É inegável a importância e
relevância da obra aqui apresentada.
Entendemos como eminente a neces-
sidade de Grupos importantes como
os citados na obra (GEPEGE, GE-
ADEC, GEPPEI), todos vinculados
ao Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da FFC/UNESP
de Marília, local importante e de re-
ferência para a teoria piagetiana di-
vulgar seus trabalhos para além das
revistas cientícas e o banco de teses
e dissertações. Entendemos ser im-
portante que esses lócus acadêmicos
sejam transpostos colocando as pes-
quisas desenvolvidas nos mesmos em
evidência, de forma clara e acessível
aos estudantes, leitores e interessados
na obra e teoria de Jean Piaget.
Os resultados das pesquisas de
Mestrado, Doutorado e Pós-Dou-
torado nem sempre são acessíveis à
maioria dos educadores por ter um
formato mais acadêmico e rebuscado,
além de ter uma densidade substan-
cial de informações. Quando os pes-
quisadores conseguem transpor esses
trabalhos e seus resultados para um
capítulo de livro é inegável que as di-
mensões que este trabalho atinge em
termos de público é muito maior.
Além disso, o texto se encon-
tra articulado e bem distribuído com
relação às temáticas apresentadas. Na
primeira parte estão as pesquisas sobre
o desenvolvimento cognitivo, na se-
gunda parte temos as pesquisas acerca
do desenvolvimento moral. Esta divi-
são de temática é muito apropriada e
colabora com demandas importantes
para se ler e compreender Jean Piaget
na atualidade.
Ressaltamos ainda a inegável
credibilidade dos autores que assinam
os capítulos, mesmo aqueles que pos-
suem os orientandos como autor, seus
orientadores e pesquisadores coorde-
nadores evidenciam um quadro de
autores de peso considerando o esco-
po da proposta de livro apresentada.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0039/2022
Processo Nº 23038.001838/2022-11
A presente coletânea foi idealizada com o objetivo principal de divulgar
resultados de pesquisas, em andamento ou concluídas, desenvolvidas no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da FFC/
UNESP de Marília, que investigam os fenômenos e processos educa-
cionais a partir da perspectiva teórica piagetiana.
O livro reuniu 19 textos resultantes de pesquisas de Mestrado, Douto-
rado e Pós-Doutorado, concluídas ou ainda em andamento. 16 desses
textos são de autoria de discentes, que contam ou não com a coauto-
ria de seus(suas) respectivos(as) orientadores(as), enquanto os outros 03
textos são de autoria de professores(as) convidados(as).
O livro foi dividido em duas partes, em que os 19 capítulos foram dis-
tribuídos. Na primeira parte, intitulada “As pesquisas sobre o desenvol-
vimento cognitivo”, encontram-se 10 textos que abordam resultados de
pesquisas que investigaram diversos aspectos sob o enfoque cognitivo
da teoria piagetiana. Na segunda parte, intitulada “As pesquisas sobre o
desenvolvimento moral”, reúnem-se 09 textos resultantes de pesquisas
que investigaram a questão da moralidade a partir de Piaget.
ELIANE PAGANINI DA SILVA
Professora Adjunto da Universidade Estadual
do Paraná (Unespar), Campus Apucarana
Professora do Programa de Pós-Graduação em
Educação Inclusiva (PROFEI/Unespar)
MATHEUS, LILIAN E ELIANE
Os organizadores


AS PESQUISAS PIAGETIANAS NA EDUCAÇÃO:
contribuições do passado, desafios atuais
e perspectivas futuras
Organizadores:
Matheus Estevão Ferreira da Silva
Lilian Pacchioni Pereira de Sousa
Eliane Giachetto Saravali
Matheus Estevão Ferreira da Silva
Lilian Pacchioni Pereira de Sousa
Eliane Giachetto Saravali
(Organizadores)
AS PESQUISAS PIAGETIANAS NA EDUCAÇÃO:
contribuições do passado, desafios atuais
e perspectivas futuras
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2024
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIASFFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Henrique Tahan Novaes
Aila Narene Dahwache Criado Rocha
Alonso Bezerra de Carvalho
Ana Clara Bortoleto Nery
Claudia da Mota Daros Parente
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto
Daniela Nogueira de Moraes Garcia
Pedro Angelo Pagni
Auxílio Nº 0039/2022, Processo Nº 23038.001838/2022-11, Programa PROEX/CAPES
Capa: Priscilla dos Santos Ferreira da Silva (www.behance.net/prihx)
Parecerista: Eliane Paganini da Silva - Professora Adjunto da Universidade Estadual do Paraná (Unespar-PR) -
Colegiado de Pedagogia - Campus Apucarana - Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Inclusiva -
PROFEI-Unespar.
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
P474 As pesquisas piagetianas na educação: contribuições do passado, desafios atuais e
perspectivas futuras / Matheus Estevão Ferreira da Silva, Lilian Pacchioni Pereira
de Sousa, Eliane Giachetto Saravali (org.). Marília : Oficina Universitária ;
São Paulo : Cultura Acadêmica, 2023.
526 p. : il.
CAPES
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-439-4 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-440-0 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0
1. Piaget, Jean, 1896-1980. 2. Construtivismo (Educação). 3. Educação de
crianças. 4. Desenvolvimento moral. 5. Desenvolvimento cognitivo. I. Silva,
Matheus Estevão Ferreira da. II. Sousa, Lilian Pacchioni Pereira de. III. Saravali,
Eliane Giachetto. IV. Título.
CDD 370.152
_____________________________________________________________________________
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Copyright © 2023, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
HOMENAGEM (
IN MEMORIAN
):
MARIANELA DENEGRI CORIA
Uma mulher cientista além do seu tempo
O mês de outubro do ano de 2022 foi marcado fortemente
pela perda de uma mulher de valor e competência, uma cientista que
transcendeu o tempo e o espaço e ganhou o mundo: Marianela
Denegri Coria. Numa sociedade machista e patriarcal, característica
dos pses da América Latina, surge mulheres que se destacam por
desafiar o status quo e representam as milhares de vozes silenciadas.
Marianela Denegri Coria foi uma dessas mulheres, pois teve a
coragem de quebrar paradigmas e abrir caminhos para milhares de
outras na ciência.
Marianela tornou-se pioneira em sua área, desafiou velhos
estereótipos, sem medo e podemos dizer, com certeza, que esteve
adiante do seu tempo. Tornou-se um ícone da investigação em
Ciências Sociais.
Foi mentora de muitos, inspiradora única, acreditava nas
pessoas antes que elas mesmas acreditassem em si, foi capaz de ver
nas novas gerações o poder da mudança. Seu conselho sábio e
sensato iluminou o caminho de muitas pessoas, mulher de fortes e
de profundas convicções, deixa um legado científico para muitas
gerações e, principalmente, um legado de ser humano por excelência.
Apaixonada por entender como pensa o ser humano, diante
de um modelo econômico que ela definiu como voraz, quanto aos
desejos de consumo e ao uso do dinheiro, não mediu esforços para
que suas pesquisas impactassem positivamente a vida da sociedade e,
especialmente, das famílias. Marianela Denegri foi precursora da
Psicologia Econômica na América Latina, apontando que a
sociedade do consumo altera a forma como construímos a
identidade, orientada para o ter e para o não ser, o que, certamente,
muda todo o centro de gravidade das nossas vidas, uma das
principais e mais graves consequências para o futuro de novas
gerações.
Participou em vários projetos de investigação, nacionais e
internacionais, sobre temas relacionados à psicologia econômica,
comportamento do consumidor e educação econômica e financeira
de crianças, jovens e adultos. Foi pesquisadora internacional
encarregada de projetos da Fundação Ford e de universidades
colombianas, peruanas e equatorianas.
Autora ou coautora de inúmeras publicações, incluindo
artigos em revistas indexadas, capítulos de livros e livros autorais, foi
oradora convidada em seminários e congressos nacionais e
internacionais.
Nascida em Santiago, no Chile, oriunda de família de classe
média com pai mecânico e mãe operária, foi a primeira de sua
geração familiar a chegar à universidade. Ingressou na Pontifícia
Universidade do Chile, graças às suas boas notas. Em 1982, mudou
para a cidade de Temuco para ingressar na recém-inaugurada
Universidade de La Frontera, onde trabalhou como professora na
graduação do curso de Psicologia. A partir de então, iniciou sua
carreira também como pesquisadora ao entrar em contato com a
linha de pesquisa sobre a construção do conhecimento social, área
do conhecimento com forte influência dos estudos de Jean Piaget
(1896-1980).
Em 1989, Denegri obteve o título de Mestre em Psicologia
Educacional pela Universidade Laval de Quebec. Em 1992, recebeu
uma bolsa “presidente da república” e viajou para a Espanha para
prosseguir o doutorado, na Universidade Autónoma de Madrid,
iniciando estudos na linha de investigação em Psicologia Econômica
sob a orientação do renomado pesquisador Juan Delval, que fora
orientando de Jean Piaget.
Marianela logo reconheceu a relevância das Ciências Sociais,
pois muitos dos fenômenos que ocorrem no planeta têm a ver com
o comportamento das pessoas, dos grupos e com as dinâmicas sociais.
Em sua tese de doutorado, intitulada “Psicogênese do
pensamento econômico na infância e adolescência”, orientada por
Delval e concluída no ano de 1995, construiu um modelo de
Psicogênese do Pensamento Econômico, baseado na teoria
cognitiva-evolutiva de Piaget, que tem sido utilizado em pesquisas
internacionais, tornando-a a primeira pesquisadora chilena e latino-
americana no campo da Psicologia Econômica. No ano subsequente,
Marianela Denegri obteve o prêmio de melhor tese de doutorado.
Nos anos de 1994 e 1995 fora bolsista do Ministério da Educação
da Espanha no Projeto de Pesquisa “Psicologia do Desenvolvimento
e Educação Escolar”.
No ano de 1996, além do prêmio de melhor tese de
doutorado, Marianela iniciou o projeto Fondecyt o qual foi
denominado “Entendendo a economia em crianças chilenas”. Com
esse projeto, iniciou a formação de uma relevante equipe de pesquisa
neste campo cientifico e totalmente novo naquele país, assim como
nos países latino americanos.
O sucesso do projeto foi replicado em outros países da
América Latina sendo a Colômbia (AMAR et al., 2000, 2001, 2002,
2006; LLANOS et al., 2009) o primeiro a replicá-lo. No Brasil,
junto ao Laboratório de Psicologia Genética da Faculdade de
Educação, Universidade Estadual de Campinas/SP, seus estudos
foram referência para várias investigações e teses de doutorado,
colaborando de maneira significativa com as primeiras pesquisas na
área (SILVA 2008; ARAÚJO 2009; CANTELLI 2009; ORTIZ,
2009; FERMIANO 2010; BRAGA, 2010).
No ano de 2010, com referência no trabalho de Marianela
Denegri, no projeto Fondeycit e nos grupos de estudos avançados
em Psicologia Econômica na Universidade de La Frontera, foi
oficializada a criação do CEPEC Centro de Pesquisa em Psicologia
Econômica e do Consumo, reconhecido como um centro de
excelência pela Universidade de La Frontera no ano de 2016. Uma
importante iniciativa do CEPEC foi estabelecer um serviço de apoio
para orientar estudantes de graduação de diferentes áreas, com o
objetivo de promover e motivar futuros e novos pesquisadores em
Psicologia Econômica e do Consumidor. O CEPEC também é
responsável pela criação do TAE, Teste de Alfabetização Econômica,
que se tornou a primeira ferramenta de língua espanhola que já foi
replicada e traduzida para outros idiomas. No Brasil, destacam-se as
teses de doutorado de Bessa (2008); Araújo (2009); Ortiz (2009), e
pesquisas desenvolvidas por Bessa Fermiano e Denegri (2014); Bessa
e Costa (2022); Bessa e Saravali (2022); Bessa Saravali e Fermiano
(2022) utilizando o TAE.
Os estudos realizados no CEPEC despertaram o interesse de
diferentes profissionais e entidades do país, com articulações com
importantes instituições como o SERNAC Sevicio Nacional del
Consumidor no Chile, o Banco Central do Chile e recentemente
com a FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo - instituição pública de fomento à pesquisa acadêmica ligada
à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e
Inovação do governo do estado de São Paulo no Brasil.
Marianela teve sua vida marcada pelo dinamismo
multifacetado, com base em seu trabalho na criação do primeiro
grupo de estudos avançados em Psicologia Econômica, ainda na
Universidade de La Frontera, assumiu a direção de um Núcleo
Científico e Tecnológico em Ciências Sociais y Humanidades. Esse
núcleo reúne pesquisas avançadas nessas áreas.
Marianela Denegri destacou-se nacional e
internacionalmente tornando-se referência em Psicologia e pioneira
nos estudos de Psicologia Econômica no Chile, com extensão nos
países sul-americanos. Ingressou num ambiente dominado por
homens e foi a primeira mulher a trabalhar nessa área. Em 2002,
recebeu o prêmio SERNAM como reconhecimento de mulher
promissora. Foi constantemente consultada por instituições
nacionais e internacionais, como a TEDxUFRO em 2017. Em 2012,
obteve prêmio de reconhecimento por trabalhos acadêmicos da
Faculdade de Educação Ciências Sociais e Humanas. Em 2017,
obteve a medalha de trajetória acadêmica destacada pela
Universidade de La Frontera. Durante o período de 2012 a 2015,
foi a única participante do mundo acadêmico no júri nacional do
concurso de economia do Banco Central do Chile.
Professora titular renomada, destacou-se pela qualidade de
ensino em cursos de graduação e pós-graduação, pela produtividade
científica, com mais de 100 publicações em periódicos de alto
impacto; pela participação nos mais importantes congressos
internacionais e em sociedades científicas. Foi nomeada Professora
Honorária da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (Peru) e
consolidou-se como referência latino-americana em sua linha de
pesquisa em Psicologia Econômica.
Seus estudos aprofundaram a compreensão do impacto do
modelo econômico neoliberal no comportamento do consumidor e
na construção da identidade nas sociedades pós-modernas. Em
especial, desenvolveu estudos e criação de instrumentos que
promovam a Educação Financeira crítica nacional e
internacionalmente. Diante do legado dessa mulher extraordinária
só temos a agradecer em nome da Ciência, sua contribuição que
chegará a muitas gerações.
Quem a conheceu de perto, conviveu com a generosidade de
uma mulher carregada de bons princípios e ávida por uma sociedade
mais justa e humana.
Figura 1 Participação de Marianela Denegri Coria (de preto na foto as placas
de identificação na foto não estão na ordem correta) no XXVI Encontro
Nacional de Professores do PROEPRE, realizado em 2013, Águas de Lindóia-
SP, Brasil
Fonte: Acervo pessoal de Sonia Bessa.
Profa. Dra. Sônia Bessa
Universidade Estadual de Goiás (UEG)
Profa. Dra. Arlett Krause Arriagada
Universidad de La Frontera (UFRO)
Profa. Dra. Maria Belintane Fermiano
Faculdades Net Work (FNW)
Referências
AMAR, J., ABELLO, R.; LLANOS, M. Desarrollo de conceptos
económicos en niños y adolescentes colombianos y su interacción
en los sectores educativos y calidad de vida. Barranquilla: Proyecto
CIDHUM, 2000.
AMAR, J. et al. La construcción de representaciones sociales acerca
de la pobreza y desigualdad social en los niños de la región Caribe
Colombiana. Investigación y Desarrollo, v. 9, n. 2, p. 592-613,
2001.
AMAR, J.; ABELLO, R.; DENEGRI, M.; LLANOS, M.
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AMAR, J. A. et al. Representaciones acerca de la pobreza,
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ARAÚJO, R. M. B. Alfabetização econômica: compromisso social
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BESSA, S.; FERMIANO, M. B.; DENEGRI, M. C. Compreensão
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BESSA, S, SARAVALI, E. G.; FERMIANO, M. B. Pobreza e
desigualdade social: o que pensam estudantes do ensino médio e
superior. RECC, Canoas, v. 27 n. 2, 01-18, nov., 2022.
BRAGA, Adriana Regina. Educação econômica: um olhar sobre a
educação ambiental. 247f. 2010. Tese (Doutorado) - Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano e Educação da
Faculdade de Educação, UNICAMP, Campinas, SP, 2010.
CANTELLI, V. C. B. Procedimentos utilizados pelas famílias na
educação econômica de seus filhos. 2009. 415f. Tese (Doutorado
em Educação) Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2009.
FERMIANO, M. A. B. Pré-adolescentes (“tweens”) desde a
perspectiva da teoria piagetiana à da Psicologia Econômica. 2010.
491f. Tese (Doutorado em Educação) Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2010.
ORTIZ, M. F. Educação para o consumo: diagnóstico da
compreensão do mundo econômico do aluno da educação de
Jovens e adultos. 2009. 149f. (Tese de Doutorado). Universidade
Estadual de Campinas, Campinas. 2009.
SILVA, S. B. N. Alfabetização econômica, hábitos de consumo e
atitudes em direção ao endividamento de estudantes de
pedagogia. 2008. 318f. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.
Sumário
Prefácio | Lia Leme Zaia........................................................................17
Apresentação | Matheus Estevão Ferreira da Silva, Lilian Pacchioni Pereira
de Sousa, Eliane Giachetto Saravali.........................................................19
PARTE I
AS PESQUISAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO
O Desenvolvimento Cognitivo sob a Perspectiva Construtivista.........27
Priscila Caroline Miguel
O Método Clínico de Jean Piaget: uma tomada histórica, conceitual e
prática..................................................................................................55
André Elias Morelli Ribeiro
O Jogo Simbólico na Elaboração do Luto Infantil................................91
Gabriela Silva Disner, Luciana Ramos Rodrigues de Carvalho, Marcela
Cristina Moraes
Quando e Onde se Brinca no Primeiro Ano? um estudo sobre o jogo
simbólico no Ensino Fundamental de uma escola de tempo integral..111
Ana Carolina Tattaro Maranho
Desenvolvimento das Crianças Pequenas e a Identificação das
Características de Altas Habilidades e Superdotão.........................131
Carla Sant’ana de Oliveira, Sandra Cristina Batista Martins, Carla Luciane
Blum Vestena, Bernadete De Fatima Bastos Valentim
Concepções Piagetianas e o Trabalho com a Matemática noAno do
Ensino Fundamental: vivências iniciais.............................................149
Bruna Sordi Rodrigues, Edneia Felix de Matos
Compreensão da Operação de Multiplicação: estudo com referência na
epistemologia genética......................................................................165
Sônia Bessa
A Formação da Noção da Força Corporal na Criança: contribuições para
a Educação Física................................................................................191
Orlando Mendes Fogaça Júnior
Construtivismo e Alfabetização no Brasil: o passado e futuro das novas
ideias..................................................................................................213
Bruna Assem Sasso dos Santos, Adrián Oscar Dongo Montoya
A Teoria Piagetiana Aplicada na Educação de Jovens e Adultos EJA:
pesquisas em contexto brasileiro........................................................247
Érica de Cássia Gonçalves, Lilian Pacchioni Pereira de Sousa, Livia Maria de
Souza Soares, Guilherme Aparecido de Godoi
PARTE II
AS PESQUISAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO MORAL
A Possibilidade da Autonomia Moral em Piaget................................273
Carla Chiari
A Teoria Moral Piagetiana: de projeto inacabado para a base da abordagem
cognitivo-evolutiva do desenvolvimento moral....................................301
Matheus Estevão Ferreira da Silva, Lia Beatriz de Lucca Freitas
Desenvolvimento Moral, Autorregulação e Funções Executivas...........325
Rita Melissa Lepre, Eduardo Silva Benetti, Bianca Vitti Cincoto
As Relações Sociais e as Duas Morais: uma análise do discurso do sujeito
coletivo a respeito do ser educador em instituições de
acolhimento.......................................................................................347
Carla Andressa Placido Ribeiro de França
Autonomia Moral e Inclusão: o que dizem alunos do Ensino Fundamental
sobre as crianças com necessidades educacionais especiais
incluídas?............................................................................................371
Cristiane Pereira Marquezini
Moral na Perspectiva Piagetiana: um mapeamento das intervenções
possíveis............................................................................................394
Sandra Cristina Batista Martins, Rodrigo Luís Vogt, Tania Stoltz
A Educação Moral e as Medidas Socioeducativas: um diálogo entre Jean
Piaget e Paulo Freire............................................................................413
Henrique Abarca Schelini Carnevalli
Significações de Justiça Apresentadas por Estudantes do Ensino
Fundamental, Capturadas por meio de Histórias Dilemáticas............451
Francismara Neves de Oliveira, Joana Virgínia Campana Nakano, Eliane
Giachetto Saravali, Carlos Eduardo Gonçalves, Silvana Thomas, Ana
Cristina da Silva Amado, Leandro Augusto dos Reis, Guilherme Aparecido
Godoi
As Pesquisas Piagetianas Desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação
em Educação da FFC/UNESP de Marília............................................489
Matheus Estevão Ferreira da Silva
Sobre as Autoras e Autores...................................................................511
17
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p17-18
Prefácio
Este novo livro de pesquisas teórica e metodologicamente
fundadas na perspectiva piagetiana traz uma grata contribuição aos
profissionais que se dedicam ao desenvolvimento e à aprendizagem
nos campos pedagógico, psicopedagógico, psicológico, acadêmico e
social.
Composto por duas partes, a primeira dedicada ao
desenvolvimento cognitivo e aprendizagem; a segunda, ao
desenvolvimento moral e construção da autonomia. Encontra-se em
ambas uma fundamentação teórica bem elaborada, a descrição do
percurso histórico do método clínico, na primeira parte e, na
segunda, a elaboração da abordagem cognitivo-evolutiva do
desenvolvimento moral, a partir da teoria moral piagetiana.
O livro, descreve processos, apresenta possibilidades, analisa
alguns problemas observados na prática, em grande parte decor-
rentes da falta de compreensão, pelos professores e responsáveis por
sua aplicação, dos princípios norteadores da construção do
conhecimento, bem como dos princípios norteadores da construção
de uma moral autônoma.
A partir das pesquisas sobre o jogo simbólico, sobre a
alfabetização, construção das operações aritméticas, ou a partir de
pesquisas relacionados a aceitação do colega com necessidades
especiais, relacionadas à instituições de acolhimento e às que
recebem adolescentes sujeitos a medidas socioeducativas, pudemos
18
vislumbrar inúmeras possibilidades da produção acadêmica baseada
na Epistemologia Genética, esperando que o exemplo seja fértil e
outras instituições também tragam a público suas produções.
Campinas, 16 de novembro de 2022.
Profa. Dra. Lia Leme Zaia
Pesquisadora Colaboradora do Laboratório de
Psicologia Genética da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas
(LPG/FE/UNICAMP)
19
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p19-24
Apresentação
Reconhece-se a Educação como um dos campos mais
privilegiados no processo de difusão das ideias do epistemólogo suíço
Jean Piaget (1896-1980) e de seus(suas) colaboradores(as) e
estudiosos(as). No Brasil, a teoria piagetiana, ou a Epistemologia
Genética, como seu próprio autor a denominava, “invadiu” os
debates educacionais com a mesma rapidez em que se reconhecia as
reverberações dessa teoria e suas possíveis contribuições nesse campo
que, originalmente, não era o seu foco. Isso fez da Educação uma
área do conhecimento corresponsável por desenvolver as ideias
piagetianas e de abrir muitas possibilidades de aplicação.
Ainda na década de 1990, a difusão das ideias piagetianas,
no contexto brasileiro, foi agrupada por Mário Sérgio Vasconcelos
(1996) em duas etapas: a primeira caracterizada como “livresca”, em
que as pesquisas piagetianas eram incomuns e a circulação dessas
ideias se dava pela iniciativa de profissionais que buscavam
embasamento no autor para sua atuação pedagógica; e a segunda,
situada a partir da década de 1960, caracterizada pela disseminação
institucional e acadêmica que suas ideias tiveram, com o despontar
de pesquisas teóricas e/ou empíricas nas áreas de Psicologia e de
Educação, assim como de “escolas” piagetianas, situadas em várias
Instituições de Ensino Superior (IES), Programas de Pós-Graduação
e Grupos de Estudos, espalhados em diferentes regiões do país.
Na Educação, a popularidade do “discurso construtivista”
nos “corredores” escolares e universitários alcançou o seu ápice ainda
20
no final da segunda metade do século XX, dispondo até mesmo de
grandes iniciativas em termos de abrangência para a sua
implementação, como é o caso do Programa de Educação Pré-
Escolar (PROEPE) (ASSIS, 2017), fundado por Orly Zucatto
Mantovani de Assis, da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Esse Programa contou com convênios de assessoria
junto à professora Orly e sua equipe em escolas públicas e privadas
em várias cidades e estados para sua concretização, contribuindo
consequentemente para a inserção das ideias piagetianas tanto na
pesquisa como nos próprios fenômenos e processos educacionais.
Como era de se esperar, no entanto, essa incorporação da
teoria nos meios educacionais, com tais intensidades e proporções,
não se deu sem distorções (CORAZZA, 1996; PEDRO-SILVA,
2015) ou injustas culpabilizações sobre o construtivismo não ter sido
suficiente para resolver os problemas educacionais brasileiros
(FABRIL; CALSA; 2009; MORTATTI, 2016). Apesar disso,
salientam Fabril e Calsa (2009, p. 2015), “qualquer teoria pode estar
exposta a crítica, mas, isso requer a compreensão da mesma em sua
totalidade” e que, não obstante, “a Epistemologia Genética
piagetiana tem potencial para continuar a servir como fundamento
teórico-metodológico de pesquisas quer de caráter empírico ou
teórico, sem desconsiderar com isso, seus limites”.
Hoje, 26 anos após o desenvolvimento da pesquisa de
Vasconcelos (1996), a História recente nos mostra que as pesquisas
piagetianas, e aquelas desenvolvidas em intersecção com o campo da
Educação, continuaram, consolidaram-se e, portanto, atestaram que
a difusão das ideias de Piaget teve seu prosseguimento também a
partir desse campo, que viu na teoria piagetiana uma alternativa
21
atraente para compor seu referencial teórico de base na pesquisa
sobre os fenômenos e processos educacionais.
Em contexto local, a Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Campus de Marília, evidencia-se como uma das instituições
envolvidas com esse processo de difusão e com as pesquisas
piagetianas aplicadas à Educação, presentes na graduação (Trabalho
de Conclusão de Curso e de Iniciação Científica) e na pós-graduação
(Dissertações e Teses), além de promover eventos científicos e sediar
Grupos de Estudos e Pesquisas sobre o tema, dos quais surgem
produções com níveis altos de qualificação acadêmica.
Vale ressaltar que o Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da FFC/UNESP de Marília é um dos principais
responsáveis por tal envolvimento, possibilitando a sua intersecção
privilegiada com o campo da Educação, principalmente por meio de
três importantes Grupos de Estudos e Pesquisas, o Grupo de Estudos
e Pesquisas em Aprendizagem e Desenvolvimento na Perspectiva
Construtivista (GEADEC), o Grupo de Estudos e Pesquisa em
Epistemologia Genética e Educação (GEPEGE) e o Grupo de
Estudos e Pesquisas em Psicologia Moral e Educação Integral
(GEPPEI), todos sediados no campus e cadastrados no Diretório de
Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).
Das realizações desses grupos, ressaltam-se as organizações de
alguns eventos científicos importantes como o Colóquio
Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas (bienal, em 2018
em sua edição), organizado pelo GEPEGE, o Encontro Diálogos
sobre as Dificuldades se Aprendizagem, com sua primeira edão
22
realizada em 2016, e o PROEPRE em Ação, com sua primeira edão
em Marília realizada em 2019, sendo ambos eventos organizados
pelo GEADEC.
Diante do valioso lugar que a teoria piagetiana ocupa na
pesquisa educacional brasileira, assim como essa sua influência em
contexto local, esta coletânea foi idealizada com o objetivo principal
de divulgar resultados de pesquisas, em andamento ou concluídas,
desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da UNESP/FFC/Marília, que investigam os
fenômenos e processos educacionais a partir da perspectiva teórica
piagetiana.
Foram convidados(as) para participar e contribuir com este
livro, a partir da produção de capítulos que tratam respectivamente
de suas pesquisas, discentes matriculados(as) e egressos(as) do PPGE.
Ao final do trabalho de organização, este livro reuniu 19 textos
resultantes de pesquisas de Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado,
concluídas ou ainda em andamento. 16 desses textos são de autoria
de discentes, que contam ou não com a coautoria de seus(suas)
respectivos(as) orientadores(as), enquanto os outros 03 textos são de
autoria de professores(as) convidados(as).
O livro foi dividido em duas partes, em que os 19 capítulos
foram distribuídos. Na primeira parte, intitulada As pesquisas sobre o
desenvolvimento cognitivo, encontram-se 10 textos que abordam
resultados de pesquisas que investigaram diversos aspectos dentro do
enfoque cognitivo da teoria piagetiana. Na segunda parte, intitulada
As pesquisas sobre o desenvolvimento moral, reúnem-se 09 textos
resultantes de pesquisas que investigaram a questão da moralidade a
partir de Piaget.
23
Todo o trabalho na e para produção deste livro foi realizado
esperando contribuir para a divulgação das pesquisas desenvolvidas
em nosso Programa, assim como para o avanço da pesquisa científica
sobre os temas abordados. Também foi nosso propósito tornar
acessível esse conhecimento científico produzido não para
pesquisadores(as), professores(as) e estudantes de graduação e pós-
graduação, mas para qualquer pessoa interessada no tema e
comprometida com as ideias piagetianas.
Matheus, Lilian e Eliane
Os organizadores
Referências
ASSIS, O. Z. M. PROEPREprograma de educação infantil e
ensino fundamental e a teoria de Jean Piaget. Schème: Revista de
Psicologia e Epistemologia Genéticas, v. 9, n. esp., p. 217-263,
2017.
CORAZZA, S. M. Construtivismo: evoluçao ou modismo?.
Educação e Realidade, v. 21, n. 2, p. 215-232, jul./dez., 1996.
FABRIL, F. R.; CALSA; G. C. A obra piagetiana no Brasil:
fecundidade e distorções na educação. Rev. Teoria e Prática da
Educação, v. 12, n. 2, p. 243-250, maio/ago., 2009.
MORTATTI, M. do R. L. Os órfãos do construtivismo. RIAEE
Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, v. 11, n. esp.
4, p. 2267-2286, 2016.
24
PEDRO-SILVA, N. Alguns equívocos em relação à epistemologia
e psicologia genéticas. Schème: Revista de Psicologia e
Epistemologia Genéticas, v. 7, n. 2, ago./dez., 2015.
VASCONCELOS, M. S. A difusão das ideias de Piaget no Brasil.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
25
PARTE I
AS PESQUISAS SOBRE O
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO
26
27
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p27-54
O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO SOB A
PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA
Priscila Caroline MIGUEL
1
Introdução
Este capítulo é parte da pesquisa O desenvolvimento moral e
o valor respeito: criação de uma sequência didática para o trabalho na
Educação Infantil (MIGUEL, 2021), que teve o objetivo de
construir uma sequência didática para trabalhar o valor respeito com
crianças da Educação Infantil, visando a descentração, ou seja, a
superação do egocentrismo. Para isso, contou com o financiamento
de bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
Para este capítulo, aborda-se a discussão sobre o
desenvolvimento cognitivo das crianças a partir da epistemologia
genética de Jean Piaget (1896-1980), interessada na psicogênese do
conhecimento, com implicações para pensarmos a construção das
estruturas mentais, a construção do real e a formação do símbolo.
No intuito de discutir a formação e o desenvolvimento da
inteligência na criança, Piaget escreveu três obras sobre o sensório
motor: O nascimento da inteligência na criança, em 1936, A
1
Doutoranda em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: priscilacarolinemiguel@gmail.com.
28
construção do real na criança, em 1937, e A formação do símbolo na
criança, em 1945. Trataremos então do desenvolvimento cognitivo
segundo a perspectiva construtivista.
Esclarecendo conceitos cruciais da obra piagetiana
Devido ao interesse pela gênese do conhecimento, Piaget
elaborou a teoria psicogenética de construção do conhecimento.
Para o autor, a inteligência é uma adaptação e sua função está
justamente nessa adaptação do sujeito a uma situação nova. Isto
significa dizer que, com o desenvolvimento da inteligência, o sujeito
se torna cada vez mais adaptado ao meio, podendo até mesmo
transformá-lo através de suas ações (KAWASHIMA, 2013).
De acordo com Piaget (1936/2008, p. 18-19), o sujeito
modifica o mundo exterior, e, com isso, ele estrutura o universo e a
adaptação só é considerada pronta quando atinge um sistema estável,
ou seja, quando existe equilíbrio entre a acomodação e a assimilação.
E isto nos conduz à função de organização. Sendo assim, ele define
organização como:
Do ponto de vista biológico, a organização é inseparável
da adaptação: são os dois processos complementares de
um mecanismo único, sendo o primeiro o aspecto interno
do ciclo do qual a adaptação constitui o aspecto exterior.
Ora, no tocante à inteligência, tanto sob a sua forma
reflexiva como prática, vamos reencontrar esse duplo
fenômeno da totalidade funcional e da interdependência
entre a organização e a adaptação. [...] Ora, esses dois
aspectos do pensamento são indissociáveis: é adaptando-
29
se às coisas que o pensamento se organiza e é organizando-
se que estrutura as coisas (p. 18-19).
Segundo Kawashima (2013), a inteligência é, portanto, uma
organização de processos internos e seu desenvolvimento se dá
através de uma construção que depende da interação do indivíduo
com o meio e de suas estruturas mentais, ressaltando que não são
inatas enquanto possibilidades próprias da espécie humana. Isto é,
para que o desenvolvimento da inteligência se dê de forma saudável,
o indivíduo precisa dessas estruturas, que são específicas para o ato
do conhecimento e da interação necessária com o meio.
De acordo com Ramozzi-Chiarottino (1988), o conheci-
mento só é possível por conta do funcionamento das estruturas
mentais, que são estruturas orgânicas, específicas para o ato de
conhecer. Isso não significa que sejam estruturas inatas, já que o ser
humano tem possibilidades dadas no genoma, as quais poderão ou
não ser concretizadas. Para que essas possibilidades se realizem, é
necessário que ocorra a interação entre o organismo e o meio. A
noção de interação em Piaget traz consigo uma nova concepção de
organismo: as estruturas mentais, sendo orgânicas, aparecem como
fruto da interação entre o meio e o organismo, contudo, no que se
refere às estruturas mentais, o orgânico já pressupõe o meio.
Ainda Kawashima (2013, p. 58-59) defende que:
Assim, Piaget, com sua teoria sobre o desenvolvimento
cognitivo, explicou o funcionamento (caracterizado pela
adaptação ao meio) e o caminho (caracterizado pela
organização das informações) que o organismo constrói
as estruturas mentais nas trocas que estabelece com o
30
meio, tanto físico quanto social. A análise dessas
estruturas mentais que marca as diferenças ou oposições
de uma tendência de conduta para outra, desde os
comportamentos elementares até a adolescência, é
evidenciado pelos momentos de desenvolvimento
cognitivo: sensório-motor, pré-operatório, operatório-
concreto e operatório-formal. A distinção desses
momentos de desenvolvimento marca o aparecimento
dessas estruturas sucessivamente construídas (PIAGET,
1964/2011) e ‘mostram o caminho percorrido por
qualquer indivíduo da espécie humana, sem lesão
orgânica, na construção das estruturas mentais’.
Para Kawashima (2013), a importância de se definir as
tendências de desenvolvimento da inteligência se dá pelo fato de que,
em cada momento, o indivíduo adquire novos conhecimentos e
novas formas de compreensão e interpretação da realidade. Segundo
Piaget (1964/1999), a cada momento, existem funções que são
comuns a todas as idades e em cada uma delas há um interesse que
a inteligência tenta compreender e explicar. Tal compreensão do
processo é fundamental em sua teoria, pois mostra o modo de
funcionamento das estruturas mentais.
Assim, em cada momento de desenvolvimento da
inteligência, há uma lógica que será superada de forma radical por
uma organização superior, que representa outra lógica do
conhecimento. Isto significa ponderar que a inteligência muda de
qualidade em cada estádio e que cada um deles é caracterizado pela
aparição de estruturas originais, cuja construção o distingue de
estádios anteriores e a cada uma delas uma forma única de equilíbrio,
31
e a evolução mental vai se consolidando cada vez mais no sentido de
uma equilibração sempre mais completa (PIAGET, 1964/1999).
Para o autor existem algumas condições para o indivíduo
receber um determinado conhecimento: ele precisa estar preparado
para recebê-lo; agir sobre o objeto desse conhecimento e inseri-lo
num sistema de relações. Para isso, são utilizados os esquemas de
ação, que são definidos como mecanismos para a aquisição do
conhecimento e, por conta deles, o sujeito organiza o mundo
(KAWASHIMA, 2013). Os esquemas de ação podem ser
compreendidos como “o que há de comum às diversas repetições ou
aplicações da mesma ação” (FREITAS, 2003, p. 20).
Kawashima (2013, p. 60) assim se posiciona:
É por meio dos esquemas de ações que as crianças entram
em contato com o meio, e, a cada novo objeto, as crianças
tentam encaixá-las em seus esquemas, interpretando e
significando o meio, o que torna possível apreendê-lo. Por
exemplo, mamar, sugar, puxar e prender são esquemas
comuns no desenvolvimento da inteligência sensório-
motora (em média, até 2 anos de idade). Imitar,
representar e classificar são típicos da inteligência pré-
operatória (aproximadamente de 2 a 7 anos), assim como
ordenar, relacionar e abstrair caracterizam a tendência
operatório-concreta (de 7 a 11 anos). Já argumentar,
deduzir e inferir aparecem na estruturação da inteligência
operatória formal (a partir dos 11 anos).
Para a construção do conhecimento, é necessário o papel
ativo e construtivo do sujeito pensante no ato do conhecimento com
32
relação à aquisição do simples requisito das ações do objeto. Sendo
assim, Piaget (1954/2014) retrata que, como Kant disse, todo
conhecimento resulta de uma síntese que depende de estruturas
próprias ao sujeito, mas tais estruturas, em lugar de serem dadas
anteriormente, constroem-se pouco a pouco, o que, aliás, reforça a
parte das atividades do sujeito. O autor (p. 24) assim retrata:
Da noção a priori elaborada por Kant, eliminamos, pois,
seu caráter prévio, mas retemos, e aí está o essencial, seu
caráter necessário: ocorre apenas que esta necessidade só
é atingida por etapas e só se afirma inteiramente ao termo
das construções, quando do fechamento das estruturas e
não desde o início.
Segundo Piaget (1964/1999), para existir um novo
conhecimento é preciso que o organismo já tenha uma estrutura
prévia para poder assimilá-lo e transfor-lo. A assimilação e a
acomodação são implicações da atividade inteligente: é assimilação
na medida em que o sujeito incorpora, em uma estrutura prévia,
todo o dado da experiência ou da realidade exterior a formas
diferentes à atividade do sujeito. Freitas (2003, p. 28) considera que:
[...] a assimilação não altera físico-quimicamente o objeto
(como no processo digestivo, por exemplo), mas apenas o
incorpora às formas da própria atividade. Um objeto
adquire significação (aspecto cognitivo) e interesse
(aspecto afetivo) para o sujeito, porque ele é passível de
ser assimilado.
33
De acordo com Battro (1978), podemos dizer que a
assimilação é integrar os objetos (ou as ligações exteriores) aos
esquemas de ação e toda ação que se apoia sobre um objeto será
transformada em suas propriedades ou em suas relações e é
acomodação uma atividade que consiste em diferenciar um esquema
de assimilação, e com relação a esta não é senão uma atividade
derivada ou secundária. Portanto, dialeticamente articuladas,
assimilação e acomodação, constituem o mecanismo da equilibração,
que consiste em uma busca permanente de equilíbrio entre a
tendência dos esquemas para assimilar a realidade e a tendência
contrária para se acomodar e modificar-se para atender tanto às
resistências bem como às exigências. Para Piaget (1964/1999), a
adaptação é o produto final do funcionamento de todo organismo.
Desse modo, para Piaget (1936/2008, p. 18) a adaptação
intelectual só acontece quando atinge um sistema estável, ou seja,
quando existe equilíbrio entre a acomodação e a assimilação.
Em sua obra Seis estudos de Psicologia, Piaget (1964/1999, p.
13) faz uma analogia do desenvolvimento psíquico com o
crescimento orgânico, já que ambos, são orientados para o equilíbrio,
assim se referindo:
Da mesma maneira que um corpo está em evolução a
atingir um nível relativamente estável caracterizado pela
conclusão do crescimento e pela maturidade dos órgãos -,
também a vida mental pode ser concebida como
evoluindo na direção de uma forma de equilíbrio final,
representada pelo espírito adulto. O desenvolvimento,
portanto, é uma equilibração progressiva, uma passagem
contínua de um estado de menor equilíbrio para um
34
estádio de equilíbrio superior. Assim, do ponto de vista
da inteligência, é fácil se opor a instabilidade e incoerência
relativas das ideias infantis à sistematização de raciocínio
do adulto. No campo da vida afetiva, notou-se, muitas
vezes, quanto o equilíbrio dos sentimentos aumenta com
a idade. E, finalmente, também as relações sociais
obedecem à mesma lei de estabilização gradual.
De acordo com Piaget (1964/1999), o desenvolvimento
mental é uma construção contínua (daí o nome de sua teoria ser
construtivismo), que pode ser comparada à edificação de um grande
prédio que, à medida que se acrescenta algo, ficará obviamente mais
sólida, ou à montagem de um mecanismo delicado, aonde fases
gradativas de ajustamento conduziriam tanto a uma flexibilidade
bem como a uma mobilidade das peças tanto maior quanto mais
estável se tornasse o equilíbrio. Contudo, o autor faz uma
advertência de que é preciso introduzir uma importante diferença
entre dois aspectos complementares deste processo de equilibração:
as estruturas variáveis definindo as formas ou estados sucessivos de
equilíbrio e certo funcionamento constante que permitirá a
passagem de qualquer estádio para o nível seguinte.
Piaget (1978) pontua que tais estádios precisam obedecer às
seguintes características: uma ordem de sucessão constante, o caráter
integrativo entre as estruturas que compõem um estádio e aquelas
que as precederam/sucederam, o seu relacionamento às estruturas
lógicas e os momentos de preparação e acabamento que
correspondem ao processo de equilibração.
Em se tratando da ordem de sucessão, é preciso compreender
que não é possível alcançar um estádio ulterior sem ter passado pelo
35
anterior. Piaget (1978, p. 235) é enfático em relação às idades de
acesso aos estádios:
Podemos caracterizar os estágios
2
numa população dada
por uma cronologia, mas essa cronologia é extremamente
variável; ela depende da experiência anterior dos
indivíduos e não somente da maturação, e depende
principalmente do meio social que pode acelerar ou
retardar o aparecimento de um estágio, ou mesmo
impedir sua manifestação.
De acordo com a citação acima, a ordem dos estádios é
invariável, mas a idade na qual são alcançados depende dos fatores
de desenvolvimento mencionados anteriormente. É preciso destacar
a importância do meio social no desenvolvimento da inteligência,
como vimos anteriormente, já que a teoria de Piaget é pautada na
interação entre sujeito e meio, ou seja, sem a fonte de interação (ou
sempre as mesmas interações), não existem condições para a
ocorrência dos desequilíbrios e todos os processos cognitivos deles
decorrentes (PIAGET, 1978).
2
Piaget na citação usa o termo “estágio”, mas nós adotaremos estádios. Piaget
utiliza-se da palavra stade (estádio) para explicar o seu modelo de evolução do
pensamento, isto é, é o momento ou o lugar no qual existem acontecimentos que
integram ou caracterizam uma evolução. No entanto, também encontramos a
palavra estágio para designar os estádios da inteligência piagetianos. Resumindo,
em Piaget estádio tem uma característica positiva (é o melhor do que podemos ser
em um determinado momento de um processo e estágio neste sentido, tem um
aspecto negativo por caracterizar alguém por aquilo que ele não é) (MANO, 2017,
p. 29).
36
No que se refere ao caráter integrativo dos estádios, é
importante ressaltar que as construções realizadas participam e
integram as próximas construções do estádio seguinte. Não podemos
dizer que um estádio é melhor que o outro, já que cada um dos
estádios oferece aos indivíduos uma adaptação, como vimos no
início desse capítulo, ainda que momentânea, às situações propostas
em momentos específicos do desenvolvimento e o avanço só se torna
possível devido às estruturas anteriormente formuladas (PIAGET,
1978; MANO, 2017).
Mano (2017, p. 30) pondera que:
[...] é preciso pormenorizar que, embora por meio das
estruturas de conjunto seja possível antecipar a forma de
pensamento de um estádio, devemos atentar que ele não
se encontra em estado puro, pois existem momentos de
preparação e de acabamento do estádio. Por exemplo, na
preparação de um estádio novas formas de pensar já se
encontram na mente do sujeito, mas dúvidas inerentes à
estrutura de pensamento do estádio anterior podem
aparecer; já no acabamento, existe a prevalência das
estruturas cognitivas do estádio que se vivencia, bem
como se percebem novas estruturas em construção
características do estádio seguinte, ainda que incompletas.
É importante ressaltar que do ponto de vista funcional, isto
é, levando em conta as motivações gerais da conduta e do
pensamento, comparando-se a criança ao adulto, existem funções
constantes e comuns a todas as idades. Para Piaget (1964/1999, p.
15):
37
Cada estágio é caracterizado pela aparição de estruturas
originais, cuja construção o distingue dos estágios
anteriores. O essencial dessas construções sucessivas
permanece no decorrer dos estágios ulteriores, como
subestruturas, sobre as quais se edificam as novas
características. Segue-se que, no adulto, cada um dos
estágios passados corresponde a um nível mais ou menos
elementar ou elevado da hierarquia das condutas. Mas a
cada estágio correspondem também características
momentâneas e secundárias, que são modificadas pelo
desenvolvimento ulterior, em função da necessidade de
melhor organização. Cada estágio constitui então, pelas
estruturas que o definem, uma forma particular de
equilíbrio, efetuando-se a evolução mental no sentido de
uma equilibração sempre mais completa.
Segundo Piaget (1964/1999), pode-se dizer de maneira geral
(pensando em cada estádio ao seguinte bem como cada conduta, no
interior de qualquer estágio, à conduta seguinte) que todo
movimento, pensamento ou sentimento corresponde a uma
necessidade: a criança ou o adulto só executam qualquer ação seja
ela exterior ou interior motivados por uma necessidade ou interesse.
Quando a ação se finda já com a satisfação das necessidades há um
equilíbrio entre o fato novo, que desencadeou a necessidade e a nossa
organização mental, tal como se apresentava anteriormente, volta ao
normal.
Piaget (1964/1999, p. 16) admite que “toda ação humana
consiste neste movimento contínuo e perpétuo de reajustamento ou
de equilibração”. Devido a esse motivo, nas fases de construção
inicial, podemos considerar que as estruturas mentais sucessivas
38
produzem o desenvolvimento como formas de equilíbrio, na qual
cada uma constitui um progresso sobre as precedentes. É importante
ressaltar que os interesses de uma criança dependem, portanto, a
cada momento de suas noções adquiridas e de suas disposições
afetivas, já que estas tendem a serem completas em se tratando de
melhor equilíbrio.
Segundo Piaget (1964/1999, p. 17) a percepção e
movimentos elementares (preensão, por exemplo) referem-se aos
objetos próximos nos seus estados momentâneos, já que a memória
e a inteligência prática possibilitam, concomitantemente, recons-
tituir o estado imediatamente anterior e antecipar as próximas
transformações. O pensamento intuitivo, por sua vez, reforça essas
duas capacidades. E esta evolução resulta na inteligência lógica, sob
a forma de operações concretas e de dedução abstrata.
Os esdios de desenvolvimento cognitivo
Veremos agora os estádios de desenvolvimento cognitivo,
que constituem o cerne da contribuição de Jean Piaget. Faz-se
necessário ressaltar que as idades atribuídas ao aparecimento dos
estágios não devem ser entendidas de forma rígida e que há grande
variação individual.
De acordo com Biaggio (2015), Piaget esquematiza o
desenvolvimento cognitivo da seguinte forma:
I. Estádio sensório-motor (0 a 2 anos).
II. Estádio pré-operatório (2 a 6 anos).
III. Estádio de operações concretas (7 a 11 anos).
IV. Estádio de operações formais (12 anos em diante).
39
O período sensório-motor
Cabe ressaltar que o nível sensório-motor é um período
anterior à linguagem e segundo Piaget e Inhelder (1968/2018, p.11):
[...] Pode-se chamar-lhe período “sensório-motor”
porque, à falta de função simbólica, o bebê ainda não
apresenta pensamento, nem afetividade ligada a
representações que permitam evocar pessoas ou objetos
na ausência deles. A despeito, porém, dessas lacunas, o
desenvolvimento mental no decorrer dos dezoito
primeiros meses
3
da existência é particularmente rápido e
importante pois a criança elabora, nesse nível o conjunto
das subestruturas cognitivas, que servirão de ponto de
partida para as suas construções perceptivas e intelectuais
anteriores, assim como certo número de reações afetivas
elementares, que lhe determinarão, em parte, a
afetividade subsequente.
A inteligência sensório-motora é essencialmente prática, ou
seja, tendente a resultados favoráveis e não ao enunciado de verdades,
mas essa inteligência nem por isso deixa de resolver um conjunto de
problemas de ação, como por exemplo alcançar objetos afastados,
escondidos etc., construindo um sistema complexo de esquemas de
assimilação, e de organizar o real de acordo com um conjunto de
estruturas espácio-temporais e causais. Devido à falta de linguagem
e de função simbólica, tais construções se efetuam apoiadas
3 É uma idade média e, ainda assim, aproximativa, segundo Piaget e Inhelder
(1968/2018).
40
exclusivamente em percepções e movimentos, isto é, através de uma
coordenação sensório-motora das ações, sem que intervenha a
representação ou o pensamento (PIAGET; INHELDER, 1968/
2018).
Piaget e Inhelder (1968/2018) asseveram que no período
sensório-motor, a construção do real conta com a reversão dos
esquemas de assimilação sensório-motores numa espécie de lógica da
ação, que abrange o estabelecimento de relações e correspondências
(funções) encaixes de esquemas, de forma sintetizada, estruturas de
ordens e reuniões que constituem a subestrutura das operações
futuras do pensamento. Sendo assim, a inteligência sensório-motora
conduz a um resultado importante no que diz respeito à estrutura
do universo do sujeito, por mais restrito que seja: organiza o real
construindo, pelo próprio funcionamento, as grandes categorias da
ação que são os esquemas do objeto permanente, do tempo e da
causalidade, subestruturas das futuras noções correspondentes.
Em relação às categorias acima citadas, nenhuma delas existe
no princípio e o universo inicial está inteiramente centrado no corpo
e na ação próprios, em um egocentrismo tão total quanto
inconsciente de si mesmo, justamente por falta da consciência do eu.
Piaget e Inhelder (1968/2018, p.19) enfatizam que:
No curso dos dezoito primeiros meses efetua-se, pelo
contrário, uma espécie de revolução copernicana, ou mais
simplesmente chamada de descentração geral, de tal
natureza que a criança acaba por situar-se como um
objeto entre os outros num universo formado de objetos
permanentes, estruturado de maneira espácio-temporal e
41
sede de uma causalidade ao mesmo tempo espacializada e
objetivada nas coisas.
Tratando-se do espaço e do tempo, Piaget e Inhelder
(1968/2018) reiteram que a começar pelas estruturas espácio-
temporais, no princípio, não existe espaço único nem ordem
temporal que englobe os objetos e acontecimentos como os
continentes englobam os conteúdos. Existe apenas um conjunto de
espaços heterogêneos, todos centrados no próprio corpo: espaço
bucal, tátil, visual, auditivo, de postura; e algumas impressões
temporais, mas sem coordenações objetivas. As coordenações desses
espaços acontecem logo em seguida, mas tais coordenações
continuam parciais por muito tempo, enquanto a construção do
esquema do objeto permanente não conduz à distinção fundamental
entre as mudanças de estado, ou modificações físicas, e as mudanças
de posição, ou deslocamentos constitutivos do espaço.
A noção de causalidade acontece em paralelo com o
desenvolvimento dos esquemas precedentes e o sistema dos objetos
permanentes e de seus deslocamentos, por outro lado, não pode
dissociar-se de uma estruturação causal, pois o próprio do objeto é
ser origem, sede ou resultado de ações diversas, cujas ligações
constituem a categoria da causalidade (PIAGET: INHELDER,
1968/2018).
Ainda em relação à causalidade, Piaget e Inhelder
(1968/2018, p. 23) assinalam que:
Tal causalidade inicial pode-se chamar mágico-
fenomenista; fenomenista porque qualquer coisa é capaz
de produzir qualquer coisa segundo as ligações anteriores
42
observadas, e “mágica” porque está centrada na ação do
sujeito sem consideração dos contatos espaciais. O
primeiro dos dois aspectos recorda a interpretação da
causalidade dada por Hume, mas com centração exclusiva
na ação própria. O segundo lembra as concepções de
Maine de Biran, mas não há aqui consciência do eu nem
delimitação entre este e o mundo exterior.
Conforme Piaget e Inhelder (1968/2018) em compensação,
à medida que o universo é estruturado pela inteligência sensório-
motora de acordo com uma organização espácio-temporal e pela
constituição de objetos permanentes, a causalidade é objetivada e
espacializada, isto é, as causas reconhecidas pelo sujeito já não estão
situadas unicamente na ação própria, senão em objetos quaisquer e
as relações de causa e efeito entre dois objetos ou suas ações supõem
um contato físico e espacial.
O período pré-operatório
O estádio pré-operatório, compreende o período que vai
desde o fim do subestádio VI do período sensório-motor (mais ou
menos 2 anos) até o início das operações concretas (mais ou menos
6 a 7 anos). Como principal progresso desse estádio se comparado
ao sensório-motor, temos o desenvolvimento da capacidade
simbólica, que para Piaget e Inhelder (1968/2018) consiste em
poder representar alguma coisa (um “significado” qualquer: objeto,
acontecimento, esquema conceptual, etc.). Os autores aqui
referenciados (p. 51) fazem a seguinte distinção: chama-se em geral
“simbólica” a essa função geradora da representação, mas como os
43
linguistas distinguem os “símbolos” e os “sinais”, emprega-se então
a expressão “função semiótica” para designar os funcionamentos
fundados no conjunto dos significantes diferenciados.
O aparecimento da função semiótica se consolida então em
um conjunto de condutas que supõe a evocação representativa de
um objeto ou de um acontecimento ausente que envolve a
construção ou o emprego de significantes diferenciados, haja vista
que se referem não só a elementos não atualmente perceptíveis, mas
também aos que se acham presentes, conforme apontam Piaget e
Inhelder (1968/2018).
De acordo com Ramozzi-Chiarottino (1988, p. 28, grifos da
autora):
Por volta de um ano e meio/ dois anos, a criança adquire
a capacidade de distinguir o significado do significante,
ou seja, de representar, através de uma imagem mental
(visual), eventos ou coisas que estão fora do seu campo
visual. O aparecimento desta capacidade só é percebido
através de seus efeitos, ou seja, até aqui não havia nada no
comportamento da criança que indicasse a capacidade de
representar o mundo através de imagens. Nesse momento,
no entanto, ela começa a demonstrar, em suas ações,
referência a eventos passados. Vemo-la então imitando na
ausência do modelo e brincando de faz-de-conta, tipos de
conduta que implicam a representação através de imagem.
Tudo isso ocorre antes da aquisição da linguagem e Piaget
diz que essa capacidade de representar é condição
necessária para a própria aquisição da linguagem.
44
Ramozzi-Chiarottino (1988, p. 28) afirma que ao adquirir a
capacidade de representar, a criança se torna capaz de evocar e de
prever e, evidentemente, os conteúdos de suas representações já são
organizados nos sistemas concretos de significação. Devido a
capacidade de representar, esses sistemas de significação são
reconstruídos em forma de representação, tornando-se muito mais
ricos, já que são passíveis de se organizarem no tempo, aparecendo
como condição necessária da memória e da história.
Devemos destacar que ao se tornar capaz de construir
sistemas de significação ao nível da representação (a partir de um
ano e meio/dois anos), a criança passa a assimilar o meio não
através de seus esquemas de ações, mas também através de seus
sistemas de significação que até aqui independe da capacidade de
operar, que é frequentemente confundida com a capacidade de
estabelecer relações, fruto do funcionamento das estruturas mentais
(RAMOZZI-CHIAROTTINO, 1988).
O desenvolvimento do pensamento terá de repetir, por uma
gama de superações, a evolução que parecia terminada no plano
sensório-motor, antes de se desdobrar num campo infinitamente
mais amplo no espaço e mais móvel no tempo, até alcançar a
estruturação das próprias operações (PIAGET, 1967).
O estádio de operações concretas
Ramozzi-Chiarottino (1988) ressalta que, para Piaget, a
capacidade de operar diz respeito a um momento particular em
relação ao exercício da capacidade de estabelecer relações e ao mesmo
tempo organizar sistemas de ações coordenadas a nível concreto ou
45
abstrato, mas reitera que o autor coloca que a operação implica
necessariamente na capacidade de estabelecer elos entre as ideias,
mas o estabelecimento de tais conexões nem sempre implica em
operação.
A capacidade de operar aparece por volta dos sete anos em
média e pode ser entendida como a possibilidade de reunir
elementos num todo, formando um sistema de relações. A “noção
de conservação da substância” tem a ver com a compreensão do
princípio de identidade das ações e dos objetos, e aparece como
conservação de um todo, apesar das transformações aparentes. O
reconhecimento da identidade, é condição para que a ação se
transforme em operação, porém é fruto de um longo processo
(RAMOZZI-CHIAROTTINO, 1988).
Ramozzi-Chiarottino (1988, p. 30) assim se refere:
A operação, diz Piaget, não é a representação de uma ação:
ela ainda é, pode-se dizer, uma ação, mas que é reversível,
ou seja, que conserva seu objeto no decurso das
transformações que são reversíveis. As operações jamais
estão isoladas; ao contrário, formam totalidades que
obedecem a leis de composição interna. A noção de
conservação
4
da substância [...] é o primeiro “sintoma” de
que a criança está apta para operar, justamente porque
indica a presença do princípio de identidade no seu
raciocínio consciente.
4 A noção de conservação da substância pode ser observada, por exemplo, quando
a criança compreende que quando se tem duas bolas de plasticina iguais com a
mesma quantidade de massa e uma delas é transformada em salsicha, a
quantidade de massa permanece a mesma, apesar da mudança na aparência
(RAMOZZI-CHIAROTTINO, 1988, p. 30).
46
Em se tratando, mais especificamente, do estádio de
operações concretas, que compreende a faixa etária de
aproximadamente 7 a 11 anos, a característica do pensamento
operatório-concreto demonstra que a criança já possui uma
organização assimilativa rica e integrada, em equilíbrio com um
mecanismo de acomodação. Biaggio (2015) assinala que, nesse
período, a criança já parece ter a seu comando um sistema cognitivo
coerente e integrado com o qual organiza e manipula o mundo.
As operações em jogo nesse estádio podem ser chamadas de
“concretas” porque se baseiam diretamente nos objetos e não ainda
nas hipóteses enunciadas verbalmente, ou seja, as operações
concretas estabelecem a transição entre a ação e as estruturas lógicas
mais gerais, constituídas por uma “combinatória” e uma estrutura
de “grupo” capazes de coordenar as duas formas possíveis de
reversibilidade (PIAGET; INHELDER, 1968/2018).
Piaget e Inhelder (1968/2018) consideram a seriação como
um bom exemplo desse processo construtivo que é caracterizado pela
capacidade de ordenar os elementos segundo as grandezas de ordem
crescentes ou decrescentes. Tal seriação operatória, adquirida por
volta dos 7 anos, deriva de correspondências seriais (como exemplo,
fazer corresponder bengalas igualmente diferentes e mochilas
igualmente seriáveis) ou seriações de duas dimensões (separar numa
matriz folhas de árvores que diferem, ao mesmo tempo, por conta
do tamanho e da tonalidade da cor, mais ou menos escura).
A classificação também constitui um agrupamento
fundamental, mas vale ressaltar que suas raízes se situam nas
assimilações próprias dos esquemas sensório-motores. De acordo
47
com Piaget e Inhelder (1968/2018), quando damos às crianças de 3
a 12 anos objetos para classificar, podemos observar três grandes
etapas: a) os sujeitos mais novos iniciam com “coleções figurais”, ou
seja, os objetos são dispostos não apenas de acordo com as suas
semelhanças e diferenças individuais, mas fazendo a justaposição em
fileiras, quadrados, círculos etc.; b) a segunda etapa engloba as
coleções não figurais: os pequenos conjuntos sem forma espacial
podem diferenciar-se em subconjuntos e; c) o encaixe de classes em
extensão é conseguido geralmente por volta dos oito anos e
caracteriza, então, a classificação operatória.
Nesse período, encontramos uma lógica de pensamento, que
até então não era vivenciada pelos sujeitos e que modifica suas
relações com os objetos do mundo físico e social (MANO, 2017).
E é por meio dessa estrutura de pensamento do estádio operatório-
concreto, que ocorre uma estruturação gradual e a coordenação dos
pontos de vista, seja no plano da lógica ou no plano da vida social
(PIAGET; INHELDER, 1968/2018).
O estádio de operações formais
Por volta dos 12 anos em diante, novas equilibrações
possibilitam a entrada do sujeito no estádio das operações formais.
Biaggio (2015, p. 84) assim menciona:
No estágio anterior, de operações concretas, a criança é
capaz de entender relações que lhe são apresentadas
concretamente, ao passo que no estágio de operações
formais ela já é capaz de resolver problemas a respeito de
todas as relações possíveis entre eventos. O adolescente,
48
nessa fase, já é capaz de pensar em termos abstratos de
formular hipóteses e testá-las sistematicamente.
Essa nova forma de pensamento caracteriza-se, sobretudo,
pela capacidade de desprender-se do concreto e pensar em termos de
possibilidades, conquistadas pela lógica das operações proposicionais.
Portanto, ampliam-se as possibilidades de pensamento, fato que só
é possível devido a atuação da combinatória, já que as operações
formais permitem construir ilimitadas relações, de ilimitadas classes
(MANO, 2017; PIAGET; INHELDER, 1968/2018).
De acordo com Mano (2017, p. 35):
Em posse das operações formais, existe um importante
desdobramento revelado em um sujeito capaz de
experimentar, algo que nos estádios anteriores não se
mostrava possível, posto que no sensório-motor a
inteligência era de caráter prático, no pré-operatório a
inteligência era intuitiva, deixando-se levar pelas
aparências, e, no operatório concreto ela estava a serviço
do concreto, confinada no objeto não havia espaço, até
então, para que hipóteses fossem pensadas e testadas.
O processo evolutivo, cujo aspecto cognitivo estamos aqui
descrevendo, liga também as estruturas do nível sensório-motor
inicial às do nível de operações concretas, passando, por um período
pré-operatório, caracterizado pela assimilação sistemática à ação
própria, que ao mesmo tempo se constitui em obstáculo e
preparação para a assimilação operatória. Obviamente, a evolução
afetiva e social da criança obedece às leis desse mesmo processo geral,
49
haja vista que os aspectos afetivos, sociais e cognitivos da conduta
são indissociáveis, isto é, a afetividade pode ser considerada como
energética das condutas cujas estruturas possuem relações com as
funções cognitivas, e, se a energética não explica a estruturação nem
o inverso, é possível concluir que nenhuma das duas poderia
funcionar sem a outra (PIAGET; INHELDER, 1968/2018).
Relações entre a afetividade e a inteligência
As relações entre a afetividade e a inteligência, segundo
Piaget (1954/2014) é que são inseparáveis (indissociáveis) e
podemos dizer que a afetividade interfere nas operações da
inteligência, estimulando-as ou perturbando-as, causa esta de
acelerações ou retardos no desenvolvimento intelectual. É
incontestável que a afetividade atua como acelerador ou perturbador
das operações da inteligência e um exemplo disso é que um aluno
motivado em aula terá mais entusiasmo para estudar e
consequentemente, aprenderá com mais facilidade.
Vários autores defendem que a afetividade intervém nas
próprias estruturas da inteligência e que ela é fonte de
conhecimentos e de operações cognitivas originais, como por
exemplo, Wallon que afirma que a emoção desempenha em alguns
momentos uma função excitante, no sensório-motor, onde a
satisfação é causa de progresso no desenvolvimento (PIAGET,
1954/2014).
Piaget (1954/2014) entende a afetividade como os
sentimentos propriamente ditos e, em especial, as emoções; as
diversas tendências, incluindo as “tendências superiores” e, em
particular, a vontade. Faz-se necessário distinguir as funções
50
cognitivas, que vão da percepção e das funções sensório-motoras até
a inteligência abstrata com as operações formais das funções afetivas.
Essa divisão é apenas para fins didáticos, pois na conduta concreta
do indivíduo, elas são indissociáveis. Piaget (1954/2014, p. 39)
afirma que: “é impossível encontrar condutas procedentes somente
da afetividade sem elementos cognitivos e vice-versa”.
Segundo Piaget (1954/2014) não há mecanismo cognitivo
sem elementos afetivos, mesmo nas formas mais abstratas da
inteligência, podendo citar como exemplo um aluno que quando
resolve um problema de álgebra, há no início um interesse intrínseco
ou extrínseco, uma necessidade e ao longo do trabalho, podem
intervir estados de prazer, de decepção, de ardor, sentimentos de
fadiga, de esforço, de desânimo etc. Com isso, nos atos cotidianos
da inteligência prática, a indissociação é ainda mais evidente, já que
sempre terá interesse, intrínseco ou extrínseco e na percepção
também acontece o mesmo: uma seleção perceptiva, sentimentos
agradáveis ou desagradáveis (a indiferença constituindo ela mesma
uma tonalidade afetiva), sentimentos estéticos e outros.
É importante esclarecer que não existe também um estado
afetivo puro, sem elementos cognitivos, pois de acordo com Piaget
(1954/2014) os fatores cognitivos desempenham um papel nos
sentimentos primários e nos sentimentos complexos mais evoluídos,
onde são mesclados cada vez mais com os elementos gerados pela
inteligência. De forma sintetizada, podemos afirmar que nunca se
encontra estado afetivo sem elementos cognitivos, nem o contrário.
A afetividade desempenha então, o papel de uma fonte energética,
da qual dependeria o funcionamento da inteligência, mas não suas
51
estruturas; assim como o funcionamento de um automóvel, que ao
acionar o motor, não modifica a estrutura da máquina.
Conforme Piaget (1954/2014), se a afetividade pode ser
causa de condutas, se ela intervém sem cessar no funcionamento da
inteligência, se ela pode ser causa de acelerações ou atrasos no
desenvolvimento intelectual, “ela não gera estruturas cognitivas e
o modifica as estruturas no funcionamento das quais intervém”
(p. 43).
Considerações finais
Esse capítulo teve como objetivo discorrer sobre o
desenvolvimento cognitivo das pessoas a partir da teoria de Jean
Piaget. Através de uma revisão de literatura, apontamos que a
inteligência é a capacidade de adaptação do sujeito ao meio no qual
está inserido. Salientamos aqui a importância do meio para o
desenvolvimento dela.
Mostramos também os estádios cognitivos pelos quais os
sujeitos “passam” na construção de sua inteligência e a importância
da afetividade. Sendo assim, a inteligência e a afetividade são
aspectos distintos, porém, indissociáveis no sujeito.
Referências
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Lino de Macedo. São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências
Sociais, 1978.
52
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FREITAS, L. B. de L. A moral na obra de Jean Piaget: um projeto
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KAWASHIMA, R. A. A generosidade no exercício da autoridade
em professores da Educação Infantil. 2013. 255f. Tese
(Doutorado em Educação) Faculdade de Filosofia e Ciências,
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MANO, A. de M. P. Aprendizagem de contdos da Astronomia
em uma perspectiva piagetiana: intervenção pedagógica e
desenvolvimento cognitivo. 2017. 207f. Tese (Doutorado em
Educação) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade
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MIGUEL, P. C. O desenvolvimento moral e o valor respeito:
criação de uma sequência didática para o trabalho na Educação
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Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista
(UNESP), Marília, 2021.
PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. 4. ed. Rio
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PIAGET, J. Psicologia da Inteligência. 2. ed. Rio de Janeiro:
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PIAGET, J. Seis estudos de Psicologia. 24. ed. Rio de Janeiro:
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53
PIAGET, J. Relações entre a Afetividade e a Inteligência no
Desenvolvimento Mental da Criança. Trad. Cláudio J. P. Saltini e
Doralice B. Cavenaghi. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2014 [1954].
PIAGET, J. A epistemologia genética, sabedoria e ilues da
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São Paulo: Abril Cultural, 1978.
PIAGET, J.; INHELDER, B. A Psicologia da criança. 8. ed. Rio
de Janeiro: Difel, 2018 [1968].
RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. Psicologia e Epistemologia
Genética de Jean Piaget. São Paulo: EPU, 1988.
54
55
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p55-90
O MÉTODO CLÍNICO DE JEAN PIAGET:
UMA TOMADA HISTÓRICA, CONCEITUAL
E PRÁTICA
André Elias Morelli RIBEIRO
5
Origem Histórica do Método Clínico
Apesar de bastante difundido e amplamente discutido ao
redor do mundo, não são muitos os textos que abordam a origem
histórica do método clínico (RATCLIFF; MORELLI, 2022;
RIBEIRO; SOUZA, 2020a; 2020b; RIBEIRO; RATCLIFF, 2019;
RIBEIRO, 2018; CAMPOS; NEPOMUCENO, 2015; BOND;
TRYPHON, 2009; PIAGET, 2005/1926; DUCRET, 2004; 1990;
DELVAL, 2002; VIDAL, 1998; 1994; FRANCO, 1997;
KESSELRING, 1993; CARRAHER, 1989; VINH-BANG,
1988/1966; EVANS, 1980). Vários destes trabalhos tratam a gênese
do método de Piaget de forma anedótica ou tangencial. Foi apenas
em 2016 que se iniciaram os estudos históricos sistemáticos sobre a
história do método clínico, com base em fontes documentais
5
Doutor em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras (FCL),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus
de Assis, São Paulo, Brasil. Docente da Universidade Federal Fluminense
(UFF), campus de Rio das Ostras, e do Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
andremorelli@id.uff.br
56
primárias e que, por conta de sua vastidão e complexidade, ainda
estão longe de oferecer uma perspectiva completa sobre o assunto.
O emprego moderno da palavra “clínica” vem da medicina
e tem origem no grego kliné, que significa procedimento de
observação direta e minuciosa, em geral feita diretamente do leito do
paciente (BARBIER, 1985). Em psicologia, conforme Delval (2002),
seu uso iniciou-se em 1896 com L. Witmer, psicólogo norte-
americano, ex-aluno de Wundt e sucessor de Cattell na Universidade
da Pensilvânia, EUA. O termo é adequado para descrever a
metodologia piagetiana, pois, em essência, o método clínico é uma
modalidade avançada de entrevista, com a intenção de oferecer uma
observação minuciosa do conteúdo da mente da infantil.
É certo que Piaget foi treinado na clínica médica,
especificamente a psiquiátrica. Ele entrevistou crianças e adultos em
duas instituições de saúde mental de Paris, o hospital da Salpetrière
e o hospital Sainte-Anne, enquanto era aluno do eminente psiquiatra
francês George Dumas. Além disso, Piaget, em mais de uma ocasião,
reconheceu o psiquiatra francês Pierre Janet como seu verdadeiro
mestre da psicologia, utilizando e discutindo suas ideias em diversas
passagens ao longo de sua obra.
Foi a combinação entre os métodos de entrevista vindos da
psiquiatria francesa do início do século XX com uma compreensão
única do teste de inteligência de Ciryl Burt que proporcionou a
criação do primeiro programa de investigação original de Piaget, que
o conduziria posteriormente ao método clínico. Neste período, fase
denominada por Vihn-Bang (1988/1966) de Primeiros Esboços,
Piaget estava empenhado, entre outras tarefas, em traduzir e adaptar
para crianças francesas o teste de Burt, quando percebeu que
57
investigar os porquês das respostas, incluindo as respostas corretas e
incorretas, era mais interessante do que o teste em si e qualquer coisa
que poderia revelar (PIAGET, 1980).
Burt foi um psicólogo britânico interessado na inteligência
infantil, e valeu-se do modelo da testagem psicológica para conduzir
seus estudos na área. Ele estava no local certo, pois a Inglaterra era o
berço da Psicometriaapesar de a escala Binet-Simon ser francesa.
Ao valer-se de modificações e adaptações do teste de Burt, Piaget
mostrava que se diferenciaria deste modelo de testagem, que critica
em seu livro de 1926, A Representação do Mundo na Criança
(PIAGET, 2005/1926), defendendo um modelo totalmente
diferente, mais aberto e com outras possibilidades de análise.
Posteriormente, ainda no mesmo período, Piaget aplicou e
desenvolveu seus próprios métodos partindo de outras técnicas,
como itens da escala Binet-Simon e as perguntas absurdas de Binet,
na intenção de investigar os motivos dos erros e acertos e, assim
produzir uma explicação melhor sobre o funcionamento do
pensamento infantil (RIBEIRO, 2018). Nesta fase inicial, o uso de
instrumentos de testagem psicológica se mescla com entrevistas
abertas. Apesar de reconhecer a relevância dos testes psicológicos,
Piaget aponta neles dois inconvenientes notáveis:
O primeiro, é que não permitem uma análise suficiente
dos resultados obtidos. Operando-se sempre em
condições idênticas, obtêm-se resultados brutos,
interessantes para a prática, mas muitas vezes não
utilizáveis pela teoria. […] A falha essencial do teste, nas
pesquisas que fazemos, é distorcer a orientação de espírito
58
da criança interrogada, ou ao menos correr o risco de fazê-
lo. (PIAGET, 2005/1926, p. 11).
Dessa forma, Piaget afasta-se do modelo psicométrico e abre-
se para a possibilidade de uma investigação aberta partindo de uma
proposição padronizada e fechada, própria dos instrumentos
psicométricos, mas acompanhada de uma entrevista aberta, sem
itens fixados previamente nem respostas estabelecidas por padrão.
Dessa forma, o falar da criança flui de forma mais livre e permite que
ela comunique suas formas de pensar, as lógicas que aplica nos
raciocínios e, por fim, as estruturas que subjazem seu pensamento.
O interesse é evitar as distorções que Piaget via no uso do modelo da
testagem psicológica, que as falas das crianças não seriam
classificadas numa padronização previamente estabelecida, mas sim
a partir de suas singularidades e regularidades com as falas e
conteúdos de outras crianças.
Apesar de sua aplicação ter se iniciado num momento
anterior, que o uso das cnicas nos experimentos e entrevistas
antecedem a escrita sobre eles, pode-se colocar que o método clínico
se inicia em 1926, com a publicação da primeira sistematização geral
do método feita pelo próprio Piaget, na introdução de seu livro A
Representação do Mundo na Criança (PIAGET, 2005/1926),
mencionado. na fase que Vihn-Bang (1988/1966) denomina
Constituição do Método, o texto, um clássico instantâneo, traz
breves sínteses das pesquisas conduzidas por Piaget e colaboradores
sobre os modos do pensamento infantil, fala de sua experiência de
pesquisa, propõe regras gerais de aplicação e interpretação, bem
como dificuldades na pesquisa e como evitá-las.
59
Em 1932, surge o método não-verbal, configurado em três
livros essenciais, O Nascimento da Inteligência na Criança (PIAGET,
1978a/1936), A Construção do Real na Criança (PIAGET,
1975/1937) e A Formação do Símbolo na Criança (PIAGET,
1978b/1945), apresentando métodos com o objetivo de investigar
crianças de poucos meses e que ainda não começaram a falar. Piaget
cria situações e problemas práticos para a criança e, assim, observa a
forma como as soluciona, integrando diferentes enfoques e
discussões teóricas com uma metodologia aplicada, desenvolvida
principalmente em casa, com suas filhas, devido às dificuldades de
trabalhar com sujeitos bebês. Este parece ser o aspecto menos
conhecido do método clínico.
As fases posteriores, Manipulação e Formalização (1940-
1955) e Desenvolvimentos Posteriores (a partir de 1955) mostram
o método em todas as sutilezas e complexidades que lhes são próprias
e que tornaram o nome de Piaget mundialmente conhecido. Na
seção seguinte, vamos falar um pouco sobre os fundamentos do
método clínico, tanto de um ponto de vista teórico quanto filosófico.
Alguns fundamentos do método clínico
O primeiro elemento que se deve considerar ao estudar o
método clínico e compreender suas práticas, resultados e dados
obtidos é o foco para o qual o método foi criado, que é conhecer o
conteúdo do pensamento da criança ou, em outras palavras, como o
sujeito pensa. Isto pode parecer óbvio à primeira vista, devido ao
interesse da grande maioria dos psicólogos que trabalham com a
infância e seu desenvolvimento cognitivo. Contudo, conhecer
60
conteúdos, conceitos ou estruturas cognitivas não é o objetivo de
todos os investigadores e profissionais. Na Teoria Clássica dos Testes
(TCT), por exemplo, toda a estrutura metodológica, tanto da
construção dos testes quanto de sua aplicação e análise dos resultados,
volta-se para a resposta que o sujeito deu à pergunta, ao item, à
questão, à prova ou a outro recurso utilizado. Ou seja, o interesse
jamais recai no modo como o sujeito obteve aquela resposta, que
aspectos mobilizou, o que fez para chegar àquela resposta. A
arquitetura teórica e metodológica desta abordagem vale-se
fundamentalmente do desempenho dos sujeitos perante um
estímulo padronizado, e as variações nas respostas a estes estímulos
indicam a natureza daquilo que é alvo da investigação. Os caminhos,
os modos de raciocinar, as trajetórias cognitivas neste desempenho
não são alvo de investigação deste modelo de pesquisa.
O foco do método clínico, repousado na investigação de
conteúdos de ordem cognitiva, traz impactos diretos sua
metodologia. Para compreender a questão do foco, vale fazer uma
comparação. Em um teste psicológico clássico, uma pergunta exigirá
do sujeito uma resposta que, por sua vez, se comparada a um grupo
maior de respostas, classificadas num continuum pareadas num
constructo. no todo clínico, a resposta do sujeito, certa ou
errada, estará acompanhada de outra pergunta: por quê? Trata-se de
um convite para que o sujeito não se limite à sua resposta, mas que
exponha os elementos estruturais seu interior e formule, de alguma
forma, os conteúdos de sua mente que produziram aquela resposta.
A atenção do método no conteúdo da mente da criança
conduz automaticamente à compreensão do objetivo do método
clínico, que é a compreensão do processo que conduz o sujeito às
61
respostas que formula, os comportamentos que apresenta, suas ações
e sentimentos. Enquanto a Psicometria clássica busca uma medida,
preferencialmente numérica, de constructos psicológicos que teriam
sido mobilizados ou estaria relacionados à resposta a um formulário
padrão, toda a entrevista no todo clínico volta-se para o objetivo
central de conhecer os processos do pensamento. Assim, todas as
ações do entrevistador precisam ser pensadas e executadas de modo
a conduzir o sujeito a expressar os mecanismos, as crenças, as
concepções, as estruturas que estão subjacentes às respostas que
oferece.
O entrevistador não pode ignorar a respostas oferecidas pelos
entrevistados, pois elas são o resultado daquilo que mais interessa ao
investigador valendo-se do método clínico, o conteúdo da mente.
Contudo, este se intriga principalmente com os motivos das
respostas, e busca constantemente os traços da estrutura mental que
originou as falas e comportamentos, por meio da análise e suas
considerações à luz da teoria que subjaz a investigação.
As diferenças apontadas entre a abordagem do método
clínico e a TCT advém de uma diferença epistemológica
fundamental. Esta emerge da psicologia das diferenças individuais,
buscando e estabelecendo padrões obtidos por meio de amostras de
populações e seus comportamentos, na intenção de operar
comparações que fundamentem uma medida individual. Os
procedimentos são altamente padronizados por visarem a
estabilização de toda a estrutura investigativa que permitirá a
comparação da única parte que pode variar na entrevista, qual seja,
a resposta devidamente classificada. o método clínico busca
características gerais dos sujeitos, observadas por meio da
62
regularidade dos padrões dos conteúdos mentais conhecidos por
meio de uma entrevista clínica muio mais aberta. Os padrões não
poderão ser encontrados nas respostas em si, mas nos motivos das
respostas, e são evidências da estrutura mobilizada para oferecer as
falas ou ações durante a entrevista, que podem ser consideradas um
produto do verdadeiro objeto de investigação que se vale do método
clínico.
Ao contrário do que muitos acreditam, a investigação na
epistemologia genética não foi criada para orientar estudos de caso
ainda que possa ser utilizada para este fim, com as devidas adaptações
pois exige grande quantidade de sujeitos e muitas observações
clínicas para que as regularidades fiquem perceptíveis aos
pesquisadores. Neste ponto, a epistemologia genética compartilha
essa característica com o método dos testes.
Por outro lado, se por meio dos testes obtém-se padrões que
servem como referência para comparações, no método clínico se
pressupõe a existência de uma estrutura coerente e implícita na
mente, que pode ser acessada por meio de séries de entrevistas
clínicas abertas o suficiente para que emerjam de diferentes formas,
e fechadas o suficiente para direcionar os objetivos de cada
investigação. Trata-se de um difícil equilíbrio que pode ser obtido
por meio do treinamento, estudo e dedicação ao método.
As diferenças existentes entre o método dos testes e o método
clínico quanto à origem e objetivos não significam que o segundo
não possa servir para comparações entre os indivíduos. O método
clínico nasceu da entrevista psiquiátrica, em contextos de avaliação
em saúde mental, e pode ser usado em diferentes ocasiões e com
vários objetivos. Contudo, na epistemologia genética e, por
63
conseguinte, no fundamento do método, se entende que as
diferenças entre os indivíduos advêm de seus atos específicos de
adaptação, preservando assim um universal transindividual em
formato estrutural e que orienta comportamentos, respostas, ações,
sentimentos, etc.
Além das adaptações específicas de cada sujeito, uma das
ideias mais importantes de Piaget e um dos fundamentos de toda a
epistemologia genética desde seus primórdios é a compreensão de
que a mente infantil possui características próprias que precisam ser
estudadas e compreendidas em sua singularidade. Esta formulação
não é original de Piaget, mas coloca seu método em lugar
diferenciado em relação a outras metodologias e abordagens
psicológicas. A título de contraste, para os adeptos da psicologia do
comportamento, o desenvolvimento não ocorre por meio de fases
sucessivas, mas sim de aprendizagens comportamentais, de modo
que toda singularidade infantil não se deve à sua condição de
desenvolvimento peculiar, mas à natureza da acumulação das
aprendizagens condicionadas que adquiriu. para a
epistemologia genética e, consequentemente, no âmbito do método
clínico, a criança constrói realidades, de modo que sua aprendizagem
sobre a mesma é fruto de um processo de assimilação e acomodação,
e não de condicionamentos. Essas realidades são interiores e seguem
formas estruturantes fixas transindividuais que podem ser acessadas
por meio da investigação com o método clínico e compreendidas
com a teoria de Piaget e colaboradores.
No método clínico as respostas da criança precisam ser
interpretadas, e não somadas ou calculadas dentro de certos
parâmetros estatísticos, como ocorre na investigação da inteligência
64
dentro da TCT, por exemplo. Num teste de inteligência clássico, o
desempenho dos indivíduos nas provas apresentadas é convertido
num sistema algébrico, incorporado em cálculos estatísticos que,
somados ao desempenho em outras provas, resultarão numa medida
numérica da inteligência. no método clínico não acontece
somatório de respostas, mas uma investigação mais aberta em busca
daquilo que está por trás da produção do sujeito, objeto da pesquisa
em epistemologia genética. Os padrões obtidos por este meio são de
natureza descritiva estrutural, com diferenças que não são numéricas,
mas qualitativas, exigem uma explicação teórico-conceitual que
pode ser observada no edifício teórico da epistemologia genética.
Por fim, uma investigação conduzida com o método clínico
parecerá, aos olhos do leigo, uma conversa ou entrevista sem
qualquer parâmetro, o que é absolutamente falso. Ainda que o
método clínico possa ser utilizado com grande flexibilidade e
adaptado a outras perspectivas, seu uso na investigação se
geralmente sob a luz das proposições teóricas desenhadas por Piaget
e colaboradores sobre a estrutura e funcionamento da mente infantil.
É necessário que o investigador tenha em mente as hipóteses de
pesquisa obtidas por meio da literatura especializadanão somente
aquelas desenvolvidas por pesquisadores piagetianos e,
eventualmente, das entrevistas-piloto, para que possa testá-las
durante as interações com os sujeitos, o que resultará em entrevistas
muito diferentes, mas que guardam semelhanças suficientes para
comparações e conclusões cientificamente fundamentadas.
Na próxima seção são apresentados alguns aspectos
fundamentais sobre como desenvolver programas de investigação a
65
partir do método clínico, o que auxiliará o leitor a compreender
pesquisas que se valem deste método.
A investigação utilizando o método clínico
Hipóteses iniciais e estudo-piloto
Profissionais e pesquisadores da psicologia podem se
beneficiar bastante do método clínico, pois ele se estrutura como
uma investigação científica, com todos os elementos que lhes são
próprios. Ao contrário do que acontece com muitas metodologias de
pesquisa em psicologia, o método clínico é receptivo, aberto e
interessado no diálogo com diferentes vertentes da investigação
psicológica e também de outras áreas, replicando o espírito científico
de Piaget em sua interdisciplinaridade, tanto de formação quanto de
ação.
Para valer-se do método clínico, é necessário a formulação
de hipóteses de pesquisa. Elas podem ter a princípio um caráter mais
geral, e refinar-se conforme a investigação se desenvolve. Sua origem
pode ser igualmente diversa, desde a leitura de textos acadêmicos ou
gerais, passando pelo contato com situações e problemas observados
na prática profissional, ou até mesmo vir de um outro programa de
pesquisa.
No caso das hipóteses iniciais, a investigação pode tomar
dois caminhos, preferencialmente simultâneos. O primeiro é
utilizar-se da bibliografia desenvolvida sobre o assunto, para
conhecer pesquisas e ideias trabalhadas por outros pesquisadores,
tanto de forma totalmente teórica quanto experimental. Estas
leituras não precisam estar necessariamente fundamentadas no
66
método clínico nem na epistemologia genética. Ao contrário, a
ciência se desenvolve por meio do diálogo com diferentes
perspectivas e ideias, e isto vale também para a investigação
utilizando o método clínico. O próprio Piaget não se cansa de
mencionar investigadores de diversas áreas em seus escritos, tendo
recebido grande diversidade de intelectuais e cientistas de diferentes
áreas em seu Centro Internacional de Epistemologia Genética, em
Genebra, na Suíça.
