problemas que atravessam o pensamento
do cotidiano escolar e a prática educacional vigente. Iniciaremos o
texto revisando narrativamente aspectos da educação brasileira no
século XX, entendendo que esse percurso histórico construiu a prática
pedagógica atual, assim como, o modo como a escola lida com a
formação ética.
No início do século XX, a educação brasileira tinha enquanto
seu fundamento a pedagogia tradicional. Nome que designa diversas
tendências aplicadas na educação, principalmente, nas primeiras
décadas do século em questão. Esse método seguia algumas
características como: (1) o professor deter a responsabilidade por
conduzir e padronizar todo o processo educativo de aprendizado. (2)
processo regido por aulas expositivas e pela repetição de leituras e
cópias de matérias, com o intuito de criar uma memorização dos
conceitos trabalhados. Não menos importante, como se encarava a
formação dos indivíduos: (3) pela rigidez do ensino e de
comportamento. Com isso, o intuito era a criação de uma
uniformização de método, da prática pedagógica e da formação dos
indivíduos, sem espaço para inovações.
Contrário a este movimento surge, nas décadas seguintes do
século, a concepção da escola nova
3
. Foi um período em que houve
diversas experiências de práticas pedagógicas consideradas novas.
Essencialmente, tais práticas empregavam como importância maior o
interesse dos alunos no aprendizado, superando, de algum modo, a
2
Este conceito é cunhado pelo filósofo contemporâneo e um dos precursores da Filosofia da
Diferença, Michel Foucault.
3
Com o desenvolvimento feito para a modernização e a democratização do Brasil, a escola
se renova a caminho do esclarecimento das classes mais populares.
21
antiga pedagogia tradicional. Nesta “nova escola” o professor teria o
papel de desenvolver os alunos a solucionarem problemas de forma
experimental, tornando-os, assim, capazes de fazerem uma
autoavaliação do seu aprendizado ao final de cada ciclo. De acordo
com Marques e Targa (2013), essa nova metodologia de abordagem
foi amplamente difundida nos cursos de licenciatura do Brasil e tinha
como um de seus fundamentos a democratização do ensino. No
entanto, o papel da escola foi criticado por educadores e especialistas
ao identificarem-na mais como uma “adaptação ao meio social
estabelecido do que como um processo real de democratização
(2013, p. 150). De modo a reforçar, assim, “a distinção de classes
mantida pelo capitalismo” (idem). Portanto, de acordo com os
autores, a escola passou a desenvolver uma dupla função: primeiro,
manter os interesses dominantes do capitalismo e, segundo,
desenvolver uma forma de ensino que se adequasse a estes interesses.
Historicamente, essa concepção prevaleceu na educação
brasileira até a primeira metade do século XX. Entretanto, com
críticas direcionadas ao seu método, foi então, na década de 60 que
uma nova influência de concepção pedagógica conquista o seu espaço:
a concepção tecnicista. O seu método tinha como princípio atrelar a
ciência à pedagogia, com o objetivo de “replanejar a educação escolar
em todos os seus níveis, dotando-a de uma organização mais ágil,
mecanizada e capaz de minimizar as interferências subjetivas que
pudessem pôr em risco sua eficiência” (Marques; Targa, 2013, p.
151). É importante destacar que esta concepção era a política oficial
do governo ditatorial para as escolas públicas. Sendo assim e, de
acordo com o contexto histórico, a política escolar esteve voltada a
função de consolidar um sistema profissionalizante a fim de responder
22
às demandas de trabalho do capital, que estavam sendo instaladas no
brasil a partir dos anos 60 e 70.
Seguindo um padrão behaviorista, com fundamentos em
conceitos skinnerianos de comportamento, institui-se a função de
esquemas mecânicos baseados em mudanças de comportamento e
novas formas de aprendizados voltados à aplicação profissionalizante.
Assim como a concepção tradicional, e da escola nova, a tecnicista passa
a garantir uma total mercantilização da educação através de seus
instrumentos de controle, de comportamento e formação, em vista de
suprir as demandas do capitalismo industrial brasileiro. Sendo uma
concepção, uma vez mais, liberal e a serviço de uma alienação do ato
de aprender bem como das subjetividades, agora modeladas para o
capital.
Por uma perspectiva outra e de conflito aos movimentos
apontados acima, podemos citar a pedagogia como prática de
liberdade, desenvolvida por Paulo Freire (1921 1997). Em sua
concepção de educação bancária, tais movimentos educacionais do
século xx seguiam um padrão operacional na educação como
instrumento de manter a sociedade opressora. Desse modo,
compreendendo o educador como um ator principal dessa
teatralização das operações financeiras do mercado, na escola. Freire
argumenta, então, que o protagonista (o professor) dessa peça
desempenharia o papel de depositador de conteúdos nos alunos e,
desse modo, “quanto mais vá enchendo os recipientes com seus
depósitos, tanto melhor o educador será. Quanto mais se deixam
docilmente encher, tanto melhores educandos serão” (Freire, 1987,
p. 58). Com o intuito de desenvolver uma pedagogia crítica e de
desenvolvimento político, sua pedagogia asseverou as questões de
justiça social e de democracia nas escolas, relacionando-as ao ensino-
23
aprendizagem, assim como, repensando as relações e experiências de
formação ética nas escolas.
De acordo com os professores akkari
4
e mesquida
5
, autores do
artigo a pedagogia crítica e emancipatória/libertadora de inspiração
freireana, de 2020, numerosos são os conceitos que fundam essa
pedagogia crítica, por exemplo: “opressão, conscientização, palavras
geradora, círculo de cultura, diálogo, práxis e emancipação” (2020, p.
4). Entretanto, não sendo o objetivo desse artigo privilegiar tal
perspectiva, não nos aprofundaremos.
A ética como problema na educação
A partir da redemocratização no Brasil, com a constituição de
1988, as diretrizes educacionais foram impulsionadas por essa
reabertura democrática, passaram a apontar um marco regulatório
importante para educação. Foi através destas que a questão ética na
educação passou a desenvolver um novo capítulo: a formação ética na
educação enquanto crítica da escola vigente.
De acordo com a literatura produzida sobre esse tema,
apreendemos que a educação brasileira, em seu longo trajeto
histórico, teve como função regularizar um padrão e docilizar alunos,
associando-se tanto com a ideia de obediência quanto de moralidade.
Ainda, é possível identificar, de acordo com Pagni (2018), cerca de
quatro perspectivas que discorrem sobre o tema. Para a primeira
perspectiva, inspirada em referenciais psicológicos e da epistemologia
genética, em suas variações, a educação escolar é responsável por uma
4
Pós-doutor em Educação pelas Universidades de Geneve e Friburg; Doutor em Ciências da
Educação pela Universidade de Genebra, Suíça.
5
Pós-doutor pela Universidade de Baltimore (Estados Unidos); Doutor em Ciências da
Educação pela Universidade de Genebra, Suíça.
24
espécie de moralização do indivíduo, de modo diverso daquele
concebido filosoficamente por kant, contudo, mantendo ainda o
entendimento que a ética seria apreendida como um juízo moral, bem
como, a sua formação se daria em conformidade com os juízos
determinantes e se apresentando como campo de estudo da moral. A
segunda perspectiva entende que a ética implicaria numa necessidade
de reflexão crítica dos indivíduos sobre si e sobre suas próprias ações,
evitando as forças destruidoras que os conduziriam à barrie,
assumindo um sentido negativo tal qual o postulado pela primeira
geração da teoria crítica, em oposição à moralidade empreendida pela
instituição escolar e assumindo a crítica aos mecanismos de
subjetivação impostos por juízos determinantes.
Não menos importante, como variação desse olhar da teoria
crítica, uma terceira perspectiva aglutinaria os estudos que tentavam
associar essa crítica compreendida como inflexão em direção ao
sujeito à relação com o outro, implicando o diálogo e a ação
comunicativa no âmbito pedagógico. A última perspectiva, por fim,
evidencia essa fissura como uma diferença ontológica importante e
imanente à ética na educação. Inspirada nos filósofos da diferença
entende que é, justamente, em tal fissura que o acontecimento e os
agenciamentos ocorrem. Invocando uma atitude ética dos atores da
escola, bem como, produzindo novos processos de subjetivação a
despeito da regulamentação e da univocidade moral ao qual são
guindados, como vimos. Embora essa perspectiva não negue a
educação moral, nos apresenta a dimensão inesperada da vida em
busca de um aprendizado ético próprio e a partir da experiência,
procurando articular o conceito de ética em toda a sua
transversalidade.
25
Essa última perspectiva indica um contraponto ao papel
moralizante da educação escolar que se assenta nessa concepção
filosófica de que a função principal seria ensinar os estudantes a
“aprender a obedecer”. Para situar o nosso entendimento,
compreende-se que, desde o século xviii, o aprendizado sustentado
nas escolas, entendida enquanto instituição social e instância da
moralidade, foi tal que, em primeiro lugar, promoveu uma tarefa a
docilização dos corpos e a disciplinarização, e, posteriormente, a
correção dos incorrigíveis. Não obstante, mais recentemente,
promove a integração a uma racionalidade econômica.
Desse modo, entendemos que a pedagogia soube conciliar,
nessa história de longa duração, alguns momentos de “docilidade
cega”, em que a educação estaria associada com a ideia de obediência
e de moralidade. Por outro lado, em toda essa história, a educação
presenciou do mesmo modo espaços e tempos em que tanto a
desobediência se insurgiu quanto atitude ética essencial para a crítica
se manifestou. Portanto, aproveitando esta manifestação de
insurreição e, através dela, que este artigo tem como objetivo
específico fundamentar reflexões acerca de uma superação da ética
atual na educação, baseando-se na filosofia da diferença e se
guardando de conceitos como instrumentos para contribuir acerca da
quarta perspectiva apresentada acima.
26
Reflexões sobre ética pela filosofia da diferença no espaço
e no tempo escolar
A fim de encontrar ou fazer fugir uma nova linha de fuga
6
ao
problema ético na educação através da filosofia da diferença,
empreenderemos que a questão do afeto e do encontro se faz presente
como conceitos de suma importância para perspectivar este
paradigma ético na educação. Com a ajuda do pensamento de Gilles
Deleuze (1925 1995), filósofo francês e representante expoente da
filosofia da diferença, a questão do afeto é apreendida de modo
espinosista
7
, ou seja, a potência de agir/ação de qualquer
individualidade é promovida em dois sentidos: de maneira positiva
com encontros alegres e, ao contrário, no sentido negativo com
encontros tristes. Isto é, assumindo uma variação de acordo com cada
encontro realizado. Silvio Gallo, em um ensaio de 2008, aponta a
educação enquanto um empreendimento coletivo e que,
necessariamente, ocorre a partir e através de encontros. Por esta razão,
a questão da alteridade, do outro, permeia a questão ética na escola,
por conseguinte, a educação. E a educação é em tempo e espaço um
encontro com o outro a todo o momento. Refletir, assim, sobre a ética
na educação com esses conceitos se torna indispensável.
6
No livro, O Vocabúlario de Deleuze, de 2004, o autor francês Zourabichvilli explicita que
este conceito orienta a filosofia prática de Gilles Deleuze. E tem como significado específico
“[...] uma certa distribuição dos possíveis, o recorte espaço-temporal da existência (papéis,
funções, atividades, desejos, gostos, tipos de alegrias e dores etc.)” (2004, p. 29).” Assim,
ainda segundo ele, “Não se tratando tanto de um ritual de repetição morna, de alternância
demasiado regulada, de exiguidade excessiva do campo das opções , mas da própria forma,
dicotômica, da possibilidade: ou isso ou aquilo, disjunções exclusivas de todas as ordens
(masculino-feminino, adulto-criança, humano-animal, intelectual- manual, trabalho-lazer,
branco-preto, heterossexual-homossexual etc.), que estriam previamente a percepção, a
afectividade, o pensamento, encerrando a experiência em formas totalmente prontas,
inclusive de recusa e de luta.” (Idem).
7
Para mais detalhes, ver a obra de Deleuze: Espinosa, Filosofia prática.
27
Na modernidade, Gallo (2008) entende que há dois
movimentos com os quais a alteridade é pensada. Primeiro, o outro
“como representação, que redunda que o outro nada mais é do que o
mesmo [...]” (2008, p. 2), e um segundo movimento, o outro
“tomado enquanto tal, por si mesmo o que significa pensar o outro
como diferença.” (idem). É esta segunda sentença que nos interessa e,
por isso, guiará a nossa leitura a partir deste ponto, assim como, o
problema apresentado pelo autor, no trecho a seguir:
O problema é que [...] No âmbito da filosofia moderna
hegemônica o outro é uma representação. Quando falo do outro,
não falo senão do eu, de como eu o represento. E resta que o
outro nada mais é do que uma ficção, um produto de meu
pensamento. Assim, o educador que planeja sua ação para os
outros não tem em mente ninguém mais do que ele mesmo. Ele
educa à sua semelhança, sendo o outro uma representação sua.
Ele define, de antemão, o outro como o mesmo. (Gallo, 2008,
p. 7).
Também podemos dizer que o problema aqui levantado sobre
os afetos, é um problema de ação. Isto é, que tipo de ações as
individualidades são capazes, a partir dos encontros que têm. Desse
modo, considerando a ética como uma reflexão teórica que possibilita
ações de criação do homem em relação ao mundo que vive, podemos
diagnosticar no mundo atual, sobretudo, na educação vigente, uma
crise ética.
Segundo Viesenteiner (2011), em sua leitura crítica à ética
contemporânea, fundamentada pela concepção niilista nietzschiana,
foi a partir do século XIX que passamos a viver nossa individualidade
28
de modo a banalizar e instrumentalizar a vida, igualando-a pela
valorização das mercadorias. Em suas palavras:
Pensemos no casalzinho de namorados olhando passivos e
indiferentes às vitrines de um shopping, ou ainda saindo
absolutamente impessoais com sacolas na mão, cujas mercadorias
são meramente subterfúgio às suas incapacidades de suportarem
a si próprios, além de gastar o resto do dia malhando na academia
para jogar fora as porções de hambúrgueres e refrigerantes que
consumiram em meio à artificialidade do shopping center.
(Viesenteiner, 2011, p. 118).
O homem nesta condição não só vive uma vida comprada e
artificial, como também banaliza a criação de si mesmo. Ou seja, na
contemporaneidade, os seres humanos estão de algum modo,
descolados da ação de criar novos modos de vida. Aceitando,
veladamente, tal crise ética, entretanto sem reconhecer que vivemos
desse modo. Portanto, estaríamos, de acordo com a leitura do autor,
num mal-estar social generalizado, nomeado como crise ética em sua
leitura niilista.
Voltamos ao problema da ação e, por conseguinte, dos afetos
e do encontro. E para nos auxiliar na investigação desse problema,
escolhemos como ferramenta/instrumento de leitura uma pergunta
feita pelo autor francês e amigo de Deleuze, David Lapoujade. No
capítulo 9, do seu livro: deleuze, os movimentos aberrantes, o francês
aponta um conflito, entendendo que, “não se pode mais colocar a
questão de saber qual ação política conduzir, pois ela supõe que já es
estabelecido o que ainda está em questão: ela supõe que somos capazes
de agir” (Lapoujade, 2017, p. 262). Mas, tanto sua leitura de Deleuze
assim como o que apresentamos até aqui, demonstra justamente a
29
incapacidade de nossas ações. Parece que estamos o tempo todo em
nossa mínima potência de agir, ou seja, agindo através apenas dos
encontros ruins, das tristezas. A imagem trazida pelo professor, Jorge
Viesenteiner apreende em sua forma teatralizada do real, quão vazios
em interpretação e criação de vida estamos.
Para Lapoujade, em seu empreendimento sobre o conflito
gerado a partir de sua pergunta, algo aconteceu que deixamos de agir
e, pior, nos tornamos incapazes de ação. Inicialmente, em seu estudo,
o autor não só compreende a questão pela lente do niilismo, mas
também através da mônada leibniziana. Para ele, é verdade que pensar
a questão da ação na atualidade sem partir de um niilismo passivo é,
praticamente, impossível, pois o niilismo sufoca qualquer tentativa
positiva de agir. No entanto, há outro problema ainda maior que,
segundo ele, envolve o agir enquanto sujeito. Isto é, não somos mais
capazes de agir como sujeitos unificados, e se agimos assim, estaremos
“sujeitos” aos aparelhos estatais, mergulhando-nos numa sujeição
maquínica: as tecnologias integralizam as populações humanas sob
forma de informações. Segundo o autor, “não estamos mais diante do
par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se dividuais, diviseis, e
as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou bancos
(Lapoujade, 2017, p. 265). As disjunções precipitadas pelas linhas de
fugas, em forma de sujeito, são capturadas e transformadas em bancos
de dados. Tal captura tem um caráter transformador, independente
de qual seja o resultado. Enfim, a subjetividade comum tornou-se
submissa ao modo maquínico e generalizado.
A mônada, ao modo deleuziano, seria nesta leitura de
lapoujade, justamente, a substituição do sujeito, ou melhor, os
sujeitos tornaram-se mônadas. Isto é, “uma unidade individual feita
para o mundo, mas porque o mundo foi posto nela como o que ela
30
exprime” (p. 266). Diz-se, assim, que tratar com a dicotomia
interior/exterior não tem mais sentido, visto que o exterior agora está
presente no interior a ponto de estar primeiro. Desse modo, segundo
Lapoujade, “só lidamos com imagens flutuantes, estes clichês
anônimos que circulam no mundo exterior, mas também que
penetram em cada um de nós e constituem seu mundo interior.”
(idem). Portanto, estamos presos em agenciamentos maquínicos que
ditam sobre os nossos sentimentos, pensamentos, afecções etc., e, para
piorar, são agenciamentos transformados em subjetivação interna. Ou
seja, nós falamos, vemos, sentimos e agimos apenas sobre o que se vê,
fala, age e sente. Este movimento duplo é de tal modo que, cada
função tem como movimento o controle sobre a outra: “o visível-
legível permite controlar enunciados conferindo-lhes uma moldura
preestabelecida, o enunciável controla o legível-visível recortando
neles formas predefinidas.” (Lapoujade, 2017, p. 267). Assim,
engendram-se as possibilidades externas como possibilidades internas.
Doravante, as dicotomias do pensamento moderno não têm
validade nesta leitura. O mundo enquanto representação não é mais
que a própria criação externa dobrada no interior da cada autômato
espiritual preso a este duplo movimento de mônada. Nossa existência
é agenciada por axiomáticas estatais e liberais, que confundem a nossa
escolha pela própria escolha advinda do exterior. É uma ação de
autoria axiomática e não de potência de vida. Nossos modos de vida
são escolhas preestabelecidas, consequentemente, vivemos e somos
apenas para a vida do mercado, do capital.
Será que podemos então manter a pergunta: o que é que
podemos fazer para transformar o nosso modo de ser, de agir no
mundo? Como podemos nos circundar de encontros que aumentem
a nossa potência de agir, agindo toda vez do zero, sem supor que é
31
possível agir diante de tantos encontros trágicos? Lapoujade nos dá
uma pista ao empreender que a filosofia de gilles deleuze não é só uma
filosofia da imanência, tampouco do acontecimento, menos ainda
uma ontologia do virtual, mas sim, por todos os lados, sua
preocupação filosófica estaria nos movimentos aberrantes
8
. Podemos
supor que, se o problema é de ação, trabalhar com um conceito de
movimento, inicialmente, caracteriza bem a questão.
Assim, para o autor, os movimentos aberrantes estão em toda
a obra de Deleuze, e o seu empreendimento filosófico justamente
tenta apreender, capturar, sistematizar e classificar, indiscrimina-
damente, o maior número de movimentos aberrantes. Seu problema
maior se torna explicitar a que lógica esses movimentos pertencem.
Importa a nós, como um ensaio que pretende trazer alguns pontos
sobre como Lapoujade define tais movimentos, vislumbrar um pouco
mais sobre estes movimentos aberrantes.
Em nosso tempo não nos falta ação, mas estamos endividados
em agenciamentos mercadológicos e despontencializados de forças
para criar novos modos de viver. Por outro lado, Lapoujade entende
que os movimentos aberrantes constituem a maior e a mais alta
potência de existir. Entende-se, desse modo, que há uma falta de ação,
pois somos internamente ou nos transformamos apenas ao que se vê,
fala e sente, advindo do exterior. Porém, para ele existem alguns
movimentos chamados de aberrantes que potencializam a existência
ao máximo. Assim, a esta altura, podemos apontar a existência
infalível de combates por todos os lados. Por isso, pensar sobre a ação
é, por conseguinte, pensar sobre uma ética. Também é refletir acerca
8
Lapoujade também nomeia este movimento como “forçado”. Isto é, estes movimentos
aberrantes estão por todos os lados, atravessando a vida, o pensamento, a natureza e a história
das sociedades.
32
de lutas e combates que são travados a todo o momento. Desse modo,
a existência de um conflito constante é o âmago da questão ética
emergida neste trabalho. Não se trata mais de abordar o tema pela
representação moderna, tampouco pela crítica baseada apenas na
imanência, mas sim, através das potencialidades dos movimentos
aberrantes.
Sendo estes conflitos incessantes, o combate que se trava em
nós, é contra as potencialidades externas e axiomáticas que por todos
os lados nos atravessam e submetem-nos o tempo todo. Assim, é um
conflito que, “faz parte de uma máquina de guerra positiva, ativa, na
qual somos capturados.” (Lapoujade, 2017, p. 23). Os movimentos
aberrantes, para o autor, constituem-se através de máquinas de
guerras, é essa a sua lógica é esta: agenciamento de guerreiros, como,
por exemplo, “os nômades, os trabalhadores itinerantes, os sábios e os
artistas ao longo da história universal, em virtude dos novos tipos de
espaço-tempo que criam.” (idem).
Deste ponto de vista, a questão se torna outra, isto é:
compreender a luta desses movimentos aberrantes através do que
exprimem na existência. Analisar que existências estes movimentos
criam ao reivindicarem as suas potências. Uma vez mais, não nos
importa mais saber como agir diante da tragédia, mas analisar como
as existências aberrantes, minoritárias se expressam molecularmente e
sempre em luta contra a passividade niilista. Por fim, não podemos
mais encarar a questão ética como algo modelável por estruturas,
através de um estudo moral, tampouco procurar entendê-la apenas
por ações, mas sim, de outro modo, buscar cartografar os desejos a
cada encontro que o indivíduo possui em sua vida, gerando, assim,
uma nova existência, novos modos de existir.
33
Em seu pequeno livro, mas de grande impacto, publicado em
1947, Fernand Deligny convoca os vagabundos eficazes, dizendo ele
sobre os operários, artistas, revolucionários e educadores. Faz um
elogio àqueles que nomeou como educadores-artistas, artistas-
educadores. Configurados não em uma dicotomia, mas sim, num
saber-fazer uno e múltiplo ao mesmo tempo. Em uma das passagens
do prefácio dessa grande obra, apesar do seu tamanho, faz-nos
entender o que quis apontar pelo o que chamamos de multiplicidade-
una.
Diante do que viveu nas instituições, do silo ao centro social,
analisou o novo paradigma nascente: a conhecida exclusão social, a
“infância inadaptada” dá luz e lugar à inclusão social. Movimento
identificado pelo autor mais como uma adaptação ao capitalismo e
sua necessária mão de obra, do que o cuidado aos indivíduos que antes
estavam aquém da sociedade. Em seu ponto de vista, examina
precisamente ao fazer a seguinte afirmação:
As crianças difíceis são para uma sociedade o que a madeira verde
é para o forno a lenha. Se o fogo não pega, sai fumaça e os
especialistas correm para testar a lenha, equacionar seu teor de
umidade e outros detalhes “científicos” que expliquem as bolhas,
as secreções e os estalos, os quais nem mesmo teriam sido
percebidos se a chaminé estivesse na direção correta. (Deligny,
2018, p. 147).
Não seria possível assemelhar tal constatação com os
movimentos aberrantes apresentados por Lapoujade, em sua leitura
deleuziana?. Não seria justamente a desordem potencializada, fora da
normalidade, da inclusão neoliberal, que uma nova potência criadora
experiencia uma diferença interna, um novo paradigma ético?.
34
Em uma das introduções de seu livro, a escritora, Sandra
Alvarez de Toledo, exprime o objetivo de Deligny, diz ela: “[ele]
repudiava qualquer tipo de encarceramento, preferindo a criação de
circunstâncias e de espaços para trocas e encontros.” (Deligny, 2018,
p. 157). Assim também constatamos que a escola por ser,
primeiramente, o espaço-tempo de afetos e encontros, que também
necessita de uma criação de novas experiências, apostando do zero em
situações de potencial formação, com os quais possibilitem emergir
novas potências, mesmo diante da potencial axiomática e
normalidade em que vivemos, precisamente, o que torna
indispensável é a busca nela e através de seu espaço do que é
inesperado de cada individualidade, de cada potência ética, ou seja,
uma multiplicidade dos movimentos aberrantes. Podemos pensar tal
criação através de corpos de encontros permeados pela deficiência,
que resistem à normalidade total, quando estão nestes espaços de
normalidade institucional, neste caso, as escolas. Faz-se, desse modo,
pensar políticas de inclusão
9
, mas pela ótica da diferença, por um
novo paradigma ético e, por conseguinte, estético.
Considerações Finais
O presente capítulo se inicia revisando perspectivas
educacionais que foram privilegiadas no século XX, no Brasil. A partir
dessa revisão narrativa, apreendemos o constante trabalho da
educação brasileira e seus precursores em eximir qualquer formação
ética que se opusesse à axiomática vigente e contrária aos interesses
9
A questão da inclusão sob este viés da Filosofia da Diferença não será tratada neste artigo e,
infelizmente, restringe-se apenas a este breve comentário, mas escolhemos fazer pelo interesse
em discutir tal temática em trabalhos futuros.
35
capitalistas. Primeiro, vimos que tanto na prática quanto na teoria, tal
formação estava sujeita a uma dominação hierárquica com vistas a
uma moralidade. Em segundo lugar, a proposta se igualava ainda mais
com os interesses do capital, ainda que, filosoficamente, pudesse
compreender uma formação ética mais reflexiva em direção ao
indivíduo. Por fim, mas não menos importante, uma terceira via de
dominação e docilização dos corpos, que ocorreu mais recentemente,
nas últimas décadas do século.
Por outro lado, filosoficamente, a ética após a reabertura
democrática passou a ser vista por lentes diversas e, numa dessas, a
questão é observada através de uma fissura que ocorre no
agenciamento de si e no encontro com a diferença, com o outro.
Sendo esta a perspectiva que aqui nos interessou. Com vistas a
articular algumas literaturas já produzidas sobre o tema e contribuir
com a questão, discorremos brevemente sobre a temática através de
autores que seguem um pensamento da diferença, privilegiando, uma
leitura deleuziana. O autor francês Lapoujade foi lido com suporte
para pensar a diferença na educação enquanto crítica da escola,
utilizando como instrumento conceitual a sua criação sobre os
movimentos aberrantes. Ainda que de forma modesta, tivemos como
intuito buscar assimilar algumas ideias sobre os movimentos
aberrantes com o problema da ética na educação pela ótica da filosofia
da diferença. Com vistas a gerar uma reflexão que permeia o problema
da ação, da luta, do combate contra a subjetivação neoliberal, que
ocorre incessantemente nas instituições, em nosso caso, na escola, a
hipótese é que sua superação pode ser observada através da diferença,
dos vagabundos eficazes, da deficiência, dos movimentos que desviam
a norma e que criam aberrações dentro das instituições. Entendo,
36
enfim, estes agenciamentos outros como a própria expressão de
potência de vida e criação de vida.
Não que tenhamos concluído o assunto, nem mesmo perto
disso, pois os conceitos aqui trabalhados, como: afeto, encontro,
movimentos aberrantes, o problema da ação etc., requerem uma atenção
muito maior e um estudo aprofundado para dizer com propriedade
sobre o que se deve propor enquanto um novo paradigma ético.
Contudo, buscamos ensaiar através deles algumas ideias que,
posteriormente, buscaremos desenvolvê-las com precisão. Deixando,
de modo modesto, um convite para pensarmos a ética na educação
como um problema central às diversas questões que permeiam a
escola.
Referências Bibliográficas
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emancipatória/libertadora de inspiração freireana. Roteiro, v. 45,
p. 1-22, jan./dez. 2020.
DELIGNY, Fernand. Os vagabundos eficazes, operário, artistas,
revolucionários, educadores. São Paulo: n-1edições, 2008.
GALLO, Silvio. Eu, o outro e tantos outros: educação, alteridade e
filosofia da diferença. In: Anais do II Congresso Internacional
cotidiano: diálogos sobre diálogos. Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2008.
LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. São
Paulo: n-1 edições, 2015.
37
MARQUES, Carlos e.Targa, Dante c. Filosofia da educação.
Curitiba: Fael, 2013.
PAGNI, Pedro. Ética, transversalidade e formação humana. In:
Ética, transversalidade e deficiência: desafios da arte de viver à
educação. Curitiba: editora crv, 2018.
VIESENTEINER, Jorge l. Nietzsche e o niilismo como diagnóstico
da crise ética, in
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Ética abordagens e perspectivas. Curitiba: editora
puc-pr, p. 111 - 126, 2011.
ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze.
Tradução: André Telles. Rio de janeiro: ic, 2004.
38
39
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3.p39-58
Capítulo 2
Reflexões para decolonizar a prática docente:
as paixões humanas na sala de aula
Alonso Bezerra de Carvalho
10
Introdução
A partir de um problema educacional bastante concreto, que
é o desafio de exercer a docência em uma sala de aula, as reflexões aqui
apresentadas são resultado de uma cuidadosa revisão bibliográfica, em
que se realiza um diálogo entre questões e desafios que emergem no
ambiente escolar e ideias e categorias que compõem o universo
conceitual-filosófico. Nesse processo procurei retomar essas categorias
tanto para a familiarizar o leitor com a literatura a elas atinentes como
me situar criticamente no debate e nos textos já produzidos e que
poderão nos ajudar na construção do problema, na identificação de
pontos de consenso e de dissenso e na elaboração e na proposição de
algo novo e pertinente ao campo de reflexão e de estudo delimitado.
(Alves-Mazzotti; Gewandsznajder, 2001).
10
Docente do Departamento de Didática e do Programa de Pós-Graduação em Educação,
da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Unesp, Campus de Marília. Líder do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Educação, Ética e Educação (GEPEES), cadastrado no CNPq. E-mail:
alonso.carvalho@unesp.br
40
Para tanto, considerei, inicial e retrospectivamente, o percurso
de minha formação, de minha prática pedagógica e de reflexões que
tive oportunidade de realizar nesse período. Pretendo trazer questões
educacionais que me acompanham ao longo de minha vida
profissional e intelectual e que foram sendo aprofundadas e
amadurecidas nesta caminhada, com a colaboração de áreas do saber
como a filosofia, a sociologia, a psicologia e a história, a pedagogia,
seja pela formação institucional-acadêmica obtida com elas, seja pela
prática docente na rede básica de ensino e nos cursos universitários,
nesses últimos ministrando disciplinas pedagógicas, tais como
Didática e Filosofia da Educação, Metodologias de Ensino e Estágio
Supervisionado, para cursos de formação de professores.
A proposta reflexivo-metodológica foi construir um texto que
permitisse certa liberdade para abranger temáticas que sempre
aparecem nos debates educacionais, mas que muitas vezes não são
discutidas e nem levadas em consideração no momento de se elaborar
um Projeto Político Pedagógico, por exemplo, restrito que fica às
exigências meramente burocráticas. Em uma escola, mas também na
Universidade, sobretudo nos cursos de formação de professores, o que
se valoriza, ou a visão que predomina, é a de que a dimensão
epistemológica é o centro e a mais importante do processo, excluindo-
se outras dimensões do saber e da vida humana, como a dimensão
ético-passional, por exemplo.
Partimos da ideia de que as paixões estão presentes e fazem
parte da vida humana mais do que nós temos consciência. Diria que
elas nasceram com o homem. Na alegoria do Jardim do Éden, a
atitude de Eva, ao apanhar o fruto proibido, foi movida por uma
paixão, por um desejo que não estava ao alcance dela dominar
integralmente. Juntamente com a substância, a quantidade, a
41
qualidade, a relação, o lugar, o tempo, a situação, o ter e a ação, a
paixão é uma das dez categorias aristotélicas que designa os predicados
que constituem o ser, ou seja, que são aplicáveis a todo ente existente
no mundo.
As paixões na filosofia
Mesmo antes da filosofia aristotélica, já temos conhecimento
de mobilizações passionais que os homens tiveram que experimentar.
As narrativas trágicas estão e são ricas em apresentar situações vividas
por personagens que são acometidos por paixões as mais diversas, que
os levavam a tomarem essa ou aquela atitude. Cólera, alegria,
compaixão, tristeza, ódio, inveja, amor, calma, desprezo, temor,
confiança, indignação, vergonha etc,o movimentos da alma que
estavam presentes nas posturas das mais diversas figuras humanas dos
textos trágicos. Prometeu, Antígona, Édipo, Jocasta, Creonte, entre
outras, são algumas dessas figuras mais conhecidas. No campo
filosófico, Aristóteles é considerado um dos primeiros pensadores que
tratou sobre a paixão (pathos). Para ele, paixão significa o fato de se
sofrer (suportar) a ação de um agente exterior, conduzindo, assim, à
ideia de passividade.
Paixão significa (a) uma qualidade em função da qual se torna
possível a alteração, por exemplo, entre a brancura e a negrura, a
doçura e o amargor, o peso e a leveza, etc. (b) as atualizações dessa
qualidade, ou seja, as alterações já convertidas em ato. (c)
Particularmente, alterações e movimentos penosos e, mais
particularmente, ferimentos que produzem sofrimentos (d)
Experiências desastrosas, penosas, [dolorosas e prazerosas]
extremas são chamadas paixões. (Aristóteles, 2006, p. 158).
42
No que se refere ao homem, a paixão foi ao longo dos séculos
tratada como um movimento da alma que contribui e está na
constituição do nosso caráter, na nossa maneira de ser e de estar no
mundo. Nesse sentido, adquire diversas acepções, tornando-se um
problema filosófico clássico, com repercussões até os dias atuais, com
abordagens que a toma como positiva e outras que lhe atribui uma
denotação negativa. No primeiro caso, a paixão é considerada como
um temperamento ativo e entusiasta, uma mobilização persistente de
energia para atingir seu objetivo. Nenhum fracasso, obstáculo ou
desmentido é capaz de abalar: as paixões amorosas, de jogo,
ideológica, etc. No entanto, as paixões foram condenadas como algo
que torna o homem um ser fora de si, perturbado e conduzido apenas
pelo desejo de realizar os seus objetivos, de atingir o prazer que o
levaria a um profundo sofrimento e dor, de sacrifício e renúncia, que
precisa ser controlado. Nesse segundo caso, a paixão habitaria o
mundo da desrazão e do irracional.
Na história da filosofia, esse debate ou diversidade de posições
é evidente. Ao que tudo indica as discussões ou distinções começaram
com Platão ou, quiçá, com Parmênides. A contingência do devir, a
pluralidade das opiniões, o mundo das sombras, o conhecimento
ilusório, a incerteza das informações do universo sensível faz emergir
toda uma concepção de homem e de filosofia. É a partir dela que as
disputas se iniciaram, trazendo repercussões até os dias de hoje,
inclusive provocando reconfigurações nas reflexões no campo da
própria filosofia, da ciência, da ética e da política. Para o propósito
deste texto, as reflexõeso no sentido de pensar e trazer algumas
contribuições ao campo da educação, sobretudo para um lugar
bastante específico que é a sala de aula, com os desafios, problemas e
vivências que são experimentados cotidianamente por professores no
43
exercício de sua profissão. Nesse sentido, considerar as paixões pode
nos indicar boas possibilidades para interpelarmos e problemati-
zarmos a dimensão racional que, muitas vezes, cumpre um papel
colonizador e (pre)dominante no processo pedagógico.
Páthos: paixão ou sentimento; emoção; aquilo que se sofre ânimo
agitado por circunstâncias exteriores; perturbação do ânimo
causada por uma ação externa; acontecimentos ou mudanças nas
coisas causadas por uma ação externa ou por um agente externo;
passividade humana ou das coisas; doença (donde: patológico,
patologia); emoção forte causada por uma impressão externa
(donde: patético); passividade física e moral; sofrimento. O
verbo páskho significa: ser afetado de tal ou qual maneira,
experimentar tal ou qual emoção ou sentimento, sofrer alguma
ação externa, padecer (em oposição a agir). Oposto a práxis.
(Chauí, 2011, p. 508).
Dois textos de Aristóteles expressam com muita propriedade
o significado e a presença das paixões na constituição do homem:
Retórica das paixões (2000) e Ética a Nicômaco (1987). As paixões
seriam como um movimento que, como um dado da natureza
humana, não pode ser tratado como algo a ser extirpado ou
condenado. A riqueza dessa compreensão está no fato de que o
mundo das paixões pode ser considerado como requisito necessário
para compreendermos as ações humanas e os valores que nós
tomamos como medidas para decidir e escolher diante das
circunstâncias que nos são apresentadas e enfrentamos no nosso
cotidiano. Dessas primeiras ideias podemos depreender uma primeira
reflexão sobre o que se passa em uma sala de aula.
Na sala de aula temos as mais diversas paixões se manifestando
e movimentando professores e alunos. O professor geralmente entra
44
em uma sala de aula com o objetivo e a expectativa de transmitir
conhecimento e, para tanto, decide-se por uma metodologia que,
segundo seus cálculos, poderá favorecer a apreensão dos conteúdos de
maneira mais fácil ou, no mínimo, de maneira mais eficiente pelos
alunos. Essa sua atitude não é isenta e nem neutra, mas são escolhas
que resultam de uma movimentação interior da qual quase sempre ele
não se dá conta. Essa movimentação é passional também, embora, em
um primeiro instante, ele pense ou imagine que tudo é resultado de
uma mobilização intelectual, racional e calculada, bastando ficar
atento aos seus pensamentos e ideias que uma boa técnica didática vai
surgir. Com isso quero dizer que, na prática pedagógica, conta
bastante a percepção, o entusiasmo e o desejo que habitam o nosso
interior que nem sempre ou quase nunca são passíveis de serem
reduzidas a uma única dimensão. Enfim, mais do que uma técnica, a
prática pedagógica tem a ver também com uma ética que, na
perspectiva aristotélica, origina-se ou inicia-se a partir das experiências
passionais que sofremos ao longo de nossas vidas.
No livro II, capítulo 5 da Ética, quando indagado sobre o que
é a virtude, Aristóteles responde que na alma humana se encontram
três espécies de coisas: paixões, faculdades e disposição de caráter.
Por paixões entendo os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a
inveja, a alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a emulação, a
compaixão, e em geral os sentimentos que são acompanhados de
prazer ou dor; por faculdades, as coisas em virtudes das quais se
diz que somos capazes de sentir tudo isso, ou seja, de nos irarmos,
de magoar-nos ou compadecer-nos; por disposições de caráter, as
coisas em virtudes das quais nossa posição com referência às
paixões é boa ou má. Por exemplo, com referência à cólera, nossa
posição é má se a sentimos de modo violento ou demasiado fraco,
45
e boa se a sentimos moderadamente; e da mesma forma no que
se relaciona com as outras paixões. (Aristóteles, 1987, p. 31).
Nessa perspectiva, podemos dizer que as paixões seriam o
ponto de partida para a formação do caráter dos indivíduos. A
avaliação de nossas condutas se louvadas ou censuradas não é feita
por sentirmos paixões, mesmo porque ninguém se encoleriza
intencionalmente, o que quer dizer, que não escolhemos sentir essa
ou aquela paixão. Isto significa que só somos julgados e
responsabilizados pelas nossas virtudes e vícios, que são formados pelo
modo como usamos as paixões. “Sentimos cólera e medo sem
nenhuma escolha de nossa parte, mas as virtudes são modalidades de
escolha, ou envolvem escolha. Além disso, com as paixões se diz que
somos movidos.” (Aristóteles, 1987, p. 31).
Desdobrando melhor a proposta aristotélica, talvez caiba aqui
um aprofundamento ou uma explicitação dos elementos essenciais
que a compõe. Grosso modo, e pensando a partir de uma pragmática,
isto é, de sua funcionalidade na conduta humana, a paixão diz
respeito ao que sentimos e experienciamos no nosso cotidiano. Ela é
uma tendência ou uma inclinação que tem a função de nos mobilizar,
tendo como resultado, frequentemente, uma ação posterior, daí o
caráter de passividade que nos atinge, em um primeiro momento.
Quando reagimos a uma ofensa, por exemplo, sentindo raiva,
não haveria a possibilidade de fazermos uma escolha, mantendo a
calma e a tranquilidade. “A paixão é sempre provocada pela presença
ou imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ela
é então o sinal de que eu vivo na dependência permanente do Outro.”
(Lebrun, 1987, p. 18). Inclusive, um Outro que não está só fora de
mim, mas que me pertence e me movimenta.
46
Como característica ou dístico do ser humano, um ser
perfeito, como Deus, não teria a oportunidade de ser movido pela
paixão. Como só pertencem às coisas do mundo humano, as paixões
dependem do outro (o mundo fora de nós), não cabendo a nós
escolher o momento para senti-las, o que não nos isenta de agirmos
de maneira responsável em direção ao seu domínio, dosando-as. É
deste modo que os outros nos julgam como seres ético-virtuosos, ou
seja, observando como nos movimentamos com nossas paixões. Deste
modo, e visto que o julgamento ético sempre se direcionará ao modo
com que uma pessoa age diante de suas paixões, não há ética sem as
paixões e não há ação pedagógica sem ética. Assim, o homem virtuoso
ou o professor que quer realizar uma boa prática educativa, do ponto
de vista didático-metodológico, não seria aquele que lança mão de
suas paixões nem aquele que as abranda, mas aquele que sabe dosar o
quanto de paixão uma determinada conduta comporta nas
circunstâncias com as quais se defronta.
A regulação ética não é exercida através de uma lei judaico-cristã,
mas pela opinião de um expectador prudente, que
aprovará/desaprovará minha conduta e avaliará se eu soube usar
convenientemente minhas paixões. Não é a uma lei que eu devo
referir minha conduta, mas à opinião moderada dos outros (...);
a ética aristotélica é mais um tratado de savoir-vivre do que um
tratado de moral. (Lebrun, 1987, p. 21).
Assim, do ponto de vista da educação, cabe a função de
ensinar o homem a dominar suas paixões e não as extirpar ou saciá-
las. E dominar nada mais é do que utilizá-las adequadamente e não as
aniquilar, como pretenderam várias correntes filosóficas. É motivo
para estranhamento quando queremos impor ou inculcar juízos éticos
47
a priori, impossibilitando ao indivíduo fazer suas experiências
passionais. Dito de outra maneira, quando queremos relacionar ou
reduzir a ética a leis morais, jurídicas e racionais, como pretenderam
algumas tradições filosóficas ou pedagógicas, o resultado pode ser
desastroso.
A didática e as paixões na sala de aula:
decolonizar a prática docente
A ideia central desse texto é problematizar a perspectiva que
considera o homem e suas ações como marcado, movimentado e
constituído por uma única dimensão, isto é, dotado de reflexão, da
capacidade de conhecer-se a si mesmo e se reconhecendo como
diferente dos objetos, cria e/ou descobre significações, institui
sentidos, elabora conceitos, ideias, juízos e teorias, enfim, um sujeito
racional e pensante. (Chauí, 2003, p. 130). Nesse processo, o que se
observa é uma desvalorização e até mesmo uma exclusão do mundo
das paixões. Se a educação é uma das esferas mais importantes das
ações humanas e se consideramos as paixões como pertencentes à
nossa natureza, indago se não está no momento de educar e de nos
educarmos observando, compreendendo e reconhecendo que somos
movidos também por elas. Nesse aspecto, a melhor maneira de
estabelecer estratégias para influenciar e contribuir na conduta de
uma pessoa ou de nós mesmos está em levarmos em linha de conta
esse outro lado de nossa existência. Com isso, quero dizer que as
paixões cumprem um papel significativo na constituição e na
formação de nós, os humanos, repercutindo e definindo as nossas
condutas, escolhas e valores. E mais: as paixões habitam e se
manifestam nos indivíduos, provocando consequências na vida social
48
que, por sua vez, estimula e motiva atitudes apaixonadas. Em outros
termos, a natureza passional, visto que todo homem tem paixão, age
sobre a sociedade, que responde agindo sobre a natureza, resultando,
assim, em uma ordem moral.
Quando se estuda uma organização social, a tendência
predominante é observar e diagnosticar os costumes, as regras da vida
coletiva, o funcionamento das instituições políticas, religiosas,
educacionais, econômicas, enfim, os monumentos que construímos
para garantir a existência e a continuidade dos indivíduos e da
sociedade. Em um primeiro momento, as paixões são consideradas
como elementos estranhos a um estudo sociológico, restritas que
estavam ao domínio filosófico, que as definem, e ao psicológico-
psicanalítico moderno, que tenta explicar os seus mecanismos de
funcionamento e os seus efeitos.
Se partirmos das teorias sociológicas clássicas Marx, Weber
e Durkheim , a abordagem da temática não é feita de forma direta e
explícita, o que exige um esforço de organização do que foi
apresentado de maneira esparsa. Grosso modo, da obra desses
pensadores e de outros Simmel, Elias, aqueles da Escola de
Frankfurt, Foucault e Habermas - ao querer construir representações
globais da realidade e tomar consciência da condição humana
submetida a mudanças sem fim e em ruptura com a estabilidade da
tradição, penso que é possível extrair indícios significativos
contrários ou não - de que a paixão tem aí a sua presença garantida:
seja na vida pessoal desses cientistas, seja mesmo no terreno de onde
retiraram o material para as suas reflexões, isto é, o mundo social e as
suas relações.
Tomar as paixões como objeto de reflexão, no sentido de
propor algo no mínimo desafiador para o campo da educação, pode
49
ser uma tentativa de compreender a experiência humana no sentido
das questões colocadas por Foucault ao postular a necessidade de
fazermos um diagnóstico do nosso presente: quem somos nós? O que
estamos fazendo de nós mesmos? E o que estamos fazendo com os outros?
O que assinala é que não se trata mais de indagar quem somos nós e
os outros enquanto sujeitos universais, mas enquanto sujeitos ou
singularidades históricas. Em outros termos, qual é a historicidade que
nos atravessa e nos constitui?
Somos animais passionais. Se a razão tem suas razões para ser
e para estar, as paixões, por seu lado, têm as suas motivações e motivos
para existir. A condição humana se distingue de outras também
porque experimentamos e expressamos sentimentos, desejos e
vontades. Não somos e nem conseguimos ser racionais o tempo todo.
A formação do homem, de uma sociedade, os valores cultivados, os
empreendimentos econômicos, políticos, científicos, pedagógicos,
artísticos e religiosos seriam frutos também das escolhas e das
condutas originadas nas paixões.
Se a palavra paixão designa, etimologicamente, o fato de
suportarmos e sofrermos aão de um agente exterior sobre nós, cuja
consequência seria o caráter passivo do apaixonado, ela é ação,
individual e coletiva, é origem e expressão de nossas atitudes e posição
no mundo, com suas contingências, necessidades, antagonismos,
resistências e conformismos. Paixão é vida, é experiência que conduz
à inteligência, porque a existência é partilha, é convivência. Da relação
com as alegrias e as tristezas, com os amores e os ódios, com as
esperanças e os medos, fazemo-nos indivíduos e sociedade,
realizando-nos como pessoa e como homens.
Para além do bem e do mal que as paixões provocam, o prazer
e a dor que, como considera Helvétius(1989), lhe são inerentes, elas
50
nos desafia “nos tira do sério” e nos coloca diante das exigências
cotidiana da existência, do encanto e do desencanto do viver e do
conviver; paixão somos nós, finitos e incompletos, pois “não existe
paixão, no sentido mais amplo, senão onde houver mobilidade,
imperfeição ontológica. Se assim for, a paixão é um dado do mundo
sublunar e da existência humana. Devemos contar com as paixões.”
(Lebrun, 1987, p. 18). É nesta perspectiva que as consideramos como
uma dimensão a ser considerada para um bom exercício reflexivo e
prático na área da educação, em especial no campo da docência,
predominantemente organizado por uma concepção racional de
mundo que se reveste de um caráter colonizador, em que outras
experiências e vivências são praticamente subalternizadas e
invisibilizadas na sala de aula. Retomá-las pode nos propiciar modos
novos de ser, de estar, de pensar, de sentir e de agir no processo
educativo. Para tanto, podemos tomar o campo da Didática para fazer
essa experiência reflexiva.
Como sabemos, a Didática, em suas origens, com Comênio
no século XVI, foi identificada com uma perspectiva normativa e
prescritiva de métodos e técnicas de ensinar, algo que ainda
permanece arraigado no imaginário e nas práticas dos professores até
hoje. Como uma disciplina, um campo de saber ou de ação, ela nasce
em uma Europa que se tornava cada vez menos espiritualizada, menos
feudal, e muito mais humanista e interessada em se expandir
geográfica, econômica e culturalmente. A Didática nasce, assim, para
atender os desejos e os interesses de uma época, de uma classe e de
um novo tipo de sociedade que se forma ou se reorganiza.
Como se vê a educação moderna e sua concepção de Didática
não se origina de uma obra transcendente, mas se insere na história,
nas relações de poder e de saberes, a partir de escolhas e releituras
51
humanas. Com isso queremos dizer que a Didática é mais do que um
campo ou disciplina que agrega as questões relacionadas aos saberes,
aos métodos e às práticas educativas. Ela diz respeito ao humano, aos
seres humanos e não a uma mera técnica em que as pessoas
representam uma peça em uma engrenagem ou em um dispositivo,
com todo o cálculo, frieza e precisão que isto implica e requer.
Nesse processo, a relação professor-aluno, tema caro ao
campo didático, em diálogo com a filosofia, pode ser pensada e vivida
considerando o educador e o educando como sujeitos históricos,
éticos e epistêmicos, que constroem em suas ações e atitudes um
projeto de desenvolvimento de suas personalidades e que pode se
traduzir e se revelar em um projeto pedagógico baseado em valores e
saberes que proporcione a emancipação humana e não a sua
dominação.
Em diálogo com a filosofia da educação, a didática pode
ampliar o seu campo de visão e considerar que nós, o mundo e a
sociedade em que vivemos não se dão como prontos, acabados e
imutáveis. No horizonte da existência humana, da educação, do ofício
de ensinar e de aprender, poderia estar sempre o reino do possível, do
(in)existente, da história, da produção e do respeito pelo diferente,
enfim, reconhecer as paixões, a ética, enfim, a alteridade no campo
educacional. Isso exige uma nova postura no educar: uma postura e
uma prática descolonizadora, interpelando e promovendo superações
e atitudes profundas ao instituído, como é a própria escola. A
descolonização da educação escolar é urgente, a fim de valorizar e
considerar outros conhecimentos e, no caso do Brasil e da América
Latina, os saberes, as histórias, as culturas, as línguas e os viveres dos
povos indígenas, quilombolas bem como as suas práticas educativas.
(Ferreira, 2018).
52
Portanto, está mais do que na hora de pensarmos uma
educação latinoamericana que inclua o outro, em direção a um mundo
mais justo, tolerante e respeitoso, pois o diferente, aquele é excluído,
não é uma ameaça, mas uma possibilidade para se construir uma nova
identidade, novos vínculos e uma nova convivência. Para tanto, é
fundamental que retomemos com profundidade o tema da alteridade
ou da problemática do outro. Para concluir o capítulo, faremos
apenas um pequeno apontamento acerca do assunto para estimular
futuras discussões.
Podemos observar que a tradição filosófica não tem abordado
a questão de maneira hegemônica, pois desde os seus inícios as paixões
e a alteridade como questão ética ficou em segundo plano,
especialmente se a olharmos em uma perspectiva eurocêntrica. Hoje
já é aceitável considerar que a filosofia não se restringe ao mundo
grego e por isso talvez seja necessário nos reposicionarmos em relação
à ética e àquilo que ela constitui. É bem verdade que desde os gregos,
dependendo da escola que estudarmos, o tema da alteridade já se
encontrava presente, ao menos por exclusão e como uma
representação conceitual e epistêmica. Neste sentido, quando
Parmênides defendia que o ser é e o não-ser não, vislumbra-se ex
negativo uma primeira noção daquilo que nos tempos
contemporâneos adquiriu uma relevância jamais enfatizada no
decurso do pensamento ocidental. Na proposição parmenídica, o
“não-ser”, o outro, só adquire “existência” em relação a um eu que
totaliza e representa a realidade. A única chance que o outro tem de
existir é quando ele se reduz ou se torna semelhante ou comparável a
este eu. Nesse percurso, essa concepção parece ter se tornado
hegemônica, praticamente se transformando em um costume e uma
prática representacional inquestionável. No caso específico dos seres
53
humanos, temos a ideia e a concepção de que somos semelhantes e
que todos os outros indivíduos são semelhantes a mim, ou seja,
uma essência humana que se estende e está presente em cada um de
nós; seríamos da mesma espécie.
Na aurora da modernidade esta ideia se manifesta por meio
da acepção de que somos todos iguais, ou seja, a igualdade surge como
a solução para os conflitos existentes em um hipotético estado de
natureza, em que havia “uma guerra de todos contra todos”. Para que
não nos exterminássemos era necessário estabelecer um contrato e
criar uma instituição que desse conta de bem controlar e preservar a
vida de cada um e, por extensão, de todos. Por isso, o Estado na
modernidade nasce com essa função, ou seja, de garantir a igualdade
entre todos.
Nos anos finais do século XIX e início do século XX a figura
do outro, ou melhor, o tema da alteridade se reveste de uma nova
concepção. Nem semelhante, nem igual, mas diferente. Este é o
leitmotiv de um debate que se instaura, provocando novas posturas e
novas perspectivas para a convivência humana. Ao esquecermos de
pensar o outro como outro e agora colocá-lo no centro das nossas
práticas a questão se reveste de um novo significado e torna-se tema
para um novo campo de reflexão, isto é, as paixões, a ética e alteridade
em vista de uma nova Didática
Autores como Paulo Freire (1921-1997), entre outros,
parecem tomar essa perspectiva em suas análises e reflexões. Para eles,
segundo a minha compreensão, uma educação libertadora, decoloni-
zadora e comprometida com a história dos povos latinoamericanos
deve ser essencialmente ética, pois seria bastante lamentável
desconsiderar o outro, o diferente, e apenas tratá-los como passíveis
de serem excluídos, oprimidos e negados. Na esteira do que defende
54
Levinas, estão de acordo que o outro não é um conceito abstrato, nem
uma categoria de pensamento, mas ele tem um rosto que se revela e
que deve ser acolhido e reconhecido. “A epifania do rosto como rosto,
abre a humanidade. O rosto na sua nudez apresenta-me a penúria do
pobre e do estrangeiro” (Levinas, 2000, p. 190). Pensar, reconhecer e
acolher o rosto da América é fazer essa experiência epifânica, em que
o outro se manifesta como alguém único, singular e diferente. O
outro já não é mais um estranho, ele se transformou no nosso próximo.
Sua presença dentro de mim é uma interpelação que não deixa
ninguém indiferente à sua sorte. Esse parece ser o compromisso e o
chamamento que os nossos dois pensadores latinoamericanos estão
fazendo e propondo, inclusive no campo da educação.
Conclusões
Pensando, portanto, em uma nova didática e em uma prática
docente renovada e transformadora, o professor na sala de aula
poderia arriscar-se na construção de um ambiente em que os alunos
estejam preparados para os desafios, para os riscos, para o
surpreendente e o imprevisto. Diferentemente do que nos propõe
Descartes, no mundo há vários pontos arquimedianos, de onde
podemos partir para expor e transpor a realidade, que é inacabada e
em construção. Não somos apenas espírito e intelecto, somos a junção
do corpo com a mente, e por isso somos capazes de sentir, falar, pensar
e agir.
Talvez caiba ao professor reconhecer e agir na direção de que
após uma aula ele não deve esperar ou se comportar como um
decepcionado ou envaidecido pelo fracasso ou sucesso, mas observar
se a aula não gerou um mal-estar, uma inquietude, ingredientes
55
propulsores do crescimento. Embora deva ser preparada, organizada,
e isso a didática pode nos ajudar, a aula solicita também inspiração e
entusiasmo, pois é algo que se estende de uma semana a outra, ou seja,
é um espaço e uma temporalidade muito especiais, visto que as
pessoas mudam entre uma semana e outra, entre uma aula e outra.
Como diz Heráclito, não tomamos banho duas vezes no mesmo rio,
pois as águas mudam e nós mudamos.
Deste modo, como pretendemos chamar a atenção neste
texto, temas filosóficos, como as paixões humanas, podem nos ajudar
a repensar a didática e a própria educação escolar. Sem o objetivo de
abarcar o que a filosofia da educação tem a oferecer à didática e vice-
versa, quis mostrar como um conjunto de saberes e práticas que dizem
respeito ao como se deve ensinar, como as pessoas aprendem, como
devem funcionar as escolas para que a aprendizagem seja mais efetiva,
quais conhecimentos são mais relevantes para compor um currículo e
como os professores devem exercer seu ofício, etc., podem dialogar
com a filosofia e suas reflexões educacionais.
Se a filosofia da educação e a didática podem estabelecer um
diálogo, este deve estar aberto para a possibilidade dos alunos e
professores alterarem as suas compreensões do que significa ser
humano, de forma a não se restringir a um processo de socialização e
inserção deles numa ordem preexistente, instrumentalizada, fria e
calculista, como buscou fazer certo uso da razão na história do
pensamento humano. Pensar a educação e a didática na perspectiva
aqui abordada é considerar os indivíduos, sobretudo os alunos, como
presença, como singularidade e individualidade no mundo povoado
por outros que não são como nós, ou seja, um mundo de pluralidade,
de diversidade e diferença como condição necessária, mas
problemática e difícil. Enfim, que ensinar ou aprender sempre
56
acarrete o risco de que a aprendizagem e o ensino possam ter um
impacto sobre cada um nós e de que possamos mudar e não
meramente nos submetermos ao que está cristalizado por um processo
de colonização do saber, do ser, do existir, do viver e ... do educar e
da prática docente.
Referências
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Fernando. O Método nas Ciências Naturais e Sociais: pesquisa
quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira Thomson Learning,
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57
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LEBRUN, Gérard. O conceito de paixão. In: NOVAES,
Adauto(org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Cia. Das Letras,
1987.
58
59
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3.p59-82
Capítulo 3
A relevância histórica da inter-relação entre ética e
educação no processo pedagógico
Clayton Ribeiro da Trindade
11
Introdução
O presente texto tem como objetivo fazer uma reflexão sobre
ética e educação, na qual a ética é uma disciplina da filosofia
responsável pela área do conhecimento que estuda o comportamento
do ser humano, servindo como instrumento de análise e juízo da
sociedade, fundado em valores universais e princípios morais, tendo
como pressupostos controlar o comportamento humano, enquanto
que educação perpassa por princípios éticos e isso ocorre pelo processo
educacional.
Enfatiza-se, para tanto, que um dos principais objetivos da
educação é contribuir com a formação e o desenvolvimento humano,
o qual ocorre por meio do ensino e da aprendizagem, ensinando
valores qualificados de virtudes, uma vez que o ser humano, desde a
mais tenra idade, é orientado por princípios morais e éticos, visando
promover a autonomia dos indivíduos para a vida social, constituindo
11
Graduado em Pedagogia (2017) e em Ciências Sociais (2020) pela Faculdade de Filosofia
e Ciências, Unesp, Campus de Marília. E-mail: clayton_12trindade@hotmail.com
60
um fundamento da formação do sujeito ético compre-endido por
reflexão, sistematização da moral.
Ademais, a educação é fundamentada pelo viés político, ao
passo que, para Paulo Freire (1996), todo ato educativo é um ato
político e não é neutro, pois obrigatoriamente implica princípios e
valores que caracterizam uma determinação de mundo e sociedade,
vinculada a preceitos morais, éticos e sociais.
Etimologia da palavra ética
No plano histórico, a ética tem sua origem na Grécia antiga,
praticamente junto com a filosofia. Posteriormente, a ciência
originou-se da filosofia e diferenciou-se da ética ao longo do tempo,
tornando-se ambas as disciplinas autônomas e independentes, de
modo que a ciência se encarrega da produção do conhecimento sobre
o mundo e a ética das questões do comportamento humano. Em vista
disso, há relações significativas entre as duas áreas do saber, as quais
vêm sendo analisadas por várias áreas da filosofia, resultando na
bioética e biotecnologia, áreas de estudos que afetam justamente o
exercício de algumas importantes profissões.
A priori, a palavra ética vem do latim "ethica" e do grego
"ethiké", sendo um ramo da filosofia e um sub-ramo da axiologia, na
qual, segundo os gregos Aristóteles, Platão e Sócrates, a ética ou
imaginário ético submetia à vontade dos movimentos da natureza em
harmonia cósmica, que, por sua vez, eram conhecidos como éticos os
atos realizados de acordo com a razão. Nesse sentido, a razão e a
vontade eram entendidas como faculdades superiores fundamentais
dos seres humanos, na qual a ética é subjugada ao horizonte
metafísico, tal que a metafísica estabelece a essência humana, em
61
contrapartida a ética define a conduta apropriada conforme a natureza
humana.Desde então, a ética é quase adjacente à filosofia, por meio
da qual, provindo do termo grego ethos como reflexão filosófica,
significa um conjunto de costumes, hábitos e valores de uma
determinada sociedade, tendo como objetivo propor o significado
sobre o bem e o mal, o certo e o errado, o permitido e o proibido para
a sociedade, ou seja, significa modo de agir e de ser.
