É Professor Livre Docente da UNESP – Campus
de Marília, líder do grupo de pesquisa IGEPRI –
Instituto de Gestão Pública e Relões
Internacionais – certicado no CNPQ e
pesquisador do IPPMar – Instituto de Políticas
Públicas de Marília. É editor-chefe do perdico
cientíco Brazilian Journal of International
Relations. É assessor e consultor de agências de
fomento à ciência, entre elas FAPESP, FINEP,
PROEC, CNPQ e CAPES.
Política Externa
Brasileira e
Combate à Fome
Lições do passado,
perspectivas para o futuro
MARCELO FERNANDES DE OLIVEIRA
THIAGO LIMA
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
Lições do passado, perspectivas para o futuro
Este texto é um ensaio científico sobre a temática da política externa
brasileira e o combate à fome. Científico porque nossa reflexão está
assentada na leitura de estudos acadêmicos sobre a questão. Mas,
propositadamente ensaístico porque é uma tese pessoal, com exercício
amplo da nossa liberdade intelectual, sem a preocupação de comprova-
ção última própria dos trabalhos acadêmicos.
Óbvio que temos a preocupação de sermos objetivos, lógicos, sistemá-
ticos, compreensivos, críticos e originais. Tudo aquilo que se espera de
quem “mata a sua fome” vivendo da produção de conhecimento acadê-
mico e científico.
Entretanto, aqui, nossa preocupação é com a condição humana. Nosso
olhar será guiado pelo inconformismo de vivermos em um país de
dimensões continentais, com clima favorável, água abundante, terra de
qualidade, mão-de-obra especializada, tecnologia agrícola avançada, e,
mesmo assim, no momento em que escrevemos, mais de 33 milhões de
brasileiros estão passando fome.
Em 2022, conforme o Segundo
Inquérito Nacional sobre Insegurança
Alimentar no Contexto da Pandemia de
Covid-19 no Brasil (Rede PENSSAN,
2022), 33,1 milhões de brasileiros não
têm comida suficiente disponível. Ainda
segundo o estudo, 58,7% da população
brasileira convive com a insegurança
alimentar em algum grau: leve,
moderado ou grave. Isso significa que são
125,2 milhões de brasileiros sofrendo de
algum grau de insegurança alimentar.
Naquele momento da pesquisa, somente
4 em cada 10 domicílios no país tinham
acesso pleno à alimentação.
Os dados foram coletados entre
novembro de 2021 e abril de 2022, por
meio de entrevistas em 12.745
domicílios em áreas urbanas e rurais de
577 municípios distribuídos nos 26
estados e no Distrito Federal. Eles
indicam que o país regrediu a patamares
dos anos 1990 na tarefa do combate à
fome (Rede PENSSAN, 2022: 15).
As regiões Norte e Nordeste sofrem mais:
71,6% e 68% da população,
respectivamente, estão em insegurança
alimentar; 25,7% das famílias
nordestinas convivem com a fome. A
média nacional é aproximadamente
15%, e, do Sul, de 10%.
Ironicamente, no campo passa-se mais
fome do que em áreas urbanas. A
insegurança alimentar alcança 60% dos
domicílios rurais, sendo que 18,6% das
famílias passam fome. Pior: a fome
alcançou 21,8% dos lares de agricultores
familiares e pequenos produtores.
Professor do Departamento de Relações
Internacionais e Coordenador do Grupo de
Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais
(FomeRI) da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Pesquisador do Instituto Nacional de
Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os
Estados Unidos (INCT-INEU). Membro
Associado do Instituto Fome Zero. Doutor em
Ciência Política pela Unicamp. Recebeu Menção
Honrosa no Prêmio Lia Zanotta Machado em
Direitos Humanos da ANPOCS para o artigo
e concentration camps for famine victims in
Brazil and the struggle for their public
memorialisation (ird World Quarterly, 2023).
MARCELO FERNANDES DE OLIVEIRA
THIAGO LIMA
Organizadores
Política Externa
Brasileira e
Combate à Fome:
Lições do passado, perspectivas
para o futuro
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2023
Marcelo Fernandes de Oliveira
iago Lima
(Organizadores)
Política Externa
Brasileira e
Combate à Fome:
Lições do passado, perspectivas
para o futuro
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2023, Faculdade de Filosofia e Ciências
Ficha catalográfica
P769 Política externa brasileira e combate à fome : lições do passado, perspectivas para o futuro / Marcelo
Fernandes de Oliveira, iago Lima, organizadores. – Marília : Oficina Universitária ; São Paulo :
Cultura Acadêmica, 2023.
256 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN (Impresso)
ISBN (Digital)
DOI
1. Brasil – Relações exteriores. 2. Segurança alimentar. 3. Programa fome zero. 4. Agricultura familiar. 5.
Assistência humanitária. I. Oliveira, Marcelo Fernandes de. II. Lima, iago.
CDD 327.81
Telma Jaqueline Dias Silveira –Bibliotecária – CRB 8/7867
Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-
NoDerivatives 4.0 International License.
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Edvaldo Soares
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Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
DeDicatória
Às Carolinas de Jesus, Elzas Soares e tantas outras
mulheres negras que, há séculos, vêm corajosamente
denunciando em detalhes líricos a inaceitável vida no
Planeta Fome.
S
Prefácio e aPresentação ----------------------------------------------- 8
O Combate à fome na política externa dos Governos Lula
José Graziano da Silva (Diretor do Instituto Fome Zero)
caPítulo 1 ---------------------------------------------------------------- 21
Política Externa Brasileira
Marcelo Fernandes de Oliveira (Unesp)
caPítulo 2 ---------------------------------------------------------------- 47
A cooperação humanitária alimentar do Brasil (2003-2016):
de uma experiência inovadora à tradicional política da ajuda
alimentar
iago Lima (UFPB)
caPítulo 3 ---------------------------------------------------------------- 83
Cooptação ou Cooperação? A aproximação entre Brasil e o
Programa Mundial de Alimentos na área da ajuda alimentar
Jenifer Santana (UEPB) e iago Lima (UFPB)
caPítulo 4 -------------------------------------------------------- 117
Política externa brasileira para o Sul Global: a criação do Centro
de Excelência contra a Fome
Clarissa Franzoi Dri (UFSC) e
Andressa Caroline Molinari da Silva (UFSC)
caPítulo 5 ---------------------------------------------------------------- 147
Difusão internacional das políticas alimentares brasileiras:
analisando as mudanças normativas e institucionais na FAO e
na CPLP
Carolina Milhorance (CIRAD)
caPítulo 6 ---------------------------------------------------------------- 177
Vestígios da solidariedade Sul-Sul: um estudo do caso da
inclusão do Program Purchase from Africans for Africa (PAA)
na Cooperação Internacional Brasileira para o Desenvolvimento
Maria Elisa Huber Pessina (UNIFACS) e
Elsa Kraychete (UFBA)
caPítulo 7 ---------------------------------------------------------------- 211
Eliminando a contradição, silenciando o sujeito: o camponês na
Política Externa de Temer e Bolsonaro
iago Lima (UFPB) e
Laura Waisbich (Cambridge)
sobre os autores e autoras ------------------------------------------ 251
Prefácio e
aPresentação
| 11
O C    
  G L
José Graziano da Silva
Diretor do Instituto Fome Zero
Quando aceitei o convite para prefaciar essa coletânea organizada
por Marcelo Fernandes e iago Lima não sabia do lançamento do livro de
fotos do nosso querido Ricardo Stuckert (1) que foi realizado recentemente
no Memorial da América Latina, em São Paulo. Vou reproduzir a seguir,
alguns trechos transcritos das falas do Celso Amorim e do próprio Lula
nesse evento que, creio, são bastante elucidativos para essa nossa introdução.
Celso Amorim:
Os princípios básicos da política externa brasileira estão na
Constituição. A grande diferença que eu via que poderia ocorrer
com a chegada do presidente Lula (em 2003) era a determinação
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
12 |
e a coragem de levar adiante os objetivos. Por isso, eu me limitei a
sugerir como deveria ser nossa atitude. Que a política externa tinha
que ser altiva e ativa.
E por quê isso? Mesmo quando a gente defendia boas posições
como embaixador - e o Brasil fez coisas boas da qual eu participei
em outros momentos - mas havia sempre uma certa timidez. Eu
recebia instruções assim: você defenda a nossa posição, mas cuidado
para não brigar com os EUA... Não vai sair atrás dos americanos,
dos latino-americanos, evita sair na fotografia com a Índia... Claro
que isso não vinha escrito. Vinha o telegrama muito bem escrito e
depois vinha um telefonema que era atendido por um assessor de
nível inferior para dizer esse tipo de coisa…
Então o que eu via, com a eleição do presidente Lula naquela
época, significava acima de tudo recuperar a autoestima do
povo brasileiro. O povo brasileiro tinha sido eleito Presidente da
República. Então, era isso que nos permitia levar uma politica
externa adiante seguindo os mesmos preceitos. Não há atividade se
existe o medo de ser ativo e o medo de ser altivo!
(…) A política externa brasileira foi ativa, altiva, universalista e
solidária... Eu quero dizer que eu fui testemunha dessa gloriosa
passagem do Brasil pelo mundo que eu espero volte a se repetir.
Lula:
“Eu resolvi organizar este evento aqui (lançamento do livro) para
mostrar o grau de empobrecimento que vive a nossa política
externa no Brasil. Ninguém será grande se sonhar pequeno. E
o Brasil sempre foi um país muito importante. Mas o Brasil
sempre preferiu ser tratado (na sua política externa) como se
fosse uma coisa insignificante, como se fosse uma colônia, como
se ainda tivesse colonizado. Uma parte da elite econômica e da
elite política adoram ser subalternos. Adoram fazer o papel de
inferior. Adoram dizer amém, ou dizer sim senhor, quando com a
mesma força você poderia dizer não … E eu quero dizer pra vocês
que não existem políticas públicas ativas e altivas se não tiver um
governo ativo e altivo!
No Itamaraty tem muita gente conservadora. O Itamaraty também
tem gente de direita e não são poucos. Mas o Itamaraty não
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 13
decide as políticas que são colocadas em prática pela instituição
governamental. Quem define é o governo. E é através das políticas
do governo que o Itamaraty pode agir mais ou agir menos. Se você
tem um governo que não define a política que você quer, que não te
dá orientação, é muito mais fácil ficar na embaixada servindo drink
ou ir na embaixada dos outros tomar drink.
(…) E foi essa politica ativa que nós tivemos que permitiu que
a gente elegesse o diretor geral da FAO, o companheiro José
Graziano; foi essa política ativa e altiva que permitiu que a gente
elegesse o Presidente da Organização Mundial de Comércio; e foi
essa política ativa que permitiu que a gente trouxesse para o Brasil
as olimpíadas…
(…) Em política não tem lugar vazio; é que nem ônibus lotado:
você levantou, não volta mais pro mesmo lugar. Política externa é
isso: todo mundo quer exportar mais do que importar, todo mundo
quer ganhar mais. Duro era mostrar a política externa que a gente
tinha, que a gente queria uma política de duas mãos, que todo
mundo ganhasse … Dizer que o Brasil não queria ter hegemonia,
que o Brasil queria ter parceria; que o Brasil não queria ser maior
do que ninguém, que o Brasil queria ser igual.
(…)
Dia 10 de dezembro de 2002 eu já tinha dado demonstração do
que seria a nossa política externa. Os primeiros países que eu visitei
foram a Argentina e o Chile. E depois fomos aos EUA porque o
Bush nos convidou. E o Bush estava metido na guerra do Iraque, só
falava disso, “é preciso acabar com o terrorismo, eu preciso do Brasil
para a gente ganhar desse terrorismo”; e que era preciso invadir o
Iraque e se a gente ganhasse ele falou que as empresas brasileiras
poderiam ajudar a reconstruir o Iraque ... Ai eu falei: “Meu Caro,
o Brasil fica há 14 mil km do Iraque, o Saddam Hussein nunca fez
nada contra mim, porque eu vou brigar com ele? A minha guerra é
no Brasil contra a fome e essa guerra nós vamos vencer”.
E completou: “Politica externa é que nem casamento. As coisas não
acontecem quando um quer, os dois têm que querer; e se não tiver
ganha-ganha, ninguém quer. Então o Brasil, com sua grandeza, tem
que jogar esse papel. Ao Brasil não interessa crescer se os seus vizinhos
ficarem pobres. Nós temos que crescer juntos. E o Brasil tem que ser
o indutor disso. O Brasil tem que ser o fomentador disso”.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
14 |
Os trechos acima resumem bem a meu ver o que foi a “perfeita
sintonia” entre o Presidente da República e o seu ministro das relações
exteriores no período dos dois governos Lula. De um lado a experiência
acumulada do chanceler e de outro a vontade política do presidente de
fazer as coisas acontecerem” como ele mesmo costuma dizer. O nome
que se deu a isso reflete com precisão a nova orientação implementada
onde o combate a fome - que já era prioridade interna desde a campanha
eleitoral - era apenas a cereja do bolo. Ou seja, um ornamento importante,
mas um ator coadjuvante do processo. O objetivo principal era a
busca da soberania, do respeito no cenário internacional; a experiência
brasileira na exitosa política de combate à fome foi apenas um dos vários
instrumentos utilizados!
Foi com essa visão que li os textos dessa coletânea. Minha “conclusão
é que a política externa brasileira nos governos Lula - e em muito menor
parte, também nos Governos Dilma, pela falta de presença da presidenta
na arena internacional - usou (no bom sentido) as mesmas diretrizes da
sua política interna de combate à fome para conseguir parte dos seus
objetivos externos de ser parceiro de outras nações, em particular de
África. Mas claramente a posição ativa e altiva encontrou os seus limites
no cenário internacional, especialmente pela falta de condições financeiras
de competir com os países desenvolvidos - leia-se EUA, Reino Unido e
União Europeia. E impôs limitações que o Brasil não conseguiu superar
sem ter que abrir mão de alguns pontos importantes. Poder-se-ia dizer
que isso era parte da estratégia de negociação e não imposição, de buscar
o consenso e não hegemonia, o que não deixa de ser também parte da
verdade. Mas há que se reconhecer que, como já dizia o velho Garrincha,
faltou combinar com os russos” ou talvez fosse melhor dizer com os norte-
americanos e europeus que sempre dominaram essa arena internacional do
combate/manutenção da fome como um prolongamento de suas políticas
internas de escoar excedentes alimentares! E juntos sempre mantiveram
praticamente o monopólio dessa política de ajuda humanitária através do
controle do PMA na indicação de seu diretor executivo e dos diretores
operacionais relevantes.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 15
Minha experiência na Direção geral da FAO entre 2012 e 2019
mostrou que era possível fazer muitas inovações para criar uma agenda
mais progressiva”, até porque o PMA deveria ser um programa
conjunto da FAO e da Secretaria-Geral da ONU, pelos seus estatutos.
Como por exemplo, tivemos um relativo sucesso em exigir uma parcela
maior de doação em dinheiro que, em espécie, representava reduzir
a oportunidade dos países desenvolvidos de simplesmente escoarem
seus excedentes com o selo das Nações Unidas. Mas isso exigia muito
mais que uma presença do Brasil com a autoridade moral que havia
ganho com o “modus operandi” da implementação do seu Programa
Fome Zero. Não há dúvida que uma política externa ativa e altiva exige
muitos recursos que são, na prática, realocados de suas prioridades
internas, como fazia questão de reafirmar sempre a presidenta Dilma.
Quando deixamos de fazer isso, renunciamos a sermos pelo menos
um ator coadjuvante importante na arena internacional das políticas
humanitárias e voltamos ao que éramos antes, como por exemplo,
fornecer tropas para as missões de paz … O que não deixa de ser
também importante e que também exige um montão de recursos, mas
corresponde simplesmente ao papel que nos haviam pré-destinado na
divisão internacional das ações humanitárias!
Mas infelizmente vieram outros tempos, especialmente com a
chegada de Trump ao governo dos EUA e de governos de direita no Brasil.
O primeiro texto dessa coletânea -Política Externa Brasileira
Assertiva do prof Marcelo Fernandes da Unesp - faz uma análise dos
avanços e retrocessos da política externa brasileira entre 2003 e 2016
procurando mostrar que ela buscou defender os interesses brasileiros no
mundo de maneira mais assertiva. Segundo o autor isso se deveu a “uma
relativa desconcentração e regulação de novos polos de poder nas relações
internacionais no período, ampliando as opções estratégicas no mundo. O
país participou na construção de alianças estratégicas com países relevantes,
na priorização da América do Sul e na preferência pelo eixo Sul-Sul nas
relações internacionais. Nesta perspectiva, a importância internacional do
país cresceu como exportador de commodities, principalmente alimentos
e matérias-prima (…) e o resgate da dívida social brasileira na esfera
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
16 |
doméstica traduziu-se globalmente em uma agenda de combate à fome
e à pobreza. Além disso, o Brasil tornou-se também neste período player
relevante na FAO - ONU no tocante aos assuntos de desenvolvimento
agrícola sustentável, agricultura familiar e a busca pela segurança alimentar”.
O autor reconhece também que “no período entre 2016 e 2021, houve
retrocessos nesta agenda” atribuindo isso “à guinada à direita no governo
brasileiro”, esquecendo-se que esse processo já era marcante no segundo
Governo Dilma a partir de 2014, na nossa opinião.
O texto que se segue do prof iago Lima aborda a cooperação
humanitária alimentar do Brasil (2003-2016) qualificando-a de uma
experiência inovadora à tradicional política da ajuda alimentar. O Brasil
já havia doado alimentos ao exterior em ocasiões antes, mas uma política
de ajuda alimentar humanitária institucionalizada foi algo inovador,
assim como a magnitude que assumiu, pois o país se tornou um dos
seis maiores doadores do Programa Mundial de Alimentos (PAM). Mas
como bem mostra o autor, a proposta do Governo brasileiro era conectar
a produção da pequena agricultura familiar brasileira a uma política
humanitária internacional, dentro do que se convencionou chamar de
estratégia fome zero”. Mas, a interferência do Legislativo pela força da
Frente Parlamentar da Agropecuária dominada pela bancada ruralista,
aprovou uma lei que facilitava a doação de alimentos produzidos por
grandes produtores e suas cooperativas resultando em uma prática muito
diferente da intenção original. O estudo “mostrou as limitações políticas
internas do que poderia ser uma cooperação internacional diferente
daquela dos doadores tradicionais, que costumavam buscar sua ajuda
alimentar internacional nos estoques excedentes, algo profundamente
criticado pela maioria dos especialistas em ajuda alimentar” nas
palavras do autor. “Além disso, conclui, o governo não tinha recursos
orçamentários suficientes para comprar alimentos para doação no
exterior na escala prevista pela política. A solução foi doar o que estava
disponível nos estoques dos ministérios e agências, principalmente nos
estoques da CONAB”, que não eram em sua grande parte, oriundos da
agricultura familiar.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 17
O texto de Clarissa Dri e Andressa Molinari da Silva analisa a criação
do Centro de Excelência contra a Fome em Brasília. Foi uma parceria
entre o Brasil e o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas para
divulgar práticas brasileiras no âmbito da alimentação e nutrição escolar.
As autoras concluem que “a construção institucional do Centro reflete
o desenvolvimento de uma diplomacia sul-sul idealizada e executada
por diplomatas e não-diplomatas. A combinação do conhecimento
especializado de profissionais da saúde pública, da visão de lideranças
políticas e de diplomatas engajados nos temas de alimentação e cooperação
possibilitou um arranjo administrativo ousado e inovador no âmbito da
política externa brasileira”.
O quarto capítulo de Jenifer Santana e iago Lima “Cooperação
ou Cooptação?” discute as razões da aproximação entre o Brasil e o
Programa Mundial de Alimentos no campo da ajuda humanitária durante
os governos Lula e Dilma (2003-2016) quando o país se tornou um dos
maiores doadores humanitários de alimentos. Segundo os autores, tal
condição só foi possível devido a que o PMA arcava com os custos de toda
a logística internacional da ajuda alimentar, embora tradicionalmente o
órgão exigia que os doadores arcassem com todos os custos operacionais de
suas doações. A conclusão dos autores é que o Brasil, por falta de recursos
financeiros próprios, não conseguiu executar a ajuda alimentar de acordo
com sua preferência devido às regras operacionais logísticas do PMA e teve
que ceder às preferências do Programa deixando de ser uma inovação como
se pretendia originalmente.
O quinto capítulo da coletânea de Carolina Milhorance analisa
a difusão das políticas alimentares do Brasil enfocando a dinâmica
que molda a agenda internacional. O caso estudado foi a estratégia e
recomendações promovidas pela Organização das Nações Unidas para
a Alimentação e Agricultura (FAO) e Comunidade de Países de Língua
Portuguesa sobre o desafio de como enfrentar a insegurança alimentar,
em especial na Africa, com base na experiência brasileira do Programa
Fome Zero. A autora conclui que estratégia do Brasil para combater a
fome fez com que “o país adquirisse sólida legitimidade internacional e
social”, bem como os esforços do país para promover a mesma estratégia
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
18 |
em conjunto com as Organizações Internacionais. A autora destaca que
“isto é especialmente verdade na FAO, já que algumas das ferramentas
de políticas do Brasil foram incorporadas às suas iniciativas regulares.
Na CPLP, a influência dos atores brasileiros na formação das melhores
práticas foi ainda mais fortes e diretas do que na FAO no curto prazo;
mas, a desmobilização pós-2016 significou um declínio na circulação do
conhecimento das politicas brasileiras”.
O sexto capítulo de Maria Pessina e Elsa Kraychete é um estudo
do caso da inclusão do Programa Purchase from Africans for Africa
(PAA) na Cooperação Internacional Brasileira para o Desenvolvimento.
As autoras concluem que “as circunstâncias necessárias para a criação
e efetivação de um programa de Cooperação Sul-Sul de bases mais
solidárias, no caso da experiência brasileira do PAA África, podem ser
melhor compreendidas a partir da combinação das seguintes dimensões:
geopolítica favorável combinada com um governo empenhado em
tornar-se um protagonista internacional; governo empenhado em
implementar políticas inclusivas de desenvolvimento, que se estendia à
política externa e, em certa medida, se colocando de forma a disputar os
sentidos do desenvolvimento no seio das organizações internacionais;
participação da sociedade civil na definição e acompanhamento do
Programa; reconhecimento internacional da qualidade técnica do
Programa; e busca do reconhecimento internacional do Programa
como reforço a sua aceitação internamente”. Tomo a liberdade de
destacar a importância desse último ponto (a busca do reconhecimento
internacional como reforço a sua aceitação interna), particularmente
dada a oposição sistemática que sofreu o Programa Fome Zero de uma
parte da imprensa nacional.
Finalmente o sétimo e último capítulo dessa coletânea, de autoria de
iago Lima e Laura Waisbich, denomina-se “Eliminando a contradição,
silenciando o sujeito: o camponês na Política Externa de Temer e Bolsonaro”.
Os autores analisam como o fim dos governos do Partido dos Trabalhadores
eliminou uma percepção de “irracionalidade” na política externa brasileira
durante os anos de 2003 a 2016: a coexistência de uma política externa
que costumava dar voz e recursos a duas forças sociais irreconciliáveis no
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 19
Brasil: o agronegócio em larga escala e os pequenos produtores. Com o
golpe que destituiu a presidenta Dilma em 2016, a contradição começou
a desaparecer quando os presidentes Temer e Bolsonaro desmontam as
instituições que permitiram a manifestação dos pequenos produtores na
política nacional, o que prontamente se reflete na política externa.
Desejo uma boa leitura. Vale a pena!
(1) Com 747 fotos de Ricardo Stuckert, “O Brasil no Mundo” é uma
publicação do Instituto Lula e pode ser baixado gratuitamente aqui (livro
em alta resolução, o download pode demorar alguns minutos). O livro
“O Brasil no Mundo” relata, em imagens, os oito anos da política externa
brasileira do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
20 |
caPítulo 1
| 23
P E B
A (2003-2016 ... 2023
- 2026)  C  F: 
 
Marcelo Fernandes de OLIVEIRA
1
“Tem gente passando fome. E não é a fome que você imagina
entre uma refeição e outra. (...). Tem gente que existe e parece
imaginação”. (Ulisses Tavares, poema Além da Imaginação).
Este texto é um ensaio científico sobre a temática da política
externa brasileira e o combate à fome. Científico porque nossa reflexão
está assentada na leitura de estudos acadêmicos sobre a questão. Mas,
propositadamente ensaístico porque é uma tese pessoal, com exercício
amplo da nossa liberdade intelectual, sem a preocupação de comprovação
última própria dos trabalhos acadêmicos.
Marcelo Fernandes de Oliveira é Professor Livre Docente da UNESP – Campus de Marília. Brasil. Email:
marcelo.fernandes@unesp.br. Orcid ID: https://orcid.org/0000-0002-8494-3836.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
24 |
Óbvio que temos a preocupação de sermos objetivos, lógicos,
sistemáticos, compreensivos, críticos e originais. Tudo aquilo que se
espera de quem “mata a sua fome” vivendo da produção de conhecimento
acadêmico e científico.
Entretanto, aqui, nossa preocupação é com a condição humana.
Nosso olhar será guiado pelo inconformismo de vivermos em um país
de dimensões continentais, com clima favorável, água abundante, terra
de qualidade, mão-de-obra especializada, tecnologia agrícola avançada, e,
mesmo assim, no momento em que escrevemos, mais de 33 milhões de
brasileiros estão passando fome.
E não é a “nossa fome” entre uma refeição e outra. Trata-se da
FOME como falta de acesso regular a uma alimentação adequada. O Brasil
havia deixado o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU)
durante o primeiro governo Lula da Silva
2
(2003-2010), período em que a
política externa do país foi mais assertiva na defesa dos interesses nacionais.
Mas, retornou a ele em 2015, com agravamento significativo no governo
Temer e no governo Bolsonaro, principalmente durante e após a pandemia
de Covid-19.
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2022/10/14/olheestados-diagramacao-
v4-r01-1-14-09-2022.pdf..
Segundo Relatório da FAO, publicado em 2014, “In Brazil, efforts that started in 2003 have resulted in
successful participatory processes and coordinating institutions, delivering policies that have effectively
reduced poverty and hunger” (FAO, 2014).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
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Em 2022, conforme o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança
Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil (Rede PENSSAN,
2022), 33,1 milhões de brasileiros não têm comida suficiente disponível.
Ainda segundo o estudo, 58,7% da população brasileira convive com
a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave. Isso
significa que são 125,2 milhões de brasileiros sofrendo de algum grau de
insegurança alimentar. Naquele momento da pesquisa, somente 4 em cada
10 domicílios no país tinham acesso pleno à alimentação.
Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022,
por meio de entrevistas em 12.745 domicílios em áreas urbanas e rurais
de 577 municípios distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal.
Eles indicam que o país regrediu a patamares dos anos 1990 na tarefa do
combate à fome (Rede PENSSAN, 2022, p. 15).
As regiões Norte e Nordeste sofrem mais: 71,6% e 68% da população,
respectivamente, estão em insegurança alimentar; 25,7% das famílias
nordestinas convivem com a fome. A média nacional é aproximadamente
15%, e, do Sul, de 10%.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
26 |
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2022/10/14/olheestados-
diagramacao-v4-r01-1-14-09-2022.pdf
Ironicamente, no campo passa-se mais fome do que em áreas urbanas.
A insegurança alimentar alcança 60% dos domicílios rurais, sendo que
18,6% das famílias passam fome. Pior: a fome alcançou 21,8% dos lares
de agricultores familiares e pequenos produtores.
A fome no Brasil também tem cor, gênero e grau de instrução. Em
65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas há restrição de
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 27
alimentos em algum nível. Em casas chefiadas por mulheres, a fome passou
de 11,2% para 19,3%. Nos lares com crianças, a fome passou de 9,4% em
2020 para 18,1% em 2022. Nas famílias com adolescentes, a fome atingiu
25,7% dos lares. Em 22,3% dos domicílios com responsáveis com baixa
escolaridade prevalece a fome.
A renda é outro fator explicativo para o aumento da fome. Em
67% dos domicílios em que a renda é maior do que um salário mínimo
por pessoa, a segurança alimentar é garantida. Em contrapartida, a fome
é maior nos domicílios em que a pessoa responsável está desempregada
(36,1%), trabalha na agricultura familiar (22,4%) ou tem emprego
informal (21,1%).
Onde falta água, falta também alimento. A insegurança alimentar
está presente em 48,3% dos lares sem água na região Norte, em 43% no
Sudeste, em 41,8% do Centro-Oeste e em 41,2% no Nordeste.
Em domicílios endividados, 49,1% sofrem com a insegurança
alimentar moderada e grave; 48,7% relataram ter vendido bens ou
equipamentos de trabalho para comer; e 55,2% teve um ente que parou de
estudar para contribuir com a renda familiar.
Pergunto: esses dados são aceitáveis para uma “Potência Internacional
Agrícola”? Para um país entre os maiores produtores de alimentos do mundo?
A resposta é simples: um sonoro NÃO! Mas, quais caminhos seguir
para amenizar e eliminar essa situação vergonhosa no Brasil?
Entre 2003 e 2016, a política externa defendeu os interesses brasileiros
no mundo de maneira mais assertiva (Oliveira, 2014). Colaborou para
isto uma relativa desconcentração e regulação de novos polos de poder nas
relações internacionais no período, ampliando as opções estratégicas no
mundo (Oliveira, 2005).
O país participou na construção de alianças estratégicas com países
relevantes, na priorização da América do Sul e na preferência pelo eixo
Sul-Sul nas relações internacionais (Oliveira, 2006). Nesta perspectiva, a
importância internacional do país cresceu como exportador de commodities,
principalmente alimentos e matérias-prima. O “neodesenvolvimentismo
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
28 |
e o resgate da dívida social brasileira na esfera doméstica traduziu-se
globalmente em uma agenda de combate à fome e à pobreza.
Este foi o elemento novo do primeiro governo Lula da Silva (2003-
2010) na construção da sua política externa: a priorização da combinação
do chamado “neodesenvolvimentismo” de teor social com uma defesa
assertiva em prol de condições ideacionais e práticas à sua concretização na
seara internacional.
A compreensão da natureza desse “neodesenvolvimentismo” na esfera
doméstica é a chave para o entendimento da política externa brasileira
no primeiro governo Lula em um ambiente externo de enfraquecimento
dos polos econômicos mais importantes do sistema internacional. O
que significa afirmar que a consolidação, de fato, da autonomia pela
assertividade por parte do Brasil passou pela solução do desequilíbrio social
no país em um ambiente externo instável (Pinheiro, 2004).
Dito de outro modo: o primeiro governo Lula logrou benefícios na
sua política externa porque decidiu colocar a questão social no coração do
Estado brasileiro ao aprofundar e criar amplos programas sociais domésticos
de inclusão de famílias e indivíduos no mercado consumidor. Esta decisão
estratégica realizada pelo governo Lula em um contexto histórico de crise
econômica e social global, colocou o Brasil e outros países em desenvolvimento
(Rússia, China, Índia e África do Sul) em uma posição internacional de
destaque naquele período. Isso porque ter acesso a esses novos mercados
consumidores do sul propiciou ganhos econômicos relevantes.
Prova disso, foi o reconhecimento do papel de Lula no combate à fome
no mundo. Em 2010, ainda no comando do país, Lula ganhou um prêmio
da Organização das Nações Unidas (ONU) com o título de “Campeão
Mundial na Luta Contra a Fome”. A então diretora-executiva do Programa
Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA), Josette Sheeram, na
premiação citou programas do governo brasileiro, como o Fome Zero, e
destacou que a luta contra a fome gerou crescimento econômico.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 29
Novamente, em 2011, Lula ganhou nos Estados Unidos o “World
Food Prize
3
, o prêmio mundial da alimentação. Segundo os responsáveis
pela premiação, “Lula foi escolhido por antecipar as Metas do Milênio da
Organização das Nações Unidas ao garantir que 93% das crianças e 82%
dos adultos façam três refeições por dia”.
Além disso, o Brasil tornou-se neste período player relevante na FAO
- ONU no tocante aos assuntos de desenvolvimento agrícola sustentável,
agricultura familiar e busca pela segurança alimentar com consequências
visíveis ao combate à fome. Inclusive, um brasileiro, José Graziano da
Silva, autor do prefácio-apresentação deste livro, foi o Diretor Geral da
instituição internacional.
Infelizmente, os governos lulo-petistas (2003-2016) apenas
iniciaram esta tarefa de eliminar a fome no país com repercussões globais,
mas terminaram sem cumpri-la, mantendo o “neodesenvolvimentismo
condicionado aos interesses de elites econômicas que não demonstraram
querer adiantar o futuro do Brasil por meio da consolidação abrangente
do combate à desigualdade e o resgate da dívida social do país, sobretudo
contribuindo para colocar fim na fome no país e no mundo.
Os setores econômicos escolhidos como foco do “neodesenvolvimen-
tismo” não eram nem intensivos no uso de tecnologias, nem no fomento para
absorção futura via melhorias educacionais da mão de obra qualificada que
permitisse à população brasileira renda crescente e capacidade de consumo
constante com incremento da poupança privada e pública para a realização
de investimentos em inovação e infra-estrutura. Condição sine qua non à
consolidação de um país sólido capaz de defender seus interesses domésticos
de maneira autônoma e assertiva no sistema internacional.
A incorporação dos mais pobres como consumidores, na maioria
das vezes de produtos industrializados e serviços importados, sem dar-
lhes condições estruturais de autonomia individual, acabou sendo fator
limitante à economia brasileira, principalmente à indústria, a qual regrediu
O World Food Prize foi criado pelo cientista e prêmio Nobel da Paz (1970) Norman E. Borlaug, um dos
principais responsáveis pela “revolução verde” que aumentou a produção de alimentos no planeta.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
30 |
a olhos vistos. Enquanto isto, prosperou no país segmentos econômicos
ligados ao “rentismo” financeiro e a agricultura de exportação
4
.
A formatação do projeto político para eliminar os gargalhos ocorreu,
mas, a urgência na manutenção do poder e os limites estruturais doméstico
e internacional do país dificultaram a sua consecução. O retrocesso desta
trajetória teve início em 2016 com o impedimento da presidenta Dilma
Roussef (2011-2016) e a emergência ao poder do vice-presidente Michel
Temer (2016-2018). O aprofundamento ocorreu com a eleição, em 2018,
da ultradireita representada na figura de Jair Bolsonaro (2018-2022).
Entre 2016 e 2022, a agenda lulo-petista teve retrocessos visíveis,
em parte, devido à guinada à direita de parcela majoritária de eleitores e
do governo brasileiro, embalada pelos escândalos de corrupção embalados
pela Lava Jato. E também, em parte, devido às limitações econômicas
derivadas da crise política com a implosão do projeto econômico e político
da esquerda nacional. A pandemia da Covid-19, a Guerra da Ucrânia
e a incompetência administrativa da coalizão de direita liderada pelo
ex-presidente Jair Bolsonaro e sustentada pelos segmentos financeiros e
agroexportador só ampliaram a miríade de problemas de longo prazo,
sobretudo a desindustrialização.
Neste período, o governo brasileiro desencadeou processos
simultâneos de fragilização, desconstrução e reconfiguração das políticas
públicas voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar em suas
múltiplas dimensões. Entre as estratégias adotadas para o desmantelamento
dessa área, cabe salientar as políticas de austeridade fiscal, restrições
orçamentárias e extinção das estruturas de governança que garantiam a
existência de diversos programas (Roza, 2022a).
O Ministério do Desenvolvimento Agrário foi eliminado; houve
cancelamento de transferências de recursos para programas, como, por
exemplo, o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos); a revogação
de chamadas públicas para contratação de serviços da Política Nacional
A maioria dessa elite apoiou maciçamente o governo de extrema-direita que desenvolveu políticas públicas
regressivas, as quais contribuíram para termos os números atuais de cidadãos brasileiros passando fome.
Inclusive, a derrota eleitoral de 2022 do ex-presidente Bolsonaro foi via voto desses brasileiros famintos, os
quais, tinham na memória os governos de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 31
de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER); cancelamento da
aquisição de equipamentos e infraestruturas via Programa Territórios
da Cidadania (PTC); a redução do orçamento à regularização de terras
quilombolas; cancelamento de contratos do Minha Casa, Minha Vida
Rural; o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável
(CONDRAF) foi esvaziado; marcos legais da regularização fundiária
foram desmontados; etc (Roza, 2022a).
Simultaneamente, o Conselho do Agronegócio (Consagro) e o
Conselho Nacional de Política Agrícola (CNPA), ocupados pelas elites
agrárias, ganharam força como articuladores das novas tendências no
agronegócio brasileiro. O passo seguinte foi transformar os movimentos
sociais ligados à questão da terra em inimigo número 1 do governo e de sua
coalizão agrário-exportadora que garantia sustentação política ao desmonte.
O Movimento dos Trabalhos Sem Terra passou a ser demonizado no jogo
da luta cultural entre direita e esquerda no país (Roza, 2022b).
Não resta dúvida que os números que apresentamos no início deste
ensaio sobre a fome são resultados claros dessa conjuntura doméstica e
internacional (2016-2022). O preço do alimento disparou e à fome voltou
a bater forte na porta de boa parte dos brasileiros.
A lembrança recente da “bonança” nos governos de esquerda foi
imediata. Combinado ao revés da Operação Lava Jato, Lula acabou apto a
candidatar-se e venceu as eleições de 2022 com pequena margem de votos,
embalado pela promessa de que o brasileiro voltaria a comer “picanha
5
e
beber uma “cervejinha” gelada
6
no fim de semana com a família. O slogan
A esperança vai vencer o medo” prevaleceu.
Mas, será possível uma volta ao passado? Quais as perspectivas desse novo
governo no tocante ao combate à fome a à melhoria da vida dos brasileiros?
As perspectivas futuras indicam que a tendência do “novo governo
Lula será a compatibilização entre o “destino manifesto” de potência
Picanha é um corte nobre da carne de boi de preço elevado que é apreciado pelos brasileiros em eventos
sociais denominado “churrasco” realizados para celebrar e unir famílias nos finais de semana no país.
A cerveja gelada é a bebida preferida do brasileiro adulto para acompanhar o corte da picanha como prato
principal do churrasco.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
32 |
agrícola alimentar na lógica do agronegócio com novos impulsos na
direção da reconstrução de uma teia social de apoio ao combate à fome
e a agricultura familiar no país e no mundo sob um novo modelo de
desenvolvimento sustentável.
Nessa direção, em junho de 2023, o novo governo Lula lançou
o Plano Safra 2023/2024. Ao invés de diminuir recursos, os valores
foram ampliados a R$ 364,22 bilhões, os quais refletem um aumento de
cerca de 27% em relação ao financiamento do ano anterior (R$ 287,16
bilhões) sob governo de Jair Bolsonaro. Os juros serão subsídios com
taxas entre 7% e 12,5%.
Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/
presidente-anuncia-plano-safra-2023-2024
A diferença em relação ao governo anterior é que o Plano Safra
2023/2024 “(...) incentiva o fortalecimento dos sistemas de produção
ambientalmente sustentáveis, com redução das taxas de juros para
recuperação de pastagens e premiação para os produtores rurais que adotam
práticas agropecuárias consideradas mais sustentáveis” (Brasil, 2023d).
Além disso, o Programa para Financiamento a Sistemas de Produção
Agropecuária Sustentáveis (RenovAgro) incorpora os financiamentos de
investimentos com o objetivo de incentivo à Adaptação à Mudança do
Clima e Baixa Emissão de Carbono na Agropecuária. Nesta perspectiva,
está na mira do governo:
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 33
[...] a recuperação de áreas e de pastagens degradadas, a implantação
e a ampliação de sistemas de integração lavoura-pecuária-florestas,
a adoção de práticas conservacionistas de uso e o manejo e proteção
dos recursos naturais. Também podem ser financiadas a implantação
de agricultura orgânica, recomposição de áreas de preservação
permanente ou de reserva legal, a produção de bioinsumos e de
biofertilizantes, sistemas para geração de energia renovável e outras
práticas que envolvem produção sustentável e culminam em baixa
emissão de gases causadores do efeito estufa” (Brasil, 2023d).
Segundo Lula, “Como nos outros governos, não tenho medo de
dizer que todos os anos vamos fazer planos melhores que no ano anterior”.
O ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, destacou que o Plano
Safra resume o slogan do governo federal: União e Reconstrução. Ele “[...]
é a união do campo, mas também é a união da cidade, que gera emprego
na indústria e renda. E isso é melhoria de vida para as pessoas. É também
a reconstrução das nossas relações internacionais”. Nesta direção, Fávaro
afirmou ainda que o principal ativo do Plano é a sustentabilidade que
permitirá o setor crescer e ganhar mais mercado no mundo (Brasil, 2023d)
na era da economia verde.
O Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, complementou Fávaro
ao dizer que “Vai ser muito importante que a nossa produção se adeque
às novas exigências internacionais, para que não percamos mercado no
exterior de produtos que são bem-vindos lá fora” (Brasil, 2023d).
Marina Silva, ministra de Meio Ambiente, constatou que o Plano
Safra “está em sintonia com a ideia do governo em busca do modelo de
desenvolvimento sustentável, que privilegia o crescimento econômico, a
inclusão social e a proteção do meio ambiente” (Brasil, 2023d). Enfim, o
Brasil está iniciando uma transição à economia de baixo carbono.
O presidente da Abrapa (Associação Brasileira dos Produtores de
Algodão), Alexandre Schenkel, representou os produtores rurais no evento
e agradeceu o apoio do governo Lula ao setor agropecuário:
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
34 |
O crédito é um dos principais insumos para viabilizar nossa
atividade, permitindo trazermos inovações tecnológicas,
sustentabilidade e qualidade para produção brasileira. Precisamos
fortalecer os instrumentos de financiamento para cumprir a nossa
missão de alimentar e vestir o mundo com os frutos da agricultura.
(Brasil, 2023d).
Baseado nessa união de propósitos, Lula e empresários do segmento
agroexportador
7
, majoritariamente apoiadores do ex-presidente Jair
A comitiva de Lula na China foi composta por 88 empresários do setor agroexportador: Antônio Jorge
Camardelli – ABIEC; Cínthia Torres – Diretora técnica – ABIEC; José Roberto Goulart – ALIBEM; Wesley
Mendonça Batista – J&F JBS; Joesley Mendonça Batista – J&F/JBS; Gilberto Tomazoni – CEO Global
JBS; Carlos Alberto Macedo Cidade – Diretor Relações Inst. JBS; Marcio Soares Rodrigues – Gerente JBS;
Pedro Felippe Castellain Barbosa de Castro – Diretor Exp. Ásia JBS; Renato Mauro Menezes Costa – Friboi;
Marcela de Souza Afonso Rocha – Diretora JBS; Lincoln Bueno – Presidente da Mercúrio – Alimentos;
Paulo Sérgio Mustefaga – ABRAFRIGO; José João Batista Stival Júnior – ABRAFRIGO; Lincoln Lafaiete
– ABRAFRIGO; Marcos Antonio Pompei – ABRAFRIGO; Rogerio Jose Bonato – ABRAFRIGO; João
Gonçalves Silva Júnior – ABRAFRIGO; Etivaldo Vadão Gomes – Frigoestrela; Etivaldo Gomes Filho –
Frigoestrela; Eduardo Gomes Caluz da Silva – Frigoestrela; Ivon da Silva Jr – Frigorífico SILVA; Daniela
da Silva – Frigorífico SILVA; Adilton Bittencourt – BOA CARNE; Rafaella Bittencourt – BOA CARNE;
Murilo Leite – FRISACRE; Maria Carolina Rebollo Machado Leite – FRISACRE; Fabio Ricardo Leite
– FRISACRE; Marcos Paulo Parente Araujo – FRISACRE; Maíra Santiago Pires Parente – FRISACRE;
Luana da Silva Machado – FRISACRE; João de Almeida Sampaio Filho – Vice Presidente Minerva;
Fabiano Parisoto – Diretor Grupo Bugio Ecofrigo; Decio Coutinho – Presidente da ABRA; Sandro Silva
de Oliveira Júnior – SUPREMO; Ricardo Santin – Presidente da ABPA; Luis Rua – Diretor de Mercados
ABPA; Linda Chen – Representante ABPA na Ásia; Marcos Antonio Molina dos Santos – Presidente do
Conselho BRF; Márcia Aparecida Pascoal Marçal dos Santos – Conselheira BRF; Rogério Moraes – Diretor
Asia BRF; Bruno Machado Ferla – Vice Presidente Juridico e RI BRF; Johnny Hiroki Fujihara – Gerente
Asia Aurora; Carlos Augusto dos Santos Zanchetta – Diretor Zanchetta Alimentos; Alisson Navarro –
Marfrig; Cláudio Almeida Faria – Rio Branco Alimentos; José Roberto Gonçalves – Diretor de Qualidade
BRF; Marcio Rodrigues – Masterboi; Alexandre Pedro Schenkel – Presidente ABRAPA; Edson Mizoguchi
– Coordenador Programa de Qualidade ABRAPA; Marcelo Duarte – Diretor de relações Internacionais
ABRAPA; Jones Yasuda – Assessor Técnico ABRAPA; omas Paul Reinhart – Assessor Comercial
ABRAPA; Marcelo de Godoy – CEO Simbiose Fertilizantes; Juan Henrique Mena Acosta – Associação
Bioinsumos; João Bello Neto – Nortox; Fabiano Maluf Amui – OUROFINO; Geraldo Ubirajara Berger –
BAYER; Daniel Bernardes Fereira Rossi – HUBIO AGRO; Reginaldo Minaré – ABBINS; Pablo Gimenez
Machado – Diretor Executivo Ásia SUZANO CELULOSE; Amaury Pekelman – Diretor Relações Inst.
Paper Excellence; Claudio Laert Cotrim Passos – Paper Excellence; Marcelo Kim Yuen Pan Diretor Jurídico
– Paper Excellence; André Meloni Nassar ABIOVE – (setor: óleos vegetais); Clébio Henrique Polvani
Marques – VANCOUROS; Vinícius Vanzella de Souza – VANCOUROS; Andressa Silva – ABIARROZ;
João José Pietro Flávio – OCB; Nelson Catarino Croda Machado – APROSMAT; Kleverson Scheffer
– MAGGI; Julio Fortini – Ecoplan; Carlos Alberto de Oliveira Andrade Filho – Representante CAOA;
Fábio Phelipe Garcia Pagnozzi – Instituto Brics; Pedro Paulo Pagnozzi – Instituto Brics; Mario Pagnozzi
– Instituto Brics; Fabrício Patriani – Instituto Brics; Lijun Lei – Instituto Brics; Itamar Antônio Canossa –
Presidente Fórum Agro mato-grossense; Ivanilse Tofoli Canossa – Fórum Agro mato-grossense; Fernando
Costa – Universidade Brasil; Marcelo Peres – Universidade Brasil; Sueme Mori – CNA; Tarcisio Sachetti
– Agro Investments Sachetti; Alexandre Ferreira Lopes – MECH – Centro de Estudos do Mercado Chinês;
Ricardo Gracia – MECH – Centro de Estudos do Mercado Chinês; João Marcelo Costa Fernandez Conde
– Afrinvest; e Dereck Favero Birchall – Afrinvest.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 35
Bolsonaro (2018-2022), viajaram para a China, em uma missão para reatar
as relações comerciais com o país asiático desgastadas no governo anterior,
sobretudo para a exportação de commodities agrícolas.
Em resumo, os interesses econômicos da potência agrícola estão
preservados e até ampliados no terceiro governo Lula. Entretanto, desde
então, vinculado a agenda de crescimento sustentável direcionado a
neoindustrialização, como veremos adiante.
Isto muda bastante coisa. Visto que conduzirá a indução de um
novo tipo de desenvolvimento sustentável que oportunizará ao país
romper os gargalos estruturais na economia e na sociedade, os quais não
foram ultrapassados nos governos anteriores da esquerda, permitindo a
emergência da ultra-direita, a qual legou ao país um Peru, uma Angola,
uma Arábia Saudita, uma Malásia ou um Uzbequistão de famintos
8
.
Paralelamente, para alterar este status quo deixado pelo governo do
ex-presidente Jair Bolsonaro, o atual governo Lula deu início à reconstrução
da teia social de apoio ao combate à fome e a agricultura familiar no país.
O primeiro passo foi recriar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e
Agricultura Familiar (MDA) do Brasil.
O novo MDA retomou suas responsabilidades nas seguintes ações:
reforma agrária; regularização fundiária; regularização de territórios
quilombolas; cadastro de imóveis rurais; educação do campo; promoção
da política agrícola; assistência técnica; associativismo; cooperativismo; e
ações destinadas à agricultura familiar e desenvolvimento rural sustentável.
Acresceu-se também a nova pasta as questões do: Abastecimento Alimentar;
da Agroecologia; da Soberania Alimentar; da Governança Fundiária; do
Desenvolvimento Territorial e Socioambiental; e do Etnodesenvolvimento.
O governo vinculou ainda ao MDA: as Centrais de Abastecimento
de Minas Gerais (Ceasa Minas); as Companhias de Entrepostos e Armazéns
Gerais de São Paulo (CEAGESP); a Companhia Nacional de Abastecimento
(Conab); a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural
(Anater); e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A Arábia Saudita possui estimativa oficial de 34,8 milhões de habitantes; o Uzbequistão, 33,4 milhões
de habitantes; o Peru possui estimativa de 32,9 milhões de habitantes; Angola possui 32,8 milhões de
habitantes; por fim, Malásia tem estimativa de 32,3 milhões de habitantes.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
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Em seguida, em março de 2023, o MDA lançou o Programa de
Organização Produtiva e Econômica de Mulheres Rurais em parceria
inédita com o recém criado Ministério das Mulheres. O objetivo é
[...] promover a autonomia econômica das mulheres do campo,
das águas e da floresta, por meio da integração de políticas públicas
voltadas à qualificação dos processos produtivos e econômicos,
à geração de alimentos e produtos saudáveis e sustentáveis, à
valorização do trabalho e ao fortalecimento das organizações de
mulheres” (Brasil, 2023a).
No mês de abril, o ministério “turbinou” e relançou o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA)
9
. Suas finalidades básicas são:
[...] promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura
familiar, por meio da aquisição de alimentos produzidos pela
agricultura familiar, destinados às pessoas em situação de
insegurança alimentar e nutricional e àquelas atendidas pela rede
sócio-assistencial, pelos equipamentos públicos de segurança
alimentar e nutricional e pela rede pública e filantrópica de ensino
(Brasil, 2023b).
O PAA tem cinco modalidades e parte dele é executado sob gestão
do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate
à Fome (MDS)
10
. As modalidades são: Compra com Doação Simultânea;
PAA-Leite; Compra Direta; Apoio a Formação de Estoques; e Compra
Institucional
11
.
Criado pelo art. 19 da Lei nº 10.696, de 02 de julho de 2003 e regulamentado pelo Decreto nº 11.476, de
6 de abril de 2023. Durante o governo Bolsonaro, este programa foi desidratado e quase foi descontinuado.
10
O MDS executa as modalidades Compra com Doação Simultânea, PAA-Leite e Compra Direta.