Após a formulação das hipóteses iniciais, pode ser
interessante conduzir um primeiro estudo-piloto, que pode ser
menos sistemático. Ele servi para obter algumas respostas às
primeiras hipóteses e para testar algumas possibilidades de
abordagens a serem adotadas no estudo propriamente dito ou, se for
possível, num outro estudo-piloto. Durante esta primeira
experimentação, o pesquisador pode encontrar meios de aperfeiçoar
suas hipóteses iniciais, descartar hipóteses, formular novas e
melhorar a proposta de investigação que pretende conduzir. O
estudo-piloto pode revelar também algumas dificuldades,
permitindo aos interessados na pesquisa a busca pelas melhores
soluções para a condução da pesquisa.
Problema e hipóteses de pesquisa
Após as primeiras abordagens por meio das hipóteses iniciais
e de um estudo-piloto, chega a hora de formular o problema de
pesquisa. Pode ser interessante, mas não é obrigatório, escrevê-lo no
formato de uma pergunta, de modo que as ações durante os
experimentos e interpretações caminhem no sentido de oferecer os
67
subsídios para respondê-lo. Este problema também é importante
para os aspectos éticos da pesquisa, pois é ele que determinará quais
as informações relevantes a serem obtidas durante as entrevistas, sem
ultrapassar os limites da necessidade da investigação e respeitando a
privacidade dos entrevistados.
O problema de pesquisa precisa ser amplo o suficiente para
que seja tanto significativo quanto interessante para a prática
científica, e restrito o suficiente para ser viável, conforme os recursos
à disposição do pesquisador. Dele deverão vir as hipóteses de
pesquisa, que podem ser vistas como formas de responder ao
problema e que precisam ser retomadas durante a condução das
entrevistas.
Um problema mais bem delineado e hipóteses mais claras
permitem a retomada das leituras na bibliografia especializada em
busca de informações que deem embasamento às próprias hipóteses
e uma reflexão mais clara sobre o que está sendo investigado. Isto
será importante durante o contato com os participantes da pesquisa,
além de ser a fonte do dinamismo que caracteriza o método clínico.
Como o pesquisador tem em mente estudos conduzidos -
incluindo o próprio estudo-piloto e as leituras que realizou - bem
como o problema e as hipóteses de pesquisa, é no interesse de
confirmá-las, refutá-las ou modificá-las que a entrevista se modifica
conforme as respostas do sujeito.
Diante de uma explicação da criança, por exemplo, sobre
uma de suas afirmações, o pesquisador tem a oportunidade de
localizar naquela expressão um componente interessante para uma
hipótese e formular uma nova pergunta, não prevista inicialmente e
adaptada para aquela situação específica, que pode oferecer
68
elementos para analisar uma hipótese que tenha formulado. Assim,
a investigação está sempre se renovando e buscando uma posição
mais sólida, sempre baseada nos dados obtidos junto aos sujeitos.
Esta é outra característica importante do método clínico e do
espírito científico que o concebeu, a primazia dos dados sobre a
teoria. São os dados que orientam o pesquisador, mais do que suas
concepções teóricas, que não podem ser esquecidas, mas dispostas a
serem transformadas. Como as entrevistas são variadas e dinâmicas,
ter clareza sobre o problema e as hipóteses é um passo fundamental
para uma investigação bem-sucedida que se vale do método clínico,
pois elas serão o eixo que permeará a liberdade e a abertura ao novo,
próprio deste método.
Procedimentos
Com o problema e as hipóteses formulados de forma mais
clara, é necessário desenvolver os procedimentos a serem adotados.
É imperativo que o procedimento escolhido seja adequado ao
problema de pesquisa e às hipóteses, ou seja, as respostas e ações do
sujeito aos procedimentos precisam estar relacionados com aquilo
que se deseja investigar. A literatura piagetiana oferece vários
formatos de procedimentos dentro do método clínico, e eles podem
ser divididos em dois tipos: verbal e não-verbal. Este segundo tipo,
devido às suas especificidades, não se objeto deste trabalho. Os
procedimentos verbais podem ser de dois tipos: puramente verbal ou
verbal com suporte material.
No caso do procedimento puramente verbal, o entrevistador
se utilizará apenas de diálogos com o sujeito participante da
69
investigação. Ele pode ser feito de dois modos: a partir de uma
história contada de forma totalmente oral ao sujeito, acompanhado
de perguntas sobre aquela história; ou apenas com perguntas
previamente formuladas. Quando se utiliza de uma história, é
importante que esta seja adequada às características do sujeito,
considerando idade, nível de desenvolvimento, escolaridade, entre
outros elementos relevantes para a relação deste com o pesquisador
e a pesquisa. Uma criança muito pequena, por exemplo, pode
precisar de histórias mais curtas com um desfecho rápido, enquanto
um p-adolescente pode se interessar mais por histórias mais
completas, ainda que também precisem ser curtas para não cansar o
sujeito. Caso a investigação seja conduzida com sujeitos de diferentes
idades ou características, será necessário criar uma única história que
seja capaz de manter a atenção e interesse em todos os sujeitos.
A história precisa estar relacionada com o problema de
pesquisa e as hipóteses, além de permitir a formulação de perguntas
ao sujeito que favoreçam respostas que auxiliem na investigação. As
perguntas podem solicitar ao sujeito um posicionamento sobre a
trama e/ou desfecho da narrativa, ou servir como contexto para as
perguntas que serão apresentadas após a exposição da história.
Algumas das perguntas precisam estar relacionadas à compreensão
do sujeito sobre o que aconteceu na história, para garantir o
entendimento da narrativa. Além disso, outras perguntas
apresentadas ao sujeito podem não estar diretamente relacionadas
com a história, ainda que dela derivem indiretamente, mas sim ao
problema e/ou hipóteses da investigação, e que também auxiliarão
no entendimento do conteúdo mental.
70
Caso se opte por utilizar apenas perguntas, sem o suporte de
uma história, o pesquisador precisa formulá-las de forma que se
relacionem ao problema e às hipóteses. As perguntas precisam ser
claras e diretas, preferencialmente curtas e que permitam uma
resposta direta, sem fechar as possibilidades do sujeito nem
apresentando itens previamente formulados. Ou seja, as perguntas
precisam oferecer a oportunidade de investigar as estruturas que
subjazem as respostas dos sujeitos, sem limitá-los, mas mantendo os
propósitos da investigação. A literatura em epistemologia genética
apresenta vários exemplos deste tipo de procedimento.
Caso se opte por procedimentos com suporte material,
existem algumas possibilidades: apresentar fotografias ou desenhos,
uso de desenhos criados pelo próprio sujeito, e outros materiais que
podem servir para embasar questionamentos ou fazer demonstrações
cujos efeitos serão objeto da entrevista.
O uso de fotografias ou desenhos foi mais comum nas
primeiras etapas do método clínico, e atualmente são menos
utilizados, contudo, continuam sendo um recurso válido e
importante. Neste caso, muito do que se indicou para o uso de
histórias vale para as fotografias, incluindo cuidados com o material
e sua relação com o sujeito e as perguntas a serem apresentadas.
Pode-se interrogar a criança sobre as características ou classificações
das imagens, ou utilizá-las como geradoras de uma outra etapa de
investigação verbal. As possibilidades são bastante variadas e podem
ser encontradas tanto nas obras de Piaget e seus colaboradores
quanto na produção de outros pesquisadores valendo-se do método
clínico.
71
O método utilizando os desenhos feitos pelo próprio sujeito
mereceriam uma explicação detalhada à parte, apesar de serem
atualmente menos utilizados, e é mais adequado para crianças
menores, com dificuldades na expressão oral, ou p-adolescentes
(DELVAL, 2002).
Na literatura baseada em método clínico, é mais comum o
uso de outros materiais, geralmente para fazer demonstrações. Este
é o tipo de procedimento mais conhecido por pesquisadores,
professores, estudantes e interessados em Piaget. Nele, materiais são
apresentados ao sujeito, informa-se que determinados procedi-
mentos serão aplicados aos materiais, questiona-se sobre as hipóteses
do que acontecerá caso estes procedimentos sejam empregados,
manipula-se os materiais diante do sujeito conforme os
procedimentos anunciados e pergunta-se sobre os efeitos desta
manipulação. Um exemplo clássico e muito conhecido envolve a
conservação de quantidades, onde o experimentador apresenta
recipientes idênticos contendo quantidades idênticas de líquido e
transfere o conteúdo de um dos recipientes para outro com
características distintas, de modo que o sujeito se posiciona sobre a
conservação ou não da quantidade do líquido antes e depois da
transferência. As perguntas questionam sobre os objetos, as
possibilidades, os processos antes e depois de serem executados e as
explicações.
As demonstrações precisam estar relacionadas ao problema e
às hipóteses da pesquisa, e precisam ser capazes de mobilizar as
estruturas que estão em investigação. Ademais, é importante valer-
se de materiais e manipulações seguros, de modo a não oferecer
riscos para os sujeitos, considerando especificamente a idade. A
72
literatura científica baseada no método clínico, principalmente
aquela produzida pelo próprio Piaget e colaboradores, está cheia de
exemplos deste tipo de investigação, e existem também compilações
dos experimentos como, por exemplo, Goulart (1995) que, ainda
que sejam insuficientes, auxiliam na reflexão sobre os procedimentos
a serem adotados.
A ordem das ações, as perguntas a serem feitas, a ordem
destas perguntas, bem como os interesses da pesquisa, seus objetivos,
entre outros elementos apresentados, precisam estar claros antes
do início dos experimentos, de modo que seja possível as
comparações entre eles e para não dar a impressão de desordem para
o sujeito.
Importa frisar que, apesar de não ser obrigatório, é muito
desejável que todos os tipos de procedimentos adotados sejam
acompanhados de perguntas, mesmo aqueles envolvendo materiais
de suporte. Todos os procedimentos apresentados até agora são
essencialmente verbais, e valem-se de diferentes estratégias para
atingir o objetivo geral do método clínico: investigar o contdo do
pensamento do sujeito.
Durante a investigação com o sujeito
Todas as metodologias de pesquisa e avaliação em psicologia
apresentam suas dificuldades gerais e específicas. Para compreender
as dificuldades gerais, é preciso considerar muitas variáveis, mas,
para os presentes propósitos, pode-se destacar duas. A primeira é o
temor de ser avaliado, de modo que o sujeito esconde características
que não deseja revelar. Outra dificuldade vem do seu oposto, ou seja,
73
do desejo de ser avaliado e, de alguma forma, aprovado, de modo
que o sujeito emula características que não tem ou acredita não ter.
casos também em que o sujeito não deseja simular nem
dissimular, mas colaborar, de modo que desempenha as atividades
solicitadas da forma que imagina ser a esperada pelos pesquisadores,
com base nas crenças que possui sobre a ciência psicológica. Em
todos os casos é necessária atenção por parte do pesquisador, e neste
sentido o método clínico, por ser mais aberto, permite uma maior
flexibilidade para a compreensão da totalidade da situação
experimental, e não apenas valer-se exclusivamente dos
procedimentos.
No caso da investigação com crianças utilizando o método
clínico, a tendência é que os sujeitos percebam a situação
experimental como equivalente à atividade escolar, acreditando
estarem sob uma avaliação semelhante às provas e trabalhos escolares.
Assim, buscam agradar o experimentador, procurando as respostas
que imaginam corretas, e não aquelas em que verdadeiramente
acredita e que expressam seu conteúdo interior, na expectativa de
receberem os benefícios que poderiam advir de um bom
desempenho na escola.
Por isso é importante deixar claro para o sujeito que não
existem respostas certas ou erradas, e que ele pode falar o que quiser,
de acordo com o que pensa. O pesquisador deve ser cordial e
amigável, oferecendo um tratamento tranquilo e adequado à idade e
às outras características do sujeito e da situação. O ambiente
apropriado auxiliará na pesquisa, desde que seja limpo, arejado, com
temperatura confortável, silencioso, livre de interferências externas e
74
distrações internas, e sem carga emocional significativa para o sujeito,
como poderia ser a sala da direção da instituição, por exemplo.
É importante iniciar com perguntas que situem o sujeito no
problema. Podem ser perguntas mais genéricas, sobre o gosto ou o
interesse no assunto ou nos objetos que serão utilizados. Pode-se
também apresentar a situação que virá, perguntando se o sujeito tem
interesse em participar e se ele pode colaborar. Este pode ser um bom
momento para avisá-lo de que não existem respostas certas ou
erradas, sempre transmitindo tranquilidade e confiança para o
participante.
Como é importante ter certeza de que o sujeito entendeu as
perguntas e a proposta da entrevista, deve-se fazer interrogações
neste sentido. Na TCT, as respostas dos sujeitos não relacionadas ao
teste são atribuídas ao erro aleatório. Contudo, no método clínico,
deve-se evitar conduzir a entrevista enquanto o sujeito tem um
entendimento ainda parcial ou insuficiente dos problemas e
perguntas. Ademais, jamais se deve interromper o sujeito, deixando
ele livre para se expressar e validando seu comportamento de
explanar sobre as questões envolvidas. Deve-se, por outro lado, evitar
afirmar que o sujeito acertou ou errou qualquer questão, sempre
retomando que o importante é ele falar o que pensa e sente, e que
nenhuma resposta é certa ou errada.
Investigadores menos experientes podem se sentir tentados a
seguir integralmente os procedimentos, como se estivessem
aplicando um teste psicológico. No método clínico isto seria um erro,
pois não se pode interrogar o sujeito como num questionário, mas
sim conduzir um diálogo orientado por um grupo de questões que
permeiam a entrevista. O planejamento não precisa ser seguido à
75
risca, como etapas necessárias, naquela ordem e formato
previamente estabelecidos, pois este é um procedimento
incompatível com o método clínico. As demonstrações se utilizando
de material de suporte, além de histórias e outros recursos auxiliares
precisam ser cumpridos conforme o planejado, para permitir
comparações porém, as perguntas podem ser reformuladas, ter sua
ordem alterada ou mesmo não serem feitas, caso o sujeito, por
exemplo, responda um dos itens espontaneamente. Neste ponto, o
importante é conhecer a opinião do entrevistado sobre todos os itens
planejados, novamente para permitir as comparações entre as
entrevistas e para cumprir os objetivos da investigação.
A flexibilidade e, talvez, a imprevisibilidade na execução do
método clínico acontece na investigação dos motivos das respostas
dos sujeitos. Este é o ponto crucial do método e seu aspecto mais
aberto, pois é o momento em que as respostas mais inesperadas
podem acontecer ainda que todas as entrevistas se abram para
novos elementos. Este também é o momento-chave para a
investigação das hipóteses, quando elas devem ser testadas,
modificadas, novas possibilidades são analisadas e toda a dinâmica
do método. Pode não ser possível, na ocasião, consultar os escritos
sobre o projeto então, na prática, o pesquisador deve aliar
entendimento sobre o problema que investiga com uma certa
criatividade.
Enquanto a Psicometria, entre outras abordagens em
psicologia, coloca sua ênfase no controle da forma, com
padronizações sobre como abordar o sujeito, o que dizer a ele, quais
respostas dar a determinadas perguntas que ele venha a fazer, as
perguntas em si, o tempo de resposta, as possibilidades de respostas,
76
entre outros, no método clínico a ênfase do controle recai na
compreensão que o sujeito tem dos problemas e perguntas
apresentados. Como as percepções podem ser muito distintas, é
altamente provável que as entrevistas fiquem bastante diferentes
umas das outras.
Contudo, isso não quer dizer ausência de organização nem
de padronização. Cada entrevista, cada pergunta e cada resposta é
uma oportunidade de conhecer o conteúdo da mente e, assim,
formular uma compreensão sobre a mesma. Uma padronização mais
estrita, como é do caso da TCT, não permitiria a flexibilidade de
diálogo suficiente e necessária para que os pesquisadores orientados
pelo método clínico atingissem seus objetivos.
Compreendendo a produção da entrevista
Em A Representação do Mundo na Criança (PIAGET,
2005/1926), Piaget afirma que as falas das crianças se referem a
diferentes aspectos de seu universo mental, de modo que nem tudo
o que é verbalizado ou feito pelo entrevistado é interessante para a
investigação. O pesquisador precisa saber identificar as falas e
comportamentos relevantes para seu problema de estudo e, ainda
que deva registrar tudo, deve analisar aquilo que pode auxiliá-lo
na pesquisa. Piaget (2005/1926) classifica as falas infantis em cinco
classes de relevância decrescente: respostas espontâneas,
desencadeadas, sugeridas, fabuladas e não-importistas. Apenas as
duas primeiras são úteis para a análise dos dados.
As respostas espontâneas são as de maior interesse para
investigação em método clínico, pois são formulações oriundas dos
77
modelos e representações da realidade que o sujeito possui e
apresenta sem ser especificamente demandado, ainda que
indiretamente tenha sido induzido pela situação de entrevista clínica.
Elas são fruto de uma reflexão acerca da realidade que o sujeito
mesmo, por seus interesses e pensamentos, chegou a desenvolver, e
indicam elementos da estrutura interna da criança, sem os riscos de
uma pergunta direta criada a partir das hipóteses da pesquisa ou dos
problemas e demonstrações de que o entrevistador se vale.
As respostas desencadeadas são formulações provocadas pelas
perguntas ou problemas propostos pelo pesquisador, e que advém
das concepções das crianças sobre o mundo, refletindo seu universo
interior. São também de grande valor para a investigação, com a
diferença de que sua expressão foi desencadeada pela situação da
entrevista clínica, ou seja, a criança apenas não havia pensado antes
no problema ou o fizera ainda de modo muito superficial, o que
pode ter acontecido devido a uma grande variedade de fatores, como
meio social, demandas escolares e familiares, entre outros. Este tipo
de resposta é a mais comum no curso de uma investigação valendo-
se do método clínico, pois se colocam problemas inéditos para o
sujeito, que ele não havia tido a oportunidade de refletir sobre eles,
ainda que tenha uma estrutura interna que permita a oferta de uma
resposta. As respostas espontâneas e desencadeadas são as de interesse
para a investigação com entrevista clínica.
No caso das respostas sugeridas, elas são resultado da própria
entrevista e das proposições do entrevistador. Como Piaget
mostrou diversas vezes, as palavras podem ter significados bastante
distintos para as crianças, além de elas não conhecerem muitas
palavras. Assim, é necessário que o entrevistador escolha palavras
78
familiares para o entrevistado, procurando usos empregados, pois
a inserção de um novo vocábulo pode sugerir à criança que o novo
conceito é o caminho para uma resposta correta, insistindo em seu
uso mesmo sem conhecê-la e, ainda pior, sem que a mesma reflita
seu universo interior. A este tipo de resposta, Piaget (2005/1926)
denominou sugestão pela palavra.
Pode ocorrer também a sugestão por perseveração, que é
quando o sujeito se utiliza da mesma resposta ou conceito para todas
as perguntas feitas durante a entrevista. Bem mais comum em
crianças pequenas, pode acontecer por vários motivos, como uma
validação involuntária por parte do entrevistador a alguma resposta,
ou mesmo por desinteresse da criança. É necessário, neste caso,
tentar contornar a insistência na mesma resposta, inclusive
inquirindo sobre mais detalhes do conceito repetidamente
empregado.
Na fabulação, a criança inventa respostas por brincadeira ou
porque sente prazer em inventar, trazendo falas que pouco ou nada
se relacionam ao problema ou às perguntas da investigação. São
respostas frequentemente deslocadas das entrevistas, e podem revelar
desinteresse ou cansaço por parte do sujeito. Uma forma possível de
contornar isso é recepcionando oralmente a fala, mas insistindo no
problema, e pode ser o caso de encerrar a entrevista. O mesmo vale
para o não-importismo, quando a criança descola totalmente seu
interesse das atividades da entrevista, revelando aborrecimento com
a situação. Além da capacidade de formular e reformular hipóteses
durante a entrevista, visando obter dados para a pesquisa, outra
habilidade importante do entrevistador é saber lidar com as situações
adversas que se oferecem no curso da investigação, o que passa por
79
saber reconhecer as falas que podem ser úteis e retomar o curso da
atividade no melhor interesse dos envolvidos.
Registro e transcrição
Com a multiplicação da qualidade e disponibilidade dos
dispositivos eletrônicos, a gravação integral, incluindo áudio e vídeo
de todas as entrevistas, tornou-se tecnicamente muito mais fácil e
barata em comparação ao passado recente. Ademais, a onipresença
de câmeras nos dispositivos eletrônicos, principalmente os móveis,
tornou a percepção social e coletiva do ato de gravar muito mais
aceita e parte do cotidiano, de modo que ter diante de si uma câmera
não tem mais as cargas simbólicas de outrora.
Essas transformações sociais em relação à capacidade e
aceitação da captação em áudio e deo das ações humanas tornou
mais fácil e aceitável a perspectiva da gravação, em um nível de
qualidade inexistente algumas cadas atrás, com grande alcance
social. Contudo, a multiplicação da capacidade técnica e facilidade
na captação de imagem e som trouxe novos desafios éticos para a
investigação em psicologia. Em primeiro lugar, os participantes das
pesquisas precisam saber que estão sendo gravados, que as imagens
e som serão consultados posteriormente e que permanecerão
armazenados. Ao mesmo tempo, os responsáveis pela gravação
precisam ter o cuidado em manter nos dispositivos apenas aquilo
que foi acordado com o sujeito e que se útil e relevante para os
problemas e objetivos da pesquisa, de modo que todo o resto seja
descartado de forma irrecuperável. O acesso ao material também
80
precisa ficar restrito aos participantes, o que tem reflexos na forma
em que tudo fica armazenado.
As entrevistas clínicas, mesmo gravadas, precisam ser
integralmente transcritas, palavra a palavra, incluindo comporta-
mentos dos sujeitos envolvidos, e a possibilidade de manter toda a
investigação gravada em alta qualidade facilitou imensamente esta
tarefa. Delval (2002) sugere que as transcrições sejam feitas em duas
colunas, acompanhadas de um cabeçalho. Este precisa ter algumas
informações essenciais, tais como nome do entrevistador, quem fez
a transcrição, data da entrevista, informações sobre o meio de
armazenamento, nome do sujeito (preferencialmente suas iniciais),
idade, data de nascimento, escolaridade e outras informações que
forem pertinentes para a pesquisa.
A sugestão de Delval (2002) inclui inserir as falas e ações da
criança à direita e as do entrevistador à esquerda, de forma ordenada
para que seja possível o encadeamento do diálogo. Perguntas e
respostas podem ser diferenciadas usando sinais gráficos, como o
itálico. A transcrição deve incluir os comportamentos, como
hesitações, as ações nos materiais de suporte, tempos de fala
especialmente demorados, entre outros que forem pertinentes para
a investigação, e que devem receber uma marcação visual
diferenciada, como colchetes.
A transcrição pode e deve ser retomada na análise dos dados,
que precisam destacar trechos relevantes e apresentá-los tais como
foram transcritos, no melhor interesse de fundamentar todas as
interpretações obtidas desde as informações coletadas. A transcrição
também permite a recuperação dos dados para consulta posterior,
facilitando a organização da pesquisa.
81
Análise dos dados
Todos os tipos de levantamento de informações necessitam
de uma análise dos dados coletados para terem alguma utilidade ou
aplicabilidade, e isto não é diferente para as investigações com o
método clínico. Infelizmente, não é possível descrever com grande
grau de detalhes como fazer a análise, que são a parte mais difícil de
toda pesquisa e para a qual não existem procedimentos padronizados
a serem adotados. Contudo, podem ser feitas algumas considerações
gerais sobre a questão.
Em primeiro lugar, é necessário considerar que, quanto mais
aberto o problema, quanto mais hipóteses foram levantadas, mais
dados foram obtidos, então é mais difícil fazer a análise. Vários dos
problemas que permaneceram com soluções insuficientes ou
inadequadas até este momento da pesquisa terão consequências
diretas nas possibilidades de compreender aquilo que foi levantado.
Assim, hipóteses mal formuladas, perguntas pouco relacionadas com
o problema, erros na condução da entrevista, falhas na organização
do material, entre outros, trarão limitações e dificuldades para esta
etapa.
Outra dificuldade a ser superada é a inexatidão dos dados,
que não podem ser convertidos facilmenteou talvez de nenhuma
forma em números, que os tornariam aptos a serem analisados a
partir de métodos oriundos da estatística. Resta a capacidade
analítica do pesquisador, e mesmo a experiência anterior pode ser de
pouca ajuda, dependendo do caso.
Reexaminar as hipóteses pode ser interessante, pois elas
foram parte da origem de todos os procedimentos adotados.
82
Contudo, mesmo as hipóteses bem construídas são resultado de um
entendimento anterior do problema, sem os conteúdos coletados das
entrevistas, de modo que se pode ter mobilizado estruturas e
conteúdos diferentes daqueles esperados, um risco que atravessa
todas as pesquisas.
O pesquisador deve fazer uma leitura atenta de todas as
transcrições, tendo em mente o problema, as hipóteses e a literatura
que conhece, e anotar as primeiras impressões e categorias de
análise que emergirem desta etapa. Desta primeira aproximação
pode-se obter considerações totalmente descartáveis e outras
bastante úteis, então não se deve ter medo de arriscar.
Outro processo que pode auxiliar é a busca de padrões.
Como as perguntas vem de um núcleo comum, as comparações
entre as respostas dos sujeitos podem revelar regularidades que tem
o potencial de indicar as estruturas e representações que subjazem as
respostas. Não se pode esquecer das pesquisas que foram lidas antes
do início da investigação, pois elas podem trazer ideias úteis, um
procedimento que Piaget adotou inúmeras vezes e que revelam a
necessidade de dialogar com outros pesquisadores, de qualquer linha
teórica ou orientação epistemológica. Categorias de análise podem
vir de várias áreas do conhecimento, então é necessário abertura e
atenção.
A falta de uma orientação mais específica significa que o
pesquisador vai precisar de criatividade para articular diferentes
ideias e conceitos com aquilo que observa nas falas das crianças.
Piaget fez isso muitas vezes, então a leitura de seus textos pode servir
de inspiração na adoção do melhor caminho para interpretar os
dados.
83
Onde aprender mais sobre o método clínico?
A exposição oferecida neste texto sobre o método clínico
certamente é insuficiente para apreendê-lo em sua extensão. Seriam
necessários, além de muitas leituras, dois anos de treinamento com
pesquisadores experientes para atingir o domínio necessário. O
presente material funciona como uma introdução panorâmica, e
muitos elementos importantes foram excluídos. Se o leitor sentir a
necessidade de se aprofundar, seguem algumas sugestões de leituras
em língua portuguesa.
O único texto de Piaget especificamente sobre o método
clínico está em A Representação do Mundo na Criança, de 1926
(PIAGET, 2005/1926), o que torna o material de leitura obrigatória.
Um manual bastante completo, com todas as instruções necessárias
e uma grande quantidade de exemplos práticos sobre todas as etapas
da investigação é de Delval (2002), Introdução à Prática do Método
Clínico, uma leitura obrigatória para quem deseja conhecer o
método clínico de forma mais completa.
Outro manual, mais curto, mas também bastante rico e
interessante, é o de Carraher (1989), sob o título de O Método
Clínico, mais voltado para a investigação e com diálogos
comparativos entre o método de Piaget e outras metodologias de
investigação em psicologia. Para além dos manuais, são muitas as
fontes de pesquisas realizadas utilizando-se do método clínico, em
vários idiomas. Em português tem-se teses, dissertações, artigos,
livros, coletâneas, entre outros. Para manter-se atualizado das
investigações mais recentes, recomenda-se acompanhar as edições da
revista Schème Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia
84
Genéticas –, que é totalmente eletrônica, gratuita e publicada pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
campus de Marília.
A principal forma de conhecer melhor o método clínico e a
epistemologia genética é ler os livros de Piaget e seus colaboradores,
que trazem inúmeros exemplos de formatos e aplicações do método
clínico. Uma obra que organiza rios dos experimentos piagetianos
em um único volume e que pode servir como um catálogo é o livro
Piaget: experiências básicas para a utilização do professor, de Goulart
(1995), que pode ser uma interessante fonte permanente de consulta.
Considerações finais
O método clínico é uma forma de investigação científica em
psicologia muito rica e frutífera, que foi utilizado com sucesso tanto
em pesquisas básicas sobre o funcionamento da mente infantil
quanto em outros tipos de investigação, em diferentes áreas. Ele
pode ser usado para entender conceitos como a noção de número na
criança, e também auxiliar a entender, por exemplo, o entendimento
da criança sobre aspectos sociais e econômicos complexos. Na
educação, sua ampla e variada aplicação auxiliou educadores e
gestores a desenvolverem formas de intervenção educacionais
melhores, que considerassem as representações, as particularidades e
as estruturas da mente infantil. Esta aplicabilidade se deve à
capacidade do método em oferecer dados que dificilmente poderiam
ser obtidos por outros meios.
Sua riqueza resulta da sua forma de controle, que renuncia
aos procedimentos bastante rígidos e padronizados próprios da
85
Psicometria para permitir um diálogo mais aberto, que uma alta
dose de protagonismo ao sujeito. Este pode se colocar de maneira
mais livre, valorizando sua capacidade expressiva, sua singularidade
e criatividade. O entrevistado não está limitado às possibilidades
dadas pelo próprio teste ou entrevistador, abrindo uma margem de
conhecimentos que pode ser insuspeita para os profissionais e
pesquisadores.
Por fim, o método crítico foi criticado por sua proposta
de apresentar às crianças situações e problemas que jamais pensariam
sozinhas ou que dificilmente se deparariam. Contudo, isso pode ser
visto também como uma de suas qualidades, pois ensina ao sujeito e
ao entrevistador o processo da introspecção, ou seja, de olhar para
dentro de si, bem como formas de expressão dessa interioridade.
Colocar-se diante de novos problemas também é um processo de
aprendizagem rica e interessante, convertendo a entrevista em mais
do que um momento de coleta de dados, mas também de
desenvolvimento.
Referências
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O JOGO SIMLICO NA ELABORAÇÃO
DO LUTO INFANTIL
Gabriela Silva DISNER
1
Luciana Ramos Rodrigues de CARVALHO
2
Marcela Cristina MORAES
3
Introdução
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL,
2017), que visa estabelecer conhecimentos, competências e
habilidades desenvolvidas por todos/as os/as estudantes durante o
Ensino Básico, resguardando as especificidades regionais, estabelece
competências gerais e específicas para as diferentes áreas de
conhecimento e respectivos componentes curriculares.
Não é recente a ideia de se trabalhar as habilidades
emocionais no ambiente escolar, no entanto, por ter caráter
normativo, a BNCC traz à tona a necessidade de pensar e formular
ações educativas cujas atenções sejam voltadas para essas
1
Mestranda em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: gabriela.disner@unesp.br
2
Doutoranda em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras (FCL),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Assis, São Paulo, Brasil. E-mail: lrr.carvalho@unesp.br
3
Mestranda em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: marcela.cristina@unesp.br
92
competências. O documento basilar da Educação entende por
Competências Socioemocionais o conjunto de habilidades e
procedimentos necessários para que o indivíduo desenvolva
autoconhecimentos, capacidades de mediar conflitos e solucionar
problemas cotidianos.
Elas atravessam a BNCC como um todo:
[...] conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e
emocional, compreendendo-se na diversidade humana e
reconhecendo suas emoções e as dos outros, com
autocrítica e capacidade para lidar com elas; agir pessoal
e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexi-
bilidade, resiliência e determinação, tomando decisões
com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos,
sustentáveis e solidários (BRASIL, 2018, p. 10).
Entre os temas que solicitam tais competências, a morte e
luto estão entre os mais complexos e carregados de angústia e tabu.
Devido às experiências de dor e perda que costumam estar associadas
com as vivências de pessoas que passam por esse tipo de experiência,
essa temática muitas vezes pode passar despercebida, ou até mesmo
ser evitada e ignorada em cotidianos escolares.
Nesta conjuntura, insere-se como objetivo deste estudo,
apresentar as possibilidades de compensar e/ou liquidar situações,
sentimentos e emoções advindas da experiência com a morte e com
o luto de maneira espontânea por meio do jogo simbólico. Para
tanto, apresentaremos um relato de caso abordando uma situação de
importante perda afetiva vivenciada por uma criança de 5 anos de
93
idade no contexto da Educação Infantil, e como a mesma reelaborou
e expressou seus sentimentos por meio do jogo simbólico.
A elaboração do luto pela criança
O luto por morte é uma vivência profunda e dolorida de se
confrontar, e apesar da existirem estudos sobre essa temática, ainda
se trata de um tabu, muitas vezes evitado e indesejado por sua
associação com a dor.
Para Torres (1999), o luto da criança começa com uma
reação de choque inicial, seguida de desespero até chegar em uma
recuperação e reconstituição. Nesse percurso, ocorrem sentimentos
de raiva e tristeza, podendo acompanhar manifestações de choro,
hostilidade e depressão.
Kovacs (2003) traz estudos e reflexões acerca da importância
do estudo da morte e do luto na área da educação, porém, constata
que o tema ainda é visto com resistência por profissionais da área.
Em seus trabalhos, apresenta o quanto é necessário compreender esse
processo para melhor acolher e apoiar a todos que passam por essa
vivência dolorosa, referenciando Wilma Torres como uma
pesquisadora importante que foi pioneira em pesquisas brasileiras
sobre crianças diante da morte, provocando mudanças no olhar para
essa questão (KOVACS, 2002).
Torres (1979) foi pioneira sobre o estudo de luto de crianças
no Brasil. Destacando-se como única pesquisadora desse tema com
crianças no país na cada de 70, a autora foi influenciada pelos
estudos de Jean Piaget (1896-1980).
Em seu estudo, Torres (1979) utilizou de instrumentos para
avaliar o conceito de morte, o qual denominou Instrumento de
94
sondagem do conceito de Morte. Focou no conceito de morte biológica,
avaliando três dimensões: extensão, significado e duração. Nesse
mesmo estudo, aplicou atividades de provas operatórias propostas
em estudos de Jean Piaget.
Ao realizar a análise das respostas dos sujeitos, após a
aplicação do instrumento de sondagem, Torres (1979) apontou a
relação do período de desenvolvimento cognitivo em que o sujeito
se encontrava e a evolução do conceito de morte, definindo três
níveis no desenvolvimento do conceito. Concluiu em sua pesquisa
uma relação entre o desenvolvimento cognitivo e uma evolução do
conceito de morte.
No nível 1, ainda não se estabelece de maneira clara e aberta
a oposição entre animados e inanimados, mesmo quando
identificam os seres que morrem e os que não morrem, ainda não
alcançando um grau de compreensão que permita reconhecer a
existência de uma categoria de seres inorgânicos, que não morrem,
por não possuírem vida. Também é característica deste nível, a
incapacidade das crianças em separar a morte da vida, isto é, as
mesmas admitem vida na morte, não compreendendo como um
fenômeno definitivo e irreversível, a autora atribui essa característica
a crianças que estão no estádio pré-operacional (TORRES, 1979).
No nível 2, as crianças apresentam progresso na capacidade
para distinguir seres animados de inanimados, mas ainda encontram
dificuldades em dar explicações lógico-categoriais de causalidade.
Também passam a realizar oposição entre vida e morte, assim como
não relacionam a vida com aspectos de consciência da pessoa morta;
definem a situação a partir de aspectos perceptivos, como a
imobilidade do morto. Entretanto, ainda não explicações
95
biologicamente mais complexas. A morte, nesse nível, passa a ser
entendida como condição definitiva e permanente, esse nível se
relaciona com características dos sujeitos que se encontram no
estádio das operações concretas.
No nível 3, os sujeitos passam a compreender de forma clara
e ampla a distinção entre animados e inanimados, reconhecendo a
morte como fenômeno que atinge a todos os seres animados.
Explicações biologicamente essenciais passam a ser consideradas e
ocorre o entendimento da morte como processo natural e próprio
da etapa final da vida, compreendido como a cessação da vida
corporal. As explicações dadas são amplas, envolvem generalizações
e foco na paralisação de órgãos essenciais. No entanto, um alto vel
de abstração não esteve presente nem mesmo nessa etapa. Este tipo
de conceituação, para a autora, é característico das operações
formais.
Sengik e Ramos (2015), após realizarem um estudo onde
utilizam da literatura infantil para acolherem o tema na escola,
apontam para a falta de comparecimento do tema morte no cenário
escolar quando se trata da infância, devido à dificuldade e
insegurança dos adultos em abordarem e falarem sobre o assunto.
Apontam também que silenciar as crianças sobre o que pensam e
sentem em relação à morte, acreditando que dessa maneira vão
minimizar a dor delas, é um equívoco (SENGIK; RAMOS, 2015).
A escola deve ser um espaço que promova interação e
permita que as crianças falem do que sentem a respeito das leituras
que fazem, inclusive sobre temáticas consideradas difíceis, como
nesse caso (SENGIK; RAMOS, 2015).
96
Cuidado, reflexão e competência são importantes para que
não se crie uma barreira defensiva, e para isso, é importante abertura
pessoal, sensibilidade e preparo do educador para que o acolhimento
seja de fato efetivo (KOVACS, 2012).
O olhar para a morte pode ser diferente conforme a cultura,
nesse sentido pode ser abordada como um tema de conhecimento
social à luz da epistemologia genética. Para avaliação das realidades
sociais, Delval (2002) a partir das pesquisas que fez, observou a
existência de três grandes formas de se explicar o mundo social, e três
níveis são levados em consideração no momento de análise.
Resumidamente, no nível I, as explicações são baseadas nos aspectos
mais visíveis. No nível II, os conflitos são melhor compreendidos,
embora ainda ocorra dificuldade em considerar explicações distintas.
No vel III, os aspectos não visíveis também passam a ser
considerados na esfera social e possibilidades distintas passam a ser
consideradas.
Delval (2008), ao estudar concepções sobre a morte em
crianças, focou na concepção de divindade, na ideia de existência de
uma vida após a morte, e no que ocorre após a morte. Para tanto,
aplicou em crianças uma entrevista focada em três pontos
fundamentais: o que é a morte e o que acontece quando alguém
morre? O que é alma? O que acontece com animais e plantas quando
morrem? Segundo a análise do autor, foi possível observar a
existência de 3 grandes níveis de compreensão sobre as questões
pesquisadas.
No nível 1, todos os sujeitos ouviram falar da morte, os
mais novos não expressam de forma muito clara sobre o que é, ou o
que acontece a partir da morte, apesar de saberem que existe. Na
97
maioria dos casos, são repetidas algumas ideias que foram
transmitidas a eles, como partes de conversas que foram ouvidas, mas
não compreendidas em sua totalidade. A morte costuma ser descrita
como algo muito distante, exceto quando ocorreu no meio
familiar. Também são relatados sentimentos relacionados com a
tristeza dos que ficam. No entanto, não descrevem o fenômeno de
forma ampla, pois não são capazes de falar a respeito da morte em
todas as dimensões, além de não compreenderem a natureza
irreversível e as repercussões. Em relação ao que ocorre após a morte,
no geral costumam responder sobre ida ao céu, não compreendem
muito bem o que é alma, falam sobre céu e inferno e a importância
de se comportarem bem, além de trazerem a figura de Deus mais
associada à bondade do que à punição e vingança. Em relação a
morte de plantas e animais, algumas respostas falam sobre a
existência ou inexistência de alma. Em suma, não descrições
complexas, nem conceitos bem definidos, os relatos costumam ser
sucintos (DELVAL, 2008).
No nível 2, as crianças permanecem com a ideia de céu e
inferno após a morte, porém, é possível notar algumas mudanças
no sentido de relatos mais claros relacionados a alma, aparece a ideia
de separação de alma e o corpo e crenças sobre o corpo ficar na terra
e a alma ir para o u; os sujeitos compreendem a alma com o
princípio vital. Essa característica de falar sobre a alma ir para o céu
se estende para explicações acerca da morte de animais e plantas.
Aparecem relatos de u para os animais, enquanto a maioria não
aponta essa possibilidade de céu para as plantas. Contudo, as
opiniões acerca desse aspecto aparecem bem divididas entre existir
ou não a possibilidade de plantas e animais irem para o céu.
98
Aparecem ainda relatos sobre céu e inferno e alguns sujeitos
duvidam da existência do inferno, surgem também dúvidas sobre a
existência de uma vida após a morte (DELVAL, 2008).
No nível 3, as explicações dos sujeitos são bem mais claras e
explícitas, de forma que passam a refletir sobre o que foram
ensinados, enfrentando contradições e surgindo muitas dúvidas que,
de início, não são capazes de responder, mas que se manifestam no
decorrer da entrevista. os que repetem o que foi transmitido a
eles, mas de forma mais articulada que nos níveis anteriores.
O autor separa aqui em dois grupos, o dos conformistas
(apresentam dúvidas, mas inclinam suas respostas na direção do que
foi transmitido a eles) e os críticos (que sustentam suas dúvidas ainda
que não sejam capazes de resolvê-las). Ocorrem maiores
discrepâncias em relação a existência do inferno, questão essa que
havia sido notada no vel anterior. Aqui o inferno perde o caráter
como um lugar físico, aparece mais como um lugar impreciso,
imaterial, as almas podem vagar em qualquer lugar.
Em relação a morte de animais, sugerem que vão para um
céu específico, sugerem algum tipo de pós vida, mas não são muito
claros. Também resistência na ideia de que a morte possa resultar
em um fim preciso, em um desaparecimento absoluto, eles tentam
se apegar a ideias de continuidade da existência, mas não sabem
descrever precisamente como pode ser, e apesar das explicações
religiosas transmitidas, alguns sujeitos passam a questionar a
possibilidade de uma finitude absoluta (DELVAL, 2008).
99
O jogo simbólico e a representação da morte
Em seus amplos estudos sobre o desenvolvimento do
pensamento infantil, Piaget (1964) o categorizou em estádios, cuja
sucessão e ordem necessárias conduzem a formas cada vez mais
sofisticadas de equilibrações das estruturas mentais. São essas
estruturas, suas funções e mecanismos, que caracterizam os tipos de
pensamento que a criança desenvolve.
Assim como o pensamento infantil, Piaget (1978) classificou
os jogos infantis norteando-se pelo estruturalismo, em jogos de
exercício, simbólico e de regras, e ainda os jogos de construção como
intermediários.
De modo geral, os jogos de exercícios são motivados pelo
prazer e caracterizados pela repetição, seja de movimentos ou
palavras, e são próprios do estádio sensório-motor quando o
pensamento é de ordem prática. Ao final desta etapa, com o
desenvolvimento da capacidade de representação, o jogo simbólico
torna-se possível e marca o estádio pré-operatório, cujo tipo de
pensamento é o intuitivo ou egocêntrico. Os jogos de regras advêm
da maior socialização e adaptação à realidade, e esse período culmina
no pensamento operacional.
De acordo com o autor (PIAGET, 1964), dos dois aos sete
anos de idade o pensamento corrente infantil é o intuitivo ou
egocêntrico, a forma de pensar mais adaptada ao real que a criança
conhece. E é no bojo desse pensamento que encontramos nossa
temática de estudo, os jogos simbólicos.
O pensamento intuitivo ou p-lógico se desdobra em
intuição primária, caracterizado pelo pensamento pouco móvel e
100
flexível, e intuição articulada, quando existe uma antecipação das
consequências da ação, mas o pensamento ainda permanece
irreversível.
Este tipo de pensamento não torna o faz de conta um jogo
menos complexo para a criança. A capacidade de evocar um símbolo,
ocorre mediante um longo processo de desenvolvimento iniciado no
estádio sensório-motor. O jogo simbólico é possibilitado, entre
outros, mediante o desenvolvimento da capacidade de atribuir
intencionalidade aos atos, da coordenação de esquemas, da
combinação mental e da imitação interna ou diferida.
Reiterando, o jogo simbólico se constitui com a capacidade
de evocação representativa de um objeto ou acontecimento ausente
com a diferenciação entre significados e significantes.
A imitação, tem papel importante neste processo pelos
mecanismos que engendra, mas, enquanto a imitação se funda como
um tipo de hiperadaptação, o jogo evolui “por relaxamento do
esforço adaptativo e por manutenção ou exercício de atividades pelo
prazer único de domi-las e delas extrair como que um sentimento
de eficácia ou de poder” (PIAGET, 1978 p. 118).
Ou seja, o jogo simbólico orienta-se no sentido da
assimilação, originando o jogo da imaginação, no qual não regras
nem limitações, a criança apenas busca a satisfação individual. Assim,
a criança tem a possibilidade de reelaborar situações vivenciadas,
tentar liquidar conflitos cotidianos, assumir diferentes papéis sociais
experimentando de maneira livre e sem sanções o que deseja.
Para melhor compreensão do jogo simbólico, Piaget (1978)
os categorizou em fases e tipos, a saber:
101
Fase 1: Projeção dos esquemas simbólicos nos objetos
novos: dos dois aos quatros anos de idade, quando
dissociação completa entre simbolizante e simbolizado, e é
classificada por tipos: I A: projeção de esquemas simbólicos
nos novos objetos; I B: projeção de esquemas de imitação em
novos objetos; II A: assimilação simples de um objeto a
outro; II B: assimilação do corpo do sujeito ou de outrem ou
a quaisquer objetos; III A: combinações simples, quando
construção de cenas inteiras; III B: combinações
compensatórias; III C: combinações liquidantes; III D:
combinações simbólicas antecipatórias.
Fase 2. Declínio do simbolismo: dos quatro aos sete anos,
quando o jogo simbólico começa a declinar, se aproximando
de representação imitativa da realidade.
Fase 3. Transformação do simbolismo: dos sete/oito anos à
onze/doze anos, quando o declínio evidente do
simbolismo em proveito dos jogos de regras e das
construções simbólicas.
Mediante tal análise, encontramos nosso interesse de estudo
na Fase 1, tipos III B e III C, que são caracterizadas pelas
combinações simbólicas, nas quais a criança brinca, fazendo
combinações no seio da própria brincadeira, buscando compensar
sentimentos como o medo, e liquidar conflitos, como ao lidar como
as perdas afetivas.
As combinações do tipo III B, as “combinações
compensatórias” são caracterizadas por reconstituições com transpo-
102
sições compensatórias, nas quais o real é mais a corrigir do que
reproduzir.
Ilustrando, Piaget (1978) relata que J., aos 4;7 de idade, ao
sentir ciúmes do pai, diante da impossibilidade de repreendê-lo,
passa a criticar o pai de Merècage, sua companheira simbólica, ligada
a tudo que é divertido ou penoso, dizendo: ‘Merècage tem um papai
muito ruim’, que ‘a repreende quando ela brinca’, que ‘a mãe de
Merècage escolheu mal’ etc.” (PIAGET, 1971, p. 171).
Assim, J. compensa sua frustração quanto a não se sentir à
vontade para criticar o pai, fazendo-a de outra maneira. Deste modo,
por meio do símbolo dico e da personagem fictícia, a criança cria
oportunidades de externar e reelaborar seus conflitos, permitindo
também que o adulto os identifique, dentre outras técnicas, por
meio do ludodiagnóstico.
As combinações do tipo III C, “combinações liquidantes”
consistem em reconstituições puras, que ocorrem quando a criança
se depara com situações difíceis, e pode compensá-las, ou aceitá-las.
No processo de aceitação, a crianças revivem tais situações
“mediante uma transposição simbólica. Desligada, então, do que o
seu contexto podia comportar de irritante, a situação é
progressivamente assimilada por incorporação a outras condutas”
(PIAGET, 1978, p. 172).
Assim, Piaget (1978) descreve a curiosa cena, na qual J., aos
4;6 de idade, ao interagir com o pai, tem acidentalmente as mãos
atingidas por um ancinho. O pai se explica e pede desculpas, mas J.
continua furiosa, e, depois, diz: “Tú és Jaqueline e eu sou o papai”,
e reproduz toda a cena, invertendo os papéis (PIAGET, 1971, p.
173).
103
Mediante a dificuldade de resolver o conflito e aceitar as
desculpas, a fim de compreender a situação, Jaqueline a recria com
papeis invertidos, e -se por satisfeita. A criança permite-se reviver
o ocorrido através do faz de conta, e, sem as pressões e regras sociais,
pode experimentar os sentimentos; variar os pontos de vista na
medida que seu egocentrismo característico permite reorganizar seus
pensamentos e, enfim, liquidar o problema inicial.
Deste modo, o jogo simbólico ou faz de conta se constituem
como um meio um meio aceitável para que as crianças pequenas
possam lidar e interagir com seus conflitos, e temas delicados como
a morte, como explicitado, de acordo com seu nível de
desenvolvimento e de compreensão da realidade.
Durante o jogo simbólico ou brincadeira de faz de conta,
livres de qualquer pressão social, regulações e sanções, as crianças
sentem-se seguras para experimentar, revivenciar e liquidar situações
emocionais desequilibrantes e expressar seus sentimentos e
expectativas.
A exemplo disso, Piaget (1964) descreve a situação na qual
J., aos 3;11 de idade, impressionada por ter visto um pato morto e
depenado, no dia seguinte, fica deitada imóvel com os braços
estendidos e as pernas dobradas imóvel no sofá do escritório do pai.
Questionada se passa bem, responde que ela é o próprio pato morto
visto no dia anterior (PIAGET, 1978 p. 172, obs. 86)
Em nossa prática pedagógica, observamos que a temática é
foco de curiosidade e interesse infantil, o que deriva em relatos acerca
da morte de animais de estimação e perdas familiares. Presenciamos
até mesmo enterros de pequenos bichinhos de jardim em meio as
inúmeras brincadeiras que ocorrem no parquinho da escola.
104
Tivemos a oportunidade de observar um caso delicado de
desenvolvimento do jogo simbólico com combinação liquidante.
Em 2018, M., aos 5 anos de idade, perdeu o pai de forma abrupta,
e nos meses seguintes, durante o horário de recreação, deitava-se ela
mesma dizendo estar morta, solicitando que os colegas a
acompanhasse, velando-a, e oferecessem a ela folhas e flores como
homenagem.
Nestes momentos, a criança demonstrava tranquilidade
durante a encenação, divertindo-se ao colocar a língua para fora e ao
cruzar as mãos sobre o abdome, permanecendo imóvel nessa posição.
Repentinamente, tal como começou, a brincadeira se desfazia e
seguia-se alegremente para outra atividade.
O caso descrito, é explicado por Affonso (2012): “o faz de
conta permite não a representação de uma realidade angustiante
(FREUD, 1920) como também a sua elaboração ou mesmo o
confronto da realidade interna com a vivenciada (AFFONSO,
2012, p. 73).
O ludodiagnóstico tempos utiliza o contexto de
brincadeiras a fim de auxiliar as crianças na expressão e compreensão
dos sentimentos, considerando, que, “o brinquedo é a linguagem da
criança” (AFFONSO, 2012, p. 82), ao brincar, a criança tem a
possibilidade de demonstrar e expressar de maneira lúdica, suas
ideias, sentimentos e percepções. Deste modo, apresenta sua
compreensão da realidade, assimilando-a e/ou transformando-a sem
a imposição de regras e/ou coerções.
Piaget (1978) exemplifica tal relação ao descrever a
brincadeira maternal com bonecas:
105
Com efeito, na maioria dos casos, a boneca serve apenas
de ocasião para a criança reviver simbolicamente a sua
própria existência, de uma parte para melhor assimilar os
seus diversos aspectos e, de outra parte, para liquidar os
conflitos cotidianos e realizar o conjunto de desejos que
ficaram por saciar. Assim, podemos estar certos de que
todos os eventos, alegres ou aborrecidos, que ocorrem na
vida da criança repercurtir-se-ão nas suas bonecas
(PIAGET, 1978 p. 140).
Deste modo, a imaginação simbólica em torno da
brincadeira com bonecas, constitui a forma do jogo, e o conteúdo é
formado pelos seres ou episódios representados pelo símbolo. Piaget
(1978) reitera que é esta utilização dos símbolos que permite à
criança meios de assimilar o real aos seus desejos ou aos seus
interesses, e, como analisamos no relato às suas necessidades.
Considerações finais
Este estudo tratou-se de um relato de experiência sobre a
importância do jogo simbólico na resolução de conflitos da criança
enlutada, acompanhado de uma revisão bibliográfica de teóricos que
realizaram estudos acerca da morte e do luto à luz da epistemologia
genética.
O tema da morte ainda é tabu em escolas e pouco abordado
em formações pedagógicas. Educadores têm dificuldades para
abordar o assunto, mesmo quando a morte invade o espaço escolar
(ALVES, 2012). A bibliografia sobre a questão da morte e luto com
106
crianças apoiadas em um referencial teórico piagetiano é escassa,
indicando a importância de discussões sobre o tema.
No entanto, o relato de experiência aqui apresentado,
evidencia que o jogo simbólico tem uma importante colaboração na
expressão espontânea e elaboração da criança acerca de suas
experiências com a morte e o luto. Observamos no nosso relato, que,
durante o jogo simbólico a criança teve a possibilidade de elaborar
as experiências negativas e vivenciar o luto, e até mesmo a morte
através da personificação, de acordo com as condições de
pensamento e de compreensão da realidade.
Isso porque, como dito, o faz de conta não depende de
adaptações à realidade, é o simples prazer de brincar por brincar,
tendo como objetivo a satisfação pessoal. Neste sentido, não é o
sujeito que se adapta a realidade, ao contrário, a criança utiliza da
ficção para sujeitar a realidade, deformando-a conforme suas
necessidades e desejos.
Acreditamos que a experiência revivida e reelaborada pela
criança de maneira espontânea, leve e lúdica, tenha auxiliando-a
neste momento crítico, favorecendo a ressignificação e compreensão
dentro de suas possibilidades.
O luto é um período de crise para a criança, que o enfrenta
conforme ritos familiares e sua cultura. É um processo natural e
necessário, pois trata-se da dolorida elaboração da perda. A perda de
pessoas próximas remete a criança à própria morte e dos seus e pode
trazer problemas escolares, sintomas físicos e psíquicos, ansiedade e
baixa autoestima. Falar sobre as perdas auxilia no enfrentamento dos
medos que podem surgir; porém, familiares, educadores e
profissionais geralmente têm dificuldades em abordar o tema. É
107
necessário estar disponível, observá-la em seu estágio de desenvol-
vimento, compartilhar sentimentos e esclarecer dúvidas, processo
que o jogo simbólico pode dinamizar.
Logo, o ambiente escolar deve promover situações que
colaborem para o bem-estar infantil e elaboração e expressão de seus
sentimentos e emoções, como preconiza a BNCC (BRASIL, 2017)
por meio das competências socioemocionais. Além disso, o
profissional de pedagogia, quando atento à expressão livre do sujeito
no jogo simbólico, pode ser um importante recurso de ajuda para
essa criança que manifesta e expressa a sua angústia.
Referências
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através do brinquedo. Porto Alegre: Artmed Editora, 2012.
ALVES, E. G. R; KOVÁCS, M. J. (2016). Morte de aluno: luto
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110
111
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p111-130
QUANDO E ONDE SE BRINCA NO PRIMEIRO
ANO? UM ESTUDO SOBRE O JOGO SIMBÓLICO
NO ENSINO FUNDAMENTAL DE UMA ESCOLA
DE TEMPO INTEGRAL
Ana Carolina Tattaro MARANHO
4
Introdução
várias contribuições científicas de estudiosos do
desenvolvimento infantil sobre o brincar e sua importância para o
desenvolvimento cognitivo, social, físico e afetivo da criança.
Inicialmente, pensamos em analisar o jogo simbólico em escola de
Educação Infantil, quando nos veio a seguinte indagação: “Como
será a inserção do jogo simbólico na Educação Infantil e qual a
concepção dos professores acerca da importância do faz de conta no
desenvolvimento dos alunos?”. De acordo com a teoria piagetiana,
estas crianças se encontram no estádio pré-operatório, momento em
que se evidencia o jogo simbólico.
No entanto, ao buscarmos por trabalhos que explorassem o
faz de conta, encontramos diversos que foram desenvolvidos com
turmas de Educação Infantil e nos desafiamos a pensar além, pois,
poderia ser um tanto previsível trabalhar com jogo simbólico antes
4
Mestra em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília, São
Paulo, Brasil. E-mail: caroltattaro@gmail.com
112
do primeiro ciclo do Ensino Fundamental. Nossos resultados
poderiam não ser tão satisfatórios ou inovadores. Assim, decidimos
manter nossa pesquisa com relação ao faz de conta, porém,
estendendo para o Ensino Fundamental, mais especificamente, para
o primeiro ano, que, de acordo com a lei 11.274 de 2006
(BRASIL, 2006), a criança entra mais cedo no primeiro ano, aos 6
anos de idade, justamente na fase de declínio do p-operatório,
onde o simbolismo ainda é muito presente.
Transcendemos nosso desafio em pesquisar o jogo simbólico
no primeiro ano do Ensino Fundamental e, de maneira diversa,
tencionamos nossos esforços em buscar não uma escola comum,
digamos de ensino parcial, mas uma outra modalidade de ensino:
uma escola de tempo integral. Partindo dessa definição e expectativa
de produzirmos um trabalho, considerando que a criança além de
permanecer mais tempo na escola em anos, também permanece
diariamente em período integral, relacionando-se com a dicotomia
turno e contraturno, ou seja, com atividades curriculares e
extracurriculares.
Posto isso, firmamos a pesquisa conclusivamente denomi-
nada agora como: Quando e onde se brinca no primeiro ano? Um
estudo sobre o jogo simbólico no Ensino Fundamental de uma escola de
tempo integral, fundada em analisar como ocorre o jogo simbólico
numa escola de tempo integral, quais são as concepções que
professores desta modalidade de ensino possuem a respeito do
brincar, bem como analisar as ideias que os alunos do primeiro ano
possuem sobre a brincadeira.
Nos tempos atuais, as brincadeiras mais antigas foram
ofuscadas ou substituídas pelas brincadeiras modernas e que nem
113
sempre envolvem o contato com outras crianças. Acreditamos e
vemos que ainda crianças que brinquem na rua, porém, são os
pais ou responsáveis que as acompanham. Brincar na rua agora ou
ao ar livre é andar de patinete, pedalar bicicleta, ir ao parquinho do
bairro ou do condomínio.
No jogo simbólico, sua importância se pela possibilidade
de construir símbolos, que são essenciais para a representação, e
caracteriza-se pelo predomínio da assimilação sobre a acomodação
(PIAGET, 2013). As crianças possuem uma fonte de conhecimentos
anteriores e nas brincadeiras, podendo estabelecer as relações de
acordo com as suas vivências, tomando consciência de outros papéis
e formando atitudes para novas situações.
Tendo como referência o jogo simbólico fundamentado na
teoria piagetiana, esta pesquisa foi realizada em uma Escola de
Tempo Integral no interior paulista, objetivando analisar como é a
inserção das brincadeiras dentro deste formato de ensino, mais
especificamente do jogo simbólico no primeiro ano do Ensino
Fundamental I. A pesquisa na íntegra buscou ainda analisar as
concepções que professores do primeiro ano possuem acerca do
brincar, porém, neste texto não serão expostas. Participaram do
estudo 39 crianças (entre 6 e 7 anos de idade) regularmente
matriculadas em duas salas de primeiro ano. Os instrumentos
utilizados foram: roteiro de observação, hora de jogo e entrevista
pautada no método clínico-crítico piagetiano.
114
O jogo simbólico na teoria de Jean Piaget:
revisão bibliográfica
Piaget não foi um pesquisador especificamente sobre jogos,
porém, buscou explicar como o indivíduo se desenvolve num
sistema de interação com o outro ou com objetos.
Em sua epistemologia genética, o autor define o sujeito
como um construtor do conhecimento, de modo que a maximização
deste não é mero crescimento, mas um processo de construção da
inteligência que se por sua adaptação ao meio e sua capacidade de
organização de processos. Por este motivo, o desenvolvimento da
inteligência do homem não é um acúmulo de informações e sim uma
reorganização. Esse progresso psicológico e cognitivo se por meio
dessas construções que vão evoluindo e permitindo aquisições mais
elaboradas.
Foi realizada uma revisão bibliográfica buscando artigos
científicos, teses e dissertações nos repositórios da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Universidade de São
Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
Index Psi Teses, SciELO e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses
e Dissertações (BDTD). No entanto, não encontramos produções
que tratassem especificamente o jogo simbólico no Ensino
Fundamental. Por conseguinte, ampliamos nossa busca unicamente
com as palavras-chave “jogo simbólico” sem refinar para Ensino
Fundamental, e a fim de encontrarmos mais pesquisas que pudessem
ser compatíveis com nossa perspectiva, utilizamos as palavras
“brincar”, “jogos”, “brincadeiras” e “simbólicos” separadamente,
porém mantendo a área de concentração da Educação para que
115
pudéssemos conhecer aqueles que foram desenvolvidos em escolas
ou de cunho mais pedagógico.
Destacamos que ao pesquisarmos “jogo simbólico”
automaticamente, éramos direcionadas também para os trabalhos
nos quais o título não apresentava este termo, mas sim o “faz de
conta”. Para que a pesquisa não ficasse tão longa, a princípio
havíamos estabelecido procurar trabalhos sobre o jogo simbólico dos
últimos 10 anos. Tendo colhido poucos dados, ampliamos para os
últimos 20 anos, mas, ainda assim, não foi suficiente, e por fim,
decidimos não estabelecer limites, sendo o trabalho mais antigo
encontrado dentro da nossa pesquisa no ano de 1989.
Das 124 produções científicas encontradas, selecionamos
apenas aquelas que trabalharam o jogo simbólico dentro da
perspectiva piagetiana, sendo então o resultado final deste
levantamento correspondente a 22 produções.
Metodologia
O problema de pesquisa que orientou nosso estudo,
apresentado de maneira indagativa, foi: Qual o espaço e o tempo que
o jogo simbólico ocupa em salas de aula do primeiro ano do Ensino
Fundamental em uma escola de tempo integral? O objetivo geral foi
analisar a inserção do jogo simbólico em salas de aula do primeiro
ano do Ensino Fundamental de uma escola de tempo integral. Os
objetivos específicos foram os seguintes:
116
1) Investigar o tempo e o espaço que a brincadeira de
faz conta ocupa na organização da rotina de salas de primeiro ano
numa escola de tempo integral;
2) Investigar as concepções que professores do primeiro
ano do Ensino Fundamental, de uma escola de tempo integral,
possuem a respeito do brincar, em específico do jogo simbólico;
3) Analisar as ideias que crianças do primeiro ano do
Ensino Fundamental, de uma escola de tempo integral, possuem
sobre o brincar.
Tratou-se de um estudo de caso que se caracteriza pela
exploração, descrição ou explicação do que de mais essencial e
característico numa situação específica. De acordo com Yin (2001),
o estudo de caso como estratégia de pesquisa pode incluir tanto
estudos de caso único quanto de casos múltiplos, pois compreende
um método que abrange tudo, da coleta à análise de dados.
Local da pesquisa
A pesquisa foi realizada em uma escola pública municipal,
localizada numa cidade do interior do estado de São Paulo, com
professores e alunos do Ciclo I do Ensino Fundamental. O critério
de escolha desta escola foi a conveniência. Desde 2015, a escola
atende, exclusivamente, alunos oriundos da zona leste da cidade,
alunos provenientes da zona rural, um distrito e crianças acolhidas
por um orfanato.
117
Participantes
Os 49 alunos que totalizam as duas salas de primeiro ano
foram convidados a participar da pesquisa. No entanto, foram
participantes do estudo somente as 39 crianças cujos Termos de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) retornaram assinados.
Dos 39 alunos, 24 eram do sexo feminino e 15 do masculino, com
idades entre 6 e 7 anos das duas salas de primeiro ano da escola. O
critério de inclusão na amostra foi, portanto, o de aceitação e
voluntariedade.
Roteiro de observação
Durante uma semana completa (segunda a sexta-feira) foram
utilizados os roteiros para observação de evidências de jogo
simbólico e outros tipos de jogos na escola (tanto em ambiente
interno, quanto externo), e ainda disposição de materiais destinados
ao brincar e comportamento dos professores frente às brincadeiras.
A observação ocorreu com as duas turmas do primeiro ano, nos dois
períodos, sendo período da manhãacompanhando o dia a dia em
sala de aula; e no período da tarde acompanhando todas as oficinas.
A hora do jogo
Caracterizou-se pela observação das crianças em situação de
brincar livre, na qual foram disponibilizados e trazidos pela
pesquisadora, materiais que favoreciam o faz de conta: bonecas,
carrinhos, utensílios domésticos, frutas, legumes e animais (de
plástico), teclado e mouse de computador, roupas e calçados, colete
118
e cartola de gico, boia de nadador, kit de maquiagem, martelo de
brinquedo, óculos sem lentes, óculos de sol, telefone com fio e
aparelho celular.
Esta etapa foi realizada com turmas entre sete e dez crianças.
Foram necessárias cinco sessões de hora do jogo para completar a
participação das crianças das duas salas de primeiro ano da escola.
Após cada hora de jogo, foi realizada entrevista oral livre com
a turma, abordando os papéis incorporados por elas no momento do
brincar.
Entrevista com a criança
Em outro momento, a entrevista individual, semiestruturada
e baseada no método clínico-crítico piagetiano (PIAGET, 2005), foi
realizada com todas as crianças que haviam participado da hora do
jogo. As entrevistas foram gravadas em áudio, sendo informado para
cada criança sobre a gravação.
Com este instrumento, buscamos identificar como as
crianças veem a atual escola, como se recordam da escola anterior
(aquelas que são provenientes da Educação Infantil), quais são suas
concepções de brincar, o que preferem e o que gostariam que
existisse em sua escola.
Análise dos dados
Os dados coletados foram transcritos e analisados de forma
qualitativa e quantitativa, em consonância com os instrumentos
apresentados.
119
Assim, para os roteiros de observação (ambiente interno e
externo) analisamos a presença ou não de brinquedos, fantasias e
outros jogos, além dos tipos de brincadeiras e evidências de jogo
simbólico apresentadas pelas crianças. Analisamos ainda, o
comportamento dos professores frente à brincadeira, se eram
participativos, permissivos, punitivos, etc. A hora do jogo a princípio
não foi elaborada para ser um instrumento isolado de análise, e sim
para nortear nossa entrevista, pois, nesta etapa, poderíamos observar
o comportamento das crianças frente aos materiais de jogo simbólico.
No entanto, decidimos considerar este momento pela riqueza de
conteúdo que foram expressadas pelas crianças.
As entrevistas com as crianças, assim como as entrevistas com
as professoras, foram analisadas de acordo com eixos temáticos que
organizam as respostas obtidas por cada participante. Após a
aprovação pelo Secretário Municipal da Educação do Município e
pela diretora da escola em questão, o projeto foi encaminhado e
aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP), campus de Marília.
Resultados e discussões
Durante o processo de visita à escola, conversas com a
diretora e coleta dos dados do referido trabalho nos deparamos com
um prédio sem parques, sem salas de descanso, sem área ao ar livre,
ou seja, condições não favoráveis para funcionar uma escola de
tempo integral. Notamos ainda, a ausência de brinquedos voltados
para o jogo simbólico.
120
Observação em ambiente interno
Consideramos tão rica essas evidências de brincadeiras
criadas pelas crianças em ambiente interno que decidimos expor
nossas observações dividindo-as em: Verbalização e gestos de jogo
simbólico (ocorrência de falas ou gestos manifestados que emergiram
do jogo simbólico); Apropriação de material disponível (forma como
utilizaram outros objetos dentro ou fora de sala de aula); Outros tipos
de Jogos (presença de outras formas de jogo dentro de sala de aula).
Observação em ambiente externo
Foi realizada enquanto as crianças estavam em horários de
intervalo onde foi possível capturar outras brincadeiras nas filas
enquanto as crianças aguardavam a porta do pátio ser aberta ou
enquanto aguardavam o professor para os levarem até a sala. As
brincadeiras, também jogos de regras, mais comuns nestes
momentos foram: adoleta, joquempô, par ou ímpar e vivo ou morto.
Observação da hora do jogo
Este momento da hora do jogo antecedeu a entrevista
individual com os alunos. As duas turmas de primeiro ano foram
divididas em grupos para facilitar a observação sem interromper as
atividades em sala. Em cinco sessões, que ocorreram ao longo de
duas semanas, foi possível finalizar a hora do jogo com as 39 crianças
que participaram de nossa pesquisa. Cada sessão foi composta por
sete a dez crianças. A média de duração de cada hora de jogo foi de,
aproximadamente, 20 minutos.
121
Os brinquedos (bonecas, carrinhos, utensílios domésticos,
frutas, legumes e animais de plástico, teclado e mouse de computador,
roupas e calçados, cartola de mágico, boia de nadador, kit de
maquiagem, martelo de brinquedo, óculos sem lentes, óculos de sol,
telefone com fio e aparelho celular) foram organizados lado a lado
para, posteriormente, as crianças adentrarem à sala.
Este não foi um instrumento específico de análise de nossa
pesquisa, porém foi importante para observarmos nas formas de
brincar o quanto as crianças puderam ser elas mesmas e o quão
satisfeitas demonstravam estar.
Resultado da entrevista com as crianças
O instrumento criado para realizarmos as entrevistas com as
crianças possui nove questões. A aplicação, assim como outros
procedimentos adotados, foi pautada nas orientações para a
utilização do método clínico-crítico (PIAGET, 2005).
Os gráficos de 1 a 10 a seguir sintetizam as questões, como
podem ser observados na Figura a seguir que os retrata,
respectivamente: Gráfico 1 Escolarização anterior; Gráfico 2
Descrição sobre a escola anterior; Gráfico 3 O que menos
gostavam de fazer na escola anterior; Gráfico 4 O que mais
gostavam de fazer na escola anterior; Gráfico 5 O que mais gostam
de fazer na atual escola; Gráfico 6 – Gostariam que tivesse na escola
atual; Gráfico 7 O que falta na atual escola; Gráfico 8
Brincadeiras que as crianças mais realizam no lar; Gráfico 9
Companhias das crianças em suas brincadeiras no lar; e Gráfico 10
Locais onde as crianças costumam brincar.
122
Figura 1 – Gráficos referentes às questões que as crianças foram interrogadas
Fonte: Dados da pesquisa
123
De uma forma geral, verificamos que as brincadeiras de regra
tradicionais de nossa cultura como: esconde-esconde, pega-pega,
lenço que corra, amarelinha e pular corda, satisfazem
significativamente as crianças e são bastante comuns quando
brincam na rua, conforme citaram na entrevista. Todavia, na escola,
essas mesmas brincadeiras, com exceção das duas últimas, não
podem ser realizadas por não ser permitido correr.
Relativizamos a diminuição do espaço e da oportunidade do
brincar para os alunos como peixes dentro de um aquário lacrado
lançado nas profundezas do mar. Visualiza-se uma imensidão de
água, porém é permitido nadar dentro de um espaço limitado.
Do mesmo modo, o tempo e espaço do brincar nesta escola,
“restringe-se à ‘hora do recreio’, assumindo contornos cada vez mais
definidos e restritos em termos de horários, espaços e disciplina”
(BRASIL, 2007, p.35).
Similarmente, o jogo simbólico marcou presença nas
observações e nas falas das crianças, ademais verificamos que as
brincadeiras mais comuns, principalmente manifestadas pelas
meninas, também são bem tradicionais, como mamãe e filhinha e
fazer comidinha. Um interessante fato que pudemos capturar em
nossas observações foi a transposição de papéis de um ambiente a
outro. Exemplificando, a aluna ISA (6 anos) na hora do jogo brincou
muito de boneca e de princesa. Em sua narração sobre os tipos de
brincadeiras que realiza em casa, citou brincar de escolinha, onde ela
é a professora e suas bonecas, as alunas. Observamos aqui o quanto
a aluna transporta consigo o ambiente que pertence, pois, o
simbolismo manifestado na brincadeira na escola transferiu os
exemplos tomado de sua mãe para com ela ao brincar cuidando da
124
boneca, o simbolismo manifestado em casa, do qual relatou na
entrevista, reflete sua vivência na escola, brincando de escolinha
fazendo de conta ser a professora. Ou seja, conforme Piaget (1976),
o jogo permite à criança a elaboração de toda a sua vivência, que não
significa apenas representação fiel de sua realidade, mas designa sua
capacidade de criação e inovação.
Na entrevista, vários alunos apresentaram gosto por
frequentar espaços amplos para brincar, como pracinhas com
parquinho, bosque da cidade, sítio que moram ou que visitam.
Ainda, na entrevista, alguns alunos falaram de um ambiente mais
adequado para brincarem na escola, colocando flores, plantas,
campinho de areia e parquinho para compor este ambiente. Esse
gosto e necessidade por ambientes amplos e bonitos que as crianças
expressaram nos faz inferir o quanto precisam de espaço para
crescerem e desenvolverem-se. Assim é a natureza!
Nos relatos a respeito da presença de companhias, seja de
adultos ou de outras crianças para brincar, notamos que alguns
alunos conseguem satisfazer-se nas brincadeiras sozinhos, ou com
animais de estimação, ou ainda com amigos imaginários, porém
outros sentem falta da presença e atenção de outras pessoas para
desenvolverem suas brincadeiras.
As crianças revelaram sobre a ausência dos pais nos
momentos de brincadeiras, justificando que são muito ocupados
porque trabalham. Logo, temos um encontro da concepção de
adulto que as crianças estão formando, essa carência da presença dos
mais velhos nas brincadeiras arrematam suas ideias que adultos são
pessoas ocupadas, adultos são pessoas que tem outras coisas
importantes para fazer, adultos são pessoas que não brincam!
125
Observar as crianças brincando, seja nos momentos em que
construíam suas próprias oportunidades de brincadeiras em sala, seja
nos momentos dos intervalos no pátio, foi importante para
conhecermos o estilo do brincar de cada uma e um pouco de suas
personalidades. Ouvir as crianças narrando do que brincavam na
antiga escola, como brincam em casa e como veem a atual escola, foi
além da relação de entrevistador-entrevistado, mas um ouvir
relacionado a escuta, pois foi oportunizado que as crianças
manifestassem em narração seus sentimentos, a elas foi dado vez e
voz.
Efetuando uma contribuição psicanalítica aos resultados de
nossa pesquisa, poderíamos chamar esta escuta de escuta terapêutica,
que não significa ter tornado a entrevista um setting, mas
articularmos como uma compreensão mais profunda do aluno, onde
ele pode verbalizar, exprimir seus sentimentos, suas angústias, seus
desejos. O psicanalista francês Mauco (1967) adverte que a
maturação psíquica e física prossegue após os 6 anos de idade, a qual
foi constantemente influenciada pelo meio. Dessa forma, a criança
que chega à escola traz consigo toda experiência relacional adquirida
na família, e acrescentamos, a criança que chega no Ensino
Fundamental aos 5-6 anos de idade e que tenha tido vivência escolar
anterior, carrega em sua bagagem além da experiência familiar, o
conhecimento que concomitantemente foi construído na Educação
Infantil. Desse modo, a educação escolar irá contribuir para a
formação da personalidade da criança.
126
Considerações finais
Buscou-se com essa pesquisa sustentar que o brincar é, por
excelência, uma necessidade infantil que precisa ser compreendida
por educadores e autoridades públicas, de forma a se promover
ambientes que o tenham como eixo norteador do trabalho
desenvolvido na escola. Diante dos resultados de nossa pesquisa,
decorrentes das observações e entrevistas realizadas, podemos inferir
o quanto os alunos do primeiro ano da escola em questão carecem
do brincar de forma geral, tanto o simbolismo que ainda marca
presença intrínseca, quanto brincadeiras diversas, bem como um
espaço físico mais adequado para que o lúdico possa acontecer.
Proporcionar à criança um brincar com objetivo acadêmico,
torna este brincar um conteúdo e perde-se o que de mais relevante
na brincadeira, que é o desenvolvimento integral. Ainda que as
crianças demonstrem satisfação em aprender brincando, o brincar
ensinando não é uma brincadeira livre e não se aproxima do contexto
do faz de conta como defendemos aqui. É, talvez, um grande
disfarce.
O jogo simbólico é algo tão inerente às crianças do primeiro
ano do Ensino Fundamental, que observamos nas salas de aula a
presença do simbolismo com os recursos utilizados por elas próprias,
por exemplo, fazendo de conta que uma caneta era um super-herói.
Ainda que não houvesse uma caixa com carrinhos, bonecas,
fantasias, animais, panelas entre outros brinquedos, consideramos
que a presença sica desses materiais favorece a representação
simbólica de suas ações. O jogo simbólico é a principal linguagem
da criança nessa fase, pois permite que reviva situações cotidianas,
127
favorecendo uma compreensão e uma reorganização de suas
estruturas mentais, em direção ao pensamento abstrato. Sendo
assim, o jogo simbólico tem total relevância no desenvolvimento
infantil e precisa ser mais valorizado no primeiro ano do Ensino
Fundamental, beneficiando o desenvolvimento de habilidades
ulteriores.
Na escola pesquisada, o tempo fixo para as crianças
brincarem é regulado a apenas cinco minutos nos intervalos. No
primeiro ano, o aluno está sendo recebido como se fosse uma tábula
rasa e não está sendo considerado, por mais pequenino que seja, que
ele é um sujeito com muitas histórias subjacentes. Todo aluno
carrega uma subjetividade e é na expressão por meio do brincar que
podemos conhecê-lo integralmente.
Na escola integral, a oportunidade e a responsabilidade de
proporcionar o brincar é dobrada em relação à escola parcial, mas
não podemos atribuir apenas aos responsáveis pelo currículo
complementar a realização de mais brincadeiras. Todos os
professores que atuam com o primeiro ano precisam se conscientizar
sobre a importância do jogo simbólico e da presença de brinquedos
e materiais para as crianças desenvolverem suas próprias
brincadeiras, bem como favorecer um espo para tal.
Reconhecemos que esta falha também é responsabilidade de órgãos
públicos para a reforma de um prédio mais compatível com as
necessidades de crianças entre 5 e 6 anos de idade, porém, é preciso
utilizar recursos que estejam em nossa alçada. Uma caixa de
brinquedos, como citamos, é um deles, assim como inserir no plano
pedagógico o jogo simbólico, ou a brincadeira livre caso prefiram
chamar assim.
128
O que estamos fazendo com as nossas crianças está
bloqueando suas aspirações. Estamos privando a empolgação, a
espontaneidade e a criatividade, para torná-las seres passivos,
enrijecidos e copistas. Estamos indo contra a natureza infantil.
quanto tempo permanecemos mensurando as
potencialidades das crianças naquilo que queremos, não no que elas
podem nos mostrar?
Esperamos que esta pesquisa contribua para a reflexão sobre
a importância do brincar, sobretudo o jogo simbólico no primeiro
ano, no cotidiano da escola como parte fundamental da formação
da criança, pois “ainda temos chance”.
Referências
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e teatrais. Marília. 146 f. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília,
2014.
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DESENVOLVIMENTO DAS CRIANÇAS
PEQUENAS E A IDENTIFICAÇÃO DAS
CARACTERÍSTICAS DE ALTAS HABILIDADES
E SUPERDOTAÇÃO
Carla Sant’Ana de OLIVEIRA
1
Sandra Cristina Batista MARTINS
2
Carla Luciane Blum VESTENA
3
Bernadete de Fatima Bastos VALENTIM
4
Introdução
A Educação Infantil é uma importante etapa na vida de
crianças pequenas. É nessa fase que se descobrem, se exploram e se
desenvolvem grande parte do potencial de cada uma delas.
O desenvolvimento das crianças é percebido em cada ão,
na medida em que surge a coordenação das ações e seu progresso por
1
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Docente
da Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO), Guarapuava,
Paraná, Brasil. E-mail: carlasantol19@gmail.com
2
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba,
Paraná, Brasil. E-mail: sandramartins.scbm@gmail.com
3
Doutora em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, e Docente da Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO),
Guarapuava, Paraná, Brasil. E-mail: cvestena@unicentro.br
4
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Docente
Colaboradora da Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO),
Guarapuava, Paraná, Brasil. E-mail: bfbvalentim@gmail.com
132
meio da construção ativa. Nesse movimento todo, tanto pais quanto
professores precisam estar atentos para intervir positivamente nesse
continuum.
Vale destacar que, cada criança tem potencial para ter um
refinamento de novos aprendizados, desde que exista a crença
positiva nesse potencial, independentemente de condições
socioeconômicas, ou outros fatores. Pais e professores devem ficar
atentos, pois comportamentos que são indicadores de altas
habilidades/superdotação que precisam identificados para que se
possa encaminhar de modo que o potencial seja valorizado e
desenvolvido.
De modo geral, crianças precoces apresentam um
desenvolvimento a frente do seu tempo, em comparação com as
demais. O período sensório-motor é muito rico para se observar
indicadores em relação a linguagem, psicomotricidade, criatividade,
raciocínio lógico, entre outros.
Sendo assim, o presente trabalho tem por objetivo discutir e
analisar sobre características da primeira infância, que são
indicadores de altas habilidades/superdotação. Para tanto,
apresentaremos o discutiremos sobre cognitivo da criança pequena,
bem como sobre a identidade da criança com alto potencial
cognitivo.
Desenvolvimento cognitivo na criança pequena
A criança com idade entre zero e três anos explora o
ambiente a partir dos reflexos sensório-motores. Assim, enquanto
recém-nascida, essa criança testa seus sentidos por meio da sucção.
133
Esse reflexo é intencional para que ela compreenda a pressão de
sucção durante a alimentação. Trata-se de um exercício funcional
que se estenderá mais tarde aos objetos, como forma de assimilá-los
do meio. Com isso, o bebê recém-nascido faz a sucção do peito
materno de forma mais segura, encontrando o mamilo mais
facilmente. Desse modo, a assimilação reprodutiva ou funcional que
garante este exercício é prolongada.
Com o passar do tempo, a criança passa a generalizar e a
assimilar essa primeira aprendizagem, sugando um vácuo ou novos
objetos como um reconhecimento do meio ambiente (distinguindo
o mamilo dos outros objetos). Inicialmente, a criança pequena não
denota a evocação de um objeto ausente. Por isso, chora ao perder
de vista a presença da mãe, e, neste caso, é como se esta deixasse de
existir por não estar presente.
Normalmente, aos nove meses se efetiva a representação do
objeto ausente, de modo que a criança busca esse objeto, a exemplo
da experiência que ela realiza quando esconde e descobre o rosto para
ver o adulto. Se ainda não representação mental, é no ato de
recuperar o objeto ausente que ocorre a constituição e uso de
significados, pois toda assimilação sensório-motora (inclusive
perceptual) consiste em conferir significados (PIAGET;
INHELDER, 2015, p. 56).
Nessa etapa, a criança se prepara para a fase de reversibilidade
cognitiva, testando as primeiras hipóteses, por exemplo quando joga
uma bola e espera o adulto devolver, repetindo a ação inúmeras vezes.
Assim, ela elabora as primeiras percepções espaciais que são
precedentes à representação de espacial, que é possível com o
desenvolvimento do campo perceptivo. Esta fase é imprescindível
134
para organização do pensamento infantil. Nela ocorre uma
constituição intermediária da percepção de constância de forma e
grandeza, que são aspectos fundamentais para a projeção de novos
conhecimentos.
Os aspectos projetivos do raciocínio lógico infantil, iniciados
no princípio do estágio sensório-motor, dará espaço para a
representação mental, por meio da linguagem e construção da
imagem mental e do gesto simbólico. Vemos isso quando a criança
aprende a acenar ou joga beijo, imitando as pessoas com as quais
interage.
Com a evolução da imitação e a construção da imagem
mental na ausência do objeto, observa-se um avanço no
desenvolvimento cognitivo. A assimilação, seriação e classificação
das informações do ambiente começam a se tornar mais elaboradas.
Por exemplo, a criança começa a diferenciar o cachorro do gato,
quando inicialmente todos eram entendidos como o au au”. Essas
adaptações da criança ao ambiente, por intermédio das explorações,
convergem-na ao equilíbrio em seu processo cognitivo.
Neste processo de equilibração, a imitação diferida, isto é,
aquela que ocorre na ausência do modelo. Inicialmente a criança
imita a ação na presença do modelo (por exemplo, dar tchau), esse
comportamento pode continuar na ausência desse modelo, mas
ainda não é um ato consciente. Após os dezesseis meses, a criança
que observa a mãe cozinhar poderá depois de sua partida, imitar a
cena. A imitação diferida é o princípio da compreensão de um
significante diferenciado.
O próximo passo é a construção do jogo simbólico, quando
a criança, com seu ursinho de pelúcia, imita a ação da mãe quando
135
a faz dormir. A representação é clara e o significante diferenciado
torna os objetos simbólicos. A próxima etapa de representação
simbólica na criança pequena é desenho ou imagem gráfica.
Piaget e Inhelder (2015) lembram que ao desenvolver a
imagem mental, a criança pequena atribui o significado óptico da
ação à cognição, por meio da projeção reflexiva.
A abstração das ações é necessariamente construtiva,
porque é reflexionante, o que não leva a uma
generalização simples. Abstração física é normalmente
apenas uma construção geral de classe e um
relacionamento generalizado (uma regularidade
observada). Mas, conforme a criança torna-se capaz de
refletir a abstração é construtiva na medida em que está
ligada à elaboração de uma nova ação (VESTENA;
OLIVEIRA, 2020, p. 29).
A abstração reflexiva tem a função especial de evocar as
propriedades do objeto ou das ações. Isso ocorre em duas fases: na
primeira temos a projeção da ação, nem sempre consciente. Na
segunda fase, ocorre a reflexão, reorganização das estruturas em um
nível superior. O conhecimento das ações não é uma mera cópia da
estrutura cognitiva anterior e precisa ser integrada novas estruturas
em um nível mais complexo.
Desta forma, a ação infantil consciente requer um requinte
superior ao da ação anterior, pois a criança experimenta, cria
hipóteses sobre suas ações e testa essas hipóteses num processo de
abstração reflexionante, na qual a seleção de informações e
diferenciação de cada nova informação. Após esse processo de
136
classificação dos conhecimentos adquiridos, a generalização do
processo que encaminha ao equilíbrio para uma nova etapa de
refinamento dos aprendizados.
O refinamento de novos aprendizados é conduzido por
experimentos para ver”. Conforme Vestena e Oliveira (2020, p.
30):
Estes experimentos consistem em produzir um efeito
interessante várias vezes seguidas, os fatores são variados:
ida e volta, além da amplitude de rotação. A exemplo, da
criança que joga repetidas vezes um objeto ao chão. Outro
exemplo, quando um adulto coloca o brinquedo na frente
do berço e a criança é capaz de girar uma barra até que ela
consiga agarrar a outra extremidade até trazer o objeto
para o lado adjacente do berço.
A criança precisa compreender os deslocamentos e as
relações entre os objetos, num processo de abstração empírica,
juntamente com simples repetições das ações que deseja compre-
ender.