Por sua vez, a ética, no contexto da educação, é uma das áreas
da filosofia mais instigantes devido a sua relação com a vivência
prática (por meio da experiência), isto é, um exame minucioso do
comportamento humano, uma vez que não é justificado nas práticas
nem nos costumes, porém, na reflexão, na crítica da razão, por isso,
constata que a ética é uma subárea científica.
Em termos gerais, a ética na ciência é um ramo da filosofia
direcionada para a ética na pesquisa, sendo um conjunto de afazeres
morais os quais definem o certo e o errado nas práticas e deliberações
científicas. Implicam, portanto, uma discussão sobre a ciência e sua
inserção social. Trata-se, então, de destacar que, a ética é uma das
áreas mais importantes do conhecimento construído por vários
séculos, distinguindo-se da moral e assumindo contemporaneamente
um sentido amplo e outro mais estreito, por meio do pressuposto da
existência da história da moral, dando início à diversidade de morais
no tempo com seus respectivos valores, princípios e normas mesclados
ao contexto mítico e religioso, tentando pautar regras de
comportamento para viabilizar o convívio entre indivíduos agrupados
em uma sociedade.
Partindo desses pressupostos, a ética é uma disciplina teórica
que analisa, critica e reflete o comportamento moral do ser humano
em sociedade, acerca de práticas e valores que são apontados como
62
corretos, justos e bons para qualquer sociedade. Desse modo, para que
o ser humano tenha uma conduta ética, é preciso existir um agente
consciente de valores e costumes, uma vez que as ações práticas do ser
humano são resultantes de seu comportamento e de suas condutas
éticas, atravessando estágios profundos de indagações sobre
pensamentos, valores e atitudes, promovendo, inclusive, o debate
sobre a configuração ética da própria sociedade, a fim de se
proporcionar um mundo mais humano e justo para todos
sobreviverem.
A ética como princípio da condição humana
Do ponto de vista diacrônico, a ética se relaciona
estreitamente com as experiências do ser humano no âmbito das
ciências sociais, dado que a conduta moral não é outra coisa senão
particularidades do comportamento humano o qual se expressa em
diferentes níveis tais como: social, psicológicos, prático, jurídico,
religioso e etc. Assim, o vínculo calcado na ética com outras ciências
humanas ou sociais, fundado na profunda relação das diferentes
maneiras do comportamento humano, não nos deve fazer esquecer o
seu objeto característico sui generis como qualidade das ciências do
comportamento moral. Por essas razões, as principais características
da ética moderna é a defesa da autonomia intelectual e moral do ser
humano, tendo como pressupostos uma ética fundamentada
exclusivamente pela razão, eximindo a neutralidade da religião em
harmonia com a natureza humana. Nesse ínterim, os principais
representantes da ética moderna são: David Hume, Kant, Jeremy
Bentham e John Stuart Mill.
63
Cabe salientar, ainda que a conotação negativa de moral esteja
relacionada à obediência de costumes e hábitos (ethos) pelo esforço
repetido até alcançar a excelência no agir, seu significado principal é
a própria ética. Por conta disso, em uma concepção antagônica,
busca-se fundamentar as condutas morais de maneira racional, uma
vez que a ética é intrinsecamente associada ao conceito de moralidade,
cujo objetivo tem como caminho do para quê da educação.
Entende se, assim, que a conduta moral é tanto uma conduta
pessoal do ser humano quanto de grupos sociais, dos quais os atos
dele têm um caráter social, porém decisório liberto e capaz de
raciocinar de maneira consciente, ao passo que o papel social da moral
tem como pressupostos a normalização das relações entre seres
humanos na relação mútua entre indivíduos e a comunidade. Sendo
assim, cada ser humano, tendo uma conduta moral, é submetido ao
que é estabelecido como princípios, valores ou normas morais. Ou,
nas palavras de Kant (2013), o homem como consciência cognoscente
ou moral suscitada é, a priori, um ser ativo, criador e legislador, tanto
na perspectiva do conhecimento quanto no da moral. Apesar disso, o
ser humano pertence a um período específico e a um determinado
grupo de pessoas.
Enfatiza-se, para tanto que a moral acontece mediante dois
níveis: o normativo e o factual, nos quais há uma perspectiva de
normas e princípios que tendem a regulamentar o comportamento do
ser humano e, por outro prisma, um conjunto de atos humanos
regimentados pelo mesmo, submete-se assim a uma imposição
prática. No entanto, a mais importante característica da moral deve
ser investigada consequentemente tanto num plano quanto no outro
e daí a necessidade de analisar o comportamento moral dos seres
humanos, mediante atos concretos. No mais, a diferença entre moral
64
e moralidade estabelece uma simetria explícita entre o normativo e o
factual. Em vista disso, a moral propõe-se a converter-se em
moralidade, em função da imposição de concretização que está no
fundamento do respectivo normativo, ou seja, a moralidade e a moral
em ação da práxis, a moral prática e praticada.
Perspectiva educacional
No que tange à educação, o processo de ensino e
aprendizagem é um desdobramento da apropriação de valores sociais
e humanos adquiridos pela consciência ao longo da vida, perpassando
por inúmeras transformações sociais. Em vista disso, a educação tem
a responsabilidade de trabalhar racionalmente a consciência na
assimilação de valores sociais e humanos, sobretudo a maneira de
transmitir e apropriar- se do conhecimento para que o ser humano
seja capaz de comportar-se perante a sociedade. Por conseguinte, os
valores constituem um sentido e uma direção para a prática
pedagógica, visando constituir e estabelecer valores universais,
promovendo o bem-estar geral de toda sociedade. Ao mesmo tempo,
esses valores são sustentáculos da educação, mas não de modo claro
sendo um dos problemas pedagógicos, uma vez que tais valores
agrega aspectos culturais e sociais não constituindo como algo inatos,
pois eles não têm origem particular.
Destaca-se, portanto, de uma educação em que a ética pelo
viés da moral percorre um conjunto de saberes extraídos do estudo
do comportamento do ser humano, dado que as relações humanas
calcadas na virtude e na honestidade tendem a construir ambientes
positivos e verdadeiros, nas quais, para se tornar bom moralmente,
devem-se praticar atos benéficos a outros, pelo fato de não se
65
cultivarem comportamentos nocivos e tóxicos que possam impactar
negativamente o bem-estar físico e psicológico das pessoas. Assim, a
ética, por meio do comportamento moral, fundamenta o
questionamento e o julgamento sobre quais são os bons e maus valores
no relacionamento humano via axiologia, isto é, um vínculo com o
mundo dos bons valores, estabelecendo a relevância da ética no
processo educativo.
Nas palavras de Platão:
A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira
mais fácil e eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o
fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está
na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios
para isso (Platão, 2001):
A educação é, portanto, o fundamento do conhecimento
humano. Contudo, para que exista coerência nessa discussão, é
essencial constituir uma relação de empatia entre os atores
comprometidos no processo de ensino e aprendizagem, uma vez que
a educação se constitui como um ato de persuasão pelo
convencimento para se elevar à condição humana, pois tal debate deve
ser fundado no afeto e no respeito mútuo, através de um diálogo
horizontal que expresse a atividade humana e social respaldada pelas
experiências práticas, dado que a práxis ontológica simboliza a
singularidades essencial do processo de evolução do ser humano.
Ademais, no plano ideológico ao homologar ética no processo
educacional, seja no ambiente escolar ou em espaços de educação
informal, existe um grande obstáculo no segmento do ensino-
aprendizagem na busca de um hipotético comportamento crítico, o
que proporciona condições para o avanço do desenvolvimento social
66
e autonomia dos educandos, além de oferecer-lhes capacidades de
posicionamento mediante ações coletivas realizadas no cotidiano de
vida.
Para clarificar o pensamento na Antiguidade Oriental, a
educação passava a adotar as tradições como critérios e regras de
decisão, ao passo que o ensino era privilégio de uma classe dominante,
assim como o conhecimento da escrita era bastante restrito, devido ao
seu caráter sagrado e esotérico, resultando na exclusão da gigantesca
massa da população, que ficava restringida à educação familiar
informal.
Por sua vez, ao trabalhar a educação considerando seus
múltiplos usos e as funções intrapessoais, o processo educacional traz
consigo a oportunidade de o aluno pensar criticamente em como se
dão as relações sociais entre os seres humanos. Nesse sentido, o
procedimento educacional ao qual o indivíduo é submetido ao longo
da vida tem suma importância para o seu desenvolvimento pessoal,
assim como para o dos grupos sociais e de suas respectivas sociedades,
uma vez que a capacidade moral e intelectual do ser humano é fruto
da sua trajetória de vida e do seu conhecimento histórico ao qual os
indivíduos, dotados de instrumentos da cidadania, tornam-se
construtores de formas organizativas bem como a maneira de agir
perante a vida pública.
Nesse panorama, na medida em que o ser humano adquire
consciência, compreendendo a relevância da educação,
progressivamente transforma suas relações opressivas com a sociedade
de classe, uma vez que esse processo de desenvolvimento da
capacidade física, intelectual e moral visa promover a integração
individual e social. Em vista disso, a educação é o motor da
transformação social, imprescindível para que exista o equilíbrio e
67
para uma sobrevivência digna, assimilando a complexidade envolvida
nas relações com outros no âmbito do saber e da prática social, uma
vez que a educação se revela como um dever ético evidente em si
mesma.
A ética kantiana
No ponto de vista kantiano, a ética transgride a tradição
filosófica, uma vez que vincula, a todo o momento, a moral com algo
externo à capacidade de agir, no sentido de que os atos éticos são
necessários à vida em sociedade, assim como a religião e a felicidade,
ou seja, a funcionalidade da ação prática pelo viés da racionalidade.
Diante disso, para Kant, a ética fundamenta-se singularmente na
razão, na qual a forma de agir e as normas são determinadas pelo
prisma do interior para o externo, fundamentado desde o princípio
da razão humana, bem como na aptidão de gerar regras para os
respectivos atos. Ademais, a ética kantiana tem como pressuposto
uma ética formal e autônoma, que assegura a laicidade e a
independência da religião, mediante autonomia, além da
independência de normas e leis.
Mas, de modo mais geral, Kant parte do pressuposto da
autonomia da razão, ou seja, uma lei moral válida para a vontade de
todos os seres racionais, na qual os seres humanos são absolutamente
qualificados para se conduzirem racionalmente, por meio do dever via
auto coerção da razão e liberdade. Tal ideia faz com que o dever
desmorone a altivez e o amor próprio, pelos quais é considerado como
princípio supremo da plenitude da moralidade, uma vez que a ação
necessita ser sentenciada por si só. Isso significa dizer que o ser
humano tem naturalmente o potencial racional do que tem que ser
68
realizado ou construído em suas respectivas ações prático, ao passo
que a ética kantiana se fundamenta única e exclusivamente na Razão,
conciliando dever e liberdade do ser humano como resultado em si
mesmo e não como um meio.
Dada sua importância, segundo Kant, o dever é a maneira
ímpar para justificar uma admissível ação moralmente honesta, haja
vista que nenhuma outra justificativa, como a busca de benefícios, de
recompensa, de felicidade, de agradar a Deus, entre outras coisas,
satisfaz como norte para orientar o comportamento humano. Assim,
a ética kantiana, por ser exclusivamente formal, necessita apoiar um
dever para todos os seres humanos, considerando sua autonomia da
sua situação social, como também difere do seu conteúdo concreto,
que, por sua vez, por ser autônoma, contrapõe as morais heterônomas
em que a lei é a consciência externa.
Dada tal complexidade, a advindo do imperativo categórico,
Kant justifica ter identificado um meio de julgar se uma ação é moral,
na qual, para julgar a moralidade de uma ação, não se deve considerar
a história ou o contexto anterior à mesma, bem como suas possíveis
consequências, pois, ao redirecionar tudo o que é externo à ação, o ser
humano tem de averiguar se sua ação é justa e deve ser praticada. É
nesse sentido que, ao conceber o comportamento moral como
pertencente a um ser humano autônomo e livre, ativo e criador, Kant
é referência para a análise de uma filosofia ética na qual o ser humano
se caracteriza a priori, como ser laborioso, gerador e fecundo.
A priori, Kant parte do princípio da ética como o factum (o
fato) da moralidade, na qual o fato em si é incontestável. Por esta
postura, seguramente, é que o ser humano consegue ser cauteloso e
ajuizado de seus atos e tendo consciência do seu dever, uma vez que
consciência faz acreditar que o ser humano não depende de outrem,
69
ou seja, ele é independente. Portanto, o ser humano, na condição de
sujeito empírico, é marcado aleatoriamente pela razão teórica a qual
sustenta que não se pode ser livre, pois é necessário reconhecer a
premissa da razão prática, existindo um universo de liberdade inerente
ao ser humano como ser moral.
Nas palavras de Kant:
A maior perfeição moral do ser humano é: cumprir seu dever e,
decerto, por dever (de modo que a lei não seja apenas a regra,
mas também o móbil das ações). Ora, à primeira vista isso parece,
decerto, uma obrigação estrita, e o princípio do dever, com a
exatidão e força de uma lei, parece ordenar, para toda ação, não
apenas a legalidade, mas também a moralidade, isto é, a intenção
[Gesinnung]; na realidade, porém, também aqui a lei ordena
apenas buscar a máxima das ações, a saber, o fundamento da
obrigação, não nos impulsos sensíveis (vantagens ou
desvantagens), mas antes inteiramente na lei por conseguinte,
não ordena a ação mesma. (Kant, 2013. P. 170)
Sendo assim, o ápice da plenitude nos comportamentos do ser
humano é exercer sua obrigação sem ter dúvida da sua
responsabilidade, de modo que a norma não seja simplesmente a lei
positivada, mas sim a mobilidade das suas atitudes, configurando um
dever rigoroso, preciso e fundamentado na lei. Nesse sentido, o
objetivo maior trata-se de coordenar a totalidade do comportamento
e não simplesmente basear-se em posturas legalistas, valorizando os
princípios morais. Em outras palavras, a ideia, via prática, juntamente
com a norma, busca o verdadeiro modo de agir, o conhecimento, a
essência da responsabilidade, os estímulos afetivos, os benefícios e os
prejuízos, porém, a princípio, calcado em um ordenamento jurídico
com foco na práxis.
70
Na sociedade contemporânea, a ética de Kant é a fraseologia
da ética moderna, dado que, com o advento do movimento
humanista renascentista, em oposição à ética medieval, pressupõe que
o ser humano, bem como as expectativas dele, posicionam o homem
no centro do universo, isto é, as visões teocêntricas foram
gradativamente substituídas pelo antropocentrismo, no qual a razão
passa a ser mais importante que a fé. Em vista disso, a ética kantiana
retoma o ser humano como o centro das reflexões filosóficas,
instruindo-lhe um ponto de vista ético centralizado na autonomia
humana, além de valores intrínsecos à natureza humana. Interessante
ressaltar que, segundo, Kant (2013) Dever é aquela ação a que cada
um está obrigado. Ela é, pois, a matéria da obrigação, e o dever pode
ser o mesmo (segundo a ação), ainda que possamos ser obrigados a ele
de diversos modos.
Para tanto, na perspectiva marxista, manifesta-se historica-
mente como um princípio ético com o objetivo de esclarecer e realizar
um julgamento crítico das morais do passado. Concomitantemente,
coloca em destaque a sustentação teórica e prática de uma teoria
marxista da moral, na qual Marx buscou reconstruir o ser humano
real com base em abstrações, sob o aspecto material, tais como as
características da Ideia em Hegel, o eu pleno ou singular em Stirner,
e o homem na sua totalidade em Feuerbach. Tal compreensão é
expressa filosoficamente em vários períodos e por diversos autores,
originando conceitos e ideias relacionados ao campo da ética.
Cabe lembrar que as doutrinas éticas referentes a Kant e a
Hegel surgem cerceadas por um mundo social posterior à Revolução
de 1789, que, por sua vez, não vivenciou a instauração de uma ordem
social que se mostra segundo a natureza racional do homem. Ao
contrário, trata-se de uma sociedade que emerge e estimula uma visão
71
antagônica imensa, deflagrada nas revoluções sociais do século
passado e do presente.
Ética sob o prisma das Ciências Sociais
No campo das Ciências Sociais, a ética possui uma relação
intrínseca com as ciências que analisam as leis que orientam o
desenvolvimento e a estruturação da sociedade, investigando o
comportamento humano como ser social e assimilando diversas
relações sociais. Desse modo, a ética está intrinsecamente entrelaçada
com a forma de organização e com as interações entre os seres
humanos, as quais se enraízam profundamente no âmago dessas
estruturas sociais. Tais relações representam a maneira de organização
do tecido social, sintetizando o que determinada sociedade considera
correto e justo em um dado momento histórico, uma vez que as
estruturas sociais, instituições e organizações sociais desempenham
um papel fundamental nas ciências sociais, particularmente na
antropologia e na sociologia.
Do ângulo da sociedade, os atores morais, a priori, são seres
humanos concretos que pertencem a uma comunidade qualquer,
sendo que sua conduta moral é exclusivamente levada em conta
mediante suas relações com as outras pessoas. Então, esses atores
morais constantemente manifestam um aspecto subjetivo, intrínseco
e psíquico, fundamentado em razão de ser, em meio a estímulos e
atividades da consciência que visam a um propósito, designando
maneiras as quais selecionam diferentes possibilidades, fundadas por
um juízo de valores presentes no comportamento de alguém.
Vale ressaltar, todavia, que os problemas éticos são
caracterizados por um princípio geral, uma vez que se referem aos
72
problemas morais da vivência cotidiana, expressos e manifestados em
fatos concretos. Sendo assim, o problema de como agir em qualquer
situação concreta é uma questão prática de cunho moral e não teórico,
ao passo que a ética expõe um elo entre o comportamento moral e as
demandas das pessoas mediante seus interesses sociais. Ocorre,
decerto, que a correlação entre ética e educação na sociedade é
enigmática, pois tem extremidades opostas de uma mesma
construção, calcada em um universo mais afetuoso, mais saudável e,
ao mesmo tempo, parte do pressuposto de uma educação para a
cidadania.
Sob esse entendimento mais amplo, nas sociedades tribais, o
conhecimento era transmitido de geração em geração nas cerimônias
dos rituais mediante a prática das atividades diárias, “para a vida e por
meio da vida”, sem que alguém estivesse especialmente destinado à
tarefa de ensinar, das vivências diárias ou do cotidiano de vida,
qualificado como educação difusa. Por sua vez, na Antiguidade
Oriental, a educação passa a adotar as tradições como critérios e regras
de decisão, uma vez que o ensino era privilégio de uma classe
dominante, na qual, a priori, o conhecimento da escrita era bastante
restrito, devido ao seu caráter sagrado e esotérico, estando a gigantesca
massa excluída e restringida à educação familiar informal.
Diante desses pressupostos, as ciências têm como objetivo
interpretar a natureza da participação humana, destacando-se
especialmente nos inúmeros padrões de interação social específicos
entre os atores sociais, nos quais os seres humanos agem moralmente.
Para tanto, a Constituição Federal de (1988) coloca em seu
Art. 205 que:
73
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Brasil,
1988, Art.205).
O dispositivo constitucional deixa claro que a educação é um
direito de todos e um dever do Estado e da família, estimulado e
amparado pela sociedade, tendo como objetivo desenvolver o ser
humano para o exercício da cidadania, instruindo-o também para o
mercado de trabalho. Para tanto, qualquer ciência do comportamento
humano engloba várias disciplinas que exploram os processos
cognitivos com potencial para contribuir beneficamente para a ética,
como as ciências da moral. Ademais, a ética relaciona-se similarmente
com a economia política e outras ciências das relações econômicas,
nas quais o ser humano, ao longo do tempo, assume o processo de
produção.
No progresso da sociedade, a ética, enquanto ciência da
moral, tem como pressuposto, mediante um princípio ético, analisar
as práticas e o comportamento social do ser humano ou de algum
grupo de pessoas frente a algo controverso. Por outro prisma, também
deve-se considerar juízos que estejam em acordo com os valores
morais estabelecidos pela sociedade vigente, que consente ou reprova
moralmente seus atos.
Importante destacar que, a ética e a moral são temas os quais
necessitam ser trabalhados no ambiente escolar, tendo como
propósito orientar o comportamento do ser humano em determinada
sociedade. Á vista disso, a escola é uma instituição responsável pela
real formação de cidadãos, dispondo da competência e a
responsabilidade de ensinar o comportamento ético e moral aos seus
74
educandos. Segundo Freire (1996), o respeito à autonomia e à
dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que
podemos ou não conceder uns aos outros.
Enfatiza-se, para tanto, que a ética é um conjunto
universalizado de princípios, regras, normas e leis de convivência que
orientam o comportamento humano, uma vez que tanto os atos
quanto os juízos morais pressupõem determinadas normas, as quais
estabelecem o que se deve fazer e agir em relação ao próximo, isto é,
entre seres humanos que compartilham valores entre si, embasados
sob um mesmo regime político e econômico em um mesmo território.
Assim, a ética está intrinsecamente relacionada à definição da
moralidade e é instituída nos estabelecimentos de ensino com o
propósito de normalizar o bem-estar social.
Dada sua importância, a ética propõe observar as necessidades
do ser humano como indivíduo e membro da coletividade, ao passo
que é plausível instituí-la como norma em determinado contexto,
teorizando e refletindo no sentido de padronizar o que é correto, a
ética se constitui como uma Ciência normativa. Desse modo, as ações
práticas do ser humano são resultantes de suas posturas e atitudes
éticas, perpassando por períodos de profundos questionamentos sobre
ideias, valores e comportamentos desde os primórdios da
humanidade, tal que a realidade moral varia historicamente mediante
alteração recorrente de seus princípios e suas normas.
Perspectiva histórica da educação grega
Em Atenas, a principal cidade -Estado da Grécia Antiga,
considerada o berço da democracia, passou por inúmeras transfor-
mações ao longo dos anos, predominantemente em decorrência do
75
impacto de suas realizações culturais e políticas; transformações essas
caracterizadas por uma concepção educacional que valorizava a
formação física e intelectual, estruturando a educação como premissa
de formar homens políticos, visando à cidadania. Em vista disso, a
educação ateniense teve suma importância, ao passo que, em função
da sua complexidade, tornou-se matéria de amplas discussões ao
universalizar-se, suplantando os limites da polis, prezando contribuir
para a formação de seres humanos conscientes, com espírito
democrático e múltiplo, com uma capacidade de analisar e refletir.
Para Freire (1996), o discurso da globalização esconde, porém, que a
ética do mercado prevalece sobre a ética universal do ser humano, pela
qual devemos lutar bravamente em prol do bem comum.
Nesse sentido, a formação educacional em Atenas tem como
pressuposto o significado da existência humana, calcado em
princípios éticos de cunho moral e enviesados pela cultura e pela
política, sob a premissa de valores que regem o comportamento
humano em sociedade, tal que essas decisões só seriam possíveis pelo
uso da razão. Desde então, a educação ateniense é legitimada por
valores da igualdade e de justiça social, assim como a liberdade real
por meio da democracia efetiva e da dignidade humana, fundadas
exclusivamente na prática política, desenvolvendo as boas virtudes,
como a justiça, a sensatez e a serenidade, encontrando a satisfação
plena na existência humana, tornando-se plenos, bons e belos e felizes,
bem como participando das decisões da polis baseando-se em Platão
e Aristóteles.
Partindo desses pressupostos, a educação na Grécia Antiga
manifesta-se por um modelo pioneiro de educação de adultos, ao
passo que a educação grega era centrada na formação ampla do
indivíduo, abrangendo aspectos intelectuais, físicos e morais. Além
76
disso, a transmissão da cultura ocorria de forma coletiva através de
inúmeras atividades, como festivais, banquetes e reuniões, o que
contribuía para a formação social dos cidadãos. Essa abordagem
abrangente e coletiva foi uma característica marcante da sociedade
grega antiga e ministrada pela própria família, segundo a tradição
religiosa vigente, bem como buscava a formação integral, ou seja,
educar o corpo, a mente e o espírito, influenciando a maneira de
entender e compreender o papel da educação ao longo dos séculos.
Isso ocorreu através do debate intelectual a partir das atividades
relacionadas à cultura grega e à sua filosofia. Mas, atualmente, a
educação resguarda a ideia de utilidade social, como mecanismo de
transmissão do saber para transformar o ser humano individual e
coletivamente.
Verifica-se, além disso, que, na Grécia clássica, há uma
singularidade a qual não pode se desfazer entre a moral e a política,
entendendo a educação moral como uma transmissão de virtudes.
Trata-se, desse modo, da moral que não se limita em si mesma, pois
não se amuralha no santuário da consciência pessoal, uma vez que
pelo viés político o ser humano socializa seus valores em uma ação da
prática coletiva. Nas palavras de Freire (1996), o pensar certo
demanda profundidade e não superficialidade na compreensão e na
interpretação dos fatos.
De um modo geral, a sociedade ateniense da Grécia Antiga
define o ser humano como um ser político por natureza, denominado,
segundo Aristóteles, animal político, em decorrência da sua
participação nos assuntos da pólis, ou seja, ele tem, por inerência, a
necessidade do convívio social. Assim, ao reconhecer tal dependência,
cada cidadão deve se responsabilizar pela Polis, uma vez que as
virtudes morais do indivíduo somente podem ser alcançadas com sua
77
participação comunitária, na qual a educação, por meio da prática
constante, se converte em hábitos os quais paulatinamente promovem
a cidadania.
Dessa maneira, Atenas foi um centro artístico, econômico,
intelectual e cultural da Grécia Antiga. Ocorre, decerto, que as
instituições atenienses se preocupavam em desenvolver um equilíbrio
entre a mente e o corpo. Ademais, o que se pensava na Antiguidade é
dissociado da Modernidade, como proposto por Kant e Maquiavel,
inclusive pressupondo a existência de ideias contraditórias.
Por outro lado, em Esparta, a educação era profundamente
relacionada ao caráter militarista que a sociedade e o governo
tomavam naquela época, visando formar soldados fortes, valentes e
capazes para a guerra. Consequentemente, as atividades físicas eram
muito valorizadas, priorizando a formação de bons guerreiros, ao
passo que a educação era resultado da grande influência ideológica
militar. Para tanto, desde a mais tenra idade, a formação do indivíduo
era legitimada como um papel a ser obrigatoriamente assumido pelo
próprio Estado, tornando a educação pública e obrigatória, nas quais
os espartanos viam cada nova pessoa como um soldado em potencial.
Ademais, em Esparta, os sensos crítico e artístico não eram
valorizados, haja vista que os jovens estudantes eram doutrinados a
obedecer a ordens dos superiores e discursar apenas assuntos
relevantes. Interessante é que as mulheres espartanas dispunham de
uma educação própria, com o intuito de formar esposas e mães
saudáveis ou sãs, além de incentivá-las a participar de atividades
esportivas e torneios. Em vista disso, a atribuição deste modelo de
educação para as meninas era formar mulheres saudáveis e vigorosas,
objetivando futuramente, dar à luz a soldados saudáveis e fortes para
78
Esparta. Em linhas gerais, a educação buscava conciliar a saúde física
e o debate filosófico.
Diante de tantos motivos, na Grécia da Antiguidade, a
educação fundava-se na premissa de que o significado da existência
humana era tornar-se íntegro, completo e contente, além ter
participação ativa nas decisões políticas da polis. Desse modo, a
Grécia antiga, com toda a sua organização política, teve a
possibilidade de se dedicar com maior intensidade ao processo
educativo. Enfatiza-se, portanto, que conhecer a Educação grega é
primordial para compreender a organização social da época.
Portanto, o processo ensino e aprendizagem é fundamentado
na ética, mediante um processo de aquisição de valores sociais vigentes
no seu tempo, os quais sempre estiveram relacionados à formação de
um grupo de pessoas estabelecendo uma certa organização social e
incorporando valores para auxiliar a interação social dos seres
humanos que, até então, não detinham tais valores. Logo, em linhas
gerais, a educação é uma socialização ética, justificada no universo das
ações humanas e, nesse caso, a necessidade desses valores parte do
pressuposto de que seja um bem social, dado que o valor social está
correlacionado à ideia do direito de todos, pelos quais partem da ideia
do contrato social, sendo uma fase política da ética para beneficiar
todos os integrantes, tantos os particulares, bem como toda a
sociedade, isto é, um contrato multilateral. Essa forma de organização
social e de ação política denomina-se democracia.
Considerações Finais
A temática da educação e da ética remonta à própria gênese
da educação compreendida no sentido maior de Paideia. Em outras
79
palavras, objetiva educar para a humanização em seu constante estado
daquilo que está por vir, possibilitando transformar-se.
Nesta relação, a ética está relacionada à nossa convivência
segundo os projetos educacionais orientados para essa finalidade,
pressupondo a crença da compreensão pelos símbolos do bom senso,
da razão e da civilidade, os quais tornam os seres humanos capazes de
relacionar uns com os outros, ensinando a tolerância e a civilidade
no ambiente escolar sobre o prisma da educação formal e informal,
uma vez que não existe ser humano sem experiência de vida, mesmo
porque a convivência é essencial, pois a educação nos desenvolve
eticamente, visando à harmonia entre os indivíduos.
Cabe salientar, ainda que, a priori, a aprendizagem formal dos
valores éticos somente acontece mediante relações humanas, na qual,
desde a mais tenra idade, o ser humano é estimulado pelo convívio
social a entender o que é certo ou errado, partindo do pressuposto
que, na idade adulta, as pessoas já sabem tais valores.
No plano histórico, a educação, por meio do processo
pedagógico, tem como pano de fundo preservar a ideia da função
social como mecanismo de transmissão do saber, apto a transformar
o ser humano no plano individual e coletivo, preparando-o para o
exercício da cidadania. Assim, a educação tem como premissa o
exercício prático da cidadania, caracterizado como um processo
interativo de cunho pessoal e público, usando recursos como a
reflexão e a ação sobre a construção do próprio conhecimento e da
tomada de consciência por cada ser humano e pela sociedade.
Pressupõe-se, portanto, que o objetivo geral da educação é o
dever ético, calcado na cidadania mediante processo constante de
desenvolvimento das faculdades físicas, intelectuais e morais, processo
esse intrínseco à vida de todos, como também específico à condição
80
da espécie humana, na qual, segundo os gregos, o ser humano não
nasce humano, mas se torna humano por viver entre humanos, tal
que compreendem que os indivíduos instituem-se como seres
humanos em razão da produção de uma natureza a qual é resultado
das atividades de seus anseios em benefício próprio, mediante a
cultura.
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FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2009.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
81
KANT, Immanuel, 1724-1804. Metafísica dos Costumes.
Tradução [primeira parte] Clélia Aparecida Martins, tradução
[segunda parte] Bruno Nadai, Diego Kosbiau e Monique Hulshof.
Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2013.
KOSBIAU e Monique Hulshof. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança
Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2013. – (Coleção
Pensamento Humano).
KANT, Immanuel. “Resposta à pergunta: Que é esclarecimento?”.
In: Textos Seletos, Petrópolis: Vozes, 1974.
MARX & ENGELS. Textos sobre educação e ensino.o Paulo:
Moraes, 1983.
MÉSZÀROS, István. A educação para além do capital. São Paulo:
Boitempo, 2005.
PLATÃO. A República. Rio de Janeiro: Martin Claret, 2001, p.
213- 214.
82
83
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3.p83-102
Capítulo 4
Ética, educação e formação de professores/as
Cristina Miranda Duenha Garcia Carrasco
12
Introdução
Atualmente a população encontra-se diante de um elevado
processo de transição entre o período pandêmico e o “novo normal”
as pessoas estão preocupadas com o que gera empregos, rendas, mas
por outro lado acaba gerando a degradação moral e ética e
consequentemente acarreta danos à qualidade de vida humana, com
os ânimos e egos exacerbados (o que deveria ter mudado durante/com
a pandemia e ser mais empático) o ser humano não vem sendo
respeitado. É importante considerar a ética e a moral, visto que a
profissão docente tem passado por uma degradação, uma
desvalorização. Como o professor trabalha com seres humanos isso
repercute sobre ele próprio, sobre seus conhecimentos, sua identidade
e experiências profissionais.
Estamos diante de um cenário complicado, pois, a
conscientização de cidadãos capazes de exercerem a cidadania em
relação a ética é deficitária. Infelizmente por maiores empenhos a
12
Graduada em Pedagogia e Mestranda em Educação na Unesp, Campus de Marília. E-mail:
cristina.mdg.carrasco@unesp.br
84
população brasileira não consegue uma educação de qualidade como
deveria ser de fato. Diante dessa problemática evidencia-se que existe
uma forte relação entre a população vigente que deseja essa educação
de qualidade e não valoriza o professor. Essa reflexão parte do
pressuposto de que os estudantes não estão sendo preparados da
maneira como deveriam para o exercício da cidadania, embora o
esforço do professor seja frequente. Esse fato pode ser corroborado
com estudantes que não estabelecem uma boa relação com as questões
éticas e a “dificuldade de uma sociedade que contemple cada um sem
renunciar aos interesses coletivos” (Bocca; Caropreso, 2011). Vamos
buscar compreender os impactos na educação e na vida dos
professores e alunos através da ética em Aristóteles.
A cidadania pode ser estimulada por meio do educar e
vivência da Ética na educação, pois, busca promover a participação de
cidadãos ativos e sujeitos críticos capazes de lutarem unidos por seus
direitos na polis. Diante desse fato, no pensamento aristotélico a
política, a ética e a educação têm um objetivo, todo ser humano se
preocupa em fazer algo e dar o seu o melhor com uma finalidade, o
ser humano se preocupa e procura fazer o bem para si mesmo e para
o outro. A ética é quando a ação humana está preocupada com um
bem para si mesmo, quando procura a melhor forma de viver e ter
felicidade.
Sendo assim, existem questionamentos relacionados no
conceito de ética e de felicidade no ambiente escolar, bem como se
houve a contribuição da ética na educação, sendo essa como foco na
formação de cidadãos conscientes em busca de respeitarem o próximo
e a si mesmos. Diante o exposto, a abordagem deve pautar-se na ética
em Aristóteles, como forma de estabelecer as relações na sociedade.
85
Esse trabalho abordará aspectos relacionados à ética e à
educação, qual a relação entre a ética e as virtudes em Aristóteles até
os dias atuais.
A metodologia empregada será por meio de referências
bibliográficas nas mais diversas plataformas, Scielo, periódicos Capes,
livros, artigos, relatados e estudados por diversos autores especialistas
na área.
Ética em Aristóteles
A palavra ética vem do grego ethos que significa 'costumes'. A
palavra moral significa costumes e tem origem latina. Seria os
costumes de um povo, seria o caráter social de um povo. Embora com
acontecimentos políticos, sociais e econômicos mundiais mostrem a
falta da ética. Mas o que é isso?
“Ética é a ciência do comportamento moral dos homens em
sociedade. É uma ciência, pois tem objeto próprio, leis próprias e
método próprio, na singela identificação do caráter científico de um
determinado ramo do conhecimento”. (Nalini, 2009, p.19)
No contexto escolar, Ética não faz parte do currículo básico
da educação embora tenha sido discutida algum tempo atrás para que
fizesse parte do currículo, talvez apareça como Educação moral, a ética
que tem como objetivo estabelecer relações e trabalhar em prol da
formação de identidades multiculturais e valores entre o homem e
diversos outros assuntos para reflexão numa perspectiva
de educação para a cidadania e nas relações interpessoais. No ensino
fundamental a palavra ética não aparece, mas os valores, atitudes e
processos de comunicação e vida em sociedade são ensinados
diariamente desde a educação infantil.
86
Diante disso, cabe refletirmos sobre alguns questionamentos
tendo em vista a importância da ética em busca de um pensamento
crítico e humanístico, o que então é a Ética? O que ela faz enquanto
ciência? Qual a importância para a sociedade?
Diversas definições existem acerca do que é ética, mas no
dicionário “filos parte da filosofia que estuda os valores morais e os
princípios ideias de conduta humana, conjunto de princípios morais
que devem ser respeitados no exercício de uma profissão” (Pasquale,
2009, p.258).
O ser humano não nasce com ética, mas ela é aprendida
durante a vida, na observação no convívio com a família e com a
sociedade, aprende respeito, honestidade e justiça (que infelizmente
não acontece em algumas esferas da sociedade) os princípios éticos são
aprendidos por meio do processo na Educação. Os professores não
têm formação neste sentido, os docentes da educação básica
(educação infantil e fundamental) formados nos cursos de magistério
e de pedagogia não tiveram uma disciplina sobre o tema, mas ensinam
estes preceitos na prática em sala de aula.
Segundo Nalini (2009, p. 16) é essencial reconhecer que
nunca foi tão urgente, reabilitar a ÉTICA em toda a sua compreensão.
Pois a humanidade se encontra em uma crise de ordem moral,
refletidos na violência, na exclusão, no egoísmo e na indiferença pela
sorte do semelhante, assentam-se na perda de valores morais.
A ética está ligada a ação das pessoas, para o método
aristotélico o sentido da vida consiste em buscar e investigar a ação
humana que necessita orientar-se por um conjunto de valores e
virtudes, as quais descrevem, possibilitam e realizam a felicidade
humana, permeada pelo ideal da justiça e pelo vínculo ético da
amizade. A ética aristotélica tem:
87
A finalidade da ética é descobrir o bem absoluto, a meta
definitiva, que é ponto de convergência e chegada e não pode ser
ponto de partida de mais nada. O bem é a plenitude da essência.
O homem busca naturalmente a essência e consegue uma
felicidade imperfeita, na também falível hierarquia de bens que
estabelece para si. Só será plenamente feliz quando atingir o bem
supremo. Esse é o bem absoluto ou a verdadeira felicidade. Para
alcançá-la, há de se contemplar a verdade e aderir a ela. (Nalini,
2009, p. 51)
Neste quesito, ultrapassar ou romper a maneira de pensar
fragmentada, a ética é um dever, uma obrigação, um compromisso
posto com base na integridade humana. Ainda, a ética, como ciência,
admite tantas classificações quanto às escolas, as ideologias ou as
correntes de pensamento existentes.
De acordo com os conhecimentos relacionados em torno dos
conceitos Aristóteles parte do princípio geral que cada um tem em si
mesmo a causa motora de seus atos, e a possibilidade ou não de
realizá-los. A ética nos ajuda na distinção entre o certo e o errado.
É digno de nota que a ética tem por objeto a realização que se
traduzem na consecução de bens (virtudes) que levam a felicidade ou
se aproximar dela, na tentativa de superar os desacordos da ética, os
esforços estão favorecendo a atuação reflexiva e a compreensão dos
problemas do ambiente escolar.
Virtude e felicidade
O ser humano está sempre em busca da felicidade, seja na vida
pessoal ou profissional. Tudo que fazemos tem um objetivo, por
exemplo, comer para nutrir o corpo, estudar para saber mais sobre um
assunto e ensinar, como é o caso dos professores, em constante
88
formação para ensinar melhor e com isso ter prazer e felicidade com
sua profissão, a finalidade do ser humano nesta terra é ser feliz. Mas,
como se encontra ou chega a ter felicidade?
A palavra felicidade vem do grego Eudaimonia, que se refere
à concepção de ética e felicidade como finalidade moral. A ética para
Aristóteles é o homem fazer uso racional e fazer escolhas para o bem
ou para o mal e a partir de seus atos desenvolve as virtudes que são o
meio utilizado para conseguir a felicidade, que é um exercício diário
durante a vida.
Mas, o que é a virtude? A virtude é uma disposição de caráter
e está vinculada a uma disposição de escolha de fazer ou não a ação.
Para Aristóteles a virtude significa ação, uma prática e não uma
natureza e só depende da própria pessoa. A virtude diz respeito às
paixões e o meio termo são o equilíbrio entre o excesso e a ausência
de algo. “O homem virtuoso, portanto, é o homem ativo, que
aprendeu pela prática a desempenhar um papel social dentro da sua
comunidade; ele é o homem político”.
A felicidade é um bem que junto com as virtudes pode ser
vivido tanto de maneiras no coletivo ou individual se houver
convivência harmoniosa no espaço da escola, da cidade e da família é
possível ser feliz tendo uma vida equilibrada.
Aristóteles parte do princípio geral que cada um tem em si
mesmo a causa motora de seus atos, e a possibilidade ou não de
realizá-los [...] de tal forma que a ação possa depender da escolha
consciente e voluntária. (Ramos, 2011, p. 35)
As noções básicas de educação, respeito ao próximo a
responsabilidade por seus atos de acordo com cada faixa etária, a
solidariedade e interesse pelo estudo vem da família, mas o modelo
89
principal é a conduta da família, o exemplo observado que
incorporada aos valores da convivência social e a reciprocidade da
condição a coexistência social, no coletivo.
A ética tem por objeto a realização de bens que se traduzem na
consecução de bens (virtudes) que levam a felicidade que é de
ordem individual [...] a cidade (pólis) constitui uma forma de
comunidade que representa o ponto culminante no processo de
realização dos fins comunitários que começa com a família
(Ramos, 2011, p.36;38.)
A partir da convivência no coletivo se compreende que a
escola é importante para a construção da cidadania e serve de
mediadora entre os alunos e outros sujeitos envolvidos com a
educação.
A escola é o lugar de convivência coletiva e social entre
educandos e educadores, onde as ações pedagógicas têm finalidades
de ensinar os princípios e a cidadania, é onde se efetiva a vivência e
onde se desenvolve a amizade. Para Aristóteles (Ramos, 2011, p.43)
No que diz respeito à amizade, é ela que produz o desejo de viver
junto [...]. Na polis a amizade significa a repartão da vida em
comum com os outros (solidariedade) de tal sorte que faz parte
da felicidade ao prazer da companhia.
Sendo assim, a amizade é essencial para a felicidade, por meio
da obra Epicuro sobre a carta da felicidade é possível observar que
devemos “cuidar das coisas que trazem felicidade” e compreender que
todos os indivíduos são um ser natural, social e histórico, de modo
que necessitamos compreender que o ambiente escolar, familiar e o
social são inseparáveis da vida humana.
90
Educação e formação de professores
É perceptível que a educação é foco, não apenas no Brasil, mas
no mundo todo, pois, busca-se consolidar a busca de soluções para os
problemas como a pobreza, saúde, igualdade de gênero, promover a
paz e a estabilidade mundial.
Durante o regime do presidente Getúlio Vargas de 1937 a
1945, o Estado Novo regulamentou as políticas públicas
educacionais, mediante a Lei Orgânica de Ensino. Deu-se origem a
Lei Orgânica do Ensino Normal (Decreto lei 8.530 de 1946),
aprovada pelo Congresso Nacional depois de uma longa gestação de
onze anos. Com a Constituição de 1946, o Ministério da Educação e
Cultura passava a exercer as atribuições de Poder Público Federal em
matéria de Educação.
A Constituição de 1946 proclamava a educação como um
direito de todos o ensino primário para todos com sua gratuidade nas
escolas públicas. Ingresso no magistério através de concurso de provas
e títulos. Fornecimento de recursos por parte do Estado para que o
direito universal de acesso à escola primária fosse assegurado,
buscando-se, desta forma, a equidade social.
A Lei Orgânica de 1946 organizou o ensino, e regular a
articulação com os demais tipos de níveis do ensino, mas nesse
período havia o autoritarismo no país e não houve diálogo sobre o
tipo de alcance da lei e objetivo. Houve a reorganização do ensino
primário e regulamentação do Ensino Normal.
Entendemos por educação os processos por meio dos quais o
indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos,
habilidades, atitudes e competências voltadas para o bem de uso
91
comum e é um componente essencial e permanente da educação
nacional com intencionalidade para as vivências.
A educação assume um papel cada vez mais desafiador,
demandando a emergência de novos saberes para apreender processos
sociais cada vez mais complexos e riscos que se intensificam ou
esbarram na manipulação e limites impostos pela alienação dos seres
humanos, fazendo o fato de investir na construção de um projeto
educacional seja apenas uma prática de resistência. (Severino, 2011).
Houve então um sistema de ensino e não mais vários sistemas
estaduais. No currículo predominavam as matérias de cultura geral e
a formação específica para o ensino era no último ano para o primeiro
ciclo e eram chamados de regentes de ensino, foi por muito tempo
em muitos locais o único fornecedor de pessoal docente qualificado
para o ensino primário, já no segundo ciclo era mais diversificado e
especializado com ênfase nos fundamentos da educação, sendo mais
técnico, ou seja, profissional e eram chamadas de normalistas.
Em 1961 com a primeira Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (Lei 4.024/61) não apresentou mudança significativa na
estrutura de ensino das licenciaturas, tendo regulamentado apenas o
seu funcionamento e controle. (Tanuri, 2000). E não trouxe soluções
inovadoras para o ensino normal, conservando a organização anterior,
a Lei orgânica de 1946 organizou e a Lei de 1961 permaneceu com a
mesma estrutura, mas os nomes mudaram, de 1961 até 1965 passou
a ser Curso de Formação de Professores, mas o ensino normal
permaneceu como local de preparação dos professores primários do
ensino obrigatório (de 1ª a 4ª séries) e continuou com o seu sistema
dual. Mudaram as nomenclaturas, mas a duração e formação
continuaram as mesmas.
92
Durante a década de 1960 surgem os Cursos Normais
noturnos e começa a decadência do Ensino Normal com a má
qualidade na formação, os cursos noturnos seguiam o currículo e
estrutura dos cursos diurnos, mas os discentes tinham dificuldades em
realizar os estágios necessários para a formação prática. Houve um
excesso de professoras primárias normalistas no Estado de São Paulo.
Começou a descaracterização do preparo profissional dos normalistas
que passou de um curso de dois níveis exclusivo de formação de
professores para um curso secundário de caráter geral com algumas
disciplinas específicas.
Na época da ditadura, por volta da década de 1970,
acreditava-se que haveria o crescimento e o desenvolvimento da
economia, de forma igualitária socioeconômica, nos níveis mundiais,
ou seja, nacionalmente e internacionalmente.
A Lei 5692/71 teve a profissionalização ou a formação para o
trabalho muito discutida, uniu os ramos do ensino médio, fundiram-
se: o ensino secundário, o ensino normal, o ensino técnico industrial,
comercial e agro técnico, essa lei generalizou e obrigou a
profissionalização para tentar eliminar o dualismo entre a formação
acadêmica de preparação para estudos superiores e a profissional.
A educação passa a ser compreendida como um investimento
em capital humano individual para a competição por empregos
disponíveis. A Lei tornou o ensino profissionalizante universal e a
formação para a qualificação para o trabalho. Nesse período iniciou o
que temos até hoje, dois tipos de escolas: escola pública para a
preparação para o mercado de trabalho destinada aos pobres e a escola
privada com educação propedêutica que prepara a elite para o
vestibular e entrada nas universidades.
93
A reformulação do Ensino Normal resultou na criação da
Habilitação Específica do Magistério, mas, não reverteu o processo da
perda do prestígio social dos cursos de formação de professores
primários. Entre os anos de 1966 até 1976 a nomenclatura mudou
para Curso Colegial de Formação Profissional de Professores
Primários e em 1977 até 1979 mudou para Curso de Habilitação
Específica para o Magistério de 1º Grau com Aperfeiçoamento para
Pré Escola.
A Lei 5692/71 estabeleceu as diretrizes para o 1º e 2º grau,
contemplou a escola normal no bojo da profissionalização obrigatória
adotada para o segundo grau. A escola normal perdeu o status de
escola e de curso transformada em Habilitação Específica para o
Magistério (HEM). Desapareceram os Institutos de Educação e a
formação de especialistas e professores para o curso normal que passou
a ser feita nos cursos de Pedagogia. A habilitação magistério do ensino
de segundo grau, regulamentada em 1972, substituiu a escola normal
tradicional.
Em cursos de habilitações específicas houve a possibilidade do
fracionamento do curso em habilitações específicas em três ou quatro
séries, para escolas maternais e jardins de infância, em 1ª e 2ª séries,
3ª e 4ª séries. A fragmentação do curso refletiu a tendência tecnicista,
a HEM reduziu a carga horária das disciplinas pedagógicas e assim
aconteceu a descaracterização da escola normal nesse período, pois
passou a ser uma opção com classes maiores no período noturno,
redução das disciplinas de instrumentação pedagógica e fragmentação
do currículo, devido à baixa procura houve o fechamento do curso. A
formação do magistério primário em escolas normais foi destruída.
A LDB 9394/96 foi cenário de conflitos de interesses,
passaram-se oito longos anos, mas, não conseguiu resolver os
94
problemas da educação brasileira. A LDB 9394/96 fez a Licenciatura
curta deixar de existir e estabelecer que a formação docente para atuar
na educação básica deveria ser em nível superior, em curso de
licenciatura, de graduação plena. Em 1996 os professores precisavam
ter licenciatura plena em Pedagogia e os professores se formavam para
ser polivalentes. Para a formação geral para o ensino médio há um
formato único, mas, as escolas têm autonomia e liberdade para a
construção de seus currículos desde que atendam aos interesses de
aprendizagem.
Isso foi uma polêmica pois muitos docentes com anos de
magistério tiveram que voltar a universidade para se adequar e não
“perder” o cargo que exerciam.
Uma inovação importante que surgiu com a LDBN de 1996:
a criação do Curso Normal Superior. Pela Lei (9.394), foram criados
o Curso Normal Superior e os Institutos Superiores de Educação que
deveriam manter os cursos formadores de profissionais da educação
básica com o curso normal superior. O professor saído do Curso
Normal Superior teria o direito de cuidar da educação infantil e das
primeiras séries da educação fundamental, ou seja, as primeiras séries
da educação básica. A criação dos Institutos Superiores de Educação
com a finalidade de formar professores em nível e qualidade superior
significa retirar as licenciaturas da condição de apêndice dos
bacharelados e colocá-las na condição de cursos específicos,
articulados entre si, com projetos pedagógicos próprios e com a
política de formação de professores de cada instituição, explicitada no
seu projeto global.
Para Saviani introduzir como alternativa aos cursos de
pedagogia e licenciatura os institutos superiores de educação e as
Escolas Normais Superiores, a LDB sinalizou a política educacional
95
de fazer um nivelamento por baixo, pois os institutos superiores de
educação emergem como instituições de nível superior de segunda
categoria, com uma formação aligeirada e mais barata, por meio de
cursos de curta duração. Seriam os institutos paralelos a universidade.
(In)felicidade na formação de professores
Ao abordar o conteúdo de educação e formação de professores
deve-se ter em mente que os dois conteúdos estão interrelacionados,
sempre focando nas ações para o bem da sociedade, em busca de
formar cidadãos capazes de interpretar o mundo.
É perceptível que a educação passou por várias mudanças,
busca-se consolidar a democracia e garantir o direito à educação.
O termo “Educação” tem um sentido abrangente. Fala-se em
educação formal, educação não-formal, educação continuada,
educação a distância, educação ambiental, educação sexual etc.
Sob o ponto de vista legal, educação tem, quase sempre, sentido
limitado. Na legislação anterior, por exemplo, era sinônimo de
ensino. Seja de ensino regular, seja de ensino supletivo. Portanto,
referia-se, sempre, à educação formal. Embora a lei estatuísse que
poderia ser dada no lar e na escola, de fato, a ação educativa
verdadeiramente "certificada" pelos cânones legais era aquela
encorpada na modalidade ensino. (Carneiro, 2007, p. 31).
A Lei de Diretrizes e Bases - Lei 9.394/96, art. 66-prevê a
preparação para o exercício e prevê uma formação do docente.
Ao escolher uma profissão se procura fazer o que gosta ou
tem afinidade, para o ofício docente no magistério primário em
alguns casos existe as condições culturais, econômicas e sociais que
contribuíram para a escolha profissional. Em alguns casos motivos,
96
valores e sentimentos, o discurso da “vocação” ou influências da mãe
sobre a escolha.
A escola formadora das futuras profissionais tinham certa
precariedade no currículo predominavam as matérias de cultura geral
e a formação específica para o ensino era no último ano para o
primeiro ciclo e eram chamados de regentes de ensino, foi por muito
tempo em muitos locais o único fornecedor de pessoal docente
qualificado para o ensino primário, já no segundo ciclo era mais
diversificado e especializado com ênfase nos fundamentos da
educação, sendo mais técnico, ou seja, profissional e eram chamadas
de normalistas.
Os professores que vinham da escola normal secundária e
faziam cursos de especialização no Instituto de Educação podiam
tornar-se diretores de Grupo Escolar, Inspetores do Ensino e
orientadores escolares. As iniciativas anteriores a lei para o Instituto
de Educação era para oferecer formação especializada para diretores e
inspetores do Ensino Primário, após a lei deveriam oferecer cursos de
especialização em áreas como educação especial, preparar professores
do Ensino complementar primário e do Ensino Supletivo. Como
ofereciam formação em nível mais elevado, a legislação determinou
que os professores dessas instituições deveriam ter formação em nível
superior. (Vicentini e Lugli, 2009; Tanuri, 2000).
Não se trata de uma exclusividade da profissão docente, mas
as mazelas, os baixos salários, as condições precárias de trabalho
encontrados no cotidiano, nas relações estabelecidas de classes e o
desprestígio e a desvalorização surgiram.
Durante a década de 1960 surgem os Cursos Normais
noturnos e começa a decadência do Ensino Normal com a má
qualidade na formação, os cursos noturnos seguiam o currículo e
97
estrutura dos cursos diurnos, mas os discentes tinham dificuldades em
realizar os estágios necessários para a formação prática. Houve um
excesso de professoras primárias normalistas no Estado de São Paulo.
Começou a descaracterização do preparo profissional dos normalistas
que passou de um curso de dois níveis exclusivo de formação de
professores para um curso secundário de caráter geral com algumas
disciplinas específicas. Alguns dos problemas que contribuíram para
a má qualidade dos cursos foram: o despreparo dos estudantes que
vinham de qualquer curso profissionalizante de primeiro ciclo ou
ginásio, a baixa exigência de instituições em relação ao nível de
conhecimento para a diplomação e a falta de articulação entre as
disciplinas que faziam parte do currículo.
Há um questionamento relacionado aos docentes dentro da
escola, desde o momento em que se insere o futuro professor durante
a sua formação e depois atuando na sala de aula, relatam seu
descontentamento relacionado ao seu conceito de lidar com alunos.
Já outros marcados pelas contradições entre os princípios teóricos e a
prática e a organização do seu trabalho “resulta em que sua prática
seja mesclada de representações sobre os elementos que as envolvem”.
(Assunção, 1996).
Existe uma relação direta entre a prática e as estratégias:
A prática é mesclada não só dos conhecimentos adquiridos pela
professora, mas de algo mais, que normalmente é esquecido pela
escola: as representações que ela tem dos alunos, do
conhecimento, da profissão, da sociedade, das instituições e de
suas funções. Enfim são as representações que vão dar sentido
as práticas cotidianas e contribuir nas escolhas e opções quanto
ao tipo de aula, as estratégias, às relações com os alunos e às
98
posturas diante do trabalho desenvolvido. (Assunção, 1196, p.
63)
O entendimento; o domínio do conteúdo, que dá origem às
técnicas, às ferramentas de trabalho, aos modos de produção, às
relações sociais, às instituições, às decisões; e a percepção, ideologia,
memória, valores e ideias.
Sendo assim, as professoras, deparam-se com um novo termo
e reconhecem a necessidade de inovação na prática cotidiana que
passa a ser fonte de pesquisas e discussões.
Dentro do ambiente escolar os docentes devem trabalhar de
maneira a atingir a aprendizagem dos alunos referente as questões
com atividades pertencentes ao cotidiano da vida dos estudantes.
Diante o exposto a escola e os docentes não deve seguir o
mesmo parâmetro dos séculos passados, XIX e XX, sem acomodação
e saudosismo, mas precisa adequar o conteúdo, ao ambiente. Sempre
com o foco de formação de cidadãos autônomos em todos os sentidos,
principalmente o intelectual e ético, pois, é por meio desse que a
cidadania será exercida.
Tornar-se cada vez melhor professor não é impossível. Quem
gosta de ensinar ou aprecia o convívio com a juventude não
encontrará dificuldades em desobstruir os canais impeditivos de
uma eficiente transmissão do conhecimento (Nalini, 2009, p.
346).
Para ser professor é necessário paixão, amor estudar para saber
mais estar em constante formação para ensinar melhor para ter prazer
e felicidade com sua profissão.
99
Conclusão
A Ética e a Educação, são temas extremamente importantes
de serem abordados, pois, está intimamente ligado com a vida do ser
humano (na educação infantil e no ensino fundamental, com os
princípios pois não nasce com ética, mas ela é aprendida durante a
vida, na observação no convívio com a família e com a sociedade,
aprende respeito, honestidade e justiça). Ambas as frentes de estudo
estão voltadas para o estudo do problema no mundo todo.
Esta reflexão não é para apenas caracterizar o magistério entre
outras carreiras, a classe do magistério do ensino básico e fundamental
são a base da educação. Conseguiu-se, proletarizar o professor, hoje
mal remunerado, sem perspectivas de carreira, sem possibilidade de
continuar seus estudos e às voltas com classes cada dia mais
indisciplinadas e sem limites.
Enquanto não se conferir seriedade ao trato da educação, a
começar pela remuneração, seleção e reciclagem dos professores, não
haverá solução eficiente para muitos dos problemas brasileiros.
A sociedade não atingirá um nível ótimo de formação, “se a
educação não for alavancada por um conteúdo comunicacional [...]
fundado na dignidade da pessoa humana (Nalini, 2009).
Todas as disciplinas devem trabalhar o conteúdo de maneira
interdisciplinar para que o aluno possa observar a seriedade de exercer
a cidadania de maneira consciente, cuidando e preservando o
ambiente e o seu próximo, pois a finalidade do ser humano nesta terra
é ser feliz.
Esse trabalho, pautou-se apenas em uma parte introdutória
relacionado ao tema, no qual foi possível verificar que estudos estão
100
sendo realizados ao longo dos tempos, mas sem resultados
satisfatórios.
Referências
ASSUNÇÃO, Maria Madalena Silva de. Magistério primário e
cotidiano escolar. Campinas, SP: Autores Associados, 1996 (Coleção
polemicas do nosso tempo; v. 53).
BOCCA, F.V; CAROPRESO, F. Agressividade e relacionamento
social em Freud. In Ética e perspectivas Candiotto, C. organizador.
Champagnat, Editora -PUCPR, Curitiba, 2011.
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em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-
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Brasília, DF, 23 de dezembro de 1996. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_3/ LEIS/L9394.htm.
101
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Capítulo 5
Devir-escola:
por saberes queo se reduzam ao uno
Camila Rodrigues Batista Neta
13
Jessyca Eiras Jatobá Santos
14
Jaqueline Ferreira Rodrigues
15
Introdução
A filosofia de Deleuze e Guattari não está estagnada. Para
compreendermos tal movimentação, é necessário, desta forma,
utilizarmos de um local para que seja possível pensarmos
filosoficamente. Mas o que é a Filosofia, afinal? A filosofia é a criação
de conceitos. Criar. Toda criação precisa de uma dose de
inventividade; inventividade esta que não cabe somente ao “agora” e
nem ao “aqui”. Delineamos desta forma o que poderia ser uma
educação pensada em outro plano ou imagem do pensamento que
13
Licenciada em Pedagogia pela UNESP, campus de Presidente Prudente - SP (2019) e
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Filosofia e
Ciências, da Unesp, Campus de Marília. E-mail: camila.neta@unesp.br
14
Mestra em Filosofia e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, da
Faculdade de Filosofia e Ciências, da Unesp, Campus de Marília. E-mail:
jessyca.eiras@unesp.br
15
Mestra e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de
Filosofia e Ciências, da Unesp, Campus de Marília. E-mail: jaqueline.rodrigues@unsp.br
104
não por imagens dogmáticas do pensamento. O que objetivamos aqui
é conceber, por meio da geofilosofia, um novo modo de apreensão
educacional, que considere principalmente as possibilidades de
criação. Dito de outro modo, nos preocupamos em mapear novas
imagens de um pensamento que é múltiplo, que advém do
acontecimento e que se transforma permanentemente.
Para melhor compreensão é necessário explorarmos melhor a
noção do que seria a filosofia. Tal questionamento também título e
tema de um de seus livros é uma problematização tardia nas obras
dos autores. A última da parceria. “Talvez só possamos colocar a
questão: o que é a filosofia? Tardiamente, quando chega a velhice e
hora de falar concretamente”. (Deleuze; Guattari, 2010, p.7)
Constituir essa definição, no entanto, é reconhecer os seus múltiplos
campos, e, sendo assim, a sua própria terra e é neste sentido que se
estabelece, também, a noção de uma geofilosofia. Ora, como
afirmamos, a filosofia é a criação de conceitos, por definição:
O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um
acontecimento por vir. Os conceitos, neste sentido, pertencem
de pleno direito à filosofia, porque é ela que os cria, e não cessa
de criá-los. O conceito é evidentemente conhecimento, mas
conhecimento de si, e o que ele conhece é o puro acontecimento,
que não se confunde com o estado de coisas no qual ele se
encarna. (Deleuze; Guattari, 2010, p. 42)
Para tanto, esta criação se divide em três elementos: o plano
de imanência, o personagem conceitual e os conceitos. Primeiro, é
necessário pensarmos “Qual a relação do pensamento com a terra?”