11
As modalidades Apoio à Formação de Estoques e Compra Institucional são executadas pelo MDA, por meio
da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e da Secretaria de Abastecimento, Cooperativismo e
Soberania Alimentar (Seab), respectivamente. As compras estão sendo realizadas por diversas instituições
públicas espalhadas por todo Brasil.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 37
Em junho, o MDA, em parceria com o Ministério do
Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), lançou o Plano
Safra da Agricultura Familiar 2023/2024
12
, cujo valor de investimentos
ultrapassará R$ 77,7 bilhões, sendo o maior valor da história do país. Seus
objetivos são:
• Aumentar a produção sustentável e a oferta de alimentos saudáveis
em todo País;
• Ampliar a capacidade produtiva da agricultura familiar por meio
do acesso a maquinários adequados, impulsionando a indústria
nacional e o desenvolvimento tecnológico;
• Fomentar a transição ecológica e a produção sustentável;
• Promover a inclusão produtiva e a autonomia econômica das
mulheres rurais;
• Desconcentrar o crédito rural, promovendo maior equilíbrio
regional;
• Estimular a agregação de valor e geração de renda com mais apoio
à agroindustrialização da produção e ao cooperativismo;
• Assegurar o acesso dos jovens, indígenas e povos e comunidades
tradicionais ao crédito rural;
• Garantir melhores condições de acesso à terra, em especial para a
juventude rural; e
• Aumentar a participação da agricultura familiar nas compras
públicas (Brasil, 2023c).
Uma leitura atenta desses objetivos apresentados pela Cartilha Plano
Safra da Agricultura Familiar 2023-2024: Mais valor para quem alimenta
o Brasil, combinado a articulação do plano safra para a agricultura de
exportação, deixa evidente que a proposta pretende promover uma agenda
de sustentabilidade ambiental combinada à neo-industrialização com
12
O Plano Safra da Agricultura Familiar 2023/2024 foi relançado por meio do Decreto nº 11.584, de 28
de junho de 2023, com coordenação compartilhada com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria,
Comércio e Serviços (MDIC). Ver informação em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-
2026/2023/decreto/D11584.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2011.584%2C%20DE%20
28,Institui%20o%20Programa%20Mais%20Alimentos.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
38 |
tecnologia avançada. O foco finalístico é buscar crescimento econômico
sustentado à médio e longo prazo para a inclusão social em um contexto de
transformação ecológica, sem alterar a dinâmica da agroexportação.
Trata-se da elaboração de um processo de desenvolvimento econômico
inclusivo, sustentável ambientalmente com uma neoindustrialização
baseada em mudança radical de paradigma tecnológico. Atacando, dessa
maneira, os gargalhos estruturais do país na economia e na sociedade que
permitiram que os primeiros governos de Lula deixassem de erradicar à
fome no país.
Nesta perspectiva, a transversalidade em rede
13
da ação de múltiplos
ministérios do governo federal é essencial. Para complementar a dinâmica
virtuosa de combate à fome entre MDA, MDS, MM e MDIC, o Ministério
da Fazenda (MF) vem discutindo no governo a ideia de Transformação
Ecológica à construção de um novo desenvolvimentismo brasileiro com
sustentabilidade, tecnologia e inclusão social.
Este chamado Plano de Transformação Ecológica contará com
[...] uma série de instrumentos de financiamento à inovação,
sustentabilidade, bioeconomia, transição energética. Já está
caminhando do ponto de vista da elaboração, traz a regulamentação
do mercado de carbono, a taxonomia, os títulos soberanos
sustentáveis e outras medidas” (Surpresas [...], 2023).
O Ministro da Economia, Fernando Haddad, em entrevista ao
programa Canal Livre da Rede Bandeirantes, afirmou estar defendendo
muito “(...) o Plano de Transformação Ecológica porque vejo nele uma
alavanca de desenvolvimento real para o Brasil” (Haddad [...], 2023).
Isso significa que à reconstrução da teia social de apoio ao combate
à fome e a agricultura familiar no país está conectada a uma “estratégia
13
Segundo Castells (1998), o Estado-rede “se caracteriza pelo compartilhamento da autoridade (a capacidade
institucional de impor uma decisão) no âmbito de uma rede de instituições. Uma rede, por definição,
não possui centro, senão nós, de diferentes dimensões e com relações internodais que são frequentemente
assimétricas. Mas, em termos finais, todos os nós são necessários para a existência da rede. [...] Este tipo de
Estado parece ser o mais adequado para processar a complexidade crescente de relações entre o global, o
nacional e o local, a economia, a sociedade e a política, na era da informação”.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 39
de futuro” do governo federal que possui uma agenda de transformação
ecológica combinada à neoindustrialização com tecnologia embarcada.
Estamos falando de um novo ciclo de desenvolvimento econômico, tal
qual aquele experimentado entre 1930 e 1980.
Esta agenda terá como dimensão prática o Novo PAC (Programa de
Aceleração do Crescimento) que deverá investir R$ 1,7 trilhão no país. O
objetivo, em consonância com o Plano de Transformação Ecológica, será a
transição ecológica, a reindustrialização e o desenvolvimento com inclusão
social e sustentabilidade ambiental com apoio internacional.
Segundo o Presidente Lula, o Brasil possui uma das matrizes
energéticas mais limpas e renováveis do mundo: “Vamos aproveitar essa
oportunidade histórica para tornar o Brasil a grande potência sustentável
do planeta. E o novo PAC ajudará nisso” (Brasil, 2023). Já o ministro
Fernando Haddad complementou o presidente afirmando que “O Brasil,
pelas suas particularidades geopolíticas e geo-ambientais, tem o dever de unir
desenvolvimento e sustentabilidade. Essa unidade talvez seja o grande segredo
do ciclo de desenvolvimento que se abre a partir de agora” (Brasil, 2023).
Para Haddad, o Plano de Transformação Ecológica transborda
a questão da transição energética ou da substituição dos combustíveis
fosseis pela energia renovável. É “uma nova maneira de pensar, governar,
empreender, viver e agir ecologicamente para que o desenvolvimento
econômico e social caminhe de mãos dadas com a preservação ambiental”
(Brasil, 2023). O ministro conclui afirmando que:
Em conjunto com o Novo PAC, o Plano de Transformação
Ecológica busca acelerar o crescimento de nosso país e combater
a degradação de nosso planeta distribuindo renda, produzindo
conhecimento e gerando emprego de qualidade. Nossa proposta
posiciona o Brasil em posição de destaque no mundo. Trata-se de
um novo modelo de país para um novo mundo (Brasil, 2023).
A política externa brasileira ressurge como instrumento essencial
para auxiliar no combate à fome no Brasil e no mundo. Dessa vez,
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
40 |
promovendo a “estratégia de futuro” do novo governo Lula que articula
a agenda da sustentabilidade ambiental, a neoindustrialização e a inclusão
social, onde a agricultura familiar passou a ter papel central, inclusive com
financiamento recorde para o setor, como vimos.
Nesse sentido, na cúpula de líderes do G77, em setembro de 2023,
na cidade de Havana, Cuba, o presidente Lula reuniu-se com Qu Dongyu,
diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação
e Agricultura). O encontro teve participação da China como convidada.
Durante a reunião, Lula defendeu uma atuação fina entre Brasil e a FAO
“na luta contra a fome e a desigualdade no Brasil e no mundo, além dos
esforços voltados à preservação ambiental” (No G77 [...], 2023).
O diretor-geral da FAO respondeu que estava “honrado em se
reunir com Lula. Qu Dongyu afirmou que “A FAO está unida ao Brasil
na luta contra a fome e a pobreza. Continuaremos trabalhando juntos,
alavancando a ciência e a inovação, para alcançar sistemas agroalimentares
sustentáveis e proteger o nosso planeta” (No G77 [...], 2023).
Ao receber a presidência temporária do G20
14
, em Nova Delhi, na Ín-
dia, em 10 de setembro de 2023, a qual exercerá entre 1º de dezembro de 2023
e 30 de novembro de 2024, o presidente Lula estabeleceu como prioridades
do grupo o enfrentamento as mudanças climáticas, a reforma da governança
internacional, o combate à fome, à pobreza e à desigualdade socioeconômica.
Segundo Lula, a partir do Plano Brasil Sem Fome
15
, que reuniu
iniciativas para reduzir a pobreza e a insegurança alimentar no país, ele
buscará como presidente do G20 lançar:
[...] uma Aliança Global contra a Fome. Esperamos contar com o
apoio e o engajamento de todos vocês para construirmos um mundo
cada vez menos desigual e mais fraterno, e nos reconhecermos, de
fato, como uma grande família, que não deixa ninguém para trás
14
O G20 reúne representantes de 19 países e da União Europeia, nações que representam cerca de 80% da
economia global.
15
O Plano Brasil Sem Fome articula 80 ações e programas dos 24 ministérios que compõem a Câmara
Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN). São 100 metas propostas, a partir de três
eixos de atuação: 1º) Acesso à renda, redução da pobreza e promoção da cidadania; 2º) Segurança alimentar
e nutricional: alimentação saudável, da produção ao consumo; e 3º) Mobilização para o combate à fome.
As ações vinculadas a agricultura familiar, como vimos aqui, estão no eixo de atuação número 2.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 41
(Chade, 2023).
Nessa direção, o lema da presidência do Brasil na frente do G20 será
construindo um mundo justo e um planeta sustentável”. Para tanto, Lula
alertou que
Nós não podemos deixar que questões geopolíticas sequestrem a
agenda de discussões das várias instâncias do G20. Não nos interessa
um G20 dividido. Só com uma ação conjunta é que podemos fazer
frente aos desafios dos nossos dias. Precisamos de paz e cooperação
em vez de conflitos (Chade, 2023).
O objetivo do presidente Lula é evitar que a agenda social seja
contaminada pelo debate geopolítico, especificamente da Guerra da
Ucrânia e/ou o início de uma nova Guerra Fria entre Estados Unidos e
China. Nesse sentido, na reunião do BRICS, ocorrida em agosto de 2023,
Lula disse que “Em poucos anos, retrocedemos em uma conjuntura de
multipolaridade benigna para uma que retoma a mentalidade obsoleta
da Guerra Fria e da competição geopolítica” (Retrocedemos [...], 2023).
Salientou ainda que a 15ª cúpula dos BRICS deveria incluir novos membros
ao bloco, como ocorreu, e ampliar o debate sobre agendas de cooperação,
entre elas: aprimoramento da governança global; recuperação econômica;
cooperação entre países em desenvolvimento; combate à fome; mudança
do clima; e transição energética (Retrocedemos [...], 2023).
A ênfase no combate à fome também foi anunciada na participação
do presidente Lula na Cúpula da Comunidade das Nações de Língua
Portuguesa (CPLP) na ilha de São Tomé e Príncipe que ocorreu no dia 27
de agosto de 2023 (O retorno [...], 2023). O mesmo ocorreu na Reunião
do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSAN)
16
da
CPLP (e Community [...], 2023).
16
“e Strategy, strongly supported by FAO, has as its overall goal to contribute to the eradication of hunger
and poverty taking into account a Human Right to Adequate Food approach by strengthening co-ordination
among Member States and improving food and nutrition security policies and program governance. For
this purpose, Member States have adopted as common principles of their individual and collective action
the construction and reinforcement of legal and institutional frameworks, public policy building and
strengthening, and the reinforcement of the need for strong budgetary frameworks. e regional action
is based on three axes: 1 - Strengthen food security and nutrition governance – Covers the creation and
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
42 |
Novamente, na abertura da 78ª Assembleia-Geral da ONU
(Organização das Nações Unidas), em 19 de setembro de 2023, Lula
criticou a desigualdade social e afirmou que vencê-la depende da vontade
política daqueles que governam o mundo. Reiterou que a maioria dos
desafios globais nascem da desigualdade. “A desigualdade está na raiz
desses fenômenos ou atua para agravá-los” (Martins; Teixeira; Sobrinho,
2023). Lula lembrou que
A fome, tema central da minha fala neste Parlamento mundial 20
anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão
dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã. O mundo
está cada vez mais desigual. Os dez maiores bilionários possuem
mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade [...]. Somente
movidos pela força da indignação poderemos agir com vontade e
determinação para vencer a desigualdade e transformar efetivamente
o mundo ao nosso redor. [...]. O imperativo moral e político de
erradicar a pobreza e acabar com a fome parece estar anestesiado.
Nesses sete anos que nos restam, a redução das desigualdades dentro
dos países e entre eles deveria se tornar o objetivo-síntese da Agenda
2030 (Martins; Teixeira; Sobrinho, 2023).
Lula lembrou que parte da solução da questão da desigualdade social
e da fome passa pelo desenvolvimento sustentável e pelo comprometimento
do mundo rico a efetivar a promessa de investimentos a fundo perdido
de US$ 100 bilhões por ano à transição ecológica, a qual foi realizada
durante a 21ª Conferência das Partes (COP21) da UNFCCC, em Paris
que resultou no Acordo de Paris.
A depender do compromisso e da vontade política do terceiro
governo Lula, o combate à fome e a desigualdade social no Brasil
estará alicerçado a um novo processo de desenvolvimento econômico
improvement of the existing multi-actor dialogue structures in each country, as well as the development of
governance structures at the Community level; Axis 2 - Promote access to food and improve livelihoods
of the most vulnerable groups - Cooperate to provide immediate support to the most vulnerable groups
in particular to women and children in a sustainable way in collaboration with United Nations specialized
agencies; and Axis 3 - Increasing the internal food availability based on small producers – The goal
is to stimulate small farmers and fishermen to promote sustainable production models and increase the
importance of local diets” (The Community [...], 2023).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 43
inclusivo, ambientalmente sustentável, caracterizado por um movimento
de neoindustrialização alicerçado em mudança radical de paradigma
tecnológico. Lula parece ter retornado ao poder para atacar os gargalos
estruturais do país, evitando que o combate à fome retroceda na nossa
história.
Além disso, por meio de uma política externa assertiva 2.0 buscará
transbordar as novas experiências que surgirão deste novo projeto de país
para o mundo, visando amenizar a fome de 735 milhões de famintos do
planeta. A agroexportação brasileira agradece ... Vale a aposta!
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Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
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46 |
caPítulo 2
| 49
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iago LIMA
1
1 introDução
Os governos de Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-
2016), ambos do Partido dos Trabalhadores (PT), estavam empenhados
em fazer do Brasil um líder global na luta contra a fome. De fato, o Brasil
se tornou uma voz importante nesse campo sob o emblema do Programa
iago Lima, é Professor de Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba, Joao Pessoa, PB,
Brazil (tlima@ccsa.ufpb.br) ORCID ID: orcid.org/0000-0001-9183-3400.
Uma versão deste texto foi publicada em Lima, T. “Brazil’s humanitarian food cooperation: from an
innovative policy to the politics of traditional aid.” Agrarian South: Journal of Political Economy 10, no.
2 (2020): 249-274. doi: https://doi.org/10.1177/2277976020970771. Agradeço à Agrarian South por
autorizar a publicação desta versão em português.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
50 |
Fome Zero e um relevante fornecedor de cooperação internacional técnica
e humanitária no campo da segurança alimentar e nutricional (Leite;
Suyama; Waisbich; Pomeroy, 2014; Tambourgi, 2016). Este capítulo se
concentra na cooperação humanitária alimentar (2003-2016). O Brasil
havia doado alimentos para o exterior em ocasiões anteriores, mas uma
política institucionalizada de ajuda alimentar humanitária foi algo inovador
em sua história. A magnitude dessa política também era notável, uma vez
que o país se tornou um dos cinco maiores doadores para o Programa
Mundial de Alimentos (PMA), embora apenas por alguns anos.
Este capítulo tem dois objetivos principais: i) examinar porque o
Brasil desempenhou esse papel específico em assuntos humanitários; e ii)
contribuir para o entendimento sobre porque o fez de maneira controversa.
Se havia muitas maneiras de ser um protagonista nas questões de segurança
alimentar internacional, por que esses governos do PT escolheram doar
partes dos estoques de alimentos do Estado, quando especialistas consideram
que esse tipo de ajuda - chamada de “ajuda alimentar vinculada” - tem mais
desvantagens do que vantagens (Barrett; Maxwell, 2005; Clay; Stokke,
2000; Clapp, 2012)?
É altamente consensual que a ajuda alimentar internacional foi uma
pedra angular do segundo Regime Alimentar (1940-1970) (Friedmann,
1982; McMichael, 2013). A ajuda alimentar vinculada era usada para
desovar excedentes criados pelos complexos agroindustriais altamente
subsidiados - primeiro pelos EUA e depois também por outros países do
Norte - e era amplamente aceita pelos governos do Terceiro Mundo por
razões humanitárias, econômicas ou de projeto de desenvolvimento. No
entanto, a ajuda alimentar internacional perdeu centralidade com o declínio
do segundo Regime Alimentar. Muitos fatores parecem ter diminuído o
papel da ajuda alimentar desde a década de 1970: o desmantelamento
das estruturas do sistema de Bretton Woods (Friedmann, 2009), as
transformações do regime multilateral de comércio, as crises fiscais dos
países desenvolvidos, a profissionalização da assistência humanitária, as
reformas dos regimes de ajuda externa e de ajuda alimentar, o fim dos
imperativos estratégicos da Guerra Fria, entre outros (Barrett; Maxwell,
2005; Clapp, 2012; Lancaster, 2007). Em relação aos principais atores,
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 51
uma mudança notável é que, desde a década de 1990, doadores tradicionais
como Austrália, Canadá e União Europeia ‹desvincularam› sua ajuda
alimentar de seus próprios estoques de alimentos e começaram a comprar
alimentos nos mercados próximos às populações a serem assistidas (Clapp,
2012). Esse desvinculamento é em grande parte resultado desses fatores.
Os Estados Unidos, no entanto, continuam a doar uma quantidade
significativa de alimentos comprados em seu território nacional e a
entregá-los em navios dos EUA. Na verdade, os presidentes Bush Jr. e
Obama tentaram reformar o sistema para ‘desvincular’ a ajuda alimentar,
como fizeram os outros doadores tradicionais, mas foram bloqueados por
interesses protecionistas no Congresso (Diven, 2006; Lima; Dias, 2016).
Além dos EUA, outros países como Brasil, China, Índia, Rússia, Arábia
Saudita, África do Sul e Coreia do Sul surgiram como “novos doadores” nos
anos 2000 (Clapp, 2012). Todos eles foram receptores de ajuda alimentar
e agora tendem a fornecer ajuda alimentar em alimentos vinculados e in
natura a estrangeiros. A exceção, em ambos os casos, é a Arábia Saudita.
Nesse contexto, a análise da experiência brasileira mostra como algumas
dinâmicas relacionadas ao segundo Regime Alimentar ainda podem
sustentar a ajuda alimentar tradicionalmente vinculada canalizada pelo
PMA, ou seja, ajuda alimentar baseada em excedentes eventualmente não
vendáveis nos mercados regulares. O papel do PMA como um obstáculo à
política preferida do Brasil também é explorado neste artigo e uma avaliação
sobre a aproximação do país com aquela Organização Internacional está
disponível em outro capítulo deste livro (Lima; Santana, 2020).
No que diz respeito ao design de políticas, estudos sobre ajuda
alimentar internacional há muito criticam os potenciais efeitos negativos
das doações de comida para os países receptores, algo que surpreende
muitas pessoas. No entanto, está suficientemente documentado que a
ajuda alimentar pode desestruturar os mercados internos, gerar aumento
ou dependência de importações, produzir mudanças nas dietas locais etc.
(George, 1978; Portillo, 1987). Claro, a ajuda alimentar pode fazer a
diferença entre a vida e a morte em muitos casos e não deve ser demonizada
(Ziegler, 2013). Nesse sentido, discussões sobre como desenhar políticas
de ajuda alimentar mais eficientes do ponto de vista humanitário,
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
52 |
econômico e de desenvolvimento têm sido realizadas há décadas (Barrett;
Maxwell, 2005; Clapp, 2012; Clay; Stokke, 2000). A análise do processo
de formulação de políticas brasileiras mostra como a política doméstica
interferiu no design da política e demonstra as condições sob as quais
o Brasil acabou praticando uma política semelhante à dos doadores
tradicionais no segundo Regime Alimentar.
Por fim, este estudo de caso contribui para a compreensão da
política contemporânea de ajuda alimentar internacional, pois demonstra
por que o Brasil teve que se conformar com as práticas padrão do PMA.
Desde o início dos anos 2000, há um debate sobre o poder de atração das
instituições internacionais hegemônicas sobre as políticas e recursos dos
países doadores emergentes (Manning, 2006; Quadir, 2013; Smith, 2011;
White, 2011). Este capítulo mostra que, entre as razões para o Brasil se
tornar parceiro do PMA, estavam i) a falta de instrumentos domésticos
para realizar a política humanitária por si só e ii) o imperativo de participar
do sistema alimentar humanitário com os recursos disponíveis.
Esta pesquisa foi desenvolvida a partir de uma perspectiva pluralista
da análise de política externa (Hudson, 2007; Moravcsik, 1997). Investiguei
como três variáveis independentes – interesses, ideias e interações de atores
domésticos – mediadas por duas variáveis intervenientes – instituições e
processos políticos – moldaram a política externa (variável dependente).
Coletei evidências e informações sobre essas variáveis por meio de
fontes primárias, como memorandos oficiais e relatórios, leis, projetos
de lei e registros de debates parlamentares. Também conduzi entrevistas
semiestruturadas com agentes de diferentes níveis: desde os principais
formuladores de políticas até aqueles que as implementam diariamente;
com representantes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar
e Nutricional (CONSEA) e do PMA. Onze entrevistas ocorreram
pessoalmente, em Brasília, e duas por videoconferência. É importante
enfatizar que os entrevistados tinham opiniões diferentes sobre a política
em termos de protocolos, eficácia e entusiasmo. Portanto, a série de
entrevistas não pode ser classificada como tendenciosa a favor ou contra
a política. Na verdade, a maioria dos entrevistados refletiu criticamente
sobre o processo político, seus objetivos e resultados.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 53
Reuni informações secundárias de fontes de mídia e conduzi uma
revisão de literatura principalmente para formar o contexto e para traçar as
direções gerais da política externa brasileira. Embora haja muitos estudos
sobre a cooperação técnica do Brasil, não consegui encontrar nenhum artigo
que examinasse a formulação de políticas de ajuda alimentar internacional
em revistas acadêmicas.
O texto está organizado da seguinte forma: a seção 1 apresenta
números oficiais e conceitos relacionados à ajuda humanitária em alimentos
do Brasil. A seção 2 apresenta os principais atores, interesses e ideias
subjacentes à política. A seção 3 descreve três fases diferentes da formulação
de políticas durante o período de 2003 a 2016. A seção 4 analisa interesses,
ideias e instituições no processo de formulação de políticas. A última seção
apresenta algumas considerações sobre o papel do Brasil na ajuda alimentar
humanitária e seu futuro.
2 alguns números e conceitos Da ajuDa humanitária em
alimentos Do brasil
É muito difícil analisar sistematicamente os dados sobre a cooperação
humanitária brasileira (Tambourgi, 2016). Não existe um banco de dados
unificado, os relatórios das burocracias não são divulgados regularmente
e as metodologias podem diferir. O objetivo desta seção é apenas apontar
a mudança no tipo de alimentos doados ao longo do período com base
nos dados disponíveis. Essa mudança resultou do fracasso da política
social e da Cooperação Sul-Sul pretendidas, e na prevalência de políticas
tradicionais e formas de ajuda alimentar vinculada que privilegiaram o
grande agronegócio.
O modelo brasileiro de ajuda alimentar humanitária foi baseado
principalmente na doação de estoques públicos nacionais. Era uma forma
de ajuda alimentar vinculada
2
originalmente imaginada para conectar os
programas de segurança alimentar direcionados aos agricultores familiares
Para um debate sobre os prós e contras da ajuda alimentar vinculada, ver Barrett, Maxwell (2005), Clay e
Stokke (2000), Clapp (2012).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
54 |
no país com as necessidades humanitárias no exterior. No entanto, por
razões discutidas nas seções seguintes, a maior parte das doações acabou
vindo do agronegócio em larga escala.
Antes de apresentar alguns números oficiais, uma nota conceitual:
agricultor familiar’ e ‘agronegócio em larga escala’ são termos que podem
ser usados para descrever dois atores claramente distintos, mas que ainda
assim são imprecisos. A literatura é evidente sobre os diferentes estilos
de agricultura e as conexões extra-agrícolas que cada termo pode ter em
diferentes países (Schneider, 2014). Por exemplo, Niederle (2018) fornece
dados contemporâneos e exemplos dos diferentes tipos de pequenas e
grandes propriedades familiares e agronegócios e os utiliza para criticar a
abordagem homogeneizadora das perspectivas do Regime Alimentar. Além
disso, há diferentes discursos em disputa dentro e ao redor de cada termo
também (Cabral; Favareto; Mukwereza; Kojo, 2016).
Tendo em mente as tensões conceituais, usarei os termos
agricultor familiar’ e ‘agronegócio em larga escala’ para distinguir duas
alternativas gerais. Primeiro, agricultor familiar é a unidade que se
enquadra na Lei 11.326 de 2006 para fins de política pública. Deve ter
as seguintes características:
1) Não deter, em nenhuma capacidade, uma área maior do que
os quatro módulos fiscais; 2) Utilizar, predominantemente, a mão
de obra familiar nas atividades econômicas de seu estabelecimento
ou empresa; 3) Ter uma porcentagem mínima de renda familiar
proveniente das atividades econômicas do estabelecimento ou
empresa; 4) Dirigir o estabelecimento ou empresa com a família.
(Brasil, 2006).
A Lei também considera como agricultores familiares: extrativistas,
pescadores, piscicultores, trabalhadores florestais, quilombolas e povos
indígenas, sob certas especificações. Em segundo lugar, além desses
critérios legais, os formuladores de políticas entrevistados frequentemente
associam agricultores familiares aos assentados dos programas de reforma
agrária, que vêm de uma história de marginalização e de associação com
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 55
movimentos sem-terra (Fernandes, B., 2013). Em outras palavras, quando
me refiro a agricultores familiares, não tenho em mente aquelas unidades
de produção pequenas altamente capitalizadas, geridas sob princípios
corporativos e integradas aos complexos agroindustriais. Por outro lado,
por agronegócio em larga escala, quero dizer unidades que produzem
monoculturas em grandes extensões de terra, usando técnicas intensivas
em capital e principalmente trabalhadores contratados.
Vamos aos números oficiais. A principal fonte da ajuda alimentar
brasileira eram os estoques do Estado. Quase todos eles vinham da instituição
pública chamada Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB).
Uma parte residual vinha dos Ministérios da Saúde, do Desenvolvimento
Social e da Reforma Agrária (Fernandes, A., 2013). Os alimentos doados
até 2010 eram principalmente compostos por grãos e alimentos comerciais
e industrializados diversificados que já estavam nos estoques públicos para
emergências nacionais (CONAB, 2011)
3
. Note-se que até 2010 arroz e
feijão não estavam na lista e o milho in natura era uma pequena parte das
doações. A partir de 2011, os dados mostram que feijão, milho e arroz se
tornaram os únicos alimentos doados (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada [IPEA], Agência Brasileira de Cooperação [ABC], 2016). Foi
quando o Brasil se tornou um dos cinco maiores doadores do mundo.
O Brasil também praticava a ajuda alimentar desvinculada, ou seja,
comprava alimentos no exterior para atender a emergências humanitárias
no exterior (Ministério das Relações Exteriores [MRE], 2009). No
entanto, o orçamento do Ministério das Relações Exteriores (MRE)
era muito limitado para tornar isso uma prática padrão. Além disso, o
objetivo principal era vincular os agricultores familiares brasileiros às
populações internacionais famintas, e isso deveria ser feito por meio da
doação de alimentos provenientes de estoques nacionais compostos por
alimentos adquiridos de agricultores familiares. No entanto, além do
orçamento reduzido para ações humanitárias, a legislação brasileira tornava
extremamente difícil para o MRE comprar e entregar alimentos do exterior.
Essas limitações, como veremos mais adiante, foram fundamentais para as
parcerias entre o Brasil, o PMA e os governos estrangeiros.
Entrevista ao autor: funcionário da CONAB 1 e CONAB 2.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
56 |
O valor gasto com frete para o transporte de alimentos e
medicamentos em 2011-2013 pelo Brasil e seus parceiros (PMA e governos
estrangeiros) totalizou R$ 319,1 milhões (USD 136,3 milhões), dos quais
R$ 3 milhões (USD 1 milhão) foram pagos pelo MRE e R$ 97 mil (USD
33,7 mil) pelo Ministério da Saúde. Em comparação, o valor monetário
dos alimentos doados totalizou R$ 280,6 milhões (USD 97,6 milhões)
e todas as contribuições financeiras brasileiras para agências e operações
humanitárias somaram R$ 77,3 milhões (USD 26,9 milhões) (IPEA;
ABC, 2016).
Críticos da ajuda alimentar vinculada geralmente argumentam que
muito dinheiro é gasto com frete. Se os alimentos fossem adquiridos em
mercados mais próximos das populações-alvo, o dinheiro economizado
com o transporte poderia ser convertido em mais alimentos (Clay; Riley,
2005; Clapp, 2012). No entanto, se os países em desenvolvimento
doadores podem ter limitações orçamentárias para o frete, podem ter
muitos alimentos disponíveis para doação. Especialistas, como Ziegler
(2013), argumentam que deixar esses alimentos fora do circuito
humanitário seria desumano.
O PMA (2013, p. 12) relatou que o Brasil se tornou um dos cinco maiores
doadores de alimentos in natura em 2012, junto com os EUA, Canadá, Japão
e China, respondendo por 70% das entregas de ajuda alimentar do PMA.
Os EUA são historicamente o maior contribuinte desde a Segunda Guerra
Mundial. Em 2001, por exemplo, doou 6 milhões de toneladas de alimentos
para o PMA, enquanto o Japão, o segundo maior doador, contribuiu com 1
milhão de toneladas, seguido pela China (450 mil toneladas) e Canadá (300
mil toneladas). Em 2012, os EUA reduziram drasticamente suas contribuições
para 2,2 milhões de toneladas, mas ainda eram muito maiores do que as do
Japão (0,5 milhão de toneladas). Naquele ano, o Brasil teria contribuído com
334.000 toneladas, tornando-se assim o terceiro maior doador de alimentos
in natura do PMA (Figura 1)
4
. Esses dados diferem consideravelmente dos
O “2012 Food Aid Flows” foi o último relatório deste tipo emitido pelo PMA. O PMA afirma em seu
site (https://www1.wfp.org/fais) que, “para refletir melhor a mudança global da ajuda alimentar para a
assistência alimentar”, o “PMA descontinuou seu Sistema Internacional de Informação sobre Ajuda
Alimentar (INTERFAIS) e a coleta de dados de fluxo de ajuda alimentar global”. Portanto, não consegui
encontrar números comparativos das contribuições de alimentos em espécie para o PMA após 2012.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 57
registros oficiais brasileiros de cooperação humanitária, que relatam a doação
de 309.312 toneladas de alimentos de 2011 a 2013 e 29.627 toneladas de
2014 a 2016 (IPEA, ABC, 2016, 2018
5
). No entanto, fica claro que houve um
pico nas contribuições.
Figura 1 - Terceiro, quarto, quinto e sexto maiores doadores para o PMA,
2001-2012.
Fonte: PMA (2013)
3 o Programa fome Zero: a estratégia De Dois caminhos e a
necessiDaDe De cooPeração internacional
A política brasileira de ajuda alimentar internacional não pode ser
compreendida fora do escopo do Programa Fome Zero (PFZ) (Aranha,
2010; Tomazini; Leite, 2016). As raízes do PFZ estavam profundamente
relacionadas a movimentos sociais, pesquisadores acadêmicos e outros
atores reunidos em torno da agenda do PT (Albuquerque, 2013).
Embora o PFZ fosse uma proposta de estratégia de política nacional, seus
princípios eram considerados de interesse universal, como um Direito
Humano. Para realizar esse Direito Humano, qualquer governo deveria
ter as ferramentas apropriadas e espaço político para intervir no mercado,
desafiando assim o contexto internacional neoliberal dominante (Graziano
Relatórios oficiais anteriores não mostram números em toneladas de doações de alimentos em espécie.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
58 |
da Silva, 2009). Nesse sentido, a cooperação internacional (incluindo a
humanitária) era vista - não exclusivamente - como uma estratégia para
reunir apoio estrangeiro para políticas estatais intervencionistas. O apoio
de governos estrangeiros, ONGs, Organizações Internacionais e outras
sociedades civis fortaleceria o poder brando (soft power) do Brasil para
promover uma nova visão de combate à fome globalmente. A eleição e
reeleição dos brasileiros José Graziano da Silva para o cargo de Diretor-
Geral da FAO (2012-2015/2016-2019) e Roberto Azevêdo para Diretor-
Geral da OMC (2013-2017/2018-2021) são evidências do softt power
que o Brasil acumulou no campo agroalimentar. O caso de Graziano é
de extrema importância, pois ele foi uma das mentes principais por trás
do PFZ antes do PT assumir a Presidência em 2002 e, uma vez que Lula
assumiu o cargo, Graziano foi o Ministro encarregado de colocar o PFZ
em ação (janeiro de 2003 a janeiro de 2004).
O PFZ tinha uma estratégia de dois caminhos (Brasil, 2013). Um
deles era promover as chamadas “políticas estruturantes”, como o Programa
de Aquisição de Alimentos (PAA), por meio do qual o governo compra
produtos de agricultores familiares para, por exemplo, servir refeições
em hospitais e escolas (Grisa et al., 2010; Peraci; Bittencourt, 2010). As
políticas estruturantes eram necessárias para que agricultores e comunidades
pobres tivessem mais resiliência, renda e também para diversificar o
suprimento local de alimentos por razões nutricionais. O outro caminho
eram as políticas emergenciais para resolver a insegurança alimentar
imediata das populações vulneráveis. Programas como o Bolsa Família e
o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) são exemplos que
combinam ambas as estratégias (Takagi, 2010). Eles oferecem maneiras
imediatas de acessar alimentos fornecendo dinheiro e refeições escolares,
enquanto promovem a educação básica – uma política estruturante. O
primeiro exige que as mães mantenham as crianças na escola e com suas
vacinas atualizadas (outra política estruturante) para receber a bolsa, e o
segundo serve refeições preparadas com alguns ingredientes adquiridos de
agricultores familiares locais na escola. A aquisição estável de alimentos de
agricultores familiares locais por meio de mercados institucionais também
é uma política estruturante.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 59
Tanto os governos de Lula quanto os de Dilma trabalharam para
consolidar o PFZ em leis e regulamentos. A Lei 11.346 de 2006 criou
o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. No que diz
respeito à cooperação internacional, o artigo 6 estabeleceu que “o Estado
brasileiro deve se empenhar em promover cooperação técnica com países
estrangeiros, contribuindo assim para a realização do direito humano à
alimentação adequada em nível internacional”. O Decreto 7.272 de 2010
estabelece que a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
tem como um de seus “objetivos específicos (...) - [a] incorporação na
política do Estado do respeito à soberania alimentar e a garantia do direito
humano à alimentação adequada, incluindo o acesso à água, e promovê-
los no âmbito das negociações e cooperação internacionais”. O mesmo
decreto estabelece que a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e
Nutricional (CAISAN), junto com o CONSEA
6
, deverá incluir no primeiro
Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional as diretrizes para
assistência humanitária internacional e cooperação Sul-Sul em segurança
alimentar e nutricional”.
Nesse contexto, a Coordenação-Geral de Ações de Combate à
Fome (CGFome) do MRE adotou o conceito de “cooperação humanitária
estruturante”. Fundamentalmente, isso significava que a doação de
alimentos deveria fazer parte de algum objetivo de construção de estrutura
sempre que possível. Geralmente, as ações humanitárias são medidas
paliativas destinadas a aliviar uma catástrofe urgente. No entanto, a
intenção da CGFome era fornecer recursos que pudessem também
construir resiliência local. Por exemplo, o Brasil doou sementes de verduras
em alguns casos, para que as pessoas pudessem cultivar parte de sua própria
comida, mesmo em campos de refugiados. Nesse sentido, a aquisição de
alimentos próximos aos desastres também poderia ser uma cooperação
humanitária estruturante se ajudasse a construir resiliência nos mercados
locais estrangeiros.
O CONSEA É um comitê assessor ao presidente e um dos principais pilares do Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional. é composto por 1/3 de representantes do governo e 2/3 de representantes
da sociedade civil. O CONSEA foi reativado pelo presidente Lula em 2003 e extinto pelo presidente
Bolsonaro em 1º de janeiro de 2019. Foi novamente reativado pelo governo Lula em 2023. A CAISAN é
composto exclusivamente por representantes do governo. Sua missão é desenhar, coordenar e monitorar
políticas públicas inspiradas nas diretrizes do CONSEA.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
60 |
O Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi
publicado pela primeira vez em 2011 (CAISAN, 2011, p. 106). Entre
suas prioridades estavam: i) elaborar um quadro jurídico sobre a prestação
de cooperação humanitária internacional pelo Brasil; ii) expandir ações
que protegem, promovem e fornecem o Direito Humano à Alimentação
Adequada em operações humanitárias internacionais por meio de ações
de emergência, complementadas por iniciativas destinadas a contribuir
para a autonomia e a soberania alimentar de países estrangeiros e; iii)
promover a assistência humanitária internacional, por meio da doação
de alimentos provenientes dos estoques públicos nacionais localizados
no Armazém Humanitário Internacional, a países vitimados por eventos
socioambientais adversos.
Vale ressaltar que, em 2011, a ajuda humanitária alimentar já se
encontrava em níveis históricos. No entanto, o Plano refletiu a necessidade
crucial de um marco regulatório adequado. O CAISAN relatou em 2013
que estava “na fase final de elaboração de um quadro regulamentar para
a prestação de assistência alimentar internacional” (CAISAN, 2013, p.
104), mas não encontrei esse novo quadro. Na verdade, a próxima seção
do trabalho aponta que a falta desse marco regulatório foi crítica para o
desenho da política ao longo dos anos.
Tanto um diplomata da CGFome, quanto um gerente da CONAB
afirmaram em entrevista que a espinha dorsal da política alimentar
humanitária era doar produtos adquiridos de agricultores familiares
brasileiros sempre que possível. A CONAB deveria adquirir alimentos
por meio do PAA ou usar os estoques do PAA. Fazendo isso, ambos os
servidores afirmaram que uma população estrangeira receberia ajuda
enquanto apoiava os agricultores familiares no Brasil. Isso seria uma
cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento, proporcionando benefícios
para ambas as partes. Ou seja, ao contribuir com parceiros estrangeiros,
seria legítimo para um doador em desenvolvimento trabalhar em seus
próprios problemas de pobreza e alimentação
7
(Milani, 2012). Além disso,
Na cooperação para o desenvolvimento Norte-Sul, as convenções internacionais proíbem o país
desenvolvido de obter objetivamente vantagens da cooperação com países não desenvolvidos.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 61
o PFZ seria plenamente contemplado: a estratégia de dois caminhos mais
a cooperação internacional.
No entanto, a realidade se revelou muito diferente. Desde a intenção
original até o resultado geral da política, a falta de um marco regulatório
adequado levou a política na direção das operações tradicionais de ajuda
alimentar, ou seja, a doação de commodities adquiridas dos excedentes de
agricultores em grande escala. É importante ressaltar que nem toda a ajuda
alimentar provinha de agronegócios em grande escala. No entanto, a maior
parte dela, que consistia em arroz e uma grande quantidade de milho,
vinha dessas fontes. As doações de feijão e outros alimentos provavelmente
vinham de agricultores familiares e cooperativas. O leite em pó vinha de
cooperativas de agricultores
8
.
É importante destacar que a pesquisa não encontrou um interesse
original do governo ou do Congresso em apoiar as exportações de
agronegócios em grande escala, nem um interesse de agronegócios em
grande escala em se livrar de excedentes por meio de ajuda alimentar
inicialmente. No caso brasileiro, e ao contrário das principais razões para
a ajuda alimentar no segundo Regime Alimentar (Friedmann, 1982), a
origem estava enraizada no fomento à agricultura familiar. Em termos
de formulação de políticas, os burocratas foram os principais atores,
especialmente a CGFome do MRE. A próxima seção, no entanto,
demonstra que o apoio da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA)
9
, que
representa em grande parte o agronegócio em grande escala no Congresso,
foi fundamental para o Brasil se tornar um grande protagonista nos
assuntos humanitários.
Essas cooperativas não eram compostas por assentados pobres da reforma agrária. Alguns deles estavam bem
estabelecidos no negócio de laticínios. Entrevistas com gerentes da CONAB e com diplomata do MRE.
A Frente Parlamentar Agropecuária é popularmente conhecida como “Bancada ruralista”. Trata-se de um
grupo institucionalizado de congressistas – estimados entre 120 e 200 – que geralmente defendem os
interesses de latifundiários, fazendeiros e pecuaristas [...]. Muitos membros são eles próprios detentores de
propriedades significativas, enquanto outros estão ligados ao lobby agrícola ou a interesses fundiários ricos
e poderosos” (Welch, 2017, p. 1). Para um exame das alianças e contradições do PT com o FPA, ver Welch
(2017), Leite (2016) e Sauer e Meszáros (2017).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
62 |
4 a luta Pela institucionaliZação e a Política Do Possível
O período de 2003 a 2016 pode ser dividido em três fases diferentes
nas quais a CGFome lutou por um marco regulatório adequado para
implementar sua política preferida. A análise evidencia que a política foi um
processo de “ajustar enquanto faz” em vez de uma política rigorosamente
planejada posta em prática com os recursos financeiros e institucionais
apropriados. Para usar um antigo ditado brasileiro - foi “consertar o pneu
com o carro andando”. Esta seção também mostrará a centralidade da
CGFome no processo.
4.1 2003-2006
Duas dinâmicas em diferentes níveis de análise são fundamentais. A
primeira e mais geral foi a abertura do processo de formulação de políticas
no nível federal para atores ligados à agricultura familiar durante o mandato
de Lula (Leite, 2016). A abrangente agenda social de Lula teve importantes
apoiadores e constituencies na reforma agrária e nos movimentos de
agricultura familiar, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). O presidente Lula concedeu acesso institucional de alto nível
a esses grupos por meio de canais relevantes (Albuquerque, 2013; Brasil,
2013). O mais importante foi o Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA), criado em 1999 e fortalecido após 2003. Sob a liderança de Lula,
o MDA passou a fazer parte do processo de formulação de políticas de
comércio exterior, com a missão de defender os interesses de agricultores
familiares e populações rurais em negociações internacionais. O todo-
poderoso Ministério da Agricultura – que representa principalmente o
agronegócio em grande escala – teria um rival agrário no governo federal
pela primeira vez (Fernandes, I., 2010). O CONSEA foi instituído como
um comitê consultivo ao Presidente para assuntos relacionados ao Direito
Humano à Alimentação Adequada e Nutrição, e tinha o mandato de
monitorar e emitir pareceres sobre negociações internacionais.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 63
Embora Lula e Dilma tenham fornecido incentivos relevantes para
a agricultura familiar, ambos os presidentes não avançaram na agenda de
reforma agrária com redistribuição de terras. Ambos também estavam
profundamente alinhados com os interesses do agronegócio em grande
escala (Leite, 2016; Sauer; Meszáros, 2017; Welch, 2017)
10
. No entanto,
nos governos do PT, atores comprometidos com a agricultura familiar
tiveram acesso institucional à mesa de formulação de políticas, incluindo
a do MRE. Criada em 2004, a CGFome do MRE foi responsável por
defender e promover no exterior políticas inspiradas no PFZ. Esta foi
uma inovação institucional, uma vez que a tradição e o espírito do MRE
estão mais associados às classes urbanas mais ricas e ao agronegócio do
que aos pobres rurais
11
. Isso nos leva à segunda dinâmica mencionada
anteriormente: o papel do coordenador da CGFome, Milton Rondó.
Seu papel individual foi de importância única para toda a trajetória da
CGFome e, portanto, para a política alimentar humanitária brasileira
no período coberto por esta pesquisa. Rondó foi convidado a integrar os
altos escalões do MRE após Lula assumir a Presidência. Ele tinha boas
relações com Samuel Pinheiro Guimarães, o Secretário-Geral do MRE,
uma posição abaixo apenas do Ministro. Foi a proposta de Rondó instalar
uma Coordenação-Geral de Ações de Combate à Fome (CGFome), um
órgão que seria o braço internacional do Programa Fome Zero no MRE.
A CGFome foi formalmente criada em 1º de janeiro de 2004 e inserida
no topo do organograma do MRE. Essa posição incomum deu a CGFome
acesso direto ao Secretário-Geral do MRE, Guimarães, e ao Ministro Celso
Amorim. Rondó ele próprio tinha algum acesso direto aos presidentes Lula
e, em menor medida, Rousseff.
Alguns eventos críticos contribuíram para moldar o papel da
CGfome na cooperação humanitária de alimentos: o golpe de estado em
2004 no Haiti e a Guerra no Líbano em 2006, quando muitos brasileiros
10
“O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento tem sido historicamente um espaço de negociação,
formulação e implementação de políticas públicas voltadas aos interesses e necessidades específicas da
agricultura comercial. O objetivo fundamental do Ministério do Desenvolvimento Agrário tem sido a
criação de programas para agricultores familiares, assentados de projetos de reforma agrária, comunidades
tradicionais e ribeirinhas, extrativistas e assim por diante – algo relativamente recente no caso brasileiro
(Leite, 2016, p. 67).
11
Entrevistas com diplomatas e estagiários da CGFome.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
64 |
tiveram que ser evacuados. O MRE percebeu que o Brasil não tinha uma
estrutura adequada para lidar com operações humanitárias em grande
escala (Amorim, 2016). Em 2004, o Brasil já coordenava a operação de
manutenção da paz da ONU no Haiti (MINUSTAH), o que naturalmente
impunha obrigações em relação à ajuda humanitária ao povo haitiano. No
entanto, o trabalho humanitário – não apenas com alimentos – da CGFome
realmente começou com as enchentes no Equador, Bolívia e Suriname na
primeira metade de 2006 (Fernandes, 2013a). Essas experiências eram muito
novas para os diplomatas que as gerenciavam. Eles não tinham treinamento
ou expertise prévios em operações humanitárias em grande escala, e os
protocolos não estavam disponíveis. Isso quer dizer que, por um lado,
os funcionários brasileiros e a CGFome fizeram um importante trabalho
humanitário por improvisação. Por outro lado, improvisar dificilmente é a
melhor maneira de fornecer assistência humanitária. Como parte das lições
aprendidas sobre a falta de coordenação intragovernamental para formular
e implementar políticas humanitárias, a CGFome conseguiu criar uma
Força-Tarefa Interministerial de Assistência Humanitária Internacional
(GTI-AHI) por meio de Decreto Presidencial de 21 de junho de 2006.
À medida que a estrutura burocrática e os procedimentos avançavam
nesse período, ficou claro que o governo precisava de um marco regulatório
adequado para a cooperação humanitária internacional. Na verdade,
não havia legislação a respeito, o que representava um grande obstáculo
para qualquer tentativa de resposta rápida a emergências. A Constituição
brasileira proíbe a doação de qualquer bem público, a menos que
explicitamente permitido por lei ou por Medida Provisória. Ambos devem
passar pelo Congresso, mas esta última é considerada «muito urgente» de
acordo com os procedimentos legislativos e recebe prioridade no Congresso,
enquanto o primeiro não tem prazo algum para tramitar. Nesse sentido,
a CGFome fez dois movimentos importantes. Primeiro, convenceu o
Presidente Lula a apresentar o projeto de lei 737 ao Congresso em 2007.
Segundo, pela primeira vez o MRE recebeu uma linha orçamentária para
ações humanitárias. Os recursos permitiram a CGFome fazer parte de
muitas operações humanitárias no exterior.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 65
4.2 2007-2010
O projeto de lei 737
12
tinha como objetivo tornar as ações do
governo mais ágeis e adequadas para realizar ações de emergência. O artigo
1º daria ao governo a
permissão para usar ou doar bens móveis, incluindo alimentos
do estoque público do Governo Federal, bem como aqueles que
compõem o patrimônio dos órgãos ou entidades da administração
pública federal [...], bem como a doação de recursos financeiros.
Em outras palavras, o ambicioso projeto pretendia liberar o governo
da edição de uma Medida Provisória (MP) ou da apresentação de um
projeto de lei ao Congresso sempre que quisesse doar bens públicos para
fins humanitários internacionais.
A demanda pelo projeto pode ser exemplificada pelo caso da MP444
de 2008, que disponibilizou até 45.000 toneladas de arroz, 2.000 toneladas
de leite em pó e 500 quilos de sementes de verduras e legumes para Cuba,
Haiti, Honduras e Jamaica, em resposta aos desastres climáticos daquele
ano. Publicada em 29 de outubro de 2008, a MP444 foi convertida no
projeto de lei 11.881 e finalmente instituída como lei em 23 de dezembro
de 2008. Se a MP não fosse convertida em lei, seus efeitos cessariam após
60 dias de sua publicação, o que significaria que o governo estaria impedido
de enviar mais ajuda humanitária, a menos que outra MP ou uma lei fosse
aprovada pelo Congresso. O timing é um desafio para planejar assistência
adequada às populações afetadas por desastres naturais súbitos. No Haiti,
por exemplo, o furacão Hanna deixou centenas de mortos e centenas de
milhares necessitados de assistência humanitária no início de setembro de
2008, mas a ajuda brasileira só estava disponível em dezembro.
É importante observar que a Lei 11.881 determinava que a CONAB
promovesse o transporte dos alimentos para os destinos finais usando
seus próprios recursos ou por meio de parcerias. O governo tentou obter
12
A íntegra dos autos e documentos estão disponíveis no banco de dados da Câmara dos Deputados. “PL
737/2007 Histórico de Pareceres, Substitutivos e Votos”, em https://goo.gl/N5GUj5.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
66 |
financiamento federal para o transporte no projeto de lei 737, mas não
teve sucesso. Posteriormente, o Congresso proibiu explicitamente o
governo de pagar pelo transporte internacional de alimentos brasileiros.
Isso representou um grande obstáculo para os planos da CGFome, pois
limitou muito sua autonomia na implementação da política.
Enquanto a Lei 11.881 era específica para atender alguns casos, o
projeto de lei 737 era um quadro geral. Introduzido em abril de 2007, o
projeto passou lentamente por quatro comissões legislativas
13
diferentes
nos três anos seguintes. Durante esse processo, a oposição considerou que
o projeto seria um “cheque em branco” inadequado para o governo e que
na verdade poderia disfarçar a ajuda a governos como Cuba, Venezuela
e Bolívia
14
. Em maio de 2010, o Deputado Efraim Filho apresentou um
recurso apoiado por pelo menos 51 deputados exigindo que o projeto
fosse examinado pelo plenário da Câmara antes de ir para o Senado. Desde
então, o projeto 737 ficou paralisado. Segundo Leite, Suyama, Waisbich e
Pomeroy (2014, p. 57):
A oposição não se concentrou na doação de alimentos em si, mas
em: (1) ser um instrumento para afirmar a imagem internacional
do Presidente Lula e sua aliança com países cujos governos foram
considerados como não respeitadores dos direitos humanos
domésticos; (2) ser um instrumento para promover programas
compensatórios no exterior, em detrimento de outras políticas
de inclusão social sustentável (como saúde e educação); (3)
ser decidido pelo Executivo; (4) a possibilidade de direcionar
mercadorias apreendidas no país para assistência humanitária; e (5)
a quantidade e tipo de grãos que seriam destinados a outros países,
tendo em mente seus impactos nos preços nacionais.
