João Henrique Souza Pires
Neste livro, resultado de amplo levantamento bibliográco e documen-
tal, e relevante investigação empírica para o entendimento do objeto de
estudo, João Henrique Souza Pires busca analisar o impacto da atuação
de Entidades de Apoio que desenvolvem trabalhos ligados à capacitação,
formação, assessoria, assistência técnica e extensão na organização do tu-
rismo em Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, no estado de
São Paulo.
O autor debruça-se sobre questões teórico-metodológicas que orientam o
trabalho dessas entidades nos territórios quilombolas, demonstrando, por
meio da discussão dos resultados de sua extraordinária pesquisa, que as ati-
vidades ali desenvolvidas são pautadas por uma lógica crítica, horizontal,
dialógica, problematizadora e de troca de saberes com os povos tradicio-
nais que desenvolvem o Circuito Quilombola de Turismo Comunitário do
Vale do Ribeira.
Desse modo, trata-se de uma obra fundamental para aqueles que buscam
conhecer a resistência e a luta histórica dos quilombolas pelo reconheci-
mento de seus territórios e preservação de seu modo de vida. Ademais, o
autor aponta que as práticas formativas de assistência técnica desenvolvidas
ali, ao contemplarem um turismo voltado para a valorização do território e
a auto-organização dos sujeitos quilombolas, potencializam o processo de
resistência dessas comunidades e se contrapõem ao sistemático avanço de
setores do agronegócio, da especulação imobiliária e da mineração sobre
áreas quilombolas, setores estes regulados pela lógica capitalista e destrui-
dores das culturas tradicionais.
João Pires, assim, desnuda ao leitor as evidências históricas dos quilom-
bolas como “classe em si” no contexto das lutas empreendidas no Vale do
Ribeira.
O livro de João Henrique Pires in-
titulado Entidades de apoio e comunidades
quilombolas: análise sobre o circuito quilom-
bola de turismo comunitário do Vale do Ri-
beira apresenta resultados de pesquisa atual
e relevante.
O objetivo principal da pesquisa
foi o de analisar as relações existentes entre
as Entidades de Apoio e as Comunidades
Remanescentes de Quilombos do Vale do
Ribeira (SP). As Entidades de Apoio reali-
zam trabalhos e desenvolvem projetos de
capacitação, formação, assessoria, assistên-
cia técnica e extensão com o objetivo de
organização do turismo das Comunidades
de Quilombos.
Nesta obra, o autor analisa criti-
camente os procedimentos teórico-me-
todológicos de Entidades de Apoio que
desenvolvem suas ações com o Circuito
Quilombola de Turismo Comunitário do
Vale do Ribeira no Estado de São Paulo.
Este livro é relevante, pois possui atuali-
dade e, principalmente, porque mostra as
lutas das comunidades remanescentes de
quilombos pelo reconhecimento e auto-
nomia de seus territórios e de seu modo de
vida. As práticas formativas de assistência
técnica, que fomentam um turismo volta-
do para a valorização do território e au-
to-organização dos sujeitos remanescente
de quilombos na região, colaboram com
o processo de resistência das comunidades
e se contrapõem ao avanço de setores do
agronegócio, imobiliário e da mineração
sobre as áreas Quilombolas.
O autor apresenta e analisa a luta
das comunidades quilombolas pelo seu
território aliadas aos projetos alternativos
de organização do turismo, que se contra-
põem às práticas de turismo mercantiliza-
das e alheias aos interesses da comunidade
local.
Desse modo, esta obra apresenta
uma contribuição para o entendimento das
lutas e das formas de resistência das Comu-
nidades Quilombolas na sociedade capitalis-
ta e, de forma especíca, das possibilidades
de desenvolvimento de projetos alternativos,
que buscam um desenvolvimento econômi-
co autônomo aliado à produção de conheci-
mento cientíco.
Apresentar um estudo que colo-
ca em epígrafe a experiência econômica e
cientíca de Comunidades Quilombolas
que lutam pelo seu território e por justiça é
também um ato de resistência. Desse modo,
os atributos positivos deste livro o elevam a
uma leitura de referência para os leitores e
leitoras interessados na temática.