(Deleuze; Guattari, 2010, p. 84) Para que um conceito exista, é
preciso a existência de um solo, que será o horizonte de produção; um
105
traçado onde habitará esta nova “definição”, produzindo, portanto,
uma geofilosofia. O horizonte de produção é o solo fértil onde a
conceituação (problematização) irá ocorrer, e nesta construção há a
delimitação de um território, pois esta construção não ocorre de
forma solta no pensamento. A movimentação, a historicidade e a
problematização dizem respeito ao personagem conceitual amigo e
rival do filósofo enquanto o conceito é a resolução de uma
problemática.
Em face do que indicamos, a geofilosofia consiste na própria
formulação etimológica do que seria a filosofia (Gallo, 2003):
Pensar se faz antes na relação entre o território e a terra. [...] a
terra não cessa de operar um movimento de desterritorialização
in loco, pelo qual ultrapassa todo território: ela é
desterritorializante e desterritorializada. [...] A terra não é um
elemento entre os outros, ela reúne todos os elementos num
mesmo abraço, mas serve-se de um ou de outro para
desterritorializar o território. [...] São dois componentes, o
território e a terra, com duas zonas de indiscernibilidade, a
desterritorialização (do território à terra) e a reterritorialização
(da terra ao território). (Deleuze; Guattari, 2010, p. 103)
Isto posto, nos colocamos a problematizar e percorrer esses
caminhos. Propomos operar por deslocamentos no que está posto
para a filosofia e realizar esse encontro com a educação, tomando
como tarefa: desbravar conhecimentos e, sobretudo, nos reconhecer
neles e traçar o nosso próprio território. Sendo assim, pontuamos que
sob esse olhar, debruçamo-nos sobre a escola, não como uma
instituição de ensino, mas como espaço das relações de saberes. Não
é uma tarefa simples e, por isso mesmo, é uma construção constante.
Não seria certo, no entanto, pensar em aperfeiçoamento, e sim, em
106
desterritorializações que ocorrem, muitas vezes, involuntariamente.
Que terra é essa a qual pertencemos? À luz de Santos (2013) é possível
entendermos que tal reconhecimento é um por vir. Entretanto, é
necessário indicar um olhar criterioso, mas não confundir a ideia de
por vir com um vir a ser, e sim, uma possibilidade. Para que
estabeleçamos essa conexão de um saber-fazer, é imprescindível a
problematização, este pensamento que nos joga em meio ao caos para
traçar novos caminhos.
No tocante ao que se refere a problematização, informamos
que para que pudéssemos ir em direção a uma nova forma de
pensamento, foi necessário recepcionar a noção de pensamento do
acontecimento, admitindo-a como um novo modo de proceder
filosoficamente. O que admitimos como marco do rompimento com
o pensamento dogmático foi o acontecimento. Significa dizer que o
nosso pensamento é constituído a partir de uma experiência da
problematização, que considera as várias faces de um acontecimento
e que verdadeiramente faz com que nos questionemos sobre ele.
Afinal, “Pensar é romper com a passividade, é sofrer a ação de forças
externas que o mobilizem. Pensar é, além disso, interpretar. Dito de
outro modo, pensar é explicar, desenvolver, decifrar, traduzir signos.”
(Vasconcellos, 2005, p. 1220). O que procuramos realizar aqui foi a
tarefa de compreender o papel da filosofia contemporânea e como esta
pode implicar diretamente na educação.
Começamos a reconhecer, por fim, a partir de uma concepção
genealógica de filosofia como diagnóstico da atualidade então
lastreada por uma crítica prática e experimental do pensamento
esboçar-se no contemporâneo, ao modo de uma démarche e de um
acoplamento, uma problematização das diferenças como cartografia,
admitida filosoficamente, do pensamento da diferença e do
107
acontecimento. Investigar os problemas educacionais quanto aos
processos por meio da problematização e criação de conceitos é o que
propomos realizar com este artigo.
Prelúdio, ou aquilo que antecede o caos
De antemão, apontamos a geofilosofia como conceito em
potência; potência esta que nos suscita certa curiosidade em investigar
mais especificamente todo o seu contexto, o local ou locais no qual
se encontra. Quais as implicações que dele poderão emergir?
Acreditamos, sobretudo, que essa potência, assim como os múltiplos
territórios, nos servirá de ferramenta para solucionarmos nossas
questões e, quando não, que ao menos as problematizemos de fato.
Tais possibilidades rompem com qualquer curiosidade a prioride
cunho somente individual. Neste caso, nos posicionamos referente às
escolhas, tanto acerca da temática quanto dos autores como referência
principal. Por que fazemos uso daqueles que não se dispuseram a falar
e pensar a educação? Se o fazemos, é devido a essa potência que não
se limita a um plano único.
De modo a definir a filosofia como algo prático, em uma
constante movimentação, Deleuze e Guattari (2010) situam esse
saber filosófico, também, como um fazer. Se optamos por falar de
questões que não dizem respeito à educação pela via direta escolar,
por exemplo é por se constituir em uma alternativa metodológica
de abordagem filosófica, uma vez que a filosofia opera pela resolução
de problemas através da criação de conceitos. Realizaremos os
deslocamentos que nos parecerem indispensáveis para a realização desta
pesquisa, ou seja, aproximaremos o plano filosófico do plano
108
educacional. À luz dessas afirmações, Gallo (2003) aponta que este
fazer é:
Instaurar, inventar, criar... Um plano de imanência circunscrito
pelos e circunscritor dos problemas educacionais; um
personagem conceitual comprometido com a educação e que
caminhe por suas vielas; conceitos que ressignifique tais
problemas e os tornem em acontecimentos, que os façam ganhar
consistência. (Gallo, 2003, p. 57-58)
Destarte, fazer da geofilosofia a nossa mola propulsora é,
essencialmente, nos remetermos à própria noção estabelecida por
Deleuze e Guattari (2010): se inserir em meio ao caos e realizar o corte
no intempestivo, a partir da intensidade, das possibilidades. O que
buscamos é realizar esses encontros; o voo à superfície, para que
possamos, aos poucos, definir o nosso próprio território sabendo
reconhecer os devidos empréstimos. Por fim, o que nos motiva é este
desbravamento por terras que não se apresentam, mas que são um
porvir
Após apresentarmos as considerações iniciais, consideramos
que pensarmos a educação na contemporaneidade é uma tarefa árdua
que requer problematizarmos e nos debruçarmos a respeito da
construção e relação de saberes. Começamos, portanto, com a
compreensão de Peters (2002) que pauta-se da educação em um
contexto de “sociedade do conhecimento”. Deste modo, com o
sistema capitalista tão bem desenvolvido e entrelaçado com o Estado,
volta-se também para a construção da filosofia e sua relação com o
território grego, visto que:
109
[...] Deleuze e Guattari desenvolvem, começando com os gregos,
uma geografia da filosofia: uma história da geofilosofia. Em vez
de uma história, entretanto, eles conceitualizam a filosofia, em
termos espaciais, como uma geofilosofia. Tal concepção
complica, imediatamente, a questão da filosofia: ao ser vinculada
a uma geografia e a uma história - uma espécie de especificidade
espacial - a filosofia não pode escapar de sua relação com a
Cidade e o Estado. Em suas formas moderna e pós-moderna, ela
não pode evitar um vínculo com o capitalismo industrial e da
sociedade do conhecimento. (Peters, 2002, p. 79)
Atribuir à filosofia uma historicidade e reconhecer que
também possui o seu próprio local, direciona também à perspectiva
de criação. Aliás, aqui entra uma nova perspectiva em nossas
problematizações: a pedagogia do conceito, cabendo a ela justamente
isso: as condições para a criação de um conceito. Retomando então, a
questão do tempo demandado pelos autores para pensarem,
realmente a respeito do que seria a filosofia, ou a que caberia à ela, no
caso, – que em muito estava se confundindo com determinadas áreas
da comunicação , o conceito é tardio, mas nem por isso,
ultrapassado. Dizemos mais uma vez: filosofar, é pensar,
problematizar, criar. Todavia, assim como a filosofia ocidental está
para os gregos, se constituindo concomitantemente ao capital, não
podemos ignorar a relação que o filósofo possui nessa formação e/ou
até mesmo o quanto se formaria; o seu papel.
Se nos atentarmos a pontuar o que constitui a filosofia,
apresentando a necessidade de um plano de imanência e os conceitos,
devemos olhar, além destes pontos, para o “agente” responsável por
executar, seria, por consequência o filósofo. Poderia ser, mas não é o
caso. Assim como a própria etimologia, - a filosofia possui um
amigo ou amante da sabedoria, que não é o filósofo em si, ainda que
110
dependa dele. Aqui consiste na movimentação e historicidade por
meio de um território que é pré-filosófico sendo que: “Os personagens
conceituais têm este papel, manifestar os territórios, desterritoria-
lizações e reterritorializações absolutas do pensamento.” (Deleuze;
Guattari, 2010, p. 84) E é nesse movimento que abre margem para
uma nova formulação de sua própria atividade filosófica. Salientamos
aqui, portanto, a nossa afirmação de que a filosofia deleuzo-
guattariana não representa, nunca, qualquer estagnação. Caracteriza-
se então como esta nova ferramenta, dotada de total potência, o
pensamento; pensamento que não se limita e que é o todo. Com seu
problema, área de localização e condições para sua criação. Trata-se
não de repetições ou de modificações para um problema já existente.
A partir do pensamento, o pensamento sempre singular , nasce,
demonstrando o seu real poder.
Ademais, se faz necessário, mais uma vez, voltarmos um
pouco para destacarmos as noções de desterritorialização e a de
reterritorialização que apreendem a noção de terra e território. O
filósofo utiliza-se do plano de imanência de maneira intuitiva,
conforme as problematizações vão acontecendo, percorrendo por esse
solo, fixando quando se efetua uma problematização e caso seja
necessário, realoca-se para um novo território, desterritoralizando
para reterritorializar em outro local. Tal definição, entretanto, é
destacada por Peters (2002) a partir de Holland (1991) como
posterior, ou no caso, uma atualização em Mil platôs segundo
volume de Capitalismo e esquizofrenia que em O anti-Édipo o
primeiro volume , tais concepções aparecem ainda influenciadas pela
psicanálise de modo inato aos sujeitos, sendo a desterritorialização boa
e a reterritorialização ruim.
111
Retomando, então, a relação da filosofia com o desenvolvi-
mento do capitalismo temos de nos ater, por consequência, à relação
entre a filosofia e o Estado, e mediante isso, o capitalismo, que é onde
o artigo se contextualiza, para mudarmos um pouco a nuance de
nosso enfoque, não mais para o filósofo, somente, mas para que essas
análises voltam-se para a educação, também. Ao potencializar a
filosofia, torna-la uma geografia da razão, a geofilosofia, se tornar para
a educação, um saber-fazer do qual, permite a inserção no campo
ideológico, para além dessas concepções, abrir o leque para as
problematizações, servindo-se do que é da filosofia do que é próprio
desta, de seus planos e assim, realizarmos as possíveis e cabíveis
aproximações, pois como a própria, pertencemos a uma terra que está
por vir e devemos sempre estar em condições de devir.
Uma vez em meio ao caos
Diante dessas considerações, pretendemos investigar as
possíveis contribuições da geofilosofia para o estudo filosófico da
educação por meio da conjugação das pesquisas genealógica e
cartográfica, associadas ao movimento geofilosófico. As fontes
bibliográficas adotadas para a pesquisa serão livros, teses e/ou
dissertações acadêmicas; e, num segundo grupo, publicações em
periódicos científicos de área. O referencial teórico principal consiste,
para a pesquisa genealógica, na obra de Michel Foucault, encontrada
no livro Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento
(2005) e, para a pesquisa cartográfica, na obra de Gilles Deleuze e
Félix Guattari, imprescindivelmente em O que é a filosofia? (2010).
Iniciamos com a compreensão de Foucault sobre a genealogia,
o qual parte de considerações sobre A genealogia da moral (1887), de
112
Nietzsche, utilizando-se de sua forma de construção para buscar e
fazer uma investigação que não considere os acontecimentos em uma
linha cronológica, mas em uma nova forma de captar o fazer histórico,
ou seja, apontando as singularidades como formas de compreender o
que se faz e o que é a história.
Sua análise em Nietzsche, a Genealogia, a História (2005)
aponta que a genealogia se opõe à metafísica, uma vez que esta se dá
pela enunciação dos fatos através da consagração dos acontecimentos
enquanto origem e valorização do início das coisas, por meio de
verdades, de princípios que levam ao agora, à constituição do tempo
presente em meio ao saudosismo da gênese, por meio da pesquisa da
origem (Ursprung). Todavia, não somente de origem se constitui a
história.
Para a genealogia, as formas de observação da história devem
ser levadas para além da própria observação linear, devem se apropriar
e capturar as formas que ultrapassam a perspectiva da origem. Trata-
se de apreender as minúcias do tempo, de debruçar-se sobre os fatos
históricos e encontrar meios para que isto ocorra. Sendo assim, é
necessário ir além do entendimento da origem, se instalar nos lapsos
dos acontecimentos, e para que tais rupturas sejam percebidas se faz
necessário a pesquisa da proveniência (Herkunft) e da emergência
(Entstehung).
A proveniência funciona como o tronco de toda apreensão,
uma vez que cabe a ela o fluxo de informações que escapam a uma
simples pesquisa de origem. Ela busca esmiuçar as lacunas que apenas
a acepção de gênese não dá conta, marcando a descontinuidade que
há na própria história. Trata de perceber o que é singular e retomar
todas as formas com que a história constituiu os valores e como estes
estão envoltos nos corpos dos sujeitos por meio de ideias que foram
113
adquiridas, os hábitos. Já a emergência “é a entrada em cena das
forças; é sua irrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores ao
palco, cada uma com o vigor e a jovialidade que lhe é própria”
(Foucault, 2005, p. 269). No mais, acrescenta Foucault,
Enquanto a proveniência designa a qualidade de um instinto, sua
intensidade ou seu desfalecimento e a marca que ele deixa em um
corpo, a emergência designa um lugar de confrontação; ainda é
preciso evitar concebê-la como um campo fechado no qual se
desenrolaria uma luta, um plano em que os adversários estariam
em igualdade; é antes o exemplo dos bons e dos maus o prova
um “não-lugar”, uma pura distância, o fato de os adversários
não pertencerem ao mesmo espaço. (2005, p. 269).
Evidencia-se, deste modo, que o grande fazer da genealogia
está na percepção real da história para além de uma história neutra e
distante dos sujeitos. A partir deste entendimento, também o olhar
que se volta aos corpos, aos seres e como eles são constituídos ao longo
do processo histórico dos modos de subjetivação, considerando as
rupturas que escapam aos procedimentos meta-históricos.
A genealogia opera a partir de significações singulares que não
constam da história tradicional, fazendo uma pesquisa demorada e
detalhada, preocupando-se não apenas com a linha cronológica e
linear dos fatos, mas, a partir deles, localizando e correlacionando com
o que comumente não se apresenta. Consequentemente, o trabalho
do genealogista consiste em desconfiar e depurar, não pensando em
encontrar a origem:
[...] ao contrário, deter-se nas meticulosidades e nos acasos dos
começos; prestar uma atenção escrupulosa em sua derrisória
maldade; esperar para vê-los surgir, máscaras finalmente
114
retiradas, com o rosto do outro; não ter pudor de ir buscá-los
onde eles estão, “escavando as profundezas”; dar-lhes tempo para
retornarem do labirinto onde nenhuma verdade jamais os
manteve sob sua proteção. (Foucault, 2005, p. 264).
Por sua vez, a cartografia, apontada por Deleuze e Guattari
(1995), é um dos princípios do rizoma, que consiste em uma
contraposição à forma de organização do pensamento a partir do
positivismo, do sistema arbóreo, como apresentado pelos autores, que
prevê uma hierarquia para os saberes e a forma de constit-los.
O rizoma palavra advinda da botânica se manifesta como
radículas que se espalham horizontalmente, que se proliferam
abundante e simultaneamente sem quaisquer hierarquias; é princípio
conectivo, solo fértil sem entradas e saídas; a-centrado;
multiplicidades. Quer dizer que o rizoma é o oposto ao modelo de
árvore. Não serve ao todo o Uno mas às especificidades que se
constituem, e que coexistem; local onde habita a subjetividade. “As
multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma
unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a
um sujeito.” (Deleuze; Guattari, 1995, p. 8).
Na qualidade de um dos princípios do rizoma o quinto, de
seis a cartografia representa as várias entradas admitindo os diversos
entrelaçamentos sem se preocupar com uma forma definida, ou
simplesmente um caminho único a ser percorrido. Cartografar
consiste principalmente na abertura em face das diversas
possibilidades, que se manifestam como sentido. Dessa forma,
utilizando-se de meios que se diferenciam de uma pesquisa
tradicional, a pesquisa cartográfica considera o objeto de investigação
admitida a influência nele exercida pelo pesquisador em relação à
pesquisa-intervenção. Logo:
115
A cartografia, enquanto um dos princípios deste campo de
multiplicidades e de variação contínua que caracteriza o rizoma,
é tomada como um mapa em constante processo de produção,
instaurando um processo de experimentação contínua capaz de
criar novas coordenadas de leitura da realidade, criando uma
ruptura permanente dos equilíbrios estabelecidos. Com este
procedimento cartográfico colocam-se em questão as hierarquias
e fronteiras que dividem os campos de conhecimento e propõe-
se uma recriação permanente do campo investigado.
(Zambenedetti; Silva, 2011, p. 457).
Em vista das inúmeras possibilidades, Passos, Kastrup e
Escócia (2015) formularam pistas que não funcionam como regras
e nem poderiam sê-las mas, com o intuito de explicitar o
procedimento da pesquisa cartográfica, propuseram a inversão do
metá-hódos para o hódos-metá.
Em posição de cartógrafos é importante que saibamos
reconhecer e acompanhar esse processo, estarmos atentos: “Trata-se,
em certa medida, de obedecer às exigências da matéria e de se deixar
atentamente guiar, acatando o ritmo e acompanhando a dinâmica do
processo em questão. “[...] Mais do que domínio, o conhecimento
surge como composição.” (Kastrup, 2015, p. 49).
Ressaltamos, também, que ambas as abordagens se distanciam
do modo de operar cristalizante, como o iluminista e o romântico,
por não partirem de concepções totalizadoras dos fatos por meio de
suas origens e relações hierarquizadas, incluída a universalidade da
noção de essência. Tendo sempre em vista o singular, a genealogia se
diferencia do método convencional em sua preocupação com os
diferentes pontos de vistas, em dar voz aos diferentes sujeitos e
contextos; ao passo que a cartografia “[...] é a problematização da
posição do pesquisador e do ato de pesquisar, onde a pesquisa é
116
tomada como um campo de experimentação, atravessado pelo regime
da sensibilidade.” (Zambenedetti; Silva,2011, p. 457). À vista disso,
é certo dizer que tanto uma como a outra fundamentam-se na
diferença, no contratempo do que se tem como um dado histórico
e/ou investigativo, sempre definido e cronológico.
Dessa maneira, a genealogia e a cartografia operam no
contratempo do que diz respeito às metodologias comumente
compreendidas; a elas cabe o tempo do próprio objeto/problema de
pesquisa em relação aos feitos futuros. Ou seja, são abordagens que
não ocorrem com determinações prévias, uma vez que elas partem da
experimentação e da sensibilidade, justamente a movimentação que
prevê a realização de uma geofilosofia.
Do caos ao cais
Após, lançarmo-nos ao desconhecido, ao mar aberto,
retornamos aos cais, mas após enfrentarmos a tempestade, já não
somos mais o mesmo. Dessa forma, após problematizarmos a
compreensão de filosofia do nosso referencial teórico, bem como seus
desdobramentos, conciliarmos as devidas aproximações diante às
possibilidades para o campo educacional, é possível afirmarmos que o
sujeito categoria que define o indivíduo constituído ao longo da
Modernidade em um movimento de universalização dos saberes sobre
o homem, acima de tudo não é pensado verdadeiramente, seja no
sentido de um eu finito, ou no sentido educacional, sendo: “a
ocultação da própria pedagogia como uma operação constitutiva, isto
é, como produtora de pessoas, e a crença arraigada de que as práticas
educativas são meras ‘mediadoras’, onde se dispõem os ‘recursos’ para
o ‘desenvolvimento’ dos indivíduos. (Larrosa, 1994, p. 37).
117
No entanto, se isto ocorre assim como reiterado logo acima
é devido às próprias relações que se formam dentro da escola. Neste
momento, identificamos a escola como uma instituição nos
parâmetros do Berger e Luckmann (2004): falamos, em essência,
sobre instituições e como nos constituímos, em partes, por definições
que nos sãos externas; assim as instituições padronizam e norteiam a
nossa conduta, por meio de um controle social, e fazem com que
dentre uma infinidade de escolhas, somos direcionados a agir
conforme coletivo, ou simplesmente, conforme os grupos que
pertencemos.
Uma vez que nossos objetivos estiveram fundamentalmente
voltados a uma nova forma de pensar que não mais se constitui por
meio de uma noção fixa de sujeito, a imagem antropológica do
homem, mas por meio do pensamento do acontecimento. Nesse
sentido, a filosofia com a qual nos propusemos a investigar não se
interessa pelo sujeito, mas pelos modos de subjetivação que formam
os sujeitos. Dito isso, uma forma de pensarmos o sujeito como processo
seria através do pensamento do acontecimento, uma nova imagem do
pensamento, o qual, a partir da genealogia de Michel Foucault e da
cartografia de Gilles Deleuze e Félix Guattari nos permitiria
acompanhar esses processos por meio da diferença.
Partindo dessa premissa, foi importante revisarmos a noção
não apenas do que seria o acontecimento na filosofia, mas a filosofia
como um acontecimento. Concluímos, ainda, que a filosofia se
compõe a partir de problemas a serem solucionados, um
posicionamento fundamental apontado pelos autores que
consideramos e que indica a tarefa da filosofia contemporânea.
118
A esse respeito, o próprio Deleuze (1992a) reitera o quanto o
pensamento contemporâneo é devedor da filosofia de Nietzsche
e, na esteira aberta por este filósofo, encontramos Foucault, que
fez de sua própria filosofia um ato de pensamento; isto é, uma
experimentação e uma problematização do pensamento. (Lopes,
2011, p. 16).
Conforme Deleuze (1998, p. 23), devemos estar atentos e:
“não confundir o acontecimento com sua efetuação espaço-temporal
num estado de coisas", o que nos leva à construção de um plano de
imanência para a ocorrência e efetuação desses acontecimentos. Em
nosso caso, as cartografias da diferença como analítica das práticas de
constituição da subjetividade.
A critério de melhor entendimento, Zourabichvili (2004)
define o acontecimento sob os seguintes termos:
O acontecimento sustenta-se em dois níveis no pensamento de
Deleuze: condição sob a qual o pensamento pensa (encontro com
um fora que força a pensar, corte do caos por um plano de
imanência), objetidades especiais do pensamento (o plano é
povoado apenas por acontecimentos ou devires, cada conceito é
a construção de um acontecimento sobre o plano). E se não há
maneira de pensar que não seja igualmente maneira de realizar
uma experiência, de pensar o que há, a filosofia não assume sua
condição acontecimental, de onde pretende receber a garantia de
sua própria necessidade, sem propor ao mesmo tempo a
descrição de um dado puro, ele próprio acontecimental. (p. 7).
Por conseguinte, nosso olhar para o sujeito se encontra em
construção, assim como ele mesmo, em um sentido ininterrupto.
Constitui-se, além disso, em um olhar para a educação, para que
119
possamos problemati-la ao invés de supor que a compreensão seja
dada naturalmente, como um insight.
Posto isso, o enfoque epistemológico e metodológico sobre a
genealogia e a cartografia apontam para a produção do pensamento
pautada pela diferença e pela multiplicidade como formas de
problematização a partir do acontecimento ou no acontecimento
da constituição de subjetividades nos espaços escolares ou quanto aos
modos de produção da educação escolar.
Significa dizer que quando pensamos no conceito de modos de
subjetivação, indicado por Foucault, encontramos a sugestão de que a
filosofia como pensamento do acontecimento e criação de conceitos
ampare a ideia de uma analítica dos modos de constituição da
subjetividade e não uma análise das representações do sujeito. Em
Conversações (1992), Deleuze esclarece que:
[...] Um processo de subjetivação, isto é, uma produção de modo
de existência, não pode se confundir com um sujeito, a menos
que se destitua este de toda interioridade e mesmo de toda
identidade. A subjetivação sequer tem a ver com a “pessoa”: é
uma individuação, particular ou coletiva, que caracteriza um
acontecimento (uma hora do dia, um rio, um vento, uma
vida...). É um modo intensivo e não um sujeito pessoal. É uma
dimensão específica sem a qual não se poderia ultrapassar o saber
nem resistir ao poder. (p. 123-124).
Considerando nossas problematizações, compartilhamos,
ainda que foi a partir de concepções que nos propusemos a pensar;
operamos por deslocamentos, descontinuidades de um pensamento
que não é pré-estabelecido. Mapeamos nossos caminhos e
entendimentos conforme os problemas postos, uma vez que foi a
120
partir desses problemas que realizamos nosso fazer filosófico, o qual
não se sobrepõe a outros saberes e nem mesmo evoca definições que
transcendam tanto ao saber quanto ao próprio problema.
Em vias de finalização, se faz necessário, sobretudo,
indicarmos que para e nessa mudança de paradigma, consideramos
esse pensamento sem imagem, diretamente relacionado à
aprendizagem, mas não somente. Assim como iniciamos
ambicionando por relações de saberes que fossem diferentes, para
além da diferença habitual, utilizamos como já dito anteriormente
da filosofia da diferença, desse acontecimento provedor de
multiplicidades. Adentramos, portanto, tal conceituação:
“É somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como
substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma
relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade
natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades
são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades
arborescentes. Inexistência de unidade ainda que fosse para
abortar no objeto e para “voltar” no sujeito. Uma multiplicidade
não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações,
grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de
natureza. As leis de combinação crescem então com a
multiplicidade)”. (Deleuze; Guattari, 1995, p. 15)
É neste sentido, que desejamos que a escola possa ser
projetada: que se distancie das normatividades que possibilite a
multiplicidade, ambicionamos, portanto, um devir- escola. Para
melhor incisão:
Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um
modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de
121
onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deve chegar.
Tampouco dois termos que se trocam. A questão "o que você
está se tornando?" é particularmente estúpida. Pois à medida que
alguém se torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele
próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de
assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela,
núpcias entre dois reinos. (Deleuze; Parnet, 1998, p. 10)
E com essas problematizações encaminhamos a finalização
deste artigo, colocando-nos a realocarmos territórios que pareciam
incomunicáveis, para utilizarmos de ferramentas que operam de
modo sensível sem quaisquer totalidades.
Considerações Finais
O nosso estudo com base na filosofia da diferença não visou
apenas a pesquisa, mas também considerou a diferença como a
possibilidade de atuarmos no campo da prática, uma vez que isso é
importante para o campo pedagógico. Problematizar incide também
em uma revisão da relação professor - aluno, da forma como são
dispostas as organizações e a própria ideia do conhecimento em
relação ao ensino-aprendizagem. Isto é, propomos ir em direção ao
pensamento do acontecimento para ampliarmos as concepções das
relações pedagógicas.
Às possibilidades, é designado essa constante: a potência do
meio em que o mais importante não é o começo e nem o fim, mas
sim essa relação de sentido; de sentir e de coerência, a da
problematização. Um pensamento ocupa um determinado espaço e
se ele não é o todo, logo, a definição de terra, de território. É deste
tablado fértil, que se dá o plano de imanência, esse por vir, esse
122
acontecimento. À geofilosofia, cabe o vínculo de terra, personagem
conceitual a dualidade entre o amigo e o rival para que se possa
alcançar o conceito. Fazer filosofia é isto, criar conceitos, mediante a
um problema, singular e histórico, resultante da própria experiência
e nela própria.
Pensar, portanto, na construção proposta no corpo deste texto
é resultante de uma outra problematização, é a reterritorialização ou
até mesmo uma nova territorialização de uma definição comum e que,
no entanto, se desdobra de maneiras distintas, conforme olhar e
experimentação de cada um. Se por um momento, parecer
relativização, a relatividade é verdadeira, mas não uma ordem, o que
define é o problema. O desafio proposto, talvez seja este: os vais e
vens.
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Capítulo 6
A violência no ambiente escolar:
B
ullying
e seus desdobramentos
Gelci Saffiotte Zafani
16
Fabiola Colombani
17
Thaís Yazawa
18
Introdução
De acordo com Abramovay (2016), a violência na escola é um
fenômeno preocupante, pois descaracteriza a instituição que
originalmente deve ser um lugar de amizade, boa convivência, prazer
16
Graduada em Psicologia pela (UNIMAR-Universidade de Marília), Mestre em Educação
pela UNESP/Marília, Especialista em Psicopedagogia Institucional e Clínica pelo (INDEP-
Instituto de Ensino Capacitação e Pós-graduação em Marília). Atualmente é docente,
supervisora de estágio em Psicologia Escolar do curso de Psicologia da Universidade de
Marília (UNIMAR). E-mail: gelciszafani@gmail.com
17
Possui Graduação e Mestrado em Psicologia (UNESP/Assis). Doutora e Pós-doutora em
Educação pela (UNESP/Marília), Especialista em Psicologia Escolar e Educacional pelo
(CFP). Atualmente é docente, supervisora de estágio em Psicologia Escolar e coordenadora
da clínica de Psicologia da Universidade de Marília (UNIMAR). E-mail:
fabiolacolombani@unimar.br
18
Graduada em Psicologia (FAP), Doutora em Psicologia do Desenvolvimento e
Aprendizagem (UNESP/Bauru). Mestre em Análise do Comportamento (UEL-PR) e
Experiência clínica e como docente em diversas disciplinas, experiência como supervisora
clínica em ABA. Atualmente é Psicóloga Jurídica do Tribunal de Justiça de São Paulo. E-
mail: tatayazawa@gmail.com
126
e busca pelo conhecimento e aprendizado. Atualmente, a mídia
aponta um aumento da violência escolar, o que preocupa pois não se
sabe ao certo o que vem provocando tais acontecimentos e se todos
os problemas de convivência que a escola enfrenta,o provocados
por meio de conflitos provenientes das relações ou se há influências
externas.
Segundo Abramovay (2016), a violência é um fenômeno
complexo e diversificado, devendo-se ter cautela ao conceituá-lo, pois
é algo dinâmico e mutável, passando por transformações à medida
que a sociedade se transforma, dependendo do contexto histórico,
cultural, social e de outros fatores. De acordo com Díaz Aguado
(2016), há necessidade de se identificar as diferentes formas de
violência escolar uma vez que, muitas vezes, o que a instituição tem
feito é ignorá-las ou negá-las, conduzindo-as dessa forma à
justificação, manutenção e reprodução.
Vinha et al. (2017) apontam que reconhecer os diversos tipos
de problemas de convivência faz com que as intervenções também
sejam diferenciadas e resultem em aprendizagem. Ainda para Vinha
et.al (2017), os problemas de convivência dentro da escola podem ser
divididos em: manifestações agressivas que seriam aquelas que
utilizam o emprego da força, da agressão, dos danos à dignidade
pessoal, que atentam a integridade física-moral- psicológica e
manifestações perturbadoras ou indisciplinares que estariam
relacionadas à desordem, ao desrespeito às normas elaboradas
coletivamente, ao enfrentamento, a comportamentos irritantes.
Abramovay (2016) classifica os problemas de convivência de
acordo com a natureza apresentada, como se pode ver:
Microviolências ou incivilidades: são infrações que
perturbam a ordem estabelecida, como agressões verbais,
127
xingamentos, humilhações, falta de respeito, modo grosseiro
de se expressar, discussões e ofensas, que muitas vezes ocorrem
por motivos banais, mas que rompem com os laços sociais, de
modo que acabam se naturalizando, causando medo e
insegurança e fragilizando, dessa forma, a instituição;
Violências simbólicas e institucionais: estão relacionadas ao
modo como a escola se organiza, funciona e trata os
estudantes, estabelecendo muitas vezes relações simbólicas de
abuso de poder;
Violências duras: são episódios que podem causar danos
irreparáveis ao indivíduo e que necessitam de intervenção do
estado. São atos infracionais, crimes, como agressões físicas,
roubos, homicídios, tráfico de drogas, uso de armas e outros.
Além dessas, outras violências permeiam o universo escolar,
como o racismo, a homofobia e as discriminações e intimidações
sistemáticas (bullying), sendo essas últimas o enfoque deste capítulo.
Portanto, Vinha et.al (2017), aponta que o problema do
aumento da violência escolar é controverso, que requer uma análise
cuidadosa, pois os autores em suas pesquisas demonstram que não há
um aumento da violência dura, e, sim, de outros tipos de conflitos,
como agressões verbais, insultos, provocações e outros. Já Abramovay
(2016) ressalta que se faz importante a escola conseguir distinguir os
tipos de violência escolar para buscar a compreensão do fenômeno,
contribuindo para a prevenção de situações de violência e analisando
a conexão do ambiente escolar com o episódio.
128
O fenômeno
bullying
Uma preocupação mundial que chama a atenção de
pesquisadores de diversas áreas como psicologia, educação e saúde é o
fenômeno bullying.
Bullying é um tipo de violência caracterizada como uma forma
perversa de relação interpessoal, de dominação de um parceiro,
humilhando-o, intimidando-o e excluindo-o do grupo, tratando-se
muitas vezes de um problema silenciado. (Del Barrio, et. al 2003).
Esse fenômeno foi inicialmente mencionado por Olweus (1978)
como bullying (bullying, do inglês bull, “touro”, “valentão”), que se
diferencia de outras condutas violentas por fazer parte de um processo
com características que aumentam sua gravidade, dentre elas, a
repetição e o fato de se tratar de um fenômeno que ocorre escondido
das figuras de autoridade e que muitas vezes se apresenta por meio de
violência simbólica.
Fante (2005, p.24), uma das primeiras pesquisadoras
brasileiras sobre esse fenômeno, aponta que o bullying pode ser
definido como “o desejo consciente e deliberado de maltratar uma
outra pessoa e colocá-la sob tensão”.
De acordo com Souza (2019) e Fante (2005), pela
complexidade do fenômeno atribuído ao termo, as línguas latinas
ainda não conseguiram uma tradução literal que represente de fato tal
situação e sua dimensão dentro dos tipos de violência.
Olweus (2013) observa que há três critérios fundamentais
para a caracterização do fenômeno, como intencionalidade,
desequilíbrio de poder e repetição, são eles:
129
A intencionalidade
Segundo Olweus (2013), o bullying é caracterizado como um
comportamento agressivo, com intenção ou desejo de ferir ou causar
dor emocional e desconforto a alguém. Olweus (2013) aponta
também, que algumas pessoas questionam a intencionalidade do ato,
relatando a dúvida em saber se o autor realmente teve a intenção de
prejudicar o outro. Diz ainda que, se essa característica faz parte da
definição, então os pesquisadores deveriam descobrir uma forma de
avaliá- la ou documentá-la. E argumenta que essa questão de
intencionalidade tem um grande histórico de discussão e que ela não
deve ser baseada no relato do autor e, sim, do entendimento do
contexto. Observa, também, que alguns pesquisadores defendem que,
se o alvo entende que esse comportamento é indesejado, já se
caracteriza como bullying.
Tognetta, Vinha e Bozza (2014, p. 203) salientam que os
“autores do bullying escolhem “a dedo” quem serão seus alvos, e que
esses são exatamente escolhidos por razões psicológicas, pois parecem
concordar com a imagem que lhes é atribuída, ainda que
inconscientemente.” Portanto, a busca é um alvo frágil e suscetível,
para ofender, intimidar, humilhar, menosprezar e diminuir, pois
somente permanecem na condição de vítimas aqueles que se sentem
inferiores pelas diferenças físicas, de gênero, de orientação sexual, de
condição socioeconômica ou cultural. Enfim, aqueles que se sentem
inseguros com relação ao respeito que nutrem por si mesmos, não
encontrando forças para lutar contra seus agressores. (Tognetta;
Vinha; Boza, 2014).
130
O desequilíbrio de poder
Díaz-Aguado (2016) ressalta que uma das características desse
fenômeno é a relação de desequilíbrio de poder entre um “valentão”,
geralmente apoiado pelo grupo, e sua vítima indefesa, que se sente
incapaz de sair dessa situação. Esse desequilíbrio é uma das
características que mais o diferencia de outras formas de violência.
No entanto, Olweus (2013) chama a atenção para o fato de
que nem sempre é fácil notar esse desequilíbrio de poder, pois não se
trata apenas de questões objetivas como força física ou diferença em
números (mais autores para menos alvos), mas que pode estar
associado a fatores não objetivos, como diferença na autoconfiança,
popularidade, status no grupo e outros.
Outro aspecto importante a ser analisado, ainda de acordo
com Olweus (2013), é a percepção do alvo de como seria difícil para
ele se defender com sucesso das atitudes dos autores.
A repetição
De acordo com Tognetta e Rosálio (2013), esse fenômeno
ocorre escondido dos olhos das figuras de autoridade e funda-se na
repetição. Não é um acontecimento isolado, é repetitivo e
prolongado, tendendo a situações cada vez mais graves; costuma
implicar diferentes tipos de condutas violentas, inicialmente com
agressões sociais e verbais, posteriormente coações e agressões físicas
e, na última década, por meio de tecnologias, transformando- o em
cyberbullying como se verá mais adiante (Díaz-Aguado, 2016).
No entanto, Del Barrio et al. (2005), diferentemente de
outros autores, defendem que a repetição é uma característica
131
provável, mas nem sempre está presente. Alegam que uma única
agressão pode acontecer de modo tão intenso que pode ser o suficiente
para estabelecer uma relação de dominação duradoura. Frick (2019)
aponta que, se for considerada apenas a necessidade de repetição,
corre-se o risco de se desconsiderar outras agressões que também são
bullying, colaborando com a manutenção dessa cultura como um
fenômeno menos grave, já que acontece “apenas” uma ou duas vezes.
Afirma, então, que é preciso olhar sob o ponto de vista de quem sofre
as agressões, pois se essa agressão sofrida causou um dano físico ou
psicológico constantemente vivenciado na memória do alvo, deve ser
caracterizada sim como bullying.
Desta forma, o critério de repetição deve ser avaliado com
cautela. Tognetta, Vinha e Bozza (2014) salientam outras
características além das definidas por Olweus para definição do
bullying, sendo elas: uma violência que ocorre entre pares, ou seja,
não há desigualdade de poder instituído ou de autoridade; é
necessário um alvo frágil, pois somente permanecem na condição de
vítimas, aqueles que se sentem inferiores, inseguros e com imagens
negativas a respeito de si mesmo; e, por último, o que prevalece para
o autor do bullying é a necessidade de manter uma boa imagem diante
dos outros.
Outro aspecto que vem chamando a atenção de alguns
pesquisadores é um terceiro envolvido no conflito: os espectadores.
Aqueles que muitas vezes testemunham as agressões e se mantêm
omissos. Frick (2019) afirma que há tempos o fenômeno do bullying
já não é mais considerado apenas como um problema envolvendo a
díade autor-alvo, e, sim, um fenômeno de relações em grupo.
Tognetta e Rosário (2013) apontam que tanto quem ataca
quanto quem sofre o ataque está sob os olhos de seus iguais. De
132
acordo com estudo realizado por Tognetta, Avilés e Rosário (2013
apud Silva, 2019), que procurou evidenciar a participação e a relação
entre agressores, vítimas e espectadores em situações de intimidação
em escolas públicas e privadas no Brasil, constatou-se que 15,9%
autodenominaram-se vítimas, 19,5% disseram ter participado como
autores e outros 62,8% relataram serem espectadores, apenas
assistindo às cenas de abuso e maus-tratos, portanto, que
presenciaram, mas não tiverem uma participação efetiva.
O bullying, assim, expande-se para além da díade
agressor/vítima: expande-se para os espectadores. E esses últimos têm
ganhado destaque na investigação do fenômeno pelo fato de as
respostas dessas testemunhas contribuírem para aumentar ou reduzir
o problema (Souza, 2019).
Segundo Tognetta e Vinha (2009), não há bullying se não há
um grupo que assiste quem ironiza, quem age com sarcasmo. Os
autores do bullying precisam fazer com que seu público os venere,
necessita de espectadores e validação do grupo. Eles precisam se sentir
aceitos e valorizados pelos colegas. Dessa forma, uma das maiores
recompensas que se observa em relação ao autor do bullying é que ele,
para se sentir superior perante o grupo, precisa ver o outro diminuído.
Muitas vezes esse público, com medo de se tornar a próxima
vítima, parece concordar com as ações dos autores pela indiferença ou
por pura aceitação. Portanto, a escola, com seus diversos contextos de
relações entre grupos, é um espaço em que esse tipo de violência pode
se desenvolver e já se desenvolve. É um espaço no qual é preciso
trabalhar muito mais do que ações pontuais como palestras. É
necessário trabalhar as relações interpessoais, a convivência ética e o
fortalecimento do protagonismo infanto/juvenil, capazes de
133
desenvolver em todos o sentimento de indignação mediante esses
comportamentos.
Sobre as características dos agressores
De acordo com Díaz- Aguado (2016), dados de pesquisas
demonstram características em comum nos adolescentes que iniciam
e protagonizam o bullying escolar, ação que deveriam ser erradicados
pela escola e pela família:
Forte identificação com o modelo social baseado no domínio
e na submissão, tendo tendência a abusar da força e a justificar a
violência e a intolerância em diferentes tipos de relação, com uma
tendência a serem mais racistas, xenófobos e sexistas;
Dificuldade para se colocar no lugar do outro e falta de
empatia, sendo seu raciocínio moral algumas vezes mais
primitivos do que o de seus companheiros, justificando fazer
aos outros o que lhes fazem ou o que acredita que lhes fazem,
levando-os a agir por vingança, tendo dificuldade de
coordenar seus direitos e deveres;
Tendência a resolver conflitos com as próprias mãos:
impulsividade, baixa tolerância à frustração e insuficientes
habilidades alternativas à violência;
Geralmente têm menos habilidades sociais para resolver
conflitos de forma pacífica, para deter ou evitar situações
violentas. Eles aprendem a agir no estilo violento que lhes gera
certas vantagens (do seu ponto de vista), não possuindo
alternativas não violentas para enfrentar as situações;
Dificuldade para cumprir normas e mau relacionamento com
os professores e outras figuras de autoridade; possuem
134
geralmente um desempenho escolar inferior à média;
Escassa capacidade de autocrítica e ausência do sentimento de
culpa pelo bullying, com o costume de responsabilizar a
vítima. Demonstram tendências a se auto afirmar por meio da
violência e, com o uso dessa, aumentam a sensação de eficácia
e poder;
Parecem praticar o bullying como uma forma destrutiva de
obter protagonismo e compensar exclusões ou fracassos
anteriores;
Dificuldades na aprendizagem de alternativas à violência na
família. Os estudos realizados por Díaz- Aguado (2016)
demonstram que, com certa frequência na família dos
agressores, houve dificuldade para lhes ensinar a respeitar
limites, existindo permissividade frente a condutas
antissociais ou emprego de métodos coercitivos autoritários,
dominadores e com castigos físicos.
Fante (2018) aponta que o poder do agressor é respaldado
pela força física ou psicológica que exerce sobre o grupo,
transformando-se num modelo de identificação a ser seguido, fazendo
com que outros estudantes se juntem ao agressor por pressão ou por
estratégia de defesa para não se tornarem vítimas.
Características dos alvos/vítimas
Diaz-Aguado (2016) relata que os primeiros estudos sobre
bullying
escolar detectam dois tipos de vítimas: vítima passiva e vítima ativa.
A vítima passiva se caracteriza por uma situação de isolamento
social, com escassa assertividade e dificuldade de
135
comunicação. Tem autoestima negativa, conduta passiva,
demonstra de forma clara sentir- se inferior, insegura, com
medo da violência e de não poder defender-se. Essas vítimas
possuem tendência de se culpar pela situação ou de negá-la
por vergonha.
A vítima ativa ou tida como provocadora se caracteriza por ser
ao mesmo tempo vítima e agressor. Vive numa situação de
isolamento social e acentuada impopularidade dentro do
grupo, com uma tendência excessiva e impulsiva a agir, sem
elencar quais condutas seriam mais adequadas para a situação
e tendo muitas vezes condutas irritantes, agindo, segundo
Tognetta, Vinha e Bozza (2014), de maneira agressiva ou
atrapalhada, tornando-se, dessa forma, mais “provocadoras”.
Fante (2018) salienta que a vítima acredita ser merecedora dos
ataques porque acredita não ter valor. Assim, aos poucos, ela vai se
afastando do grupo- classe, pois sua reputação fica cada vez pior
perante o grupo, que assiste a constantes gozações, fazendo a vítima
se sentir inútil, sem nada poder fazer para mudar a situação.
Características dos espectadores
Salmivalli et. al (1996), preocupados com o fato de um
grande número de crianças afirmarem testemunhar o bullying,
pesquisaram os diferentes papéis dos espectadores nas situações de
agressão e investigaram como essas crianças reagem durante tais
episódios e como essas reações contribuem para aumentar o problema
ou para combatê-lo, identificando, desta forma, quatro funções de
participantes que as crianças podem ter: assistentes de agressores,
reforçadores de agressores, indiferentes e defensores da vítima.
136
Ainda em Salmivalli et. al (1996) que preocupados com o
fato de um grande número de crianças afirmarem testemunhar o
bullying, pesquisaram os diferentes papéis dos espectadores nas
situações de agressão e investigaram como essas crianças reagem
durante tais episódios e como essas reações contribuem para aumentar
o problema ou para combatê-lo, identificando, desta forma, quatro
funções de participantes que as crianças podem ter: assistentes de
agressores, reforçadores de agressores, indiferentes e defensores da
vítima.
Os assistentes são aquelas crianças que se juntam aos
agressores, colocando-se a favor deles;
Os reforçadores fornecem feedback positivo aos agressores,
estimulando-os a prosseguir, como, por exemplo, rindo ou
torcendo;
Os indiferentes se retiram das situações, ficam de fora, não
tendo ação sobre o ocorrido;
Os defensores tomam partido com as vítimas, defendendo-as.
Salmivalli (2010) observa que a defesa da vítima pelos
espectadores faz com que muitas vezes se ponha fim aos episódios de
bullying e constata que muitas vezes os espectadores não ajudam a
vítima por acharem uma situação perigosa ou prejudicial, pois temem
se tornar alvos. Outro ponto é a existência de uma difusão de
responsabilidade, pois, como eles não se sentem responsáveis, esperam
que outra pessoa aja. Como geralmente os agressores são considerados
populares e poderosos, é difícil frustrar seu comportamento, o que faz
com que os espectadores muitas vezes se afastem da vítima.
Salmivalli et. al (1996), afirmam que se torna de suma
importância, portanto, a observação das reações dos espectadores para
maior compreensão do impacto e da propagação desse fenômeno.
137
Bullying: possíveis causas
Frick (2019) aponta que, na literatura científica, o fenômeno
bullying não é algo natural, não é algo que se refere apenas a desvios
de comportamento e de indisciplina, nem tampouco “brincadeiras da
idade”. E que, mesmo que se apontem fatores de risco como ser
estudante novo na escola ou como ser detentor de temperamento
impulsivo, não se pode usar isso para justificar esse tipo de agressão.
É preciso ter cautela ao encarar determinados perfis como
determinantes das agressões, que significa apontar como causa as
características dos sujeitos envolvidos, desconsiderando a
complexidade de fatores que envolvem as relações entre crianças e
adolescentes (Frick, 2019).
Avilés (2018) descreve o bullying como um fenômeno
multicausal em que, além de fatores individuais, há a presença de
fatores de risco nomeados como: culturais, sociais, familiares e
escolares.
Culturais: como cultura à violência, à agressividade, à
competitividade, a relações homofóbicas;
Sociais: como valores não morais aceitos pelo grupo, como
cultura ao corpo, status social, individualidade;
Familiares: como modelos de educação autoritária,
permissiva ou negligente, falta de diálogos; tipo de relação
estabelecida com a família e com a comunidade, entre outros.
Escolares: como tolerância às agressões, valores cultivados
dentro da escola, relações estabelecidas, falta de canais de
comunicação, tipo de normas existentes e como foram construídas.
Fante (2018) aponta, em relação às causas da ação do agressor,
a necessidade que ele tem de reprodução da violência sofrida tanto em
138
casa como na escola, fazendo incorporar uma dinâmica psíquica
mandante de suas ações e reações e a ausência de modelos educativos
humanistas, capazes de estimular a convivência pacífica pautada em
valores.
De acordo com Avilés (2018), as escolas dedicadas à
convivência e à prevenção devem desenvolver linguagens coerentes
com tais políticas, dentre elas o incentivo ao protagonismo juvenil na
resolução de conflitos, a proposta de trabalho cooperativo e
colaborativo, a gestão das relações interpessoais, o tratamento da
convivência e a prevenção de abuso e assédio no cotidiano escolar.
Tognetta e Rosário (2013) afirmam que o bullying é um
problema moral que remete à falta de valores em jogo, o respeito e a
justiça, enfatizando que o ambiente escolar tem papel preponderante
na formação moral do sujeito.
Bullying
e suas consequências
Díaz-Aguado (2016) relata que, assim como outras formas de
violência, o bulling pode prejudicar não apenas a vítima, mas também
o agressor e as pessoas que convivem com ele.
Na vítima
De acordo com pesquisas realizadas por Díaz- Aguado (2016),
as vítimas do bullying perdem a confiança em si mesmas, sofrem
rejeição, possuem muito medo dos agressores, o que acarreta uma
série de dificuldades acadêmicas e psicológicas, como evasão escolar,
baixo rendimento, baixa autoestima.
Uma outra pesquisa transversal internacional envolvendo
123.227 adolescentes de 28 países na Europa e América do Norte,
139
com idades entre 11, 13 e 15 anos, também concluiu haver uma
associação consistente entre bullying e sintomas físicos e psicológicos.
(Due et. al. 2005)
Os sintomas físicos mais frequentes verificados nesses estudos
foram: dor de cabeça, dor no estômago, dor nas costas e tontura; os
psicológicos foram: mau humor, sensação de nervosismo, desânimo,
dificuldade para dormir, cansaço, sensação de exclusão, solidão e
desamparo. De acordo com Frick (2019), no topo da lista das
consequências negativas nas vítimas do bullying encontra-se o suicídio
ou a tentativa dele, sendo o ápice do desespero de quem se vê alvo de
um sofrimento que não consegue suportar e para o qual não encontra
formas de solução.
No agressor
Díaz-Aguado (2016) afirma que as consequências do bullying
no agressor aumentam os problemas iniciais que o levaram a praticá-
lo, diminuindo sua capacidade de compreensão moral e empatia,
acabando por se identificar com um perfil violento de interação e
dificultando as relações positivas, fazendo com que, em idades
posteriores, cometa diferentes tipos de violência, como violência de
gênero e assédio no trabalho.
Fante (2018) observa que as pesquisas demonstram que os
agressores envolvidos no fenômeno estão propensos a tornar-se
delinquentes, a fazer uso de drogas, a ter porte ilegal de armas, a
cometer agressões sem motivo aparente, a crer que devem levar
vantagem em tudo, entre outros.
140
Nos espectadores
As pessoas que não participam da violência de forma direta,
mas convivem com ela sem fazer nada para evitá-la, agem de forma
omissa, podem produzir, em menor grau, os mesmos problemas que
acometem a vítima ou o agressor, como diminuição da empatia, medo
de se tornarem as próximas vítimas, aumento da falta de sensibilidade
e falta de solidariedade, características essas que agravam o risco de se
tornarem possíveis agressores no futuro (Díaz-Aguado, 2016).
De acordo com Frick (2019), os espectadores também podem
se sentir culpados por não fazer nada. Desse modo, podem
desenvolver um sentimento de impotência e de ansiedade por não
conseguir ou não saber agir mediante essas situações de violência.
No contexto institucional em que acontece
No contexto institucional em que ocorre, essa situação de
violência reduz a qualidade de vida das pessoas, tornando o clima
hostil, dificultando o processo de aprendizagem, a transmissão de
valores, entre outros, e prejudicando a saúde física e o bem-estar
emocional de crianças e adolescentes. (Frick, 2019) Frick (2019)
ressalta que, num ambiente em que se tolera esse tipo de violência,
em que o desrespeito seja um valor, há o risco de se disseminar o
sentimento de que o bullying é algo natural ou de menor importância,
diminuindo, dessa forma, o sentimento de indignação pelos membros
do grupo.
141
No contexto familiar
Muitas famílias sentem-se impotentes, indignadas e inseguras,
agindo, às vezes, por vingança, incitando os filhos a revidar com
violência, numa tentativa desesperada de cessar a violência (Frick,
2019).
Ainda de acordo com Frick (2019), cabe à escola acolher esses
pais para que tenham seus sentimentos respeitados e para que sejam
orientados sobre como lidar com essas situações e sobre como
colaborar, a fim de elevar os sentimentos de sensibilidade moral e os
de autoestima dos filhos, fazendo com que eles se sintam apoiados e
seguros, contribuindo, assim, para que seus filhos desenvolvam o
sentimento de indignação perante situações de injustiças e de
violência, encorajando-os sempre a buscar ajuda.
Bullying
no contexto virtual -
Cyberbullying
Com o avanço das Tecnologias da Informação e
Comunicação, a criação e o aumento do número de adeptos a redes
sociais como Twitter, Facebook, Instagram, dentre outros, trazem uma
nova forma de relacionamento entre as pessoas. Assim, velhos
problemas se agravam devido às novas tecnologias, provocando o
surgimento de um outro fenômeno: o cyberbullying.
O cyberbullying é caracterizado como sendo uma forma de
bullying no ambiente virtual, ambiente esse que acarreta alguns
agravantes, pois, como se sabe, com a globalização e o uso das TICs,
em segundos milhares de pessoas recebem e trocam informações entre
si, fazendo a proporção do problema ser muito maior.
142
Diferentemente do bullying, que tem como uma de suas
características a repetição das agressões, no ambiente virtual, basta
uma única veiculação da mensagem de assédio para que já haja a
caracterização de cyberbullying, uma vez que sua propagação ocorre
com rapidez, invadindo âmbitos de privacidade e segurança
( Tognetta; Vinha; Bozza, 2014).
Segundo relatório da Unesco (2019), o cyberbullying tem se
tornado um problema crescente. Pesquisas apontam que um terço dos
usuários da internet possuem menos de 18 anos, demonstrando que
as crianças ficam conectadas cada vez mais cedo e em maior número.
Crianças e adolescentes muitas vezes fazem uso de plataformas virtuais
sem a idade permitida (Facebook, Whatsapp, Instagram - 13 anos) e
sem o monitoramento dos adultos, mesmo não possuindo ainda
estruturas cognitivas, afetivas e morais para lidar com os conflitos que
surgem no ambiente virtual (Issa; Bozza, 2020).
Dados de uma pesquisa divulgada pela Plan Internacional do
Brasil (Brasil, 2009) sobre o bullying no ambiente virtual
cyberbullying revelam que 16,8% dos respondentes são vítimas,
17,7% são praticantes e apenas 3,5% são vítimas e praticantes ao
mesmo tempo.
Relatório da Unicef (2019a) exibe pesquisa realizada com
mais de 170 mil jovens de 13 a 24 anos de vários países e aponta que
37% dos jovens brasileiros que responderam à pesquisa afirmam já
terem sido vítimas de cyberbullying, sendo as redes sociais apontadas
como o lugar de maior ocorrência de casos de violência no país.
Ademais, o documento aponta que 36% dos jovens brasileiros
relataram já terem faltado à escola após ter sofrido cyberbullying por
colegas de classe.
143
O 2º Dossiê de Intolerância nas Redes, uma iniciativa da
agência de comunicação Nova/sb (2017), durante três meses, de abril
a junho de 2016, analisou dez tipos de intolerância nas redes sociais
em relação à aparência das pessoas, à sua classe social, às inúmeras
deficiências, à homofobia, à misoginia, à política, à idade/ geração, ao
racismo, à religião e à xenofobia.
Os resultados são estarrecedores, pois das 542.781 menções
analisadas, verificou-se um percentual assustador de menções
negativas: 97,4% em relação à classe social; 94,8% em relação à
aparência; 93,9% em relação à homofobia; 93,4% em relação à
deficiência; 92,3% em relação à idade/geração; 89% em relação à
religião; 88% em relação à misoginia e 84,8% em relação à xenofobia.
O relatório enfatiza que a internet é um meio de comunicação
amplo e que passa a visão distorcida de anonimato, de liberdade de
expressão, fazendo com que as pessoas se sintam incentivadas a
manifestar preconceitos. Além do cyberbullying, há outros tipos de
violência que permeiam o ciberespaço: shaming, sexting, discurso de
ódio, assédio virtual e outros que também precisam de atenção (Issa
e Bozza, 2020).
Tognetta, Vinha e Bozza (2014) relatam que esse ambiente
virtual pode se tornar um lugar de vingança, em que pessoas agredidas
ou assediadas pessoalmente podem ameaçar seus agressores para
compensar a agressão sofrida.
A internet torna-se, portanto, um espaço considerado “uma
terra sem lei”, transmitindo às pessoas a falsa sensação de anonimato,
fazendo com que os indivíduos ganhem força para falar o que não tem
coragem de dizer pessoalmente, tornando-se muitas vezes um espaço
de opressão, no qual, em muitas circunstâncias, o oprimido se
transforma no opressor.
144
Diante dessas novas necessidades que se apresentam à
sociedade, é preciso repensar a educação, repensar os cidadãos que se
quer formar e pensar na escola como um lugar oportuno para se
vivenciar o trabalho com valores humanos para uma convivência
ética.
Considerações Finais
Quando se reflete sobre o bullying, é necessário pensar na
construção de um plano de convivência ética no ambiente escolar que
proporcione o desenvolvimento e a vivência de valores necessários à
convivência em sociedade, como os de justiça, de respeito mútuo, de
tolerância, de benevolência, de solidariedade, dentre outros.
É preciso pensar também em estratégias que envolvem ações
sistemáticas que possibilitem a construção da personalidade moral,
que torna os sujeitos autônomos, capazes de estabelecer um diálogo
com todos os envolvidos em busca de soluções para os conflitos que
emergem no cotidiano escolar, pautadas no diálogo e no
protagonismo dos estudantes. A ausência de evidências de estratégias
efetivas também compromete o apontamento de indicadores eficazes
para se fazer uma avaliação do que se tem melhorado, em escala
nacional, em relação a esse grave problema que se apresenta nas
escolas.
Ademais, é preciso que haja mecanismos de denúncia para que
os estudantes saibam como, quando e onde podem denunciar para
contribuírem com a ação consciente de combate ao bullying. Assim, é
preciso mergulhar nos conhecimentos teóricos/científicos para que se
conheça o cerne desta problemática.
145
A formação moral, requer práticas dialógicas e reflexivas que
causem um diálogo interno, uma autorregulação do sujeito, que
promovam a tomada de consciência sobre quais valores baseiam sua
conduta, valores, estes, construídos coletivamente.
Pensar em políticas públicas na área do bullying e cyberbullying
é outro fator imprescindível para que essas discussões e ações se
aprofundem no combate ao bullying. Desta forma, é necessário pensar
na elaboração de um plano de convivência ética com a participação
ativa de todos envolvidos na escola. É pensar numa educação integral.
É pensar o que está em pauta na educação escolar. É pensar que sujeito
se quer formar. É pensar que tipo de relações se quer cultivar, que
valores se quer construir e as formas de convivência saudável que
devemos ter nas escolas.
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Capítulo 7
Aprendendo com os povos indígenas a
decolonizar o imaginário: educação intercultural e
decolonial na formação de professores/as.
Genivaldo de Souza Santos
19
Reinaldo Matias Fleuri
20
Introdução
O presente texto está vinculado tanto ao projeto de pós-
doutorado A floresta como projeto de vida: educação e espiritualidade em
perspectiva decolonial, em fase inicial de desenvolvimento, quanto às
leituras, reflexões e das relações de amizade desenvolvidas no
GEPEES Grupo de Estudo e Pesquisa Educação, Ética e Sociedade
(UNESP-Marília), bem como das ações extensivas desenvolvidas
junto a Aldeia Icatu, formada pelas etnias Kaingang e Terena,
localizada no município de Braúna, na região oeste do estado São
19
Graduado em Filosofia, Mestre e Doutor em Educação pela Unesp/Marília. Docente do
Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Campus de Birigui. Vice-líder do Grupo de Estudo e
Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade (GEPEES), cadastrado no CNPq. E-mail:
genivaldo@ifsp.edu.br
20
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Professor
Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor visitante nacional
sênior (CAPES) junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Estado do Pará (UEPA). E-mail: rfleuri@gmail.com
150
Paulo. Os pressupostos de uma fenomenologia hermenêutica nos
servirão como guia metodológico, assim como a produção de
conceitos, tarefa eminentemente filosófica, com base na leitura e na
interpretação de textos filosóficos, antropológicos e existenciais.