13
O deputado Fernando Coruja (PSC/SC) argumentou, em novembro de 2008, que os estoques públicos
de arroz eram “extremamente baixos se comparados com a série histórica de estoques públicos de arroz
da Conab de 1987 a 2008” e que os preços elevados atingiriam os consumidores (íntegra disponível em
https://bit.ly/2FKjx3r). A seção 3.3 mostrará uma situação contrastante – baixo preço do arroz, grandes
estoques públicos e uma grande colheita esperada – que levaria os legisladores da Frente Parlamentar
Agrícola a aprovar a doação de estoques públicos para fins humanitários em 2011.
14
“Oposição: projeto das doações humanitárias é um cheque em branco”. Câmara Notícias, April, 22, 2010,
Disponível em: https://bit.ly/2FCZR0d. Acesso em: 23 out. 2023.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 67
Três fatores contextuais devem ser observados. Primeiro, os
presidentes Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia) costumavam
ser manchetes nacionais por causa de suas visões socialistas / bolivarianas
do mundo. Além disso, a diplomacia amigável do presidente Lula em
relação aos vizinhos sul-americanos irritou a oposição, como no caso da
nacionalização do gás na Bolívia em 2006, que expropriou propriedades
da Petrobras; a negociação em 2009 para elevar as tarifas pagas ao Paraguai
pela energia de Itaipu; e o fortalecimento da Aliança Bolivariana das
Américas liderada pela Venezuela. Em segundo lugar, o preço do arroz
estava alto e os estoques estavam baixos. Embora não haja evidências
suficientes para afirmar que esse fator foi uma condição necessária para o
destino do projeto, a reversão deste quadro em 2011 o torna uma variável
interveniente relevante posteriormente. Em terceiro lugar, ocorreu uma
mudança organizacional crítica no MRE. Guimarães deixou seu cargo em
outubro de 2009, sendo substituído pelo diplomata de carreira Antonio
Patriota. Rondó e Patriota não tinham o mesmo tipo de relação próxima.
Isso resultou em alguma perda de influência da CGFome no MRE e nas
relações interministeriais. No entanto, a CGFome ainda tinha os ouvidos
de Amorim, mas isso mudaria em 2011, quando Patriota o substituiu
15
.
Um último ponto deve ser observado para este período: o Presidente
Lula não colocou seu peso na batalha pelo projeto de lei 787. Por quê?
Foi um sinal da baixa relevância que o governo atribuiu à política? Ou o
projeto de lei foi um produto do ativismo da CGFome, não totalmente
apoiado pelo núcleo do governo? São questões que esta pesquisa não
conseguiu avançar.
4.3 2011-2016
Até 2009, a maioria das doações de alimentos brasileiros eram
bilaterais e autorizadas por MPs. Após isso, trabalhar com o Programa
Mundial de Alimentos (PMA) se tornou a prática regular. Muitos fatores
contribuíram para isso. Um deles foi a restrição legal de pagar pelo
15
Entrevista com diplomatas e funcionários da CGFome.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
68 |
transporte internacional. Outro foi a conveniência de usar a logística
e habilidades especializadas do PMA, o que contrastava com a falta de
expertise brasileira
16
. Um terceiro fator foi o próprio interesse do PMA
em trazer o Brasil para sua base de doadores
17
(Fernandes, 2013a; Lima;
Santana, 2020).
Três funcionários da CGFome comentaram que se o governo
tivesse capacidade de pagar pelo transporte internacional, o Brasil não se
vincularia tanto à cooperação humanitária ao PMA. As normas do PMA
restringiam as preferências da CGFome em termos de diplomacia pública
e política doméstica. Por exemplo, os requisitos do PMA em termos
de embalagem tornavam praticamente inviável o auxílio alimentar de
agricultores familiares, e os protocolos de publicidade limitariam algumas
ações destinadas a capitalizar a imagem brasileira. Além disso, os preços
cobrados pelo PMA pela logística eram mais altos do que os preços
comerciais. Apesar disso, o fato é que a parceria com o PMA foi crucial
para a ajuda alimentar humanitária brasileira.
Outra questão que precisa ser abordada é a sequência de leis
que tornaram essa política possível. No final de seu segundo mandato,
o presidente Lula publicou a MP519 em 30 de dezembro de 2010. O
memorando que acompanha a MP519, elaborado em julho de 2010,
solicitava 300.000 toneladas de milho, 100.000 toneladas de arroz e feijão,
10.000 toneladas de leite em pó e 1 tonelada de sementes de verduras e
legumes. A MP519 foi convertida no projeto de lei 12.429 no primeiro
semestre do mandato de Rousseff e aprovada em junho daquele ano
18
.
Note-se que a aprovação rápida contrastou com a paralisia do projeto 737.
Por quê? Desta vez, a CGFome contou com o apoio ativo da oposição do
governo e da Bancada Ruralista.
16
Entrevista com funcionários da CGFome.
17
Entrevista com funcionários do PMA.
18
Os documentos disponíveis para esse processo legislativo na Câmara dos Deputados e no Senado podem ser
encontrados, respectivamente, em: CÂMARA DOS DEPUTADOS. “Histórico de Pareceres, Substitutivos
e Votos - MPV 519/2010”, Disponível em: https://goo.gl/C1B4VP. SENADO FEDERAL. Acesso em: 23
out. 2023. “MEDIDA PROVISÓRIA nº 519, de 2010”, Disponível em: https://goo.gl/qD3qAs. Acesso
em: 23 out. 2023.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 69
Em primeiro lugar, o projeto de lei 12.429 foi analisado por uma
comissão conjunta da Câmara dos Deputados em maio de 2011, tendo o
Deputado Luis Carlos Heinze (PP/RS) como relator
19
. Surpreendentemente
para um político de extrema-direita, seu relatório foi contra três emendas que
buscavam priorizar o atendimento a emergências brasileiras em detrimento
das estrangeiras. Heinze aprovou a estrutura orçamentária e financeira da
proposta, mas emendou as quantidades de alimentos demandadas pela
CGFome. A justificativa do deputado é de extrema importância:
Finalmente, como a presente Medida Provisória nº 519 foi
editada em 2010, um período em que não se observou preços
muito baixos para o arroz no mercado, causando perda de renda
para os agricultores, e os altos preços do milho, que afetam
significativamente a produção de suínos e aves, acredito ser
adequado, oportuno e necessário ajustar as quantidades a serem
doadas desses produtos. Ou seja, reduzir o milho de 300 para 100
mil toneladas e elevar o arroz de 100 para 500 mil toneladas.
Heinze também destacou que “o saco de arroz é avaliado em R$
18,00 (USD 9,62), enquanto o preço mínimo é de R$ 25,80 (USD
13,79) e seu custo é de R$ 29,90 (USD 15,98)”. Como se esperava uma
grande colheita para o ano seguinte, a situação seria ainda pior. Portanto,
ele argumentou, “é natural que se ajuste a doação de estoques públicos a
outros países com estratégias de suporte de preços para produtos agrícolas
no mercado interno”. Os argumentos de Heinze demonstram alguns dos
perigos de vincular a ajuda alimentar aos preços e colheitas do mercado
nacional, pois esse tipo de volatilidade limita o planejamento humanitário
internacional de longo prazo (Clapp, 2012).
Outros legisladores apresentaram três emendas. i) O Deputado
Miro Teixeira (PDT-RJ) pediu um limite de 12 meses, que foi aceito por
Heinze. Heinze e Teixeira concordaram que, como a colheita seria apenas
em fevereiro de 2012, o prazo de 12 meses seria adequado. ii) Teixeira
também exigiu uma emenda - então aceita por Heinze - para garantir que a
19
Heinze é conhecido por suas posições de extrema direita. Foi eleito o racista do ano de 2014 pela ONG
Survival. Disponível em: https://bit.ly/2Wsb0I2. Acesso em: 23 out. 2023.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
70 |
ajuda internacional não comprometesse a assistência eventual no território
nacional (anteriormente considerada “desnecessária” por Heinze). Então,
iii) o que deveria ser muito polêmico se tornou tranquilo: o Deputado
Vicente Cândido (PT/SP) pediu a inclusão de Cuba na lista de receptores,
e Heinze aceitou sem debate. O projeto foi aprovado pela Câmara dos
Deputados em 26 de maio.
O projeto de lei 12.429 foi enviado a uma comissão do Senado e
a Senadora Ana Amélia (PP/RS) emitiu um relatório positivo em 31 de
maio
20
. O Senado aprovou seu relatório e o projeto se tornou a Lei 12.429
em 20 de junho de 2011 – cerca de um ano depois de o projeto 737
ter sido basicamente deixado de lado. Não houve votação nominal e é
importante notar que fornecer assistência a países socialistas/bolivarianos
era algo fortemente combatido no projeto de lei 737, mas a lei de 2011
fornecia autorização explícita para ajudar Cuba, Bolívia e Coreia do Norte.
A lei não era o que a CGFome originalmente havia planejado. No
entanto, era a política possível. Como Rondó disse, era isso ou se abster
de ajudar milhares de pessoas famintas desesperadas no exterior
21
. Quanto
a avaliação do CONSEA, a lei foi um ato bem-vindo de solidariedade
internacional e o Conselho aparentemente não estava preocupado se ela
privilegiada agricultores de grande escala
22
.
Outra questão que afetou os planos da CGFome estava relacionada
aos procedimentos técnicos relacionados à preparação da ajuda alimentar.
Dependendo do produto, o PMA só envia alimentos minimamente
processados, mas os estoques da CONAB eram compostos por alimentos
in natura. Como o Congresso não concedeu orçamento para processar os
alimentos, a solução do governo foi realizar uma “operação de compra-venda
simultânea” no mercado, por meio da qual a CONAB trocaria, por exemplo,
20
Relatório disponível em https://goo.gl/NpSjVH. Acesso em: 23 out. 2023. Em 2015, o site de Amélia
informou que ela estava trabalhando com Rondó, Heinze e arrozeiros para reeditar uma renúncia fiscal
do Rio Grande do Sul sobre as operações comerciais relacionadas à parceria humanitária com o PMA.
O presidente da Federação das Associações de Rizicultores e diretor do Instituto Riograndense do Arroz
ressaltou que a medida foi fundamental por causa dos baixos preços do arroz e que a Lei 12.429 contribuiu
para a redução dos estoques. Disponível em https://goo.gl/zWbT2T. Acesso em: 23 out. 2023.
21
Entrevista ao autor.
22
Entrevista com representantes do CONSEA.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 71
arroz em casca por arroz descascado já embalado. O problema, de acordo
com um funcionário da CONAB, era que esse processo se assemelhava a
um leilão público no qual os agricultores familiares dificilmente tinham
chances de vencer. Assim, esse mecanismo institucional também desviou a
política de seu objetivo original.
No entanto, a CGFome finalmente obteve um marco regulatório
para trabalhar. Dois pontos são dignos de nota. Primeiro, a Lei 12.429
permitia auxiliar países não mencionados na Lei, desde que a demanda dos
países listados já tivesse sido atendida e as cotas não estivessem esgotadas.
Essa cláusula contrasta com a preocupação da oposição em usar a ajuda
alimentar para apoiar países socialistas/bolivarianos durante o período de
2007-2010. Em segundo lugar, embora a autorização de 12 meses não
fosse ideal, era melhor do que as autorizações específicas concedidas pelos
deputados. No entanto, em 2012, a Lei 12.688 revogou qualquer data de
expiração. Arnaldo Fernandes (2013) relatou que o Deputado Jerônimo
Goergen (PP) do estado do Rio Grande do Sul foi o mentor da emenda
e que seus principais motivos eram afetar os preços do arroz e, mais
urgentemente, esvaziar os estoques para dar espaço para a nova colheita
de arroz (apud Fernandes, A., 2013). Mais tarde, com o esgotamento das
cotas autorizadas pela Lei 12.429/2011, a continuidade da ajuda alimentar
ocorreu por meio da Lei 13.001 de 2014. O Deputado Heinze (PP/RS)
propôs uma emenda para expandir em 500.000 toneladas o limite de
doações estabelecido na lei de 2011. Nesse caso, houve uma parceria clara
entre a CGFome e o Instituto do Arroz do Rio Grande do Sul.
23
Em resumo, o marco regulatório obtido nesta terceira fase, a
parceria com o PMA e a habilidade diplomática da CGFome resultaram
em uma política que ganhou destaque pelo novo perfil do Brasil como
doador emergente de ajuda humanitária
24
. Paralelamente, o prestígio da
CGFome dentro do MFA estava diminuindo. Rondó já havia perdido o
apoio institucional de Guimarães em 2009 e depois perdeu o de Amorim
em 2011 quando ele deixou o MFA. O Ministro Patriota (2011-2013),
23
IRGA. “Presidente do Irga recebe ministro Milton Rondó”. July 15, 2014. Available at https://bit.
ly/2FAcGIM
24
Deustche Weller (2012). “Brasil eleva ajuda humanitária de olho em maior projeção internacional”.
Disponível em: https://bit.ly/2HTpKN9.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
72 |
que não era próximo de Rondó, assim como os seguintes Ministros do
MFA, também não eram. Funcionários da CGFome relataram que a
perda de influência se manifestou fisicamente, uma vez que o escritório foi
transferido do prédio principal do Itamaraty para seu prédio anexo.
Alguns funcionários da CGFome também mencionaram que
a perda de prestígio ocorreu devido à intensa oposição de Rondó aos
movimentos de protesto nacionais iniciados em junho de 2013 e que
culminaram no golpe parlamentar que substituiu Dilma Rousseff pelo
Vice-Presidente Michel Temer em 2016. Os diplomatas de carreira
tradicionais do MFA não aprovaram a atitude de Rondó nesse processo,
deixando-o com poucos aliados no Ministério. Conforme o processo de
impeachment avançava, o então presidente interino Temer indicou José
Serra como Ministro das Relações Exteriores em maio de 2016. Serra, do
PSDB, havia perdido duas eleições presidenciais para o PT em 2002 e
2009, para Lula e Rousseff, respectivamente. Serra encerrou as atividades
da CGFome em setembro de 2016.
Para a CONAB, a lei apresentou um dilema: ou ficar fora da
cooperação humanitária de alimentos ou adaptar a estrutura de estoques
públicos e logística para realizar a nova tarefa. A CONAB escolheu a
segunda opção.
A relação com o PMA evoluiu significativamente após 2011. A
grande quantidade de alimentos para doação demandava um mecanismo
de financiamento estável e uma estrutura organizacional capaz de absorver
uma maior diversidade de produtos agrícolas, tornando-se mais eficiente e
menos dispendiosa. Em 2011, o PMA e a CGFome concordaram em criar
um fundo de doações. Essa decisão representou um desafio importante
para o PMA, pois obrigou seus diretores a mudar suas políticas e práticas
em relação aos doadores, especialmente em relação a CGFome, o que até
então não havia acontecido.
Concluindo, a CGFome liderou a formulação e implementação
de políticas humanitárias de alimentos no Brasil. A busca pela
institucionalização foi marcada por avanços e retrocessos, mas a
institucionalização ocorreu no final de 2011, com a aprovação da Lei
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 73
12.429. A política envolveu uma série de atores, incluindo a CGFome,
o MRE, a CONSEA, a CONAB e o PMA, que tiveram diferentes graus
de influência ao longo do tempo. No entanto, o papel crucial de Milton
Rondó na coordenação da CGFome e seu acesso privilegiado ao MRE,
bem como sua interlocução com outros ministérios, foram centrais para a
construção da política humanitária de alimentos brasileira. A cooperação
internacional para alimentos humanitários no Brasil é agora uma política
estabelecida, e o país se tornou um ator importante no cenário global de
ajuda humanitária. Entretanto, desafios permanecem, como a necessidade
de lidar com as oscilações do mercado de alimentos, melhorar a eficiência
logística e garantir a transparência e a responsabilidade na implementação
da ajuda humanitária.
5 Discussão: interesses, iDeias, instituições e o Processo
Duas questões orientaram esta pesquisa: por que o Brasil se envolveu
na cooperação humanitária de alimentos? E por que a maioria da ajuda
alimentar internacional do Brasil estava vinculada? Após identificar os
principais atores por trás da política e analisar seus interesses e ideias, é
possível afirmar que a política foi criada de forma coerente sob as estratégias
do Programa Fome Zero, em suas abordagens nacional e internacional.
No entanto, o desenho da política não foi concebido antes que o PT
ganhasse a Presidência. Em vez disso, a política foi um trabalho em
andamento, motivado por demandas humanitárias concretas, bem como
por oportunidades domésticas e internacionais.
Mas por que enviar alimentos do Brasil para o exterior? Apoiar a
agricultura familiar, comprando alimentos deles, enquanto ajudava pessoas
famintas no exterior, se encaixaria na Estratégia Fome Zero: fortaleceria um
programa estruturante de segurança alimentar em casa, ao mesmo tempo
em que ajudaria em emergências de fome no âmbito internacional. Embora
não fosse recomendado por especialistas críticos da ajuda vinculada, isso
se encaixaria na cooperação Sul-Sul de duas vias, pois se esperava que
fortalecesse a imagem do Brasil como um ator importante nas questões
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
74 |
alimentares globais, o que era outra parte da estratégia do Programa Fome
Zero. No entanto, o governo não tinha recursos orçamentários suficientes
para comprar alimentos no exterior para doação na escala prevista para a
política, especialmente considerando a alta taxa de câmbio do dólar na
época. Portanto, limitações econômicas reforçaram que a política possível
era doar o que estava disponível nos estoques dos ministérios e agências,
principalmente nos estoques da CONAB.
No entanto, a ideia de comprar alimentos de agricultores familiares
brasileiros não funcionou como esperado, e a maioria das doações veio
do agronegócio em grande escala. Por quê? i) A ausência de um marco
regulatório adequado; ii) falta de apoio político suficiente no Congresso;
iii) normas técnicas do PMA que os agricultores familiares não conseguiam
atender ou competir com o agronegócio em grande escala. Como a
política foi posta em prática sem um marco regulatório adequado para
seus propósitos originais, muitos de seus objetivos foram definidos sem os
meios para alcançá-los. Isso também explica por que a CGFome não doou
mais alimentos comprados nos mercados internacionais: seu orçamento
era muito limitado para isso. A busca por uma Lei apropriada de 2007
a 2010 fracassou porque o governo não conseguiu obter apoio político
suficiente em um momento em que a) a oposição a Lula era resistente
a fornecer qualquer apoio a governos estrangeiros de esquerda; e b) os
estoques nacionais de alimentos estavam baixos.
A importância dos estoques de alimentos só ficou clara no processo
que levou à aprovação da Lei 12.429 de 2011. Naquele período, os estoques
nacionais de arroz estavam altos e os preços estavam baixos. Em sua tese
de doutorado, Arnaldo Fernandes (2013, p. 45) concluiu que “o apoio
congressual [do PAF] no primeiro semestre de 2011 foi uma contribuição,
embora eventual, para a evolução da cooperação humanitária” (Fernandes,
A., 2013, p.145). Essa contribuição permaneceu eficaz nas leis de 2012
e 2014. Em 2015, o apoio do agronegócio do arroz foi retirado, pois os
preços de mercado estavam altos e os estoques estavam baixos
25
.
25
Entrevista com diplomata da CGFome.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 75
Nesta fase, a experiência brasileira parcialmente se assemelha a
dos Estados Unidos: o excesso de grãos, somado aos baixos preços, criou
uma força de economia política composta por produtores, burocratas e
legisladores que alimentou uma política humanitária ou, como críticos
diriam, uma política de dumping. As escalas diferem muito entre as
operações do Brasil e dos EUA. No entanto, os obstáculos em termos de
planejamento humanitário de longo prazo são muito semelhantes.
Nos últimos anos, Canadá e União Europeia desvincularam
sua ajuda alimentar, e os EUA passaram por debates internos sobre a
desvinculação, mas, como explicou Diven (2006), a economia política dos
triângulos de ferro resiste à mudança. Essa questão não estava presente no
Brasil. Não encontrei críticas à ajuda alimentar vinculada nos processos
legislativos, e não houve sinal de uma coalizão estável e coesa como os
triângulos de ferro nos EUA. O que aconteceu foi uma coalizão efêmera.
Hipoteticamente, o status da coalizão poderia se transformar em algo mais
estável se os agricultores de arroz brasileiros se tornassem estruturalmente
superprodutivos, assim como os estoques nacionais de arroz se tornassem
frequentemente muito altos.
Após 2010, a coalizão formada pela CGFome, a Bancada Ruralista
liderada por legisladores do estado do Rio Grande do Sul, e o agronegócio
do arroz era forte o suficiente para aprovar um projeto de lei importante
cerca de um ano após a derrota do projeto de lei 737. É importante
destacar que a resistência da oposição em cooperar com regimes socialistas/
bolivarianos desapareceu, e países como Cuba, Bolívia e Coreia do Norte
foram nominalmente incluídos na lei de 2011.
Os procedimentos técnicos do PMA para preparar a ajuda alimentar
(embalar e transportar) acabaram limitando o plano original da CGFome.
As normas do PMA criaram uma dinâmica dentro da CONAB que os
agricultores familiares geralmente não conseguiam atender. O agronegócio
em grande escala, por outro lado, estava mais preparado para reunir grandes
quantidades de arroz ou milho em sacas padronizadas pelo PMA e entregá-
los no porto, onde os navios seriam abastecidos para transporte. Talvez se
os agricultores familiares pudessem se organizar melhor e se preparar para
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
76 |
atender às normas do PMA, a política provavelmente se assemelharia mais
à preferência original da CGFome.
O PMA desempenha um papel especial nesse debate, pois essa
organização foi um dos principais receptores dos recursos dos países doadores
emergentes desde os anos 2000. White (2011) e Smith (2011) apontaram
várias razões para a proeminência do PMA entre os doadores emergentes,
incluindo a relevância da insegurança alimentar na cena internacional
devido a recorrentes crises econômicas, ambientais e humanitárias, a boa
reputação da organização, as restrições legais e operacionais domésticas
que levaram os países a usar os instrumentos do PMA para realizar sua
cooperação internacional. Todos esses elementos estavam presentes no caso
brasileiro (Lima; Santana, 2020).
consiDerações finais
Inicialmente, a proposta do governo era conectar a produção
de agricultores familiares brasileiros a uma política humanitária
internacional. O plano era promover a segurança alimentar e nutricional
internamente, apoiando a renda dos agricultores familiares por meio de
compras governamentais destinadas a aliviar a fome no exterior. Nesse
sentido, a política humanitária internacional também seria uma política
social doméstica. No entanto, o governo não conseguiu obter o marco
regulatório necessário para esse plano no Congresso Nacional. Em vez
disso, o Congresso aprovou uma lei que, na prática, privilegiava a doação
de alimentos produzidos por grandes fazendas do agronegócio. O acordo
entre os dois poderes permitiu que o Brasil se tornasse um dos principais
doadores de alimentos e alcançasse alguns objetivos das políticas sociais
do PT, mas resultou em uma política pública muito diferente da intenção
original e de curta duração.
E quanto ao futuro dessa primeira experiência brasileira na área de
ajuda humanitária de alimentos? A profunda crise econômica iniciada
em 2015 foi um grande obstáculo para uma política externa desse tipo.
Além disso, a variável independente mudou radicalmente com o golpe
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 77
parlamentar de 2016 e, ainda mais, com o governo do Presidente Jair
Bolsonaro, que assumiu o cargo em 2019.
No entanto, a experiência sugere que, se os estoques nacionais de
grãos crescerem e os preços despencarem, as doações de alimentos do Brasil
podem ser impulsionadas novamente. A questão é se Brasília encontraria
países ou organizações internacionais dispostos a pagar pela logística se o
poder diplomático do Presidente e de seus Ministros estiver baixo. O caso
também mostrou que ter uma força burocrática comprometida no governo
pode ser muito importante para transformar ideias em políticas.
Finalmente, tendo em mente os problemas da ajuda vinculada,
os formuladores de políticas e o público devem avaliar se a doação de
alimentos dos estoques nacionais, seja dos agricultores familiares ou do
agronegócio em grande escala, é uma maneira desejável de estabelecer uma
política internacional de alimentos humanitários confiável e eficiente, bem
como um programa viável para promover a agricultura familiar no país.
Estudos de caso comparativos sobre as experiências de doadores emergentes
de ajuda alimentar humanitária podem ajudar a esclarecer essa questão.
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82 |
caPítulo 3
| 85
cooPeração ou cooPtação? a
aProximação entre o brasil e o
Programa munDial De alimentos
no camPo Da ajuDa humanitária
1
Jenifer Queila SANTANA
2
iago LIMA
3
1 introDução
O aumento das doações do Brasil e de outras potências emergentes
para o Programa Mundial de Alimentos (PMA) ganhou destaque no
Agradecemos ao CNPq pelo financiamento a esta pesquisa por meio do MCTI/CNPq/MEC/CAPES
Nº 22/2014 - Ciências Humanas e Sociais. Uma versão deste artigo foi publicada em Lima, iago., &
Santana, Jenifer Queila. (2020), “Enlarging the donor base: an analysis of the World Food Programme’s
reform process and the Brazilian bridge diplomacy.” Revista Brasileira de Política Internacional. 63(2).
Agradecemos à editoria da RBPI pela autorização deste texto em português que, contudo, é substancialmente
diferente da versão aprovada após a revisão por pares na RBPI.
Jenifer Queila Santana é Professora na Universidade Estadual da Paraíba, João Pessoa/PB, Brasil. Email:
(jeniferqs@gmail.com) ORCID ID: orcid.org/0000-0002-2947-3608
iago Lima, é Professor de Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba, Joao Pessoa, PB,
Brazil (tlima@ccsa.ufpb.br) ORCID ID: orcid.org/0000-0001-9183-3400
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
86 |
começo do século XXI. White (2011) notou que apesar de aqueles países
doarem por meio de uma diversidade menor de organismos multilaterais,
se comparados aos doadores tradicionais, percebia-se uma proeminência do
PMA no recebimento de suas doações. Na lista elaborada por Smith (2011)
das cinco organizações multilaterais que mais receberam contribuições
dos doadores não-DAC
4
entre os anos de 2006 e 2010, o PMA ocupou
o primeiro lugar nos anos de 2006 e 2008, o segundo lugar em 2009 e
2010 e o quarto lugar em 2007. As autoras apontam várias razões para
o destaque do PMA entre os emergentes. Entre elas estão a importância
que o problema da insegurança alimentar ganhou no cenário internacional
devido às recorrentes crises econômicas, ambientais e humanitárias; a boa
reputação do órgão; e as limitações domésticas legais e operacionais que
levaram os países a lançar mão dos instrumentos do PMA para efetivar
sua cooperação internacional (Smith 2011; White 2011). Reconhecemos
que estes fatores podem ter concorrido para o aumento da participação
dos doadores emergentes no PMA. Contudo, este capítulo argumenta que
um ajuste interno ao PMA foi decisivo para que o órgão aprofundasse suas
relações com doadores não-tradicionais, incluindo o Brasil.
Durante os governos Lula e Dilma (2003-2016) o Brasil galgou
a posição de um dos maiores doadores humanitários de alimentos. Tal
condição só foi possível devido à parceria com o PMA, que realizava
a logística internacional da ajuda alimentar, permitindo que o Brasil
não pagasse por isso. Embora permitido regimentalmente, esse foi um
movimento inusitado para o Programa, pois tradicionalmente o órgão
exigia que os doadores arcassem com todos os custos operacionais de
suas doações.
Como essa via foi aberta no PMA? Duas hipóteses nortearam a
pesquisa. Na primeira, o PMA estaria buscando cooptar o Brasil, enquanto
agropotência e economia emergente, para aumentar sua capacidade doadora
em um contexto em que importantes doadores tradicionais diminuíam
seus repasses de alimentos ao Programa. Seria, portanto, uma estratégia
Países não pertencentes ao Comitê de Assistência ao Desenvolvimento (Development Assistance
Committee) criado em 1961 dentro da Organização pra Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OCDE.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 87
da burocracia internacional para manter ativo o seu papel e realizar seu
mandato. A segunda hipótese é que o Brasil utilizou do seu poder econômico
emergente e de seu soft power construído pela diplomacia do combate à
fome para modificar o regime multilateral de ajuda alimentar e projetar
sua política humanitária através dele. As hipóteses foram propositalmente
extremadas, de modo a servirem como balizas que permitissem aferir as
relações de poder entre ambas.
A pesquisa foi realizada fundamentalmente a partir de análise
documental em fontes primárias
5
, entrevistas semiestruturadas com
funcionários do governo brasileiro e do PMA, e de revisão de literatura. Tais
materiais permitiram a construção de linhas cronológicas que organizaram
os fatos para a compreensão dessas relações bilaterais.
Dois esclarecimentos metodológicos são importantes. Primeiro, não
se realizou aqui análise de política externa, ou seja, a formulação política
e o processo decisório brasileiros foram desconsiderados nessa etapa da
pesquisa. Reconhece-se, entretanto, que uma explicação mais completa
demanda tal análise, a qual está em vias de elaboração (Lima, 2018).
Segundo, mesmo sabendo que relações relevantes entre Brasil e PMA não
se limitaram à ajuda alimentar humanitária – vide, por exemplo, o Purchase
for Progress (P4P) e o Centro de Excelência Contra a Fome -, consideramos
ser este caso importante o suficiente para justificar um estudo específico
capaz de iluminar em algo o debate acerca das relações entre doadores
emergentes e os arranjos tradicionais de cooperação internacional.
O capítulo está assim organizado. Seguindo a introdução, a seção
2 analisa o impulso do PMA para expandir sua base doadora. A seção
3 examina a atuação brasileira no processo de mudança institucional
do PMA, ressaltando o papel que o Secretariado do órgão enquanto
burocracia internacional exerceu no decorrer do mesmo. A quarta seção
apresenta os impactos que a adoção do NPSNC trouxe para o exercício
Através de consulta presencial ao acervo do MRE foram coletados oitenta e sete de Telegramas, Despachos
Telegráficos e Circulares Telegráficas do período de 1997 a 2004, que possuíam assunto sobre ou
relacionado ao PMA. O prazo escolhido deveu-se ao fato de que o debate sobre a ampliação da base doadora
do PMA e engajamento dos emergentes adentrou a Junta Executiva em 1997 (adoção do documento
Enabling Development e do Plano Estratégico e Financeiro 1998 -2001) e a aprovação do documento
“Novas Parcerias Para Suprir Necessidades Crescentes: Expandindo A Base Doadora Do PMA” (NPSNC)
que consolidou mudanças institucionais no órgão se deu em 2004.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
88 |
das práticas de ajuda alimentar internacional do Brasil. Além disso, aborda
os entraves decorridos no aprofundamento da cooperação Brasil-PMA,
tendo em vista as alterações que o país teve que realizar no seu projeto
original de ter doações de alimentos subsidiadas pela agricultura familiar.
Por fim, traremos as considerações finais. A conclusão é que a aproximação
entre o Brasil e o PMA decorreu de interesses mútuos e complementares
na ampliação da ajuda alimentar. Contudo, o Brasil não conseguiu
executar a ajuda alimentar de acordo com sua preferência devido às regras
operacionais logísticas do PMA. Neste sentido, pode-se afirmar que o Brasil
cedeu às preferências do Programa e que os recursos brasileiros não foram
empregados conforme originalmente pretendido pelo governo. Pode-se
dizer também, no entanto, que o resultado obtido serviu à política externa
brasileira, ainda que de forma menos completa.
2 o Pma e a exPansão Da base DoaDora
Nos anos 1990, o PMA experimentou uma queda brusca em seus
estoques de alimentos: de 16, 9 milhões de toneladas métricas em 1993
para cerca de 8 milhões em 1998 (WFP Food Aid Information System,
2015). Preocupada com a sustentabilidade dos seus programas, a Junta
Executiva do órgão adotou como prioridade no seu Plano Estratégico e
Financeiro (PEF) de 1998-2001, a melhoria das estratégias de captação de
recursos. Dentre elas estava a expansão da base doadora do PMA, a fim de
reduzir sua dependência do seleto grupo de doadores tradicionais
6
.
O documento foi um passo inicial para a discussão que adentraria
as Sessões da Junta nos anos seguintes. Na Sessão Anual de 1999, os 36
Estados-membros e os Estados observadores avaliaram o PEF de 1998-
2001 e constataram que o PMA permanecia altamente dependente de
um pequeno grupo de doadores tradicionais para financiar todas as suas
operações. Decidiu-se então manter como prioridade para o PEF 2000-
2003 os esforços de ampliação da captação de recursos e de multilateralização
das fontes contributivas (WFP, 1999a).
Para análises das relações históricas entre doadores tradicionais e o PMA ver, por exemplo, Barrett e Maxwell
(2005) e Clay e Stokke (2000).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 89
O cenário não foi muito diferente na Sessão Anual da Junta de
2001. Embora em 2000 os recursos tivessem subido 11% em comparação
a 1999, grande parte do aumento se deu pela decisão de países membros
da Food Aid Convention (FAC)
7
de canalizar a quantidade compromissada
na Convenção através do PMA. Contudo, 90% dos recursos continuavam
sendo provenientes dos dez principais doadores (EUA, Japão, União
Europeia, Holanda, Reino Unido, Austrália, Canadá, Alemanha,
Dinamarca, Noruega). Por isso, a Sessão Anual decidiu que continuar os
esforços de expansão da base doadora seria uma prioridade do PEF 2002-
2005 (WFP, 2001).
A discussão sobre a ampliação da base doadora foi retomada em
2003, motivada em grande medida pela Resolução 56/201 de 2001 da
Assembleia Geral da ONU (AGONU). Essa Resolução revisou as políticas
que guiaram as atividades operacionais do Sistema ONU voltadas para
o desenvolvimento no triênio 1999-2001 e, entre outras normativas,
enfatizou a necessidade de se evitar a dependência extrema de poucos
doadores. As Agências e Fundos do Sistema ONU deveriam promover o
compartilhamento das responsabilidades contributivas entre os membros,
criando parcerias, de modo a aumentar os fluxos de doações de doadores
não-tradicionais, inclusive privados (ONU, 2001).
James Morris, eleito Diretor Executivo do PMA em abril de 2002,
apresentou suas recomendações para implementação da Resolução 56/201
no Relatório Anual de 2002. Ele enfatizou a necessidade de o Sistema
ONU “invite additional countries, especially those that have recently become
net exporters of food, to become food aid donors, thereby broadening global
solidarity and support for combating hunger” (WFP, 2003a, p. 31). Diante da
Resultante das transações e barganhas da Rodada Kennedy iniciada em 1963, a FAC objetivou consolidar
um grau de previsibilidade para a ajuda alimentar mundial, de modo que tanto os doadores quanto os
recipiendários se beneficiassem. O compromisso mínimo estabelecido entre os doze membros originais foi
de 4,5 milhões de toneladas, do qual cada doador deveria se comprometer com uma quantidade mínima a
ser doada em trigo ou seu equivalente, a despeito das variações na produção, estoque e preço dos grãos. As
metas do acordo foram fundamentadas tanto no nível de produção agrícola, quanto no Produto Interno
Bruto (PIB) dos doadores. À países importadores de grãos, tais como a Grã-Bretanha e o Japão, foi permitido
o fornecimento do dinheiro equivalente ao alimento que doariam ou a compra desses alimentos em outros
países membros do acordo, de preferência em desenvolvimento - a Argentina era o único país dessa categoria
entre os membros originais. A FAC encorajou os doadores a canalizarem suas doações através do PMA,
instância multilateral que coadunava aos propósitos da Convenção (Clapp 2012; Canuto, 2013).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
90 |
queda de 25% na ajuda alimentar global no triênio 2000-2002, tornava-se
urgente o acréscimo de contribuições de doadores emergentes e do setor
privado (WFP, 2003a).
O Relatório de Morris foi aprovado na Sessão Anual de 2003 da
Junta Executiva, com alterações. Entre elas, modificou-se o parágrafo que
consentia com a necessidade da inclusão de novos doadores no Sistema
ONU. O parágrafo adotou o seguinte texto: “to invite additional countries
to become donorsfacilitating this process for themand urge donors
to increase their multilateral contributions, thereby broadening global
solidarity and support for combating hunger” (WFP, 2003b, p. 2, grifo nosso).
A mudança pode ser considerada significativa por vários motivos.
Primeiro, a substituição do termo to become food aid donors”, expresso na
recomendação de Morris, por to become donors, mostra o desejo dos Estados
presentes na Sessão de que as contribuições ao PMA não aumentassem
somente em termos de alimentos, mas também de recursos monetários.
Provavelmente pelo mesmo motivo retiraram da recomendação de Morris
a frase que sugeria uma preferência aos recém-exportadores de alimentos.
Por outro lado, ao inserir o termo facilitating this process for them, a Junta
dava sinais de que era preciso se reajustar para captar novos doadores (WFP
2003a; WFP 2003b).
É preciso compreender que a alteração do Relatório de Morris
também se insere num debate mais profundo sobre a política e a técnica
da ajuda alimentar humanitária. Crescia, naquela comunidade epistêmica,
a preferência por doações não-vinculadas, isto é, doações que não fossem
compostas por alimentos provenientes dos mercados ou estoques dos
países doadores. A doação vinculada, por contraste, é aquela em que
alimentos são embarcados nos países doadores e encaminhados aos
destinatários finais ou aos estoques do PMA. Esse tipo de operação recebe
diversas críticas que não temos condições de esmiuçar aqui (Clapp 2012;
Clay; Riley 2005), mas vale apontar duas delas: a demora na entrega dos
alimentos à população flagelada e os gastos com frete. Se as doações forem
não-vinculadas, isto é, se forem dinheiro para comprar alimentos em
mercados próximos da área a ser auxiliada, por exemplo, a logística pode ser
agilizada e barateada. No entanto, vozes abalizadas, como a de Jean Ziegler
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 91
(2013), atacam a exclusão das doações vinculadas argumentando que toda
contribuição possível é necessária para combater a fome em catástrofes
humanitárias. Assim, se Estados não possuem condições econômicas ou
legislação capazes de fornecer doações financeiras, seria desumano privar as
populações flageladas – e o PMA – das doações vinculadas, ainda que mais
custosas. Por fim, cabe destacar que entre os maiores doadores, os Estados
Unidos praticam majoritariamente doações vinculadas, enquanto a União
Europeia adotou as não-vinculadas (Clapp, 2012; Lima; Dias, 2016).
Retomando a cronologia dos fatos, o Sumário da Segunda Sessão de
2003 da Junta Executiva, realizada no mês posterior ao da Sessão Anual,
revela que a inclusão de doadores emergentes aqueceu o debate. No tópico
‘Emerging Donorso documento faz o seguinte registro:
In a statement, the delegation from India responded to a suggestion
of some members that WFP discourage contributions from
Member States with food security problems, as it was felt that those
States should use their resources to feed their own populations first.
He stressed that this was fraught with consequences that threatened
to create a division between rich and poor donors. He reminded
the Board that broadening the donor base was one of the most
important objectives of the Programme, and explained that the
problems of distribution in a food-insecure country were separate
and distinct from those associated with production and surpluses.
[…] Other members echoed these points and expressed support for
the Executive Directors approach to reaching more donors (WFP,
2003c, p. 11).
Apesar de o documento não apresentar o contexto em que
alguns membros se declararam contrários ao engajamento de doadores
com problemas internos de segurança alimentar, o posicionamento
contundente da delegação indiana sugere um cenário de polarização. Isto é,
a alternativa de expandir a base doadora por meio da inserção de doadores
não-tradicionais não foi consensual. A citação mostra também apoio à
abordagem defendida por James Morris que, aliás, teve papel importante na
instauração do debate, conforme rememorado pelo Conselheiro Arnaldo
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
92 |
Fernandes (2015)
8
que representou o Brasil nas Sessões da Junta Executiva
na época.
Fernandes (2015), no entanto, considerou que o tema fora colocado
como um entre tantos e não como algo revolucionário. Quanto ao Brasil,
o país não foi um dos que apoiaram explicitamente a Índia, pois atuava
como Estado observador e, naquele período de 2003, tinha pouca atuação
nas discussões dentro da Junta Executiva. De fato, o governo Lula acabara
de assumir a presidência e a diplomacia do combate à fome ainda estava
em gestação. O governo brasileiro, entretanto, já fomentava desde os anos
2000 grande articulação com o Secretariado do PMA, devido a um esforço
desse último de diversificar as fontes contributivas do órgão. A partir da
análise das correspondências diplomáticas pôde-se perceber que a iniciativa
quanto à inserção dos emergentes na base de doadores do PMA partiu do
próprio Secretariado do Programa, e não de doadores emergentes como
o Brasil (Telegrama nº 00162 de 20 de Outubro de 2000). Contudo, em
relação ao Brasil, observou-se que esse país passou a reconhecer os benefícios
desse engajamento, apresentando interesses comuns ao do Secretariado.
Patrícia Canuto (2015)
9
destacou que o cenário da época era
importante para suscitar o debate sobre novos doadores. O aumento
progressivo na demanda econômica por grãos resultara em diminuição dos
estoques de alimentos e, consequentemente, na redução dos excedentes
disponibilizados para ajuda humanitária. O PMA enfrentava sérias
dificuldades, fazendo emergir o debate sobre a flexibilização e diversificação
das doações ao Programa. Além disso, a depreciação do dólar em 2002
abalou a capacidade de compra do PMA, que passou a considerar novos
métodos de fund raising para a compra de alimentos e outros materiais,
assim como para viabilizar seu transporte (Canuto, 2015).
Diante desse cenário, as discussões sobre ampliação da base doadora
alcançaram um patamar significativo. O Secretariado sugeriu a realização
Entrevista concedida a Jenifer Santana pelo Conselheiro Arnaldo de Baena Fernandes (REBRASFAO/
PMA) em 2015. Ao longo do texto se utilizará o termo ‘Fernandes (2015)’ para se referir aos relatos da
entrevista.
Entrevista concedida a Jenifer Santana pela Oficial de Chancelaria Patrícia da Rocha Canuto (ABC/
Embaixada de Roma/PMA) em 2015. Ao longo do texto se utilizará o termo ‘Canuto (2015)’ para se
referir aos relatos da entrevista.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 93
de consultas informais com membros do PMA para tratar de forma
factual sobre estratégias para a ampliação da base de doadores do PMA e
consequente engajamento dos doadores emergentes. A sugestão foi acatada
pela Junta Executiva na Terceira Sessão de 2003 (Telegrama nº 238 de 10
de maio de 2004; WFP, 2003d):
e Board recognized that a pro-active resources strategy that
broadened the donor base and engaged the private sector would be
essential for achieving the objectives set out in the Strategic Plan.
Given that the proposed strategy was a work in progress, the Board
looked forward to an informal consultation in early 2004 to discuss,
among other issues: the definition of emerging and traditional
donors; strategies for strengthening traditional and emerging
donor support; mechanisms for encouraging emerging donors
through leveraging, particularly twinning arrangements; and the
use of cash donations to purchase food. e same consultation
would also consider a draft policy paper on WFP’s relations with
the private sector (WFP 2003d, p. 5).
A menção, pela primeira vez, a mecanismos específicos de
engajamento dos doadores emergentes, tais como o twinning, demonstra
o deslocamento da discussão do âmbito conceitual para o factual e, mais
do que isso, indica que o cenário de polarização da Segunda Sessão de
2003 da Junta Executiva cedeu espaço a um entendimento mais favorável
à absorção dos emergentes.
As consultas informais aconteceram nos dias 5 de maio e 13 de
julho de 2004. Para guiá-las, o Secretariado do PMA apresentou um paper
contendo diretrizes detalhadas. O exame desse paper frente ao documento
final aprovado pela Junta demonstra a influência do Secretariado. Duas
medidas do paper merecem destaque: (a) a regulamentação de medidas de
apoio ao cumprimento da norma de Full-Cost Recovery (FCR) das doações;
e o (b) estabelecimento de uma nova definição de doador para o PMA
(WFP 2004a).
O Regulamento Geral do PMA estabelecia – e ainda estabelece –
que todas as contribuições feitas por Estados ao órgão deveriam respeitar
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
94 |
a norma da FCR. Isto é, arcar com todos os custos associados às doações
financeiras, de serviços e de alimentos, de acordo com as necessidades
específicas de cada operação
10
(Canuto 2013; WFP, 2000). Exceções à
norma poderiam ser conferidas aos países em desenvolvimento, economias
em transição e doadores não-tradicionais pela Regra Geral XIII.4 do
Regulamento. Na teoria, estes países poderiam realizar apenas a doação
das commodities ao PMA, com o cobrimento dos custos associados sendo
feito por parte do próprio PMA, de outro país ou com o dinheiro obtido
por meio da venda de parte da doação (WFP, 2010). Na prática, isso não
se realizava. A ideia do emprego de exceções parecia legítima e poderia, no
contexto em tela, permitir a maior diversificação das fontes contributivas
do PMA, mas precisava ser regulamentada de forma que se tornasse factível
sua operacionalização.
Uma primeira medida foi consolidar o nome de twinning às parcerias
que visassem à exceção à FCR. O twinning seria “[…] matching an in-kind
contribution or service from a donor eligible for special efforts to meet FCR
with a cash contribution from another donor to meet the associated costs of
the contribution” (WFP, 2004a, p. 11). Seriam elegíveis ao twinning os
países que constassem na lista de recipiendários da DAC/OCDE, que os
classificava em least-developed countries, low-income ou lower-middle-income
countries a partir de seus PIB per capita (WFP, 2004a).
Além do apoio em cash por Estados parceiros, o Secretariado
colocou fundos multilaterais como o Immediate Response Account (IRA),
International Emergency Food Reserve (IEFR) e o Emerging Donor Matching
Fund (EDMF) como possibilidades de suporte aos doadores emergentes
(WFP 2004a). O EDMF, criado por Morris em 2003, era uma conta especial
para financiar, quando necessário, os custos associados das contribuições
dos doadores emergentes ao PMA (WFP, 2006). Essa iniciativa de Morris
demonstra, mais uma vez, sua importância na consolidação do debate
sobre inclusão dos emergentes no PMA.
10
External transport (ET), Landside Transport, Storage and Handling (LTSH) e Other Direct Operational Costs
(ODOC): custos relacionados ao transporte da doação em alimentos; gastos com estocagem dos alimentos
e despesas com o processo de gerenciamento do envio e entrega da doação. Direct Support Costs (DSC):
custos com os funcionários locais e estrangeiros atuantes na operação; gastos com comunicação; transporte
interno; tecnologia e segurança. Indirect Support Costs (ISC): custo vinculado à administração geral dos
recursos; gastos com a administração dos escritórios locais e regionais e com manutenção da sede do PMA.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 95
Além da questão do custeio, a denominação dos doadores também
merece atenção. Até 2004, as definições de Doador do PMA eram baseadas
no Guide to WFP’s Resource and long-term financing policies de 1999,
que diferenciava doadores tradicionais e não-tradicionais. Um doador
tradicional seria:
a contributor to WFP that has normally provided contributions to
WFP on a full-cost recovery basis and is included in Lists D or E
of the United Nations/Food and Agriculture Organization (FAO)
Member States Listings for Elections for the WFP Executive
Board—unless also recognized as a country in transition, and
including the European Commission and Saudi Arabia (WFP,
1999b, p. 11).
11
O doador não-tradicional seria aquele que não se enquadrasse nessa
definição. Porém, nas consultas de 2004, o Secretariado defendeu que
essa definição segregadora não fazia mais sentido diante da estratégia de
inclusão de doadores. Propôs-se então a substituição dos termos traditional
donor e non-traditional donor pelo simples termo donor nos principais
documentos do órgão. Para o Secretariado, o objetivo do PMA, acima de
qualquer outro, era que mais Estados se tornassem regular donors (WFP,
2004a, p. 5).
Enfim, o resultado das consultas informais foi consolidado no
documentoNovas Parcerias Para Suprir Necessidades Crescentes:
Expandindo a Base Doadora Do PMA” (NPSNC) (WFP, 2004b), que foi
submetido à aprovação na Terceira Sessão de 2004 da Junta Executiva. Nota-
se, na análise do documento, que praticamente todas as diretrizes presentes
no paper que fundamentou as consultas informais foram mantidas. Houve
alguns acréscimos relevantes, mas quase nenhuma retirada.
Um dos acréscimos foi a explicitação da diferença entre doadores
públicos e privados, sendo que somente os primeiros poderiam recorrer
11
É interessante ressaltar que dos trinta países presentes na Lista D e de 1999, ano em que as citadas
definições de doadores foram estabelecidas, vinte e um consistem em membros atuais do DAC/OCDE,
ou seja, a estrutura do PMA correspondia à mesma lógica do Sistema Internacional de Cooperação ao
Desenvolvimento (WFP, 2004a).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
96 |
às ferramentas de suporte à FCR. A própria operação de twinning recebeu
acréscimo considerável. No paper das consultas inexistia normativa sobre a
livre escolha, pelos Estados, dos parceiros e dos recipiendários a partir do
arranjo twinning, mas isso foi contemplado na nova redação:
[…] matching an in-kind contribution or service from a donor with
a cash donation from another donor to meet the associated costs of
a contribution. In supporting twinning arrangements, donors
are free to determine on a case-by-case basis the recipients and
countries with which they would like to twin in full or in part.
WFP requests that its current donors agree to the use of their
cash contributions for twinning arrangements, particularly when
the contribution would otherwise be used to purchase food on
international markets (WFP 2004b, p. 7, grifo nosso).
O Sumário e as Decisões e Recomendações da Terceira Sessão de
2004 da Junta, realizada em outubro daquele ano, endossaram o NPSNC.
O exame das atas da Sessão permite destacar alguns pontos: i) os Estados-
membros apreciaram especialmente a nova definição de doador do PMA,
reiterando o objetivo de que todos os Estados se tornassem doadores
regulares; ii) enfatizaram a importância da manutenção da norma do FCR
no Regulamento do órgão (inalterada pelo NPSNC); iii) múltiplos apelos
foram feitos para que os Estados aumentassem suas contribuições sob o
arranjo twinning; iv) vários países apoiaram a ideia do uso do PIB per capita
como critério de elegibilidade às exceções à FCR. O índice seria adequado
por ser externo ao PMA (elaborado pelo DAC/OCDE), transparente e
atualizado anualmente (WFP 2004c; WFP 2004d).
As diretrizes do NPSNC relacionadas ao engajamento dos
doadores emergentes e parcerias com o setor privado foram inseridas no
Plano Estratégico e Financeiro 2004-2007 (WFP, 2004c; WFP, 2004d).
Concordamos com Canuto (2013, 2015) que as mudanças transformaram
o PMA de uma “central” de ajuda humanitária para um “coordenador
mundial”. Ao transitar do padrão de doações “fechadas” - ou seja, doações
de alimentos com todo o transporte e custos adicionais antecipadamente
pagos e garantidos pelo doador – para o de promoção de doações por meio
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 97
de modalidades diversas (como o twinning, a monetização e a parceira
com o setor privado), o PMA passou a não mais penalizar os pequenos e os
novos doadores e a permitir doações em volumes e montantes diversos. Os
doadores passaram a operar por meio de doações mais “livres”, podendo
contribuir de acordo com as suas possibilidades, e a contar com o PMA
para identificar outros doadores e/ou fundos para complementá-las e
viabilizá-las. No passado, talvez essas doações fossem descartadas ainda no
plano das intenções, pois o modus operandi do órgão era muito rígido.