De um modo geral, ao ser capaz de entender a rotação
observada no objeto, a criança pode supor que coordenação de
ações. Essa coordenação de ações imita o que é percebida na
realidade em uma construção ativa. Sabe-se que antes de conseguir
rotacionar um objeto, a criança faz experiências, nas quais ltiplas
tentativas fracassam e para compreenderem o objeto precisam
reorganizar o planejamento das rotações, mas também os resultados,
admitindo falhas.
137
À medida em que a criança se desenvolve, as abstrações
empíricas diminuem e as abstrações reflexivas se ampliam. “No que
diz respeito à abstração empírica, a capacidade de estender uma
rotação em algum grau é uma espécie de generalização extensional,
feita quando a criança começa a puxar a maçaneta e a generalização
permanece empírica” (VESTENA; OLIVEIRA, 2020).
A abstração reflexionante é também o primeiro indício de
um desenvolvimento precoce na criança pequena, porque
desempenha o papel de direcionamento das interações completas a
serem observadas entre o sujeito e o objeto. É necessária uma
inversão necessária a direção da ão está implícita à regra para
qualquer movimento circular que desce de um lado e recua do outro.
Para obter o sucesso nesse movimento, o sujeito deve inverter seus
próprios movimentos.
Além disso, à medida que o espaço representativo
progride, uma espécie de reação ou um ressurgimento
da atividade representativa sobre a atividade perceptiva.
Assim, a partir do estágio em que a representação
consegue abranger todas as figuras do espaço em sistemas
de coordenação (de acordo com os eixos verticais e
horizontais sugeridos pelo experimento físico, mas com a
condição de ser geométrica - interpretado), a percepção
em si coloca em tais sistemas as configurações parciais que
atinge, enquanto, até então, se contentava com muita
estruturação mais limitado. O adulto, tendo perdido toda
a memória dos passos antes de tal transformação, imagina
que cada percepção utiliza desde o início os sistemas de
coordenadas, ou as proporções de verticalidade e
horizontalidade, na realidade muito complexas, que são
138
concluídos apenas entre as idades de 8 e 9 anos. Esta
ilusão reforça naturalmente o equívoco que tem sido
relatado no momento sobre as relações da percepção e do
representante, que pesou tão fortemente sobre as
interpretações atuais da intuição geométrica (PIAGET;
INHELDER, 2015, p. 14).
A abstração empírica que ocorre em contato com os objetos
e sujeitos observáveis é indispensável. Nesse sentido, deve ser
ampliada a complexidade da reflexão sobre a ação, ao se manifestar
sob a forma de avanços contínuos, com capacidade de inverter a
direção das ações (esses comportamentos são basicamente sensório-
motores). Nisso, existe um progresso na compensação das ações
positivas e negativas reciprocamente correspondentes.
Neste processo de abstração, uma reconstrução dos
esquemas espaciais e sensórios-motores que geram uma nova
realidade genética, possuindo suas próprias leis. Com isso, vem o
espaço representativo cujo início relaciona-se com as imagens
mentais e com o pensamento intuitivo, os quais subsidiarão o
desenvolvimento da linguagem.
Entender esse processo de desenvolvimento da criança é
primordial para compreender o processo de desenvolvimento
precoce que pode ser observado no sujeito com Altas
Habilidades/Superdotação.
139
Compreendendo a identidade da criança com alto
potencial cognitivo
Em geral, as crianças que participam da Educação Infantil
no Brasil raramente passam pelo processo de avaliação para
identificar os indicativos de AH/SD. Principalmente as crianças que
estão em instituições públicas.
As desigualdades socioeconômicas impactam no desenvol-
vimento infantil, e a interação da criança com o ambiente pobre em
estímulos começa bem antes do início da escola, mas é no ambiente
escolar que isso torna-se mais evidente. Portanto, investir nos
primeiros anos de desenvolvimento de uma criança pode melhorar
seu desenvolvimento, com rendimentos na aprendizagem, na saúde
física e emocional.
Durante os primeiros anos de vida, a mediação dos pais é
fundamental para o desenvolvimento saudável das crianças. No
entanto, as diferenças socioeconômicas nos investimentos dos pais,
que têm sido consistentemente observadas ao longo do tempo e
entre os países, exacerbam as desigualdades educacionais e de renda
que são frequentemente observadas nas economias modernas.
Neste sentido, torna-se ainda mais difícil identificar as
crianças com alto potencial cognitivo, seja na questão do vocabulário
ou nas habilidades de raciocínio lógico-matemático de crianças
pequenas.
A exemplo de como essa mediação dos pais e professores
auxilia na identificação das características de precocidade na criança
pequena, vemos um estudo realizado em Chicago (LIST;
PERNAUDET; SUSKIND, 2021) no qual foi mensurado as
crenças dos pais sobre o desenvolvimento infantil. Entre 479 pais de
140
recém-nascidos, surgiu um padrão surpreendente: pais com melhor
nível educacional eram significativamente mais propensos a
acreditar que atividades como contar histórias para seus filhos,
brincar com eles e passar tempo conversando com eles afetam o
desenvolvimento infantil.
List, Pernaudet e Suskind (2021) demonstraram como as
diferenças socioeconômicas podem levar à desigualdade nas
habilidades das crianças. Para se chegar a essa conclusão, projetaram
duas intervenções entre famílias de baixa renda na área de Chicago.
Ambos os programas de intervenção promoveram interações em
linguagem entre cuidadores e crianças.
Na primeira intervenção, consistiu em uma rie de vídeos
educativos de curta metragem que forneceram dicas e informações
sobre as capacidades dos bebês. Os pais assistiram aos vídeos quando
visitaram o pediatra para as imunizações de seus filhos nos primeiros
seis meses após o nascimento.
A segunda intervenção foi mais intensa. Famílias com
crianças de 24 a 30 meses receberam visitas domiciliares por
membros especificamente treinados da equipe de pesquisa a cada
duas semanas durante seis meses. Durante as 12 visitas, os visitantes
domiciliares mostraram um vídeo educativo para os pais e, em
seguida, fizeram uma atividade que demonstrou como colocar em
prática os conceitos abordados no vídeo. Essas demonstrações
incluíam, por exemplo, como usar linguagem descritiva com seus
filhos ou incorporar Matemática nas rotinas diárias. Por fim, os
visitantes da casa deram feedback e estabeleceram metas para a
próxima visita.
141
No final de ambos os experimentos, a mediação dos pais
afetou no desenvolvimento infantil, no desenvolvimento cognitivo
e na observação de características de precocidade para além dos pais
que não realizaram as intervenções. Mas, afinal quais são as
características da criança com indicativos de AH/SD?
As crianças superdotadas são definidas como aquelas que
demonstram uma habilidade ou potencial avançado em uma ou
mais áreas específicas quando comparadas a outras da mesma idade,
experiência ou ambiente. Esses indivíduos com indicativos de altas
habilidades/superdotação se destacam em sua capacidade de pensar,
raciocinar e julgar, desde a mais tenra idade. Deste modo, é
necessário que recebam serviços educacionais especiais e apoio para
poder desenvolver plenamente seu potencial e talentos.
As crianças superdotadas vêm de todas as origens raciais e
étnicas, bem como de status econômico. Embora não haja duas
crianças superdotadas iguais, muitas compartilham características e
traços de superdotação comuns, como:
Pensamento avançado e compreensão acima de seus pares da
idade;
Intensidade emocional em uma idade jovem;
Maior senso de autoconsciência;
Curiosidade altamente desenvolvida;
Excelente memória.
Existem muitas definições de superdotação, nenhuma das
quais é universalmente aceita. Dependendo do contexto, as
definições geralmente orientam e influenciam as principais decisões
nas instituições de ensino. Mas, no Brasil, não programas de
atendimento educacional especializado para crianças da educação
142
infantil com essas características. Como pais de crianças
superdotadas ou profissionais que trabalham com esse público, é
importante entender as diferentes definições e o que elas significam
para fornecer a orientação e o suporte adequados necessários para o
desenvolvimento integral deste sujeito e principalmente seu
desenvolvimento socioemocional.
Renzulli (2004) descreve que os comportamentos de
superdotação precisam ser identificados em conjunto e por um
tempo prolongado e/ou contínuo para que seja confirmada a
identidade da criança superdotada. É preciso entender as habilidades
da criança e considerá-las de acordo com o período afetivo em que a
criança vivencia.
Chagas (2007, p. 18) demonstra que existem dois tipos de
habilidades que são:
Gerais: são aquelas que aparecem nos testes de QI,
relacionadas à memória, à fluência verbal, ao raciocínio
lógico e às relações espaciais, bem como o pensamento
abstrato, os quais resultam na capacidade de processar
informações e integrar experiências efetivamente.
Específicas: quando a criança demonstra domínio de
técnicas e conhecimentos aplicados. uma área
específica em que essas habilidades são mais difíceis de
serem detectadas em testes. Trata-se de habilidades e
conhecimentos relacionados com as artes, esportes e
criatividade.
Quanto mais cedo forem detectadas as características de
precocidade e desenvolvimento acima da média nas crianças, menor
143
a chance de que ocorram problemas de adaptação desta criança ao
ambiente escolar e a supressão do potencial.
A superdotação não desaparece. No entanto, os dons e
talentos de uma criança superdotada podem ser suprimidos ou
passar despercebidos. Isso pode ser causado por identificação
imprecisa ou “mascaramento”, quando uma criança se esconde atrás
de certos aspectos de sua superdotação que podem fazer com que ela
não seja identificada. Aqui estão algumas características talentosas
que podem dificultar a identificação:
Desenvolvimento assíncrono: O desenvolvimento assíncrono
refere-se ao desenvolvimento desigual. No caso de crianças
superdotadas, muitas apresentam um desempenho de alto vel
em uma ou mais áreas, mas podem estar funcionando em um nível
social e emocional muito inferior. As crianças que são
superdotadas podem agir de forma imatura por sua habilidade
(VIRGOLIM, 2021).
Falta de habilidades para estudar: As crianças superdotadas
muitas vezes apresentam dificuldades na escola, porque tendem a
ter poucas habilidades de estudo. Eles podem passar pelo ensino
fundamental e médio sem ter que estudar muito, mas uma vez que
entram no ensino médio e na faculdade, os alunos superdotados
podem não estar equipados para lidar com os rigores do curso de
nível superior.
Insuficiência: Os alunos superdotados podem mostrar ser uma
grande promessa acadêmica, por gostar de ler, por exemplo, mas
ainda apresentam desempenho abaixo do esperado com base na
habilidade da criança (VIRGOLIM, 2007).
144
Existem muitas causas pelas quais os alunos superdotados
podem ter um desempenho insatisfatório. Algumas das razões
incluem:
Necessidades especiais ou dupla excepcionalidade;
Falta de motivação;
Problemas psicológicos como perfeccionismo e ansiedade;
Depressão;
Desse modo, é possível que exista o baixo rendimento em
crianças com altas habilidades/superdotação (TENTES, FLEITH
2014).
A intervenção é indispensável para reverter o baixo
desempenho dos superdotados e quanto mais cedo for a
identificação das características da criança superdotada, menor o
risco de ela apresentar as assincronias e insuficiências no
desenvolvimento potencial. Por isso, é urgente tratar da identidade
da criança superdotada na Educação Infantil.
É importante trabalhar com a criança superdotada para
descobrir o que exatamente está causando o insucesso. Se a criança
não estiver sendo desafiada adequadamente, concentre-se em
cultivar seus pontos fortes e talentos. Os serviços de aconselhamento
também podem ser úteis, permitindo que a criança confie em
alguém com quem sinta-se segura.
Os pais também devem trabalhar com os professores para
entender os estilos de aprendizagem e as preferências do aluno
superdotado e desafiá-los a maximizar seu potencial. As crianças
superdotadas, desde o princípio do seu desenvolvimento, precisam
de apoio para desenvolverem-se em todo seu potencial acadêmico e
socioemocional, para que compreendam que sua forma de pensar,
145
de aprender e de ver o mundo é diferente, que não melhor e nem
pior que o desempenho das crianças dentro dos padrões normais de
desenvolvimento.
A começar pela sala de aula na Educação Infantil, que, se
for organizada de forma tradicional, pode ser inadequada aos alunos
superdotados, que não serão desafiados adequadamente. Por isso, a
necessidade de criar serviços para atendimento às crianças pequenas
com indicativos de Altas Habilidades/Superdotação, com inclusão
de agrupamento de habilidades e promoção de programas para
superdotados, oferecendo às crianças talentosas a chance de explorar
ainda mais os assuntos de interesse (BRAZ, RANGNI, 2021). Com
isso, pode-se fornecer um local para formar conexões sociais com
colegas intelectualmente semelhantes.
Considerações finais
Como apontando neste trabalho o desenvolvimento infantil
oportuniza a aprendizagem que vai acontecendo com adaptações da
criança ao ambiente, que vai explorando até convergir ao equilíbrio
em seu processo cognitivo. Enfim, a criança vai em um movimento
espiral realizando assimilações, acomodações e culminando na
equilibração que margem a um novo conhecimento.
Com a criança com altas habilidades e superdotação
acontece o mesmo processo, porém com alto potencial cognitivo e
rapidez nas capacidades de pensar, raciocinar e julgar, desde muito
novas. Por isto, os comportamentos de superdotação precisam ser
identificados num trabalho conjunto entre pais e escola e por um
tempo maior para que seja confirmada a identidade da criança
146
superdotada e a ela seja dada condições de desenvolvimento e
aprendizagem.
No entanto, é dificultosa a identificação no sistema de
ensino brasileiro por não haver estruturado, muitas vezes, serviços
para avaliação precoce e atendimento desse público que quanto
mais cedo forem verificadas essas características de altas habilidades,
menos chances de que ocorrem problemas no processo de
aprendizado e vivência da criança no ambiente escolar.
Sabe-se que se não verificada precocemente o alto potencial
da criança não desaparecerá, no poderá passar sem ser percebido e
gerar problemas em outras áreas de aprendizado e emocionais.
Diante disso, esse trabalho vem com seu objetivo de chamar
a atenção para a importância da identificação da criança superdotada
na Educação Infantil de modo a proporcionar a criança conexões
com pares com habilidades similares que as fará sentirem-se mais
acolhidas e menos deslocadas.
Outro ponto é ressaltar a necessidade da criação de serviços
para atendimento às crianças pequenas com indicativos de Altas
Habilidades/Superdotação. Porque assim terão maiores chances de
explorar seus assuntos de interesse para que gozem de um
desenvolvimento com garantia de direitos e com saúde emocional.
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CONCEPÇÕES PIAGETIANAS E O TRABALHO
COM A MATEMÁTICA NO ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL: VIVÊNCIAS INICIAIS
Bruna Sordi RODRIGUES
1
Edneia Felix de MATOS
2
Introdução
Jean Piaget, biólogo e psicólogo suíço, desenvolveu, no
século XX, pesquisas em torno da aquisição do conhecimento pelo
ser humano e, mesmo sem ter a educação como objetivo, seus
estudos trouxeram inúmeras contribuições em relação às questões
que versam sobre o desenvolvimento dos sujeitos, sobretudo no que
tange ao processo de ensino/aprendizagem.
De acordo com a teoria defendida por Piaget, o
conhecimento não advém do empirismo ou do inatismo, mas é
construído pelo sujeito através da ação e das suas interações, externas
e internas, com o meio. Assim, para que os sujeitos possam conhecer
ou compreender um objeto, seja ele empírico ou abstrato, é
1
Mestra em Educação Científica e Matemática pela Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul (UEMS), e professora efetiva na Rede Municipal de Ensino
de Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: bruna.sordi@unesp.br
2
Mestra em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília, e
professora na Rede Municipal de Ensino de Marília, São Paulo, Brasil. E-mail:
edneia-felix.matos@unesp.br
150
necessário ocorrer a assimilação e a acomodação dessas novas
informações às estruturas existentes.
Em razão disso, o conhecimento é visto como resultado de
uma construção pessoal, fruto de “um processo interno do
pensamento em que, o sujeito coordena diferentes noções entre si,
atribuindo-lhes um significado, organizando-as e relacionando-as
aquelas que o sujeito possuía anteriormente” (ASSIS, 2013, p. 33).
É possível afirmar que o construtivismo se preocupa, entre
outras coisas, com a autonomia da criança em produzir seu próprio
conhecimento. Segundo Kamii (1991, p. 68), “Para Piaget, o
principal objetivo da educação é autonomia”. Ainda sobre isso, o
autor discorre sobre o direito a essa educação:
[...] não é apenas o de frequentar escolas: é também, na
medida em que vise a educação ao pleno desenvolvimento
da personalidade, o direito de encontrar nessas escolas
tudo aquilo que seja necessário à construção de um
raciocínio pronto e de uma consciência moral desperta
(PIAGET, 1973, p. 53).
Dessa forma, o papel do professor é de suma importância,
pois deve ser o de criar condições para que o sujeito construa seu
próprio conhecimento, através de situações onde os alunos possam
atuar de maneira ativa sobre os objetos.
Mas como mediar essa autonomia, se a prática presenciada
muitas vezes se resume a folhas de exercícios em que o docente define
a resposta da criança como “certa” ou “errada”? Sobre isso, Kamii
(1991, p. 64) discorre que:
151
Na escola, as crianças raramente têm oportunidade de
dizer honestamente o que pensam. Elas não são
incentivadas a ter opiniões próprias e a defender seus
pontos de vista. Se uma criança pensar que 8 + 5 = 12, ela
deveria ser encorajada a defender seu ponto de vista até
que ela decida que outra solução é melhor. É importante
incentivar a criança a ter sua própria opinião e deixá-la
decidir quando outra ideia melhor apareça. Ideias erradas
devem ser modificadas pela criança. Elas não podem ser
eliminadas pelo professor. Além disso, a natureza do
conhecimento lógico matemático é tal que o professor
pode estar seguro de que as crianças chegarão a respostas
corretas, se discutirem o suficiente entre elas.
De forma geral, é possível afirmar que o trabalho proposto
em sala de aula não tem como objetivo a autonomia, mas sim a
obediência e a disciplina. Não é ensinado aos alunos e às alunas a
pensarem de fato, mas, ao imporem respostas corretas através de
“modelos” a serem seguidos, sob a ameaça de nota na avaliação
escrita, reforça-se a heteronomia.
Dentro desse contexto, Cunha (2008, p. 64) afirma que:
O professor é responsável por apresentar situações
desafiadoras que permitam ao aluno perceber o desequi-
líbrio que entre ele e os conteúdos das matérias
escolares. Além disso, cabe também ao professor organizar
um ambiente de aprendizagem que favoreça a ação do
aprendiz sobre esses mesmos conteúdos.
152
Modificar a posição das carteiras, desmanchando as fileiras,
organizar a sala em grupos e se desconectar da aula expositiva com
foco no que é escrito no quadro cria uma abertura para que o
ambiente de aprendizagem seja constituído no espaçosico escolar.
As situações desafiadoras podem ser criadas sem a necessidade de
cópia no caderno, onde a reflexão e a autonomia estejam presentes
no desenvolvimento da aula. Piaget (1978) afirmava na década de
70 que: “[...] o que se deseja é que o professor deixe de ser apenas
um conferencista e que estimule a pesquisa e o esforço, ao invés de
se contentar com a transmissão de soluções prontas”.
Essas concepções também se fizeram presentes em alguns
documentos oficiais, como nos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs), publicados em 1997, com a finalidade de orientar a prática
docente (BRASIL, 1997). Por que, então, não temos evidências do
uso de Piaget nas escolas?
A partir deste questionamento, surgiu a proposta de refletir
e planejar novas ações que pudessem adequar o construtivismo à
realidade vivenciada. Inicialmente, a hipótese era a de que a
quantidade de dificuldades que não tornaria possível colocar em
prática um fazer docente pautado na teoria do sociólogo. Contudo,
no decorrer da pesquisa, essa hipótese foi descartada, visto que foi
possível trabalhar aspectos do construtivismo mesmo com todas as
dificuldades de uma “sala de aula real”.
Apesar de Jean Piaget ser um nome relevante na formação de
professores e, incontestavelmente, na educação como um todo, é
possível afirmar, de uma forma geral, que a rotina de muitas escolas
e as práticas pedagógicas, especialmente nas aulas de Matemática nos
anos iniciais, não evidenciam concepções de suas pesquisas em sala
153
de aula. Partindo dessa premissa, este artigo relata vivências iniciais
na busca de uma prática pedagógica norteada por aspectos do
construtivismo de Jean Piaget, como a concepção do aluno ativo em
uma sala de aula.
Desta forma, este estudo tem como objetivo partilhar os
caminhos encontrados, assim como as dificuldades vivenciadas em
uma prática pedagógica norteada por aspectos da teoria
construtivista, assim como a concepção do aluno ativo, em uma sala
de aula do ano do Ensino Fundamental de uma escola pública.
As atividades exploradas com as crianças envolveram noções de
multiplicação e divisão a partir da análise de erros e da utilização de
materiais manipuláveis, como um pacote de balas.
Aspectos metodológicos
As atividades com as crianças foram realizadas no ano de
2016 em uma escola da rede estadual de Mato Grosso do Sul,
localizada na periferia da cidade de Dourados. A escolha do local
ocorreu pelo fato de, além de ser uma escola pública, ser onde a
primeira autora deste artigo lecionava por 20h semanais como
professora polivalente em uma turma de ano do Ensino
Fundamental, sob regime de contrato. Desta forma, atuando como
professora da sala, seria possível a melhor evidenciação dos
obstáculos e das possibilidades vivenciadas.
A turma pesquisada era composta por 30 alunos na faixa
etária de 8 a 10 anos de idade, estando incluídas três alunas com
necessidades especiais. Para estas, as atividades foram adaptadas de
acordo com suas especificidades. Como a Educação Especial não era
o foco da investigação, optou-se por não analisar as atividades
154
produzidas por elas, assim como as de um outro aluno que se
matriculou quando as atividades iniciais estavam em andamento.
Desta forma, a pesquisa realizou-se com 26 crianças. A maioria dos
alunos iniciaram seus estudos no âmbito da educação formal naquela
escola, ou seja, faziam parte do quadro discente desde o ano do
Ensino Fundamental. Estes estavam acostumados a manter silêncio
durante as aulas e a sentar-se enfileirados.
Para orientar o caminho a ser percorrido, a pesquisa teve
como aporte metodológico o Estudo de Aula, o qual corresponde a
uma metodologia reflexiva sobre a própria prática profissional do
professor. De acordo com Baptista et. al. (2014, p. 62): “essa
modalidade teve origem no Japão no início do século XX, conheceu
grande divulgação nos Estados Unidos da América na última década
e tem vindo a atrair o interesse de educadores e investigadores de
todo o mundo”.
De forma sistematizada e concordando com a citação acima,
Quaresma e Ponte (2015, p. 298) afirmam que “trata-se, portanto,
de um processo muito próximo de uma pequena investigação sobre
a sua própria prática profissional”. Assim, o estudo de aula constitui-
se em três momentos principais: planejamento, observação e reflexão
para reorganização das atividades propostas aos alunos (BAPTISTA
et al., 2014). O conjunto destas três etapas constitui um processo de
aprendizagem profissional que leva os professores a aprofundar o seu
conhecimento sobre a aprendizagem dos alunos e o modo de
promo-la na sala de aula.
Dentro dessa metodologia de pesquisa, os procedimentos
realizados para que se efetivasse a investigação, desde a pesquisa
bibliográfica até a análise final, ocorreram em diferentes momentos:
155
momento: Estudo bibliográfico da literatura sobre a obra
de Piaget;
momento: Elaboração, aplicação, reflexão e reelaboração
das atividades aplicadas;
momento: Análise dos dados coletados, tendo como
aporte teórico as pesquisas de Piaget e outros teóricos que
compartilham de sua obra.
O conteúdo das atividades propostas aos alunos buscou
respeitar o Referencial Curricular de Mato Grosso do Sul, o qual
está organizado em bimestres e tem como principal finalidade
nortear o trabalho dos professores em sala de aula. Assim, tendo em
vista que o início da pesquisa ocorreu no terceiro bimestre do ano
letivo, e o foco era a aritmética, os conteúdos do referencial (Figura
1) eram:
Figura 1 – Conteúdos curriculares
Fonte: Estado do Mato Grosso do Sul (2008)
Logo, o planejamento procurou envolver noções de
multiplicação e divisão, buscando possibilidades para a imple-
156
mentação de uma prática pedagógica norteada por aspectos da teoria
do construtivismo de Jean Piaget, como a concepção do aluno ativo,
gravação – com a autorização dos pais dos alunosdo que era feito
em sala de aula e a análise das imagens.
Discussão dos resultados
Anterior ao desenvolvimento da investigação, havia
passado dois meses da introdução formal da multiplicação, como
ideia de soma repetida da mesma parcela, por meio de exercícios de
repetição, explicação do conteúdo no quadro e exemplos a serem
seguidos.
Neste contexto, foi aplicada aos alunos uma avaliação
bimestral, como de costume na organização do trabalho da escola. A
prova continha duas questões formuladas com o objetivo de verificar
se as crianças haviam apreendido a utilizar o algoritmo da
multiplicação e seguiam o modelo proposto durante as aulas. Para
melhor compreensão do raciocínio dos alunos, junto aos problemas
foi inserida uma tabela 1x1 abaixo da questão. A hipótese era que as
crianças a utilizariam para escrever ou desenhar como resolveram o
problema.
Ao contrário disso, houve agitação da turma por não
saberem como utilizar o quadro presente na avaliação e, após
explicações, surgiram dúvidas, como se poderiam fazer “pauzinhos”
ou “bolinhas” representações utilizadas pelos alunos para auxiliar
a contagem –, o que explica o fato de muitos justificarem o não uso
do quadro com a frase “não precisei fazer pauzinhos” ou “eu fiz de
cabeça”, mesmo após a utilização do algoritmo.
157
Após a avaliação, foi proposta uma exploração oral e de
forma individual, para compreender como cada criança havia
realizado as questões. A proposta não foi bem-sucedida, que
enquanto um aluno era abordado, o restante da turma se
desorganizava, conversava e se distraía, mesmo que ocupados com
outra atividade.
A análise dessa avaliação demonstrou que o tipo de problema
abordado e a metodologia utilizada em sala de aula não favoreciam
a criticidade, a criatividade, a autonomia, e tampouco o raciocínio
das crianças, que elas realizaram o que estavam condicionadas a
fazer: o algoritmo.
Assim, foi necessário planejar atividades que permitiam a
reflexão e a interação com os colegas, tornando o aluno um
participante ativo na construção de seu próprio conhecimento.
Considerando que a utilização do material concreto é um fator
importante para a aprendizagem, e que estimula a desenvolver
habilidades, em especial as cognitivas (PIAGET, 1974), para essas
novas atividades foram utilizados materiais de baixo custo (balas,
caixas de ovos e ovos) como apoio, visto que a instituição escolar não
poderia contribuir com outros aparatos ou algum recurso financeiro.
Em um primeiro momento, foi proposto um problema
parecido com o da avaliação, envolvendo uma situação de compra e
venda de ovos. Com as crianças organizadas em grupos e sentadas
no chão, ovos cozidos com casca e suas caixas foram disponibilizados
para que auxiliassem na contagem, assim como uma folha de papel
pardo, lápis de cor e canetinhas. Novamente o problema foi
resolvido de forma mecânica e o material não utilizado.
158
A ideia de organizar a turma em grupos partiu da necessidade
de atender a um número grande de crianças e do insucesso em não
conseguir fazer isso de forma individual, como anteriormente, após
a avaliação. Além disso, os grupos possibilitam maior interação entre
as crianças e a troca de conhecimentos.
No final da aula, organizados em uma grande roda para a
discussão do problema, nenhum aluno lembrava-se do que tratava a
questão, demonstrando não terem se envolvido com o tema,
pensado ou refletido sobre ele.
Novamente, tornou-se necessário refletir sobre a atividade
desenvolvida e, em busca de colocar em prática um perfil
construtivista, organizando “[...] metodologias adequadas para cada
situação proposta, retomando e articulando os conteúdos de forma
a ampliar gradativamente o grau de dificuldade das atividades
matemáticas” (GÁSCON apud SILVA; SALES, 2015, p. 430), a
experiência foi repetida, mas dessa vez com um problema mais
elaborado, que necessitasse da interpretação das crianças.
A sala e os materiais foram organizados da mesma forma, e
houve uma grande dificuldade na resolução, pois as crianças não
sabiam qual algoritmo utilizar, pois estavam “presas” à crença de que
a multiplicação seria a única forma de resolução. Após intervenções
e questionamentos, as crianças começaram a discutir e a utilizar o
material concreto para a contagem, o que auxiliou para que todos
chegassem à resposta correta.
A fim de prosseguir com um trabalho comprometido com o
desenvolvimento da reflexão e autonomia do aluno, durante as aulas
de Matemática foram explorados, de forma oral, problemas
159
envolvendo noções de divisão, conteúdo nunca abordado antes com
a turma, tendo balas como material de apoio.
Com um pacote do doce em mãos, foi trabalhada a temática
da estimativa com as crianças, perguntando quantas balas teriam ali
dentro. A maioria testava quantidades aleatórias, sem considerar a
resposta do colega, chegando a repetir os mesmos números. Todavia,
elas apenas queriam se expressar, aproveitando a abertura que não
era comum. Além de conteúdos matemáticos, foi possível perceber
a oportunidade da fala, expressão e a valorização do que é dito,
construindo um ambiente agradável na relação alunos e professores.
A organização da sala não era a mesma, pois os alunos não
estavam mais enfileirados e quietos, repetindo comandos.
Tornavam-se, aos poucos, autônomos e falantes. Queriam experi-
mentar e testar hipóteses. O barulho era constante, mas não
“incômodo”, pois percebia-se os avanços conquistados por eles.
A partir desse momento, as aulas basearam-se em problemas
matemáticos envolvendo balas, todos lançados oralmente, como: “Se
a professora entregar uma bala para cada aluno da sala, quantas balas
eu vou dar?”. Perguntas consideradas simples, como a exposta, foram
constatadas pelas crianças com o uso do material manipulável, ou
seja, as próprias balas.
Com o passar dos dias, os problemas tornaram-se mais
difíceis, até que uma aluna propôs seu próprio questionamento, o
qual envolvia uma divisão com resto diferente de zero: “E se eu tiver
doze balas para dividir com dez amigos?”.
Técnicas pessoais foram criadas a partir do desenho, grupos
se formaram de forma espontânea. Alguns preferiram utilizar as balas
160
e, após muita discussão, chegaram à conclusão de que sobrariam
duas.
Dois alunos não se conformaram com o restante e afirmaram,
ainda, que a conta “12 dividido por 10” não existia. Mais uma vez
as especulações foram compartilhadas com toda a turma, que
chegaram à conclusão de que a melhor forma de resolver esse
problema seria cortar em dez pedaços cada bala que sobrou e dividir
novamente entre os dez amigos.
Nestes relatos é possível perceber o desenvolvimento da
autonomia das crianças e a construção de seu próprio conhecimento.
A abertura da aula para a participação possibilitou, inclusive, a
segurança da criação de novos problemas, o raciocínio, a fala e a
interação entre os pares.
Considerações finais
Apesar de Jean Piaget ser um nome relevante na formação de
professores e, incontestavelmente, na educação como um todo, é
possível afirmar, de uma forma geral, que a rotina de muitas escolas
e as práticas pedagógicas, especialmente nas aulas de Matemática nos
anos iniciais, não evidenciam concepções de suas pesquisas em sala
de aula. Entretanto, em todo o percurso da pesquisa, foi possível
perceber que alguns obstáculos presentes no cotidiano escolar que
poderiam impedir, de alguma forma, a utilização de aspectos do
construtivismo piagetiano em sala de aula foram minimizados
através de estratégias, como a formação de grupos, a fim de juntar os
alunos, propiciar a troca de ideias e possibilitar a mediação
pedagógica sem tantas dispersões e a utilização de materiais
161
manipuláveis através da disponibilização de objetos de baixo custo,
como balas e caixas de ovos, substituindo os disponíveis no mercado
e que não são oferecidos pela escola.
Dessa maneira, percebe-se que mesmo com as dificuldades
existentes na educação pública em nosso país, os docentes
comprometidos com uma educação de qualidade, capaz de formar
sujeitos pensantes, críticos e autônomos, podem se valer da teoria
piagetiana como forma de oferecer subsídios para que os alunos
aprendam de maneira prazerosa.
Quando os alunos têm a possibilidade de agir de maneira
autônoma, construindo seu próprio conhecimento, os mesmos têm
a oportunidade de desenvolver seu raciocínio gico, a capacidade de
argumentação, a interação, e sobretudo a criticidade, pois ao
argumentarem, estão expondo seu ponto de vista acerca dos
problemas apresentados. Tais questões se tornam de extrema
importância, pois ao adentarem a vida adulta, tais sujeitos poderão
agir em sociedade de maneira crítica e autônoma, podendo acima de
tudo lutar pelos seus direitos.
Com isso, uma prática pedagógica alicerçada nos postulados
construtivistas tende a favorecer, segundo Assis (2013, p.72), “a
aquisição das estruturas operatórias concretas através do processo de
equilibração pelo qual elas se constroem e não através da
aprendizagem”. Sendo assim, a tarefa dos educadores não deve ser a
de ensinar alguns conhecimentos, que sejam vistos como
fundamentais, mas proporcionar situações que sejam favoráveis para
que os alunos construam seus conhecimentos, elaborando hipóteses
e criando estratégias para resolução de problemas.
162
Em relação à aquisição do conhecimento, Piaget (1977)
afirma que “[...] para conhecer os objetos o sujeito precisa agir sobre
eles e, portanto, transformá-los, dissociá-los e reuni-los novamente”
(1977, p. 72). Percebe-se, dessa maneira, que agindo sobre os objetos,
os sujeitos estruturam e adquirem conhecimento.
Apesar disso, a grande quantidade de conteúdos exigidos
para cada bimestre pelo Referencial Curricular e a falta de apoio da
comunidade escolar são obstáculos ainda presentes, este último,
provavelmente, pela falta de conhecimentos ou até mesmo
distorções do trabalho de psicólogo suíço no ideário de profissionais
da educação.
Desta forma, conclui-se a referida pesquisa com a certeza de
que alguns princípios da teoria de Piaget, como a do aluno ativo,
construtor de seu próprio conhecimento, podem ser trabalhados em
sala de aula, desde que o professor ou a professora compartilhe de
uma concepção pedagógica que tenha como objetivo de educação a
autonomia de seus alunos, e esteja sempre em busca de estratégias
para adequar os estudos desenvolvidos pelo teórico a sua realidade
escolar.
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COMPREENO DA OPERAÇÃO DE
MULTIPLICAÇÃO: ESTUDO COM REFERÊNCIA
NA EPISTEMOLOGIA GENÉTICA
Sônia BESSA
1
Introdução
Esse capítulo apresenta uma investigação com aporte na
Epistemologia Genética realizada com estudantes de ao ano do
Ensino Fundamental com o objetivo de investigar o nível de
compreensão da operação aritmética de multiplicação e as estratégias
utilizadas ao se defrontarem com uma situação experimental
envolvendo a multiplicação. Jean Piaget esclarece que a
aprendizagem da Matemática é essencial, uma vez que um prejuízo
nessa área redundaria numa deficiência nos próprios mecanismos do
desenvolvimento do raciocínio. Para esse cientista, a Matemática é a
lógica de todas as formas evoluídas do pensamento científico e todas
as noções matemáticas principiam por uma construção qualitativa,
antes de adquirirem caráter métrico (PIAGET, 2010). Dada a sua
natureza qualitativa Piaget chama a atenção para a busca de métodos
de ensino aprendizagem, experimentais que apelem para a ão sobre
1
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
e docente do Instituto Acadêmico de Educação e Licenciaturas e do Programa de
Pós-Graduação em Gestão, Educação e Tecnologias (PPGGET) da Universidade
Estadual de Goiás (UEG), Campus Formosa, Goiás, Brasil. E-mail:
sonia.bessa@ueg.br
166
o objeto do conhecimento, a reinvenção e a redescoberta pelos
estudantes.
No ano 2017 foi lançada a portaria n.º 1.570 que instituiu
e orientou a implantação da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), para a Educação Infantil e Ensino Fundamental (BRASIL,
2017). Esse documento apresenta para o ensino de aritmética
unidades temáticas que se estendem do primeiro ao quinto ano do
ensino fundamental.
Para o primeiro ano do Ensino Fundamental na unidade
temática “números”, são propostos problemas envolvendo diferentes
significados da adição e da subtração como juntar, acrescentar,
separar, retirar. No segundo ano, problemas com diferentes
significados da adição e subtração; adição de parcelas iguais;
estratégias e formas de registros pessoais. No terceiro ano, a
multiplicação continua fundamentada nos fatos básicos da adição,
incluindo cálculo mental ou escrito; problemas com diferentes
significados da multiplicação e da divisão e problemas de
multiplicação.
No quarto ano, problemas com diferentes significados da
multiplicação e da divisão: adição de parcelas iguais, proporcio-
nalidade, repartição equitativa e medida; problemas de divisão cujo
divisor tenha no máximo dois algarismos, números racionais e
frações unitárias e por fim no quinto ano, a unidade temática
acrescenta representação fracionária dos números racionais como
identificar frações equivalentes, ordenar e comparar números
racionais positivos, cálculo de porcentagens e representação
fracionária; problemas: multiplicação e divisão de números
racionais; resolver e elaborar problemas de multiplicação e divisão
167
com números naturais e com números racionais utilizando
estratégias diversas como cálculo por estimativa, cálculo mental e
algoritmos.
A proposta é ousada, mas levanta alguns questionamentos
perturbadores: está sendo levada em consideração a maturidade
intelectual das crianças? Ou as características peculiares do
desenvolvimento? Ao final do ano compreenderiam as crianças a
operação de multiplicação e divisão com números naturais e
racionais?
O ensino da Matemática tem ocupado um espaço
importante na formação escolar e o bom desempenho dos estudantes
tem forte relação com a permanência na escola e com o abandono
escolar, contudo, as práticas pedagógicas dos professores podem
ainda estar ligadas a procedimentos empíricos ou aprioristas com
ênfase nos algoritmos e na memorização mecânica de fórmulas e
conceitos. Em pesquisa intercultural com docentes que ensinam
Matemática do Brasil, Chile, Uruguai e Peru, Becker (2021)
constatou paradoxos nas concepções de ensino aprendizagem dos
professores: os docentes acreditam no surgimento precoce de noções
matemáticas básicas, atribuindo-as à pressão do meio, mediante
estimulação e repetição. Confundem construções lógicas, realizadas
pela criança, do nascimento aos 7/8 anos, com noções matemáticas
básicas. Atribuem seu surgimento à estimulação (fundamentada pela
maturação), com desvalorização da ação do sujeito e de seu processo
de desenvolvimento cognitivo.
Esse caminho encontrado nas concepções dos professores é
oposto ao que a epistemologia genética de Jean Piaget tem colocado,
que o conhecimento não se constitui numa cópia do real, mas
168
consiste na ação do indivíduo ao “agir sobre ele e transformá-lo [...]
em função dos sistemas de transformação aos quais estão ligadas estas
ações” (PIAGET 1983, p. 15). É necessária uma estrutura que se
origina das atividades do indivíduo. As estruturas cognitivas são,
assim, construídas mediante a interação entre o sujeito e o objeto de
conhecimento (FERRAZ; TASSINARI, 2015).
Piaget (2007, p. 13) esclarece que “[...] o conhecimento não
poderia ser concebido como algo predeterminado nas estruturas
internas do indivíduo”, ou mesmo “[...] nos caracteres preexistentes
do objeto, pois estes são conhecidos graças à mediação necessária
dessas estruturas”.
Ao considerar a operação de multiplicação nosso objeto de
estudo nessa investigação, constatamos que esta pode ser ensinada
como se fosse a mera repetição da adição, com concepções
hierárquicas que fragmentam o currículo (LARA, 2011), ou então
de maneira transmissiva (KAMII; JOSEPH, 2005, BESSA; COSTA,
2017) usando como principal recurso a tabuada de multiplicação e
o massivo uso de exercícios de treinamento. Essa perspectiva é
fortemente não recomendada por Piaget (2010), Castro et al. (2016),
Gitirana et al. (2014), Santos e Rodrigues (2019), Nunes, Carraher
e Schliemann (2011), Mantovani de Assis (2017), Bessa e Costa
(2019) e outros.
Piaget (1995), admite que a multiplicação é bem mais
complexa que a adição, ao exigir processos mais elaborados de
coordenações entre os elementos, uma vez que a adição consiste na
reunião de objetos enquanto a multiplicação consiste em depreender
o número de vezes. Como complementa Vergnaud (2011) ao
realizar a multiplicação os estudantes elaboram operações de
169
pensamento que implicam em raciocínio sobre quantidades e
grandezas.
Granell (1983), com referência em Piaget, discute duas
importantes aquisições quando se trata da multiplicação: uma delas
é a possibilidade do estudante constatar a presença do “operador
multiplicativo”, o que lhe permitirá fazer antecipações do mero
“n” de conjuntos e outra aquisição é a capacidade de realizar uma
compensação exata entre as duas variáveis: “n” número de vezes
ou de conjuntos e “x” número de elementos de cada conjunto. A
descoberta desse “operador multiplicativo” a que se refere Granell
(1983) é condição necessária, porém não suficiente, para que o
estudante compreenda a multiplicação, porque comporta em sua
conceitualização, mecanismos oriundos da abstração reflexionante
(PIAGET 1995) cada vez mais complexos. Becker (2021) com
referência na epistemológica genética esclarece que são as abstrações
reflexionantes resultantes da ação do sujeito, que permite a
construção da noção de número e que, uma vez interiorizadas,
transformam-se em operações de soma e subtração, de multiplicação
e divisão, etc.
O “operador multiplicativo” conforme mencionado por
Granell (1983) permite ao estudante antecipar o número do
conjunto e a compensação do número de elementos de cada um
deles. Quando o estudante utiliza o operador multiplicativo,
simultaneamente utiliza estratégias de multiplicação e divisão para
resolver as situações.
Estudos realizados por Mendes Brocardo e Oliveira (2013)
com crianças no ano do Ensino Fundamental apontaram que a
aprendizagem da multiplicação se processa gradualmente de forma
170
progressiva e com estratégias cada vez mais sofisticadas. Esses autores
esclarecem que as relações entre as operações se estabelecem
especialmente entre a adição, a multiplicação e a divisão. Os
primeiros procedimentos dos estudantes ao iniciarem a multipli-
cação é utilizar a adição sucessiva.
Como proposto na epistemologia genética, a Matemática é
um sistema de construções que, apoiado de início nas coordenações
das ações e operações do sujeito, faz-se em uma sequência de
abstrações reflexionantes de níveis sempre progressivos. A
compreensão lógica dos conhecimentos incluindo a operação de
multiplicação e divisão é função direta da construção de estruturas
mentais (BESSA; COSTA 2019).
A perspectiva das operações aritméticas como um processo
de construção é compartilhada por autores como Piaget e Zseminska
(1981), Vergnaud (1990), Piaget (2003), Moro (2005), Kamii e
Joseph (2005), Fávero e Neves, (2009), Lara (2011), Lara e Borges
(2012), Mantovani de Assis (2017), Bessa e Costa (2019), Schreiber
et al. (2019), Santos e Bessa (2021), Becker (2021) e outros.
Nesse contexto, este estudo tem como objetivo investigar a
compreensão de multiplicação de estudantes do ao ano do
Ensino Fundamental e quais estratégias utilizam para resolverem
uma atividade experimental envolvendo a operação aritmética de
multiplicação.
Procedimentos metodológicos
Para essa investigação de natureza empírica descritiva
fundamentada na epistemologia genética foi constituída amostra
aleatória com 109 crianças de escolas públicas (70) e particulares
171
(39) de duas unidades federativas: Goiás (77) e Distrito Federal (32).
24 deles frequentavam o ano, 42 o ano e 52 o ano. A
distribuição dos estudantes quanto a idade, ano escolar e gênero
pode ser visualizada na tabela 1.
Tabela 1 – Caracterização da amostra: idade, ano escolar e gênero
a que pertencem
Ano escolar Idade
Gênero
Total
Masculino
Feminino
ano
8
9
12
9
2
2
ano
8
5
6
9
8
6
10
2
4
11
1
0
ano
9
2
1
10
11
11
11
11
8
12
5
1
13
1
1
Total
57
52
Fonte: Dados da pesquisa
A fim de avaliar as condutas de multiplicação dos estudantes,
foi utilizada uma atividade experimental com palitos que requeria a
utilização das operações aritméticas de adição multiplicação e
divisão.
A aplicação da atividade fundamentou-se no método clínico-
crítico de Jean Piaget; as perguntas foram feitas com adaptações
necessárias ao contexto e à idade dos participantes e requeriam
172
diferentes níveis de elaboração pelo estudante. Em algumas, o nível
de informação disponível é investigado; em outras, busca-se a
descrição de um processo e, ainda em outras, são solicitadas
explicações conceituais que requerem maior elaboração por parte do
estudante. Essa dinâmica de trabalho fundamenta-se no método
clínico-crítico (PIAGET, 2005), que consiste em uma intervenção
sistemática do pesquisador em função do que o participante vai
dizendo ou fazendo.
A atividade foi dividida em duas partes: entrega-se ao
estudante uma quantidade de palitos (de picolé) e pede-se que ele
faça o maior número de figuras com dois, três e quatro palitos
respectivamente. A pesquisadora pergunta-lhe quantos palitos usou
ao todo, como chegou àquele resultado e se havia outra maneira de
descobrir o total de palitos. Após fazer essa atividade com dois, três
e quatro palitos, é proposto ao estudante uma quantidade “X” de
palitos (12, 15 e 18) e pergunta-se quantas figuras diferentes ele pode
fazer usando a mesma quantidade, sem sobrar nem faltar palitos.
Uma vez concluída a proposta com 12 palitos, é realizado o mesmo
procedimento com 15 e 18 palitos respectivamente.
Essa atividade experimental foi utilizada por Zaia (2013), e
adaptada até chegar à versão final, apresentada nessa investigação.
Foram organizados seis níveis de compreensão do mais elementar ao
mais complexo: IA, IB, IIA, IIB, IIIA e IIIB para explicar a evolução
do pensamento do estudante.
Nível IA – O estudante não chega à consciência do número
de vezes que pegou determinada quantidade de palitos para fazer
figuras. O pensamento está centrado sobre os palitos de cada figura,
ou sobre a quantidade total, não coordena parte e todo. Não acredita
173
que pode obter a mesma quantidade total a partir de figuras feitas
com outras quantidades parciais.
Nível IB Consegue tomar consciência do número de
figuras feitas ou do número de vezes que pegou determinada
quantidade de palitos, mas não acredita que com a mesma
quantidade, possa construir figuras de quantidades diferentes, sem
sobrar ou faltar palitos. Realiza a maioria dos procedimentos por
tentativa e erro.
Nível IIA A multiplicação é parcialmente compreendida
como adição de adições, não têm consciência da operação “N vezes
X” (operador multiplicativo). Quando consegue obter a mesma
quantidade total a partir das figuras o faz por tentativa e erro, sem
recorrer a antecipações mentais.
Verifica-se o início da compensação necessária, embora
intuitiva e, qualitativa, pela qual se conclui que para obter com a
mesma quantidade de palitos o maior número de figuras é necessário
que cada uma delas tenha menos palitos, ou que uma quantidade
menor de figuras deve ter mais palitos cada uma.
Nível IIB Antecipa composições possíveis, realiza cálculo
mental, mas predomina procedimentos aditivos, ocasionalmente
refere-se a procedimentos multiplicativos, e quando o faz utiliza
materiais como palitos, dedos, marcas de contagem e/ou outras
representações pictóricas.
Nível IIIA Utiliza procedimentos multiplicativos por
cálculo mental, mas não compreende ou utiliza a reversibilidade
necessária à operação de divisão, reconhece parcialmente os divisores
de 12, 15 e 18 recorrendo à multiplicação.
174
Nível IIIB - Alcança a reversibilidade necessária à operação
de divisão, calculando mentalmente e simultaneamente a partir da
multiplicação e divisão, reconhece os divisores de 12, 15 e 18
recorrendo à multiplicação e/ou à divisão.
Essa investigação seguiu os princípios éticos propostos em
pesquisas com seres humanos e os procedimentos aprovados pelo
Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de
Goiás (UEG). A atividade experimental foi aplicada individual-
mente, após a autorização dos pais ou responsáveis terem assinado o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) com a
garantia de anonimato e confidencialidade das informações.
A coleta de dados foi realizada em sala reservada pela equipe
gestora das instituições. A duração da aplicação da entrevista
individual foi de aproximadamente 30 minutos, no mês de setembro
de 2019, com gravação em vídeo para transcrição e análise posterior
da pesquisadora. A transcrição da fala dos participantes foi feita em
forma de protocolos, com registro minucioso, inclusive gestos,
olhares e reações dos estudantes durante a atividade.
Resultados e discussão
Após a transcrição dos dados, foi feita a classificação das
respostas de acordo com os níveis apresentados por Zaia (2013) e o
ano escolar a que pertenciam os estudantes. O gráfico 1 apresenta a
distribuição dos níveis encontrados.
Tabela 2 – Níveis de noção de multiplicação e ano escolar
Ano
escolar
Níveis noção de multiplicação
Total
IA
IB
IIA
IIB
IIIA
IIIB
175
ano
4,0%
44,0%
24,0%
16,0%
12,0%
-
100,0%
ano
-
28,1%
40,6%
15,6%
15,6%
-
100,0%
ano
-
17,3%
21,2%
17,3%
36,5%
7,7%
100,0%
Total
0,9%
26,6%
27,5%
16,5%
24,8%
3,7%
100,0%
Fonte: Dados da pesquisa
Níveis IA e IIIB, o mais elementar e o mais evoluído, m
percentual reduzido de estudantes. Os estudantes do ano têm
uma evolução menor que os demais com maioria (44%) no nível IB.
O e anos tem percentuais próximos nos níveis IB (28,1% e
17,3%) e IIB (15,6% e 17,3%), sobressaindo-se o 5º ano nos níveis
IIB (17,3%), IIIA (36,5%) e IIIB (7,7%). Nenhum estudante do
ou ano estava no nível IIIB. Paradoxalmente, num mesmo ano
escolar tem estudantes de níveis bem elementares e mais evoluídos,
isso ocorreu em todos os três anos investigados.
Estudantes de e ano tiveram melhores níveis de
compreensão de multiplicação, no ano, 36,5% estavam no vel
IIIA enquanto o ano 15,6% e o ano 12,0%, contudo, ainda
existe um percentual alto de estudantes do ano no nível IB
(17,3%) e no nível IIA (21,2%) que soma 38,3% dos participantes.
O maior percentual de estudantes da amostra estava no nível
IIA (27,5%), esse representa uma evolução em relação ao IB e IA,
mas ainda é pouco satisfatória para os estudantes de acordo com as
habilidades requeridas pela BNCC.
No n
ível IIA os estudantes passam a acreditar na
possibilidade de obter a mesma quantidade total de palitos a partir
de figuras com outras quantidades de palitos, contudo, não
conseguem fazer antecipações e recorrem com frequência ao material
concreto (retorno empírico) para confirmar o pensamento. Verifica-
176
se nesse nível o início de um processo de tomada de consciência do
número de operações correspondente a n vezes x”, sendo n o
número de vezes que se pega os palitos ou o mero de figuras e x o
número de palitos de cada figura. O estudante nesse nível, descobre
a compensação necessária, mas ainda intuitiva, pela qual se conclui
que para obter, com a mesma quantidade de palitos, o maior mero
de figuras, é necessário que cada uma das figuras tenha menos
palitos, ou que uma quantidade menor de figuras tenha mais palitos
cada. A multiplicação é compreendida como adição de adições,
sendo que o sucesso é alcançado por via aditiva, sem plano e sem
tomada de consciência da operação n vezes x.
O estudante A.
2
, de 11 anos, está no nível IIA e é doano
de escola pública do DF. A. recebeu uma quantidade de palitos e foi
solicitado que fizesse figuras diferentes com 2 palitos por um período
de 15 segundos. Rapidamente A fez 8 figuras com 2 palitos.
P.: Quantas figuras vo fez? A.: 8. P.: Quantos palitos
você usou ao todo? A.: 16 (parou olhou detidamente e
conferiu mais de uma vez pra ver se tinha mesmo 16
palitos) P.: Como fez para descobrir? A.: Na mente,
contei antes de fazer as figuras. P.: Como? A.: Contei de
1 em 1. P.: Teria outro jeito de descobrir, diferente desse?
A.: Contando de 2 em 2, ou assim: 2 4 6 – 8. P.: teria
outro jeito diferente desse? A.: Não sei, estou em dúvida.
(pensou um pouco, ficou olhando para os palitos antes de
responder. P.: Um menino da outra escola, da sua idade
me disse que daria para saber fazendo 2 X 8 ou então 8 X
2
Será utilizada a primeira letra do nome para proteger a identidade do estudante
e a letra P para designar a pesquisadora.
177
2, o que você acha ele está certo ou errado? A.: Sim daria,
pode ser pela tabuada de vezes.
O estudante fazia agrupamentos com dois, três ou quatro
palitos e sempre mencionou as mesmas formas de calcular (contando
de dois em dois, três em três ou de quatro em quatro). Antes de fazer
as figuras separava rapidamente os palitos conforme a solicitação em
dois, três ou quatro e ia montando as figuras, mas sempre utilizando
o procedimento aditivo, mesmo diante de contra-argumentos,
chegou a reconhecer a operação de multiplicação, mas alegou que
preferia usar a adição.
Para a segunda situação, 12 palitos foram entregues a A. e foi
solicitado que fizesse figuras usando a mesma quantidade, sem deixar
sobrar ou faltar palitos. Como ele estava tendo dificuldade de
entender o que fora solicitado, foi sugerido que ele montasse figuras
com um, dois, três, quatro, seis e 12 palitos, que são os divisores de
12. A. pegou os palitos, contou e foi separando em agrupamentos de
três em três, obtendo, assim, quatro figuras.
P.: Quantas figuras você fez? A.: Fiz quatro de três. P.:
Qual é o total de palitos? A.: 12. P: Como fez para
descobrir? A.: Contando de três em três. P.: Poderia
contar de outra forma? A.: se for 4 × 3. (A. admitiu a
possibilidade de utilizar a multiplicação) P.: Com seus
palitos, você poderia fazer figuras com outras quantidades
em cada uma, sem sobrar nem faltar? Por quê? A.: Sim,
mas não sei por quê. P.: E se você tentasse com dois
palitos, daria? A.: Sim, com dois dá, porque esses que
sobrar eu junto com os outros.
178
O estudante conseguiu fazer figuras com 3, 4, 2 e 6 palitos,
mas de forma intuitiva por tentativa e erro e mediante sugestões da
pesquisadora e contra-argumentos. Foram-lhe entregues 15 palitos
para que fizesse a mesma coisa. Era esperado que ele fizesse figuras
utilizando um, três, cinco e 15 palitos. Depois de tateios, A. fez cinco
figuras com três palitos.
P.: Vo tem certeza de que usou o mesmo número de
palitos em cada figura? Como você fez para descobrir? A.:
Tentei com dois palitos, não deu. Então tentei com
quatro e também não deu, deu com três. P.: Como você
fez para descobrir? A.: Contei de três em três. P.: Será que
teria outro jeito de você contar? Um menino da sua idade
me disse que poderia ser 5 × 3. O que você acha disso? A.:
Sim poderia ser. pra contar 5 × 3. (Nesse momento
ficou meio eufórico, com a descoberta). P.: Tem certeza?
A: Sim, porque eu contei 5 × 3 de três em três. Sim, mas
não tenho certeza, mas para fazer com três palitos
(embora feliz por ter descoberto outro caminho, teve um
recuo e não admitiu que poderia fazer três figuras de cinco
ou cinco figuras de três).
O estudante A., teve dificuldade no cálculo mental e
recorreu muitas vezes ao suporte empírico. Utilizava o termo
multiplicação, mas não ficou claro que compreendia o elemento
multiplicador e o pensamento hierárquico requerido para essa
operação. Como esclarece Kamii e Joseph (2005), a multiplicação
requer o pensamento hierárquico numa relação de um para muitos,
assim, para multiplicar 3 x 5 o estudante precisará transformar por
179
cálculo mental 5 unidades em 3 cinco, e vice-versa, sendo essas três
unidades de cinco de uma ordem superior.
No Nível IIIA foram encontrados 24,8% dos participantes,
sendo que a maior representatividade estava noano. Nesse vel,
é frequente o cálculo mental e a percepção do “operador
multiplicativo” descrito por Granel (1983); contudo, o recurso da
reversibilidade (divisão) ainda está ausente. Em algumas ocasiões, os
estudantes utilizaram a divisão como um processo multiplicativo.
Analisemos o caso da estudante A.J. do ano (10 anos) de escola
goiana.
P.: Quantas figuras você fez? A.J.: Duas. P.: Quantos
palitos você usou ao todo? A.J.: Usei quatro palitos. P.:
Como você fez para descobrir? A.J.: Fiz a conta de 2 × 2
(respondeu rapidamente). P.: De que outro jeito você
poderia fazer? A.J.: 2 + 2, ou de um em um.
A estudante utilizava com frequência a multiplicação como
primeira opção, mas referiu-se a outras formas por agrupamentos, 3
+ 3 + 3 ou 3 × 3, ou por unidades, 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1.
Na segunda parte da atividade (divisão), foi solicitado que
A.J. fizesse figuras usando 12 palitos, com a condição de não faltar
ou sobrar palitos. Era esperado que a estudante fizesse figuras com
os divisores de 12. A.J. começou fazendo seis figuras com dois palitos
e disse: “descobri quantos palitos tem aqui porque contei 6 + 6”.
Posteriormente, fez o mesmo com três e quatro palitos em cada
figura e recorria ao cálculo mental. Foi na sequência dois, ts,
quatro e, ao chegar ao cinco, disse: “vai sobrar palitos e não vai dar
180
para usar os 12, e sobrou porque tinha o máximo de figuras com
os palitos”.
P.: Acabou, não pra formar mais nenhuma figura? A.J.:
Sim, com seis palitos (foi capaz de identificar quatro dos
seis divisores de 12, não relacionou os divisores 1 e 12.
o fez mediante contra-argumento) P.: E poderia ser uma
figura com 12 palitos. A.J.: Sim, poderia. P.: E se fossem
12 figuras de um palito cada? A.J.: Também pode. Com
15 palitos a estudante procedeu com rapidez e por lculo
mental a divisão com 15 palitos, mas referiu-se à
multiplicação. P.: Com esses palitos (15) quantas figuras
você pode formar sem faltar ou sobrar? A.J.: 3 figuras de
5 cada. P.: como você sabe isso? A.J.: porque 3 X 5 = 15.
P.: Teria outro jeito de você saber? A.J.: 5 + 5 + 5 ou
1+1+1+1+1 até chegar no 15. P.: Uma colega sua me disse
que poderia dividir 15 por 3 ou por 5, o que vo acha
disso? Esta está certa ou errada? A.J.: está certa. Pode ser
assim também.
A estudante pensou pido, fez cálculo mental, reconheceu a
multiplicação, adição, e divisão, mas ainda prefere utilizar a
multiplicação para chegar a divisão. Não tem fluência na utilização
da divisão, embora admita que ela possa ser usada. Investigação de
Bessa e Costa (2019) constatou que em situações de divisão por
quotas, ou partitivas, os estudantes utilizam a operação inversa à
divisão, ou seja, a multiplicação.
Somente 4 (3,7%) estudantes de um universo de 109
conseguiram compreender a operação n vezes xpor antecipação
mental, sem o auxílio de suporte empírico. Eles utilizaram estratégias
181
multiplicativas por cálculo mental e compreenderam a
reversibilidade necessária à operação de divisão.
Poucos estudantes recorreram ao cálculo mental, tiveram
dificuldades de antecipação dos resultados e os estudantes do e
ano utilizaram com frequência procedimentos aditivos como
estratégia para a formação dos grupos, e recorriam a procedimentos
empíricos como contar nos palitos ou nos dedos, enquanto aqueles
de ano utilizaram com mais frequência procedimentos
multiplicativos.
O que chamou a atenção nesse estudo foi o fato de crianças
de 3º, e ano, mesmo frequentando a mesma turma, estarem
em níveis tão diferentes da compreensão de multiplicação. No caso
do ano, 17,3% estão no vel IB e 21,2% no nível IIA, 17,3%
no nível IIB, 36,5% no nível IIIA e somente 7,7% no nível IIIB que
seria o esperado para toda a turma. O mesmo ocorreu com as turmas
de e anos, mas com percentuais menores nos níveis mais
evoluídos. O ano, por exemplo, tem um estudante no nível IA e
44% no nível IB e somente 12% no nível IIIA. Porque estudantes
de mesmos anos escolares, tem níveis de compreensão de
multiplicação tão heterogêneos?
Nesse sentido, Piaget e Inhelder (2011) esclarecem que o ser
humano traz no genoma possibilidades que podem ou não se
atualizar, mas a atualização das estruturas mentais específicas para o
ato de conhecer está condicionada à solicitação do meio. Inhelder,
Bovet e Sinclair (1977) complementam ao afirmar que as aquisições
de noções operatórias obedecem a leis gerais do desenvolvimento e
que o atraso ou a precocidade poderiam ser explicadas pelo grau de
solicitação exercida pelo meio.
182
A fim de verificar se o ano escolar tinha efeito sobre os níveis
encontrados foi feito o teste estatístico ANOVA one way, como não
verificou-se homogeneidade da distribuição foi feito a correção de
Welch e constatou-se significância (F(2,121) = 5,16; p=0,007 n²p =
0,079. O gráfico a seguir mostra que houve uma evolução nos níveis
de multiplicação, estudantes deano tiveram melhores resultados.
Contudo, os participantes em geral tiveram um resultado bem
elementar em relação aos níveis de multiplicação.
Figura 1 – Níveis de compreensão de multiplicação e ano escolar
Fonte: Dados da pesquisa
A fim de verificar onde se concentrava a significância, foi
feito o post hoc de Tukey, em que a média do ano foi de 2,92, do
ano foi de 3,19 e o ano de 3,75. Os resultados do 3º e ano
foram similares, sem significância, mas entre o e ano foi
verificada significância p=0,001 e entre o e ano p=0,0011
também, como pode ser verificado na Figura 1. Os intervalos de
confiança que não se cruzam representam diferenças amostrais
183
significativas com 95% de confiança, temos diferenças entre os
estudantes doano (média de 3,75) e estudantes doano (3,19)
e o ano (2,92). Um percentual maior de estudantes do ano
estava nos níveis IIIA e IIIB.
Nessa investigação parece que o ano escolar foi importante
para melhores níveis de compreensão de multiplicação, mas na
perspectiva de Piaget (2011) a maturação e a experiência se implicam
mutuamente, se a aprendizagem for analisada pelo ponto de vista da
maturação podemos incorrer no pensamento apriorista ou ainda se
for resultado da experiência cairemos no outro oposto o empirismo.
Para o construtivismo de Piaget o processo de equilibração
3
explicaria o desenvolvimento e coordenaria os três fatores
maturação; experiência física e lógico-matemática; e as interações e
transmissões sociais, implicando regulações e autorregulações,
aplicadas a qualquer área do conhecimento.
A idade também teve influência nos resultados encontrados,
segundo a ANOVA de duas vias (F(5,116) = 2,33; p=0,046) n²p =
0,091.
Figura 2 – Níveis de compreensão de multiplicação e idade
3
Piaget e Inhelder (2011) afirmam que a equilibração ou autorregulação é um dos
quatro fatores que garantem o desenvolvimento humano, embora seja
frequentemente negligenciado. O equilíbrio depende da ação do sujeito ativo
sobre os distúrbios externos e, ao mesmo tempo, da ação desses sobre aquele. Há
uma “sequência de compensações ativas do sujeito em resposta às perturbações
exteriores e de regulagens, ao mesmo tempo retroativas (sistemas de anéis ou
feedbacks) e antecipadoras, que constitui um sistema permanente de tais
compensações” (PIAGET; INHELDER, 2011, p. 139). Dessa forma, o
desenvolvimento se dá por uma constante busca de equilíbrio, que significa a
adaptação dos esquemas existentes ao mundo exterior.
184
Fonte: Dados da pesquisa
No gráfico 2 de barra do erro das variáveis níveis de
compreensão de multiplicação e de idade, os intervalos de confiança
que não se cruzam representam diferenças amostrais significativas
com 95% de confiança. O teste post hoc Tukey mostrou significância
entre os estudantes de 8 e 10 anos p=0,007, e entre 9 e 10 anos,
p=0,023. A idade de 10 anos coincidiu com o ano assim
estudantes com idade de 10 anos cursando o ano foram os que
alcançaram os melhores níveis de compreensão de multiplicação.
Não foi verificada significância entre o gênero, nas duas unidades
federativas de Goiás e Distrito Federal e no tipo de escola
frequentado: blica ou particular, do DF ou de Goiás e do gênero
masculino ou feminino. Conclui-se que esses diferentes grupos têm
noções similares quanto a multiplicação.
Considerações finais
185
Somente 3,7% dos estudantes tem fluência na utilização da
multiplicação e divisão utiliza o cálculo mental e o pensamento
reversível para chegar ao resultado. Pelos resultados encontrados
somente 28,5% dos estudantes dos níveis IIIA e IIIB teria condições
de compreender satisfatoriamente a operação de multiplicação.
Estudantes de ao ano mesmo pertencendo a mesma
turma mostraram diferenças quanto aos níveis de compreensão de
multiplicação. No ano por exemplo 28,1% estão no nível IB,
40,6% no nível IIA, e 15,6% nos níveis IIB e IIIA, esses resultados
demonstram que esses estudantes utilizam procedimentos e
estratégias intuitivas e espontâneas como contagem, símbolos
pictóricos, dedos ou a contagem das unidades nos palitos para
resolver a atividade experimental.
As estratégias dos estudantes do e anos incluíram
preferencialmente procedimentos do tipo aditivo, utilizando
esquemas como contar de um em um, ou de dois em dois, separar
os palitos em agrupamentos e contar a partir das unidades ou do
agrupamento. Mediante contra-argumentos reconheciam o
princípio multiplicativo, mas preferiam utilizar o procedimento
aditivo deixando transparecer a dificuldade em utilizar os
procedimentos multiplicativos. Um percentual maior de estudantes
do ano recorreu com mais frequência aos procedimentos
multiplicativos.
O nível acadêmico e a idade apresentaram diferenças
significativas, os estudantes do quinto ano e ocasionalmente com
idade entre 9 e 10 anos se sobressaíram nas condutas mais evoluídas
em relação aos estudantes do 3º e 4º anos.
186
A coexistência de níveis elementares e mais evoluídos num
mesmo ano escolar pode ser atribuído as estruturas mentais que estão
condicionadas à solicitação do meio e obedecem a leis gerais do
desenvolvimento.
Os melhores níveis de compreensão de multiplicação dos
estudantes do ano podem estar relacionados ao processo de
equilibração que coordenaria a maturação; experiência física e
lógico-matemática; e as interações e transmissões sociais, implicando
regulações e autorregulações.
Este estudo evidenciou a compreensão da operação de
multiplicação, com uma amostra restrita de estudantes, e necessita
ser objeto de outras investigações quanto aos processos cognitivos
conferindo amplitude à análise de intervenções pedagógicas.
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https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p191-212
A FORMAÇÃO DA NOÇÃO DA FORÇA
CORPORAL NA CRIANÇA: CONTRIBUÕES
PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA
Orlando Mendes FOGAÇA JÚNIOR
1
Introdução
A disciplina de Educação Física na Educação Básica é um
componente curricular que necessariamente deve estar adequado a
proposta pedagógica da escola. Neste contexto, os conteúdos
específicos que irão ser ensinados devem possibilitar aos educandos
apropriação de conhecimentos relativos à sua motricidade.
Para tanto, é necessário que o docente possua um saber
aprofundado de tais conteúdos e principalmente fundamentação
teórica de como ocorre a aprendizagem pelo sujeito, pois desta forma
o seu ensino será muito mais eficiente e assertivo. O interesse em
buscar compreender como ocorre o desenvolvimento do sujeito em
relação a sua aprendizagem foi o ponto principal que nos orientou
nesta pesquisa. Desta forma, iniciamos a tese de Doutorado na busca
de resposta ao problema que nos foi proposto: o processo que a
criança realiza para a compreensão da força no mundo físico é
análogo, correspondente, ao da força corporal? Como ocorre o
1
Doutor em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, e Professor Adjunto da Universidade Estadual de Londrina (UEL),
Paraná, Brasil. E-mail: orlandojr@uel.br
192
desenvolvimento da compreensão da força pelo sujeito? Qual a
importância deste saber para o professor de Educação Física na
Educação Básica?
Na busca de respostas as indagações apresentadas, nos
fundamentamos na Epistemologia Genética para explicar o
desenvolvimento dessa noção. Piaget (1973), em seus estudos a
respeito da formação da noção de força dedicou-se somente em
relação ao mundo físico, não apresentando como esta noção se
relaciona à força corporal.
Nesta pesquisa foi necessário, primeiramente, compreender
o desenvolvimento histórico pelo qual passou a humanidade na
busca de compreender a motricidade humana. A partir deste ponto,
procuramos saber como a Epistemologia Genética evidencia e
explica o desenvolvimento da compreensão da formação da noção
de força na criança em relação ao mundo físico e posteriormente
verificamos se o mesmo desenvolvimento ocorre na compreensão da
força corporal.
Para entendermos esta noção, primeiramente fomos
investigar o pensamento físico e o pensamento gico-matemático.
Em seguida, apresentamos a causalidade não como uma situação de
efeito e causa, mas sim como o sujeito realiza o desenvolvimento
desta noção, pois esta é um elemento essencial e necessário para que
ocorra o conhecimento da realidade. Logo após, adentramos no
estudo do processo da tomada de consciência, este processo se
apresenta subjacente nas ações que o sujeito realiza e, nosso intuito
foi o de apresentá-lo não como um conceito, mas como parte
integrante da estruturação do mundo pelo sujeito. Depois de traçar
este percurso, entramos diretamente no assunto principal da
193
pesquisa que é a formação da noção de força na criança no mundo
físico.
Neste atual texto, estamos apresentando um recorte da
pesquisa realizada na tese de Doutorado, em função do limite de
páginas não iremos apresentar todo o desenvolvimento da pesquisa
citado acima, estaremos focando em uma explicação resumida da
noção de força no mundo físico e do processo de desenvolvimento
da compreensão da força corporal, desta forma destacaremos a
pesquisa realizada por Piaget (1973), sobre a noção de força no
mundo físico, a metodologia utilizada e a conclusão.
A formação da noção de força no mundo físico na criança
Piaget (1966), em seus estudos sobre a compreensão que o
sujeito possui do mundo físico, apresenta-nos como as crianças, em
seu desenvolvimento, concebem a noção de força. Todavia, antes de
apresentarmos as questões relativas a este assunto, cabe salientar que,
para a elaboração de um pensamento sobre a noção de força, outras
noções estão subjacentes, por exemplo, as noções mecânicas, de
tempo, espaço, velocidade, movimento de objetos animados e
inanimados.
Nesse estudo, não aprofundaremos a pesquisa sobre cada
uma dessas noções isoladamente. No entanto, compreendemos que
estão presentes e devem ser consideradas pelo sujeito para que ele
consiga estruturar sua noção de força.
No que diz respeito a esta noção, Piaget (1966), nos
apresenta três tópicos por ele pesquisados, sendo: a) como a criança
194
explica o movimento; b) definição da ideia de força pela criança; e
c) origem da ideia de força na criança.
Piaget (1966), afirma que a criança representa o mundo em
função de movimentos espontâneos dos objetos, ou seja, o
movimento observado nos objetos inanimados ocorreria pela
vontade destes objetos. Para a criança, os corpos celestes e outros
elementos do mundo físico podem se mover por vontade própria:
por exemplo, são as nuvens que produzem o vento para se locomover,
as árvores balançam seus galhos espontaneamente para produzir
vento.
O autor coloca que todo o movimento que a criança vivencia
é concebido inicialmente por meio de pré noções ou pré relações.
Sendo assim, podemos dizer que existe muito mais do que uma
percepção direta, que uma intenção é atribuída. Surge, então, uma
indagação. Por que a percepção primitiva adota a natureza com vida
ao invés de com inércia? Piaget (1966, p. 115), responde esta
pergunta dizendo: “porque a informação imediata do mundo
externo é de uma forma dinâmica e não mecânica”.
Estabelecido na pesquisa sobre a noção de força, o autor
assegura que se recuarmos ao início da vida mental da criança,
veremos que os movimentos são concebidos devido à participação
de várias influências acumuladas, e que tais movimentos são
percebidos como complexos.
A maior característica destas primitivas explicações de
movimentos dadas pela criança é que pode ser chamada
de bipolaridade: o movimento de um corpo é observado
como atribuído a um desejo externo e um desejo interno,
ambos. A um comando e uma aquiescência. O ponto de
195
partida destas ideias é, ambos, artificialismo e animismo
(PIAGET, 1966, p. 115).
Este artificialismo e animismo são de uma ordem mágica, ou
seja, quando eu dou um comando a um corpo celeste digo: por
exemplo, para a lua me seguir, ela concorda com o meu desejo
porque deseja fazer assim. Posterior a estas características
apresentadas, as crianças explicam o movimento de objetos
inanimados mais pela causa física do que psíquica.
Nesse estágio, suas explicações estabelecem que um corpo
inanimado que esteja em movimento retém a iniciativa e pode
utilizar a força externa ou livrar-se de sua influência, “assim o sol é
guiado pelas nuvens, mas ao mesmo tempo ele nos segue e usa o
vento para seus próprios fins” (PIAGET, 1966, p. 116).
Em suas pesquisas, Piaget (1966) classificou o nível de
entendimento de movimento no mundo físico por meio das
respostas das crianças, apresentando que a criança simplifica a sua
concepção de movimento e, com isso, vai gradualmente alcançando
a causalidade mecânica baseada na inércia; esta nova forma de
pensamento coincide com o desaparecimento do pensamento
animista e da mentalidade artificialista. O autor afirma que a ideia
que a criança tem sobre a força é mais ampla que do adulto. A mente
do adulto se acostuma com o princípio de inércia e com isto “somos
conduzidos a rejeitar muitas forças como imaginárias ou
simplesmente sem utilização” (PIAGET, 1966, p. 116).
Para a definição da ideia de força, Piaget (1966) afirma que
a evolução da ideia física de força é caracterizada pela diminuição
progressiva de forças e não pela sua multiplicação, e, na mente da
196
criança, tais forças têm uma natureza “viva”; é por isto que a criança
nos apresenta explicitamente que os movimentos são conscientes.
Na concepção da criança eles são vistos como intencionais.
Por isto o sol se movimenta para nos dar luz, e as nuvens para nos
dar chuva; por esta razão o movimento não se apresenta separado de
um propósito nem a força separada de uma função ou tarefa.
Além disso, é incluso a estreita conexão na mente da
criança entre as ideias de força e aquelas da vida o
objetivo são ambos, a finalidade e causa eficiente do
movimento. Tal como um ser vivente a satisfação dos seus
desejos são ambos, o fim e a causa de sua atividade, assim
para a criança a utilização de movimentos físicos implica
em uma força capaz de produzi-lo. (PIAGET, 1966, p.
117).
Na visão do adulto, a natureza, de uma forma geral, é
formada por uma totalidade de sequências necessárias e de suas
interferências, o que Piaget (1966) chamou de “acaso”. na
concepção da criança ocorre o contrário do adulto: o mundo
(natureza) é um reino de fins, e, segundo Piaget (1966, p. 118), “[...]
a necessidade de leis é mais moral do que física”. A criança os
movimentos da natureza, mas os como “não naturais”. O autor
afirma que antes dos 7-8 anos o acaso é suprimido, os movimentos
dos corpos celestes e do vento, por exemplo, acontecem por um
acionamento de alguma intenção ou desejo, transação da qual o
acaso não participa.
Esta característica de explicação do movimento no mundo
físico nos leva a uma definição da ideia de força. Piaget (1966, p.
197
118) nos apresenta que “a principal marca de nosso entendimento
adulto do mecanismo de mundo é que a energia é transmitida: este
corpo perde sua energia em comunicá-la, aquele outro aumenta a
sua energia por recebê-la de fora”.
A criança pensa em um motor interno que produz
movimento, e que substâncias não transmitem força, somente
despertam a força interna de outro corpo. Em alguns aspectos a ideia
de contato parece estranha ao pensamento da criança, pois quando
nós compelimos os corpos celestes a nos seguir, neste caso pode
parecer uma ação à distância. Porém, em outro aspecto, o
pensamento da criança parece precisar de contato; por exemplo,
quando as nuvens impelem o sol a ir à frente delas, é porque um
sopro sai delas e vai para o sol.
Piaget (1966) salienta que, neste sentido, isto pode estar apto
a ser enganoso, pois não qualquer limite preciso entre
pensamento e coisas e entre o ego e o mundo externo, pois as
dinâmicas infantis estão fundadas na pré-causalidade. Em suas
pesquisas, o autor apresenta que a criança não busca uma justificativa
lógica nem mecânica nos seus julgamentos, mas apresenta uma
procura de uma motivação, pois a criança vive em um mundo
animado com intenções, e que cada fim faz surgir a verdadeira força
para realizá-lo. Desta forma, o “como” não interessa a ela, nem é um
problema.
Para explicar a origem da ideia de força, o autor inicia sua
investigação perguntando às crianças de idade entre 7 a 12 anos,
quanto às características de certo número de objetos, se “isto é forte
ou não”? Após a resposta, outra questão é feita: “porque é forte”? Ao
realizar esta pesquisa, Piaget, verificou que a noção de força, na
198
concepção da criança, tem uma intima relação com a vida. “[...]
quando tudo é considerado pela criança como vivo, as ideias de força
e de vida se sobrepõem completamente, e a noção de força herda
todas as características originalmente atribuídas à vida” (PIAGET,
1966, p. 121).
Piaget (1966) apresenta que a ideia de força se desenvolve de
um dinamismo integral para uma visão mais mecânica de uma forma
crescente, e que as explicações verbais sobre a ideia de foa se
desenvolvem progressivamente e de um modo consciente. Esse
desenvolvimento levará em conta outras noções do mundo físico
como: a velocidade, tempo, espaço, deslocamento, ultrapassamento
e peso.
Sendo assim, qual é então a ideia de força que a criança
apresenta?
É o resultado da experiência interna, mas não de uma
experiência a qual é sentida como interna de princípio.
Força, então, não é um fato cedido desde a intuição
direta, vindo do senso de esforço, é originalmente
localizada em objetos (PIAGET, 1966, p. 130).
Como podemos observar não é somente o sentimento de
esforço interno que nos possibilita chegarmos a ideia de força, e esta
não é gerada por indução. Piaget, (1966, p. 130), diz ainda que:
Todo pensamento é produto de elementos sensoriais
resultado da pressão exercida sobre o organismo pelo
imediato circundante, e por esquemas motores os quais
199
organizam estes elementos sensoriais em blocos os quais
chamamos percepções, ideias, experiências mentais.
Dessa forma, podemos pressupor que o pensamento recebe
uma contribuição externa e também uma contribuição interna do
próprio organismo por meio dos esquemas motores; contudo, essas
duas contribuições são indiferenciáveis do pondo de vista da
consciência subjetiva. O autor apresenta, então, que toda a
percepção e toda ideia parecerá ser objetiva, mas isto somente
ocorrerá se alguma falha ou erro em uma determinada ão levar a
mente da criança a não discernir, num dado ponto de vista, o que é
subjetivo e o que é objetivo. Para o autor, a realidade em que a
criança está inserida estará perpetuamente sendo assimilada pelos
esquemas motores, e este funcionamento é possibilitado pela
assimilação. “Assimilação não é, portanto, uma indução é a
expressão de uma completa continuidade a qual prende o organismo
ao seu meio ambiente biológico. Isto é anterior a qualquer distinção
entre o mundo externo e o ego” (PIAGET, 1966, p. 31).
Tendo este ponto de vista em mente, podemos entender que
a ideia de força consiste em um dos esquemas possíveis de
assimilação. Quando a criança começa a construir a ideia de objeto
e distinguir os diferentes objetos um do outro, a mente busca tornar
consciente as resistências estabelecidas pelo mundo exterior.
Como podemos ver, a origem da ideia de força não se
apresenta somente como sentimento de esforço muscular e
posteriormente transferido aos objetos. Este fato não ocorre porque
o “eu” ainda está indissociado pela criança. Piaget não nega que a
ideia de força tenha surgido da experiência, ou seja, do esforço
muscular. O que o autor apresenta é que somente isto não é
200
suficiente, outros fatores colaboram para que esta ideia tenha sua
origem: tanto a pressão exercida pelo meio externo, quanto a
organização dos esquemas motores que possibilitam esta assimilação.
É preciso considerar os outros fatores que estão subjacentes à origem
da ideia de força, como o movimento, a velocidade, o espaço, dentre
outros, e que também possuem um conjunto de esquemas
específicos que os tornam possíveis.
Desta forma, o desenvolvimento da ideia de força é o
resultado de uma descentração progressiva a partir do egocentrismo
inicial que estava vinculado a uma tomada de consciência
inadequada. Nesta, o movimento e o esforço eram confundidos com
o conceito de vida, e por isto se atribuía a estes objetos consciência e
desejos. Progressivamente, com a diferenciação do “eu” e dos objetos
entre si, estas atribuições vão sendo retiradas.
Com isso podemos observar o quanto é solidária esta força
pensada pela criança com o finalismo do movimento que possui um
ponto de chegada, e uma dupla intenção, interna e externa que
funcionam ao mesmo tempo.
Metodologia e análise dos dados
Para estudarmos como a criança compreende a força
corporal, realizamos uma pesquisa de campo com a característica de
investigação qualitativa; este tipo de pesquisa, segundo Trivinos
(1992), pode assumir várias formas e é utilizada em diferentes
âmbitos. No caso de pesquisas realizadas no contexto escolar com
cunho qualitativo, podemos investigar o local em estudo bem como
interagir (conversar, observar) com os sujeitos participantes, ou seja,
201
recolher os dados que interessam à pesquisa por meio de imagens
(observações) e palavras (entrevista).
Na prova piagetiana, o autor utilizou três objetos de metal
de dois centímetros quadrados, e um pacote de papel qualquer que
foi denominado de “montanha”. Foi marcada em uma mesa uma
linha como ponto de partida e outra como ponto de chegada. Um
dos metais se desloca em linha reta do ponto até o ponto de chegada
e o segundo, faz a mesma ação contornando a “montanha”, sendo
que os dois metais partem da linha inicial e chegam a linha final ao
mesmo tempo.
Em um segundo momento desta prova, foi colocado sobre o
metal que se desloca em linha reta um terceiro metal (sobrecarga).
Nesses dois momentos distintos o autor buscou saber das crianças
para qual destes metais a ão é mais “difícil”, “fatigante” ou exige
mais “esforço”, “(isto do ponto de vista de o objeto ser concebido
como personagem)” (PIAGET, 1973, p. 10).
Nesta pesquisa buscamos saber se uma analogia (1), uma
correspondência entre a formação da noção de força relativa ao
mundo físico e a de força corporal. Para tanto, tomamos como base
uma prova utilizada por Piaget (1973). Nesta prova específica, o
autor classifica as respostas das crianças em níveis de compreensão
sobre a noção de força relativa ao mundo físico. E após
apresentaremos a prova realizada no corporal e a do mundo físico.
Como a compreensão de força corporal não foi alvo de
estudo de Piaget, realizamos uma prova com ênfase na ação corporal
da criança. Nesta prova, procuramos verificar se a criança realiza
uma composição das noções de espaço, tempo, velocidade, peso,
deslocamento e ultrapassamento. Na prova do mundo físico,
202
utilizamos como base a prova piagetiana, e apresentamos a criança
uma madeira com dois caminhos desenhados e com dois caminhões
de brinquedo e uma sobre carga para um dos caminhões.
Na verificação da compreensão da força corporal, foi
apresentado para a criança dois caminhos desenhados no chão, estes
caminhos possuem em comum uma linha inicial como ponto de
partida e uma linha final como ponto de chegada, a distância entre
estas duas linhas era de cinco metros, os caminhos são paralelos,
porém, um caminho está em linha reta e o outro possui uma curva.
Ao apresentarmos estes caminhos para a criança indagamos se os
caminhos eram iguais, e qual a razão de serem iguais ou não, se a
criança não chegou à conclusão que os caminhos possuem tamanhos
diferentes. Foi feito o questionamento se os caminhos possuem o
mesmo tamanho, se a resposta foi positiva, e realizamos a medição
dos caminhos na presença da criança. Após a medição a criança foi
indagada novamente se os caminhos possuem o mesmo tamanho.
Figura 1 – Caminhos paralelos com tamanhos diferentes
Fonte: Dados da pesquisa
203
Após a averiguação do comprimento dos caminhos (espaço),
foi realizada a ão de andar pelos caminhos (2). Todas as crianças
que realizaram a prova andaram primeiramente pelo caminho com
curva e o pesquisador pelo caminho reto, esta ação ocorreu da
seguinte maneira: a criança, assim como o pesquisador deveriam sair
ao mesmo tempo do ponto de partida dos dois caminhos, que são
paralelos, e chegarem ao final dos caminhos ao mesmo tempo, que
também possuem a mesma linha final.
Ao final, a criança foi questionada sobre quem fez mais força,
quem precisou fazer mais esforço, para quem foi mais fatigante para
andar pelos caminhos, e qual(is) o(s) motivo(s) que um fez mais
força que o outro.
Neste momento, a intenção era verificar se a criança compõe
as noções que a prova solicita (espaço, tempo e velocidade).
Na terceira parte da prova (3), a ão foi repetida, que a
criança foi pelo caminho reto (menor distância), porém carregando
nas mãos uma bola de três quilos. O pesquisador foi pelo caminho
com curva (maior distância) sem levar peso algum, os dois saíram e
chegaram ao final dos caminhos ao mesmo tempo. Ao terminar a
ação, foram realizados os questionamentos referentes a quem
realizou maior esforço, quem fez mais força, para quem foi mais
trabalhoso andar pelos caminhos e qual(is) o(s) motivo(s) de um ter
realizado mais força, esforço que o outro.
204
Figura 2 – Bola com peso de 3kg
Fonte: Dados da pesquisa
Esta prova apresenta na segunda situação (2), um
desequilíbrio de ações, pois quem foi pelo caminho mais longo
realizou um esforço maior, pois além de andar uma distância maior
teve que ir a uma velocidade maior do que quem estava no caminho
reto, pois a prova tinha a exigência de saírem e chegarem ao final ao
mesmo tempo.
na terceira situação (3), buscou-se uma compensação,
uma equiparação aproximada de forças, pois quem estava no
caminho reto tinha que levar um peso e quem estava no caminho
com curva não tinha peso, porém tinha uma maior distância a
percorrer e para chegar ao final do caminho ao mesmo tempo
necessita de uma velocidade maior do que quem está no caminho
reto.