A questão que nos propomos a investigar pode ser sintetizada
com a pergunta realizada no campo da didática e formação de
professores na forma da seguinte pergunta: o que podemos aprender
com os povos indígenas em como decolonizar o imaginário? Trata-se
de uma questão que traz consigo uma carga ético-política, por, de
antemão, reconhecer uma alteridade constitutiva da nossa
subjetividade, e fazendo isso, inverte a relação colonizadora
tradicionalmente estabelecida, que assume a forma da relação dialética
entre ser não ser, na qual o colonizado é destituído de toda potência
do ensino, na medida em que o valor epistemológico dos seus saberes
foi/continua sendo estrategicamente esvaziados e classificados como
meras crenças e superstições.
O conceito de colonialidade foi aplicado inicialmente para
analisar o poder exercido sobre os povos colonizados e tem sua gênese
no sociólogo peruano Aníbal Quijano, exprimindo a ideia de que as
relações de colonialidade nas esferas econômicas e políticas não
acabaram com o fim do colonialismo histórico. Trata-se de um
conceito com dupla pretensão, por um lado, denuncia a continuidade
das formas coloniais de dominação após o fim das administrações
coloniais e por outro possui uma capacidade explicativa que atualiza
e processos que supostamente teriam sido superados pela
modernidade. (Balestrini, 2013, p. 100),
O conceito de colonialidade do poder estendeu-se para outras
esferas, especialmente porque a matriz colonial do poder se manifesta
em uma estrutura complexa de níveis de entrelaçamento: controle da
151
economia, da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, do
gênero e da sexualidade e da subjetividade e do conhecimento
(Mignolo, 2010, p. 12). Reproduzindo-se em uma tripla dimensão:
do poder, do saber e do ser, apresentado como o lado obscuro da
modernidade, indissociavelmente constitutiva dela.
O presente trabalho insere-se na continuidade e no
adensamento das reflexões em torno do entremeio da colonização do
saber e do ser, de onde emerge a possibilidade de múltiplos
imaginários, conforme a multiplicidade dos povos originários do
Brasil, que foram e continuam sendo negados pelos processos
neocolonizadores ainda vigentes.
Os desafios [ainda] presentes na Educação das
relações étnico-raciais.
A lei 11.645/2008 que obriga a inclusão do ensino da história
e da cultura indígena, africana e afro-brasileira em todo o currículo
da educação básica é uma das grandes conquistas no campo educativo,
representando um campo aberto de consolidação de uma educação
intercultural
21
e do fortalecimento da perspectiva decolonial, com
21
Diferente das perspectivas Funcional ou Relacional, assumimos neste trabalho o conceito
de interculturalidade crítica, desenvolvida por Catherine Walsh, em que o ponto de partida
não é o problema da diferença ou diversidade em si, tampouco a tolerância ou inclusão
cultural (neo)liberal. Como ela diz: “[...] el punto medular es el problema estructural-
colonial-racial y sua ligazón al capitalismo de mercado. [...] parte del assunto de poder, su
patrón de racialización y la diferencia que há sido construída a función de ello. [...] es um
llamamiento de y desde la gente que há sufrido um hitórico sometimento y subalternización.
[...] Por eso mismo, la interculturalidade entendida criticamente aun no existe, es algo por
construir [...] como proyecto politico, social, ético y também epistémico de saberes y
conocimientos -, proyetos que afianza para la transformación de las estrucutras, condiciones
y dispositivos de poder que mantienm la desigualdade, racialización, subalternización e
inferiorización de seres, saberes y modos, lógicas y racionalidades de vida.” (Walsh, 2012,
65-66)
152
vistas a uma tomada de consciência das complexas relações étnicos-
raciais que constituem a realidade sócio cultural do Brasil e a
consolidação de práticas de ensino antirracistas e mais inclusivas na
educação nacional, que procura tornar visível a pluralidade como uma
das marcas da constituição do Brasil, para além da persistência do
eurocentrismo.
Entretanto, existe a lei e seu uso, e neste hiato a tentativa de
inserção da temática indígena, africana e afro-brasileira no currículo
escolar de modo a cumprir mais uma lei, sem efetivar, de fato, um
giro de(s)colonial
22
. A implementação desta lei, requer professores/as
que saibam mobilizar saberes e posturas que garantam as condições
de ensino desta história, além disso, requer uma sensibilidade
pedagógica que não reforce um modo colonizador de ensino, nos
moldes de uma assimilação do Outro no Mesmo, reduzindo a
alteridade radical do Outro aos moldes do Mesmo.
Dentre os desafios colocados na formação de professores/as
preparados para o diálogo intercultural e com consciência da
importância de uma leitura em perspectiva decolonial acerca da
constituição de nossa identidade cultural brasileira, está o fato de que
a maior parte dos professores/a que atuam na educação básica é
proveniente de instituições privadas de ensino, formados/as, em sua
maioria, no modelo de Educação à distância, em que a lei é atendida
ao oferecer disciplinas optativas durante a formação dos professores
nas diversas licenciaturas.
22
Sobre esta questão indicamos um trabalho monográfico que mapeou a inserção das
temáticas indígenas, africana e afro-brasileira na região oeste do Estado de São Paulo na
formação de professores de Física nas universidades corporativas/privadas da região
(Gonçalves, 2022).
153
De todo modo a lei representa um avanço e um recurso legal
que uma formação de professores/as comprometida com aqueles/as
que foram tratados/as como subalternos, isto sub alter, um Outro
inferior, pode lançar mão para a construção de uma educação plural,
em que a alteridade, quer nos termos subjetivos ou culturais, são
reconduzidos à sua dignidade e potência. Nesse esforço que nos
alinhamos, ao buscarmos aprender com os povos originários a
decolonizar nosso imaginário acentuadamente ocidental e reduzidos
às categorias de uma filosofia e cultura enraizadas na Grécia, em Roma
e em Jerusalém, em um movimento que despreza as culturas e
conhecimentos provindos dos nossos ancestrais indígenas e africanos,
cujas raízes lançam-se profundas em solo brasileiro.
A tentativa do apagamento, em termos de um esquecimento
das raízes ancestrais que constituem nossa identidade cultural
brasileira faz parte das estratégias colonizadoras, entretanto Rodolfo
Kusch, filósofo e antropólogo argentino, que viveu no século XX, nos
descortinou a possibilidade de um pensamento original da América,
enraizado em solo americano, nos termos de um pensar situado,
baseada numa ética comprometida com a categoria povo,
compreendido em uma chave mais existencial do que econômica e
sociológica. Numa leitura levinasiana, compreendemos o povo como
a figura da alteridade, recusada pela lógica citadina e burguesa e
manifestada na figura do indígena, do quilombola, do camponês, do
mestiço, dos ribeirinhos, dos que vivem em favelas, nas beiras de rios
e igarapés.
A relação culturalmente dada de recusa e de desprezo do povo,
da parte do colonizador, face uma presunção de sua superioridade
cultural, assumiu, ao longo dos séculos, uma dimensão subjetiva
complexa nos mestiços que sucederam a colonização, que pode ser
154
evidenciado pela dificuldade no reconhecimento do sangue indígena
e africano que ainda corre em nossas veias, ao mesmo tempo em que
se acentua o apego a uma identidade europeia fictícia. A relação
colonial deixou como herança a dificuldade de tomarmos consciência
de que nós não somos europeus e que ninguém, muito menos os
europeus, nos consideram europeus. Deste modo, a questão inicial
que Kusch (1976) nos convidou a refletir é sobre quem somos do
ponto de vista geocultural, certamente uma questão fundamental que
deve estar presente na formação dos/as futuros formadores/as
brasileiros/as.
No que tange ao campo da formação de professores/as, a
presença de disciplinas, temas curriculares e práticas de ensino
voltadas para a educação intercultural ainda é tímida, o que serve de
uma maior motivação para a luta. Sendo que a produção de
conhecimento e a presença de pesquisas acadêmicas também se
revestem de um caráter de compromisso que não pode faltar em uma
perspectiva decolonial, na medida em que se trata de tentar ouvir o
que/quem foi/continua sendo silenciado/a pela cultura do Mesmo,
cuja expressão mais próxima está na associação entre modernidade e
colonialidade, conforme nos revela a perspectiva decolonial
(Balestrini, 2003).
Formação de professores entre as Lógicas do Ser e do Estar
Para decolonizar o imaginário eurocentrado, ainda dentro de
uma concepção levinasiana, é preciso uma descentração do eu, do
Mesmo, de um sujeito cartesiano
23
, cujo objetivo máximo é a
23
“Trata-se, então, de uma filosofia na qual o sujeito epistêmico não tem sexualidade, gênero,
etnia, raça, classe, espiritualidade, língua, nem localização epistêmica em nenhuma relação
155
obtenção de um conhecimento racional que garanta uma verdade, no
sentido de uma certeza indubitável, por meio de um método
adequado. Diferentemente desta concepção, a produção de
conhecimento para os povos indígenas ultrapassa a dimensão racional
do conhecimento nos moldes cartesianos, abrigando outras formas de
acesso à verdade, que não cabem nos moldes científicos atuais, mas
nem por isso são inconsistentes ou sem sentido.
Para Kusch (2000), o Estar corresponde a matriz cultural dos
povos de Abya Yala
24
(alcunhada pelo colonizador de América em
homenagem a Américo Vespúcio), nestes povos de ancestralidade pré-
colombiana, cuja expressão mais antiga encontra-se nos povos
Aymaras e Quéchuas, a relação com a ancestralidade, nos termos de
um vínculo com as forças sobre-humanas e não humanas mantém-se
vivas. No caso de Abya Yala, tais vínculos ancestrais estão assentados
em uma metafísica vegetal, cuja dinâmica é descrita em termos da
fagocitação.
25
Paradoxalmente, para ser um brasileiro/a puro/a é preciso ser
misturado/a, isto porque nossa história é costurada com muitas
de poder, e produz a verdade desde um monólogo interior consigo mesmo, sem relação com
ninguém fora de si. Isto e, trata-se de uma filosofia surda, sem rosto e sem forca de gravidade.
(...). Será assumida pelas ciências humanas a partir do século XIX como a epistemologia da
neutralidade axiológica e da objetividade empírica do sujeito que produz conhecimento
científico.” (Grosfoguel, 2007, p. 64-65).
24
De acordo com Fleuri (2017, 280), “a expressão AbyaYala (que significa terra em sua plena
maturidade) vem sendo cada vez mais usada pelos povos originários do continente
objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento.”
25
Cunhada por Kusch (2007) inspira-se no processo biológico da fagocitose, que podemos
compreender como “interação dialética que ocorre a partir do encontro entre o ocidental e o
ameríndio, e todo o arcabouço cultural que cada um traz para essa interação. Propõe um
modo de equilíbrio ou reintegração do humano. Fala-nos na dualidade de um pensar causal
e outro seminal, associados à polaridade existente entre inteligência e afetividade e de tensão
entre esses dois modos de apreensão sensível do mundo [...]”. (Coelho, 2016, p. 35-36).
156
linhas, cujas raízes incluem os ancestrais indígenas que aqui já
construíam civilizações e culturas, os colonizadores europeus e os
negros afrodiaspóricos, que foram trazidos na condição de escravidão.
Desse caldo cultural somos feitos e precisamos reconhecer isso.
Quantos/as de nós reconhecem o sangue indígena e negro correndo
pelas suas veias? Ou é o sentimento de vergonha que acompanha esse
reconhecimento? (na medida em que a esses povos são atribuídos os
adjetivos de selvagem, bárbaros, incultos, atrasados e incivilizados?)
Estruturado na lógica do Estar (matriz de pensamento/cultura
ameríndios) e contrastando a lógica do Ser (matriz da filosofia/cultura
ocidentais), o pensamento/filosofia indígena assume a ancestralidade
como fio condutor de uma sabedoria, perpassada por uma
inteligência outra, nos termos de uma metafísica vegetal,
diferentemente da filosofia eurocentrada, que só admite a
possibilidade da razão como princípio de inteligibilidade, e que em
alguns momentos de sua historiografia filosófica aparece absoluta,
subalternizando/anulando qualquer outra dimensão humana/não
humana como princípio de inteligibilidade.
A lógica do Ser, conforme o filósofo argentino está presente
nas cidades
26
, que foram construídas sobre as cinzas das florestas,
sobre lagos e rios soterrados, abafados ou poluídos, a custa da vida
selvagem, sem contar a poluição/contaminação do ar, das águas e da
terra entre outros feitos humanos, que confirmam uma compreensão
cartesiana
27
, na medida em que o sujeito pensante (res cogitans),
26
Ideia ilustrada de modo literário pelo pioneiro da militância ecológica D. H. Thoreau,
para quem “As nações civilizadas Grécia, Roma, Inglaterra devem sua existência às
florestas primitivas que há séculos se decompuseram, exatamente onde se erguem aquelas
nações.” (Thoreau, 2003, p. 32).
27
Nos termos da cisão inconciliável entre o corpo e a alma, conforme a filosofia cartesiana,
que produziu, a partir daí, uma série de dicotomias que estruturaram a realidade social
157
desconectado da materialidade do mundo (porque pura consciência),
dirige-se ao fora do pensamento como objetos, que carecem de
sentido por não terem consciência, por isso também sem atributos
éticos ou morais, dispensando qualquer relação de respeito ou
consideração, chamados de recursos naturais, disponíveis
exclusivamente para o sujeito humano.
Antecedida por séculos de secundarização promovida em
nome da fé, a ciência moderna, nascente com René Descartes,
procurou cauterizar qualquer indício do mythos, isto é, de uma
narrativa que estrutura uma dada realidade nos modos do
encantamento e do extraordinário. Os povos originários, suas
filosofias e conhecimentos, por serem estruturados na linguagem
mítica foram relegados à categoria de superstição, lendas e fábulas,
desprezadas em sua potência epistêmica e cosmogônica.
Neste sentido uma perspectiva decolonial
28
torna-se
necessária, ao criticar a colonização de mentes, corpos e culturas, ao
mesmo tempo em que procura resgatar e valorizar a produção de
doravante (corpo x alma; teoria x prática; matéria e espírito, entre outras), especialmente a
educativa. Esta dicotomia carregou consigo a compreensão de que o fenômeno humano é
por essência racional, incorpóreo e imaterial, manifestando-se, sobretudo, como consciência,
completamente independente e superior ao corpo e à materialidade do mundo.
Independência e superioridade que, no limite, nos induz a questionar se, de fato, se o Outro
existe - e pensa.
28
Conforme Mbembe: “Propõe em julgamento da “razão ocidental”, de suas formas
históricas de predação e do impulso genocida inerente ao colonialismo moderno. O que os
teóricos decoloniais chamam de “poder colonial” não se refere apenas aos mecanismos de
exploração e predação de corpos, recusos naturais e seres vivos. Também se refere à falsa
crença segundo a qual só existe um conhecimento, um único local de produção da verdade,
um universal e, fora disso, há apenas superstições. O discurso decolonial quer destruir esse
tipo de monismo e derrubar esse projeto de demolição dos diferentes saberes, práticas e
modos de existência.” (MBEMBE, 2020, p. 7. Grifo nosso).
158
conhecimento dos subalternizados, do povo, conforme Rodolfo
Kusch.
Decolonizando o imaginário na formação de professores:
reflexões iniciais.
Para o filósofo argentino, os povos originários de América,
doravante Abya Yala, detém um potencial de sentido, um potencial
espiritual a ser resgatado e reconhecido, que ainda está presente nos
povos autócnes, nas periferias, nos camponeses, quilombolas,
ribeirinhos, guardiões de uma identidade original desse imenso
território, cuja tentativa de massacre pelas conquistas coloniais, quer
espanholas, quer portuguesas, que chegaram juntas com a
modernidade filosófica, não conseguiram destr-los graças às suas
lutas e estratégias de r(e)existências, chegando no século XXI como
testemunhas de uma violência inominável e de uma resistência que
tem muito a nos ensinar. (Krenak, 2019).
Para França (2001), “descolonizar o imaginário é também
exercitar nossa força de criação” (França, 2021, p.100), corroborando
as conclusões de Ailton Krenak e suas ideias para adiar o fim do
mundo, obra em que o escritor e ativista indígena, da etnia Krenak
nos oferece uma reflexão bastante lúcida sobre as estratégias de
enfrentamento dos diversos fins de mundo que atingiram os povos
originários, desde as bombas epidemiológicas trazidas junto aos
colonizadores, cujas doenças desconhecidas pelos ancestrais
indígenas, levavam a dizimação de aldeias inteiras, até a perseguição
exercida pelos garimpeiros, no contexto da fase mais visível da
necropolítica brasileira atual.
159
No contexto das contrarreformas neoliberais na educação,
que reduzem drasticamente o espaço público, na tentativa de uma
alienação mais eficiente dos/as cidadãos/ãs dos seus direitos mais
básicos, cujo resultado é o encurtamento dos seus horizontes
existenciais, a franquia provocada pela reinvenção do imaginário pode
se converter numa força criativa, que reinventa a vida e alarga as
possibilidades do humano no planeta Terra, para além do modelo tão
somente racional e cidatino. Sobre esta questão, Krenak (2019) nos
alerta que:
“O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a
integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição da vida. Então,
pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a
gente desistir dos nossos próprio sonhos. E minha provocação
sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar
mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o
fim do mundo.” (Krenak, 2019, p. 27. Grifo nosso)
Ao refletir sobre a sensação de queda [existencial] que todos
nós sentimos, especialmente nestes tempos tão sombrios das
contrarreformas neoliberais, uma das possibilidades face esta sensação
é justamente a de alargarmos nosso imaginário e fecundá-lo, afinal
“por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? [...]”
(Krenak, 2019, p. 30) ele questiona. Sua resposta é inspiradora e
encorajadora, chegando como forma de convite: “[...] vamos
aproveitar toda nossa capacidade crítica e criativa para construir
paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como lugar
confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em
paraquedas coloridos.” (Krenak, 2019, P. 30. Negrito nosso).
160
A resistência à colonização do imaginário, que ainda continua
ocorrendo, caminha na direção de uma expansão das subjetividades,
como fizeram os ancestrais de Ailton Krenak, não aceitando essa ideia
de que nós somos todos iguais. Embora o projeto colonizador dos
séculos XVI tenha pretendido dizimar as populações nativas em Abya
Yala, ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser
diferentes uma das outras no Brasil, que falam mais de 150 idiomas e
dialetos diferentes. (Krenak, 2019, p. 31)
Ainda neste sentido, associando à prática oriental do Tai Chi
Chuan, aprendemos com Krenak (2019) outra estratégia, a de
suspender o céu, isto é “[...] ampliar o nosso horizonte, não o
horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer nossas
subjetividades, que é matéria que este tempo que nós vivemos quer
consumir.” (Krenak, 2019, p. 32-33). Se a concepção moderna de
cultura ocidental exclui da dimensão do sentido a natureza, para ser
mais fácil depredá-la e consumi-la, opondo natureza x cultura,
também há uma ânsia por consumir subjetividades. “[...] Já que a
natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos
pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões
de mundo, nossas poéticas sobre a existência.” (Krenak, 2019, p. 32-
33)
A expansão de nossa subjetividade tem haver com romper os
limites impostos a ela pela cosmovisão ocidental, que exclui do
universo do sentido tudo que não é humano, e portanto racional. E a
lição que podemos aprender com os povos originários é incluir outras
possibilidades de existências jamais imaginadas.
Essa nova relação de expansão entre humanos e não humanos,
impedida pelo cartesianismo, ainda arraigado na mentalidade
ocidental, tem mais a ver com alegria e resistência e menos com redes
161
de acusação fraticida (Marras , 2020 apud França, 2021), neste
sentido, “[...] as redes de alegria e resistência não devem pretender
implodir o sistema colonial-capitalista em um registro do “uma vez
por todas”, mas no “a cada vez”, a cada brecha, a cada fissura, a cada
infiltração, a cada divergência.” (França, 2021, p. 96). Perspectiva que
corrobora com Catherine Walsh (2021) ao pensar também a
resistência com a imagem das brechas e das fissuras como formas
estratégias de luta nesta expansão e manutenção dos múltiplos
imaginários, que obstaculizam os projetos totalitários e totalizantes,
que procuram assimilar o Outro dentro do Mesmo.
Talvez um dos grandes desafios para decolonizarmos nosso
imaginário, tão marcantemente ocidental, esteja relacionado, por um
lado, a uma nova relação de expansão entre humanos e não humanos
e por outro, a possibilidade de pensarmos um mundo para além do
capitalismo e do comunismo, nos termos de um Cosmonismo,
neologismo criado Marras (2020) para abarcar, ao mesmo tempo,
uma política do cosmo e do comum, fixada em uma rede de
colaboração, de aliança com Gaia, Pacha Mama ou simplesmente
Mãe Terra, fundadas na alegria, o que certamente envolve uma
profunda e constante decolonização dos nossos imaginários,
enquanto educadores/as que formam outros/as educadores/as.
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166
167
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3.p167-188
Capítulo 8
A ética da alteridade e do diálogo são possíveis na
Base Nacional Comum Curricular?
Iranilde Ferreira Miguel
29
Introdução
Em tempos de naturalização da desumanização, a educação é
conclamada por todos os setores da sociedade a exercer o papel de
formação humana, com vistas a transformar a realidade que se impõe.
Seria a educação a panaceia
30
de um processo civilizatório alicerçado
em relações econômicas e sociais capitalistas, que demonstraram
suas capacidades letais de destruição?
O que é a educação senão uma das formas de humanização
dos seres humanos? A palavra educação ocupa posições importantes
nas pautas políticas, nos discursos, nas leis, nas manchetes, e têm se
revelado campo de disputas de poder e principalmente de dominação.
O discurso neoliberal presente nos documentos oficiais dos
currículos, falam da ética, da humanização, da alteridade, do diálogo,
29
Graduada em Pedagogia e História, Mestre em Educação pela Unesp/Presidente Prudente,
Doutoranda em Educação, na Unesp/Marília. Atualmente é supervisora de ensino na
DER/Adamantina - Secretaria do Estado da Educação de São Paulo. Email: iranilde.ferreira-
miguel@unesp.br
30
Panaceia na mitologia grega: deusa da cura de todos os males.
168
do cuidado, porém, concordamos com Freire (1999, p. 19), que
aponta para o domínio da “malvadez da ética do mercado”.
Alteridade, diálogo e ética, são palavras muito usadas no
cotidiano escolar. A evocação do respeito ao outro, respeito às
diferenças, à ética, ao diálogo, à empatia, têm sido repetidas como se
fossem verdadeiros mantras no meio educacional, no entanto a
ausência de práticas de cuidado, de responsabilidade com o outro, a
negação do/de diálogo e da ética, são constitutivos do modo de viver
da sociedade moderna e consequentemente habitam os espaços
escolares.
Este artigo pretende refletir sobre os limites de uma educação
como prática de liberdade na perspectiva freireana e da alteridade do
pensamento Lévinasiano, tendo em vista que as políticas públicas
educacionais reformistas dos últimos 30 anos têm caminhado no
sentido de transformar a educação numa mercadoria e a escola numa
empresa. Recorremos à pesquisa bibliográfica qualitativa num viés
marxista, por entendermos que as análises marxistas são eficientes no
desvelamento das relações econômicas e sociais que se estabelecem na
definição de políticas públicas educacionais. Porém, não nos
prendemos a um único caminho, já que concebemos a possibilidade
e a necessidade de diálogo entre todos os saberes, considerando que
de acordo com Santos (2010, p. 57) “[...] uma das premissas básicas
da ecologia de saberes é que todos os métodos e todos os
conhecimentos convivem com limites internos e limites externos”.
Freitas (2018), na obra A Reforma Empresarial da Educação:
Nova Direita, Velhas ideias, nos alerta sobre os movimentos políticos
que criaram e justificaram a necessidade de uma Base Nacional
Comum Curricular, em nível global.
169
Aquele debate sobre referências nacionais curriculares dos anos
1990 agora tem lugar em vários países sobre a forma “bases
nacionais comuns curriculares”, no interior de um movimento
global de reforma da educação que pede mais padronização,
testes e responsabilização (accountability) na educação (Sahlberg,
2011), atropelando a diversidade e os Estados nacionais, já que
o capital rentista (criador do neoliberalismo) opera de forma
supranacional (Freitas, 2018, p. 12).
Neste contexto, colocamo-nos a refletir sobre a dicotomia
existente entre o ideal de uma sociedade justa, democrática e
inclusiva, o texto produzido como documento norteador
31
para se
atingir esse ideal e o que se pratica como construção dessa sociedade,
sem desconsiderar os interesses de todos os atores envolvidos nesta
trama.
Desta forma, nosso ponto de partida diz respeito ao
extraordinário fracasso do projeto educacional em curso. Não somos
ingênuos em acreditar que a educação seja a solução para todos os
males, mas estamos convictos do seu poder de humanização e de
transformação social. Neste sentido Mézáros, nos fundamenta:
Poucos negariam hoje que os processos educacionais e os
processos sociais mais abrangentes de reprodução estão
intimamente ligados. Consequentemente, uma reformulação
significativa da educação é inconcebível sem a correspondente
transformação do quadro social no qual as práticas educacionais
da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente
importantes funções de mudanças (Mészáros, 2008, p. 25).
31
BNCC
170
Do outro lado, Zygmunt Bauman nos alerta em sua obra
Vidas desperdiçadas, sobre os níveis intoleráveis de desumanização
que o modelo econômico capitalista neoliberal impõe à humanidade:
A produção de “refugos humanos”, ou, mais propriamente, de
seres humanos refugados (os “excessivos” e “redundantes”, ou
seja, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou
obter permissão para ficar), é um produto inevitável da
modernização e um acompanhante inseparável da modernidade
(Bauman, 2005, p.12).
Este duro diagnóstico, nos levou a pensar a BNCC na
perspectiva de um diálogo entre Emmanuel Lévinas e Paulo Freire. A
escolha desses autores justifica-se pela proximidade dos pensamentos
de ambos. Paulo Freire com a pedagogia do oprimido, propondo uma
educação como prática de liberdade e Emmanuel Lévinas com a ética
da alteridade, propondo a responsabilidade desinteressada com o
outro, e também porque como já dissemos anteriormente o discurso
da alteridade, do diálogo e do cuidado com o outro estão presentes
no cotidiano escolar, sem contudo, fazer parte da cultura escolar.
Paulo Freire e Emmanuel Lévinas: é possível um dlogo?
Não temos dúvidas da aproximação e do diálogo que se
estabelece entre esses dois autores. A ética da alteridade de Lévinas é
uma resposta à desumanização provocada pelas guerras mundiais
vividas pelo autor que teve parte de sua família massacrada pelo
nazismo. Enquanto foi mantido prisioneiro, experimentou o
“amargor da segregação anti-semita e viu seus companheiros serem
torturados e assassinados” (Bezerra, 2013, p. 178). Lévinas,
171
experimentou a crueldade de um homem contra outro homem, e
diante da barbárie humana, desnudada pela guerra e pelo nazismo,
elaborou seu pensamento filosófico onde a responsabilidade com o
outro é fundamental.
No pensamento freireano encontramos a indignação, fruto da
experiência do autor, com os “esfarrapados” do mundo e o
inconformismo com a negação do outro como gente, como humano.
Em entrevista, Freire (1997) diz:
Quando muito moço, muito jovem, eu fui aos mangues do
Recife, aos córregos, aos morros do Recife, às zonas rurais de
Pernambuco, trabalhar com os camponeses e com as
camponesas, com os favelados [...]. Mas o que acontece é que
quando eu chego lá a realidade dura do favelado, a realidade dura
do camponês, a negação do seu ser como gente, a tendência
aquela adaptação, aquele estado quase inerte diante da negação
da liberdade, aquilo tudo me remeteu a Marx. Eu sempre digo,
que não foram os camponeses que disseram a mim: Paulo, tu já
leste Marx? Não, de jeito nenhum! Eles não liam nem jornal...
Foi a realidade deles que me remeteu a Marx (Freire, 1997).
O pensamento lévinasiano, reivindica a condição ética da
alteridade como dimensão primeira da existência humana (Ruiz,
2011). A pedagogia freireana, por sua vez, manifesta-se no
compromisso com o outro, como compromisso político/social de
libertação, de humanização. Lévinas e Freire denunciam a
desumanização, e elegem a ética como elemento fundante das/nas
relações humanas.
O pensamento desses autores nos desafia a compreendê-los e
a viver os conceitos por eles criados, por isso consideramos nossas
reflexões oportunas em meio ao cenário caótico em que esimersa a
172
vida humana, que em nome do progresso desenfreado da
modernidade assistimos ao banimento de uma grande parcela de
humanos serem convertidos à condição de “refugo humano”
(Bauman, 2005, p.13).
A centralidade da ética nas obras de Paulo Freire
e Emmanuel Lévinas
A ética para os autores não se limita a um conjunto de
códigos, com princípios que devem ser seguidos. Ambos propõem a
responsabilidade com o outro na forma de agir no cotidiano, como
forma de restauração da humanidade perdida na totalidade da
violência e da negação do Ser.
A obra de Paulo Freire é perpassada pela rigorosidade ética
que denuncia a desumanização e conclama a ação libertadora.
Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso
quando me refiro às injustiças a que são submetidos os
esfarrapados do mundo. [...]. Em tempo algum pude ser um
observador "acinzentadamente" imparcial, o que, porém, jamais
me afastou de uma posição rigorosamente ética. [...]. Mas, é
preciso deixar claro que a ética de que falo não é a ética menor,
restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do
lucro. Em nível internacional começa a aparecer uma tendência
em acertar os reflexos cruciais da "nova ordem mundial", como
naturais e inevitáveis. A ética de que falo é a que se sabe afrontada
na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É
por esta ética inseparável da prática, jovens ou com adultos, que
devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em
nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas
relações com eles. (Freire, 1999, p. 15-17).
173
O compromisso ético de Freire é de luta contra a
desumanização. Para ele “[...]a violência dos opressores, que os faz
também desumanizados, não instaura uma outra vocação − a do ser
menos”. Portanto, não há outro caminho senão o do “[...] diálogo
crítico e libertador” (Freire 1987, p. 30-51).
E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao
buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-
la, não se sentem idealisticamente opressores, nem se tornam, de
fato, opressores dos opressores, mas restauradores de
humanidade em ambos. E aí esta grande tarefa humanista e
histórica dos oprimidos libertar-se a si a aos opressores. (Freire,
1987, p. 300).
Em Lévinas, a ética é a filosofia primeira. Como filósofo,
Lévinas questiona a forma de se produzir o conhecimento, a verdade,
que despreza a subjetividade do humano e estabelece uma relação de
poder, dominação com outro, transformando o outro num mesmo e
reduzindo as experiências concretas, a diversidade à uma totalidade
capaz de explicar todas os fenômenos e as coisas.
A ética é abertura e resgate da subjetividade e das diferenças
do ser e cria espaço para uma relação com outras experiências, outras
subjetividades e outras diferenças, e portanto para a alteridade. Esta
relação nos abre espaços de conhecimento e isso se dá por meio da
epifania do rosto. O rosto humano é a principal característica da
humanidade, e é a partir dele que podemos alcançar o infinito, ou
seja, pelo rosto é possível ir além da totalidade e atingir o
desconhecido. O rosto é um fenômeno que não pode ser reduzido a
uma verdade, a uma totalidade, a um conceito. Lévinas propõe o rosto
como uma superação da totalidade, como possibilidade de definição
174
de outrem, na perspectiva de desvelamento do que
estranho/desconhecido, e é pois a ética que nos obriga a assumir a
responsabilidade de proteção desse estranho, desse outro, pois só
assim temos acesso à infinitude.
A filosofia lévinasiana e a pedagogia freireana, se conversam,
se completam e nos abrem caminho para pensarmos eticamente um
novo projeto de sociedade, que passa obrigatoriamente pela educação.
Neste ponto retomamos com Paulo Freire, que propõe uma
educação libertadora, tendo o diálogo como “fenômeno humano”
(Freire, 1987, p.77).
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa,
nem tampouco nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras
verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir
humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo
pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos
pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar (Freire, 1989, p.
78).
Diante da grandeza do pensamento dos autores em pauta,
voltamos à nossa proposta inicial de refletir sobre os limites de uma
educação que pretende libertar e respeitar as diferenças, mas que
entende a educação como uma mercadoria e a escola como uma
empresa.
Base Nacional Comum Curricular e o pensamento
lévinasiano e freireano
Diante do que já expusemos, coube-nos buscar e detectar em
que medida a alteridade, a ética e a dialogicidade estão presentes na
BNCC.
175
Em primeiro lugar julgamos necessário considerar a
concepção de aprendizagem presente na base.
Ao longo da Educação Básica, as aprendizagens essenciais
definidas na BNCC devem concorrer para assegurar aos
estudantes o desenvolvimento de dez competências gerais, que
consubstanciam, no âmbito pedagógico, os direitos de
aprendizagem e desenvolvimento (BRASIL, 2018, p. 8).
A BNCC estabelece aprendizagens essenciais, direitos de
aprendizagem para o desenvolvimento de dez competências gerais.
Art. 2º As aprendizagens essenciais são definidas como
conhecimentos, habilidades, atitudes, valores e a capacidade de
os mobilizar, articular e integrar, expressando-se em
competências.
Parágrafo único. As aprendizagens essenciais compõem o
processo formativo de todos os educandos ao longo das etapas e
modalidades de ensino no nível da Educação Básica, como
direito de pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e qualificação para o trabalho (Resolução
CNE/CP Nº 2, 2017).
As dez competências gerais definem o que se deve ser aprender
e para que se aprende, são consideradas a espinha dorsal do processo
de aprendizagem. Por isso destacamos as competências 8-
autoconhecimento e cuidado, 9- empatia e cooperação e 10-
responsabilidade e autonomia:
8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e
emocional, compreendendo-se na diversidade humana e
176
reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e
capacidade para lidar com elas.
9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a
cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao
outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da
diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes,
identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de
qualquer natureza.
10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabi-
lidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando
decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos,
sustentáveis e solidários (BNCC, 2018, p. 10).
Isto posto, é possível afirmar que o pensamento lévinasiano e
freireano perpassa a BNCC. No entanto, à medida que nos
aprofundamos na leitura do documento constatamos que tais
conceitos não encontram espaço para se concretizarem.
A alteridade, a ética e o diálogo, aparecem como uma fachada
que esconde a verdadeira natureza dessa reforma.
A Base Nacional Comum Curricular: a educação como
mercadoria?
Não podemos nos esquecer que a BNCC é o documento que
normatiza em nível nacional a educação básica e portanto diz respeito
a vida de toda a sociedade. Vejamos a definição do que é a BNCC.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento
de caráter normativo que define o conjunto orgânico e
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos
devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da
Educação básica, de modo a que tenham assegurados seus
177
direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade
com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE)
(Brasil, 2018, p. 7).
Um documento desta envergadura, que institui diretrizes para
um currículo comum, não se constitui apenas de uma construção
textual e linguística, mas traduz a concepção de mundo e cultura da
sociedade.
Chamam atenção as vozes contrárias que se levantaram contra
a base. A trajetória de construção, discussão e homologação do
documento foi marcada por disputas e interesses dos mais diversos,
dentre eles destacamos a forte atuação do movimento Escola Sem
Partido (ESP) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Educação (ANPED).
Em primeiro lugar buscamos respostas às perguntas: a quem
interessa uma Base Nacional Comum Curricular? Em que contexto a
proposta de uma base curricular é construída?
O Brasil não passou incólume ao movimento das políticas
educacionais globais e a educação brasileira tem sido campo de
disputas econômicas e políticas e nos últimos 30 anos essas disputas
tem sido orquestradas pelos interesses neoliberais conservadores.
Para compreendermos o contexto de proposição de
construção de Base Comum Curricular, recorremos a Ball (2020),
que mostra como operam as redes de políticas de educação global que
envolve governos nacionais e organismos internacionais, formando
um teia de interesses e de poderes e que desenvolvem e colocam em
implementação em redes globais.
Agências multilaterais, ONGs e interesses e influências de
empresas podem constituir, separadamente ou em conjunto,
178
uma poderosa alternativa de política para o “fracasso” do Estado.
Novas redes e comunidades políticas estão sendo estabelecidas
por meio das quais determinados discursos e conhecimentos
fluem e ganham legitimidade e credibilidade e esses processos
estão localizados dentro de um arquitetura global de relações
políticas que não somente envolvem os governos nacionais, mas
também OGIs (IGOs Organizações intergovernamentais)
[Banco Mundial, OCDE, corporação Financeira Internacional,
Organização Mundial do Comércio], corporações
transnacionais e as ONGs (Ball, 2020, p.34-35).
A BNCC foi gestada no bojo desse emaranhado de interesses,
relações e conexões de rede. Para nos mostrar a complexidade dessas
relações, Ball (2020) apresenta uma “pequena fatia de uma enorme
gama de eventos diversos” das atividades da Atlas Economic Research
Foundation (Fundação Atlas de pesquisa Econômica), “lançou ou
alimentou e conecta uma rede global de mais de 400 organizações de
mercado livre em mais de 80 países”, inclusive no Brasil com o
Education For All Brasil (Educação para Todos) e Instituto
Liberdade, Brazil.
179
Figura 1- The Foundation (Fundação Atlas de Pesquisa Econômica) BALL (2020:
p. 51).
Não temos pretensões de discutir a política pública
educacional brasileira, mas revelar e provocar o leitor em relação aos
interesses envolvidos na construção de uma Base Nacional Comum
Curricular de forma a reconhecer os limites que tais interesses
impõem à prática de uma educação contra a desumanização.
Em segundo lugar, ressaltamos a atuação dos grupos
conservadores, representados pelo movimento Escola Sem Partido
ESP, e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação ANPED, representando pesquisadores educadores e
segmentos da sociedade civil. Sobre o movimento Escola Sem Partido
EPS, Algebaile esclarece:
180
Criado em 2004, com o objetivo manifesto de “dar visibilidade
à instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e
partidários”, a organização Escola sem Partido se apresenta como
um “movimento” e como “uma iniciativa conjunta de estudantes
e pais preocupados com o grau de contaminação político-
ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino
básico ao superior” (Algebaile, 2017, p. 64).
Nosso interesse nos embates travados em relação à BNCC,
deve-se aos resultados da atuação do Movimento Escola Sem Partido
materializadas no texto final da BNCC, que segundo Souza Junior
(2018), foi alterado suprimindo as questões de sexualidade e
identidade de gênero:
Por outro lado, houve um retrocesso sobre a discursão sobre
gênero e sexualidades, no PNE (2015) e na BNCC (2017
versão), documentos que suprimiram tal debate, atendendo aos
pedidos da bancada fundamentalista / tradicional presente no
Congresso Nacional e do movimento ESP (Souza Junior, 2018,
p.19).
A ANPED, por sua vez, em Assembleia Ordinária, realizada
durante a 38ª Reunião Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação, manifestou-se, contrária a Base Nacional Comum
Curricular, por meio de um manifesto, apresentando os motivos pelos
quais se colocavam contrários à BNCC. Dentre esses motivos
destacamos:
1 - A proposta de BNCC em análise no Conselho Nacional de
Educação vem sendo questionada em sua constitucionalidade e,
certamente, ainda do ponto de vista legal. A proposta fere a LDB
181
nos seguintes aspectos: a) Não respeita o princípio do pluralismo
de ideias e concepções pedagógicas; [...].
5- Entendemos que oferecer os mesmos conteúdos a
estudantes/alunos com diferentes experiências sociais e de
conhecimento não promoverá a equalização almejada e
anunciada pela base, ao contrário, ao tratar igualmente os
desiguais bases promoverá o aprofundamento das desigualdades
(ANPED, 2017, p. 1).
Esses embates que nos motivou a buscarmos as produções
acadêmicas com problematizações e análises críticas da BNCC, e
pudemos constatar a existência de vários trabalhos/pesquisas que
apontam uma série de problemas em relação à necessidade de uma
Base Nacional Comum Curricular, às concepções e interesses nela
contidos.
Por hora nos deteremos na tentativa de apagamento das lutas
historicamente travadas pelos sujeitos, humanos, portadores de
deficiência e LGBTQIA+, vítimas de processos de exclusão e
violências ao longo da história. Buscamos em Freire, a voz que nos
representa:
A prática preconceituosa de raça, de gênero ofende a
substantividade do ser humano e nega radicalmente a
democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a
impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que
assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que
discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres (Freire,
1996, p. 20).
Embora, preceitue o respeito ao outro e aos direitos humanos,
valorização da diversidade de indivíduos, grupos ligados à extrema
182
direita e a religiosos conservadores, após intensa pressão, conseguiram
retirar do texto da BNCC em discussão, expressões como orientação
sexual e conteúdos relacionados ao conceito de gênero, alegando que
tais temas devem ser tratados no âmbito familiar. Para nós, tal
posicionamento caracteriza-se no apagamento de alteridades, mesmo
prescrevendo o exercício da empatia e do diálogo, prevaleceu a palavra
e o interesse de alguns:
[...] dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito
de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer
a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato
de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais (Freire,
1989, p. 78).
No que se refere aos portadores de deficiência, é inegável o
avanço conquistado nas últimas décadas no tocante à inclusão,
embora estejamos longe de afirmar que essas conquistas tenham de
fato garantido a inclusão escolar. Esperava-se que a BNCC
apresentasse novas possibilidades de inclusão, porém pesquisadores e
profissionais da educação ligados à educação especial apontam
retrocessos no longo processo de inclusão já trilhado.
Não vamos nos aprofundar neste debate pois este não se
constitui o objeto deste artigo. Mas consideramos pertinente registrar
os apontamentos de Mercado e Fumes:
A crítica que fazemos aos documentos da BNCC é que ele está
corrompido por uma visão política regulatória e empresarial.
Poderíamos até pensar que dentro da proposta de currículo
apresentada há um avanço, entretanto, como expressão histórico
e social, esse currículo não atende as reais necessidades dos
estudantes com e sem deficiência, do contexto e de valores e
183
crenças representativos da diversidade humana. [...]. O discurso
de uma educação especial inclusiva revela uma fantasia de
Inclusão Escolar que, uma vez mais, se viabiliza por meio de
exclusões (Mercado e Fumes, 2017, p. 13).
Não temos dúvidas sobre o caráter conservador da BNCC em
consonância com a lógica desumanizadora do capital, embora o
documento apresente uma narrativa capaz de convencer até mesmo
os mais críticos. Neste sentido Dardot e Laval nos ajudam a
compreender esse fenômeno:
O neoliberalismo tem uma história e uma coerência.
Combatê-lo exige não se deixar iludir, fazer uma análise
lúcida dele. O conhecimento e a crítica do neoliberalismo
são indispensáveis. [...]. Nesse sentido, o neoliberalismo
não é apenas uma ideologia, um tipo de política
econômica. É um sistema normativo que ampliou sua
influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital
a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida
(Dardot e Laval, 2016, p. 7).
Importante atentar que a desumanização que transforma seres
humanos em “refugos constituiu-se como algo natural embora nos
faça viver em constante estado de guerra.
184
Conclusões Provisórias
Para concluir o nosso capítulo, optamos por usar a expressão
conclusões provisórias, por entendermos que não é possível encerrar
nossas conclusões como prontas e acabadas, tampouco temos a
pretensão de apresentar caminhos para a solução do problema. Nosso
objetivo é o de provocar inquietações, desassossego...
A história já nos ensinou de maneira dolorosa os efeitos do
processo desumanizante provocado pelo apetite voraz capitalista, no
entanto, continuamos trilhando o mesmo caminho, como se não
houvesse nenhuma alternativa.
Não vislumbramos possibilidades de mudança num futuro
próximo, que aponte para práticas que possam mudar o rumo da
marcha desse processo incivilizatório.
Resistimos à tentação de prescrever uma saída e optamos por
concluir provisoriamente que não há espaço para o pensamento
Lévinasiano e freireano na BNCC. Conforme procuramos
demonstrar ao longo desse trabalho, a ética da alteridade é antagônica
ao aniquilamento do outro e o diálogo como ato de liberdade, não
pode ser pretexto para manipulação, “senão gerador de outros atos de
liberdade” (Freire, 1987, p. 80).
A BNCC é a cartilha educacional do neoliberalismo
educacional que vê a educação como mercadoria e a escola como
empresa. Uma empresa que tem como objetivo fabricar um
neossujeito” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 327) que tem como
princípio básico o envolvimento total consigo mesmo.
185
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188
189
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3.p189-206
Capítulo 9
Um olhar
afetivo
para educação:
A imanência dos afetos em Espinosa
Mariane da Costa Santos
32
Introdução
O “olhar” que temos sobre a escola/educação, é que ela deve
ser uma máquina de produzir e reproduzir conhecimento, tirando
provavelmente sua principal função, que é a formação do
homem(paideia). Com instrumentos e métodos para aprender, com
um vasto conteúdo que deve ser apreendido, com exigência
quantitativa e não qualitativa, são características de uma educação
conteudista, com isso os estudantes acabam por recorrer a recursos
como, decorar conteúdo para passar na prova. Desse modo, passamos
a retirar desse processo as experiências, as singularidades, os afetos que
compõem todos que fazem parte de uma comunidade escolar, em
especial, o docente e o discente. Isso, geralmente, causa um
desinteresse, pois esses indivíduos passam a não se reconhecer dentro
do processo educacional.
Portanto, quando falamos em educação não é simplesmente
explicar sobre competências e habilidades intelectuais e morais que os
32
Mestranda em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciência, Unesp. E-mail:
marianecosta1001@gmail.com
190
alunos devem ter, mas também uma construção de possíveis relações
e ligações afetivas que sejam capazes de ampliar as questões que são
tratadas dentro das salas de aulas e fora dela. Por exemplo, quando
perguntamos a um estudante porque ele escolheu determinado curso
ou orientador, grande parte das respostas estão ligadas em relações
cognitivas e afetivas. Assim, a ligação mente-corpo, professor-aluno
fazem parte do desenvolvimento educacional e autonomia de ambos.
Para o diálogo iremos trazer o filósofo holandês Baruch de
Espinosa
332
, que trata de uma teoria dos afetos, como algo que faz
parte da natureza humana e, portanto, não ne-la, também como ele
pensa sobre a relação corpo e mente, que não são duas coisas
separadas, mas que um não existe sem outro e, que não há uma
hierarquia da mente sobre corpo e por isso devemos tra-los como
uma única coisa. Com isso, Espinosa nos convida a romper uma
tradição filosófica que coloca a mente como superior ao corpo, que
reduz o ser à consciência, a razão.
A proposta é pensar em uma imanência dos afetos, como
compreensão das atividades desses encontros de corpos com a
finalidade de adquirir conhecimento. O corpo no qual estamos nos
referidos, é o encontro de professores e alunos que podem afetar e
serem afetados quando acontecem essas relações. E assim estimular o
aumento da vontade de existir de cada ser, buscando a liberdade e
emancipação dos seres humanos. Nesse sentido, ressalta a importância
do papel do professor para que essas ações possam ser realizadas e que
ele não seja apenas um mestre explicador, segundo Jacques Rancière,
33
Seu prenome em português, Bento, é traduzido para o latim por ‘Benedictus’ e para o
hebraico por 'Baruch''' (Rizk, 2006, p.7).
191
mas que a educação seja um ato de amor e liberdade, segundo Paulo
Freire.
Em suma, ato essencial do mestre era explicar, destacar os
elementos simples dos conhecimentos e harmonizar sua
simplicidade de princípio com simplicidade de fato, que
caracteriza os espíritos jovens e ignorantes. Ensinar era, em um
mesmo movimento, transmitir conhecimento e formar os
espíritos, levando-os, segundo uma progressão ordenada, do
simples ao complexo. (Rancière, 2002. p. 16-17)
Para isso, iremos abordar a concepção dos afetos, a relação
corpo-mente e teoria do conhecimento, proposto pelo Espinosa
34
,
pensando na educação. Embora o filósofo não tenha colocado uma
teoria sobre a educação, a ideia é trazê-lo para pensar conosco essa
problemática. Temos objetivo, ressaltar a importância dos afetos, a
experimentação entre os corpos para a produção de bons encontros,
em vista de propiciar e aprimorar o conhecimento de forma ativa e
livre, tendo como base a filosofia e a educação. E ainda discutir os
problemas atuais da educação e apresentar uma capacidade
libertadora do pensamento para a atividade pedagógica.
34
Baruch de Spinoza nasceu em Amsterdã, na Holanda século XVII, foi educado como
judeu e aos 24 anos sofreu excomunhão (Herem), provavelmente por suas ideias filosóficas.
Alguns dos seus escritos só foram publicados após sua morte, como o livro A Ética e
Tratado Político, por serem considerados perigosos naqueles períodos, onde reinava a
religião com o governo teocrático e a monarquia.
192
Ética e Educação
Um conceito fundamental para compreendermos a educação
brasileira, que é a hegemonia, que segundo Gramsci, é um processo
que expressa a consciência e os valores organizados praticamente por
significados específicos e dominantes, daí já podemos perceber o que
é a nossa educação, desde do Brasil Colônia até atualmente, uma
relação de dominado e dominante, principalmente por aquelas de
classes sociais com um maior poder financeiro, ou seja, poder de uma
classe sobre outra.
Desse modo a sociedade civil e a hegemonia nos permitem
pensar a educação como instrumento de dominação e reprodução das
relações sociais e não de emancipação, pois dentro dessa sociedade
existe ideologias, como por exemplo, que a educação apenas
representa uma organização econômica que gera lucro, porém a
educação é muito mais que isso, ela carrega também uma concepção
de mundo. Contudo podemos perceber que ainda hoje a escola
também constitui em um instrumento de reprodução e manutenção
das relações capitalistas de produção, que contribui ainda mais para o
aumento das desigualdades sociais.
Vivemos num mundo dominado por aquilo que a ideologia
dominante convencionou designar como ‘progresso
tecnológico’. Resultado da exploração física e psíquica de
milhares de homens, mulheres e crianças, da domesticação de
seus corpos e espíritos por um processo fragmentado desprovido
de sentido, da redução de sujeitos à condição de objetos sócio-
econômicos, manipuláveis politicamente e pelas estruturas da
organização burocrático-administrativa, o ‘progresso’ seqüestra a
identidade pessoal, a responsabilidade social, a direção política e
193
o direito à produção da cultura por todos os não-dominantes
(Chauí, 1992, p. 56-57).
No Brasil houve várias "propostas" de educação, no período
do Brasil Colônia que traz a educação conjugada com a religião, com
o objetivo de catequizar e como sempre no sentido hegemônico.
Porém na República com o processo de industrialização, pressionou
o ensino no sentido de fortalecer o mercado, com a
instrumentalização da educação e mais uma vez com o objetivo do
lucro e com o fornecimento de mão-de-obra barata. Foi também
implementado pelo regime militar que veio para atender aos interesses
do capital, agora estrangeiro, com o liberalismo e podemos observar
mais uma vez a relação entre dominante e dominado.
Essa educação é voltada para o "treinamento" de pessoas para
o mercado de trabalho. Esse tipo de seguimento leva os homens a uma
doutrinação e aprisionamento do pensamento, pois as exigências pelas
boas notas e quantidade de conteúdos, acabam se tornando uma
máquina de acúmulo de conteúdos, sem espaço para refletir sobre
aquilo que está sendo "ensinado" e sem espaço para a singularidade,
a subjetividade de cada pessoa dentro o processo educacional.
Confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e
negar-lhe a importância que tem no processo de transformação
do mundo, da história, é cair num simplismo ingênuo. É admitir
o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra
ingenuidade, a do subjetivismo, que implica homens sem
mundo. (Freire, 2020, p. 51)
Uma outra característica é a opressão e a negação dos afetos e
a separação entre corpo e a mente, como se um pudesse conhecer sem
194
o outro. Desse modo, não podemos negar os afetos e nem as ações
humanas, pois eles fazem parte de nós enquanto corpos que são
afetados e afetam outros corpos. Os afetos são a potência de um
corpo. Este corpo pode diminuir ou aumentar a sua potência e por
sua vez esses afetos estão diretamente ligados ao corpo e mente, pois
segundo Espinosa, eles não se separam: são um só, um completa o
outro.
No capítulo três da Ética, Espinosa nos explica a teoria dos
afetos, que tem um papel fundamental na sua filosofia e logo no
prefácio denúncia “os que escreveram sobre os afetos e o modo de
vida dos homens parecem, em sua maioria, ter tratado não de coisas
naturais, que seguem as leis comuns da natureza, mas de coisas que
estão fora dela (...) Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas
quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou
refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções.”(2019, p. 96).
A vista disso, compreende que as percepções dos homens sobre o
mundo são singulares.
“Por coisas singulares compreendo aquelas coisas que são finitas
e que têm uma existência determinada. E se vários indivíduos
contribuem para uma única ação, de maneira tal que sejam
todos, um conjunto a causa de um único efeito, considero-os
todos, sob este aspecto, como uma única coisa singular”.
(Espinosa, 2019, p. 52).
Cada indivíduo tem uma ideia singular sobre o que está em
nossa volta, e é essa subjetividade que diferencia um sujeito do outro.
Mas como nenhum ser está sozinho, eles passam a ser afetados e a
afetar outros corpos. Cada corpo é afetado de múltiplas e singulares
formas. “Por corpo com modo que exprime, de uma maneira definida
195
e determinante, a essência de Deus, enquanto considerada como coisa
externa. (Espinosa, 2019, p.51).
Quando pensamos o que é uma sala de aula, podemos
pressupor que um lugar onde corpos que estão em constante contato
uns com outros, ou seja, estavam afetando e sendo afetados. Por
exemplo, a relação entre o professor, os alunos e todos que compõem
esse ambiente escolar, existe uma “troca de conhecimento" (ainda que
isso aconteça de forma hierárquica), de mentes e comunicação
corpóreas entre ambos.
Não podemos negar os afetos e nem as ações humanas, pois
eles fazem parte de nós enquanto corpos que são afetados e afetam
outros corpos. Os afetos são a potência de um corpo. Segundo
Espinosa, “o corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras,
pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto
outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem
menor”. (Espinosa, 2019, p. 99). Essa potência Espinosa chama-se de
Conatus
8
e, dependendo dos afetos que irão nos afetar, essa potência
esse “esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu
ser nada mais é do que a sua essência” (Espinosa, 2019, p. 105) - pode
diminuir ou aumentar. De acordo com Marilena Chauí,
O aumento da potência do conatus é experimentado
afetivamente como alegria; sua diminuição como tristeza. Ao
definir o desejo como afeto determinado por uma afecção,
Espinosa o define como determinado pela alegria ou pela tristeza,
de sorte que o conatus deseja possuir e conservar tudo quanto lhe
propicie alegria de afastar e excluir tudo quanto lhe traga tristeza.
Enquanto paixão, o desejo alegre é desejo de posse das coisas e
humanos, sentidos como causa da alegria; e o desejo triste é o
desejo de destruição de coisas e humanos, sentidos como causa
de tristeza. Assim, amor e ódio, esperança e medo, benevolência
196
e crueldade, mansidão e cólera, de misericórdia e vingança,
soberba e humildade, glória e inveja habitam natural e
necessariamente todos os humanos. (Chauí, 2003, p.177).
Assim, existem os afetos primários, dos quais irão derivar
todos as outras paixões, que são: a alegria, a tristeza e o desejo
35
, que
pertencem à própria natureza humana e que pela mente afirmam a
força de existir (seja de forma mais ou menos potencializada, pois
quando somos afetado por um afeto ruim, como o medo e ódio, nossa
potência diminui e quando somos afetados pelo bons afetos, como o
amor e esperança, nossa potência aumenta) do corpo humano e que
são os afetos secundários que derivam dos afetos primários.
Dessa maneira, os afetos estão em uma constante variação e
que vai determinar nossa potência. Se formos afetados por uma
perfeição maior (alegria), nossa potência de existir aumenta e se for
por uma perfeição menor (tristeza), nossa potência diminui e interfere
diretamente na potência de agir do corpo. Espinosa, ainda classifica
os afetos como passivos e ativos. A paixão é um afeto passivo, embora
ela possa causar alegria, entretanto quando mais crescem, mais as
pessoas se deixam dominar por elas e se tornam ignorantes das causas
das coisas, como por exemplo, a paixão pela fortuna. A fortuna não é
algo constante, ela é volátil, por isso o homem fica cativo do processo
de perda dessa fortuna. Se o indivíduo começar a perder os bens, sua
alegria se transformará em tristeza e, o medo em esperança de
recuperá-la. Quando o homem começa a perder as riquezas, por
soberba passam a pedir conselhos para outros homens a fim de
recuperar os bens pedidos e conforme esse medo vai aumentando e
35
“O desejo é a própria essência do homem, isto é, o esforço pelo qual o homem se esforça
por preservar em seu ser”. (Espinosa, 2019, …)
197
transformando em pânico, ele passa a recorrer a oráculos, a deuses, e
que é segundo Espinosa como nasce a superstição.
Pensamos assim, fica ainda mais nítido quando falamos sobre
as relações educacionais. Se partimos do pressuposto de que uma aula
consiste em o professor explicar vários conteúdos e os estudantes não
são afetados por eles, pois não fazem parte das suas vivências, passam
a não se reconhecer dentro do processo educacional. Não existe uma
mudança da passividade para atividade dos afetos, pois a mente não é
estimulada, não se produz bons encontros, porque não existe estímulo
ao conhecimento, ele já está ali pronto. Assim, o corpo e a mente
diminuem a capacidade de agir de um indivíduo e que afeta os outros
indivíduos e por muitas vezes ficamos apenas no nível da erudição,
com o acúmulo de conhecimento e não chegamos ao processo do
conhecimento mesmo, usado a filosofia, conhecemos sobre a filosofia,
mas não a própria filosofia, que chamaremos do filosofar. Assim, para
Chauí,
A razão ensina que o conatus da mente humana é o desejo de
conhecer e que sua força aumenta quando passa do
conhecimento imaginativo ou de um sistema de crenças e
preconceitos sem fundamento na realidade ao conhecimento
racional das leis da Natureza e ao conhecimento reflexivo de si
mesma e de seu corpo como partes da natureza. (2003, p. 160).
A dualidade corpo-mente é uma discussão que percorre toda
a história da filosofia. Na modernidade, por exemplo, René Descarte
faz a separação entre o corpo e mente, no que privilegia a mente sobre
198
o corpo
36
. Para Espinosa, tudo que existe é substância (Deus): aquilo
que existe em si mesmo e que por si mesmo é concedido, isto é, aquilo
cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser
formado”. (Espinosa, 2019, p. 13).
O homem é um atributo finito da substância, que é
constituída de mente e corpo, ou seja, são única e a mesma coisa.
Apesar disso, Espinosa diz que “[...]não podemos conhecer a
existência de Deus por si mesma[...]” (Espinosa, 2019, p. 141),
porque nós não podemos conhecer Deus na sua essência, pois por
mais que a nossa razão conheça as causas das coisas, como as causas
das tragédias naturais, à medida que nossa mente é limitada e não
conseguimos abarcar conceitos como eternidade e infinito. De todo
modo, a razão não será capaz de abarcar as percepções das
causalidades, da possibilidade de tais acontecimentos, pois essas
percepções se dão através do pensamento humano, que por sua vez é
limitado. Segundo o filósofo, o que conhecemos mesmo são os
atributos
37
e modos
38
da Substância divina. Os atributos são divididos
em Infinitos e Finitos.
Infinito é tudo que compõe a Substância, que é eterno,
ilimitado. Essa discussão irá nos levar à compreensão daquilo que
Espinosa compreende por Natureza Naturante: “[...]o que existe em
si mesmo e por si mesmo é concebido, ou seja, aqueles atributos da
substância que exprimem uma essência eterna e infinita[..]”.
36
Não iremos nos aprofundar sobre esse assunto. Sobre esse assunto indicamos o texto:
DESCARTES, René. Discurso do método: as paixões da alma, meditações. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. (coleção Os Pensadores).
37
“Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como
constituindo a sua essência”. (Espinosa, 2019, p. 13).
38
“Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em
outra coisa, por meio da qual é também concebido”. (ibidem).
199
(Espinosa, 2019, p. 35). “Por Deus compreendo um ente
absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de
infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e
infinita”. (Espinosa, 2019, p. 13).
Finito são as coisas limitadas, que são os atributos da extensão
e do pensamento (corpóreo). Este conceito leva-nos àquilo que
Espinosa compreende por Natureza Naturada: "[..] compreendendo
tudo o que se segue da necessidade da natureza de deus, ou seja, de
cada um dos atributos de Deus, isto é, todos os modos dos atributos
de Deus[..]”.(Espinosa, 2019, p. 35) “A substância corpórea é
composta de corpos, ou seja, de pares, do que afirmar que o corpo se
compõe de superfícies, a superfícies, de linhas e linhas, enfim, de
pontos”. (Espinosa,2019, p. 25).