3 a atuação brasileira no Processo De ajuste Do Pma
Estava claro para o Ministério das Relações Exteriores, conforme
identificamos nas correspondência diplomática da Representação do
Brasil junto à FAO, PMA e FIDA (REBRASFAO), que a ascensão do
Brasil como uma potência agroalimentar nas últimas décadas chamava a
atenção do Secretariado do PMA (Telegrama nº 00028 de 16 de janeiro
de 2003; Telegrama nº 00072 de 5 de fevereiro de 2003). Afinal, como
demonstramos, o Programa buscava ampliar sua base doadora. Além
da capacidade material brasileira, a bandeira do Fome Zero levantada
pelo presidente Lula (2003-2009), juntamente com ações diplomáticas
específicas e a transição para um perfil de fornecedor de cooperação
internacional para o desenvolvimento, conferiam soft power ao país nas
relações agroalimentares internacionais (Albuquerque, 2013; Brasil, 2013).
Encontramos, porém, indícios de reaproximação já em 2000 (Telegrama
nº 00167 de 10 de novembro 2000).
Um breve recuo histórico ajuda a compreender a necessidade de
reaproximação. O PMA iniciou suas atividades no Brasil em 1964, e
a maior parte delas consistiu em apoio a projetos de desenvolvimento,
como o suporte financeiro ao Programa Nacional de Alimentação Escolar
(PNAE). Também foram canalizados recursos para operações de emergência
alimentar. Nesta relação, o Brasil era recipiendário de ajuda alimentar, mas
contribuía de forma esporádica com doações ao PMA (ver Gráfico 1).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
98 |
Gráfico 1. Contribuições brasileiras ao PMA 1966-1995
Fonte: FERNANDES (2013)
A interação entre o Brasil e o PMA se deteriorou ao longo da década
de 1990, na medida em que as atividades executadas pelo Programa no país
foram sendo concluídas e o governo deixou de contribuir com o órgão.
O escritório do PMA no Brasil, estabelecido em 1987, foi fechado em
1996. Em 1995 o Brasil realizou sua última contribuição ao Programa, no
primeiro ano do governo Cardoso. A falta de informação por parte do PMA
sobre o destino das contribuições brasileiras foi fator que desencorajou
a continuidade dos repasses. Além disso, o País atravessava grave crise
orçamentária que, naturalmente, retirou a prioridade das doações ao
Programa. Em 1999, o Brasil encerrou seu mandato na Junta Executiva e
assumiu o status de observador (Fernandes, 2013).
Nota-se, portanto, que as tratativas de reaproximação entre o Brasil e
o PMA ocorreram no mesmo período em que o debate sobre a expansão da
base doadora do órgão acontecia. Em outubro de 2000, o Diretor Regional
do PMA para a América do Sul, James Conway, visitou Embaixador do
Brasil no Peru, José Viegas, para tratar do interesse do PMA em contatar
autoridades do governo brasileiro, a fim de discutir a possibilidade de criação
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 99
de um Plano de ajuda alimentar voltado para operações de emergência. O
Plano pensado pelo PMA previa que a doação de alimentos que viesse a
ser realizada pelos países em desenvolvimento tivesse seus custos associados
cobertos pelos doadores tradicionais (Telegrama nº 00162 de 20 de
Outubro de 2000).
O Embaixador Júlio Cesar Santos, então Representante Permanente
da REBRASFAO, ao comentar o supracitado Telegrama reafirmou que a
crescente indiferença dos doadores tradicionais às necessidades prementes
dos países menos abastados, estaria obrigando o PMA a diversificar a origem
de suas contribuições. Nesse contexto, o Diretor Conway havia ficado
encarregado de obter doações adicionais dos países latino-americanos. O
Embaixador Santos apontou que o “Plano de Contingência para Prevenir
a Fome em Emergências”, apresentado por Conway, só interessaria ao
Brasil se os USD 10 milhões estimados para cobrir os custos operacionais
das doações de alimentos fossem realmente obtidos pelo PMA. Santos
ainda expôs que além de precisarem ser custo-eficientes para o Brasil, as
atividades de doações de alimentos abarcadas pelo Plano deveriam ser
direcionadas a países com os quais o Brasil tinha interesse no estreitamento
das relações comerciais e políticas. Seria “imperativa” a solicitação do
governo brasileiro de que se o Brasil fosse incluso no Plano, o PMA sempre
realizaria consultas prévias quanto aos destinatários das eventuais doações
com insumos brasileiros.
Os assuntos abordados nesses Telegramas fornecem informações
importantes para compreensão do processo de reforma institucional do
PMA. Em primeiro lugar, verifica-se que o Secretariado, ainda no ano 2000,
já elucidava a possibilidade de regulamentação de um instrumento como
twinning a fim de respeitar a norma do FCR. Isso fica evidente pois, assim
que o Diretor Regional James Conway demonstrou interesse em engajar os
países latino-americanos na base doadora do PMA, citou a possibilidade de
os custos operacionais das doações serem cobertos por recursos financeiros
provenientes dos doadores tradicionais. Em segundo lugar, no que toca
à posição do Brasil, a cobertura dos custos operacionais pelos doadores
tradicionais era um pré-requesito. Em terceiro, percebe-se que o Brasil
buscava um grau de liberdade na decisão quanto aos recipiendários de suas
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
100 |
eventuais doações. Como demonstrado na seção anterior, o documento
NPSNC aprovou esse grau de liberdade aos doadores de alimentos (WFP,
2004a, 2004b).
É importante destacar que, em 2000, a condição de escolha do
recipiendário pelo governo brasileiro parecia ser motivada especialmente
por interesses comerciais e políticos (Telegrama nº 00167 de 10 de
novembro 2000). Naquele período, isso parecia ser mais uma reação
pontual a eventuais oportunidades do que uma estratégia abrangente de
política externa. Segundo argumento da embaixadora brasileira na FAO
nos anos 1990, Mitzi Gurgel Valente da Costa (2000), defendido em
tese de doutorado, o Brasil não possuía uma política de ajuda alimentar
internacional e, com base nos exemplos históricos de doadores tradicionais,
perdia oportunidades ao não utilizar alimentos como recursos de poder de
forma sistemática. Em suas palavras,
[...] ou o Brasil distribui alimentos com base em uma política
de ajuda alimentar que vise à obtenção de dividendos políticos
e/ou econômicos específicos, ou deve abster-se de doar
alimentos internacionalmente. Essa vinculação é observada
por todos os doadores tradicionais e é especialmente válida
para um país em desenvolvimento, como o Brasil, que ainda
tem seus próprios bolsões de miséria [...] a doação esporádica
não leva à promoção dos interesses políticos ou econômicos do
doador (Costa 2000, p. 128).
Costa (2000) previu a emergência de resistência doméstica a
uma eventual política de ajuda alimentar internacional e sugeriu que,
para superá-la, seria estratégico vincular as doações externas à produção
de pequenos agricultores familiares brasileiros, priorizando aqueles de
assentamentos da reforma agrária, como forma de superação de pobreza.
Na próxima seção argumentaremos que o MRE do governo Lula tentou
executar uma política justamente nestes moldes, mas sem sucesso. Parte do
fracasso se deveu às próprias regras logísticas do PMA.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 101
Ainda antes da chegada de Lula à presidência, o Embaixador Flávio
Perri, substituto do Embaixador Santos como Representante Permanente
na REBRASFAO no fim de 2002, atestou que o Brasil possuía pouca
autoridade política no PMA por estar ausente há anos da membresia da Junta
Executiva e não integrar o rol de doadores. Para Perri, essa posição deveria
ser alterada pela construção interna do Projeto Fome Zero no Brasil, que
estava angariando atenção de países e de agências internacionais vinculadas
ao tema. Em Telegramas enviados (nº 00262 de 02/11/2002; nº 00290
de 13/11/2002; nº 00310 de 21/11/2002 e nº 00346 de 20/12/2002)
após a vitória eleitoral de Lula em outubro de 2002, mas antes de sua
posse em janeiro de 2003, percebeu-se grande articulação entre a FAO e
a burocracia de Brasília para aprofundar parcerias com base no Programa
Fome Zero. Na percepção do Itamaraty, havia bastante expectativa por
parte dos funcionários da FAO quanto aos frutos que poderiam ser colhidos
mediante a centralidade do combate à fome e à pobreza na presidência de
Lula (Telegrama nº 00028 de 16 de janeiro de 2003).
Nesse sentido, o Embaixador Perri incentivou que o Brasil adotasse
uma postura mais participante no PMA, tanto na Junta Executiva,
quanto por meio da ajuda alimentar internacional. O Representante
Permanente enfatizou diversos ganhos que uma atuação mais decisiva e
participante do Brasil poderia lograr. A postura mais ativa traria maior
abrangência política ao momento nacional de mobilização no combate
à fome e à pobreza, apresentando posição internacional coerente com
a proposta social interna e demostrando a solidariedade brasileira
para com os estrangeiros agredidos pela mesma miséria. Ao assumir a
posição de doador, o governo brasileiro poderia também auferir ganhos
de influência entre doadores tradicionais, confirmar sua liderança entre
países latino-americanos e caribenhos para além da FAO e do FIDA, e
adquirir prestígio político entre países mais carentes, especialmente os
africanos (Telegrama nº 00028 de 16 de janeiro de 2003).
As correspondências diplomáticas posteriores demonstraram que
o posicionamento de Perri era amplamente apoiado pelo Secretariado do
PMA. No Telegrama nº 00070 de 4 de fevereiro de 2003, ao relatar sobre
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
102 |
o diálogo permanente e fluido que mantinha com representantes da FAO,
FIDA e PMA em Roma, Flávio Perri declarou:
Surgiu naturalmente o tema da maior presença brasileira no PMA,
desejada e incentivada pelo Secretariado. Nossa relativa ausência
não é bem compreendida. A dimensão da economia brasileira e sua
excelência na produção agrícola fazem com que o Brasil seja visto
por meus interlocutores como um Estado membro que deveria
fazer valer seu potencial técnico e político pela intensificação de
sua participação, retomando, ainda que em termos simbólicos, as
contribuições [...]. O segundo aspecto dessa expectativa de que
voltemos a desempenhar um papel no PMA será o retorno à Junta
Executiva (Telegrama nº 00070 de 4 de fevereiro de 2003, p. 1-2).
Os relatos demonstram que o PMA agia para cooptar o Brasil,
enquanto potência agroalimentar e economia emergente, para alargar sua
envergadura doadora em uma conjuntura de declínio nas contribuições
direcionadas pelos doadores tradicionais ao órgão. A atitude do PMA
permaneceu sendo relatada em correspondências diplomáticas posteriores.
À medida que os Diretores do PMA se empenhavam em engajar o Brasil, o
governo brasileiro correspondia positivamente, demonstrando uma atitude
de cooperação para com o órgão devido a interesses próprios.
Um exemplo dessa reação positiva do Brasil foi a articulação por parte
da REBRASFAO de uma visita do então Ministro do Desenvolvimento
Agrário Miguel Rosseto ao Diretor Executivo do PMA James Morris em
Roma. Durante a visita realizada por Miguel Rosseto, James Morris declarou
enfaticamente sua admiração pelo trabalho do Presidente Lula no tema da
segurança alimentar e nutricional e ouviu atentamente a apresentação de
Rosseto sobre os aspectos do processo agrário/rural brasileiro (Telegrama
nº 00196 de 7 de Abril de 2003).
Um mês depois, por meio do Telegrama nº 00285 de 14 de maio
de 2003, Flávio Perri apresentou informe sobre encontros promovidos
por Jacques Diouf, Diretor Geral da FAO, e por James Morris, Diretor
Executivo do PMA, nos quais foram expostos o momento de crise de
recursos e a busca de perspectivas de ação das agências da ONU dedicadas
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 103
ao combate à fome e à pobreza. Os Diretores selecionaram Representantes
Permanentes de cerca de dez países para aqueles encontros. Diouf selecionou
os países dando preferência a integrantes do G-77, James Morris priorizou
países que segundo ele teriam influência potencial. Brasil e Egito foram os
únicos países coincidentes nas duas listas, o que demonstrava a relevância
atribuída ao Brasil na discussão da governança internacional de assuntos
alimentares. O Embaixador Perri relatou que os países foram exortados a
trabalharem com o PMA e a se juntarem aos então dez doadores centrais
do órgão. Morris atribuiu em sua fala destaque ao Brasil, por esse assumir a
posição de “um dos maiores produtores mundiais de alimentos” (Telegrama
nº 00285 de 14 de maio de 2003).
Como mencionado na seção anterior, o ápice do processo de
reforma institucional de 2004 foram as consultas informais e a aprovação
do documento NPSNC. O Brasil foi um dos países representados na
consulta informal realizada pelo Secretariado no dia 5 de maio de
2004. Em seu relato sobre o processo, a Embaixadora brasileira Maria-
eresa Lazaro explanou que tanto as consultas informais como o
paper distribuído na reunião, resultavam de iniciativas do Secretariado,
acatadas pela Junta Executiva (Telegrama nº 238 de 10 de maio de
2004). O Secretariado defendera o twinning e o fundo EDMF como
opção para custear doações in-kind (alimentos) e de serviços por países
com capacidade financeira limitada.
Ainda segundo Lazaro, a reação inicial de doadores tradicionais como
Noruega, Holanda, Dinamarca e Alemanha foi de evidente reticência. Eles
pareceram preocupados em perder a capacidade de determinar a utilização
dos recursos que aportavam ao Programa com a implantação dos novos
mecanismos. Esse informe da Embaixadora Lazaro confirmou a postura
demonstrada por alguns membros da Junta Executiva na Segunda Sessão
de 2003, como descrito anteriormente. Para superar as resistências dos
doadores tradicionais, o Secretariado garantiu que a lista de países que se
beneficiariam de instrumentos como o twinning seria definida em comum
acordo entre todos os membros da Junta.
Este episódio é importante por demonstrar que a decisão de
expandir a base de doares do PMA por meio de facilidades estendidas a
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
104 |
doadores não-tradicionais não foi consensual entre os Estados-membros
da Junta Executiva. Ficou clara a preocupação dos doadores tradicionais
de que a inclusão de novos doadores poderia resultar em perda relativa
de influência sobre os processos de tomada de decisão. Adicionalmente, o
episódio demonstrou também a atuação direta do Secretariado para superar
a discordância e construir um acordo. Fortalece-se, assim, a hipótese de
que o Secretariado do PMA teve papel ativo na tentativa de cooptação de
doadores emergentes, cuidando para que os interesses destes não viessem a
sobrepujar os dos doadores tradicionais.
O episódio também fornece evidência de que o Brasil não atuou
ativamente para reformar o sistema. Esse entendimento deriva de não
termos encontrado informação que apontasse para papel ativo do Brasil
na correspondência diplomática. A avaliação foi reforçada por entrevista
com o Conselheiro Arnaldo Fernandes (2015), que assegurou que o Brasil
tinha uma atuação bastante discreta nas Sessões da Junta Executiva no
período de elaboração do NPSNC, inclusive em 2004. A posição discreta
do Brasil, no entanto, pode ter decorrido da inexistência de necessidade
de posicionamento mais assertivo, já que a proposta defendida pelo
Secretariado era francamente favorável aos interesses do Brasil, conforme
avaliou a Embaixadora Lazaro em outubro de 2004.
A aplicação do princípio de recuperação total de custos, essencial,
já que as atividades do Programa dependem da disponibilidade de
doações, é estritamente observada e estão previstas modalidades
para atendimento a países que não apresentam condições de
cumpri-lo. As opções para assegurar doações in-kind (twinning,
cost-sharing – parágrafos 20 a 26 do documento) apresentam
potencial de interesse para o Brasil no quadro de intensificação
da cooperação Sul-Sul com países fronteiriços e/ou vizinhos. O
documento comtempla igualmente seção dedicada ao Setor Privado
(Seção V – parágrafos 29 a 45) de onde é expectativa do PMA
poderão provir 10% do total do montante de seu orçamento. [...]
A disposição do Brasil de retomar sua cooperação com o PMA
coincide agora com a adoção de novas estratégias de abordagem
política no PMA. A ampliação da base de doadores ao PMA e a
atenção ao fomento de capacitação nacional e regional permitem
conjugar duas vertentes de interesse para o Brasil, país doador
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 105
de alimentos e potencial beneficiário da capacitação que detém
o PMA – na logística de manutenção de estoques e distribuição
de alimentos, por exemplo – para a implementação nacional dos
objetivos de segurança alimentar do Fome Zero. Será importante
buscar aproveitar essa oportunidade singular que se oferece ao
Brasil para conformar marco estratégico de referência para a
atuação futura do país no PMA. (Telegrama nº 00579 de 25 de
outubro de 2004, p. 4, grifo nosso).
É notável a especificação da Embaixadora de que as estratégias
configuraram-se como algo ‘oferecido’ e não ‘buscado’ pelo Brasil.
Ademais, a comunicação sugere ‘aproveitar’ a oportunidade para
elaborar os instrumentos necessários para agir por meio do PMA, isto
é, a formatação de elementos da política de ajuda alimentar deveria vir
a reboque das possibilidades abertas no PMA, e não o contrário. Isso
enfraquece a hipótese de que o Brasil, como doador emergente, estaria
buscando modificar o sistema internacional de cooperação para melhor
atender à sua política de ajuda internacional. Reforça, por outro lado, a
hipótese de que a reforma patrocinada pelo Secretariado criou estímulo
para adequação no Brasil.
Porém, se por um lado o Brasil não era uma força promotora de
mudança no modus operandi do PMA, por outro lado tanto o Secretariado
do Programa quanto atores do governo brasileiro se mobilizavam para
estreitar relações tendo em vista as oportunidades que seriam abertas
com a reforma. São evidências disso a visita de Morris ao Brasil ainda em
2004, onde se reuniu com o Presidente Lula, vários Ministros, membros
do Congresso e com o Conselheiro Especial da Presidência e então
coordenador de um dos eixos do Programa Fome Zero, Frei Betto.
O Brasil, por sua vez, aumentava sua projeção internacional com a
agenda de combate à fome e à pobreza, o que o tornava um parceiro ainda
mais desejado pelo PMA. Por exemplo, em janeiro de 2004, em retorno ao
convite feito pelo Presidente Lula, o Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan,
o Presidente da França, Jacques Chirac e o Presidente do Chile, Ricardo
Lagos, reuniram-se em Genebra para discutirem perspectivas relacionadas
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
106 |
aos dilemas socioeconômicos globais, com tratamento particular ao assunto
da erradicação da pobreza e da fome (Chirac; Lagos; Lula; Annan, 2004).
Na reunião, os presidentes e o Secretário-Geral da ONU, publicaram
uma Declaração conjunta intitulada Action against hunger and poverty, no
qual as partes acordaram a criação de um Grupo Técnico composto por
especialistas de Brasil, França e países interessados, que seria encarregado
de estudar diferentes propostas relacionadas à possibilidade de majorar
o financiamento das ações globais de combate à fome (Chirac; Lagos;
Lula; Annan, 2004). No final da Declaração, os presidentes reiteraram
seus anseios de que meios inovadores de financiamento das ações globais
contra a fome e a pobreza fossem aventados nas Sessões posteriores dos
órgãos governativos da FAO, do PMA, do FIDA, assim como no âmbito
da Assembleia Geral da ONU (Chirac; Lagos; Lula; Annan, 2004).
Os resultados do estudo concretizado pelo Grupo Técnico instituído
pela Declaração de Genebra foram expostos em setembro de 2004, em Nova
Iorque, antes das atividades da 59ª Assembleia Geral da ONU, em reunião
convocada pelo Presidente Lula. Na reunião, cem países subscreveram a
New York Declaration on Action Against Hunger and Poverty, ratificando
seus compromissos com os esforços globais concernentes a promoção da
segurança alimentar e nutricional. Para a pesquisadora Pilar Brasil (2013)
embora a Declaração de Nova York não tenha produzido resultados sólidos,
ela confirmou um importante arranjo político simbólico.
4 retomaDa Das Doações brasileiras ao Pma
Após a aprovação do NPSNC as relações entre o Brasil e o PMA
se aprofundaram. Em 2005, representantes do PMA participaram de
um seminário no Rio Grande do Sul organizado pelo Ministério de
Desenvolvimento Agrário e pela Companhia Nacional de Abastecimento
(CONAB). Na oportunidade, a CONAB discorreu sobre as singularidades
do PAA brasileiro e os representantes do PMA informaram sobre os processos
de licitação de compras de alimentos do órgão, que seria o responsável pela
logística nacional. Ainda em 2005, a Diretora Regional Adjunta do PMA,
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 107
Gordana Jerger, veio ao Brasil discutir, entre outras questões, a possibilidade
de o país passar a doar alimentos ao PMA para atendimento de emergências
humanitárias. Na ocasião, o PMA ofereceu sua parceria para transportar as
doações brasileiras de alimentos. O Brasil voltou a contribuir efetivamente
com o PMA em 2007, doze anos após sua última doação. As contribuições
financeiras e em alimentos foram destinadas ao Country Office da Bolívia,
para auxiliar na catástrofe causada por enchentes. Em 2008, o governo
brasileiro enviou – primeiro pela sua Força Aérea, depois pela Marinha
–, doações de alimentos e medicamentos a Cuba, Jamaica e Haiti, que
haviam sido atingidos por furacões (Fernandes, 2013). No seu retorno ao
sistema multilateral de ajuda alimentar, o governo brasileiro cobriu todos
os custos associados às suas doações, inclusive de transporte.
Em 2009, no entanto, limitações orçamentárias levaram o país a
realizar sua primeira contribuição sob o arranjo twinning e, a partir daquele
ano, esse se tornou o principal instrumento viabilizador das doações
brasileiras ao PMA. A primeira operação foi financiada com contribuições
da Espanha e do Emerging Donors Matching Fund (EDMF) (Canuto
2013; IALCSH, 2017). Em 2011, a Lei 12.429 especificou que o frete
e demais custos associados à doação de alimentos dos estoques públicos
nacionais deveriam ser providenciados pelo PMA, ou ressarcidos através da
monetização de parte da doação. Essa normativa reforçou a necessidade de
utilização das ferramentas de suporte ao cumprimento da FCR: o twinning
e a monetização.
O twinning permitiu ao Brasil ser o 10º maior doador gover-
namental do órgão em 2011. O Annual Perfomance Report de 2011,
apresentado na Sessão Anual da Junta Excetiva de 2012, mencionou a
alavancada brasileira:
e strong relationships with Brazil and with developing
economies are founded on innovative funding: the value of
twinning arrangements doubled in 2011, providing opportunities
for South–South cooperation and leveraging cash contributions
from traditional donors (WFP, 2012b, p. 51).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
108 |
Em 2012 o Brasil aumentou seu destaque ao figurar entre os cinco
maiores doadores governamentais.
Tabela 1 - Doações de Alimentos do Brasil por meio do PMA 2008 -
2015
12
(dados em toneladas)
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
0 25.000 0 83.922,08 206.432,55 18.432,76 12100 6.955,10
Fonte: CGFome. Elaboração própria
13
4.1 limitões brasileiras e a Prevalência Do moDelo Do Pma
Como demonstra a Tabela 1 acima, até agosto de 2015 mais de 350
mil toneladas de alimentos foram doadas pelo Brasil por meio da cooperação
trilateral com o PMA e outros atores. Essa seção abordará duas limitações
brasileiras que, na discussão sobre cooperação e cooptação, apontam para a
cessão de uma preferência nacional em prol da adoção do padrão tradicional
do PMA. As limitações se referem ao custeio da logística internacional e
à capacidade organizativa dos produtores da agricultura familiar. Os dois
aspectos podem ser considerados debilidades que impediram uma inserção
internacional mais autônoma e, de certo modo, demonstraram que o
Brasil não teve poder suficiente para se sustentar como um líder efetivo
do combate global à fome, apesar de ter tido papel bastante relevante na
promoção desta agenda.
Primeiro, a logística. De acordo com as informações apresentadas
pela CGFome (2015) o valor total dos alimentos doados pelo Brasil
12
Até o mês de Agosto.
13
As tabelas foram elaboradas mediante dados fornecidos no site da Coordenação-Geral de Ações Internacionais
de Combate à Fome (CGFome) extinta em setembro de 2016, após o golpe parlamentar que levou Michel
Temer à Presidência e políticos do PSDB, principal rival do PT, à chancelaria do Ministério das Relações
Exterior. A CGFome foi criada em 2003 dentro do escopo do Ministério das Relações Exteriores (MRE),
sob liderança do Ministro Milton Rondó Filho, durante o governo do ex-Presidente Lula. A instituição
era responsável por lidar com todos os aspectos concernentes a cooperação internacional do Brasil na área
da segurança alimentar e nutricional, assumindo a gerência das relações do Brasil com a FAO, o PMA
e o FIDA, por exemplo. Atualmente essas funções são exercidas pela Divisão de Direitos Humanos e
Temas Sociais do MRE e pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC). Os dados sobre as contribuições
brasileiras ao PMA no período posterior a agosto de 2015 não foram encontrados nas bases de dados destas
últimas instituições citadas. Recorreu-se a solicitação dos dados pelo e-SIC (Sistema Eletrônico do Serviço
de Informação ao Cidadão), mas a resposta consistiu em banco de dados do mesmo prazo.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 109
correspondeu a aproximadamente USD 177 milhões. Para viabilizar
essas doações, mais de USD 180 milhões foram empregados por outros
membros do PMA, por fundos multilaterais e, de forma diminuta, pelo
setor privado. O Brasil custeou aproximadamente USD 3 milhões em frete
nesse período. Note-se que o custo dos serviços de transporte coberto por
parceiros superou o valor específico dos alimentos doados. O alto gasto
com frete, aliás, dá algum suporte às críticas às doações vinculadas (Clapp,
2012). Por outro lado, demonstra também as limitações que doadores
emergentes e o PMA precisam enfrentar para distribuir os alimentos que,
naquele estágio, eram capazes de dispor.
Segundo os dados da CGFome (2015) os principais parceiros
das doações brasileiras através do PMA foram a Espanha, a Austrália e
os Estados Unidos. Os fundos multilaterais e agências do Sistema ONU
também tiveram um papel importante na canalização das contribuições
brasileiras. No período de 2008-2015 o Central Emergency Fund Response
(CERF) da United Nations Office for the Coordination of Humanitarian
Affairs (UNOCHA) e a United Nations Relief and Works Agency for
Palestine Refugees (UNRWA) figuraram entre importantes contribuintes
dessa categoria. Outros países contribuíram, ainda que de forma menos
expressiva, para transporte das doações do Brasil. Entre esses estão
Luxemburgo, Nova Zelândia, Alemanha, Noruega, Suíça, Guatemala, São
Tomé e Príncipe e Andorra. Ainda segundo as informações da CGFome,
no ano de 2011 e 2012, doadores privados também ajudaram a cobrir os
custos de frete das doações do Brasil da (CGFome, 2015).
Esses dados demonstram a dificuldade que potências emergentes,
como Brasil, podem ter para cumprir a norma da FCR sem o apoio de
ferramentas como o twinning. Por isso, alegando restrições orçamentárias,
o Congresso brasileiro aprovou lei proibindo gastos com o transporte
internacional da ajuda alimentar. Não fosse a cooperação triangular,
possivelmente mais de 350 mil toneladas de alimentos brasileiros não teriam
sido distribuídas em operações humanitárias que atenderam milhares de
pessoas entre 2008 e 2015, período de graves instabilidades mundo afora.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
110 |
Porém, para acessar o instrumento twinning do PMA, o Brasil
teve de ceder em sua preferência de política pública de ajuda alimentar
internacional. Esta cessão reflete a segunda limitação.
A ideia original do governo brasileiro, segundo informaram Milton
Rondó, da CGFome, e Claudio Dalla Costa, da CONAB, era mobilizar
alimentos produzidos pela agricultura familiar brasileira para doar a
populações flageladas estrangeiras
14
. Neste arranjo, duas populações de
países em desenvolvimento estariam sendo auxiliadas: os estrangeiros, que
receberiam os alimentos, e os brasileiros da agricultura familiar, que teriam
no governo um comprador para seus produtos, garantindo-lhes mercado
e incentivando a produção. Por conseguinte, isso geraria renda a essas
pessoas que estariam entre as mais pobres do Brasil e, por isso, entre as
mais vulneráveis em termos de segurança alimentar e nutricional. Assim,
o plano seria a materialização de um tipo de cooperação Sul-Sul, em que
duas populações teriam ganhos legítimos devido à sua condição de países
não desenvolvidos.
Contudo, a incapacidade do governo brasileiro de financiar a
logística internacional inviabilizou o este projeto. Diante da necessidade
de se buscar alternativas para mover os alimentos no exterior, a solução
encontrada foi a cooperação triangular com o PMA. Inicialmente, como
demonstrado acima, o PMA foi atraído pela ideia de se conectar programas
de apoio à agricultura familiar no Brasil às suas operações humanitárias
globais. Inclusive, esse arranjo gerava apelo político para buscar parceiros
dispostos a custear essas operações. Porém, os padrões operacionais
de logística do PMA acabaram por inviabilizar também este plano.
Conforme Dalla Costa (2016) e Rondó (2016) explicaram, havia dois
entraves fundamentais que resumiremos a seguir. Primeiro, a produção
da agricultura familiar não atingia a quantidade e a uniformidade exigidas
pelo PMA. Segundo, os agricultores familiares, por serem numerosos,
mais dispersos geograficamente e com dificuldades de organização, não
conseguiam arcar com os custos de embalagem dos alimentos com o
14
Entrevistas concedidas a iago Lima, realizadas com Claudio Dalla Costa, da CONAB, e com Milton
Rondó, da CGFome, em Brasília, DATAS.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 111
padrão do PMA, tampouco custear o transporte dos alimentos até o porto
onde o Programa assumiria a logística.
Esses padrões técnicos não foram flexibilizados pelo PMA e não
identificamos, nesta pesquisa, qualquer negociação nesse sentido entre o
governo brasileiro e o Programa. O fato é que se os pequenos agricultores
familiares tinham dificuldades para atender àqueles requisitos, o
agronegócio brasileiro não encontrava ali grandes entraves (Dalla Costa,
2016). Na época, o agronegócio possuía interesse em participar das compras
governamentais para ajuda alimentar, pois os estoques nacionais de grãos
estavam elevados, havia excesso de oferta e os preços estavam baixos,
principalmente para o arroz – que acabou se tornando a commodity mais
doada pelo Brasil. Assim, foi mobilizando os excedentes do agronegócio
em detrimento da produção da agricultura familiar que o Brasil se tornou
um dos maiores doadores mundiais (Lima, 2018). Executada desse modo,
a inserção brasileira no sistema internacional de ajuda alimentar foi
meteórica, mas efêmera. Quando diminuíram os excedentes de alimentos
e o preço das commodities básicas se recuperou, dissipou-se o interesse do
agronegócio em vender para o governo. Paralelamente, o menor carisma
da diplomacia do governo Dilma, a instabilidade nacional a partir de 2013
e o golpe parlamentar que se seguiu em 2016 evaporaram o soft power da
política externa brasileira e, com isso, a capacidade de atrair parceiros.
5 consiDerações finais
Afinal, a relação entre o Brasil e o PMA foi uma relação de cooperação
ou cooptação? Ficou claro que Brasil e PMA desenvolveram uma relação de
cooperação a partir de interesses próprios que, como se viu, eram em grande
parte complementares. Em texto clássico, Keohane (1984) argumentou
que a cooperação implica também algum conflito entre as partes para
que a ação possa efetivamente ser conduzida de maneira conjunta, ‘co-
operada’. Do contrário, existiria uma plena harmonia de interesses que
não demandaria ajuste algum e a ação individual produziria o resultado
de conjunto esperado, sem a necessidade de se combinar qualquer coisa
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
112 |
entre as partes. No caso em tela, a cooperação envolveu algum conflito de
interesses e o Brasil abriu mão de sua principal preferência política: a de
realizar a ajuda alimentar com alimentos da agricultura familiar.
Em parte, as próprias limitações brasileiras acabaram por fazer
prevalecer o modelo tradicional de ajuda alimentar do PMA, isto é, aquele
proveniente de grandes estoques de excedentes normalmente produzidos
por agriculturas de maior escala. A literatura sobre a ajuda alimentar
internacional demonstrou que, em grande medida, esse tipo de doação
pode ter função de dumping, já que tais estoques são mais disponibilizados
quando há excedentes com dificuldades de comercialização – isto é, baixa
demanda e/ou preços baixos (Friedmann, 1982; Portillo, 1987). Ademais,
esse tipo de fonte não é o adequado para planejamento estratégico de
longo-prazo, pois o mercado agroalimentar é reconhecidamente volátil.
Nisso, também, se baseia a crítica ao modelo de ‘ajuda alimentar vinculada
(Clapp, 2012).
A limitação orçamentária e a falta de capacidade logística
internacional foram demonstrações empíricas da debilidade de poder do
país para promover sua inserção internacional com autonomia. A ajuda
alimentar não foi executada da maneira inicialmente pretendida pelo Brasil,
que teve de ceder às preferências do PMA para sustentar a cooperação. Por
outro lado, a oscilação aguda dos aportes brasileiros não se coaduna com
planos estratégicos de médio ou longo-prazo do PMA, o que significa que
a instituição teve sucesso limitado em cooptar o potencial agroalimentar
brasileiro. De todo modo, montantes consideráveis de ajuda alimentar
humanitária foram distribuídos – e não se deve menosprezar o alívio que
a cooperação entre Brasil, PMA e parceiros levou a diferentes populações.
Aprimorar essas relações e desenvolver mecanismos que promovam políticas
de ajuda alimentar sustentáveis e de longo-prazo continuam desafios para o
Brasil e para o PMA. O Centro de Excelência contra a Fome, abordado por
Dri e Silva nesta coletânea, parece ser um exemplo de parceria duradoura.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 113
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caPítulo 4
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P  
   :  
 C  E
  F
Clarissa Franzoi DRI
2
Andressa Caroline Molinari da SILVA
3
“Giants still walk the earth. International relations cannot be
understood if the role of the individual is ignored”. (Byman and
Pollack 2001, p. 145).
As autoras agradecem Mariana Rocha pelo auxílio científico e Iara Leite, Camilo López e iago Lima
pelos comentários às versões prévias deste trabalho, bem como a disponibilidade e a generosidade dos
profissionais entrevistados. Somos gratas também ao CNPq pelo fomento por meio do Edital Universal, à
CAPES pelo custeio da pós-graduação e bolsa de mestrado e ao PPGRI e PROPG-UFSC pelo suporte à
pesquisa.
Clarissa Franzoi Dri é professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC, Brasil. Email: clarissa.dri@ufsc.br>. Orcid ID: https://orcid.
org/0000-0002-7738-452X
Andressa Caroline Molinari da SILVA é Mestre em Sociologia Política e Graduada em Relações
Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianopolis, Brasil. Orcid ID:
https://orcid.org/0000-0003-3173-7366.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
120 |
introDução
Em 2011, foi criado o Centro de Excelência contra a Fome, iniciativa do
governo brasileiro em parceria com o Programa Mundial de Alimentos (PMA)
da Organização das Nações Unidas (ONU). O Centro insere-se no quadro
da cooperação sul-sul e triangular e trabalha para a difusão da experiência
brasileira de combate à fome a outros países em desenvolvimento. Pretende
fomentar a criação de políticas nacionais sustentáveis para alimentação escolar,
proteção social e melhoria da nutrição. Esse trabalho realiza-se por meio do
fornecimento de assistência técnica para que outros países desenvolvam as
capacidades necessárias para encontrar soluções relativas à fome e à pobreza,
especialmente no âmbito da alimentação escolar. Trata-se de uma instituição
sui generis no âmbito da política internacional e também na esfera da política
externa brasileira. Tem sede em Brasília, é financiada majoritariamente pelo
governo brasileiro, visa o compartilhamento de experiências brasileiras e
faz parte do quadro institucional das Nações Unidas. Esta pesquisa busca
entender como e por que essa instituição foi criada, desvendando seus atores
centrais, suas motivações e as relações estabelecidas com outros atores da
política externa brasileira.
Teoricamente, o trabalho insere-se nos estudos sobre descentralização
e horizontalização da política externa e sobre o papel de lideranças e ideias
nas relações internacionais. Argumenta-se que o Centro é uma inovação
institucional relevante no âmbito da cooperação promovida pelo Brasil
nos anos 2000. Essa ideia foi gestada principalmente em um meio não
diplomático, por gestores e técnicos em educação e alimentação escolar.
Encontrou alguns espaços frutíferos para desenvolvimento junto à
diplomacia, ao governo brasileiro e à ONU, sobretudo a partir do apoio de
operadores engajados nas novas diretrizes da política externa que entraram
em cena com a gestão Lula. Esta iniciativa descentralizada de política
externa pode ter influenciado positivamente a imagem internacional do
Brasil e potencializado a contribuição que o país pode dar à superação
do subdesenvolvimento em outras nações, na linha da cooperação sul-sul
socialmente justa (Birn; Muntaner; Afzal, 2017).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 121
O Centro já vem sendo objeto de estudo há alguns anos, sobretudo
em pesquisas sobre segurança alimentar e nutricional e sobre o papel do
Brasil nos regimes internacionais de cooperação agrícola e combate à fome.
Esse trabalho busca complementar os anteriores com foco específico e
detalhado no processo de concepção e edificação institucional, que depende
da identificação dos agentes da política externa e suas razões. Para tanto, esse
estudo de caso baseia-se em metodologia qualitativa relacionada à narrativa
histórica que procura desvendar os mecanismos causais com base nos dados
empíricos. Entrevistas semiestruturadas foram realizadas pelas autoras entre
abril e maio de 2017, dentre as quais seis foram selecionadas para essa análise:
duas com diplomatas com experiência na temática da segurança alimentar e
quatro com profissionais que atuam no Centro de Excelência contra a Fome.
Os entrevistados foram selecionados por seu vínculo direto ou indireto com a
instituição em algum de seus momentos fundacionais e por seu protagonismo
nessa dinâmica. As entrevistas aconteceram presencialmente em Brasília e
procuraram reconstituir o processo de construção da nova instituição: atores,
etapas e resultado institucional.
O texto está organizado da seguinte forma. Na primeira parte, são
apresentados os marcos teóricos adotados sobre descentralização, agentes
e ideias em política externa. A segunda parte mostra como a experiência
brasileira acumulada de combate à fome renova-se a partir de 2003 e ganha
grande visibilidade internacional. Na terceira parte, explica-se o interesse
dos parceiros pelo programa de alimentação escolar dentre as demais
estratégias disponíveis. A quarta parte aborda a reaproximação entre Brasil
e PMA e a fundação do Centro em Brasília. A conclusão traz uma síntese
dos argumentos e aponta lacunas para futuras pesquisas.
DescentraliZação, agência e iDeias em Política externa
Nas últimas décadas, ganharam espaço na literatura científica os
estudos sobre descentralização da política externa brasileira. A atuação
do Ministério das Relações Exteriores vem sendo complementada ou
desafiada por uma série de agentes governamentais ou não governamentais,
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
122 |
de diferentes níveis e esferas. Ministérios, parlamentos, governos
subnacionais, intelectuais e sociedade civil, entre outros, buscam atuar ou
influenciar temas de política externa. Essa ação provoca o questionamento
sobre a diferenciação da política externa das demais políticas públicas e
sobre a necessidade de democratização de seus processos de formulação,
implementação e avaliação (Milani; Pinheiro, 2013). Ainda prevalece uma
visão geral de encapsulamento do Itamaraty, de seu distanciamento dos
debates sociais e da dificuldade de acesso às informações do Ministério
(Milani, 2015; Pomeroy, 2016).
Mais recentemente, as críticas estendem-se à descentralização sem
planejamento claro, coordenação eficiente entre os atores ou mecanismos
de accountability. Especialmente no caso da cooperação, verifica-se
dispersão institucional e ausência de um marco regulatório próprio
baseado em amplo debate público sobre as diretrizes que devem orientar
essas ações (Leite; Suyama; Waisbich, 2013), o que conduz a certa falta de
coerência e previsibilidade (Marcondes; Mawdsley 2017, p. 690). Ademais,
nem sempre a força motriz central dos órgãos brasileiros envolvidos com
a cooperação é a solidariedade internacional, mas as oportunidades de
internacionalização por meio da expansão de suas atividades e do aumento
de conhecimentos que possam melhorar seus serviços (Schleicher; Platiau,
2017, p.14). No entanto, para além de um altruísmo por vezes utópico, o
envolvimento de vários atores com clareza sobre seus próprios interesses e
objetivos aumenta as chances de transparência, de apoio da sociedade civil
e de que a cooperação se sustente no longo prazo (Leite, 2012, p. 33). A
criação do Centro de Excelência contra a Fome pode ter sido uma tentativa
de reação a essas limitações, sobretudo no sentido da busca de melhor
gerenciamento e estabilidade administrativa e orçamentária.
Algumas dessas questões refletem os dilemas da graduação, termo
recentemente cunhado para se referir aos desafios das escolhas enfrentadas
pelo Brasil, como país semiperiférico desprovido de armamentos nucleares,
para alcançar um papel proeminente e propositivo na política e nos regimes
internacionais (Milani; Pinheiro; Lima, 2017). No caso da cooperação
para alimentação e nutrição escolar, parece que a solução institucional
de parceria com a ONU tem o potencial de superar algumas dessas
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 123
ambiguidades, notadamente no que tange às maiores chances de aceitação
da política pelas potências globais, à capacidade reforçada de diálogo e
influência junto a organismos multilaterais e ao aumento da transparência,
devido ao acompanhamento simultâneo do trabalho e da aplicação dos
recursos pelo PMA e pelo Ministério de Relações Exteriores do Brasil.
Em uma engenharia institucional tão peculiar, faz-se necessário
verificar o papel dos indivíduos. Tanto em se tratando de um chefe de
Estado que atua enquanto líder predominante, capaz de comprometer
recursos do Estado (Hermann; Hermann, 1989, p. 365), como de outros
profissionais ou membros de órgãos estatais com habilidades para moldar
a política externa (Byman; Pollack, 2001, p. 146), indivíduos podem ter
uma atuação decisiva. A incorporação de um conceito de agência mais
completo e mais robusto é justamente uma das principais contribuições da
análise de política externa ao estudo das relações internacionais, pois isso
pode auxiliar na explicação sobre as ideias e os objetivos dos atores centrais
(Hudson, 2005, p.4). Algumas decisões individuais são também uteis
por colocar em xeque o culto da inevitabilidade ou a naturalização dos
acontecimentos internacionais: “just because a particular event occured
does not mean it was fated to do so” (Byman; Pollack, 2001, p. 145).
A capacidade de influência das ideias na política já foi amplamente
reconhecida, tanto em abordagens institucionalistas, construtivistas ou de
transferência de mecanismos políticos. A presença de “empreendedores
ideacionais”, isto é, pessoas que acreditam e militam por certos pontos de
vista, é um dos principais modos pelos quais uma ideia consegue atingir
um sistema político (Finnemore; Sikkink, 1998, p. 902). O número e a
qualidade dos atores que defendem a ideia são elementos importantes no
processo de busca de adesão de outros atores e de legitimação em um dado
âmbito institucional (Béland, 2009, p. 707-708). Mesmo assim, é difícil
afirmar com precisão quais ideias são causais, isto é, quais são as crenças
individuais que realmente motivam intervenções. Embora conclusões
definitivas estejam além do alcance, a consideração desses pontos pode,
por si só, iluminar as explicações sobre as ações políticas (Jervis, 2017, p.
21). Uma estratégia para identificar se ou quais ideias foram responsáveis
por uma decisão é contrasta-las com as crenças que a pessoa manifestou
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
124 |
durante um longo tempo de sua vida, e também com outras ações que ela
tenha tomado (Jervis, 2017, p. 25). Pode-se também considerar que muitas
ideias são orientadas pela necessidade humana de compreender o ambiente
e o contexto circundantes, e estimuladas por princípios mais gerais ou
comumente aceitos com os quais sejam compatíveis (Jervis, 2017, p. 26).
Outro ponto de debate antigo nas ciências humanas é a relação entre
ideias e interesses. “If Marx, Mannheim, and Weber could not settle it,
I certainly cannot. e extremes are easy enough to rule out. Even if we
believe in the existence of objective interests, they do not dictate all beliefs
(Jervis, 2017, p. 36). Em grande parte dos casos, considerações morais
e empíricas estão unidas na formação das crenças: “a sharp separation
between cognition and affect is impossible and a person who embodied
pure rationality, undisturbed by emotion, would be a monster if she were
not an impossibility” (Jervis, 2017, p. 17). A perspectiva construtivista
das relações internacionais contribui para esse debate apresentando as
ideias como identidades sociais que conferem conteúdo e significado aos
interesses (Adler, 2002, p. 103). Assim, elas são mais do que restrições ou
complementos aos interesses dos atores, pois elas determinam a própria
natureza e viabilidade desses interesses (Klotz; Lynch, 1999, p. 54).
Se as ideias, assim como outras variáveis explicativas dos fenômenos
internacionais, podem depender de fatores sistêmicos, domésticos ou
burocráticos, elas podem também estar vinculadas a atores individuais.
Indivíduos tendem a ser mais influentes em decisões de política externa
quando existe conflito ou ambiguidade no âmbito de forças mais amplas já
citadas – sistêmicas, domésticas ou burocráticas. Em contextos fluidos ou de
mudança institucional, a importância dos indivíduos também tende a crescer,
pois eles podem atuar, em geral, de maneira mais decidida e precisa do que
os grupos (Byman; Pollack, 2001, p. 36-37). Ademais, certas preferências
individuais podem influenciar os órgãos internos de um Estado (Byman;
Pollack, 2001, p. 37). O processo de criação do Centro de Excelência contra
a Fome pode ter sido impactado por atuações individuais decisivas, que
moldaram sua concepção, as estratégias políticas adotadas e as negociações
estabelecidas, conforme se buscará averiguar nas próximas seções.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 125
as rePercussões internacionais Do Programa fome Zero De 2003
O caminho que levou ao Centro de Excelência contra a Fome deriva
diretamente das políticas de combate à fome e à pobreza, que não são novidade
no cenário político brasileiro. Inserido na agenda da gestão Getúlio Vargas,
na década de 1930, o tema foi debatido na primeira Conferência Nacional
de Alimentação e Nutrição, realizada em 1986 após forte mobilização
social. Nesse contexto de redemocratização, surgiu a proposta da criação
de um conselho nacional que trabalhasse com as múltiplas dimensões do
problema, garantindo a participação da sociedade civil na formulação,
implementação e monitoramento das políticas públicas, em contraposição
às práticas autoritárias anteriores (Maluf, 2012, p. 287). Em 1991, o Partido
dos Trabalhadores, derrotado nas eleições presidenciais de 1989, lançou um
documento intitulado “Política Nacional de Segurança Alimentar”, com
propostas para políticas públicas no tema, de autoria de Lula da Silva e José
Gomes da Silva (pai de José Graziano), que estudava a questão agrária no
Brasil e teve contato com o conceito de segurança alimentar em um congresso
científico na Itália (Tomazini; Leite, 2016, p. 21).
No entanto, o assunto apenas foi elevado ao topo das preocupações do
governo com a chegada do presidente Lula da Silva ao poder, em 2003, ele
mesmo tendo experimentado dificuldades dessa natureza em sua trajetória
pessoal. Menções a políticas de combate à fome e de renda mínima já
estavam presentes no Programa de Governo do Partido dos Trabalhadores
apresentado nas eleições de 2002 (PT 2002, 41), e foram reafirmadas como
prioridade desde a posse do novo presidente. No início de seu mandato,
Lula criou o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate
à Fome, bem como restabeleceu o Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional, criado por Itamar Franco em 1993 e extinto
por Fernando Henrique Cardoso em 1995. O Conselho tem caráter
deliberativo e propositivo e é composto por membros governamentais (um
terço), representando ministérios que se ocupam de assuntos relacionados
à alimentação, e por membros da sociedade civil (dois terços), escolhidos
com base em critérios indicados nas conferências nacionais de segurança
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
126 |
alimentar e nutricional, representando ONGs, redes, movimentos sociais,
associações profissionais e entidades religiosas (Maluf, 2012, p. 291).
Fundadores do Centro de Excelência contra a Fome vivenciaram
esse período e fizeram parte dessas transformações.
Eu fui membro do Conselho naquele período, a gente militou muito
para construir o Conselho naquela época, nutricionistas e várias
outras entidades. [...] Minha participação na militância social já vem
de muitos anos, brigando para implementar as políticas de segurança
alimentar e nutricional no país. [...] Durante a faculdade, a história
da nutrição era uma coisa que me incomodava muito. A nutrição no
Brasil foi criada muito mais para abafar a ânsia dos trabalhadores, que
estavam já lutando contra o governo para que houvesse cestas básicas.
Então Getúlio Vargas criou o Programa Nacional de Alimentação
do Trabalhador. [...] Os cursos de nutrição foram criados para ter
cozinhas para aplacar os ânimos desse povo. O mote inicial que era
a luta pela qualidade da alimentação e o direito, isso era esquecido,
deixado de lado. Mas o que mais me atraía na discussão era saber
porque eles lutavam para ter a alimentação como direito já na década
de 1940. [...] Ora, se eles tivessem um emprego, se tivessem grana,
se morassem perto de casa, eles teriam que comer nos restaurantes?
Por que os escolares tem que comer nas escolas, por que eles não tem
como ir para casa comer? [...] Por que não tinham salário adequado?
[...] Eu tive professores que fomentavam esses questionamentos
(Funcionário 1).
O Ministério e o Conselho foram responsáveis por liderar o
planejamento e a implementação do Programa Fome Zero, que estabeleceu
uma política de segurança alimentar para o Brasil combinando ações de
emergência com medidas estruturais. A atuação governamental deveria
acontecer em diversos eixos, buscando atacar as causas estruturais da pobreza
e erradicar a fome, dentre eles: a) acesso à alimentação; b) fortalecimento
da agricultura familiar; c) reforma agrária; d) geração de renda e combate
ao desemprego; e) fomento a políticas locais (Takagi; 2012, p. 62). O
agrônomo e professor universitário José Graziano da Silva, na época já com
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 127
uma longa trajetória de pesquisas sobre distribuição de renda e a questão
agrária, coordenou os estudos que deram origem ao projeto.
Para além da sociedade brasileira, o governo, em seus primeiros anos,
buscou sensibilizar e engajar a opinião pública mundial para a emergência da
luta contra a fome como caminho para a paz. O tema recebeu, assim, destaque
em grande parte das intervenções em reuniões e conferências internacionais
das quais o país participou durante o ano de 2003 (Fernandes, 2013, p. 85). O
posicionamento brasileiro encontrava respaldo em um regime internacional
alimentar marcado por recorrentes diálogos multilaterais que deram origem
à Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar Mundial, em 1996.
Fruto da Cúpula Mundial da Alimentação auspiciada pela Organização das
Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a referida declaração
consolida uma definição de segurança alimentar debatida desde a Primeira
Guerra Mundial. Entende-se que a “segurança alimentar existe quando todas
as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico e econômico a alimentos
suficientes, seguros e nutritivos para atender às suas necessidades dietéticas e
preferências alimentares para uma vida ativa e saudável” (FAO, 1996, p.1).