Nesta prova também se buscou verificar as questões relativas
ao espaço, tempo, velocidade, deslocamento, ultrapassamento e peso.
Porém, na prova não uma relação direta da ação corporal da
205
criança, suas considerações serão em ações realizadas por objetos.
Desta forma, apresentamos para a criança uma madeira medindo 92
x 98 cm, com dois caminhos desenhados nesta, sendo um caminho
reto e outro curvo, e sobre estes caminhos estão dois caminhões de
brinquedo idênticos confeccionados em madeira.
Figura 3 – Caminhos para análise da força no mundo físico
Fonte: Dados da pesquisa
Figura 4 – Utilização de peso no deslocamento no mundo físico
Fonte: Dados da pesquisa
206
Em nossa pesquisa, foram entrevistadas quarenta crianças de
uma mesma escola da rede particular de ensino da cidade de
Londrina, estado do Paraná, assim distribuídas:
- Nove crianças de quatro a seis anos de idade.
- Onze crianças de sete a nove anos.
- Dez crianças de dez a onze anos.
- Dez crianças de doze a quatorze anos.
Na prova de verificação da compreensão da força corporal
na situação 1 encontramos dois níveis de compreensão a partir das
respostas das crianças. O primeiro nível não diferenciação do
comprimento dos caminhos, como tem o mesmo ponto de partida
e chegada tem o mesmo tamanho. Nestes casos foi sugerido medir
os caminhos e após a medição verificaram que o caminho com curva
é o mais longo. O segundo nível possui diferenciação do tamanho
dos caminhos logo de início não necessitando a confirmação por
medida, pois os argumentos apresentados indicam que as crianças
têm certeza que o caminho com curso é o mais longo.
Na situação 2 também foram encontrados 2 níveis. Nesta
situação cada criança foi indagada se ela fosse caminhar pelo
caminho com curso e outra pessoa no caminho reto e os dois
chegarem ao final ao mesmo tempo quem estaria fazendo mais força.
No nível 1 as crianças não consideram a velocidade do deslocamento
e nem a distância percorrida, pois afirmam que as duas pessoas
fizeram a mesma força no percurso. o nível 2 considera a
velocidade, distância e descolamento para afirmar que quem
percorreu o caminho com curva fez mais força.
Na situação 3 também encontramos dois níveis de
compreensão. Nesta situação as duas pessoas teriam que percorrer os
207
dois caminhos e chegarem ao final ao mesmo tempo, que a pessoa
que for no caminho reto levará a bola com peso, desta forma
buscando um certo equilíbrio de forças. No nível 1 a criança ficou
centrada no espaço ou na velocidade de quem percorreu o caminho
maior para afirmar que esta fez mais força, mesmo sendo
questionada sobre o peso que a outra pessoa levou elas não
consideraram esta variável. no nível 2 é possível verificar uma
composição entre espaço, velocidade, deslocamento e peso, pois
afirmavam que a força era parecida ou igual, mesmo confrontada
com o menor percurso e menor velocidade de quem estava no
caminho mais curso, pois diziam que o peso compensava e a força
utilizada era a mesma.
Na prova relativa ao mundo físico na situação 1
encontramos dois níveis, na situação 2 também foram dois níveis e
na situação 3 dois níveis. Ao realizarmos a prova no mundo físico,
ou seja, fora do corporal foi possível observar que as aprendizagens
realizadas na prova anterior são imediatamente aplicadas prova do
mundo físico, os sujeitos que afirmavam que os caminhos eram
iguais nesta iniciavam afirmando que o com curso é maior, pois
se esticar ele ficará mais longo que o reto.
Da mesma forma com relação ao deslocamento dos
carrinhos, consideravam o espaço, velocidade e deslocamento,
quando foi colocado peso no carrinho que estava no caminho mais
curto, também foi observado que as aprendizagens anteriores foram
aplicadas nesta prova. Os sujeitos que não consideraram o espaço,
velocidade, deslocamento e peso na ação corporal, mesmo
confrontados com argumentos contrários às suas respostas, nesta
208
prova permaneceram no mesmo nível de compreensão que na prova
anterior.
Conclusão
No decorrer desse estudo, ficou evidenciado que para
compreender a noção de força corporal, as noções de espaço, tempo,
velocidade, peso, deslocamento e ultrapassamento deverão ser
compreendidas individualmente; e necessitam estar inseridas em um
sistema de relações para que o sujeito possa compreendê-la.
Enquanto professor de Educação Física, havia ensinado o
conteúdo foa corporal (ou, pensava que isso ocorrera). Todavia,
com a pesquisa, compreendi que estava atrelado tão somente aos
procedimentos metodológicos, não possibilitando aos educandos a
construção desse conhecimento de forma adequada, pois, todas as
ações pedagógicas estavam pautadas no esforço muscular que as
crianças realizavam, impossibilitando que inserissem diferenciando
em um sistema de relações as outras noções necessárias para a
formação da noção de força corporal. Esta pesquisa teve, como
problema, verificar se o processo de compreensão da noção de força
relativo ao mundo físico é análogo, correspondente, ao da força
corporal.
Na busca da resposta ao problema proposto, avançamos
nossa pesquisa em outra área fora da Educação Física; encontramos,
na Epistemologia Genética, estudos desenvolvidos por Jean Piaget
(1966), que buscou entender como ocorre o desenvolvimento de
noções que possibilitam ao sujeito a compreender e estruturar o
mundo que o cerca, dentre as quais a noção de força no mundo físico.
209
Em sua pesquisa, Piaget relata três aspectos de seus estudos
do processo de como a criança constrói a noção de foa relativa ao
mundo físico: no primeiro, como ela explica o movimento; no
segundo, qual a ideia de força que esta possui; e, no terceiro, como
se a origem da ideia de força na criança.
Este caminhar que Piaget realizou mostra que, na origem da
ideia desta noção, a criança apresenta uma indiferenciação entre
objeto e sujeito, pois está pautada em uma p-noção que é subjetiva,
egocêntrica e que, por sua vez, está centrada na sua ão imediata.
Quanto ao movimento, a criança representa o mundo em
função de movimentos espontâneos, atribuindo aos objetos
inanimados uma vontade, um desejo, uma característica do ser
humano, ou seja, a criança se pauta no antropomorfismo, resultando
em um animismo e artificialismo de ordem mágica. Desta pré-noção
inicial, fundada em um animismo, é que ela representa o mundo de
forma dinâmica e avança, gradualmente, alcançando uma
causalidade mecânica e objetiva baseada na inércia.
Por sua vez, a ideia de força na criança é caracterizada pela
intencionalidade dos movimentos do mundo físico, ou seja, cada
substância possui uma força singular que não é adquirida, nem
transmitida, mas é despertada (motor interno). Com o
desenvolvimento progressivo do “eu”, a ideia de força aplicada a
objetos inanimados também se perde, assim, quando a criança se
torna gradualmente consciente do mundo interior, e o mundo
exterior começa a ser pensado de maneira mais mecânica.
E, finalmente, quanto à origem da ideia de força, ela se
desenvolve a partir de um dinamismo integral para uma visão mais
mecânica, de maneira crescente, e as explicações verbais sobre essa
210
ideia se desenvolvem progressivamente e de modo consciente. Isso
ocorre porque a construção da ideia de força é o resultado de uma
descentração progressiva a partir do egocentrismo inicial, no qual o
movimento e o esforço eram confundidos com o conceito de vida;
progressivamente, com a diferenciação do “eu” e dos objetos entre
si, tais atribuições vão sendo retiradas.
Portanto, de uma visão pautada no animismo, a criança
avança para uma concepção mais mecânica de movimento, e, no
decorrer deste contínuo progresso, vemos subjacente uma tomada
de consciência mais ou menos adequada que se desenvolve
culminando em uma tomada de consciência adequada desta noção.
Os resultados desse estudo apresentam indicativos
suficientes para pressupor que o desenvolvimento da noção de força
corporal que a criança realiza é concomitante com a noção de força
relativa ao mundo sico, e a compreensão de suas ações corporais
ocorre simultaneamente com sua compreensão do mundo físico.
Deste modo, podemos inferir que o mundo físico e a ão corporal
funcionam de forma idêntica, análoga, pois para reconhecer uma
ação realizada corporalmente, torna-se necessário fazer uma
descentração do “eu”, e quanto maior for esta descentração, melhor
será a compreensão das ações que este realiza corporalmente, pois
passa a entender o seu corpo como um objeto que está sujeito às
mesmas leis físicas que os demais objetos do mundo físico.
O resultado da pesquisa aponta que, para a criança construir
a noção de força corporal, o professor de Educação Física deve
possibilitar aos seus alunos a compreensão de espaço, tempo,
velocidade, peso, deslocamento e ultrapassamento, pois somente
com tal compreensão e coordenação dessas noções, é possível formar
211
um sistema de significações que permitirá à criança apresentar uma
tomada de consciência adequada com relação à sua força corporal.
Sendo assim, compreendemos, por meio dos resultados da pesquisa,
a necessidade do conhecimento prévio por parte do docente sobre o
conteúdo força corporal, conhecimento este que tem, aqui, o sentido
de elucidação da realidade. A pesquisa assinala para a necessidade de
compreender os processos de construção que permitem à criança
compor esta noção, bem como as interferências das outras noções
que a compõem; entender como é realizado o desenvolvimento de
descentração do “eu” para estruturar um universo objetivado,
composto de relações; ser sabedor que tal fato ocorre por uma
interação entre o sujeito e o objeto e, que o mundo vai sendo
construído por meio da ação deste sujeito, não de uma ação qualquer,
mas sim de uma ação pensada, refletida.
Se objetivamos para a ação dos professores de Educação
Física a superação das práticas de intervenções pedagógicas
tradicionais, essa reflexão implica na revisão dos pressupostos
ontológicos, no entendimento de mundo e nas formas de se
relacionar com ele, e na relação que as metas e objetivos definidos
têm com a educação escolarizada. A pedagogia tradicional estabelece
que a educação se relaciona com o mundo num processo de
reprodução, ou seja, esta forma de relação é de imitá-lo, copiá-lo ou
repeti-lo. De outro modo, numa relação ativa, que gera
transformações na relação sujeito e mundo, promovendo, assim, a
compreensão de sua realidade, e objetivando, ainda que
relativamente, uma autonomia e emancipação, outro nível de
concepção epistemológica se faz necessária, ou seja, que tanto o
sujeito atue sobre o mundo como este sobre o sujeito, tanto o sujeito
212
constrói o mundo como é por ele construído. Por isso, mundo e
sujeito são dimensões de um processo complexo e dinâmico de
relações.
Portanto, ao realizar a sua ação docente, o professor de
Educação Física deve garantir às crianças que atuem de acordo com
seu nível de desenvolvimento e suas possibilidades, e a partir deste
ponto, possibilitar que elas progridam, que passem de um vel de
conhecimento menos elaborado para outro, em que o conhecimento
esteja mais estruturado, num processo majorante, na medida em que
as reconstruções se sucedem no plano da ação e do pensamento e de
como ambos são representados pelos dados abstraídos das reflexões
sobre as coordenações de suas ações.
Referências
PIAGET, J. La formation de la notion de force. Presses
Universitaires de France, 1973.
PIAGET, J. The child’s conception of physical causality. London:
Routledge & Kegan Paul, 1966.
TRIVINOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a
pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1992.
213
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p213-246
CONSTRUTIVISMO E ALFABETIZAÇÃO
NO BRASIL: O PASSADO E FUTURO
DAS NOVAS IDEIAS
Bruna Assem SASSO DOS SANTOS
2
Adrn Oscar DONGO MONTOYA
3
Introdução
De acordo com Ferreiro e Teberosky (1985/1999), antes de
sua exposição, o problema de aprendizagem da leitura e da escrita
era tratado como uma questão de métodos. Nesse sentido, a
linguagem (oral) se relacionava intrinsecamente à língua escrita, ao
ponto de, tradicionalmente, na história pedagógica, os métodos de
ensino serem indiscriminados com os próprios processos de
aprendizagem.
As preocupações pedagógicas também se reduziam em
encontrar o melhor ou o mais eficaz dentre esses métodosos quais
contam com justificativas tanto da linguística como também da
Psicologia. Antes da obra de Ferreiro (FERREIRO; TEBEROSKY,
2
Doutora em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: bru.sasso@hotmail.com
3
Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo (USP), e Professor Associado da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: dongomontoya@hotmail.com
214
1985/1999), a compreensão que havia acerca da aquisição da língua
escrita não era atribuída a construções de natureza conceptual. Isto
é, apesar da língua escrita se relacionar com a linguagem oral, de
acordo com as concepções que se tinha de como ocorria a
aprendizagem da verbalização, não se levava em conta a aquisição da
escrita com o fato dela se reportar à língua oral, no sentido de ser
aquilo que, na prática, o indivíduo conhece.
A partir da década de 1980, no Brasil, com a chegada de
novas perspectivas teóricas, sobretudo na Psicologia, com a
psicogênese da língua escrita, colocou-se em xeque os métodos
utilizados para a alfabetização até então, e fez com que os professores
questionassem tais métodos e inclusive os negassem no uso em suas
salas de aula e em suas práticas pedagógicas. As teorias de Jean Piaget
e de Emília Ferreiro acabaram por gerar mudanças sem ser, no
entanto, de forma total e plenamente condizente com os seus
princípios. Dessa forma, reducionismos e distorções de suas
interpretações e apresentações fizeram com que o seu saber
conceitual se tornasse um método de ensino, desembocando em
culpá-las pelo fracasso escolar.
As críticas são tantas e tão duras que chegam a designar a
teoria como desserviço à Educação do país e remete os analfabetos
enquanto órfãos do construtivismo. Mas será o construtivismo o
culpado por esse fracasso ou até mesmo pela não utilização de
nenhuma metodologia para o ensino, por exemplo? Se que o
construtivismo de Piaget e Ferreiro coloca em segundo plano o papel
do professor? Ou, qual é o real papel do professor no processo de
aprendizagem dos seus alunos de acordo com essa teoria? Qual seria
o resultado do exame de DNA para a alegação de paternidade para o
215
analfabetismo no país? Poderíamos, de fato, atribuir à Teoria de
Piaget e Emilia Ferreiro? Descobrimos que não. E que, contrário ao
que foi disseminado acerca dos pressupostos construtivistas, os
professores ocupam um lugar importante no processo de ensino-
aprendizagem, mas não como mediadores, e sim enquanto
interlocutores, tutores, auxiliadores das crianças.
O presente texto é resultante de anos de investigação na
busca por compreender a Teoria de Piaget, bem como suas relações
com o ensino, a aprendizagem, e o desenvolvimento infantil,
principalmente quanto ao progresso do pensamento, da linguagem
e da língua escrita, para essa e outras perspectivas teóricas. Abordará,
então, não apenas aspectos acerca da aquisição da língua escrita na
perspectiva da psicogênese, mas questões epistemológicas,
psicológicas e educacionais acerca do tema, relacionando-os. O
objetivo é o de trazer à luz a coerência teórica da pesquisa de Ferreiro
com os pressupostos construtivistas e evidenciar sua inculpabilidade
diante à posição de pelo analfabetismo no Brasil.
A visão da epistemologia genética para a alfabetização:
a psicogênese da língua escrita enquanto
atividade conceptual do sujeito
Segundo Dongo Montoya (2009), Piaget inaugura uma
nova maneira de ver a aprendizagem, em términos dinâmicos, no
sentido de transformações constantes de sistemas que se repõem,
reorganizando-se mediante os desafios que o meio propõe ao sujeito.
Essa maneira é uma forma peculiar de se compreender o
desenvolvimento humano e a aprendizagem essa aqui entendida
como uma capacidade de transformação de um sistema (de
216
interpretação ou significação). Por assim ser interpretado, não
haveria divisão ou dicotomia entre desenvolvimento e apren-
dizagem, por serem sistemas dinâmicos e dialógicos.
Nessa perspectiva, aprender é um ato de inteligência (ato
intelectual), um ato de organização do mundo e de auto-
organização: pois envolve se acomodar (transformar) às leis que o
meio/realidade exige, porém, essa acomodação também exige um
sistema que assimila (incorpora) e que se acomoda (modifica) aos
desafios empíricos (tanto dos objetos comuns como os científicos).
É, portanto, um ato de adaptação.
Essa adaptação não é somente de acomodação ou
assimilação, mas, de forma contínua e dialética, é integrar a
realidade, e, ao (se) integrar (assimilar) a/à realidade, transformar-se
(acomodar-se). Acomodar-se requer um sistema interpretativo, pois
o que se acomoda é o sistema, e, quando a realidade exige novidades,
esse sistema se transforma para poder integrá-lo (ou assimilá-lo).
A pesquisa de Emília Ferreiro conjuntamente com Ana
Teberosky mostrou justamente que a aprendizagem da língua escrita
significa um assíduo processo de conceptualização da linguagem ou
de interpretação representativa. O progresso na língua escrita não é,
então, o aperfeiçoamento da cópia (transcrição) de um texto ou o
seu decifrado (decodificação): e isso vai de encontro com o
pensamento habitual (tradicional).
Pelo contrário, a atividade conceptual do sujeito consiste em
assimilar (integrar) os dados da experiência num sistema de relações
(relações de diferenças, relações de parte e todo, relações inferenciais
e de generalizações construtivas, etc.) e não em reproduzir,
mecanicamente, os dados observados (associacionismo). Assim, o
217
contraponto das pesquisas de Ferreiro e Teberosky (1985/1999) aos
métodos tradicionais é de natureza essencialmente epistemológica.
Além disso, para a Epistemologia Genética, bem como
buscamos evidenciar em outro momento (SASSO, 2020), tanto o
desenvolvimento da linguagem como o da língua escrita são
provenientes da coordenação dos esquemas de ação do sujeito em
uma contínua reelaboração e reconstrução. Ambos os desenvol-
vimentos exigem processos de conceptualização ou de organização
lógica e objetiva do mundo, ou seja, não no sentido de serem
adquiridas por associações ou mediante reforço, mas por se tratarem
de processos conceptuais – levando em conta suas especificidades.
Quanto à psicogênese da língua escrita, observamos que a
sua singularidade e dificuldade é que se trata de um conhecimento
cultural que precisa ser descoberto como um objeto do mundo. A
língua escrita é, assim, um sistema arbitrário, uma vez que
dificilmente traz em si características explícitas e concretas de um
objeto.
É possível, então, acompanhar um desenvolvimento que
parte sempre de um estado de menor equilíbrio para outro cuja
estabilidade é maior e mais difícil de ser infringida. Nessa evolução
da escrita, de acordo com Ferreiro e Teberosky (1985/1999),
hipóteses originais de que a criança formula, e que se tratam de
conceptualizações acerca do sistema da escrita as quais, uma vez
constituídas, são muito fortes e precisarão ser provocadas e
desestabilizadas (seja por um questionamento ou uma informação
que entre em choque com seu pensamento presente).
Esse processo de conceituação da língua escrita se realiza a
partir do que o sujeito sabe e realiza com sucesso na experiência,
218
que é a prática de falar e de se comunicar por meio da linguagem
oral. Será exatamente isso, portanto, que o conduzirá à tomada de
consciência no sentido da aquisição da linguagem, que domina na
sua expressão oral, também na sua forma escrita.
Ao agir, no sentido de assimilar alguma coisa do meiosico
ou social relacionado à escrita e essa englobada enquanto sistema
–, os novos conteúdos a serem incorporados entram em conflito com
a conceptualização inicial do indivíduo (essa ainda não alfabética)
acerca da língua escrita, e provoca, aí, perturbações, uma vez que traz
consigo algo novo para o qual a estrutura assimiladora não possui
instrumento.
Urge, então, que o sujeito refaça seus instrumentos de
assimilação em função da novidade. Esse refazer do sujeito sobre si
mesmo engendra-se como sendo a acomodação (ou, ainda, a
modificação/transformação da estrutura), sendo exatamente esse
movimento, essa ação, a responsável pela restauração do equilíbrio
uma vez perdido. No entanto, realiza-o em outro nível, criando algo
novo, mais consistente, ou majorante, no sujeito. Esse novo fará que
as futuras assimilações sobre a língua escrita sejam diferentes das
primeiras, absolutamente melhores, em duas dimensões
complementares: como conteúdo e como estrutura (forma ou
condição prévia de assimilação de outros conteúdos).
A criança passa por etapas em que, antes mesmo do início de
seu processo de conceptualização, realiza suas garatujas apenas pelo
prazer de grafar no papel seus traços aparentemente sem nexo (total
indiferenciação).
Depois, em um período em que a marca gráfica ainda não
tem relação alguma com a linguagem (fase pré-silábica), a criança
219
constrói hipóteses acerca da linguagem escrita que lhe são originais
e segundo as quais o que se representa por meio da escrita é
essencialmente o nome das pessoas/os objetos, e que para se escrever
precisa-se tanto de um número mínimo de caracteres como de uma
variedade desses (início de diferenciação).
Posteriormente, o sujeito passa a atribuir um valor sonoro
para cada letra e a escrita passa a estar, então, relacionada à
linguagem (fase silábica); entretanto, o relacionamento entre as
partes e o todo ainda não é contemplado (ocorre, na escrita, a
supressão dos artigos e outros elementos linguísticos), sobretudo
devido à participação da imagem ou do nome dos objetos/pessoas
(início de diferenciação, mas ainda sem coordenação).
Será somente depois, quando aquilo que o meio externo
oferece ao sujeito entrar em conflito com os seus modelos próprios
é que haverá, de fato, a necessidade de o indivíduo considerar as
particularidades e as coordenar com o que é geral à escrita apesar
disso, neste momento, ainda enfrenta dificuldades (fase silábica-
alfabética). Quando os problemas forem superados, a criança poderá
abordar um modo coerente e lógico de interpretação (que é, por fim,
o alfabético).
Neste último (fase alfabética), então, o sujeito terá vencido
as barreiras impostas por sua falta de coordenação anterior,
possibilitando-o a utilizar-se da escrita enquanto um sistema de
representação de sua linguagem oral, levando em conta e
ponderando os aspectos particulares tanto de uma quanto de outra
(composição operatória).
Assim sendo, o sistema alfabético de escrita, na concepção de
Ferreiro e Teberosky (1985/1999), é resultado de longo e difícil
220
processo de sucessivas reorganizações e reconstruções por parte do
sujeito do conhecimento, em função de uma interação radical entre
esse sujeito e o mundo da cultura letrada, entre sujeitos que se
tornam progressivamente escritores e leitores.
No mundo interno (endógeno) do sujeito, em relação às suas
hipóteses ou conceptualizações da língua escrita, algo novo é criado.
As etapas subsequentes, portanto, são sempre sínteses do que existia
(e que era conteúdo assimilado do meio social, e, por isso, o sujeito
não pode ser jamais considerado como tabula rasa, ainda que se
levem em conta as suas formulações iniciais). O sujeito recria algo
novo (algo que não existia originalmente dentro dele mesmo), e
graças à força de sua ação (assimiladora e acomodadora).
Para as autoras, a consciência não é fruto do acaso nem
transmitida ou herdada geneticamente; antes, à medida que o sujeito
se apropria dos mecanismos íntimos de suas ações, ela vai sendo
construída: elaborada e reelaborada conforme vão surgindo conflitos
que coloquem em xeque as formulações existentes até aquele
momento. Esse processo não tem fim. Muito menos começo
absoluto.
Nessa conjectura, a transmissão verbal, apenas, não é
suficiente e eficaz para a aquisição de conhecimentos, muito menos
para o domínio da língua escrita, pois ainda são importantes as
possibilidades de interação do sujeito com os objetos e outros
sujeitos do seu meio, a exploração, a experimentação e a
manipulação de materiais que atendam às suas necessidades, e,
sobretudo, as relações que deverão ser estabelecidas sobre esses
aspectos.
221
As relações entre aluno-professor na perspectiva do
construtivismo quanto ao ensino-aprendizagem
da língua escrita
Ferreiro mostrou-nos o quanto várias das práticas usuais no
ensino da língua escrita se devem ao que se sabia acerca da aquisição
da língua oral, principalmente antes dos anos 60 do século passado
(FERREIRO; TEBEROSKY, 1985/1999). Dessa forma (e até
então), a concepção sobre a aprendizagem da língua escrita era tida
como uma reaprendizagem da língua oral, revelando a íntima relação
entre o desenvolvimento de uma e a aprendizagem da outra. Esses
princípios correspondiam, portanto, a concepções psicológicas
precisas, além de se relacionarem com as seguidas posturas
metodológicas dos educadores.
No entanto, ainda de acordo com a autora, comumente, a
leitura e a escrita são ensinadas à criança como algo estranho a ela
própria, ou de forma mecânica, ao invés de levá-la a pensar sobre
esse objeto com que ela tem, sim, contato (ou seja, não é estranho a
ela, mas é próximo) e é de seu interesse conhecê-lo, caso estabeleça
relações dos usos sociais que faz inconscientemente. Entretanto,
na concepção tradicional de leitura, o significado aparece em algum
momento, magicamente, atraído pela oralização.
Caberia à emissão sonora a graça de atribuir o significado, o
qual surge e transforma, assim, a série de fonemas em uma palavra.
Nessa perspectiva, segundo a visão de vários autores contem-
porâneos, o circuito signo visual-tradução, sonora-significação não
é um rculo inevitável, mas, sim, que surge como tal em virtude da
importância desmensurada que a leitura em voz alta adquire na
prática escolar.
222
Preocupa, ainda, saber que professores que, pensando em
ajudar os seus alunos, insistem em exercícios que associam o desenho
com a escrita (e enfatizam somente isso). Nesse caso, a imagem
ilustrativa pode ser, ao mesmo tempo que um recurso, um
empecilho nesse processo. Isso, porque, apesar de o desenho servir
de base conceptual para a escrita, a criança te que, pouco a pouco,
se desvincular dele para estabelecer relações entre a escrita e o signo
verbal com que aquela condiz (SASSO, 2020).
Além disso, como bem destacou Ferreiro, são muitos os
docentes que “se veem obrigados a uma prática pedagógica
dissociadora” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985/1999, p. 31).
Posto que para alguns conteúdos escolares são piagetianos (ou, ao
menos, tentam -lo), na maioria das vezes, em relação a outros
conteúdos, acabam desempenhando uma postura que condiz muito
mais com outras práticas, como a associacionista (por vezes, sem ao
menos saber disso) vivendo uma verdadeira incoerência
epistemológica em seus viveres pedagógicos.
Tal dicotomia acaba sendo insustentável na prática, pois
partem de concepções muito distintas acerca do desenvolvimento
infantil e da própria criança: ora tratada como ativa, criadora e
inteligente (ser pensante), outrora passiva, receptora e ignorante.
Qual seria, então, o papel do professor na aprendizagem do
aluno, de acordo com a Epistemologia Genética, a respeito da
aquisição da língua escrita pelo sujeito que aprende, visando a uma
prática pedagógica coerente com os princípios da Teoria piagetiana
acerca da construção do conhecimento?
Ao se considerar tudo o que apresentamos acerca dos
princípios epistemológicos que sustentam o construtivismo
223
piagetiano, a relação entre professor e aluno não poderia ser outra a
não ser a de reciprocidade e respeito mútuo. Isso implicaria em
superar a disciplina vigilante e de desconfiança resguardada pela
figura autoritária do professor representante dogmático e
conteudística da ordem e do progresso –, para se obter relações de
equidade e cooperação (sem a predominância de nenhum dos polos
da relação).
O interacionismo significa que o conhecimento não
acontece somente pela atuação do sujeito nem por pressão do meio
que o cerca. Acontece, como o próprio nome diz, pela interação de
ambos, com suas extraordinárias complexidades. Na relação entre
professor e aluno, compreenderia, assim, acomodações (isto é, ações
de mudança) dos sujeitos sobre eles mesmos professor e aluno
ou respostas do sujeito aos desequilíbrios trazidos pelas assimilações
de conteúdos do meio (físico, social, moral e cultural).
Por isso, como Becker (2007) defende, é errado conjugar o
verbo interagir para um sujeito simples, como, por exemplo: o aluno
interagiu com o professor. O correto seria conjugá-lo sempre para
sujeitos compostos: o(s) aluno(s) e o professor interagiram (P A).
De maneira análoga e consonante a Paulo Freire, Becker
(2007) equivale o uso incorreto do verbo dialogar. Não é certo dizer
que “o professor dialogou com ou para sua turma” (p. 11); o correto
é falar que professor e aluno(s) dialogaram. A interação (discursiva
ou prática), de acordo com o autor, acontece apenas quando ambos
os polos presentes na relação agem quando sujeito e objeto agem
–, transformando-se em função dessas ações e a ação de uns é
assimilada pelas ações dos outros, e vice-versa.
224
Além disso, muito se ouve no contexto educacional sobre o
professor ser o mediador do processo de aprendizagem da criança.
Mas o que por trás disso? Quais são os embasamentos que
sustentam essa ideia?
A palavra mediação também significa intermediação,
intermédio, intervenção, interposição, ou aquilo/aquele responsável
por intervir na comunicação entre as partes. Em decorrência disso,
porém, ao se definir o professor como mediador, significa que algo
estará no meio entre o sujeito e o objeto de conhecimento.
Especificamente acerca da língua escrita, entre o aluno (A) e
o conhecimento (C), indispensavelmente haveria a necessidade de se
ter a atuação o professor (P), desempenhando o seu papel de
mediador, sem o qual a aprendizagem não ocorreria, sendo
imprescindível, inclusive para a aquisição da lectoescrita (leitura e
escrita), essa atividade mediadora, nessa perspectiva.
Em outras palavras, o professor, nesse papel, seria o
medianeiro, ou o regulador do conhecimento. Sem ele, não haveria
a possibilidade de interação do sujeito sobre o objeto a ser
conhecido, desvendado e interpretado. O sujeito fica, assim, fadado
às ações de outrem para adquirir ou não o conhecimento que lhe é
proposto (se não o for, não se apropriará). Além disso, por trás dessa
concepção, ao sujeito caberia o papel de apenas internalizar o que
lhe é oferecido ou transmitido. Embora se valorize a história e a
225
cultura dos indivíduos e do meio que o cerca, torna-se contraditório
supor que o sujeito desempenharia um papel ativo nessa explicação,
pois, de maneira semelhante à explicação empirista, ao sujeito
caberia apenas absorver o que o meio seja ele social (ou relações
sociais) ou cultural (ou a cultura em si) lhe proporciona ou
transmite, submetendo-se e incorporando (sem real necessidade de
modificação) – concepção pseudo-empirista.
Entretanto, de acordo com Becker (2007), “na concepção
atual de docência, tanto professor quanto aluno deve ser
compreendido como sujeito epistêmico; sujeito que constrói
conhecimento” (p. 8). Ademais, “em nenhum domínio o
conhecimento-conteúdo está pronto, acabado; também não se
conhecem os limites da capacidade de aprender. [...] o professor é
responsável pelo processo de aprendizagem do aluno” (p. 9).
É coerente ao professor propiciar ambientes nos quais, além
de predominar o respeito mútuo, se privilegiam, também, as relações
que envolvem a cooperação, e nos quais as crianças tenham
problemas a resolver. Nas palavras de Piaget:
O primeiro receio (e para alguns, a esperança) de que se
anule o papel do mestre, em tais experiências, e que,
visando ao pleno êxito das massas, seja necessário deixar
os alunos totalmente livres para trabalhar ou brincar
segundo melhor lhes aprouver. Mas é evidente que o
educador continua indispensável, a tulo de animador,
para criar as situações e armar os dispositivos iniciais
capazes de suscitar problemas úteis à criança, e para
organizar, em seguida, contra exemplos que levem à
reflexão e obriguem ao controle das situações demasiado
226
apressadas: o que se deseja é que o professor deixe de ser
um conferencista e que estimule a pesquisa e o esforço, ao
invés de se contentar com a transmissão de soluções
pronta (PIAGET, 1948/1975, p. 18).
Ao professor, caberia o papel de desencadear os conflitos
para o desenvolvimento; além disso, para que, buscando fazer que os
alunos se descentrem de si mesmos a ponto de conseguirem
relacionar e coordenar um ou mais aspectos (fora do seu próprio
ponto de vista), e conquistem a reversibilidade (tanto da ação quanto
do pensamento), o professor precisar-lhes-ia proporcionar muito
mais de o que podem fazer, mas o que se faz com aquilo que se faz.
Portanto, os educadores não estariam no meio, mas como
interlocutores, questionadores, orientadores, ou tutores dos
estudantes. Isto é, em constante interação com o objeto de
conhecimentoem relação à alfabetização, à língua escrita – e com
os alunos, mas de maneira alguma no meio entre eles, e sim fora do
processo (apesar de agirem ativamente sobre os sujeitos e o
conhecimento ou conteúdos –, dando possibilidades de assimila-
ções, desequilíbrios, acomodações/transformações, assimilações/
227
integrações e novos equilíbrios majorantes), e sofrendo
simultaneamente os mesmos processos, de maneira dialética e
ininterrupta.
Aspectos históricos dos estudos psicogenéticos e dos métodos de
ensino sobre a aquisição da língua escrita
Vasconcelos (1996) relata que,nos anos de 1920, o nome
de Piaget começou a aparecer na cidade do Rio de Janeiro, e, na
década subsequente (1930), o posicionamento de Piaget cruzara o
oceano e chegara ao Brasil, obtendo certa projeção por causa do
interesse pela psicologia infantil de pesquisadores brasileiros como
Lourenço Filho e Nilton Campos. Porém, foi em meados da década
de 1970 que parece ter ressurgido a curiosidade por Piaget no país.
Na verdade, Piaget entra nas escolas na década de 1970, na
Matemática, mas não na alfabetização. O que se tinha era uma
verdadeira dissonância, uma vez que, em Matemática, era-se
epistemologicamente de um jeito e de outro jeito na língua escrita.
Isto é, não se tinha uma elaboração (teoria) que sustentasse uma
prática pautada na Epistemologia Genética em termos de leitura e
escrita (MELLO, 2015).
De acordo com Ferreiro e Teberosky (1985/1999), a
bibliografia sobre a aquisição da língua escrita que existia à época
estava dividida em dois grupos: de um lado estava a bibliografia
psicológica, que listava as habilidades necessárias para a
aprendizagem da leitura; de outro, estava a bibliografia pedagógica,
na qual se observava a antiga discussão sobre o melhor método para
se ensinar a ler e a escrever.
228
É fato que a perspectiva de Emilia Ferreiro colocou em xeque
os velhos métodos de alfabetização, pois ressignificava a questão
central da alfabetização não a partir de como se deve ensinar, mas de
como se aprende a língua escrita, de acordo com a própria autora.
Segundo Vasconcelos (1996), na época, atribuía-se um
papel supervalorizado à escola, delegando a ela obrigações maiores
do que podia ter, como se a escola tivesse a responsabilidade de
erradicar os problemas estruturais da sociedade pós-Ditadura
Militar. Esse é o cenário para a propagação do construtivismo,
especialmente com Emilia Ferreiro relacionada à alfabetização.
É nesse contexto que entra a teoria de Emilia Ferreiro no
Brasil, desde e principalmente depois de 1985, em uma das
mais importantes revistas especializadas em educação, com
circulação nacional, Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos
Chagas, São Paulo, e, posteriormente, com o lançamento de seu
livro, em coautoria de Ana Teberosky, por meio de Congressos e
Simpósios de educadores e, então, da primeira edição brasileira, com
o título Psicogênese da Língua Escrita.
As ideias de Ferreiro causaram grande impacto sobre a
concepção que se tinha acerca do processo de alfabetização,
influenciando as próprias normas do governo para a área, expressas
nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), anos seguintes.
Porém, desde a chegada de seu pensamento no país, a visão não era
uniforme, isto é, várias versões de construtivismo podiam ser
encontradas: “eram tantos os retratos construtivistas quanto eram os
pintores” (VASCONCELOS, 1996, p. 106).
As descobertas de Ferreiro e Teberosky (1985/1999) foram
tão fortes e se espalharam rapidamente no Brasil que, na época, a sua
229
disseminação causou preocupação na própria autora, principalmente
pela forma como o construtivismo poderia estar sendo apresentado
e conhecido nos ambientes escolares.
Um dado relevante é que 25% dos adultos do país eram
analfabetos, então ansiava-se por uma solução para reduzir esse
índice de analfabetismo. Quando emergiu essa mulher, não se
titubeou em transformá-la em método. Logo as suas descobertas se
tornaram assunto obrigatório nos meios pedagógicos se espalhando
pelo Brasil, como marco de disseminação da teoria de Piaget,
principalmente por meio de convênios entre organizações
educacionais e grupos de trabalho que ofereciam consultorias numa
perspectiva construtivista.
Na década de 1980, o estado de São Paulo passou a
trabalhar com o construtivismo de maneira obrigatória no lugar
de se utilizar as cartilhas (que, por vezes, juntavam princípios de
vários métodos de alfabetização
4
, como o sintético e o analítico,
mas que categoricamente engendravam a associação de imagens e
letras com o objetivo de facilitar o aprendizado “alfabetizão
pela imagem” –, tratando a alfabetização como um processo de
codificação e decodificação apenas).
Nesse parâmetro, havia os professores resistentes ao
construtivismo e os que o abraçaram cegamente, mesmo sem
conhecerem de fato a teoria. Isso, pelo fato de se ter de trabalhar,
obrigatoriamente, algo que não se tinha uma metodologia ainda.
4
Ou métodos de ensino inicial da leitura e da escrita.
230
Imagine: quem não é construtivista se torna construtivista por
meio de um Decreto
5
?
Destarte, o resultado não poderia ser outro a não ser uma
fatalidade. De acordo com Morais (2016), “muitos educadores
passaram não a questionar e negar o uso de tais métodos
[tradicionais], o que nos parece muito acertado, mas a apostar
numa alfabetização sem metodologia’, sem um plano de
atividades intencionalmente concebidas para ensinar a escrita
alfabética” (p. 24). Ao mesmo tempo em que, “mesmo quando se
diziam ‘construtivistas’, os professores usavam, rotineiramente,
atividades de cópia de letras e sílabas e ensinavam famílias
silábicas” (MORAIS, 2016, p. 26).
Não se tornava a teoria a culpada pelo fracasso que lhe seria
atribuído, posteriormente, por autores como Ribeiro (1991),
Capovilla (2003) e Mortatti (2016). O egocentrismo que assola
nossa sociedade, no entanto, potencializado, muitas vezes, pela
própria competitividade acadêmica, fez que, para muitos, existisse
o preto e o branco, o cinza, nem pensar. Se os desdobramentos da
implantação distorcida do construtivismo fora um fracasso, a teoria
por si também precisou ser desprezada e não pode mais ser levada a
sério pelos críticos.
Desde o início da divulgação do pensamento constru-
tivista de Emília Ferreiro sobre alfabetização no Brasil, em
meados dos anos de 1980, as tensões decorrentes da
5
Para mais detalhes, ver: OLIVEIRA, Fernando Rodrigues de; NEVES, Diego
Benjamim. A implementação do construtivismo em alfabetização na perspectiva
de Ferreiro e Teberosky na rede municipal de ensino de São Paulo (1983-1988).
Revista Brasileira de Alfabetização, n. 12, 2020.
231
apropriação desse pensamento no âmbito de propostas
oficiais estavam relacionadas com as discussões sobre o
significado da revolução conceitualproposta pela autora.
Embora essa tensão pareça ter-se amenizado e embora o
se tenham notícias de que a pesquisa de Ferreiro e
colaboradores tenha sido refutada em seus fundamentos e
resultados, vêm sendo apresentadas muitas críticas
relacionadas, sobretudo, à dúvida a respeito do papel do
ensino, da escola e do professor desse ponto de vista. Tais
dúvidas relacionam-se com o fato de no livro Psicogênese
da ngua escrita não se encontrar uma proposta didática
de alfabetização, nem ‘receitas prontas’ com intenção de
garantir o sucesso da alfabetização de todas as crianças em
fase inicial de escolarização (MELLO, 2015, p. 264).
O que esses autores negligenciam é que o erro se encontrava
na atitude precipitada da implantação e não na teoria que a
embasava. Ribeiro (1991), por exemplo, não nega a importância da
pesquisa de Ferreiro, mas evidencia o trato espontâneo das produções
infantis das crianças envolvidas na pesquisa da autora. Para ela, se,
de acordo com a concepção de Ferreiro, o processo de ensino deve
reproduzir esse processo de desenvolvimento espontâneo das
crianças, o ensino não teria papel algum, que existe negação desse
papel na obra de Ferreiro, pois não se encontra nela “[...] uma
explicação de como a intervenção alfabetizadora interage ou pode
interagir com esse processo espontâneo” (p. 69).
Assim, os níveis de organização linguística adquirida pela
criança foram abrangente e erroneamente interpretados como sendo
uma sucessão espontânea e determinada de estruturas previamente
existentes (bem como ocorre no apriorismo), e não como sistemas
232
de composição construídos pelo sujeito e que se sucedem em fuão
de autênticos e difíceis esforços de reconstrução conceptual
(verdadeiro interacionismo) (DONGO MONTOYA, 2020).
Por esse modo, ficou fácil exterminar a teoria psicogenética
da construção da escrita e impossibilitar a criação de uma pedagogia
capaz de promover aprendizagem inteligente dos saberes.
O mundo inteiro vem discutindo o todo. Aqui não,
existe a verdade de ‘santa’ Emília Ferreiro. O Brasil inteiro
fica de joelhos diante dela”, critica Capovilla, nascido em
Valinhos (SP) e formado em psicologia pela PUC de
Campinas (SP). Para ele, o atual método de alfabetização
baseado nos construtivistas, e por conseguinte adotado
pelos PCNs, são obras-primas de burrice pré-científica’.
Jean Piaget (1896-1980), criador do construtivismo, e o
educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) seriam
outros profetas ultrapassados pela nova crença fônica.
Piaget e Paulo Freire foram gigantes, mas de seu tempo’,
defende Capovilla. Para o pesquisador, Emilia Ferreiro
teria feito alguns progressos em relação a Piaget, mas
permanecido ligada ao arcabouço teórico, ignorando
toda a pesquisa feita desde 1985, que resultou no advento
da neuroimagem, da tomografia computadorizada, da
ressonância magnética. Tudo isso nos ensinou que Piaget
estava francamente errado. Ciência tem prazo de
validade’, prega, apesar de esclarecer que sua crítica ao
construtivismo diz respeito somente à alfabetizão. É
uma briga boa, quase uma cisma da pedagogia. Para
tentar se situar em um dos lados, é preciso diferenciar os
dois conceitos: em resumo, enquanto a proposta
233
construtivista dos PCNs professa a adoção de textos
inteiros desde os primeiros dias de aula, familiarizando as
crianças com letras e palavras em um ‘texto real’, o
método nico apregoa que as letras devem ser
apresentadas e conhecidas por meio da associação com os
sons que emitem. Ou seja, ao mesmo tempo que uma
frase famosa de Ferreiro é ler não é decifrar’, Capovilla
sustenta que ler é decodificar’ (CAPOVILLA, 2003).
De acordo com Morais (2016), “os que, de forma
equivocada, acusam nossas escolas de ‘terem se tornado
construtivistas’ tendem a apresentar como salvação a adoção de
métodos fônicos” (p. 26).
A tese de doutorado intitulada Alfabetização de adultos:
Freire, Ferreiro, Vygotsky contribuições teórico-
metodológicasa formulação de propostas pedagógicas,
defendida em 1998 por Tânia Maria de Melo Moura, na
PUC/SP, sob a orientação de Casali Alipio Marcio Dias,
traz informações sobre a falta de referencial teórico entre
os profissionais da área de alfabetização de jovens e
adultos no estado de Alagoas e também em outros estados
do Brasil, apontando que esse fato provoca uma ‘[...]
inconsistência nas práticas [...]’ (MOURA, 1998, p. 11),
levando os professores a utilizarem em suas práticas os
chamados métodos tradicionais’, misturados com os
caminhos metodológicos’ percorridos por Paulo Freire
nas décadas de 1950 e 1960, além de introduzirem
elementos do ‘construtivismo’ de Emília Ferreiro e ‘[...]
234
algumas práticas [que] se anunciam vygotskyanas’
(ibidem, p. 11) (MELLO, 2015, p. 270).
Esses métodos tradicionais, os assim chamados sintéticos e
analíticos, têm como suporte a “atividade” perceptual do aluno, que,
longe de integrar e compor as relações observadas, apenas os justapõe
e reproduz mecanicamente. E, oposta a essa atividade, as pesquisas
de Ferreiro evidenciaram que a aquisição inteligente da língua escrita
se produz pela ação conceitual da criança, sujeito do conhecimento,
o que é uma coisa completamente diferente do uso da percepção que
exige apenas ações reprodutivas e não criativas.
Precipitadamente, as pesquisas de Emília Ferreiro foram
interpretadas como uma estratégia de ensino-aprendizagem fundada
na percepção dos educandos, nos moldes dos métodos tradicionais.
Assim, a teoria de Ferreiro foi equivocadamente considerada como
uma alternativa pedagógica acabada, que podia simplesmente
suceder os métodos tradicionais de ensino, servindo como base
para um projeto pedagógico incipiente e inconsistente, sem
subsídios materiais de ão, para suprir um sistema remoto,
organizado e legitimado.
O ponto é que a aprendizagem da língua escrita, na
perspectiva da Epistemologia Genética, deveria ter sido
considerada como uma teoria que poderia gerar reflexões e, assim,
sustentar práticas pedagógicas que fossem ao encontro dos seus
pressupostos, ajudando as crianças a reconstruir em suas mentes as
propriedades de sua língua materna, cujos membros criaram e
adotaram muitos anos. Isso, porque a aprendizagem da língua
escrita, conforme apresentado por Ferreiro e Teberosky
(1985/1999), não ocorre por mera transmissão, mas presume um
235
percurso evolutivo, de reconstrução, em que a ação do sujeito
aprendiz desencadeará novos conhecimentos a caminho da escrita
alfabética.
Entretanto, pelo contrário, segundo Dongo Montoya
(2020), a teoria da autora foi concebida como puro e despótico
novo método de ensino (sem assim o ser), que envolvia uma falta
-quase que uma aversão a qualquer tipo de metodologia (ao
encontro do apriorismo, inclusive, em que o papel do professor é
completamente dispensável), contraditoriamente à real proposição
construtivista. Assim, infelizmente, não foi tido como um
elemento importante para a reflexão e debate e para a construção
coletiva de um ensino democrático alternativo.
Lamentavelmente, ainda fica o legado da psicogênese da
escrita como parâmetro de avaliação das competências linguísticas e
não como processo construtivo e reconstrutivo, em decorrência
justamente dessa interpretação dos níveis como sucessão natural
e ou obrigatória de estruturas preexistentes.
Tabela 1 – Algumas tendências equivocadas das proposições construtivistas
Proposições Construtivistas
Tendências Equivocadas e
Reducionistas da Transposição
Pedagógica
Evolução psicogenética entendida como
um processo ativo e pessoal de
elaboração cognitiva, a partir das
experiências vividas.
Ausência de intervenções
pedagógicas para não “atrapalhar”
o processo individual de
aprendizagem, isto é, sem a
preocupação de propor
experiências ou situações
favoráveis à construção do
conhecimento.
236
Construção do conhecimento a partir de
condições favoráveis para o
envolvimento pessoal, a elaboração e
testagem de hipóteses, a possibilidade de
descoberta e a apropriação do saber
significativo. Um ensino capaz de
respeitar o tempo de aprendizagem, as
experiências e os conhecimentos
construídos pela criança,
compreendendo o erro como parte desse
processo de aprendizagem.
Prática pedagógica como um
ativismo didático de duração
imprevisível, não necessariamente
colocando a criança como foco da
intervenção didática.
Desconsideração do
planejamento
Aceitação de qualquer tipo
de erro sem o esforço
interpretativo para compreender a
sua “lógica” ou para transformá-lo
em um recurso para a superação
das dificuldades.
Identificação de momentos conceituais
de compreensão e produção da escrita:
pré-silábico, silábico, silábico-alfabético
e alfabético.
Divisão da classe ou de
subgrupos de trabalho “por
níveis”.
Planejamento e proposição
de “atividades por níveis”.
Pretensão de hierarquizar a
aprendizagem em “etapas”,
induzindo a progressão do
conhecimento a partir da sucessão
dos “níveis” descritos.
Avaliação da aprendizagem
unicamente com base nos “níveis”
em tentativas de “classificar” as
crianças e seus saberes sobre a
escrita.
237
Escrita espontânea como
oportunidade de produção
significativa para a reflexão
linguística e para a constituição da
autoria (o aprendiz-autor).
Deixar a criança escrever
livremente, sem interferências e por
tempo indeterminado e sem propósitos
ou destinatários definidos.
Evitar a correção ou qualquer
forma de revisão textual
Interlocução como recurso para a
troca de informações e
desestabilização das hipóteses
construídas, favorecendo a
possibilidade de avanço.
Promoção de trabalhos em grupo,
supondo a interlocução como
consequência necessária do
“agrupamento de pessoas”.
Escrita do nome próprio como
conhecimento significativo que
pode funcionar como um
referencial estável de escrita na
tentativa de outras produções ou de
reflexão sobre a língua.
Ensino do nome próprio como a
primeira lição do ano e pré-requisito
para as demais aprendizagens.
Para aproximar a língua de seus
usos sociais, estímulo ao uso de
vários portadores textuais, em
diferentes possibilidades de uso,
funções ou gêneros de escrita.
Composição de livros didáticos
que, pretendendo substituir as
cartilhas, agrupam diferentes tipos
textuais, mas não asseguram as
especificidades do portador nem as
reais situações de uso.
Trabalhar com textos em
detrimento de uma reflexão mais
sistemática sobre o funcionamento do
sistema.
Reflexão sobre a escrita para o
avanço na compreensão do
funcionamento desse sistema
linguístico.
Trabalhar com textos depois
de “dominada” a escrita alfabética.
Fonte: Colello e Luize (2005)
238
No quadro publicado em um artigo científico por Colello e
Luize (2005), procuram-se sistematizar os aspectos e equívocos mais
frequentes na assimilação das ideias de Emilia Ferreiro.
Vislumbramos, assim, que (infelizmente) a mesma interpretação
reducionista encontrada quanto aos níveis da inteligência descoberta
por Piaget (sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto,
operatório formal) passou, também, a ser amplamente encontrada
quanto aos níveis de organização da língua escrita: estruturas pré-
formadas que se manifestam sucessivamente.
Silva (2015) e Moura (2009), entre outros pesquisadores,
também destacam que não relações entre a concepção que os
professores possuem acerca do desenvolvimento infantil e dos
processos de ensino e aprendizagem, suas práticas pedagógicas e à
Teoria de Piaget e de Ferreiro. Não podemos, dessa forma e de
nenhum modo, atribuir o fracasso da alfabetização à adoção dos
pressupostos construtivistas.
Considerações finais
A aquisição da língua escrita, consoante à explicação da
Epistemologia Genética (psicogênese), conversa com um tipo de
educação que destoa da tradicional ou convencional, ou ainda
conservadora, que é a predominante no Brasil e em boa parte do
mundo. Na verdade, ela converge com um tipo de educação muito
mais em um sentido inclusivo, emancipatório e autônomo, que se
fosse implementada, especificamente relacionada à alfabetização,
teria como objetivo primeiro a tomada de consciência dos educandos
239
acerca dos processos e mecanismos da língua que domina de forma
tão pessoal e devida. Isto é, precisaria de uma total reformulação
didático-pedagógica, não no sentido de laissez faire, mas de formação
e concepção dos professores para o planejamento intencional e
coerente de atividades que levem em conta a consciência fonológica
da língua oral e sua aplicabilidade na expressão escrita. E, claramente,
não foi isso o que aconteceu com a chegada e disseminação da teoria
de Piaget e Ferreiro no país.
As velhas e tradicionais práticas que permeiam a educação
(há culos) reprodutora de bitos e de verdades dadas –, não
foram superadas e a emancipação dos sujeitos não foi o alvo. O
próprio papel do educador não foi discutido e se manteve como
sendo o detentor do saber: soberano e intocável. Isso quando não foi
diminuído, para o que nada pode e/ou deve fazer.
O papel do educador, porém, ao encontro da perspectiva
construtivista, bem como buscamos discutir, não é o de transmitir
conhecimentos, mas o de criar e oferecer condições que
potencializem a aprendizagem e o desenvolvimento integral de seus
estudantes. É necessário que os adultos se desprendam da angústia
pelo controle total e absoluto dos passos e das expressões das crianças.
Somente assim, a interação também por meio do debate e a
possibilidade de fazer escolhas serão grandes aliados para que o
protagonismo da criança possa florescer.
A relação entre professor e aluno, ao encontro dos
pressupostos da Epistemologia Genética, -se, então, no sentido da
reciprocidade e do respeito mútuo inclusive, na tentativa de se
superar a figura autoritária do professor, enquanto representante
dogmático e conteudista da ordem e do progresso, ou da disciplina
240
vigilante e de desconfiança resguardada. No lugar disso, haveria a
predominância de relações de equidade e cooperação (sem a
sobressalência de nenhum dos polos da relação).
Mesmo que os educadores se utilizassem dos métodos ditos
tradicionais (os sintéticos e os analíticos) para a alfabetização, em
determinados momentos de intervenção, individual ou até mesmo
coletiva, suas posturas enquanto autoridades frente ao conhecimento
conduziriam os educandos para uma aprendizagem (epistemologia-
camente) fundamentada no interacionismo (ou, como alguns
preferem, construtivismo) principalmente por não ser por
imposição e submissão passiva.
As crianças acabam mostrando o caminho natural de
desenvolvimento quando lhes é oportunizado pensar e fazer em
relação à língua e em sua expressão escrita, não em um sentido de
transmissão de conhecimento (desse vindo de fora), mas no
verdadeiro sentido “construtivista” (na epistemologia e na prática de
forma coesa e coerente, e não o maquiado ou deturpado, como a
maioria o encara): de construção e reconstrução, tendo os
professores o papel de tutores, auxiliadores, interlocutores do saber
(aqueles que realizam solicitações e provocam desequilíbrios nos
educandos).
Especificamente relacionado à alfabetização, é o olhar para o
“conteúdo” da língua portuguesa e não o tornar disciplinador,
engessado, tratado apenas como forma transmissiva. Entendê-lo
como um tipo de conhecimento específico, que possui um progresso
em e para a sua aquisição, e entender que essa evolução não acontece
do dia para a noite, como em um passe de mágica. Requer, dessa
forma, paciência e respeito ao encontro de todas as demais
241
propostas e relações desenvolvidas no ambiente escolar e
extraescolar. Para ser efetivo, não para se contar com a sorte ou
com o espontaneísmo, da mesma forma que não se pode despejar
sobre os adultos da relação (no caso os educadores/professores) o
múnus da aprendizagem dos educandos.
Além disso, é imprescindível a tomada de consciência por
parte dos educadores acerca dos processos intrínsecos da
aprendizagem (sobretudo desse tipo de linguagem, a escrita a
saber). Como resultado, o desempenhar de sua função de maneira
coerente a todo processo também é inegociável, para que tenhamos
práticas pedagógicas conscientes, intencionais e coerentes em um
ambiente livre, acolhedor, respeitador e responsável.
No entanto, que, conforme apresentamos acerca da
trajetória da história da chegada e implementação do construtivismo
nos meios oficiais e acadêmicos, ainda hoje, é possível observar que,
em uma grande abrangência das realidades escolares, quando
ataques à teoria de Emilia Ferreiro: “convidam-na para um café,
usam-na apenas para a avaliação das hipóteses de escrita, e depois se
despedem novamente e voltam para suas práticas tradicionais de
transmissão e passividade por parte do aluno” (SASSO, 2021, p.
162).
E isso porque até a década de 1980, os métodos sintéticos e
analíticos (os quais conotam advir da parte para o todo, ou do todo
para as partes concisa e respectivamente), criados séculos,
desempenham influência nas escolas de nosso país e foram colocados
em xeque com a chegada de novas perspectivas teóricas, sem
necessariamente assim terem deixado de coexistir. Observa-se, dessa
maneira, que a implantação dos pressupostos da teoria de Emilia
242
Ferreiro não ocorreu por tomada de consciência e/ou
convencimento por parte dos professores, mas foi feita de maneira
absolutamente impositiva, sem preparação alguma nem da escola
e muito menos dos educadores para as mudanças que essa nova
concepção teórica (e, sobretudo, epistemológica) requer, inclusive
acerca dos seus desdobramentos metodológicos. Ou seja, fora
recebida como “receita” pronta e incorporada para simples
aplicação (e ainda à nível de avaliação).
Mas, por quê? Como ocorriam as formações dos professores?
Iam ao encontro dos pressupostos da teoria construtivista ou de
outras epistemologias? Respondemos que de outras metodologias,
sobretudo a empirista. Quando retornassem para suas escolas, era
para os professores irem para suas salas de aulas e agirem de forma
construtivista. Porém, como dar algo que não se tem/não se
recebeu/vivenciou? Eis a questão.
Compreendemos que toda prática de ensino reflete a
concepção de conhecimento do professor, assim como sua
epistemologia. A forma de lidar com o ensino e, consequentemente,
planejar o agir pedagógico está exatamente relacionada com a
epistemologia que adota e embasa sua postura até mesmo de forma
inconsciente, e retrata de maneira clara a compreensão que se tem
de como os alunos aprendem.
Isso envolve o grande desafio, em massa, de se possibilitar
tomadas de consciência por parte (primeira) dos professores, a fim
de promover uma ruptura com os modelos de ensino menos
progressistas (muito presentes nos contextos escolares brasileiros)
que estão incorporados desde as suas formações iniciais. Dessa forma,
destacamos a necessidade de se pensar sobre propostas de/para a
243
formação (inicial e/ou continuada), conceitual e didática, do
pedagogo, levando em conta a necessidade de total reformulação não
somente didática, mas sobretudo conceptual do professor
alfabetizador, como possibilidade para que possa tomar consciência
de sua ação profissional e, quando necessário, reconstruí-la, por meio
do processo de ação/reflexão.
Aproveitamos para apontar, destarte, para a necessidade de
se refletir e discutir também sobre as políticas públicas, o trabalho
pedagógico e curricular, envolvendo a aquisição da língua escrita, no
sentido de se gerar reformas e novas propostas, não como proposta
de disciplina, mas como educação democrática em ampla escala.
Portanto, ao apontamos para como fora a chegada da teoria de Piaget
e de Emilia Ferreiro no Brasil, constatamos a distorção que houve
no processo de disseminação de suas ideias. O saber conceitual foi
tratado como método de ensino, causando reducionismos e
consequentes más interpretações de suas pretensões e apresentações.
Por assim ser, fica compreensível a atribuição do fracasso escolar ao
construtivismo, apesar do culpado ser inocente.
Referências
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concedida a] MENEZES, Cynara. Folha Online. 2003. Disponível
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244
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MELLO, M. C. de O. Emilia Ferreiro (1935-) e a psicogênese da
língua escrita. In: MORTATTI, M. R. L., et al. (Orgs.). Sujeitos
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MORAIS, A. G. Como eu ensino sistema de escrita alfabética.
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Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, v. 11, n. esp.
4, p. 2267-2286, 2016.
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pesquisas de Ferreiro e o construtivismo piagetiano poderiam ser
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Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília,
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Rio de Janeiro: UNESCO, 1975. (Originalmente publicado em
1948).
RIBEIRO, V. M. M. Problemas da abordagem piagetiana em
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São
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(Doutorado em Educação)Faculdade de Filosofia e Ciências
(FFC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
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uma contribuição piagetiana. Tese (Doutorado em Educação)
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246
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247
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p247-270
A TEORIA PIAGETIANA APLICADA NA
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOSEJA:
PESQUISAS EM CONTEXTO BRASILEIRO
Érica de Cássia GONÇALVES
1
Lilian Pacchioni Pereira de SOUSA
2
Livia Maria de Souza SOARES
3
Guilherme Aparecido de GODOI
4
Introdução
Rubem Alves (1933-2014), educador e escritor brasileiro, no
seu livro Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação, de 1999,
escreveu uma crônica endereçada ao então ministro da educação,
atribuindo-lhe a posição política mais importante do Brasil, pois “o
essencial, na vida de um país, é a educação” (ALVES, [1999]2015,
p. 23). Para o autor, existia uma diferença qualitativa entre aqueles
1
Doutoranda em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: erica.goncalves@unesp.br
2
Doutoranda em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: lilian.pacchioni@unesp.br
3
Mestranda em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, São Paulo, Brasil. E-mail: livia.soares@unesp.br
4
Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná, Brasil. E-mail:
guilhermeapgodoi@gmail.com
248
que cuidam de ministérios administrativos daqueles que cuidam do
ministério da educação, tendo em vista que o objetivo desse último
seria a formação de cidadãos críticos e conscientes do seu papel, para
atuar na sociedade com responsabilidade. Logo, uma nação é
constituída pelos pensamentos daqueles que ali habitam.
Fato é que, ao se concordar com a ideia do autor, considera-
se pensarmos sobre as relações entre educação e sociedade e mais
ainda, sobre o ato de educar no processo de formão humana, e ao
longo de toda a vida, pois seria apenas para adaptar as novas gerações
a um “dado modelo de sociedade, como questionou Gadotti (2004).
A esse respeito, o sociólogo francês Emile Durkheim (1858-
1917), em sua obra Educação e sociedade, publicada em 1922,
apontava que a educação sofre transformações e atende a diferentes
objetivos, conforme os tempos e os espaços nos quais está inserida.
Para ele, “cada sociedade, considerada num momento determinado
do seu desenvolvimento, tem um sistema de educação que se impõe
aos indivíduos” (DURKHEIM, [1922]2011, p. 47-48), de tal modo
que se espera, do ponto de vista intelectual, físico ou moral, um ideal
de homem. Partindo dessa perspectiva, Rubem Alves tinha razão ao
afirmar sobre o principal ministério de um país é o da Educação,
devendo ser esta a prioridade no projeto social de qualquer nação,
mas nem sempre foi e nem é assim.
No Brasil, a ideia de educação como um direito surgiu na
Constituição de 1934, inspirada no modelo escola-novista do
filósofo e pedagogo norte-americano John Dewey (1859-1952),
cujas raízes epistêmicas podem ser consideradas empiristas. Os
principais líderes desse movimento foram Fernando de Azevedo,
Lourenço Filho e Anísio Teixeira que assinaram um manifesto junto
249
a outros representantes reivindicando a organização do nosso sistema
educacional.
Desde então, a educação brasileira assumiu linhas e
configurações distintas, influenciadas por aspectos constitucionais e
epistêmicos, os quais sofrem os impactos dos diferentes momentos
históricos. Por exemplo, a partir do golpe militar de 1964 houve um
cerceamento da democracia por mais de duas décadas, resultando
em perdas de direitos civis e políticos a todos os cidadãos (DIAS,
2007). Grandes impactos ocorreram em relação à educação, com a
supressão da liberdade de expressão, o exílio de importantes
pensadores e a predominância de uma gica voltada para a
obediência.
Contudo, somente nos anos de 1980, o movimento que
reivindicava a redemocratização do país saiu vitorioso com a
promulgação da nova Constituição Federal, no ano de 1988. No
campo educacional, prevaleceu a ideia de uma educação pautada em
princípios democráticos, laica e para todos.
Atualmente, documentos normativos que balizam a
educação brasileira, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB) (BRASIL, 1996), as Diretrizes Curriculares Nacionais
(1997-2013), o Plano Nacional de Educação (PNE, 2001-2014)
(BRASIL, 2001) e o mais recente deles, a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017), são consequência da
Constituição Federal de 1988 e também de um importante
documento mundial sobre educação, a Declaração Mundial sobre
Educação para Todos (UNESCO, 1990), mais conhecida como a
“Declaração de Jomtien”.
250
Entretanto, ainda que isso represente um avanço no que diz
respeito a assegurar o direito à educação básica no Brasil, ainda
existem lacunas, como a título de exemplo, no que tange Educação
de Jovens e Adultos (EJA), seja no que concerne a políticas públicas
efetivas e até mesmo como um campo de pesquisa que considere as
necessidades e singularidades dessa área, como apontam Camargo,
Miguel e Zanata (2015). Nessa perspectiva, Oliveira (1999)
evidencia que uma carência de estudos que explorem os processos
de construção do conhecimento e desenvolvimento humano após a
adolescência. Para a autora, é fundamental refletir sobre como esses
jovens e adultos pensam e aprendem, o que requer considerar “a
condição de ‘não-crianças’, a condição de excluídos da escola e a
condição de membros de determinados grupos culturais”
(OLIVEIRA, 1999, p. 59). Nessa concepção, para Sousa (2021, p.
12):
[...] a real função do programa de EJA deveria envolver a
noção de formação geral e ampla, na concepção de
omnilateralidade de modo a estar relacionada ao
pressuposto segundo o qual, por meio da EJA, no
contexto amplo de um processo histórico de conquista da
igualdade entre os seres humanos, se torne possível a
ressignificação dos processos de ensino e de aprendizagem
por meio dos quais os sujeitos se produzem e se
humanizam, ao longo de toda a vida.
Contudo, é urgente um olhar crítico sobre o modelo
tradicional de educação, além disso, no campo das políticas blicas
tais questões m sido ignoradas, como apontam os autores
251
(CATELLI JÚNIOR, 2019; FERREIRA, 2019; MORAES et al.,
2019) que problematizam a invisibilidade e o “não-lugar” dessa
modalidade de ensino na BNCC, um dos principais documentos
normativos que atualmente balizam a educação básica em nosso país,
representando um descaso com parte da população que,
historicamente, teve esse direito negado em algum momento da vida.
É evidente que não bastaria apenas a mencionar a EJA na
BNCC, como fizeram na segunda versão preliminar, pois para
representar avanços significativos na modalidade, seria necessário
refletir “qual o currículo adequado para as pessoas que deixam a
escola e retornam a ela na fase adulta, tendo acumulado
experiências significativas nos âmbitos pessoal e profissional”
(CATELLI, 2019, p. 313-314).
Outra preocupação que tem emergido no contexto de
educação para jovens e adultos é a queda nas matrículas assim como
a redução na oferta de vagas para cursos na modalidade presencial
nas redes públicas. Sobre isso, Di Pierro (2017, p. 10), explica que:
A queda das matrículas nos cursos para adultos parece
estar relacionada também às debilidades das políticas
públicas, como o financiamento insuficiente, a inadequa-
ção das formas de colaboração entre os níveis de governo
e de estratégias de gestão da oferta educativa no âmbito
local (como a nucleação, que dificulta o acesso dos
potenciais estudantes aos centros educativos). O recuo na
procura pelos cursos é atribuído pelos analistas, sobretudo,
à precariedade e inadequação da oferta considerada
pouco atrativa e relevante, devido à abordagem
estritamente setorial, ao despreparo dos docentes, aos
252
rígidos modelos de organização do tempo e espaço escolar,
e à desconexão dos currículos com as necessidades de
aprendizagem dos jovens, adultos e idosos.
Além desses apontamentos na literatura, um outro
fenômeno também vem ocorrendo nos últimos tempos: a
juvenilização do público da EJA (OLIVEIRA; COSTA, 2020;
SANTOS, PEREIRA, 2020, RESENDE; CASSAB, 2021). Os
dados mais recentes do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais (INEP) indicaram, por meio do Censo Escolar, que
no ano de 2020 houve mais de 3 milhões de estudantes matriculados
na EJA, o que corresponde a 8,3% a menos se comparado ao ano
anterior. Além disso, evidenciou que de 2018 para 2019,
aproximadamente 300 mil alunos dos anos finais do ensino
fundamental e 200 mil do ensino dio migraram para essa
modalidade de ensino, e que, em sua maioria, são representados por
alunos com histórico de retenção e que buscam meios para conclusão
da educação básica.
Com o propósito de contribuir com o campo de pesquisas
na EJA, sobretudo o desenvolvimento da aprendizagem,
apresentamos o resultado de um levantamento de pesquisadas que
abordou os seguintes aspectos: a teoria construtivista de Piaget e suas
concepções epistemológicas com implicações nas práticas
pedagógicas nessa modalidade de ensino e o desenvolvimento
cognitivo. Acreditamos que observar o percurso de pesquisas que
estão sendo construídas nesse campo contribuirá para atualização a
respeito dos estudos sobre essa temática.
O presente estudo teve a pretensão de servir de auxílio
àqueles que desejam se aprofundar nos estudos sobre a EJA e sobre
253
como a teoria piagetiana pode ser aplicada em sala de aula. Para isso,
a pesquisa sobre os trabalhos realizados a respeito dessa temática
foi precedida de discussões a respeito do que, de fato, representa a
EJA para a Educação. Em seguida, algumas concepções sobre a teoria
de Piaget sobre a aprendizagem e como, por meio do estudo dos
aspectos da teoria psicogenética, é possível repensar práticas
pedagógicas. Nesse sentido, é bastante amplo o espectro de
abordagens que possam emergir desse campo, justamente para
servirem ao leitor interessado em estudos sobre a Educação, em seu
mais amplo sentido, para todos e ao longo da vida.
Concepções epistemológicas e as relações entre ensino e
aprendizagem na EJA
Nos últimos anos, pesquisas científicas (VINHA, 2000;
BECKER, 2012; GUIMARÃES, 2017) comprovam que poucas
foram as transformações que ocorreram nas práticas pedagógicas
desenvolvidas nos mais diversos contextos escolares do Brasil, e não
é difícil nos depararmos com propostas que ainda parecem não ter
superado a escola do século passado e tampouco ações efetivas para
compreender de fato quais são as reais necessidades de
desenvolvimento e de aprendizagem dos sujeitos.
Tais questões foram abordadas por diversos teóricos, entre
eles, o epistemólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), que questionava
se os métodos tradicionais dariam conta de atender o que propunha
o art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
referenciado anteriormente, visando ao pleno desenvolvimento da
personalidade humana:
254
Pois seria o caso de nos perguntarmos se, em uma escola
tradicional, a submissão dos alunos à autoridade moral e
intelectual do professor, bem como a obrigação de
registrar a soma de conhecimentos indispensáveis ao bom
êxito nas provas finais não constituem uma situação social
funcionalmente bastante próxima dos ritos de iniciação e
voltado para o mesmo objetivo geral: impor às jovens
gerações o conjunto das verdades comuns, isto é, das
representações coletivas que asseguram a coesão das
gerações anteriores. Proclamar que a educação visa ao
pleno desenvolvimento da personalidade é, pois, afirmar
que a escola deve divergir de semelhante modelo clássico,
e que pode ocorrer uma síntese entre a formação de pessoa
e sua inserção, como valor social, nos quadros da vida
coletiva (PIAGET, [1948]1975, p. 59-60).
Na visão de Becker (2012), para que haja uma ruptura com
os modelos tradicionais, sustentadas por epistemologias empiristas
ou inatistas, é preciso incluir na formação docente, a crítica
epistemológica, ou seja, oportunizar que os professores tomem
consciência da teoria que sustenta sua prática, pois sem isso
continuará enfrentando situações conflitantes que não conseguirá
superar. Diversos estudos apontam que os problemas relacionados
às dificuldades de aprendizagem apresentadas pelos alunos
(CARVALHO; ASSIS, 2020; CAMARGO, 2016; LEITE; ASSIS,
2013, ZAIA, 1996; BRENELLI, 1993) estão estritamente ligados
com o atraso na construção de estruturas cognitivas necessárias para
a compreensão de conteúdos escolares por parte do sujeito.
Além disso, o modo como tais conteúdos são ensinados
também influenciam, pois sabemos que nos modelos tradicionais
255
predomina-se uma prática centrada na transmissão de
conhecimentos, ensino de técnicas apresentadas por meio de
raciocínios do ponto de vista do professor ou livros didáticos,
ignorando a elaboração por parte de quem aprende, explicam
Cantelli, Borges e Mantovani de Assis (2002). Aspecto esse que nos
permite levantar a hipótese de que esse seja um dos motivos que
podem explicar o fracasso e a evasão escolar.
Com base na teoria piagetiana, o conhecimento é uma
elaboração contínua que pressupõe tanto fatores endógenos quanto
exógenos, comprovando a insuficiência das concepções empiristas e
inatistas. Para compreender ou conhecer é preciso que o dado
exterior seja assimilado às estruturas intelectuais da pessoa, o que
é possível se tais estruturas existirem anteriormente. Por exemplo:
para aprender as noções matemáticas mais simples, entre elas a noção
de número e as operações de adição, subtração, multiplicação e
divisão, o sujeito precisa ter à sua disposição, estruturas mentais que
lhe possibilitem adquirir essas noções e as operações numéricas. Essa
necessidade ocorre porque uma aprendizagem não parte jamais do
zero (INHELDER; PIAGET, [1076]1993), pois o novo elemento é
reorganizado internamente a partir das aquisições anteriores. Dessa
reorganização surgem novas combinações.
Nessa direção, o aluno aprende algum conhecimento
novo se houver esquemas ou estruturas apropriadas, previamente
construídas, a partir das trocas constantes com o meio físico e social,
o que pressupõe um sujeito ativo no seu processo de construção do
conhecimento, contrário, portanto, às epistemologias do senso-
comum. Nessa perspectiva, Becker (2012) afirma que se essa teoria
256
não estiver clara para o professor, ele continuará insistindo a ensinar
como antes, ou seja, “depositando” conteúdos na cabeça do aluno.
Alguns estudos sobre a epistemologia do professor
(BECKER, 2012) ainda predominam respostas provenientes das
correntes epistemológicas inatistas e/ou empiristas. Becker (2012),
estudou durante anos, questionando os docentes sobre o que era
conhecimento e aprendizagem, o papel do professor, a influência do
meio social no desenvolvimento e aprendizagem, entre outros temas,
principalmente com professores da área de Matemática. Os
resultados encontrados por ele nessas pesquisas revelaram
concepções fundadas em senso-comum.
Corroborando com o autor, um estudo realizado por
Gonçalves et al. (2018), investigou a concepção de professores sobre
como as crianças aprendem, e com resultados semelhantes à de
Becker (2012), crenças e práticas tradicionais oriundas de
concepções empiristas ou inatistas, representaram 83% das
explicações dos docentes. Ainda em pesquisa realizada com
estudantes do ensino superior em Pedagogia e licenciaturas, no
modelo de ensino remoto, durante o contexto pandêmico iniciado
em 2020 e ainda vivenciado, na conceão dos participantes deste
estudo, a explicação sobre como as pessoas aprendem, revelou em
sua maioria, influências de crenças empiristas e/ou inatistas. As
respostas dos docentes representaram 62,5 %, enquanto as dos
discentes, 78%. Na visão dos docentes, a aprendizagem depende na
maioria das vezes da pré-disposição e vontade do sujeito. (SOUSA;
GONÇALVES; RODRIGUES, 2021).
Ainda nessa perspectiva, Tognetta e Scott (2011) ressaltam
que os problemas escolares não deveriam se limitar apenas ao que se
257
pretende ensinar, mas devem referir-se, principalmente, à questão de
como ensinar. O estudo realizado pelos autores em uma escola que
ofertava a EJA, revelou uma discrepância entre o discurso e a prática
docente. Enquanto o professor diz que tem como objetivo
transformar a realidade do aluno, sua prática evidenciou um
trabalho descontextualizado do cotidiano, um ensino sem sentido,
distantes dos objetivos educacionais de educar para liberdade e
cidadania. Os autores acreditam que uma face oculta da escola
que parece excluir, mais uma vez, os alunos que a ela retornam:
Negar que tenham novamente esse acesso, não dando a
eles a oportunidade de ver sentido em sua aprendizagem,
é cometer mais um erro para a vida daqueles que foram
uma vez excluídos pela escola. Esses adultos, quando
crianças, por certo não encontraram uma escola que
estivesse atenta a seu desenvolvimento, às suas dúvidas.
Encontraram, sim, uma escola que os estigmatizou como
alunos que não aprendem e que, por essa razão, deveriam
se ocupar de outras tarefas para depois “recuperar” o
tempo perdido frequentando aulas da EJA
(TOGNETTA; SCOTT, 2011, p. 74-75).
Com pensamento semelhante, Miguel (2016) aponta que os
casos de abandono escolar não estão ligados somente por fatores de
ordem social e econômica, mas também porque muitos alunos se
sentem excluídos dessa dinâmica de ensino com ênfase em um
conhecimento empírico e sem avanços em práticas que oportunize
argumentar, refletir, questionar, resolver problemas, estabelecer
relações, entre outras.
258
Nesse sentido, Paulo Freire, educador e patrono da educação
brasileira, trouxe grandes contribuições para pensar a educação de
jovens e adultos. Em sua obra, Pedagogia da autonomia, de 1996,
discute saberes necessários para a prática docente, dentre eles, de que
“ensinar não é transferir conhecimentos, mas criar possibilidades
para sua própria produção ou construção” (FREIRE, 1996, p. 21).
Isso requer que o professor esteja aberto a indagações, a
curiosidade, a um ser crítico, aproximando assim ao que propõe a
teoria piagetiana. Dito de outro modo, é conceber um sujeito ativo
em seu processo de construção do conhecimento, na qual o papel do
professor é o de provocar situações significativas e contextualizadas
que desencadeiam desequilíbrios cognitivos.
É fato que, garantir o acesso, a obrigatoriedade e a
permanência na escola não é o mesmo que assegurar a qualidade, e
um ponto inicial para começar a se pensar em qualidade da educação
diz respeito ao que se compreende por “pleno desenvolvimento”.
Para isto, será necessário buscar fundamentações teóricas na
psicologia, como afirma Delval (2007, p. 85): uma das perguntas
mais importantes que a psicologia deve responder, para não dizer
que é a principal, é explicar como se formam os conhecimentos
novos, e muitas das teorias psicológicas tratam de dar uma resposta
a esse problema”.
Aspectos metodológicos
A metodologia definida para este estudo se alinha a uma
revisão sistemática de literatura, caracterizando um estudo de cunho
bibliográfico. O encaminhamento metodológico priorizou a
259
produção de artigos, dissertações e teses, produzidas no contexto
nacional. As bases de dados pesquisadas foram: Oasis, Scielo, Google
Acadêmico e Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações
(BDTD) do portal da CAPES.
Como estratégia para a busca dos estudos, utilizou-se as
palavras-chave Jean Piaget, EJA, Desenvolvimento Cognitivo,
Epistemologia Genética e Práticas Pedagógicas. Optou-se por não
definir nenhum período específico para a pesquisa, deste modo,
buscou-se todos os estudos realizados até os dias atuais. O passo
seguinte foi a leitura dos resumos com o fim de refinar a relação das
pesquisas que tratavam especificamente da temática investigada. Os
resultados e discussões sobre os estudos encontrados são
apresentados a seguir.
Resultados e discussão
O delineamento metodológico definido para a busca
permitiu encontrar 8 produções que relacionaram a teoria piagetiana
ao contexto da EJA. Desse total, 7 são artigos publicados em
periódicos eletrônicos e uma dissertação. O Quadro 1 a seguir reúne
os estudos relacionados.
Quadro 1 – Estudos que relacionaram a teria piagetiana ao contexto da EJA
Autores/ano
Produção
Estudo
Ortiz
(2002)
Artigo
Em estudo exploratório, investigou 35
sujeitos, com faixa etária entre 18 e 61 anos
de idade, de ambos os sexos. O objetivo da
pesquisa foi determinar por meio das provas
clássicas piagetianas o nível de operatoriedade
dos alunos da EJA. Os resultados indicaram
260
que a maior parte dos indivíduos (77%)
estavam em transição do estádio pré-
operatório para o operatório-concreto e
nenhum deles havia atingido o raciocínio
hipotético-dedutivo.
Cantelli,
Borges e
Mantovani de
Assis
(2002)
Artigo
Em estudo solicitado pelo INEP, avaliou as
estruturas cognitivas de jovens e adultos para
readequação da matriz de competências e
habilidades do Exame Nacional para
Certificação de Competências de Jovens e
AdultosENCCEJA. Dos 77 sujeitos
avaliados, 5 apresentaram conduta não
operatória; 35 corresponderam ao estádio
operatório concreto; 32 estavam em transição
do operatório concreto para o operatório
formal, e apenas 5, no início do estádio
operatório formal. Os resultados sinalizam a
necessidade de se repensar os currículos da
EJA, pois revela que todo esse tempo, a escola
tem sido um espaço para memorização,
transmissão do conhecimento, sendo o aluno
apenas um mero reprodutor, não propiciando
desse modo, a construção de estruturas do
pensamento que permitem ao sujeito
conhecer e transformar a realidade em que
vive.
Pavanello,
Lopes e
Araújo
(2011)
Artigo
O estudo avaliou a leitura e interpretação de
enunciados de problemas escolares de
matemática por alunos do ensino
fundamental regular e educação de jovens e
adultos (EJA). Os resultados mostraram que
os participantes apresentavam falhas na
compreensão da leitura e pouca familiaridade
com o gênero discursivo e dificuldades na
261
retenção e controle de informações essenciais
dos enunciados.
Fonsecca
(2012)
Dissertação
O estudo buscou analisar estratégias de ensino
baseada em situações problema para a
aprendizagem da análise combinatória, com
base em conhecimentos prévios o que
permitiu ao pesquisador constatar que uma
estratégia de ensino baseada em situações
problema propiciam resultados positivos para
a aprendizagem da análise combinatória na
EJA.
Lima e Lima
(2015)
Artigo
Realização de uma abordagem reflexiva sobre
as implicações das Artes Visuais na EJA a fim
de compreender que essa área do
conhecimento contribui para o
desenvolvimento cognitivo e aprimoramento
dos processos mentais considerados
superiores. Tendo como base a teoria
construtivista de Piaget, abordou-se o
processo de equilibraçãoacomodação
assimilaçãoequilibração. O estudo
considerou que o processo de construção do
conhecimento e do desenvolvimento
cognitivo, além disso, requer um professor
mediador, provocador de desafios. A
pedagogia, pautada nos princípios
construtivistas, é emancipadora, sendo
possível, através dela, despertar a consciência
dos sujeitos, tornando-os indivíduos críticos e
ativos na sociedade em que vivem.
Silva, Oliveira
e Reis
(2017)
Artigo
Por meio de uma pesquisa de campo com
abordagem qualitativa, buscaram investigar
como o currículo escolar pode influenciar ou
ser determinante na inclusão e/ou na exclusão
262
dos educandos que precisam de Atendimento
Educacional Especializado (AEE) na EJA. A
coleta de dados se deu por meio de observação
de práticas metodológicas dos professores. A
partir das falas dos discentes, que grande parte
das dificuldades de aprendizagem por eles,
estão relacionadas à metodologia dos
professores que desconsideram a realidade dos
alunos e, esse problema será superado se as
práticas pedagógicas e o modo de conceber o
currículo, forem repensados pelos docentes.
Godoi e
Oliveira
(2021)
Artigo
O artigo investigou as noções espaciais
envolvidas no processo de alfabetização
cartográfica na Educação de Jovens e Adultos.
O método clínico piagetiano fundamentou a
coleta dos dados, realizada por meio do
experimento Mapa da Aldeia e entrevista
semiestruturada. Os resultados do
experimento indicaram características típicas
do período operatório concreto, nas quais os
participantes apresentaram dificuldades em
estabelecer abstrações acerca da perspectiva
vertical e redução proporcional em escala.
Fagundes e
Menezes
(2021)
Artigo
O artigo teve como objetivo apresentar uma
nova perspectiva de ensino na modalidade
EJA mediante as atribuições da ludicidade.
Trata-se de um estudo bibliográfico, que
identificou na literatura as implicações de
metodologias que fazem o uso de brincadeiras
e jogos direcionados ao contexto da EJA. O
estudo identificou que essas metodologias
vêm abrindo espaço para o novo,
caracterizando-se enquanto estratégias lúdicas
para ampliação do conhecimento.
263
Fonte: Dados da pesquisa
Por encontrarmos somente 08 estudos, consideramos se
tratar de uma temática pouco explorada. Pode-se dizer que, mesmo
havendo algumas iniciativas ou limites teóricos em pesquisas
realizadas nesse contexto, destaca-se a importância de um
aprimoramento nas abordagens sobre didáticas utilizadas no EJA.
Ainda que observemos avanços em políticas de educação inclusivas
para aqueles que, de alguma forma, não lhes foi permitida a
continuação de estudos, os estudos encontrados apresentam
consistentes contribuições para maximizar o aprendizado desse
público.
Considerações finais
A revisão dos estudos apontou diferentes níveis de
desenvolvimento das noções e dificuldades na operacionalização dos
saberes escolares pelos estudantes da EJA. Corrobora assim com a
teoria piagetiana ao evidenciar que a idade cronológica ou a série
escolar não são condições suficientes por si só, para o
desenvolvimento das noções e a compreensão dos conteúdos
escolares. Se não houver uma prática educativa que priorize os
processos construtivos por parte do próprio sujeito, não haverá
desenvolvimento das noções. Nessa direção, as pesquisas evidencia-
ram as possibilidades que metodologia de ensino pautadas nos
princípios construtivistas oportunizaram para a elaboração de
relações cognitivas e sociais. Para tanto, destaca-se o desenvolvi-
mento e sua interface com o protagonismo do estudante, a
experiência reflexiva sobre o objeto de conhecimento e a interação
264
entre os pares. Outro aspecto que se mostrou relevante foi o papel
fundamental do professor, enquanto agente desequilibrador e
interlocutor da construção do conhecimento.
Sobre o tema pesquisado, considera-se que ainda não é
possível ter uma produção considerável de trabalhos que abordem a
teoria de Piaget na EJA. Para o trabalho pedagógico na EJA e o
reconhecimento do conhecimento como uma construção, a teoria
Piagetiana contribui para a tomada de consciência e da ação do
sujeito sobre o meio, além disso deve-se priorizar uma educação que
estimule a colaboração e não a competição, e que desenvolva o
espírito crítico e a criatividade, e não a passividade.
O campo teórico piagetiano alinhado às demandas da EJA,
possibilita a compreensão dos domínios envolvidos nas construções
cognitivas e sociais que os alunos têm de dar no seu cotidiano e na
vida escolar. Esta é uma implicação pedagógica relevante, pois assim
os professores podem identificar os níveis de elaboração que se
encontram os estudantes e intervir com a promoção de conflitos
cognitivos desencadeadores de desenvolvimento. Nesse sentido,
ressalta-se a necessidade de estudos sobre o tema mediante a
perspectiva piagetiana, uma vez que corrobora na amplitude e na
construção do verdadeiro conhecimento, baseado nas interações e
não apenas na transmissão. As pesquisas nesse âmbito contribuirão
com um novo olhar e um aprimoramento da prática educativa.