Por exemplo, o corpo começa a existir em razão de outro
corpo e passa a não existir dependendo do outro corpo. Por isso que
ele é finito, pois sempre percebemos um outro corpo maior. O
atributo do pensamento também é limitado, pois quando começamos
a pensar algo, ele passa a existir enquanto pensamento. Quando
pensamos sobre outra coisa, aquele pensamento que foi pensado
primeiro passa a não mais existir, porque não podemos pensar sobre
duas coisas ao mesmo tempo, ou seja, um pensamento limita o outro.
Assim:
Diz-se finita em seu gênero aquela coisa que pode ser limitada
por outra da mesma natureza. Por exemplo, diz-se que um corpo
é finito porque sempre concebemos um outro maior. Da mesma
maneira, um pensamento é limitado por outro pensamento, mas
um corpo não é limitado por um pensamento, nem um
pensamento por um corpo. (Espinosa, 2019, p. 13).
200
Os modos da substância seriam o modo de ser das coisas:
aquilo que precisa de outro corpo para existir. Por exemplo, o homem
é um modo de Deus, pois precisa de Deus para existir. Dessa maneira,
podemos dizer que existe a essência de Deus no homem, mas não
existe a essência do homem em Deus, mas Deus não precisa de outra
coisa para existir; ele é a causa e o fim em si mesmo, como vimos
anteriormente. Assim a ideia tradicional de Deus é então colocada em
questão.
Com isso não podemos conhecer a essência de Deus, pois o
nosso intelecto não é capaz de abarcar os atributos infinitos da ideia
de Deus, como a ideia de eternidade e finitude. O que conhecemos
são as modificações (particulares) da existência dos atributos finitos
de Deus, como o pensamento e os corpos, pois “As coisas particulares
nada mais são que afecções dos atributos de Deus, ou seja, modos
pelos quais os atributos de Deus exprimem-se de uma maneira
definida e determinada[..]”. (Espinosa, 2019, p. 33).
Assim, tanto o corpo pode ser afetado por outros corpos,
quanto a mente poderá ser afetada por outros modos de pensar. A
capacidade de construção da mente acontece a partir do corpo
quando entra em contato com o ambiente, que produz as ideias e
consequentemente o conhecimento, isso só acontece a partir do
encontro entre corpos. Contudo, podemos dizer que o pensar seria
modificações sobre as coisas do mundo, não apenas como
representação, mas com a experiência do experimentar do próprio
mundo. Muito mais do que apenas uma aula expositiva de conteúdos,
como representação, não seria possível pensar em aulas que os alunos
pudessem experimentar, vivenciar e partilhar suas experiências
pessoais e trazer a realidade dos mesmos para dentro dos muros
escolares?
201
[...] o homem livre procura unir-se aos outros homens pela
amizade (pela prop. 37), e não pela retribuição de favores que
eles, segundo seu afeto, julgam equivalentes, e tenta, em vez
disso, conduzir a si próprio e aos demais pelo livre juízo da razão
e a fazer apenas aquilo que sabe ser primordial. Logo, o homem
Livre, para não ser odiado pelos ignorantes [supersticiosos], e
para não curvar-se aos seus apetites, mas obedecer apenas à razão,
se esforçará, tanto quanto puder, por evitar os seus favores
(Espinosa, 2019, p. 201).
Quando esses homens são tomados pela ignorância e não
sabem a causa das coisas, passam a criar conceitos que sejam úteis a
eles e assim passam a seguir a superstição, por exemplo, como uma
forma de justificar acontecimentos naturais. Segundo Lívio Teixeira,
para chegarmos à liberdade de pensamento e nos livrarmos da
superstição é necessário conhecer quais são os modos de percepção,
como se organizam as ideias, a imaginação e as abstrações na nossa
mente:
E do estudo dessa aplicação o que resulta do ponto de vista da
teoria do conhecimento é sempre isto: a necessidade de superar
as abstrações, perigo sempre presente à mente humana, pois os
dados iniciais de nossa experiência, ou, para usar a linguagem de
Espinosa, a ideia do corpo constitui naturalmente a nossa alma,
são fácil e naturalmente erigidos pela imaginação em realidade
em si, realidades substanciais, o que é a origem dos erros de todas
as filosofias que não a dele mesmo, Espinosa, ou, se quisermos
precisar, daqueles filosofias que ele tem em mente combater: a
escolástica medieval e o cartesianismo ( 2001, p. 156).
De acordo com Espinosa, existem quatro modos de percepção
ou teorias do conhecimento. O primeiro: a do ouvir dizer, o senso
comum. O segundo: o da experiência, o empirismo. O terceiro: é o
202
modo dos matemáticos, o racionalismo. O quarto: como uma visão,
a intuição. A pretensão de Espinosa é separar as percepções das ideias
verdadeiras, pois essa ideia é o que compreende um conceito na
mente, como forma de pensamento, e esse pensamento deve estar livre
das abstrações e imaginações falsas.
O filósofo mostra sinais do que seria essa discussão, no texto
Tratado da Emenda do Intelecto de 1661, que busca determinar qual
o gênero do conhecimento nos é necessário, ou qual o melhor método
para conhecer a verdade, e não podemos chegar na verdade se não
conseguimos chegar na origem, ou seja, conhecer a Substância e só
então nos livrarmos também de todas as superstições. Mas, como para
Espinosa, os homens não nascem racionais e sim submersos na
imaginação, são guiados por apetites de buscar aquilo que seja mais
útil, por sinais que são experimentados de maneira rasa ou apenas
imaginativos. Essas percepções são, portanto, ideias falsas, pois “a
falsidade consiste apenas na privação de conhecimento que as ideias
inadequadas envolvem” (Espinosa, 2019, p. 159).
O que destacamos na teoria de conhecimento de Espinosa, é
que existem graus para chegar ao conhecimento verdadeiro. Muitos
dos homens ficam no primeiro modo, a ouvir dizer “isto é, da
linguagem, da tradição, do ensino, ou por meio de um sinal
convencional arbitrário. Exemplos: ´o dia do meu aniversário; que
tive pais e outras semelhantes, das quais nunca duvidei. (Teixeira,
2021, p. 26). Quando conseguimos ultrapassar esse modo, vamos
para o segundo, a experiência, “Há outras idéias que nos vêm de uma
experiência vaga. Assim a idéia de que morreremos um dia, que o óleo
alimenta a chama e a água a extingue; ou que o cão é um animal que
ladra, o homem um animal racional”. (Teixeira, 2021, p. 27).
203
O terceiro modo é a razão, que segundo Espinosa, é produto
de um raciocínio, ou seja, houve um pensamento que se dá de modo
dedutivo,
Assim, quando para qualquer coisa que consideremos como
efeito, deduzimos a existência de determinada causa; por
exemplo, do fato de sentirmos um determinado corpo, o nosso,
de modo particular, concluímos a união da alma e do corpo, sem
que contudo tenhamos em nossa mente nenhuma idéia clara
dessa união, uma vez que desconhecemos, por ora, qual a essência
do corpo e qual a essência da alma.(Teixeira, 2021, p. 27).
E por último, o modo intuitivo, que é perceber as coisas em
sua essência ou pela causa mais próxima. A grande diferença entre o
terceiro e o quarto é como eles se dão, o primeiro pela dedução e,
portanto, abstrato e o quarto opera por dado, pelo concreto.
Colocamos como exemplo a disciplina de filosofia, nas aulas
percebemos que a discussão parte de uma abstração, que são os
conceitos, para o concreto que seria a realidade, partimos de um
pensamento abstrato dedutivo, para um pensamento concreto
intuitivo; Em outras palavras, pressupõe-se primeiro aprendemos
história da filosofia para aprendemos filosofar, o problema que não
saímos daquilo que já esdado, deduzido, e o filosofar acontece com
um efeito colateral e não como princípio.
Conclusão
Assim, a filosofia de Espinosa tem como meta levar o homem
à liberdade de pensamento. O conhecimento cria maneiras para que
os indivíduos possam se libertar das ideias inadequadas e dos afetos
204
passivos. A proposta não é forçar o filósofo a pensar sobre a educação,
mas mostrar que não podemos negar os afetos nos processos
educacionais, abandonam-se os corpos, as singularidades e viramos
apenas números na chamada da escola e que pensamos junto com
Espinosa os problemas da educação, já que a relação afetiva e o
conhecimento ocupam lugar importante na sua filosofia.
Pensar a sala de aula como um lugar de encontro, é colocar a
possibilidade de nos reconhecermos nos outros, de aprendemos em
conjunto. Uma vez que para acontecer o interesse pelo estudo, somos
instigados a fazer, seja pela curiosidade, pela “paixão” à uma
professora(o), por um livro ou disciplina. A vontade de aprender, de
estudar se dá primeiramente no corpo, naquilo que nos incomoda,
que nos roe a pele e não na mente. O aprender, não acontece da boa
vontade, depende de como nós somos afetados por um determinado
problema, pensando nos conceitos de Espinosa. A escola poderá ser
vista, não apenas como máquina de produzir conhecimento, mas
como um ambiente que produz interações entre professores e alunos,
com a produção de um ensino ativo, potencializando o ser de cada
indivíduo, promovendo encontros bons e alegres, tornando a
educação como instrumento de emancipação e de autonomia.
Referências
CHAUÍ, Marilena. Política em Spinoza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
CHAUÍ, Marilena. O que é ser educador hoje? Da arte à ciência: a
morte do educador. In: BRANDÃO, C. At all. O educador hoje.
10.ed. Rio de Janeiro: Graal. 1992. p. 51-70.
205
DELEUZE, Gilles. Espinosa e o problema da expressão. 1. ed. São
Paulo: Editora 34, 2017.
DIAS, Edmundo Fernandes. Hegemonia: Nova Civiltà ou domínio
ideológico? História e Perspectivas, Uberlândia, p. 5-43, 1991.
ESPINOSA, Baruch de. Breve Tratado: de Deus, do homem e do
seu bem-estar. Tradução: Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso; Luís
César Guimarães Oliva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2019.
ESPINOSA, Baruch de. Obra completa II: correspondências
completas e vida. São Paulo: Perspectiva, 2014a.
ESPINOSA, Baruch de. Obra completa III: tratado teológico
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ESPINOSA, Baruch de. Tratado da Emenda do intelecto.
Tradução: Cristiano Novaes de Rezende. São Paulo: Unicamp,
2015.
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Aurélio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
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Tradução: Cristiano Novaes de Rezende. São Paulo: Unicamp,
2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de janeiro/ São
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206
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro/São Paulo:
Paz e Terra, 2020.
RANCIÉRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a
emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
RIZK, Hadi. Compreender Spinoza. Tradução de Jaime A. Clasen.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
TEIXEIRA, Lívio. A doutrina dos modos de percepção e o conceito
de abstração na filosofia de Espinosa. São Paulo: Unesp, 2001.
207
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3.p207-228
Capítulo 10
Educomunicação, ética e
fake news
:
O papel da escola no combate a notícias falsas
Naiana Leme Camoleze Silva
39
Introdução
O presente capítulo tem como propósito debater a
Educomunicação pela perspectiva da Ética, promovendo diálogos
sobre a importância dos aspectos filosóficos aplicados à educom,
visando contribuir com a capacitação do professor-educomunicador,
discussão esta preocupada com a promoção de práticas educomu-
nicativas inclusivas e com responsabilidade ética no combate a
notícias falsas, ou "fake news".
O objetivo é sugerir análise de conteúdo expresso em
publicações jornalísticas com foco no compromisso ético, - que vão
desde crônicas, reportagens, matérias especiais, e ainda artigos de
opinião e cartas de leitor - em sala de aula, de forma a auxiliar no
processo de ensino-aprendizagem, em que o professor-
educomunicador possa explorar as possibilidades oferecidas pelas
39
Graduação em Letras (UNESP/Assis) e Jornalismo (FEMA/Assis). Mestre em Educação
pela Unesp/Marília. E-mail: nl.camoleze@unesp.br
208
áreas de Filosofia, Educação e Comunicação, neste período fértil que
atravessamos, que é o pós-pandemia.
O ponto de partida é observar o que circulou de possíveis
notícias falsas na pandemia, dos mais diversos tipos e mídias, para
discutir através do viés ético em sala de aula, visando minimizar seu
impacto na educação e na formação de crianças e jovens no Brasil, em
debate ético-moral sobre os riscos de circulação de ideias falsas, sua
recepção e repercussão.
A proposta é incentivar o refletir sobre o material midiático
referente ao período de transição entre pandemia e pós-pandemia da
COVID 19, cujo debate faz-se importante como fonte para discussão
em sala de aula do que foi publicado, visando contribuir com o
combate ao que é chamado popularmente de "fake news", pensando a
escola como um espaço privilegiado, de divulgação e preservação da
verdade, do respeito e do diálogo, por meio dos pontos de vista
cognitivo, científico e de valores éticos e morais. Todo o estímulo a
esse percurso investigativo visa firmar a escola como instrumento de
grande qualidade ética, consolidando-a, deste modo, como uma
ponte entre professor e aluno ao desmascarar o falso jornalismo da
contemporaneidade.
Como é sabido, as "fake news", ou seja, notícias falsas,
publicadas por veículos de comunicação e espalhadas como se fossem
informações reais esse tipo de publicação, entre outros aspectos, visa
reforçar ou legitimar algum ponto de vista, ou ainda prejudicar
alguém ou alguma causa, como vimos vastamente nas mídias no
período de pandemia da COVID 19, sendo necessário reforçar que é
de suma importância observar sempre os dois ou todos os lados
envolvidos para poder esboçar algum tipo de análise.
209
Como vimos, o "vírus da notícia falsa" se espalhou
rapidamente contando com suporte da tecnologia e seu efeito a longo
prazo pode ser devastador, pois pudemos observar na pandemia, por
exemplo, que essas publicações com conteúdo tendencioso ou falso
foram espalhadas dos veículos via redes sociais, ampliando seu
destaque na mídia e sociedade, mas que só serviram para reforçar o
pânico, até mesmo gerando violência.
Por isso, diante do cenário atual de pós-pandemia, o meio
acadêmico pode contribuir de forma significativa não somente com a
investigação das lacunas na área, como fonte de pesquisa, revisitando
publicações do gênero, sob o prisma dos olhares de teóricos da
Educomunicação e da Ética, mas fortalecer esse debate que se faz tão
necessário neste momento, principalmente no ambiente escolar.
Aqui, pelo curto espaço, propomos a busca por novas
estratégias de ensino que contemplem o tema, portanto, não
tencionamos sistematizar esse material, mas ressaltar a relevância do
assunto, o colocando como uma boa alternativa a ser trabalhada em
sala de aula. Motivo este que justifica o incentivo ao aprofundamento
deste debate sobre a importância do estudo nas teorias que definem
os conceitos das áreas da Ética e da Educomunicação, bem como
sobre os gêneros jornalísticos, para que, ao final, o interessado, sendo
professor ou aluno, possa discernir sobre o que é verdadeiro e o que é
falso em uma publicação e, a partir de então, debater seu conteúdo.
É em virtude desse pensamento e com esse intuito que esse
artigo se propõe a estimular a análise de publicações de grandes
veículos neste período já citado, propondo que os professores-
educomunicadores possam em suas disciplinas organizar esse
levantamento de notícias do período citado, material que pode passar
por consulta ao que está disposto em acervos digitais de grandes
210
veículos de comunicação, resultando em uma possível catalogação de
um montante midiático para uso em sala de aula, para discussão sobre
fake news, com publicações, por exemplo, feitas no ano de 2020,
selecionando temas dos mais variados.
Desta forma, o que nos propomos é suscitar teorias na área
que possam sustentar o assunto e subsidiar esse professor, pois
interessa-nos, nesse artigo, os eixos ético e educomunicacional, base
para o debate proposto.
E observando que é fundamental sabermos diferenciar o que
é o real em uma notícia, por exemplo, podemos tomar como base
inicial a obra A arte poética, em que Aristóteles (2005, p. 86), trata
sobre como se deve apresentar o que é falso, teor de extrema
importância para podermos adentrar ao tema.
Eis como os homens pensam: quando uma coisa é, e outra coisa
também é, ou, produzindo-se tal fato, tal outro igualmente se
produz, se o segundo é real, o primeiro também o é ou se torna
real. Ora, isso é falso. Pelo que, se o antecedente é falso, mas se
tal coisa deve existir ou produzir-se, no caso em que o
antecedente fosse verdadeiro, estabelece-se uma ligação entre
ambos. (Aristóteles, 2005, p.87).
Paulo Freire (1996), quando explora os saberes necessários à
prática educativa, em sua obra "Pedagogia da Autonomia", refere-se ao
ensinar como prática que exige, entre outros fatores, o respeito aos
saberes dos educandos, aceitação do novo e rejeição à discriminação,
reflexão crítica sobre a prática, reconhecimento da identidade
cultural, e o que nos interessa, ética.
Para ele, ensinar não é transferir conhecimento, mas ter a
consciência do inacabamento, exigindo respeito pela autonomia do
211
educando, com comprometimento, entendendo que educação é uma
forma de intervenção social.
A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou
não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao
lado da estética. [...] seres histórico-sociais, nos tornamos capazes
de comparar, valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de
romper, por tudo isso nos fizemos seres éticos. Só somos porque
estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não
é possível pensar os seres humanos longe, sequer da ética, quanto
mais fora dela. (Freire, 1996, p. 32-33).
Ainda de acordo com Freire, estar longe ou fora da ética seria
uma transgressão, pois, "transformar a experiência educativa em puro
treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente
humano no exercício educativo: o seu caráter formador".
Uma vez que, segundo ele, ao respeitar a natureza humana, o
ensino dos conteúdos não poderia estar alheio à formação moral do
educando, já que acredita que "educar é substantivamente formar".
Eco (1971) sugere em sua obra A estrutura ausente: introdução
à pesquisa semiológica, que: "Um estímulo é um complexo de
acontecimentos sensórios que provocam determinada resposta. A
resposta pode ser imediata ou pode ser mediata - de compreensão ou
interpretação com base em um código de experiências passadas, como
signo comunicante".
Sendo assim, o aluno poderá entrelaçar um diálogo entre o
que pode ser real, bem como o que pode ser falso, apresentado no
jornal, por meio de suas vivências ou experiências cotidianas.
Na obra Linguagem total: uma pedagogia dos meios de
comunicação, Gutierrez (1978) explora a teoria da aprendizagem
212
relacionada ao processo de comunicação, tanto nas teorias da
aprendizagem que se baseiam na relação estímulo-resposta, como as
que têm uma formação estrutural, pressupondo que exista:
A necessidade da resposta do sujeito perceptor para verificar a
eficiência da informação [...] é imprescindível que o perceptor,
além de perceber, interprete o estímulo. Isto é, em termos de
comunicação, o perceptor deve decodificar o estímulo. O sujeito
não somente apreende a informação mas quando consegue se
estruturar essa informação na bagagem de conhecimentos
anteriores aos efeitos de usá-las quando apresentem novas
situações [...] esta nova estruturação do receptor somente é
comprovada na prática. (Gutierrez, 1978, p. 37-38).
Sobre essa questão de explorar com o aluno os parâmetros
entre a proposta de combate ao falso informativo, Freire (1996)
trabalha a esfera do que considera uma das tarefas mais importantes
da prática educativo-crítica, que é:
Propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns
com os outros e todos com o professor (a) ensaiam a experiência
profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico,
como ser pensante, comunicante, transformador, criador
realizador de sonhos. (Freire, 1996, p. 41).
Walty (1986), no livro O que é ficção, considera que não é
possível tratar do real de forma estática, mas via processo em rotação,
que se desloca entre tempo e espaço:
Não se pode, pois, falar de um real estático, pronto, pré-
construído. O real é fruto de um processo de relações do homem
com os outros homens e com a natureza [...] O indivíduo capta
213
o mundo de acordo com seus referenciais [...] Acontecimentos
tão engraçados mas tão corriqueiros podem nos deslocar no
tempo e no espaço. (Walty, 1986, p. 19; 24).
A contribuição da junção híbrida da Educação e da
Comunicação, atualmente definida pela vertente intitulada
Educomunicação, segundo Soares (2011), resulta em uma
importante interface para o exercício do senso crítico sobre os meios
de comunicação.
Os olhares dos campos secularmente estabelecidos da educação e
da comunicação se entrecruzam com certa frequência. Ainda que
se entendam, ambos, como fenômenos distintos, a interconexão
entre eles é requerida pelas próprias exigências da vida em
sociedade. No confronto ou na cooperação, constroem, um ante
o outro, juízos de valor e indicadores de avaliação, permitindo
que cada qual se distinga e afirme socialmente. (Soares, 2011, p.
17).
Reforçando o papel fundamental da escola nesse processo de
desenvolvimento do pensamento crítico do aluno, Penteado (1998)
explora no livro Pedagogia da Comunicação: teorias e práticas, um
estudo sobre:
Algumas instituições escolares, conscientes das contradições
presentes na sociedade e, conseqüentemente na escola, têm
incorporado em seu contexto meios de comunicação, entendidos
como recursos facilitadores do trabalho docente [...] não é uma
pedagogia sobre os meios de comunicação. É uma pedagogia que
estabelece comunicação escolar com os conhecimentos, com os
sujeitos, considerando os meios de comunicação. Dialoga-se com
os meios e suas linguagens. (Penteado, 1998, p. 25; 29).
214
No mesmo âmbito, Belloni (2005, p.33) aponta na obra O
que é mídia educação, que: "A escola e a mídia desempenham o papel
de guardiãs e difusoras de uma espécie de síntese dos valores
hegemônicos que formam o consenso indispensável à vida social".
Explorando a interface Educação e Comunicação, mais
especificamente sobre a possibilidade de trabalhar com materiais
jornalísticos em sala de aula, vários autores abordam o tema, levando
em conta a complexidade e a urgente necessidade de se compreender
os veículos para poder identificar possíveis manipulações da realidade.
No livro Ficção, Comunicação e Mídias, Costa (2002) afirma que:
A comunicação é uma ponte que integra subjetividades através
de ferramentas de linguagem; os discursos construídos pela
linguagem referem-se ao mundo real traduzido pelas
individualidades que o experimentam, mas transformam-se uma
vez expressos, em modelos que orientam futuras percepções do
real; a comunicação transforma-se, assim, em um veículo que liga
interioridade e exterioridade; a ficção não se opõe à realidade dos
fatos nem a sua objetividade, apenas a apresenta a partir da
subjetividade que a vivencia. (Costa, 2002, p. 12).
Sobre a vertente Educomunicação, Soares (1999) em
Comunicação-Educação: A Emergência de um Novo Campo e o Perfil de
seus Profissionais, trata sobre a inter-relação entre a Comunicação
Social e a Educação, explorando questões referentes à cultura de
massa, demonstrando que o uso do próprio termo "massa" demonstra
submissão presumida dos usuários em relação aos veículos e suas
mensagens, explorando ainda questões como manipulação dos
veículos de comunicação, abrindo debate para a tendência de
aproximação entre Comunicação e Educação, através da
215
Educomunicação, e seus amplos espaços educativos, citando ainda as
propostas de Martin Barbero, que a partir da Comunicação,
questiona: O que faz a cultura de massa com a pessoa?; e a partir da
Educação: Que fazem as pessoas com as expressões da cultura de
massa?
E Gutierrez (1978, p. 23) reforça esse contexto, observando
que “se os meios de comunicação social tiveram e continuam tendo,
uma grande repercussão sobre o homem e a sociedade, é agora que
também repercutem sobre a escola”.
Nesse ponto, é possível estimular o uso de material midiático
em sala de aula, em suas mais diversas funções e desdobramentos,
incentivando desde a produção de textos, passando por análises de
recortes de notícias jornalísticas; abrindo ainda um vasto campo de
estudo, podendo promover inclusive amplo debate na escola sobre os
veículos de comunicação.
De acordo com Bosi (1996, p.49): “A chave dos significados
não está, pois, nos meios de comunicação, mas na estrutura da
sociedade que criou esses meios e que os tornou significantes. É a
sociedade que significa”. Na obra, Bosi (1996) dá continuidade a esse
pensamento, afirmando que:
A comunicação de ideias e sentimentos não se faz em abstrato.
Nem, por outro lado, existe um público receptor, um grupo
emissor ou um canal transmissor em si mesmos. Os vários fatores
da comunicação operam interligados, compõem a estrutura de
um sistema. O sistema é a indústria cultural. Indústria enquanto
complexo de produção de bens. Cultural, quanto ao tipo desses
bens. (Bosi, 1996, p. 50).
216
Complementando esse pensamento, Gutierrez (1978)
acredita que a cultura de massa é, portanto, um fato social:
Os meios de Comunicação Social estão favorecendo, cada vez
mais, uma maior participação cultural [...] Esta universalização
está provocando uma nivelação entre os gostos culturais. Todas
as camadas recebem os mesmos produtos culturais [...] e esse
fenômeno de cultura cada dia mais acessível está despertando,
nas massas populares, um grande apetite de cultura [...] novas
técnicas são, na realidade, uma transformação de uma realidade
que se apresenta num espaço, num tempo e num movimento.
(Gutierrez, 1978, p. 11).
Faria e Zanchetta (2005) observam na obra, Para ler e fazer o
jornal em sala de aula, que a neutralidade da informação é importante,
mas que o jornais de grande circulação, por conta da abrangência de
seus veículos e alcance de público, acabam se posicionando, por
exemplo, no que se refere à política.
Esse fator interessa a esta discussão, pois ao se posicionarem,
os veículos acabam por abrir mão da imparcialidade, ou seja, valor
ético primordial conferido ao jornalismo, e revelam suas opiniões, o
que nem sempre significa ser o fato em seu sentido verdadeiro.
De maneira geral, os jornais pregam o compromisso com a
"neutralidade" da informação e se utilizam de expedientes
lingüísticos para tanto [...] o exercício de comparação entre
jornais equivalentes pode ser muito proveitoso para mostrar que
a linguagem também pode sustentar opiniões claras mesmo
revestindo as palavras de uma pretensa "neutralidade". (Faria e
Zanchetta, 2005, p. 17).
217
Sendo assim, os autores propõem que o jornal, sendo um dos
principais veículos de comunicação, pode trazer à escola subsídios
enriquecedores ao aprendizado em sala de aula, o que justifica a
proposta deste artigo, pois ao aprender a analisar os materiais
jornalísticos pelo viés ético-moral, o professor-educomunicador estará
além de ensinando, reforçando sua relação com o aluno, que será
capaz explorar seu senso crítico e sua percepção midiática, e a escola
estará promovendo a cidadania no combate à fake news.
Portanto, este artigo - intitulado Educomunicação, Ética e
Fake News: O papel da escola no combate a notícias falsas - visa
fomentar o levantamento de informações, através de publicações
feitas na mídia no período que compreende entre pandemia e pós-
pandemia da COVID 19, que possam reforçar a ideia de que debater
a Educomunicação pela perspectiva da Ética pode promover
importantes diálogos sobre o papel da escola no combate a notícias
falsas.
Mais especificamente, pretende contribuir com o
aprofundamento dos estudos nas áreas da Educomunicação e da
Ética, como forma de subsidiar o professor-educomunicador em sua
formação, com a preocupação de promover práticas educomu-
nicativas com responsabilidade ética. Sendo assim, ao estimular a
análise de conteúdo expresso em publicações jornalísticas, sobretudo,
do que circulou de notícias falsas, prevê auxiliar na compreensão de
seu impacto na educação e na formação de crianças e jovens nesse
período de pós-pandemia.
Mas para que a análise possa ser feita, antes, faz-se necessário
conhecer um pouco mais da área jornalística, como por exemplo,
quais as funções dos gêneros jornalísticos, cuja primazia deve ser
sempre informar de forma ética.
218
Entre os gêneros, destacaremos a crônica, em que Coutinho
(1997) classifica da seguinte forma: crônica narrativa, cujo eixo é uma
estória ou episódio, aproximada ao conto; crônica metafísica,
constituída de reflexões filosóficas ou meditações sobre os
acontecimentos ou sobre os homens; crônica poema-em-prosa, de
conteúdo lírico, extravasando a alma do artista ante o espetáculo da
vida, das paisagens ou episódios para ele carregados de significado;
crônica-comentário dos acontecimentos, um acúmulo de temas
diversos; e a crônica-informação, mais próxima do sentido
etimológico, divulgando fatos e tecendo sobre eles comentários
ligeiros.
Além disso, Coutinho (1997) ainda dá outras definições
referentes ao uso da crônica, problematizando, como por exemplo, a
associação entre a crônica e a reportagem, destacando que a crônica
que não seja noticiosa, é uma reportagem disfarçada ou antes uma
reportagem subjetiva e às vezes lírica, na qual o fato é visto por um
prisma transfigurador, pois se para o repórter, o fato é geralmente um
fim, para o cronista é pretexto para divagação, comentários.
A crônica deve empregar a linguagem da atualidade, sem essa
prática, deixa de refletir o espírito de sua época, expressão social, de
determinada sociedade, em seu tempo. O estilo do cronista deve
tender à fórmula simples, aderindo ao tom comunicativo de conversa,
traçando um diálogo entre o cronista e o leitor, sempre em contato
com a realidade da vida cotidiana.
Candido (1987), aponta uma perspectiva sobre a crônica
acrescentando que esta não nasceu propriamente com o jornal, mas
só quando este se tornou quotidiano, de tiragem relativamente grande
e teor acessível. Segundo ele, antes de ser crônica propriamente dita
219
foi "folhetim", ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia,
- políticas, sociais, artísticas, literárias:
Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer
a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um
cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes,
pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma
singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia,
em suas formas mais diretas e também nas suas formas mais
fantásticas, - sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.
[...] Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a
intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de
jornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir. a linguagem
se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se
afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para
penetrar poesia a dentro. Creio que a fórmula moderna, onde
entra um fato miúdo e um toque humorístico, com seu quantum
satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais
puro da crônica consigo mesma. (Candido, 1987, p. 5-6).
O teórico observa ainda que, na crônica parece não caber a
sintaxe rebuscada, com inversões frequentes, nem vocabulário
opulento, o que de certa forma identificaria a superioridade
intelectual e literária com grandiloquência e requinte gramatical. E
observa ainda que a crônica atingiu níveis de simplificação e
naturalidade e que seu grande prestígio é o processo de busca pela
oralidade na escrita, uma forma de humanização.
Por ser um gênero que comunga com o efêmero, a crônica e
produzida justamente para servir à brevidade, como aponta:
Porque (a crônica) não tem a pretensões de durar, uma vez que é
filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão
220
depressa. Ela não foi feita originalmente para o livro, mas para
essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte
é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da
cozinha. Por se abrigar neste veículo transitório, o seu intuito não
é o dos escritores que pensam em "ficar", isto é, permanecer na
lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não
é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-
do-chão. (Candido, 1987, p. 6).
E mesmo com tom despreocupado, a crônica, segundo
Candido (1987), entra fundo no significado dos atos e sentimentos
do homem, podendo levar longe a crítica social, em que a impressão
do leitor é de divertida simplicidade, que se esgota em si mesma, mas
por trás está todo o drama da sociedade.
Arrigucci (1987) considera que a crônica é uma produção
despretensiosa, próxima da conversa e da vida de todo o dia. Ele
explica que são vários os significados da palavra crônica. Todos,
porém, implicam a noção de tempo, presente no próprio termo, que
procede do grego, chronos. Ele acredita que um leitor atual pode não
se dar conta desse vínculo de origem, que faz dela uma forma do
tempo e da memória, um meio de representação temporal dos eventos
passados, um registro da vida escoada. "Mas a crônica sempre tece a
continuidade do gesto humano na tela do tempo" (1987, p. 51).
E destaca que lembrar e escrever são tarefas em permanente
relação com o tempo, em que a memória escrita faz de sua matéria
principal o que foi vivido, uma definição que ele aproxima e aplica ao
discurso da História, fazendo menção de que a princípio ela foi
crônica histórica, uma narração de fatos históricos segundo uma
ordem cronológica. Para ele, o gênero supõe à sociedade a
importância da experiência progressiva do tempo, em que o passado
221
possa se conectar com a História, presa ao calendário dos feitos
humanos.
A crônica pode construir o testemunho de uma vida, o
documento de toda uma época ou o meio de se inscrever a
História no texto. Além disso, ao distanciar-se no passado, pode
se transformar em fonte de imaginação: gestas românticas e
outras formas literárias. (Arrigucci, 1987, p. 52).
Para Arrigucci (1987, p. 55), “a crônica se situa bem perto do
chão, no cotidiano da cidade moderna, e escolhe a linguagem simples
e comunicativa, o tom de bate-papo entre amigos, para tratar das
pequenas coisas que formam a vida diária”.
Desta forma, conhecendo um pouco mais sobre os gêneros
jornalísticos, sobretudo, com destaque a um deles, no caso a eleita
aqui foi a crônica, é importante lembrar que mesmo um gênero mais
despretensioso como é o caso do que vimos sobre a crônica, é basilar
que sua construção tenha amparo na responsabilidade ética.
E uma estratégia para uma boa análise é ancorar sua percepção
aliando a Educomunicação à Ética, salientando que, em regra, toda
investigação, todo projeto, de certa forma objetiva direcionar suas
ações à promoção de um bem, pois a ética reflete sobre o agir humano,
sobretudo, a partir dos fins, ou seja, dos bens que pode alcançar, desta
forma, toda ação deve estar voltada à essa finalidade, que é a busca
por um estado de realização, de plenitude, no entanto com
responsabilidade.
Se, portanto, uma finalidade de nossas ações for tal que a
desejamos por si mesma ao passo que desejamos as outras
somente em virtude dessa, e se não elegemos tudo por alguma
coisa mais [...] está claro que se impõe ser esta o bem e o bem
222
mais excelente. E não será o conhecimento dele muito
importante do ponto de vista prático para a vida? Não nos
tornará ele melhor capacitados para atingir o que devemos, como
arqueiros que têm um alvo no qual mirar? Se assim for, temos
que tentar definir, ao menos em um delineamento, o que é esse
bem mais excelente [...] (Aristóteles, 2014, p. 46).
Então, a ética pode ser vista sob o prisma de interventora das
análises organizadas sobre a mídia, tendo como finalidade a promoção
de um bem comum, sobretudo, se pensarmos na sala de aula. E se
considerarmos, como aposta Pinheiro (2022), as virtudes como forças
que vão nortear os valores morais direcionando ao bem, individual e
comum, devemos, antes de mais nada, ter em mente que a ética tem
uma dimensão política, que racionalmente normatiza através de leis e
concepções morais da justiça a conduta social.
E, ainda, se considerarmos que as ações éticas constituem o
caráter do agente, segundo este autor, as ações técnicas serão
produtivas, ou seja, com interesse no que seria a produção de objetos
exteriores, desta forma, então, ao observar a expressão filosófica de
conhecimento geral cunhada por Aristóteles, de que o homem é um
animal político, observamos que a ética está relacionada à política, ao
pensarmos que somos naturalmente políticos, dotados de razão,
sendo o homem capaz de promover a colaboração social, aplicando as
quatro virtudes humanas no cotidiano.
E ao aplicar as virtudes humanas no cotidiano, podemos
refletir na finalidade de nossas ações, ou seja, os fins a que nos
propormos engajar politicamente em algum projeto, a
intencionalidade com que colocamos força em nosso agir no mundo,
além de observarmos as dimensões utilitárias e contemplativas, aqui
no caso ao analisar a mídia e sua falta de compromisso com a verdade,
223
devemos voltar nosso olhar também sobre o questionamento de que
forma o professor pode por meio da análise da mídia em sala de aula
alavancar valores como responsabilidade, diálogo, respeito, na
condução de suas intervenções educomunicativas.
Por isso precisamos que esse professor tenha condições de
preparar seus alunos para serem capazes de analisar uma produção
midiática, ou para produzir um produto midiático, com domínio de
algumas esferas técnicas, conhecimento da linguagem e ações voltadas
à prática.
Para além disso, a ética serve para ampliar a visão de mundo
do professor, posteriormente, do aluno, e deve-se proporcionar o
entrelaçamento entre a teoria, a observação, a vontade de agir no
mundo e a prática social.
Cada indivíduo julga corretamente o que conhece, sendo disso um bom
juiz. Para que possa, portanto, julgar um assunto particular, é preciso
que o indivíduo tenha sido educado nesse sentido; para ser um bom
juiz, em geral, é necessário que tenha recebido uma educação
completa. Sendo assim, o jovem não está apto para o aprendizado da
política, porque carece de experiência de vida, que é o que supre o
objeto de estudo e as teorias; além do que ele é conduzido por suas
paixões, de modo que seu estudo será sem um propósito ou proveito
porquanto a finalidade nesse caso é a ação e não o conhecimento. E
não importa se é jovem na idade ou é uma questão de imaturidade. A
lacuna não tem cunho cronológico; o problema é que sua vida e as
várias metas desta são norteadas pela paixão, pois para tais indivíduos
o conhecimento, como para aqueles destituídos de autocontrole, é
inútil. (Aristóteles, 2014, p. 48).
E com esse pensamento de como a ética pode ser utilizada
como mediadora de teorias e práticas educomunicativas, sobretudo,
224
na sala de aula, podemos observar o campo da Filosofia, através de
reflexões sobre o questões fundamentais referentes ao ser humano e
sua busca por viver bem.
Para visualizar com mais clareza essa inter-relação entre Ética
e Educomunicação podemos ver que Luckesi (1994) apresenta
importantes apontamentos, com elucidações conceituais e
articulações:
Quando lemos um texto de Filosofia, nos apropriamos do
entendimento que o seu autor teve do mundo que o cerca,
especialmente dos valores que dão sentido a esse mundo. Valores
esses que, por vezes, são aspirações que deverão ser buscadas e
realizadas, se possível. O filósofo sistematiza, assim, as aspirações dos
seres humanos, aspirações essas que dão sentido ao dia a dia, à luta,
ao trabalho, à ação. Ninguém vive o dia a dia sem um sentido; para
o seu trabalho, para a sua relação com as pessoas, para o amor, para
a amizade, para a ciência, para a educação, para a política etc.
(Luckesi, 1995, p. 22.).
Ao traçar essa linha de conexão, é evidente que essa
aproximação das áreas visa buscar entendimento nos apontamentos
éticos, de forma que possam ser promovidas ações que alavanquem
valores, em especial no ambiente escolar, e através do combate às fake
news possa contribuir, inclusive, no combate à violência e, assim,
auxiliar ainda no fortalecimento da promoção de ações voltadas à
cidadania.
Desta forma, ao propor intervenções e práticas
educomunicativas no ambiente escolar, como faz este artigo, conclui-
se pensando na escola como um lugar propício para a discussão sobre
as possíveis formas de tratar do tema do combate a notícias falas,
tendo a Educomunicação e a Ética como ferramentas de alcance dessa
225
ampliação de visão de mundo e, além disso, estamos também
reforçando sua importância enquanto instituição educacional na
disseminação da verdade, de valores morais, de se pensar com
jornalismo com base na responsabilidade ética e, ainda, na promoção
do diálogo entre professor e aluno e do respeito ao próximo nesse
período de pós-pandemia.
Referências
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notas de Edson Bini. 4ª ed. - São Paulo: Edipro, 2014.
ARISTÓTELES. Arte Poética. Tradução de Pietro Nassetti. São
Paulo: Editora Martin Claret, 2005.
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e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Cia.
das Letras, 1987.
BELLONI, Maria Luiza. O que é Mídia-Educação. 2ª ed.
Campinas, São Paulo: Editora Autores Associados, 2005. - (Coleção
Polêmicas do nosso tempo; 78).
BOSI, Ecléa. Cultura de Massa e Cultura Popular. 9ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 1996. - (Coleção Meios de Comunicação
Social nº 6).
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Carlos Drummond de et al. Para gostar de ler. 5. ed. São Paulo:
Ática, 1987.
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São Paulo. Editora SENAC, 2002. - (Série Ponto Futuro; 12).
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Afrânio (dir.), OUTINHO, Eduardo de Faria (co-dir.). A literatura
no Brasil. 4. ed. rev. e at. São Paulo: Global, 1997.
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semiológica. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, Editora Perspectiva, 1971.
FARIA, Maria Alice; ZANCHETTA, Juvenal Jr. Para ler e fazer o
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prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. - (Coleção Leitura).
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WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1986.
228
229
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3.p229-254
Capítulo 11
A educação emocional, cognitiva e moral pode
contribuir para a melhoria do ensino-
aprendizagem?
Regina Helena da Silva Leite
40
Introdução
Este texto tem o objetivo principal refletir acerca de como a
educação emocional, aliada ao desenvolvimento moral e cognitivo,
pode contribuir para a melhoria do ensino-aprendizagem. E como
objetivos específicos, compreender como as práticas pedagógicas
podem contribuir para o desenvolvimento educacional e emocional
dos envolvidos, aliadas ao desenvolvimento cognitivo e moral do
indivíduo.
Nossa principal hipótese é de que as contribuições do estudo
de Juan Casassus
41
promovem mudanças no ambiente social e
40
Formada em Pedagogia e Mestranda em Educação na Unesp/Marília. Atualmente é
professora de Inglês (EMEF) e de Educação Infantil (EMEI) da rede municipal de Marília
E-mail: regina.leite100@gmail.com
41
Prof
o
. Dr. Juan Casassus, chileno de nascimento, trabalhou durante vários anos como
especialista principal do Escritório Regional de Educação para América Latina e Caribe. É
licenciado em sociologia pela Universidade Católica do Chile e em filosofia pela
Universidade de Notre Dame (USA). Tem o DEA (Data Envelopment AnalysisMetodologia
de análise de eficiência) em economia da educação (Escola de Altos Estudos em Ciências
230
psíquico dos alunos e professores por meio de práticas
psicopedagógicas, melhorando a inteligência emocional dos
envolvidos, assim como maior participação e concentração dos
alunos.
Frente a constante decadência que percebemos na formação
das famílias e seus valores, assim como de boa parte da sociedade,
lamentavelmente tem refletido na educação, com muitos alunos não
interessados no aprendizado, aliado ao despreparo de alguns
professores e descaso do poder público. Estes fatores me motivaram a
pesquisar uma nova proposta de ensino. Esta proposta envolve a
educação emocional (também será tratada como desenvolvimento da
afetividade em alguns momentos) do indivíduo, principalmente de
alunos e professores, foco deste estudo, no intuito de resgatar e
trabalhar valores essenciais para sua formação, como ser social; além
da possibilidade de conhecer-se e gerenciar suas emoções, destacando
novas técnicas pedagógicas, melhorando, assim, a concentração,
comportamento, responsabilidade e, consequentemente, melhora no
aprendizado e interesse dos alunos.
Nesta preocupação com uma educação emocional, é
imprescindível considerarmos em toda a nossa análise o
desenvolvimento moral e cognitivo do indivíduo, como
entendimento de uma educação integral e desenvolvimento pleno do
ser. Para tanto, procuraremos verificar como a educação emocional
pode contribuir para a melhoria do ensino-aprendizagem, por meio
das contribuições de pesquisas e experiências na área da educação do
Prof
o
. Dr
o
. Juan Casassus, apoiadas pelas teorias e pesquisas do
Sociais, França) e o doutorado em sociologia da educação pela Universidade René Descartes,
Paris V. Atualmente dirige vários programas de formação em educação emocional.
231
psicólogo Daniel Goleman
42
. E para demonstrar a intrínseca relação
do desenvolvimento emocional, que também denominaremos como
afetividade ao longo deste trabalho, com o desenvolvimento moral e
cognitivo, nos apoiaremos, principalmente, no referencial teórico de
Jean Piaget
43
, auxiliados pelo estudo do Prof
o
Lawrence Kohlberg
44
.
Além dos interesses e preocupações já levantadas para
realização desta pesquisa, também procuraremos averiguar e
investigar em diversos campos, como da ciência, filosofia, dentre
outros, com o intuito de tecermos reflexões teóricas acerca das práticas
pedagógicas nos aspectos também éticos, o que possivelmente nos
ajudará a compreender, conhecer e reconhecer os desafios dentro e
fora das salas de aulas; e talvez a encontrar algumas saídas e respostas
que possibilitem criarmos uma maneira diferente de atuar dentro da
escola, com alternativas pedagógicas, pensando nas relações humanas,
seja como aluno-professor, aluno-aluno, docentes e gestão, assim por
diante.
No intuito de atingir maior compreensão possível da temática
e problematização apresentada, este trabalho teve um caráter
investigativo a partir da proposta do autor Juan Casassus na melhora
da qualidade do ensino-aprendizagem. Para tanto, trata-se de uma
pesquisa bibliográfica.
Foram realizadas sucessivas leituras do material coletado,
leitura seletiva e reflexiva também chamada de exploratória, para que
pudéssemos atingir maior compreensão do objeto em estudo
42
Daniel Goleman (7 de março de 1946), escritor, psicólogo, jornalista científico dos Estados
Unidos e autor do livro Inteligência Emocional.
43
Jean William Fritz Piaget (Neuchâtel, 9 de agosto de 1896 - Genebra, 16 de setembro de
1980) foi um biólogo, psicólogo e epistemólogo suíço.
44
Lawrence Kohlberg (Nova York, 25 de Outubro de 1927 - Boston, 19 de Janeiro de 1987),
foi um psicólogo estadunidense nascido em Bronxville, Nova Iorque.
232
A pesquisa foi desenvolvida a partir da observação do cenário
educacional e da obra específica sobre educação emocional do autor,
‘Fundamentos da educação emocional’ e demais autores, como
Piaget, Kolberg, Goleman e outros, o qual tive acesso à leitura,
surgindo, desta forma, a temática deste projeto. Com o objetivo de
coletar maiores explicações e material, também tive acesso a textos,
dissertações/teses, material didático/pedagógico e outras indicações
que ainda não foram exploradas, mas que oportunamente serão
estudados como aprofundamento ao tema levantado e corroborando
para o desenvolvimento de futuras pesquisas.
Na sequência, dividiremos o estudo em três seções antes das
considerações finais, trazendo primeiramente as contribuições de
Casassus e Goleman, com foco na educação e inteligência emocional.
Em seguida, a relação entre a afetividade, cognição e moral, com base
principalmente nos autores Piaget e Kohlberg e por último, também
importante, reflexões a partir de grandes pensadores/autores,
auxiliando na temática em estudo.
Educação emocional: Juan Casassus e Daniel Goleman
Percebemos ao longo dos anos que os aspectos culturais,
históricos e sociais têm contribuindo para a repressão dos sentimentos
dos seres humanos, onde é comum nos defrontarmos em todos os
ambientes com atitudes hostis e muito racionais, desequilibrando
emocionalmente os lares, a sociedade e consequentemente o ambiente
escolar, foco desta pesquisa.
Por estarmos na era pós-industrial, altamente tecnológica e
em mudanças contínuas, o ser humano se depara com sistemas
complexos, tendo que aprender novas formas de avançar e se adequar
233
na sociedade e também consigo mesmo; sendo indispensável
buscarmos novas alternativas de desenvolvimento, além da cognitiva,
como a inteligência emocional e a construção do conhecimento,
possibilitando o indivíduo a elevar seus valores morais.
Nesta primeira parte do estudo e com base em dados
científicos, é demonstrado o quanto o controle das emoções é fator
essencial para o desenvolvimento da inteligência do indivíduo e que,
por meio do desenvolvimento moral e emocional/afetivo, com um
programa estruturado e alinhado à grade curricular usual, há uma
grande contribuição para o desenvolvimento educacional, social e
econômico, pois entendendo e gerenciando suas próprias emoções, o
ser humano terá a mente mais livre para absorver e reter novos
conhecimentos, além de interagir melhor com a sociedade e da
melhora produtiva e criativa em todas suas atividades.
Tendo em vista o ambiente desfavorável e atual das salas de
aula, há a necessidade de avanços na implementação de programas de
educação emocional, tão necessários para melhorarmos o ensino-
aprendizado do país, mas não nos moldes dos atuais programas de
competências socioemocionais sendo trabalhados nas escolas do
ensino público e particular, com a devida falta de preparação dos
envolvidos, feita muitas vezes de forma superficial, com baixa
frequência e/ou duração, tendo casos inclusive de somente 30
minutos por semana. Além destes fatores, o profissional da educação
acaba, às vezes, sendo culpabilizado por não estar dando certo, como
se não tivesse ‘habilidade emocional’ necessária para lidar com as
várias situações no contexto escolar.
Em sua dissertação intitulada As competências
socioemocionais: pesquisa bibliográfica e análise de programas
escolares sob a perspectiva da psicologia moral”, a autora Danila
234
Zambianco (2022) faz uma vasta pesquisa sobre o tema,
principalmente através de levantamento dos vários programas em
funcionamento, apresentando resultados interessantes, como falta de
informação e padronização, falta de avaliações quantitativas e
qualitativas da aplicação destes programas, falta de se trabalhar com
valores morais e éticos etc, enfatizando que: “[...] as Competências
Socioemocionais podem promover melhoria na qualidade de vida do
indivíduo e na convivência [...], no manejo das próprias emoções e
das emoções alheias. Todavia, elas precisam ter um guia que as
oriente; [...] os valores morais.”
Como já explicado na introdução, um dos objetos de estudo
deste trabalho é a proposta do autor Juan Casassus. Em seu livro
“Fundamentos da educação emocional” (2009), Casassus o elabora
com base nas experiências de 25 anos de pesquisa no campo da
educação e, especialmente, de oito anos de trabalho no campo
emocional nas escolas públicas até sua publicação. (Casassus, 2009)
Casassus não deixa de ressaltar a importância do
conhecimento cognitivo, podendo facilitar ou dificultar a
aprendizagem, porém ressalta que as emoções vêm “antes” e “depois’,
nos motivando ou não para novas aprendizagens. (Casassus, 2009)
[...] fomos educados como se a dimensão emocional e a dimensão
corporal fossem aspectos menores do ser humano e, assim, as
rechaçamos inconscientemente. Fomos educados acreditando
que nós [...] nos caracterizamos principalmente por nosso
componente mental, reacionalista e linguístico, e não por nossa
dimensão integral. Neste texto, consideramos que a mente, o
corpo e as emoções são todas dimensões vitais para o ser humano.
Cada um de nós tem seu espaço e sua maneira de se relacionar
com o mundo e vive essas dimensões integralmente. (Casassus,
2009, p. 25).
235
De acordo com o autor, “um dos obstáculos para o
desenvolvimento da educação emocional é que estamos limitados
pelo escasso desenvolvimento dos conceitos e dos enfoques
metodológicos para fazê-lo”, por isso propõe no livro elementos e
ferramentas para estabelecer as bases de uma educação emocional.
(Casassus, 2009).
Na sequência, Casassus traz uma reflexão de quanto nossa
cultura, histórico e sociedade reprimem as emoções, fazendo com que
as filtremo-las racionalmente, porém, um dia, tais emoções podem
voltar com mais força, além de interferir no dia a dia do ser humano
como um todo, seja no seu ambiente profissional, familiar e/ou
educacional. (Casassus, 2009). Outro aspecto que levanta é com
referência ao contexto social, onde o indivíduo vai assumindo papéis
ao longo da vida, seja como filho, depois como aluno e também como
pai e, dentro destas responsabilidades e normas que os regem, acaba
usando máscaras, sem dominar muito bem seus sentimentos, gerando
dificuldades como rigidez, apatia e excesso de racionalidade, por
exemplo. Em paralelo, contribuindo com esse cenário, partimos de
uma escola anti emocional, controladora, usual da mentalidade do
século XIX, onde acreditava-se que para os alunos obtivessem
aprendizado cognitivo, era preciso controlar todo o seu espaço,
evitando toda distração. Dessa forma, percebe-se a submissão à
autoridade, onde os alunos que não se moldam a esta dominação, são
rotulados como ‘problemáticos’ e/ou ‘emocionalmente instáveis’.
(Casassus, 2009)
Os efeitos dessas práticas sobre o clima emocional da classe e da
escola são deploráveis. As crianças aprendem a simular o que
estão sentindo e pensando e entram numa espiral negativa. Não
se sentem reconhecidas pelo que são. A falta de reconhecimento
236
produz perda de sentido de sua identidade; tendem a desconectar
seus vínculos com os professores; e, diante da frustração, emoções
contrárias são disparadas e as crianças veem os professores e as
autoridades como inimigos. [...] Se o clima emocional da aula é
o que mais ajuda quando é adequado, quando não o é, seu efeito
é simetricamente contrário. (Casassus, 2009, p. 202-203).
Diante do exposto, o autor aborda a importância de uma
escola emocional, relacionando as emoções nas aprendizagens, fruto
de sua pesquisa internacional sobre os fatores que incidem na
aprendizagem dos alunos e principais variáveis que incidiam no
rendimento escolar. De todas as variáveis consideradas, surgiu o
resultado surpreendente de que o aspecto emocional e relacional
(interações entre as pessoas) é que permitia a melhor aprendizagem
das crianças. (Casassus, 2009)
“Hoje se reconhece que não há aprendizagem fora do espaço
emocional [...], que a inteligência emocional é mais importante do
que a inteligência cognitiva, e que o conhecimento e a capacidade de
administrar as próprias emoções é o melhor indicador de êxito.
(Casassus, 2009, p. 205)
Durante sua pesquisa, Juan Casassus destaca que:
Nas instituições em que os alunos se dão bem com os colegas,
não há brigas, o relacionamento harmonioso predomina e não há
interrupções nas aulas [...]. Verificamos que o desempenho deles
chegou a ser superior em 36% na nota média da prova de
Linguagem e 46% na de Matemática. (Nova Escola, 2008)
Em seguida, Casassus continua explorando o tema também
com referência aos professores em relação a si mesmos, as relações
entre o professor e os alunos, a compreensão emocional na sala de aula
237
e do outro, no anseio de despertar cada vez mais a necessidade de
conscientização de que nosso ser se encontra nas emoções. (Casassus,
2009). “Para transmitir o gosto pelo conhecimento, [...] um professor
precisa dominar os conteúdos de sua disciplina - e também saber
acolher as turmas, identificando e trabalhando interesses e
sentimentos.” (Nova Escola, 2008)
Em colaboração aos estudos e pesquisas de Casassus, trazemos
também as contribuições do psicólogo Daniel Goleman, que
popularizou o termo Inteligência Emocional, baseando-se nos estudos
de Salovey
45
e Mayer
46
. Autor do livro Inteligência Emocional,
Goleman parte de ampla pesquisa científica para demonstrar que o
controle das emoções é fator essencial para o desenvolvimento da
inteligência do indivíduo, corroborando, assim, com a hipótese
levantada neste estudo.
Aos professores, sugiro que considerem também a possibilidade
de ensinar às crianças o alfabeto emocional, aptidões básicas do
coração. Tal como hoje ocorre nos Estados Unidos, o ensino
brasileiro poderá se beneficiar com a introdução, no currículo
escolar, de uma programação de aprendizagem que, além das
disciplinas tradicionais, inclua ensinamentos para uma aptidão
pessoal fundamental a alfabetização emocional. (Goleman,
1995, p. 9)
Goleman demonstra em seu livro aulas e vivências da ‘Ciência
do Eu’ no Centro de Aprendizado Nueva Lengua, uma escola de San
45
Peter Salovey (21 de fevereiro de 1958) é um psicólogo dos Estados Unidos. Desde 2013 é
presidente da Universidade Yale. Salovey é pioneiro e um dos principais investigadores em
inteligência emocional.
46
John D. Mayer é um psicólogo de personalidade estadunidense. Conjuntamente com Peter
Salovey desenvolveu o conceito de inteligência emocional.
238
Francisco, que oferece aula em inteligência emocional, pioneira neste
tema, porém jámais de 20 anos lecionando na ocasião da
elaboração do livro (Goleman, 1995). Nela, faz parte do currículo
discussão sobre diferentes pontos de vistas, solução de conflitos,
resolução das divergências e ressentimentos, trabalho em equipe,
assertividade, autoconsciência no reconhecimento de forças e
fraquezas, controle das emoções, assumir responsabilidades por
decisões e atos, assim como cumprir compromissos etc (Goleman,
1995).
Frente a decadência urbana a seu redor, com problemas
sociais, econômicos, além da pobreza, drogas e violência, a
Universidade de Yale, na década de 80, idealizou o Programa de
Competência Social com um grupo de psicólogos e educadores, nos
mesmos moldes da Ciência do Eu (Goleman, 1995). Todo este
projeto tem mais resultados com o envolvimento também da
comunidade e da família dos alunos, sendo que em algumas escolas já
existem treinamentos para os pais, por exemplo (Goleman, 1995).
“Em suma, o projeto ideal dos programas de alfabetização emocional
é começar cedo, ser apropriado à idade, cobrir todo o tempo de
escolaridade e entremear os trabalhos na escola, em casa e na
comunidade.” (Goleman, 1995, p. 295).
Em toda sua análise, Goleman também discorre sobre a
dificuldade dos professores em aceitar ministrar educação emocional;
em uma das escolas, por exemplo, antes do processo, inquiriram os
mesmos e somente 30% era favorável a esta nova disciplina integrada
às normais, porém, ao final do 1º. ano, já mais de 90% queriam a
continuidade do programa (Goleman, 1995).
No Apêndice F do livro, a partir da página 319, é apresentado
resultados e vantagens educacionais deste sistema, fruto de pesquisa
239
em inúmeras escolas que adotaram o programa em comparação às que
ainda não implementaram, obtendo os seguintes resultados
principais: melhor competência emocional e social, melhora na
capacidade de aprender, maior comunicabilidade e produtividade,
maior autocontrole e melhora no comportamento, dentre outros
(Goleman, 1995).
Com base nos resultados positivos dos programas trabalhados
por estes autores, cabe-nos refletir porque não estamos conseguindo
avançar com os programas vigentes no Brasil e ampliar nossos estudos
em busca de respostas e alternativas para uma melhora significativa à
educação brasileira.
Relação entre o afetivo, cognitivo e moral, com enfoque ao
desenvolvimento moral: Jean Piaget e Lawrence Kohlberg
Nesta 2
a
parte do estudo, trataremos principalmente das
contribuições dos autores Jean Piaget e Lawrence Kohlberg, na
tentativa de abordar melhor a relação entre o desenvolvimento
cognitivo, afetivo e moral e explicitando mais o aspecto moral.
Em seu livro “As relações entre a inteligência e a afetividade
no desenvolvimento da criança”, Piaget (1954/2014) tem a proposta
de enfocar as relações entre afetividade e inteligência sob uma
perspectiva genética. E nesta relação, afirma que a inteligência e a
afetividade são inseparáveis (indissociáveis) e com duas significações
bem diferentes:
1o. [...] a afetividade interfere nas operações da inteligência, que
ela as estimula ou as perturba, que é a causa de acelerações ou
retardos no desenvolvimento intelectual, mas que não pode
modificar as estruturas da inteligência como tais. [...]. 2o - [...] a
240
afetividade intervém nas próprias estruturas da inteligência e que
ela é a fonte de conhecimentos e de operações cognitivas
originais. (Piaget, 1954/2012, p. 37-38)
Piaget (1954/2014) compreende afetividade não só como
sentimentos e emoções, mas também as tendências e vontade. O autor
também afirma que não há mecanismo cognitivo (inteligência/razão)
sem elementos afetivos, dando o exemplo de uma resolução
matemática, envolvendo diversos tipos de sentimentos, além da
operação em si. Por outro lado, também não há um estado afetivo
puro, sem elementos cognitivos: “Os fatores cognitivos
desempenham, pois, um papel nos sentimentos primários e, com
maior razão, nos sentimentos complexos mais evoluídos, onde se
mesclam cada vez mais com os elementos gerados pela inteligência.”
(Piaget, 1954/2014, p. 40)
Em sua teoria sobre Adaptação: assimilação e acomodação,
Piaget coloca o seguinte sobre a adaptação (Piaget, 1954/2012, p. 41):
Toda conduta é uma adaptação, e toda adaptação, o
restabelecimento do equilíbrio entre o organismo e o meio. [...]
A conduta chega ao final quando a necessidade está satisfeita: o
retorno ao equilíbrio é marcado, então, por um sentimento de
satisfação. [...] A noção de equilíbrio tem, pois, um significado
fundamental tanto do ponto de vista afetivo como do intelectual.
[...] No caso da adaptação, podemos precisar que o equilíbrio se
faz entre dois pontos: - a assimilação, relativa ao organismo, que
conserva sua forma; - a acomodação, relativa à situação exterior,
em função da qual o organismo se modifica.
Em Piaget (1954/2014), para haver a assimilação cognitiva, o
objeto deve ser incorporado aos esquemas anteriores da conduta e na
241
assimilação perceptiva, o objeto deve ser percebido relativamente aos
esquemas anteriores. A assimilação, sob seu aspecto afetivo, é o
interesse; sob seu aspecto cognitivo, é a compreensão, onde qualquer
novo objeto é acomodado ao seu esquema já estabelecido.
Já com referência à acomodação cognitiva, quando o objeto
resiste, não se encaixando em nenhum esquema anterior, é preciso
efetuar um novo trabalho e transformar os esquemas anteriores,
ajustando os esquemas de pensamento aos fenômenos. E no aspecto
afetivo, a acomodação é o interesse pelo objeto enquanto ele é novo.
(Piaget, 1954/2014)
Em suma, Piaget (1954/2014, p. 43) conclui que nunca se
encontra estado afetivo sem elementos cognitivos, nem ao contrário e
que “a afetividade desempenharia [...] o papel de uma fonte
energética, da qual dependeria o funcionamento da inteligência, mas
o suas estruturas” e também que “[...] ela não gera estruturas
cognitivas e não modifica as estruturas no funcionamento das quais
intervém”.