Também em 2003 foi aprovada a Política Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional que deu origem, em 2006, à Lei Orgânica de
Segurança Alimentar, estabelecendo o Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional. Esses marcos formaram os instrumentos
normativos e políticos da estratégia brasileira de combate à fome
(Fraundorfer, 2015, p. 93). Soma-se a esse arcabouço a promulgação da
Emenda Constitucional 64/2010, que alterou o artigo 6º da Constituição
Federal para incluir o direito social à alimentação como um direito humano
a ser defendido pelo país. O Programa Fome Zero foi finalizado em 2007,
mas essas políticas deram continuidade aos seus princípios e buscaram
garantir sua sustentabilidade como práticas de Estado e não de governo
(Chmielewska; Souza, 2011, p.10). Da ideia de apenas aplacar a fome
dos anos 1940, no início do século XXI a legislação brasileira passou a
considerar a fome como uma forma aguda de pobreza e exclusão econômica
e social e a alimentação como um direito (Funcionário 1). A Lei Orgânica
de 2006 também prevê, em seu artigo 6º, que “o Estado brasileiro deve
empenhar-se na promoção de cooperação técnica com países estrangeiros,
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
128 |
contribuindo assim para a realização do direito humano à alimentação
adequada no plano internacional” (Brasil, 2006, p. 1).
Nesse mesmo período, o governo brasileiro colocou-se como um
ator disposto a assumir maiores responsabilidades internacionais (Velasco
Jr, 2017, p. 337). Esse posicionamento corresponde a uma mudança na
estratégia de inserção do país no cenário global da cooperação internacional
para o desenvolvimento. O modelo tradicional de ajuda internacional
baseado nas relações bilaterais e hierárquicas entre países mais desenvolvidos
como doadores e menos desenvolvidos como receptores passou a dividir
espaço com outras formas de cooperação, tendo em vista a proliferação de
diferentes instituições e iniciativas multilaterais a partir da década de 1950.
Essa dinâmica reorganizou-se novamente nos anos 2000, com a emergência
de Estados até então receptores de ajuda, que se tornam também doadores
ao intensificar seus esforços no apoio ao desenvolvimento de outros
países do sul global. Esse movimento fortaleceu a cooperação sul-sul, ou
cooperação técnica entre países em desenvolvimento (Milani, 2017, p.
103), que congrega um sistema para a colaboração entre países do sul nos
domínios econômico, social, cultural, ambiental e técnico (PNUD, 2007).
Esse conceito alargado vem sendo complementado por tentativas
de especificação das relações sul-sul comparativamente às trocas norte-sul,
que incluem a criação de confiança por uma eventual percepção de maior
horizontalidade, o que poderia tornar os agentes receptores mais dispostos
a aprender com as experiências de outros países do sul (Leite, 2012, p.
34-35). Os princípios da igualdade, da parceria e do interesse mútuo, a
transferência de capacidades a partir de experiências internas prévias,
a ausência de condicionalidades e a atuação a partir de demandas dos
países receptores são também elencados como características desse tipo de
cooperação (Cabral, 2011; Quadir, 2013). Essa perspectiva foi estimulada
por um cenário econômico internacional favorável aos países emergentes
e pela chegada ao poder de governos de esquerda em alguns deles,
restabelecendo o papel do Estado como promotor de desenvolvimento
(Leite; Pomeroy; Suyama, 2015, p. 1449). No caso brasileiro, essa agenda
ganhou grande atenção da presidência da República e foi impulsionada
por grupos burocráticos nacionais com ideias e experiências em inclusão
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 129
social e desenvolvimento, em diferentes setores (Leite; Pomeroy; Suyama,
2015; Schleicher; Platiau, 2017).
Do ponto de vista da política externa, o esforço pela divulgação de
políticas brasileiras de sucesso em outros lugares do mundo coaduna-se com
a busca de soft power de parte de um país médio, com recursos financeiros
limitados (Hirst; Lima; Pinheiro, 2010). Corresponde também, mais
especificamente, à tentativa de diversificação de parcerias internacionais do
governo Lula, a fim de conquistar maior equilíbrio com os países do norte
e aumentar o protagonismo internacional do país (Vigevani; Cepaluni,
2007, p. 282-283). O Programa Fome Zero não esteve afastado desses
propósitos e protagonizou uma clara estratégia de difusão internacional
de seus princípios e práticas nos mais diferentes fóruns internacionais
(Cunha, 2010) e por meio das redes da governança global (Fraundorfer,
2013). Isso atraiu a atenção de atores internacionais interessados no tema
e aumentou a demanda pelo conhecimento das políticas brasileiras. A
instrumentalização desse projeto para fins econômicos parece ter tomado
parte no processo, sobretudo dado o grande aumento das relações
comerciais entre o Brasil e alguns países africanos no mesmo período, mas
esteve presente, concomitantemente, uma preocupação genuína por parte
de gestores brasileiros em diminuir a miséria em escala global (Burges,
2014). A evolução da questão da segurança alimentar na agenda externa
do governo Lula pode inclusive fortalecer a tese da ruptura com a política
externa do governo anterior (Inoue; Coelho, 2018).
Em resumo, a mobilização de atores sociais para o combate à fome
no Brasil, reforçada com o fim do regime militar nos anos 1980, aliada à
chegada de um partido de esquerda à presidência em 2003, com um líder
sensível ao tema, permitiu que uma ampla e robusta política de segurança
alimentar e nutricional fosse institucionalizada. A difusão internacional
do Programa Fome Zero contribuiu para a criação de um setor específico
para lidar com o tema dentro do Ministério das Relações Exteriores, e
para as altas demandas internacionais que começaram a ser recebidas pelo
Ministério da Educação a partir de meados dos anos 2000, o que será
detalhado na próxima parte. Os desdobramentos desses eventos estão
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
130 |
estreitamente vinculados ao surgimento do Centro de Excelência contra
a Fome em 2011.
alimentação escolar como estratégia concreta na Difusão Do
combate à fome a Partir De 2007
O Programa Fome Zero gerou ou reorganizou projetos específicos
em cada um de seus eixos de atuação. Dentre as políticas destinadas a
aumentar o acesso da população de baixa renda à alimentação, estão o
Programa Bolsa Família, de 2003, e o Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE), existente desde 1955. Dentre as iniciativas relacionadas
ao fortalecimento da agricultura familiar, incluem-se o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA), de 2003, e o Programa Nacional de
Agricultura Familiar, existente desde 1996
4
. O Bolsa Família é uma política
de transferência condicional de renda, que consiste na ajuda financeira
do Estado às famílias pobres que devem, em contrapartida, manter as
crianças na escola e realizar acompanhamentos de saúde e vacinação. Um
dos desafios do programa foi sua universalização, buscando atingir todas
as famílias em situação de pobreza no Brasil (Campello, 2013, p. 15). No
que tange ao PRONAF, que oferece financiamento à produção agrícola
familiar, o programa teve seus recursos ampliados e passou a contar com
novos mecanismos de comercialização de produtos (Maluf; Zimmerman,
2005, p. 11). Dentre eles, estão os concebidos pelo PAA, que “compra
alimentos produzidos pela agricultura familiar, com dispensa de licitação,
e os destina às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional e
àquelas atendidas pela rede socioassistencial, pelos equipamentos públicos
de segurança alimentar e nutricional e pela rede pública e filantrópica de
ensino” (MDS, 2018). Ademais, 30% do valor repassado pelo PNAE à
rede de educação básica, a partir de 2009, deve ser investido na compra
direta de produtos da agricultura familiar que são incluídos nos cardápios
escolares (FNDE, 2018).
Citam-se aqui apenas os projetos diretamente relacionados ao tema do trabalho. Para um panorama do
conjunto das iniciativas vinculadas ao Fome Zero, veja Maluf, Schmitt e Grisa (2009, p.33) e Albuquerque
(2013, p. 182-185).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 131
Essas diretrizes já vinham recebendo destaque entre as deliberações
das Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional (Maluf;
Zimmerman, 2005, p. 12), sempre com participação da sociedade civil.
Mas foi sobretudo com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao governo
federal em 2003 que elas passaram a ser institucionalizadas. Um dos
fundadores do Centro de Excelência contra a Fome relata que “já trabalhava
com Cristovam Buarque no Distrito Federal [...]. Quando ele assumiu o
Ministério da Educação [em 2003], ele se lembrou de mim para assumir
a coordenação do PNAE. Fiquei 13 anos. Quando cheguei tinha umas
20 ou 30 pessoas, quando saí tinha 65. Quando entrei a gente começou
a rediscutir o Programa. [...] Já havia a intenção de elaborar os cardápios
respeitando a agricultura local e a sazonalidade, mas isso era impedido pela
lei de licitações. [...] Você faz uma licitação pública e tem que ir pelo menor
preço. Então como garantir a cultura e a sazonalidade se tem que ir pelo
menor preço? [...] A gente começou a estudar a estrutura do PNAE e do
FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação]. É somente
para descentralizar recursos para as prefeituras? Se for para isso não precisa
estrutura, basta repassar tudo para a Caixa Federal. [...] Começamos a fazer
encontros de nutricionistas e gestores escolares para discutir essas questões.
[...] E também como tratar de estudantes diabéticos, hipertensos, grávidas,
por exemplo?” (Funcionário 1).
Paralelamente a esse cenário, o governo brasileiro lançou em 2002 o
Centro Internacional de Pobreza no Rio de Janeiro, que se transferiu para
Brasília em 2004 adotando posteriormente o nome de Centro Internacional
de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), sob a coordenação
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em parceria com o
Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. O IPC-IG entende-se
hoje como “um fórum global para o diálogo Sul-Sul sobre políticas de
desenvolvimento inovadoras, com o intuito de expandir o conhecimento e
as capacidades de países em desenvolvimento para desenhar, implementar
e avaliar políticas eficazes para alcançar o crescimento inclusivo” (IPC-IG
2018, 1). Inicialmente pensado para acompanhar políticas de combate à
pobreza, a instituição ganhou visibilidade internacional a partir de um
estudo financiado pelo Departamento para Desenvolvimento Internacional
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
132 |
do Reino Unido sobre o Bolsa Família, que passou a ter seus resultados
reconhecidos na redução da pobreza e desigualdade (Fraundorfer, 2013,
p.101). Esse estudo gerou as bases para a criação do Programa Brasil-
África de Cooperação em Desenvolvimento Social em 2008, objetivando
familiarizar alguns países africanos com os mecanismos do Bolsa Família.
Essa iniciativa de compartilhamento de experiências com auxílio de
colaboradores internacionais passou a ser estendida a outras áreas e a
outros Estados do Sul global, tornando-se cada vez mais uma estratégia
institucionalizada do governo brasileiro.
Na esteira da crescente influência internacional do IPC-IG, o Ministério
das Relações Exteriores criou em 2006 a Coordenação Geral de Cooperação
Humanitária e Combate à Fome (CGFOME), para tratar das “ações de
prestação de cooperação humanitária internacional do Governo brasileiro,
tanto na vertente emergencial quanto estrutural, e dos temas da segurança e
soberania alimentar e nutricional, desenvolvimento rural sustentável, gestão
integrada de riscos e desastres socioambientais e diálogo com a sociedade
civil, no âmbito internacional” (MRE, 2018). A estruturação desse órgão
foi impulsionada pelo bombardeamento do sul do Líbano por Israel em
julho de 2006, que obrigou o Itamaraty a uma retirada de emergência de
brasileiros originários do Líbano que estavam no país no momento dos
ataques (Diplomata 1). A partir desse momento, diplomatas brasileiros
perceberam que o governo precisaria dispor de estrutura e orçamento para
ajuda humanitária e iniciaram-se os repasses para o PMA.
A CGFOME na verdade reproduzia, era um espelho externo do
Programa Fome Zero [...]. [Havia] uma estratégia de dupla atração,
o emergencial e o estruturante, que a ONU incorpora. Até o Ban
Ki-Moon, ex-secretário geral da ONU, diz: não, na verdade são três,
tudo isso baseado em direitos, que é o que nós fazíamos também.
[...] Salvamos milhões de pessoas da fome, milhões. E outras,
porque não eram só alimentos, também medicamentos, colchões
para a Argentina quando teve enchente, doamos de tudo, véu para
mulheres na Somália. Porque não adianta ter assistência médica se
ela não pode sair de casa. E elas estavam tão pobres que não podiam
se cobrir, e tinham que se cobrir. A situação lá é indizível, eu visitei
(Diplomata 1).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 133
A CGFOME passou a receber, por meio das embaixadas brasileiras,
demandas de governos africanos, latino-americanos e asiáticos interessados
em conhecer a experiência brasileira em segurança alimentar, atraídos
pela visibilidade do Fome Zero (Funcionário 1). Solicitações para
compartilhamento de experiências chegavam também de organizações
internacionais como FAO, Banco Mundial e Banco Interamericano de
Desenvolvimento (Lorenzo, 2014, p. 399).
Quando o pessoal chegava aqui, tinha o PAA, tinha o Bolsa Família,
mas muitos diziam que queriam conhecer o PNAE, porque eles
tinham programas, é o PMA que banca, e eles queriam queria
ver como trabalhar com as crianças, e aí começaram a frequentar
o FNDE. [...] Na maioria desses países o PMA funcionava. [...]
Isso era o concreto, já havia cantinas escolares nesses países, e no
Brasil como é? Aí eles viam a diferença do Brasil com relação ao
deles. E quando eles chegaram a gente já tinha avançado bastante,
porque até 2005 ninguém chegava aqui procurando conhecer a
alimentação escolar” (Funcionário 1).
Desde 2007, quando gestores do FNDE visitaram a FAO em
Roma e tiveram contato com o PMA, este passou a disseminar as práticas
do programa brasileiro por meio de alguns de seus escritórios locais
(Funcionário 1).
É interessante notar que, ao mesmo tempo em que o Ministério de
Desenvolvimento Social decidiu diminuir seu engajamento na cooperação
com a África, funcionários do FNDE, autarquia do Ministério da Educação
responsável pelo gerenciamento do PNAE, aumentaram a participação
brasileira em fóruns regionais e internacionais sobre alimentação escolar,
divulgando a experiência do Brasil no tema. Por um lado, a equipe do
Bolsa Família percebeu que diversas organizações internacionais já estavam
engajadas em projetos de transferência de renda em países africanos,
que eram entendidos, em contextos diferentes do brasileiro, apesar dos
impactos positivos, como caros, complexos e dominados pelas agendas dos
doadores (Devereux; White apud Leite; Pomeroy; Suyama, 2015, p.1455).
Por outro lado, com as crises alimentares dos anos 2000, a segurança
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
134 |
alimentar retornou ao centro das preocupações internacionais e agricultura
reemergiu como prioridade para o desenvolvimento africano (Milhorance,
2013, p. 6). Assim, mesmo considerando a importância e a abrangência
do Programa Bolsa Família, a cooperação do Brasil com a África seguiu o
caminho mais específico do acesso à alimentação.
Dentre os encontros internacionais dos quais participava o FNDE,
está a Rede Latino-americana de Alimentação Escolar, criada em 2004 por
iniciativa chilena. A conferência anual do PNAE, que reunia ministérios
brasileiros vinculados com o tema, ganhou caráter internacional em 2007
ao ser organizada pelo FNDE em conjunto com a reunião da Rede Latino-
americana em Recife. Este evento é considerado pelos gestores um marco
na relação com a FAO e com o PMA, pois depois dele novos acordos
de financiamento foram estabelecidos entre essas instituições e o governo
brasileiro (Funcionário 1). Na mesma linha, o Diálogo Brasil-África sobre
Segurança Alimentar, Combate à Fome e Desenvolvimento Rural, com
organização interministerial em Brasília em 2010, reuniu mais de 40
países africanos, além da FAO e PMA, e estabeleceu a agricultura como
prioridade para a cooperação.
O PNAE é considerado inovador e exitoso por ser gerido diretamente
pelo poder público como um programa de Estado não-emergencial, com
recursos próprios; por ser universal, atendendo todos os alunos da rede
pública em uma escala significativa que abrange aproximadamente 43
milhões de estudantes; por envolver o trabalho de nutricionistas que se
adaptam às demandas dos diferentes grupos de alunos; e pela norma de
que 30% dos recursos repassados pelo governo federal aos municípios
e estados devem ser utilizados em compras de alimentos oriundos da
agricultura familiar (Funcionário 2). “Na época [final dos anos 2000]
já se disseminava a ideia de que o programa brasileiro era um pouco
diferente dos outros”, principalmente por manter como eixo central as
recomendações nutricionais e não somente a oferta de alimentos, uma
prática pouco comum nos programas de combate à fome na América
Latina (Funcionário 1). Essa abordagem interdisciplinar, que relaciona
legalmente a alimentação à educação, à saúde, à nutrição, à proteção social
e à agricultura, confere um caráter sistêmico ao programa brasileiro que
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 135
oferece diferentes e variadas ideias e possibilidades de atuação a outros países
(Funcionário 3). Mas foram o reconhecimento das pesquisas do IPEA, com
o IPC-IG, a militância do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, por
meio da CGFOME e os contatos do Ministério da Educação, por meio
do FNDE, com FAO e PMA, que contribuíram decisivamente para que
as experiências brasileiras tivessem maior visibilidade internacional do que
as de outros países latino-americanos que também tinham longo trabalho
na área da alimentação escolar, como Chile, México e alguns municípios
colombianos. A próxima seção abordará mais diretamente os contornos e
ideais do futuro Centro de Excelência contra a Fome, gestados no âmbito
do FNDE.
Pticas brasileiras, selo onu: uma nova institucionaliDaDe
via Pma em 2011
O presidente do FNDE à época relata que recebia telegramas da
CGFOME informando sobre as viagens internacionais do presidente Lula
e do ministro Celso Amorim:
‘O presidente da República visitou o Zimbábue e durante a visita
discutiram isso, isso e aquilo e durante a visita o presidente se
comprometeu a ajudar o Zimbábue na criação de um programa
nacional de alimentação escolar’. No final do telegrama dizia:
‘Tome suas providências e nos mantenha informados’. E eu dizia:
que providências? Eu pensei: o FNDE é uma autarquia federal,
cheia de amarras burocráticas, não tem como dar apoio, mas eu não
vou perder uma oportunidade dessas, sempre gostei disso e agora
que vem vou dizer que por conta da burocracia não vou fazer? Vou
fazer sim. [...] Eu sempre achei que eu tinha que ter algum trabalho
de ajuda aos países africanos. Eu ficava pensando porque todo
mundo falava de outros países e praticamente ninguém estudava
história, cultura africana, ninguém falava do que acontecia na
África (Funcionário 4).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
136 |
Aqui, como nas demais passagens da criação do Centro, percebe-se
a agência decisiva dos empreendedores ideacionais.
Assim, a partir de meados dos anos 2000, o FNDE passou a
receber inúmeras visitas internacionais, por vezes até quatro delegações
por mês, de modo que os funcionários sentiram aos poucos não mais
conseguir coordenar o PNAE brasileiro e compartilhar a experiência
simultaneamente (Funcionário 1). “Quando a gente começa a levantar
a bandeira da alimentação escolar internacionalmente, começa a ter um
interesse imenso pela alimentação escolar. E estava interferindo no FNDE”
(Diplomata 1). Ademais, por solicitação de Estados interessados, por vezes
enviavam-se técnicos para fazer diagnósticos in loco. No entanto, como
o FNDE não dispunha de assessoria internacional tampouco de recursos
destinados especialmente para esses trabalhos, as viagens encontravam
limites burocráticos e orçamentários dentro do Ministério da Educação,
o que foi tornando cada vez mais difícil o atendimento às demandas
internacionais (Funcionário 4). O Ministério tradicionalmente conduzia
projetos de cooperação bilateral sobre temas de educação stricto sensu,
não tendo como prioridade, à época, a cooperação sul-sul em segurança
alimentar e nutricional (Funcionário 1). Iniciou-se, portanto, a busca por
novos parceiros e por um novo formato institucional, de modo que os
projetos de cooperação internacional pudessem ter seguimento. A ausência
de marco legal que regule a cooperação prestada pelo Brasil e seus órgãos
públicos é uma variável importante nessa decisão.
A primeira opção pensada foi uma parceria com a FAO. Em 2006,
o FNDE assinou um Memorando de Entendimento com a FAO, pelo
qual o Brasil se comprometia a repassar recursos para compartilhar a
experiência brasileira em alimentação escolar com países africanos de língua
portuguesa. No entanto, esse acordo não provocou os efeitos esperados
no incentivo aos projetos com os quais o FNDE havia se comprometido
(Funcionário 4). Tratava-se de um momento de grande instabilidade na
FAO devido às iniciativas de reforma em curso. Em 2009, com importante
engajamento brasileiro, o Comitê de Segurança Alimentar aprovou um
novo formato mais permeável às discussões com a sociedade civil e com
especialistas, que buscava incentivar a tomada de decisão com base em
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 137
critérios científicos, de transparência e participação (Barros; Pereira, 2014).
Em 2011, o ex-ministro brasileiro José Graziano foi eleito diretor-geral da
FAO, simbolizando o novo momento da organização e a militância do
Brasil nesse processo. Como a FAO estava “olhando muito para dentro” ao
final dos anos 2000, o Brasil encontrou uma situação mais favorável para
as oportunidades de cooperação junto ao PMA (Diplomata 2).
Depois de um contato do presidente do FNDE com o PMA em
uma conferência da Rede Latino-americana de Alimentação escolar no
México, ele iniciou reuniões com o órgão que culminaram com a assinatura
de um acordo de transferência fiduciária, pelo qual o FNDE repassava
recursos ao PMA, via CEGEFEOME, para desenvolver projetos de apoio
à alimentação escolar nos países interessados.
Era um determinado país, com início, meio e fim, gente ia fazer
diagnóstico da situação e ajuda-los a criar, teve país em que a
gente ajudou a fazer cozinhas ecológicas. Era tudo acertado com o
país, eram projetos-piloto, uma ou duas escolas, era uma coisinha
assim bem simples, mas era o começo de uma cooperação. Mas
ao mesmo tempo, quando a relação estava esquentando a gente
acabava, era cortado porque acabava o dinheiro, o projeto e tinha
que voltar. E eu pensei, não é por aí. Aí começamos a pensar no
que fazer para que os países tivessem um apoio contínuo e a coisa
não terminasse dentro de um projeto, que o apoio fosse continuado
e dentro do que o país realmente quisesse fazer, escutando mais os
seus problemas e que fosse criado algo customizado para cada país.
Então cada país vai decidir o que ele quer, como ele quer e tudo
mais. E que crie políticas também, para que esses projetos tivessem
continuidade. Como fazer isso? O que fazer? Então veio a ideia de
criar um lugar, um centro que pudesse dar esse apoio a esses países
(Funcionário 4).
O objetivo imaginado pela equipe do FNDE era uma instituição
que recebesse orçamento do governo brasileiro para difusão de suas boas
práticas, mas que tivesse capilaridade suficiente junto aos países que mais
demandavam o Brasil no tema da alimentação escolar, por isso o vínculo
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
138 |
com a ONU. A proposta inicial era instalar o órgão em Moçambique,
contando com especialistas de diversos Estados, devido aos projetos de
sucesso já em andamento nesse país. Mas dificuldades administrativas
junto ao governo local levaram o PMA a sugerir a instalação do centro no
Brasil, já que era este o lugar de desenvolvimento das políticas que geravam
interesse – “eles queriam conhecer os programas do Brasil, vir ao Brasil
(Funcionário 4).
O Centro não se compara a um escritório do PMA pois tem o
objetivo mais restrito de compartilhar as experiências brasileiras, mas
também não está na esfera de subordinação da administração pública
brasileira, já que faz parte do sistema onusiano. Esse formato sui generis
oferece à instituição uma significativa capacidade de articulação entre
setores domésticos e internacionais e a possibilidade de uma atuação
maleável segundo suas metas centrais e as realidades encontradas nos países
parceiros. Ele foi concebido pela equipe do FNDE que já gerenciava os
projetos com o PMA em parceria com funcionários da Agência Brasileira
de Cooperação (ABC). Inicialmente, a CGFOME foi cogitada para ser
o elo entre os recursos financeiros do FNDE e o PMA. No entanto, no
âmbito do Itamaraty ganhava força a ideia de que a cooperação técnica
oferecida pelo Brasil deveria ser monitorada pela ABC, que até então quase
só recebia ajuda internacional (Diplomata 1). De fato, a relevância dos
programas sociais brasileiros nos anos 2000 fortificou a ABC para liderar a
negociação de instrumentos e executar atividades baseadas nos princípios
da cooperação sul-sul (Magalhães; Buani, 2017, p.455). O suporte da
direção da ABC nesse momento, bem como da missão brasileira junto
à FAO e organismos conexos, são apontados como determinantes para o
surgimento da nova instituição (Funcionário 4). Além das histórias pessoais
e crenças desses diplomatas, que concorrem para esse apoio, a perspectiva
de um relacionamento fortalecido com o PMA e de novos recursos
multilaterais para o Brasil parece ter feito parte dessa escolha. Atualmente,
o Centro conta com aproximadamente 25 funcionários, majoritariamente
brasileiros, responsáveis pela coordenação, execução e divulgação de
projetos na área de alimentação e nutrição escolar com 28 países. Quase
todos os fundadores são originários dos quadros do FNDE. Grande parte
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 139
do financiamento é aportada pelo FNDE, com repasses feitos pela ABC
ao PMA, complementado com fontes orçamentárias alternativas, como a
Fundação Bill e Melinda Gates e o Departamento para Desenvolvimento
Internacional do Reino Unido.
A criação do PMA foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU em
1961, inicialmente em caráter experimental por três anos, oficialmente
para tratar de emergências alimentares, sem dotação orçamentária,
dependente das contribuições voluntárias dos membros da ONU e
vinculado à FAO. Um dos objetivos não expressos seria o escoamento da
produção excedente dos Estados Unidos (Diplomata 2). Embora crises de
fome demandem de fato ações urgentes, a doação de alimentos comporta
o risco de desestimular a produção local. Nas décadas subsequentes, essa
crítica, aliada ao crescimento do PMA, levou a rediscussões periódicas
sobre seus focos e métodos, de modo que o apoio ao desenvolvimento
nacional por meio da produção agrícola entrou paulatinamente em pauta
(Santana, 2015, p. 49). A reaproximação do Brasil com o PMA em 2007
está relacionada com a defesa brasileira do mandato do órgão para além
da atuação emergencial (Fernandes, 2013, p.124), de maneira a estimular
a estruturação das economias nacionais e prevenir mais do que remediar
as urgências.
Nesse contexto, foi lançado em 2012, pelo governo brasileiro, o
Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) para a África, com orçamento
dividido entre FAO (para suporte à agricultura) e PMA (para compras,
inclusive de alimentação escolar, oriundas da agricultura local) (Diplomata
1). Essa é uma das iniciativas de atuação conjunta entre a CGFOME, antes
de sua desativação em 2016, e o Centro de Excelência após sua criação em
2011. Sobre as origens do PAA África, um funcionário brasileiro relata:
Quem aqui [no Brasil] já visitou um campo de refugiados? É
raro, e é uma realidade muito dura. [...] A gente conseguiu levar
uma [reunião da FAO], pelo menos, pra Nairóbi, e aí fomos
visitar um campo de refugiados, o de Kakuma, um muito grande,
tem mais de 150 mil pessoas. [...] você falava com as famílias, a
maioria tinha vindo da Somália, tinham viajado um mês a pé e
deixaram as pessoas que foram morrendo pelo caminho. Crianças,
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
140 |
idosos que não podiam caminhar, ou pelas condições nutricionais,
é absolutamente impressionante. E o que é pior: a situação dos
camponeses quenianos. As casinhas [no campo de refugiados] são
choupanas com latas de óleo do PMA, com o calor que você pode
imaginar. Tinha um hospital, de pequeno porte, e dois centrinhos
de saúde, porque o campo é muito grande. Para passar de um lado
ao outro de carro, a gente via o que parecia umas bolas de palha, eu
perguntei: o que é aquilo? ‘São as casas dos camponeses quenianos’.
Então é questão de tempo para ter um conflito, porque quem está
dentro [do campo] são estrangeiros, nas terras deles [quenianos],
tem água garantida, tem comida, a ração do PMA, mas tem, e tem
assistência médica, e escola. E quem está fora, dono daquela terra,
não tem. Dito e feito, os conflitos vieram, e aí a gente começou
a tentar trabalhar com eles o PAA. Para comprar a produção que
estava em volta para dentro do campo, transformar o problema em
solução. E dava para fazer isso (Diplomata 1).
O processo de construção institucional do Centro de Excelência contra
a Fome, que se estendeu por quase uma década, reflete o desenvolvimento
de uma diplomacia sul-sul idealizada e executada por diplomatas e não-
diplomatas. Nesse caso, foi a combinação do conhecimento especializado
de profissionais da saúde pública, da visão política de lideranças vinculadas
ao governo eleito em 2003 e de diplomatas interessados em levar ao
mundo novas mensagens sobre a realidade brasileira que possibilitou um
arranjo administrativo ousado e inovador no âmbito da política externa
brasileira. Os técnicos nacionais ofereceram conteúdos diferenciados com
potencial de interessar outros países, os diplomatas mostraram que o
reconhecimento no exterior pode fortalecer as políticas internas e reforçar
os regimes internacionais, e as lideranças possibilitaram ultrapassar limites
burocráticos apontando caminhos de ação baseados em ideias. Esse
exemplo parece indicar um potencial de sucesso para ações internacionais
descentralizadas, multi-setoriais e baseadas em expertise prévia.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 141
conclusão
A trajetória do Centro de Excelência contra a Fome confirma
o potencial de centralidade de empreendedores ideacionais em meio
a reformas ou incertezas em regimes internacionais ou nas burocracias.
Nesse caso, alguns indivíduos tiveram papel criativo e decisivo em meio
à falta de regulação para seguimento de projetos de cooperação no Brasil
e aos questionamentos internacionais sobre os formatos da assistência
alimentar. Essa atuação foi embasada em décadas de experiência de atores
sociais e agentes públicos na construção das políticas públicas brasileiras
relacionadas à segurança alimentar e nutricional. Foge aos objetivos desta
pesquisa avaliar os impactos do trabalho do Centro no combate à fome
nos países parceiros
5
. Também não são incluídos aqui dados sobre possíveis
mudanças nas relações econômicas ou comerciais entre o Brasil e esses países
a partir dessa atuação. São pertinentes observações de que a cooperação
prestada pelo Brasil pode não ser tão desinteressada quanto os discursos
oficiais fazem crer, e que ela implica em objetivos de poder e comércio.
Muitos operadores inclusive admitem expressamente que o reforço do
prestígio internacional pode trazer ganhos diretos e indiretos para o Brasil,
o que não modifica os eventuais benefícios da cooperação oferecida a países
parceiros (Inoue; Coelho 2018, p. 15). O que se demonstra aqui é, em
primeiro lugar, que não apenas interesses motivaram essa iniciativa na
política externa brasileira, mas também princípios e paixões de mulheres
e homens que acreditam no desenvolvimento e na inclusão social. Em
segundo lugar, que esse projeto não é vazio ou decorativo; ao contrário, é
baseado na história da luta por direitos no Brasil, e, assim, traz conteúdos
e exemplos que sensibilizam povos que enfrentam dificuldades similares.
A experiência do Centro revela também um caso de sucesso
de horizontalização da política externa, passando por um processo
interministerial até chegar no formato de gerenciamento centralizado
com quadros exclusivos e vinculado à ONU. O Itamaraty atuou como
instrumentalizador da cooperação sul-sul, mas os fomentadores e executores
foram agentes setoriais especialistas em alimentação escolar. São eles os
Para trabalhos que começam a fazer esse balanço, veja Magalhães e Buani (2017) e Articulação Sul (2017).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
142 |
responsáveis pela formação das bases legais e políticas para programas
nacionais autônomos que tiraram o Brasil do mapa da fome em 2014 e
despertaram a atenção internacional. Em todo caso, o apoio diplomático
foi condição necessária para o projeto tendo em vista as limitações
administrativas – explícitas ou construídas – para atuação internacional dos
demais ministérios. Ele inseriu-se em um contexto de mudança almejada
de posição do Brasil na hierarquia internacional e proporcionou um novo
relacionamento com o PMA que tem levado a organização a incluir em seus
princípios a concepção brasileira de prevenção de catástrofes alimentares
e a fomentar novas instituições como o Centro em países emergentes.
Futuras pesquisas podem avaliar a receptividade dessas ações por parte dos
doadores tradicionais e dos parceiros regionais e a relação custo-benefício
para todos os envolvidos dos novos arranjos de cooperação sul-sul e dos
acordos de colaboração com a ONU.
entrevistas
Entrevista com funcionário 1 do Centro de Excelência contra a Fome,
Brasília, 5 abril 2017, 1h47min.
Entrevista com funcionário 2 do Centro de Excelência contra a Fome,
Brasília, 2 maio 2017, 1h12min.
Entrevista com funcionário 3 do Centro de Excelência contra a Fome,
Brasília, 6 abril 2017, 48min.
Entrevista com funcionário 4 do Centro de Excelência contra a Fome,
Brasília, 5 abril 2017, 44min.
Entrevista com diplomata 1, Brasília, 2 maio 2017, 1h37min.
Entrevista com diplomata 2, Brasília, 6 abril 2017, 55min.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 143
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caPítulo 5
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D  
íticas alimentares brasileiras:
  
   
FAO   CPLP
Carolina MILHORANCE
1
1. introDução
O entendimento de que as políticas públicas não são domínios
exclusivos dos Estados vem ganhando destaque. Atores não-estatais,
organizações internacionais e entidades privadas ampliaram seu
envolvimento na formulação de instrumentos e estratégias políticas.
Carolina MILHORANCE é Pesquisadora do Centro de Cooperação Internacional e Pesquisa Agronômica
para o Desenvolvimento [CIRAD/Art-Dev], Montpellier, França (carolina.milhorance@cirad.fr). Orcid Id:
https://orcid.org/0000-0002-3290-8596
Este capítulo é uma tradução autorizada do artigo “Diffusion of Brazil’s Food Policies in International
Organisations: Assessing the Processes of Kwoledge Framing”, publicado por Policy and Society em 2020.
https://doi.org/10.1080/14494035.2020.1724362
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
150 |
Tais atores interagem com administrações públicas, mas também têm
a capacidade de operar independentemente. Desta forma, os espaços
de construção de políticas públicas têm se mostrado cada vez mais
fluidos e dinâmicos (Legrand, 2016; Stone; Ladi, 2015; Stone; Porto
de Oliveira; Pal, 2019). As organizações internacionais representam
espaços significativos neste sentido, atuando como plataformas para a
difusão de “melhores práticas” e diretrizes de reformas. Tais organizações
consolidam sua influência mediante a construção coletiva de expertise e
autoridade. Algumas são reconhecidas como redes globais de políticas,
caracterizadas pela troca de informações, esforços de persuasão e busca de
soluções para desafios compartilhados (Devin; Smouts, 2011; Pal, 2012;
Stone; Ladi, 2015).
Neste contexto, as organizações internacionais emergem como fóruns
privilegiados para a construção e mediação de ideias sobre governança
política, que são posteriormente disseminadas aos Estados-membros e, em
alguns casos, transcendem essas fronteiras. Tais prescrições manifestam-
se por meio de uma variedade de instrumentos: orientações estratégicas,
benchmarks, relatórios analíticos, seminários especializados, iniciativas
piloto e repertórios de “melhores práticas”, todos imbuídos de normas
maleáveis e persuasivas, visando fomentar a reconfiguração de práticas
políticas existentes (Delcour; Tulmets, 2019; Devin; Smouts, 2011). O
presente capítulo aborda uma faceta específica deste cenário: o processo
político de definição das agendas e as prescrições políticas no interior das
organizações internacionais. O estudo analisa as interações entre atores
estatais e não-estatais brasileiros com burocratas internacionais, delineando
sua influência na definição das estratégias e recomendações veiculadas
pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
(FAO) e pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP),
particularmente no que tange à questão da insegurança alimentar.
A pesquisa baseia-se em 280 entrevistas semiestruturadas realizadas
entre 2012 e 2015, além da análise de documentos institucionais.
O arcabouço analítico combina a teoria construtivista das relações
internacionais (Barnett; Finnemore, 2004; Devin; Smouts, 2011) com
abordagens da sociologia política voltadas para a transferência e difusão
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 151
de políticas (Hadjiiski; Pal; Walker, 2017; Hassenteufel et al., 2017;
Milhorance, 2018). O estudo visa explorar os processos circulatórios
da formulação de políticas, oferecendo insights sobre os mecanismos
iniciais desses processos. Ele se situa na confluência de dois movimentos
distintos, porém coerentes: a difusão de políticas sustentada por redes
trans-governamentais (Legrand, 2016) e a emergência de políticas globais
(Moloney; Stone, 2019; Stone; Ladi, 2015).
Os conceitos de tradução e socialização são mobilizados neste
sentido como mecanismos políticos fundamentais, atuando como forças
transformadoras que orientam a interação entre os atores na configuração e
difusão de agendas e práticas políticas. Inspirado de estudos sociológicos sobre
transferência de conhecimento entre diferentes campos científicos (Callon,
1986), o conceito de “tradução” é utilizado para destacar a reformulação de
problemas políticos e a dinâmica de conflito e negociação entre os atores
em diferentes níveis de governança (Hassenteufel et al., 2017; Stone, 2012).
O termo “socialização” é usado para descrever o compartilhamento e a
assimilação de ideias e práticas entre os atores e as instituições envolvidas
no processo de difusão (Tulmets, 2005). O capítulo argumenta que os
resultados desses mecanismos são influenciados pelos recursos políticos
que os atores mobilizam, sejam eles materiais, formais ou de legitimidade,
bem como pelas características dos espaços onde essas interações ocorrem.
Consideram-se aqui fatores como a burocratização e a fragmentação das
arenas, bem como a convergência de ideias entre os atores envolvidos. Como
elemento contextual, o estudo refere-se à janela de oportunidade criada
pela crise financeira global de 2007/08 e a subsequente crise alimentar, que
influenciaram a participação de atores brasileiros na construção de novas
abordagens para políticas alimentares globais.
2. QuaDro analítico e contextual
Conforme destacado por Stone et al. (2019), tanto indivíduos,
quanto organizações e redes utilizam sua autoridade intelectual ou
expertise profissional para promover ideias políticas ou legitimar padrões
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
152 |
normativos como “melhores práticas”. Em outras palavras, a “política do
conhecimento” impulsiona a transferência e a difusão de políticas. Neste
estudo, dois grupos de atores políticos são examinados, bem como as
interações entre eles.
O primeiro é uma rede de políticas (policy network) formada por
atores estatais e não-estatais brasileiros atuantes no desenvolvimento
de políticas alimentares neste país. Ela inclui organizações como o
secretariado de relações internacionais do Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA) e do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), a
Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (Contag), o Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o Fórum
Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN), entre outros.
Essa rede se empenhou em ampliar a visibilidade dos resultados das
políticas brasileiras de segurança alimentar, particularmente da estratégia
do Fome Zero (Milhorance; Bursztyn; Sabourin, 2019).
Tal esforço foi fortalecido por uma ação diplomática visando
internacionalizar a referida estratégia, que contou com o apoio da
Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária e Combate à Fome
no âmbito do Ministério das Relações Exteriores e de organizações
intermediárias como o Centro de Excelência contra a Fome do Programa
Mundial de Alimentos (PMA) no Brasil e do Centro Internacional
de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG). Como resultado,
diversas organizações internacionais, como a FAO, a CPLP e o PMA, bem
como ONGs internacionais, incluindo ActionAid e Oxfam, endossaram a
abordagem brasileira no combate à fome e à pobreza (Fraundorfer, 2013).
O caráter não governamental de certos atores nessa rede pode ser visto
como um limitante estrutural para sua efetiva participação no processo
de difusão de políticas (Stone; Porto de Oliveira; Pal, 2019). Portanto,
a aliança com atores governamentais conferiu a esses atores recursos
diplomáticos e acesso formal às organizações internacionais.
O segundo grupo inclui burocratas da FAO e da CPLP. Sua
principal fonte de influência deriva do papel de ‘legitimação’ exercido
pelas organizações internacionais, fundamentado na natureza técnica de
suas recomendações (Barnett; Finnemore, 2004; Devin; Smouts, 2011).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 153
Tais organizações se estabelecem como espaços de interação onde atores
nacionais e internacionais debatem pontos de vista e delineiam relações
causais entre problemas políticos e suas respectivas soluções. A importância
dessas organizações como arenas de especialistas e tomadores de decisão,
focadas na elaboração de normas (Francesco; Guaschino, 2019). Além
disso, as organizações internacionais atuam como agentes na disseminação
de ideias e soluções políticas por meio da formulação de recomendações,
diretrizes, melhores práticas e iniciativas de cooperação técnica (Devin;
Smouts, 2011). Portanto, considerando que a legitimidade constitui um
pilar crucial do poder dessas organizações, questioná-la representa um risco
para sua posição no cenário internacional.
Entretanto, a partir dos anos 2000, a confiança na capacidade
de diversas agências da ONU em cumprir seus mandatos passou a ser
seriamente questionada pela comunidade internacional. Ineficiência,
disfunções burocráticas e falta de transparência estavam entre as
críticas levantadas (Barnett; Finnemore, 2004; Devin; Smouts, 2011).
Adicionalmente, questionou-se a aptidão dessas agências para enfrentar
desafios globais, como evidenciado pela crise alimentar (Fouilleux, 2009).
Tal crise, provocada pelo aumento dos preços do trigo, arroz, soja e milho
nos mercados internacionais e seguida por um aumento da insegurança
alimentar, reposicionou a luta contra a fome no centro da agenda
internacional (IFPRI, 2008). Tal situação trouxe questões como ajuda
alimentar, segurança alimentar de longo prazo e o direito à alimentação
para o centro do debate internacional (Peck; eodore, 2015).
É importante destacar que Legrand (2016) vincula o aparecimento
de redes de difusão de políticas à emergência de desafios políticos
transnacionais. Além disso, a crise alimentar desencadeou uma «crise
epistêmica» em que tanto o entendimento do mundo social quanto a
autoridade dos especialistas na área tornaram-se instáveis e contestados
(Hernando; Pautz; Stone, 2018).
Neste cenário, novas soluções de políticas públicas, especialmente
aquelas defendidas pela rede brasileira para a segurança alimentar,
despertaram interesse da comunidade internacional. Graças aos
esforços diplomáticos e ao acesso que esta rede obteve às organizações
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
154 |
internacionais, suas credenciais para cooperação neste tema passaram a
ser reconhecidas (Milhorance; Bursztyn; Sabourin, 2019). Paralelamente,
diplomatas das chamadas “potências emergentes” — como Brasil, Índia
e China — intensificaram críticas ao sistema ONU, visando ampliar
sua participação em decisões multilaterais. As chancelarias desses países
passaram a questionar o desempenho de agências específicas, sem, no
entanto, desafiar o sistema ONU como um todo (Milhorance; Soulé-
Kohndou, 2017). Esse ambiente favoreceu a cooperação triangular entre
tais agências, entendida como um meio de promover parcerias estratégicas
(FAO, 2013), e também com organizações (trans)regionais, como a CPLP
e o Mercosul (Milhorance, 2018; Niederle, 2016).
As duas arenas estudadas apresentam características próprias. A FAO,
com sua estrutura técnica e política abrangente, tem processos decisórios
e de validação de conhecimento altamente burocráticos e fragmentados
(Fouilleux, 2009). Por outro lado, a CPLP, focada na colaboração político-
diplomática e promoção da língua portuguesa, é mais flexível e menos
institucionalizada que as agências da ONU (Soulé-Kohndou, 2012). A
CPLP, embora menos burocrática que a FAO, enfrenta escassez de recursos
para suas iniciativas. Legrand (2016) ressalta que a proximidade cultural e
psicológica’ pode ser mais influente que a proximidade geográfica para a
difusão de políticas. Na CPLP, essa proximidade se limita a uma língua e
história coloniais comuns com os países africanos. Apesar da presença de
Portugal nesta comunidade, ela se tornou o canal preferencial do Brasil
para comunicação com países africanos, ainda que uma eventual integração
cultural deva ser relativizada (Call; Abdenur, 2017).
Neste sentido, enfatizamos como a circulação global de ideias e
soluções públicas entre organizações internacionais e seus membros se dá
por mecanismos de socialização e tradução. O impacto desses processos
depende tanto dos recursos políticos dos atores envolvidos quanto das
características das arenas de negociação e debate, incluindo procedimentos
de tomada de decisão e produção de conhecimento. Tais processos também
podem ser favorecidos por mudanças no consenso e conhecimento políticos,
como evidenciado pelas crises financeira e alimentar de 2007/08 (Peck;
eodore, 2015). Essa perspectiva analítica esclarece os micro processos
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 155
e interações transnacionais que estimulam a difusão do conhecimento
(Hadjiiski; Pal; Walker, 2017; Legrand; Stone, 2018).
As seções subsequentes examinam a influência da rede brasileira para
a segurança alimentar em mudanças institucionais na FAO e na CPLP e
discutem a criação e difusão de políticas neste campo, bem como no tema
da agricultura familiar.
3. PolitiZação Dos Processos Decisórios na cPlP e fao
3.1. socialiZação e traDução Dos PrincíPios De ‘ParticiPação
social
Diversas políticas alimentares brasileiras implementadas desde os
anos 2000 priorizaram a participação social como elemento central (Silva;
Del Grossi; França, 2010). Neste sentido, atores brasileiros envolvidos
na concepção destas politicas encontraram na FAO e na CPLP espaços
estratégicos para discutir este aspecto no âmbito internacional.
Na CPLP, a aprovação da Estratégia de Segurança Alimentar e
Nutricional (ESAN) em 2011, também conhecida como Declaração
de Maputo, foi um marco significativo. Tal estratégia estabeleceu um
modelo inovador de governança, criando o Conselho de Segurança
Alimentar e Nutricional (Consan) como um órgão consultivo composto
por representantes de ONGs, universidades e movimentos rurais (CPLP,
2012). Um integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional do Brasil (Consea) afirmou que essa iniciativa foi inspirada
pelo modelo brasileiro, contribuindo para a criação de estruturas
similares em outras instâncias internacionais. A ambição era fomentar um
multilateralismo inclusivo, que abarcasse a participação social. Além disso,
uma Rede da Sociedade Civil para Segurança Alimentar e Nutricional da
CPLP (Redsan-CPLP) foi estabelecida em 2007, conectando mais de 400
organizações, entre elas grupos de agricultores familiares. Entrevistas com
membros da Redsan revelaram o apoio de atores brasileiros à sua fundação
(Maputo, abril de 2014).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
156 |
Tais mudanças levaram a uma reconfiguração de certos mecanismos
decisórios da CPLP, ampliando o papel de ONGs e movimentos rurais
nesta comunidade (CPLP; FAO, 2014). Nesse cenário, a CPLP se tornou
um fórum relevante para a produção e negociação de soft norms e ideias
relativas às políticas públicas. Esse processo foi impulsionado por recursos
diplomáticos e o acesso às organizações internacionais conferido pela
delegação brasileira consolidada durante o governo Lula. Apesar da eficácia
em promover a participação da sociedade civil na formulação de políticas,
um debate se impôs na CPLP sobre o significado de “participação social”,
levando esta rede a mobilizar seus recursos para atuar como os principais
tradutores” desse conceito.
Vale notar que, desde sua fundação, a CPLP manteve diálogos
pontuais com atores da sociedade civil, mas sem impacto na tomada de
decisões, conforme registros oficiais (CPLP, 1997, 1998). A definição
de “sociedade civil” na CPLP também evoluiu: inicialmente abrangia
personalidades individuais, atores privados e associações trabalhista
(CPLP, 1998). Fundações privadas foram posteriormente incluídas como
observadores (CPLP, 2006), enquanto ONGs e movimentos sociais
tivessem participação limitada ou nula nesse período inicial. A criação de
um espaço duradouro para o envolvimento da sociedade civil foi planejada
em 2008 (CPLP, 2008b) e concretizada apenas no Primeiro Fórum da
Sociedade Civil em 2013.
Diplomatas brasileiros ressaltaram a complexidade da definição da
sociedade civil” na CPLP. Para eles, o termo deveria incluir movimentos
sociais, contrapondo-se a outros atores, como servidores angolanos, que
defendiam um enfoque em fundações privadas e entidades filantrópicas.
A perspectiva brasileira acabou ganhando espaço, abrindo caminho para
a participação de ONGs, universidades e movimentos sociais. “Houve um
debate sobre o conceito de sociedade civil, mas nossa visão prevaleceu. Contudo,
o documento inicial gerou controvérsias e não alcançou consenso universal. O
que se consolidou no final foi o objetivo de institucionalizar a participação
social” (Brasília, julho de 2013). Essa visão foi confirmada em entrevistas
com representantes brasileiros e moçambicanos (Brasília, julho de 2013;
Maputo, março de 2014). Relatórios do Consan destacaram a meta de
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 157
criar um mecanismo de tomada de decisões participativas (CONSAN-
CPLP, 2012). Portanto, a rede mostrou-se eficaz, alcançando mudanças
institucionais em curto prazo.
Assim como na CPLP, organizações brasileiras atuantes na FAO
promoveram os mecanismos de participação social no Comitê de Segurança
Alimentar Mundial (CFS). A reforma do CFS nos anos 2000 se inspirou
do modelo Consea, especialmente no que tange à governança participativa.
Como confirmado pelo Secretário Executivo do CFS em uma entrevista,
o modelo do Consea já era conhecido pelos membros do comitê, mas
o governo brasileiro também ajudou a promovê-lo, enviando grandes
delegações que incluíam membros da sociedade civil para apresentar o
programa Fome Zero e o Consea (Roma, outubro de 2013). Por sua vez,
membros do Consea apontam o CFS como um espaço vital para expandir
sua participação na governança global da segurança alimentar (Montpellier,
outubro de 2013). No entanto, a natureza burocrática e fragmentada do
CFS restringiu o impacto dessas iniciativas, gerando questionamentos
sobre sua eficácia (Zanella; Duncan, 2015).
Além disso, o projeto de cooperação técnica “Compra de Africanos
para a África” (PAA Africa), influenciado pelas políticas brasileiras de
compra de alimentos de agricultores familiares, foi consolidado como
um modelo por meio de diálogos entre funcionários da FAO e servidores
públicos, ONGs e movimentos sociais brasileiros. Embora inicialmente
estruturado como um acordo intergovernamental, o projeto ampliou a
participação da sociedade civil, graças à participação do Consea brasileiro e
da União dos Camponeses de Moçambique. Moçambique foi selecionado
como país prioritário para o lançamento de uma iniciativa piloto de
participação social no PAA Africa. Contudo, esta iniciativa foi restrita na
prática, devido à falta de recursos, ao enfoque técnico dos colaboradores da
FAO e do PMA no país, e à baixa participação das entidades da sociedade
civil
2
. Nesse contexto, o projeto passou por ajustes significativos, reflexo de
negociações adicionais com a equipe da FAO e suas diretrizes.
Resultados do trabalho de campo e da participação observante no escritório da FAO em Moçambique
(2014 e 2015).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
158 |
3.2. muDanças institucionais na fao e na cPlP
Além de apoiar a consolidação de soft norms e paradigmas, a
transferência/difusão de políticas vem se estabelecendo como um
instrumento de política externa (Stone; Porto de Oliveira; Pal, 2019). Nesse
contexto, a CPLP endossou em 2010 a ambição brasileira de ampliar sua
presença no sistema multilateral, respaldando oficialmente a candidatura de
José Graziano à Direção-Geral da FAO em 2010 (Declaração de Luanda) e
reafirmando o apoio a sua campanha de reeleição em 2015 (CPLP, 2014a).