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PARTE II
AS PESQUISAS SOBRE O
DESENVOLVIMENTO MORAL
272
273
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p273-300
A POSSIBILIDADE DA AUTONOMIA MORAL
EM PIAGET
1
Carla CHIARI
2
Introdução
O interesse pela pesquisa tratada neste capítulo é
consequência da minha trajetória pessoal e profissional: vivenciar a
realidade como psicóloga em uma escola por mais de dez anos e,
nesse ínterim, resolver retornar para a academia e cursar Pedagogia
abriu muitas possibilidades de investigação e descobertas.
A experiência da aplicabilidade da teoria na prática,
propiciou-me vivencias incríveis e principalmente ampliação do
olhar em relação a educação. Trabalhar com crianças de 03 a
adolescentes de 17 anos, vivenciando as suas fases e levando a
psicologia escolar para as suas vidas como a possibilidade de alguém
que os escutasse, acolhesse e principalmente direcionasse com um
olhar não tão patológico.
No espaço escolar a possibilidade de dar aulas em grupos
para os alunos, trabalhar conteúdos relacionados aos conflitos das
1
Este capítulo é parte da dissertação de Mestrado da autora, intitulada A
possibilidade da autonomia moral: uma análise das concepções de Piaget e Jung
(CHIARI, 2022).
2
Mestra em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília, São
Paulo, Brasil. E-mail: carlachiari@hotmail.com
274
idades, experiências de cada um e principalmente vivenciar as suas
escolhas pessoas e profissionais com os alunos do Ensino Médio. Nas
aulas utilizava conhecimentos da teoria piagetiana para
conversarmos sobre os conflitos, como a roda de conversa,
assembleia e também desenvolver aspectos do aluno pesquisador que
constrói a sua história.
Este capítulo, portanto, trata de uma pesquisa bibliográfica
que teve o objetivo evidenciar aspectos das obras de Jean Piaget,
destacando alguns aspectos de suas obras em relação à autonomia
moral.
Principais aspectos da obra de Jean Piaget
O desenvolvimento infantil é evidenciado por transfor-
mações sucessivas. É importante, nesse aspecto, observar a criança
desde o seu nascimento, vendo-a vivenciar ao longo do tempo
oportunidades para sua inserção no mundo social e cultural, por
meio da aprendizagem da locomoção, fala, intuição e até
conceituação.
A transformação, ao longo do tempo, acontece, isto é fato,
pois vemos um ser frágil, extremamente dependente, içar-se, depois
de alguns anos, a patamares bem mais elevados e complexos quando
o pensamento lógico norteará suas ações. A questão (ou as questões)
com a qual (as quais) nos deparamos aqui é exatamente supor como
um ser aparentemente “desprotegido” e “simples” pode se transfor-
mar em um ser tão exuberante e provido de cultura, linguagem,
conhecimento, etc. Como se por exemplo o aparecimento da
linguagem? Seria por imitação? Como surge o pensamento? A
criança nasce pensando? Qual a relação entre pensamento e
275
linguagem? Qual dos dois ocorre primeiro? Como a criança, a partir
de estímulos básicos, como o de preensão e sucção, pode evoluir para
esquemas tão mais complexos e coordenados como o pensamento
lógico?
Com o objetivo de responder a tais perguntas, muitos
autores se debruçaram sobre elas. Um dos autores mais importantes
nesse campo foi Jean Piaget, suíço que se ocupou do desenvol-
vimento infantil, observando seus filhos e demais crianças.
Investigou, de forma experiencial, os processos de pensamento,
conseguindo assim descrever e explicar todo o desenvolvimento
cognitivo, desde os primeiros meses de vida de uma criança até sua
emancipação.
Ao longo de suas pesquisas, o pensador quis compreender o
desenvolvimento infantil do nascimento até a adolescência,
investigando tanto a construção do conhecimento mais simples,
quanto do mais complexo. Com relação à pedagogia, apesar de
alguns escritos, esse não foi o objetivo de Piaget, embora seja inegável
a influência de seu trabalho de epistemologia e psicologia genéticas
para a educação.
Segundo Chiarottino (1998, p.3):
O objetivo primordial de Piaget era o de solucionar a
questão do conhecimento: Como é possível alcançar o
conhecimento?’ Formulada a pergunta, surge, de
imediato, outra: ‘Conhecimento de quê’? A resposta para
a segunda pergunta é simples:Conhecimento do mundo
em que vivemos, do meio que nos circunda’. Todavia, a
palavra meio não se limita a designar os objetos
(animados e inanimados) que nos rodeiam: Piaget a
276
entende por via diversa, pois abrange tudo- natureza,
objetos construídos pelo homem, ideias, valores, relações
humanas, em suam História e cultura. Fica desse modo,
caracterizado o objeto do conhecimento, na acepção de
Piaget.
Segundo o autor, as “estruturas mentais” seria a base para a
construção do conhecimento, pois essas estruturas não são inatas,
porém existem na genética de todos os indivíduos da nossa espécie,
podem ser desenvolvidos ou não por troca pelo meio tanto físico
como social, sendo importantes para que essas “estruturas” sejam
formadas.
Piaget então procurou explicitar em sua teoria, como
funcionava essas estruturas e como elas são construídas, através da
troca entre o indivíduo e o meio em que ele vive. Um dos principais
aspectos da sua teoria diz respeito ao processo de conhecer e, nas
sequências, organizar e estruturar o pensamento a partir da
experiência vivida.
Para explicar esses processos de trocas em entre o meio e a
experiência, Piaget descreve os estádios de desenvolvimento
cognitivos: Sensório-motor, passando para o pré-operatório,
operatório concreto e por último operatório formal. Tais processos
são realizados pelo ser humano na construção das suas estruturas
mentais, no entanto nem todos os indivíduos percorrem todo esse
processo com o mesmo ritmo. Quando pensamos nesses processos
de troca então com o meio, podendo existir, por exemplo na criança,
ou não as possibilidades de raciocínio para deter no futuro a
possibilidade de atingir o pensamentogico.
277
Para Piaget, o conhecimento não é a associação, mas a
integração dos sistemas e esquemas construídos pelo sujeito. Para ele,
a capacidade de relacionar as coisas não é exterior ao indivíduo, mas
sim produto de construções anteriores que se deram por meio da
organização das ações que o indivíduo realiza.
Piaget esclarece também a impossibilidade de uma heredita-
riedade que estabelece um programa pronto e que somente vem a
amadurecer conforme a interação com o meio se dá. Fica claro,
também, que seus argumentos se baseiam na ideia de um
construtivismo que não prescinde da sua relação com o meio, mas
também não se encontra pronto, patenteia-se, contudo, passo a
passo, na relação do sujeito com o meio. O meio é, de certa forma,
conhecido pelo sujeito quando ocorre a formação das estruturas
internas que respondem ao meio. Para Piaget então, essas estruturas
são construídas quando o sujeito interage com o objeto, assimilando-
o e acomodando-o as suas estruturas internas.
Assim, Chiarottino (1988, p. 4), descreve:
De acordo com Piaget, não conhecimento sem
conceitos. Significa isso que o conhecimento parte da
ação de uma pessoa sobre o meio em que vive, mas não
ocorre sem a estruturação do vivido. Coisas e fatos
adquirem significação para o ser humano quando
inseridos em uma estrutura- isto que Piaget denomina
Assimilação’.
Com o aparecimento da linguagem surge aquilo que Piaget
chamou de “lógica das ações”, e que, segundo ele, prefigura a Lógica
de classes ou relações, também a moral teria suas raízes mergulhadas
278
nesse período do desenvolvimento do ser humano: “sem dúvida
encontramos, desde antes da linguagem, todos os elementos da
racionalidade e da moralidade. (FREITAS, 2003, p. 80).
Após contextualizar os processos teóricos que Jean Piaget
evidenciou em sua teoria, em relação as fases ou estágios de
desenvolvimento infantil, destacaremos pontos principais relacio-
nados a moral e a autonomia que também fazem parte da sua vasta
obra, propondo uma interligação entre o processo de desenvol-
vimento e a construção do indivíduo como ser moral e social.
Moral em Piaget
Como vimos anteriormente, um dos pilares da teoria
Piagetiana é o conhecimento, entretanto, Piaget buscou compre-
ender e indagar questões morais que nos envolvem no dia a dia. Será
que é possível os indivíduos construírem o conhecimento e
desenvolver a moral? Sim, é possível, pois para Piaget é preciso
compreender o sujeito epistêmico, o que existe de comum em todos
os indivíduos, para que assim ele possa se desenvolver. Um dos
pontos destacados é a questão do respeito, pois esse indivíduo está
imerso em um sistema de regras. Esse conceito é evidenciado em um
dos seus livros de maior destaque, foi O juízo moral na criança, que
será tratado nessa seção.
Nesse livro, publicado em 1932, o autor (1932/1994) tem o
interesse de compreender como a consciência do sujeito chega a
respeitar as normas e regras morais, constituindo um sentido de
obrigação moral. Sendo assim, a concepção de moral para Piaget,
apesar de estar ligada diretamente as regras, deve ser compreendida
279
com base no modo em que o sujeito se relaciona com o meio, fruto
da relação que mantém com as pessoas que criam ou transmitem as
regras.
Como descreve Piaget (1994, p. 63):
Uma regra é um fato social, que supõe uma relação entre
pelo menos dois indivíduos. É esse fato social que repousa
sobre um sentimento que unes esses indivíduos uns aos
outros, que é o sentimento de respeito: regra quando a
vontade de um indivíduo é respeitada pelos outros ou
quando a vontade comum é respeitada por todos.
Piaget descreve em seus escritos, no processo de
desenvolvimento, que tudo corrobora para que existam conexões e
totalidades, não existindo ações isoladas, sendo muitas vezes
desenvolvidas alguns aspectos, regras ou normas diferentes para cada
indivíduo: “o equilíbrio orgânico entre o todo e suas partes é a lei
interna dos fenômenos vitais, em todos os seus níveis” (FREITAS,
2003, p. 55). Isso nos implica compreender que a moral pode ser
desenvolvida e que é igualmente aplicada.
A moral não é a própria regra, mas o produto de uma
interação social com o objetivo final de estabelecer a harmonia e o
respeito entre todos. A regra vem do respeito e de um contexto social
entre os indivíduos, mantém a relação de permanência dessa regra.
Sendo a regra, a essência das relações humanas,
descreveremos a sua prática e sua a consciência, descrita por Piaget.
O mesmo encontro no jogo de regras com as crianças, uma
possibilidade de estudar o desenvolvimento e a construção da
consciência moral. Sendo que regras de jogos, “se transmite de
280
geração em geração e se mantêm unicamente graças ao respeito que
os indivíduos têm por elas” (PIAGET, 1932/1994, p. 02).
Foi observada também que quando o jogo ocorre em grupo
de iguais, as regras são elaboradas pelas crianças, ocorrem de maneira
livre. quando é imposta pelos adultos, muito não se questiona a
eficiências das mesmas e a sua funcionalidade, visto que vieram que
alguém que impõe um processo de autoridade, “os deveres não são
obrigatórios por causa de seu conteúdo, mas pelo fato de emanarem
de indivíduos respeitados” (PIAGET, 1932/1994, p. 311).
A prática e a consciência das regras passam por vários níveis
de desenvolvimento, tendo um momento em que a regra será
motora e ao final, um momento em que ela será racional. É possível
observar dois processos no desenvolvimento da consciência moral,
seriam elas: Cooperação e a coação social, sendo ela “toda relação
entre dois ou mais indivíduos na qual não intervém um elemento de
autoridade ou de prestígio” (PIAGET, 1977, p. 225). a
cooperação seria o processo de desenvolvimento desse indivíduo,
que governa a si próprio e prioriza o bem comum.
É nesse processo que Piaget descreve sobre o grupo de
pequenos jogadores, no qual a influência do mundo adulto é
limitada por ser um grupo de iguais. O resultado dessas pesquisas
sobre o jogo evidencia a forma de conduzir e sentir, a qual ele se
relaciona a tese de Kant, sobre a existência de duas morais:
heterônoma e autônoma. Existindo então um movimento evolutivo
do humano da primeira a segunda direção, mediante os efeitos da
coação social e da cooperação evolutiva.
Finalmente, destacamos o conceito de egocentrismo e
descentração também como conceitos-chave para explicar a
281
passagem da moral do dever para a moral do bem. É se
descentrando nas interações (que devem ser entendidas como ações
entre: inter-ações) com os demais em relações de cooperação, que a
criança, ou o adolescente, descobre a necessidade de ajustar suas
perspectivas a dos outros ou coordenar perspectivas diferentes.
Assim, a descentração, em relações sociais de cooperação, é a resposta
para o desenvolvimento moral.
Um outro aspecto importante a ser destacado é a tomada de
consciência na moral, que auxiliará na compreensão da questão do
desenvolvimento. Nos livros O juízo moral na criança, de 1932, A
tomada de consciência, de 1977, e Fazer e compreender, de 1978,
Piaget explica que, em um primeiro momento, é importante que o
indivíduo evolua das ações práticas vivenciadas para a conceituação
do que está ocorrendo ao seu redor. Sem isso, o sujeito não consegue
realizar ações com êxito, nem consegue coordenar as relações sociais
envolvidas, apresentando, assim, uma conceituação deformada e
desconexa com o objetivo final. No entanto, após a tomada de
consciência, que não se trata de uma iluminação ou apropriação, mas
sim de uma construção consciente progressiva, o sujeito consegue se
apropriar da interiorização das ações.
As ações do sujeito, ao contrário, são vistas por ele e
assimiladas mais ou menos adequadamente por sua
consciência como se se tratasse de ligações materiais
quaisquer situadas nos objetos, donde a necessidade de
uma construção conceitual nova para explicá-las: na
realidade, trata-se, então, de uma reconstrução, mas não
trabalhosa quanto o seria se não correspondesse a nada de
conhecido do próprio sujeito, e apresentando os
282
mesmos riscos de omissões e de deformações que
existiriam se a questão consistisse em explicar a si mesmo
um sistema exterior de conexões físicas (PIAGET,
1974/1977, p. 201-202).
O processo de tomada de consciência, não se de maneira
imediata, mas por meio de elaborações graduais, passando de
inconsciente para consciente. Quando pensamos em tomada de
consciência moral, embora seja síncrona à tomada de consciência
intelectual, não se reduz a ela, pois possui características específicas
e pode ser direcionada a normas e ações coordenadas com uma
afeição mútua.
Na moral isso também acontecerá, após o processo de
equilibração, promovido pela cooperação. Destaca Piaget
(1932/1994, p. 297):
Constituindo estruturas por meio de uma tomada de
consciência adequada. Basta, para que a procura
funcional de organização, a qual atesta a atividade
sensório-motora e afetiva inicial, nascimento a regras
propriamente ditas de organização, que o espírito tome
consciência desta procura e de suas leis, e traduza, deste
modo, em estrutura o que até era simples
funcionamento.
No campo da moral, é possível compreender que a tomada
de consciência, consiste em reconstruções progressivas, através das
mudanças de sentimento e ações, vivenciadas pela criança, sendo
reconstruídas no campo da consciência, chegando a níveis de
283
reciprocidade e respeito mútuo. Sabemos que essa tomada de
consciência passa por processos de coação adulta, juntamente com o
egocentrismo infantil. Ou seja, sabemos então que o caminho para
esse processo ser significativo e eficiente é promover as experiências
de reciprocidade, respeito mútuo entre adultos e crianças para, assim,
criar um ambiente de cooperação.
A partir desses conceitos apresentados, evidenciaremos então
os caminhos em que o indivíduo tem que passar moralmente, até
chegar na autonomia moral. No próximo tópico descreveremos,
anomia, heteronomia e autonomia, passos que Piaget descreve em
sua teoria.
Caminho psicogetico no desenvolvimento do juízo moral
Piaget, ainda, argumenta que o desenvolvimento da moral
abrange três tendências, denominadas: anomia, heteronomia e
autonomia.
1. Anomia (crianças até 3 anos aproximadamente):
geralmente a moral não existe propriamente dita, sendo as normas
de conduta dos indivíduos sendo determinadas pelas necessidades
básicas e pelo ambiente em que vive. Nesse sentido, quando as regras
estabelecidas pelo ambiente são obedecidas pelas crianças, elas o
fazem de maneira inconsciente, não discernindo o que é certo ou
errado. Exemplo: um bebê que chora até que seja alimentado está
apenas reagindo uma necessidade fisiológica de nutrição e não pelo
fato de compreender que aquilo é essencial para sua sobrevivência.
Em função disso, Piaget chamou de anomia esse período,
que ele considerou como um primeiro estágio do desenvolvimento
284
da consciência de regra. Embora não existam, nesse momento, regras
propriamente ditas, ele acreditava que essas regularidades
espontâneas constituem a base sobre a qual assentariam as futuras
normas racionais: “ora, o que é esta regra racional senão a regra
motora primitiva, mas subtraída ao capricho individual e
subordinada ao controle da reciprocidade?” (PIAGET, 1932/1992,
p. 63).
Assim como para Durkheim e Bovet, para Piaget, enquanto
existe apenas hábito individual, não sentimento de dever ou de
obrigatoriedade. Em sua investigação sobre as regras do jogo, ele
obteve uma prova empírica disso. Quando apresentava as bolinhas
de gude à criança de 1 ou 2 anos, ela as manipulava conforme seus
desejos e hábitos motores. Nesse momento, existem regularidades
espontâneas, as quais Piaget denominou também de regra motoras:
“a regra motora resulta, portanto, de uma espécie de sentimento da
repetição, que nasce no momento da ritualização dos esquemas de
adaptação motora” (PIAGET, 1932/1992, p. 62). Contudo, não se
pode falar ainda de normas ou regras em si, pois a peculiaridade de
uma norma é “ser obrigatória, isto é, de conservar a de fazer
conservar seu valor por esta própria obrigação” (PIAGET, 1968, p.
67).
É a partir do jogo que crianças pequenas procuram imitar o
comportamento e a atitude das crianças mais velhas, que jogam com
algumas regras, sendo obrigatório cumprir aquelas regras: “a regra é
reconhecida pelo fato de que ela obriga, mas pode ser violada tanto
quanto respeitada, diferentemente de uma ‘lei’ causal ou de um
determinismo, que não sofrem exceções senão a título de variações
285
aleatórias devido a uma combinação de causas” (PIAGET, 1972, p.
288).
2. Heteronomia (crianças até 9, 10 anos de idade): A
próxima etapa diz respeito a primeira formulação de regras, ou seja,
o resultado da primeira forma de regulação da ação pelo indivíduo,
que é gerado pelas relações coativas estabelecidas entre as crianças e
os adultos. Nesse processo, as crianças aprendem a como reagir a
determinadas situações que envolvem as regras impostas pela
autoridade do adulto (processo conhecido como heteronomia) e,
nessa perspectiva, ainda não desenvolve sua autonomia.
outras definições para esse processo de heteronomia,
como a moral da coação, da autoridade, da obrigação moral, da
obediência cega ou da submissão.
Assim sendo, Piaget (1932/1994, p. 311):
Em ntese: a moral da heteronomia consiste em um
conjunto de deveres a serem cumpridos- “regras prontas
que se impõem de fora ao indivíduo”, como dizia Piaget.
É uma moral de pura obediência. Para ele, como para
Pierre Bovet, na moral da heteronomia os deveres são
sentidos como obrigatórios, porque emanam de
indivíduos respeitados, sejam esses deveres regras relativas
a hábitos (alimentares, de higiene etc.), regras do jogo ou
preceitos morais. Pode haver, portanto, deveres estranhos
à moral da reciprocidade)’.
Essa primeira forma de obrigação do respeito unilateral,
consiste na aceitação das consignes recebidas. A criança acredita “no
valor absoluto dos imperativos recebidos” (ibid., p. 326). Contudo,
286
a mera obediência às regras, além de ser insuficiente para transformar
a conduta, produz consequências inopinadas, como pode constatar
Piaget em suas pesquisas sobre os efeitos da coação adulta na
consciência moral da criança (FREITAS, 2003, p. 81)
Quando pensamos na criança e uma situação de
descumprimento de normas, como o ato de mentir, quanto maior a
dramatização da situação exposta pelo adulto, maior é o julgamento
e a incorporação daquela regra para a criança, destacou Ramozzi-
Chiarottino (1972, p. 61), “na teoria de Piaget, o papel do sujeito
permanece sempre preponderante”: ou seja, como ele ainda é
passível das regras impostos, seu processo de conscientização acerca
do certo e do errado acontece por meio de uma atividade
assimilatória daquele sujeito, que ainda não consegue expressar sua
própria vontade.
Piaget (1932/1994) constatou, no jogo de regras, uma
correlação evidente entre o momento em que a criança começa a
jogar efetivamente conforme as regras previstas e o fato de que ela
admite que é possível alterá-las, sem que isso constitua uma
transgressão.
A heteronomia significa o processo pelo qual o indivíduo
segue as regras feitas pela sociedade, limitando-se a uma obediência,
que essas regras se configuram, no contexto educacional, como
uma visão da coerção e do respeito apenas unilateral.
De acordo com Zan (1998, p. 54):
O primeiro tipo de relacionamento adulto-criança é de
coerção ou controle, no qual o adulto prescreve o que a
criança deve fazer oferecendo regras prontas e instruções
para o comportamento. Nesta relação, o respeito é algo
287
unilateral. Isto é, a criança deve respeitar o adulto, e este
usa a autoridade para socializar e instruir a criança. O
adulto controla o comportamento da criança. Neste
contexto sócio moral, a razão da criança para comportar-
se, portanto, está fora de seu próprio raciocínio e sistema
de interesses e valores pessoais. Piaget chamou esse tipo
de relação de heterônoma’. Em uma relão heterônoma,
a criança segue regras dadas por outros e não por ela
própria. A heteronomia pode variar em uma linha
continua desde o controle hostil punitivo até o controle
disfarçado em doçura.
Na relação adulto-criança, observamos, muitas vezes, a
imposição de atos e ações, que os adultos tendem a proteger o
menor. Assim, esse controle se processa de diversas maneiras, como
pela imposição de regras, horários. Como isso se configura de
maneira coercitiva, evidencia-se uma sensação de imposição pelas
exigências arbitrarias de alguém que detém o controle e,
principalmente, o poder, o que reforça a formação de um indivíduo
heterônomo.
Na opinião de Piaget, seguir as regras de outros por meio de
uma moralidade de obediência jamais levará à espécie à reflexão
necessária para o compromisso com princípios internos ou
autônomos de julgamento moral (DEVRIES; ZAN, 1998).
O processo de coerção, no âmbito social, é superficial, pois
não fortalece a autonomia e, na realidade, cria a dependência para
com o outro. Assim, observa-se o desenvolvimento de uma
obediência cega em relação às autoridades, o que acarreta um
comportamento da criança que não reflete suas convicções pessoas e,
288
tão somente, reforça o desejo de ações que o outro gostaria que ele
fizesse.
Piaget descreve então uma outra possibilidade de relação: o
respeito mútuo e a autonomia, no qual o adulto devolve o respeito
a criança, dando a ela a possibilidade de regular o seu
comportamento e suas ações. Para isso, é necessário evitar o exercício
de autoridade usado pelos adultos para coerção, o que permitiria que
a criança desenvolvesse suas potencialidades para pensar de forma
independente e critica.
3. Autonomia: legitimação das regras. O respeito a
regras é gerado por meio de acordos mútuos entre as crianças e os
outros. É considerada, pelo autor, a última fase do desenvolvimento
da moral. Nessa perspectiva, tendo conhecimento que as crianças e
adolescentes seguem fases mais ou menos parecidas quanto ao
desenvolvimento moral, cabe ao educador compreender que
determinadas formas de lidar com diferentes situações e diferentes
faixas etárias. Além disso, é importante que ele, ainda, conduza a
criança na passagem da heteronomia para autonomia, ou seja,
direcionando-a para a própria autonomia intelectual e moral.
A construção da autonomia acontece quando o indivíduo
internaliza as regras e começa a observar os pontos de vista, os seus
valores, compreender também os valores existem e principalmente o
coletivo. A relação entre iguais é a mais propensa para a construção
da autonomia, comparando a relações entre desiguais, pois a relação
adulta-criança pode promover a submissão, imitação e
principalmente a obediência, sendo assim uma relação de
heteronomia e não autonomia.
289
Sendo assim, as crianças que constroem no seu processo de
desenvolvimento internamente e consciente a autonomia,
organizam as suas ações, a partir das regras, condutas, fazendo de
maneira racional, tendo sempre o consenso que isso será importante
também para os demais.
A cooperação, descrita por Devries e Zan (1998, p. 57), é
uma interação social que se dirige a um determinado objetivo entre
indivíduos que se consideram como iguais e tratam uns aos outros
como tais.
O método pelo qual o relacionamento autônomo opera é o
de cooperação. Cooperar significa lutar para alcançar um objetivo
comum enquanto coordenam-se os sentimentos e perspectivas
próprias com a consciência dos sentimentos e perspectiva dos outros.
O professor construtivista considera o ponto de vista da criança e a
encoraja a considerar o ponto de vista de outros. O motivo para a
cooperação começa com um sentimento de mútua afeição e
confiança que vai se transformando em sentimentos de simpatia e
consciência das intenções de si mesmo e dos outros.
Nos escritos de Piaget, o termo moral pode ter ligação com
algumas terminologias diferentes como: autonomia moral,
consciência autônoma, cooperação, respeito mútuo, moral racional,
estado de bem, do sentimento do bem. Essas definições são
encontradas em outros livros e citações ao longo da sua obra.
Piaget (1954, p. 534) chamou de autonomia a capacidade
do sujeito de elaborar normas próprias, a qual se constitui nas
relações de cooperação: “esta noção de autonomia é empregada aqui
sem uma conotação filosófica. Ela designa somente a possibilidade
do sujeito de elaborar, ao menos em parte, suas próprias normas”. O
290
sujeito começa a organizar os seus pensamentos e atitudes e decide
por sua própria consciência, começando a compreender uma norma
social e uma lei física para, na sequência, questionar o que e como as
coisas devem ou deviam ser, ou seja, ele descobre então a sua própria
capacidade normativa, sendo a primeira condição para o processo de
emancipação.
De acordo com Freitas (2003, p. 93):
A descoberta de seu poder de instituir normas não implica
que, a partir desse momento, a criança não se conduza
senão por regras que ela mesma tenha elaborado. No
entanto, a própria maneira como ela avalia e aplica os
preceitos ditados pelos adultos- o mentir, não roubar
etc- difere daquela da moral da heteronomia: o realismo
moral tende a descrever com a idade e, por isso, as faltas
morais passam a ser julgadas em fuão da intenção do
agente (responsabilidade subjetiva) e não mais do
resultado ou do caráter material do ato (responsabilidade
objetiva). Um ato é passível de sanção se houver, por
parte do agente, a intenção de prejudicar.
Falta sublinhar ainda uma tese essencial à teoria de Piaget: a
ação precede a consciência; esta é uma “tomada de consciência” da
organização efetiva daquela. Assim, no nível da inteligência, as
operações mentais serão uma abstração do funcionamento efetivo
das ações sensório-motoras. No vel moral, as concepções de bem
e de mal serão abstrações das relações sociais efetivamente vividas.
Por esta razão, uma educação moral que objetiva desenvolver a
autonomia da criança não deve acreditar nos plenos poderes de belos
291
discursos, mas sim levar a criança a viver situações de autonomia será
fatalmente exigida. Porém, é preciso tomar cuidado com as
pretensões da ação educativa escolar: os conceitos de coação e
cooperação são, para Piaget, conceitos que permitem a leitura de
uma sociedade dada. Se uma cultura for essencialmente coercitiva,
valorizando as posturas autoritárias e o respeito unilateral,
dificilmente uma ação pedagógica, por si só, levará à autonomia dos
alunos. Ajudará, sem dúvida, mas terá alcance limitado. Acreditar o
contrário é pensar que uma criança é puro produto dos métodos e
objetivos de uma instituição educacional. Não dúvidas de que a
teoria de Piaget permite-nos pensar a educação. Mas ela nos permite
sobretudo pensar a cultura, e dentro dela, a educação.
Pensando na autonomia da criança, ou situações de
autonomia, precisamos compreender o que levou a essa mudança e
a essa ação. Piaget chama esse processo de tomada de consciência:
momento em que o indivíduo consegue se organizar e se estruturar
para gerar uma devolutiva eficiente e, também, compreender os
processos no qual ele está inserido socialmente. Isso ocorre, pois, o
ambiente coercitivo, anterior, promove apenas a heteronomia,
valorizando sempre a postura de autoridades, e, após a tomada de
consciência, posterior, é possível a autonomia do indivíduo.
O processo educacional pode promover um avanço nesse
processo e, principalmente, conduzir ações cooperativas entre os
indivíduos. Ao pensarmos que à ação procede a consciência, temos
que promover uma educação para além da autoridade e do respeito
unilateral, evoluindo, assim, da coação para o processo de
cooperação e respeito mútuo.
292
A autonomia é construída aos poucos e, mesmo em
indivíduos que estão em processo de autonomia, possíveis
regressões para cenários de heteronomia. Isso acontece, principal-
mente, quando a tomara de consciência não se efetiva de maneira
ampliada e consolidada.
Um outro aspecto destacado por Piaget (1932/1994, p.
155):
Como a criança chegará à autonomia propriamente dita?
Vemos surgir o sinal quando ela descobre que a
veracidade é necessária nas relações de simpatia e de
respeito mútuos. A reciprocidade parece, neste caso, ser
fato de autonomia. Com efeito, autonomia moral,
quando a consciência considera como necessário um ideal,
independentemente de qualquer pressão exterior. Ora,
sem relação com outrem, o necessidade moral: o
indivíduo como tal conhece apenas a anomia e não a
autonomia. Inversamente, toda relação com outrem, na
qual intervém o respeito unilateral, conduz à heteronomia.
A autonomia aparece com a reciprocidade, quando o
respeito mútuo é bastante forte, para que o indivíduo
experimente interiormente a necessidade de tratar os
outros como gostaria de ser tratado.
A reciprocidade, simpatia e consciência perante o outro,
ocorre de maneira interna e precisa ser estruturada em uma vontade
do indivíduo, quando ele compreende que suas ões afetam a
coletividade. Sem esse processo social, não necessidade moral,
que a moral é construída na relação com o outro.
293
Um outro aspecto a ser destacado é a autonomia da vontade,
que é a consciência refletida através de si, não apenas do grupo,
propondo assim uma reflexão em relação ao caráter e a forma em
que os indivíduos interpretam a obrigação e a autoridade. Conforme
Piaget (1932/1994), o terceiro elemento da moralidade é a
autonomia da vontade. É contrário à moral racional impor o que
quer que seja à própria consciência: “é uma regra, não somente de
lógica, mas de moral, que nossa razão deve aceitar como verdade
o que, espontaneamente, reconheceu como tal” (p. 123). Mas a
solução kantiana, que explica a autonomia da vontade racional,
equivale a fazer da obrigação “um caráter de certo modo acidental
da lei moral.” (PIAGET, 1932/1994, p. 125). Convém, pelo
contrário, justificar a autonomia sem derrogar o princípio de
obrigação e autoridade.
Durkheim pensa poder encontrar esta conciliação da
autonomia e da autoridade social numa comparação com as ciências
naturais. Somente somos livres frente à natureza, aprendendo a
conhecer suas leis utilizando-as sem procurar transgredi-las. Ora,
[...] na ordem moral, lugar para a mesma autonomia e
não lugar para nenhuma outra. Como a moral exprime
a natureza da sociedade, e esta não é mais diretamente
conhecida por nós que a natureza física, a razão do
indivíduo não pode ser mais a legisladora do mundo
moral que do mundo material... Mas esta ordem, que o
indivíduo, enquanto indivíduo, não criou, não quis
deliberadamente, pode apoderar-se dela pela ciência
(PIAGET, 1932/1994, p. 133).
294
Em suma, a autonomia consiste em compreender o porque
das leis que a sociedade nos impõe e que não somos livres de recusar.
Uma outra base teórica muito importante para Piaget é Kant,
ao descrever sobre a obediência das regras, pois o princípio vem da
ação desse individuo ao julgar os atos dos demais, observando os
aspectos dessa moral. Sendo que a autonomia moral deve estar no
desejo desse individuo em escolher, aspectos das leis universais.
em Piaget, descreve que a moralidade é construída, na relação com
o outro, construindo assim suas próprias regras e valores, serão
inseridas em seus grupos de convivência.
Destacando Piaget (1932/1994, p. 275),
Resta um último ponto, sobre o qual o manuscrito do
curso deixado por Durkheim não determina com precisão
as aplicações pedagógicas, mas que é estudado pelo autor
a propósito dos elementos da moralidade: a autonomia da
vontade. A posição tão sugestiva tomada por Durkheim e
as observações tão perspicazes que fez sobre a moral
kantiana são de natureza, melhor que todo o resto da obra,
a fazer-nos compreender o forte e o fraco da doutrina
durkheimiana, A autonomia da vontade moral, segundo
Kant, é devida ao caráter racional desta, resultando da
sensibilidade a própria obrigação do dever como tal.
Sobre o que Durkheim observa, com razão o nosso ver,
que a obrigação própria ao dever puro se torna neste caso,
um característico de certo modo acidental da lei moral’.
Ora, tudo comprova, segundo Durkheim que ‘a lei moral
está investida de uma autoridade que impõe seu respeito
mesmo à razão’ e assim é obra de um ser, real ou ideal,
superior à faculdade que o concebe’. Não sendo este ser
295
outro que a própria sociedade, a única autonomia possível
é, então a livre submissão da razão individual às leis da
sociedade.
Iremos destacar o termo cooperação e respeito mútuo, no
próximo tópico, pois conforme Piaget (1932/1994, p. 276), esse
cenário busca um possível caminho para o processo de autonomia,
onde o meio, no qual o indivíduo está inserido, tem o objetivo de
construção de uma sociedade que respeita o indivíduo e prioriza as
ações desse individuo visando o coletivo e o bem comum.
A cooperação, o respeito mútuo, portanto, implicam mais
que a autonomia ilusória descrita por Durkheim: postulam a
autonomia completa da razão. Quando Durkheim nos lembra que
o indivíduo é por capaz de criar a moral, isto não exige
absolutamente que a personalidade (isto é, o indivíduo enquanto se
submete às normas da reciprocidade) não seja livre de julgar tudo
segundo sua própria razão. Que a autonomia suponha um
conhecimento destas leis, nada mais justo. Mas as leis sociais não
estão concluídas e sua constituição progressiva supõe a cooperação e
a inteira liberdade da razão pessoal. A autonomia da razão, portanto,
nada tem a ver com a fantasia individual, mas é contraditória com a
ideia de uma autoridade exterior reconhecida como tal. Como Rauh
tão profundamente o demonstrou, ser pessoal consiste em “situar-
se”, o que não impede que, para se situar, seja preciso primeiramente
“instruir-se”. Para educar a autonomia na criança, portanto, é útil
“educá-la” cientificamente. Mas não basta, para isso, submetê-la à
sociedade adulta, e fazê-la compreender de fora as razões desta
submissão: a autonomia é um poder que se conquista de dentro e
que se exerce no seio da cooperação.
296
Ainda que meio culo depois, os desafios se mostram
semelhantes: “embora seja ‘moderno’ o conteúdo ensinado, a
maneira de se apresentar permanece às vezes arcaica do ponto de
vista psicológico” (PIAGET, 1973, p. 19).
Piaget (1979 p. 21) invocava a reflexão “nesse campo tão
especial da formação de futuros homens de ciência, e de técnicos de
nível satisfatório para uma educação apropriada ao espírito
experimental, coloca-se um problema que sem dúvida não é peculiar
ao ensino da física, mas que começa a preocupar certos educadores
é se haverá de importa cada vez mais toda a pedagogia com base na
Psicologia”.
Visando os conceitos que envolvem a psicologia e a
pedagogia, juntos podem ampliar o olhar para novas visões. “A
decisão caberá às experiências pedagógicas, metodológicas do futuro”
(PIAGET, 1979, p. 21).
Uma das grandes descobertas de Piaget (1992) se materializa
nesse trecho: “com a idade o respeito muda de natureza” (p. 79).
Assim, no processo de desenvolvimento, na medida que a criança
estabelece trocas com outras crianças havendo então um
desenvolvimento cognitivo –, ela também permite se descentrar de
seu próprio ponto de vista, egocêntrico. Nessa perspectiva, mais
tarde, as diferenças de idade entre gerações deixam de ser mais
relevantes do que o todo e um outro tipo de relação se estabelece: a
cooperação: “a autonomia aparece com a reciprocidade, quando
o respeito mútuo é bastante forte para que o indivíduo experimente
interiormente a necessidade de tratar os outros como ele gostaria de
ser tratado” (PIAGET, 1932/1994, p. 155).
297
Em terceiro lugar, Piaget evidencia que a moralidade é
construída e tem um desenvolvimento partindo da anomia, à
heteronomia e alcançando a autonomia e, com isso, duas grandes
tendências da moral se destacam: a moral do dever, da obediência, e
a moral do bem. Essas morais são constituídas por fatores diferentes
que residem, principalmente, nas relações sociais vividas pelas
crianças com os outros ao seu redor. Relações de respeito unilateral,
caracterizadas pela coação, consolidam o senso de obrigação, a
heteronomia moral. O autor em algumas passagens do juízo moral
da criança destaca o papel dos pais nessa moral e chega a chamá-los
de “psicólogos medíocres”, pois aplicariam “a mais contestável das
pedagogias morais” (PIAGET, 1932/1994, p. 151-152).
Por outro lado, relações de respeito mútuo, permitem a
cooperação e, somente nela é possível nascer a moral do bem que
tem por base o princípio da reciprocidade.
Assim, Piaget demostra a enorme força, para o desenvol-
vimento, que pode haver na relação entre iguais, baseada na
cooperação. Penso que esse ponto da teoria da moralidade de Piaget
é extremamente importante para pensarmos hoje, o que ou quem
são as autoridades que impõem a obediência às crianças ou os “iguais”
que cooperam entre si; ou mesmo se os iguais são mesmo tão iguais
assim. As autoridades, como pais ou professores continuam atuando
como fonte somente de respeito unilateral? Que preparo ou
formação caberia a eles para auxiliar no desenvolvimento moral das
crianças? Ou ainda, o exame das mídias e suas influências não estaria
demonstrando que as coações sociais m vindo de outro lado que
não de pais ou de adultos?
298
Considerações finais
Para que uma escola promova de fato o desenvolvimento da
moralidade autônoma, é preciso que os professores e professoras
propiciem aos educandos oportunidades que visem o diálogo, a
reflexão, a cooperação, a empatia e o respeito mútuo. Afinal, a escola
sempre educa moralmente, seja para a heteronomia, seja para a
autonomia. Urge a necessidade de que deixemos de pensar que a
escola é apenas um espaço para a transmissão de conhecimento pela
cultura, modelo tradicional e retrógrado. Muitas vezes, na Educação
Infantil, existe a cobrança por parte dos gestores e também da família
de priorizar ações relacionadas à leitura e a escrita, o que, de certa
forma, pode inviabilizar o desenvolvimento moral e integral da
criança.
Mesmo reconhecendo a importância de a escola desenvolver
um trabalho com valores sociomorais, percebemos que os
professores tendem a se esquivar disso, justificando que o papel da
escola é apenas manter ou complementar a ação da família no que
se refere ao desenvolvimento da moralidade, esquecendo-se ou até
mesmo desconhecendo que os conflitos entre os alunos acontecem,
por exemplo, e os professores precisam intervir, o que acabam por
inserir questões de cunho moral nessas situações.
A escola pode e deve ser encarada como um espaço
privilegiado, no que se refere à transição da moralidade heterônoma
para a autônoma, mas o que vemos na realidade são ações que,
infelizmente, provocam a manutenção da heteronomia, por impor
aos alunos a obediência e o dever. Por fim, não é nossa intenção
culpabilizar o modelo que está posto, pois professores e professoras
299
até possuem a vontade de repensarem a sua prática, mas falta-lhes
formação inicial e continuada para tanto. Talvez o primeiro passo
seja conscientizá-los de que, quer queira ou não, eles desempenham
papel importante na formação moral daqueles que estão sob suas
responsabilidades.
Referências
FREITAS, L. B. de L. A moral na obra de Jean Piaget: um
projeto inacabado. São Paulo: Cortez, 2003.
FREITAS, L. B. de L. Do mundo amoral à possibilidade de
ação moral. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 12, n. 2, p. 447-
458, 1999.
KESSELRING, T. Jean Piaget. Petrópolis: Vozes, 1993.
PIAG ET, J. (1932). O juízo moral na criança. São Paulo:
Summus, 1994.
PIAGET, J. Para onde vai a educação?. Rio de Janeiro: Jose
Olympio Editora, 1975.
PIAGET, J. Psicologia e pedagogia. Rio de Janeiro: Forense,
1979.
PUIG, J. M. Práticas morais: uma abordagem sociocultural da
Educação Moral. São Paulo: Editora Moderna, 2004.
300
301
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p301-324
A TEORIA MORAL PIAGETIANA:
DE PROJETO INACABADO PARA A BASE DA
ABORDAGEM COGNITIVO-EVOLUTIVA DO
DESENVOLVIMENTO MORAL
Matheus Estevão Ferreira da SILVA
1
Lia Beatriz de Lucca FREITAS
2
Introdução
Ao longo deste capítulo evidenciamos um dos momentos
cruciais na trajetória de formação do campo de estudos conhecido
por Psicologia Moral: a redescoberta da teoria moral piagetiana como
alternativa para o estudo psicológico da moralidade e,
principalmente, o préstimo dessa teoria para servir de base para a
fundação da abordagem cognitivo-evolutiva do desenvolvimento
moral.
Embora a moralidade seja historicamente estudada em
diversas áreas de conhecimento, tais como a Filosofia, a Sociologia,
1
Doutorando, Mestre em Educação e Pedagogo pela Faculdade de Filosofia e
Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP), Campus de Marília, e Psicólogo pela Faculdade de Ciências e Letras
(FCL), UNESP, Campus de Assis. E-mail: matheus.estevao2@hotmail.com
2
Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em
Educação e Psicóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
UFRGS, e Consultora Acadêmica. E-mail: lia.beatriz.freitas@gmail.com
302
a Antropologia e o Direito, para La Taille, Souza e Vizioli (2004)
coube à Psicologia a produção científica mais consistente na
investigação do tema, cuja expressividade de constituir um campo
de estudos próprio sobre os processos psicológicos envolvidos nesse
fenômeno. Nesse sentido, é na Psicologia Moral que “o estudo do
tema encontra respaldo em pesquisas empíricas e no
desenvolvimento de métodos apropriados à sua investigação”
(LEPRE, 2015, p. 9).
Denomina-se Psicologia Moral esse campo “[...] em que se
estudam os processos psíquicos por meio dos quais se legitimam
regras, princípios e valores morais” (LA TAILLE, 2007, p. 11). E da
mesma forma que várias são as áreas do conhecimento que m a
moralidade como objeto de estudo, no caso da Psicologia Moral,
também se produziram várias teorias, com diferentes abordagens,
nesse campo. Dessa variedade, podem-se citar as teorias de
abordagem psicanalítica e behaviorista.
Segundo Biaggio (2006), até a década de 1960, o estudo
psicológico da moralidade foi dominado por essas duas abordagens
pioneiras, as quais predominaram por diversas décadas. No fim da
década de 1960 e início de 1970, esse cenário, no entanto, foi
alterado: “nos últimos 30 anos, o enfoque cognitivista tomou conta
do campo da moralidade, sendo praticamente abandonados os
estudos empíricos na linha behaviorista [...] e psicanalítica
(BIAGGIO, 2006, p. 21).
A chamada abordagem cognitivo-evolutiva, que considera o
desenvolvimento das funções psicológicas a partir de um viés
evolutivo, e concorrente às duas abordagens anteriores, é erigida a
partir das teorias sobre a moral do epistemólogo suíço Jean Piaget
303
(1896-1980) e do psicólogo estadunidense Lawrence Kohlberg
(1927-1987). Foi o trabalho de Piaget (1932/1994) em torno da
questão moral, publicado no início da década de 1930, que inspirou
a abordagem cognitivo-evolutiva. O principal autor responsável por
essa perspectiva foi Kohlberg (1992), autor posterior a Piaget, cujos
esforços na década de 1960 em diante pôde consolidá-la como a
principal perspectiva teórica em Psicologia para o estudo da
moralidade, despertando o interesse da comunidade acadêmica
mundial pelo tema e impulsionando-a a alcançar o seu status, ainda
atual, de mais produtiva e de grande marco de referência nesse
campo de conhecimento.
Assim, são diversos(as) os(as) autores(as) (DEVRIES, 1991;
BIAGGIO, 2006; LEPRE, 2015; SILVA; 2022a; 2022b) que
consideram que a Psicologia Moral “consolidou-se, como área nobre
da Psicologia” (LA TAILLE, 2007, p. 17), a partir da referida teoria
e dos estudos desenvolvidos por Kohlberg. Alguns desses(as)
autores(as) (BIAGGIO, 2006; LEPRE, 2015) entendem que
Kohlberg retomou e aprofundou o projeto piagetiano acerca da
moralidade. No entanto, outro(a)s (KILLEN; SMETANA, 2015;
YOUNISS; DAMON, 1992) argumentam que a teoria de Kohlberg
difere daquela de Piaget (1932/1994). Neste capítulo, consideramos
que Kohlberg, na verdade, deu continuidade à linha de pesquisa
iniciada por Piaget, mas propôs sua própria teoria, a qual difere
daquela de Piaget. Essa questão será retomada quando discutido,
mais adiante, o préstimo da teoria moral piagetiana para a fundação
da abordagem cognitivo-evolutiva.
É válido ressaltar que no contexto atual da Psicologia Moral,
encontram-se disponíveis na literatura diversas outras teorias, que
304
fundamentam as investigações no estudo da moralidade, associadas
à abordagem cognitivo-evolutiva. Para além de Kohlberg, essas
teorias retomam as ideias originais piagetianas e, sobretudo, a
interpretação kohlberguiana dada a elas.
A Teoria Moral Piagetiana:
um projeto inacabado, mas seminal
Jean Piaget nasceu na Sça, no final do século XIX, e faleceu
aos 84 anos. Epistemólogo, biólogo de formação, tornou-se um dos
psicólogos mais renomados do século XX graças ao colossal número
de estudos realizados sobre o desenvolvimento humano. Atuou
como professor da Universidade de Neuchâtel (1925-1929) e da
Universidade de Genebra (1929-até sua morte). Ele deixou toda
uma vida de dedicação aos estudos e uma das principais teorias sobre
o conhecimento, a respeito de como ele surge e se desenvolve a
Epistemologia Genética.
Em sua análise estrutural da obra piagetiana método no
qual se recorre à obra de determinado autor em sua totalidade
buscando desvendar sua lógica interna –, Ramozzi-Chiarottino
(1972) demonstra que o objetivo de Piaget foi explicar como é
possível o ser humano alcançar o conhecimento necessário e
universal. Opondo-se às teses inatistas e empiristas, que consideram
que o conhecimento provêm, respectivamente, do maturacionismo
biológico e da experiência vivida, a teoria de Piaget (1945/2010;
1975/1976) defende as ideias de que: (a) o conhecimento é
construído na interação do sujeito com o meio e (b) se desenvolve em
305
patamares qualitativamente distintos (estágios)
3
, em uma assumida
postura estruturalista e teleológica: quando Piaget fala em
desenvolvimento está se referindo a um caminho a ser percorrido até
se chegar a um ponto mais evoluído” (LEPRE, 2015, p. 17). E isso
o inclui no grupo das teorias interacionistas.
Sendo a principal preocupação de Piaget (1945/2010;
1975/1976) a construção da inteligência, cuja mais popular
contribuição foi a definição de seus estágios cognitivos, o aspecto
cognitivo do desenvolvimento foi privilegiado em sua obra. Os
aspectos social, moral e afetivo, embora também considerados, nem
sempre foram objeto de estudos sistemáticos. No caso da moralidade,
contudo, Freitas (2002, p. 303), adverte que “quando consideramos
o conjunto de sua obra, podemos constatar também que ele jamais
deixou de escrever sobre a questão moral”.
Ainda segundo Freitas (2002; 2003), o livro Le jugement
moral chez l'enfant (traduzido no Brasil para O juízo moral na
criança) é, sem dúvida, a principal obra em que Piaget (1932/1994)
trata da questão moral. É nesse livro que ele relata os seus estudos
empíricos. Nele, a despeito da ação e dos sentimentos morais, Piaget
(1932/1994) investigou a gênese do juízo moral em crianças. O
autor buscou investigar como a criança adquire o respeito pelas
regras, reunindo no livro resultados de três estudos nos quais se
3
Como ressalta Mano (2017), Piaget se vale da palavra stade (estádio) para
designar o processo de desenvolvimento cognitivo, no entanto, em obras
traduzidas do francês para o português, emprega-se a palavra estágio para designa-
lo. Apesar disso, “independentemente do termo adotado, é necessária a
compreensão do real significado desse conceito na obra piagetiana” (p. 29). Neste
texto, usaremos a palavra estágio, uma vez que também é o termo utilizado por
Kohlberg para designar seus próprios estágios de desenvolvimento quanto à moral.
306
utilizou da observação e entrevistas com crianças, interrogando-as
tanto sobre as regras de jogos quanto sobre personagens em histórias-
estímulo.
Dos resultados encontrados nesses estudos, destaca-se a
identificação de um caminho psicogenético caracterizado pela
passagem da heteronomia à autonomia. Após um período de ausência
de regras (anomia) não caracterizado como uma tendência moral
–, a heteronomia é a primeira tendência
4
moral vivenciada pela
criança, que apesar de perceber a existência de regras, não as
compreende como necessárias para se viver em sociedade e as
obedece mediante o poder que as figuras de autoridade, tais como
pais e professores(as), exercem sobre ela (respeito unilateral), com
seus juízos caracterizados por fatores externos. Com as interações
entre pares e relações de cooperação, constrói-se a tendência moral
de autonomia, que paulatinamente ocupa o lugar da heteronomia,
em que a criança passa a entender que as regras decorrem de um
acordo mútuo entre as pessoas (respeito mútuo), o respeito às regras
se voluntariamente e seus juízos caracterizam-se pela
reciprocidade.
Embora Piaget propusesse ineditamente tal modelo
psicogenético de desenvolvimento por tendências no caso da
moralidade, suas ideias remontam as expostas pelo filósofo prussiano
Immanuel Kant (1724-1804), para quem as pessoas são os únicos
seres dotados de liberdade para agir com base na razão e não por
inclinações ou vontades pessoais. Opondo-se à determinação externa,
4
Preferiu-se adotar o termo tendências ao invés de estágios, uma vez que para Piaget
(1932/1994) ainda não é claro se o caminho psicogenético que traça corresponde
a uma estrutura de moralidade, paralela às estruturas cognitivas, por meio da
sucessão em estágios de desenvolvimento, como é para Kohlberg (1992).
307
Kant (1785/2005) concebe como moral o comportamento
autoescolhido que se baseie em um princípio universalmente válido,
atestado pelo que chamou de Imperativo Categórico, formulado da
seguinte forma: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas
querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1785/2005, p. 59).
Assim, para uma ação ser moral, ou o juízo que a determinou, ela
deve obedecer a uma lei interna e se justificar a partir de um
princípio lido para toda a humanidade.
Do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, a
professora Zélia Ramozzi-Chiarottino tem chamado atenção, desde
a década de 1980 (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 1984), e ainda
atualmente (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 2021), para a tese de
que a teoria de Piaget pode ser considerada como uma espécie de
kantismo evolutivo expressão utilizada pelo próprio Piaget (1959)
–, em que as ideias kantianas sobre o conhecimento são colocadas
em perspectiva evolutivo e registradas progressivamente ao longo no
desenvolvimento humano. Para Freitas (2002; 2003), a sua teoria
sobre a moralidade também pode ser entendida como um kantismo
evolutivo, sobretudo na passagem da heteronomia à autonomia.
O juízo moral na criança de Piaget (1932/1994) é, portanto,
considerado um marco de referência na Psicologia Moral, e seminal
para a fundação da abordagem cognitivo-evolutiva para o estudo da
moralidade. Nas palavras de Freitas (2003, p. 16), esse livro tornou-
se um clássico da literatura e, não obstante, “de acordo com o olhar
retrospectivo de alguns autores sobre esse domínio específico da
psicologia, a importância histórica desse livro de Piaget deve-se ao
fato de que ele inaugurou, nos anos 30, uma nova linha de
investigação: o chamado enfoque cognitivo-evolutivo”.
308
Entretanto, desde quando ela surgiu, aponta-se que a teoria
moral de Piaget, ao mesmo tempo que seminal (BIAGGIO, 2006;
LEPRE, 2015), é um projeto inacabado (FREITAS, 2003).
Em sua tese de Doutorado defendida em 1998 na
Universidade de São Paulo (USP), e que deu origem ao livro A moral
na obra de Jean Piaget: um projeto inacabado (FREITAS, 2003), Lia
Beatriz de Lucca Freitas buscou responder a pergunta: “qual foi a
intenção de Piaget no domínio da moral?”. Freitas teve como
referência a citada análise estrutural da obra piagetiana de
Ramozzi-Chiarottino (1972). Nessa análise, a autora antecessora
demonstrou que o objetivo de Piaget, em toda a sua obra, foi explicar
como o ser humano alcança o conhecimento, e que esse objetivo
esteve anunciado como seu projeto de vida desde a publicação do
livro autobiográfico Recherche, de 1918, publicado por Piaget (1918)
quando ainda muito jovem. No entanto, Ramozzi-Chiarottino
(1972) não se ateve às suas implicações na moralidade.
Freitas (2003), portanto, retoma a análise estrutural
realizada por Ramozzi-Chiarottino (1972) e a utiliza para a análise
dos textos de Piaget sobre a moral. Em seus resultados, a autora
advoga que “além de construir uma teoria do conhecimento, ele
aspirava estabelecer uma teoria sobre a moral, e este plano é também
de sua juventude (p. 19). Na continuidade dessa análise, pode-se
dizer que,
[...] no projeto de Piaget, apresentado em Recherche, a
questão moral aparece ao lado do problema do
conhecimento [...]. Ou seja, Piaget, leitor de Kant,
planejara seguir seus passos: após explicar como é possível
ao homem alcançar o conhecimento, ele também estaria
309
apto a propor a sua ética. Essa era a intenção de Piaget.
Ele, porém, deixou esse projeto inacabado (FREITAS, 2003,
p. 107, grifos nossos).
Dessa forma, mesmo que o projeto inicial intencionado pelo
autor no campo da moralidade seja reconhecido como seminal a
partir de seu livro de 1932, ele permaneceu como inacabado, como
Freitas (2003, p. 108) continua a ressaltar: “O porquê disso constitui,
como disse a professora Amélia Domingues de Castro, ‘um mistério
a decifrar na vida científica piagetiana’. Deixaremos intocado esse
mistério, pois, neste estudo, não nos cabe desvendá-lo”. Apesar disso,
outros(as) autores(as) encontraram nele uma possibilidade atraente
para o estudo psicológico da moralidade. Nesse sentido, ressalta
Lepre (2015, p. 22), com base no trabalho pioneiro de Piaget,
“diversos outros importantes autores [...] elaboraram suas propostas
teóricas, ora concordando inteiramente com a proposta piagetiana,
ora rejeitando determinados aspectos”.
A “Redescoberta de Piaget” e a consolidação da
abordagem cognitivo-evolutiva do desenvolvimento
moral por Lawrence Kohlberg
É inegável que Piaget influenciou Kohlberg. No entanto,
isso não significa que Kohlberg tenha concordado com Piaget e
transposto fielmente todas as assertivas da teoria piagetiana para a
sua própria teoria. Em outras palavras, mais adequado seria dizer que
o autor norte-americano se inspirou nas ideias do autor genebrino,
pois, ainda que de fato tenha conservado várias delas em sua teoria,
310
ele propôs ideias próprias acerca do desenvolvimento moral, muitas
vezes, inclusive, conflitantes com aquelas de Piaget.
Kohlberg é um autor importante não apenas pela criação da
abordagem cognitivo-evolutiva, mas também pela consolidação do
próprio campo da Psicologia Moral, que se fez por meio dessa
abordagem teórica.
Cabe esclarecer que por abordagem cognitivo-evolutiva nós
não nos referimos a uma determinada teoria, mas sim a uma corrente
teórica que reúne uma variedade de teorias diferentes entre si, mas
com certas semelhanças em suas proposições e em suas referências
de base, neste caso, baseadas na tradição piagetiana. Assim, enquanto
a teoria piagetiana foi fundamental para fundar a abordagem
cognitivo-evolutiva, essa fundação ocorreu a partir de sua
“redescoberta” por Kohlberg.
Lawrence Kohlberg foi um psicólogo, professor universitário
e pesquisador norte-americano nascido em 1927 e que veio a falecer
precocemente, em 1987, aos 59 anos. Kohlberg (1984; 1992)
dedicou toda sua vida acadêmica para a elaboração de sua teoria
sobre o desenvolvimento moral. Em síntese, essa teoria busca
descobrir como se o desenvolvimento do respeito às regras ao
longo da vida e o modo como a consciência se obriga a respeitá-las.
Seu programa de pesquisas teve início com sua tese de Doutorado, a
qual defendeu em 1958 na Universidade de Chicago (KOHLBERG,
1958), intitulada The development of modes of moral thinking and
choice in the years 10 to 16 (O desenvolvimento de modos de pensamento
e escolha moral dos 10 aos 16 anos, em tradução livre).
Não obstante, sua trajetória assemelha-se com a de Piaget:
ambos procuraram, na Psicologia, achados empíricos que pudessem
311
comprovar os modelos psicológicos de suas teorias, elaboradas com
base em ideias filosóficas – no caso deles, a Filosofia kantiana. E foi
no trabalho de Piaget que Kohlberg proeminentemente se
fundamentou para formular sua teoria. Posteriormente, Kohlberg
ficaria conhecido como “um dos primeiros americanos em
Psicologia a reconhecer a importância dos esforços de Piaget, [...] e
articular claramente a alternativa piagetiana” (DEVRIES, 1991, p.
8, tradução nossa).
Logo, o fenômeno “que tem sido chamado de ‘ressurgi-
mento’, ‘renascimento’ e ‘redescoberta’ de Piaget no final da década
de 1950 e início da década de 1960” (BURMAN, 2016, p. 72,
tradução nossa) nos Estados Unidos, se deve, em parte, aos esforços
de Kohlberg no campo da moralidade, a princípio em seu
Doutorado e, em seguida, nos estudos seguintes que consolidaram
sua teoria.
Em seu doutoramento, Kohlberg (1958) acompanhou
longitudinalmente uma amostra de 84 meninos de 10, 13 e 16 anos
de idade, brancos, de classe média da cidade de Chicago. O próprio
Kohlberg (1992, p. 33, tradução nossa) relata que “o objetivo desta
pesquisa foi aplicar à adolescência a pesquisa iniciada por Piaget
sobre o desenvolvimento do julgamento moral em crianças. Para
estudar o desenvolvimento moral na adolescência, decidi usar o
método e as suposições gerais de Piaget”. Contrastando esse dizer do
autor com a interpretação de Youniss e Damon (1992) e Killen e
Smetana (2015), pode-se inferir que, se em algum momento foi a
intenção de Kohlberg continuar a teoria piagetiana, ele o fez “à sua
maneira”, criando uma teoria diferente daquela de Piaget.
312
Kohlberg (1992) interessou-se no método de entrevista de
Piaget no livro O juízo moral na criança, porém, diferente de Piaget,
utilizou dilemas morais
5
no lugar das histórias-estímulo. Assim, a
começar pela adaptação do método em sua tese de Doutorado
(KOHLBERG, 1958), outras diferenças entre os ambos autores
foram surgindo, sendo talvez a principal delas a inovação que
Kohlberg (1984; 1992) faz, também desde seu doutoramento, ao
considerar as tendências morais heteronomia e autonomia traçadas
por Piaget insuficientes. No lugar delas, o autor propõe um modelo
de desenvolvimento moral por níveis e estágios, tal como no modelo
cognitivo piagetiano. Diferente de Kohlberg, no que compete ao
desenvolvimento moral, Piaget (1932/1994) pareceu não se sentir
seguro em traçar estágios tal como fez no desenvolvimento cognitivo.
No entanto, durante toda sua carreira acadêmica, Kohlberg
sempre buscou por corroboração empírica para suas assertivas, o que
não foi diferente com os fundamentos de sua teoria. Depois de ter-
se baseado em Piaget (KOHLBERG, 1958), ele passou a se dedicar
à exploração exaustiva das ideias piagetianas sobre o desenvol-
vimento cognitivo e moral (KOHLBERG, 1966a; KOHLBERG;
YAEGER; HJERTHOLM, 1968), com o intuito de encontrar
validade no conceito de estágio piagetiano para, então, aplicá-lo
consistentemente em sua proposta de estágios morais.
Em posse de suas próprias evidências empíricas que
endossavam os conceitos piagetianos, sobretudo o de estágio,
Kohlberg incorporou o conceito de estágio cognitivo na
5
Dilemas morais são situações extremas, geralmente protagonizadas por um
personagem, que envolvem dois valores. O personagem protagonista deve decidir
a qual aderir.
313
conceituação de seus estágios morais
6
. Não obstante, além de
transpor a teoria piagetiana sobre as estruturas cognitivas para a
moralidade, Kohlberg (1982) também apontou para uma relação
nesse paralelismo entre o desenvolvimento cognitivo e o
desenvolvimento moral, ao ressaltar que um (cognitivo) é condição
necessária, embora não suficiente, para o desenvolvimento do outro
(moral).
Em seu modelo, Kohlberg (1984; 1992) propõe que o
desenvolvimento moral perpassa por três níveis e seis estágios, sendo
dois estágios para cada nível. Assim, a moralidade se encontra
organizada em três grandes níveis pré-convencional, convencional
e pós-convencional –, cada um subdividido em dois estágios. O
primeiro nível, pré-convencional, típico entre criaas, é constituído
pelos Estágios 1 e 2, em que o raciocínio se baseia no medo da
punição (autopreservação) ou em interesses individuais. O segundo
nível, convencional, pico entre adolescentes e adultos, é constituído
pelos Estágios 3 e 4, em que o raciocínio se baseia na conformidade
às convenções e regras sociais determinadas por grupos ou
autoridades, procurando manter a ordem social vigente. O terceiro
e último nível, pós-convencional, atingido por uma quantidade
mínima de adultos, é constituído pelos Estágios 5 e 6, em que o
raciocínio moral rompe com o contexto sócio legal e baseia-se na
6
Entretanto, Marçal e Bataglia (2018) apontam problemas na incorporação do
conceito de estágio cognitivo de Piaget no campo da moralidade. Para esses
autores (2018, p. 1-2), “uma das questões da psicologia moral é se podemos pensar
em estádios do desenvolvimento moral do mesmo modo que pensamos em
estádios do desenvolvimento cognitivo. Lawrence Kohlberg [...] claramente coloca
os estádios e níveis hierárquicos como se essa transposição fosse facilmente
depreendida. Pensamos que a concepção piagetiana de estádios seja bem mais
específica e focada na existência de invariantes funcionais”.
314
reciprocidade e em princípios morais universalizáveis, isto é, as
regras são aceitas se estiverem fundamentadas em princípios
morais.
Enquanto professor da Universidade de Yale entre os anos
de 1961 e 1962, da Universidade de Chicago de 1962 a 1967 e
depois contratado pela Universidade de Harvard em 1968 (onde
atuou até sua morte em 1987), Kohlberg deu continuidade às suas
pesquisas, aprimorou a teoria e chegou a elaborar uma entrevista
padronizada de avaliação do juízo moral, a Moral Judgment Interview
(MJI) (COLBY; KOHLBERG, 1987), o que de sistematizar seu
método de mensuração.
A continuidade da abordagem cognitiva-evolutiva
pelas teorias pós-kohlberguianas
Com a morte de Kohlberg, muito discutiu-se sobre qual o
legado por ele deixado, “em quais novas direções o campo poderia
se mover sem a força da presença e participação desse homem”
(HAYES, 1994, p. 261, tradução nossa). No entanto, Hayes (1994,
p. 265, tradução nossa) responde a essa questão: “Kohlberg deixou
um rico legado de ideias que estão se mostrando suficientes para
inspirar trabalhos que seguem a tradição construtivista da qual ele
foi um porta-voz tão importante”.
Bataglia, Morais e Lepre (2010) destacam que diversos
instrumentos de mensuração alternativos à MJI único instrumento
que o próprio Kohlberg, além de -lo elaborado, utilizou em suas
pesquisas foram desenvolvidos por outros(as) autores(as) no
decorrer dos anos para a avaliação do raciocínio moral e aspectos
relacionados da moralidade. E essas várias alternativas de método
315
também contribuíram para tornar a literatura da abordagem
cognitivo-evolutiva ainda mais vasta.
Cabe ressaltar, no entanto, que ao passo em que cresceram
as pesquisas de base piagetiana e kohlberguiana, com a referida
repercussão no estudo da moralidade e no campo da Psicologia
Moral, a ponto de consolidá-lo, diversas críticas também surgiram.
No caso de Kohlberg, traz Danza (2014, p. 63):
[...] ele recebeu muitas críticas relacionadas tanto à rigidez
promovida pela compreensão da moralidade através de
estágios universais, quanto ao fato de ele não ter levado
em conta as necessidades afetivas dos sujeitos que
emergem diante dos conflitos de natureza moral. Para
além dessas críticas, vislumbramos sua grande
contribuição, acreditando na importância das
investigações sobre o desenvolvimento da moral
deontológica, ainda que consideremos este referencial
escasso para a compreensão dos complexos fenômenos da
moralidade.
Desde as décadas de 1970 e 1980, várias dessas críticas
suscitaram o surgimento de outras teorias sobre o desenvolvimento
moral, partindo dessa mesma perspectiva cognitivo-evolutiva, “tanto
teorias mais críticas às ideias de Kohlberg e que propuseram outros
caminhos de teorização a serem tomados quanto teorias que
propuseram somente algumas mudanças às ideias de Kohlberg,
teorias as quais poderiam se dizer pós-kohlberguianas (SILVA,
2022a, p. 107, grifos do autor).
316
Como comentam Hayes (1994) e Danza (2014, p. 63): “os
trabalhos de Kohlberg tiveram grande repercussão e deram origem a
um número expressivo de trabalhos orientados neste paradigma
[cognitivo-evolutivo]”. Assim, essas outras teorias, erigidas com base
na tradição cognitivo-evolutiva, apresentam, cada uma, proposições
próprias visando sanar as limitações de suas predecessoras das
teorias piagetiana e kohlberguianapor isso pós-kohlberguianas”.
Ou seja, são teorias pós-kohlberguianas, pois baseiam-se no
paradigma cognitivo-evolutivo, mas, ao mesmo tempo, buscam
alguma independência dos modelos de suas predecessoras.
Vale ressaltar que essas teorias, ao terem a teoria
kohlberguiana como referência direta, tiveram consequentemente a
teoria piagetiana como referência indireta, visto que recorrer às
proposições originais kohlberguianas é também recorrer às
proposições originais piagetianas, visto que algumas delas foram
conservadas e transpostas à teoria de Kohlberg. No entanto, várias
dessas teorias também refizeram o movimento de Kohlberg e se
fundamentaram em Piaget, tendo o autor genebrino como uma
referência direta e, portanto, empregando suas próprias
interpretações sobre esse referencial.
Em síntese, nem todas as teorias pós-kohlberguianas se
satisfizeram com as interpretações de Kohlberg acerca de Piaget.
Como exemplo, pode-se mencionar a teoria pós-kohlberguiana do
psicólogo estadunidense Elliot Turiel (1983). Segundo Lourenço
(2014), Turiel teria interpretações mais congruentes às ideias
originais de Piaget, em determinados aspectos de sua teoria, que
Kohlberg.
317
Em suma, essas teorias pós-kohlberguianas buscaram pensar
outros aspectos que fazem parte do domínio moral, mas que não
puderam ser contemplados nos trabalhos originais de Kohlberg e de
Piaget. A partir delas, que cada vez mais têm fundamentado as
pesquisas atuais da Psicologia Moral, pôde-se pensar em outros
aspectos da moralidade (além do juízo moral), dentre os quais
destacam-se: domínios sociais (TURIEL, 1983), princípios morais de
cuidado (GILLIGAN, 1982), competência moral (LIND, 2000),
identidade moral (BLASI, 1983; COLBY; DAMON, 1992),
esquemas morais (REST et al., 1999), e etc.
Considerações finais
Neste capítulo, realizamos uma revisão bibliográfica que
expôs a redescoberta da teoria moral piagetiana e o seu préstimo para
servir de base para a fundação da abordagem cognitivo-evolutiva do
desenvolvimento moral. Essa exposição evidenciou aquilo que foi
um dos momentos cruciais na história da Psicologia Moral,
fundamental para sua consolidação e para o estado em que se
encontra hoje.
A teoria moral piagetiana trouxe inovações às ideias
kantianas em que se fundamenta e, pela natureza dessas inovações, é
passível de ser interpretada com um kantismo evolutivo. Sua teoria
e modelo psicogenético de desenvolvimento por tendências também
serviu como base, sendo seminal, para o refinamento de várias ideias
acerca do desenvolvimento moral na perspectiva cognitivo-evolutiva,
logo, possibilitando a consolidação dessa abordagem no estudo
psicológico da moralidade.
318
Assim, a teoria moral de Piaget serviu de base para a
abordagem cognitivo-evolutiva, fundada por Kohlberg a partir das
contribuições de seu antecessor. A teoria kohlberguiana, por sua vez,
além de fundá-la, também foi responsável por sua consolidação
como principal perspectiva teórica para o estudo da moralidade,
assim como pela consolidação do próprio campo da Psicologia
Moral. Tal como Piaget, Kohlberg contribuiu para a proposição de
um novo paradigma teórico e, além disso, desenvolveu um método
próprio de pesquisa. Soma-se a isso o fato de que ele estendeu a
investigação do desenvolvimento moral até a idade adulta, por meio
de seu próprio modelo de desenvolvimento.
Nesta segunda década deste século, parece-nos que a teoria
de Piaget inspirou e ainda inspirará décadas de estudo sobre a
moralidade. Ademais, sugerimos, em pesquisas futuras, buscar
compreender os quão diferentes e semelhantes entre si são as teorias
morais de Piaget e de Kohlberg.
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DESENVOLVIMENTO MORAL,
AUTORREGULAÇÃO E FUNÇÕES EXECUTIVAS
Rita Melissa LEPRE
1
Eduardo Silva BENETTI
2
Bianca Vitti CINCOTO
3
Introdução
A moralidade humana é construída ao longo de toda a vida
por meio das interações sociais estabelecidas entre as pessoas e o meio,
não se caracterizando como um fenômeno inato ou pré-determinado
nos sujeitos. A este respeito, questiona e esclarece Kant (1996), “o
homem é moralmente bom ou mau por natureza? Não é bom nem
mau por natureza, porque não é um ser moral por natureza. Torna-
se moral apenas quando eleva a sua razão até aos conceitos do dever
e da lei” (KANT, 1996, p. 102). Pautado nas principais ideias
kantianas, Jean Piaget (1896-1980), na área da Psicologia, estudou
1
Doutora em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Marília, e Professora Associada da Faculdade de Ciências (FC), UNESP, Campus
de Bauru, São Paulo, Brasil. E-mail: melissa.lepre@unesp.br
2
Mestre em Docência para a Educação Básica pela Faculdade de Ciências (FC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Bauru, São Paulo, Brasil. E-mail: eduardo.benetti@unesp.br
3
Mestra em Docência para a Educação Básica pela Faculdade de Ciências (FC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de
Bauru, São Paulo, Brasil. E-mail: bianca_vitti@hotmail.com
326
empiricamente o desenvolvimento do juízo moral na criança tendo
como objetivo entender como a moralidade humana se constrói nos
seres humanos.
Ao prefaciar o livro O juízo moral na criança, La Taille
(1994) nos faz refletir acerca do pioneirismo dos estudos de Piaget
(1932/1994) sobre a moralidade, que embora tenha sido realizado
com crianças, se reflete em toda a humanidade. Ao logo do prefácio,
o autor defende que os estudos sobre a moralidade iniciam na
reflexão sobre as práticas morais já estabelecidas e como os sujeitos
conferem coerência a elas, construindo uma consciência moral. Nas
palavras do autor: “em resumo: primeiro está a ação, depois a
tomada de consciência desta (abstração)” (LA TAILLE apud
PIAGET, 1932/1994, p. 11). A tomada de consciência se faz por
autorregulação e tem como método e produto a cooperação e o
respeito mútuo que se colocam como necessários ao
desenvolvimento da autonomia moral.
A partir daquilo que o sujeito acredita ser certo
e errado, aquilo que lhe foi transmitido desde
criança e que formou seus valores é
internalizado e é possível que comecem a
regular seu próprio comportamento, passando
de um controle antes, externo e que passa a ser
também interno: a autorregulação (ZAPIO,
2017, p. 54).
No Brasil, muitas são as pesquisas que abordam o
desenvolvimento do juízo moral (LA TAILLE, 2006; LEPRE;
FERREIRA, 2020) procurando conceber a gênese da moralidade,
seja no desenvolvimento integral do sujeito, enquanto ser inserido
327
na sociedade e cidadão, portanto, detentor de direitos e deveres que
devem ser assumidos e exercidos à luz da consciência e razão, seja
para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa, de forma
que a reflexão crítica acerca das mazelas sociais possam se refletir em
ações e atitudes condizentes com a dignidade humana e com os
direitos humanos.
A moralidade é, pois, o fenômeno que mais representa a
humanidade, uma vez que se constitui na e pelas relações sociais
permitindo a produção e manutenção do pacto civilizatório. Ainda
que, na abordagem piagetiana, a moral seja um fenômeno da razão,
a afetividade e a cognição estão igualmente envolvidas nesta
construção, sendo a primeira a energética da segunda. Piaget
(1954/2014) afirma que não há mecanismo cognitivo sem
elementos afetivos e nem estado afetivo puro, sem elementos
cognitivos. A moralidade envolve, pois, o raciocínio, o juízo, a
afetividade e a capacidade do sujeito de perceber e refletir sobre uma
determinada situação social.
Frente a um dilema moral, por exemplo, o sujeito aciona sua
moralidade para refletir ou agir segundo a situação que se coloca a
ele. Para tanto, recorre, também, a mecanismos cognitivos que
envolvem o raciocínio lógico, a memória de trabalho, o controle
inibitório, a flexibilidade cognitiva, a resolução de problemas, o
planejamento, a tomada de decisão, entre outras. Esses mecanismos
nos remetem às funções executivas (FE), que ainda que não tenham
sido estudadas por Piaget podem ser pensadas a partir de suas
elaborações teóricas. Segundo Lima, Crespi e Nóbile (2021), na
Epistemologia Genética de Jean Piaget, as FE parecem estar
328
associadas a tópicos como a Autorregulação, a Abstração
Reflexionante e a Tomada de Consciência.
Mas, quais as possíveis relações entre a moralidade, a
autorregulação e as FE, que são aquelas que nos permitem planejar,
executar e avaliar uma ação? É importante relembrar que Piaget não
desconsiderou o sistema nervoso para o avanço de suas pesquisas,
porém, sempre afirmou que, embora a sua maturação fosse condição
necessária, não era em si suficiente para o desenvolvimento cognitivo
do sujeito (CORSO, 2009); o mesmo é afirmado quanto ao
desenvolvimento da moralidade ao afirmar que a inteligência é
necessária, porém insuficiente, para que a autonomia moral seja
construída (PIAGET, 1932/1994). Assim, acreditamos que a
perspectiva piagetiana, expressa em sua Epistemologia Genética,
pode auxiliar a trilhar um paralelo possível entre o desenvolvimento
moral e as atuais explicações sobre as FE no campo neurocientífico.
O objetivo deste ensaio teórico, portanto, é o de desenvolver uma
reflexão que relacione, tendo como aporte teórico a Epistemologia
Genética, o desenvolvimento moral, a autorregulação e as FE,
visando contribuir para novas possibilidades de estudos e pesquisas
na área da Psicologia da Moralidade e da Educação em Valores.
O papel da autorregulação no desenvolvimento moral na
perspectiva piagetiana
Muito embora as FE não tenham sido objeto de estudo de
Piaget ao longo de seus anos de pesquisa, o mesmo aborda em seus
escritos o processo de regulações ativas e/ou as autorregulações, que
são processos contínuos das funções e esquemas cognitivos de se
ajustarem a uma nova realidade, recriando-a e dando novas
329
significações. Puig (1998), pesquisador catalão da moral, reflete
sobre a importância do papel da autorregulação no processo de
tomada de consciência e, consequentemente, no desenvolvimento
moral da criança.
A autorregulação tem a ver mais com o esforço que cada
sujeito rea1iza para dirigir por si mesmo sua própria
conduta. Um esforço de autodireção que tem de permitir,
por um lado, um alto nível de coerência entre o juízo e a
ação moral e, por outro, a progressiva construção de um
modo de ser pessoal realmente desejado (PUIG, 1998, p.
112).
Dessa maneira, para que seja possível exercer uma ação moral
que compita com um juízo moral autônomo, o sujeito passará
inicialmente pela tomada de consciência, ou seja, passará por um
processo de conceituação, que é uma reconstrução que introduz
novas características na forma de ligações lógicas (PIAGET, 1977).
Assim, a tomada de consciência é desencadeada por autorregulações
que ressignificam a consciência. Portanto, o processo autorregula-
tório está no campo da ação, desencadeando uma tomada de
consciência que irá, por meio do processo de acomodação, equilibrar
a nova conceituação de tal ação, levando o sujeito a refletir
criticamente.
Piaget (1990, p.66) diz que:
[...] a multiplicidade das formas de regulação, somada a
essa existência de certos funcionamentos comuns,
constitui como que uma prefiguração do que se observa
330
no plano do comportamento, onde se reencontra essa
sucessão de estruturas incitadas por um funcionamento
autorregulador contínuo.
Portanto, o processo de autorregulação é contínuo,
proporcionando assim a tomada de consciência, dessa forma, “a
tomada de consciência depende de regulações ativas que comportam
escolhas mais ou menos intencionais” (PIAGET, 1977, p. 13).
Podemos, assim, inferir que os processos regulatórios estão ligados
com as habilidades cognitivas e regidas pelas FE, que são
responsáveis por todo o processo de decisão e execução de ações
conscientes em função de situações conflitantes e/ou algo a ser
resolvido, o que nos permite, também, a relação com as decisões
morais.
Até que a autonomia moral seja construída, o cérebro do
sujeito passará por diversas alterações em suas funções e estruturas,
em virtude das interações com o meio, desenvolvendo,
concomitante e dialeticamente, estruturas cognitivas necessárias para
que as FE possam proporcionar regulações ativas sob as mais diversas
situações. As FE trazem no seu arcabouço habilidades cognitivas
como flexibilidade cognitiva, memória de trabalho, monitoramento,
planejamento, controle inibitório que por sua vez, “são consideradas
processos cognitivos de controle e regulação, responsáveis pela
interação contínua entre mecanismos comportamentais e
automatizados” (GOMES; SIMONETTI; MAIDEL, 2018, p. 2).
A ascensão dos estudos das FE tem contribuído com o
avanço das neurociências (e vice-versa) e suas implicações na vida
humana, entretanto, ao estudar a tomada de consciência e o processo
331
de autorregulação, Piaget (1997) já apresentava uma abordagem que
converge para os pressupostos defendidos nas FE,
[...] A tomada de consciência da própria ação consistiu
em demonstrar que existem ações complexas, embora de
êxito precoce, que apresentam todas as características de
um saber, mas apenas de um ‘savoir faire’ (saber fazer); e
que a passagem dessa forma prática de conhecimento para
o pensamento se efetuava através de tomadas de
consciência, sem se restringir de forma alguma, a uma
espécie de esclarecimento, mas constituindo numa
conceituação propriamente dita, isto é, numa
transformação dos esquemas de ação em noções e em
operações [...] (PIAGET, 1978, p. 10).
A partir da perspectiva piagetiana, podemos compreender
que a autorregulação também atua diretamente no desenvolvimento
do juízo moral, possibilitando que novos pontos de vistas sejam
compreendidos, ressignificando ações e controlando impulsos. Este
processo autorregulatório permite que o sujeito tome consciência e
reorganize conceitos e valores, possibilitando que sua conduta social
seja voltada para o respeito mútuo. Piaget reflete que o sujeito, para
construir sua autonomia moral e intelectual, precisa alcançar o
estádio das operações formais, e consequentemente, a capacidade de
reversibilidade das ações lógico-matemáticas abstratas, libertando-se
do mundo concreto, o que dá condições do sujeito compreender,
por meio da abstração reflexionante, outros posicionamentos que
não apenas os seus e considerá-los de acordo com a sua razão
(PIAGET, 2013).
332
Piaget ao tratar do termo autorregulação, descreve uma
regulação superior, força regulatória que viria da vontade,
ou seja, o sujeito é capaz de escolher entre agir bem ou
mal, sendo movido por valores de forma hierárquica. Por
meio do poder de escolha, o sujeito avalia a situação,
ativando mecanismos que operam ‘dizendo’ se ele deve
agir pelo dever moral ou não. A partir do momento em
que o sujeito passa a se colocar no lugar do outro, pela
reciprocidade, acaba por ser comovido pelo estado afetivo
do outro, e pode ser movido pela culpa, vergonha,
arrependimento, indignação entre outros sentimentos
morais os quais podem intervir para resgatar o dever
moral na situação em questão (ZAPIO, 2017, p. 52).
É possível considerar que a autorregulação tem uma
importante função no desenvolvimento humano, em especial, para
as reflexões que aqui propomos, no desenvolvimento do juízo moral,
uma vez que está diretamente envolvido com o processo de tomada
de consciência, fator importante para a descentração e para o
ajuizamento de novas perspectivas ao sujeito, o que nos remete,
também, às FE.
Mas, o que são e como se desenvolvem
as funções executivas?
As FE são habilidades reguladoras do comportamento
humano e do processamento de informações que são requisitadas
diante de uma situação nova ou de maior complexidade que exija
intervenções para além do processamento automático, ou seja,
333
quando o automatismo não é suficiente ou adequado perante as
exigências e demandas ambientais do momento (MARTONI et al.,
2016).
Essas habilidades possuem base no córtex p-frontal
humano e seu desenvolvimento é iniciado, em média, aos doze meses
de vida e algum declínio é perceptível na velhice, sendo possível
verificar um aumento de intensidade do seu desenvolvimento por
volta dos seis e oito anos de idade até uma estabilização aos vinte
anos, aproximadamente (LEÓN et al., 2013; MENEZES et al.,
2012). Destaca-se, ainda, que as FE são resultantes da atividade de
diferentes circuitos neurais, sendo necessário que o cérebro esteja
atuando em sua totalidade para gerar um funcionamento eficaz das
mesmas (BARROS; HAZIN, 2013).
Dito isso, ressalta-se que ainda não se tem um consenso
teórico de quais habilidades integram as FE. Alguns teóricos
consideram haver habilidades simples e complexas, ou seja, das
simples surgiriam as mais complexas; outros que teriam habilidades
quentes, ligadas mais aos aspectos emocionais e motivacionais, e frias,
ligadas aos componentes lógicos e abstratos; e outros que existiriam
três habilidades principais (memória de trabalho, controle inibitório
e flexibilidade cognitiva) e da integração delas surgiram habilidades
mais complexas (planejamento, resolução de problemas, tomada de
decisões, etc.) (BARROS; HAZIN, 2013; MARTONI et al., 2016).
Os modelos teóricos apresentam divergências quanto aos
componentes que fazem parte das FE. Tal variabilidade
pode se dar por diversos fatores considerados nos estudos,
como a idade dos participantes e o tipo de testes utilizados.
De acordo com Miyake et al., (2000), os principais
334
componentes das FE são: alternância do estado mental
(flexibilidade cognitiva); atualização e monitoramento
das informações (memória operacional); e inibição de
respostas prepotentes (controle inibitório). No modelo
proposto por Zelazo e Müller (2002), as FE são
consideradas quentes e frias. As primeiras envolvem
aspectos mais afetivos, como motivação e tomada de
decisão. Enquanto que as segundas envolvem principal-
mente aspectos cognitivos, como planejamento, uso de
estratégias, monitoramento e avaliação. Por outro lado,
León et al., (2013), dividem as FE em componentes
básicos ou simples, como flexibilidade cognitiva, controle
inibitório (incluindo autocontrole e autorregulação), e
memória de trabalho; e em aspectos mais complexos,
como resolução de problemas, raciocínio e planejamento
(FONSECA, 2015, p. 205).
Neste ensaio teórico o enfoque será direcionado para os
componentes: Controle inibitório; Memória de trabalho e
Flexibilidade cognitiva, pois são as habilidades que aparecem em
grande parte dos materiais teóricos disponíveis, como pertencentes
às FE.
O controle inibitório possui seu desenvolvimento mais
acentuado entre um e seis anos de idade, sendo a habilidade
responsável pelo autocontrole de ações e atenção, ou seja, ele inibe
pensamentos e distratores para auxiliar a permanência na tarefa,
mesmo que cansativa; impede o primeiro impulso do sujeito diante
de uma situação, para realizar o que é mais apropriado (BARROS;
HAZIN, 2013; MENEZES et al., 2012). A inibição auxilia que o
sujeito tenha mais concentração e foco na atividade que está
335
realizando, reflita sobre as consequências das ações antes de agir,
decida pela melhor opção diante do objetivo que se deseja atingir ou
a circunstância em que se encontra.
A memória de trabalho é uma das várias memórias descritas
e que é acionada por estímulos e necessidades específicas, ou seja, são
descritos diversos tipos de memória, como a de curto e longo prazo,
explícita e implícita, etc., porém, a memória mais relacionada às FE
é a de trabalho. Essa memória é a que evoca as informações de caráter
transitório, ou seja, aquelas que são solicitadas frequentemente e que
ainda podem ser manipuladas, além de permitir que o indivíduo seja
capaz de manter informações na mente, que estão sendo utilizadas
naquele momento, para ir atualizando-as ou enquanto se realiza
outra tarefa. (MENEZES et al., 2012). Em outras palavras, a
memória de trabalho é a responsável por auxiliar o sujeito a dar
continuidade no que está pensando, lendo, estudando, a fazer
cálculos mentais, lembrar sequências de acontecimentos; é recordar
as informações enquanto ainda estão sendo trabalhadas, pois
posteriormente, serão armazenadas e acessadas por outros circuitos
neurais, outras memórias.
Já a Flexibilidade Cognitiva possui seu desenvolvimento
mais perceptível em dois momentos distintos, aos quatro anos e dos
seis aos dez anos de idade dos sujeitos (BARROS; HAZIN, 2013).