No propósito de melhor demonstrarmos a intrínseca relação
entre a afetividade e cognição com o desenvolvimento moral, também
trazemos para a composição deste estudo as contribuições de
Kohlberg e outros autores. Kohlberg se especializou na investigação
sobre educação e argumentação moral, se tornando conhecido pela
sua teoria dos níveis de desenvolvimento moral. Muito influenciado
pela teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget, o trabalho
de Kohlberg refletiu e desenvolveu as ideias de seu predecessor, ao
mesmo tempo criando um novo campo na psicologia, o de
desenvolvimento moral. O autor acredita que através de um processo
maturacional e interativo, todos os seres humanos têm a capacidade
de chegar à plena competência moral, medida pelo paradigma da
242
moralidade autônoma, ou, como prefere Kohlberg, pela da
moralidade pós-convencional. Acredita também que,
potencialmente, todo indivíduo é capaz de transcender os valores da
cultura em que foi socializado e não apenas os incorpora
passivamente. Com isso, a própria cultura pode ser modificada.
Em seu livro “Psicologia del desarrollo moral” (1992),
Kohlberg trabalha com conceito de estágios morais: pré-
convencional, convencional e pós-convencional. À medida que o
indivíduo ‘evolui’, vai conquistando novos níveis e estágios, com
valores morais característicos de cada etapa. “Há uma universalidade
da sequência de estágios, que culminam com a justiça. O sujeito
constrói o conhecimento, sendo capaz de atingir os níveis mais altos
de julgamento moral.” (Biaggio, 1999, p.2)
Em Kohlberg (1992), podemos verificar o valor moral que o
autor atribui a cada nível e estágio, assim como as razões para se atuar
‘corretamente’ e a perspectiva social do estágio; sendo possível
compreender melhor em que nível/estágio a pessoa se encontra para
entender seu comportamento e atitude, de acordo com seu
desenvolvimento moral.
Paralelamente à teoria de Casassus exposta na primeira parte
deste estudo, ao trabalharmos também as ideias de Kohlberg, e de que
existe uma lei mais elevada e princípios universais maiores, sendo cada
caso um caso, nos propomos a um trabalho de maior reflexão e à
possível busca de uma evolução da usual heteronomia (moral externa,
imposta pela autoridade e de fora para dentro) para a autonomia dos
alunos, trabalhando sua consciência individual e coletiva, assumindo
sua responsabilidade sobre isso.
Ao abordar ‘usual’ heteronomia acima, é porque
normalmente nos deparamos com adultos heterônimos em nossa
243
sociedade, uma vez que não foram estimulados a refletir, criar e/ou
questionar desde pequenos, aceitando e seguindo regras colocadas por
outros. Dessa forma, esses indivíduos tornam-se incapazes de agir
favoravelmente sobre o seu meio, mesmo que não os agradem. As
propostas deste estudo levaram em conta a necessidade de atrair e
afetar o professor e aluno, como ser único e individual, porém que faz
parte e influencia o meio em que vive, não culpabilizando somente ao
seu redor, mas também chamando-os para com suas
responsabilidades como ser integrante educacional.
Os conceitos de anomia, heteronomia e autonomia, também
demonstrados de acordo com as fases morais (e atitudes morais)
descritas por Piaget em seu livro “O juízo moral na criança”
(1932/1994), podem ser melhores exploradas a partir do tópico do
desenvolvimento socioemocional (Lehn, 2016). E, como auxílio na
compreensão desta temática, apresentam-se três níveis de habilidades
da autonomia, identificados nos estudos realizados por Noom,
Dekovic e Meeus (1999). São eles: 1) Autonomia Atitudinal ou
Cognitiva (percepção de metas pelo exame das oportunidades e
desejos); 2) Autonomia Funcional ou Condutual (percepção de
estratégias pelo exame do autorrespeito e controle) e 3) Autonomia
Emocional (processo de independência emocional em relação à
família e/ou pares) (Lehn, 2016).
E conforme Piaget, os fins da educação moral se encontram
em “considerar que é o de constituir personalidades autônomas aptas
à cooperação” (Piaget, 1930/1996, p. 9). Dentre as técnicas
apresentadas pelo autor, “estão os métodos ativos, os quais são aqueles
que colocam a criança como protagonistas de seus aprendizados,
podendo fazer escolhas, tendo experiências significativas, baseadas em
cooperação (Piaget 1930/1996).” (Zambianco, 2020, p. 90-91)
244
A autonomia emocional é explicada segundo a teoria da
inteligência multifocal (ou a capacidade de se utilizar a comunicação),
cabendo ao Eu, própria consciência crítica, treinar e desenvolver sua
autonomia; porém, esse desenvolvimento será gradual, particular de
cada um e a escola e o educador deve conhecer e respeitar os passos
deste processo, auxiliando no desenvolvimento da inteligência
socioemocional. Administrar e equilibrar essas emoções,
comunicando-nos melhor, que permeia nossas relações, auxiliaa
convivência e, consequentemente a concentração e aprendizado.
(Lehn, 2016).
Um breve percurso reflexivo através de grandes
pensadores/estudiosos e a prática pedagógica
Diante de todos os aspectos levantados até aqui, não podemos
desconsiderar a história de cada ser, sua visão de mundo, sua
formação, seus anseios e tantos outros aspectos importantes e
constituintes do indivíduo, antes de adentrarmos à uma sala de aula
e/ou planejar determinada prática pedagógica. Teremos posições
tanto particularista, individual de cada um, como também
universalista, em comum a muitos. Podemos com isso, fazer um
paralelo ao que se entende por Ética, como um campo de estudo e de
ação, onde se encontra um conjunto de valores, uns defendendo uma
ética universalista e outros mais particularista; o que serve para um,
pode não servir ao outro.
No texto ‘Os constituintes do campo ético’, do livro “Um
convite à Filosofia” (Chauí, 2000), a autora fala que para que haja
uma conduta ética é preciso que exista: 1. O agente consciente (nós
humanos), 2. Os valores ou fins morais (as regras, normas para
245
convivermos em sociedade, onde todos somos dotados de um
conjunto de valores que consideramos importantes na vida) e 3. Os
meios (são as maneiras que o sujeito moral adota para realizar os fins
ou os valores morais).
Para este agente consciente (Chauí, 2000), também
conhecido como ‘nós’, sujeitos morais (conhecendo a diferença entre
bem e mal, certo e errado dentre outros), é preciso que seja consciente
dos outros e de si, seja dotado de vontade para controlar seus
impulsos, desejos, sentimentos etc, e seja livre, porém responsável
com suas ações. Importante que cada um aja de maneira autônoma
(regras de si mesmo) e livre, precondição de uma conduta ética/moral.
E dentro deste pensamento, quando pensamos em nossos alunos, não
devemos uniformizar a aula de maneira igual a todos,
desconsiderando o individual de cada um, um ser que age e é dotado
de valores. Se não levarmos estes pontos em questão, não estaremos
desenvolvendo uma escola, sala de aula e/ou uma sociedade ética e
acabamos suprimindo as vontades de cada um.
Muitas vezes, o educador acaba perdendo o controle da
situação e precisa lembrar que existem situações que independem de
nós e não estão em nosso poder e/ou não escolhemos. E nesse sentido,
importante entendermos que ser ético é conseguir moderar entre estas
situações, mas para que isso ocorra ele deve estar consciente de si, ser
dotado de vontade, ser responsável e ser livre, com capacidade de agir
de maneira autônoma.
Chauí (2000) segue distinguindo paixão (passional) de ação
(ativo), onde o sujeito passional é movido por suas paixões, impulsos,
inclinações, seguindo os outros etc, enquanto que o sujeito ativo ou
virtuoso é ao contrário, controla estes sentimentos e situações,
consultando sua razão e vontade antes de agir. Não há ação sem
246
paixão, contudo, a paixão é uma energia que pode ser bem conduzida
e controlada, agindo de maneira moderada/equilibrada.
Seremos sempre afetados por situações cotidianas, nem
sempre previstas e/ou preestabelecidas e devemos levar em
consideração os valores éticos de nossos alunos. A escola e todos seus
profissionais, muitas vezes, se pautam em uma perspectiva fechada de
seus alunos, porém a vida é um resultado das relações sociais, valores
da sociedade que vêm se construindo ao longo da história e ainda
inacabados, em constante transformação.
Outra consciência que precisamos ter é a de que não somos
apenas seres epistemológicos (com base em teorias/conceitos) e que
somos orientados também por outras importantes dimensões, como
nossos sentidos, percepções, nosso eu, nossos pensamentos e até
mesmo como cidadãos perante a sociedade e assim por diante.
Os autores Adorno e Horlhewe (1985) tentam ressignificar o
conceito de inteligência, associada a algo somente racional, pensante
(de um lado o sujeito que conhece e do outro o objeto de
conhecimento). Para ser inteligente, tem que haver sensibilidade
também, ou seja, é necessário incluir o mundo sensível no conceito
da inteligência.
Com a primeira ideia de que conhecer é dominar e saber é
poder, nós, educadores, acabamos reprimindo em nossas crianças a
parte sensível, criativa e/ou até mesmo sua fala e livre expressão em
sala de aula.
Formados para as operações lógicas, em uma tradição
pedagógica moldada na noção de inteligência limitada, despertamos
inibição e medo em nossas crianças. Devemos romper esta visão
limitada e não deixar acumular energias reprimidas nos alunos, que
podem voltar à tona inesperadamente, não estando preparados para
247
lidar com a situação, provocada por nós mesmos, até porque já
interiorizamos esta prática no nosso dia a dia. E aquela criança que
não se adequa ao sistema da escola, acaba sendo considerada
‘problemática’. Reflitamos então: Como podemos montar uma
estratégia para nos emanciparmos e criarmos condições para isso?
Onde nos apoiarmos? Precisamos ter e dar oportunidades para não
reproduzirmos somente repetições em sala de aula.
Outro pensador importante para trazermos juntos nesta
reflexão é Aristóteles (Cardoso, 1987), ao discorrer sobre a alma
humana (das paixões à formação do homem ético), aponta que na
alma encontram-se três elementos: paixões, faculdades e disposições
de caráter e que a virtude deve pertencer a uma destas. Entende
paixões por vários sentimentos (cólera, medo, raiva, inveja etc.) que
são acompanhados de dor ou prazer.
Discorre também sobre a virtude/ética como resultado da
parte racional (epistêmica, científica) e irracional (paixões/emoções)
da alma (psique) e a importância de nos tornarmos homens virtuosos
(éticos) em nosso processo de formação. A sabedoria, equilíbrio,
prudência é uma expressão do homem virtuoso e apesar de consciente
e atuar como um homem virtuoso, é necessário diariamente buscar o
equilíbrio frente aos desafios da vida.
Em seu texto ‘O conceito de paixão’, Gérard Lebrun coloca:
A paixão é sempre provocada pela presença ou imagem de algo
que me leva a reagir, geralmente de improviso. [...] Sinal de que
vivemos sempre na dependência do outro. [...] Um homem não
escolhe as paixões. Ele não é, então, responsável por elas, mas
somente pelo modo como faz com que elas se submetam à sua
ação. Deste modo que os outros o julgam sobre o aspecto ético.
[...] A excelência ética [...] só pode ser determinada pelo modo
248
de reagir às paixões e [...] pelo modo como um homem pode
temperá-las. Ação que revela nosso caráter e por onde somos
julgados (comportamento emotivo). [...] quando ajo, me é
sempre possível fixar a intensidade passional exata apropriada à
situação. (Cardoso, 1987, p. 19-20).
E continua, “o homem virtuoso ou ‘bom’ é o que aprimora
sua conduta de modo a medir da melhor maneira possível [...]. O
virtuoso [...] age em harmonia com suas paixões, porque as dominou
[...]”. (Cardoso, 1987, p. 20)
Cientes disso, pensando em paixão, ética e educação, é
possível, exequível, viável, razoável pensarmos numa formação
diferente de professores, novas formas de relação aluno-professor,
prática docente e pedagógica, pesquisa em educação, ensino etc.?
Continuemos tentando!! Pois a educação deve levar o homem a se
tornar apto a utilizar suas paixões adequadamente.
No texto “Ética e política em Aristóteles” (2011), Cesar
Ramos afirma que para Aristóteles, o homem quando procura a
felicidade e o que lhe faz bem, é a ética, preocupado com si mesmo e
com sua melhor forma de viver. De qualquer forma, não podemos
dissociar o que nos faz bem sem entender que fazemos parte de uma
sociedade (política), ou seja, deve estar inserida na coletividade.
(Candiotto, 2011)
Todo mundo faz o que faz porque quer alcançar a felicidade.
O bem é o alvo/fim das nossas ações, segundo Aristóteles. Ainda
conforme ele, a virtude é uma disposição de caráter relacionado à
escolha e que a virtude se define por nosso julgamento. E seguir as
normas não significa que o ser humano será feliz, ou seja, temos que
buscar ao longo da vida qual o melhor caminho a seguir e o equilíbrio
na busca da felicidade, do que nos faz bem e/ou nos prazer, fugindo
249
da dor, do sofrimento; porém tudo dependerá das circunstâncias. A
aula em si, por exemplo, é uma exigência ou faço porque quero e
gosto?
A ética do dever como uma norma estabelecida, imposta ou
eu tenho algum espaço de escolha? A ética como virtude é um
exercício por toda a vida que vamos construindo.
No dia a dia, julgamos e enxergamos todos dentro da sala de
aula de forma igual, sem considerar as circunstâncias e diferenças dos
sujeitos envolvidos. A escola pune o erro, tirando da criança a
possibilidade de errar, que é um processo de aprendizagem. Falta
pensar a educação numa perspectiva Aristotélica, que seria mais
inclusiva.
Preferimos as coisas prontas e não enfrentar desafios, mas
Aristóteles diz que a causa motora de nossos atos está em nós mesmos,
mas quando fracassamos, há um padrão de homem de sucesso que
temos de cumprir e se não cumprimos, nos frustramos. (Candiotto,
2011).
A felicidade não pode ser um fim em si mesmo, mas um
princípio de orientação, uma busca permanente e as
frustrações/decepções fazem parte do jogo, mas não pensamos assim,
comumente presenciamos pais/responsáveis não querendo dizer ‘não’
aos seus filhos e percebemos um padrão fechado do que é ser feliz.
Ainda em Candiotto (2011), no texto Ética e dever moral em
Kant, a ética Kantiana faz parte das correntes de pensamento que
priorizam a busca de um princípio universal. Para Kant, o valor moral
está no princípio e este princípio é universal. Essa moral é uma moral
da razão, pura e prática, e é por meio disto que o ser humano se torna
livre, se liberta, se torna autônomo. Porém esta moralidade tem
limites, entre a experiência e conhecimento prático, onde o agir se
250
mostra como caráter subjetivo, individual e a prática coletiva,
universal, que parte de leis e normas.
Kant ressalta que todo ser humano deve agir de acordo com
os princípios morais. Não basta a pretensão de seguir as leis morais
universais para que uma ação seja moral, mas segui-las de uma
determinada maneira. Deve-se agir com respeito e dever às regras
jurídicas e sociais, mas preciso ter vontade própria. A ação moral deve
ser realizada pelo respeito e dever a ser cumprido. Quando me
submeto ao outro por dever, não sigo minha vontade e sim a do outro.
(Candiotto, 2011)
Não podemos esquecer que Kant mostra a visão de sua época
e atitudes do seu tempo, assim como demais pensadores/autores aqui
apresentados, e mostra como o homem está submetido aos valores,
mas reforça que o homem é racional e dotado da capacidade de pensar
e agir por si só, pensamento revolucionário para sua época.
Por último, porém não menos importante, trazemos nesta
reflexão o conceito de niilismo de Nietzsche (filósofo alemão, 1844-
1900), com base no texto ‘Nietzsche e o niilismo como diagnóstico
da crise ética’, de Jorge Viesenteiner. (Candiotto, 2011). Niilismo
como um processo de falência de sentidos que o homem dá à sua vida,
estado psicológico sem fim, caminho ou saída. Esvaziar-se de uma
vida inventada, não mais pautada por valores absolutos, abstratos,
deixando nossa vida de lado. Nosso próprio corpo vai se conformando
e aceitando modelos éticos/morais, abrindo mão da nossa própria
vida.
Nietzsche faz uma crítica à moral racionalista: uma moral que
foi erguida com finalidade repressora e não para garantir o exercício
da liberdade. Também fala que esta moral transformou tudo que é
natural da natureza humana em vício, tudo que é espontâneo em nós
251
em errado (precisando reprimir), merecendo um castigo. Para
Nietzsche, a vontade seria a expansão da vida e/ou a própria vida e
transgredir as normas é uma expressão de liberdade e somente os
fortes são capazes desta ousadia.
Temos a todo momento que nos adaptar a um interesse geral,
nos angustiando e vivendo neste niilismo. Com isso, vamos
enfraquecendo, vivendo artificialmente nesta hipocrisia, que muitas
vezes é a própria educação.
Considerações Finais
Após nosso percurso até aqui, percebemos que a escola não
conseguirá avançar na melhoria do ensino-aprendizagem se não
pressupuser todo o desenvolvimento anterior de seus alunos, seja no
campo emocional, cognitivo ou moral, fatores essenciais para uma
educação integral do indivíduo, envolvendo-o e tornando-o um ser
ativo nesse processo, cientes de seu papel no todo.
Em paralelo, lembramos que A Base Nacional Comum
Curricular BNCC (Brasil, 2017) enfatiza a urgência de as escolas
desenvolverem uma educação integral e do desenvolvimento das
competências socioemocionais, alinhadas às cognitivas; pois como o
próprio Piaget afirmou, o sujeito só conseguirá aprender algo novo se
tiver estruturas cognitivas que o permitam.
A pesquisa demonstrou que as contribuições de Juan Casassus
e demais autores referenciados afeta positivamente a vida escolar, com
práticas pedagógicas diferenciadas e voltadas à formação integral do
aluno, considerando seu histórico, seu emocional, sua inteligência e
seu desenvolvimento moral. Não nos esquecendo que, com base nos
pensadores e filósofos apresentados, é importante considerar as
252
paixões humanas e a formação ética para pensar a educação,
precisando ampliar e garantir que nossos alunos tenham um olhar
mais consciente e mais aprofundado do mundo.
Não nos esqueçamos também do ser individual e que cada um
vai lidar de forma diferente em sala de aula. Quando o aluno
apresenta apatia (sem paixão), temos que combater com empatia, pois
normalmente as ‘paixões’ são excluídas e não levadas em conta na sala
de aula. Podemos não ter culpa de que isso ocorra, mas temos que ter
a compreensão. Mas pensando nisso, lembremos inclusive que ainda
não há uma formação apropriada dos profissionais da educação e que
talvez nem toda teoria disponível dê conta da prática escolar no dia a
dia.
Ainda longe de encontrarmos todas as respostas, continuamos
questionando: Como a escola pode ser um espaço que viabilize uma
ação ética e virtuosa?
De qualquer forma, o grande desafio será como fazer com que
nossa consciência funcione também de forma integral, tomando o
cuidado para não continuarmos formando uma escola desumanizada,
como se o outro não existisse e só transmitisse conteúdo.
Muitas vezes passamos pela vida com angústias, insatisfação,
decepções, sendo agentes deste mesmo processo, não pensando nas
nossas escolas e o que fazemos dentro da sala de aula. Precisamos
problematizar tudo isso, à exemplo da busca constante da filosofia. E
são estes questionamentos que nos traz para a vida e a faz ter um
sentido.
253
Referências
BIAGGIO, Angela Maria Brasil. Universalismo versus relativismo
no julgamento moral. Psicologia: reflexão e crítica, 1999, vol. 12,
no. 1, p.5-20. ISSN 0102-7972
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular:
Educação Infantil e
Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica,
2017.
CANDIOTTO, Cesar. Org. Ética abordagens e perspectivas
.
2. ed.
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255
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Capítulo 12
Ywypóry rekó e'y rupi
47
em sala de aula
Sueli do Nascimento
48
Dedico aos povos originários e a meus ancestrais, em especial a
Nhanderu/Ituko'oviti, aos povos Guarani Nhandewa -
aporãeté!, Terena anapo’yakoé!, da Terra Indígena Arari
Avaí/SP, e Casé Angatu kwekatureté! “Minha ancestralidade
saúda a sua ancestralidade”.
Introdução
O caminho deste estudo, fruto da pesquisa de doutorado, em
andamento no momento de sua escrita, contribuiu para inúmeras
rupturas em minha anga/ambá (alma, em tupi-guarani/guarani
nhandewa), enquanto professora, pesquisadora e ser-juntos com o
47
Sem ser da mesma maneira de pensar do colonizador, fazer diferente (decolonial) em
guarani nhandewa.
48
Doutoranda em Educação pela Unesp, Campus de Marília; integrante do Grupo de Estudo
e Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade (GEPEES/Unesp); mestre em Educação pela
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS/Unidade Paranaíba-MS); docente do
Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium UniSALESIANO, Campus
Araçatuba/SP - e da Rede Pública Municipal de Ensino de Birigui/SP. E-mail:
sueli.nascimento@unesp.br
256
outro. Assim é que me reconheço neste encontro de vida em minha
profissão. Um encontro entre mim, alunos, famílias: juntos,
enfrentamos a negação de nossas subjetividades, enfrentamos a não
aceitação da diferença e da diversidade humana com base num padrão
de sociedade ocidental, patriarcal e eurocêntrica.
Neste contexto, os desafios são a constante padronização, o
controle e o rigor pedagógico que a posição de comando neoliberal e
neoconservador impulsiona o “andar para trás” e ainda assombra as
instituições. Mas será possível fazer algo diferente, que interrompa as
políticas e ideologias neoliberais e neoconservadoras para se
estabelecer um compromisso com um projeto de transformação
social?
Tais inquietações se aglutinam em meu ser professora, ser
pesquisadora e ser eu mesma, em coerência com a ideia de criar uma
metodologia que faça a diferença nas escolas e na sociedade. Acredito,
por isso, que o futuro seja ancestral, razão que me tem levado a me
aproximar dos saberes ancestrais, dos povos originários, cuja filosofia
de vida (expressão apenas nossa e estranha a eles) se traduz em bem
viver, tema que será longamente explorado na pesquisa.
Portanto, em coerência com o posicionamento que assumo e
defendo, a formação, a prática docente e a metodologia precisam ser
revisitadas numa perspectiva decolonial. À vista disso, não estou
desconsiderando os modelos tradicionais de ensino, e respectivos
discursos; muito menos, as metodologias e métodos utilizados. Cabe
ressaltar que parto da premissa de uma narrativa que acolhe o processo
significativo de um olhar atento à sabedoria ancestral com a educação.
Também é preciso esclarecer a razão que por isso me levará a utilizar
o “Onhombo’e Ra” no lugar de método, que em guarani nhandewa,
significa “caminho do aprendiz”. Onhombo’e Rapé, na importância do
257
caminho do aprender-juntos, compreender professores, alunos e
comunidade, de forma horizontal e contínua. É um processo no qual
diálogo e escuta estão presentes, presentes no ato de ouvir a Terra de
acordo com uma cosmologia indígena, chamada “Nhande rekó”, ou,
em guarani nhandewa, ‘modo de viver’.
A novidade, de minha parte, é que proponho a questão da
decolonialidade em relação aos povos originários, para os quais se tem
reservado território, mas sempre ficaram à parte, ainda que em algum
momento os programas hajam inserido a “história da cultura”.
49
Muitos autores, e aqui me restrinjo a Catherine Walsh (2001, p. 10)
e a Candau (2008, p. 52), falam em “decolonialidade”, mas no
sentido de “relação, comunicação e aprendizagem entre culturas em
condições de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade”, mas
de modo um tanto genérico. A particularidade do presente estudo é
tudo isso e mais, o “viver juntos”, a conjunção de teoria e prática. E
assim, juntos, dialogamos.
“Decolonialidade” é um ponto de partida comum. O que o
estudo aqui propõe é provocar e sensibilizar para um compromisso
autorreflexivo na linha de Freire, na linha de Dussel que fala em
filosofia de libertação, combatendo a unilateralidade das visões
eurocêntricas de uma pedagogia de crueldade mencionadas por
Quijano, que, utilizando palavras de Walsh (2002. p. 117-118), diz
que tal pedagogia “não pode ser pensada sem considerar estratégias
políticas contextualizadas, nem sem a associar a políticas de
identidade cultural e subjetividade” (tradução nossa).
49
Cf. LDB 9.394/96, de acordo com o desposto no artigo 26 das disposições gerais, que
regulamenta a obrigatoriedade do estudo da história da cultura afro-brasileira e indígena nos
estabelecimentos de ensino fundamental público e/ou privado.
258
Onhombo’e Ra
o caminho do aprendiz
Assim, apresentamos um recorte desta pesquisa que perpassa
por nossas memórias ancestrais, o ‘círculo de saberes ancestrais’
nhanimboatyá nhanderu rekó-re, que significa escuta e diálogo.
Incluímos neste círculo pensadores, educadores e indígenas para
auxiliar na aproximação com os saberes ancestrais e a partir disso é
que se estrutura a circulação de saberes.
A partir deste ponto, eu, a pesquisadora, me associo seja a
participantes dos povos indígenas e a professores não indígenas que
comigo partilham dos ideais dessa proposta, e, juntos, seguimos pela
escutatória-dialogal. Trata-se, como será devidamente explicado, que
permite circular saberes por e para uma discussão intercultural,
utilizada como parte da metodologia de pesquisa, que compreende a
luta e a resistência dos povos originários em documentos e leis que se
conectam com o tema, como também expomos sua base - a do
onhombo’e rapé” (escutatória-dialogal) - no contexto educacional, a
ele juntando vivências que dão luz a esta pesquisa. Estimulados pela
‘circulação de saberes’, passamos, às vivências. E como, em sociedade,
o padrão de vida é repassado, e esse repasse constitui um conteúdo de
saberes e tradições, traduzimos “tradição” por currículo, formalizado
no processo de ensino das organizações não indígenas.
Nesse processo, tivemos as vivências na escutatória-dialogal -
ponto de relação do “onhombo’e rapé” com o currículo.
Especificamente, o foco foi a pesquisa de campo na Terra Indígena
Araribá, constituída pela escutatória-dialogal que ocorre entre
indígenas-professores e professores da educação básica e do ensino
superior. Como consequência e em sequência, a estruturação desse
momento.
259
Por fim, chegamos à formação e à prática docente:
contribuições da escutatória-dialogal são as experiências vivenciadas
por meio do círculo de saberes ancestrais, enquanto caminho para a
formação docente, utilizando o “onhombo’e ra. Admitido o
diálogo, admitidas as diferenças de modo de ser, de cosmovisões
diferentes, não há como não aprofundar a questão ‘intercultural’ e sua
importância nesse estudo.
Nesse contexto, especificamos que, de modo geral, a pesquisa
se organizou e seguiu o caminho do onhombo’e ranum recorte
geral desses momentos em que a Mãe-Terra fala por si mesma, como
explica Krenak: “Quem já ouviu a voz das montanhas, dos rios e das
florestas não precisa de teoria sobre isso: toda teoria é um esforço de
explicar para cabeças-duras a realidade que eles não enxergam”
(Krenak, 2020, p. 20).
Propomo-nos, os participantes, sanar todas as dúvidas e etapas
detalhadas da pesquisa, mas refletir sobre a ancestralidade dos povos
originários (voz da floresta), por sua importância em se repensar em
sala de aula. Isso, e ali, segundo palavras de Kaká Werá, para
“descobrirmos os brasis. Para descobrirmos os brasileiros. Para
conversarmos juntos ao pé do fogo” (2002, p. 17).
Ao pé do fogo nas palavras de Kaká, o equivalente a estar-
juntos -, numa ação-reflexão-ação histórico-cultural no Brasil,
encarado do produtivismo e consumismo capitalista ao pântano
político, social, econômico, ecológico e ético, considerando-se
também a crise global. Quando Freire (2002, p. 44) escreveu que a
autorreflexão levaria as massas “ao aprofundamento consequente de
sua tomada de consciência”, alertava sobre quão longo seria o
caminho pedagógico para a inserção dos sujeitos “na História, não
mais como espectadores, mas como figurantes e autores”.
260
Estas premissas, aplicadas a um processo de ação-reflexão-ação
numa história situada, nos levam a crer que, adotando uma
metodologia que possa ser aplicada em sala de aula e que promova a
escutatória-dialogal - onde os saberes possam circular entre os sujeitos
pela escuta e o diálogo -, seja possível viver o comprometimento ético
de despertar e provocar um posicionamento crítico na percepção do
quanto as escolhas de cada um se refletem no outro.
Enquanto partilha de saber, equivale à construção do
conhecimento ancestral ao qual se refere Kaká Wéra (2020, p. 20)
quando escreve: “O índio passa por cerimônias, queo celebrações e
iniciações para limpar a mente e compreender o que nós chamamos
de tradição, que é aprender a ler os ensinamentos registrados no
movimento da natureza interna do ser”. Para esta comunidade, o
ensinamento se inicia “sempre pelo nome das coisas”, pois, para eles,
“toda palavra tem espírito” (Jecupé, 2020, p. 20).
O que “as cerimônias” são para eles, para nós são o equivalente
a “sala de aula”. Ali é que se aprende o que chamaremos de papel ativo
dos sujeitos, ou, institucionalmente, as relações sociais entre os
sujeitos envolvidos, incluindo alianças e conflitos, com as respectivas
normas e estratégias, individuais ou coletivas.
Infelizmente, “em sala de aula” ainda prevalece a visão de uma
diversidade reduzida às diferenças apreendidas pela ótica da cognição
(bom ou mau aluno, entre outros atributos classificatórios), que se
supõe colaborar para a colonialidade do poder, do saber, do ser e do
eurocentrismo.
Diante dessa abordagem, a proposta é admitir que a sala de
aula, e todos os sujeitos envolvidos, reivindiquem a criação de espaços
comunitários para o exercício da criatividade e do pensamento crítico,
261
perspectiva para a qual se requer ou exige a plurinacionalidade como
condição para o exercício de uma democracia inclusiva.
É exatamente nesse cenário que se alinha a genealogia do
pensamento decolonial, que Mignolo (2008, p. 258) afirma ser
“planetária e não se limitar a indivíduos, mas incorporar-se aos
movimentos sociais (o que inclui os movimentos sociais indígenas e
afros)”, movimentos a se imitar e a nos levar a deixar de “olhar para
os povos indígenas apenas do ponto de vista ocidental do
colonizador” (Medeiros apud Bergamaschi I et al., 2012. p. 52).
O processo, aqui encarado como sabedoria ameríndia, propõe
uma racionalidade em que a relação entre todos os seres, animados ou
inanimados, seja uma relação social num contexto de bem viver.
Acosta (2016, p. 26) considera que, para se construir o “bem viver, a
educação intercultural, por exemplo, deve ser aplicada a todo o
sistema educativo obviamente, porém, com outros princípios
conceituais”. Princípios que se destacam desde o pensamento
fronteiriço, especificado por Mignolo (2003, p. 52) quando fala em
“espaço de onde o pensamento foi negado pelo pensamento da
modernidade, de esquerda ou de direita”. Já Dussel (2000, p. 50-51)
complementa sobre o caráter emancipador racional europeu
“transcendido como projeto mundial de libertação de sua Alteridade
negada: a Trans-Modernidade (como novo projeto de libertação
política, econômica, ecológica, erótica, pedagógica, religiosa,
etecetera)”, sem pensar nas múltiplas experiências de sujeitos “que,
agora segundo Maldonado-Torres (2007, p. 162), sofrem de distintas
formas a colonialidade - do poder, do saber e do ser. A
transmodernidade, segundo o autor, “envolve [...] una ética dialógica
radical e um cosmopolitismo de-colonial crítico”.
262
São pontos que articulamos na reflexão proposta, inclusive
para rever o conceito de Natureza e compreender o porquê do fracasso
governamental e da insensibilidade das nações mais poderosas diante
das crises aqui citadas, além da dificuldade de se identificar “o que é
realmente importante e necessário” (Acosta, 2016. p. 30). Já
Kopenawa (2015) afirma que gente da floresta tem outra perspectiva
de existência. Krenak escreve, a respeito desses povos: “Cantar, dançar
e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas
tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o
horizonte prospectivo, mas existencial. É enriquecer nossas
subjetividades” (2019, p. 32).
Destacamos, dentre as propostas na área educativa, a de
“enriquecer nossas subjetividades” na instituição, que pode e deve
aprender “diferentes linguagens”, apropriando-se de “recursos para
dar conta de si e do seu entorno”, uma instituição na qual Krenak
(2020, p. 34) acredita e em que se admitem sonhadores que tenham
a “cosmovisão dos povos e nacionalidades indígenas” mencionada por
Acosta (2016, p. 25), ou capaz, segundo Mignolo (2010, p. 17), de
propiciar "a pluriversalidade como projeto universal", de modo a
assim alcançarmos o desprendimento, a abertura, o delinking
(deslocamento) epistêmico como estratégia para a decolonização, a de-
colonização ou a descolonização epistemológica. Aspectos que
refletem outra dinâmica, eticamente contextualizada entre normas e
estratégias individuais, ou coletivas, para diminuir a visão de uma
diversidade reduzida às diferenças apreendidas na ótica da cognição.
A prática pedagógica e o compromissus numa escutatória-
dialogal
50
. Para pensar em ouvir o outro requer-se o exercício
50
Pesquisa inicialmente apresentada em: Anais do V Colóquio Internacional Diálogo Sul-
Sul; II Congresso Internacional de Pesquisa e Prática em Educação (Conippe) da
263
silencioso do ato de ouvir a que chamaremos de escutatória-dialogal,
num viés ético e intercultural, lembrando que nesta perspectiva
decolonial há entraves sócio-históricos eurocêntricos de nosso passado
e presente. Metodologicamente, a escutatória-dialogal permite
aproximar-nos do pensamento decolonial, aproximar-nos das
narrativas que percorrem a palavra (pensar) e sua ação (movimento),
que conecta a relação entre ética e interculturalidade.
Nessa interface, reaprender a ouvir o outro com todos os
sentidos nos permite acreditar que os saberes ancestrais têm muito a
contribuir com o contexto histórico-filosófico em favor de uma
educação que contemple um bem viver.
Uma educação que contemple um bem viver insere o outro,
compreendendo que esse outro é diferente e que:
Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que
cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como
constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de
estarmos juntos, viajando, não significa que somos iguais;
significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros
pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de
vida (Krenak, 2019, p. 16).
A diversidade é o primeiro ponto a constelar as relações e não
a diminuí-las e/ou a segregá-las. Destarte, conscientemente, é preciso
ter o cuidado de não “olhar para os povos indígenas apenas do ponto
Ufac/Unesp: território e fronteiras de vida em plenitude: desafios, propósitos e articulações
atuais de raízes ancestrais [recurso eletrônico]; Realização Universidade Federal do Acre.
Rio Branco: Edufac, 2022, Universidade Federal do Acre (Ufac) e da Faculdade de Filosofia
e Ciências (Unesp) do campus de Marília. ISBN 978-65-88975-41-1. Consta também nos
Anais do 12º Encontro Nacional de História e no 1º Encontro Internacional de História da
UFAL: Genocídios na História: passados, presentes, futuros. Maceió: UFAL, 2021. ISSN
2176-284X.
264
de vista ocidental do colonizador” (Medeiros, 2012, p. 52). Esse
cuidado é referido por Freire quando fala das palavras que, ao compor
frases e ao se trocarem, não apenas estruturam um sentido, mas
promovem “relações entre as pessoas”, estabelecem uma ligação ou
relação que tanto pode representar “a agressividade, a amorosidade, a
indiferença, a recusa ou a discriminação sub-reptícia ou aberta”
(Freire, 1997, p. 27).
Está aqui o princípio de nossa responsabilidade com as
narrativas de quem participou da escutatória-dialogal, que ressaltamos
no início, para, assim, ultrapassar as paredes eurocêntricas que se
silenciam em estruturais espoliações, genocídios e etnocídios, e
estimular a aproximação tal como ocorre com a terceira parede de
uma peça teatral, com a finalidade do encontro com o Outro e a de
levar a participar do processo de construção.
Por uma prática decolonial em sala de aula
Como o estudo faz parte do doutorado em andamento, e
adota uma abordagem qualitativa, assim como é da natureza de uma
pesquisa aplicada, seu objetivo é onhombo’e rapé caminho do
aprendiz, por meio da escutatória-dialogal, participante. Assim é que
se deverão compreender os significados e as características situacionais
dos sujeitos envolvidos: pesquisadora e orientador; 30 indígenas
professores dos povos guarani e terena; 3 professores da
Unesp/Campus Marília e 3 professores da educação básica da Rede
Municipal de Birigui. A escutatória-dialogal é instigada por
questionamentos, em que todos participam e expõem seus
pensamentos com escuta e diálogo entre si. A pergunta, que nessas
condições se faz, é: “Seria possível rever a própria metodologia em sala
265
de aula, numa proposta de escutatória-dialogal baseada nos saberes
ancestrais dos povos guarani e terena?
51
Assim, pensamos, que a escuta e o diálogo na sala de aula se
tornam cada vez mais indispensáveis no processo de ensino e
aprendizagem, e na prática docente. Na atualidade, consideramos um
grande desafio educacional para o professor instigar transformações e
mudanças, incluindo atrair a atenção de crianças e jovens e, ainda,
torná-los sujeitos ativos na construção do conhecimento.
Acreditamos, por isso, na criação de um onhombo’e ra, a que
chamaremos de escutatória-dialogal, que contribui para um círculo de
saberes ancestrais nhanimboatyá nhanderu rekó-re -, a partir do
pressuposto de um bem viver que advém de uma cosmovisão
indígena. No contexto dessa cultura, a Terra é mais do que
simplesmente o lugar onde se vive. Há uma relação dela, enquanto
sagrada, com plantas, animais e uma infinidade de seres vivos, além
dos humanos que dela germinam ou ela acolhe. Assim sendo, a Terra
está na base do bem viver, pois dela tudo germina e ela tudo acolhe.
Nesse contexto, a participação de todos é gravação, anotada,
ocorrendo, posteriormente, a análise do discurso em cada registro
e/ou mensagem, em sucessão, da primeira a todas as demais, na brecha
conectiva para pensar no diálogo entre ética, interculturalidade e
currículo decolonial, e pensar no movimento por um bem viver.
Nesse movimento, escutamos a trajetória do sujeito
silenciado, numa exclusividade da escrita e do idioma colonial.
Observamos que esse âmbito não menciona indígenas, negros e todos
os que dificultam a construção de um sujeito nacional homogêneo: a
51
Povos localizados nas terras indígenas Araribá, no município de Avaí (a 3 quilômetros de
Bauru).
266
monoepisteme do pensamento ocidental. Cabe esclarecer que dos
conhecimentos sobre a história étnico-racial brasileira, destacamos os
povos originários e assumimos como referência a Terra Indígena
Araribá.
Cabe esclarecer que a aprovação da nossa pesquisa perpassou
por cinco órgãos relevantes: 1 - Secretaria Municipal de Educação de
Birigui/SP, baseada na Portaria SME nº 012/2018, despacho de
autorização do processo 16637/2022; 2 - Parecer de análise de mérito
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), Processo: 01300.003129/2022-71; 3 - Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Filosofia e
Ciências, Unesp/Campus de Marília, autorização emitida pela vice-
diretora no exercício da direção (7/3/2022); 4 - Fundação Nacional
do Índio (Funai), primeiro Brasília/DF, e, depois, região de
Bauru/SP; 5 - Plataforma Brasil, CAAE: 57221522.8.0000.5406.
Esclarecido esse ponto metodológico, fundamental para o
presente trabalho, seguimos sobre o trabalho de campo realizado na
Terra Indígena Araribá, durante o ano de 2023, quando a
pesquisadora, no caso, eu, acompanhei a organização e as atividades
desenvolvidas pelas aldeias Kopenoti, Nimuendaju e Tereguá.
Participaram das diversas reuniões com os indígenas professores e
lideranças da própria terra indígena, e, em momentos específicos,
professores de educação básica e ensino superior. As aulas são descritas
em detalhe em nosso diário de campo, que não detalharemos aqui,
mas explicamos que tinha o intuito de oferecer aos participantes deste
estudo elementos constitutivos das cosmovisões. O círculo de saberes
ancestrais foi um momento de imersão particularmente relevante, que
permitiu aos grupos da educação básica e do ensino superior vivenciar
267
também a escutatória-dialogal com convidados de diversas etnias do
País.
Cabe pontuar que foi gravada a fala dos participantes, com
autorização, evidentemente, não para ser quantificada, nem para ser
reduzida à operacionalização de variáveis, mas com a finalidade de
comprovar que a pesquisa não está centrada na exposição de um
relatório ou descrição dos dados, mas na criação de uma metodologia
que possibilita a legitimidade da voz dos sujeitos envolvidos: a
escutatória-dialogal.
Analisamos os discursos colhidos nas conversas (com as
tecnologias mencionadas) para verificar os seguintes aspectos: 1 - O
que é bem viver para você? 2- Do que necessita, em sua opinião, uma
educação conectada com o bem viver?
Tais questionamentos exigiram de mim, pesquisadora, que
analisasse, no discurso, dois pontos fundamentais: 1 - Como
concebem esses docentes seus saberes profissionais? 2 - Qual o peso e
o lugar dos componentes disciplinares?
Sob este aspecto, os relatos permearam a formação, os saberes
na base da profissão, os saberes ancestrais e o trabalho curricular;
depois, a condição do trabalho docente na universidade, a educação
básica e a educação indígena em que atua.
Cabe ressaltar que os questionamentos e discursos analisados
compõem o aprofundamento da problemática inicial, que se traduz
na questão: é possível rever a própria metodologia em sala de aula,
numa proposta de escutatória-dialogal, baseada nos saberes ancestrais
dos povos guarani e terena?
Em síntese, a presente discussão envolve a formação e a prática
docentes, como também o currículo, apontando para a necessidade
de conteúdos que em sala de aula estimulem o debate sobre a
268
interculturalidade. Almejamos que o onhombo’e rapé - escutatória-
dialogal possa contribuir para a desconstrução dos arcabouços que
ainda sufocam a ancestralidade e que, nesse movimento, saibamos
reconhecer a importância da luta e da resistência dos povos
originários, independentemente de partido político que tenha estado,
está ou venha a estar no governo de nosso país.
Onhombo’e Ra
: escutatória-dialogal
O estudo seguiu por uma prática docente decolonial o
“onhombo’e ra-escutatória-dialogal, que consistiu em “superar a
mera posição teórico-cúmplice da filosofia com o sistema vigente que
gera vítimas” (Dussel, 2012, p. 321).
Escolhemos, por isso, três locais e movimentos que
promovessem a ruptura por meio do onhombo’e ra presencial na
Terra Indígena Araribá nas aldeias Kopenoti, Nimuendaju e
Tereguá. Neste contexto, a visita à terra Araribá contou com
professores da educação básica de Birigui/SP, e do ensino superior de
Marília/SP. Por fim, os círculos de saberes on-line via ambiente virtual
(domínio do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Filosofia e Ciências, Unesp/Campus de Marília na plataforma
Google), num processo de legitimidade das falas, e possíveis
discussões sobre conflitos advindos da colonialidade do poder.
Considera-se a história situada na cultura ancestral um
caminho para o diálogo plural, rigoroso e respeitoso, entre a ciência e
os saberes ancestrais, para se enfrentar um currículo recortado de
epistemologias fragmentadas que contribuem para práticas
pedagógicas que descontextualizam os espaços histórico-culturais e,
consequentemente, acabam desmembrando coletividades. O que se
269
pretende, utilizando aqui palavras de Sacristán (2000, p. 48-49), é
produzir “uma prática sustentada pela reflexão enquanto práxis”, um
caminhar que se “constrói através de uma interação entre o refletir e
o atuar, dentro de um processo circular que compreende o
planejamento, a ação e a avaliação, tudo integrado por uma espiral de
pesquisa-ação”.
A interação entre refletir e atuar, por ele mencionada (2000,
p. 49), possui a complexidade espiral da pesquisa-participante,
constituindo, nas palavras de Freire, a “autorreflexão”, que levará as
massas “ao aprofundamento consequente de sua tomada de
consciência” (2002, p. 44). É, sem dúvida, um ato circular; a partilha
de saber, mencionada neste estudo, que insere os sujeitos “na
História, não mais como espectadores, mas como figurantes e
autores”.
Kopenawa (2015, p. 78) confirma, no livro A queda do céu:
“somos habitantes da floresta. Nossos ancestrais habitavam as
nascentes dos rios muito antes de os meus pais nascerem, e muito
antes do nascimento dos antepassados dos brancos”. A questão que
enfrentamos é: como introduzir este contexto, ou elemento base, no
currículo e nas aulas?
Recorreremos à práxis, porque, como afirma Sacristán, é a que
“opera num mundo de interações, que é o mundo social e cultural,
significando com isso a impossibilidade de se referir de forma
exclusiva a problemas de aprendizagem, já que se trata de um ato
social” (Sacristán, 2000, p. 48). Ou, dialogando com Freire (1981,
79-80), a construção de nossa prática docente não acontece “isolada
do mundo, senão na práxis dos homens dentro da história. Por
implicar a relação consciência-mundo, envolve a consciência crítica
desta relação”.
270
Cabe analisar o posicionamento de Sacristán (2000, p. 223)
quando afirma: “[...] nas simplificações dogmáticas, ergue-se uma
crítica contra as concepções acumulativas e lineares da ciência, que
não consideram conflitos, revoluções, pluralidade e
incomensurabilidade das diversas teorias chamadas científicas”. A
respeito da práxis, o alerta do autor é que ela “assume o processo de
criação de significado como construção social, não carente de
conflitos, pois se descobre que esse significado acaba sendo imposto
por quem tem mais poder para controlar o currículo” (Sacristán,
2000, p. 48).
A complexidade dessas relações da colonialidade do poder
desse Estado-nação moderno implica a consciência crítica do estar-
sendo. A propósito, o complexo pensar em movimento, aqui
mencionado, é indispensável para se compreender a diferença
essencial entre a Ética do Discurso e a Ética da Libertação. Dussel fala
das “vítimas da não-comunicação”, que se situam “justamente na
‘situação excepcional do excluído’, isto é, no momento mesmo em
que a Ética do Discurso descobre os próprios limites” (Dussel, 2012,
p. 418).
É nessa ‘situação excepcional do excluído’ no mesmo
momento em que a Ética do Discurso descobre os próprios limites ,
pontuado por Dussel (2012, p. 418), que se acredita exigir,
metaforicamente, do educador, a dinâmica do pensar em movimento,
no tipo proposto de ação-reflexão-ação, que nos permitimos chamar
de escutatória-dialogal, por funcionar mais como vinculação com o
outro do que simplesmente como entrevista.
Assim, pela dinâmica promovida pelo método proposto, e
utilizando palavras de Kaká Werá, será um processo de “[...]
reconhecimento da unidade na diversidade de tudo que existe,
271
demonstrando que a vida é um fluxo interdependente e um
encadeamento de relações, parte de uma visão de pertencimento
inclusivo onde o ’si mesmo’ e o ‘Todo’ interagem entre si” (2020, p.
25).
A escutatória-dialogal é parte da tese - dessa relação de
pertencimento inclusivo, em que o “si mesmo” e o “Todo” interagem
entre si, numa complexa e maravilhosa constelação única, em que
cada um é, fomos, somos e seremos.
Seguimos, nesse modo de pensar, Mignolo (2017, p. 15), pois
segundo o autor, e é o que pretendemos, o ‘novo modo de pensar’ “se
desvincula das cronologias construídas pelas novas epistemes ou
paradigmas (moderno, pós-moderno, altermoderno, ciência
newtoniana, teoria quântica, teoria da relatividade, etc.)”. O autor
ainda colabora ao explicar que não é que “as epistemes e os
paradigmas sejam alheios ao pensamento decolonial. Não poderiam
-lo; mas deixaram de ser a referência da legitimidade epistêmica”
(Mignolo, 2017, p. 15).
É o que Santos (2011, p. 266-267) afirma acontecer ao se
‘desconstruir’ o produto do domínio do poder, que vem de “qualquer
relação social regulada por uma troca desigual. É uma relação social
porque a sua persistência reside na capacidade que ela tem de
reproduzir desigualdade”, incluindo “a ação e a vida”, “os projetos e
as trajetórias pessoais e sociais”, promovendo e impondo uma
educação desigual.
As trocas desiguais, mencionadas tanto por Dussel (2012)
quanto por Santos (2011), produzem oprimidos e excluídos,
incluindo a pesquisa científica, que se propõe conscientizar essa
“sociedade produtora de mercadorias” (Santos, 2011, p. 286). É para
ir contra a coisificação das pessoas que Santos (2011, p. 286)
272
correlaciona a “personificação das coisas”, processo com o qual,
insiste, se pode e deve repensar a metodologia e a didática, para que
seja possível criar um elo entre interculturalidade e currículo.
Na ação-reflexão-ação pretendida neste estudo, é de suma
importância citar o que Freire há muito tempo mencionou sobre a
tão fundamental mudança da cara da escola, ou seja, o “sonho de
democratizá-la, de superar o seu elitismo autoritário, o que só pode
ser feito democraticamente” (1991, p. 74). O sonho de Freire era que
se conseguisse, como resultado, “uma sociedade menos injusta, menos
malvada, mais democrática, menos discriminatória, menos racista”
(1991, p. 118).
Por um esperançar inconclusivo...
Por meio da escutatória-dialogal nos achegamos aos povos
originários, em seu ambiente, o da floresta, escutando sua voz e com
eles dialogando, vivenciando e experimentando sua naturalidade de
sentir e viver numa pedagogia própria e, ao mesmo tempo, distinta
para cada etnia. Apesar de distintas, mas caracterizadas por cultura
própria, com ela e sua preservação todas rompem com o silêncio da
história para fazer ecoar sua voz, em suas expressões e narrativas, para
além das fronteiras impostas e demarcadas.
Pensar em movimento por um bem viver implica ser incluído
metodologicamente nas práticas pedagógicas em sala de aula,
vinculando-se à interculturalidade para se repensar passado e
presente, trazendo a fala dos povos originários para os livros
paradidáticos, para as histórias narradas pelo professor/a em sala de
aula; trazer a história de sua resistência, possibilitando uma aliança
entre sabedoria e conhecimento, sob e sobre o tempo. Este estudo,
273
além da reflexão por um bem viver ligado à natureza e à partilha
coletiva, é um convite à nossa ‘anga/ ambá’ (alma, em tupi-guarani/
guarani nhandewa).
Aqui, cada ‘anga/ambá’ é uma presença sagrada, pois o
diálogo com a diversidade vai além de uma discussão norteadora.
Acreditamos, pela proposta do pensamento decolonial, que ele
admita, permita e possibilite uma pluralidade de vozes e caminhos,
ou seja, admita o direito à diferença e, simultaneamente, ofereça uma
abertura a uma outra forma de pensar e de pensar o outro e, assim,
normas e estratégias individuais, ou coletivas, despertem da
eurocêntrica visão sob uma diversidade reduzida às diferenças
apreendidas na ótica da cognição.
O estudo não se encerra aqui, mas convida pesquisadores a
partilharem o saber para fortalecer o compromisso entre os povos, a
Pacha Mama e a sala de aula, por mudanças educacionais, histórico-
políticas e emergenciais no Brasil!
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277
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Capítulo 13
A Ética em Espinosa e a Educação:
uma introdução
Viviane Mayumi Resende Uenaka
52
Introdução
Por que estudar Espinosa na educação? De que modo um
filósofo do século XVII pode contribuir para o desenvolvimento
humano e também para a conjuntura educacional atual? São
perguntas talvez menos realizadas pelos estudiosos, provavelmente
porque não há tantos comentadores que visitem o tema. De fato, não
há nas obras de Espinosa uma seção dedicada e sistematizada a tratar
especificamente sobre o tema da educação, entretanto, é possível
extrair de alguns movimentos textuais lições pedagógicas que
contribuem significativamente para a formação e desenvolvimento do
humano, o que tentaremos expor ao longo deste trabalho. “E desde
que Spinoza não dá um tratamento sistemático ou explícito da
educação, nossa tarefa envolve a construção da teoria da educação que
está implicada na sua filosofia” (Rabenort, 2018, p. 73).
Uma das genialidades de Espinosa está em elaborar uma
antropologia a partir de uma ontologia que se exprime pela
52
Mestra em Filosofia pela Unesp - Campus Marília. E-mail: mayumi.resende@unesp.br
278
afetividade, que por sua vez, é a base de sua ética, a ética da potência
e da imanência. Ademais, vale sublinhar que a Ética, talvez a obra
mais consagrada do pensador, é um clássico da filosofia moderna,
considerada por seus contemporâneos uma obra escandalosa, rompe
com conceitos preciosos da tradição filosófica, como o conceito de
Deus
53
, por exemplo, equiparando-o a natureza
54
, uma filosofia
completamente original e que inevitavelmente reverbera seus efeitos
até os dias atuais. Segundo Calvino (2009, p. 11), “um clássico é um
livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Ou
seja, trata-se de um livro cujas reflexões são muito valiosas e
pertinentes a serem aplicadas em pleno século XXI. Por isso,
trataremos da ética neste trabalho com enfoque pedagógico (no
âmbito da educação), embora ecoe um enorme valor no campo
epistemológico, ontológico e político, que no final, estão
sistematicamente interligados.
Espinosa se preocupou em escrever uma Ética demonstrada à
maneira dos geômetras (ordine geometrico demonstrata), com uma
forma de escrita um tanto peculiar, composta por definições, axiomas,
proposições, demonstrações, escólios, corolários, etc. O pensador
racionalista o fez inspirado pelo modelo matemático euclidiano.
Dividida em cinco partes, cuja primeira parte tem como título: Deus;
a segunda parte: A natureza e origem da mente; a terceira parte: A
origem e a natureza dos afetos; a quarta parte: A servidão humana ou
a força dos afetos; e a quinta parte: A potência do intelecto ou a
liberdade Humana. A ontologia fortemente presente nas duas
53
“Deus é causa imanente, e não transitiva, de todas as coisas”. (Spinoza, 2019, p.29).
54
“Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que
consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita”.
(Spinoza, 2019, p.13).
279
primeiras partes, servem de substrato para o pensador conceber a sua
teoria dos afetos, complexos afetivos que serão o pano de fundo das
lições ético-afetivo educacionais e, portanto, nos ajudarão a refletir
sobre uma educação mais potente. Porém, é, sobretudo, na terceira e
quarta partes da Ética que vislumbramos uma certa exposição
pedagógica, assim como entende Ravà. “Trata-se portanto nessas duas
partes de uma espécie de grandiosa pedagogia social em bases
psicologicas”. (Ravà, 2013, p.265). Não podemos olvidar que a ética-
da-potência ganha “vida” na terceira parte da obra com o surgimento
do conatus. Este conatus, ou seja, esforço incessante em perseverar no
ser, dará cor a pedagogia dos afetos, ponto crucial para o
desenvolvimento deste trabalho.
A ética da potência
Ao tratarmos da ética espinosana, devemos de início fazer uma
ressalva, pois, à revelia do senso comum, para Espinosa, moral e ética
são elementos incompatíveis. Para ele, a moral está atrelada à
transcendência, superstições, religiosidades, ou seja, elementos que o
pensador combate em suas obras, especialmente no Tratado Teológico
Político. Desta forma, Espinosa afasta o pensamento da tradição que
era baseado nas crendices de uma transcendência teológico-religiosa
que se serve da ética como sinônimo de moral e a coloca sob a tutela
do pecado, onde os homens ficam presos a imaginação do bem e do
mal, e afastados de conhecerem sua verdadeira natureza (não
podemos perder de vista que o pensador estava inserido em uma
realidade do século XVII, onde religião e política mantinham estreita
relação). A ruptura fica mais concreta com a Ética, obra na qual
Espinosa não prescreve um dever-ser (modelo normativo atrelado às
280
questões morais), ao revés, ele nos apresenta, ou melhor, expõe a
naturalidade dos comportamentos humanos, que são, em suma, o
reflexo de suas modificações e afetos experienciados no mundo
natural. O agir ético espinosano nada tem a ver com os deveres
normativos, porque, em regra, para Espinosa, quem age por dever,
não é livre, mas apenas servo. “Eis, pois, o que é a Ética, isto é, uma
tipologia dos modos de existências imanentes, substitui a Moral, a
qual relaciona sempre a existência a valores transcendentes”.
(Deleuze, 2002, p. 29). Logo, o conceito de liberdade está
diretamente relacionado com as nossas ações e com o conhecimento
da nossa natureza (e de Deus). Agir para Espinosa é sinônimo de
liberdade, agimos quando somos livres. A liberdade em Espinosa é
diferente daquela liberdade entendida pelo senso comum. A liberdade
espinosana implica no conhecimento de Deus. Não há em Espinosa
liberdade de escolha, agimos por necessidade. O homem é parte da
imanência da natureza, seu efeito, por assim dizer, e sendo parte dessa
natureza, ele também participa ativamente das modificações do
mundo.
Tudo é uma questão de potência. O conatus surge como um
divisor de águas na Ética. Espinosa faz uma construção sofisticada do
termo, aqui resumido mui superficialmente: o conatus
55
é a nossa
força motriz, força interna que nos leva a perseverar no ser, é
dinâmico, acontece em ato, por isso, não há tempo determinado.
Portanto, o conatus
56
está ligado a nossa potência de agir e existir.
55
Segundo Spinoza (2019, p.105), conatus: “cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si,
por perseverar em seu ser”. O conatus é “o esforço pelo qual cada coisa se esforça por
perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual” (Spinoza, 2019, p.105). “o
esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser não envolve nenhum tempo
finito, mas um tempo indefinido.” (Spinoza, 2019, p. 105).
56
“O conatus, que define a essência singular de cada ser humano, é uma potência de existir
ou uma causa que produz efeitos bem como recebe os efeitos de outras causas ou de outros
281
Somos potências limitadas, partes da potência absoluta que é a
natureza. Ademais, o nosso conatus visa sempre o aumento de
potência, em razão disso, a qualidade dos afetos experienciados são
importantes. Embora seja natural para Espinosa sentirmos o afeto de
tristeza ou o afeto da alegria (bem como suas derivações, como o
medo, desespero, ou ainda esperança, segurança), buscamos sempre
os advindos da alegria, pois são eles os responsáveis pelo aumento de
nossa potência, que implica na realização do ser. Para Espinosa, há
apenas três afetos primários: alegria, tristeza e desejo
57
; sendo que os
outros afetos são derivações destes três. “A alegria é a passagem do
homem de uma perfeição menor para uma maior. A tristeza é a
passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor”.
(Spinoza, 2019, p.141). Quanto mais potentes, mais livres e ativos
seremos, visto que o conatus é a perseverança no ser, e perseverar da
melhor forma possível, de maneira mais abrangente, envolvendo
nossas conquistas em todas as áreas da vida. Nesse passo, de acordo
com Chauí (2003, p.138):
O conatus é a essência atual da coisa. [...]. Que significa defini-lo
como atual? Afirmar que é uma singularidade em ato e, portanto,
não é uma inclinação ou uma tendência virtual ou potencial, mas
uma força sempre em ação. Como essência atual, é
intrinsecamente indestrutível coisa alguma, na natureza, se
autodestrói, a destruição sendo sempre efeito da ação de uma
causa externa[...]
conatus. É uma unidade dinâmica de forças internas em relação com forças externas que
podem auxiliá-lo, regenerá-lo, aumentar-lhe a potência ou destruí-lo.” (Chauí, 2011, p.146).
57
“Compreendo, aqui, portanto, pelo nome de desejo todos os esforços, todos os impulsos,
apetites e volições do homem, que variam de acordo com o seu variável estado e que, não
raramente, são a tal ponto opostos entre si que o homem é arrastado para todos os lados e
não sabe para onde se dirigir”. (Spinoza, 2019, p. 141)
282
O estudo dos afetos, ou melhor, das ações e paixões, são a
chave para compreender a elaboração e a leitura que Espinosa faz da
vida, dos homens e do mundo. “Por afeto compreendo as afecções do
corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída,
estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções
(Spinoza, 2019, p.98). Desta forma, Spinoza (2019, p. 98),
argumenta que “por afeto compreendo, então, uma ação; em caso
contrário, uma paixão”. Seu sistema imanentista, necessitarista,
acolhe de forma afetuosa o homem, seja aquele marcado pelo selo da
paixão, situação na qual o seu conatus está enfraquecido devido às
causas exteriores, e, consequentemente a sua potência de existir é
baixa (pois tomados pelas paixões o homem não consegue refrear seus
afetos, torna-se impotente); ou aquele que age (portanto, a potência
de existir é aumentada, tendo em vista que está firmada no
conhecimento das leis naturais e nos afetos alegres). Para arrematar,
vale salientar que o afeto é a transição de potência no homem. E essa
oscilação é causada pelos nossos desejos, ora desejamos os bons
encontros, ora desejamos os maus encontros. Por isso, a qualidade do
desejo é importante, uma vez que para Espinosa somos
essencialmente desejo. “Dissemos que o desejo é uma inclinação da
mente a algo que ela avalia como bom; de onde segue que, antes que
nosso desejo se dirija a algo exterior, produz-se em nós uma conclusão
de que isso é bom”. (Espinosa, 2020, p.121). A ética espinosana nos
orienta qual o caminho para uma vida feliz, uma vez que a liberdade
e a alegria são elementos indissociáveis. E na medida que o homem
aumenta a sua alegria e a força do seu conatus, mais próximo está da
natureza. A grande sagacidade da ética está em entender que a razão
está voltada ao eterno, ao absolutamente potente, ao passo que as
283
paixões (idéias confusas) dão espaço ao efêmero, as coisas vazias que
não nos agregam e não são capazes de gerar o verdadeiro aumento de
potência.