Ex-ministro do Desenvolvimento Social no Brasil e representante regional
da FAO, além de líder da estratégia Fome Zero, Graziano demonstrou
significativa autoridade em políticas alimentares (Porto de Oliveira, 2019).
A intensificação da cooperação técnica entre o Brasil e os membros
africanos da CPLP aproximou esta comunidade da FAO, especialmente
no que diz respeito ao objetivo de se tornar uma plataforma de segurança
alimentar. Segundo um diplomata brasileiro, a CPLP desempenhou um
papel crucial na campanha de Graziano, consolidando assim a presença
da FAO dentro desta comunidade (Brasília, junho de 2013). Em 2012,
a FAO abriu um escritório no Secretariado da CPLP em Lisboa e lançou
um projeto de cooperação técnica (CPLP, 2014b). Graziano participou da
Conferência de Chefes de Estado da CPLP no mesmo ano e contribuiu
para a criação de uma campanha de arrecadação de fundos para a
implementação da ESAN da CPLP (Muragy, 2014). Porto de Oliveira
(Porto de Oliveira, 2019) também destaca o papel de Graziano como um
embaixador” da estratégia Fome Zero, contribuindo para a promoção,
legitimação e mediação dos instrumentos de política brasileiros na FAO e
globalmente.
O ativismo brasileiro na FAO também reverberou nos procedimentos
da organização para a implementação de projetos de cooperação técnica.
Observou-se, neste contexto, uma mudança parcial da gestão tecnicamente
orientada para uma gestão político-diplomática da cooperação triangular.
Em contraste com a prática tradicional de doadores que fornecem recursos
financeiros para projetos regulares e especiais destas agências, a diplomacia
brasileira (e de outras potências emergentes) buscaram progressivamente
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 159
um maior envolvimento na execução dos recursos investidos na cooperação
triangular, aumentando a politização dessas iniciativas (Milhorance; Soulé-
Kohndou, 2017; Soulé-Kohndou, 2014). No entanto, as organizações
internacionais defendem uma espécie de autoridade racional-legal e afirmam
participar de forma imparcial da formulação de normas internacionais.
De acordo com a literatura construtivista, as regras estabelecidas
pelas organizações internacionais moldam o comportamento de seu pessoal
e ajudam a racionalizar, despolitizar e sistematizar suas respostas a desafios
externos (Barnett; Finnemore, 2004). Como mencionado por um servidor
da FAO referindo-se ao projeto PAA África: “O corpo técnico da FAO é
muito forte. Todas as iniciativas exigem uma base técnica para avaliar suas
operações. O discurso político tem um limite. Ele precisa de uma base concreta
(Roma, outubro de 2013).
No entanto, apesar deste enfoque na abordagem técnica, a
implementação da cooperação triangular foi em grande parte conduzida
por representantes do governo. O escritório da FAO no Brasil inicialmente
propôs administrar os recursos do governo brasileiro, conforme o modelo
tradicional com instituições multilaterais. No entanto, o Ministério
das Relações Exteriores do Brasil enfatizou a importância de participar
diretamente nos processos de implementação e monitoramento, causando
certo desconforto institucional (Brasília, junho de 2013; Milhorance;
Soulé-Kohndou, 2017).
Por exemplo, o projeto PAA África foi gerido na FAO e no PMA por
ex representantes dos ministérios brasileiros. Esse projeto teve supervisão
direta da Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária e Combate à
Fome. Outro exemplo é o projeto “Troca de experiências e diálogo de
políticas públicas para agricultura familiar na África”, gerenciado por
um comitê diretor que envolveu a FAO e representantes do Ministério
do Desenvolvimento Agrário do Brasil. A Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa), principal instituição de cooperação Sul-Sul do
Brasil no setor rural, também estabeleceu um liason office na FAO em
Roma em 2013. Tais órgãos governamentais influenciaram diretamente
o projeto, desde a formulação de atividades até o recrutamento de pessoal
e o acompanhamento de missões de monitoramento. Burocratas da FAO
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
160 |
chegaram a criticar a ausência de um sistema robusto de avaliação técnica na
primeira fase do PAA África (2012-2013), mas medidas de monitoramento
foram incorporadas na segunda fase para assegurar o “reconhecimento
técnico” da ONU.
Neste contexto, os instrumentos de politica alimentar desenvolvidos
no Brasil passaram por um processo de tradução no âmbito da FAO.
Tal processo foi influenciado pela cultura institucional da organização
para produzir e difundir ideias e práticas políticas. A FAO incorporou
conhecimentos políticos promovidos por atores brasileiros, ao mesmo
tempo em que incluiu princípios alinhados com seus atributos burocráticos,
como mecanismos de avaliação técnica.
Em resumo, a socialização de instrumentos de política desenvolvidos
no Brasil foi impulsionada por uma rede de atores brasileiros diversos
— diplomatas, administradores públicos e representantes da sociedade
civil — engajados nas atividades da CPLP e da FAO. Por um lado,
esta rede mobilizou uma série de recursos para ganhar legitimidade,
notadamente sua experiência na redução da insegurança alimentar, assim
como recursos materiais e técnicos que facilitaram sua participação em
eventos internacionais e desenvolvimento de cooperação técnica. Recursos
políticos e formais também foram mobilizados, principalmente aqueles
alinhados com as ideias do governo Lula neste tema. Por outro lado, a
CPLP e a FAO funcionaram como espaços de debate e negociação para a
concepção e tradução de ideias políticas. Ainda assim, representantes dessas
organizações puderam resistir e exercer influência sobre os resultados dessa
tradução. A CPLP, menos institucionalizada e sem os mesmos recursos
materiais e técnicos da FAO, mostrou-se mais permeável à influência
brasileira em seus processos de governança e posições oficiais.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 161
4. reDefininDo as normas internacionais Para segurança
alimentar e agricultura familiar
4.1. socialiZação DoPacote” fome Zero
O Brasil se impôs como uma referência para a construção da
ESAN da CPLP e das estratégias nacionais de outros países membros,
corroborado por relatórios que o apontam as realizações significativas do
país em aspectos legais, institucionais e de políticas de combate à fome
(ACTUAR; REDSAN-PALOP, 2012; CPLP, 2011). Embora o combate
à fome já fizesse parte da agenda da CPLP desde 2003 (CPLP, 2003),
o tema só ganhou destaque nos textos oficiais da comunidade a partir
de 2008, após aprovação da Resolução sobre Segurança Alimentar na 7ª
Conferência de Chefes de Estado (CPLP, 2008a). Diversos documentos
enfatizam que o Brasil, diferentemente de outros membros, alcançou seus
objetivos neste tema (FAO; CPLP, 2013). Adicionalmente, os relatórios da
ESAN também mencionam a promoção de iniciativas de compras públicas
para agricultores familiares e de alimentação escolar (CPLP, 2015).
Um diplomata brasileiro destacou o papel político deste processo:
Tudo isto é sobre ensinar a fazer, mas à nossa maneira. Não se trata apenas
de tecnologia; há uma filosofia por trás, uma maneira de pensar as políticas
públicas. Fazer isso da forma brasileira cria um capital político enorme
(Brasília, junho de 2013). Esse movimento também reverberou nos estados
membros, como ilustra um membro da comunidade em Moçambique: “A
cúpula da CPLP foi um marco na difusão da agenda de segurança alimentar.
O presidente de Moçambique estava lá e ficou claro para nós que nossa
instituição, o Secretariado Técnico de Segurança Alimentar e Nutricional,
estava inadequadamente vinculada ao Ministério da Agricultura; no Brasil,
esta instância é ligada à Presidência da República” (Maputo, abril de 2014).
Portanto, embora a difusão de políticas seja crucial para a diplomacia
brasileira no sistema multilateral, é importante notar que os ‘modelos
disseminados nesse processo estão vinculados às ideias políticas de um
grupo específico de atores que ganharam recursos políticos durante
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
162 |
a administração do Partido dos Trabalhadores (2003-2016). A papel
preponderante (agency) de atores da sociedade civil e grupos de servidores
públicos é especialmente proeminente na socialização dessas políticas.
Conforme apontado por Stone (2002), o embate de ideias para controlar os
termos do debate político por meio do uso de conhecimento e experiências
específicas são processos intrinsecamente políticos.
Um processo similar foi observado na FAO. O alinhamento entre
produção agrícola e proteção social, uma vez parte da política brasileira
sob o Ministro Graziano, foi endossada e priorizada pelo Conselho
da FAO em dezembro de 2013, colocando este conceito no centro do
novo arcabouço estratégico da organização (Roma, outubro 2013). Tal
decisão abriu caminho para a integração da proteção social em múltiplas
dimensões de política pública nas quais os especialistas da FAO costumam
atuar, desde estratégias nacionais até planos de investimento (FAO,
2016a). Para respaldar institucionalmente essa mudança normativa, o
Plano de Médio Prazo da FAO para 2014–2017 e o Plano de Trabalho
e Orçamento para 2014–2015 recomendaram a alocação de recursos
adicionais para iniciativas de proteção social nos países em questão. Além
disso, foi criada uma Divisão de Proteção Social e estabelecido um grupo
de trabalho intersetorial na FAO para fortalecer a coordenação da análise
de políticas públicas e iniciativas nesta área. Para consolidar essa visão,
uma equipe foi formada, contando com a contratação de ex-funcionários
públicos brasileiros como consultores ou membros da equipe permanente.
A estratégia Fome Zero também encontrou eco em outras agências
da ONU, inspirando a ampla campanha “Desafio Fome Zero”, lançada na
Conferência Rio+20 sobre Desenvolvimento Sustentável de 2012 pelo então
Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon. Neste contexto, 23 agências,
fundos e programas das Nações Unidas na área de segurança alimentar
alinharam seus planos de trabalho à visão da campanha, incluindo o PMA,
conforme indicado por sua representante em Moçambique (Maputo,
março de 2013):
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 163
O Fome Zero e o programa Bolsa Família são modelos. Houve uma
grande mudança após a eleição de Graziano. Pudemos atestar esta
mudança após a cúpula da CPLP. Estamos criando uma conexão
política positiva entre a FAO e o PMA porque o Graziano interage
fortemente com o Diretor Executivo do PMA. Isso contribuiu para
o compartilhamento das políticas brasileiras com o PMA e o FIDA.
Não é apenas um processo de animação dos países membros; é uma
mudança dentro das Nações Unidas. Vemos um futuro promissor.
A principal mensagem deste “modelo” é que a fome e a pobreza são
questões políticas, não agronômicas ou técnicas, e devem ser priorizadas
nas agendas de políticas públicas. Essa ideia foi corroborada em entrevistas
com interlocutores no Brasil e no exterior (MDS, Brasília, julho de 2013;
Instituto Lula, São Paulo, junho de 2013), e apareceu em conversas com
burocratas moçambicanos: “O presidente Lula insistiu no Fome Zero, que se
tornou o epicentro das políticas públicas no Brasil. Em Moçambique, estamos
apenas começando, então nossa primeira batalha é dar mais peso político a
essas questões” (Ministério da Agricultura de Moçambique, Maputo, abril
de 2014).
A difusão internacional desta mensagem contou com os recursos de
legitimidade e os esforços diplomáticos do lado brasileiro. O objetivo do
governo brasileiro e de instituições para-governamentais – especialmente a
antiga divisão diplomática CGFome, o Instituto Lula e outros ministérios –
era internacionalizar essa experiência. Diversos representantes confirmaram
isso, como indicado nesta entrevista: “Nos beneficiamos da identidade de
Graziano em conexão com o Brasil e com o programa Fome Zero para
criar mecanismos de difusão. O objetivo é focar na África” (Instituto Lula,
São Paulo, junho de 2013).
Além disso, diversos relatórios e reuniões da FAO enfatizaram a
importância da proteção social aliada à produção agrícola, destacando
a experiência brasileira. Entre 2010 e 2015, 64 intervenções nessa área
foram realizadas em escala global (FAO, 2016b). Uma série de eventos
foi organizada sob o lema “da proteção à produção”. O relatório “Estado
da Insegurança Alimentar no Mundo 2015” sugeriu a combinação de
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
164 |
proteção social com investimentos direcionados aos agricultores mais
vulneráveis, citando o programa brasileiro PAA África como uma iniciativa
emblemática (FAO; FIDA; PAM, 2015). O relatório “Achieving Zero
Hunger” também salientou o papel crítico do investimento em proteção
social e agricultura, citando “experiências bem-sucedidas” de diferentes
países (FAO, 2015a).
Além disso, o tema foi escolhido para o Dia Mundial da Alimentação
de 2015, onde o termo “Fome Zero” apareceu em muitos discursos de
líderes da ONU (FAO, 2015b, 2015c). Nesse contexto, os instrumentos
de política, o Conselho de Segurança Alimentar (Consea) e exemplos
legislativos do Brasil foram citados em diversos relatórios (FAO, 2007,
2008, 2009a, 2009b, 2010). As “Diretrizes para o Direito à Alimentação
ressaltaram medidas concretas para garantir o acesso aos alimentos. A
FAO publicou um relatório recomendando a “generalização do modelo
brasileiro de alimentação escolar” na América Latina e Caribe (Pye-Smith,
2014). Foi lembrado que o arcabouço legal do Brasil fundamentou a
cooperação técnica com países em desenvolvimento, contribuindo assim
para a promoção do Direito humano à alimentação adequada no plano
internacional (FAO, 2010).
Esse processo ampliou a visibilidade da estratégia Fome Zero e a
difusão de suas ferramentas operacionais entre os membros da CPLP
e da FAO. Vale notar que os processos de difusão internacional são
inicialmente sustentados pela publicização das experiências locais, o que
inclui a disseminação de informações sobre a experiência, seus arranjos
organizacionais e as condições sob as quais ela pode ser transferida e
adaptada para vários contextos. Esse é um elemento chave para o processo
de socialização, que requer recursos materiais, técnicos e de legitimidade
(Blatrix, 2012).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 165
4.2. traDução Da agricultura familiar em ‘melhores Pticas
internacionais
Além dos instrumentos de segurança alimentar e proteção social,
a promoção internacional das políticas de agricultura familiar na CPLP
e FAO tornou-se um objetivo crucial para a rede brasileira de segurança
alimentar. Graças a esse ativismo, o Consan /CPLP estabeleceu um grupo
de trabalho sobre agricultura familiar, centralizando a questão em sua
agenda institucional. Segundo uma organização brasileira representativa
do setor, estes atores “entraram em um debate sobre o papel da agricultura
familiar na soberania alimentar mundial. Tal iniciativa abriu novos espaços
para o diálogo, inclusive em relação às políticas públicas. Quando o Consan
foi criado, foi possível priorizar a criação de um grupo de trabalho para dar
visibilidade à agricultura familiar nos países em desenvolvimento.” (Brasília,
junho de 2013).
Os membros do Consan relatam que essa agenda encontrou
desafios conceituais, especialmente quanto ao significado de “agricultura
familiar”, o que levou a um processo de negociação e tradução de termos.
Uma organização brasileira observou: “Eles [países africanos] não dizem
agricultura familiar’. Para eles, é ‘pequeno camponês’. Esse debate conceitual é
crucial para assegurar o diálogo e fortalecer a categoria de agricultura familiar
(Brasília, junho de 2013). Vale notar que, no Brasil, a agricultura familiar
ganhou contornos através de um processo político histórico que assegurou
seu reconhecimento como uma categoria sócio-política com necessidades
específicas de financiamento e políticas públicas (Sabourin; Samper;
Sotomayor, 2016). Neste contexto, o objetivo harmonizar a definição da
agricultura familiar nos países membros da CPLP orientou uma série de
estudos (FAO; CPLP, 2013; FSN/FAO, 2012).
Paralelamente, o processo de mobilização que levou à criação de um
Ano Internacional das Nações Unidas dedicado à agricultura familiar (Ano
Internacional da Agricultura Familiar, 2014 [AIAF]) representou um marco
na promoção desta agenda em nível global (Brasília, junho de 2013). Este
foi o primeiro ano internacional da ONU promovido por organizações da
sociedade civil. O comitê de preparação incluiu redes regionais e diversas
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
166 |
ONGs nacionais e internacionais (incluindo Oxfam, Via Campesina, a
Organização Mundial de Agricultores e o Fórum Rural Mundial), além de
institutos de pesquisa. Do lado latino-americano, a Contag assumiu um
papel central. O AIAF 2014 pode ser considerado um dos resultados do
processo de mobilização dos atores brasileiros em favor do reconhecimento
da agricultura familiar pelas instâncias da ONU. Vale ressaltar que estes
atores integraram um movimento transnacional existente; no entanto,
eles participaram ativamente deste movimento e contribuíram para o
seu fortalecimento, promovendo o debate diplomático com as instâncias
governamentais, apoiando as redes regionais e fornecendo exemplos
concretos e casos de sucesso. A presença de Graziano também foi um fator
facilitador para a receptividade dessa agenda na organização.
O AIAF 2014 criou uma janela de oportunidade para intensificar o
debate e fortalecer políticas para a agricultura familiar entre os membros
da CPLP (CONSAN-CPLP, 2014). Outros resultados desses processos
incluíram: i) maior visibilidade para metas associadas à agricultura familiar,
com a FAO divulgando múltiplos relatórios e organizando reuniões globais
que envolveram mais de 700 entidades; e o governo brasileiro contribuiu
lançando e financiando a Plataforma de Conhecimento sobre Agricultura
Familiar; ii) apoio à agricultura familiar através de projetos e estudos
de caso da FAO. Em parceria com o PMA, a Divisão de Infraestrutura
Rural e Agroindústria realizou estudos sobre compras públicas, incluindo
as iniciativas brasileiras em alimentação escolar como referência; iii)
fortalecimento da mobilização política, incluindo a extensão da campanha
do AIAF por mais uma década, a criação da Redsan e o alinhamento com
a Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do Mercosul (REAF),
que facilitou trocas entre as organizações da sociedade civil da CPLP e do
Mercosul (Niederle, 2016; Sabourin; Samper; Sotomayor, 2016).
Quanto à REAF, uma representante de ONG moçambicana
observou: “Aprendemos [nos intercâmbios entre CPLP e REAF] que a
agricultura familiar no contexto do Mercosul tem uma função política. As
decisões políticas são discutidas em parceria com a agricultura familiar (...)
Aqui [em Moçambique], deveríamos considerar uma legislação que provê
recursos e poder político para a agricultura familiar” (Maputo, abril de
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 167
2014). Tal como na REAF, atores brasileiros envolvidos na CPLP e na
FAO buscaram fortalecer uma coalizão política que acumulasse recursos
institucionais e estabelecesse uma nova plataforma para o diálogo entre
Estado e sociedade civil na formulação de políticas públicas.
Desta forma, órgãos da FAO e da CPLP endossaram propostas-chave
da rede brasileira para a segurança alimentar que visavam elevar esta agenda
na hierarquia governamental, consolidar espaços para participação social e
reconhecer importância da agricultura familiar nas políticas de redução
da pobreza. A rede ganhou impulso, sobretudo após a crise alimentar
global, beneficiando-se do apoio do governo e da diplomacia brasileira.
A incorporação desses conceitos também foi fruto de uma fertilização
cruzada, impulsionada pelo diálogo entre a equipe da FAO, membros da
CPLP, atores estatais e não-estatais brasileiros e especialistas nessas áreas
(Milhorance, 2018).
No entanto, os resultados foram distintos em cada arena. Na FAO,
as interações revelaram-se mais fragmentadas, as rotinas burocráticas mais
influentes e os processos decisórios mais complexos, envolvendo múltiplos
atores. Já na CPLP, a linguagem comum e a cooperação interestatal
favoreceram o surgimento de uma rede trans-governamental, promovendo
a circulação de ideias e instrumentos no campo da segurança alimentar e
nutricional. Este tipo de rede está cada vez mais envolvida na definição de
normas e agendas políticas, bem como na produção de soft norms (Legrand,
2016). Esse processo é distinto, mas paralelo ao que ocorre na FAO, onde
se formam ‘redes globais de políticas públicas’ (Legrand; Stone, 2018).
5. conclusão
O capítulo explorou a atuação de uma rede de atores brasileiros
na CPLP e na FAO. Esta rede, caracterizada por forte densidade
e interconexão em torno de um conjunto de ideias, promoveu o
reconhecimento internacional da agricultura familiar e participou da
difusão de ideias e instrumentos nos campos de segurança alimentar e
participação social, definindo-as como “melhores práticas” internacionais.
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Tal movimento mobilizou recursos de autoridade formal e legitimidade
social e se beneficiou da janela aberta pela crise alimentar mundial, que
criou a necessidade da comunidade internacional de encontrar novas
soluções para desafios globais. Como ressaltado por Stone et al. (2019),
organizações internacionais atuam como canais importantes de difusão de
conhecimento e transferência de políticas.
A análise ressaltou as dinâmicas de poder e fatores diplomáticos,
muitas vezes ocultadas pela complexidade das redes políticas e pela
influência recíproca entre a difusão de políticas e a governança da segurança
alimentar. Devin e Smouts (2011) nos lembram que, nesses arranjos
flexíveis, identificar o papel de cada ator, especialmente das organizações
internacionais, é problemático. Dessa forma, a análise se concentrou na
capacidade dos atores brasileiros em influenciar ou participar de mudanças
na produção e difusão de conhecimento por meio de mecanismos de
socialização. Além disso, foi evidenciado que as organizações internacionais
mostraram capacidade de ajustes contínuos através de mecanismos de
tradução. Tais ajustes foram objeto de negociações que levam em conta
tanto os princípios burocráticos como as avaliações técnicas e as opiniões
de outros membros na tomada de decisões multilaterais.
Neste sentido, se, por um lado, os atores brasileiros se engajaram
em um processo de politização dos procedimentos de tomada de decisão
na FAO e na CPLP, por outro, as diretrizes defendidas por eles foram
amplamente traduzidas com o objetivo de assegurar sua “eficiência” e
neutralidade”, ou seja, de despolitizá-las. Essa hibridização foi mais
acentuada na FAO, devido à complexidade de seus processos decisórios e
ao grande número de atores ativamente envolvidos.
Entretanto, a adoção sustentada dessas ideias e instrumentos exige
tempo e recursos. A crise político-econômica enfrentada pelo Brasil desde
2015, culminando com o impeachment da presidente Dilma Rousseff em
2016, afetou significativamente a capacidade de mobilização de atores
brasileiros nas instâncias internacionais. Isso se deve a uma reorientação
dos objetivos diplomáticos e à cortes orçamentários, que desencorajou a
implementação de projetos de cooperação e a participação em encontros
internacionais. A despeito desses desafios, a estratégia brasileira de
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
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combate à fome ganhou legitimidade internacional ao longo da última
década. Esforços para ampliar a parceria com a FAO contribuíram para
manter ativas algumas iniciativas num primeiro momento. Na CPLP, a
influência brasileira foi mais direta e imediata; portanto, a desmobilização
ocorrida pós-2016 levou a um declínio mais pronunciado na difusão do
conhecimento político brasileiro. Nos dois casos, o desmonte das políticas
brasileiras de segurança alimentar e nutricional intensificado após 2018
interrompeu esta dinâmica (Sabourin; Craviotti; Milhorance, 2020).
Este estudo buscou elucidar os mecanismos, recursos e processos de
validação do conhecimento pelos quais ideias políticas são reconhecidas por
organizações internacionais, reinterpretadas e difundidas como modelos
políticos. Ademais, assim como Stone (2002), o capítulo evidenciou como
esse processo de difusão manteve uma dimensão política ao influenciar
o poder de certas ideias e coordenar defensores e tradutores em redes.
Pesquisas adicionais poderiam aprofundar a compreensão sobre como essas
dinâmicas interagem com tendências mais amplas de promoção do trans-
governamentalismo e da formulação de políticas em escala global.
agraDecimentos
Este capítulo é uma versão condensada e atualizada do conteúdo
abordado no livro “New Geographies of Global Policy-Making: South-
South Networks and Rural Development Strategies”, publicado pela
Routledge em 2018. A autora agradece a Diane Stone, Timothy Legrand,
Osmany Porto e Leslie Pal pelas críticas e sugestões que foram fundamentais
para a revisão da versão inicial. Também estende um agradecimento a
Felicidade Panguene, Israel Klug e Lorena Braz por suas informações e
insights valiosos durante a pesquisa realizada no escritório da FAO em
Moçambique.
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170 |
financiamento
Este trabalho contou com o apoio do Conselho Regional de Île-de-
France, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) do Brasil e do Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa
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caPítulo 6
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V  
S-S:    
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africa (Paa)  C
I B  
D
Maria Elisa Huber PESSINA
1
Elsa KRAYCHETE
2
introDução
Uma das marcas da primeira década do século XXI foi crescimento
econômico de alguns países do hemisfério Sul, a exemplo da China que
exibiu crescimento médio em torno de 10% ao ano e do Brasil, que
em 2010, alcançou crescimento de 6,5% do seu produto interno. No
continente africano o PIB per capita da África do Sul, em 2010, variou
Maria Elisa Huber Pessina é Professora na Universidade Salvador. Salvador/BA, Brasil. Email: mariaelisahp@
yahoo.com.br Orcid Id; https://orcid.org/0000-0002-7255-2301
Elsa Kraychete é Professora da Universidade Federal da Bahia, Salvador/BA, Brasil. (ekraychete@gmail.
com). Orcid Id: https://orcid.org/0000-0001-6257-3427
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
180 |
positivamente em 30,2% e Angola, em 2008, alcançou taxa de crescimento
de 13,4% (IBGE, 2010; WB, 2009, 2010). Tal desempenho levou a
que alguns países passassem a ser denominados potências emergentes,
contribuindo para configurar um mundo multipolar. O fortalecimento das
economias emergentes do Sul foi acompanhado pelo aumento expressivo
dos programas de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento entre
países em desenvolvimento, nomeada Cooperação Sul Sul (CSS). A CSS
intensificou-se concomitante à necessidade das potências emergentes de
abrir novos mercados e de se fortalecerem nas disputas políticas do mundo
multipolar, suscitando o debate acadêmico sobre a solidariedade Sul-Sul.
Diante de um alinhamento crescente com a cooperação tradicional
Norte – Sul, e de controversos investimentos que geravam impactos
sociais e ambientais negativos nos países de destino, a CSS passou a ser
questionada em sua solidariedade.
No Brasil, em 2003, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva implicou
na mudança da estratégia de inserção internacional do país. A política
externa brasileira passou a estar associada à concepção de desenvolvimento
que orientava a condução do governo internamente. Sua perspectiva de
governo de política externa defendia o fortalecimento e criação de blocos
de países em desenvolvimento em prol de um novo equilíbrio nas relações
de poder no cenário internacional (World Bank; IPEA, 2011; Cervo,
2003). Nesse contexto, a Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento
Internacional (Cobradi) foi redefinida de forma a fortalecer a aderência
com a política externa.
O discurso oficial era de que a Cooperação Brasileira para o
Desenvolvimento Internacional (Cobradi) era movida menos por interesses
econômicos ou políticos nacionais do que por uma “solidariedade
internacional, buscando não reproduzir as tradicionais relações de ajuda
Norte-Sul. No entanto, algumas experiências sugeriram que a Cobradi
não estava divorciada dos interesses nacionais ou setoriais (FASE, 2016;
INESC, 2014). A expansão da Cobradi foi acompanhada de acusações
de imbricação dos seus programas com interesses econômicos, políticos
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 181
e comerciais
3
, como na relação com o continente africano, uma África
apontada como a última grande fronteira agrícola no mundo, e que vem
consolidando processos de ampliação da democratização dos sistemas
políticos e de abertura econômica (Burges, 2014).
Dentro desse contexto, emergiram programas que indicaram
transcender interesses econômicos ou estratégias diplomáticas e, até mesmo,
disputaram as agendas de desenvolvimento das organizações multilaterais.
Foi o caso da criação, pelo governo brasileiro, em 2010, do Purchase
from Africans for Africa – PAA Africa, com o objetivo de reproduzir no
continente africano os resultados da política pública brasileira Programa
de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – PAA.
Criado em 2003, o PAA foi uma das principais políticas do Programa
Fome Zero, um conjunto de políticas públicas de combate à pobreza,
caracterizado por conjugar programas de transferência de renda, como o
Bolsa Família e inovadoras políticas para agricultura familiar (FAO; IFAD;
WFP, 2014). O PAA representou a principal ação do Fome Zero para a
agricultura familiar. Foi considerado inovador por assegurar, duplamente,
inclusão produtiva aos agricultores mais vulneráveis - a partir das compras
governamentais - e segurança alimentar - a partir da distribuição dos
alimentos para pessoas em situação de insegurança alimentar. Fruto de
reinvindicações históricas dos movimentos sociais brasileiros ligados ao
campo, o PAA revelou-se, nacionalmente, uma política eficaz na inclusão
social e desenvolvimento rural. Seus resultados, aliados a outras políticas
sociais do Fome Zero, garantiram ao Brasil o cumprimento, antes do
previsto da meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)
de reduzir pela metade a proporção de pessoas que sofrem com a fome,
assim como, atingiu da meta mais rigorosa do World Food Summit de
reduzir pela metade o número absoluto de pessoas famintas até 2015
4
.
Vide denúncias de Organizações da Sociedade Civil brasileiras e africansa de que o Brasil também se
tornou um promotor da apropriação de terras em Moçambique, criando espaços para investimento de suas
transnacionais em Clements e Fernandes (2013), INESC (2014) e Fase (2016).
Entre fevereiro de 2000 e junho de 2004, a taxa de subnutrição no Brasil já havia caído pela metade,
de 10,7% para menos de 5%. Entre 2001 e 2012, a pobreza total no Brasil caiu de 24,3% para 8,4% da
população, enquanto a pobreza extrema caiu de 14,0% para 3,5%, no mesmo período (FAO; IFAD; WFP,
2014, p. 20).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
182 |
Diante de um contexto de crescente pragmatismo e indefinição da
Cooperação Sul-Sul, de distanciamentos e alinhamentos com a Cooperação
Norte-Sul, e de denúncias de conflitos de interesses em programas da
Cooperação Brasileira, este texto buscou responder a seguinte questão de
pesquisa: que fatores contribuíram para que uma política pública como o
Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – PAA fosse
incluído na agenda da Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento
Internacional? E ainda, quais fatores permitiram que um doador do Sul
disputasse a agenda de promoção da Segurança Alimentar e Nutricional
(SAN) hegemônica?
Da análise de estudos e documentos e, principalmente, de entrevistas
com informantes chave na concepção do PAA Africa (diplomatas,
acadêmicos, sociedade civil organizada e representante no Brasil da FAO),
emergiram aspectos que foram organizados em 5 (cinco) determinantes
para a concepção e implementação do PAA África na CSS.
Quanto a estrutura do texto, na primeira seção apresenta-se
uma análise dos rumos recentes da CSS e da Cobradi, no contexto de
mudanças nas posições que os países do Sul passam a desempenhar no
campo do CID. A segunda seção introduz como o Brasil passa se destacar,
internacionalmente, pelo sucesso de suas políticas domésticas de combate
à fome, à insegurança alimentar e à pobreza rural. A terceira seção explora
a trajetória do Programa Brasileiro de Cooperação Internacional para
o Desenvolvimento Purchase from Africans for Africa e o diferencial do
mesmo em relação aos demais programas de CID que visam promover a
Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Na quarta seção, apresenta-se
os principais determinantes para a inserção do PAA Brasileiro na agenda
da Cooperação Brasileira. Foram identificadas 5 (cinco) dimensões de
determinantes nacionais e internacionais que justificam a entrada do
Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) na
agenda da Cooperação para o Desenvolvimento Internacional brasileira:
1. dimensão Geopolítica; 2. dimensão política e institucional interna; 3.
participação social; 4. qualidade técnica do programa; e 5. necessidade de
validação do projeto nacional.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 183
A conclusão do artigo espera contribuir com os debates sobre
contextos domésticos e internacionais que possibilitam que potências
emergentes possam, efetivamente, incidir sobre conceitos e práticas do
Sistema de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (SCID),
historicamente definidos pelos doadores do Norte. Tal análise dá-se no
contexto de uma significativa diferença de forças entre os doadores do
Norte e do Sul na construção das agendas da CID, assim como, de um
aumento histórico dos programas de CSS associados a interesses políticos
e econômicos das potências emergentes.
1. a cobraDi e a css no contexto Das muDanças na
coooPeração internacional Para o Desenvolvimento no início
Do século xxi
As mudanças imprimidas às diretrizes da Cobradi, na primeira
década do século XXI, resultam de dois movimentos: internamente,
a associação da política externa à promoção do desenvolvimento e,
internacionalmente, as reorientações na Cooperação Internacional para
o Desenvolvimento (CID), em avalição da sua trajetória e a inserção de
países em desenvolvimento entre os doadores.
A eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Presidente Lula,
daqui por diante), do Partido dos Trabalhadores, definiu a sua agenda
socioeconômica com acento no desenvolvimento inclusivo, que também
nortearia a política externa. Sem romper com a ordem estabelecida pelas
relações Norte-Sul, continua interagindo nos Fóruns Internacionais
promovidos pelas organizações interestatais internacionais, combinando
estratégias ofensivas e defensivas. Como aponta Lima (2017), os
negociadores brasileiros buscavam (articulados com outras nações do
hemisfério Sul) flexibilizar aspectos das normas da cooperação ofertada
pelo Norte e, ao mesmo tempo, propondo a inserção de referências à
Cooperação Sul-Sul.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
184 |
Historicamente, a Cooperação Sul-Sul, tem raízes na Conferência
Afro-Asiática de Bandung, realizada em 1955, e considerada como o
primeiro grande concerto entre países da periferia sobre uma estratégia
de cooperação e de atuação coletiva internacionalmente. O cerne do
documento final da Conferência de Bandung foi a cooperação econômica
e política contra o projeto colonialista, ao tempo em que promoveu a
construção da narrativa do ird World Project. O seu significado político
deixou efeitos e legados, ainda hoje reconhecido como “espírito de
Bandung” (Weber; Winanti, 2016; Prashad, 2007). Nele, a cooperação
técnica, econômica e cultural foi considerada como mecanismo do
internacionalismo solidário para lograr desenvolvimento socioeconômico e
cultural independente. Bandung é considerado um marco na formação da
CSS como um movimento político global, destinado a desafiar o sistema
político e econômico dominado pelo Norte (Gray; Gills, 2016).
Em 1978, ocorreu a Conferência das Nações Unidas sobre
Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento, que deu origem ao
Plano de Ação de Buenos Aires (PABA), documento seminal para a atual
CSS. O PABA faz recomendações de apoio e harmonização da Ajuda ao
Desenvolvimento tradicional com a Cooperação Técnica entre os Países
em Desenvolvimento - CTPD, sinalizando uma aproximação entre a CSS
e a tradicional Cooperação Norte Sul regulada pela OCDE (Paba, 1978).
Também os documentos resultantes dos Fóruns promovidos pela
OCDE para tratar da Cooperação Internacional já refletem os debates
em torno das relações entre países cooperantes que passariam a vigorar.
Em 2002, a Conferência de Monterrey, encorajou a consolidação da CSS
como meio de alcançar a eficácia da Ajuda Internacional e convidou as
instituições financeiras e de desenvolvimento multilaterais e bilaterais a
intensificar a cooperação triangular (UN, 2002).
Em 2008, em Accra, no III Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia
da Ajuda, na seção “Construindo Parcerias de Desenvolvimento Mais
Eficazes e Inclusivas” do documento final, no tópico “Estamos abertos e
trabalharemos com todos os intervenientes no desenvolvimento”, a CSS
é incentivada; é convidada a adotar os princípios da Declaração de Paris;
é considerada complementar à Cooperação Norte-Sul e é encorajada a
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 185
Cooperação Triangular (OCDE, 2008). Em Nairobi (2009), o documento
final da Conferência das Nações Unidas de Alto Nível sobre Cooperação
Sul-Sul afirma que a Cooperação Sul-Sul “[...] não é um substituto, mas sim
um complemento para a cooperação Norte-Sul” (Ponto 14). O documento
faz referência a necessidade de se alcançar metas de desenvolvimento
internacionalmente acordadas, incluindo os Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio (ponto 11). Faz, ainda, apelo aos princípios da Eficácia da
Ajuda, como: aumentar a accountability e transparência, avaliação de uma
forma orientada para os resultados, etc (ponto 18) (UN, 2009).
O documento final do IV Fórum de Alto Nível Sobre a Eficácia da
Ajuda, realizado na Coreia do Sul, em 2011, intitulado Aliança de Busan
para a Cooperação Eficaz para o Desenvolvimento propõe: “[...] uma
nova aliança, mais ampla e inclusiva que nunca, baseada em princípios
compartilhados, metas comuns e compromissos diferenciados com vistas
a um desenvolvimento internacional eficaz” (OCDE, 2011). Os destaques
do documento final de Busan residem na ênfase à importância do setor
privado na cooperação internacional e da Cooperação Sul-Sul. (OCDE,
2011, p. 4).
Por sua natureza, a Cooperação Sul-Sul veio sendo apresentada
como potencial para um tipo diferente de desenvolvimento daquele
apresentado pela Ajuda tradicional da OCDE-CAD (Brun, 2016; Burges,
2012). Entretanto, fortemente apoiados e financiados pelas Organizações
Internacionais e Agências Bilaterais (UN, 2010), os programas de
Cooperação Sul-Sul aproximam-se das diretrizes da Ajuda Internacional,
ou até mesmo, passam a servir, em alguns casos, de instrumento de
dominação das potências emergentes. Neste contexto que surge uma série
de denúncias sobre contradições na CSS, que vão desde a promiscuidade
entre cooperação, financiamento e investimentos, à efeitos negativos
destes programas sobre as populações que a CSS procura beneficiar. Em
relação ao Brasil, destacaram-se as denúncias em relação ao Programa de
Cooperação em parceria com o Japão para o Desenvolvimento Agrícola
da Savana Tropical em Moçambique – ProSavana, em Moçambique, em
2011, para o desenvolvimento de sistemas de produção comercial de larga
escala, inspirado no projeto de desenvolvimento do cerrado brasileiro,
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
186 |
o qual também fora financiado pela cooperação japonesa (ABC, 2009;
Clements; Fernandes, 2013; Nogueira; Ollinaho, 2013).
O ProSavana foi acusado de representar a transferência de uma
política agrícola baseada no latifúndio e na monocultura, que privilegia
o agronegócio em detrimento dos pequenos agricultores, que estariam
sendo expropriados de suas terras; fortemente motivado por interesses do
setor privado, principalmente do agronegócio brasileiro e das empresas
privadas brasileiras de energia e infraestrutura envolvidas indiretamente no
projeto; causadora de grandes impactos ambientais (Amanor; Chichava,
2016; Fase, 2016; Garcia; Kato, 2016; Paulino, 2017).
Embora permeada pelo discurso da solidariedade internacional,
a Cobradi, também trazia em sua prática a “Diplomacia Comercial”,
amalgamando interesses econômicos e políticos solidários - a cooperação e
o interesse. Buscando formulações próprias e sintonizadas com as noções
de desenvolvimento norteadoras, internamente, das ações governamentais,
a Cobradi foi formatada para considerar as seguintes orientações: atender
demanda dos países interessados em receber a cooperação brasileira; utilizar
recursos não reembolsáveis e sem transferência de recursos financeiros;
utilização da máquina pública, funcionários e instituições do governo
como agentes da cooperação; praticar gestão descentralizada, com baixo
nível de coordenação e institucionalidade; promover projetos de pequena a
média escala; articular desenho complexo do ponto de vista organizacional
e orçamentário.
A expansão da Cobradi deu-se, principalmente, a partir da mudança
de perspectiva da política externa do país iniciada no governo do presidente
Lula (2003), no contexto histórico de avanço das políticas sociais
domésticas, crescimento da indústria brasileira e de internacionalização da
economia brasileira. Sua perspectiva defendia a reorganização do mundo
em um espaço multipolar, buscando fomentar centros alternativos de
poder, diversificação das relações exteriores e reaproximação com a África,
por exemplo. (Cervo, 2003; Saraiva, 2007).
Destaque especial merece a aproximação com o continente africano.
O volume do comércio entre o Brasil e a África saltou de US$ 4,2 bilhões,
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 187
no ano 2000, para US$ 25,9 bilhões em meados de 2008 (AFDB et
al., 2011). O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) desempenhou um papel fundamental para ampliar a presença
do capital nacional na região. Em 2008, os incentivos para as empresas
brasileiras exportarem para a África (no âmbito do Programa de Integração
com a África) chegaram a R$ 477 milhões, passando a R$ 649 milhões em
2009 (PDP, 2010).
Em 2010, o Brasil já possuía um total de 37 embaixadas na África,
comparado a 17, em 2002. Também aumentou substancialmente o número
de embaixadas africanas no Brasil: entre 2003 e 2010, foram abertas, em
Brasília, 17 novas embaixadas somando-se às 16 já existentes (World Bank;
IPEA, 2011)
5
.
2. o brasil no cenário munDial De combate à fome e o Programa
De aQuisição De alimentos Da agricultura familiar (Paa)
O referencial de política pública agrícola e agrária adotado no
Brasil, historicamente, foi o da modernização da agricultura, voltada
para transformar o latifúndio em grandes empresas direcionadas para
exportação de alimentos. Tal perspectiva recebeu o nome de “modernização
conservadora” porque alterava a base técnica, enquanto a estrutura agrária
permanecia desigual ou, até mesmo, era agravada quanto à concentração.
O caráter excludente da modernização conservadora da agricultura
aumentou as lutas por terra, surgindo movimentos sociais rurais que, com
o fim da ditadura militar, passaram a reivindicar a construção das políticas
públicas includentes. No primeiro ano do mandato do presidente Lula,
foi criado o Programa Fome Zero, um conjunto de políticas de combate à
fome e à pobreza, concebido a partir de articulações entre representantes
de organizações não-governamentais, institutos de pesquisa, sindicatos,
movimentos sociais e especialistas da área. O Fome Zero foi, inicialmente
coordenado por José Graziano da Silva, que, posteriormente, se tornou
O presidente Lula, de 2003 a 2010 (em seus dois mandatos como presidente) realizou 11 viagens à África
e visitou 28 países. O ministro Celso Amorim, em seu discurso de transmissão do cargo em 2011, afirmou
que esteve em São Tomé e Príncipe tanto quanto em Washington (ABC, 2009).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
188 |
o Diretor-Geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura (FAO).
O Projeto Fome Zero identificou a existência de 44 milhões de
pessoas com renda abaixo de US$ 1,00 por dia, que foram consideradas
o público beneficiário do Projeto (Instituto Cidadania, 2001). Ainda em
2003, como ação estruturante deste Programa, foi criado o Programa
de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA). Um de seus
aspectos inovadores consistia em integrar dimensões relacionadas tanto à
política agrícola como à política de segurança alimentar e nutricional.
O PAA estimula os circuitos de comercialização para os agricultores
que não conseguem participar de forma competitiva do mercado
convencional, gerando condições propícias ao desenvolvimento das
comunidades rurais. Programas como o PAA representam uma tecnologia
social inovadora, porque promovem o resgate dos hábitos alimentares
regionais, fortalecem a economia local, conservam a biodiversidade,
asseguram renda para quem produz, disponibiliza alimento de qualidade
para as pessoas que se encontram em insegurança alimentar e nutricional
e, ainda, servem para a formação de estoques públicos de alimentos. Assim,
o Programa é considerado inovador pela forma como consegue articular,
numa única política pública, dimensões diversas do desenvolvimento
(Grisa, 2017; Muller, 2007; Porto et al., 2014).
O êxito do programa brasileiro de aquisição de alimentos do ponto
de vista da segurança alimentar e nutricional, do fortalecimento da
agricultura familiar, da melhoria da renda dos agricultores, da valorização
da produção local e de sua diversificação ultrapassou as fronteiras do país
(IPEA, 2018; Takagi; Sanches; Graziano da Silva, 2014). O desenho do
Programa, que articulava instâncias governamentais em vários níveis e
protegia os pequenos agricultores do embate direto com as empresas do
agronegócio, ao tempo que ampliava o acesso da população vulnerável à
fome a alimentos, atraiu o interesse de Organizações Internacionais.
Em contraste, as principais razões para a persistência da insegurança
alimentar no mundo não residem, segundo a FAO, necessariamente,
na escassez de alimento, mas em questões relacionadas a pobreza e a
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 189
compra do alimento (FAO, 2017a). Os sistemas de produção agrícola
mediados pelo mercado deixavam, segundo o mesmo estudo da FAO,
cerca de 815 milhões de pessoas cronicamente subnutridas no mundo
devido a dificuldades de acesso aos alimentos básicos. Segundo o Banco
Mundial, metade da população mundial que passa fome é formada por
pequenos agricultores (World Bank, 2018). Na África Subsaariana, por
exemplo, apesar de serem responsáveis por 80% da oferta de alimentos,
“[...] pequenos agricultores estão dentre os mais vulneráveis à insegurança
alimentar e às ineficiências dos sistemas alimentares locais e a falta de acesso
a mercados inclusivos” (Brasil; FAO; WFP; UKAID, 2014, p. 11). O setor
tem se concentrado cada vez mais em poucas mãos, desde os insumos até
a distribuição pelas grandes comercializadoras de grão. As vendas globais
de alimentos são um mercado gigante, enquanto em regiões como a África
Subsaariana, normalmente, 70-80 por cento da população é muito pobre e
está envolvida na agricultura como parte de sua subsistência (Clapp, 2012).
Foi neste contexto que a difusão da política pública brasileira
PAA na forma de um programa de Cooperação Internacional para
o Desenvolvimento foi considerada pelos autores deste texto como
diferenciada dos demais programas de cooperação em Segurança Alimentar
e Nutricional ou desenvolvimento agrícola.
3. Paa africaPurchase from africans for africa
Estatísticas relativas a 2017 revelaram que o continente africano
permanecia como a região com maior prevalência de pessoas subnutridas,
afetando 22,7% da população da África Subsaariana e 33,0% parte Oriental
(FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO, 2017). A persistente subnutrição
em muitos países do continente africano, agravada pela grande crise de
alimentos do final da primeira década do Século XXI e os resultados do
Fome Zero, transformaram o Brasil em referência mundial para o combate
à pobreza e à insegurança alimentar. Estes eventos justificaram a emergência
de parcerias entre o Brasil, Organizações Internacionais Multilaterais e
países interessados em enfrentar a fome e a questão nutricional. Muitos
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
190 |
países em desenvolvimento, movidos pela repercussão internacional do
Fome Zero, enviaram delegações ao Brasil para conhecer o Programa
6
.
A crise de alimentos entre 2008 e 2009, moveu o governo brasileiro
a apoiar países africanos e a desenvolver e implementar suas próprias
versões do Fome Zero. Em julho de 2009, o presidente brasileiro
participou da Cúpula da União Africana, realizada em Sirte, Líbia,
quando já havia lançado a sugestão de realizar uma reunião de Ministros
de Agricultura do Brasil e dos Países Africanos. O compromisso foi
reiterado na reunião com representantes africanos, à margem da Cúpula
Mundial de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em Roma,
em novembro de 2009. Neste encontro, ficou decidido uma reunião de
seguimento, a ser realizada no Brasil, com a presença dos Ministros da
Agricultura africanos para conhecerem a experiência brasileira. Fruto de
tais articulações, em maio de 2010, o governo brasileiro promoveu, em
Brasília, o “Diálogo Brasil – África em Segurança Alimentar, Combate
à Fome e Desenvolvimento Rural”, com o objetivo de fortalecer a
parceria com os países africanos nos temas da agricultura e luta contra
fome. Participaram mais de 40 ministros africanos de agricultura,
desenvolvimento agrário e nutrição; Banco Mundial; Banco Africano
de Desenvolvimento; FAO e Programa Mundial de Alimentos (PMA).
Em seu discurso oficial, o Presidente Lula assumiu o compromisso de
criar programas de cooperação com países africanos, reproduzindo
experiências brasileiras na área de agricultura familiar, a fim de reforçar a
segurança alimentar (Takagi; Sanches; Graziano Da Silva, 2014).
Segundo a definição oficial, o PAA África representa uma iniciativa
conjunta para promover segurança alimentar e nutricional e geração de
renda para agricultores e comunidades vulneráveis em países africanos.
Inspirada na experiência brasileira bem-sucedida do Programa de Aquisição
de Alimentos (PAA), a parceria foi concebida para apoiar os esforços globais
Também resultado de tal interesse, o Ministério do Desenvolvimento Social, entre 2014 e 2016, realizou
147 missões internacionais, para participar de eventos organizados por outros países e organizações
internacionais interessadas no Programa. No total, entre 2014 e 2016, as experiências brasileiras foram
compartilhadas com 83 países, em sete regiões (IPEA, 2018).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 191
de erradicação da fome e da desnutrição e representa uma oportunidade
estratégica para a cooperação horizontal com os países africanos
7
.
O PAA foi colocado como a principal referência de Programa de
Segurança Alimentar e Nutricional a ser reproduzido. Foi formatado um
programa de implantação de projetos-pilotos de compras para alimentação
escolar, em 5 países, com base nos seguintes critérios: representação regional
da África e um critério cultural de equilíbrio. O grupo de países receptores
ficou conformado pelos seguintes países: um lusófono (Moçambique),
dois anglófonos (Malaui e Etiópia) e dois francófonos, (Níger e Senegal)
8
.
As escolhas contaram também com motivações provenientes de lobby dos
embaixadores brasileiros que advogavam pelos países nos quais estavam
locados e as negociações com o PMA e FAO para atender a intenção do
Brasil de eleger José Graziano para Diretor Geral da FAO, como a inclusão
do Senegal, pais de origem de Jacques Diouf, então diretor geral da FAO
9
.
O PAA África contou com a parceria da FAO e do PMA. A inclusão
do PMA deve-se à sua expertise em compra de alimentos para alimentação
escolar nos países parceiros por meio do Purchase for Progress (P4P)
10
.
A coordenação coube ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil
(MRE), por meio da Coordenação Geral de Combate à Fome (CG Fome).
A FAO ficou responsável por oferecer capacitação técnica à produção
agrícola, enquanto o PMA, atuou como facilitador da operacionalização
logística do Programa no continente africano - compra dos alimentos
dos agricultores e distribuição para entidades públicas. Juntou-se,
posteriormente, ao arranjo institucional que compôs o PAA-África, o UK
Department for International Development – DfID, responsável pela
etapa final de avaliação do programa e elaboração dos relatórios. No total,
O link oficial com a definição do PAA Africa seria: http://paaafrica. org/pt/about/paa-africa/. Entretanto,
este site foi desativado em 2017. A definição oficial encontra-se registrada em diversos trabalhos, como
Paulino, 2017, na p.33.
Ministro Milton Rondó, Diplomata e Coordenador Geral da CG Fome, entrevista concedida em julho de
2018.
Marcos Lopes Filho, integrante da equipe do PAA África desde a sua concepção, como Assessor de
Programas de Cooperação Internacional em Segurança Alimentar da CG Fome. Entrevista concedida em
junho de 2018.
10
Klug, 2018. Funcionário da FAO. Entrevista concedida em junho de 2018.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
192 |
seriam investidos USD 5. 132. 662, 00 pelo governo brasileiro, executados
em duas fases, e U$ 2 milhões do DFID (FAO, 2017b).