Essa habilidade é responsável pela rápida capacidade de alternância
de foco atencional; adaptação flexível as novas e inesperadas
demandas; mudar de plano de forma rápida, quando o inicial não
obtém êxito ou se pensa em uma estratégia mais eficaz (LÉON et al.,
2013). A Flexibilidade Cognitiva é a habilidade do sujeito de “pensar
fora da caixa” (pensar algo que não é obvio, que sai do comum,
336
pensamento e soluções criativas para os problemas), de encontrar
rápidas soluções para problemas e imprevistos sem perder o objetivo,
é ser flexível.
Vale ressaltar que apesar das habilidades pertencentes as FE terem
sido expostas separadamente, elas não atuam sozinhas, mas sim em
concomitância e complementação entre elas e entre outros circuitos
neurais e habilidades, como por exemplo, a atenção, que de modo
geral, seleciona um determinado estímulo e informação para
processar de forma mais eficaz do que um outro aspecto não
selecionado no ambiente.
Desse modo, as FE são grandes responsáveis pela regulação e
controle do comportamento humano, sendo seu período sensível de
desenvolvimento nos primeiros 20 anos de vida de um sujeito,
momento no qual os estímulos disponíveis pelo meio,
intencionalmente ou não, permitem uma maior possibilidade de
desenvolvimento integral e completo das mesmas e, quanto mais
desenvolvidas elas estão, maiores os benefícios para a vida do sujeito,
uma vez que são responsáveis por habilidades humanas essenciais e
também para uma boa convivência em sociedade. Resumindo, as
FE: permitem o pensamento antecipado das consequências, antes de
agir impulsivamente; e, manter-se focado em sua ação apesar de
existirem coisas mais interessantes e atrativas para serem feitas
(controle inibitório); possibilita participação em debates e discussões
sobre os mais diversos assuntos; leitura e compreensão de textos
(informativos ou não); evocação de situações, lugares, caminhos,
informações, necessárias diariamente e de uso recorrente (memória
de trabalho); pensamento fora do comum (pensar fora da caixa) para
ultrapassar obstáculos e desafios inesperados; adaptação flexível de
337
estratégias; mudança rápida e precisa de foco atencional
(flexibilidade cognitiva), etc. (MARTONI et al., 2016; BARROS,
HAZIN, 2013; MENEZES et al., 2012).
As possíveis relações entre desenvolvimento moral,
autorregulação e funções executivas
Ao pensarmos nos processos de autorregulação, nas funções
executivas e na moralidade, seria possível traçar um paralelo e
relacioná-las? Se sim, em quais instâncias poderíamos correlacioná-
las? Tentaremos propor e percorrer um caminho visando traçar
possíveis relações entre o desenvolvimento moral rumo à autonomia
(PIAGET, 1932/1994), os processos de autorregulação necessários
para a tomada de consciência e as FE.
Como já apresentado, as FE compreendem um repertório de
habilidades e funções cognitivas que regulam as ações do sujeito de
forma com que ele possa desenvolver habilidades sociais e cognitivas
que o permitam conviver em sociedade. Para Piaget (1990), as
autorregulações são ações ininterruptas que o sujeito exerce sobre si
mesmo, de forma a gerar o equilíbrio cognitivo “a multiplicidade das
formas de regulação [...], constitui como que uma prefiguração do
que se observa no plano de comportamento, onde se reencontra essa
sucessão de estruturas incitadas por um funcionamento
autorregulador contínuo” (PIAGET, 1990, p. 66). Relacionando às
propostas piagetianas, temos a autorregulação, na perspectiva das FE,
como um componente que orienta o comportamento, a utilização
de regras, o controle de impulsos e a reflexão sobre as normas
(UEHARA; CHARCHAT-FICHMAN; LANDEIRA-FERNAN-
DEZ, 2013).
338
Ambas as propostas sugerem que o sujeito, por meio das
ininterruptas autorregulações, passa pelo processo de tomada de
consciência que vai da ação para a conceituação, possibilitando e
possibilitado pela equilibração majorante (PIAGET, 1977), que de
forma sucinta, ocorre quando o sujeito reconstrói novas estruturas
cognitivas que o possibilita avançar no seu desenvolvimento mental.
A partir deste paralelo, podemos refletir que em ambos os casos, as
autorregulações possibilitam com que o sujeito possa agir sobre si
mesmo, descentrando-se e assumindo novas perspectivas que não
apenas as suas. Aproximando um pouco mais o conceito de
compreensão às regras que as FE trazem em seu arcabouço de
habilidades, Piaget (1932/1994) afirma que as crianças desde muito
cedo já convivem com uma grande quantidade de regras e, dessa
forma, aprendem desde cedo a reconhecê-las, mesmo que em um
primeiro momento, as mesmas venham das ações de coação do
adulto, gerando pseudo equilibrações por ausência de
autorregulação. Piaget (1932/1994) afirma, ainda, que “toda moral
consiste num sistema de regras, e a essência de toda moralidade deve
ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras”
(p. 23). Tal respeito se dá por construção e autorregulação ativa na
interação com o meio, incluindo as habilidades cognitivas contidas
nas FE.
Piaget também nos diz que para alcançar plenamente a
autonomia moral o caminho que o sujeito deve percorrer é o da
cooperação.
Só existe completa autonomia moral na e pela cooperação.
A este respeito, a moral continua coisa social, mas a
sociedade não pode ser concebida como um todo, nem
339
mesmo como um sistema de valores inteiramente
realizados: a moral do bem elabora-se progressivamente e
constitui-se, em relação à sociedade, como uma forma
ideal de equilíbrio, dominando os falsos equilíbrios reais
e instáveis oriundos da coação (PIAGET, 1932/1994, p.
263).
O autor explica que a cooperação age sobre a tomada de
consciência, culminando em uma estrutura normativa que promove
o funcionamento da inteligência individual, possibilitando assim a
reciprocidade e o pensamento racional (PIAGET, 1998). Portanto,
“a tomada de consciência do pensamento próprio, com tudo o que
isso implica do ponto de vista do autocontrole, é estimulada pela
cooperação” (PIAGET, 1998, p. 142).
Pensamos que o autocontrole que Piaget propõe pode ser
relacionado ao processo de controle inibitório das FE, para tal,
vamos nos aprofundar um pouco mais em seu significado.
Controle inibitório é um outro componente das funções
executivas que possibilita ter domínio sobre a atenção, o
pensamento, o comportamento e as emoções, de tal
forma a conseguir evitar distrações, impulsos e ações
automáticas. Sem o controle inibitório não seria possível
focar a atenção quando se deseja, mudar hábitos e
escolher a forma de agir (NÚCLEO CIÊNCIA PELA
INFÂNCIA, 2016, p. 6).
Escolher a forma de agir, neste caso, envolveria as FE e o
juízo moral, por meio da autorregulação, resultando em possíveis
condutas sociais adequadas, considerando o contexto vivido.
340
Processos complexos se relacionam para que tais condutas ocorram
e quando há dificuldade com algum deles, a conduta do sujeito pode
ser afetada.
Relembremos o clássico caso de Phineas Gage, citado por
Damásio (1996), no qual Gage sofre um acidente tendo seu córtex
pré-frontal atravessado por uma barra de ferro. Ele sobrevive e parece
não apresentar comprometimentos cognitivos, mas, após a sua
recuperação, teve o seu sistema de controle inibitório e de tomada
de decisão (componentes das FE) afetados, o que afetou seu
comportamento ético e moral, tornando Gage uma pessoa
aparentemente sem princípios morais e incapaz de tomar decisões
consistentes e adequadas às situações sociais, o que lhe provocou
sérias dificuldades para viver em sociedade, nos onze decadentes anos
que viveu após o acidente.
Podemos observar que o controle inibitório é responsável
pelo controle sobre si e sobre suas ações, possibilitando ao sujeito
agir de forma refletida e crítica, diminuindo e controlando impulsos
e proporcionando o autocontrole necessário para que possa respeitar
o pacto civilizatório, expresso nas regras sociais pactuadas. Esta
habilidade é necessária, em especial para com crianças, uma vez que
favorece também a descentração e o respeito mútuo, e
consequentemente, o desenvolvimento do juízo moral.
Por meio da concepção piagetiana de autorregulação,
julgamos ser possível inferir que as FE parecem favorecer o
desenvolvimento do juízo moral, desde que propiciadas as situações
sociais necessárias, por meio de uma relação dialética de trocas
constantes e retroalimentação ativa. Neste sentido, se abre um vasto
341
campo de investigações científicas envolvendo o desenvolvimento
moral, a autorregulação e as funções executivas.
Considerações finais
Os estudos e pesquisas de Jean Piaget ao longo dos anos,
inegavelmente, trouxeram avanços significativos à compreensão do
desenvolvimento infantil e da construção do conhecimento que se
configuram, até os dias atuais, como objetos de investigação na
Psicologia e Educação, com destaque para os estudos acerca da
moralidade humana, foco deste ensaio teórico. Não obstante, as
pesquisas que focam as FE, sobretudo no campo da neuropsicologia,
cresceram exponencialmente nos últimos anos oferecendo dados
importantes para o entendimento das habilidades cognitivas dos
sujeitos e dos processos que interferem nas condutas e tomadas de
decisões, incluindo aquelas voltadas a assumir uma ou outra posição
moral.
A partir dessas afirmações buscamos voltar o olhar para essas
duas propostas e propor algumas possíveis relações entre elas,
sugerindo diálogos que possam favorecer ações, sobretudo, em
contextos escolares, objetivando o desenvolvimento moral e outras
habilidades e funções cognitivas, considerando a importância do
processo de autorregulação que permite a equilibração e o
autocontrole, possível pelo exercício do controle inibitório. Nas
palavras de Piaget,
A equilibração por auto-regulação constitui, assim, o
processo formador das estruturas que descrevemos e cuja
constituição a psicologia da criança nos permite seguir
342
passo a passo, não no abstrato, mas na dialética viva e
vivida dos sujeitos que se acham às voltas, em cada
geração, com problemas incessantemente renovados para
redundar às vezes, afinal de contas, em soluções que
podem ser um pouquinho melhores do que as das
gerações precedentes. (PIAGET, 2006, p. 139).
Estudar e refletir sobre tal desenvolvimento e funções nos
permitem, assim, inferir possibilidades de ações voltadas à educação
em valores nas escolas, que objetiva a construção ativa da autonomia
moral dos estudantes, com a intencionalidade, planejamento e
mediação do professor, com vistas à formação de sujeitos críticos e
atentos às questões sociais. Neste sentido, concordamos que:
A principal meta da educação é criar homens que sejam
capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o
que outras gerações já fizeram. Homens que sejam
criadores, inventores, descobridores. A segunda meta da
educação é formar mentes que estejam em condições de
criticar, verificar e não aceitar tudo que a elas se propõe
(PIAGET, 1982, p. 246).
Por fim, acreditamos que estamos tratando de campo fértil
para estudos e pesquisas que busquem relacionar o desenvolvimento
moral e as FE e esperamos ter despertado algum interesse sobre o
tema para que investigações empíricas possam ser realizadas,
contribuindo para o campo da psicologia e da educação, com
destaque para a educação em valores na escola.
343
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AS RELAÇÕES SOCIAIS E AS DUAS MORAIS:
UMA ANÁLISE DO DISCURSO DO SUJEITO
COLETIVO A RESPEITO DO SER EDUCADOR
EM INSTITUÕES DE ACOLHIMENTO
1
Carla Andressa Placido Ribeiro de FRANÇA
2
Introdução
Como é previsto em nossa legislação, a criança e o
adolescente, independentemente de sua condição social, são sujeitos
de direitos, dentre os quais o de se desenvolverem fisicamente,
mentalmente, moralmente, espiritualmente e socialmente. A ideia
atribuída pela lei exclui todo tipo de discriminação ou preconceito
da condição do nascimento de qualquer criança, no entanto,
pudemos perceber, em França (2012), que muitos dos
educadores/cuidadores e mesmo membros da equipe técnica e
presidentes da instituição acreditavam que os hábitos familiares dos
acolhidos os acompanhavam, de tal forma que era quase inevitável
1
Este texto foi adaptado da pesquisa de Doutorado intitulada Educação moral ou
moralização? Um estudo sobre o discurso e a prática de educadores em Instituição de
Acolhimento (FRANÇA, 2018).
2
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade
de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP), Campus de Marília, São Paulo, Brasil.
E-mail: carla.andressa@unesp.br
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não seguirem o mesmo caminho, como se esses hábitos fizessem
parte da criança, estando em seu “sangue”.
A esse propósito, Zappe, Yunes e Dell’Aglio (2016) remetem
a um imaginário social, em que concepções negativas sobre a
família das crianças e adolescentes institucionalizadas ou pobres;
segundo as autoras, tais concepções, quando expressas pelos próprios
profissionais de serviço de acolhimento, interferem negativamente
no processo educativo que visa ao desenvolvimento integral dessas
crianças e adolescentes, assim como ao seu processo de reinserção
familiar. Pudemos evidenciar esse fato em França (2012), em que
tais profissionais, guiados por essa crença, muitas vezes se tornavam
pessimistas ao pensarem em uma nova proposta de educação que
envolvesse a cooperação e o respeito mútuo. Por vezes,
mencionavam que, para essas crianças e adolescentes, era necessária
a imposição de sanções ou de recompensas, a fim de alcançarem a
obediência às regras, de maneira que a postura desses profissionais
era, frequentemente, guiada pela educação verbal, com elementos
moralizadores, e pelo respeito unilateral.
Diante disso, pensando nas possíveis concepções e práticas
apresentadas por educadores/cuidadores das instituições de
acolhimento para crianças e adolescentes, indagamos como se tem
concebido a educação moral para crianças e adolescentes que vivem
em serviços de acolhimento. Sabemos o quão delicado é pensar na
educação moral para as crianças e adolescentes acolhidos. Pensar nos
fatores e natureza do acolhimento que se deve considerar e
problematizar. Pensar em uma educação para a liberdade e para a
autonomia moral requer também pensar em quem educa e em quem
confere a autoridade a esses educadores.
349
Segundo Piaget ([1932]1994), a chegada à autonomia moral
resultante da cooperação e do respeito mútuo ocorre:
[...] quando a consciência considera como necessário um
ideal, independentemente de qualquer pressão exterior
[...] A autonomia a aparece com a reciprocidade,
quando o respeito mútuo é bastante forte, para que o
indivíduo experimente interiormente a necessidade de
tratar os outros como gostaria de ser tratado (p. 155).
É por esse motivo que Piaget defende a importância da
sociedade de crianças, no desenvolvimento moral das mesmas. E, no
âmbito educacional, seja em escolas, seja em famílias ou noutros
centros educacionais (como os serviços de acolhimento), o autor
sustenta que, para que a educação moral possa favorecer o
desenvolvimento da autonomia moral, ela deve, sobretudo, permitir
que a criança seja ativa em seu processo de desenvolvimento, tendo
responsabilidades e podendo exercitar a cooperação entre iguais.
A cooperação, a liberdade e a democracia na educação moral
Piaget não criou um método destinado à educação voltada
para a autonomia moral ou intelectual, entretanto, seus estudos
apresentam alguns apontamentos e indicações de métodos, e
procedimentos que condizem com o desenvolvimento moral e
intelectual autônomo e aqueles que apenas contribuiriam para a
permanência e reforço da heteronomia, em ambas as áreas.
Para uma educação que não proporciona nada além da
permanência da criança no seu estado de heteronomia, segundo
350
Piaget, basta-lhe sujeitar a criança a técnicas enraizadas no respeito
unilateral e no espírito coercitivo, ou àquelas anárquicas, laissez-faire,
cujas predisposições se originam de uma educação de liberdade
absoluta da criança ou que parta exclusivamente do interesse destas
(“lição de moral” do adulto derivada das experiências da criança).
Contudo, se vislumbramos o fim da educação moral como sendo em
si a construção de “personalidades autônomas aptas à cooperação”
(PIAGET, [1930]1996, p. 9), as práticas educativas devem ser
derivadas do respeito mútuo e das relações de cooperação e igualdade.
Como vimos anteriormente, ambas as morais coexistem na
criança, de forma que nenhuma realidade moral é inteiramente
exclusiva, ou seja, em planos diferentes, o indivíduo pode tender
mais para a heteronomia ou para a autonomia. No entanto, visto
que “[...] nenhuma realidade moral é completamente inata”
(PIAGET, [1930]1996, p. 2), quando se trata de finalidade da
educação moral, espera-se que a tendência à moral autônoma se
sobreponha à moral heterônoma, em suas tomadas de decisões e na
conduta social.
Entendemos como autonomia a capacidade do indivíduo de
se autogovernar, de tomar decisões por ele mesmo, enquanto, como
heteronomia, o ato de ser governado por outrem. Assim, na
autonomia moral, o indivíduo não é apenas capaz de escolher entre
o certo e o errado, porém, de saber ponderar as circunstâncias para
decidir qual a melhor ação a ser realizada; deve, portanto, em suas
tomadas de decisão, considerar o ponto de vista de outrem. De igual
modo, na autonomia intelectual, o indivíduo é capaz de tomar
decisões por conta própria, sabendo distinguir o que é verdadeiro do
que é falso, e seguir a sua opinião em busca da verdade. a
351
heteronomia intelectual tem o mesmo princípio da heteronomia
moral, ou seja, em ambas, o indivíduo é levado a seguir a opinião do
outro, sendo facilmente ludibriado por questões falsas (a existência
de Papai Noel, coelho da Páscoa) ou conduzido pela verdade do
outro, como na educação bancária discutida por Paulo Freire, na
qual o professor é o protagonista e o detentor do conhecimento,
tendo ele o papel de transmissor do conteúdo acadêmico, e o aluno,
o papel de receptor passivo.
Conforme Piaget ([1930]1996, [1935]1998), a criança deve
ser ativa no seu processo educacional e estabelecer relações entre
iguais, tanto quando se visa ao desenvolvimento moral quanto
quando se almeja o desenvolvimento intelectual. Nesse sentido, o
autor alude ao trabalho em grupo como um recurso apropriado para
se oferecer, no âmbito educacional, por permitir abranger diversos
aspectos condizentes ao alcance do desenvolvimento moral
autônomo. O autor destaca três aspectos contemplados no trabalho
em grupo, a fim de alcançar a cooperaçãoco-operarque o torna
fundamental para a promoção do desenvolvimento da autonomia
moral e intelectual: a comparação/imitação do outro permite se
diferenciar deste (descentração); o alcance da objetividade (pela
coordenação de perspectiva); e fonte de regras para o pensamento.
Vemos, pois, que a cooperão não age apenas sobre a
tomada de consciência do indivíduo e sobre seu senso de
objetividade, mas culmina na constituição de toda uma
estrutura normativa que sem dúvida coroa o funciona-
mento da inteligência individual, completando-a,
contudo, no sentido da reciprocidade, única norma
fundamental que conduz ao pensamento racional. Pode-
352
se, portanto dizer, a nosso ver, que ela constitui a
condição indispensável para a constituição plena da razão
(PIAGET, [1935]1998, p. 144).
Piaget também concorda com a ideia de que o outro
procedimento “ativo”, o qual torna propício o desenvolvimento da
autonomia moral, da liberdade e da democracia, é o chamado self-
government. Esse método consiste em conferir às crianças e aos
adolescentes uma parcela de responsabilidade, na disciplina. A
atribuição de certas responsabilidades à criança não exime a
autoridade do adulto, mas transforma o âmbito educacional em um
lugar propício à cooperação e ao respeito mútuo, onde a “[...]
ação dos indivíduos uns sobre os outros” (PIAGET, [1935]1998, p.
123).
Esse método, como qualquer outro, deve ser cuidadosa-
mente empregado, caso se queira o alcance dos fins voltados para a
autonomia moral e intelectual, pois, como nos alerta Kamii (1995),
um mau entendimento da teoria que sustenta um método e, por sua
vez, a distorção de aplicabilidade deste, provoca nada menos que o
contrário do fim esperado. No caso do self-government, como
tratamos aqui, deve-se ter clareza, por exemplo, do processo de
desenvolvimento da criança. Para Piaget,
[...] no que tange a idade, as respostas obtidas mostram
que, embora possa ter alguma aplicação desde os 7 ou 8
anos, o método do self-government adquire seu pleno
rendimento a partir dos 11 anos, aproximadamente. Essas
observações pedagógicas convergem de maneira notável
com o resultado de estudos psicológicos recentes sobre a
353
vida social da criança (PIAGET, [1935]1998, p. 120,
grifos da autora).
A criança pequena, imbuída de seu egocentrismo e, em
função da supremacia da regra e da autoridade adulta, seria capaz de,
por ela mesma, escolher punições pela reciprocidade, se lhes for
designado o papel de judiciária? Acreditamos que não: antes,
escolheria punições, por vezes, mais duras ou cruéis que os próprios
adultos. No entanto, esse fato não impede de que tal todo seja
empregado com as crianças pequenas, contudo, que devem ser
consideradas as particularidades dos processos de desenvolvimento,
para adequá-los, permitindo, com isso, um ambiente gerador
evolutivo de ações e relações entre os pares e os adultos,
compartilhando responsabilidades e cooperando entre si:
Os que trabalham pela libertação não devem aproveitar-
se da dependência emocional dos oprimidos, a qual é
fruto de uma situação concreta de dominação, que é a
deles, e que determinou neles uma visão inautêntica do
mundo. Utilizar a dependência que os constitui para dar
origem a uma dependência ainda maior é a tática do
opressor. A ação libertadora necessita reconhecer essa
dependência como ponto fraco, buscando transformá-la
em independência pela reflexão e pela ação (FREIRE,
2016, p. 138).
Nesse sentido, ambos os métodos descritos devem ser
empregados de forma coerente, a fim de que se constitua um
ambiente capaz de conduzir efetivamente à liberdade do pensamento
354
e ação do indivíduo, partindo muitas vezes da centração de seu
próprio ponto de vista, rebuscado pela heteronomia, para o avante
progresso da descentração de si e da autonomia e respeito mútuo,
oriundos do exercício das ações cooperativas. Conforme descreve
Paulo Freire, não por uma ão puramente conduzida, pois “[...]
ninguém pode ser libertado pelos outros”, e nem por uma ação
solitária, visto que “[...] ninguém pode se libertar apenas pelos
próprios esforços”, mas, antes, “[...] por meio de uma ação e uma
reflexão conjuntas” (2016, p. 139), por uma liberdade em
comunhão.
Nesse mesmo princípio de uma educação pela liberdade e
democracia, Janusz Korczak
3
, juntamente com Stefa Wilczinska,
fundam o orfanato Lar das Crianças. Esse orfanato, situado em
Varsóvia, Polônia, e mantido por judeus abastados, era destinado às
crianças e adolescentes (até 14 anos) judias, advindos de lares
destruídos ou órfãos.
O Lar das Crianças se constituía de um ambiente educa-
cional em que a criança era vista como protagonista de seu processo
de aprendizagem, orientado pelas ideias de Korczak de uma
educação para a liberdade e o alcance da felicidade, na qual as
crianças teriam a oportunidade de desenvolver o que escolheram
fazer e ter prazer no que tem de ser feito; poder criar e chegar a uma
nova ideia, ter o prazer no crescimento.
3
Janusz Korczak cujo verdadeiro nome era Henryk Goldszhmit, nasceu em 1878
e era filho de judeus que viviam na Polônia. Korczak era médico e entrou em
contato com as obras dos intelectuais da Escola Nova quando, por influência de
Wilczinska, começou a frequentar a faculdade de pedagogia. Escreveu diversas
obras, nas quais discutia centralmente sobre o universo infantil (por meio de obras
literárias e teóricas).
355
Korczak proclamava a criança como um ser racional, que
compreende bem suas necessidades, dificuldades e
fracassos. Isto significa que ordens despóticas e leis
dogmáticas não são adequadas ao ambiente educativo,
sendo preferível a compreensão e a confiança. Acreditava
que com a justiça para com a criança, seria lançada a base
para a justiça social; se a criança crescesse nem ambiente
onde os adultos fossem justos com ela, sem oprimir sua
liberdade, quando crescida, ela também seria justa com
seu semelhante e livre dos complexos que impulsionam o
sentimento de vingança. (SINGER, 2010, p. 78).
Podemos afirmar que a ideia de educação de Korczak,
implantada no Lar das Crianças, corresponde ao método self-
government supracitado. Em busca de uma educação democrática,
Korczak possibilitava à criança ter voz nas próprias decisões e nas
decisões coletivas.
O Lar das Crianças funcionava como uma República de
Crianças. Nessa instituição, as crianças “[...] realizavam os principais
trabalhos, de forma rotativa, e assumiam o governo através de três
instituições básicas: a Constituição, o Parlamento e o Tribunal
(SINGER, 2010, p. 80). Assim, as crianças, com Korczak,
Wilczinska e os educadores da instituição, compartilhavam
responsabilidades, no governo da instituição, todos se sujeitavam às
normas, que, por sua vez, eram constantemente postas em discussão.
A participação das crianças como juízas na instância do Tribunal
ocorria de forma provisória e por meio de sorteio; essa instância
tinha como objetivo:
356
[...] proteger todo habitante do orfanato e seus direitos,
principalmente os mais fracos e menos espertos. Visava
também preservar a ordem e a higiene, cuidando dos
pertences da propriedade. Priorizava o perdão ao infrator,
mas previa o reconhecimento da culpa e a penalidade que
graduava da publicidade da infração à expulsão do
orfanato. Para chegar a alguma conclusão sobre o caso, o
Tribunal valia-se de investigações, interrogatórios e
pesquisas [...] Stefa também fazia parte do Tribunal,
como secretária (SINGER, 2010, p. 80).
Segundo Singer (2010), as normas da instituição eram
regularizadas por meio da Constituição e decididas pelo Parlamento.
A formação do Parlamento se dava por vinte deputados (todos
eleitos entre os membros do orfanato), por Korczak (presidente
honorário) e por um secretário. Dentre os membros do Parlamento,
eram escolhidos cinco integrantes para compor uma Comissão
Legisladora e um vice-presidente, formando, assim, um Senado.
Singer (2010) completa que, além dessas práticas, a
instituição ainda tinha outras fontes em que as crianças e os
educadores poderiam se expressar, como dois jornais, os quais
traziam acontecimentos importantes da instituição que ocorriam no
período de uma semana; as listas, que eram penduradas no prédio e
proporcionavam a circulação imediata de informações; e uma lista
especial em que os membros do orfanato podiam agradecer alguém
ou pedir desculpas, intitulada “Agradeço e Peço Perdão”.
Os efeitos educativos da instituição puderam ser constatados,
segundo Arnon (2005 apud, SINGER, 2010), pelo acompanha-
mento das crianças que, ao completarem quatorze anos, saíam da
357
instituição, como um documento publicado por Korczak, em 1932,
mencionando que dos, 455 egressos do orfanato, “[...] apenas sete
não haviam conseguido construir uma vida digna e feliz” (p. 82).
Korczak demonstra, em seu trabalho no orfanato e em suas
obras, a importância de se conhecer a criança e tratá-la como um
todo, educando sua alma e seu corpo. Para ele, a infância não é um
simples período de transição, mas um período pleno em si, que, por
ele, faz-se capaz compreender o homem, a humanidade.
As crianças existem e hão de existir sempre. Não caíram
de repente do céu, para uma rápida visitinha. Uma
criança não é um vago conhecido, de quem nos podemos
desvencilhar, num encontro ao acaso, com um simples alô
e um sorriso. As crianças constituem uma ponderável
parcela da humanidade, da população, da nação, do
conjunto dos habitantes de uma cidade; são nossos
concidadãos, nossos companheiros de todos os dias.
Existiram sempre, existem, e continuarão existindo
(KORCZAK, 1986, p. 85).
Em sua obra Quando eu voltar a ser criança, Korczak mostra
os prazeres, sonhos, tristezas e dificuldades das crianças, em um
mundo no qual os adultos têm convicção de que eles são os mais
importantes e soberanos, que necessitam se esforçar para descer ao
nível de compreensão da criança. Nessa obra, o autor não dialoga
com a criança, contudo, voltando a ser uma, voz a ela e ilustra o
universo infantil, as reflexões e os problemas enfrentados com sua
sensibilidade, impulsos, destrezas e, também, inseguranças e
fragilidades. O texto traz reflexões, como estas: “Por que somos tão
358
frequentemente injustiçados? Por que é permitido castigar injusta-
mente uma criança, e isto é considerado coisa sem importância, e
ninguém se responsabiliza perante ninguém por tal injustiça?
(KORCZAK, 1981, p. 67). E: “agora entendo o que acontece com
as crianças: quando alguma coisa fracassa, logo falha também isto e
aquilo, e mais aquilo outro. Imediatamente a gente perde a
confiança em si mesmo(KORCZAK, 1981, p. 29).
Podemos concluir, segundo Piaget, que a participação da
criança em sua vida educativa, podendo usufruir de experiências
morais e do uso de sua liberdade, exercitando a cooperação com seus
pares e responsáveis legais, é um exercício de fundamental
importância para o alcance de sua autonomia moral.
Para adquirir o sentido de disciplina, de solidariedade e
de responsabilidade, a escola Ativa esforça-se em colocar
a criança numa situação tal que tendo que experimentar
diretamente estas realidades espirituais, descobrindo
pouco a pouco as leis constitutivas (PIAGET, 1967, p. 35,
apud MENIN, 1985, p. 33).
Contudo, acreditamos que, para isso, haja a necessidade de
serem conhecidas plenamente as estruturas de funcionamento e
desenvolvimento do indivíduo, identificando e respeitando suas
particularidades físicas, mentais e emocionais, não limitando ou
impedindo que construa ou escolha por ele mesmo o que é capaz
de fazer sozinho, mas, antes, encorajando, estimulando e desafiando,
para que avance rumo ao desenvolvimento de sua autonomia moral.
Propomo-nos apresentar nos próximos itens o resultado de
um estudo empírico em que buscamos compreender se educadores/
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cuidadores contratados para exercer trabalhos em instituições de
acolhimento para crianças e adolescentes em situação de risco social
diferenciam o ser educador nesse ambiente de ser educador em
outros ambientes, como por exemplo, em escolas ou em famílias,
pela condição de vulnerabilidade e nascimento dos acolhidos.
Aspectos metodológicos
A escolha das instituições a serem pesquisadas, ocorreu a
partir de uma pesquisa prévia por meio de coleta de dados que teve
como objetivo avaliar e selecionar, dentre os Acolhimentos
Institucionais (Abrigos Institucionais) do Estado de São Paulo,
aqueles que manifestavam ter uma prática educacional mais
tradicional (moralização) e outra mais ativa (ambiente sociomoral
cooperativo). O procedimento metodológico para essa etapa ocorreu
por meio de entrevista online (Google docs). Das 163 instituições do
estado de São Paulo contatadas (representando uma amostra de 30%
dos Acolhimentos Institucionais), 22 aceitaram participar
respondendo ao questionário online (SurveyMonkey).
As duas instituições que obtiveram a menor e a maior
pontuação, identificadas como Instituição A e Instituição B,
respectivamente, na entrevista online da primeira etapa da pesquisa
empírica, foram contatadas e convidadas a participar da segunda
etapa. Foram-lhes explicados os objetivos e procedimentos de
pesquisa, os quais incluíam nossa presença por uma semana (6 dias
consecutivos) sendo um período de aproximadamente 6 horas
diárias (totalizando 36 horas, em cada instituição), com observações
360
da rotina, entrevista e análise de documentos. Ambas as instituições
aceitaram participar da Etapa II da pesquisa empírica.
Para a discussão deste capítulo, destacamos a segunda
questão pertencente à entrevista com os funcionários de ambas as
instituições. Tal questão apresenta como objetivo entender a visão
dos educadores sobre o universo do educar em instituições de
acolhimento, e se identificam alguma especificidade na educação
desse público.
As respostas apresentadas seguem a metodologia do Discurso
do Sujeito Coletivo (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005); assim, geramos,
para a questão aqui exibida, os Discursos dos Sujeitos Coletivos
(DSC), extraindo de cada depoimento três figuras metodológicas: a
Ideia Central (ICdescrição do sentido do discurso), a Ancoragem
(AC manifestação explícita de uma teoria, ideologia ou crença) e
as Expressões Chaves (ECHtrechos literais do discurso).
O Discurso do Sujeito Coletivo, segundo Lefèvre e Lefèvre
(2005), é um modo de apresentarmos a fala da coletividade, de
forma direta. Portanto, a interpretação de nossos dados não se
realizada de modo a dar voz a cada sujeito da pesquisa, de forma
individual, mas analisaremos o pensamento presente na coletividade
de cada instituição pesquisada.
Discurso do sujeito coletivo a respeito do ser educador
em instituições de acolhimento
Questão:
Para você, o que é ser um educador em uma instituição
de acolhimento? Vo acredita que ser educador em
361
abrigo seja diferente de ser educador em outro lugar, com
outras crianças? Por quê?
Quadro 1 – Instituição A
Ideias Centrais
(IC)
Discurso Do Sujeito Coletivo
A- Aprender e
ensinar
Aqui eu aprendendo, como eu ensinando. Eu acho
que aqui eles precisam mais de amor.
B- Dar atenção,
cuidado, ajuda,
educação,
É dar uma atenção maior, auxiliar bastante na vida deles,
como uma ajuda. Cuidar do crescimento deles, de tudo, na
evolução deles, na educação de um modo geral. Ser um
educador que saiba realmente passar alguma coisa pra elas,
que elas possam entendendo também. É o cuidar, é o
educar, m que querer muito, tem que gostar daquilo que
faz pra que certo.
C- Referência
para o acolhido
É ter a responsabilidade da referência que é ainda maior,
mostrar pra criança no acolhimento as coisas que pode, as
coisas que não pode é uma parte inerente do profissional
que aqui dentro. Se a criança vai seguir, ótimo, se ela
não vai seguir ela, em algum momento da vida vai lembrar
que alguém falou isso pra ela. Às vezes vai ser a única
referência que essa criança vai ter.
D- Diferente
da nossa casa
Eu acho que sim, porque aqui a gente lidando com
famílias diferentes. Não sei se é porque o deles, de ter
passado, ido pra um abrigo, a própria família, eu acredito
que eles são mais teimosos.
E- Igual nossa
casa
Não, porque eu acho que a gente tem que educar de um
modo geral como se fosse tanto dentro da nossa casa
como fora né. É, eu procuro educar como se tivesse
educando minha filha, da mesma forma. É passar um
pouquinho pra eles na parte de educar, o que é certo, o
que é errado né, explicar né, quantas vezes for necessária,
passar pra eles isso né, as experiências. Acho que todo
mundo tem que ser igual, você tem que ser educador, seja
362
a criança qual for, você vai educar aquela criança pra ela
chegar um dia ser alguém, eu tento passar pra eles o que eu
passo pro meus filhos, se eles vão seguir ou não
passando.
F- Olhar mais
profissional
Eu acredito que sim, são outros enfrentamentos. Quando
aparece alguma dificuldade, você tem que trazendo pra
equipe, porque é uma decisão de todos né, então eu acho
que que, que a gente diferencia, não tem que ser o
achismo. A gente errar enquanto e, a gente corrige, mas
aqui pode ser que o erro não pra corrigir.
G- Como
qualquer
relação entre
adulto e
“menor
Não vejo diferença, acho que é, na relação de um adulto
pra um menor, seja esse adulto qual for, seja a ocupação
que ele tiver né, acho que vai se dar nessa relação do adulto
pro pequeno.
Fonte: Dados da pesquisa
Quadro 2 – Instituição B
Ideias Centrais
(IC)
Discurso Do Sujeito Coletivo
A- Dar: cuidado;
atenção; limites;
regras; base.
É a pessoa que pra elas talvez uma visão de cuidados
que elas ainda não tiveram, porque na minha visão, eles
vieram de, de um mundo que não tem limites, muitos
que vieram aqui, eles não m regras. Então, é você
acolher, é você dar amor, você dar carinho, é você
entender ele, mas também é você não passar a o na
cabeça, é como você ser uma mãe.
Essa pessoa é a que o acolhido vai ter como base né,
porque quando ele chega aqui é uma coisa nova, ele vai
longe de todos né, e de tudo e é o nosso papel de
transformá-los né, então ajudar eles nessa transformação,
fazer com que eles saiam daqui melhores.
B- Ensinar para a
vida
Pra mim é ensinar pra vida né, mas pra isso precisa de
um projeto bem direcionado. Eu tenho uma visão
363
diferente do que é aqui, eu acredito que o educador é a
função toda em volta da criança não dos afazeres da casa,
eu acho que um educador é aquele que sempre
presente em todo o momento, um educador é mais pra
orientar, ver se eles o tomando banho bem tomadinho,
e a ensinar eles arrumar uma cama é, cuidar se bem
escovadinho o dente, olhar cadernos junto com eles,
procurar fazer algumas atividades, do jeito mais, mais
básico que é o que eles deveriam aprender em casa,
aqueles básico do básico, ah, é, cuidar das próprias coisas
é, não responder. Eu acho que isso seria o educador, na
verdade aqui a gente tem muitas funções e não consegue
ser o educador.
É ensinar eles, como um filho, que o mundo vai te falar
não, mas você força pra eles poderem levantar, é
ensinar eles sobre educação, sobre serviço, sobre a vida de
verdade e não você fazer tudo pra eles, de mão beijada.
Eu quero que eles se espelham em mim, ou em todos os
funcionários, cada um tem uma experiência de vida,
então vai proporcionando essas vivências e vai passando,
pra eles ir nos observando e poder fazer isso depois que
ele sair daqui, porque a gente aqui pra ajudar vocês, a
gente aqui pra ensinar vocês como é a vida, cada
educador contribui um pouquinho e nisso eles podem
fazer uma sopa e levar pra vida.
C- Olhar
profissional das
necessidades da
criança e do
adolescente
Muitas crianças aqui vêm de uma situação totalmente
diferente, do que a gente acha ou supõe que seria
normal, mas que o papel do educador é sempre junto
dos acolhidos né, é, tendo um olhar, não um olhar
fraternal, não um olhar familiar né, tendo esse olhar
profissional né, mas que se entenda o que que é infância,
o que que é adolescência, quais são os fatores necessários
né, pra um bem-estar de uma criança de um adolescente.
364
D- Como em
uma casa
É como se fosse uma casa não como uma escola, porque
devido à história de vida, eles, aqui, são bem mais
rebeldes do quem eles são na escola; aqui, eles às vezes
até agridem os tios.
Não é muito diferente de creches e escolinhas infantis,
mas é, é mais parecido com pais e mães mesmo. Em
relação à casa, eu acho que a gente tem que ser muito
parecido, tipo, eu trato eles da maneira que minha mãe
me tratava, para que eles saibam o que eles m que fazer
o que não m que fazer, porque têm que fazer e o
porq não têm que fazer.
E- Diferente de
escola
Não, eu vejo que existe uma especificidade do educador
de um abrigo, não que assim, a parte pedagógica seja
mais principal do que na escola, mas ela existe né, eu
acho que assim, que aqui no abrigo a gente acaba vendo
mais é a questão do educar para a vida. O grupo que está
aqui dentro acaba refletindo na sociedade, os valores que
a gente julga como, ideais é trabalhar aqui, que é a
amizade, respeito, dar e receber o carinho, que muitas
crianças foram privadas disso, a gente vai se construindo
de acordo com essa experiência que a gente vai passando.
É muito diferente, porque, um exemplo, crianças que
frequentam apenas a creche o se prendem à gente
né, porque tem a mãe, tem o pai, aqui não, então eles
têm a gente como base de tudo né, eles veem a gente
como exemplo. Então, aqui a gente tem que ter um
cuidado mais especial né, a gente tem que tomar cuidado
com que a gente fala, sabe, como a gente age, como a
gente se comporta. Aqui você diretamente vai
influenciar, do que vo vai passar de informações pra
eles na vida futura deles.
Além disso, ser um educador em escola, eu tenho um
plano pedagógico que eu tenho que seguir, aí, dentro
desse plano pedagógico, eu faço a minha maneira, da
365
minha forma. Aqui eu não tenho um plano pedagógico,
aqui eu não tenho um plano, não tenho um norte que eu
possa seguir, aqui eu vou usar o meu bom senso, mas
meu bom senso é interferido por outros, por exemplo, se
eu direcionando uma criança vem outro e outra
ordem, outro direcionamento.
F- Diferente de
nossa casa
É bem diferente, muito diferente, porque aqui eles
vêm criados, algunsvêm sabendo como é a vida, os
adolescentessabem o que é certo, o que é errado, as
pequenininhas ainda tão em fase de crescimento, mas
têm uma certa personalidade criada, que é diferente de
casa, que você pega a criança cru e molda ela segundo o
que vo quer que ela seja, aqui a gente protege esse
molde e tenta moldar o restinho que falta à nossa
maneira né.
Aqui você tem que educar primeiro, toda a educação do
bom dia, boa tarde, obrigado, por favor. Aqui vo não
pode falar não pra eles, tudo que eles pedem você dá,
porque o prefeito não deixa, é tem a regra do coitado.
Não pode dar um grito. Você tem que prestar muita
atenção no que você fala pra eles porque existe é, uma lei
em cima da gente, existe coordenador, existem
psicólogos que cobram isso se eles reclamarem, vai cobrar
isso da gente.
Você ser educador em casa como pai e mãe, você
também direciona seu filho pra vida, deveres e direitos,
certo? Como que eu vou aqui deveres e direitos?o
fomos capacitados, não fomos direcionados; então, cada
um vem aqui, faz à sua maneira, cada plantão tem uma
visão diferente e as crianças são as mesmas. Olha a
cabeça dessas crianças, vários plantão, vários grupos, cada
um uma palavra, cada um faz o seu e são experiências
diferentes.
366
Na minha casa se eu dei uma ordem, aquela é cumprida,
não sou desautorizada e aqui não acontece, a gente tenta
manter e dizer não aqui, diz sim embaixo, então a
gente não tem o respeito da criança que é o mesmo
respeito que temos na casa da gente, porque sabemos
nos comunicar.
Fonte: Dados da pesquisa
Como salientado anteriormente, o nosso objetivo, com essa
questão, consistiu em entender a visão dos educadores sobre o
universo do educar em instituições de acolhimento, e se identificam
alguma especificidade na educação desse público diferenciando da
educação estabelecida em outros ambientes educativos, como escolas
e família.
A Instituição B apresentou 6 IC; as IC A e B indicaram a
função como tendo um papel global de educação, tanto em relação
ao dar cuidado, atenção, limites, regras e base/referência para ajudar
na transformação de vida, como em relação à orientação para a vida,
no sentido de aprenderem quais as cobranças do mundo e quais as
atitudes esperadas diante dessas cobranças. As IC de C a F
apresentam discursos voltados às semelhanças e diferenças da
educação em instituições de acolhimento, com respeito à educação
em outros lugares, com outras crianças. Nesse ponto, as opiniões se
mostram bem divergentes, segundo eles, na educação em instituições
de acolhimento: deve-se ter um olhar profissional nas escolhas das
ações com as crianças e adolescentes, sabendo diferenciar as
necessidades de intervenção para cada faixa etária; ela não se difere
de como deve ser uma educação em um lar comum, nesse sentido,
o educador baseia suas ações em experiências pessoais de educação
com a mãe; diferencia-se de uma escola, por exemplo, pois as
367
crianças das instituições de acolhimento contariam apenas com a
referência dos profissionais das instituições e não de seus pais, além
disso, na escola, haveria um plano pedagógico para direcionar a
educação dessas crianças, distintamente do acolhimento, onde se usa
do “bom-senso” de cada um, a fim de efetivar tal educação; todavia,
a IC que diz que difere da educação que oferecemos, em nossa casa,
justifica que as crianças chegam à instituição com influência de sua
família de origem, as quais, muitas vezes, se distinguem das
idealizadas pelos educadores e, diante disso, encontram dificuldades
para os educarem segundo suas perspectivas.
Do mesmo modo, as IC disponibilizadas pela Instituição A
mostraram divergência de opiniões. Nas IC A e B, que retratam o
papel do educador na instituição, as respostas se direcionaram para
um sentido mais afetivo, como: a criança institucionalizada necessita
de mais amor, de maior atenção. Entendem a educação como forma
de auxiliar as crianças em sua vida, “como uma ajuda”, e na IC C,
como uma referência maior que deve mostrar para o acolhido o que
pode e o que não pode fazer. As IC de D a G indicam as diferenças
e semelhanças da educação nos acolhimentos, em relação àquela
oferecida em outras instituições educativas, descrevendo que é
diferente da nossa casa, por virem de famílias diferentes e serem mais
“teimosos”; deve ser como a nossa casa, passando o que é certo e o
que é errado; deve ter um olhar mais profissional, pois são
“enfrentamentos diferentes”, os quais necessitam do olhar de toda a
equipe, para se evitar erros e o uso do “achismo”; é semelhante a
qualquer relação entre o adulto e um “menor”.
Em geral, ambas as instituições seguem a mesma tendência
de ideia do que é ser um educador; para elas, esse profissional deve
368
ser uma referência à criança e ao adolescente, acolhendo-os e
ensinando-lhes uma direção a seguir na vida.
Assim, diante dos discursos, mesmo com diferença de
perspectiva do que é ser educador, em instituição de acolhimento,
podemos observar que as ações se equivalem, no sentido de dar um
direcionamento para as crianças e adolescentes seguirem, a fim de
“ser alguém” no futuro, “não sair cru” da instituição, aprender “algo
bom”, “saber o que é certo e o que é errado”. E, muitas vezes, em
ambas as instituições, esses direcionamentos são feitos por meio de
conselhos e exemplos de vivência dos funcionários, os quais
acreditam ser referência para os acolhidos. Sem dúvida, pensamos
que o educador, pelo simples fato de ser visto como uma autoridade
pela criança ou pelo adolescente, torna-se uma referência a ser
seguida ou a ser superada. No entanto, bastariam os conselhos e
vivências dos educadores como método educativo, na busca a
autonomia das crianças e adolescentes? Como promover a
autonomia sendo o adulto o protagonista e detentor do
conhecimento a ser “passado para a criança e o adolescente?
Podemos concluir que apesar de ocorrer por parte de alguns
funcionários o interesse, mesmo que em germe, em promover um
ambiente favorável ao desenvolvimento integral da criança e do
adolescente, em ambas as instituições houve discursos que
evidenciaram uma concepção de educação moral como um processo
de moralização no qual devem convencer os acolhidos de que “o
melhor para suas vidas” se se adequar e seguir as regras
preestabelecidas na sociedade e nos grupos sociais em que estão ou
estarão futuramente inseridos, acatando às ordens vindas de
autoridades.
369
Dessa forma, os modelos educacionais presentes em
acolhimentos institucionais, embora por vezes se mostrem diferentes
no modo de conduzir suas práticas, pouco se diferenciam na
concepção e bases filosóficas para a execução de sua Pedagogia. São
movidos por uma forte influência cultural de natureza educacional
tradicional moralizadora, que favorece o predomínio das relações de
coação e respeito unilateral.
Referências
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370
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371
https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p371-393
AUTONOMIA MORAL E INCLUSÃO: O QUE
DIZEM ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL
SOBRE AS CRIANÇAS COM NECESSIDADES
EDUCACIONAIS ESPECIAIS INCLUÍDAS?
Cristiane Pereira MARQUEZINI
1
Introdução
O texto apresenta análise de narrativas de crianças e
adolescentes, estudantes do Ensino Fundamental I e II, sobre a
inclusão de crianças com necessidades educacionais especiais
2
nas
salas de aula que frequentam. As produções discursivas foram
obtidas por intermédio de entrevistas realizadas em pesquisa que
investigou as relações entre as tendências do desenvolvimento moral
(PIAGET, [1932]1994) e as disposições inclusivas dos escolares.
Dessa forma, amparados nos conceitos de autonomia e
heteronomia moral, investigamos se a moralidade dos educandos
seria um fator contribuinte para o acolhimento das diferenças na
1
Pós-Doutoranda pela Faculdade de Ciências e Letras (FCL), Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Assis, e
Docente em regime de substituição no Departamento de Psicologia Social e
Educacional da mesma instituição, São Paulo, Brasil.
E-ma
il: cristiane.marquezini@unesp.br
2
O termo crianças com necessidades educacionais especiais foi substituído por
crianças com deficiência, contudo, no corpo do texto optamos por não alterar
a denominação em função de terem sido utilizados na pesquisa e,
principalmente, nas histórias contadas às crianças.
372
educação inclusiva, pois entendemos que a autonomia moral e os
princípios inerentes a ela, tais como: a cooperação, a igualdade
(direito) e a equidade (justiça), se revestem de fundamental
importância para uma educação inclusiva com qualidade.
O estudo foi efetuado em uma escola com proposta
educacional diferenciada de São Paulo (SP), cujo processo de
inclusão de crianças portadoras de necessidades educacionais
especiais (NEE) ocorria de forma satisfatória. Entendemos por
satisfatória, a inclusão, onde todas as crianças, independente de
possuírem diagnósticos ou não, são tratadas entre os pares e por seus
professores de maneira equitativa, justa, cooperativa e respeitosa. Tal
fato deveria ser condição intrínseca a todas as escolas, no entanto,
percebemos que isso não ocorre.
Apesar da proposta de educação inclusiva ter tomado força
com as políticas públicas nacionais e internacionais como a
Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), a Política Nacional de
Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL,
2007) e, recentemente, o Estatuto da pessoa com Necessidades
educacionais especiais (BRASIL, 2015), as práticas, infelizmente,
vem se mostrando ainda ineficazes.
Ainda, temos assistido um cenário desolador na tentativa de
implantação de novas políticas púbicas, desvelando o que pode
significar um retrocesso em termos de inclusão. Estas, se
implementadas, orientam que crianças com necessidades
educacionais especiais, frequentem, novamente, salas de aula
especiais (Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020).
Pensamos que a inclusão escolar é parte da inclusão social,
estas práticas são de extrema pertinência numa sociedade que se quer
373
democrática. (BRASIL, 2015). Segundo Mantoan (2003), a
inclusão escolar consiste numa prática em que todas as crianças
devem frequentar as salas de aula do ensino regular, de forma que
ninguém fique de fora da escola tradicional. Ainda, segundo a autora,
o ambiente escolar é que deve se reorganizar para atender à
necessidade de todas as crianças, já que a inclusão não afeta apenas a
criança incluída, mas todos os alunos, professores e gestores. Além
do mais, a escola é o espaço ideal para que todos os pares de crianças
convivam de forma a eliminar qualquer manifestação de
discriminação, garantindo o desenvolvimento integral dos pequenos.
Contudo, apesar da necessidade e da legalidade dessa prática,
temos assistido a movimentos de resistência camuflada ou explícita
a ela.
Este fato foi confirmado na literatura científica sobre a
temática, que alerta para o fato das dificuldades no cenário inclusivo.
Pesquisas evidenciam que os educadores enfrentam dificuldades no
manejo didático, metodológico e, principalmente, nas relações
sociais, que têm implicações diretas na convivência com às crianças
com necessidades educacionais especiais que passam a frequentar a
instituição escolar. Os estudos apontam ainda que os pais e às
crianças possuem, igualmente, problemas adaptativos nas relações
com as crianças incluídas. (OLIVA; 2016, PIVA; 2015, NUNES;
SAIA; TAVARES, 2015; FRAGOSSO; CASAL, 2012;
GALCERAN, 2012, SEKKEL; ZANELATTO; BRANDÃO,
2010; CROCHÍK, 2009, MACHADO, 2006; MACEDO, 2005).
Entendemos essas atitudes de resistência ao convívio com as
diferenças como juízos e condutas possivelmente preconceituosos ou
374
de discriminação dos demais membros da instituição escolar em
relação às crianças incluídas.
Postas estas questões, verificamos, também na literatura
científica, trabalhos que analisaram as relações preconceituosas no
cenário da educação inclusiva fazerem essas interlocuções por
intermédio da sociologia e da psicanálise. Como buscávamos
entender o preconceito numa vertente psicológica, procuramos
outras respostas para a sua constituição, além das já construídas.
Dessa forma, recorremos à psicologia moral, especificamente,
a teoria do desenvolvimento moral construída por Piaget
([1932]1994). Optamos por esse referencial teórico, pois
entendemos que na inclusão, a escola e todos os seus atores sociais
devem reorganizar, reconstruir e adaptar as relações. A citada teoria
pauta-se, exatamente, na construção das relações sociais,
conceituando a existência de duas formas delas ocorrerem: por meio
do respeito mútuo ou do respeito unilateral. Estes, por sua vez,
resultam no desenvolvimento de duas morais, respectivamente, a
moral da heteronomia e a moral da autonomia que podem ser
descritas, grosso modo, como princípios orientadores das formas de
relação com o outro. Dito de outra maneira, a moral mais evoluída,
com tendências à autonomia, apresenta princípios baseados na
justiça, na cooperação, na igualdade ou equidade. Pensamos que
esses reguladores das relações sociais são essenciais para a inclusão e,
ainda, postulamos que a educação escolar formal é fundamental na
construção deles. Assim, hipotetizamos, que a psicologia moral pode
oferecer subsídios para o entendimento do fenômeno e justificamos
nossa escolha por ele.
375
Passaremos, doravante, a descrever de forma mais elaborada
a teoria do desenvolvimento moral e suas implicações nas formas de
relações entre pares. Em seguida, discorreremos sobre o método
utilizado em nosso estudo e alguns resultados encontrados por
intermédio dele. Por último, exibiremos as falas apresentadas pelas
crianças entrevistadas com tendências à inclusão das crianças com
necessidades educativas especiais, inseridas na escola regular.
Desenvolvimento moral e tendências à inclusão
A tese sobre o desenvolvimento moral construída pelo
epistemólogo Jean Piaget é descrita na obra O juízo moral na criança
(PIAGET, [1932]1994). O referido estudo é pioneiro na temática
do desenvolvimento moral. Nela, o autor discorre minuciosamente
sobre a consciência e a obediência às regras. Atentando para o fato
de que nesse processo duas morais são constituídas.
A primeira delas é a moral da heteronomia, cuja formação é
própria de um tipo de respeito o unilateral. Nesse tipo de relação,
as regras morais são impostas de forma autoritária pelos adultos às
crianças, sem que haja reflexão ou argumentação por parte das
últimas. Também chamada de moral da obediência ou do dever,
impõe um sem número de regras para que a criança possa conviver
socialmente. A criança pequena, que se encontra imersa no
egocentrismo, não tem estruturas intelectuais ou afetivas para
entender as regras ou reivindicá-las, já que, ao não se diferenciar do
mundo, acaba por converter as regras como sendo naturalmente suas.
Assim, ela as obedece cegamente, enquanto se encontra sob
vigilância do agente da coerção. Todavia, como tais regras não estão
internalizadas e não fazem parte estruturante da personalidade da
376
criança, ela as burla assim que a figura de autoridade não está por
perto.
A outra moral, chamada de moral da autonomia, é
construída ao longo das relações sociais da criança. Ela é resultado
das relações de respeito mútuo que auxiliam a criança a sair do seu
estado egocêntrico, descentrando-se para poder ver e colocar-se
como mais uma no mundo. Pode, dessa maneira, questionar regras,
colocar o seu ponto de vista e, ao mesmo tempo, contemplar o
pensamento alheio (reversibilidade), o que lhe permite a construção
de regras justas para todas as partes envolvidas.
As construções do epistemólogo vêm sendo utilizadas para
analisar relações entre tendências morais de estudantes de todos os
níveis do ensino e alguns fenômenos que neles ocorrem, como
exemplo: a indisciplina, a violência, o bullying, a intolerância, as
relações com as novas tecnologias, dentre outros. Assim, resolvemos
empregá-las para estudar os juízos de inclusão ou não, de estudantes
em relação às crianças com necessidades educacionais especiais.
Assim, nos propomos a entender se o fato de crianças
apresentarem juízos morais com tendências autônomas ou
heterônomas se alinhava com as suas disposições para incluir ou não,
crianças com deficiências visuais, auditivas, físicas e mentais em
brincadeiras, festas recreativas e numa atividade escolar formal
avaliativa de uma instituição escolar.
Como já mencionamos anteriormente, a construção da
autonomia moral é por nós entendida como uma possível forma de
enfrentamento do preconceito, já que imprime aos julgamentos o
respeito mútuo, a cooperação e a equidade nas relações. Neles, há
uma nova forma de relação interindividual, na qual prevalecem
377
princípios mais igualitários, de reciprocidade e, principalmente, de
justiça nas relações.
Aspectos metodológicos
Para realizarmos nosso estudo, questionamos crianças
frequentadoras de uma escola de ensino fundamental I e II localizada
na cidade de São Paulo (SP).
Cabe ressaltar, que em função da relevância da escolarização
no desenvolvimento moral, realizamos nosso estudo numa escola
cuja proposta de educação era diferenciada. Ela consistia num
conjunto de ações pedagógicas amparadas em teoria e prática diárias
de ações que visavam o desenvolvimento da autonomia moral dos
escolares. É digno de nota que a maioria dos projetos pedagógicos
encontrados nas Instituições Educacionais descreve tal meta, já que
ela é proposta pela Lei de diretrizes e bases para a educação nacional
(LDB) (BRASIL, 1996). Contudo, as práticas vigentes na educação
escolar apontam ser, em sua maioria, construídas por intermédio do
respeito unilateral, consolidando a formação de personalidades
heterônomas (TOGNETTA; VINHA, 2011).
De forma contrária, na instituição que foi objeto de nossas
pesquisas, pudemos observar que tal intento o desenvolvimento da
autonomia era colocado em prática nas relações estabelecidas entre
os educadores e demais profissionais e escolares. Resumidamente:
ocorriam relações de respeito mútuo entre os pares, característica
necessária para o desenvolvimento da autonomia.
Além, disso acercamo-nos de que a instituição possuía
crianças incluídas para que pudéssemos além de investigar às suas
narrativas também observar as práticas.
378
Participantes
Escolhemos como sujeitos da nossa pesquisa 40 crianças, que
foram divididas em dois grupos de 20 sujeitos cada um (24 meninas
e 16 meninos). O primeiro grupo foi composto de 20 crianças na
faixa etária dos 7 aos 8 anos de idade, já o segundo grupo se
constituía de 20 crianças de 10 a 12 anos de idade. Tais crianças,
divididas em dois grupos, frequentavam o Ensino Fundamental I (2º
e 3º ano) e II (6º e 7º ano), respectivamente, de uma instituição
escolar.
Houve alguns critérios para a escolha das crianças, sendo
eles:
a) as crianças eleitas para participar do estudo seriam aquelas
que estivessem matriculadas na instituição de nossa pesquisa há pelo
menos cinco anos;
b) as crianças deveriam ter o consentimento dos pais;
c) foi levado em consideração o desejo das crianças em
participar voluntariamente do estudo.
O primeiro critério se fazia necessário para nos cercarmos da
garantia de que a criança escolhida frequentava o ambiente da escola
num período de tempo necessário para que vivenciasse as relações
estabelecidas nesse local caracterizadas pelo respeito mútuo, num
período que propiciasse a elas tais vivências. Quanto aos critérios b
e c, procedemos visitando as salas de aula e distribuindo os Termos
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) às crianças que
demonstraram interesse em participar do nosso estudo. A
informação dada às crianças sobre o estudo foi a de que se tratava de
uma pesquisa sobre o preconceito. Nessa perspectiva, aquelas
379
crianças que nos trouxeram a autorização dos pais ou responsáveis
foram às entrevistadas.
Instrumento
Procedemos nosso estudo por meio de histórias-dilemas
empregadas no método clínico piagetiano. Segundo Piaget (1975),
tal método consiste em interrogar as crianças acerca de suas crenças
e valores sobre determinado assunto, de modo a questionar
exaustivamente seus pontos de vista para apreender o seu
pensamento sobre determinado fato. Assim, investigarmos as
tendências morais das crianças, procurando compreender seus juízos
morais com histórias sobre o roubo, a mentira, as sanções, o
confronto entre justiça retributiva e distributiva e a justiça entre
crianças. Para tanto, empregamos as histórias construídas por Piaget
([1932]1994).
Para a compreensão dos juízos sobre as crianças com
necessidades educacionais especiais, realizamos entrevistas utilizando
histórias criadas e testadas por nós onde buscávamos compreender
se as crianças apresentam tendências intituladas por nós de inclusivas
ou não inclusivas. Nas histórias, sempre passadas em ambientes
escolares, ilustrávamos um personagem com necessidades
educacionais especiais pedindo às crianças para ser inserido numa
atividade cuja necessidade especial apresentada podia ser necessária
para o bom andamento da tarefa realizada. Apresentamos, no quadro
abaixo, as quatro histórias por nós construídas, sendo uma para cada
necessidade especial:
380
Quadro 1 – Necessidades educacionais especiais e história-dilema
apresentando a personagem com (NEE)
Necessidade
Educacional
Especial
História
Deficiência
Visual
As crianças brincavam de esconde-esconde na escola. João,
que tem deficiência visual e o enxerga, chega ao pátio e
pede para as crianças o deixarem brincar também. O que as
crianças fazem? Ele pode brincar? Atrapalhará ou não? E se
fosse um jogo de competição, ele atrapalharia ou o? Será
que uma criança cega pode brincar bem? Você o escolheria?
Você escolheria João como um dos seus melhores amigos?
Deveria escolher?
Deficiência
Física
No intervalo para recreio, os meninos vão brincar de
basquete na quadra. Os meninos que são os capitães estão
escolhendo dois times. Luiz, que anda de cadeira-de-rodas,
quer participar do jogo também. André, que é capitão de
um time, escolhe Luiz? Por que o escolhe ou o, como
parte do time? Você escolheria Luiz para fazer parte do
time? É uma competição, será que Luiz atrapalharia ou não
o time dele? Você escolheria Luiz para fazer parte da turma
de seus melhores amigos? Deveria escolher?
Deficiência
auditiva
Haverá festa junina, na escola, e as crianças vão dançar
quadrilha. Luana é surda e quer participar. Mas também
outras meninas que querem dançar. Marcelo tem que
escolher uma parceira: o que ele faz? Por que ele faz isso? O
que vo acha disso? Será que é mais difícil dançar com
uma parceira surda? Você escolheria Luana para dançar? E
para ser uma das suas melhores amigas? Deveria escolher?
Deficiência
mental
As meninas estão fazendo um trabalho em grupo de
matemática na sala de aula. Laura tem síndrome de Down
(uma criança que pode demorar mais para aprender as
coisas na escola, que pode não conseguir aprender
rapidamente), se aproxima e pede para fazer o trabalho no
381
grupinho. O que as meninas fazem? Por quê? Será que
algum grupo vai escolhê-la? O que vo acha disso? Você
escolheria Luana para participar do grupo? Ela atrapalharia
ou não? E para ser sua melhor amiga? Deveria escolher?
Fonte: Dados da autora
As histórias eram lidas para as crianças e, logo após,
pedíamos que elas nos repetissem, a fim de verificarmos o
entendimento. Procedíamos, em seguida, com as indagações e
contra-argumentos característicos ao método clínico. Ainda,
ressaltamos, que não havia tempo pré-determinado para as respostas
às histórias.
Critérios utilizados na avaliação das falas
Utilizamos, assim, os critérios elaborados por Piaget
([1932]1994) para a caracterização da moralidade com tendências à
autonomia ou à heteronomia, para avaliarmos as respostas das
crianças sobre o julgamento que fazem dos indivíduos com
necessidades educacionais especiais, incluídos nas escolas regulares.
Para tanto, foram adotados juízos críticos para análise das respostas
emitidas pelos sujeitos (Quadro 2).
Quadro 2 – Critérios para avaliação das falas dos sujeitos
Critérios para inclusão
Princípios
norteadores
das falas
A aceitação espontânea da criança interrogada em cooperar
com os pares de crianças com necessidades educativas
especiais. Como, por exemplo: quando o entrevistado fala
Cooperação
382
prontamente que a criança com deficiência pode brincar e o
auxiliará para isso;
O reconhecimento da igualdade de direitos entre todas as
crianças. Contudo, tal igualdade foi observada não como
reconhecimento de uma obrigação moral em função da
autoridade, mas como reconhecimento desse direito,
independentemente da autoridade ou lei (como ocorre na
justiça distributiva).
Igualdade
(direito)
O reconhecimento de que a criança com necessidade
educativa especial é capaz de realizar exitosamente as
atividades propostas para todo o grupo. Dessa forma, seria
considerado que cada um deles tem as mesmas
possibilidades, se lhes forem dadas condições favoráveis
(auxílios materiais e regras específicas as suas necessidades).
Isso seria a justiça superior (equidade), em que são levadas
em consideração as condições específicas para tornar o
tratamento igualitário;
Equidade
(justiça)
Fonte: Dados da pesquisa
A classificação das respostas dos sujeitos se deu da seguinte
forma:
a) as que apresentaram pelo menos dois desses critérios
descritos no quadro 2, foram classificadas como com tendência à
inclusão, pois nelas observamos a manifestação da cooperação, dos
direitos e da equidade.
b) por outro lado, encontramos crianças cujas respostas não
revelavam disposição para a cooperação, acreditavam que as crianças
com NEE não possuíam habilidades para realizar as atividades
propostas e não mencionavam a igualdade de direitos entre os pares.
Assim, avaliamos tais juízos como de tendência não inclusiva;
383
c) por último, há crianças que não deixam claro, em suas
respostas, se primam pela inclusão ou não inclusão das crianças com
Necessidades Educativas Especiais. Classificamos essas respostas
como juízos intermediários.
Nossas análises foram submetidas a um juiz e obtivemos o
nível de concordância de 86% entre o entrevistador e o juiz.
Alguns dos resultados foram dispostos na tabela abaixo
(Tabela 1). Observa-se que as crianças, independentemente de sua
avaliação moral (tendência heterônoma ou autônoma) apresentam
julgamentos com tendências à inclusão. Além disso, as análises
demonstram, ainda que as crianças, em sua predominância, incluem
todas as necessidades educativas especiais elencadas.
Tabela 1 – Valores totais sobre todas as deficiências
Juízos
Preconceito
deficiência
visual
Preconceito
deficiência
física
Preconceito
deficiência
auditiva
Preconceito
deficiência
mental
Tendências não
inclusivas
7
(17,5%)
13
(32,5%)
11
(27,5%)
9
(22,5%)
Intermediários
11
(27,5%)
8
(20%)
10
(25%)
6
(15%)
Juízos com
tendências
inclusivas
22
(55%)
19
(47,5%)
19
(47,5%)
25
(62,5%)
Total
40
(100%)
40
(100%)
40
(100%)
40
(100%)
Fonte: Dados da pesquisa
Os resultados mostraram que as crianças avaliadas como
heterônomas tendem a incluir as crianças com necessidades
educacionais especiais, igualmente àquelas classificadas como
autônomas.
384
No entanto, notamos que as crianças de menor idade (7 aos
8 anos) e matriculadas no Ensino Fundamental I, embora avaliadas
nas provas morais como heterônomas, nas histórias que aferiam a
tendência à inclusão, apresentavam em suas falas todos os critérios
atribuídos aos juízos autônomos, ou seja, em tese, empregados
também pelas crianças maiores (10 a 12 anos) e matriculados no
Ensino Fundamental II, avaliadas na pesquisa com o juízo mais
elaborado (tendência à autonomia moral).
Diante desses resultados, apresentamos a hipótese observada
pelo próprio Piaget ([1932]1994) quando retrata o problema do
método clínico, utilizado anteriormente para o conhecimento do
desenvolvimento cognitivo, quando adaptado para pesquisas sobre
o desenvolvimento moral. O autor nos adverte que em problemas
de natureza física ou lógica estamos em presença do pensamento em
ação, já que neste tipo estudo a criança manipula os objetos para
depois emitir sua resposta. Nos estudos sobre a origem e evolução
das regras, Piaget pôde utilizar-se dos jogos de bolinhas de gude, mas
nas pesquisas sobre as regras morais que os adultos ensinam às
crianças nenhuma prática foi possível. Assim, não foi estudado o ato,
mas as avaliações que as crianças fizeram dele após análise de
condutas apresentadas em histórias (dilemas).
Aqui uma nova dificuldade. As condutas que
apresentamos à criança para que as julgue, não poderemos
fazer com que ela as apreenda concretamente, como se
colocássemos em suas mãos um punhado de bolinhas ou
material mecânico. poderemos apresentá-las à criança
por meio de uma narração. Assim, vemos o quanto é
385
indireto o método que vamos empregar. (PIAGET,
[1932]1994, p. 95).
Dessa forma, o autor nos informa sobre a problemática
inerente à aplicação do método quando utilizado para avaliar juízos
morais, pois como inferir que estes julgamentos equivalem aos
comportamentos que as crianças apresentariam caso estivessem
diante das situações reais? Em resposta, Piaget atenta para o fato de
que nos interrogatórios feitos na ocasião da primeira parte de seus
estudos (jogos de regras), obteve em linhas gerais correspondência
entre o julgamento e a prática. Nos casos onde não houve correlação,
o resultado foi atribuído ao fato do juízo moral estar em atraso
quando comparado ao juízo prático.
Observamos frequentemente, no domínio intelectual,
que o pensamento verbal da criança consiste numa
tomada de consciência progressiva dos esquemas
construídos pela ação. O pensamento verbal es
simplesmente em atraso, em tais casos, em relação ao
pensamento concreto, pois trata-se de reconstruir
simbolicamente, num novo plano, as operações
executadas no plano precedente. (PIAGET, [1932]1994,
p. 98).
Acerca deste fato, pensamos que ele pode ter ocorrido nos
Acerca deste fato, pensamos que ele pode ter ocorrido nos juízos das
crianças por nós entrevistadas, pois as práticas da escola são voltadas
para o desenvolvimento da autonomia moral, especificamente, no
cenário inclusivo. Assim, os interrogatórios sobre a inclusão
386
apresentaram questões que as crianças já realizam em sua prática
cotidiana na escola, enquanto que as provas morais avaliaram
conteúdos em que as crianças ainda não se depararam na ação.
Em função dos resultados encontrados, consideramos
importante expor e avaliar as falas dos entrevistados onde se
encontram presentes os princípios inerentes à autonomia moral, são
eles: a cooperação, a igualdade e/ou equidade.
As falas das crianças
Apresentamos a seguir, baseadas nos critérios expostos, as
análises das falas demonstrando concepções inclusivas das crianças
entrevistadas por nós, sobre os personagens com necessidades
educacionais especiais, exibidos em nossas histórias.
A deficiência visual
Sobre a participação de uma criança com deficiência visual
numa brincadeira de esconde-esconde, as crianças dos dois grupos 1
e 2 ilustram a cooperação e a igualdade de direitos, quando as
crianças argumentam que, se ajudada, a criança pode brincar. As
respostas, em sua maioria, remetem à importância do outro na
relação, pois credita o êxito da atividade a ser realizada pela criança
com deficiência visual, como dependente, também, do desempenho
do amigo (sem deficiência) no auxílio prestado a ela.
Observamos, também, que as respostas indicam que as
crianças com deficiência podem participar da atividade de forma
satisfatória desde que sejam dadas as condições. Isso implica num
nível mais elaborado de juízo: a equidade. Nela é necessário dar ao
387
outro o que lhe falta para nivelar a situação em questão. Por
exemplo: algumas crianças sublinham a necessidade de adaptar uma
brincadeira para dar condições iguais a todas as crianças. Dessa
forma, as respostas reportam-nos a alguns dos princípios
fundamentais da inclusão, ou seja, a adaptação da escola e de todos
os seus atores sociais aos incluídos.
Ressaltamos, ainda, narrativas que nos advertem sobre a
problemática da não inclusão dos colegas com necessidades especiais,
atrelando-a ao preconceito. Isso vai ao encontro do que nos aponta
Mantoan (2008), de que a diferença existe de fato, contudo, o fato
de ela ser atrelada a desvantagem é uma construção social que
mitifica e corporifica as pessoas portadoras de deficiências.
A deficiência física
Acerca dessa deficiência, pedíamos às crianças para avaliarem
a participação de um cadeirante numa partida de basquete na escola.
As respostas nos mostram que essas crianças acreditam que não é a
deficiência que fará da criança um mau jogador, ao contrário,
atribuem características positivas a ela, como a velocidade e a defesa.
Digno de nota, são narrativas de crianças entrevistadas que imputam
vigor aos cadeirantes, acreditando que numa partida de jogo de
basquete, eles podem auxiliar o time do qual fazem parte.
Ainda, crianças atentam para o fato da importância da
adequação dos jogos para permitir que crianças com necessidades
educacionais especiais possam fazer esportes. Dessa forma, os
apontamentos orientam para juízos inclusivos potencializando a
criança cadeirante e ainda salientando a pertinência de atividades
que possam ser realizadas por todas as crianças, independente de
388
possuírem ou não deficiência, apresentando, portanto, os princípios
da igualdade e da equidade.
A deficiência auditiva
Em relação à personagem com deficiência auditiva ser
escolhida ou preterida para dançar quadrilha nas festas juninas
escolares, os entrevistados alegam que a criança apenas não ouve e
que isto não é fator impeditivo para que ela não dance, já que pode
seguir o ritmo (com a vibração das palmas e do chão), contando,
observando e/ou copiando. Indagam que a criança com deficiência
auditiva caso seja auxiliada, consegue executar a tarefa proposta.
Mais uma vez, atentamos para a existência da cooperação e do
princípio da igualdade nas falas, visto que as crianças escolhem a
criança com necessidade educativa especial para dançar.
Cabe destacar a réplica de uma criança, que aborda a
existência do preconceito como uma forma de observar as crianças
de forma parcial e não condizente a realidade.
A deficiência mental
Quando a situação era acolher uma criança com deficiência
mental (Síndrome de Down) no grupo de trabalho de Matemática
para nota, as avaliações dos interrogados demonstram juízos onde
predomina a cooperação, já que todas buscam auxiliar a criança com
síndrome de Down. Resposta ainda mais elaborada pode ser
identificada na fala de um sujeito que modifica o exercício
deixando-o mais didático para facilitar a compreensão da criança
389
com deficiência mental, esta conduta é típica dos julgamentos com
princípios de equidade.
Podemos destacar também falas que salientam o respeito ao
desejo da criança com Down, uma vez que ela só vai participar do
grupo se desejar fazê-lo.
Por último, observamos nas entrevistas falas que faziam
menção às contribuições que a criança pode trazer ao grupo, na
medida em que, acredita que ela pode auxiliar o grupo, contribuindo
com conhecimentos que ela pode possuir demonstrando igualdade
nas relações.
Considerações finais
No que tange as respostas das crianças em relação há
participação ou não das personagens com necessidades educativas
especiais nas atividades narradas nas histórias, elas mostraram-se:
cooperativas, pois apresentavam disponibilidade para auxiliar os
personagens, portadores de alguma deficiência. A consciência da
igualdade, também, existe entre os pares, já que suas falas observam
que a necessidade educacional especial não poderia restringir a
capacidade e o direito dos personagens. Por último, as respostas
mostram atitudes de equidade nas relações, uma vez que, os
participantes da pesquisa demonstram o cuidado em alterar as
atividades propostas, caso se fizesse necessário, para que elas ficassem
mais acessíveis às crianças com deficiência.
Todas essas características vão ao encontro dos critérios
colocados por nós para a análise das respostas como com tendências
à inclusão, de modo que, de acordo aos dados apresentados, as
crianças entrevistadas se mostraram inclusivas. Cabe acrescentar que
390
todos esses critérios são característicos dos juízos com tendências à
moralidade autônoma, o que nos reporta à importância do
desenvolvimento moral para a escola inclusiva.
Atribuímos os julgamentos predominantemente inclusivos,
às características que o ambiente escolar propicia às crianças. Este
possui como objetivo central, como já narramos, o desenvolvimento
da autonomia moral dos escolares e para tanto imprime o respeito
mútuo, a cooperação, a equidade e a solidariedade junto às práticas
cotidianas.
Assim, podemos considerar que as crianças que frequentam
ambientes onde predomina relações de respeito mútuo junto à
inclusão, tendem a incluir (não apresentar juízos preconceituosos) as
crianças com necessidades educativas especiais. Além disso,
pensamos que estas práticas podem, igualmente, auxiliar no
desenvolvimento moral da criança porque permitem que ela possa
descentrar-se para cooperar, desenvolver a equidade em relação ao
dessemelhante e acreditar na igualdade de direitos entre todas as
crianças.
Salientamos, aqui, a importância da escola na formação de
personalidades morais com tendências à autonomia. Sobre essas
questões e a necessidade de mudanças na educação, vários estudos
vêm sendo desenvolvidos, a partir das obras de Piaget ([1932]1994).
Concluímos, apesar da necessidade de outros estudos, a
importância do desenvolvimento moral com a finalidade de
modificar as relações interindividuais estabelecidas na escola e,
especialmente, na educação inclusiva. Acreditamos que, sem uma
alteração nas relações interindividuais de respeito, não podemos
conseguir uma educação para a autonomia, de maneira que muitos
391
dos entraves que comprometem a legalidade de uma educação para
todos continuarão existindo e impossibilitando as relações
democráticas pelas quais tanto lutamos e para as quais as escolas se
revestem de fundamental relevância.
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MORAL NA PERSPECTIVA PIAGETIANA: UM
MAPEAMENTO DAS INTERVENÇÕES POSSÍVEIS
Sandra Cristina Batista MARTINS
1
Rodrigo Luís VOGT
2
Tania STOLTZ
3
Introdução
O papel da pesquisa científica na sociedade é buscar, através
de métodos válidos, respostas para os mais diversos problemas para
beneficiar a todos os envolvidos, quer seja na saúde, na economia,
na política, na escola. É necessário fazer vigília sobre as ações dos
sujeitos participantes de investigação científica, a partir de um aporte
teórico consistente. Os achados de pesquisa auxiliarão em futuras
tomadas de decisões nessas esferas contextuais.
A sociedade carece de ações virtuosas e morais. Vemos
diariamente, nos noticiários, mostras da negação do conhecimento
científico que seria vantajoso para todos por terem sido
desenvolvidos por pesquisadores empáticos e sob princípios de
1
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba,
Paraná, Brasil. E-mail: sandramartins.scbm@gmail.com
2
Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), e
docente da União Educacional de Cascavel (UNIVEL), Curitiba, Paraná, Brasil.
E-mail: rodrigo.vogt@ufpr.br
3
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), e Professora Titular da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: tania.stoltz795@gmail.com
395
cooperação. Um exemplo é a dúvida negacionista quanto a
vacinação que paira nesse momento histórico de pandemia da
Covid-19; outro exemplo é a falta de verdade de políticos corruptos
em que, aparentemente, o compromisso é somente com seus
próprios interesses. Na escola é visto, muitas vezes, falta de respeito
com o outro, quer seja colega de classe, professor ou funcionário
educacional. Enfim, são necessárias intervenções que busquem
desenvolver quesitos morais de convívio social e o desenvolvimento
de virtudes para que a vida em sociedade seja mais harmoniosa.
Neste caso, o pesquisador, ao utilizar-se do aporte teórico da
epistemologia genética, é levado a atuar sobre o objeto de pesquisa
para além das respostas que os indivíduos dão a determinadas
consignas. Não é simplesmente o que ele responde sob o olhar do
pesquisador, considerando se é compatível ou não para a idade e se
está de acordo com o grupo de referência normativa, mas acima disso
é entender por que deu determinada resposta. O pesquisador da
epistemologia genética sai da constatação para verificar o processo
de funcionamento do pensamento dos participantes. Esse
procedimento piagetiano, além de coletar dados para a pesquisa,
repercute no grupo e no próprio participante, oportunizando
desenvolvimento e novos aprendizados.
Diante disso, este trabalho tem o intuito de mapear a
utilização da teoria piagetiana em estudos de moral e responder à
pergunta, objeto deste estudo: quais são as intervenções utilizadas
nos estudos sobre desenvolvimento moral na perspectiva piagetiana
e quais são os seus efeitos?
396
Processo de aprendizagem para a epistemologia genética
Piaget busca, em seus estudos, definir os laços da inteligência
com o processo de aprendizado, assim como com as funções
cognitivas. Um dos primeiros apontamentos que faz a respeito da
aprendizagem é a necessidade do contato (interação social) com
outros indivíduos. O conhecimento, portanto, é resultante das
interações que se dão no contato entre dois ou mais indivíduos,
dependendo de ambos para que ocorra. O aprendizado não é
decorrente de uma posição passiva do indivíduo, ele é perpassado
necessariamente pela ação de quem recebe. A criança aprende o que
lhe é ensinado a partir da ação ativa. Cada indivíduo é único,
dinâmico e indivisível, constituindo-se no plano social (PIAGET,
1979; MONTENEGRO; MAURICE-NAVILLE, 1998; BECKER,
2001).
O conhecimento ocorre na construção progressiva entre a
interação do sujeito com o objeto. A capacidade intelectual e
cognitiva não está dada, ela é adquirida a partir da atividade do
sujeito, que é direcionada de modo intencional pelo que ensina,
ademais, ela deve ser significativa. Além disso, ainda o
desenvolvimento do indivíduo, que é outro fator fundamental para
o conhecimento, esse processo é espontâneo e depende da maturação
dos indivíduos, este precede a aprendizagem. Portanto, a
aprendizagem é composta por assimilações que dependem
fundamentalmente do desenvolvimento cognitivo (PIAGET, 1978;
BECKER, 2001; NOGUEIRA, 2011).
Lima e Nóbile (2020) apontam que a equilibração é um
processo progressivo e contínuo. Requer maturação; experiência
397
com o objeto; em interação social, daí sim o novo se equilibra. A
aprendizagem para Piaget é dependente do sujeito conhecedor e do
objeto a ser conhecido, portanto a experiência enquanto ser ativo é
importante para que se aprenda algo novo (SANTOS, 2020;
PEREIRA et. al., 2020).
A inteligência se constrói a partir das relações ativas do
indivíduo com o objeto
4
. Quando o indivíduo entra em contato
com algo novo, ele retira desse objeto algumas informações e as
retém, constrói as próprias estruturas ao passo que incorpora novos
elementos à estrutura; Piaget (1978) denomina essa função de
assimilação. O sujeito é agente ativo de seu pensamento e constrói o
que apreende a partir do que é apresentado em interação com o que
possui (PIAGET, 1978; 1979; BECKER, 2011). A assimilação e
a acomodação, que juntas levam ao processo autorregulador
chamado de equilibração, são etapas necessárias à formação do
conhecimento (PEREIRA et al., 2020).
Pereira et al. (2020) recorrem à obra de 1976 de Piaget, que
trata da assimilação, esta é tratada pelo autor como o ato de conferir
uma ou mais significações que comportam um sistema complexo de
inferências. É uma associação que é acompanhada de uma
inferência; um processo de integração da nova informação à
estrutura de seus conhecimentos formados. Becker (2011) faz
referência à obra de Piaget de 1972 em que a assimilação pode ser
de forma biológica, psicológica ou cognitiva, esta última mais
específica dos seres humanos. Quando ocorre a assimilação, o
4
Tudo o que é externo ao indivíduo é compreendido como objeto, pelo fato de
ser externo ao sujeito e ser tomado pelo indivíduo como objeto a ser conhecido.
“O objeto é tudo o que o sujeito não é. O que é o não-sujeito? O mundo no
qual está mergulhado: isto é, o meio físico ou social” (BECKER, 2001, p. 16).
398
conhecimento se torna significativo e a partir daí é capaz de
incorporar-se aos elementos cognitivos existentes. Outro processo
que é indissociável à assimilação é o processo de acomodação
(BECKER, 2011; PEREIRA et al., 2020).
Quanto à acomodação, na interação com o meio as
estruturas mentais do sujeito têm a capacidade de se modificar e se
adequar às necessidades dos objetos. As estruturas mentais são
moldadas às novas situações e ao processo que se apresenta. Ao
acomodar, o sujeito i incorporar o que é novo aos esquemas
existentes, adequando-os ao que é novo (PIAGET, 1979; 2013).
Quando o indivíduo entra em contato com um novo objeto,
para que aconteça a aprendizagem, necessita assimilar, abstraindo
certos elementos, dando-lhes uma significação. Para que possa
conhecer o que é novo é necessário que modifique suas estruturas
mentais e as acomode, ao buscar equilibrar este novo objeto pela
assimilação e acomodação é que ocorre o processo constante de
equilibração. O aprendizado não é linear, varia conforme as
situações, que devem necessariamente fazer sentido para que possa
assimilar e acomodar com o que conhece e domina (PEREIRA et
al., 2020; LIMA E BILE, 2020).
A assimilação é comum aos indivíduos, a todo tempo os
indivíduos assimilam o novo a esquemas e estruturas construídos.
A acomodação, contudo, “é a diferenciação dos esquemas em fuão
dos objetos a assimilar (LIMA; NÓBILE, 2020, p. 15). A
assimilação e a acomodação são aspectos de um mesmo processo,
que é progressivo e contínuo. É um processo dialético de equilíbrio,
desequilíbrio e novamente um reequilíbrio, a esse processo dialético
e dinâmico Piaget denominou de equilibração. A interação com
399
outros indivíduos promove uma desequilibração. É fundamental
potencializar o conhecimento nos indivíduos, ensinar é aumentar a
capacidade de aprender, dispondo para tanto de conteúdos
apropriados que desafiem e ampliem a capacidade cognitiva
(PIAGET; INHELDER, 2013; LIMA; NÓBILE, 2020).
O desenvolvimento moral em Piaget
A moral não é uma condição inata no indiduo. A
moralidade se ao passo que a criança vai se desenvolvendo e
interagindo com outras pessoas. Como aponta Piaget (1994), a
moral é um sistema de regras que em sua essência estão contidas no
respeito que a criança adquire pelas regras. O respeito é inicialmente
algo externo ao sujeito, que age de forma correta, respeitando as
normas e regras que são impostas por outrem. Nesse período um
misto de sentimentos, de medo e amor, que se misturam e se
confundem (PIAGET, 1994; FONTANIVE, 2017).
La Taille (2006) aponta que os pais inspiram nas crianças
tanto sentimentos de amor e de medo quanto sentimentos de
respeito aos outros. Respeitar as regras são em seu princípio uma
expressão do dever fazer. Piaget (1994) aponta a existência de dois
tipos: o respeito unilateral, em que nas relações de coação dos adultos,
decorre a obediência, a partir da qual gradativamente a criança passa
a respeitar e a imitar os maiores. Ao admirar esses ensinamentos dos
adultos, a criança passa ao respeito mútuo, com valores coletivos,
passando a pôr-se no lugar do outro, buscando a cooperação.
Piaget divide o desenvolvimento da moral em etapas
evolutivas. Quando nasce a criança vive na anomia, que é o período
em que elas ainda não têm uma moral estabelecida, não respeitam e
400
agem movidas por seus impulsos e desejos. Na fase da heteronomia
moral, as crianças passam a interessar-se a participar das atividades
coletivas. No período da autonomia moral, a criança além de
respeitar as regras, começa a cumpri-las (PIAGET, 1994; SILVA,
2012). Caiado (2012, p. 34), ao discutir sobre os jogos em Piaget,
aponta que as regras funcionam “como um regulador das trocas
sociais, determinando (ou restabelecendo) seu equilíbrio”. Segundo
a autora, identifica-se gradativamente (conforme as etapas do
desenvolvimento) um aumento do sentimento de obrigatoriedade,
o que aponta para a existência das relações sociais (CAIADO, 2012).