Possíveis diálogos com a educação
Como bom filósofo racionalista, Espinosa aduz que os
homens, por meio da razão, podem alcançar o conhecimento
verdadeiro, e este conhecimento verdadeiro são as leis naturais. A
partir desta tese, o homem se “abre” para o mundo, entende que é/faz
parte deste todo, leia-se: natureza, e que todas as coisas são ou estão
nela. Apenas por meio da razão (ideia clara e distinta da nossa
natureza humana e da natureza em geral), podemos nos aproximar da
liberdade, do aumento de potência, da realização do ser e, por isso,
conceber uma realidade de vida melhor. Como dito na seção anterior,
o pensador holandês é contra tudo que lhe limita a liberdade. Ele
coloca o indivíduo como aquele ser capaz de arquitetar sua vida,
gerando desenvolvimento pessoal e coletivo ao mesmo tempo, por
meio da sua liberdade e de sua potência.
A filosofia de Espinosa nos orienta ao autoconhecimento,
entender o que se passa dentro e fora de nós, a complexidade dos
nossos afetos, nossos desejos, a fim de que possamos sempre melhorar
nossas inter-relações
58
. Uma vez que a nossa racionalidade explica
toda a imanência. Somos potentes, portanto, quando somos
racionais. Segundo Spinoza (2015, p.497-9), “[...] em coisa alguma
pode alguém mostrar mais sua destreza no engenho e na arte do que
58
“O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é
aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem
maior nem menor”. (Spinoza,2019, p.99).
284
em educar [educandis] os homens para que vivam por fim sob o
império próprio da razão.” O que naturalmente ocorre após o
conhecimento da causa primeira/Natureza. Conhecer pela causa não
é uma inovação de Espinosa, pois desde Aristóteles já se entendia
assim (Deus é o motor que move todas as coisas sem sofrer a ação do
movimento). Em que pese Espinosa ter escrito o excerto acima sobre
o ato de educar, não desenvolveu sobre o tema da educação
propriamente dito, mas resta evidente a sua preocupação com o feito
de educar, de ser útil ao próximo, de conduzir os homens à
emancipação. Percebe-se um movimento pensado no coletivo e
individual ao mesmo tempo, para que os homens entendam a sua
condição e lugar no mundo, permitindo uma maior compreensão
afetiva de suas vidas, que, em certo sentido, trará serenidade ante as
adversidades do meio.
Para o educador Paulo Freire (1996, p. 16):
Formação científica, correção ética, respeito aos outros,
coerência, capacidade de viver e de aprender com o diferente, não
permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com
relação ao outro nos façam acusá-lo do que não fez são obrigações
a cujo cumprimento devemos humilde, mas perseverantemente
nos dedicar.
Ousa-se dizer que Freire lembra o modelo espinosano em
muitos sentidos, pois ele aduz que a formação científica e a correção
ética do professor devem andar lado a lado. Além de ser uma
pedagogia acolhedora, assim como a filosofia de Espinosa também o
é. Abarcando todas as pessoas com a sua subjetividade, suas
particularidades. Para Espinosa, inclusão e racionalidade são
conceitos arraigados (bem delineados no Tratado Político). Além do
285
mais, Freire nos ensina tal como Espinosa, a pensar no coletivo, no
bem estar do próximo, em ser útil
59
, a não fazer julgamentos baseados
em impressões, e a perseverar na melhor relação com o outro, na
relação educador-educando, por exemplo, tornando este encontro,
um encontro alegre, havendo realmente troca de saberes, capaz de
gerar o aumento de potência para as partes envolvidas. Se aproximar
do outro, entender o outro, aprender com o outro, faz com que nos
aproximemos de nós mesmos, entendendo nosso papel no âmbito
social e dando sentido à vida. Observando essas reflexões, o agir ético
espinosano está bem conectado por seus fios de aço com a filosofia da
educação e, quanto mais o educando/educador tiver o conhecimento
de si, maior será também o conhecimento do meio no qual ele se
encontra, sendo inevitável o aguçamento de suas potencialidades.
Consequentemente, a sociedade ganha bons cidadãos.
Como mencionado anteriormente, somos seres dotados de
potência, desdobramentos da potência infinita e eterna da natureza.
Na escola, na universidade, no ambiente escolar em geral, nos
expressamos pelo nosso desejo, nosso conatus, refletimos esse esforço
pelo conhecimento, pela afirmação do nosso ser, logo, todo esse
processo cognitivo se traduz em um aprendizado afetivo que busca a
liberdade de pensar e de dizer o que se pensa, o autoconhecimento,
relações de amizade
60
, crescimento pessoal, social, e os demais
59
[...] os homens não podem aspirar nada que seja mais vantajoso para conservar o seu ser
do que estarem, todos, em concordância em tudo, de maneira que as mentes e os corpos de
todos componham como que uma só mente e um só corpo, e que todos, em conjunto, se
esforcem, tanto quanto possam, por conservar o seu ser, e que busquem, juntos, o que é de
utilidade comum para todos. (Spinoza, 2019, p.169)
60
“Somente os homens livres são utilíssimos uns aos outros e se unem pela máxima ligação
de amizade [...], e por igual empenho de amor esforçam-se para fazer o bem uns aos outros
[...]; e assim [...], somente os homens livres são muitíssimo gratos uns para com os outros”.
(Espinosa, 2021, p. 487).
286
objetivos almejados pela educação. Somos esse esforço conativo, ou
seja, buscamos a felicidade, o desenvolvimento, entretanto, vale dizer
que por meio desse esforço que exprimimos a nossa singularidade,
nosso grau de potência, logo, há diferentes graus/níveis de potência,
por esse motivo, há tantos conflitos entre os homens. Por mais
paradoxal que pareça, é pelo conatus(desejo) que nos afastamos ou nos
unimos uns aos outros. Voltando a educação, o aprender e o ensinar
residem justamente no movimento ético-afetivo de compartilhar
experiências inspiradoras que acarrete em afetos comuns alegres, se
servindo da razão quando passamos a ter ideias claras e distintas sobre
as coisas, mas sem perder de vista a naturalidade das paixões que
muitas vezes nos arrastam para direções contrárias, mas que fazem
parte do próprio ser. O desejo, um dos afetos primários, ganha
envergadura, pois é ele que exprime a nossa atividade ou passividade.
A chave espinosana está na transformação do desejo passivo num
desejo ativo. Destarte, bem como Espinosa entende que a multidão
pode pleitear ser causa comum de um mesmo efeito, especialmente
com relação à política (como ele bem desenvolve o assunto no Tratado
Político, quando elege a democracia como o mais natural dos regimes,
e aduz que todos querem ser conduzidos como que por uma só mente,
o soberano) podemos pensar em um esforço conativo educacional,
onde todos, educador/educando, desejem e perseverem por uma
educação livre, alegre, potente e democrática.
Lições pedagógicas espinosanas
Se observarmos detidamente, são muitas as contribuições
pedagógicas de Espinosa deixadas em suas obras, por exemplo, a
pedagogia dos afetos e a educação dos homens ao desejo de
287
conhecimento verdadeiro. A Ética num todo nos ensina uma auto-
educação intelectual
61
, além de promover ao indivíduo, seja ele
educador-educando uma vida ética, expondo, em certo sentido, a
forma pela qual afetamos todo o ambiente à nossa volta, por isso,
podemos até mesmo atribuir a Espinosa uma pedagogia social. Como
mencionado, o desejo, afeto presente tanto no nosso estado racional,
quanto no nosso imaginativo (tomado pelas paixões) reflete quem
somos a partir de nossa experiência afetiva. Na Ética, o pensamento
social fica bem mais explícito na quarta e quinta partes da obra, onde
Espinosa nos apresenta os fundamentos da vida social, com enorme
valor pedagógico quando pensados à luz da teoria dos afetos, onde
aprendemos o sentido da utilidade, mas da verdadeira utilidade, de
nos ajudarmos uns aos outros. Inclusive, o princípio da utilidade é
basilar em sua ética. O entrave acontece justamente por conta das
paixões, seja na esfera social, seja na educacional. Nos desprendemos
da passividade para alcançar a liberdade, portanto, uma educação
ético-afetiva nos afasta da condição oscilante e temerária de apenas
existir
62
, pois o que se almeja é uma existência plena.
A educação nos proporciona o conhecimento, única via de
acesso a realização do nosso ser, passagem do casual a atividade que
nos faz progredir. Nos afastar das moralidades educacionais impostas
61
“Uma educação que consiste na ativação do desejo por meio do uso das potências próprias
de pensar e agir é, portanto, um processo que se fundamenta na razão, mas que não se reduz
à ela. A transformação da razão em um impulso desejante é o que confere a um educar ativo
sua força máxima, sua expressão como desejo supremo e modo de vida virtuoso. O desejo de
conhecer pelo pensamento próprio o que segue da necessidade da Natureza constitui, assim,
uma forma de vida que é também, essencialmente, um projeto educativo: autoeducativo e
co-educativo.” (Merçon, 2013, p. 21).
62
“Em Espinosa, o sábio é aquele que alcançou o gozo de uma certa forma de afetividade,
enquanto o vulgo é aquele que vive oscilando de uma verdade transcendente a outra,
admirando apenas aquilo que ainda não o enganou, coisa que as religiões, os políticos e os
marqueteiros sabem muito bem como aproveitar”. (Givigi, 2023, p. 56).
288
que, por muitas vezes, nos impedem de um pensar próprio,
característico de um aprendizado afetivo acaba sendo o nosso maior
combate nas instituições de ensino. “Crianças e jovens são capazes de
pensar sua própria vida, compondo-se com aquilo que lhe convém.
Também são capazes de pensar sua própria captura, se esforçando por
repelir toda a tristeza”. (Givigi, 2023, p. 54). Como dito, no limite, a
educação engloba o esforço coletivo do bem pensar e do bem
comum
63
. O sistema espinosano é muito atual para as discussões
educador-educando, especialmente no tocante a um educar potente.
A liberdade de ensino e a liberdade nas relações educacionais
(educador-educando), promovem, para o pensador, o real
desenvolvimento da sociedade, que sofre muitas vezes ante os
métodos pedagógicos atuais impotentes. Neste passo, Givigi (2023,
p. 61) aduz:
A autonomia do educador não poderia estar, assim, submetida
aos valores universalizantes do Estado, que são, por definição,
valores estranhos ao exercício singular do agir e do pensar em
comum. Assim, ao recuar diante dos limites incertos propostos
pela função de educador de Estado, e já tendo considerado sua
tendência à coartação dos ânimos, Espinosa foi capaz de
denunciar muito precocemente o quanto tais instituições
poderiam ser nocivas às inteligências, antecipando assim a ampla
crítica direcionadas a estas no contemporâneo, sobretudo a partir
do século XX.
63
“A educação afetiva spinozana é a expressão do conatus de um ou mais indivíduos, ou seja,
a potência da multidão que tem um esforço maior para a produção de afetos alegres,
garantindo sua existência e seu conhecimento não só voltado para a razão, mas também para
o social.” (Gomes, 2017, p. 478).
289
A educação espinosana é voltada para a formação humana e
proteção dos direitos, uma vez que direito e potência se equivalem em
Espinosa. Ademais, ele nos apresenta um modelo de educação
libertária e democrática.
Afirmar que o espinosismo é uma forma de educação libertária
não é um despropósito. Do princípio do século XX ao princípio
do século XXI não faltaram comentadores dispostos a
demonstrar como, embora não haja uma filosofia da educação
sistematizada no pensamento espinosano, o espinosismo é, na
condição mesma de filosofia, uma forma de educação para a
liberdade. (Bonadia, 2019, p. 2).
Cumpre dizer que o modelo educacional espinosano é aquele
que atende e equilibra a pluralidade de opiniões e desejos, a partir do
conhecimento da natureza, do nosso ser, da nossa essência, pelo uso
da razão. Somos potentes quando somos racionais
64
. Podemos então
pensar em uma educação ativa, ética, totalmente desvinculada de uma
educação tradicional atrelada a uma moral que espelha um caráter
punitivo, recompensativo, restritivo, comparativo e que realiza, na
maioria das vezes, um juízo de valor, podendo até mesmo nutrir os
afetos tristes nos educandos, causando, consequentemente, a
diminuição de suas potências, por conta dos maus encontros
proporcionados pela - e na - instituição de ensino, e da forma
negativa com que são afetados. Obviamente, neste cenário, os
64
“Na medida em que a razão chega a entender todas as coisas como necessárias, acalmam-
se aqueles sentimentos que são contrários à vida em comum: Confert haec doctrina ad vitam
socialem, quatenus docet, neminem odio habere, contemnere, irridere, nemini irasci,
invidere. Praeterea quatenus docet, ut unusquisque suis sit contentus... (“Essa doutrina é útil
para a vida social, à medida que ensina a ninguém odiar, desprezar, ridicularizar, invejar,
nem com ninguém irritar-se. É útil, ainda, à medida que ensina cada um a se contentar com
o que tem...”)” (Ravà, 2013, p. 264).
290
educandos sentem-se coagidos e, portanto, não conseguem pensar e
agir livremente, muito menos tocar no horizonte da liberdade. Neste
cenário, o esforço conativo do educando encontra-se enfraquecido,
logo, sua capacidade de desenvolvimento cognitivo, criação,
aprendizagem ficam limitados, ou até mesmo reduzidos, não bastasse
todo o sofrimento, o convívio com os demais acaba sendo marcado
por desavenças, uma vez que o indivíduo oprimido, triste, impotente
dificilmente consegue compartilhar bons afetos, leia-se: alegria, com
os demais.
A instituição de ensino, em tese, é aquela que deveria
proporcionar segurança, alegria, acolhimento aos educandos e
também aos educadores. E estes, deveriam estimular, proporcionar os
bons encontros, encorajando os educandos com afetos alegres,
esperançosos, erradicando todo o medo do ambiente escolar.
Compartilhar conhecimentos, boas experiências, boas vivências, entre
educador-educando dão sentido à vida, aumentam exponencialmente
a potência do ser, e esse desejar/”querer” intrínseco é o que deveria,
por via de regra, ser o desejar de todos na instituição de ensino.
Ademais, vale dizer que, segundo Merçon (2009, p. 156):
Na educação, o mito da finalidade opera em complementaridade
com as noções de falta e método, constituindo, com estas e outras
construções socioimaginativas, um complexo sistema moral.
Apoiando-se na divisão que instaura entre sabedoras e
ignorantes, a educação apresenta-se como detentora privilegiada
de um suposto saber capaz de proporcionar o útil. A educação
estabeleceria então os meios pelos quais esse saber seria
alcançado, transformando-o em uma meta ou fim ao qual todas
devem se direcionar. É importante esclarecer que, embora
estejamos nos referindo à aquisição de um conjunto de
conhecimentos com o fim explícito ao qual o processo educativo
291
tende, os julgamentos que derivam desse fim não se limitam a
predicar o falso e o verdadeiro, mas envolvem variadas esferas do
agir das educandas. As categorias epistêmicas são inseridas em
um sofisticado regime moral, em que o certo e o errado são
efeitos de comparações que possuem como norma não apenas
um ideal de saber, mas, indissociavelmente, um padrão de poder.
Deste excerto, é salutar dizer que dentro deste complexo
sistema moral educacional ora combatido pelos argumentos
espinosanos, há um jogo de poder. Não é o nosso intento se
aprofundar no tema, porém nos cumpre dizer que pelo
desconhecimento das leis naturais e por termos ideias inadequadas,
ou seja, confusas sobre a nossa essência (afetos/potência) e existência,
buscamos aquilo que realmente nos afasta do aumento de nossas
potências. O poder pode ser entendido neste contexto como uma
ilusão fabricada pela imaginação, pelas paixões. A aquisição de um
arranjo de saberes não traduz um ser humano potente, obviamente
que o ajuda a se desenvolver na vida, conquistar alguns objetivos,
entretanto, esses elementos não são suficientes para compreendermos
o conhecimento da nossa verdadeira natureza e alcançarmos a
liberdade. Há uma ilusão de força na extrema fraqueza, justamente
porque equivocadamente pensamos ser melhores do que os demais,
sendo que na verdade, todos somos esse esforço conativo em
perseverar no ser, variando apenas em graus de potência. Pelo sistema
necessitarista proposto por Espinosa, somos uma eterna relação de
causa e efeito, não há finalismo
65
. Destarte, a narrativa de um ensino
65
“Em todas as suas obras, Espinosa demonstra que a noção de causa final ou de finalidade
é uma construção imaginária na qual recorremos à noção de um fim para suprir nossa
ignorância quanto à causa real e verdadeira de uma coisa, um acontecimento ou uma relação.
Não existem causas finais; só existem causas eficientes. Uma vez que somos expressões finitas
292
educacional baseado em julgamentos e autoritarismo é fruto apenas
de vivências desorientadas, cuja adoção de modelos inadequados
universalizados não ajudam os educandos a se expressarem. Como
dissemos, a natureza humana está inclinada ao engano, justamente
por desconhecermos as leis da natureza e termos muitas ideias
confusas, logo, este estado de ignorância pode gerar uma série de
eventos danosos, como é o caso do bullying, algo tão incabível e
reprovável na conjuntura atual, mas que ocorre com frequência nas
instituições de ensino, pelo desconhecimento dos afetos e também
pelo conhecimento tão limitado do mundo. O medo do outro, seja
educador-educando, ou apenas entre os educandos, tornou-se
rotineiro e, em certo sentido, nos acostumamos a tal situação. Isso
apenas revela a impotência das ações pedagógicas tradicionais.
Intimidação, violência, opressão, desigualdades no ambiente escolar
apenas geram discórdia e impotência, e esta impotência se dá de forma
generalizada. Não apenas o conatus dos envolvidos, mas o próprio
conatus educacional tornam-se fracos, frágeis. A instituição de ensino,
assim como educador-educando devem resistir, segundo Espinosa, as
paixões tristes, que nos impedem de nos abrirmos ao e para o mundo,
o nosso conatus deseja a liberdade, entendida aqui também como
sinônimo de felicidade, emancipação intelectual, aprendizagem,
pensamento de amizade voltado ao coletivo.
O estudo dos afetos, nos torna mais “humanos” e nos orienta
a viver com “dignidade”, assim entre aspas, pois Espinosa não utiliza
esses termos. Quando entendemos as lições ético-afetivas deixadas por
Espinosa, entendemos quem somos e o nosso papel no mundo, logo,
não há que se falar em crise de identidade, pois o autoconhecimento
da causalidade imanente da substância absolutamente infinita, somos, como ela, causas
eficientes o conatus como potência de agir”. (Chauí, 2011, p. 62).
293
provém da astúcia da razão. O aprendizado afetivo nos possibilita
solucionar problemas educacionais, sociais, e a “conduzir” de maneira
mais assertiva a relação educador-educando. Para Espinosa, nenhum
indivíduo pode perder a sua singularidade/subjetividade no âmbito
educacional, ao revés, é por ela que podemos emergir (e pelo ensino
ético-afetivo espinosano) a todas as submissões promovidas por uma
educação atrelada a moral autoritária, cuja gênese se dá, pelo
desconhecimento da própria essência humana.
Considerações Finais
O estudo da teoria dos afetos em Espinosa nos oferece um
modelo de ensino ético capaz de transformar o ambiente educacional.
Modelo este que arquiteta formas de diminuir a alta tensão potencial
entre educador-educando. A educação moral vinculada aos poderes
públicos morais e tradicionais, retiram a autonomia, o pensar próprio
do indivíduo, que se sente coagido pelos valores generalizados
impostos pelo Estado, que por muitas vezes, impõe normas
educacionais que acabam limitando o nosso agir. Há um rico ensino
pedagógico em Espinosa, visto que ele alinha a sua ética ao
aprendizado afetivo e, com isso, nos permite pensar em um esforço,
leia-se: conatus (individual: educador, educando; e também em um
esforço coletivo, quando compreendemos a educação como o esforço
conativo). O aprender e o ensinar fazem parte das nossas vivências,
logo, buscar conexões ativas, alegres com os indivíduos e tudo que
no mundo em geral, ou seja, apenas fomentar os bons encontros,
certamente elevará nossas próprias potências, tornando-nos mais
livres. Estabelecer distanciamento com os encontros que nos limitem
o pensar e ação não é uma utopia, mas agir eticamente, entender nossa
294
essência, nossos afetos, nossas necessidades. É, pois, pelo conatus que
nos inspiramos e estimulamos uns aos outros na busca incessante por
aprendizagem, pela ativação do nosso desejo de conhecimento.
Por fim, a educação através das lentes espinosana, pode ser
compreendida por um esforço conativo, onde todos os envolvidos
precisam buscar o equilíbrio e/ou aumento de suas potências, nesta
filosofia da imanência, em que não há finalismo, as construções
morais formadas através do nosso processo imaginativo do saber ideal
propostas pelos modelos tradicionais, devem ser afastadas, bem como
todo o tipo de comparação que possuem como pano de fundo um
“status social” que pode gerar desigualdades, portanto, uma educação
antidemocrática. Somos transformados de acordo com os afetos que
experienciamos e isso acontece dinamicamente, logo, o aumento da
nossa alegria (e expansão da potência) no ambiente educacional é um
processo a ser alcançado através de um ensinar e aprender ético.
Embora um dos desafios da educação seja formar bons cidadãos e
tornar o mundo um ambiente mais harmônico para se viver, a longa
jornada que envolve o processo de ensino-aprendizagem deve
contemplar a busca do bom e do útil, que só conseguimos entender a
partir da nossa realidade afetiva.
Referências
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libertária? Educação e Pesquisa. São Paulo, v.45, 2019, p.1-17.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson
Moulin. 1. reimp. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.
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Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002.
ESPINOSA, Baruch de. Breve Tratado de Deus, do homem e do
seu bem-estar. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
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pedagogia política da multidão. Forteleza: EdUECE, ano 2023.
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Benedictus de Spinoza. Revista Ideação, n. 35, jan/jun.2017, p.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Editora Paz e
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MERÇON, J. Aprendizado ético-afetivo: uma leitura spinozana da
educação. Campinas-SP: Editora Alínea, 2009.
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296
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do Coletivo GT Benedictus de Spinoza. Fortaleza: EdUECE, 2018.
(Col. Argentum Nostrum).
RAVÀ, A. A Pedagogia de Espinosa. Tradução de Fernando
Bonadia de Oliveira, Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Homero
Santiago e Kácia Natália de Barros. Filosofia e Educação. Campinas,
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SPINOZA, B. Ética. Edição bilíngue Latim-Português. Tradução:
Grupo de Estudos Espinosanos. Coordenação: Marilena Chauí. São
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SPINOZA, Benedictus de. Ética. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2019.
297
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-465-3.p297-326
Capítulo 14
As relações movidas pela ética e alteridade na
educação: escola e formação do indiduo
Zelina Cardoso Grund
66
Introdução
Em relação ao aspecto histórico a ética na Antiguidade era
delineada de acordo com o plano espacial e os costumes de cada
região. No Ocidente a ética era tratada sob a regulação dos povos
primitivos com base no mundo mágico-sobrenatural. A harmonia da
natureza também se fazia presente na Ética Grega, levando em
consideração as ações do homem centrado no bem na sociedade.
Quanto a Ética Medieval, esta embasava-se na Verdade Divina, capaz
de alicerçar a conduta correta do homem. Neste sentido, visualiza-se
a Ética Moderna ao identificá-la na “[...] capacidade de decisão
autônoma, o valor das corretas decisões” (Valle, 2011, p. 50). Na
Idade Média a ética era interpretada sob a influência religiosa, com
base nos padrões da moralidade cristã, destacando-se na época Santo
Agostinho (Aurelio Agostinho de Hipona) e Santo Tomás de Aquino.
66
Doutoranda em Educação. Membro do Grupo de Pesquisa Análise de Políticas
Educacionais (GAPE). Universidade Estadual Paulista (UNESP) Faculdade de Filosofia e
Ciências, Câmpus de Marília/SP. https://orcid.org/0000-0002-4451-3444. E-mail:
zelina.cardoso-grund@unesp.br. Orientadora Profa. Dra. Cláudia da Mota Darós Parente.
298
Com o suporte de Valle (2011, p. 58-64) faz-se uma trajetória sobre
a vida desses dois filósofos religiosos.
Santo Agostino, filósofo e teólogo, com base platônica,
deixou o legado de um projeto ético do qual fazem parte: 1. o
homem, como elemento central no projeto ético em que isenta o
cosmo do “verdadeiro problema ético”, atribuindo a responsabilidade
a si próprio; 2. o lugar da vontade humana, no qual enfatiza a vontade
do homem para um projeto de felicidade, considerando esta como
determinante neste processo; 3. o homem enquanto corpo e
alma, representando o homem interior como “a imagem do Deus
Trindade”; 4. a questão do mal, relacionada ao pecado “causado pela
má vontade”, opção esta que contraria a vontade de Deus; 5. Vontade
e Liberdade, que remete ao livre-arbítrio, em que o homem tem a
liberdade de escolha entre o bem e o mal, porém, precisa ser
fortalecido pela e a ajuda de Deus para fazer esta escolha, caso
contrário “será vencido pelo pecado”.
Santo Tomás de Aquino, alicerçado na filosofia aristotélica
deixou como legado a obra da Suma Teológica, onde concilia a Fé e
a Razão. O seu projeto ético baseava-se em pensamentos voltados à
“compreensão da vida feliz” em que traz algumas ideias como: 1. a
natureza do homem ponderada a partir do conhecimento sobre si
e suas ações quanto a opção de coisas com qualidades boas ou
más; 2. o livre-arbítrio, que se fundamenta em um agir de livre
escolha do homem pelo bem ou mal de maneira a levá-lo à
felicidade humana, que “não pode ser encontrada nos bens criados,
mas só em Deus”; 3. a felicidade perfeita e imperfeita, segundo o
filósofo, para que o homem alcance a felicidade completa é possível
com o “pleno conhecimento de Deus”, pois os bens materiais apenas
garantem a sua permanência neste mundo conduzido pela natureza
299
humana; 4. o papel das leis na elaboração da ética, regulada por leis
eternas na ordem do universo guiado por Deus; 5. natural, centrada
na escolha do homem por agir de acordo com o bem ou o mal, que
pode ter como resultado a conservação ou a destruição; 6.
humana, fundamentada no direito positivado, relacionado ao
direito das pessoas, dos povos nas relações individuais e “comerciais”,
previstas com penalidade no caso de transgressão; 7. lei divina, a qual
está relacionada às Escrituras Sagradas, procedente do Evangelho,
capaz de guiar o homem até o final da vida.
Na visão dos pensadores a ética está ligada ao bem e ao mal.
De acordo com Ramos (2011, p. 30), “O bem que produz a melhor
vida possível, uma “boa vida” ou um “viver bem” é aquele que mais
almejamos e que nos traz satisfação ou “sucesso” de vida, ou seja, a
felicidade. De certa forma pode-se ligar o sucesso ao desejo, o qual
apresenta-se como algo inacabado que está sempre prestes ao ensejo
de outros desejos, em razão do ser humano estar sempre à mercê de
novas conquistas. Portanto, o desejo está ligado ao imensurável, ao
infinito como se fosse algo insaciável, diferente da necessidade
que, por ser histórica e biológica, é passível de ser satisfeita ao
ponto de sentir prazer, deixando de existir tão logo seja atingido o
alvo almejado pelo homem. Segundo Levinas (2000, p. 22), o desejo
metafísico “[...] deseja o que está para além de tudo o que pode
simplesmente completá-lo”. Ruiz (2011, p. 234) reporta-se à
dimensão do Infinito anunciado por Levinas “[...] como uma
categoria central de sua ética”.
Por se tratar de um ser político, nascido para a cidadania,
regido por padrões de normas e valores éticos, segundo palavras de
Aristóteles na tradução de Vallandro e Borheim (1991, p. 26) “O
homem verdadeiramente político também goza a reputação de haver
300
estudado a virtude acima de todas as coisas, pois que ele deseja fazer
com que os seus concidadãos sejam bons e obedientes às leis”. A
virtude, revelada pelo pensador, relacionada à compreensão e à
subjetividade humana, inerente a cada um e a todos, remete à
alteridade, a qual faz parte do ser humano.
Todos esses preceitos tornam-se uma condição necessária ao
verdadeiro sentido na relação ética do Eu com o Outro, tornando o
homem por natureza um ser social por meio do inter-relacionamento.
Tudo isso tem um fim, um fundamento, uma verdade, sendo
necessária sua inserção na educação, nas escolas de modo a preparar
alunos e alunas para uma realidade presente na modernidade. Várias
pesquisas estão sendo desenvolvidas com esse foco, porém, é
necessário que sejam do conhecimento da sociedade, motivo pelo
qual se propôs neste estudo apresentar um levantamento das
produções acadêmicas sobre escola, ética, moral, alteridade.
A metodologia utilizada nesta pesquisa foi a bibliográfica com
base na disciplina “Ética e Educação”, bem como a investigação
“online” a partir dos descritores: ética, moral, escola, educação com
vistas a efetivar um levantamento das publicações sobre o assunto, no
período de 2012 a 2021. Para isso adotou-se como fonte de pesquisa
o Banco de Dados Portal Brasileiro de Publicações e Dados
Científicos em Acesso Aberto - Oasisbr.ibict.br. Por meio da pesquisa
documental foram selecionados os normativos legais, que
determinam a inserção da ética no currículo das escolas públicas desde
1988.
301
Ética e A lteridade na Educação
A lição de Sócrates, “[...] nada receber de Outrem a não ser
o que está em mim, como se, desde toda a eternidade, eu já
possuísse o que vem de fora. Nada receber ou ser livre”, trazida por
Levinas (2000, p. 31), remete ao sentido egocêntrico do Eu como
centro, de maneira a identificar-se a negação do Outro. Isso foi
manifestado nos horrores dos campos de concentração nazistas, a
exemplo de Auschwitz, onde sofreram poloneses, soviéticos, ciganos
e judeus, contrariando o verdadeiro significado da alteridade, que
consiste em aceitar o Outro na sua maneira de ser, sem nenhum tipo
de exclusão.
Sem um conhecimento mais acurado poder-se-ia dizer que as
palavras moral e ética, aparentemente, têm o mesmo significado. No
entanto, há diferença entre as duas, a primeira incorpora regras e
princípios responsáveis pela orientação do comportamento humano
na sociedade, enquanto a segunda representa a reflexão crítica sobre
os valores do ser humano na sociedade da qual faz parte. As duas
trazem como referência os valores humanos conduzidos por um
conjunto de regras em uma convivência e interação entre os
indivíduos na sociedade. Nesse sentido identificam-se a igualdade, a
justiça, o não preconceito ligados aos preceitos éticos presentes no
preâmbulo da Constituição Federal de 1988, assim como a dignidade
da pessoa, previsto no Art. 1º, I nciso III e o princípio da
moralidade administrativa, caput do Art. 37 (Brasil, 1988).
Tanto a moral quanto a ética estão inseridas nos
documentos oficiais relacionados à educação. A Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDBEN) aborda a ética ao tratar do
Currículo Oficial para os alunos de Ensino Médio,
302
Art. 35 [...] etapa final da educação básica, com duração mínima
de três anos, terá como finalidade:
III - O aprimoramento da educação como pessoa humana,
indicando a formação ética e o desenvolvimento da autonomia
intelectual e do pensamento crítico (Brasil, 1996).
Os Parâmetros Curriculares Nacionais propõem a seleção de
conteúdos com questões que viabilizem a compreensão e a crítica da
realidade de maneira a que o aluno possa apropriar-se deles, servindo
esses de instrumentos para “[...] refletir e mudar sua própria vida”. O
documento faz menção à ética, à afetividade e à racionalidade como
legitimação dos valores e regras morais presentes nas interações
sociais, evidenciando a importância dessas no ambiente escolar e na
vida do aluno em uma convivência harmônica (Brasil, 1998, p. 23-
24).
As questões éticas, como o respeito mútuo, a justiça, o diálogo,
a solidariedade são apresentados e orientados pelos PCNs como
conteúdo para o 1º e 2º ciclos do Ensino Fundamental, destacando a
possibilidade de serem ministrados em todas as disciplinas. Isso
significa que a transmissão desse conhecimento aos discentes é de
responsabilidade da escola, da equipe gestora e do corpo docente.
As orientações sobre os princípios éticos constam também
no Plano Nacional de Educação 2014-2024, Lei n. 13.005, Art.
2º, Inciso V - formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase
nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade (Brasil,
2014).
Dentre as Competências Gerais da Base Nacional Comum
Curricular BNCC os princípios éticos são mencionados na
introdução do texto, na décima competência, com a seguinte
303
recomendação: “Agir pessoal e coletivamente com autonomia,
responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando
decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos,
sustentáveis e solidários” (Brasil, 2017; 2018, p. 10). Para melhor
compreensão apresenta-se como exemplificação a disciplina de
Ciências no Ensino Fundamental ano, Unidade TemáticaVida e
Evolução’, cujo objeto do conhecimento trata do ‘Respeito à
Diversidade’ com a aplicação da habilidade “Comparar características
físicas entre os colegas, reconhecendo a diversidade e a importância
da valorização, do acolhimento e do respeito às diferenças” (Brasil,
2017, p. 29). Nesta demonstração observa-se a inserção dos valores
morais e éticos, desde os primeiros anos escolares.
As competências relacionadas ao fazer docente estruturam-se
em etapas de ensino, competências de comunicação e outras
competências. Em documento elaborado pelo Instituto Ayrton
Senna, Classificação Brasileira de OcupaçõesCBO e Occupational
Information Network O*NET, a ética integra-se ao fazer docente
na Educaçao Básica (São Paulo, CIP, 2020, p. 24), conforme quadro
1.
Quadro 1 Competências relacionadas ao fazer docente descritas na CBO e
O*NET
Etapas de
Ensino
Outras competências
Educação
Infantil
Flexibilidade; empatia; percepção, consciência e compreensão
das reações dos outros e o que os motiva; criatividade; bom-
humor; dinamismo; disciplina; sensibilidade; competências
instrucionais; autocontrole; organização; tomada de decisão;
ética; paciência; saber lidar com diversidade cultural e
socioeconômica; entre outras.
304
Anos Iniciais
Ensino
Fundamental
Manter vínculo afetivo com os estudantes; criatividade;
trabalhar em equipe; ética e moral; competências
instrucionais, identificação e resolução de problemas;
autoridade criteriosa; atualização constante; entre outras.
Anos Finais
Ensino
Fundamental
Didática; trabalhar em equipe; agir eticamente; competências
instrucionais; construir relações de confiança com os
estudantes; liderança; colocar-se à disposição; respeitar os
limites e heterogeneidade dos estudantes; estimular troca de
conhecimentos; controle emocional; interesses
multidisciplinares; solidariedade; pontualidade e assiduidade;
entre outras.
Ensino Médio
Dominar conhecimentos específicos; refletir sobre a prática;
estimular a aprendizagem contínua; incentivar a capacidade
criadora dos estudantes; competências instrucionais; respeitar
as diferenças; estabelecer relações democráticas; estimular a
continuação da escolaridade; entre outras.
Elaborado pela autora. Fonte: Competências socioemocionais de educadores
Instituto Ayrton Senna.
No quadro 1 inserem-se a ética e os princípios da alteridade.
É importante destacar a necessidade de dar o verdadeiro sentido à
palavra ‘alteridade’, desde a concepção do seu significado e sua função
social no ambiente escolar a partir de: 1. acolhimento do Outro; 2.
oportunizar o ouvir e dialogar com o Outro para conhe-lo com sua
maneira de pensar e ser para que seja possível instalar relações
interpessoais que favoreçam uma convivência. Isso deve ser
naturalizado desde os primeiros anos escolares, preparando a
criança para conviver em sociedade e entender melhor o mundo, a
começar pela compreensão da diversidade movida pelos diferentes
grupos: gênero, raça, religião, nível socioeconômico, cultura, bem
como maneira de pensar e agir. Tudo isso faz parte da
305
responsabilidade da família e da escola, onde se deve ter presente uma
formação regida pelos valores éticos e sociais.
Neste sentido, foi proposta esta investigação para tal fim no
Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos em Acesso
Aberto - Oasisbr.ibict.br, mediante o acesso aos textos completos da
produção científica dos autores vinculados aos institutos e às
universidades. Os dados coletados e tabulados viabilizaram a
quantificação dos resultados indicados no presente estudo.
As buscas centralizaram-se em produções acadêmicas
relacionadas aos seguintes descritores: ética, moral, educação, escola.
Dentre as 1.181 produções acadêmicas publicadas foram
consultadas 586, no período de 2012 a 2021, das quais foram
selecionadas 76, esquematizadas em artigos acadêmicos, dissertações,
teses, trabalhos de conclusão de curso e especialização em consonância
com os quadros 2 a 11. Por tratar-se da mesma temática nas diversas
publicações optou-se por comentar apenas algumas delas.
Quadro 2 Publicações Acadêmicas em 2012
r
Educação moral: o aprender e o ensinar sobre justiça na escola.
Muller, Adriana; Alencar, Heloisa Moulin (2012).
Contribuições da racionalidade argumentativa para a
abordagem da ética na escola. Oliveira, Renato José de (2012).
Dissertações
Juízo moral e violência: a avaliação de situações de violência em
crianças e adolescentes do ensino fundamental. Campos,
Sabrina Sacoman (2012).
O ensino religioso e sua contribuição para o desenvolvimento
ético do aluno na perspectiva dos Parâmetros Curriculares
Nacionais. Vasconcelos, José Roberto de (2012).
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos
em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
306
Em conformidade com o quadro 2, na dissertação “O ensino
religioso e sua contribuição para o desenvolvimento ético do aluno
na perspectiva dos Parâmetros Curriculares Nacionais” o autor Jo
Roberto de Vasconcelos traz o componente curricular Ensino
Religioso nos Parâmetros Curriculares Nacionais para focalizar a
formação de valores que viabilizem a convivência humana “embasada
no respeito e na tolerância” (Vasconcelos, 2012, p. 10). De acordo
com o autor esse componente curricular contribui para a formação
ética do aluno e o espaço da sala de aula para análise e debate do
fenômeno religioso, servindo esse como ponte para a construção da
cidadania.
Quadro 3 Publicações Acadêmicas em 2013
Artigos
Ética, moral e civismo: difícil consenso. Amaral, Daniela Patti
do (2013).
Abordagem por princípios possibilita a restauração moral e
ética na educação. Alves, Monica Pinz (2013).
Educação escolar e a necessidade da formação da consciência
(bio) ética dos alunos do Ensino Médio, Paixão. Valdir
Gonzales Jr. (2013).
Tese
Territórios da personalidade ética: ações morais, valores e
virtudes na escola. Dias, Andreia Cristina Felix (2013).
Dissertações
A formação moral do pensamento pedagógico kantiano:
implicações, desafios e perspectivas à escola hoje. Casagrande,
Eucledes Fábio (2013).
O papel da escola na educação de valores. Virães, Maria Betânia
Amaral Rodrigues de Almeida (2013).
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados
Científicos em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
307
A dissertação “O papel da escola na educação de valores”, de
Maria Betânia Amaral Rodrigues de Almeida Virães (2013), quadro
3 apresenta pesquisa de campo, de natureza quanti-qualitativa, por
meio de entrevistas com professores e alunos de duas escolas estaduais
de Ensino Médio de Recife-PE. Após análise dos dados a autora
constatou que “[...] é possível construir valores humanos” tanto
para educandos quanto para educadores por meio da escola, “[...] sem
deixar de lado a importância da família neste cenário” (Virães, 2013,
p. 4).
Quadro 4 Publicações Acadêmicas em 2014
Artigo
Educação em valores morais: juízos de profissionais no contexto
escolar. Alencar, Heloisa Moulin de, et. al. (2014).
Tese
Formação moral e ética na sala de aula. Fernandes, Denise
Cortez (2014).
Dissertações
Um modo fraterno de habitar o mundo: a disciplina de
Educação Moral e Religiosa Católica na escola e a educação
para a fraternidade. Domingues, Ricardo Jorge (2014).
Avaliação de professores: dimensões afetivas e éticas. Cardoso,
Maria da Graça (2014).
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos
em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
A tese “Formação moral e ética na sala de aula”, defendida por
Denise Cortez Fernandes, apresentou uma análise sobre o papel do
professor no desenvolvimento moral no espaço escolar em
conformidade com a concepção docente. A isso se somou a
preocupação em procurar “[...] estabelecer um ambiente formativo
e colaborativo propício à reflexão entre professores [...], acerca da
prática pedagógica do professor nas situações de construção
da
moralidade no meio escolar [...]” (Fernandes, 2014, p. 8).
308
Quadro 5 Publicações Acadêmicas em 2015
Artigo
Conferência
Moral e ética no ambiente escolar: o que pensam os profissionais
da educação e estudantes de licenciatura. Pavaneli, Camila
Fernanda Dias, et. al. (2015).
Artigos
Questões sociocientíficas e o lugar da moral nas pesquisas em
ensino de ciências. Silva, Shirley Margareth Buffon da; Santos,
Wildson Luiz Pereira dos (2015).
Dissertações
Dimensões do comportamento sobre valores de adolescentes
estudantes de escolas de Recife. Almeida, Nemésio Dario Vieira
(2015).
Moralidade na adolescência em situação escolar: desenvolvimento
e julgamento. Macedo, Alex Araujo (2015).
O ensino religioso e a gestão escolar na formação ética do
educando. Santos, Claudia Maria da Silva (2015).
O papel da mediação do conto no desenvolvimento de princípios
éticos em idade pré-escolar. Rodrigues, Célia Cristina Cavaco da
Palma (2015).
O papel da literatura na formação integral do indivíduo a fada
Oriana e o raciocínio ético por Lopes. Maria Clara Mota (2015).
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos
em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
O artigo “Moral e ética no ambiente escolar: o que pensam os
profissionais da educação e estudantes de licenciatura” de Camila
Fernanda Dias Pavaneli, et. al. apresenta como objetivo “investigar as
concepções iniciais e finais sobre moral, ética e trabalho com regras
na escola, de participantes de um curso de extensão”. Uso de
questionários com perguntas aos profissionais da educação e alunos
de escolas públicas e particulares. Após análise dos dados, os
resultados evidenciaram mudanças na concepção dos entrevistados.
No início o conceito de moralidade foi baseado no senso comum,
309
mudando no final para “forma de compreender o desenvolvimento
moral” (Pavaneli et.al, 2015, p. 1).
Quadro 6 Publicações Acadêmicas em 2016
Artigos
Os conceitos de moral e ética e a importância dessa
compreensão no contexto educacional. Ferreira, Tássia
Fernandes; Andrade, Francisco Ari de (2016).
O ensino da ética como tema transversal na prática pedagógica
da Educação Física. Perini, Talita Adão; Lins, Maria Sucupira
da Costa (2016).
Teses
O papel do gestor na construção da moralidade na escola.
Senne, Marina Novaes de (2016).
Os vínculos entre educador e educando no ensino médio:
experiências de ética e reconhecimento em escolas públicas.
Meucci, Arthur (2016).
Os impactos do enriquecimento escolar e da estimulação da
memória operacional sobre o desenvolvimento cognitivo e
moral de alunos do ensino médio. Paim, Igor de Moraes
(2016).
Ética, justiça e democracia em sala de aula: o desenvolvimento
e a experiência de um novo método de discussão de dilemas
morais para a educação. Gualtieri-Kappann, Mayra Marques
da Silva (2016).
Fronteiras e atravessamentos éticos e morais da cultura
brasileira em ambientes escolares: estudo de caso do Ethos
nacional em uma região de fronteira amazônica. Camargo,
Leila Maria (2016).
Dissertações
Ética na formação do professor: aproximações e
distanciamentos éticos, legais e políticos. Paula, Mauro Sergio
de (2016).
Representações sociais da família sobre o desenvolvimento
moral de crianças e adolescentes
na perspectiva da educação. Oliveira, Vânia de (2016).
310
A partilha do pão: uma reflexão no âmbito da lecionação da
disciplina Educação Moral e
Religiosa Católica da unidade letiva 3, do 6º ano de
escolaridade do 2º ciclo do ensino básico. Rodrigues, Rosalina
Maria Felício Mendes (2016).
A intencionalidade na ação do professor de matemática:
discussões éticas da profissão
docente. Ferreira, Denise Cristina (2016).
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos
em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
O artigo “Os conceitos de moral e ética e a importância dessa
compreensão no contexto educacional” de Tássia Fernandes Ferreira
e Francisco Ari de Andrade, por meio da pesquisa bibliográfica,
centra-se na importância de apresentar um estudo sobre os termos
moral e ética no espaço escolar com o propósito de facilitar o trabalho
pedagógico do corpo docente, de maneira a possibilitar uma formação
adequada aos discentes. Segundo os autores “A escola pode e deve ser
local de formação moral e ética, mas para que isso seja possível é
necessário, no mínimo, a atenção docente ao significado dos termos
que circundam essa formação” (Ferreira; Andrade, 2016, p. 1)
Quadro 7 Publicações Acadêmicas em 2017
Artigos
A liderança dos Diretores no contexto educativo português: a
ética e a moral, quais as competências e tendências? Neves
Lurdes; Coimbra Joaquim Luís (2017).
Ética, política y religión en las conversaciones online sobre
laicidad y diversidad en demandas Morales por justicia.
Guimarães, Bruno Menezes Andrade; Marques, Angela
Cristina Salgueiro (2017).
Livros do PNPE para crianças: um olhar sobre a ética.
Moreschi, Michelle Thais; Nogueira, Eliete Jussara (2017)
311
Teses
Ética para aprender a ser: semiformação e experiência
formativa no currículo do Ensino Médio. Casado, Tiago
Souza Machado (2017).
Relações entre ambiente socio-moral, desempenho escolar e
perspectiva social em julgamento moral: análises em escolas
públicas. Silva, Claudiele Carla Marques da (2017).
Dissertações
Ética e etiqueta nas relações humanas: uma interação
sociocultural e comportamental entre os agentes da educação
(escola e trabalho). Silva, Raimundo da (2017).
A concepção da escola sobre o seu papel no
desenvolvimento moral das crianças na educação infantil.
Pereira, Elizângela de Moraes (2017).
A dimensão ético-moral no contexto da educação física no
ensino médio - diálogos com Kohlberg: o caso do Liceu do
Conjunto Ceará. Cunha, Halisson Mota (2017).
O lugar dos avós na família: uma reflexão a partir da unidade
letiva “a família, comunidade de amor” do 5º ano do ensino
básico do programa Educação Moral e Religiosa Católica.
Domingues, Manuel Eliseu Antão (2017).
Educar para os valores, educar para a paz: uma reflexão no
âmbito da educação Moral Religiosa Católica. Gomes, José
Jorge Morais (2017).
As práticas morais e a aprendizagem de valores e regras:
experiências com assembleias em uma escola pública de ensino
fundamental. Vanni, Verônica Nogueira (2017).
Educar para uma ecologia integral: reflexão ética, teológica
e didática a partir da unidade letiva “Ecologia e valores” do
8º ano do programa de Educação Moral e Religiosa Católica.
Bártolo, Francisco Carlos Reis de Azevedo (2017).
Valores morais em alunos do Ensino Fundamental II e Médio
do interior de São Paulo. Borges, Graziella Diniz (2017).
Novos panoramas para o ensino religioso: uma análise do
modelo das Ciências da religião para o Ensino religioso nas
escolas públicas, tendo em vista os aspectos da
312
transdisciplinaridade, transreligiosidade e pluralismo religioso.
Silva, Ronald Lima da (2017).
Uma proposta de ensino do tema diversidade sexual para o
ensino médio à luz da Síntese Evolutiva Estendida. Paranhos,
Kátia Santos de Abreu (2017).
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos
em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
Na pesquisa de Elizangela de Moraes Pereira sob o título “A
concepção da escola sobre o seu papel no desenvolvimento moral das
crianças na educação infantil” traz o seguinte questionamento: quais
as concepções dos professores e gestores acerca do papel da escola no
desenvolvimento moral das crianças na Educação Infantil? A autora
concluiu que “[...] a escola vê a família como a que deve ter
responsabilidade sobre a construção destes valores” (Pereira, 2017, p.
1).
Nos quadros 8, 9, 10 e 11 estão relacionadas publicações do
Repositório de universidades e revistas brasileiras, assim como do
Repositório Institucional da Universidade Católica Portuguesa,
Faculdade de Teologia, Coimbra, Portugal e da Universidade de
Lisboa.
Quadro 8 Publicações Acadêmicas em 2018
Artigo
Abordagem por princípios possibilita a restauração moral e
ética. Alves, Monica Pinz (2018).
Tese
Concepções de educação moral de professores de ensino
fundamental: análises a partir de uma atividade formativa
desenvolvida na escola. Silva, Izabella Alvarenga (2018).
Dissertações
Educação e a conduta moral do professor da educação infantil.
Stefanini, Carolina Martinez (2018).
313
A família e o cuidado dos avós: contributo para a unidade
letiva do ano: família,
comunidade de amor do programa de Educação Moral
Religiosa Católica. Campos, Ana Teresa Pais Mordomo (2018).
Mais vale educar que remediar: abordagem da proteção e
promoção dos direitos da criança no Ensino Religioso Escolar:
contributo da unidade letiva, A Pessoa Humana, do Programa
de Educação Moral e Religiosa. Arizmendes, Jose Miguel
Fernández (2018).
Pedir fome a quem tem pão: contributo para lecionação da
unidade letiva 3: “A Partilha do Pão”, 6º ano do 2º Ciclo do
Ensino Básico, do programa de Educação Moral e Religiosa
Católica. Azevedo, Rafael Maria de Lurdes (2018).
TCC Esp.
A importância de se trabalhar ética de virtudes na escola.
Nunes, Silvana Cristina Boreggio (2018).
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos
em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
No quadro 8 constam 4 pesquisas do repositório de
universidades e revistas brasileiras e 3 do Repositório Institucional da
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Teologia, Coimbra,
Portugal. Dentre as pesquisas realizadas por discentes destacam-se:
tese de Izabella Alvarenga Silva “Concepções de educação moral de
professores de ensino fundamental: análises a partir de uma atividade
formativa desenvolvida na escola” (2018), UNESP, Campus de
Marília/SP e o TCC (especialização) de Silvana Cristina Boreggio
Nunes “A importância de se trabalhar ética de virtudes na escola”,
Universidade Federal do Paraná. As abordagens de embas incidem
diretamente sobre a ética na escola. Na realidade, é de suma
importância o envolvimento de um maior número de pesquisadores
voltados para este tipo de pesquisa científica, com vistas à oferta de
314
um maior número de programas e projetos com foco nos valores
éticos nas escolas.
Quadro 9 Publicações Acadêmicas em 2019
Artigos
Liderança do educador e do empoderamento do educando
como instrumentalização no construto ético-moral-social sob
a ótica freiriana. Arruda, Eduado Martins de; Souto, Hugo
Medeiros; Aragão, Wilson Honorato (2019).
Disciplina e capacidade de convivência em sala de aula. Hees,
Luciane Weber Baia et. al. (2019).
Tese
Ética e educação física escolar: uma proposta de intervenção no
ensino fundamental. Leitão, Arnaldo Sifuentes Pinheiro
(2019).
Dissertações
Valores na contemporaneidade: a escola como valor. Conde,
Kelly Regina (2019).
As reflexões de Albert Camus como auxílio à discussão moral
em sala de aula. Pimenta, Alessandro Rodrigues (2019).
“Construir fraternidad” - um itinerário para ser feliz.
Contributo para a unidade letiva do 5º ano de escolaridade
do programa de Educação Moral Religiosa. Domingues, Jose
Antônio Lourenço (2019).
Educar para a responsabilidade social: desafios à educação
Moral e Religiosa Católica. Dias, Maria Francisca Soares
(2019).
Educar para a resiliência: contributos para a lecionação da
unidade letiva “A Dignidade da Vida humana”, do Programa de
Educação Moral e Religiosa Católica do 9º ano. Costa,
Orlando César Gomes da (2019).
Estudo e reflexão da Unidade Letiva Jesus, um Homem para
os outros”, do Programa de Educação Moral e Religiosa
Católica do 6º ano de escolaridade. Gomes, Ezequiel Nunes
Dias (2019).
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos
em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
315
No quadro 9 constam 5 pesquisas brasileiras assim
distribuídas: Kelly Regina Conde (UNESP, Câmpus de São José do
Rio Preto); Arnaldo Sifuentes Pinheiro Leitão (Universidade Estadual
de Campinas - UNICAMP); Alessandro Rodrigues Pimenta
(Universidade Federal de Tocantins), bem como a publicação de 2
artigos em revistas. As demais investigações (4) centraram-se no
Repositório da Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de
Teologia, Coimbra, Portugal.
Quadro 10 - Publicações Acadêmicas em 2020
Artigo
Comportamento ético nas organizações, a partir da percepção
de alunos de uma escola de negócios. Martins, Jonatas
Guilherme da Silva; Cabral, Patrícia Martins Fagundes; Freitas
Junior, José Carlos da Silva (2020)
Tese
A função social da escola: a implantação de um projeto
institucional para a convivência ética. Vivaldi, Flávia Maria de
Campos (2020).
Dissertações
O contributo da disciplina de Educação Moral e Religiosa
Católica para a vivência da paz numa perspectiva de escola
inclusiva. Garcia, Teresa de Jesus Bento da Silva (2020).
O ensino das duas teorias éticas do programa do 10º ano.
Serrão, Francisco Bernardo Veiga (2020).
Crescimento moral e religioso do adolescente: reflexão ético-
teológica da unidade Letiva 3: “””Riqueza e sentido dos Afetos”
do 7º ano. Garfejo, Ana Maria Teixeira (2020).
Ética e educação tecnológica: as práticas docentes de ética e
cidadania organizacional nas escolas técnicas estaduais de São
Paulo. Frias, Fernando Vinicius Gonçalves (2020).
Ensino de Ciências e desenvolvimento moral: uma proposta de
Ensino por Investigação para a promoção da autonomia.
Cunha, Samuel Loubach da (2020).
316
A verdade como valor primordial e o contributo da
Educação Moral e Religiosa Católica
para o seu aprofundamento: contributo para a primeira
Unidade Letiva do ano Ser Verdadeiro: do programa de
escolaridade da Educação Moral e Religiosa Católica. Alves,
Cristina Isabel Fonseca Nunes (2020).
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos
em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
No quadro 10 constam 8 publicações, uma tese no
Repositório da UNICAMP, de Flávia Maria de Campos Vivaldi, duas
dissertações, sendo uma no Repositório da Universidade Nove de
Julho, de Fernando Vinicius Gonçalves Frias, outra na Universidade
de Brasília, de Samuel Loubach da Cunha; um artigo na Revista
Valore, Volta Redonda 5 (edição especial) pp. 90-108, de Jonatas
Guilherme da Silva Martins; Patrícia Martins Fagundes Cabral; José
Carlos da Silva Freitas Junior. As outras 4 publicações foram
localizadas na seguinte ordem: três no Repositório Institucional da
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Teologia, Coimbra,
Portugal e uma na Universidade de Lisboa
Quadro 11 Publicações Acadêmicas em 2021
Tese
Adolescentes e interações on-line: uma proposta de
intervenção educativa visando a convivência ética virtual.
Bozza, Thais Cristina Leite (2021).
Dissertações
Práticas educativas lúdicas e reflexivas no desenvolvimento
ético-moral em contexto escolar. Sampaio, Cássia Fernanda
Segantini (2021).
A convivência como promotora da autonomia moral:
construção de instrumentos de avaliação em escolas de ensino
médio. Missori, Letícia Lovorini (2021).
317
A geração Z e a promoção da paz como objeto
pedagógico: contributo da disciplina de Educação Moral e
Religiosa Católica. Varela, Jaqueline Ivone Borges (2021).
Educação moral e resolução de problemas matemáticos no
primeiro ano do ensino fundamental. Cavalcante, Camila
Parpineli (2021).
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos
em Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br
Na distribuição das publicações constam duas publicações
encontradas no Repositório da Universidade Estadual de Campinas
UNICAMP, sendo uma dissertação, de Letícia Lovorini Missori e
uma tese, de Thais Cristina Leite Bozza, além de mais duas
dissertações no Repositório da UNESP, Campus de Bauru (Cássia
Fernanda Segantinin Sampaio, Camila Parpineli Cavalcante). No
Repositório Institucional da Universidade Católica Portuguesa,
Faculdade de Teologia, Coimbra foi encontrada apenas uma
dissertação (Jaqueline Borges Varela).
No Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos em
Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br foram considerados os seguintes
descritores: ética, moral, educação e escola para a elaboração desta
pesquisa. O critério para a efetivação da investigação foi coletar
aproximadamente 50% das 1.181 pesquisas acadêmicas, no período
de 2012 a 2021. De 586 publicações foram selecionados 76 trabalhos,
que fazem referência aos descritores, conforme tabela 1.
318
Tabela 1- Produções Acadêmicas com base nos descritores ética, moral, educação, escola
período de 2012-2021
Publicaç
ões
201
2
201
3
201
4
201
5
201
6
201
7
201
8
201
9
202
0
202
1
Tot
al
Artigos
02
03
01
03
02
03
01
02
01
00
18
Teses
00
01
01
00
05
02
01
01
01
01
13
Dissert
ões
02
02
02
04
04
10
04
06
06
04
44
TCC
Esp.
00
00
00
00
00
00
01
00
00
00
01
Elaborado pela autora. Fonte: Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos em
Acesso Aberto Oasisbr.ibict.br.
De acordo com a tabela 1, o menor número de pesquisas
científicas ocorreu em 2012 e 2014 com a publicação de 04 trabalhos
e a maior em 2017 com 15. As publicações estão distribuídas em: 18
artigos acadêmicos, 13 teses, 44 dissertações e 01 Trabalho s de
Conclusão de Curso e Especialização, totalizando 76 no decorrer do
período de 2012 a 2021.
No Oasisbr.ibict.br também foram localizadas publicações de
autores sobre ética com base nas concepções de Aristóteles,
Heidegger, Sócrates, Levinas, Kant publicadas em 2008, 2012, 2015,
2018.
De acordo com Lebrun (1987, p. 14) “A excelência ética -
(aretê) [...] só pode ser determinada pelo modo de reagir às paixões
e, mais precisamente, pelo modo como um homem pode temperá-
las”. Logo, o homem não deve se subjugar às paixões, mas sim
centrar-se na busca do aprimoramento da conduta ética, dos valores
e normas morais. Trata-se de aspectos a serem considerados como
princípios básicos no cenário do espaço educativo onde se efetiva a
convivência entre a comunidade escolar.
319
Conclusão
O tema “As relações movidas pela ética e alteridade na
educação, escola e formação do indivíduo”, proposto neste estudo,
engendra uma vasta discussão, pautando-se na moralidade e na ética.
Esses valores são propostas de estudos e análises desde a Antiguidade
por meio dos grandes pensadores que se concentravam na abordagem
do assunto, trazendo grande contribuição à humanidade (Ross,
1991). A ética está presente em todas as áreas humanas e científicas,
assegurada pelos ditames do Código de Ética, que normatiza a
conduta das pessoas. Aliás, uma pesquisa científica envolvendo
pessoas precisa passar pelo Código de Ética para assegurar a
confidencialidade e o anonimato dos participantes da investigação.
Neste estudo observou-se um número significativo de
trabalhos acadêmicos tratando sobre os valores morais e éticos sob
diferentes perspectivas, evidenciando a sua relevância na educação, de
modo a assegurar às pessoas a garantia de direitos, o respeito, a
aceitação da individualidade própria de todos e todas. Neste sentido,
as Políticas Públicas Educacionais e a legislação brasileira, por meio
de seus normativos legais, advindos do Ministério da Educação
(MEC), determinam a propositura dos valores éticos e morais no
Currículo Oficial, na gestão escolar, no fazer docente, no espaço
escolar, onde circulam pessoas de várias etnias, cada uma com a sua
própria personalidade. Além dos dispositivos legais elencados neste
estudo faz-se referêcia ao Programa Ensino Integral - PEI,
implementado no estado de São Paulo, em 2012, no qual consta a
educação interdimensional voltada aos valores, integrados pelos
aspectos ligados à sensibilidade, afetividade e sociabilidade (São
Paulo, 2012; 2014, p. 13).
320
Diante do exposto é de extrema relevância que esses marcos
legais efetivem-se nas escolas onde encontram-se pluralidades de
ideias. Para isso é necessário a conscientização da comunidade escolar
com vistas a que cada um tome para si a responsabilidade pela
construção de uma sociedade mais justa, embasada nos valores
morais, éticos e nos princípios da alteridade.