Dentre os projetos que compunham o Fome Zero, os ministros
africanos escolheram a modalidade do PAA voltada para o atendimento
da alimentação escolar. Tal escolha foi acatada pelo Brasil em observância
ao princípio da COBRADI de atuar em resposta às demandas de países
receptores. Segundo o PAA Africa Umbrella Document, o Programa
foi criado com o objetivo de aumentar a produtividade agrícola por
meio do fornecimento de treinamento e de insumos, e tem um duplo
objetivo: 1) promover a segurança alimentar e o acesso aos mercados
institucionais dos pequenos agricultores; 2) promover a segurança
alimentar dos alunos das escolas através do fornecimento de refeições
escolares regulares (FAO, 2017c).
A liderança técnica do Programa coube a FAO, que reforçou
capacidades na produção e nas técnicas de colheita e pós-colheita, apoiando
agricultores para que produzissem em maior quantidade e qualidade –
produtividade da terra e redução das perdas de alimentos – com o objetivo
de atender a demanda gerada por programas de alimentação escolar.
O PMA liderou os processos operacionais de compras e distribuição
de alimentos em escolas, assim como processos de capacitação para as
escolas e organizações de agricultores. Ambas as organizações forneceram
funcionários e estrutura de seus escritórios locais para operacionalização do
programa (Brasil; FAO; WFP; UKAID, 2014).
A Fase I do PAA África, iniciada em fevereiro de 2012, foi
considerada um período de experimentação e durou 2 anos, findado
em dezembro de 2013. Nesse período, o programa beneficiou 5.516
agricultores e 128.456 alunos em 420 escolas dos 5 países, adquirindo,
localmente, 1.025 toneladas de alimentos. Segundo o relatório da primeira
fase, verificou-se o aumento de 114,5% nas taxas médias de produtividade
dos diferentes tipos de alimentos contemplados no Programa. Os projetos
implementados produziram e forneceram produtos de culturas locais, como
milho, feijão, amendoim, batata doce, cebolas, tomate, banana, feijão de
fava, trigo, arroz, painço, dentre outros produtos, integrantes dos hábitos
alimentares e práticas agrícolas locais (Brasil; FAO; WFP; UKAID, 2014).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 193
Vale destacar, que este procedimento guarda sintonia com os princípios
definidos no PPA brasileiro de garantir a segurança alimentar, preservando
os hábitos alimentares locais com a valorização do cultivo de alimentos de
diversidades regional.
A Fase II do PAA África começou em 2014 e a previsão era
que terminasse em 2018, executado em duas subfases: a) 18 meses
de aprimoramento dos projetos pilotos e intensificação do diálogo
político; b) 42 meses de expansão e consolidação das compras locais de
alimentos em âmbito nacional (Brasil; FAO; WFP; UKAID, 2014). O
Programa foi interrompido ao término da primeira subfase, devido a não
continuidade do financiamento (FAO, 2017b). Os recursos brasileiros
para o programa se esgotaram, e a expectativa de que as Agências da
ONU intermediassem a adesão de novos financiadores e que os governos
locais assumissem o Programa não ocorreu
11
. Durante a Fase II do PAA
África, foram adquiridas 2.697,82 toneladas de alimentos de 15.998
pequenos agricultores, beneficiando mais de 37.110 crianças em idade
escolar (PNUD/IPC-IG, 2017).
O PAA África promoveu uma série de instrumentos de intercâmbio
de experiências e estratégias, com o objetivo de desenvolver capacidades e
soluções para os desafios comuns aos países integrantes da iniciativa. Foram
promovidos, na Fase I, 3 Seminários e Oficinas Internacionais: Brasília
(2012), Dacar (2013) e Adis Abeba (2014), que reuniu participantes dos
países parceiros, governos, sociedade civil e agências da ONU, para trocar
experiências e debater metodologias adaptadas para a realidade de cada
país (idem, ibidem).
Entrevistados revelaram que o PAA África, em determinados
momentos, colocou em pauta, no âmbito de agências da ONU, a construção
de sistemas alimentares mais justos e inclusivos
12
. Estudos como o de
Milhorance e Soule-Kohndou (2017) confirmam a estratégia reformista
da CSS no seio das organizações internacionais. Historicamente, o PMA
11
Rosana Miranda, coordenadora de comunicação institucional do PAA África. Entrevista concedida em
junho de 2018.
12
Nathalie Beghin, (2018) Conselheira do Consea e integrou o grupo consultivo do PAA África como
representante da entidade. Entrevista realizada em junho de 2018. Este propósito também foi destacado
por Lopes Filho (2018) e Klug (2018).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
194 |
comprava de trades ou recebiam doações destes alimentos vindos do Japão,
principalmente, e dos Estados Unidos. Tais organizações possuem, ainda, o
pressuposto do livre mercado como vetor de promoção do desenvolvimento
rural, o uso de sementes híbridas e fertilizantes químicos (Fouilleux, 2009;
Paulino, 2015, 2017).
Esta tentativa de influenciar a cooperação no âmbito da ONU teria
significado um diferencial importante nos termos da cooperação praticada
por países do Norte. Comumente, os programas de cooperação inspirados
na modernização agrícola induzem mudanças nas variedades de alimentos
produzidos, introdução de novas culturas e, principalmente, dependência
dos pequenos agricultores em relação às sementes híbridas e aos fertilizantes
(Paulino, 2015, 2017).
4. os Determinantes Para inserção Do Paa brasileiro na
coPeração sul-sul
A maior presença do Brasil no cenário da cooperação internacional
é resultado múltiplos fatores: certo esgotamento das proposições que
orientam a cooperação internacional comandada partir das organizações
internacionais oriundas do final da Segunda Guerra Mundial; esforços de
articulações entre países do Sul por algumas de suas maiores economias; e
deliberada escolha do governo brasileiro de desempenhar papel ativo em
fóruns comandados por organizações internacionais interestatais e nos
novos arranjos que buscavam a articulação entre o Sul geopolítico.
No que toca aos objetivos deste texto, há que se ter em conta ainda,
o movimento interno da política brasileira na primeira década do Século
XXI: a inflexão na política externa que retoma o elo perdido entre o Brasil
e o continente africano, como também, os resultados das políticas de
combate à fome e superação da pobreza, que alcançaram reconhecimento
internacional. Ressalta-se, ainda, que a concepção e implementação das
políticas sociais resultaram de interação entre o governo e a sociedade
civil, historicamente engajada com o tema da segurança alimentar e
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 195
agricultura familiar, que conformam políticas que não privilegiam apenas
o agronegócio.
A partir desse contexto, identificam-se cinco dimensões de
determinantes nacionais e internacionais que justificam a entrada do
Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar na agenda da
Cooperação para o Desenvolvimento Internacional brasileira.
4.1 Dimensão geoPolítica: as articulações sul-sul
As alterações na geopolítica mundial nas últimas décadas - fim da
Guerra Fria e a emergência da China, especialmente - abriram espaço para
o fortalecimento das relações entre os países do Sul e das possibilidades
de estes incidirem sobre os rumos da cooperação internacional para o
desenvolvimento.
Os esforços do Brasil em se posicionar por uma ordem multipolar,
implicou em integrar e articulações entre o Sul geopolítico em dimensões
geográfica e institucional variadas, como as coalizões BRICS, IBAS, G20
e promoção de diálogos como a Iniciativa América do Sul-África (ASA)
e Cúpula América do Sul-Países Árabes. No âmbito da América do Sul,
defendeu a criação de novas organizações, sendo as mais expressivas a
União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e o Conselho Sul-Americano
de Defesa e continuidade do Mercosul.
O compromisso da política externa brasileira com o multilateralismo,
estabilidade macroeconômica e valores como a democracia e direitos
humanos, lhe garantiu crédito diferenciado como parceiro internacional
aos olhos das principais organizações internacionais intergovernamentais
(Milhorance, 2014; World Bank; IPEA, 2011).
Em muitos momentos o governo brasileiro se “[...] empenhou em
fortalecer seu papel como representante do Sul” (World Bank; IPEA,
2011, p.18). O Brasil se colocou ainda como representante dos interesses
dos países do Sul frente a instituições multilaterais como o FMI, Banco
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
196 |
Mundial e OMC. Um exemplo da ação brasileira em Fóruns Internacionais
que marcaram a influência nas agendas internacionais foi durante as
negociações da Agenda de Acra (OCDE, 2008), quando se aliou aos países
do Sul que reivindicavam a necessidade de maior ênfase à Cooperação Sul-
Sul no documento final do evento, destacando-a como um canal legítimo
de desenvolvimento internacional (OCDE, 2008).
O governo Lula foi especialmente ativo na incidência diplomática
na área do combate à pobreza e da agricultura familiar. O fato de o Brasil
ter se tornado um dos protagonistas no tema da segurança alimentar e
nutricional e humanitário foi determinante para que o PAA África contasse
com o interesse das agências da ONU em participar do Programa, mesmo
com seu orçamento restrito e grandes desafios que a empreitada significava.
A participação das agências, por sua vez, garantiu a escala do programa e
seu potencial de incidência sobre a perspectiva hegemônica de promoção
de sistemas alimentares no mundo. Quando a parceria do PAA África foi
estabelecida, o Brasil gozava de um especial status diante da FAO e do
PMA. Em 2010, o Brasil havia sido o segundo maior doador para o Fundo
Emergencial (EFR) do Haiti, a frente de países como França, Dinamarca
ou Suécia. No mesmo ano, o Brasil encontrava-se na sétima posição
entre os 10 maiores doadores para Assistência Humanitária entre países
não integrantes do CAD/OCDE, superado apenas por Arábia Saudita,
Turquia, Rússia, Emirados Árabes, China e Índia (Smith, 2011).
Percebe-se que o lugar que o Brasil ocupou, internacionalmente,
na primeira década do século XXI, foi fundamental para que o governo
brasileiro ousasse propor uma agenda alternativa em segurança alimentar,
como o PAA África, viabilizá-la e difundi-la a partir da colaboração de
parceiros como a FAO e PMA.
4.2 Dimensão Política e institucional interna: PersPectiva De
governo e De agenDa internacional
A introdução do PAA África na agenda da Cobradi resulta da decisão
governamental de retomar a política exterior integrada com as diretrizes
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 197
de desenvolvimento promovidas internamente. No tema em foco neste
texto, significa conceber e implementar políticas públicas com objetivo
de promover a inclusão dos mais pobres na agenda da cidadania social
e política. A partir dessa concepção, observa-se a intencionalidade do
governo brasileiro em internacionalizar a experiência doméstica do PAA
e os seus resultados. As metas alcançadas pelo Brasil em implementar
projetos de inclusão social traduziram-se em iniciativas de política externa
em âmbitos bilateral, regional, inter-regional e multilateral. A “diplomacia
do combate à fome e à pobreza” tornou-se um dos instrumentos de
inserção internacional do Brasil nos dois mandatos do Presidente Lula.
(Albuquerque, 2015).
O fato da Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento
Internacional não possuir uma Política de Cooperação Internacional
devidamente regulamentada e institucionalizada faz com que ela tenha
sido pautada, historicamente, pelo perfil de cada governo. A visão política
e ideológica do presidente Lula e o perfil dos formuladores e executores
da política externa (diplomatas, ministros, secretários-gerais e técnicos),
foram determinantes para as mudanças que passaram a reger a Cooperação
Internacional brasileira (Vigevani; Cepaluni, 2007).
Foi sob a presidência de Lula que o governo ratificou as diretrizes
voluntárias do Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA) das
Nações Unidas e, atendendo a uma reinvindicação do Fórum Brasileiro
de Soberania de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN) – incluiu
o Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA) na Constituição
Brasileira. Criou ainda a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional
(LOSAN), que tornou a segurança alimentar e nutricional uma política de
Estado no Brasil. A LOSAN, no seu artigo 6, prevê a internacionalização
dos programas de SAN, ao afirmar que: “O Estado brasileiro deve
empenhar-se na promoção de cooperação técnica com países estrangeiros,
contribuindo, assim, para a realização do Direito Humano à alimentação
adequada no plano internacional” (Brasil, 2006). Por meio da LOSAN foi
criada a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional
– CAISAN, instância governamental na qual representantes de diversos
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
198 |
ministérios se articulavam em prol da agenda brasileira de SAN e de sua
internacionalização.
13
A CAISAN mostrou-se integrada com a feição mais solidária da
Cobradi, como demonstra o documento apresentado como subsídio para
a discussão sobre Cooperação Internacional em Segurança Alimentar e
Nutricional na XIII Plenária do CONSEA (2013). Segundo os ministros, a
CSS realizada pelo Brasil deve ser destacada pela “[...] diplomacia em ações
conjuntas baseadas na solidariedade, em ação em resposta às demandas
dos países em desenvolvimento, no reconhecimento da experiência local,
na adaptação da experiência brasileira, sem associação com interesses
comerciais ou benefícios e sem interferência nos assuntos internos dos
países parceiros” (CAISAN, 2013, p. 2-3).
Foi determinante, ainda, para a inclusão do PAA na agenda da
Cobradi, o interesse pela agenda da Segurança Alimentar de pessoas
específicas que compuseram aquele governo, como o Ministro de Relações
Exteriores, Celso Amorim, e o então Coordenador Geral da CG Fome,
Milton Rondó. Rondó, além de diplomata de carreira, também integrava
o Consea, como membro da Comissão Permanente que discutia os
temas Internacionais (CP2 – Comissão Permanente de Macros Desafios
Nacionais e Internacionais). A participação de Rondó no Consea permitiu
que a CG Fome acompanhasse de perto o PAA nacional.
14
Milton Rondó
foi responsável por criar uma comissão para o PAA África na qual o Consea
tinha acento.
15
As mudanças verificadas a partir das mudanças de governo confirmam
a importância desta categoria referente a perspectiva de governo. Enquanto
o governo de Dilma Rousseff foi marcado por um desengajamento do alto
escalão,
16
o governo Temer dissolveu o CG Fome, então responsável pela
internacionalização do Fome Zero (Valente, 2016).
13
Renato Maluf, informação verbal, 2018.
14
Maria Emilia Pacheco, Conselheira do Consea desde 2004, presidiu o Consea de 2012 a 2016. Entrevista
realizada em junho de 2018.
15
Nathalie Beghin, Conselheira do Consea, foi da Comissão Permanente sobre assuntos internacionais do
Conselho e integrou o grupo consultivo do PAA África representando o Consea. Entrevista realizada em
junho de 2018.
16
Klug, 2018.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 199
4.3 Dimensão ParticiPação social: estaDo-socieDaDe civil na
agenDa internacional brasileira
São diversas as evidências de que a participação da sociedade civil
brasileira, particularmente em torno do Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional – Consea, foi um dos fatores determinantes para
que a experiência doméstica do PAA se transformasse em um programa da
Cooperação Brasileira para o continente africano no campo da Segurança
Alimentar e Nutricional.
A internacionalização do modelo de compras locais da agricultura
familiar não pode ser considerada separadamente do processo de formulação
da política nacional. A participação ativa da sociedade civil foi, antes de
tudo, determinante para a criação da versão brasileira do PAA. Além do
Consea, a Via Campesina, Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura - CONTAG e a Federação Nacional dos Trabalhadores
e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil - FETRAF foram
importantes na sensibilização de deputados e senadores pela aprovação da
Lei 11.947 de 2011, que instituiu no Brasil a compra mínima de 30% da
merenda escolar de agricultores familiares. (Lopes Filho; Sabourin, 2017;
Muller, 2017).
A mobilização da Sociedade Civil foi de fundamental importância
para a aprovação, em 2010, da Emenda Constitucional nº 64, que inclui
o Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA) no artigo 6º da
Constituição Federal.
Ao Consea foi confiada a função de assessoramento direto ao
presidente da República na formulação e implantação do Fome Zero,
respeitando o compromisso entre governo e movimentos sociais de
consolidar, de forma participativa, a política de SAN. Restabelecido em
2003, o Consea estava vinculado à Presidência da República e era composto
por 2/3 de representantes da sociedade civil e 1/3 do governo federal, sendo
presidido por um representante da sociedade civil. Constituiu-se como um
importante espaço de interlocução entre representantes da sociedade civil
e setores governamentais (Grisa; Zimmermann, 2015).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
200 |
Com a intensificação dos processos de integração regional,
consolidaram-se importantes redes regionais de OSC, como a Aliança
pela Soberania Alimentar dos Povos e a Coordenação Latino Americana
de Organizações do Campo (CLOC); a Rede Regional da Sociedade Civil
para a Segurança Alimentar e Nutricional na CPLP (redSAN-CPLP) e a
Articulação Continental dos Movimentos Sociais para a Aliança Bolivariana
das Américas (Alba), da qual participavam movimentos sociais brasileiros
que tinham a soberania alimentar e nutricional como eixo prioritário.
A permeabilidade do governo às organizações da sociedade civil
foi determinante, também, na criação do PAA África, principalmente,
por meio do Consea. Desde seu regimento original, de 1993, consta nas
incumbências do Consea o papel de articulador entre Estado e Sociedade
Civil, entre órgãos públicos e privados, nacionais e internacionais, em
matéria de programas de segurança alimentar e combate à fome e a miséria
(Brasil, 1993). O Decreto (no 4.582, de 30 de janeiro de 2003. Revogado
pelo Decreto nº 5.079, de 2004) que regulamentou o funcionamento do
Consea prevê a interlocução permanente do Conselho com organismos
internacionais, o que justificará o engajamento do Conselho com agendas
internacionais (Brasil, 2003).
O Consea sempre atuou internacionalmente, mas tal atuação
limitava-se às negociações internacionais, como na Rodada de Doha,
ou negociações no âmbito do Mercosul. Novas demandas levaram o
Conselho a se envolver na Cooperação Internacional Brasileira. O Consea
desempenhou papel fundamental na recriação do Comitê de Segurança
Alimentar da ONU, dado que o formato assumido para refundação
Comitê se inspirou na experiência do Consea (Beghin, 2018).
O ativismo internacional do Consea se manifestava de diversas
formas: elaboração de recomendações à Presidência da República (por
meio de “Exposições de Motivos”); realização de atividades de incidência
em espaços multilaterais regionais e globais; intercâmbio de informações e
experiências com representantes governamentais e membros da sociedade
civil de outros países. Entre 2004 e 2013, foram enviadas pelo Consea à
Presidência da República 12 Exposições de Motivos com relação a questões
internacionais. No contexto da crise alimentar global de 2008, o Consea
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 201
apresentou 3 Exposições de Motivos voltadas para a agenda internacional,
com proposições específicas para posições negociadoras do Brasil na
Organização Mundial do Comércio (OMC), além de ter elaborado um
diagnóstico que apontava para a natureza sistêmica da crise e a importância
do enfrentamento do tema de forma global. Em 2009, em função das
negociações que iriam acontecer na COP 15, em Copenhague, o Consea
elaborou uma série de recomendações relativas ao tema das mudanças
climáticas e sobre seus impactos no direito humano à alimentação
adequada, na soberania e na SAN, sobretudo, das populações em situação
de pobreza (Beghin, 2014).
O Consea produziu, ainda, com o apoio de organizações
internacionais não governamentais, documentos sobre seus
posicionamentos que são publicados em diversas línguas, como parte de
seus esforços de incidência internacional na agenda de SAN
17
.
Apesar de sua participação em espaços internacionais, como a CPLP
e Reunión Especializada de Agricultura Familiar del MERCOSUR (REAF), é
no âmbito do Comitê de Segurança Alimentar (CSA) das Nações Unidas,
onde alguns de seus conselheiros possuem assento no High Level Panel
of Experts – HLPE/CFS, que se dá a principal atuação internacional do
Consea. Representantes do Consea participavam de plenárias anuais do
CSA (Beghin, 2014; IPEA, 2018).
O engajamento do Consea com a agenda internacional ocorria,
também, por meio da recepção de delegações de países estrangeiros nas
Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN),
assim como da participação de conselheiros em eventos promovidos por
outros países ou por organismos internacionais. Desta forma, o Consea
desempenhou papel fundamental na articulação da sociedade civil
internacional em torno do tema da SAN e agricultura familiar. Cada
Conferência Nacional do Consea contava com convidados internacionais,
possibilitando importantes oportunidades de interlocução da Sociedade
Civil, inclusive, para debater sobre projetos de cooperação do Brasil
com outros países. Isso aconteceu de maneira crescente em todas as
17
Like “Effective Public Policies and Active Citizenship: Brazil´s experience of building a Food and Nutrition
Security System”, Abrandh and Oxfam, 2012.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
202 |
Conferências, como na 5ª CNSAN, realizada entre 3 e 6 de novembro de
2015, em Brasília, com lema “Comida de verdade no campo e na cidade:
por direitos e soberania alimentar”. O evento contou com a participação
de 2.107 pessoas, sendo a Conferência que contou com o maior número
de participantes internacionais, provenientes de 30 países de várias regiões
do mundo. Dentre os participantes de movimentos socias no campo da
agricultura de países estrangeiros, estiveram presentes, representantes
da União Nacional de Camponeses de Moçambique - UNAC e a
ativista indiana Vandama Shima. A maioria dos presentes era oriunda
de organizações não governamentais e movimentos sociais, além de
organismos internacionais e representantes de governos. Os participantes
aprovaram um Manifesto, traduzido para francês, inglês e espanhol, que
traz considerações sobre temas como a crescente captura corporativa dos
espaços internacionais de governança e participação; a perspectiva de
“Revolução Verde” para a segurança alimentar; perspectivas conflitantes
sobre as formas de promoção da SSAN na CSS, dentre outros. Por fim, o
manifesto apresenta as recomendações dos participantes internacionais para
uma agenda inclusiva em SAN. Destaca-se aquelas relacionadas à Cobradi
- como o fim do ProSavana e promoção da participação da sociedade civil
-, e ao PAA África, recomendando sua continuidade e sustentabilidade
financeira (CONSEA, 2015).
O Consea atuou na defesa da continuidade do PAA Africa. Na
Recomendação 012 de 2012, endereçada ao Ministério de Relações
Exteriores, o Consea recomenda o fortalecimento e ampliação do quadro
de pessoal da Coordenação-Geral de Ações Internacionais de Combate
à Fome em caráter de urgência (CONSEA, 2012). Na plenária de 5
de dezembro de 2013, o Consea, analisou propostas para uma política
nacional de cooperação internacional no campo da SAN, que gerou uma
Exposição de Motivos (nº 007-2013) enviada à Presidente da República
Dilma Rousseff, que recomendava a consolidação da institucionalidade e
do marco legal da Cobradi, propondo instâncias legais e institucionais para
viabilizar a participação social e a criação do Conselho Nacional de Política
Externa (CONSEA, 2013, p. 7-8).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 203
O Consea foi um dos principais defensores da criação do Conselho
de Política Externa, assim como a criação de uma Política de Cooperação,
uma vez que, no Brasil, a política externa é uma das poucas políticas
públicas, junto com a defesa, que nunca dispuseram de um conselho
paritário com a sociedade civil.
4.4 Dimensão QualiDaDe técnica Do Programa e reconhecimento
internacional
Outra dimensão determinante para a internacionalização do PAA
brasileiro foi o reconhecimento internacional da qualidade técnica do
Programa brasileiro. O caráter inovador do PAA e seus resultados positivos
relacionados ao combate à pobreza rural e à insegurança alimentar foram
determinantes para que o Programa fosse tomado como referência
para outros países em desenvolvimento e por organismos multilaterais
(Milhorance, 2014). O Brasil passou a receber quantidade expressiva de
visitas de delegações de países e de agências de cooperação internacional,
interessados em conhecer a experiência brasileira. Segundo o documento
“Proposta do Governo Brasileiro - Termos de Referência e Recomendações
para Elaboração do Projeto PAA África”, o programa Purchase for Progress
(P4P), criado em 2008 pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA), foi
inspirado no PAA brasileiro.
Durante o Diálogo Brasil – África, marco da criação do PAA África,
o PAA brasileiro foi uma das políticas que mais despertou interesse dos
ministros de agricultura africanos. Esta política pública era considerada o
programa síntese” do Fome Zero por muitos dos presentes no encontro.
Naquela oportunidade, os ministros da agricultura africanos visitaram
unidades do programa brasileiro e gostaram muito da lógica do programa.
18
O reconhecimento dos parceiros envolvidos no PAA África da qua-
lidade técnica e social do programa ao longo de sua execução, foi
determinante para sua concretização, apesar das limitações de or-
18
Lopes Filho (2018), informação verbal; Miranda (2018), informação verbal.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
204 |
çamento e de seu caráter contestador sobre alguns pressupostos da
cooperação internacional tradicional em SAN.
4.5 Dimensão conflitos De interesses internos: o
reconhecimento internacional valiDa o Projeto nacional
A internacionalização de políticas públicas teve impactos não só nas
diversas vertentes de engajamento internacional do país, como também
reverberou no âmbito doméstico (Albuquerque, 2015).
Uma dimensão importante que emergiu entre os determinantes para
que o PAA compusesse a agenda da Cobradi foi o interesse do governo
brasileiro em validar um projeto político diante da opinião pública
nacional. A história recente do Brasil é marcada por forte disputa interna
em torno dos projetos de desenvolvimento do campo, e de dificuldades
de levar adiante projetos políticos mais inclusivos nesta área. Programas
como o PAA encontravam resistências dos setores conservadores nacionais
e o reconhecimento internacional do PAA brasileiro poderia inibir os
críticos nacionais. Dessa forma, a internacionalização do PAA era parte
da estratégia de consolidação do projeto político do governo Lula na arena
doméstica. (Lopes Filho, 2017).
5. conclusão
Este artigo foi desenvolvido partindo de um contexto no qual a
Cooperação Sul-Sul, vista como herdeira da Solidariedade Sul-Sul lançada
em Bandung, vinha sendo acusada de aproximar-se dos objetivos da
tradicional Cooperação Norte- Sul, ao reproduzir práticas imbuídas de
interesses econômicos, ou, até mesmo, ao cair em graves contradições.
Entretanto, no seio das contradições dos programas da Cooperação
Brasileira para o desenvolvimento, alguns programas chamam atenção,
não apenas por não se encontrarem diretamente vinculados a interesses
econômicos brasileiros, como também, por questionar os pressupostos
da cooperação hegemônica em SAN das organizações multilaterais
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 205
internacionais. Em um contexto de forte imbricação entre interesses
econômicos e políticos, e do engajamento pelo desenvolvimento do Sul
Geopolítico, a internacionalização do Programa Brasileiro de Aquisição de
Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), pode ser classificado como um
programa de cooperação internacional de bases mais solidárias. O PAA
África foi assim considerado por assumir características como: reproduzia
uma política que, nacionalmente, mostrou-se eficaz para a inclusão social e
desenvolvimento rural a partir de uma aliança do Estado com os pequenos
agricultores; respondeu a uma demanda concreta dos países receptores;
desafiou pressupostos teóricos e práticos da cooperação internacional
hegemônica no campo da SAN; foi concebido de forma participativa e
não estava associado a interesses do capital transnacional brasileiro.
A Cobradi ganhou significativo destaque na CSS, principalmente
durante o governo do presidente Lula, quando o Brasil fortaleceu suas
relações com países do Sul geopolítico, em especial com países africanos.
Evidências encontradas na execução desta pesquisa demonstraram
que as circunstâncias necessárias para a criação e efetivação de um
programa de Cooperação Sul-Sul de bases mais solidárias, no caso da
experiência brasileira do PAA África, podem ser melhor compreendidas
a partir da combinação das seguintes dimensões: geopolítica favorável
combinada com um governo empenhado em tornar-se um protagonista
internacional; governo empenhado em implementar políticas inclusivas de
desenvolvimento, que se estendia à política externa e, em certa medida, se
colocando de forma a disputar os sentidos do desenvolvimento no seio das
organizações internacionais; participação da sociedade civil na definição
e acompanhamento do Programa; reconhecimento internacional da
qualidade técnica do Programa; e busca do reconhecimento internacional
do Programa como reforço a sua aceitação internamente.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
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  :
O   P
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J B (2016-2022)
iago LIMA
1
Laura Trajber WAISBICH
2
1 introDução
Ao longo das últimas décadas diversos estudos se debruçaram
sobre a produção da Política Externa Brasileira (PEB), buscando avaliar
em que medida processos de formulação, decisão e implementação de
política externa se tornaram mais abertos à sociedade e à pluralidade de
iago Lima, é Professor de Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba, Joao Pessoa, PB,
Brazil (tlima@ccsa.ufpb.br) ORCID ID: orcid.org/0000-0001-9183-3400
Laura Trajber Waisbich é Professora no Centro de Estudos Latino-Americanos na Universidade de Oxford,
Oxford, Reino Unido (laura.trajberwaisbich@lac.ox.ac.uk). Orcid ID: ORCID ID: orcid.org/0000-0002-
3964-8205.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
214 |
atores e interesses que a compõe desde o fim do regime civil-militar em
1988. Em geral, conclui-se que a redemocratização do Brasil – somada
à abertura econômica, à intensificação do processo de globalização, e
ao amadurecimento da sociedade civil – impulsionaram uma maior
mobilização de atores estatais e não-estatais que, frente a governos mais
porosos, contribuíram para uma lenta, mas progressiva abertura do
processo decisório, pluralização ou até mesmo “democratização” da PEB
(Cason; Power, 2009; Faria 2012; Lima, 2000; Lopes, 2013; Pinheiro;
Milani, 2011).
A PEB sob os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) (2003 –
2016), mais especificamente, tem sido caracterizada pela literatura como
um período de intensificação deste processo de abertura por meio de dois
movimentos simultâneos: verticalização, com a ampliação da interlocução
com a sociedade, e horizontalização, com a inclusão de outras burocracias
no processo de produção de política externa (Silva; Spécie; Vitale, 2010;
Farias; Ramanzini Jr., 2015). Embora admita-se que esta foi a tendência
dominante durante os mandatos petistas, a aplicação deste marco conceitual
a diferentes sub-áreas da PEB (integração regional, comércio internacional,
negociações multilaterais, direitos humanos, meio ambiente, cooperação
para o desenvolvimento, entre tantos outros) apontam para processos
assimétricos, com tempos, intensidades e eficácias distintas no que se
refere aos tipos de atores e setores sociais que passaram a acessar o processo
decisório da PEB (Pomeroy; Waisbich, 2019).
O cenário muda consideravelmente a partir de 2016. Observa-se
tanto no governo interino de Michel Temer (2016-2018) e, sobretudo,
durante o mandato de Jair Bolsonaro (2019-2022) sucessivas reformas
burocráticas e encerramentos de instituições participativas e conselhos
de políticas em distintos setores (Lopes 2020; Milhorance 2022). Neste
contexto, cabe indagar se uma nova dinâmica teria sido posta em marcha:
o fechamento ou “des-democratização” da PEB. Este capítulo busca
contribuir com este debate por meio do exame do setor agroalimentar da
PEB e mais especificamente das dinâmicas de participação do campesinato
e da agricultura camponesa (termos que precisaremos adiante) nas ações
internacionais do Brasil.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 215
A tarefa de avaliar a efetividade na abertura ou democratização da
PEB não é simples. Farias e Ramanzini Jr. (2015), refletindo sobre o caso
da abertura do Ministério de Relações Exteriores (MRE ou Itamaraty)
ao diálogo com outras burocracias no processo de produção da PEB,
sugerem, por exemplo, limitações ao próprio conceito de abertura do
processo de produção de política externa a outras burocracias do Estado
(no eixo de horizontalização), bem como desafios na operacionalização
de variáveis para medi-la, na produção de escalas de comparação entre
diferentes setores e ao longo do tempo. Pomeroy e Waisbich (2019)
também apontam para desafios de medição de processos de abertura à
sociedade, no eixo da verticalização. Argumenta-se aqui que obstáculos
analíticos similares também permeiam eventuais análises de dinâmicas
de fechamento, ou de reversão da democratização, da PEB. Apesar dos
desafios não-negligenciáveis, investigar processos de fechamento da PEB é
importante tarefa analítica e política.
Ao analisarmos o setor agroalimentar da PEB, observamos no
período de 2016 a 2022 não apenas a eliminação de estruturas burocráticas
de representação do campesinato e seus interessses (o Ministério do
Desenvolvimento Agrário e a Coordenação-Geral de Cooperação
Humanitária e Combate à Fome – CGFome do MRE), e do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) (Luiz;
Milani, 2022), como também um movimento de eliminação discursiva
da agricultura familiar e camponesa. Cabe, então, aprofundar a análise
e encontrar o sentido dessa mudança e suas consequências para o setor
agroalimentar da PEB, assim como para os processos mais amplos de
produção desta política pública suis generis (Pinheiro; Milani, 2011).
Neste sentido, estaríamos observando a reversão da tendência de
abertura da PEB promovida nas últimas décadas? Ou estaríamos frente a um
câmbio no padrão de abertura e de participação no processo decisório por
parte de forças e interesses sociais, desde 2016 e, sobretudo, sob Bolsonaro?
Concretamente, estaríamos diante de um simultâneo fechamento dos canais
de diálogo, participação e co-construção com a agricultura camponesa (entre
outros setores sociais outrora mais representados no processo decisório da
PEB durante a era petista) em benefício de outras forças sociais, tais como
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
216 |
os ruralistas, os militares, e a chamada “Bancada do Boi, Bala e Bíblia” no
Legislativo e outros grupos conservadores que constituem o que se entende
como a base do bolsonarismo contemporâneo? Neste sentido, e dito de
outra maneira, seria possível conceber a atual PEB agroalimentar não
como mais fechada à sociedade e sim como mais porosa ao setor privado
do agronegócio e menos aos atores do ecossistema da agricultura familiar,
espaço este onde tradicionalmente operam os camponeses?
Nossa hipótese é que a mudança que se deu durante os anos de 2016
e 2022 foi parte do contra-ataque doméstico organizado pelo setor do
agronegócio latifundiário exportador para impedir que a ideia de um modelo
agroalimentar alternativo se fortalecesse: sai a Diplomacia do Combate à
Fome (Albuquerque, 2019), entra a Diplomacia do Agronegócio (Araújo,
2019). Trata-se de um movimento que recolocou a PEB, em termos de
diretrizes, nas linhas tradicionais da inserção internacional do Brasil como
exportador de commodities agrícolas.
Para investigar esta hipótese, realizamos um estudo de caso (Della
Porta, 2008) a partir de análise documental (legislação e decretos) e de
discursos oficiais de presidentes e outras autoridades políticas à luz da
literatura que trata das relações entre os sucessivos governos do Partido
dos Trabalhadores e o setor da agricultura familiar camponesa, com
destaque para sua manifestação em algumas facetas específicas da PEB, a
saber, a promoção comercial e o setor da Cooperação Internacional para o
Desenvolvimento (CID).
Conclui-se que eliminar a contradição da PEB pestista, ou seja,
suprimir a possibilidade da conciliação de “duas agriculturas” – o
agronegócio e a agricultura familiar – tornou-se fundamental, na visão
dos governos pós-PT, para melhorar, pela falta do contraste, a imagem
do agronegócio latifundiário exportador, o principal setor da economia
brasileira nas relações econômicas internacionais. Para isto, parte da
estratégia dos governos Temer e Bolsonaro consistiu em desmantelar o
sistema de política pública para o setor da agricultura familiar (Milhorance,
2022; Sabourin et al., 2020) e fechar os processos de formulação, decisão
e implementação da PEB a este mesmo setor, com o objetivo maior de
silenciar a agricultura camponesa. Em paralelo, observamos também
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 217
que a guinada rumo ao distanciamento da agricultura camponesa não
significou a interrupção imediata de todas as ações internacionais voltadas
para a agricultura familiar, ainda que tenha alterado significativamente sua
visibilidade e relevância na Esplanada.
A exposição está organizada em cinco seções, contando com esta
introdução. A segunda seção apresenta a literatura que descreve como os
governos pestistas buscaram construir uma coexistência pacífica, ainda que
contraditória, entre o agronegócio latifundiário exportador e a agricultura
familiar camponesa em âmbito doméstico. A terceira seção mostra como
esta contradição se manifestou na PEB. A quarta demonstra o desmonte
desta contradição por meio do fechamento institucional e discursivo
ao setor da agricultura familiar camponesa desde 2016. A última seção
arremata o argumento e traz considerações finais. Nestas, apontamos
algumas tentativas pontuais de resistência ao câmbio e resiliência
burocrática-institucional e de manutenção da visibilidade institucional da
agricultura familiar camponesa na PEB.
2 a contraDição agroalimentar nos governos Do Pt
Esta seção discute a chamada “contradição agroalimentar” nos
governos petistas e suas manifestações no campo da PEB. Antes de enveredar
por esta análise, no entanto, faz-se necessário uma breve explicitação do
nosso entendimento de alguns conceitos chaves (políticos e sociológicos)
que permeiam este setor no Brasil.
Reduzir a diversidade do meio rural a duas categorias, tais como
agronegócio latifundiário exportador e agricultura familiar, é uma
simplificação significativa da realidade como mostram Niederle e Wezs
Jr. (2018) e Escher (2020), entre outros. O que chamamos aqui de
campesinato, ou a agricultura camponesa, é, ademais, uma sub-categoria da
categoria mais ampla de agricultura familiar. Isso porque toda agricultura
camponesa é, por definição, familiar, no sentido que parte fundamental
do trabalho decorre da mão-de-obra da família, portanto não-assalariada.
No entanto, nem toda agricultura familiar no Brasil é camponesa, dado
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
218 |
o grande número de agricultores familiares operando parcialmente ou
totalmente em mercados dinâmicos. Reconhecemos ademais o caráter
profundo e prolífero do debate acadêmico sobre o conceito de campesinato,
e mesmo sobre a existência concreta de camponeses que, no entanto, não
será revisado aqui
3
.
Em nossa perspectiva, reconhecemos que o campesinato, enquanto
sujeito político no Brasil, é resultado de processos históricos heterogêneos
no tempo e no espaço, desde a formação do país. Aderimos à proposta de
Wanderley (2014), para quem, em
uma perspectiva geral, o campesinato corresponde a uma forma
social de produção, cujos fundamentos se encontram no caráter
familiar, tanto dos objetivos da atividade produtiva – voltados para
as necessidades da família – quanto do modo de organização do
trabalho, que supõe a cooperação entre os seus membros. A ele
corresponde, portanto, uma forma de viver e de trabalhar no campo
que, mais do que uma simples forma de produzir, corresponde a
um modo de vida e a uma cultura.
A agricultura camponesa difere-se, assim, dos pequenos produtores
que se orientam fundamentalmente pela lógica capitalista. Destaque-se,
ainda, que o silenciamento do camponês é parte constante da política
nacional (Martins, 1981; Lerrer, 2017) e que, por isso, a presença de canais
institucionais que permitam a manifestação política e a defesa de interesses
da agricultura camponesa na PEB constituem um avanço democrático.
Posto isso, passamos à análise dos governos do PT. É forte o
entendimento de que, nos governos de Lula da Silva (2003-2010) e
Dilma Rousseff (2011-2016), a reforma agrária com redistribuição de
terras não avançou de forma tão significativa quanto se esperava, e que
O conceito de campesinato é alvo de grandes disputas intelectuais e políticas (ver, por ex.: Shanin, 2005;
Bernstein 2006). A caracterização de Motta e Zarth (2018), a partir da história de revoltas e revoluções
no Brasil, contribuiu para nossa compreensão da categoria. Para eles, (i) os camponeses são produtores
que utilizam a mão-de-obra familiar como base fundamental de produção, em unidades relativamente
pequenas. (ii) Produzem para autoconsumo e/ou para o mercado, mas os seus investimentos e decisões de
gestão baseiam-se na perspectiva da reprodução familiar, considerando as suas tradições e laços culturais
com a comunidade camponesa, e não principalmente a obtenção de lucro. (iii) Camponeses são aqueles que
se autoidentificam como tal, mesmo quando não têm condições materiais para viver como tal.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 219
a distribuição do crédito agrícola foi maior para o agronegócio do que
para a agricultura familiar (Sauer; Meszáros, 2017). Os sucessivos governos
petistas buscaram, ademais, apoiar com todas as forças a ampliação das
exportações do agronegócio como forma de superar a crise cambial
herdada dos anos 1990, apoio esse reforçado pelo início do superciclo das
commodities (Delgado, 2012). Para isso, os governos do PT liberaram o
uso de sementes transgênicas e revisaram o Código Florestal, diminuindo
as obrigações de proteção ambiental por parte dos imóveis rurais
(fazendas), entre outras medidas em benefício do agronegócio. Na PEB,
uma rede de agentes públicos e privados, que começou a se articular nos
anos 1990, foi potencializada para formular e implementar uma política
agressiva de liberalização comercial internacional, conforme os interesses
do agronegócio (Søndergaard; Silva, 2017).
Por outro lado, os governos do PT criaram e fortaleceram condições
para o estabelecimento e inserção de pequenos produtores, particularmente
os de assentamentos oriundos de reforma agrária, no mercado brasileiro. Os
mercados institucionais e mecanismos de compras públicas planejadas para
fins de políticas sociais e de desenvolvimento, por meio de iniciativas como
o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), ilustram esta abordagem
4
.
Outro exemplo é o fortalecimento do Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (CONSEA) desde o primeiro mandato Lula da
Silva (2003-2006), cuja importância política e simbólica na Esplanada
evidencia uma abertura do Executivo Federal à agenda camponesa e
do combate à fome. Neste contexto, a PEB foi instrumento de difusão
internacional de políticas públicas ancoradas na intervenção estatal como
forma avançar o desenvolvimento da agricultura familiar (Luiz; Milani,
2022), incluída a camponesa.
A era petista foi, portanto, um período de contradição, com relativa
estabilidade na questão agrária brasileira e avanço – desproporcional,
frise-se – para os dois polos em tensão, pois o agronegócio latifundiário
exportador se fortaleceu mais econômica e politicamente do que a
Os mercados institucionais não estão necessariamente sujeitas aos princípios da ampla concorrência e do
menor preço, e normalmente possuem procedimentos simplificados. Ver mais sobre o PAA em Ghizelini
(2018).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
220 |
agricultura familiar camponesa (Escher, 2020; Fernandes, 2015; Lerrer,
2017). Tal como em outros setores, Welch (2017) argumenta que o PT
tentou construir no setor agri-alimentar uma governamentabilidade – isto é,
um arranjo que normaliza uma forma de governar – que tornava aceitável a
convivência de dois modelos antagônicos de organização da sociedade e da
atividade econômica no campo e em torno da agricultura: o agronegócio
latifundiário exportador e a pequena agricultura familiar, especialmente
àquela ligada a práticas agroecológicas. O objetivo era construir uma
convivência institucionalizada, com baixa violência e papeis razoavelmente
aceitos pelos dois lados e pela sociedade em geral.
Embora hoje, dado o que sucedeu nos governos pós-petistas, isso
possa parecer algo ingênuo ou insustentável, colocá-lo brevissimamente à
luz da trajetória histórica da política no Brasil permite compreender mais
precisamente o seu significado. Por um lado, a História do Brasil é marcada
pelos violentos processos que resultam na aparição do campesinato, sempre
marginalizado e oprimido (Martins, 1981). Recorde-se, por exemplo, que
o golpe civil-militar de 1964 foi, também, uma clara reação às propostas do
então presidente João Goulart de realizar “reformas de base”; que incluíam,
entre outras coisas, estender o direito a voto aos analfabetos e realizar
uma reforma agrária com redistribuição de terras (Dezemone, 2016).
Por outro lado, desde a instauração da República, o coronelismo, seguido
posteriormente por grupos políticos militares, de esquerda e eclesiásticos
buscaram tutelar os camponeses para, na visão crítica de Martins (1981),
atingirem objetivos próprios. É nesse sentido que é possível afirmar que
a voz autônoma dos camponeses foi tradicionalmente marginalizada
no Brasil. Sem perder isso de vista, o que se observa, a partir dos anos
1980 e com o processo de redemocratização, são esforços no sentido de
produção de políticas públicas específicas para o campesinato, seja para
conter as tensões sociais que emergiam de sua condição precária, seja para
a promoção do desenvolvimento social (Wanderley, 2014).
Justapondo-se às disputas políticas, observa-se, ao longo da história,
a convivência dinâmica de diferentes modelos de produção agroalimentar
no Brasil (Niederle; Wesz Jr., 2018). Convivência esta que, se não é
violenta, tampouco é geralmente harmoniosa. Afinal, trajetória do Brasil é
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 221
a da expansão desenfreada da fronteira agrícola interna, que primeiramente
foi viabilizada pela escravidão e pelo genocídio dos povos nativos sob
a colonização de Portugal. Com o fim do regime escravagista em 1888
e o abandono completo da população negra recém liberta, os governos
incentivaram a imigração de trabalhadores rurais assalariados vindos da
Europa e do Japão. Ao mesmo tempo continuou-se o ininterrupto processo
de expansão interno da fronteira agrícola no Sul do país, no Cerrado e
na Amazônia, concretizado por meio de expulsões e violências cometidas
contra as populações nativas, e também contra os camponeses, os povos
que se formaram pela miscigenação entre índios, negros e brancos, e que
dependiam profundamente da agricultura de subsistência e do extrativismo
(Martins, 1981; Ribeiro, 2017).
Não é por menos que uma das principais maneiras de se contar a
História do Brasil, da época colonial à contemporaneidade, é por meio dos
ciclos de agroexportação (e de metais preciosos): pau brasil, no século XVI;
cana-de-açúcar, entre os séculos XVI e XVIII, ciclo do ouro, no século
XVIII; ciclo do algodão, entre os séculos XVIII e XIX; ciclo da borracha,
um período mais curto entre o fim do século XVIII e o início do XIX; o
ciclo do café, entre os séculos XVIII e XX. Como estes ciclos sempre foram
vinculados ao mercado exterior, eles se constituem como eixos centrais da
inserção internacional e da Política Externa Brasileira inaugurada com a
independência de Portugal em 1822
5
(Cervo; Bueno, 2002).
Contemporaneamente, a pauta de exportações agrícolas é um pouco
mais diversificada. O Brasil se constitui nas últimas décadas como um dos
maiores exportadores mundiais de café, algodão, açúcar, e ganhou destaque
pelo aumento progressivo das exportações de bovinos, aves, suínos e,
principalmente, soja, como demonstra a Tabela 1. No acumulado entre
2000 e 2017, o saldo comercial do agronegócio brasileiro aumentou em
cinco vezes, com crescimento de 447% (CEPEA, 2017).
Por exemplo, Loureiro (2020) analisa importante disputa diplomático-comercial entre Brasil e Estados em
torno do café nos anos 1960-1970. No seu exame, transparece dos documentos e discursos oficiais que
os interesses do Brasil em aumentar exportações de café corresponderiam ao interesse nacional, seja pelo
ângulo dos produtores (fazendeiros e industriais), seja pelo do Estado. Para isso, a diplomacia brasileira
instrumentalizava ou aderia ao discurso do terceiro-mundismo. Porém, a relação entre a produção de café,
a escravidão e a formação de populações camponesas exploradas e marginalizadas pelas fazendas cafeeiras é
totalmente silenciada. A questão camponesa, importante para o Terceiro Mundo, não é tocada.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
222 |
Tabela 1: Posição do Brasil no ranking mundial de
produção e exportação agrícola (1992-2013)
Fonte: Maranhão, Vieira Filho (2016).
Este processo contínuo de aumento da produção agrícola nas últimas
décadas, por meio da contínua expansão da fronteira agrícola sobretudo ao
Norte e Nordeste do país (no chamado Matopiba
6
e na Amazônia) ocorre
com inúmeros conflitos, sob um verdadeiro processo de acumulação
primitiva, cujos vencedores históricos são os latifundiários (Cabral;
Sauer; Shankland, 2023). A violência do processo, somada à repressão e à
marginalização das populações camponesas pelo Estado, contribuiu para
uma crescente violência no campo que se conjuga a um intenso êxodo
rural e concentração urbana no Brasil.
Este processo de formação econômica do Brasil caminhou pari passu
com a formação de uma classe política latifundiária forte e absolutamente
decisiva na política nacional. A industrialização em alguns estados
da federação, principalmente no Sudeste, gerou outra classe política
nacionalmente poderosa, mas incapaz de deter a hegemonia nacional em
períodos democráticos devido à força dos latifundiários que, no século XX,
adotaram as técnicas de produção do agronegócio com apoio do Estado.
O Matopiba é uma região formada por áreas majoritariamente de cerrado nos estados do Maranhão,
Tocantins, Piauí e Bahia, para onde a agricultura se expandiu a partir da segunda metade dos anos 1980.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 223
Com a redemocratização do Brasil em 1988, eleger-se presidente e
governar sem o apoio do agronegócio latifundiário exportador parece ser
impossível (Singer, 2012, 2018) e este é um dos fatores que perpetuam
os desdobramentos da escravidão (inerente à formação do campesinato
nacional) como traços fundamentais da sociedade brasileira (Souza, 2017).
O atual peso da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) no Congresso
Brasileiro (o principal pilar da Bancada Ruralista no Legislativo nacional)
pode ser visto pela quantidade de seus membros. Em janeiro de 2021,
eram 280 parlamentares, sendo 39 senadores e 241 deputados. Em 2023, o
número de parlamentares membros da FPA saltou para 374 (50 senadores
e 324 deputados)
7
. Lembrando que o número total de parlamentares no
Brasil é 594 (81 senadores e 513 deputados).
A crise política que se instalou no segundo mandato de Dilma
Rousseff expôs a efemeridade da governamentabilidade petista (Welch,
2017). O projeto de solapar alternativas ao modelo agroalimentar
predominante no Brasil – baseado no latifúndio e no neo-extrativismo
predatório, nos circuitos de longa distância entre produção e consumo, na
comida ultraprocessada –, e de instalar o discurso de ‘uma agricultura’ – que
silencia alternativas por definição – foi efetivamente colocado em prática a
partir do movimento que levou ao impeachment de 2016 (Escher, 2020).
Como destacam Soyer e Barbosa Jr (2020, p. 540), com o Plano Safra para
2019/2020, denominado “Uma só agricultura alimentando com qualidade
o Brasil e o mundo”,
Será a primeira vez em 20 anos que haverá um só plano para
pequenos, médios e grandes produtores, o que ocultará a disputa
orçamentária entre o campesinato/a agricultura familiar e o
agronegócio, evidenciada anteriormente por meio de dois planos
para os diferentes modelos de agricultura e de desenvolvimento
para o campo.
Neste sentido, pode-se interpretar que o agronegócio votou em peso
a favor do impeachment de Dilma Rousseff, encerrando a parceria com
Ver https://fpagropecuaria.org.br/todos-os-membros/. Acesso em: 23 ago. 2023.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
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o PT naquela gestão, num movimento de raízes profundas na economia
política nacional. Na verdade, a Bancada Ruralista foi decisiva nas três
principais votações que garantiram ao vice-presidente Michel Temer
(MDB) a Presidência da República: 50% dos votos pró impeachment,
51% dos votos que absolveram Temer da primeira denúncia de corrupção
e 55% dos votos que o libertaram da segunda acusação de corrupção
(Castilho, 2017)
8
.
3 a contraDição agroalimentar na Política externa
9
Ao refletir sobre a posição brasileira no Sistema Internacional durante
as primeiras décadas no século 21, Lima, Milani e Pinheiro (2017) sugerem
o marco conceitual do “Dilema da Graduação” como heurística para avaliar
as condições necessárias e os desafios esperados por parte daquelas potências
intermediárias e não nuclearizadas, como o Brasil, que têm a possibilidade
de ascender na hierarquia de poder na arena internacional. Para eles, os
países que poderiam se “graduar” como grandes potências seriam aqueles
capazes de apresentar novas propostas (elemento ideacional, hegemonia)
a partir do Sul, com os recursos necessários (elemento material), mas sem
perspectiva anti-sistêmica. Ou seja, sem se opor radicalmente às regras do
jogo já postas no marco da Ordem Liberal vigente. O dilema em perseguir
uma política desse tipo, argumentam os autores, é que provavelmente
ela gerará contra-ataques domésticos e internacionais com os quais será
preciso lidar. Afinal, se essas novas propostas do Sul forem capazes de se
tornarem “poder brando” (soft power) e de projetarem o país como uma
liderança na solução de problemas típicos do Sul – como o problema
das desigualdades e marginalização social no campo, da fome, bem
O percurso exato do rompimento brusco da Bancada Ruralista com PT ainda precisa ser mais bem estudado.