Gradativamente a criança se conta de que também outras
pessoas exigem o cumprimento das regras, como os professores na
escola, ou os colegas com as exigências nas brincadeiras, sendo
também, por vezes, elas próprias fonte de regras. Aos poucos a
criança se conta de que estas regras existem a todo o momento,
servindo para a adequação de todos à brincadeira. É brincando que
a criança inicia as relações com as regras, existentes entres os iguais,
ou seja, é no brincar com outra criança que se constroem as regras
das brincadeiras e do relacionamento.
E ao passo que a criança se desenvolve, nota-se nas suas
condutas, avanços no estabelecimento das regras nos jogos sem a
necessidade de intervenções dos adultos. Porém, esse processo é
possível quando a criança apreende as regras que foram ensinadas
pelos adultos anteriormente. O que foi imposto à criança no
primeiro momento fará com que ela tenha “bagagem” suficiente
para relacionar-se com outros sujeitos e suas regras sem a necessidade
da imposição ou intervenção dos adultos. Posteriormente elas
próprias passam a deliberar sobre as regras, cumprindo, remo-
401
delando ou desobedecendo-as (PIAGET, 1994; FONTANIVE,
2017).
Metodologia
Para cumprir o objetivo da pesquisa de conhecer quais são as
intervenções utilizadas nos estudos sobre desenvolvimento moral na
perspectiva piagetiana e quais são os seus efeitos, utilizou-se da
revisão integrativa de literatura a partir das bases de dados SciELO e
ScienceDirect. Nesta, os descritores foram intervention program and
Piaget and moral. Naquela “epistemologia genética" or Piaget or
piagetiana andintervençãoorprograma interventivo”.
A característica desse tipo de pesquisa é utilizar da revisão
rigorosa e ampla da literatura pertinente, mas indo além ao integrar
estudos empíricos e teóricos sobre o tema para proporcionar um
entendimento aprofundado sobre o fenômeno (SOUZA et al.,
2010).
Os primeiros critérios de inclusão foram: artigos completos,
escritos em inglês, português, francês e espanhol nos últimos 20 anos.
Numa segunda fase de inclusão, o critério foi que o tema principal
do estudo fosse a moralidade com participantes crianças ou adultos,
nos mais diferentes contextos. A terceira fase de inclusão consistia
em ler os artigos completos e verificar se tratava de estudos com
algum tipo de intervenção a partir da teoria piagetiana ou ainda que
concluísse, por meio dos achados empíricos, indicando o potencial
de intervenções nesta linha teórica. Por sua vez, para que um artigo
fosse excluído, os critérios foram: artigos anteriores ao ano 2000 e
que o escopo do estudo não abordasse intervenções a partir da
402
epistemologia genética. Tamm foram excluídos artigos repetidos
entre as bases de dados e artigos em outras línguas que não o inglês,
português, francês e espanhol.
Os artigos que passaram pelas fases 1 e 2 do critério de
inclusão, bem como pelos critérios de exclusão a partir da leitura do
título e do resumo, seguiram para a terceira e última fase de inclusão,
com leitura integral dos artigos. Nesta etapa buscou-se saber se o
estudo respondia parcialmente às questões de pesquisa. Se sim,
foram organizados para serem analisados e discutidos de forma
integrativa.
Resultados
Na base de dados SciELO os descritores utilizados foram:
epistemologia genéticaor Piaget or piagetiana and intervenção
or programa interventivocom o retorno de 37 artigos em 03 de
julho 2021. Na ScienceDirect, os descritores foram intervention
programand Piaget and moral e o retorno foi de 17 artigos em 04
de julho de 2021. Após a aplicação dos critérios de inclusão e
exclusão das fases 1 e 2, o total de artigos na SciELO e na
ScienceDirect foi de 04 artigos (BRASCHER, 2000; MANNING;
BEAR, 2002; SOUZA, et al, 2008; GUIMARÃES; SARAVALI,
2011).
Desses, 3 artigos (75%) relatam resultados de pesquisas
experimentais (BRASCHER, 2000; SOUZA, et al, 2008;
GUIMARÃES; SARAVALI, 2011) e um artigo (25%) foi de
pesquisa quantitativa com análises de regressão para explicar
comportamentos (MANNING; BEAR, 2002). Os resultados
apontam ainda que os participantes de 3 artigos (75%) eram em sua
403
totalidade crianças e adolescentes (MANNING; BEAR, 2002;
SOUZA, et al, 2008; GUIMAES; SARAVALI, 2011), sendo que
somente 1 dos artigos (25%), além de estudantes dos anos iniciais
teve a intervenção do professor para tomada de consciência das ações
explicações causais (BRASCHER, 2000). Por fim, 3 artigos (75%)
utilizaram de situações problema como ferramenta para o
levantamento de dados (BRASCHER, 2000; SOUZA, et al, 2008;
GUIMARÃES; SARAVALI, 2011).
O estudo de Brascher (2000) teve como objetivo investigar
se atividades de conhecimento físico também contribuem para o
desenvolvimento socioemocional nas séries iniciais. A pesquisa se
desenvolveu em situação real de sala de aula, em que a atuação
docente se somou à aplicação de atividades com situações problemas.
A autora verificou que as crianças interagiram entre elas e que as
regras foram construídas e usadas entre o grupo. Contudo, relata que
algumas discussões ocorreram devido à violação da regra que
estabeleceram. Diante disso foi necessária a atuação do professor,
numa perspectiva piagetiana, para fazer as crianças encontrarem
soluções por si mesmas. Por fim, Brascher conclui que a cooperação,
a iniciativa, a autonomia e a descentralização são possíveis de serem
exercidas pela criança no contexto da atividade de conhecimento
físico, quando as crianças têm um problema interessante para
resolver: “[...] a criança não pode construir autonomia moral sem
autonomia intelectual e vice-versa, que desenvolvimento moral e
desenvolvimento intelectual são interdependentes (BRASCHER,
2000, p. 86).
Outra pesquisa, de Manning e Bear (2002) com dois
objetivos: o primeiro foi analisar os diferentes tipos de relações do
404
raciocínio moral e os comportamentos agressivos relatados pelos
professores; o outro, avançar na questão e promover implicações
quanto à prevenção e tratamento. Os participantes eram 203 alunos
de ensino fundamental que foram avaliados, por meio de
instrumentos válidos de pesquisa, quanto à habilidade verbal e o
raciocínio moral. Os resultados sugerem que os alunos agressivos
não precisam aumentar a consciência das consequências que o seu
mau comportamento tem sobre eles próprios; mas sim, parecem não
ter consciência das consequências psicológicas de seu
comportamento para os outros. Os autores concluem que um
componente de raciocínio moral pode aumentar a eficácia dos
programas de prevenção e intervenção da violência, tornando mais
salientes as consequências das ações dos alunos sobre os outros. Deve
ser enfatizado, durante todo o tempo, aos alunos, os efeitos
psicológicos das ações de uns sobre os outros. Assim, grandes
chances, dizem os autores, de que o respeito com o outro e pelas
normas sejam em resposta a um comportamento responsável e não
por medo de punição.
Souza et al. (2008) trabalharam com uma amostra de 76
crianças de cinco a dez anos, com intuito de discutir os julgamentos
das crianças sobre ações e sentimentos de personagens dos contos.
Os resultados demonstraram que a qualidade dos julgamentos evolui
com a idade, e as diferenças mais significativas acontecem quando
uma diferença maior de idade entre as crianças. Apontam ainda,
que esses julgamentos seguem da subjetividade para a objetividade
dos juízos sobre o mundo. Por fim, as autoras afirmam serem os
contos um material adequado para reflexões das crianças e um ótimo
instrumento de pesquisa sobre as qualidades dos julgamentos
405
infantis, o que reforça a necessidade de mais estudos piagetianos
sobre as interpretações e representações de histórias.
Guimarães e Saravali (2011) desenvolveram uma pesquisa
experimental, com 52 crianças de 7 e 8 anos de contextos
educacionais diferentes: sociomoral construtivista e ambiente
educacional tradicional. O intuito das autoras foi comparar as
representações que as crianças tinham de escola e de professor. O
instrumento utilizado para coleta de dados foi uma história em que
os participantes responderam questões referentes ao conto, bem
como sobre a escola e o papel do professor. Os resultados apontaram
diferença significativa na maneira utilizada pelos alunos para resolver
os problemas da história. No ambiente tradicional a coerção e a
expiação foram mais utilizadas e no ambiente sociomoral
construtivista, o diálogo e a cooperação. Como conclusão, as autoras
apontam que influência do tipo de ambiente nas concepções das
crianças. As crianças de ambientes sociomorais apresentam ideias
mais evoluídas do que as demais. Ressaltando a importância da
produção de conhecimento social em sala de aula (GUIMARÃES;
SARAVALI, 2011).
Discussão
Os resultados encontrados apontam que as intervenções a
partir da teoria piagetiana se restringem, em sua maioria, a amostras
de crianças em ambientes escolares e que a amostra de adultos ainda
é restrita. É importante lembrar que o desenvolvimento não cessa,
conforme os estudos desenvolvidos por Kohlberg (1992), que
propõe que o desenvolvimento moral se estende para além da
infância, existindo ao longo da vida dos sujeitos (MORAIS e
406
MENIN, 2015). Seria de grande valia, para o campo científico, que
pesquisas fossem realizadas com uma faixa etária para além da
infanto-juvenil.
Manning e Bear (2002) trazem um dado de que crianças
agressivas, em geral, parecem não ter consciência de que seus atos
são danosos psicologicamente para o outro. E que intervenções
constantes, nos ambientes educacionais, devem ser priorizadas de
modo que as crianças se conscientizem dos efeitos psicológicos sobre
os outros. Neste aspecto, Piaget (1994) teoriza que em uma das fases
do desenvolvimento, as crianças passam à moral heterônoma,
caracterizada pelo dever, obediência, aqui prevalecendo o respeito
unilateral, a coação e o senso de obrigação, obedecendo por haver
uma regra, ou alguém superior que manda. Gradativamente ao
desenvolver-se, as crianças avançam a uma moral de autonomia,
onde passa a prevalecer nas suas relações a moral do bem, do respeito
mútuo, da cooperação com base no princípio da reciprocidade.
Seguir uma regra ou uma ordem parte do pressuposto da necessidade
de respeito pelo bem comum (PIAGET, 1994; MENIN, 2017).
Ambientes cio interacionistas são mais favoráveis para o
desenvolvimento de ações virtuosas e morais. Nessa linha, os estudos
de Guimarães e Saravali (2011) ratificaram, com seus achados, que
os ambientes não tradicionais de educação são mais comuns de
encontrarem cooperação, empatia e diálogos entre as crianças.
Os estudos de Brascher (2000), Souza et al. (2008), bem
como Guimarães e Saravalli (2011) relataram que métodos de
discussão de problemas relevantes para as crianças, narração de
histórias, enfim, situações conflituosas experimentais que levem a
criança a desequilíbrios cognitivos são sempre facilitadoras de
407
desenvolvimento e aprendizagem de novos comportamentos, quer
sejam em aspectos físicos ou morais. Nesse ponto, Menin (2002),
Jares (2008) e Frick, et al. (2019) alertavam que o processo de
resolução de conflitos de modo assertivo são fundamentais para o
desenvolvimento do aprendizado moral. Piaget (1994) aponta que a
construção dos valores morais se ao passo que ocorre o
desenvolvimento cognitivo, social e afetivo da pessoa, nos mais
diferentes ambientes de socialização, justificando assim a
importância dos espaços de socialização intencional.
Um dado recorrente nas pesquisas analisadas foi a discussão
grupal que auxiliou os participantes na tomada de consciência sobre
suas ações (BRASCHER, 2000; SOUZA et al., 2008;
GUIMARÃES; SARAVALLI, 2011). Sabe-se que para a tomada de
consciência (PIAGET, 1977; STOLTZ, 2018) é preciso um
caminhar, do sujeito, primeiramente em direção aos objetivos e aos
resultados alcançados com determinada ão, para depois ser capaz
da tomada de consciência. “[...] chegar à conceitualização depende
de intervenções do meio externo cuja finalidade é fazer com que o
sujeito transforme um fazer e o pensar em saber compreendido e
verbalizado(REIS et al., 2021, p. 58).
Por fim, é válido salientar o potencial que no método
clínico piagetiano quando usado por avaliador experiente que saiba
ir além das respostas, mas que para a compreensão do como, que
adentre no mais íntimo funcionamento cognitivo e dos mecanismos
do pensamento do participante (DOLLE, 1995).
408
Considerações finais
Esse estudo proporcionou aos autores uma visão da
relevância dos estudos piagetianos para o desenvolvimento moral de
escolares. Contudo, esses achados trazem dados estudados por
Piaget, por terem como participantes das pesquisas a faixa etária da
infância e da adolescência. Sentiu-se a falta de estudos que
avançassem na idade dos participantes para identificar a repercussão
da discussão de conflitos morais, enquanto método de trabalho, no
desenvolvimento do adulto em ambientes de educação formal e não-
formal.
Sugere-se que novas pesquisas sejam realizadas ampliando a
busca em bases de dados e repositórios de teses e dissertações
objetivando o mapeamento de estudos que tenham como objetivo
intervir no comportamento moral de adultos a partir da perspectiva
piagetiana.
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A EDUCAÇÃO MORAL E AS MEDIDAS
SOCIOEDUCATIVAS: UM DIÁLOGO ENTRE
JEAN PIAGET E PAULO FREIRE
1
Henrique Abarca Schelini CARNEVALLI
2
Introdução
Este capítulo trata de uma pesquisa de Mestrado realizada na
Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), entre os anos de 2016-
2018, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho”,
Campus de Marília. Ela contou com o financiamento da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) e seus objetivos se concentraram em 1) caracterizar a
moralidade e a consciência social de adolescentes em conflito com a
lei através das Medidas Socioeducativas (MSE) em meio aberto de
Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) e de Liberdade Assistida
(LA); e em 2) analisar de que forma, sob o ponto de vista deles, as
medidas contribuíram para o seu desenvolvimento moral e social.
A pesquisa baseou-se nas concepções teóricas de Jean Piaget
(1896-1980) sobre o desenvolvimento da inteligência e sobre o
1
Este texto é parte da dissertação de Mestrado do autor, que se intitula
Desenvolvimento moral e social de adolescentes em conflito com a lei e a contribuição
das medidas socioeducativas (CARNEVALLI, 2018).
2
Mestre em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília, São
Paulo, Brasil. E-mail: henriqueabarca@gmail.com
414
desenvolvimento da moral, em que se viu a importância que os
esquemas de ação assumem na elaboração dos conceitos e a
importância que a cooperação e o respeito mútuo exercem na
chegada de uma moral autônoma. Além deste autor, baseou-se
também em Paulo Freire (1921-1997), a partir do qual pensou-se
em uma concepção de educação moral que pudesse, através do
diálogo, da conscientização, da solidariedade, da troca, levar os
adolescentes em conflito com a lei, a passar por mudanças na sua
maneira de enxergar o mundo e a projetar o seu futuro.
Tendo em vista o possível diálogo entre esses dois grandes
autores quanto à educação moraldiálogo o qual fizemos em nossa
pesquisa de Mestrado –, este capítulo tem como objetivo abordar a
concretização da educação moral no âmbito das Medidas
Socioeducativas a partir das contribuições de Piaget e de Freire.
As medidas socioeducativas e a educação moral
Se analisarmos os serviços de Medidas Socioeducativas
veremos que eles passaram por profundas mudanças nas últimas
duas décadas, principalmente com o estabelecimento de três marcos
importantes: o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a
Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2009) e o
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE, 2012).
Juntos, de forma geral, eles asseguraram que as medidas em meio
aberto (Prestação de Serviços a Comunidade e Liberdade Assistida)
deveriam garantir aquisições aos adolescentes, como a segurança nas
acolhidas, a convivência familiar e comunitária e a promoção do
desenvolvimento de uma autonomia individual, familiar e social.
415
Com este novo arcabouço legal, o Estado, a família e a
sociedade civil, deveriam sempre acolhê-los dignamente, construir
um ambiente favorável ao diálogo e os estimular a apresentar as suas
necessidades e interesses. As ões, fundamentadas em princípios
éticos de justiça e cidadania, deveriam promover também o acesso
dos adolescentes a oportunidades que os desafiassem e os
motivassem a construir ou reconstruir um projeto de vida,
desenvolvendo potencialidades e oportunizando obter importantes
informações sobre direitos sociais, civis e políticos e às condições
para o seu usufruto.
No caso dos objetivos das medidas eles remeteriam a
realização de um acompanhamento social ao adolescente durante o
cumprimento da medida, com a criação de condições que visassem
a ruptura com a prática do ato infracional, em conjunto com o
estabelecimento de contratos e normas a partir das possibilidades e
limites de trabalho que regram o cumprimento da medida. Além
destas, as medidas visam contribuir para a construção da
autoconfiança e da autonomia dos adolescentes, possibilitar os
acessos e as oportunidades para ampliação do universo
informacional e cultural e desenvolver habilidades e competências.
Diante deste exposto, ficam claros os avanços conquistados
após décadas de abuso e inversões. Mas, ao mesmo tempo em que se
comemoram tamanhas conquistas, com objetivos tão pretenciosos e
ousados, na qual acima de tudo se prioriza as ões socio pedagógicas
em detrimento das punitivas, é que também, inevitavelmente, se
questiona a respeito da possibilidade real de tais feitos realmente
serem efetivados.
416
Vivendo em um país extremamente marcado pelas
desigualdades, com acesso a oportunidades muito distintas em cada
classe social e com uma educação cada vez mais pensada conforme
os interesses do capital financeiro, que pedagogia utilizar no interior
das medidas socioeducativas, capaz de, ao mesmo tempo, estimular
a autonomia, conscientizar sobre direitos e deveres, aumentar os
vínculos sociais e comunitários e oportunizar reflexões a respeito de
um projeto de vida?
Por mais que a resposta, talvez, para esta pergunta não seja
única, é mais do que certo que este não é um desafio para qualquer
educação, ainda mais quando se sabe que, de modo geral, medem-
se os educadores e os ambientes educativos apenas pelos resultados
que eles podem proporcionar e pouco se importam com a formação
do caráter que ela pode gerar. O que valem são as conquistas
materiais e os êxitos alcançados e, para ser bem-sucedido, o
pensamento hegemônico na sociedade é que o educando deve ser
um sujeito passivo diante do educador que professa o conhecimento
e a verdade.
No entanto, a partir de dois personagens geograficamente de
origem bem distintas, o suíço Jean Piaget e o pernambucano Paulo
Freire, é possível pensar em novas formas de conceber a educação,
nas quais acima de tudo promovem a reflexão e a consciência moral.
Ambos autores pensavam a educação como uma trajetória que
conduziria os sujeitos a uma autonomia, ou seja, a uma capacidade
de livremente e conscientemente decidir e discernir sobre aquilo que
acreditam ser o melhor não tão somente para si mesmo, mas como
também para o outro.
417
Para Piaget e Freire a educação deveria se voltar para o
desenvolvimento moral do sujeito, sendo que este não deveria ser
visto como uma tábula rasa ou um banco na qual se depositaria o
conhecimento. Pelo contrário, no caso aqui, os educandos, se
constituiriam em uma parte central deste processo. Por isto e por
outras que a educação para Piaget não era vista por como um
processo apenas do saber fazer, mas, sobretudo, do compreender.
Com a ciência de que para alcançar estes feitos seriam
necessárias relações de respeito mútuo e de cooperação, este autor,
segundo França (2016, p. 56), classificou diferentes técnicas de
educação: uma que se fundamentava em uma autoridade ou em uma
liberdade absoluta, outra relacionada aos procedimentos meramente
verbais e por último que se relacionava aos métodos ativos.
E, ao contrário de Durkheim, Piaget concebia uma educação
realmente moral como não sendo ela imposta pela sociedade, ou de
forma externa aos indivíduos, mas uma pela qual os valores
convertem-se em diretrizes internas, legitimadas pela própria pessoa.
Deste modo, Piaget realizou importantes críticas ao pensamento
sociológico deste autor, considerando totalmente inócuo os
verbalismos proferidos pelos adultos e as pressões advindas do
coletivo, que representavam a moral e a autoridade.
Para Piaget, se houvesse nos espaços um incentivo ao diálogo,
a convivência democrática, ações de solidariedade e cooperativas,
eles poderiam proporcionar ao próprio sujeito reflexões morais, que
consequentemente os levariam a tomar consciência de suas ações e a
projetar um futuro, não sendo preciso ações disciplinares e
coercitivas que apenas inibiriam o desenvolvimento dos sujeitos.
418
Paulo Freire “desenhou” uma educação libertadora, em
que nela estivesse intrínseca a ão humana (práxis) e que fosse capaz
de explicar, elucidar e superar as relações de opressão existentes entre
os indivíduos. Extremamente politizado e sensível às causas dos mais
vulneráveis nos seus mais variados sentidos ele não concebia a
educação como sendo ela praticada com neutralidade.
Oliveira (2014, p. 110) ressalta que para Freire o “processo
educativo é muito mais do que o conhecimento que se adquire
didaticamente nas instituições formais. A educação é, para Freire,
uma chave para a exploração do próprio dilema da existência
humana”. Dilema este constituído em meio, sobretudo, às
constatações de sofrimento em que principalmente a maioria dos
homens (e, mulheres também, como ele gostava de ressaltar) latino
americanos se encontravam nas cadas finais do século passado.
Freire era acima de tudo um educador que pensava as relações
humanas, desenvolvendo reflexões que foram além das práticas
educativas.
Além disto, para Boff (2008, p. 6 apud NOGUEIRA, 2011)
toda a sua pedagogia seria “uma permanente dialogação das pessoas
entre si e de todas as realidades circundante em vista de sua
transformação”, o que levou Freire a se preocupar em elaborar uma
prática educativa totalmente voltada para a humanização, em que,
por meio dela, o sujeito expeliria as marcas do opressor que com o
tempo foram por ele mesmo introjetadas. Sendo assim, o diálogo
entre as pessoas se tornaria em um dos principais instrumentos de
construção e desenvolvimento humano, sendo que através dele a voz
dos oprimidos seria escutada e a ação e a reflexão seriam
manifestadas.
419
Na obra Pedagogia da solidariedade (2014), Oliveira destaca
que hoje cada vez mais se encontra vítimas da desumanização, da
brutalidade, da violência e da selvageria que caracterizam a corrente
crise histórica, em todos os segmentos da sociedade, guardadas suas
especificidades e as devidas proporções. Para Freire esta
competitividade desenfreada destrói o ideal comunitário entre os
cidadãos, fazendo com que as relações de solidariedade se esvaíssem
sem ao menos ter sido plenamente vividas e compreendidas.
Se nas décadas passadas foi possível Jean Piaget e Paulo
Freire extraírem um substrato das relações que se mostravam injustas
e, por meio delas, construir uma pedagogia que promulgasse a
liberdade, a cooperação, o diálogo, a solidariedade e o respeito como
meios para o favorecimento do desenvolvimento da autonomia, o
que se pode dizer dos dias de hoje? Constata-se que realidade social
brasileira pouco mudou, tornando imprescindível para um educador
deste culo se debruçar sobre as palavras destes autores para, com
elas, transformar as práticas educativas e quem sabe ajudar a
transformar as condições de opressão e miserabilidade deste país.
Nestes subcapítulos que se seguem, então, pretende-se
primeiramente destacar as concepções de educação moral tanto para
Piaget, quanto para Freire. Veremos que ambos veem a autonomia
como uma condição ideal que toda educação deveria almejar. Serão
destacadas algumas críticas realizadas por Piaget as análises
sociológicas de Durkheim com o objetivo de jogar luz nas diferenças
de concepção de educação moral.
Posteriormente, no segundo subcapítulo, objetiva-se
destacar alguns pontos específicos que também são confluentes entre
a teoria Piaget e Freire. Analisaremos a importância da
420
conscientização freireana para uma melhor compreensão da
realidade a relacionando, sem tanto aprofundamento, com o
conceito de tomada de consciência em Piaget.
Em seguida, no terceiro subcapítulo, será abordada a
importância do diálogo em Freire como mediação sujeito/sujeito e
sujeito/mundo. Objetiva-se mostrar como esta ferramenta é de
fundamental importância para a instauração de um ambiente
cooperativo e democrático, pontos estes determinantes para o
desenvolvimento moral.
A pedagogia da solidariedade será abordada como prática de
reconhecimento do outro e vista como um importante meio para o
desenvolvimento humano, perdida nos tempos atuais, no quarto
subcapítulo. E, por fim, pretende-se relacionar a educação
libertadora de Freire com a realidade dos adolescentes e das medidas
socioeducativas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à
Comunidade.
Acredita-se que ao destacar as ideias destes autores em
conjunto com as questões envolvendo a moralidade e a consciência
social de adolescentes em conflito com a lei, este trabalho dará
suporte para que as práticas educativas não mais estejam soltas ao
léu. Pretende-se encher de significado e sentido cada nova ação, a
fim de colaborar para que possíveis novas reflexões individuais e
sociais aconteçam.
Para Paulo Freire é vital afirmar todas as vozes advindas dos
espaços de exclusão, a fim de que com eles os educadores se tornem
também figuras imprescindíveis nas trajetórias dos jovens brasileiros.
Um educador que não se preocupa com a justiça social acaba por
421
jogar no time daqueles que vivem a oprimir, objetivando nunca
estarem no lugar dos oprimidos.
Por uma outra Educação: contribuições de Piaget e Freire
É comum a sociedade, inexoravelmente, taxar a juventude
brasileira como sendo ela descompromissada, sem educação e
indisciplinada, culpabilizando muita das vezes os seus próprios
familiares por isto. Apesar de estes adjetivos serem ditos, em muitas
ocasiões, de modo preconceituoso, superficial ou até mesmo por
pessoas com pouca vivência com este público, a verdade é que a
realidade e os testemunhos de muitos adolescentes dão margem para
que tais afirmações ocorram.
No entanto, se por um lado é fato que muitos jovens
apresentam comportamentos moralmente questionáveis, não menos
verdade é afirmar que não são muitos os cidadãos que, em suas
esferas de atuação, têm lutado para que as condições desta juventude
sejam alteradas. Ao contrário do que normalmente se julga, cabe
também a sociedade e ao Estado, e não tão somente a família, se
responsabilizar por esta camada especifica da população, devendo,
cada um no seu âmbito, repensar as formas como tem se relacionado
com esta juventude.
Neste sentido, mesmo que haja irrisórias políticas públicas
voltadas para esta camada específica da população, se faz necessário
que todos aqueles que efetivamente convivem com estes infantes,
questionarem as concepções de educação adotadas cotidianamente,
seja nos lares, nas escolas ou nos espaços socioeducativos. Caso
contrário, será constante o risco da população brasileira se apegar em
422
um discurso fatalista, conformista e determinista no que se refere ao
futuro desta mocidade, sobrepesando ainda com mais rigidez o
destino daqueles que se encontra em um estado maior de
pauperização.
Acostumados com um modelo de educação historicamente
marcado pela figura da autoridade, na qual o professor, o pai ou o
adulto detém o domínio da palavra, a sociedade parece não perceber
que pode estar aí, justamente, o fio condutor do problema. Mas,
com as inúmeras vozes que vivem se queixando da inoperância de
suas ordens e da desobediência de seus governados, em todos os
cantos e esferas sociais, e diante ainda de tanto conflito e ineficiência,
é chegado o momento de questionar os seus discursos, suas palavras
coercitivas e as suas lições de moral que pouco tem atingido a
consciência destes jovens.
Deste modo, um autor que poderia ajudar todos aqueles que
realmente almejam ver o progresso da juventude é Jean Piaget, que
direta ou indiretamente pensou em uma concepção de educação
voltada para o desenvolvimento moral dos indivíduos. Indireta-
mente, pois, por mais que ele até tenha se dedicado a este campo de
reflexão, a sua epistemologia inevitavelmente também respingou
neste campo de estudo e de ação, deixando grande contribuição.
Relacionada com a formação de valores, a educação para este
suíço, da mesma forma como ocorre com o desenvolvimento
intelectual ou moral, não promoveria as principais transformações
dos sujeitos a partir das interferências ou imposições das figuras de
autoridade. Nas palavras de Piaget (1996, p. 272 apud MULLER,
2012, p. 455), no domínio moral, como no campo intelectual,
possuímos realmente o que conquistamos por nós próprios.
423
Assim, a educação não deveria se preocupar em “transmitir”
o conhecimento ou aquilo que é o certo e o errado, mas sim em
provocar, estimular e desafiar as pessoas a buscarem de forma
autônoma o seu próprio crescimento intelectual e moral, a partir das
suas próprias ões.
Piaget acreditava, então, que uma educação moral levaria o
sujeito a progredir de um estado de heteronomia, nas qual se
estabeleceria uma relação assimétrica com as autoridades e cujas
regras são concebidas do exterior para o interior, para um estado de
autonomia, em que as relações são cooperativas, existindo
reciprocidade e respeito mútuo e cujas regras são compreendidas e
respeitadas conforme o entendimento individual que se tem delas.
Para tal feito, segundo França (2016), existiriam conforme
Piaget três diferentes técnicas de educação moral: autoridade e
liberdade absoluta, procedimentos verbais e os métodos ativos. A
primeira se referiria ao uso, por um lado, do respeito unilateral e por
outro de uma liberdade absoluta da criança. A segunda referira-se às
lições de moral, aos relatos ou comentários de convenções morais, a
educação moral sem lugar de destaque e a partir dos interesses das
crianças. Por último, a terceira técnica, que se refere às experiências
morais.
A primeira e a segunda técnica são, com certeza, as mais
praticadas no Brasil. Elas se misturam e se confundem. A primeira
se relaciona tanto com as escolas tradicionais, baseando-se em um
ensino-aprendizagem através da oralidade, do respeito ao adulto e da
submissão às regras criadas por ele, como com aquelas que vivenciam
as relações com liberalidade e permissividade, na qual não existiria
nenhum tipo de coação dos mais velhos. Para Piaget nenhum nem
424
outro educam para a autonomia, sendo necessário, sobretudo
inicialmente, encontrar um ponto de equilíbrio entre ambos.
A segunda técnica, denominada de procedimentos verbais,
também é muito comum entre pais e educadores que creem que os
discursos morais e os exemplos de fora podem provocar
transformações na vida daqueles que escutam. Piaget subclassificou
este grupo, então, em quatro, em uma ordem crescente do mais
verbal para o mais ativo. As duas primeiras, a lição de moral e as
convenções morais em forma de exemplos estariam muito ligadas a
moral heterônoma e ao respeito unilateral. As outras duas seriam os
procedimentos que colocariam a moral sem um lugar de destaque
ou que seria destacada somente conforme a necessidade e os
interesses dos indivíduos. Nestes dois casos -se que as discussões
morais correriam seriamente risco de ficar em segundo plano.
Por fim, a terceira técnica se destaca como sendo a que mais
se assemelha com as concepções de desenvolvimento moral de Piaget,
pois nela o sujeito é “convidado” pelos educadores a realizar
experiências morais a partir das suas trocas com o outro e a partir
das suas próprias ações no mundo. A figura da autoridade neste caso
não teria um contorno de temor, mas sim de admiração, se
transformando em um mediador, provocador e desafiador. Por isso
que neste tipo de ação educativa os trabalhos em grupo funcionariam
tão bem, pois através deles os sujeitos teriam a oportunidade de se
posicionar e se conflitar com o ponto de vista dos outros.
Essa técnica implica fixar procedimentos que propiciem à
criança descobrir por ela mesma as obrigações morais por
meio de uma experimentação verdadeira que envolve toda
a sua personalidade, ao contrário das outras técnicas que
425
intuíam preparar a criança para a autonomia da
consciência com procedimentos fundados na heterono-
mia e no respeito unilateral (FRANÇA, 2016, p. 56).
Pautado nesta última técnica é que se a importância de
criar um ambiente em que verdadeiramente se tenha: respeito ao
outro e ao seu ponto de vista, diálogo como ferramenta de troca e de
crescimento moral e intelectual, relações de solidariedade e atos de
justiça que visem cada vez mais a reparação. Para Piaget é com este
espaço e com esta forma de educação que os valores serão pouco a
pouco construídos pelos próprios mecanismos cognitivos dos
sujeitos e não pela força da imposição externa.
Esta concepção de Piaget influenciou o delinear de um
importante conceito: o de “comunidade justa”, criada por Lawrence
Kohlberg (1927-1987), importante psicólogo americano que deu
continuidade aos estudos sobre o desenvolvimento moral. Nele, este
autor também engloba algumas características fundamentais para
que uma educação moral seja concebida. Enfatiza a necessidade de
um senso de pertencimento por parte de todos os participantes, de
uma consideração igualitária entre os membros, de uma colocação
democrática por parte das autoridades, de um diálogo construtivo
em cima da criação das regras.
As reuniões em grupo seriam então planejadas de forma tal
que a partir delas haveria uma significativa discussão moral e,
consequentemente, um desenvolvimento moral e humano. Muller
(2012) destacaria, ainda, um procedimento de educação moral
importante que é o existente na relação entre os valores abordados e
as situações práticas.
426
Os valores abordados e as situações práticas requer que os
procedimentos de educação moral promovam algum tipo
de interação entre o que está sendo discutido e a realidade
da vida, para que deixem de ser meros construtos teóricos
e passem a ser questões práticas da vida diária (MULLER,
2012, p. 456).
Toda esta discussão a respeito de educação é fundamental
quando se coloca em questão as medidas socioeducativas de
Prestação de Serviços a Comunidade e de Liberdade Assistida, pois
tanto uma quanto a outra são vivenciadas em comunidade ou em
grupos coletivos nas quais existem ou, deveria existir, uma interação
ativa e um diálogo constante, que ajudam muito nos processos de
responsabilização e de reflexão dos adolescentes que por tantos
motivos entraram em conflito com a lei.
Quanto a isso, é importante então destacar, até também para
compreender melhor as várias possibilidades de concepções
pedagógicas existentes, que esta forma piagetiana de conceber uma
educação moral é oposta daquela pensada pelo sociólogo Durkheim.
Para este, quanto à responsabilidade, ela nunca viria de um processo
interno e elaborado nas relações sociais, mas sim de fora do culpado.
E, para Fauconnet, seriam a compaixão e o humanitarismo deste
tempo justamente as responsáveis por ter feito a responsabilidade
enfraquecer. No início, a sociedade punia, não importava quem, e o
indivíduo era apenas um simples meio. Para eles a consciência
moral do sujeito seria consequência da consciência coletiva
(DONGO-MONTOYA, 2017).
Para Durkheim a moral seria uma só, sendo ela o resultado
da força do grupo via processos de socialização e não via processos
427
da coação ou cooperação social, como ressaltara tantas vezes Piaget.
Desta forma, a sanção, atrelada a moral, acabaria sendo utilizado,
acima de tudo, para preservar os valores do grupo em detrimento do
individual, diminuindo o impacto que existiria das relações
interindividuais entre crianças e adultos e também entre crianças e
crianças no desenvolvimento da moral. Esta visão tem um reflexo
decisivo nos processos educativos dos dias de hoje, fazendo com que
o ser humano se sujeite e se conforme com a realidade posta.
Para o conformismo obrigatório que é gerado em nossa
sociedade, um conjunto de crenças e pticas morais são
dadas ao indivíduo e a moral consiste em conservá-las
assim. Nesse contexto, é possível serem produzidas
algumas alterações dos usos e costumes estabelecidos, mas
o ideal es dado. Desse modo, a coação impõe um
sistema de regras e opiniões completamente acabados,
sendo inconcebível qualquer discussão ou interpretação
pessoal (DONGO-MONTOYA, 2017, p. 8).
Para aqueles que educam segundo a visão de Durkheim, a
educação jamais se tornaria um instrumento de questionamento, de
transformação e mudanças, que “o ideal e os direitos estão dados
e não precisam mais ser construídos”. Caberia a educação somente
estabelecer uma pedagogia da autoridade cuja disciplina seria
fundamental para garantir a ordem e regularizar as condutas
individuais de acordo com as regras sociais. “A autoridade é
absolutamente necessária na regularização da conduta, pois a moral
consiste num sistema de mandamentos e a consciência individual é
428
o produto da interiorização desses imperativos coletivos”
(DONGO-MONTOYA, 2017, p. 11)
Para Durkheim, a moral não é obra do indivíduo, mas da
sociedade, e a autoridade deriva dela, sendo que a educação, advinda
dos adultos, deve ensinar os indivíduos desde crianças a respeitar esta
vontade do coletivo, da sociedade. Um sujeito de moral seria, então,
nada mais nada menos do que aquele que se conforma com as regras
sociais, interiorizadas de fora para dentro pela força coercitiva dos
adultos.
O contrário ocorreria na educação moral de Piaget, que
nela se valorizaria a cooperação como método de resolução de
conflitos, em que o sujeito é estimulado a se situar como um sujeito
histórico, na qual “o ideal e os direitos são um vir a ser a ser
construído e reconstruído”. Assim, “qualquer que seja o domínio em
que se estenda a educação moral, o método ativo busca sempre: não
impor pela autoridade aquilo que a criança possa descobrir por si
mesma e em consequência, criar um meio social especificamente
infantil no qual a criança possa fazer as experiências desejadas”
(PIAGET, 1930/1996, p. 24)
Diante destas diferenças, a pergunta que fica seria: “quem
prepara melhor a criança para sua futura tarefa de cidadão: o hábito
da disciplina exterior adquirido sob a influência do respeito
unilateral ou o hábito da disciplina interior, do respeito mútuo e do
autogoverno?” (DONGO- MONTOYA, 2017, p. 13).
Um autor que poderia muito bem responder esta pergunta e
também apresentar um modelo de educação moral seria Paulo Freire.
Para este pernambucano seria impossível educar sem ter esperanças
no ser humano, na sua possibilidade de transformação e na sua
429
capacidade de construir uma nova realidade. Considerado por
muitos como um utópico, a sua noção de esperança esta toda ela
fundada na celebração da ação humana criativa e num ataque sem
trégua ao medo da liberdade. “Não utopia verdadeira fora da
tensão entre a denúncia e o anúncio de um futuro a ser criado,
construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e
homens” (FREIRE, 1992, p. 91).
Assim, a utopia em Freire, antes de tudo, como toda a sua
concepção de educação, implicaria em uma denúncia dos processos
de desumanização, de opressão e de todas as formas de
aniquilamento do sujeito, para que, em seguida, por meio da práxis,
e não por meio de meros falatórios, se consolidasse uma nova
humanização. “Uma práxis caracterizada por uma dimensão
profética. Essa ideia de utopia não pode ser compreendida sem o
sentido da esperança, como condição da busca humana devido à sua
condição de inacabamento” (MENDONÇA, 2008, p. 32, apud
NOGUEIRA, 2011, p. 4).
Para ele, não é qualquer educação que respeitaria tanto esta
condição de inacabamento do sujeito como o faria ter consciência
dela. Somente a “educação crítica considera os homens como seres
inacabados, incompletos, em uma realidade igualmente inacabada e
juntamente com ela” (FREIRE, 1979, p.81). Somente este tipo de
educação denuncia a realidade opressiva e injusta, para, depois,
realizar a crítica transformadora e o anúncio de outra realidade. O
anúncio é a necessidade de criar uma nova realidade. Essa nova
realidade é a utopia do educador (GADDOTI, 1996, p. 81 apud
NOGUEIRA, 2011, p. 4).
430
Para Freire a esperança é uma prática de testemunho, um
ato de imaginação moral que encoraja educadores
progressistas e outros a firmarem-se na margem da
sociedade, de pensar além das configurações de poder
existentes para que se possa imaginar o impensável em
termos de como se pode viver com dignidade, justiça e
liberdade. A esperança demanda ancorar-se em práticas
transformativas e uma das tarefas do educador
progressista é desvelar oportunidade para a esperança,
sejam quais forem os obstáculos (FREIRE, 2014, p. 104).
Freire é crítico de modelos educativos que impossibilitam a
libertação e a conscientização dos sujeitos, nas quais tem como
objetivo apenas “treinar” os indivíduos para que sejam bem-
sucedidos e consigam alcançar mais rapidamente o topo da pirâmide
social. É contra um modelo que ensina os indivíduos a serem
obedientes ao sistema sem ter consciência e a respeitar cegamente as
regras, servindo apenas de mão de obra barata do mercado de
trabalho.
Para ele, esta doutrina que vem de cima, à custa de números,
não se interessa em ver os alunos atuando com autonomia. Por isto
que sem um caráter revolucionário nas práticas educativas perde-se
totalmente o seu maior objetivo, que é humanizar e cooperar para a
formação de uma consciência crítica nos indivíduos. Segundo ele,
estas práticas pedagógicas sufocam o desejo intrínseco do humano
de “ser mais” e querem a todo custo limitar a liberdade que a duras
penas é conquistada com o processo de conscientização e
humanização. É importante saber que:
431
Feito para o ser mais, o ser humano é ontologicamente
chamado a desenvolver, nos limites e nas vicissitudes de
seu contexto histórico, todas as suas potencialidades
materiais e espirituais, buscando dosar adequadamente
seu protagonismo no enorme leque de relações que a vida
lhe oferece, incluindo as relações no mundo e com o
mundo, as relações intrapessoais, interpessoais, estéticas,
de gênero, de etnia e de produção (CALADO, 2011, p. 5
apud NOGUEIRA, 2011, p. 5).
O diálogo seria, então, para Freire um importante
instrumento de horizontalidade entre os sujeitos, na qual com
humildade e respeito se chegaria a uma condição de autonomia.
Além do que, para ele, esta ferramenta seria a responsável por
promover não mudanças na realidade como construir o novo,
criando cultura e história. Por isto, para aqueles que oprimem e
deseja ver a ordem mantida, a palavra dos rebeldes precisa ser
anulada e o antidiálogo instaurado. É assim que a condição moral
heterônoma do sujeito é conservada.
Na educação dos dias de hoje, uma forma muito comum
utilizada pelos educadores e que vai à contramão da capacidade
transformadora e criativa do diálogo seria o verbalismo. Paulo Freire
denuncia esta forma vazia com que as palavras são anunciadas, pois,
a partir desta comunicação não é possível gerar uma reflexão
verdadeira, sendo que, ao contrário, no diálogo, a palavra seria
concebida como algo dinâmico, ligado com as experiências. Ela é
práxis: é teoria e prática ao mesmo tempo.
Crítico ferrenho da educação utilitarista/bancária, Paulo
Freire valoriza as experiências do sujeito e a partir delas diz que “as
432
pessoas responsáveis pela educação deveriam estar inteiramente
molhadas pelas águas culturais do momento e do espaço onde atuam
(FREIRE, 2014, p. 56). O que ele anseia, com seu método, é dar
sentido e convidar os sujeitos a serem os principais autores da
construção de sua própria história, que na visão bancária o
educando é sempre coadjuvante, renegado ao posto de ignorante,
cabendo a ele apenas se adaptar passivamente ao mundo do
educador, possuidor este do conhecimento e da moral, revestido na
pele daquele que age sempre “pelo bem”.
Freire apresenta outra concepção de educação, convidando a
todos, diante de um atual quadro sombrio que de modo nenhum
difere dos tempos em que atuou, a se rebelar contra este sistema que
desumaniza, cria hierarquias e distancia os corpos. É inegável que
muito do que envolve a relação educador-educando atualmente
ainda está permeado de autoritarismo, o que faz com que o sujeito a
ser educado se torne alheio aos processos de responsabilização e aos
processos de transformação da realidade. Isto pode ser visto nas
relações professor/aluno, pai/filho, pastor/membro de igreja e outras
relações sociais.
Seria conscientizando de forma dialógica os sujeitos, os
humanizando, que se possibilitaria vencer esta ideologia da opressão,
que sempre injeta certo fatalismo no oprimido.
“Quando nós, homens e mulheres, descobrimos que no
‘fazer’ nós estamos criando e recriando a realidade, nós estamos
aprendendo o significado de ‘cultural’” (FREIRE, 2014, p. 94).
Somente uma educação problematizadora, em que se visa o ser mais’
não aceita um presente ‘bem-comportado e um futuro pré-
moldado como querem os opressores.
433
Manter o senso de humanidade é o desafio maior que se
apresenta nos dias de hoje, ao mesmo tempo em que a esperança é a
única que não pode ser perdida. Freire deixa claro que ‘ser mais’ é
condição ontológica dos indivíduos e que, por isto, ele está sempre
em busca. A construção de um mundo distinto deste que está posto
depende também do modo como enxergamos o outro e nos
relacionamos com eles.
Se, para uns, o homem é um ser da adaptação ao mundo
(tomando-se o mundo não apenas em sentido natural,
mas estrutural, histórico-cultural), sua ação educativa,
seus métodos, seus objetivos, adequar-se-ão a essa
concepção. Se, para outros, o homem é um ser de
transformação do mundo, seu quefazer educativo segue
outro caminho. Se o encararmos como uma ‘coisa’, nossa
ação educativa se processa em termos mecanicistas, do
que resulta uma cada vez maior domesticação do homem.
Se o encararmos como pessoa, nosso quefazer será cada
vez mais libertador (FREIRE, 1967, p. 124).
É fundamental não se esquecer de que são as camadas mais
pobres da população as que mais sofrem. Estes, além de viverem com
o estigma de incapazes, vagabundos e delinquentes por parte dos
olhares preconceituosos e desconfiados de uma parte significativa da
sociedade, ainda precisam administrar a sua própria estima. O
educador que não compreender bem esta realidade e a história do
Brasil não vai conseguir dialogar com esta população específica do
país.
434
São eles que têm os seus sonhos ancorados precocemente
devido às tamanhas dificuldades econômicas, sociais de outras
ordens e precisam encontrar outra educação, que o auxilie nos
processos de humanização e libertação. E enquanto houver mundo
haverá esperança e enquanto houver sujeito e não coisas’ haverá
sonhos, pois como diria Freire, “gosto de ser gente porque,
inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas consciente do
inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença
profunda entre o ser condicionado e o ser determinado” (FREIRE,
1999, p. 59)
Muito ainda se discute sobre a importância de se trabalhar o
desenvolvimento moral das crianças na Educação Infantil, etapa da
Educação Básica, que antecede os anos iniciais do Ensino
Fundamental. Sem negar a importância do brincar, tão peculiar a
essa fase, ainda nos deparamos com afirmações, tais como: “ela vai
para o parquinho” ou então “lá eles brincam”. Defendemos que
elas realmente brincam e a importância desses momentos está
prevista na Base Nacional Comum Curricular (2017), contudo,
também aprendem muito e mais do que isso. Nas interações com os
pares, elas se desenvolvem moralmente, que tais relações são
permeadas pela moralidade.
Educação libertadora e medidas socioeducativas
Por mais que o Brasil tenha avançado nas últimas três
décadas no que diz respeito aos direitos dos adolescentes, criando leis
especificas de proteção, a realidade desta parcela da população está
longe de ser a ideal, sobretudo daqueles mais vulneráveis econômica
e socialmente. Apesar da Constituição de 1988 e do Estatuto da
435
Criança e do Adolescente, em 1990, assegurarem que tanto a
Educação como a Assistência Social, enquanto política pública
governamental deveria avançar na cobertura deste público em
particular, a complexidade dos problemas históricos e a omissão dos
governantes e legisladores impedem mudanças sociais e econômicas
mais significativas, fazendo com que as leis apenas anunciem
possibilidades, mas não confirmem e concretizem as transformações
necessárias.
Para que se tenha uma ideia deste abismo, dados recentes
divulgados por um estudo realizado pelo Governo Federal em
parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF),
referentes ao ano de 2014, revelam que o número de adolescentes
assassinados no Brasil vem subindo de forma contínua desde 2012.
O levantamento mostra que em municípios brasileiros com mais de
100 mil habitantes, a taxa de assassinatos de jovens chegou a 3,65
por mil adolescentes ou seja, para cada mil adolescentes que
completam 12 anos, mais de três são vítimas de homicídios antes de
chegar aos 19 anos. Em 2011, o Índice de Homicídios na
Adolescência (IHA) registrou 2,8 por mil adolescentes.
Se não bastassem estes dados preocupantes, estatísticas do
Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei, do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostram que do ano de 2015
para o ano de 2016, o número de adolescentes cumprindo medidas
socioeducativas no país dobrou de 96 mil menores para 192 mil. As
informações deste levantamento indicam que o tráfico de drogas,
dentre os atos infracionais, é o crime mais frequente entre os jovens
havia quase 60 mil guias ativas expedidas pelas varas de Infância e
Juventude do país por esse ato infracional. o delito de estupro
436
cometido pelos menores aumentou de 1.811, em novembro de 2015,
para 3.763, em novembro de 2016.
Os dados revelaram, ainda, que cerca de 90% dos jovens que
cumprem medida socioeducativa eram do sexo masculino, sendo a
maioria pobre e negra, sendo a liberdade assistida a medida mais
aplicada aos menores, atingindo atualmente (2016) 83.603
adolescentes. A segunda medida mais aplicada era a prestação de
serviços à comunidade, abarcando 81.700 jovens, que, como
explicado neste trabalho, devem executar tarefas gratuitas e de
interesse comunitário durante período máximo de seis meses e oito
horas semanais. Em seguida vêm a internação com atividades
externas (33.658 jovens), semiliberdade (17.213) e internação sem
atividades externas (13.237).
Diante destes números a representante do UNICEF no
Brasil, Florence Bauer, responsável pela realização do estudo, é
taxativa ao afirmar que o que temos visto hoje no Brasil é que a falta
de oportunidades tem determinado cruelmente a vida de muitos
adolescentes e que, continua ela, enquanto o Brasil nas últimas
décadas conseguiu reduzir a mortalidade infantil significativamente,
o número de mortes entre os adolescentes cresceu de uma maneira
alarmante. Para ela, é primordial, então, que o país valorize melhor
a segunda década de vida e à adolescência, a importância merecida.
É sabido que as causas da pobreza, da violência e do
desemprego são históricas e que estão relacionadas com diversos
fatores e que, além disto, estas são questões que não serão resolvidas
de um dia para o outro. No entanto, por mais que haja problemas
estruturais e de ordem macroeconômica em nossa nação, é sim
possível fazer muito mais por estes adolescentes. É ‘dito comum’ que
437
para transformar a realidade brasileira e valorizar o adolescente,
principalmente o que se encontra em situação desfavorável social e
economicamente, o setor que deveria ser priorizado e receber maior
investimento seria o da educação.
Se adentrarmos nesta perspectiva, de fato, será constatado
que durante décadas, tanto nos regimes militares, quanto nos
considerados democráticos, o que se tem visto é um sucateamento
da educação, sobretudo a pública. E o que é mais triste e importante
saber é que não priorizá-la faz parte de um plano político maior.
Dados recentes confirmam que os investimentos na área da educação
têm sofrido uma considerável redução.
Portanto, é com a ciência de que as concepções de educação
se alteram com o tempo, com os ideais e conforme os interesses
vigentes de cada época que as perguntas que surgem a partir deste
quadro são: teria mesmo a educação, hoje, condições de transformar
a realidade do país? E, com relação as medidas socioeducativas, tema
da nossa pesquisa, de que forma a educação poderia provocar
maiores transformações morais e sociais nestes sujeitos? Quais são os
impactos que as práticas pedagógicas contidas nestas medidas têm
na vida destes adolescentes?
vimos anteriormente as concepções de Piaget e Freire
sobre a educação moral. Neste momento procuraremos aprofundar
um tipo de educação, que segundo Freire, poderia proporcionar ao
ser humano uma nova consciência de si e do mundo,
transformando-o em um sujeito histórico e transformador: a
educação libertadora. Para ele, somente em um espaço em que esta
concepção de educação é realmente praticada é que se
desenvolveriam relacionamentos com compromisso fraterno,
438
solidário na qual se resgataria a dignidade humana. uma educação
que promove atitudes de solidariedade, justiça e equidade e que
avança cada vez mais numa linha de compromisso social e de
transformação do sistema político e econômico é que poderá libertar
o povo das amarras dos opressores.
Pelo fato destas ideias de educação terem surgido em um
período em que as desigualdades do capitalismo se faziam mais
latentes em nossa sociedade, muitas pessoas consideram a teoria
freireana ultrapassada. No entanto, por mais que tenham passado
décadas da época de sua atuação e que até mesmo a democracia
tenha sido estabelecida em nosso país, a realidade do Brasil continua
praticamente a mesma em muitos dos seus aspectos. Deste modo, o
olhar que Freire construiu como o ideal para a educação naquela
época pode facilmente ser aplicado para os nossos dias, pois é notório
que a sociedade continua fortemente dividida em classes e ideologias.
Não é por acaso, neste sentido, apenas pra fazer um parêntese
importante, que operações como asEscolas sem Partidovêm com
toda volúpia querendo calar e anular pela raiz a força de educadores
que proporcionam aos seus educandos uma leitura não tão somente
de palavras, mas de mundo. O que a classe dominante anseia é
impossibilitar uma maior interação entre educador- educando e
evitar que os sujeitos adquiram um olhar mais crítico para a realidade,
para que deste modo consigam dar continuidade sem muitas
resistências em seus projetos de poder.
O educador, por sua vez, heroicamente, deve resistir e
continuar a sua luta infindável pela valorização da formação dos
homens e mulheres que contigo se relacionam. Resistir a todo tipo
de engodo e de desvalorização é uma maneira de lutar contra um
439
sistema político que tem claramente mostrado as suas ‘garras’,
fazendo com que retrocessos aconteçam após importantes avanços
na área da educação.
Tudo isto é fruto de uma relação histórica em que o Brasil
por séculos tem se comportado como ‘marionete’ dos interesses do
capital estrangeiro. Mas nada desta realidade sofre algum tipo de
enfrentamento e mudança se os educadores ‘abaixarem as suas
guardas’, deixando de promover a conscientização aos seus
educandos. Eles devem saber que são sujeitos capazes de alterar a sua
própria realidade e também a si mesmo.
Nada se consegue implementar dentro de todas as
diversas concepções sem a presença atuante e
insubstituível do educador comprometido com a missão
de educar, segundo Freire, para a cidadania e a autonomia,
conscientizando e libertando através do diálogo e da
reflexão, num intercâmbio contínuo de saberes, pois é
assim que se estabelecem as possibilidades comunicativas,
fazendo com que o educando se transforme em sujeito da
sua própria história (JUNQUEIRA, 2011, p. 94).
Quando o assunto é medidas socioeducativas o papel da
educação também é primordial e os educadores que acompanham os
adolescentes assumem um papel muito relevante nas possibilidades
de desenvolvimento dessa juventude. Não se pode esquecer que o
objetivo do SINASE é justamente promover o desenvolvimento dos
adolescentes baseados em princípios dos direitos humanos,
defendendo um alinhamento conceitual, estruturado, principal-
mente, em bases éticas e pedagógicas.
440
Portanto, se nesta concepção libertadora promulgada por
Freire a educação é um direito humano básico, capaz de alicerçar
uma sociedade muito mais justa e solidária, na qual ocorreria a
garantia da pluralidade e da inclusão em sentidos amplos, a pergunta
que aparece é se a educação libertadora também poderia ser praticada
nos espaços de cumprimentos das medidas socioeducativas. Este
trabalho acredita que sim.
Deste modo, a diversidade de histórias de vida de cada
adolescente e as visões de mundo vivenciados em um ambiente
socioeducativo se torna pedagógica e proporciona a construção de
valores democráticos, cujo princípio do respeito, talvez, aparece
como o mais importante. Isto é muito relevante para os adolescentes
que estão cumprindo medidas socioeducativas, pois eles carregam
estigmas sociais pesados demais que muitas vezes os inferiorizam,
provocando uma revolta ainda maior da sociedade a sua volta.
Quanto à educação libertadora, é importante saber que para
o autor pernambucano, uma relação pedagógica nesta concepção
nasce da realidade e da necessidade do educando, e através dela é que
se cria um ambiente de escuta, na qual processualmente se estabelece
um clima de confiança entre educador e educando. É através do
diálogo e a partir das realidades de vida que se produzirá um
conhecimento revolucionário e se construirá uma reflexão
transformadora. Para ele todos os indivíduos são diferentes uns em
relação aos outros, sendo que essas diferenças não são naturais, mas
sim histórica, social e culturalmente construídas, o que faz com que
as trocas entre os indivíduos permitam o reconhecimento do outro
e de outras formas de vida diferentes.
441
Paulo Freire foi, talvez, quem melhor compreendeu a
necessidade de trabalhar na educação dentro da realidade e do
universo da população para, assim, atingir os objetivos propostos.
Freire conceitua a educação como pessoas que se vão completando
mutuamente ao longo de suas vidas. Muito importante para ele é a
questão da historicidade, do diálogo e da conscientização. Tem
como princípio a pessoa e a realidade em que ela vive. Procura ouvir
e criar condições para que a transformação aconteça a partir da
conscientização, motivando a saída da situação de oprimido e
provocando a sua libertação (JUNQUEIRA, 2011, p. 95).
Uma postura aberta do educador diante do educando, então,
se revela como de fundamental importância para que se construa um
ambiente democrático de educação, na qual com o passar do tempo,
existirá o reconhecimento do outro e também um reconhecimento
de si próprio. Tudo isto favoreceria aquilo que é para Freire vital: a
emancipação do sujeito. A partir de uma relação de respeito pelo
outro, conquistado, sobretudo, como frisado acima, pela
ferramenta do diálogo e do respeito, o educando vai aos poucos se
desinibindo e se tornando uma pessoa mais autoconfiante para lidar
com os obstáculos que a vida lhe impõe, conseguindo traçar um
caminho próprio, em que o seu próprio projeto de vida é costurado,
deixando de viver, muitas vezes, em função da vontade alheia.
Por isto, importante ressaltar, a presença afetiva do educador
ao lado dos educandos durante os meses em que estão cumprindo a
medida socioeducativa se mostra necessária e decisiva, pois muitos
adolescentes, diante da infração que cometeram, esperam encontrar
nos locais de cumprimento um ambiente hostil e de acusação, mas
são impactados por atitudes de aproximação, de diálogo, de
442
solidariedade, de respeito e de reconhecimento. Isto é ainda mais
forte para eles quando as suas vidas foram marcadas por atitudes de
desrespeito, de omissão, de separação, de violência e na qual a sua
fala foi silenciada ou nem sequer estimulada.
Atitudes de acolhimento realizadas pelos educadores
demonstram, portanto, acima de tudo, que esperança da parte
destes quanto ao futuro dos adolescentes. Acreditar que o episódio
na qual os jovens entraram em conflito com a lei servirá de
aprendizado é o mínimo que se pode esperar, pois caso contrário as
práticas pedagógicas serão inócuas e vazias de significado. O olho no
olho, o sorriso, o tocar respeitosamente, as brincadeiras espontâneas
vão firmando um relacionamento em que esperança no
desenvolvimento e na transformação. Sem que isto aconteça não
existirá socialização, interação e uma troca verdadeira de pontos de
vista.
É a partir da construção, juntamente com o adolescente, de
um ambiente facilitador nos locais em que eles cumprem a medida
de Liberdade Assistida ou Prestação de Serviços à Comunidade, que
se acredita na consecução de provocar importantes reflexões e,
consequentemente, possíveis mudanças nas ações morais e sociais
destes jovens. Mesmo sabendo que dificilmente as atividades, os
serviços prestados e as relações estabelecidas nestes espaços vão
transformar a vida dos sujeitos por completo, espera-se que haja uma
tomada de consciência da realidade, das relações e de si mesmo.
No processo de ão-reflexão-ação o educando
conscientiza-se, liberta-se e produz o conhecimento,
partindo da análise crítica da realidade existencial,
podendo, desse modo, tomar decisões, para as ões
443
transformadoras necessárias na sociedade. Durante esse
processo educativo o educando desenvolve uma
consciência histórica, tornando-se criador da cultura e
responsável pela escolha e construção do próprio destino.
Esse método foi construído com a experiência do povo,
querendo inverter as regras da educação tradicional para
que o aluno pudesse ser o sujeito da própria história e
sujeito da mudança em sua vida e na vida da sociedade
em geral (JUNQUEIRA, 2011, p. 96).
Importante destacar que a educação libertadora caminha
junto com o processo de conscientização e de humanização. Freire
diz “em linguagem direta: os homens humanizam-se, trabalhando
juntos para fazer do mundo, sempre mais, a mediação de
consciências que se coexistenciam em liberdade” (FREIRE, 2005, p.
22). Desta feita, sentir-se acolhido e participante de todos os
processos humaniza as relações e geram o amadurecimento de
sentimentos de solidariedade e de justiça.
E é justamente a partir do momento em que os adolescentes
refletem sobre a justiça e começam a se colocar no lugar do outro
que se percebem os frutos deste tipo de educação, que visa, no fundo,
fazer com que os sujeitos adquiram uma nova forma de se relacionar
com a própria vida e com as suas experiências na realidade a sua volta,
propiciando uma transformação de mão dupla: da realidade e de si
mesmo. É assim que o conhecimento é produzido e o ser humano
lentamente vai se desenvolvendo cognitivamente, tendo
oportunidades de também se desenvolver moral e socialmente.
444
Considerações finais
Para Freire a educação libertadora acontece quando existe
interação entre os sujeitos, pois por meio dela é que ocorre a práxis,
ou seja, os processos de ação-reflexão, na qual se busca uma
consciência cada vez maior sobre a realidade, e o que ocasiona em
uma transformação social pela justiça. Os elementos constitutivos da
educação libertadora são, em sua essência, a pessoa como sujeito do
seu próprio desenvolvimento, a educação como meio de
transformação social com foco na justiça. Através desta educação os
direitos da pessoa humana se tornam plenamente reconhecidos e isto
é determinante para o seu posicionamento político na sociedade.
Então, a minha resposta é que antes de tudo nós temos
que respeitar os sentimentos das pessoas. Mas nós temos
que dar o melhor de nós para ajudar as pessoas a terem
coragem para se confrontar a si mesmas. Porque umas das
condições para s termos esperança, e para nos
engajarmos em qualquer forma de luta socialmente
significante, é lidar com nossas próprias dificuldades e
não ficar com raiva dos outros. (FREIRE, 2014, p. 102).
Por fim, -se que é possível, enquanto educador, utilizar nas
práticas pedagógicas com os adolescentes que prestam as medidas
um olhar educativo-libertador. Tudo dependerá dos nculos
costurados, dos diálogos estabelecidos, da abertura dada e da
construção respeitosa. Quando tudo isto acontece, por mais que o
adolescente fique um tempo considerado curto cumprindo a medida,
algo de novo poderá ocorrer em sua forma de pensar e de olhar para
445
o mundo e para a si próprio. Semnisto, não razão para ser um
educador.
É de fundamental importância que haja nestes ambientes,
liberdade para ser o que se é, para falar o que se pensa e para se
movimentar conforme a sua autonomia. Em tempo de negação do
outro e de extremo individualismo uma atenção maior que se ao
sujeito o impacta de forma surpreendente. Importante novamente
lembrar que quem cumpre medida socioeducativa não está
cumprindo uma pena, mas está sim buscando encontrar o seu eu
perdido diante de tantos outros conflitos, bem maior e mais
profundo do que os conflitos existentes com a lei.
Humanizar-se com eles é elaborar um convite para ser
mais”. A humildade, a cooperação, a comunhão, o reconhecimento,
a aproximação, quando reconhecidas, se tornam ações e atitudes
poderosas em um relacionamento, capazes de provocar
transformações significativas no sujeito, que se encontra, sobretudo,
em uma fase peculiar de desenvolvimento.
Assim, uma combinação entre medidas socioeducativas e
educação libertadora é sim possível de ser realizada. Talvez seja
exatamente ela que esteja faltando em muitos destes espaços. E, na
verdade, somente ela, poderá tirar o sujeito da prisão de si mesmo o
fazendo olhar para os lados, além do quê, somente ela poderá tirar
dos educadores e dos educandos o medo da liberdade, do
conhecimento, do outro e do novo.
446
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https://doi.org/10.36311/2024.978-65-5954-440-0.p451-488
SIGNIFICAÇÕES DE JUSTIÇA APRESENTADAS POR
ESTUDANTES DO ENSINO FUNDAMENTAL,
CAPTURADAS POR MEIO DE HISTÓRIAS DILEMÁTICAS
Francismara Neves de OLIVEIRA
1
Joana Virgínia Campana NAKANO
2
Eliane Giachetto SARAVALI
3
Carlos Eduardo de Souza GONÇALVES
4
Silvana THOMAS
5
Ana Cristina da Silva AMADO
6
Leandro Augusto dos REIS
7
Guilherme Aparecido GODOI
8
1
Pós-Doutorado em Psicologia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e
Pós-doutorado em Educação pela Universidade Norte-Paranaense (UENP), e
Professora Associada da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná, Brasil. E-
mail: francismara@uel.com.br
2
Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e docente na
Rede Municipal de Ensino de Londrina, Paraná, Brasil.
E-mail: joana_campana@outlook.com
3
Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e
Professora Assistente da Faculdade de Filosofia em Ciências (FFC), Universidade
Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília.
E-mail: eliane.g.saravali@unesp.br
4
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e servidor
público federal técnico-administrativo como Psicólogo do Instituto Federal do Paraná
(IFPR), Campus Londrina, Paraná, Brasil.
E-mail: prof_carloseduardo@outlook.com
5
Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná,
Brasil. E-mail: silvanathomas1986@gmail.com
6
Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade
de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil.
7
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e Professor
Adjunto do Departamento de Música e Teatro, Centro de Educação, Comunicação e
Artes da UEL, Paraná, Brasil. E-mail: ars_leandro@uel.br.
8
Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná,
Brasil. E-mail: guilhermeapgodoi@gmail.com
452
Introdução
O capítulo apresentado é fruto de pesquisa desenvolvida por
membros de dois grupos de pesquisa cadastrados no CNPq:
“Processos do ensinar e aprender: aspectos sociais, afetivos e
cognitivos e a construção da convivência sociomoral na escola”,
vinculado à Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Grupo de
Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Desenvolvimento na
Perspectiva Construtivista (GEADEC), vinculado à Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista
(UNESP), Campus de Marília, e que produzem pesquisas de modo
integrado, analisando diferentes temáticas à luz das propostas da
teoria de Jean Piaget (1896-1980).
Justiça, temática da discussão desse capítulo, vincula-se à
função social da escola, de humanização, formação reflexiva e
convivência ética, respeitosa e democrática. Ancorada na
Epistemologia Genética e inspirada pelos princípios do método
clínico-crítico, a pesquisa desenvolvida foi qualitativa, transversal e
descritiva e objetivou conhecer as significações de justiça de
estudantes (1º, e anos do Ensino Fundamental I e e anos
do Ensino Fundamental II) convidados a responder 6 dilemas
hipotéticos. Participaram 10 alunos de duas escolas públicas
paranaenses, de igual condição. Os resultados evidenciaram
significações de justiça retributiva (sanção expiatória moral do
dever e obediência ou sanção por reciprocidade autonomia e
coletividade), imanente (originada nos objetos) e distributiva
(solidariedade e responsabilidade coletiva) como importantes ao
desenvolvimento moral de crianças e adolescentes. Constatou-se que
453
a idade ou ano de escolarização não garante construções mais
elaboradas de justiça, o que sugere novos estudos investigando
práticas educativas correlacionadas. O uso de dilemas hipotéticos se
mostrou eficaz metodologicamente para identificação de
significações de justiça e podem orientar o trabalho reflexivo de
professores junto aos estudantes no contexto escolar.
A concepção de justiça, tal como enfatizada no presente
artigo, constituiu-se noção explorada a partir do aporte teórico da
Epistemologia Genética, no campo da moralidade (PIAGET,
1932/1994). Piaget concluiu que desenvolvimento similar entre
as construções de conhecimentos físicos, lógico-matemáticos e
sociais, os quais partem de estruturações mais concretas e
egocêntricas e evoluem para formas mais descentradas, conforme
avança o processo de abstrações e a solidariedade entre aspectos
envolvidos no mecanismo de equilibração majorante (MONTOYA,
2013).
Certa limitação na compreensão do campo epistemológico
piagetiano pode ser percebida no meio acadêmico que revela a
necessidade de destacar a extensão temática da teoria piagetiana,
enfatizando temas para além dos estágios da evolução cognitiva. De
fato, o alcance da teoria é maior e nos permite destacar os aspectos
psicológicos, da afetividade e da moralidade próprios ao contexto de
desenvolvimento e aprendizagem humanos.
Compreende-se que a noção de justiça é conhecimento
moral, mas que integra vários domínios, pois, as crenças, hábitos,
costumes, princípios, regras e valores sociomorais constituem-se
objetos sociais, próprios da interação humana, mas passíveis de
construção, considerando-se o espectro cognitivo, portanto
454
suscetíveis aos processos de equilibração, assim como outros objetos
de conhecimento. Além disso, dependem do desenvolvimento da
afetividade, podendo ser, portanto, reorganizados, interpretados e
conceitualizados (DELVAL, 2007; MONTOYA, 2013; PEREIRA;
SARAVALI, 2014).
As noções de justiça no presente artigo, contextualizadas aos
estudos da moralidade na Epistemologia Genética, visam responder
à questão central sobre como se manifestam as noções sociais de
justiça em estudantes, crianças e adolescentes, quando suscitadas por
meio de dilemas morais. Para tal objetivou-se, investigar nas
significações apresentadas por estudantes, a noção de justiça em
diferentes momentos da escolarização no Ensino Fundamental I e II,
bem como o papel dos dilemas morais para suscitar o
desenvolvimento da noção de justiça em estudantes.
Os dilemas morais constituem-se instrumentos de
investigação do pensamento e desequilíbrio das certezas construídas,
no contexto do método clínico-crítico piagetiano. Como instru-
mentos de apoio motivadores às questões da entrevista clínica, o
pesquisador pode apresentar jogos, provas operatórias, problemas,
enigmas, desenhos, fotografias, desafios, objetos, brinquedos,
maquetes, histórias e dilemas morais, com potencial de gerar
desequilíbrios que pedem por respostas reveladoras de estruturas de
conhecimento e dos fatores afetivos energéticos por meio de
significações apresentadas pelos participantes (PIAGET, 1999).
O artigo organiza-se de modo a apresentar uma discussão
teórica ancorada na Epistemologia Genética acerca dos tipos de
justiça: retributiva, distributiva e imanente, e o senso de
responsabilidade individual ou coletiva, o método e os
455
procedimentos adotados para coleta e análise dos dados, com
posterior discussão dos resultados e as considerações finais.
A construção do juízo moral por meio de dilemas
Nas pesquisas sobre desenvolvimento da moralidade, em
suas dimensões cognitivas e afetivas, destaca-se o uso de dilemas
morais (DELVAL, 2002) como recursos que instigam a emissão de
juízos morais, evidenciam elementos cognitivos e afetivos da ação
moral, como valores, princípios e regras, formas de equacionamento
desses elementos morais, sensibilidade moral, conforme tratados por
Jean Piaget (1932/1994). Referem-se ainda aos aspectos envolvidos
nos conteúdos morais tais como medo e apego, simpatia, culpa,
indignação, confiança e vergonha moral (LA TAILLE, 2006; 2009).
Segundo Abbagnano (1998, p. 277), o termo de origem
latina e grega dilema refere-se ao encontro de uma dupla de
premissas contraditórias disjuntivas, cuja conclusão advém da busca
por seu equacionamento. Puig (1999), tratando de dilemas morais,
afirma serem narrações curtas em que valores são postos em conflito,
não havendo solução única ou clara, uma vez que cada premissa traz
em si o ônus e o bônus da escolha. No dilema moral, “reivindicações,
direitos ou pontos de vista conflitantes” (DEVRIES; ZAN, 1998, p.
179) que podem ser identificados rompem no sujeito “a confiança
nos próprios juízos morais (PUIG, 1999, p. 66).
Essa característica desequilibrante dos dilemas morais
mobiliza estruturas cognitivas capazes de assimilar suas contradições
e evoca os afetos do sujeito na tentativa de encontrar uma solução.
Isto possibilita ao pesquisador conhecer elementos formais dos
456
argumentos elaborados com fim de resgate do equilíbrio cognitivo,
revelando aspectos do desenvolvimento do juízo moral relativos aos
conteúdos ali expostos.
A elaboração de um dilema moral exige determinados
cuidados para que esse seja um instrumento válido de investigação.
Primeiramente, destacamos que pode haver diferentes tipos de
dilemas morais. DeVries e Zan (1998) sugerem duas categorias de
dilemas morais: dilemas hipotéticos e dilemas da vida real. Dilemas
hipotéticos apresentam de forma abstrata sem referências concretas
como tempo, lugar e características de personagensconflitos entre
responsabilidades, interesses e direitos pessoais. Teriam como
vantagem a facilitação do raciocínio pela exclusão de fatores
inerentes à vida real que tornam mais complexa a discussão e como
desvantagem o favorecimento da impessoalidade dos sujeitos que
emitem seus juízos morais, o que suscita respostas menos
espontâneas e afetivamente motivadas. Dilemas da vida real, por
outro lado, tendem a compensar essa falta. São divididos entre
dilemas históricos relativos a fatos documentados que tiveram
resolução e dilemas vivenciais pessoais, caracterizados por conflitos
experimentados ou próximos aos sujeitos entrevistados, que trazem
como ônus a possibilidade do desconforto emocional. Com vistas ao
uso instrumental do dilema para situações de educação moral, Puig
(1999) sugeriu uma extensão dos tipos de dilemas extraídos da vida
real, que seriam aqueles redigidos por educandos sobre suas próprias
vidas, objetivando maior interesse e envolvimento em debates.
Além da escolha pelo tipo de dilema moral, sua estruturação
metodológica deve garantir que na investigação do raciocínio moral
não se proceda como se estivesse em um laboratório, dissecando a
457
conduta moral dos participantes diante de uma situação simulada
ou investigando a origem das diversas ordens oriundas do mundo
abstrato. Na proposta piagetiana, por meio do uso de dilemas não se
analisam as decisões (ações morais em si) nem as lembranças das suas
ações, “mas a maneira pela qual ela avalia esta ou aquela conduta”
(PIAGET, 1932/1994, p. 95), pois o que se objetiva é compreender
relações entre o julgamento verbal e a prática do pensamento moral.
As condutas devem ser apresentadas em forma de “narração”
(PIAGET, 1932/1994, p. 95) e usar uma linguagem que esteja no
mesmo vel do sujeito entrevistado, “senão a prova de avaliação
moral se transforma numa prova de inteligência ou de compreensão
verbal” (PIAGET, 1932/1994, p. 100).
A validade do dilema moral como instrumento
metodológico para coleta de dados considera as significações
apresentadas pelos participantes à noção de justiça e espera respostas
qualitativamente diferentes aos dilemas, em termos de elaboração.
Porém, essas diferenças qualitativas não são determinadas
unicamente pelas idades dos participantes, ou seja, não seria possível
afirmar que sujeitos mais velhos apresentariam respostas mais
elaboradas aos dilemas morais. Em alusão a isto citamos o trabalho
de Hernandez, da Silva Rocha, Voser e dos Santos Duarte (2017)
que utilizaram uma história dilemática que versava sobre o tema
“Trapaça” para avaliar e comparar o julgamento moral de jogadores
de futebol entre 15 e 17 anos. Concluíram que as respostas dos
sujeitos indicavam nível de raciocínio moral aquém do esperado para
tal faixa etária.
Quanto ao emprego do dilema moral como instrumento
formativo, o trabalho de Monte e Sampaio (2011) é referência, pois
458
investigaram relações entre práticas e modelo pedagógico em uma
unidade socioeducativa e as concepções morais desenvolvidas pelos
socio educadores e adolescentes autores de ato infracional. Dentre
outros instrumentos para coleta de dados, utilizaram um dilema
moral, concluindo pelas respostas que as práticas pedagógicas eram
caracterizadas por vigilância e punição, e as concepções morais de
educadores e adolescentes como orientadas para a heteronomia,
corroborando postulados teóricos de Piaget (1932/1994) quando
ressalta que o desenvolvimento moral deve favorecer o gradativo
abandono da centração heterônoma a caminho de relações cada vez
mais autônomas.
Levando-se esses aspectos em consideração, como se constrói
a noção de justiça? Essa foi uma das preocupações de Piaget quando
relacionou tal compreensão nas crianças, aos tipos predominantes da
moralidade humana: anomia, heteronomia e autonomia. A noção
social de justiça é elaborada conforme evolui o pensamento e avança
a compreensão das regras e do respeito desde a ausência (anomia),
passando pela heteronomia (respeito no princípio de autoridade) até
a construção da autonomia (respeito mútuo ou reciprocidade moral).
De acordo com Carbone e Menin (2004, p. 256),
“representações de justiça e de injustiça podem ser mais do que
estágios de julgamento, mas construções possíveis de certas classes
sociais ou grupos, em razão das pertinências sociais, de histórias
socioculturais comuns, de práticas sociais cotidianas.” A justiça
compreendida neste contexto, é apresentada como dividida também
em três modalidades: imanente, retributiva e distributiva.
Justiça imanente seria a crença de que a consequência é
inerente à ação executada, advinda da coação adulta, ensinamentos
459
próprios do contato social, etc. Piaget (1932/1994, p. 199) explica:
“a crença na justiça imanente provém, portanto, de uma
transferência para as coisas, dos sentimentos adquiridos sob a
influência da coação adulta”, que diminui com o tempo, com as
experiências vividas pela criança nas quais ela pode perceber que esse
equilíbrio entre a ão e as consequências não é sempre garantido,
em especial quando percebe a injustiça nas ações dos adultos.
Justiça retributiva, por sua vez, está igualmente ligada à
coação adulta e pode manifestar-se de dois modos: por sanção
expiatória ou por reciprocidade. A sanção expiatória possui caráter
arbitrário e é motivada pela coação e regras de autoridade, ao passo
que a sanção por reciprocidade tem como intenção fazer o sujeito
compreender o significado do erro cometido. Essas sanções estão
relacionadas ao tipo de justiça denominado retributiva que
comporta as noções de expiação e recompensa e as sanções que
consistem na reparação do que constitui o elo de solidariedade
(CAETANO, 2009).
O terceiro tipo de justiça ou distributiva é pautada em
condições igualitárias e, portanto, está mais relacionada à autonomia
moral. A igualdade passa a ser mais importante que a sanção e à
sujeição ou moral da obediência. O igualitarismo, assinala Piaget
(1932/1994, p. 222): “parece derivar dos hábitos de reciprocidade
próprios do respeito mútuo, mais do que do mecanismo dos deveres
que derivam do respeito unilateral”.
Posto isto, a compreensão acerca de justiça para estudantes
de diferentes anos de escolarização do Ensino Fundamental I e II foi
identificada por meio de instrumentos de investigação do
pensamento (dilemas morais) como convite aos participantes para
460
que apresentassem significações em histórias dilemáticas que
requeriam juízo moral.
Método
Adotou-se a pesquisa de natureza qualitativa, cujos pilares se
fundamentam “na realidade social enquanto construção e atribuição
social de significados, na ênfase aos processos reflexivos, nos
significados subjetivos e no caráter comunicativo da realidade social,
o qual é ponto de partida para a pesquisa” (GUNTHER, 2006,
p.202). Optou-se pelo delineamento transversal para oferecer um
panorama de como as representações das noções sociais vão
mudando em diferentes idades. O estudo transversal “consiste então
em recompor o processo evolutivo mediante o estudo de cortes
correspondentes a cada idade” (DELVAL, 2002, p. 47).
O caráter descritivo permite se ater às características de
determinada população ou fenômeno (GIL, 1999). Por fim, a
estruturação da pesquisa ancorou-se no método clínico-crítico
piagetiano que de acordo com Delval (2002, p. 67) é um
“procedimento para investigar como as crianças pensam, percebem,
agem e sentem, que procura descobrir o que não é evidente no que
os sujeitos fazem ou dizem, o que está por trás da aparência de sua
conduta, seja em ações ou palavras”.
Participaram da pesquisa 10 alunos sendo 2 de cada série do
1º, 3º, anos do Ensino Fundamental I e e anos do Ensino
Fundamental II, matriculados em duas escolas da rede pública de
um município norte paranaense. Dentre os interessados em
participar, com autorização dos respectivos responsáveis, foram
461
sorteados 2 participantes para cada ano escolar, identificados como
P1, 6 anos e P2, 6 anos (ambos doano EF-I); P3, 8 anos e P4, 8
anos (ambos doano EF-I); P5, 10 anos e P6, 10 anos (ambos do
ano EF-I); P7, 12anos e P8, 12anos (ambos do ano EF-II); P9,
14 anos e P10, 15 anos (ambos do ano EF-II). Todos os
procedimentos éticos envolvendo pesquisa com humanos foram
adotados de acordo com a aprovação do Comitê de Ética em
Pesquisa da UEL, com parecer número 2.310.906, resolução
510/2016.
A coleta de dados foi individual e ocorreu nas escolas, em
dois momentos distintos para cada participante, em local e horário
determinado pelas instituições. O participante era deslocado das
atividades com sua turma para uma sala onde a coleta se desenvolvia
e posteriormente retornava à sala de aula. Nesses encontros foram
convidados a resolver 6 dilemas propostos (3 deles no primeiro
encontro A, B e C e 3 no segundo encontro D, E e F) por meio dos
quais se buscava identificar: justiça imanente, justiça retributiva;
justiça distributiva e senso de reponsabilidade individual e coletiva.
Foram realizadas gravações de áudio para posterior transcrição e
análise.
Quanto aos instrumentos propriamente ditos ou dilemas
morais, foram elaborados considerando temáticas indicadas como
relevantes pelas coordenadoras das instituições escolares onde a
pesquisa se desenvolveu.
Dilema A – Investigação de justiça retributiva
Na escola, uma menina estava falando mal de uma colega
de turma, escrevendo bilhetes ofensivos e falando coisas
ruins sobre ela, aos colegas. Ela deixa bilhetes no caderno
462
da menina, chamando-a de feia, gorda, chata e “cegueta”
por ela usar óculos. Além disso, faz comentários maldosos
quando está com os outros e essa colega passa por eles,
risada e exclui a menina das conversas e outras atividades.
Ao perceber esses comportamentos, a escola pensa em
algumas providências: 1 deixar a aluna que está tratando
mal a colega fora do passeio que a turma fará no fim do
ano letivo; 2- conversar com a menina junto de sua
família, propondo que ela peça desculpas à colega e repare
o que tem feito com atitudes de respeito e solidariedade;
3- conversar com a menina e com a turma sobre o
ocorrido e permitir que os colegas da sala a tratem com
desrespeito e desprezo do mesmo modo como ela fez com
a colega.
Dilema B – Investigação de justiça imanente
Certo dia um menino trancou uma criança menor no
banheiro da escola na hora do recreio/ intervalo. Alguns
colegas soltaram o menino que ficou preso e ninguém
ficou sabendo o que aconteceu. No dia seguinte, o
menino que trancou a criança pequena, precisou ir ao
banheiro durante a aula, o trinco da porta quebrou e ele
ficou preso no banheiro por um bom tempo.
Dilema C Investigação de justiça imanente
Quando todos saem para o intervalo, uma adolescente
furta o celular que está no bolso de fora da mochila de
uma colega. Ninguém percebe. Quando ela vai para casa,
é furtada no ônibus, chega em casa e percebe que o celular
não está mais com ela.
463
Dilema DInvestigação de justa distributiva
Um professor ficava muito atento aos comportamentos e
atitudes de seus alunos. Gostava mais daqueles que o
obedeciam. Para aqueles que não conversavam, não
atrapalhavam a aula e seguiam as regras, o professor dava
mais nota e também prêmios no fim da semana, como
balas ou chocolates. O que você acha disso? Você acha
justa essa atitude do professor? Por quê?
Dilema EInvestigação e justiça distributiva
Uma mãe tinha duas filhas, uma obediente, outra
desobediente. Gostava mais daquela que obedecia e então,
dava os maiores pedaços de doce para ela, aceitava mais
como ela era, o seu jeito de ser, suas opiniões. O que você
acha disso? O que a mãe faz é justo? Por quê?
Dilemas F – Investigação de responsabilidade
individual e coletiva
Os alunos de uma turma estavam sem a primeira aula,
pois o professor estava doente e não havia outro para
repor. Pediram para a diretora liberar a quadra e bolas
para que pudessem fazer um jogo de futebol durante esse
período. A diretora liberou, mas com a condição de que
ficassem todos na quadra, o incomodassem às outras
turmas que estavam em sala de aula e ao final da primeira
aula, guardassem as bolas e fossem para a próxima aula.
Durante o jogo, dois meninos se desentenderam, um
deles pegou a bola e a chutou na vidraça das salas de aula.
Um vidro foi quebrado. Quando a diretora chegou, quis
saber o que aconteceu. O aluno que chutou a bola na
vidraça não disse nada e os outros o quiseram
464
denunciá-lo. O que deve fazer a diretora? Deve punir toda
a turma ou ninguém? Por quê?
Após contar a história dilemática e narrar a falta cometida,
questionava-se os participantes sobre o que ouviram solicitando-se
que se posicionassem sobre o que consideravam justo na situação
apresentada e que justificassem seu posicionamento.
Como critérios de análise adotou-se como princípio que a
fala do participante diante de um dilema proposto no âmbito do
julgamento moral, como apontou Piaget (1932/1994), pode
deformar os juízos, visto que “as reflexões teóricas da criançaestão
sempre em atraso de um ou dois anos sobre suas reações na vida, isto
é, sobre os sentimentos morais efetivos”. Esse fato ocorre devido ao
processo gradativamente construído entre o fazer e o compreender,
mediante as sucessivas tomadas de consciência do sujeito e, portanto,
constituem parte de seu desenvolvimento intelectual.
Isto impôs limite e exigiu o cuidado de declararmos que os
resultados se circunscrevem às significações apresentadas pelos
participantes quanto à justiça. Assim, nas significações apresentadas
pelos participantes foram identificados os tipos de justiça imanente,
retributiva e distributiva, além do senso de responsabilidade
individual e coletiva.
Resultados e discussão
Os resultados foram organizados a partir dos diferentes tipos
de justiça preconizados na obra piagetiana. Cada tipo de justiça
discutido foi exemplificado por meio de excertos das falas dos
465
participantes em resposta aos dilemas propostos, cotejados com a
teoria.
Significações de Justiça Retributiva:
sanção expiatória ou por reciprocidade
Os participantes (P1, P2, P3, P4, P5, P6 e P10)
apresentaram a justiça retributiva em suas significações. Adotaram
sanções expiatórias, ou recíprocas como resolução ao dilema A.