Referências
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Capítulo 15
A prática docente em Paulo Freire e as
implicações de uma postura afetiva no processo
educativo
Ricardo Francelino
67
Rafael Santos de Aquino
68
Introdução
O debate sobre a ação de sentimentos e emoções e suas
implicações para o processo educativo ocupou as preocupações de
inúmeros pensadores ao longo da história, já presentes nos escritos do
período clássico Greco-Romano. Segundo Reale (2002), nos escritos
do filósofo e poeta Homero, provável autor de Ilíada e a Odisséia, o
conceito de “coração” em grego descrito pelas palavras
kradie”,ker” e “etor”, já possuía em sua interpretação, tanto a
concepção do órgão físico, como de sentimentos e paixões. O termo
thymos também foi utilizado por Homero para se referir aos estados
de ânimo, das manifestações dos sentimentos e emoções, da ação.
67
Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista UNESP, Campus de Marília e
em Ciências da Educação e da Formação pela Université Lumière Lyon 2, França
ricardo.francelino@unesp.br
68
Instituto Federal do Sertão Pernambucano - rafael.aquino@ifsertaope.edu.br
328
(Snell, 2001). O filósofo chinês Lao-Tzu, considerado o fundador do
taoísmo, escreveu sobre essa temática por volta do século VI a.C. e já
contemplava em seus escritos o tema da afetividade. No período
histórico citado, as interpretações ligadas à afetividade reduziam-se às
suas manifestações emotivas relacionadas às expressões de ódio e amor
presentes nos conceitos de paixão desse período.
A Idade Média foi fortemente influenciada pela filosofia
greco-romana, mesmo que de modo não explícito. A teologia
Patrística com Santo Agostinho de Hipona e da teologia Escolástica
com Santo Tomás de Aquino, foram fortemente marcados pela ideia
de pecado do corpo e dos desejos humanos. As paixões nesse período
eram concebidas como as raízes de todos os males, fonte do irracional
e das concupiscências que assombravam a humanidade, portanto,
necessárias de serem combatidas a todo custo.
No renascimento, essa visão dicotômica e negativa sobre
emoções e sentimentos foi sistematizada e difundida por toda a
Europa encontrando ressonâncias nos escritos de Descartes, Hume e
Kant. Descartes (1596-1650), com seu “cogito ergo sum” (penso, logo
existo) foi um dos principais balizadores da construção moderna da
supremacia da razão, influenciando todo o continente europeu e uma
parte considerável do mundo. Nesse período, a construção do
pensamento positivo e a estruturação do dualismo cartesiano, da
separação entre corpo e alma, com a proposição de superioridade da
razão sobre emoção, marcaram os escritos filosóficos e científicos.
Na Idade Moderna, um dos primeiros pensadores a contestar
a concepção dualista de ser humano foi Baruch de Espinoza (1632-
1677). Segundo este pensador, a proposta de divisão cartesiana do
homem e eleição de uma instância superior que deveria controlar as
ações humanas, é insuficiente para explicar a complexidade psíquica
329
humana. Nas palavras de Leite (2018), Espinosa defendia que o corpo
e alma “são atributos de uma substância única, ou seja, seguem as
mesmas leis, rompendo-se a hierarquia que situava a alma como
instância de um plano superior ao do corpo.” (Leite, 2018, p. 18).
Espinosa inaugurou na modernidade uma proposta monista de
interpretação do homem, segundo a qual, razão e emoção são
indissociáveis. Influenciado por esse pensador, teóricos como
Vygotsky (2004), Wallon (1968) e Freire (1996) construíram suas
proposições sobre a importância da afetividade para o
desenvolvimento humano.
Na atualidade, inúmeras manifestações presentes na
sociedade, mas também no interior da escola têm marcado a crescente
importância do campo afetivo para as práticas pedagógicas e mediação
das aprendizagens, com vias a superação dos problemas presentes no
interior da escola. O baixo desempenho escolar, a evasão, a
indisciplina, a violência nas escolas, a desvalorização do professor e a
inocuidade dos governos em ações resolutivas, já foram evidenciados
por diversos pesquisadores do campo educacional. (Weiner, 1979,
1985; Debarbieux, 2001; Debarbieux, Braya, 2002; Charlot, 2002;
Abramovay, Rua, 2002; Abramovay, Calaf, 2010; Aquino, 1996; La
Taille, 1996, 2006, 2009; Patto, 1990; Weizs, 1999).
Segundo os indicadores do Programa para avaliação
internacional de estudantes da OCDE (Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico), conhecido como PISA,
nos anos de 2012, 2015 e 2018, o Brasil ocupou as últimas posições
de aprendizagem de língua materna e matemática dentre os países
avaliados. Desde o início da participação brasileira na realização do
teste em 2000, o cenário brasileiro não sofreu alterações relevantes no
quesito de melhoria do desempenho, quando comparado aos demais
330
países da OCDE. Mesmo com a universalização do acesso à educação
pública e gratuita, garantida com a aprovação da nova Constituição
de 1988, o quesito qualidade não acompanhou o mesmo movimento
de aumento dos índices de matrícula na educação.
No quesito relacional o Brasil está abaixo da média dos demais
países da OCDE no indicador “Clima Escolar” (School Climate), no
TALIS 2018, segundo dados do GPS Educacional, e também nos
dados sobre o Desempenho do Aluno (Pisa 2018), na aba tabela de
dados, no indicador “Clima Escolar”, em específico no item, Índice de
clima disciplinar nas aulas de linguagem e instrução, o Brasil ocupa a
penúltima posição do ranking, 75/76. O clima escolar constitui-se em
uma variável que incide sobre os processos relacionais no ambiente
escolar, marcadamente afetado pelos estados sentimentais e
emocionais dos educandos.
Percebemos também, nos dados obtidos por meio da Pesquisa
Internacional de Ensino e Aprendizagem (TALIS 2018), nos índices
que fazem menção ao bullying, no campo Professores e condições de
ensino, indicador Clima Escolar, item Diretores que relataram
intimidação ou bullying entre alunos ocorreram pelo menos uma vez por
semana em suas escolas (%), 28% dos diretores brasileiros relataram
atos de intimidação ou bullying em suas escolas, sendo a média dos
demais países da OCDE 14%.
A violência é outro fator preocupante, segundo o Sindicato
dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo
(APEOESP)
69
. Em pesquisa realizada em 167 cidades pelo instituto
Data Popular em 2013, no Estado de São Paulo, com mais de 1400
69
APEOESP. APEOESP apresenta dados de nova pesquisa sobre violência nas escolas.
Disponível em: http://www.apeoesp.org.br/publicacoes/observatorio-da-violencia/apeoesp-
apresenta-dados-de-nova-pesquisa-sobre-violencia-nas-escolas/. Acesso em dez. 2013.
331
docentes, cerca de 44% dos docentes contaram já terem sofrido algum
tipo de agressão na escola e 84% alegaram ter conhecimento de casos
de violência onde trabalham. Em 2019
70
, a APEOESP juntamente
com o Instituto Locomotiva, divulgou pesquisa atualizada em que tais
números aumentaram. Os dados demonstram que subiram de 84%,
em 2014, para 85% em 2017 e 90%, em 2019 os casos de violência
presentes nas escolas de conhecimento de professores e de 77% em
2014, para 80% em 2017 e 81% em 2019, os relatados por alunos.
Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF)
71
, metade dos adolescentes do mundo sofreram e/ou
sofrem violência na escola. Mais de 150 milhões de estudantes entre
13 e 15 anos de idade já foram vítimas de violência escolar, como
bullying, agressões verbais e, muitas vezes, físicas. Em pesquisa de
2013 da OCDE, o Brasil liderava o ranking mundial de violência
contra professor, pesquisa feita com mais de 100 mil professores em
34 países. Em 2021 a UNICEF divulgou pesquisa recente sobre dados
da evasão escolar no Brasil, que demonstraram que mais de 1 milhão
de crianças, adolescentes e jovens estão fora da escola.
Com o intuito de buscar alternativas para enfrentamento das
mazelas e problemas elencados, vislumbramos o campo afetivo como
um campo fecundo de possibilidades para nos auxiliar no movimento
de repensarmos a organização da escola, o currículo e como as práticas
70
APEOESP. AUMENTAM OS CASOS DE VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS PÚBLICAS
Disponível em: http://www.apeoesp.org.br/publicacoes/observatorio-da-
violencia/aumentam-os-casos-de-violencia-nas-escolas-publicas/. Acesso em dez. 2020.
71
UNICEF: (2018). Metade dos adolescentes no mundo são vítimas de violência na escola.
Disponível em: https://nacoesunidas.org/unicef-metade-dos-adolescentes-no-mundo-sao-
vitimas-de-violencia-na-escola. Acesso em dez/2020.
332
pedagógicas, alicerçadas em uma postura freiriana de ação, poderiam
maximizar a qualidade das relações em sala de aula.
As influências da afetividade para o sucesso escolar
Ao longo da estruturação dos sistemas atuais de ensino, o
sucesso escolar tornou-se objeto de inúmeras pesquisas sobre os
fatores que influenciam o sucesso dos alunos em processo de
formação. Isso foi possível em parte, pela implantação das avaliações
de larga escala nacionais e internacionais que objetivaram traçar um
diagnóstico dos sistemas de ensino, permitindo a comparação dos
índices de desempenho, bem como dos principais fatores que
influenciam decisivamente o desempenho dos alunos. O PISA
(Programa para Avaliação Internacional de Estudantes), TALIS,
(Pesquisa Internacional de Ensino e Aprendizagem), ganham a cada
dia mais importância para a orientação de políticas públicas em
educação nos países que compõem a OCDE e seus parceiros.
Pensando em avaliações de larga escala e o fator afetivo como
parâmetro de análise, gostaríamos de resgatar a pesquisa patrocinada
pela UNESCO sobre desempenho escolar. Segundo o relatório das
pesquisas realizada nos países da América Latina, coordenadas pelo
professor Juan Casassus (2007) para a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) entre os
anos 1995 e 2000, que visava investigar os fatores que influem sobre
o desempenho dos alunos, constatou que os fatores afetivos
emocionais não são apenas importantes para os fatores de
desempenho dos resultados dos alunos, mas sim, o fator mais
importante de todos os outros fatores investigados. A pesquisa
ocorreu em 14 países e demonstrou que os aspectos ligados a
333
estrutura, como prédios adequados, material didático de qualidade
para todos; aspectos sociais como participação da família no processo
e aspectos didáticos como formação docente e processo de avaliação
sistemática, são fundamentais para o bom desempenho dos alunos.
Segundo os dados apresentados quando a escola estrutura um
ambiente afetivo favorável ao convívio escolar, que favorecem uma
boa relação entre professores e alunos, os fatores de qualidade são
impactados diretamente.
Este aspecto (o ambiente emocional) é a descoberta mais
importante do Estudo e merece um comentário especial. Em
primeiro lugar é importante notar que o efeito desta variável, por
si só, ‘pesa’ mais nos resultados dos alunos do que todos os outros
fatores reunidos. Esta descoberta foi avalizada por outros estudos
posteriores, dos quais o mais significativo é o Pisa, da OCDE
(Casassus, 2007, 156-157).
Segundo Casassus (2007) o ambiente emocional não é apenas
importante, mas influi no resultado dos alunos com maior afetação
do que todos os outros fatores componentes do estudo reunidos. A
escrita do autor deixa transparecer certo espanto com esse indicativo,
mas Freire (1996) ao mencionar o ambiente acolhedor que a escola
deve construir para criar reais possibilidades de adaptação e
acolhimento das crianças afirmou que, “Como prática estritamente
humana jamais pude entender a educação como uma experiência fria,
sem alma, em que os sentimentos e emoções, os desejos, os sonhos,
devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura reacionista.
(Freire, 1996, p. 146).
Freire (1996) nos apresenta a educação como prática
humanizadora, como expressão de nossa humanidade e como tal, não
334
seria passível de ser tratada como um sujeito inanimado, sob as regras
apenas das leis matemáticas e físicas. Essa característica da essência
humana se materializa na relação com o outro, no diálogo e nas trocas
sociais que existem na sociedade mas também no interior da escola.
Para Freire (1987) o “[...], o amor é, também, diálogo” (p. 80). É um
meio pelo qual podemos estabelecer relações com o mundo e com as
pessoas que compartilham desse mesmo mundo em que vivemos.
Ao nos voltarmos para a realidade da escolar da atualidade, a
cada dia que se passou limitou-se o tempo dispensado ao diálogo, às
práticas pedagógicas que valorizassem trocas e vivências em conjunto,
fundamentais para a construção dos laços de sociabilidade e de
confiança que influenciam decisivamente a tomada de decisão, a
confiança no outro, a confiança no professor a criação dos laços de
pertencimento e de identidade. A psicologia freiriana é totalmente
oposta ao espírito individualista que privilegia a competitividade e o
individualismo como formas de organização social. O sucesso por esse
viés não deveria ser entendido como a conquista de um, mas sim, a
conquista de todos.
O diálogo é componente essencial na construção da relação
com o outro, sem o que qual, não existiria relação alguma. Relação
essa que se dá na elaboração dos laços de significados que
estabelecemos com a realidade social, em particular, com o ambiente
escolar. Tais significados construídos no interior da escola são
mediados por signos e símbolos que pertencem ao universo cotidiano
dos alunos, ressignificados a cada encontro no interior da escola, a
cada sorriso, cada entrave, cada disputa, em síntese, a cada vivência.
Talvez por coincidência Vygotsky tenha atribuído ao termo russo
perejivânie o conceito de vivências ou como encontramos em algumas
traduções, emoções, sendo utilizado para descrever sentimentos que se
335
manifestam de maneira acentuada, que lhes permite sentir e vivenciar
o momento. Nesse quesito, Camargo e Bulgarov (2016) , mesmo
afirmando certa falta de clareza na tradução do termo russo, a maior
parte das traduções deixam perceptível a indissociabilidade entre
emoções e atividade humana. Os processos de desenvolvimento são
intrinsecamente compostos pelo desenvolvimento completo da
pessoa, em seus aspectos, cognitivos, afetivos, culturais, o que reforça
as críticas tecidas por Spinoza, Wallon, Damásio e Vygotsky à
separação da psiquê humana, como postulado por Descartes.
Outro interlocutor de Freire que salientou a importância do
diálogo e de uma educação voltada para o desenvolvimento integral
do ser humano foi Gadotti (2005). Esse pensador ao realizar uma
análise histórica da educação no Brasil colonial, encontrou no ratio
estudiorum jesuíta um modelo educacional incompatível com a
essência humana, praticado em larga escala e que deixou resquícios de
seus reflexos até os dias atuais. O sistema jesuíta,
[...] de caráter verbalista, retórico, livresco, memorístico e
repetitivo, que estimulava a competição através de prêmios e
castigos. Discriminatórios e preconceituosos, os jesuítas
dedicaram-se à formação das elites coloniais e difundiram nas
classes populares a religião da subserviência, da dependência e do
paternalismo, características marcantes de nossa cultura ainda
hoje (Gadotti, 2005, p. 231).
A denúncia de Gadotti (2005) se dá em um momento
histórico em que a educação brasileira ainda encontra forte adesão a
essa maneira de compreender o processo educativo, maneira que não
leva em consideração as construções e pesquisas sobre
desenvolvimento humano e aprendizagem e ainda insistem no erro de
336
um processo de aprendizagem pautado no autoritarismo do professor,
na coerção, na memorização de conteúdos estanques, na repetição de
ditas verdades robotizadas, sem levar em consideração o caráter
dialético e dialógico da educação, na educação bancária denunciada
por Freire e outros pensadores do século passado. Freire (1987) em
seus estudos, apontou para o conhecimento como processo de
construção coletiva e que os sentimentos e emões são partes
constituintes que impulsionam os homens a um determinado estado
de ação, ou muitas vezes de não ação. Nesse dado processo de
implicações reciprocitivas, faz-se necessário rememorar a célebre frase
de Freire, segundo a qual,
já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se
educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão,
mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos
cognoscíveis que, na prática “bancária” são possuídos pelo
educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos.
(Freire, 1987, p.39).
O resultado do sucesso escolar está em Freire mais próximo
da concepção de mundo e de processo que os sujeitos sociais possuem
das reais implicações dos fatores afetivos sobre as formas e maneiras
com as quais aprendemos e ensinamos no ambiente escolar, de que
de fato, com as capacidades individuais de realização de tarefas
programadas e desconexas com a realidade.
Leite (2012), demonstra em suas pesquisas que as estratégias
assumidas pelo professor podem proporcionar diversos movimentos
de “aproximação/afastamento” afetivo entre os sujeitos do processo,
possibilitando a superação das desigualdades. Segundo Leite,
“Assume-se que a mediação pedagógica também é de natureza afetiva
337
e, dependendo da forma como é desenvolvida, produz impactos
afetivos, positivos ou negativos, na relação que se estabelece entre os
alunos e os diversos conteúdos escolares desenvolvidos.” (Leite, 2012,
p. 356).
Incentivar o debate de ideias e não de pessoas, fomentar a
discussão acalorada e apaixonada pelo objeto do saber e do querer
saber são fundamentais para Freire e insere o professor em uma
posição de grande responsabilidade por ser o mediador do processo.
Aprender a ler e escrever são tão importantes como aprender a ler o
mundo e a compreender a nuances que perpassam suas realidades
políticas, econômicas, sociais, éticas e estéticas. Ter sucesso e aprender
a se indignar com a miséria intelectual que afeta o outro e como,
humano que sou, não poderia estar apático a essa realidade que se me
apresenta. Por esse motivo Freire afirmou que a educação é um ato de
amor, de revolta e de indignação. Amor pela vontade de aprender,
revolta e indignação pela situação do outro que está junto a mim e
para a quem não posso simplesmente fechar meus olhos e fingir que
não existe. É verdadeiramente um processo de humanização, de
alteridade.
Nesse quesito, Andreola (2000) propõe que as bases nas quais
os postulados freireanos se sustentam seriam a radicalidade da não
aceitação da miséria do outro, em uma ressignificação da própria
existência ética. Não podemos nos esquecer que foi no campo da ética
que Aristóteles se ocupou de estudar as pulsões humanas, sentimentos
e paixões. Ele se estende às demais pulsões e afetos que nos atravessam
a cada dia, gerando sentimentos e emoções que nos afetam
significativamente, ao ponto de nos permitir relembrar nossa essência
humana. Esse comprometimento ético com a não aceitação da miséria
alheia torna-se um requisito de humanização indispensável para
338
Freire. A afetividade nesse contexto torna-se fundamental aos sujeitos
educativos por permitir um movimento de aproximação com o outro,
e a aceitação desse outro como parte integrante de minha função
existencial. Apenas escolas que priorizam essa postura nas relações
humanas seriam capazes de alcançar o sucesso escolar. Para Freire uma
“[...] escola progressista, democrática, alegre, capaz, repense toda essa
questão das relações entre corpo consciente e mundo.” (Freire, 2001,
p. 73). Freire denunciou já em seu tempo a ausência de diálogo entre
os atores escolares, e a sociedade, sendo visivelmente insuficientes as
formas dialógicas de experimentação da realidade objetiva. Essa falta
de diálogos, repercute na minimização das probabilidades de
desenvolvimento de signos e símbolos melhor elaborados para mediar
e significar as vivências cotidianas.
As características da afetividade e suas relações com o ato de
ensinar e construção da autonomia
Segundo Gadotti (1999) a afetividade é constituída por um
conjunto de fenômenos que agem sobre o ser humano durante sua
existência. “Fenômenos que se caracterizam pelos sentimentos,
emoções e paixões, acompanhados sempre de prazer ou desprazer
(Gadotti, 1999). Gadotti (1997) ressalta também em Lições de Freire
a forte relação que a cognição e a afetividade possuíam nos escritos
freireanos.
O pensamento de Freire propôs uma verdadeira revolução no
modo de pensar e de interpretar o mundo. Seu pensamento produziu
em seus leitores o fomento do sentido de existência, a capacidade de
se perceber e de se auto implicar em seu próprio processo de
emancipação intelectual, ética e moral. Gadotti (1997), amigo e um
339
de seus principais interlocutores, afirma que Freire buscava por meio
de suas práticas despertar em seus alunos a esperança e a autonomia.
A esperança de que era possível a transformação da realidade e a
conquista da igualdade social tão almejada e a autonomia de saber que
isso só seria possível por meio deles. Freire (1996) ao valorizar o
contexto sócio-histórico de cada comunidade periférica, esquecida e
a cultura presente nas vivências cotidianas, trouxe à tona as
implicações de uma postura afetiva no ato de ensinar.
Nessa vertente, Carvalho (2016) aponta que o processo de
ensino-aprendizagem precisa estar pautado em uma relação de
confiança e de comprometimento mútuo entre professor-aluno,
possível apenas quando uma verdadeira relação de amizade se
estabelece. Ao realizar suas pesquisas sobre a temática da amizade em
sala de aula, como viés possível de construção de vínculos de respeito,
autonomia e reciprocidade Carvalho afirmou que,
No que se refere aos professores, os alunos, na sua grande
maioria, consideram que é possível o estabelecimento de uma
relação de amizade com eles, visto que pode promover a boa
convivência na sala de aula, facilitando o ensino-aprendizagem,
o interesse nas aulas e a construção de um respeito mútuo.
(Carvalho, 2016, p. 150).
Conhecer a cultura ao qual se pretende desenvolver um
trabalho educativo consiste em conhecer a linguagem
representacional e simbólica que esse “outro” já possui e, a partir dessa
realidade já construída, buscar estabelecer os nexos semânticos e
afetivos com a realidade circundante, em um primeiro ato e, com a
cultura histórica-científica acumulada pela sociedade, em um
segundo momento.
340
Acioly-Régnier (2010), ao defender a importância e influência
dos aspectos culturais e afetivos para o desenvolvimento humano,
reforça a tese proposta por Freire (1996) do desenvolvimento
implicado em realidades sócio-históricas definidas. Reconhecer a voz
e o lugar das populações marginalizadas foi uma das lutas de Freire.
As implicações afetivas presentes nos escritos de Freire constituem a
essência daquilo que nos torna humanos, ou seja, é não se contentar
em estar bem, sabendo que o outro está mal. Freire nos conclama a
assumirmos nossa posição de agente “transformador, criador,
realizador de sonhos. Capaz de ter raiva por que é capaz de amar.”
(Freire, 1996, p.46).
Francelino (2022), ao realizar uma pesquisa de campo para
melhor compreender como as práticas pedagógicas são influenciadas
pela afetividade, chegou à conclusão de que os processos educativos
são atravessados pelos afetos e que em muitos momentos os docentes
não sabem como agir diante das mais variadas situações do cotidiano
escolar.
Assim, por meio da construção do espírito de pertencimento
e da criação de uma relação afetiva pautada na confiança, os alunos
seriam capazes de superar a autoimagem de incapacidade e de
limitações presentes no imaginário escolar. Essa melhora da
autoimagem constitui parte importantíssima do processo de
consciência de si e do outro e da imporncia desse outro na
constituição de nossa própria subjetividade.
Os escritos de Freire foram seminais no sentido de possibilitar
um olhar dialético e completo do processo de desenvolvimento, sendo
a escola um local de transformação social e de emancipação
intelectual, mas ao mesmo tempo, de emancipação política. A prática
do amor, visto por ele como um movimento de alteridade e de paixão
341
pelo ato de ensinar e aprender, a solidariedade e o respeito são
competências a serem construídas tanto no contexto escolar como
extra-escolar, daí a importância apontada por Freire da participação
ativa da família no processo educativo. É fundamental o cultivo do
amor e da solidariedade a cada dia, pois o processo de
autoaprendizagem das manifestações da própria vida afetiva,
possibilita a libertação do homem.
Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de
um lado, do exercício da criticidade que implica a promoção da
curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e de outro,
sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade,
da afetividade, da intuição ou adivinhação. (Freire,1996, p. 51).
Em Freire os conteúdos, mesmo sendo fundamentais, não são
os únicos fatores a serem considerados no processo educativo. Gestos,
falas, olhares, estão sempre carregados de significações inerentes aos
espaços de sociabilidade de que o sujeito pertence. São constitutivos
do sujeito psíquico e social e desempenham papel central na
construção do sujeito social emancipado e livre. Aprender a entender
e lidar com suas próprias emoções e sentimentos é tarefa urgente para
o bom desenvolvimento na visão freiriana.
Seguindo essa ideia de melhor conhecimento de nossas
próprias paixões, na quinta parte da Ética de Spinoza, em sua terceira
proposição, encontramos uma máxima interessante que buscaremos
melhor compreender. Nessa afirmação Spinoza propõe que “Um
afeto que é uma paixão deixa de ser uma paixão assim que formamos
dele uma ideia clara e distinta.” (Spinoza, 2009, p. 202). Nesse
excerto Spinoza nos apresenta um conceito de paixão que se aproxima
da visão platônica de força avassaladora que desvirtua o logos, a nossa
342
consciência racional, o que Aristóteles chamaria de distanciamento do
justo meio, da justa medida.
O conceito de auto descobrimento e de clareza proposta por
Spinoza foi amplamente explorado por inúmeras correntes de
pensadores com propostas de controle das emoções. Contudo,
alinhado a um viés de autoconhecimento e desenvolvimento pessoal,
Freire propõe que podemos nos educar e aprender a melhor
compreender nossos limites e possibilidades e quando alcançamos esse
estado de espírito, as paixões deixariam de ser percebidas como um
entrave ao nosso desenvolvimento. Quem não ama não teria
condições de compreender e respeitar o outro, fundamentos
indispensáveis para que possa ocorrer o processo educativo. Ele foi
opositor ferrenho da educação bancária que pressupunha o depósito
do conhecimento nos educandos. “Não é no silêncio que os homens
se fazem, mas na palavra, no trabalho e na ação-reflexão”. (Freire,
1987, p.44), na ação reflexiva nos momentos inesquecíveis de
aprendizagem com seus alunos.
Freire (1987) propôs que o ser humano deve ter a humildade
de aprender com os outros, de conviver com pessoas de diferentes
conhecimentos onde ninguém sabe mais ou é melhor que o outro, é
nas diferenças que aprendemos, aprender coisas novas, nos ambientes
novos e com orgulho do que faz, fazendo com perfeição, com alegria,
com entusiasmo, aprendendo a ser melhor hoje do que foi ontem,
numa perspectiva de ter um objetivo que é o aprendizado, a busca de
conhecimento dos alunos e, porque não, seu próprio conhecimento.
A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que
não têm humildade ou a perdem, não podem aproximar-se do
povo. Não podem ser seus companheiros de pronúncia do
mundo. Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem
343
quanto os outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar, para
chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro,
não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens
que, em comunhão, buscam saber mais.” (Freire, 1987, p.46).
Assim, entendemos que Paulo Reglus Neves Freire,
conhecido popularmente como Paulo Freire (1921-1997), pensador
e educador brasileiro dos mais notórios de todos os tempos, foi um
defensor do direito à educação e à emancipação do homem. Para o
pensador brasileiro as práticas educativas proporcionam a
“humanização de todos”. Essa humanização se dá em um “encontro
amoroso entre os homens”. Toda a sua obra é constantemente
atravessada por conceitos do campo afetivo, sendo fundamentais para
a compreensão da proposta freiriana de educação. O processo
educativo permite transformar e ser transformado pelo outro.
Conclusão
Diferentemente de um clima de competição difundido pela
lógica do capital pelo mundo, largamente denunciado por Freire
(1997), Saviani (1985), entre outros, a competição pura, favorece a
desconfiança, a retração o medo de errar, e em consequência o medo
de se expor e de ser julgado pelo grupo social. Esse medo inibe um
dos processos fundamentais do processo pedagógico que se
fundamenta no exercício de tentativa e erro. Ao contrário, um clima
emocional afetivo, acolhedor, amigo, que possibilite ao estudante
estabelecer laços de confiança com seus iguais, permite-lhe também,
se desinibir e se implicar com o próprio processo de experimentação
e de troca de experiências com o grupo e com os professores. Quando
uma aluna tem medo de ser julgada ou mesmo ridicularizada pela
344
turma, por suas opiniões ou pensamentos, ela aplica a ferramenta de
autopreservação, se calando, mesmo quando a dúvida persiste,
inibindo as possibilidades de troca, de construção do conhecimento
que pressupõe a troca, a ação individual do ser. Sem troca, sem
exposição, muitas vezes das limitações, das incoerências e dos erros de
interpretação que o educando possui, o processo de construção do
conhecimento perde seu poder de produzir movimento e reação dos
educadores, dificultando ou muitas vezes impedindo a construção do
conhecimento. O medo, receio, autojuízo, imposto ao estudante pelo
grupo social restringe suas potencialidades de aprendizagem e em
consequência, de desenvolvimento e de desempenho escolar. Por esta
razão, a construção de um ambiente amigável, acolhedor, e de respeito
das diversidades e opiniões, torna-se fundamental no processo de
elaboração de uma proposta educativa que contemple o ser humano
como um ser completo, complexo, nas palavras de Freire, como um
“sujeito humano.”
A proposta monista de entendimento do ser humano de
Spinoza (2009), integrativo das campos funcionais em Wallon
(1968), do fatores cognitivos, afetivos e sociais de Acioly-Régnier
(2010), da reciprocidade implicativa entre os processos psicológicos
básicos e superiores permeados pela cultura e afetividade de Vygotsky
(2004) e da postura amiga no processo de ensino-aprendizagem de
Carvalho (2016), convergem decisivamente para a contemplação que
Freire (1996) buscou nos deixar na formação humana, que está
sempre atravessada por sentimentos e emoções que nos impulsionam
a uma curiosidade inacabada pelo fato do conhecimento.
Assim, o professor precisa estar apto a novas mudanças que
podem ocorrer para melhorar seu papel no exercício da docência. Tais
mudanças muitas vezes acarretarão renúncia dos costumes arraigados
345
em suas práticas sociais criando a possibilidade de superação para os
novos desafios. Segundo Freire, “É a partir deste saber fundamental:
mudar é difícil, mas é possível (...)” (Freire, 1996, p.88), que
professores e alunos poderão evoluir dentro do processo de ensino e
aprendizagem para uma prática relacional implicativa do ponto de
vista da afetividade e da construção da autonomia dos sujeitos. Para
Freire (1987) a educação não se faz de professor para o aluno, mas
sim do professor com o aluno, configurando-se em uma troca de
experiências onde conhecimentos são somados, ideias compartilhadas
e novas aprendizagens são construídas.
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Capítulo 16
O caráter intercultural da educação:
fundamentos de uma filosofia inclusiva em tempo
de (des) colonização
Manuel João Mungulume
72
A educação não pode contentar-se em reunir as pessoas,
fazendo-as aderir a valores comuns forjados no passado. Deve,
também, responder à questão: viver juntos, com que
finalidades, para fazer o quê? e dar a cada um, ao longo de toda
a vida, a capacidade de participar, ativamente, num projeto de
sociedade. (Jacques Delors, 1998, p. 60).
Introdução
A importância da interculturalidade é indiscutível para o
desenvolvimento de relações interpessoais. A troca de experiências
culturais contribui para um bom desempenho de um professor e
amplia a visão e conexão na forma de lidar com o mundo, em especial
72
Graduado em Filosofia. Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação, da Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Campus de Marília -
manuel.mungulume@unesp.br
352
com a sala de aula. Ainda assim, o caráter intercultural na educação
tem enfrentando desafios e resistência para a sua consolidação como
categoria ou estratégia que une as epistemologias. No entanto, o
caráter intercultural na educação se configura como uma estratégia
eficaz no exercício da emancipação, e também na promoção da
solidariedade.
A educação intercultural não deve ser vista como simples lema
do nosso tempo, mais do que isso, deve ser uma categoria que
fundamenta os espaços educativos, permeando a formação humana
nas práticas pedagógicas, pois, vivemos numa época propícia para que
a educação intercultural possa perpassar em todos os espaços
educativos.
Assim, o diálogo intercultural é uma necessidade e desafio da
escola, da faculdade e da sociedade em geral. Necessitamos
urgentemente ultrapassar as filosofias dominantes e imperialistas, que
se colocam como superiores e protagonistas da ação civilizatória.
Precisamos adotar uma didática intercultural na nossa comunicação e
na nossa forma de fazer pesquisa.
A filosofia intercultural trata-se de um debate ético crucial,
pois constitui a base de uma sociedade democrática, solidária e justa.
Portanto, o domínio didático e pedagógico deve compreender o valor
da pluralidade, e ser capaz de adotar um enfoque intercultural como
metodologia para lidar com as distintas percepções da criação que as
sociedades construíram ao longo dos tempos.
A filosofia intercultural almeja alcançar os objetivos
fundamentais como: a construção da paz, da segurança e do
desenvolvimento sustentável entre povos ou culturas, uma vez que,
esse diálogo contribui de maneiras significativas no combate a
descriminação, exclusão e promove a cultura multi-pluralista e
353
democrático. Assim, esta contribuição tem como meta principal de
caracterizar a dimensão intercultural como categoria pedagógica que
deve assumir na sala de aula a construção de conhecimentos apoiados
em princípios de solidariedade, do respeito às diversidades, que estão
incorporados na complexidade da vida.
Vivemos um momento propício para instigar na educação
uma proposta pedagógica que objetive vencer barreiras de rotinas
tradicionais, cedendo uma nova perspectiva pedagógica que nos
incorpore e que implica na renovação efetiva de conhecimento que
caracteriza o respeito pela da diversidade e pela dignidade humana.
O debate intercultural é uma dimensão pedagógica que nos coloca
em constante reflexão sobre a prática de formação docente, e
sobretudo almeja oferecer um saber democrático, diversificado
adotando desta forma, uma formação integral e emancipatória das
virtudes humanas. Nesse sentido a proposta de uma filosofia de
educação intercultural se configura como uma categoria de amparo
de culturas conectando-as. Com este artigo, espera-se contribuir com
reflexões e questionamentos de uma educação que abre espaço para a
diversidade. Assim, a educação intercultural se torna como um
contributo fundamental para o desenvolvimento pessoal e social na
esfera acadêmica.
Fundamentos da educação intercultural:
por uma ética do diálogo entre - culturas
Um dos grandes fundamentos da filosofia intercultural é a
multiplicidade de significados que possui na busca pela confluência
entre os povos. Isto significa que a categoria intercultural é uma busca
por estratégias pedagógicas que pautam pela unidade, pluralidade e
354
multiplicidade. Desta feita a interculturalidade é um construto contra
todas as formas de fragmentação e propõe elementos englobantes.
Essa ideia é compartilhada por Vieira (2011), ao afirmar que,
a educação intercultural é uma maneira de encarar a educação
nos contextos multiculturais em que se tornam cada vez mais as
nossas escolas. Esta educação requer a reciprocidade e o diálogo
entre as culturas e, nas nossas escolas, deve-se entender que há
tantas culturas como alunos, isto é, a educação intercultural
dirige-se a todos os alunos, na medida em que é uma forma de
luta contra a exclusão escolar e, por conseguinte, social. A
educação intercultural visa uma convivência harmoniosa, justa e
solidária entre os cidadãos e como tal a Escola tem um papel
fundamental nesse desafio. Educar para a interculturalidade é
ensinar a viver juntos. (Vieira, 2011, p. 8).
A interculturalidade procura traçar uma linha coerente de
exaltação específica de cada cultura, isto é, cada cultura encontra
consigo mesma a sua identidade e significado de existência. As
práticas pedagógicas são uma das formas que conecta as culturas e a
produção acadêmica se configura como um contributo sólido e capaz
de estabelecer as ações afirmativas e seus efeitos; as políticas públicas
em torno de questões de unir as diversidades no cotidiano escolar e
acadêmico.
Portanto, na ótica da Vera Candau (2013), a Educação
Intercultural parte da afirmação da diferença como riqueza, uma vez
que promove processos sistemáticos de diálogo entre diversos sujeitos
individuais e coletivos, troca de saberes de diversas perspectivas da
afirmação da justiça social como uma construção de relações
igualitárias entre grupos socioculturais e da democratização de espaço
acadêmicos, tudo isso, através de políticas que articulam direitos da
355
igualdade e da diferença. Portanto, este tipo de educação é que torna
sujeito consciente do seu etnocentrismo para a abertura do diálogo
intercultural, tal abertura deve ser mediada dentro da(s) sua(s)
própria(s) cultura(s) e dentro da(s) cultura(s), isto é, do contexto
social do sujeito. Trata-se de uma prática pedagógica que objetiva
tornar os seus alunos cidadãos conscientes, responsáveis, livres de
preconceitos e estereótipos repleto na sociedade onde estamos
inseridos. Portanto, essa prática pedagógica, oferece a oportunidade
de fazer algumas experiências com o pouco conhecimento que temos
nessa área, contudo, constitui um grande desafio consolidar a
formação de docentes no âmbito da educação intercultural.
Segundo Vieira (2011), a educação deve estar aberta ao
mundo e às outras culturas. Nas suas palavras, o autor afirma que,
Se fosse fiel a estas finalidades, facilitaria a comunicação entre as
diferentes culturas. Mas, na prática, a educação é essencialmente
monocultural o que constitui uma contradição fundamental
entre o discurso sobre a educação e a prática desta. (Vieira, 2011,
p. 9).
Tal reflexão nos remete a questionar sobre questões essenciais
e atuais, da contribuição da educação como instrumento de
emancipação da cultura de paz e harmonia entre culturas e povos.
Assim, Candau (2011), nos mostra, porém, que embora os direitos
humanos tenham surgido como um marco da modernidade, hoje eles
precisam se adaptar a questões muito mais plurais, rompendo com a
ideia de igualdade como negação das diferenças.
Aqui entende-se de forma categórica de que a educação deve
ser um instrumento de enfrentamento da diversidade descritas como
o ideal na e para a articulação entre igualdade e diferença, por meio
356
de uma perspectiva intercultural. Segundo a educação deve se remeter
ao multiculturalismo crítico que enfatiza a construção de um projeto
comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente integradas, isto
significa que a educação deve ser estabelecida, consolidada e
favorecida com a dignidade humana. Nessa proposta ética e filosófica,
estamos entendo a interculturalidade como elemento de articulação e
aproximação da proposta de educação decolonial no sentido de
problematizar uma educação exclusivista e imperialista e sucumbe às
outras epistemologias tidas pelo ocidente como não legítimas. Os
pontos que convergem entre a educação intercultural e decolonial são
evidenciados como paralelo com as propostas da educação para os
direitos humanos. Tal educação joga esforço para a alteridade e o
empoderamento e valoriza a importância do diálogo.
Em conformidade com a ideia de Candau (2016), a
interculturalidade seria um meio de superar a modernidade inerente
à proposta dos direitos humanos, uma vez que a modernidade está
fortemente ligada ao colonialismo e à colonialidade. Portanto, essas
categorias imperialistas, seriam, sem dúvidas, o padrão de poder
resultante do colonialismo, que temos até hoje, permeando toda uma
forma de pensar e organizar o mundo e os projetos da dominação.
Para Candau, (2016, p. 190), fica evidente que é necessário
estabelecer novos padrões epistêmicos para ir além dos dualismos
modernos, que permitem apenas exclusão ou assimilação. Chega-se
assim a um acervo considerável de noções que guiarão novas formas
de convivência ética e social. Assim, a autora descreve:
a colonialidade é a outra cara da modernidade, duas faces da
mesma moeda afirmam os autores e autoras identificados como
do Grupo Colonialidade-Modernidade-Decolonialidade. Para
estes autores/as a modernidade não poderia existir sem a
357
colonialidade, sem a conquista da América, “da África ou da
nossa identidade”, o genocídio, o etnocídio, o extrativismo e a
exploração de suas riquezas. Sendo assim, a modernidade se
inicia com a América, dando lugar à configuração de um novo
padrão de poder global. (Candau, 2016, p. 190)
Enquanto que Walsh (2007), enquadra a interculturalidade
num contexto que nos configura como uma marca histórica que tenha
como o foco principal de uma educação descolonizadora e
intercultural é precisamente enfrentar, desconstruir e transformar esse
núcleo das relações coloniais. Tornando a interculturalidade como
uma categoria crítica. (Walsh, 2007, p. 8). Nesse sentido,
concordamos com Walsh, quando define o conceito de
interculturalidade como central à (re)construção de um pensamento
crítico. Nas palavras da autora:
um pensamento crítico de/a partir de outro modo ,
precisamente por três razões principais: primeiro porque está
vivido e pensado desde a experiência vivida da colonialidade [...];
segundo, porque reflete um pensamento não baseado nos legados
eurocêntricos ou da Modernidade e, em terceiro, porque tem sua
origem no sul, dando assim uma volta à geopolítica dominante
do conhecimento que tem tido seu centro no norte global.
(Walsh, 2007, p. 25).
A educação deve ser um constante instrumento que deva
permitir diálogos éticos, políticos e sociais, e assim, contribuir para o
progresso da sociedade em que se insere o elemento englobante entre
culturas ou povos. Isto significa que a educação deve também cultivar
o espírito amplo de diversidades.
358
Educação intercultural como Políticas de formação inclusiva
Definimos a educação intercultural como um compromisso
ético com o mundo e com o outro. Assim, compreender o mundo
implica implicitamente em compreender o outro. Vivemos numa
comunidade inter-relacional, por isso que estamos incumbidos de
desenvolver uma relação de solidariedade e de acolhimento. Essas
categorias devem ser adotadas na formação e na prática pedagógicas
como pressupostos essenciais de preparar sujeitos capazes de
conviverem juntos mesmo na diferença.
Uma educação que transforma, não só do ponto de vista
epistemológico, mas também na relação ética e moral entre sujeitos
de raça ou cultura diferente. A interdependência ou a interconexão
proposta nesse debate pressupõe um ato prático e real, o que
corresponde a uma das tarefas essenciais da educação inclusiva e
humanista. Por isso, mais do que nunca devemos preparar indivíduos
capazes de compreender a si mesmo e ao outro, através de uma melhor
cosmovisão do mundo.
Neste sentido, para Delors (1998), a educação deve, pois,
procurar tornar o indivíduo mais consciente de suas raízes, a fim de
dispor de referências que lhe permitam situar-se no mundo, e deve
ensinar-lhe o respeito pelas outras culturas. Ainda Delors enfatiza que
a educação deve levar aos sujeitos ao reconhecimento de que,
os grupos humanos, povos, nações, continentes, não são todos
iguais”, por isso mesmo, “obriga-nos a olhar para além da
experiência imediata, a aceitar e reconhecer a diferença, e a
descobrir que os outros povos têm uma história, também ela, rica
e instrutiva. O conhecimento das outras culturas torna-nos, pois,
conscientes da singularidade da nossa própria cultura, mas
359
também da existência de um patrimônio comum ao conjunto da
humanidade. (Delors, 1998, p. 48).
O diálogo intercultural tem um ponto determinante, que é de
construir convivência coletiva, pacífica e digna. Dada esse prisma de
interpretação, a interculturalidade na esfera educacional, cumpre a
sua tarefa de contrariar o discurso de superioridade entre pessoas,
raças, ou cultura, e toma o rumo de reconhecimento e de identidade
de todos os povos, independentemente da sua condição ou estrutura
social.
Portanto, o caráter da educação intercultural tem como um
dos seus objetivos principal de auto-identidade dos povos tidos como
periféricas, isto é, tal modelo educacional reveste de fundamentos
importantes de reconhecimentos e levar para a visibilidade da cultura
encobertas pela cultura eurocêntrica, o que Dussel denominou de
encobrimento do outro através de uma justificativa moderna
emancipadora e racional. Sendo assim, é de suma importância
destacar que na ótica de Dussel, se trata de um mito irracional para
justificar a violência, pois promove um discurso unilateral, parcial e
falsa, ele propõe que devemos superar e negar tal discurso. (Dussel,
1993).
Para Fanon (1995), o nacionalismo, se não é explicitado,
enriquecido e aprofundado, se não se transforma muito rapidamente
em consciência política e social, conduz a um impasse de
internacionalismo revolucionário. Na concepção de Fanon, para
gerar um espírito humanista devemos nos posicionar como uma
sociedade anti-imperialista, anticolonialista, antipatriarcal e anti-
supremacista. Só assim, pode gerar-se um novo humanismo que
valorize as necessidades psíquicas, sociais e políticas dos povos pobres
360
e trabalhadores uma solidariedade e universalidade a partir de
baixo. (Fanon, 2021, p. 360). Assim, a educação intercultural serve
como um instrumento para a exortação e exaltação do sentimento de
cooperação entre os povos. Trata-se de uma ética para o combate da
cultura de superioridade de povos específicos ou especiais ou ainda
exclusivistas.
Articulação entre a Educação intercultural e (de) colonial como
todo para uma formação humanista e emancipatória
A educação intercultural e decolonial são duas categorias que
buscam uma formação englobante e inclusiva. Assim, para Candau
(2011), um dos objetivos da educação popular ou decolonial é a busca
pela humanização, trazendo a possibilidade de ser um sujeito de
história, de cultura e neste contexto de direito. Portanto, a
educação intercultural promove o espírito de identidade e de
solidariedade ético e existencial. É importante justificar e enfatizar
que a interculturalidade não se trata de um processo ou projeto
étnico, mas sim como um projeto de existência.
73
Uma das grandes relevâncias da integração de uma educação
intercultural reside no fato deste modelo ser multicultural e se refere
a vários modelos educativos orientados para uma sociedade que se
caracteriza pela existência de vários grupos culturais. As abordagens
interculturais preconizam o respeito pela diferença e também contém
forte consenso internacional em torno da sua emergência e
73
Aqui, estamos entendo a Educação como um fator determinante na promoção da
cidadania e na criação de uma consciência social sobre o papel das mulheres no
desenvolvimento das sociedades, devendo potenciar a sua participação. É de igual forma
fundamental enquanto fator de sensibilização sobre a situação de violência contra as mulheres
nos mais diversos cenários, incluindo os de conflito e reconstrução. (Ipad, 2008, p. 6).
361
importância nas esferas acadêmicas e formativas. Dessa forma, a
educação intercultural é uma dimensão ética que promove a
estabilidade e a paz internacional no contexto da globalização
democrática.
Segundo Delors (2011), podermos compreender a crescente
complexidade dos fenômenos mundiais, e dominar o sentimento de
incerteza que suscita a crise do humanismo, e assim, a educação
intercultural pode desempenhar uma função relevante, no sentido de
equipar o sujeito com conjunto de conhecimento que potencializa o
sentido crítico perante o fluxo de informações. Assim,
A educação manifesta aqui, mais do que nunca, o seu caráter
insubstituível na formação da capacidade de julgar. Facilita uma
compreensão verdadeira dos acontecimentos, para lá da visão
simplificadora ou deformada transmitida, muitas vezes, pelos
meios de comunicação social, e o ideal seria que ajudasse cada
um a tornar-se cidadão deste mundo turbulento e em mudança,
que nasce cada dia perante nossos olhos. (Delors, 1998, p. 47).
Ainda para Delors (1998), essa compreensão passa,
evidentemente, pela compreensão das relações que ligam o ser
humano ao seu meio ambiente. Não se trata de acrescentar uma nova
disciplina a programas escolares já sobrecarregados, mas de
reorganizar os ensinamentos de acordo com uma visão de conjunto
dos laços que unem homens e mulheres ao meio ambiente, recorrendo
às ciências da natureza e às ciências sociais. Esta formação poderia,
igualmente, ser posta ao dispor de todos os cidadãos, na perspectiva
de uma educação que se estenda ao longo de toda a vida. (Delors,
1998, p. 47-48).
362
Neste sentido, a educação intercultural pode ser uma
exigência de uma solidariedade entre cultura ou povos. Trata-se de
uma compreensão dos outros e para os outros, baseada no respeito
pela diversidade.
A educação intercultural é uma dimensão ética que afirma e
reafirma a não diferença entre alunos, descobrir os fundamentos da
sua cultura, reforçar a solidariedade do grupo, podem constituir para
qualquer pessoa, passos positivos e libertadores; mas, quando mal
compreendido, este tipo de reivindicação contribui, igualmente, para
tornar difíceis e até mesmo impossíveis, o encontro e o diálogo com
o outro. Neste sentido, a educação é um elo que promove e
proporciona o desenvolvimento do espírito democrático e pluralista,
respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao diálogo crítico, livre
e humanista no sentido de troca de opiniões, formando cidadãos
capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em
que se integram e de se empenharem na sua transformação
progressiva. Portanto, a educação intercultural nas práticas
pedagógicas, nada mais do que uma aquisição de valores e atitudes
autônomas, visando a formação de cidadãos civicamente empáticos,
solidários e democraticamente intervenientes na vida comunitária e
social.
74
74
O caráter intercultural da educação, trata-se de uma proposta importante para a construção
das democracias nas sociedades multiculturais, uma vez que, evidencia as propostas de uma
educação centrada na diferença e na pluralidade cultural e não para os que são culturalmente
diferentes. As abordagens interculturais contemplam os jovens, idosos, imigrantes de várias
origens e culturas, etc. são seres humanos, pessoas com as quais se constroem as sociedades.
Evidencia-se, também, a ideia de que se opõe a integração entendida como assimilação, à
educação de compensação. (Vieira, 2011, p. 10).
363
Desafios de uma educação intercultural: diálogos
entre a teoria e ptica
A escola é por natureza um espaço de relações interpessoais e
de convivências mútua entre diferentes sujeitos de diversos contextos
históricos e culturais. Assim, a escola é um espaço onde melhor uma
sociedade pode intervir de forma reflexiva em busca de princípios de
justiça e harmonia social. A prática da pedagogia intercultural nas
escolas, trata-se de uma categoria que estimula e assegura o direito à
diferença, mercê do respeito pelas personalidades e promove uma
interação pacífica e harmônica entre indivíduos, promovendo e
emancipando a valorização dos diferentes saberes e culturas.
O grande desafio da educação intercultural é fomentar a
consciência ética e aberta à realidade concreta do outro, numa
perspectiva de humanismo universalista, de solidariedade e de
cooperação. Em segundo lugar, a educação intercultural deve também
proporcionar aos alunos uma experiência que favoreça uma
convivência mútua e afetiva no sentido de que o outro é parte e
complemento do meu desenvolvimento. Portanto, através de uma
pedagogia intercultural, a escola se torna em uma instância de
inclusão. Como afirma Delors, a escola pode e deve ser criadora de,
condições para a prática quotidiana da tolerância, ajudando os
alunos a levar em consideração os pontos de vista dos outros e
estimulando, por exemplo, a discussão de dilemas morais ou de
casos que impliquem opções éticas. (Delors, 1998, p. 58).
Assim, a pedagogia intercultural se torna sinônima de uma
educação para a tolerância e para o respeito do outro, que são
pressupostos e condição sine qua non para o estabelecimento de uma
364
democracia sólida e efetiva. Portanto, a ética intercultural é formadora
de atitudes e hábitos positivos de relação e cooperação, quer no plano
de convivência, de reconhecimento ou de aceitação entre sujeitos.
Assim, a tarefa permanente da educação intercultural é de instigar
valores de tolerância e de humanismo na esfera social, cultural e
política. É importante enfatizar que a pedagogia intercultural se situa
na perspectiva de uma transformação estrutural, sócio histórica e
política, pois o caráter da educação não deve se limitar ao simples
debate de transmitir um mero conhecimento. Como afirma Delors,
A educação não pode contentar-se em reunir as pessoas, fazendo-
as aderir a valores comuns forjados no passado. Deve, também,
responder à questão: viver juntos, com que finalidades, para fazer
o quê? e dar a cada um, ao longo de toda a vida, a capacidade de
participar, ativamente, num projeto de sociedade. (Delors, 1998,
p. 60).
Neste sentido, é importante que a nossa prática de formação
tenha a consciência mediadora, no sentido de tornar a prática
formativa para além da didática. Isso significa que todo o processo de
ensino e aprendizagem, para ser adequadamente compreendido,
precisa ser analisada de tal modo que articule consistentemente as
dimensões humana, técnica e político-social. (Candau, 2012, p. 14).
Portanto, outra categoria que dialoga com a pedagogia intercultural é
a formação para a cidadania, que consiste na preparação para uma
participação ativa da vida do cidadão tornou-se para a educação uma
missão de caráter geral, uma vez que os princípios democráticos se
expandiram pelo mundo. Podemos distinguir, a este propósito, vários
365
níveis de intervenção que, numa democracia moderna, se deveriam
completar mutuamente.
75
A pedagogia intercultural ou a ética intercultural pode ser
concebida como um conjunto de práticas pedagógicas já
experimentadas que pode reforçar as aprendizagens do saber ético e
democrático na cultura escolar. Neste sentido, para Delors (1998), a
escola é um espaço de,
elaboração de regulamentos da comunidade escolar, criação de
parlamentos de alunos, jogos de simulação do funcionamento de
instituições democráticas, jornais de escola, exercícios de
resolução não-violenta de conflitos. Por outro lado, sendo a
educação para a cidadania e democracia, por excelência, uma
educação que não se limita ao espaço e tempo da educação
formal, é preciso implicar diretamente nela as famílias e os outros
membros da comunidade. (Delors, 1998, p. 60-61).
Desta forma, a ética intercultural é um vetor de intervenção
consciente e responsável na realidade circundante na medida que
permeia toda a ação escolar, cívica e na promoção da cidadania.
Portanto, a educação não pode contentar-se em reunir as pessoas,
fazendo-as aderir a valores comuns forjados na indiferença, muito
pelo contrário, a educação deve combater todas as formas de exclusão,
75
Segundo, Delors (1998), o papel social da escola é de assumir a responsabilidade da
aprendizagem e da instrução cívica concebida como uma “alfabetização política” elementar.
Mas, mais ainda do que no caso da tolerância, esta instrução não poderá ser, apenas, uma
simples matéria de ensino entre outras. Não se trata, com efeito, de ensinar preceitos ou
códigos rígidos, acabando por cair na doutrinação, mas sim, trata-se, de fazer da escola um
modelo de prática democrática que leve as crianças a compreender, a partir de problemas
concretos, quais são os seus direitos e deveres, e como o exercício da sua liberdade é limitado
pelo exercício dos direitos e da liberdade dos outros. (Delors, 1998, p. 60).
366
de isolamento e de indiferença, e aderindo desta forma valores de
autenticidade de justiça social. Desse modo, para Candau (2010),
a interculturalidade como um projeto epistêmico e político. A
interculturalidade tem um significado intimamente ligado com
a construção social, cultural, educativo, político, ético e
epistemológico para a de - colonialidade e a transformação. É um
enfoque prática importante para a conivência coletiva,
especialmente para os indígenas e afrodescendentes, que a
colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza permeia a
maneira de existência e da convivência social e coletiva. (Candau,
2010, p. 11)
Ainda para Candau (2010, p. 12), a interculturalidade não só
é compreendida como um conceito ou um termo novo para se referir
ao contato entre outras civilizações, mas como uma configuração que
propõe um giro epistêmico capaz de produzir novas compreensões
simbólicas do mundo. A interculturalidade deve ser entendida na
perspectiva que representa um novo espaço epistemológico que inclui
os conhecimentos subalternizados e os ocidentais, em uma relação
tensa, e mais igualitária. A pedagogia intercultural deve ser uma
metodologia que cultiva uma cultura de sensibilidade nas escolas, com
foco na valorização do ser humano, independentemente do seu credo,
tribo ou religião. A interculturalidade deve enfatizar a lógica de uma
boa convivência, transmitindo a ideia de emancipação,
reconhecimento, humanismo e a dignidade humana, ou seja, as
diferenças não podem nos levar à hostilidade. Portanto, a
interculturalidade deve estar ligada com a construção de um projeto
social, cultural, educativo, político, ético e epistemológico voltado
367
para a transformação das relações interpessoais baseadas nos
princípios de respeito mútuo e pela dignidade humana.
Considerações finais
A pedagogia intercultural transmite a ideia de viver juntos,
com a finalidade de promover harmonia, justiça social entre sujeitos.
O caráter intercultural nas escolas pode ser uma estratégia pedagógica
que possibilita desenvolver a capacidade de empatia e estabelecer
relações de uma boa convivência. A pedagogia intercultural é um
projeto de sociedade sustentável e tolerante. Vivemos numa era
propícia em que o sistema educativo tem de assumir e articular as
políticas de uma educação intercultural e inclusiva como
metodologias que visam promover o espírito de formação ampla e
diversificada. Nesse sentido a pedagogia intercultural se destaca com
o seu discurso amplo, democrático, e que exige firmeza de caráter,
vontade de aprender e ação reflexiva para reconhecer “lições diárias
de outros povos ou culturas” que se somam no decorrer de uma
formação ética e humanista.
A cultura da escola deve por sua natureza ou pela sua função
social, visualizar os processos educativos ou formativos como
construção de conhecimentos que contemple os valores e Inter-
culturais destacando dessa forma, a ampliação dos projetos
comunitários como parte integrante de formação de sujeitos éticos e
ativos nas esferas sociais. A missão educativa explícita ou implícita é
formar para uma convivência mútua, e a escola é um espaço adequado
e propício para preparar ou formar cada sujeito para exercer essa
função social de cooperação e assumir as suas responsabilidades em
relação aos outros.
368
Os fundamentos da educação intercultural devem ir além de
um mero conteúdo integrados, devem contribuir com a consolidação
e o fortalecimento da identidade cultural na formação de indivíduos,
pois a sua integração deve alcançar o ser identitário das nações, povos,
cultura e tribos. Desse modo, a pedagogia intercultural se configura
como uma prática crítica e descolonizadora dos projetos imperialistas
e exclusivistas.
A interculturalidade como estratégia pedagógica, potencializa
a interação entre subjetividades, e enaltece o espírito humanista. Por
fim, estamos entendo o cater intercultural nas práticas pedagógicas
como ações políticas de uma educação plural, democrática e
emancipatória, pois trata-se de uma prática que inclui o espaço da sala
de aula o uso de memórias cotidianas favorece a preservação das
identidades que se formam no convívio, nos diferentes grupos sociais.
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DUSSEL, Enrique. O encobrimento do outro: a origem do mito da
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FANON, Frantz. Os condenados da terra. Editora Zahar, Rio de
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Acesso em: 23 ago. de 2023.
WALSH, Catherine. Interculturalidade crítica e educação
intercultural. 2007.
370
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro BuenoCRB 8/8211
Normalização
Kamilla Gonçalves
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Os textos aqui compartilhados querem se unir às lutas, às ações e às reexões
dos professores que, diuturnamente, têm se dedicado ao processo de formação
de crianças, jovens e adultos, mas que nem sempre encontram guarida e apoio
teóricos e práticos à labuta cotidiana. Esperamos que ao lerem todos ou alguns
dos capítulos desta coletânea, fortaleçamos o diálogo entre a pesquisa e o ensino,
entre a Universidade e a escola para o nosso bem estar mental, físico, intelectual
e moral bem como nos reanimem e nos dê o suporte necessário para novas des-
cobertas, encontros, construções e desconstruções em nossos modos de ser, de
estar, de agir, de pensar, enm, de viver a educação.
O tema da ética é sempre atual
e tem proporcionado bons debates no
campo da educação, sobretudo pelas
situações vivenciadas por professores e
professoras na sala de aula. Os desaos
que emergem daí estão longe de serem
resolvidos apenas com os instrumentos
conceituais e práticos que têm circula-
do e sido trabalhados desde a formação
nos cursos de licenciatura. A perspecti-
va epistemológica é insuciente em dar
respostas aos problemas e às necessida-
des que a prática docente tem enfrenta-
do no ambiente escolar. A mera trans-
missão de conhecimentos e o privilégio
dado à dimensão cognitiva atende até
certo ponto as expectativas e as nali-
dades que os projetos educacionais, os
planos de ensino e de aula têm se pro-
posto realizar.
Em meio a todas às demandas,
gritos de socorro e lamentações por
parte dos/das docentes na sala de aula,
o conjunto de textos aqui publicado vi-
sam, cada um a seu modo, lançar luz
e colaborar nas reexões e atitudes que
são experienciadas especialmente em
um momento bastante singular que é
a aula. Sugiro a cada leitor e leitora que
procure estabelecer um diálogo profí-
cuo e profundo com a sua própria vida
e prática formativa, tendo em vista que
cada um e cada uma nós tivemos ou
temos, de alguma maneira, vivências e
convivências desaadoras, problemá-
ticas, imprevistas e surpreendentes no
interior ou partir da escola.
Esta coletânea de textos, oriun-
dos da disciplina Ética e Educação,
oferecida junto ao Programa de Pós-
-graduação em Educação, da Unesp/
Marília, completada por contribuições
de colegas convidados e convidadas, se
funda na hipótese de que a natureza da
formação ética é diferente da natureza
da formação cognitiva, como também
da formação afetiva e que é necessário
ampliar e expandir a nossa compreen-
são acerca do que seja o ato educativo.
Essa expansão quer ser pensada a partir
de um outro olhar sobre nossa formação
histórico-cultural, marcadamente colo-
nial, o que exige de cada um nós, novos
e atuais professores e professoras, uma
postura e um compromisso decolonial,
de modo a tornar-se transformadora a
educação que praticamos em nossas es-
colas e em nossas universidades, como
já propunha Paulo Freire.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0039/2022
Processo Nº 23038.001838/2022-11
Educação, Ética e Decolonialidade
Educação, Ética
e Decolonialidade
Alonso Bezerra de Carvalho
(organizador)
contribuições para a formação
de professores e a prática docente
Alonso B. Carvalho (org.)
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