Neste ponto é preciso deixar claro que o agronegócio e a Bancada Ruralista não são setores homogêneos.
A política é contraditória também dentro deste grupo, que possui diferentes lideranças, alicerçadas em
diferentes regiões, produtos e estratégias de negócios. A ex-senadora Kátia Abreu (pelo estado do Tocantins),
uma das maiores ruralistas do País, foi ferrenha defensora do mando de Dilma Rousseff. Contudo, o apoio
maciço a Temer e as ações subsequentes do novo mandatário deixam claro que o que estava em marcha era
uma mudança brusca de rumo.
Este trecho é amplamente baseado em Lima et al. (2018). Também utilizamos parte desta análise
institucional em Lima (2020b).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 225
como da marginalização camponesa decorrente da dinâmica histórica do
colonialismo –, então pode-se esperar a reação dos setores que constroem o
seu poder pela própria existência daqueles problemas: incluindo o poder do
agronegócio latifundiário exportador sobre a marginalização camponesa. É
nessa perspectiva que Lima, Milani e Pinheiro (2017) apontam que não é
incomum que, no processo de Graduação, o país possua comportamentos
aparentemente incoerentes.
Partindo deste marco, é possível dizer que a PEB dos governos de
Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) viveu, em alguma
medida, o “Dilema da Graduação” no campo agroalimentar. Neste campo,
o comportamento internacional do país foi aparentemente incoerente por
aqueles que veem incompatibilidade na defesa da coexistência pacífica
entre modelos agroalimentares baseados, por um lado, no agronegócio
latifundiário voltado à exportação, e, por outro, o da pequena produção
familiar com técnicas agroecológicas, camponesa. O governo, por sua vez,
dizia ter encontrado um modus vivendi entre “as duas agriculturas”, de modo
que um país poderia ser, simultaneamente, um exportador de monoculturas
produzidas com métodos agroindustriais e financeiros intensivos; e ter uma
alimentação provida por pequenos produtores familiares com circuitos
comerciais curtos, gerando prosperidade para o campesinato e combatendo
à fome. Essa seria a solução brasileira para os países em desenvolvimento
superarem a fome, atraírem investimentos para o setor agroexportador e
arrecadarem dólares com as exportações – três problemas fundamentais de
praticamente todos os países em desenvolvimento.
A política petista dita “contraditória” permitiu ao país ganhar
reconhecimento internacional e incidir em negociações multilaterais,
conseguindo inclusive construir a candidatura de dois dirigentes
de organizações internacionais da maior relevância para os temas
agroalimentares: a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura (FAO) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), com
José Graziano da Silva e Roberto Azevêdo, respectivamente. Ao mesmo
tempo em que o país se tornava uma agro-potência exportadora relevante
nas relações econômicas internacionais, o Brasil também conseguia
difundir ideias de combate à fome a partir de uma lógica oposta, baseada
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
226 |
na pequena produção, com forte apoio de políticas públicas (como os
mercados institucionais) e maior participação social dos camponeses (Dri;
Silva, 2020; Luiz; Milani 2022; Milhorance, 2020; Milhorance; Sabourin;
Grisa, 2018; Soulé-Kohndou, 2017).
A difusão internacional dessa “nova proposta” ocorreu de várias
formas, com destaque para negociações em organizações e fóruns
internacionais, pela realização de seminários e consultorias, e por ações de
cooperação internacional para o desenvolvimento (sobretudo cooperação
técnica na vertente Sul-Sul) que envolveram, entre outros, o Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Ministério do Desenvolvimento
Social (MDS), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA),
a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), bem como o
Itamaraty e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), ainda que nem
sempre de forma coordenada. Pesquisas mostram que, se por um lado
estas burocracias estavam a defender os interesses da agricultura familiar
camponesa nas relações internacionais, por outro lado estava claro que a
projeção internacional de políticas de combate à fome e a pobreza, bem
como as ações de cooperação humanitária e para o desenvolvimento
compunham os instrumentos de poder, sobretudo de soft power, do Brasil
(Albuquerque, 2013; Brasil, 2013; Fernandes, 2013; Mota, 2021; Waisbich
et al., 2022).
Sob a ótica das dinâmicas de abertura e fechamento da PEB, as
ações internacionais destes órgãos públicos listados acima correspondem à
dinâmica de horizontalização no setor agroalimentar, descrita na literatura.
Contudo, mais importante é notar que, além de abertura a outras
burocracias estatais, houve no período também uma democratização, no
sentido proposto pela ideia de verticalização, por meio da incorporação de
um sujeito político tradicionalmente marginalizado na PEB: o camponês.
As próximas seções demonstram este processo de abertura da PEB à
agricultura camponesa, em suas dimensões de formulação e decisão, bem
como de implementação.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
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3.1 formulação e Decisão
Com a inauguração do governo Lula, as oligarquias agrícolas
passaram a enfrentar a rivalidade institucional do setor da agricultura
familiar nos mais altos processos de formulação e decisão de política externa
(Brasil, 2013; Inoue, Coelho, 2018; Leite, 2016). As principais estruturas
burocráticas a permitirem tal confronto (ou disputa inter-burocrática)
foram o MDA, o MDS, a CGFome no Itamaraty e, em menor medida, a
EMBRAPA e a CONAB.
O mais importante vetor do setor da agricultura familiar dentro da
Esplanada foi o MDA, criado em 1999, e fortalecido após 2003. Em junho
de 2005 o Presidente Lula publicou o Decreto 5.435, que alterou o artigo
4º do Decreto 4.732/2003 e incluiu o MDA no Conselho de Ministros da
Câmara de Comércio Exterior (CAMEX). A CAMEX “tem por objetivo
a formulação, adoção, implementação e a coordenação de políticas e
atividades relativas ao comércio exterior de bens e serviços, incluindo o
turismo” (Decreto 4.735, art. 1), e o Conselho de Ministros é seu “órgão
deliberativo superior e final” (idem, art. 4). Por meio deste ato, o MDA
foi incluído na estrutura interministerial a cargo da discussão da política
comercial brasileira, que é uma das questões mais importantes da agenda
política externa brasileira (Fernandes, 2010). A inclusão do MDA fez com
que o Ministério da Agricultura (MAPA) – tradicional representante do
grande agronegócio – tivesse um rival agrário no sistema de formulação
de política comercial internacional. Foi também por meio desse ato que as
forças sociais vinculadas aos interesses da agricultura familiar camponesa
e de populações rurais, com maior acesso ao processo decisório no MDA
(Grisa et al., 2022), puderam participar também (e por intermédio dele)
do processo de elaboração de políticas de comércio internacional e de
negociações internacionais na matéria. Diante da história das Relações
Internacionais do Brasil, discutida na sessão anterior, não é possível
menosprezar esse fato.
Outro exemplo notável de acesso de forças sociais relacionadas à
agricultura familiar ao quadro institucional de formulação de política
externa foi a Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária e Combate
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
228 |
à Fome (CGFome) do Itamaraty. Criada em 2004, a CGFome foi
responsável por defender e promover no exterior as políticas brasileiras
de combate à fome e à pobreza, inspiradas no Programa Fome Zero
(Lima, 2020).
Do ponto de vista da participação social, o CONSEA, criado
em 2003 (e extinto em 2019, como discutiremos a seguir), também foi
trazido para dentro da estrutura do governo federal como um comitê
consultivo para o Presidente sobre o Direito Humano à Alimentação e
Nutrição Adequados (Brasil, 2013). Parte significativa das atribuições
do CONSEA consistia em elaborar e sugerir diretrizes para a Política e
o Plano Nacional de Segurança Alimentar, por meio da interação com a
Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN).
A CAISAN, por sua vez, foi criada como órgão do MDS pelo decreto
6.273 de 2007 da Presidência. Como a Política e o Plano citados carregam
em si temas de negociações internacionais que vão desde os direitos
humanos, passando pela governança da terra, até o comércio exterior, o
CONSEA e o MDS passam a ter voz nesses temas junto à Presidência
da República. A diretriz número 7 do “Plano Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional: 2012/2015” diz respeito a ações internacionais.
São exemplos de objetivos dessa diretriz: expandir a atuação do Brasil em
ações de cooperação humanitária no combate à fome e à pobreza como
uma forma de aumentar a relevância do país nas negociações sobre Direito
Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas; fortalecer o papel do Brasil
nas negociações relativas à governança global da segurança alimentar e
nutricional; dar apoio às ações nos âmbitos da UNASUL e do Mercosul;
e garantir o princípio da participação social nos processos de processos
de formulação e de tomada de decisão em negociações internacionais que
incidam sobre a SAN (CAISAN, 2011, p. 106). As ações relativas aos
objetivos seriam de responsabilidade de Ministérios, principalmente do
MRE, mas com participação do MDS, MDA, do MAPA e do Ministério
do Meio Ambiente (MMA).
Durante o período o CONSEA tornou-se foro privilegiado para os
movimentos sociais do campo e outras organizações a eles alinhadas, dado
que composto de 40 membros oriundos da sociedade civil, 20 membros
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 229
indicados pelo governo, e presidido por um representante da sociedade civil
indicado pela Presidência. Assim, por meio do CONSEA, um conjunto
de atores sociais ligados à agricultura camponesa e familiar puderem ao
longo dos mandatos petistas participar de atividades relacionadas à política
externa, monitorando não apenas as posições do Brasil em negociações
internacionais e órgãos internacionais (como o Mercosul e a FAO), mas
também projetos de cooperação técnica do Brasil na temática (como o
PAA Africa realizado em parceria com a FAO e o PMA junto a parceiros
na África subsaariana), emitindo documentos de posição sobre elas a ser
considerados pela Presidência.
3.2 imPlementação
As estruturas burocráticas e consultivas descritas na seção anterior
criaram vetores institucionais para que atores sociais vinculados à
agricultura familiar camponesa pudessem ter seus interesses representados
e participar não apenas da formulação, mas também da implementação
da política externa. Um dos principais vetores foram as ações brasileiras
no campo da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID).
Por meio dela, o MDA, MDS, CGFome, ABC, EMBRAPA e outros
colaboraram com outros países para a implementação de projetos de
cooperação técnica e diálogo político inspirados nas políticas públicas
brasileiras para a agricultura familiar camponesa, principalmente na
África e na América Latina e Caribe, num movimento complementar à
estratégia de “autonomia pela diversificação” inaugurada com o governo
Lula (Vigevani; Cepaluni, 2007). Por meio da CID, o Brasil contribuiu
para a difusão de modelos agroecológicos, de mercados institucionais
vinculados à agricultura familiar camponesa, para a criação de conselhos
inspirados no CONSEA (Leite; Pomeroy; Suyama, 2015; Sabourin; Grisa,
2018), para modificação de normas e políticas internacionais no âmbito
da FAO (Milhorance, 2020; Milhorance; Kouhun, 2017), para a criação
de instituições junto ao Programa Mundial de Alimentos (PMA), como
o Centro de Excelência contra a Fome, sediado em Brasília (Dri, Silva,
2020), e no Mercosul, como a Reunião Especializada da Agricultura
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
230 |
Familiar (REAF) (Grisa et al., 2022; Silva, 2020). Muitas destas iniciativas
contaram com a participação direta ou indireta de atores sociais do campo
vinculados à agricultura camponesa (Berrón; Brant, 2015; Pomeroy;
Waisbich, 2019).
Com isso, a PEB passou a internacionalizar uma crítica interna
ao próprio modelo latifundiário agroexportador brasileiro. Por exemplo,
a atuação da diplomacia brasileira foi fundamental na Conferência
Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento da FAO, realizada
na cidade de Porto Alegre em 2006, e para a elaboração das Diretrizes
Voluntárias para a Governança Responsável da Terra, dos Recursos
Pesqueiros e Florestais no contexto da Segurança Alimentar Nacional
(DVGT), aprovado pelo Comitê de Segurança Alimentar Mundial
também no âmbito da FAO, em 2012 (França; Marques, 2017). Ambas
as iniciativas são críticas ao latifúndio e à sua expansão contemporânea em
processos de aquisição de terras pelo setor privado nacional ou estrangeiro,
fenômeno denominado em inglês de land grabbing. No caso do Mercosul,
destaca-se a criação da REAF, em 2004, cujo objetivo é fomentar o diálogo
entre os movimentos sociais camponeses dos países-membros do bloco em
nível regional (Silva, 2020)
10
.
É importante notar que este movimento de difusão internacional do
modelo agroalimentar brasileiro de apoio à agricultura familiar camponesa
e de combate à fome, por meio de iniciativas de cooperação técnica, pela
participação do Brasil em negociações políticas no âmbito do sistema ONU
e pela própria promoção da participação de organizações da sociedade civil
(incluindo movimentos camponeses) em arenas internacionais, coexistiu
com a secular veia de promoção do agronegócio latifundiário exportador
de commodities pela PEB, sobretudo por meio de ações de promoção
comercial (Luiz; Milani, 2022; Søndergaard; Silva, 2017). A promoção
do agronegócio nacional também não esteve excluída das ações brasileiras
na agenda do desenvolvimento internacional, como exemplificado em
iniciativas como o ProSavana, programa de cooperação entre Brasil, Japão
10
Recorde-se que, na América Latina, os movimentos camponeses foram historicamente portadores de ideias
revolucionárias anticapitalistas e defensoras do fim do latifúndio, e que desde os anos 1990 os camponeses
emergem como uma das principais forças transnacionais críticas à globalização e ao neoliberalismo (Moyo;
Yeros, 2005).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 231
e Moçambique de transferência do modelo de transformação agrícola
do Cerrado brasileiro, o PRODECER que expandiu a monocultura da
soja para exportação na região, à savana moçambicana (Aragão, 2017;
Cesarino, 2015). De certo modo, também a cooperação humanitária, e
mais especificamente da ajuda alimentar internacional, do Brasil buscou
conciliar, ainda que de forma efêmera a contradição. A CGFome foi
responsável direta por tornar o Brasil um dos principais fornecedores
de ajuda alimentar internacional entre os países em desenvolvimento, o
que contribuiu para a projeção da Diplomacia do Combate à Fome no
mundo. Entretanto, as próprias ações de ajuda alimentar carregavam
as contradições da governamentabilidade. Embora a intenção original
da CGFome fosse utilizar estoques públicos compostos por produtos
provenientes de compras institucionais da agricultura familiar, entraves
legislativos e orçamentários, bem como problemas de desenho de política
pública, fizeram com que a ajuda alimentar brasileira no exterior fosse
viabilizada com apoio da Bancada Ruralista e lastreada, principalmente,
nos excedentes do agronegócio que não conseguiam ser vendidos no
mercado internacional (Lima; Santana, [neste livro]; Lima, 2020).
Deste modo, é possível afirmar que a PEB durante os anos Lula e Dilma
portava e exportava visões contraditórias sobre a questão agroalimentar
(Cesarino, 2015; Muñoz; Carvalho, 2016). Em nossa perspectiva, essa
contradição não pode ser atribuída apenas a uma dita “falha” de coerência ou
coordenação da PEB (ou da CID), problema reconhecido por acadêmicos,
operadores da política e pela própria burocracia de forma geral (Faria
2012; Waisbich, 2020). Ela era, sobretudo, a expressão de visões de mundo
distintas e irreconciliáveis, inclusive à luz da trajetória nacional, portadas
por forças políticas assimétricas e com acesso à estrutura institucional do
estado brasileiro, para as quais os governos petistas buscaram instituir uma
coexistência pacífica, uma relação de ganhos absolutos (Welch, 2017).
Assim, embora os sucessivos governos do PT até 2016 tenham
fornecido, cada um a seu modo, espaço para que a agricultura familiar
pudesse se projetar na PEB (Luiz; Milani, 2022), isto não significou que
este setor se tornou uma força dominante na burocracia, muito menos que a
Presidência deu prioridade ao setor em sua agenda. Tanto a burocracia como
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
232 |
as lideranças políticas no Executivo Federal mantiveram-se profundamente
alinhados com os interesses do grande agronegócio. Entretanto, o que
queremos destacar aqui, no âmbito do debate sobre abertura e fechamento
da PEB, é que essa posição não foi adotada sem tensões institucionais e,
dado o histórico brasileiro, a expressão desta contradição na PEB não é
desprezível, seja em termos políticos sejam em termos simbólicos. Isso
porque, ao propiciar a difusão de uma crítica ao grande agronegócio e
fortalecer as redes e a visibilidade internacionais da agricultura camponesa,
a própria PEB impactou a imagem do agronegócio.
Salientamos a questão em termos políticos, simbólicos e de imagem
do agronegócio dada a disparidade de poder econômico entre este e os
camponeses, tanto em termos históricos, quanto na atualidade. A agricultura
familiar camponesa não dispõe de capacidade financeira para enfrentar o
agronegócio e, por isso, ela fundamenta seu poder político em elementos
ideacionais (ainda que sem descolá-los dos materiais). Por exemplo, fatos
como (i) a agricultura familiar (incluída a camponesa) produz 70% ou mais
dos alimentos consumidos no país e (ii) gera percentual equivalente dos
empregos no campo (Mitidiero; Barbosa; Sá, 2018), são frequentemente
mobilizados para defender a superioridade deste modelo em termos de
justiça social. O mesmo ocorre com a maior conexão dos camponeses
com a agroecologia, frente às monoculturas dependentes de agrotóxicos
do agronegócio. Portanto, o que está em disputa são visões de mundo – as
novas propostas do Sul” em conflito com as estruturas tradicionais de
poder (Lima; Milani; Pinheiro, 2017). Como estes elementos simbólicos
podem reverberar nas preferências dos mercados, nas políticas públicas e
nas negociações internacionais
11
trata-se, assim, de questão eminentemente
política e não de qual modelo é mais bem sucedido em termos econômicos.
Este é um dos motivos para a Diplomacia do Agronegócio, de Jair
Bolsonaro e seu chanceler Ernesto Araújo (2019-2021), ter externalizado
preocupação constante com a imagem do agronegócio ter sido “distorcida
pela crítica crítica vinda do campo da agricultura familiar e camponesa e
de seus aliados, inclusive o movimento ambientalista. Essa “distorção” seria
11
As novas legislações europeias para restringir importações de commodities agrícolas brasileiras com “passivo
ambiental” de desmatamento e os entraves na conclusão das negociações do acordo de livre comércio entre
o Mercosul e a União Europeia, ilustram este ponto.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 233
prejudicial às estratégias de expansão internacional do grande agronegócio,
historicamente dependente do mercado externo.
4 Desmonte institucional e silenciamento Do camPonês
O peso da Bancada Ruralista no movimento que carregou Michel
Temer ao poder em 2016 levou Welch (2017) a caracterizá-lo como um
agrogolpe”.
12
A observação dos fatos que se seguiram ao encerramento do
ciclo do PT na Presidência, em 2016, demonstra que a contribuição da
Bancada Ruralista para a retirada de Rousseff da Presidência tinha como
nota promissória uma agenda clara: solapar a influência institucional da
agricultura familiar camponesa. Dito e feito, o desmonte das estruturas
institucionais (burocráticas, consultivas, legais, orçamentárias etc.) que
se seguiu atingiu o setor da agricultura familiar camponesa amplamente
(Escher, 2020; Milhorance, 2022; Sabourin et al., 2020; Soyer; Rodrigues
Jr, 2020). Nossa contribuição aqui é olhar especificamente para a política
externa e, neste percurso, a cronologia demonstrou ser relevante.
A Presidenta Dilma foi afastada pelo Congresso em 12 de maio de
2016. Este foi o primeiro dia de Michel Temer como presidente interino.
Neste dia, Temer editou a Medida Provisória 726 para reorganizar
a estrutura administrativa do Executivo e extinguiu o MDA. Mais
do que um ato administrativo de desmantelamento, este foi um ato
simbólico, que reestabeleceu uma hierarquia histórica de assento, voz,
voto e implementação da política agroalimentar no Estado brasileiro, em
benefício do MAPA, o que se refletiu também na PEB. Em 27 de maio
de 2016, o Decreto nº 8.780 criou a Secretaria Especial de Agricultura
Familiar e do Desenvolvimento Agrário (SEAD), subordinada à Casa Civil
da Presidência da República. Em 12 de julho de 2016, Temer publicou
o decreto 8.807, formalizando a exclusão do MDA da CAMEX. Com
relação ao MRE, Temer indicou como seu primeiro chanceler José Serra,
do PSDB, que perdeu eleições presidenciais para Lula e Dilma, em 2006 e
12
Utilizamos o termo para fazer uma primeira análise dos seus impactos na PEB em outro estudo, ver Lima
et al., (2018).
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
234 |
2010 respectivamente. Uma das primeiras medidas de Serra foi extinguir a
CGFome dentro do MRE, em setembro de 2016.
Outro ato com simbolismo similar ao do primeiro dia de Temer
ocorreu na inauguração da presidência de Jair Bolsonaro. Em 1º de Janeiro
de 2019, Bolsonaro emitiu a Medida Provisória nº 870, extinguindo
o CONSEA. Após intensa movimentação social o legislativo buscou
reinstituir o Conselho, mas Bolsonaro vetou sua reabertura quando
sancionou a Lei 13.944/2019. A eliminação do CONSEA é uma das
maiores expressões de que a alternativa ao agronegócio latifundiário
exportador se tornara inadmissível, bem como espaços consultivos que
permitissem alguma voz e espaço de dissidência a grupos sociais do campo
historicamente marginalizados. Como dissemos, o CONSEA era uma
instituição participativa e um espaço de reflexão politicamente legítima e
tecnicamente qualificada para propor alternativas agroalimentares.
Estas medidas de reorganização burocrática do executivo
evidenciam o fechamento vertical e horizontal de espaços na PEB para
o setor da agricultura familiar camponesa. Do ponto de vista discursivo,
a autodenominada “Diplomacia do Agronegócio”, do chanceler Ernesto
Araújo, deu continuidade a este processo de fechamento pelo silenciamento
da agricultura camponesa.
Em seminário também denominado “Diplomacia do Agronegócio”,
realizado em 13 de junho de 2019
13
em Brasília, Araújo, o Deputado
Alceu Moreira (MDB), Presidente da FPA no Congresso Nacional, e
outros convidados apresentam metas, objetivos e instrumentos desta nova
estratégia. Para este capítulo não se faz necessário detalhar os tradicionais
objetivos da PEB de promoção do desenvolvimento por meio de negociações
internacionais e na abertura de novos mercados internacionais a produtos e
produtores brasileiros. Cabe registrar, no entanto, a renovada promessa de
empenho na promoção comercial, com a mobilização da Agência Brasileira
de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX) e da rede de
embaixadas do Brasil no exterior, para melhorar a imagem do agronegócio
(principalmente buscando contrapor-se a uma caracterização da mesma
13
Disponível no canal do MRE no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=st-zAizwkAw. Acesso
em: 11 fev. 2021.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 235
por organizações não-governamentais e alguns governos estrangeiros como
ambientalmente destrutiva”) e conquistar novos mercados. Um exemplo
deste tipo de ação pode ser visto no Boletim AgroSusentável (iniciativa
capitaneada por Embaixadas no continente europeu, e cuja primeira
edição foi publicada em 2020), objetivando “trazer ao público interessado
perspectivas informadas sobre o agronegócio brasileiro, salientando os
esforços do Governo e do setor privado em incrementar a sustentabilidade
da produção agropecuária no país
14
.
De volta à Diplomacia do Agronegócio, faz-se necessário, em
primeiro lugar, discorrer sobre suas definições gerais. Segundo o primeiro
chanceler sob Bolsonaro, o diplomata Ernesto Araújo (2019-2021), trata-
se de “uma nova filosofia” de promoção do agronegócio em estreita ligação
com o MAPA e a FPA, respondendo a uma promessa feita por ele mesmo a
Bolsonaro, ainda no período eleitoral. De fato, em 21 dezembro de 2018, o
então futuro-chanceler Araújo publicou em suas redes sociais uma promessa
de que o MRE trabalharia “ativa e sistematicamente” pela ampliação do
comércio do agronegócio, e que “A pujança agrícola será parte do projeto
de engrandecimento do Brasil. Ao mesmo tempo, a projeção de um país
confiante, grande e forte servirá ainda mais aos interesses da agricultura
(Agência Brasil, 2018). Naquele mesmo dia, Araújo publicou ainda que
“Nos governos petistas, o Itamaraty foi a casa do MST [Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra]. Agora estará à disposição do produtor” (Agência
Brasil, 2018, grifo nosso).
De certa forma, tal declaração confirma a avaliação de que a PEB do
PT havia aberto espaço para a manifestação do setor da agricultura familiar
camponesa e que isto incomodava o setor do agronegócio latifundiário
exportador, inclusive no que toca à sua imagem. Opondo-se a essa ideia de
que o MST havia dominado o MRE, disse Araújo no seminário de 2019:
“É preciso fazer uma mudança horizontal na mentalidade. Não é mais
o governo que decide e o setor produtivo que tem que se adaptar a isso.
Agora, os quadros normativos e acordos são gerados a partir das demandas
dos setores produtivos” (grifos nossos). É somente neste sentido distorcido,
14
Íntegra disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/embaixada-berlim/promocaocomercial/books_
publicacoes/b14_agrosused01.pdf. Acesso em: 23 out. 2023.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
236 |
e em contraposição a uma PEB descrita como “demasiadamente” permeável
ao campesinato, que a proposta de Araújo de “uma nova filosofia” podia
ser apresentada.
No mesmo seminário, o representante da Bancada Ruralista,
Deputado Alceu Moreira, afirmou: “Não somos inocentes benfeitores.
Somos competidores. Estamos no mundo de concorrentes”. Interpretamos
que a mensagem aqui se dirigia à narrativa, sobretudo sob Lula, de uma PEB
solidária” e “não-indiferente” e aos esforços de cooperação internacional do
Brasil no eixo Sul-Sul de difusão de técnicas e de políticas agroalimentares
para países na América Latina e África, alavancados sob esta bandeira
durante os governos petistas, inclusive no que tange ao desenvolvimento
agrário.
15
Continua o Deputado Moreira: “Nós queremos que o MRE seja
um instrumento na nossa mão”. Demonstrando preocupação com imagem
do agronegócio, o Deputado alegou ademais que universidades brasileiras
são pagas para mostrar que o agronegócio destrói o meio ambiente
16
.
Argumentou ainda que os financiadores externos de pesquisas críticas ao
agronegócio são concorrentes que prejudicam os interesses comerciais
do setor e que é preciso “falar a verdade” sobre o agronegócio brasileiro.
Observa-se aqui uma continuidade entre a ideia de “falar a verdade”, nas
palavras de Moreira, e a formulação presente do Boletim AgroSustentável do
Itamaray de trazer “perspectivas informadas” sobre o agronegócio brasileiro,
ambas ilustrando os esforços de melhorar sua imagem no exterior.
Ainda com relação à preocupação com a imagem do agronegócio,
Araújo postou em dezembro de 2018: “Defenderemos o produtor brasileiro
nos foros internacionais, da pecha completamente falsa de ser agressor do
meio ambiente. O produtor agrícola brasileiro contribui para a preservação
ambiental como em nenhum outro lugar do mundo” (Agência Brasil, 2018,
grifos nossos). No seminário de 2019 ele retoma a questão. Postulando que
15
Sobre as disputas políticas e burocráticas em torno do eixo Sul-Sul na PEB, ver Cesarino (2015); Waisbich
(2020).
16
Convém apontar a agenda de pesquisa internacional, com importantes expoentes no Brasil, em torno do
land grabbing, também chamada de estrangeirização de terras. De certo modo, a mobilização acadêmica
faz parte dos esforços que buscam frear o investimento estrangeiros em terras. Num caso de específico
interesse para o agronegócio brasileiro, uma mobilização transnacional entre organizações civis, com
forte participação camponesa, de Moçambique, Japão e Brasil, conseguiu interromper o projeto trilateral
ProSavana para implantação de monocultura de soja no país africano (Aragão, 2017).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 237
a meta da Diplomacia do Agronegócio era ganhar mercados, e que para
isso seria preciso trabalhar fundamentalmente a imagem que se tem do
agronegócio brasileiro, afirmou o chanceler: “O agronegócio é altamente
competitivo, sustentável e eficiente. O mundo inteiro deveria saber disso,
e tenho certeza que, em breve, ninguém terá dúvidas, em outros países, de
que isso é verdade”.
Note-se que nos trechos citados acima grifamos as expressões que
envolvem o termo “produtor”. Este destaque é importante porque toca
na questão da identidade, ou melhor, na anulação da identidade da
agricultura familiar camponesa como um sujeito produtivo. Postou Araújo
em 2018 em sua conta no então Twitter (hoje denominado X): “Querem
jogar a agricultura contra os ideais do povo brasileiro? Não conseguirão.
O trabalho incansável, a fé, a inventividade, o patriotismo dos agricultores
são a própria essência da brasilidade.” E “O setor produtivo agrícola
identifica-se profundamente com os valores da nação e os defende, tanto
que apoiou e apoia maciçamente [o presidente eleito Jair] Bolsonaro. Mas
o establishment da velha política e da velha mídia quer usar o agro como
pretexto para reduzir o Brasil a um país insignificante” (idem).
No contexto das falas de Araújo, termos como “produtor”, “agricultor”
e “setor produtivo” se referem ao agronegócio, jamais à agricultura familiar
camponesa. Por oposição, a agricultura de subsistência, quilombola,
dos assentamentos dos Sem-Terra, comportam valores e práticas que
não condizem com o que o governo Bolsonaro entende como “valores
nacionais” ou “patrióticos”. Por isso, o MRE não deve mais ser a casa destes
setores, segundo Araújo. Na visão de mundo de Araújo o camponês não
deve existir; mas o agricultor produtivo, sim
17
. Se o camponês não existe,
não pode ter voz. É preciso ficar claro que, nesta análise, o relevante não é a
pessoa do Chanceler Ernesto Araújo, e sim as condições sociopolíticas que
permitiram sua ascensão e permanência no Itamaraty (Casarões; Farias,
2022). Estas condições sociopolíticas, destacamos aqui, são também
sustentadas por forças econômicas que tem como projeto secular “uma só
17
Diz Araújo, ao explicar sua visão de mundo: “Os nossos adversários é que gostam de pensar por rótulos,
palavras de ordem. Para eles existe o gay, a mulher, o operário, o camponês. Para o conservador, existe essa
ou aquela pessoa”. Se o camponês não existe, não pode falar. Disponível em: https://www.cartacapital.com.
br/politica/ernesto-araujo-o-conservador-e-o-menos-preconceituoso-que-existe/. Acesso em: 23 out. 2023.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
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agricultura”, projeto este que se sustenta por meio da desqualificação da
agricultura camponesa.
Como destacam Niederle e Wesz Jr (2018), no Brasil o camponês
foi historicamente excluído como unidade produtiva e retratado como
símbolo do atraso. Nas pesquisas de censo do início do século XX, a
produção para subsistência simplesmente não era uma categoria que
entrava no cômputo da produção agrícola do país. Isso teve dois efeitos: 1)
reduzir a importância do campesinato como ator no seio da sociedade; 2)
ampliar artificialmente a relevância da agricultura comercial, em termos de
contribuição para o PIB e para o abastecimento alimentar nacional. Ainda
nesta linha, vale citar amplamente Guilherme Delgado e Mario eodoro
a este respeito:
É portanto nesse contexto que ao binômio progresso-
desenvolvimento tem sido contraposto o lado arcaico-atrasado da
sociedade brasileira. O setor não-moderno não é associado apenas
à baixa densidade de capital, baixa produtividade ou reduzido
dinamismo, mas é também portador de alguns signos historicamente
vistos como pecha. O ideário do Brasil não-moderno é permeado
de exemplos e/ou figuras emblemáticas, caso do caboclo rural e
do mestiço urbano, ambos tidos como indolentes e despreparados
para o trabalho, legatários do caráter negativo atribuído desde há
muito ao negro (Delgado; eodoro, 2005, p. 411).
Esse mote do desenvolvimento eterniza-se assim como contraponto
ao Brasil “profundo”, ao Brasil Caboclo e/ou Mestiço. Forja-se
dessa maneira uma espécie de negação de um passado, sem que, no
entanto, este tenha se conformado como tal: um passado que não
passou; que é presente, presente negado, em prol de uma idéia de
país, um ideal de nação, um modelo de sociedade cujo paradigma
é “branco-moderno-europeu”. A idéia que se coloca como hipótese
forte aqui é a de que esse núcleo ideológico constrói uma noção que
reafirma um imaginário de país – asséptico, dinâmico, eugênico.
De fato, um país imaginário que, ainda que não se realize na
prática, parece povoar corações e mentes, e, sobretudo, justificar a
ação do Estado e, por decorrência, as políticas públicas (Delgado;
eodoro, 2005, p. 412).
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
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Vejamos agora algumas frases do então deputado e presidenciável
Jair Bolsonaro sobre o assunto, em abril de 2017: “Eu fui num quilombo.
O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu
acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano
é gasto com eles”. E
Se eu chegar lá (na Presidência), não vai ter dinheiro pra ONG.
Esses vagabundos vão ter que trabalhar. Pode ter certeza que se eu
chegar lá, no que depender de mim, todo mundo terá uma arma
de fogo em casa, não vai ter um centímetro demarcado para reserva
indígena ou para quilombola
18
(Congresso em Foco, 2017).
De fato, não houve demarcação de terra indígena no governo
Bolsonaro.
Os trechos acima apontam para a presença, durante o governo
Bolsonaro, de elementos discursivos (seja do próprio presidente e de seus
ministros, seja de seus aliados políticos no Congresso) que mostram afinidade
com as ideias de eliminação do campesinato (indígenas, quilombolas e
ribeirinhos) em favor de modelos de produção fundados no agronegócio
(Escher, 2020; Soyer; Barbosa Jr., 2020). Assim, o silenciamento de atores
e forças políticas que dão apoio ao setor da agricultura familiar camponesa
tanto em âmbito nacional como na PEB, esta última entendida como
instrumento da inserção econômica internacional do Brasil, e, portanto,
parte importante da consolidação de um paradigma político desde 2016
de “uma só agricultura”. Para isso, buscou-se eliminar a dupla identidade
da agricultura nacional, suprimir a contradição e defender “uma só
agricultura”, tanto em nível nacional como internacional. Reflui, portanto,
não apenas a representação internacional de um país agriculturalmente
diverso, mas também o próprio processo de democratização da PEB.
18
Em meio à pandemia da COVID-19, “ao contrário dos trabalhadores urbanos, os trabalhadores rurais não
foram contemplados com os R$ 600 do auxílio emergencial. No final de agosto, o presidente Jair Bolsonaro
(sem partido) vetou a maior parte da PL 735, que previa a ajuda para agricultores familiares”. Disponível
em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/09/16/aumento-no-preco-do-arroz-faz-crescer-
em-30-procura-por-alimento-do-mst.htm?cmpid=copiaecolm. Acesso em: 23 out. 2023.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
240 |
5 consiDerações finais
Nas seções anteriores apontamos elementos que demonstram a
reconfiguração do processo de formulação de PEB no setor agroalimentar.
Argumentamos, tendo como pano de fundo a trajetória de marginalização
do campesinato na política brasileira, que estas mudanças correspondem
ao retorno a um padrão histórico, com raízes na estrutura econômico
política agroexportadora do país. Mais especificamente, nosso exame
permite afirmar que os governos pós-petistas de Michel Temer e Jair
Bolsonaro (2016-2022) promoveram um fechamento seletivo, vertical e o
horizontal, do processo de formulação e implementação da PEB devido
à reconfiguração da posição do agronegócio latifundiário exportador na
política nacional, cuja direção pode ser captada – entre outras maneiras –
por meio da sua expressão legislativa na Bancada Ruralista. Embora não
possamos asseverar que haja um fechamento geral da PEB, algo que, por
exemplo, a colocaria na direção de um retorno ao paradigma anterior de
insulamento burocrático, é possível sustentar que as portas do processo
foram fechadas para a agricultura camponesa. Isto ocorreu a partir do
momento em que a chamada Bancada Ruralista abandonou a aliança
com o PT, agindo ativamente para a deposição de Dilma Rousseff, e em
seguida se aliou aos governos Temer e Bolsonaro. A nosso entender, tal
reposicionamento e radicalização de grande parte do agronegócio, e seu
apoio a uma nova coalização política, teve como intuito extirpar da política
nacional a possibilidade de uma alternativa ao seu modelo produtivo e
social, encarnada na agricultura familiar camponesa, e isso se expressou na
PEB, instrumento fundamental para a inserção econômica internacional
do agronegócio.
A mudança introduzida pelos governos Temer e Bolsonaro se deu
tanto no conjunto de políticas públicas de desenvolvimento agrário, como
em sua expressão internacional, por meio da PEB. Internacionalmente, o
Brasil abandonou a ideia de promover ativamente em arenas internacionais
a ideia do combate à fome e à pobreza por meio de políticas públicas
que fortalecessem a agricultura familiar e os circuitos curtos de produção
e consumo, inclusive por meio de mercados institucionais e compras
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 241
públicas. Se no governo Temer o intuito de alijar os setores vinculados a esta
perspectiva no campo da PEB se torna evidente pela eliminação do MDA
e da CGFome, é no governo Bolsonaro que o silenciamento da agricultura
camponesa emerge com mais força no discurso dos principais responsáveis
pela PEB: a Presidência e o Itamaraty. Estes dois governos retiram de cena a
proposta dos governos petistas para lidarem com um problema geral do Sul
Global – a marginalização camponesa –, proposta esta que contribuía não
apenas para o combate à fome em âmbito nacional, mas também para uma
inserção diferenciada do Brasil como promotor desta agenda em âmbito
internacional. Neste sentido, a retração da postura propositiva e criativa
da PEB no campo agroalimentar contribui para a diminuição do Brasil
enquanto ator diplomático relevante, sobretudo em arenas internacionais
ligadas ao desenvolvimento internacional e ajuda humanitária.
Entretanto, é importante ponderar a existência de resistência social
e burocrática ao desmantelamento das políticas públicas de segurança
alimentar e apoio ao pequeno produtor, expressa, entre outros, na
continuidade de certas ações internacionais, sobretudo no âmbito da
cooperação internacional para o desenvolvimento, ainda que de maneira
comparativamente reduzida (Luiz; Milani, 2022; Waisbich et al., 2022).
Como mencionado, a totalidade das ações de cooperação internacional,
sobretudo na sua vertente técnica Sul-Sul, coordenada pela ABC, não
foi extinta. A cooperação internacional técnica para o desenvolvimento
de projetos de agricultura familiar na América Latina e África tampouco
foi completamente abandonada. Tanto sob o governo Temer quanto
sob Bolsonaro, o governo brasileiro honrou com seus compromissos
financeiros e renovou sua parceria de cooperação trilateral com organismos
internacionais do Sistema ONU como a FAO e o PMA (por meio do
Centro de Excelência Contra a Fome), e, portanto, manteve aberto seu
canal de diálogo e difusão internacional de políticas de combate à fome,
sobretudo de políticas de alimentação escolar, com base no Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Na pareceria com o PMA, cujo foco é sobretudo o intercâmbio
com contrapartes no continente africano, o repasse brasileiro advém desde
2011 de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
242 |
(FNDE), ligado ao Ministério da Educação, cujo papel na manutenção
desta parceria não pode ser analiticamente menosprezado. A agência
burocrática do FNDE, e sobretudo de alguns dos seus servidores que
atuam com as chamadas “ações internacionais”, que incluem ações de
cooperação técnica para o desenvolvimento na América Latina e África
em parceria com organismos internacionais, são importantes elementos
para compreender certas formas de “resiliência”, nas palavras de Morais
de Sá e Silva (2021), ao desmantelamento de políticas. Ajudam também
a compreender a manutenção, ainda que de modo bastante discreto, de
elementos da agricultura familiar nas ações de CID brasileiras.
Nesse sentido, pesquisas específicas, em nível da burocracia,
são necessárias para que se conheçam os formatos de resistência ao
silenciamento da agricultura camponesa na PEB e de resiliência burocrática
e qual sua profundidade e impacto, em um conjunto maior de ações de
desmantelamento da agenda, tanto em âmbito doméstico como na atuação
internacional do país. Pesquisas específicas também são necessárias para
que se conheça em mais detalhes o grau de autonomia da participação
camponesa nas estruturas de PEB durante os governos petistas, bem como
seus limites.
Para concluir, consideremos que outros governos progressistas
da América Latina tiveram comportamento similar ao brasileiro sob os
governos do PT no século XXI, no que tange à reprimarização da economia
num contexto de condições externas favoráveis para a exportação de
commodities (Sabourin et al., 2020; Svampa, 2019). Isso nos lembra que o
que se passou no Brasil tem raízes profundas na economia política da região,
na formação econômica da América Latina, raízes estas que se manifestam
também nos sistemas políticos e que impõem restrições à mudança. Trata-
se, portanto, de estrutura. Tal consideração deve também balizar presentes
e futuros esforços de análise crítica do alcance das políticas praticadas pelos
governos petistas em relação à questão agrária, bem como o debate acerca
da facilidade com a qual essas políticas foram revertidas pelos governos de
Temer e Bolsonaro, inclusive no campo da Política Externa.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
| 243
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sobre os
autores e autoras
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anDressa caroline molinari Da silva (ufsc)
É Mestre em Sociologia Política e Graduada em Relações Internacionais
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É membro do
Núcleo de Estudos em Comportamento e Instituições Políticas (NECIP).
Tem como áreas de interesse cooperação e integração regional na América
Latina, implementação e transferência de políticas públicas, direitos
humanos, segurança alimentar e nutricional.
carolina milhorance (ciraD)
Doutora em Ciência Política pela Universidade Paris Saclay em cotutela
com a Universidade de Brasília (CDS-UnB). Pesquisadora de Ciência
Política no Centro de Desenvolvimento Internacional e Pesquisa Agrícola
(CIRAD - França), Departamento de Meio Ambiente e Sociedades (ES,
Unidade de Pesquisa Art-Dev). Participou de diversos projetos de pesquisa
e consultoria na América Latina, África do Sul e Oeste. Ela é autora do
livro New Geographies of Global Policy-Making: South-South Networks
and Rural Development Strategies, Routledge.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
254 |
clarissa franZoi Dri (ufsc)
É professora de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa
Catarina. É doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Políticos
de Bordeaux, França e pesquisadora do Instituto Memória e Direitos
Humanos UFSC/UDESC. Estuda política externa brasileira, integração
regional, cooperação sul-sul e proteção dos direitos humanos na América
Latina.
elsa Kraychete (ufba)
É doutora em administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA),
com graduação e mestrado em economia, nesta Universidade. É professora
do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da
UFBA, atuando nos cursos de Pós-graduação em Relações Internacionais
e Administração. Foi co-editora científica do Caderno CRH entre 2006
e 2012 e editora científica entre 2012 e 2016. É também pequisadora no
Programa Pesquisador UFBa de Produtividade CNPQ.
jenifer santana (uePb)
Professora do curso de Relações Internacionais na Universidade Estadual da
Paraíba, Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política
da Universidade Federal de Pernambuco, com Doutorado Sanduíche na
Universidade de Cambridge, e Mestre pelo mesmo Programa. Graduada
em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba. Integra
o Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI) da
UFPB que também é vinculado ao CNPQ e ao INCT-INEU. Tem atuação
nos temas sobre Regimes e Organizações Internacionais, Cooperação
Internacional para o Desenvolvimento, Cooperação Sul-Sul e na temática
da Segurança Alimentar nas Relações Internacionais.
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
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josé graZiano Da silva (unicamP)
É agrônomo de formação, mestre em Economia Rural e Sociologia na
Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Ciências Econômicas
pela Universidade Estadual de Campinas. É professor titular aposentado
do Instituto de Economia da Unicamp, onde dirigiu o Mestrado e
Doutoramento em Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente.
Escreveu e editou 26 livros sobre desenvolvimento rural, segurança
alimentar e economia agrária. Além disso, tem dois pós-doutoramentos
em Estudos Latino-Americanos (University College London) e Estudos
Ambientais (University of California - Santa Cruz). Ocupou o cargo
de diretor-geral da Organização das Nações Unidas para alimentação e
Agricultura (FAO) de 2012 a 2019. Também dirigiu o escritório regional
da instituição entre 2006 e 2011. Com mais de 30 anos de conhecimento
relacionado à segurança alimentar e nutricional e ao desenvolvimento
rural, coordenou a formulação e implementação do Programa Fome Zero
no Brasil enquanto Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e
Combate à Fome, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Em
2022 foi agraciado com o Grand Prix do 7º Prêmio Niigata International
Food Award Foundation. Atualmente é Diretor do Instituto Fome Zero.
laura trajber Waisbich (oxforD)
Professora do Centro de Estudos Latino-Americanos e Diretora do
Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, na Inglaterra.
Pesquisadora associada do Centro de Estudos Brasileiros de Análise e
Planejamento (Cebrap), do Centro de Estudos e Articulação da Cooperação
Sul-Sul (Articulação SUL) e do Instituto Igarapé. Doutora em Geografia
pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
Marcelo Fernandes DE Oliveira & iago Lima (Orgs.)
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marcelo fernanDes De oliveira (unesP)
É Professor Livre Docente da UNESP – Campus de Marília, líder do grupo
de pesquisa IGEPRI – Instituto de Gestão Pública e Relações Internacionais
– certificado no CNPQ e pesquisador do IPPMar – Instituto de Políticas
Públicas de Marília. É editor-chefe do periódico científico Brazilian Journal
of International Relations. É assessor e consultor de agências de fomento à
ciência, entre elas FAPESP, FINEP, PROEC, CNPQ e CAPES.
maria elisa huber Pessina (unifacs)
Doutora pelo Núcleo de Pós Graduação em Administração (NPGA) da
Universidade Federal da Bahia -UFBA, com doutorado sanduíche na
University of Queensland (UQ), Austrália. Mestre em Administração
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com dissertação aprovada
com indicação de publicação, gerando o livro “O não governamental
na Cooperação Internacional para o Desenvolvimento após 1990: entre
as circunstâncias e as peculiaridades do caso alemão”, EDUFBA, 2017.
Possui graduação em Administração pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA). É também head of research em Blended Finance na BRASFI
- Aliança brasileira de pesquisadores dedicados à pesquisa em Finanças e
Investimentos Sustentáveis.
thiago lima (ufPb)
Professor do Departamento de Relações Internacionais e Coordenador
do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI)
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisador do Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos
(INCT-INEU). Membro Associado do Instituto Fome Zero. Doutor em
Ciência Política pela Unicamp. Recebeu Menção Honrosa no Prêmio Lia
Zanotta Machado em Direitos Humanos da ANPOCS para o artigo e
concentration camps for famine victims in Brazil and the struggle for their
public memorialisation (ird World Quarterly, 2023).
catalogação na Publicação (ciP)
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
normaliZação
Maria Elisa Valentim Pickler Nicolino
CRB - 8/8292
caPa e Diagramação
Gláucio Rogério de Morais
ProDução gráfica
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
assessoria técnica
Renato Geraldi
oficina universitária
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
formato
16 x 23cm
tiPologia
Adobe Garamond Pro
Times New Roman
2023
sobre o livro
É Professor Livre Docente da UNESP – Campus
de Marília, líder do grupo de pesquisa IGEPRI –
Instituto de Gestão Pública e Relões
Internacionais – certicado no CNPQ e
pesquisador do IPPMar – Instituto de Políticas
Públicas de Marília. É editor-chefe do perdico
cientíco Brazilian Journal of International
Relations. É assessor e consultor de agências de
fomento à ciência, entre elas FAPESP, FINEP,
PROEC, CNPQ e CAPES.
Política Externa
Brasileira e
Combate à Fome
Lições do passado,
perspectivas para o futuro
MARCELO FERNANDES DE OLIVEIRA
THIAGO LIMA
Política Externa Brasileira e Combate à Fome
Lições do passado, perspectivas para o futuro
Este texto é um ensaio científico sobre a temática da política externa
brasileira e o combate à fome. Científico porque nossa reflexão está
assentada na leitura de estudos acadêmicos sobre a questão. Mas,
propositadamente ensaístico porque é uma tese pessoal, com exercício
amplo da nossa liberdade intelectual, sem a preocupação de comprova-
ção última própria dos trabalhos acadêmicos.
Óbvio que temos a preocupação de sermos objetivos, lógicos, sistemá-
ticos, compreensivos, críticos e originais. Tudo aquilo que se espera de
quem “mata a sua fome” vivendo da produção de conhecimento acadê-
mico e científico.
Entretanto, aqui, nossa preocupação é com a condição humana. Nosso
olhar será guiado pelo inconformismo de vivermos em um país de
dimensões continentais, com clima favorável, água abundante, terra de
qualidade, mão-de-obra especializada, tecnologia agrícola avançada, e,
mesmo assim, no momento em que escrevemos, mais de 33 milhões de
brasileiros estão passando fome.
Em 2022, conforme o Segundo
Inquérito Nacional sobre Insegurança
Alimentar no Contexto da Pandemia de
Covid-19 no Brasil (Rede PENSSAN,
2022), 33,1 milhões de brasileiros não
têm comida suficiente disponível. Ainda
segundo o estudo, 58,7% da população
brasileira convive com a insegurança
alimentar em algum grau: leve,
moderado ou grave. Isso significa que são
125,2 milhões de brasileiros sofrendo de
algum grau de insegurança alimentar.
Naquele momento da pesquisa, somente
4 em cada 10 domicílios no país tinham
acesso pleno à alimentação.
Os dados foram coletados entre
novembro de 2021 e abril de 2022, por
meio de entrevistas em 12.745
domicílios em áreas urbanas e rurais de
577 municípios distribuídos nos 26
estados e no Distrito Federal. Eles
indicam que o país regrediu a patamares
dos anos 1990 na tarefa do combate à
fome (Rede PENSSAN, 2022: 15).
As regiões Norte e Nordeste sofrem mais:
71,6% e 68% da população,
respectivamente, estão em insegurança
alimentar; 25,7% das famílias
nordestinas convivem com a fome. A
média nacional é aproximadamente
15%, e, do Sul, de 10%.
Ironicamente, no campo passa-se mais
fome do que em áreas urbanas. A
insegurança alimentar alcança 60% dos
domicílios rurais, sendo que 18,6% das
famílias passam fome. Pior: a fome
alcançou 21,8% dos lares de agricultores
familiares e pequenos produtores.
Professor do Departamento de Relações
Internacionais e Coordenador do Grupo de
Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais
(FomeRI) da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Pesquisador do Instituto Nacional de
Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os
Estados Unidos (INCT-INEU). Membro
Associado do Instituto Fome Zero. Doutor em
Ciência Política pela Unicamp. Recebeu Menção
Honrosa no Prêmio Lia Zanotta Machado em
Direitos Humanos da ANPOCS para o artigo
e concentration camps for famine victims in
Brazil and the struggle for their public
memorialisation (ird World Quarterly, 2023).
MARCELO FERNANDES DE OLIVEIRA
THIAGO LIMA
Organizadores