Julgaram oportuno o castigo: reclamação aos pais, mandar à
secretaria ou direção, expulsá-la da escola ou dar advertência. Após
a apresentação do dilema A, os participantes eram convidados a
escolher uma das três posturas anunciadas pela escola:
1 – deixar a aluna que está tratando mal a colega fora do
passeio que a turma faria no fim do ano letivo; 2-
conversar com a menina junto de sua família, propondo
que ela peça desculpas à colega e repare o que tem feito
com atitudes de respeito e solidariedade; 3- conversar com
a menina e com a turma sobre o ocorrido e permitir que
os colegas da sala a tratem com desrespeito e desprezo do
mesmo modo como ela fez com a colega.
Destacam-se três exemplos de sanção expiatória no relato
oferecido (P1, 6 anos, ano EF-I, escolheu a sanção 1); (P4, 8 anos,
ano EF-I escolheu a sanção 3) e (P5, 10 anos, ano EF-I,
escolheu a sanção 3).
[...] eu quero saber o que vo acha que seria a opção
mais justa para escola adotar nessa situação. Nessa
466
situação poderia deixar a aluna de castigo, ou falar com a
mãe. [...] qual dessas ts você acha que é a mais justa, a
punição mais justa? É, é meio que... A 1, a 2, ou a 3? A
2. A 2 é mais justa? Não, a 1. A 1? Qual é a 1? Deixarela
fora do passeio que... Do final do ano. No final do ano.
Essa é a mais justa? Uhum (concordando. Por quê?
Porque assim, se ela faz alguma coisa de mal, ela tem que
perder essa coisa de bem. Você acha que ela fez alguma
coisa que tem a ver com o passeio? Não. Ela estava
falando mal da colega ? Uhum (concordando). E você
acha que essa punição que você escolheu é a mais justa?
Ela vai funcionar? Uhum (concordando). Você acha que
a menina vai voltar a cometer esse erro? Vai voltar a falar
mal da colega com essa decisão de que não pode ir ao
passeio? Se ela ficar fora do passeio ela nunca mais vai
fazer isso, porque ela vai ver o que que é se sentir mal e
não fazer o passeio. (P1, 6 anos).
Devia ficar, ficar na diretoria, falar pra professora. Mas o
que a escola pode fazer com essa menina? Pode ligar pra
mãe e a mãe ficar sabendo e deixar de castigo. (as três
opções da escola foram relembradas). Qual dessas ts
você acha que é a mais justa? Tem que fazer alguma coisa
porque ela vai ser amiga e nunca vai fazer mais isso.
Aqui na escola tem regra sobre isso. Tem que ter. Qual é
a regra? É, nunca machucar a pessoa, nunca falar que a
pessoa é feia, que a pessoa, que é, sabe que é burra. E se
não tivesse essas regras aqui na escola? seria certo fazer
o que a menina fez? Poderia. Por quê? Porque não iria ter
nenhuma regra assim oh, de socar a pessoa, de falar que
ela é burra. poderia fazer então? Sim. Sobre a
467
personagem da nossa história, das três opções que eu te
falei, você lembra quais são? Sim. Qual você acha que é
a mais justa? Vamos relembrar? A primeira era deixar a
menina fora do passeio, a segunda era conversar com ela,
com a família, falar pra ela pedir desculpa, e a terceira,
conversar com a menina e com a turma e deixar a turma
tratar ela com desrespeito, com desprezo. A última, a
terceira. Você não acha essa opção injusta? Não, não é
injusto, porque ela faz com a menina. deixa eu ver se
entendi. Você acha justo deixar outros fazerem à menina
a mesma coisa que ela fez? Certo? Sim, porque ela tratou
a menina mal também. Porque ela vai receber o que
que ela fez com a menina.(P4, 8 anos).
Eu acho que é a terceira, porque assim ela o que ela
cometeu, um erro. É? Por quê? O que vai acontecer na
terceira? Todos os alunos da turma vai tratar ela do
mesmo jeito que ela tratava a outra, porque assim é justo
e ela vai ver que ela não está fazendo o certo. E você acha...
Vai reparar no seu erro. ... que ela tendo essa que você
escolheu, vai voltar a cometer o mesmo erro, a fazer a
mesma coisa? Eu acho que não, porquê, por que não faça
pros outros o que que você não quer que faça pra você,
tipo, se você fazer uma coisa com o outro, ele pode acabar
te fazendo a mesma coisa com você, isso aconteceu
comigo, e eu não gostei, e eu mudei o meu jeito, então
acho que ela vai mudar. E como que você sabe que essa
que você escolheu vai funcionar? Porque ela vai ver que
não pode falar mal dos outros que algum dia as pessoas,
os seus amigos, tipo, ela tem os amigos e faz o bullying
contando pra todos os amigos, os amigos podem se virar
468
contra ela e ela não ter mais nenhum amigo, todo mundo
falar mal dela. (P5, 10 anos).
Interessante observar que nos três exemplos citados, as
sanções expiatórias demonstram-se relacionadas à moral da
obediência, à autoridade e coação, como indicou Piaget (1932/1994,
p. 161, grifos nossos): “A sanção expiatória apresenta, pois, o caráter
de ser ‘arbitrária’ [...] isto é, de não haver nenhuma relação entre o
conteúdo da sanção e a natureza do ato sancionado [...] a única coisa
necessária é que haja proporcionalidade entre o sofrimento imposto e a
gravidade da falta”. A reparação para o ato errado é dada pelo grau
de sofrimento imposto a quem cometeu a falta e, portanto, não
importa que ficar sem o passeio ao final do ano não se relaciona à
falta cometida. Ou ainda, permitir que outros sejam agressivos com
quem agrediu, ou seja produzir outro erro, perpetuar aquilo que se
quer extinguir. Basta ter a garantia de que o agressor passe pelo
mesmo tipo de agressão que produziu. Essa parece ser a lógica das
punições em sistemas carcerários, em famílias que incentivam seus
filhos a revidarem agressões físicas, em contextos escolares que
adotam punições desconectadas com a infração cometida, pois
ressaltam o respeito da ordem, da lei, sem necessariamente promover
reflexão sobre o ato cometido.
Os exemplos de sanção por reciprocidade, por sua vez,
também são característicos da justiça retributiva e podem ser
extraídos dos excertos a seguir (P3, 8 anos, escolheu a posição 2);
(P9, 14 anos,ano e escolheu a posição 2) e (P10, 15 anos,ano,
escolheu a opção 2):
469
Porque é melhor conversar com os pais e com ela, pra ela
pedir desculpa, por tudo que ela, que a menina fez. Certo.
E você acha que a menina voltará a fazer isso depois
dessa punição que você escolheu? Não. Não? Por quê?
Porque assim, se ela voltará a fazer, eles vão conversar de
novo e vão fazer uma coisa mais pior (P3, 8 anos, ano).
Ao perceber esses comportamentos a escola pensou em
algumas providencias, [...] em sua opinião, que
providencia deveria ser tomada? Deveria conversar com
os pais dos alunos, alertar outros alunos também para que
pudessem tomar atitudes e não acabar fazendo,
praticando, fazer essa prática, e conversar mesmo com os
alunos, os dois, falar por que que uma faz isso com a outra,
chamar os pais, os responsáveis, essas medidas. A segunda
é a mais justa, porque não, faz com que ninguém saia, por
exemplo, não saia na mesma, porque na última opção, é
uma opção muito ofensiva que, acontece isso, mas não
acaba uma pessoa falando que trata assim, acaba
acontecendo normalmente, e a primeira eu acho que seria
uma punição muito, muito, tipo assim, não faria
diferença, não, ele não ia ligar. E você acha que a menina
iria cometer essa mesma falta, esse erro se ela tiver essa
punição que você escolheu? Se ela voltasse a cometer
provavelmente a escola chamaria de novo os pais e ela
acabaria parando, por causa que é os pais, teria que
obedecer. Aham, então como que você sabe que essa
punição vai funcionar? Porque seria, vai convocar os
responsáveis, os responsáveis têm
um controle maior
sobre ela, sobre o que ela faz ou não (P9, 14 anos).
470
Primeiro eu acho que isso é a clássica situação de bullying
né. Então eu acho que em primeiro caso, sempre em
primeiro caso tem que ser uma boa conversa, conversar
com, a escola deveria conversar com essa menina,
apresentar né, que ela está errada, es errada nesse quesito,
que ela não pode fazer isso que é errado, e num segundo
momento se não der certo essa conversa, e essa menina
continuar fazendo as mesmas coisas que ela fazia, eu acho
que a escola deveria tomar uma posição mais drástica,
sabe, ou uma suspensão, ou uma anotação em algum
caderno, alguma punição sabe, mais drástica pra essa
menina realmente perceber que está errado o que ela faz.
Certo. Agora eu vou te dar algumas opções que a escola
pensou como possível. (as opções foram repetidas). Qual
situação você achou mais justa dessas três? Olha, eu acho
que a mais justa ao meu ver é a segunda, porque tipo,
colocando nas coisas que eu não acho certa, a primeira,
tirando essa menina do final do passeio do ano, essa
menina ficaria com mais raiva ainda da colega, e assim
que o bullying ia ficar pior, e na terceira, além de expor a
menina que estava tendo, estava sofrendo bullying, iria
gerar bullying com a menina que estava fazendo também,
e também não é certo, então acho que a melhor opção
seria conversar com essa menina e com a família dela, que
ela se desculpasse depois e reparasse o seu erro. E com essa
punição que você escolheu, você acha que a menina
voltará a cometer esse mesmo erro, essa mesma falta? Eu
acho que não. Depende muito da índole da pessoa né, de
como ela é, mas com uma conversa bem séria, e colocando
bem tipo, certos argumentos, a escola falando bem séria
com ela, e falando que se ela não parasse vai ter punições
471
mais drásticas, eu acho que ela pararia sim. Você acha que
se tivesse uma regra sobre esse tipo de situação, no caso,
vamos supor que alguns alunos então cometendo esse
mesmo tipo de atitude dela, se tivesse uma regra na
escola, isso seria cometido? Eu acho que ia desmotivar o
aluno a cometer esse ato, o falo que não aconteceria
porque mesmo tendo regras muitos alunos burlam a regra,
muitos alunos eles pulam a regra e não estão nem aí, mas
sim, iria desmotivar esses alunos e com certeza iria
diminuir muito o número de casos como este no colégio.
Se não existisse uma regra, seria justo fazer o que ela fez?
Não seria, porque eu acho que a questão do bullying, a
questão desse ato que essa menina está cometendo, é algo
que a pessoa deve saber, sabe, a pessoa deve saber que
não é certo, agora não tendo a regra, não é porque não
tem regra que a pessoa deve fazer, mas sim a pessoa vai,
nossa, não tem regra então eu vou fazer né, não vai
acontecer nada comigo. Porque mesmo essa menina
cometendo o bullying, ela não, isso não o direito a
outra
pessoa fazer o bullying com ela também, tem muita
gente que fala aquele ditado né, chumbo trocado não dói,
que não é ditado, nem sempre o ditado é verdade,
então eu não acho correto, porque se ela que está fazendo
bullying é errado, a pessoa que for fazer com ela, mesmo
com a melhor das intenções ainda vai ser errada (P10, 15
anos, ano).
As sanções por reciprocidade estão mais ligadas às relações
cooperativas e regras de igualdade. Dessa forma, nestas sanções o que
fica evidente é o elo de solidariedade que se rompe, são as medidas
de reciprocidade que fazem o culpado compreender a falta cometida.
472
A punição, nesse caso, tem ligação de natureza e conteúdo com a
falta do sujeito. Para Menin e Bataglia (2017, p. 62):
[...] quanto mais as pessoas optarem pela justiça
retributiva em sanções por reciprocidade, mais mostram
consideração às necessidades dos diferentes envolvidos na
situação (descentração social) para que uma infração ao
mesmo tempo em que seja considerada em sua gravidade
(o ponto de vista da vítima), seja vista, também, como
oportunidade de restauração das relações sociais (o ponto
de vista de outros envolvidos).
Interessante observar nesses resultados que um estudante do
ano do EF-I e dois do ano do EF-II apresentaram a escolha
por reciprocidade. O que queremos ressaltar escolhendo os dados de
dois momentos tão distantes da escolarização para exemplificar o
mesmo raciocínio ou significação? Que somente idade e série de
escolaridade não garantem a construção. As construções socio-
morais, tais como a noção de justiça não são fruto de processo de
amadurecimento mental, mas de construções do sujeito em suas
diferentes possibilidades de resolução de conflito às quais foi
submetido em suas interações sociais.
Quanto à reciprocidade como caminho para a resolução do
dilema, mesmo se tratando do mesmo tipo de justiça da sanção
expiatória, ou seja, a justiça retributiva, diferenças qualitativas
importantes. A expiação tem primazia sobre a reciprocidade, na
medida em que a moral do dever é central, portanto, regida pela
necessidade de castigar, “em infligir ao culpado uma dor bastante
aguda, para fazer-lhe sentir a gravidade de sua falta. Daí a punição
473
mais justa é a mais severa” (PIAGET, 1932/1994, p. 167). Por outro
lado, quando a primazia é da reciprocidade, indícios do declínio
do respeito unilateral para que o respeito mútuo seja adotado
gradativamente. A ênfase deixa de ser no ato infrator e passa a ser
nas relações de cooperação e mutualidade entre os pares, o que indica
o progresso da construção moral.
Significações de Justiça Imanente
A justiça imanente, assim como a justiça retributiva, está
diretamente relacionada à sanção e mais acentuadamente à sanção
expiatória. Marca portanto, o desenvolvimento menos elaborado da
noção de justiça, ligado à anomia e à heteronomia. Assim, toda
sanção é legítima e configura o princípio da moralidade. A justiça é
entendida como automática, ela emana da natureza e dos objetos,
sendo cúmplice dos adultos, punindo todas as transgressões, como
propostas nos dilemas B e C. Após apresentar os dilemas, os
participantes foram questionados sobre o motivo do menino mais
velho ter ficado preso no banheiro, bem como a justificativa para
menina ter sido roubada no ônibus.
[...] Por que esse menino grande ficou preso no
banheiro? Ué, porque o trinco da porta caiu, ele tinha que
esperar as pessoas consertarem a porta. Mas se esse
menino grande não tivesse trancado a criança pequena
no banheiro no outro dia, será que ele teria ficado preso
mesmo assim? Não. Por quê? Porque é assim, porque ele
prendeu a criança, ele tinha, ele tinha que ficar de
castigo, que era ficar preso no banheiro. E quem deu esse
castigo? De onde veio esse castigo? Eu acho que veio do
474
próprio corão preto dele. É? Mas, o que você acha que
aconteceu pra que ele ficasse preso no banheiro, que
ninguém o trancou lá? Ninguém trancou ele lá, o que
aconteceu? Então, ele, a porta do trinco caiu, ele bateu na
porta muito pra pessoa sair, o trinco deve ter caído
quando ele estava usando o banheiro. Mas isso podia
acontecer com qualquer pessoa, ou aconteceu com ele
porque ele prendeu o menino pequeno no banheiro? Era
melhor ele ter ficado preso do que a criancinha, porque
ele ia ficar preso mesmo assim (P2, 6 anos).
O que você acha dessa história? Por que ele ficou preso
no banheiro? Porque ele já, ele trancou o outro menino,
então como que ele trancou o outro menino, ele também
ficou, ele também ficou preso, igual o outro menino. Que
ele trancou? Uhum. E se o menino não tivesse trancado
a criança pequena no banheiro, ele teria ficado preso
mesmo assim? Não. Não? Não. Por quê? Porque ele, que
ele, que ele fizesse, que ele trancasse o menino ele ia ficar
preso, mas se ele não trancasse ele não ia ficar preso,
porque ele, porque ele, porque ele não, ele não, como que
ele trancou, ele recebeu outra punição, ele recebeu um,
ele fez um castigo. E de onde veio esse castigo? Não sei.
Mas é um castigo? É. O que você acha que aconteceu pra
que ele ficasse preso no banheiro que ninguém
trancou ele lá? A porta podia ter emperrado, é, a porta
podia ter emperrado, e ele não conseguiu sair. Mas a
porta ia emperrar se ele não tivesse trancado o menino?
Não. Não ia? Não ia. Por quê? Ah, porque se ele trancasse,
se ele não trancasse o menino, não ia ter emperrado a
porta (P3, 8 anos).
475
[...] é que Deus tipo, eu sou evangélica, pra mim Deus
estava vendo tudo aquilo, então ele quis punir o menino
que puniu a criancinha pequena, porque a criancinha
pequena não sabia que ele tinha trancado, eu acho que ele
não sabia. Então eu acho que Deus viu tudo e quis punir
o menino pra ele nunca mais fazer isso com ninguém, pra
ele poder aprender a lição. E o que você acha que
aconteceu pra que ele ficasse preso no banheiro, que
ninguém trancou ele lá, o menino grande? Ué, como, o
trinco da porta caiu, quebrou. Tem a ver com isso que
você me explicou agora? Acho que sim, que d Deus quis
punir ele, mas tipo, acho, é, Deus quis punir ele, mas acho
que o trinco da porta estava fechado, estava quebrado.
Já? Eu acho, não sei (P5, 10 anos).
Percebemos nas respostas dos participantes P2, P3 e P5
juízos que consideram a justiça imanente. Para Piaget (1932/1994,
p. 196), “a ideia da justiça imanente nas coisas, sem dúvida, não
poderia nascer sem mais no cérebro de uma criança de doze anos.
Mas pode nele subsistir, como de resto em muitos adultos [...]”. Essa
afirmação piagetiana é particularmente importante para enfatizar o
que se indicou anteriormente que a moralidade é fruto de trabalhosa
construção que envolve aspectos sociais, afetivos e cognitivos e não
mero fruto de um processo de amadurecimento biológico. Outro
argumento em favor da gradativa construção está nas argumentações
intermediárias, a meio caminho das elaborações mais relacionadas à
cooperação e menos dependentes da sanção expiatória ou coação
adulta.
476
Podemos compreender isto de um modo muito simples,
se nos lembrarmos que uma forma de causalidade à qual
o espírito se ligou por um certo período (como é a pré-
causalidade, ao mesmo tempo moral e física, na criança
de dois a sete anos), nunca desaparece de uma vez, mas
coexiste algum tempo com os tipos posteriores de
explicação. O adulto é costumaz nestas contradições, às
quais uma aparência de justificação verbal. É normal
que elas se apresentem com mais frequência na criança
(PIAGET, 1932/1994, p. 197).
Dois exemplos à reversa, ou seja, onde se pode perceber a
não predominância da justiça imanente e a transição do pensamento
estão apresentados a seguir. Diante da contraposição, os sujeitos
admitem o acaso, ou colocam em xeque sua crença, indicando
menos rigidez do pensamento, o que pode ser demonstrado no
excerto dos protocolos de P6, 10 anos e P7, 12 anos.
O que você acha dessa história? Por que ele ficou preso
no banheiro? Porque ele foi mal com o menino, prendeu
ele no banheiro, ele foi mal com o menino. Mas e se o
menino não tivesse trancado a criança pequenininha no
outro dia, ele teria ficado preso mesmo assim? Não.
Não? Por quê? Porque ainda que, sabe, porque ainda que
ele não prendesse, não ia acontecer isso, ele não ia
quebrar ali a coisa. Você acha que quebrou porque ele
tinha prendido o menino? Sim. É isso? O que você acha
que aconteceu pra que ele ficasse preso no banheiro?
Porque ninguém trancou ele lá, esse menino grande. O
que aconteceu? Ele fez tanta força, sabe, de fazer isso
daqui e quebrou. Ele estava mexendo na porta? Não, ele
477
foi sabe, ele segurou tão forte que quebrou. Ah, sim. Mas
quebrou por causa do que ele fez no dia anterior? Tem
nada a ver. Quebrou porque ele tinha trancado o menino
pequeno no banheiro ou não? Não (P6, 10 anos).
O que você acha dessa história? Por que ele ficou preso
no banheiro? O menino grande ou o pequeno? O grande.
O grande ele ficou preso porque a porta emperrou, mas
eu também acho, eu acho que não é certo ele ficar, mesmo
ele tendo trancado o pequenininho no banheiro eu não
acho certo ele ter ficado, eu acho que ele deveria ter se
arrependido e pedido desculpas, mas ninguém tipo, tem
o poder mágico de falar, porta se tranque e deixe o
menino preso, ningm pode jogar essa maldição contra
a porta pra fazer um mal pro outro, eu acho que ele
deveria ter o arrependimento e ir pedir desculpa pro
outro. Então, se o menino não tivesse trancado a criança
pequena no banheiro, no dia anterior... Eu acharia
injusto. [...] ele teria ficado preso mesmo assim? Eu acho
que sim. É? O que você acha que aconteceu pra que ele
ficasse preso no banheiro que ningm o trancou lá?
Não sei, acho que a porta emperrou, quebrou, ou ter sido
as pessoas até tirar o pequenininho do banheiro que, às
vezes deu um defeito na porta e deve ter emperrado no
outro dia (P7, 12 anos).
Diante da necessidade de elaboração de suas respostas, a
criança coloca em xeque o seu pensamento, apontando para um
processo de transição nas construções de suas respostas. Assim, ainda
que estejam presentes as concepções de justiça, o movimento do
pensamento apresenta o afirmado sobre o papel dos dilemas
478
enquanto instrumentos provocadores de desenvolvimento do
pensamento.
Significações de Justiça Distributiva
A justiça distributiva é aquela em que os sujeitos fazem seus
juízos mediante o igualitarismo progressivo ou guiados por
princípios de equidade, sendo esta última a mais refinada noção de
justiça e relacionada com a moral da autonomia. Foram propostos 2
dilemas aos participantes com o intuito de avaliar o princípio de
justiça distributiva. Os dilemas E e F punham em destaque a
premiação da obediência por parte do professor e da mãe. A
pergunta a responder era se consideravam justo premiar somente a
filha obediente ou o aluno obediente e não a todos.
Acerca desse tipo de Justiça, Piaget (1932/1984, p. 203) se
pronuncia ressaltando que embora se trate de uma evolução em
relação ao tipo de justiça retributiva, tal evolução não se relaciona ao
abandono de uma em favor de outra, mas muito mais por
coexistência de princípios:
É verdade que encontramos os dois tipos de respostas
em qualquer idade, se bem que em proporções variáveis.
Mas é muito natural que a evolução do juízo moral, sobre
um assunto tão delicado, seja menos regular que o de um
juízo simplesmente de constatação, dada a multiplicidade
de influências possíveis. Num ambiente onde se pratica a
punição em alta dose e onde uma regra rígida pesa sobre
as crianças, estas, admitindo que não se tenham revoltado,
admitem, por muito tempo, tenham primazia sobre a
479
igualdade. Numa família numerosa, onde a educação
moral está assegurada pelo contágio dos exemplos, mais
do que por uma vigilância constante dos pais, a ideia de
igualdade pode desenvolver-se muito mais cedo.
Portanto, não poderia tratar-se de estágios claros, em
psicologia moral.
Os excertos a seguir demonstram a primazia da justiça
distributiva quando a questão da igualdade se colocou como
prioridade no julgamento apresentado pelos participantes. Percebe-
se a imposição da reciprocidade à moral da autoridade, ou seja, a
moral do respeito mútuo torna-se prevalecente e permite a
solidariedade entre iguais.
O que a mãe faz é justo? É, é... não é justo, porque uma
fica sem o carinho e atenção maior da mãe, e a outra fica
com, eu acho como assim, minha mãe, ela fala que ama
eu e a minha ir igual, que ela sempre divide as coisas,
porque sempre briga em casa por causa desse tipo de
coisa, então eu acho que ela deveria dar a mesma
quantidade pra todas, educar elas melhor, falar, ameaçar
tipo, como a minha mãe, se a gente não obedece ela tira
o celular, ou então ficar colocando de castigo, tirar o
celular, eu acho que ela merecia educar as duas
igualmente, pra elas duas ganharem a mesma quantidade
de doces e outras coisas (P7, 12 anos).
Você acha justa essa atitude do professor? Às vezes eu, eu
acho um pouquinho injusto. Injusto? Por quê? Porque,
alguns alunos conversam, outros não, os alunos que
480
conversam, o professor chama atenção e os alunos que
não conversam, ele não chama, porque ele... é errado ele
dar umas coisas pra alguns e pra outros não. Mesmo
que uns obedecem, e outros não obedecem? Mesmo que
uns obedecem e outros desobedecem (P8, 12 anos).
Você acha justa a atitude do professor? É, por um lado
eu acho justo, pelo outro o. Porque por um lado, ele
está sendo injusto com os outros colegas, não está dando,
mas pelo lado justo, é que ele está castigando as pessoas
que, que, que desobedecem, que eu acho que... Mas você
escolheria o que... pensando dessa forma? Que o
professor ter essa atitude é mais justo ou mais injusto?
Injusto, porque se ele quiser castigar as crianças, chama a
mãe e o pai, não deixa de dar prêmio, essas coisas, pode
deixar sim, mas também chama os pais pra conversar em
vez de dar castigo, e dar pra uns e não dar pra outros
porque eles são bagunceiros, chama os pais que d eles
podem acabar mudando e todo mundo ganha. E quanto
à mãe? O que você acha disso? Eu acho certo e errado ao
mesmo tempo, porque essa é uma situação diferente da
do professor, porque não se trata de um aluno, se trata do
seu filho, que é uma situação que eu, você deveria aceita-
lo como ele é incondicionalmente, amá-lo tipo, não
diferindo os dois, mas por um lado isso ocorre, eu
não
diria que é errado, porque é uma coisa que tem a se ver,
você tem que pensar nisso [...] (P9, 14 anos).
É interessante observar que o princípio de igualdade não faz
abdicar da ideia de certo ou errado que continua presente, ao mesmo
tempo que a atitude do adulto é analisada pelo tipo de relação mãe
481
e filhos, professor e alunos e não pela obediência à autoridade que
eles possuem. Ao mesmo tempo, quando confrontados se a estratégia
deles garantiria se a ação não se repetiria, consideram que é preciso
chamar os pais. Mas, mesmo nesse caso nos parece que não se trata
do princípio de autoridade, mas a capacidade que os pais têm de
“educar seus filhos”, como elucidou P9: chama os pais pra
conversar em vez de dar castigo... chama os pais que daí eles (alunos
desobedientes) podem acabar mudando e todo mundo ganha”.
Outro aspecto que chamou a atenção foi a forte carga afetiva
no dilema que envolve mãe e filha atuando na significação de justiça.
A relação entre mãe e filho envolve algo a mais que as demais relações
pessoais, neste caso, o afeto, o qual por convenção social é entendido
que deve ser o mesmo em proporção e qualidade para todos os filhos.
Dessa forma, sentem dificuldade em aceitar a atitude retributiva da
mãe, mais pela comparação de afeto e generosidade entre as irmãs
do que pela preferência a uma sanção distributiva. Cabe investigar
em pesquisas futuras se relações onde claramente maior carga
afetiva tendem a suscitar a noção de justiça distributiva.
O último aspecto explorado neste estudo acerca dos dilemas
morais e as significações de justiça foi quanto à dimensão de
responsabilidade coletiva. Seriam apresentadas as mesmas
significações de justiça quando mais pessoas estão envolvidas no
dilema? Quando as prováveis consequências atingem mais do que
somente aquele que executou a ação?
Significações de Responsabilidade Individual e Coletiva
O dilema F foi construído para identificar significações de
responsabilidade individual ou coletiva e perceber se a opção por
482
uma punição coletiva estaria relacionada ao senso de solidariedade
do grupo. A responsabilidade coletiva traduz-se pela crença na
necessidade da expiação ou pelo sentimento de solidariedade do
grupo. Piaget (1932/1994) explica que de acordo com o raciocínio
menos elaborado, geralmente, é preciso punir todos em função do
dever com a norma e da necessidade de uma sanção e não porque a
solidariedade no grupo torna a responsabilidade coletiva. Os
participantes do estudo, oriundos do Ensino Fundamental I foram
unânimes nessa crença (P1, P2, P3, P4, P5 e P6). Tomamos por
exemplo o excerto do protocolo de P4 (8 anos) segundo o qual todos
são individualmente culpados. Ou seja, a responsabilidade é dada
pela necessidade de sanção e não na coletividade, tendo em vista que
todos escolheram não indicar quem cometeu a ação:
[...] ele tem que punir todo mundo ou ninguém? Todo
mundo. É? Por quê? Porque que, porque o que o
menino fez todo mundo também leva. E qual seria a
punição mais justa que o professor pode dar? Injusta
você falou? Justa, que punição justa que o professor pode
dar então pra turma toda? Dar pra eles, você sabe aquele
menino que fez, sabe, deixar ele umas, não sei quantas
aulas, deixar ele, sabe, não fazer aula dele. que o
professor não sabe que foi o menino, então ele vai dar a
punição pra turma toda, não é o que você me disse? Que
punição ele pode dar que para ser justa? É essa mesmo?
Deixa eu ver. Ele deixaria todo mundo de castigo, sabe,
porque todo mundo que tinha visto, e não queria
contar. E qual o castigo? Deixar todo mundo sem aula,
ficar lá, na sala escrevendo (P4, 8 anos).
483
Quando a elaboração está relacionada à solidariedade, a
responsabilidade é coletiva porque um grupo decidiu não denunciar
um culpado e, portanto, deve-se punir o grupo. Os participantes P7,
P8 e P10 revelaram que a punição de todos é a melhor opção para
diretora, com base no princípio de solidariedade do grupo,
considerando-se que é formativo receber consequência às ações
sejam elas a de infringir ou de acobertar, conforme exemplificado no
excerto de P10:
O que deve fazer a diretora em sua opinião? Deve punir
toda a turma, ou ninguém? Olha, essas questões são
bem corriqueiras né, aconteceu com a minha turma
assim, isso também, e na questão, na minha situação, a
diretora não puniu ningm, que ao meu ver é errado,
não punir ninguém, porque a pessoa que, o menino que
atirou a bola na vidraça e quebrou, ele sai ileso, mesmo
que os outros alunos saíram ilesos também, que não
fizeram nada, eram vítimas também daquela situação,
mas aquele que chutou saiu ileso, então acho que a
diretora sim deveria punir todos, porque a turma é um
todo, então isso, além de dar, além de dar uma punição a
todos, além de ajudar esse menino a perceber que o que
ele fez é errado, ia mostrar pra turma que mesmo que eles
são uma turma, não é certo acobertar ninguém, se ele fez
errado ele tem que arcar com as consequências do erro
dele. E qual que você acha que seria a punição mais justa
nesse caso, em sua opinião? Eu acho que seria dar uma
punição, mas não tão pesada assim, porque querendo ou
não a turma inteira
seria punida, mas teriam pessoas
inocentes que não fizeram nada e que seriam punidas
484
também, então algo mais leve se eu posso dizer assim,
uma tarefa a mais, ou não sei, é um tempo a mais no
colégio, uma detenção, alguma coisa assim, pra que todos
pudessem perceber que aquilo é errado, mas que não
prejudicasse muito a sala (P10, 15 anos).
ainda, de acordo com Piaget (1932/1994) o pensamento
intermediário, segundo o qual não se sabendo quem é culpado, não
se deve punir ninguém. Os relatos encontrados no protocolo de P9
(14 anos) apresenta em alguns momentos esse tipo de pensamento.
Uhum. E supondo que ninguém soubesse quem foram
os meninos que quebraram a vidraça e ninguém tivesse
visto quem quebrou, o que deveria fazer a diretora?
Punir todos ou ninguém? Se ninguém soubesse, ela não
deveria punir ninguém, porque ninguém sabia, eles
estavam realmente falando a verdade, eles não sabiam, e
na verdade a medida que o aluno tomou foi ele falar que
não foi ele, que é errado.
Em síntese, os resultados alcançados neste estudo
identificam em primeiro lugar o uso de dilemas hipotéticos como
instrumento de investigação do pensamento de crianças e
adolescentes, tanto como forma de explicitação de construções
morais internas ao sujeito quanto para indicar possibilidades de
intervenção em pesquisas que visem a promoção de noções mais
elaboradas de uma noção social, como é o caso da justiça. A segunda
questão que emerge dos resultados pode indicar um caminho para a
organização do trabalho pedagógico na escola por meio de dilemas
favorecedores da intencionalidade do professor na construção do
485
pensamento reflexivo. O terceiro destaque que fazemos refere-se à
aplicabilidade da teoria piagetiana para além do estudo das
elaborações cognitivas, como importante campo teórico reflexivo
para o estudo da moralidade humana, noções sociais e aspectos
afetivos subjacentes às construções cognitivas. Destaca-se como
limite do estudo realizado que os diferentes tipos de justiça foram
encontrados nas variadas séries de escolarização (1 ano do EF1 ao
ano do EF2) o que pode ser melhor explorado para verificar do
ponto de vista do desenvolvimento moral, a força de vivências sociais
reflexivas por parte dos alunos. Desse modo sugere-se pesquisas
futuras que investiguem a correlação entre os afetos, as práticas
educativas parentais e escolares e os tipos de justiça encontrados nas
significações dos participantes.
Considerações finais
As implicações pedagógicas do uso do dilema moral
enquanto importante instrumento na organização do trabalho
docente são corroboradas pelo caráter desequilibrante das histórias
dilemáticas capazes de mobilizar estruturas cognitivas na busca de
uma solução. Tais elementos ampliam o repertório metodológico
docente e promovem o conhecimento dos argumentos indicados por
estudantes na tentativa de novo equilíbrio cognitivo, revelando
aspectos do desenvolvimento do juízo moral relacionados aos
conteúdos expostos.
Por um lado, os dilemas morais podem ser utilizados para
que o professor identifique a forma de elaboração do pensamento e
das significações, como, por exemplo, Justiça. O professor pode
lançar mão dos dilemas morais como instrumento de provocação de
486
seus alunos e identificação, por meio das resoluções dilemáticas, do
esquema de pensamento utilizado. De outra maneira, os dilemas
morais podem ser utilizados enquanto geradores de discussões e
conflitos, promotores de desequilíbrio que proporcionam a
construção de nova estruturação do pensamento.
Ressaltamos que as identificações de idade e série de
escolaridade não são capazes de garantir a construção de maneira
padronizada. As construções socio-morais, como a significação de
Justiça, podem estar mais ligadas às diferentes oportunidades
oferecidas aos alunos, para reflexão na resolução de conflitos em suas
interações sociais que ao processo de amadurecimento biológico.
Estudos posteriores podem promover a elaboração dos alunos sobre
histórias dilemáticas possibilitando a sua reflexão sobre o conteúdo
e avaliação para que novas formas de pensamento e de construções
do juízo moral surjam, inclusive avaliando a discussão das relações
afetivas despertadas pelos dilemas e a inserção das discussões sobre a
significação de Justiça e Injustiça.
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AS PESQUISAS PIAGETIANAS DESENVOLVIDAS
NO PROGRAMA DE S-GRADUÃO EM
EDUCAÇÃO DA FFC/UNESP DE MARÍLIA
Matheus Estevão Ferreira da SILVA
1
Introdução
O presente livro, As pesquisas piagetianas na educação:
contribuições do passado, desafios atuais e perspectivas futuras, é o
terceiro projeto que assumo para cumprimento de meu
compromisso, enquanto pesquisador em formação, com a
divulgação de pesquisas desenvolvidas dentro do escopo das áreas de
conhecimento em que atuo. Em um sentido semelhante, o Programa
de Pós-Graduação (PPGE) da Faculdade de Filosofia e Ciências
(FFC), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP), Campus de Marília, tem, desde 2020, lançado editais
internos para incentivo e apoio à publicação de resultados de
pesquisa de seus(suas) discentes e docentes.
Pleiteamos o primeiro edital lançado pelo PPGE, Edital
Chamada N.01/2020 (Convênio PROEX/CAPES Auxílio n.°
0798/2018), com a coletânea organizada por mim e pela minha
orientadora Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo, intitulada
1
Doutorando pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília, São
Paulo, Brasil. E-mail: matheus.estevao2@hotmail.com
490
Direitos humanos, diversidade, gênero e sexualidade: reflexões,
diagnósticos e intervenções na pesquisa em educação (SILVA; BRABO,
2020). Em um edital seguinte, Edital Chamada N.02/2021
(Convênio PROEX/CAPESAuxílio n.º 396/2021), o pleiteamos
com a coletânea organizada por mim e pelo professor Raul Aragão
Martins, intitulada A formação ética, moral e em valores na pesquisa
em Educação (SILVA; MARTINS, 2022).
Nestes dois primeiros projetos, tivemos o objetivo comum
de divulgar resultados de pesquisas desenvolvidas no âmbito de
nosso PPGE que abordaram a intersecção dos temas que lhes são
pertinentesno caso do primeiro livro, os temas direitos humanos,
diversidade, gênero e sexualidade, e, no caso do segundo livro, os
temas ética, moral e valores com a Educação. Estes são temas, e
intersecções investigativas, que me dedico a estudar desde a
graduação e que tive o privilégio de o fazer, agora na pós-graduação,
em um PPG que dispõe de um rico histórico de pesquisas
desenvolvidas sobre eles. E, para mim, também privilégio foi poder
me responsabilizar pela reunião e organização de parte dessas
pesquisas desenvolvidas em nosso PPGE em coletâneas acadêmicas.
Para este atual livro, convidei minha colega Lilian Pacchioni
Pereira de Sousa, também Doutoranda em Educação pelo PPGE da
FFC/UNESP, e minha querida professora Eliane Giachetto Saravali,
docente do PPGE e orientadora de Lilian, para compartilharem
comigo a sua organização. Assim, no que tange à presente coletânea,
também tivemos o objetivo, em similaridade com as coletâneas
anteriores, de divulgar resultados de pesquisas de nosso PPGE, mas
agora em relação às pesquisas que investigam os fenômenos e
processos educacionais a partir da perspectiva teórica piagetiana.
491
Também nas duas coletâneas anteriores, fui o autor do
último capítulo de cada uma: Direitos humanos, gênero e sexualidade
no Programa de s-graduação em Educação da FFC/UNESP de
Marília: um balanço das teses e dissertações (2003-2019) (SILVA,
2020), referente ao último capítulo do primeiro livro, e A pesquisa
sobre ética, moral e valores: um balanço das teses e dissertações do
Programa de Pós-graduação em Educação da FFC/UNESP de Marília
(SILVA, 2022a), referente ao último capítulo do segundo. Nesses
dois textos anteriores, tive como objetivo apresentar um balanço da
produção de teses e dissertações do Programa sobre os temas então
pertinentes a cada coletânea, produção em que as pesquisas relatadas
nos seus capítulos estão incluídas.
No presente capítulo, portanto, sigo a mesma proposta:
apresento um balanço da produção de teses e dissertações de nosso
Programa, agora com relação à produção, cujo trabalho de pesquisa
que retrata, teve a teoria piagetiana como seu referencial teórico de
base. Em outras palavras, procuro delinear um mapeamento dessas
pesquisas, de modo a desvelar seu estado, tendências, quais aspectos
foram suficientemente explorados e quais ainda carecem de atenção.
Como percurso metodológico, novamente ancoro-me na
técnica de estado da arte (FERREIRA, 2002; ROMANOWSKI;
ENS, 2006), que consiste na aplicação sistematizada dos
procedimentos de localizar, recuperar, reunir, selecionar e organizar
materiais de pesquisa com o objetivo de buscar a inteligibilidade da
produção científica de determinada área, tema ou objeto estudado.
Por fim, organizei o texto deste capítulo da seguinte forma:
primeiro, abordo brevemente a história do PPGE, ressaltando suas
características e mudanças que teve ao longo do tempo. Em segundo,
492
descrevo a metodologia empregada para o levantamento das teses e
dissertações, então caracterizado como um levantamento do tipo de
estado da arte. Em terceiro, apresento a análise das teses e
dissertações a partir dos seguintes critérios: 1) com qual descritor
foram encontradas, 2) progressão temporal, 3) orientação e 4) Linha
de Pesquisa, ao mesmo tempo em que distingo a quantidade de teses
e dissertações em cada um desses critérios. Encerro o capítulo com
as considerações finais.
O Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE)
da FFC/UNESP de Marília
Nos capítulos supracitados (SILVA, 2020; 2022a), uma
revisão mais extensa sobre a história do Programa de s-Graduação
em Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia em Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Campus de Marília, foi realizada, a qual pode ser conferida a partir
da consulta desses capítulos em suas respectivas coletâneas. Assim,
procuro, aqui, apenas pontuar algumas das principais características
do Programa.
Castro (2010; 2011) realizou uma pesquisa a nível de pós-
doutoramento junto à Fundação Carlos Chagas (FCC), concluída
no ano de 2010, mais de uma década, e que ainda continua como
a principal referência disponível sobre a história do PPGE da
FFC/UNESP. Nela, Castro (2010) reuniu aspectos históricos desse
Programa e suas contribuições para a pós-graduação no Brasil, com
a delimitação temporal de 1988, data de sua criação, a 2008, ano
anterior ao início da pesquisa. Tais dados históricos, ao terem sido
reunidos por Castro (2010; 2011), auxiliam-nos na compreensão de
493
parte das transformações que o PPGE sofreu e como chegou ao seu
estado atual.
A criação do PPGE da FFC/UNESP de Marília remonta o
contexto da jovem UNESP, quando dispunha de apenas um pouco
mais de uma década de existência, dada a sua fundação em 1976 a
partir da incorporação dos Institutos Isolados de Ensino Superior do
Estado de São Paulo. Hoje, em 2022, completam-se 34 anos de
existência do PPGE. Embora tenha sido iniciada em 1985, apenas
em 1988 essa sua criação se concretizou: esperava-se, naquele
momento histórico, que “[...] uma pós-graduação em Educação em
Marília seria de grande importância para o centro-oeste e norte do
estado de São Paulo, além das regiões do norte do Paraná e das
regiões mais próximas do Mato Grosso [do Sul] e de Goiás”
(CASTRO, 2011, p. 189). Era apresentado, como seu objetivo, a
formação consistente de professores(as) e pesquisadores(as) na região
mariliense.
O PPGE dispunha inicialmente de duas Áreas de
Concentração: Ensino na Educação Brasileira e Administração da
Educação Brasileira, porém, foi firmado “com uma única área de
concentração ‘Ensino na Educação Brasileira’. Essa área de
concentração constituiu-se com quatro (04) linhas de pesquisa, às
quais se vincularam as disciplinas a serem oferecidas (CASTRO,
2011, p. 193).
As áreas de concentração foram extintas e, atualmente,
restam apenas as Linhas de Pesquisa nas quais o Programa se
organiza: Linha 01 Psicologia da Educação: Processos Educativos e
Desenvolvimento Humano; Linha 02 Educação Especial; Linha 03
Teoria e Práticas Pedagógicas; Linha 04 Políticas Educacionais,
494
Gestão de Sistemas e Organizações, Trabalho e Movimentos Sociais; e
Linha 05 Filosofia e História da Educação no Brasil. As pesquisas
desenvolvidas no Programa abordam temas específicos e respectivos
a cada Linha de Pesquisa em que são distribuídas.
Também atualmente, o PPGE da FFC/UNESP apresenta
um corpo docente constituído pelo total de 48 docentes orientadores.
cerca de duas décadas, no triênio de 1999-2001, Castro (2010)
sinaliza que seu corpo docente era de somente de 29 docentes. Não
obstante, quanto ao seu reconhecimento, hoje o Programa dispõe de
conceito 6, que é padrão de excelência e referência internacional,
pela mais recente Avaliação Quadrienal emitida pela Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), em
2017. E em relação à sua produção, anualmente são admitidos, em
média, 20 discente de Mestrado e 20 discentes de Doutorado, de
acordo com as vagas disponíveis para orientação por parte dos(as)
docentes.
Ainda sobre sua produção, Castro (2009) elaborou o
instrumento de pesquisa intitulado Teses e dissertações do programa
de pós-graduação em educação da FFC-Unesp/Marília, produzidas
entre 1991-2008, que reúne as teses e dissertações produzidas no
Programa. O quadro seguir apresenta toda essa produção levantada
pela autora e retratada nesse instrumento, segundo a progressão das
teses e dissertações ao longo dos anos no período delimitado de 1991
a 2008.
495
Quadro 1 – Número de Mestrados e Doutorados do PPGE da FFC/UNESP
de Marília no período de 1991-2008
Ano
Dissertação
Tese
Total
1991
4
0
4
1992
5
0
5
1993
9
0
9
1994
19
0
19
1995
19
0
19
1996
24
6
30
1997
26
9
35
1998
31
19
50
1999
14
23
37
2000
50
18
68
2001
28
39
67
2002
32
38
70
2003
34
23
57
2004
23
7
30
2005
15
20
35
2006
19
17
36
2007
27
18
45
2008
28
17
45
Total
420
241
661
Fonte: Silva (2020) adaptado de Castro (2010)
Como mostra o Quadro 1, de 1991, quando concluídas as
primeiras dissertações de Mestrado, até o ano de 2003, foram
produzidas 305 dissertações e 165 teses, que somam um total de 470
materiais. Esse número representa 40% a mais do total de materiais
nos quatro anos seguintes, isto é, de 2004 a 2008, que tiveram 191
materiais produzidos (112 dissertações e 79 teses), ainda que essa
diferença também se deva em razão do primeiro período ser
constituído por oito anos a mais.
496
Feita essa breve exposição do PPGE e alguns de seus dados
de produção, a seguir descreve-se a metodologia delineada para a
elaboração de um balanço dessa produção quanto à pesquisa de base
teórica piagetiana.
Metodologia
Reconheceu-se, como recurso metodológico mais adequado
para realização do balanço pretendido das teses e dissertações do
PPGE da UNESP/FFC de Marília, a técnica de estado da arte
(FERREIRA, 2002; ROMANOWSKI; ENS, 2006), tal como se
realizou em levantamentos anteriores (SILVA, 2020; 2022). Para
Ferreira (2002, p. 258), as pesquisas denominadas de estado da arte
têm:
[...] o desafio de mapear e de discutir uma certa produção
acadêmica em diferentes campos do conhecimento, tentando
responder que aspectos e dimensões vêm sendo destacados e
privilegiados em diferentes épocas e lugares, de que formas e
em que condições têm sido produzidas certas dissertações de
mestrado, teses de doutorado, publicações em periódicos e
comunicações em anais de congressos e de seminários.
Na implementação do estado da arte, portanto, aplicaram-se
os procedimentos de localização, recuperação, reunião, seleção e
organização das teses e dissertações. Esses procedimentos foram
feitos a partir da consulta na base de dados Repositório Institucional
da UNESP, website que armazena em modalidade on-line toda a
produção científica, acadêmica, artística, técnica e administrativa da
UNESP.
497
Tendo em vista que foi nosso interesse saber desde quando
se iniciaram no PPGE as pesquisas de base teórica piagetiana, as
buscas na base foram feitas sem delimitação temporal. Decidiu-se
utilizar, como descritores para as buscas, os termos “Piaget”
“Construtivismo” e “Epistemologia Genética”, por considerá-los
com um emprego mais comum entre essas pesquisas. Além disso,
consideraram-se somente os materiais dispuseram de algum dos
descritores no seu título e/ou resumo.
No total, localizaram-se 31 dissertações e 20 teses a partir do
descritor Piaget” (NP=51)
2
, 04 dissertações e 05 teses (NC=09) a
partir do descritor Construtivismo”, e 14 dissertações e 09 teses
(NEP=23) a partir do descritor Epistemologia Genética”, como
apresentado no quadro disposto a seguir.
Quadro 2 – Resultados das buscas na base de dados Repositório Institucional
da UNESP segundo a modalidade dos materiais, teses e dissertações, do PPGE
da FFC/UNESP de Marília que tiveram a teoria piagetiana como referencial
teórico de base
Descritores
Quantidade de materiais encontrados
Dissertações
Teses
Total
Piaget
31
20
51
Construtivismo
04
05
09
Epistemologia Genética
14
09
23
Total dos resultados
49
34
83
Fonte: Dados da pesquisa
2
Sendo N a abreviação de amostra em estatística, aqui NP, NC, e NEP são
abreviações respectivas aos resultados encontrados com os descritores utilizados,
bem como o número que vem a seguir, que designa o total de materiais que
constituem tais resultados.
498
Após, buscou-se também considerar somente os materiais
que realmente tiveram a teoria piagetiana como seu referencial
teórico de base, visto que -los no título ou resumo não garantiria
isso. Sendo esse um critério de exclusão, os resultados foram
alterados no caso dos descritores “Epistemologia Genética, restando
13 dissertações e 07 teses (NEP=20). A Figura 1 disposta a seguir
retrata essas etapas de seleção da produção, mediante os critérios de
escolha e de exclusão.
Figura 1 – Etapas de seleção da produção de teses e dissertações do PPGE da
FFC/UNESP de Marília que tiveram a teoria piagetiana como referencial
teórico de base
Fonte: Dados da pesquisa
Não obstante, parte dos materiais se repetiram entre os
resultados, que as pesquisas podem abordar mais de um descritor
no seu título e, portanto, como seu tema de pesquisa. Dessa forma,
499
ao invés de 83 teses e dissertações encontradas com todos os
descritores, somando-se todos os materiais encontrados com os três
descritores, na verdade foram 56 materiais diferentes encontrados,
sendo eles 21 teses e 35 dissertações. Em relação a essa quantidade
de teses e dissertações, ressalta-se que se trata de um número
“intermediário” se comparado com o número de materiais
encontrados nos levantamentos anteriores (SILVA, 2020; 2022a),
sobre os temas direitos humanos, diversidade, gênero e sexualidade,
em que se encontraram 21 materiais, sendo 06 teses e 15 dissertações,
e sobre ética, moral e valores, em que se encontraram 77 materiais,
sendo 33 teses e 44 dissertações. Assim, o primeiro levantamento
(SILVA, 2020) dispôs da menor produção, o segundo levantamento
(SILVA, 2022a) com a maior produção e o presente levantamento
de uma produção que se coloca entre as anteriores, em termos de
quantidade. A média dessas 56 teses e dissertações defendidas no
PPGE, se considerado todo o seu período de existência, é de apenas
1,6 tese ou dissertação defendida ao ano.
Depois de recuperados (ou seja, baixados, por estarem em
meio virtual), reunidos e selecionados (a partir dos critérios de
inclusão e exclusão), esses materiais foram organizados em um
instrumento de pesquisa, que é um documento que congrega as
referências dos materiais encontrados, que se intitulou Teses e
dissertações do Programa de s-Graduação em Educação da
FFC/UNESP de Marília que tiveram a teoria piagetiana como
referencial teórico de base: um instrumento de pesquisa (SILVA,
2022b).
A seguir, mediante a análise das informações fornecidas pelo
instrumento de pesquisa gerado pelo estado da arte, apresenta-se o
500
balanço das 51 teses e dissertações segundo os seguintes critérios
analisados: 1) com qual descritor foram encontradas, 2) modalidade,
3) progressão temporal, 4) orientação e 5) Linha de Pesquisa.
O Lugar da Teoria Piagetiana na Produção do PPGE
da FFC/UNESP de Marília
O primeiro critério considerado foi o tema de pesquisa dos
materiais encontrados. Dessa forma, as teses e dissertações foram
dispostas segundo os descritores nos quais elas foram encontradas, o
que possibilitou identificar o número de materiais vinculados a cada
um dos três termos e em qual modalidade, se dissertação (Mestrado)
ou tese (Doutorado), sendo esse o segundo critério considerado.
Ainda nessa análise, entrecruzaram-se esses dois critérios com a
progressão temporal dos materiais, sendo esse o terceiro critério
considerado, de modo a também identificar a incidência da
produção de pesquisa sobre os temas no PPGE ao longo dos anos.
No quadro a seguir, apresenta-se essa análise dos materiais.
Quadro 3 – Quantidade de teses e dissertações do PPGE da FFC/UNESP de
Marília que tiveram a teoria piagetiana como referencial teórico de base
segundo o tema de pesquisa, modalidade e progressão temporal
Ano
Piaget Construtivismo
Epistemologia
Genét.
Total
Teses
Dissertações
Teses
Dissertações
Teses
Dissertações
2001
0
1
0
0
0
1
2
2002
0
0
0
0
0
0
0
2003
0
1
0
0
0
0
1
2004
0
1
0
0
0
0
1
2005
0
1
0
0
0
0
1
2006
1
0
0
0
1
0
2
2007
2
1
0
0
0
0
3
501
2008
1
1
0
0
0
0
2
2009
1
0
0
1
1
0
3
2010
0
0
0
0
0
0
0
2011
1
1
1
0
1
0
4
2012
0
3
0
0
1
0
4
2013
2
1
0
0
0
1
4
2014
0
3
0
0
0
1
4
2015
2
3
1
1
1
2
10
2016
2
1
0
1
0
1
5
2017
1
2
0
0
0
1
4
2018
2
3
0
0
0
2
7
2019
0
3
0
0
0
2
5
2020
1
2
2
0
1
1
7
2021
1
2
1
0
1
0
5
2022
2
2
0
1
0
1
Total
19
32
5
4
7
13
80
Fonte: Dados da pesquisa
A partir do Quadro 3, observa-se que a maior quantidade
dos materiais foi encontrada a partir do descritor “Piaget”, com 19
teses e 32 dissertações produzidas, seguida pelos encontrados pelos
descritores “Construtivismo”, com 05 teses e 04 dissertações, e
“Epistemologia Genética”, com 07 teses e 13 dissertações. Além
disso, como mostra o quadro, os primeiros materiais produzidos
sobre os temas foram publicados no ano de 2001, sendo 01
dissertação encontrada com os descritores “Piaget e “Epistemologia
Genética”. A próxima produção foi 01 dissertação encontrada com
o descritor “Piaget no ano de 2003 e, a partir daí, a produção
permaneceu contínua nos anos seguintes, visto que em todos os anos,
com exceção de 2010, houve a publicação de pelo menos um
material, tese ou dissertação, ainda que isso se mostre com frequentes
502
picos e baixas nessa produção, com seu maior pico marcado no ano
de 2015.
O gráfico de barras disposto a seguir foi produzido para se
alcançar uma melhor visualização desse dado, acerca da progressão
temporal das teses e dissertações, então o terceiro critério
considerado para a análise dos materiais. Esse gráfico demonstra a
progressão dos materiais ao longo dos anos segundo sua modalidade,
se teses ou dissertações.
Figura 2 – Quantidade de teses e dissertações do PPGE da FFC/UNESP de
Marília que tiveram a teoria piagetiana como referencial teórico de base
segundo o ano de publicação em gráfico de barras e linha
Fonte: Dados da pesquisa
Como demonstra a Figura 2, a produção levantada pelo
presente estado da arte data de 2001, ano de publicação do primeiro
material encontrado, a 2022, ano da realização desse levantamento
503
no Repositório Institucional da UNESP
3
, resultando em um
período de produção de 21 anos. Se ignorados os anos desde a data
de criação do PPGE em 1988 até o ano de 2002, uma vez que não
se tem os dados da produção nesse período pelo Repositório da
UNESP, ressalta-se que a partir de 2003 essa produção se mostrou
contínua ao longo dos anos seguintes, até o ano de 2022. Os picos
nessa produção se verificaram nos anos de 2015, com 02 teses e 04
dissertações, 2018, também com 02 teses e 04 dissertações, 2017,
com 01 teses e 03 dissertações, 2020, com 02 teses e 02 dissertações,
e 2022, com 02 teses e 02 dissertações. Em suma, pode-se identificar
uma tendência de aumento na produção a partir do ano de 2015 até
o presente momento, em 2022. Nos demais anos, a partir de 2007
começou a ter pelo menos 02 materiais produzidos em cada ano,
com exceção do ano de 2010, em que não houve a publicação de
algum material.
Se levado em conta o levantamento de Castro (2009; 2010;
2011) sobre o total da produção do Programa no período de 1991-
2008, com 661 materiais, entre teses e dissertações, ainda assim
pode-se considerar que a presente produção investigada (51
materiais), um recorte dessa produção total, é relativamente pequena.
E isso se apoia no fato de que a produção entre 2009 a 2021, período
não contemplado no instrumento de Castro (2009), aumentou o
número total de teses e dissertações, que hoje é muito superior a 661
materiais. Um novo levantamento desse total de materiais do PPGE,
3
O levantamento aqui exposto foi realizado em julho de 2 Após essa data, outros
materiais podem ser defendidos e publicados ainda em 2022, alterando o número
de teses e dissertações do PPGE referentes a esse ano.
504
como continuidade ao levantamento dessa autora (2009), também
é aqui demandado para estudos seguintes.
Outros levantamentos sobre a produção desse PPGE
também foram providenciados além de Castro (2010; 2011), como
é o caso de Manzini et al. (2006), com recortes temporal de 1993-
2004 e temático à Educação Especial, e de Santana, Castro e Lima
(2018), que se fundamentaram no instrumento de pesquisa de
Castro (2009) para sua investigação, com recortes temporal de
2005-2008 e também temático à Educação Especial. Em síntese,
Manzini et al. (2006), no decorrer de 10 anos, encontraram 55
materiais, mais que a metade do que encontramos acerca dos temas
ética, moral e valores no período de 18 anos (2003-2021), enquanto
Santana, Castro e Lima (2018), no período de 04 anos, encontraram
24 materiais, menos da metade do que encontramos.
Agora em relação ao critério seguinte considerado na análise,
que foi a orientação dada à pesquisa que resultou na tese ou
dissertação, por um(a) dos(as) docentes do Programa, produziu-se o
quadro a seguir.
Quadro 4 – Quantidade de teses e dissertações do PPGE da FFC/UNESP de
Marília que tiveram a teoria piagetiana como referencial teórico de base
segundo a orientação da pesquisa
Orientador(a)
Teses
Dissertações
Total
ARENA, Dagoberto Buim
01
0
01
BATAGLIA, Patricia Unger Raphael
03
05
08
MONTOYA, Adrian Oscar Dongo
09
10
19
MARTINS, Clélia Aparecida
0
01
01
MARTINS, Raul Aragão
05
05
10
MORAIS, Alessandra de
0
05
05
SARAVALI, Eliane Giachetto
03
08
11
505
SOUZA, Leonardo Lemos de
0
01
01
Total
21
35
56
Fonte: Dados da pesquisa
O Quadro 4 mostra que uma distribuição equilibrada de
docentes orientadores(as) mulheres e homens, tomando-se como
referência os 04 nomes femininos e os 04 nomes masculinos.
Quem mais orientou as pesquisas desse montante
investigado foi Adrian Oscar Dongo Montoya, com 19 pesquisas no
total, sendo 09 teses e 10 dissertações, seguido de Eliane Giachetto
Saravali, que orientou 11 pesquisas, 03 teses e 08 dissertações, e Raul
Aragão Martins, que orientou 10 pesquisas, 05 teses e 05 dissertações.
Depois deles, encontram-se Patricia Unger Raphael Bataglia, com
08 pesquisas orientadas, sendo 03 teses e 05 dissertações, e
Alessandra de Morais (Shimizu), com 05 pesquisas, sendo todas elas
dissertações. O restante dos(as) docentes orientaram 01 pesquisa
cada.
O último critério foi a distribuição dos materiais entre as
cinco Linhas de Pesquisa do PPGE, cuja disposição poderia revelar
a existência de alguma Linha mais produtiva do que outra e, desse
modo, se a produção se encontra concentrada em alguma delas. O
Quadro 5 apresenta essa última análise.
Quadro 5 – Quantidade de teses e dissertações do PPGE da FFC/UNESP de
Marília que tiveram a teoria piagetiana como referencial teórico de base
segundo a Linha de Pesquisa que se vinculam
Ano
Linha 01
Linha 02
Linha 03
Linha 04
Linha 05
Tese
Disse.
Tese
Disse.
Tese
Disse.
Tese
Disse.
Tese
Disse.
2001
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
2002
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2003
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
506
2004
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
2005
0
1
0
0
0
0
0
0
0
0
2006
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2007
2
1
0
0
0
0
0
0
0
0
2008
1
1
0
0
0
0
0
0
0
0
2009
1
1
0
0
0
0
0
0
0
0
2010
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
2011
1
1
0
0
0
0
0
0
0
0
2012
0
3
0
0
0
0
0
0
0
0
2013
2
1
0
0
0
0
0
0
0
0
2014
0
3
0
0
0
0
0
0
0
0
2015
2
4
0
0
0
0
0
0
0
0
2016
1
1
0
0
1
0
0
0
0
0
2017
1
3
0
0
0
0
0
0
0
0
2018
2
4
0
0
0
0
0
0
0
0
2019
0
3
0
0
0
0
0
0
0
0
2020
2
2
0
0
0
0
0
0
0
0
2021
1
2
0
0
0
0
0
0
0
0
2022
2
2
0
0
0
0
0
0
0
0
Total
19
35
0
0
1
0
0
0
0
1
Fonte: Dados da pesquisa
O Quadro 5 demonstra que, na distribuição dos materiais
segundo as Linhas de Pesquisa, predominam os materiais vinculados
à Linha 01 – Psicologia da Educação, com 19 teses e 35 dissertações.
Depois dela, apenas as Linha 05 Filosofia e História da Educação
no Brasil e Linha 03 Teoria e Práticas Pedagógicas, tiveram a
incidência de 01 material em cada, 01 tese na Linha 3 e 01
dissertação na Linha 5. Não houve nenhum material vinculado às
demais Linhas do Programa.
507
Considerações finais
Neste capítulo, busquei realizar um balanço sobre as
pesquisas desenvolvidas no PPGE da FFC/UNESP de Marília,
analisando as principais características dessa produção,
características cuja inteligibilidade, possibilitada mediante o estado
da arte, não se referem ao seu conteúdo. Alguns aspectos sobre a
produção desse PPGE puderam ser evidenciados e, portanto, relevar
o que se procurou responder quanto ao lugar que as pesquisas de
base teórica piagetiana ocupam em sua produção de pesquisa.
Em ntese, esse lugar pareceu se esboçar a partir do ano de
2001, no entanto, sabe-se que ele pode estar presente desde anos
anteriores, requerendo um levantamento que não pôde ser
contemplado no Repositório Institucional da UNESP consultado.
Esse lugar se consolida como uma produção contínua, presente em
quase todos os anos a partir de 2003, com exceção do ano de 2010,
e com tendência ascendente a partir de do ano de 2007, embora haja
baixas alguns hiatos entre um ano e outro ano. Também se verificou
que, nesse lugar que a produção ocupa, docentes que orientam
mais pesquisas sobre os temas do que outros, além de Linhas que
também concentram essa produção.
Tal como se referiu em relação à necessidade de um novo
levantamento do total de teses e dissertações do PPGE, como
continuação do estudo de Castro (2009) e contemplar o período que
se passou depois dele, ressalta-se que o balanço aqui apresentado se
refere ao estado da produção tal como se encontra atualmente.
Novos levantamentos e análises se farão necessários com tempo, à
medida em que a produção cresce e se transforma, tanto em relação
508
ao presente recorte, como dos temas direitos humanos, diversidade,
gênero e sexualidade (SILVA, 2020), dos temas ética, moral e valores
(SILVA, 2022a), da Educação Especial (MANZINI et al., 2006;
SANTANA; CASTRO; LIMA, 2018), e vários outros recortes
temáticos sobre essa produção que se acumula mais de três
décadas.
Mais uma vez, espera-se que este balanço sobre os temas,
então erigido nos moldes do estado da arte, além de contribuir para
a inteligibilidade da produção, também possa contribuir para o
desenvolvimento de novas pesquisas.
Referências
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graduação em educação da FFC-Unesp/Marília, produzidas entre
1992-2008. In: CASTRO, R. M. de. A Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília (1988-
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de Filosofia e Ciências de Marília (1988-2008) e suas
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Final de Pesquisa (Pós-doutorado)Fundação Carlos Chagas, São
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509
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diagnósticos e intervenções na pesquisa em educação. Marília/São
Paulo: Oficina Universitária/Cultura Acadêmica, 2020.
SILVA, M. E. F. da; MARTINS, R. A. (Orgs.). A formação ética,
moral e em valores na pesquisa em educação. Marília/São Paulo:
Oficina Universitária/Cultura Acadêmica, 2022.
UNESP. Autuação dos documentos referentes à composição do
Conselho de Curso de Pós-Graduação em EducaçãoÁrea de
Ensino na Educação Brasileira. 220 f. Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília,
1989. Impresso.
511
SOBRE AS AUTORAS E AUTORES
Adrián Oscar Dongo Montoya é psicólogo pela Universidad
Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM), Mestre e Doutor em
Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) Pós-
Doutorado pelo Laboratório de Psicologia Genética da Universitè
de Lumiére-Lyon 2, França, e Livre-Docente pela Universidade
Estadual Paulista (UNESP). Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa
em Epistemologia Genética e Educação (GEPEGE). Atualmente é
Professor Titular aposentado da Faculdade de Filosofia e Ciências
(FFC), UNESP, Campus de Marília. E-mail:
dongomontoya@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2381-3445
Ana Carolina Tattaro Maranho é Psicóloga pela Faculdade da Alta
Paulista (FAP) de Tupã, Mestre em Educação pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia e
Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus
de Marília. Atua como docente em Instituições de Ensino Superior
(IES) desde 2019. E-mail: caroltattaro@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0959-9446.
Ana Cristina da Silva Amado é Psicóloga pela Universidade Federal
de Uberlândia (UFU), Pedagoga pelo Centro Universitário Moura
Lacerda, Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade de
Sorocaba (UNISO) e Doutora em Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP).
Possui experiência profissional nas áreas da Educação Básica (como
512
professora do Ensino dio, além de Coordenação Pedagógica e
Orientação Educacional) e da Saúde (como psicóloga da rede
municipal de saúde, atendimento em clínica particular/
multidisciplinar e como articuladora de Saúde Mental). Atualmente
é docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e da
Universidade Positivo de Londrina. E-mail: ana.amado@uel.br
André Elias Morelli Ribeiro é Psicólogo, Mestre e Doutor em
Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras (FCL), Universidade
Estadual Paulista (UNESP), Campus de Assis. Foi bolsista da
Fondation Jean Piaget, com estágio doutoral na Université de
Genève, Suíça, e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de vel Superior (CAPES). É Professor Adjunto do
Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense
(UFF) de Rio das Ostras. Membro da Sociedade Brasileira de
História da Psicologia. Coordenador do Portal História da
Psicologia (https://historiadapsicologia.com.br). E-mail:
andremorelli@id.uff.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1102-2286.
Bernadete de Fatima Bastos Valentim é Pedagoga, Especialista em
Psicopedagogia e Mestra em Educação pela Universidade Estadual
do Centro-Oeste (UNICENTRO) e Doutora em Educação pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em
Atendimento Educacional Especializado pela Universidade Estadual
de Maringá (UEM). Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa
Interdisciplinar em Desenvolvimento Humano e Educação
(GIEDH), Professora Colaboradora no Departamento de Pedagogia
513
da UNICENTRO. Professora na Secretaria Estadual do Paraná no
Município de Guarapuava. E-mail:
bernadetevalentim@unicentro.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2521-6540.
Bianca Vitti Cincoto é Pedagoga e Mestranda em Docência para a
Educação Básica pela Faculdade de Ciências (FC), Universidade
Estadual Paulista (UNESP), Campus de Bauru. Graduanda em
Psicologia pelo Centro Universitário Sagrado Coração (UNISA-
GRADO). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em
Desenvolvimento Moral e Educação (GEPEDEME). Participou do
Programa Residência Pedagógica e do Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) na graduação em Pedagogia.
Atua como professora de Inglês da Educação Infantil no Colégio
Dinâmico Bauru. E-mail: bianca_vitti@hotmail.com.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2140-3461.
Bruna Assem Sasso dos Santos é Pedagoga, Mestra e Doutora em
Educação pelo Programa de s-Graduação em Educação (PPGE)
da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Campus de Marília. É membro do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Epistemologia Genética e Educação
(GEPEGE) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Moral
e Educação Integral (GEPPEI). E-mail: bru.sasso@hotmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0190-4365.
Bruna Sordi Rodrigues é Pedagoga e Mestra em Educação
Científica e Matemática pela Universidade Estadual de Mato Grosso
514
do Sul (UEMS), Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia e
Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus
de Marília. Especialista em Educação Infantil e Anos Iniciais pelo
Instituto de Estudos Avançados e Pós-Graduação. E-mail:
bruna.sordi@unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3956-1046.
Carla Chiari é psicóloga pela Universidade de Marilia (UNIMAR),
Pedagoga pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília, e
Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da mesma instituição. Membro do Grupo de
Pesquisa em Psicologia e Educação Integral (GEPPEI). Atua nos
seguintes temas: Psicologia da Educação, Psicologia Moral,
Psicologia Analítica. Atuou profissional como psicóloga escolar e
clinica por mais de dez anos. lecionou como professora no Ensino
Fundamental e dio foi docente da Faculdade Católica Paulista
no curso de Psicologia. E-mail: carlachiari@hotmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4292-7563.
Carla Luciane Blum Vestena é Pedagoga pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR) e Psicóloga pela Universidade Guairacá. Mestre
em Geografia pela UFPR e Doutora em Educação pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia e
Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus
de Marília. Pós-Doutorado pela Durham University, Reino Unido.
Professora Associada da Universidade Estadual do Centro-Oeste
515
(UNICENTRO). Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa Interdisci-
plinar em desenvolvimento humano e Educação (GIEDH). E-mail:
cvestena@unicentro.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8655-7840.
Carla Sant’ana de Oliveira é Pedagoga e Mestra em Educação pela
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) e
Doutora pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente
é professora colaboradora da UNICENTRO. Membro do Grupo de
Estudo e Pesquisa Interdisciplinar em desenvolvimento humano e
Educação (GIEDH). E-mail: carlasantol19@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6262-5749.
Carla Andressa Placido Ribeiro de França é Pedagoga, Mestre e
Doutora em Educação pelo Programa de s-Graduação em
Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia em Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília.
Membro do Grupo de Estudo de Psicologia e Epistemologia
Genética (GEPEGE) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Psicologia Moral e Educação Integral (GEPPEI). Desenvolveu
pesquisas sobre o tema de Desenvolvimento Moral e Educação
Moral em Instituições de Acolhimento. Fez Iniciação Científica e
Mestrado com bolsa FAPESP e Doutorado com bolsa CAPES. E-
mail: carla.andressa@unesp.br.
Carlos Eduardo de Souza Gonçalves é Psicólogo e Especialista em
Psicologia Empresarial pela Universidade Católica de Petrópolis
(UCP), Especialista em Neuropsicologia pela Faculdade do Norte
516
Novo de Apucarana (FACNOPAR), Mestre e Doutor em Educação
pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atualmente é
servidor público federal técnico-administrativo como Psicólogo do
Instituto Federal do Paraná (IFPR), Campus Londrina. Membro da
Jean Piaget Society. Membro do Comitê de Pesquisa e Extensão do
IFPR, biênio 2022-2024. E-mail:
prof_carloseduardo@outlook.com.
Cristiane Pereira Marquesini é Mestre em Psicologia pela
Faculdade de Ciências e Letras (FCL), Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Campus de Assis, Doutora Educação pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de
Filosofia em Ciências (FFC), UNESP, Campus de Marília. s-
Doutoranda pela FCL/UNESP/Assis. Docente em regime de
substituição na FCL/UNESP/Assis. E-mail:
cristiane.marquezini@unesp.br.
Edneia Felix de Matos é Pedagoga pela Faculdade de Ensino
Superior do Interior Paulista (FAIP), Especialista em Psicopeda-
gogia Institucional pela Faculdade Paulista e em Educação Infantil
pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Mestre em
Educação pelo Programa de s-Graduação em Educação (PPGE)
da Faculdade de Filosofia em Ciências (FFC), Universidade
Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília. Professora na Rede
Municipal de Ensino de Marília. Membro do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Aprendizagem e Desenvolvimento na Perspectiva
Construtivista (GEADEC). E-mail: edneia-felix.matos@unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9493-9040.
517
Eduardo Silva Benetti é formado em Educação Física pelo Centro
Universitário Padre Albino (UNIFIPA) e em Pedagogia pela
Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES), Mestre em
Docência para Educação Básica pela da Faculdade de Ciências (FC),
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Bauru.
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Desenvolvimento
Moral e Educação (GEPEDEME). Desempenhou a função de chefe
de divisão técnico pedagógico da Secretaria Municipal de Educação
de Catanduva e de Professor Recreacionista da Prefeitura Municipal
de Catanduva. Atuou na função de chefe de departamento técnico-
pedagógico junto à Secretaria Municipal de Catanduva no ano de
2020. E-mail: eduardo.benetti@unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1861-6340.
Eliane Giachetto Saravali é Pedagoga, Mestre e Doutora em
Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNICAMP). Pós-
Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Londrina
(UEL). Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional. É
Professora Assistente do Departamento de Educação e Desenvol-
vimento Humano (DEPEDH) e docente do Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia em
Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus
de Marília. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Aprendizagem e Desenvolvimento na Perspectiva Construtivista
(GEADEC). Membro da International Society of Psychopedagogy
(ISP). E-mail: eliane.g.saravali@unesp.br.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1259-6027.
518
Érica de Cássia Gonçalves é Pedagoga pelo Centro Universitário da
Fundação Educacional Guaxupé (UNIFEG), Especialista em
Psicopedagogia Institucional pela Faculdade Calafiori, Mestre e
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia em Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília.
Atualmente é Coordenadora do Ensino Fundamental em Rede
Pública Municipal. E-mail: erica.goncalves@unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2511-53b.
Francismara Neves de Oliveira é Pedagoga pela Universidade
Estadual de Londrina (UEL), Mestre e Doutora em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutorado
em Psicologia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e
Pós-doutorado em Educação pela Universidade Norte-Paranaense
(UENP). Professora Associada da UEL e docente de seu Programa
de Pós-Graduação em Educação. É membro do grupo de trabalho
intitulado Educação, Saúde e Desenvolvimento Humano: reflexões
a partir da teoria de Jean Piagetda Associação Nacional de Pesquisa
e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). Líder dos Grupos de
Pesquisa Processos de escolarização no Ensino Fundamental:
reflexões a partir da teoria de Jean Piaget” e Processos do ensinar e
aprender: aspectos sociais, afetivos e cognitivos e a construção da
convivência sociomoral na escola”. E-mail: francismara@uel.com.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0809-2304.
519
Gabriela da Silva Disner é Psicóloga, Mestranda em Educação pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista
(UNESP), Campus de Marília, e graduanda em Pedagogia pela
mesma instituição. Especialista em Psicologia Hospitalar pela
Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA), em Psicopedagogia
Institucional e Clínica e em Saúde Mental e Atenção Psicossocial
pelo Instituto de Ensino, Capacitação e Pós-Graduação (INDEP).
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e
Desenvolvimento na Perspectiva Construtivista (GEADEC). E-
mail: gabriela.disner@unesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-
0001-6990-8859.
Guilherme Aparecido de Godoi é formado em Geografia pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mestre e
Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Londrina
(UEL). Tem experiência na área de Educação em Geografia, com
ênfase na Epistemologia Genética de Jean Piaget e a representação
do espaço e tempo na construção de conhecimentos geográficos. E-
mail: guilhermeapgodoi@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0708-9920.
Henrique Abarca Schelini Carnevalli é formado em Ciências Sociais,
e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Campus de Marília. Especialista em Gestão Pública pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Especialista em
520
Gestão de Políticas Públicas, Área Organizacional e Terceiro Setor
pelo Instituto Toledo de Ensino (ITE) de Bauru. Atua como
Educador Social na Prefeitura Municipal de Marília e como
Professor da Educação Básica do Estado de São Paulo. E-mail:
henriqueabarca@gmail.com.
Joana Virgínia Campana Nakano é Pedagoga pela Universidade
Estadual de Londrina (UEL), Especialista em Neurociências
Aplicadas à Educação em Universidade Anhembi Morumbi (UAM),
Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional e Mestre em
Educação pela UEL. Docente na Rede Municipal de Ensino de
Londrina. Consultora Educacional, possui experiência na área de
Educação, com ênfase em desenvolvimento infantil na primeira
infância, habilidades sociais e intervenção em processos de
alfabetização. E-mail: joana_campana@outlook.com.
Leandro Augusto dos Reis é Licenciado com Láurea Acadêmica em
Música, Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Estadual
de Londrina (UEL). Professor Adjunto do Departamento de Música
e Teatro, Centro de Educação, Comunicação e Artes da UEL.
Docente permanente do Programa de Pós-graduação em Educação
da UEL. Coordenador de Colegiado do Curso de Graduação em
Música. Vice-presidente do Fórum Permanente das Licenciaturas da
UEL (2021-2022). Líder do grupo de pesquisa Processos de
escolarização no cotidiano escolar: contribuições da Epistemologia
Genética. E-mail: ars_leandro@uel.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2502-8902.
521
Lia Beatriz de Lucca Freitas é Psicóloga e Mestre em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutora em
Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi bolsista
Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvol-
vimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi Professora Visitante
da University of North Carolina at Greensboro (UNCG), Estados
Unidos. É membro fundadora do Developing Gratitude Research
Group. Atualmente, é Consultora Acadêmica. E-mail: lblf@ufrgs.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8854-6512.
Lia Leme Zaia é Pedagoga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de São José do Rio Pardo (FFCL), Mestra e Doutora em
Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Professora Titular aposentada da FFCL de São José do Rio Pardo.
Atualmente é membro do Conselho Editorial da Editora Mercado
de Letras e pesquisadora colaboradora do Laboratório de Psicologia
Genética Faculdade de Educação da UNICAMP. E-mail:
lialemezaia@gmail.com.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7977-7020.
Lilian Pacchioni Pereira de Sousa é formada em Comunicação
Social, Publicidade e Propaganda pela Faculdade Cásper Líbero,
Mestre em Educação pela Universidade São Marcos (UNIMARCO)
e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia em Ciências (FFC),
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília. Tem
522
experiência na área de Educação Superior. E-mail:
lilian.pacchioni@unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3280-6776.
Lívia Maria de Souza Soares é Pedagoga pelo Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE), Universidade
Estadual Paulista (UNESP), Campus de São José do Rio Preto,
Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia em Ciências (FFC),
UNESP, Campus de Marília. Tem experiência na área de Educação
no Ensino Fundamental I. E-mail: livia.soares@unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6597-213X.
Luciana Ramos Rodrigues de Carvalho é Mestre em Educação pela
Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Doutoranda em
Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras (FCL), Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho(UNESP), Campus de
Assis. Professora da Rede Municipal de Educação de Londrina.
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas “Processos de
escolarização no cotidiano escolar: contribuições da Epistemologia
Genética. E-mail: lrr.carvalho@unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4936-0472.
Marcela Cristina de Moraes é Pedagoga Centro Universitário da
Fundação Educacional Guaxupé (UNIFEG), e Mestranda em
Educação pelo Programa de s-Graduação em Educação (PPGE)
da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Campus de Marília, e membro do Grupo de
523
Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Desenvolvimento na
Perspectiva Construtivista (GEADEC). Especializada em Gestão
Escolar pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Sul de Minas (IFSULDEMINAS), Campus de Muzambinho. Atua
como professora de Educação Infantil na Secretaria Municipal de
Educação de Guaxupé. E-mail: marcela.cristina@unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5358-2089.
Matheus Estevão Ferreira da Silva é Pedagogo pela Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista
(UNESP), Campus de Marília, Mestre e Doutorando em Educação
pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da mesma
instituição e Psicólogo pela Faculdade de Ciências e Letras (FCL),
UNESP, Campus de Assis. Foi bolsista de Iniciação Científica
FAPESP em ambas graduações, bolsista de Mestrado do CNPq e da
FAPESP, e atualmente é bolsista de Doutorado da CAPES. Atuou
como 1.º Secretário do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania
de Marília (NUDHUC) nas gestões de 2016-2018 e de 2019-2021
e como Tutor Pedagógico dos cursos de Pedagogia e licenciaturas
EaD da Universidade de Marília (UNIMAR). E-mail:
matheus.estevao2@hotmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2059-6361.
Priscila Caroline Miguel é psicóloga pela Universidade de Marília
(UNIMAR), Mestre e Doutoranda em Educação pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia e
Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus
de Marília. Foi bolsista de Mestrado da Coordenação de
524
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Vinculada
ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Moral e Educação
Integral (GEPPEI) desde 2018.
E-mail: priscilacarolinemiguel@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1499-9196.
Orlando Mendes Fogaça Júnior é formado em Educação Física pela
Faculdade de Ciências e Letras de Arapongas (FAFICLA),
Especialista em Educação Física no Ensino Básico pela Universidade
Estadual de Londrina (UEL) e Doutor em Educação pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia
e Ciências (FFC), Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Campus de Marília. Docente da UEL no Curso de Educação Física.
E-mail: orlandojr@uel.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8626-6293.
Rita Melissa Lepre é Psicóloga pela Faculdade de Ciências e Letras
(FCL), Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Assis,
Especialista em Neuropsicologia pelo Instituto de Psicologia e Saúde
Ampliatta, Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Filosofia e
Ciências (FFC), UNESP, Campus de Marília. É Livre-Docente em
Psicologia da Educação pela UNESP. Líder do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Desenvolvimento Moral e Educação (GEPEDEME).
É Professora Associada junto ao Departamento de Educação e
coordenadora do Programa de Pós-graduação em Docência para a
Educação Básica (PPGDEB) da Faculdade de Ciências (FC),
525
UNESP, Campus de Bauru. E-mail: melissa.lepre@unesp.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0096-3136.
Rodrigo Luís Vogt é psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná (PUC-PR), Campus Toledo, Especialista em Docência
do Ensino Superior e Neuropsicologia pela União Brasileira de
Faculdades (UNIBF) e Mestrando em Educação pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Membro do Grupo de Pesquisa
Observatório do clima institucional e prevenção de violência em
contextos educacionais (Observatório Xará). E-mail:
rodrigo.vogt@ufpr.br.
Sandra Cristina Batista Martins é psicóloga pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Mestre e Doutora em
Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Presidente
fundadora da Associação Brasileira de Psicologia do Tráfego no
Paraná. E-mail: sandramartins.scbm@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2781-6494.
Silvana Thomas é psicóloga pela Faculdade Pitágoras de Londrina
(UNOPAR), Mestre e Doutoranda em Educação pela Universidade
Estadual de Londrina (UEL). Psicopedagoga Clínica e Institucional,
Neuropsicóloga, Especialista em Saúde da Família. Membro do
Grupo de Pesquisa “Conhecimento social e suas relações com a
construção de possíveis e abstração reflexionante: possibilidades para
a promoção da resiliência no espaço escolar”. Experiência na área de
Saúde Mental, Proteção Social Especial e Sistema Socioeducativo,
com ênfase em desenvolvimento humano, aprendizagem,
526
socialização, adolescência e desenvolvimento moral no espaço
escolar. E-mail: silvanathomas1986@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0577-3603.
Sônia Bessa é Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-Doutorado
pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
Professora do Instituto Acadêmico de Educação e Licenciaturas da
Universidade Estadual de Goiás (UEG) e docente do Programa de
Pós-graduação em Gestão, Educação e Tecnologias (PPGGET).
Líder do Laboratório Interdisciplinar em Metodologias Ativas
(LIMA). E-mail: sonia.bessa@ueg.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9857-6523.
Tania Stoltz é Pedagoga pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP),
formada em Educação Artística pela Faculdade de Educação Musical
do Paraná (FEMP), Mestre em Educação pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR) e Doutora em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui um Pós-
Doutorado pelos Archives Jean Piaget, em Genebra, Suíça e um Pós-
Doutorado pela Alanus Hochschule, Alemanha. Professora Titular da
UFPR. Membro do Board of Directors da Jean Piaget Society, Estados
Unidos. Bolsista produtividade do CNPq. E mail:
tania.stoltz795@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9132-0514.
É inegável a importância e
relevância da obra aqui apresentada.
Entendemos como eminente a neces-
sidade de Grupos importantes como
os citados na obra (GEPEGE, GE-
ADEC, GEPPEI), todos vinculados
ao Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) da FFC/UNESP
de Marília, local importante e de re-
ferência para a teoria piagetiana di-
vulgar seus trabalhos para além das
revistas cientícas e o banco de teses
e dissertações. Entendemos ser im-
portante que esses lócus acadêmicos
sejam transpostos colocando as pes-
quisas desenvolvidas nos mesmos em
evidência, de forma clara e acessível
aos estudantes, leitores e interessados
na obra e teoria de Jean Piaget.
Os resultados das pesquisas de
Mestrado, Doutorado e Pós-Dou-
torado nem sempre são acessíveis à
maioria dos educadores por ter um
formato mais acadêmico e rebuscado,
além de ter uma densidade substan-
cial de informações. Quando os pes-
quisadores conseguem transpor esses
trabalhos e seus resultados para um
capítulo de livro é inegável que as di-
mensões que este trabalho atinge em
termos de público é muito maior.
Além disso, o texto se encon-
tra articulado e bem distribuído com
relação às temáticas apresentadas. Na
primeira parte estão as pesquisas sobre
o desenvolvimento cognitivo, na se-
gunda parte temos as pesquisas acerca
do desenvolvimento moral. Esta divi-
são de temática é muito apropriada e
colabora com demandas importantes
para se ler e compreender Jean Piaget
na atualidade.
Ressaltamos ainda a inegável
credibilidade dos autores que assinam
os capítulos, mesmo aqueles que pos-
suem os orientandos como autor, seus
orientadores e pesquisadores coorde-
nadores evidenciam um quadro de
autores de peso considerando o esco-
po da proposta de livro apresentada.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0039/2022
Processo Nº 23038.001838/2022-11
A presente coletânea foi idealizada com o objetivo principal de divulgar
resultados de pesquisas, em andamento ou concluídas, desenvolvidas no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da FFC/
UNESP de Marília, que investigam os fenômenos e processos educa-
cionais a partir da perspectiva teórica piagetiana.
O livro reuniu 19 textos resultantes de pesquisas de Mestrado, Douto-
rado e Pós-Doutorado, concluídas ou ainda em andamento. 16 desses
textos são de autoria de discentes, que contam ou não com a coauto-
ria de seus(suas) respectivos(as) orientadores(as), enquanto os outros 03
textos são de autoria de professores(as) convidados(as).
O livro foi dividido em duas partes, em que os 19 capítulos foram dis-
tribuídos. Na primeira parte, intitulada “As pesquisas sobre o desenvol-
vimento cognitivo”, encontram-se 10 textos que abordam resultados de
pesquisas que investigaram diversos aspectos sob o enfoque cognitivo
da teoria piagetiana. Na segunda parte, intitulada “As pesquisas sobre o
desenvolvimento moral”, reúnem-se 09 textos resultantes de pesquisas
que investigaram a questão da moralidade a partir de Piaget.
ELIANE PAGANINI DA SILVA
Professora Adjunto da Universidade Estadual
do Paraná (Unespar), Campus Apucarana
Professora do Programa de Pós-Graduação em
Educação Inclusiva (PROFEI/Unespar)
MATHEUS, LILIAN E ELIANE
Os organizadores
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