ENTIDADES DE APOIO E
COMUNIDADES QUILOMBOLAS
ENTIDADES DE APOIO E COMUNIDADES QUILOMBOLAS
João Henrique S. Pires
análise sobre o Circuito Quilombola de Turismo
Comunitário do Vale do Ribeira (SP)
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio 396/2021
Processo 23038.005686/2021-36
NEUSA MARIA DAL RI
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ENTIDADES DE APOIO E COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
ANÁLISE SOBRE O CIRCUITO QUILOMBOLA DE TURISMO
COMUNITÁRIO DO VALE DO RIBEIRA (SP)
JOÃO HENRIQUE SOUZA PIRES
JOÃO HENRIQUE SOUZA PIRES
ENTIDADES DE APOIO E COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
ANÁLISE SOBRE O CIRCUITO QUILOMBOLA DE TURISMO
COMUNITÁRIO DO VALE DO RIBEIRA (SP)
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Célia Maria Giacheti
Claudia Regina Mosca Giroto
Edvaldo Soares
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Graziela Zambão Abdian
Patrícia Unger Raphael Bataglia
Pedro Angelo Pagni
Rodrigo Pelloso Gelamo
Maria do Rosário Longo Mortatti
Jáima Pinheiro Oliveira
Eduardo José Manzini
Cláudia Regina Mosca Giroto
Auxílio Nº 0396/2021, Processo Nº 23038,005686/2021-36, Programa PROEX/CAPES
Fotos da capa: Arquivo pessoal do autor
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Pires, João Henrique Souza.
P667e Entidades de apoio e comunidades quilombolas: análise sobre o circuito quilombola de
turismo comunitário do Vale do Ribeira / João Henrique Souza Pires. Marília : Oficina
Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2022.
277 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-319-9 (Digital)
ISBN 978-65-5954-318-2 (Impresso)
DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-319-9
1. Quilombolas Ribeira de Iguape, Rio, Vale (PR e SP). 2. Turismo. 3. Assistência técnica.
I. Título.
CDD 301.35
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Copyright © 2022, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Agradecimentos
Inspirado em Edson Gomes quando canta “[...] ando sobre a terra,
e vivo sob sol, e as, e as minhas raízes, eu balanço, eu balanço, eu balanço
[...]”! Primeiramente eu quero agradecer a todos e a todas que de uma
forma ou de outra sempre contribuíram e continuam a contribuir com a
minha caminhada. Axé pra nós!
Mas para além e de forma muito especial agradeço:
À minha mãe (in memória) que mesmo não tendo a possibilidade
de chegar ao fim do ensino fundamental, nunca poupou energia para me
ensinar a ler e a escrever as primeiras palavras e a importância dos estudos.
LHE AMO DAQUI PRA ETERNIDADE.
Meu pai que mesmo sendo um caboclo rustico sempre foi
verdadeiro e respeitoso. Poucos que vieram da onde eu vim tiveram esse
privilégio.
Aos meus irmãos (Jesus e Flaviana) que com muita perseverança
abriram os caminhos do ensino superior à família. E aos meus sobrinhos
Maria Fernanda, José Eduardo e Ana Luiza por me ajudarem a acreditar
que o amanhã sempre de nascer.
A Thaís, companheira de todas as horas que me suporta e me faz
bem. Lhe gosto minha Bonitinha.
Ao querido professor Dr. Henrique Tahan Novaes, pela
orientação, parceria, compreensão e confiança. Gracias por tudo!
A todos os membros do Grupo de Pesquisa Organizações e
Democracia que sempre me proporcionaram importantes leituras,
profundas reflexões e calientes debates.
A professora Dra. Neusa Maria Dal Ri pelas contribuições durante
nossa trajetória pela pós-graduação desde o mestrado.
A professora Dra. Fabiana de Cássia Rodigues (Fabi), ao professor
Dr. Julio Cesar Torres e ao professor Dr. Davis Sansolo por aceitarem a
participar de nossa banca de qualificação e de nossa banca de defesa da tese
que da origem ao presente livro.
Aos trabalhadores da seção técnica de pós-graduação que sempre
fizeram o melhor para nos ajudar com todos os perrengues, e a todos os
trabalhadores (limpeza, jardinagem, biblioteca, docência, administrativo
...) que contribuem para que a Unesp seja o que ela é, vocês são
fundamentais.
Aos camaradinhas do Grupo de Capoeira Os Angoleiros do Sertão
por nos fazer compreender a importância de que corpo e mente fazem
parte de um mesmo movimento real.
Às camaradas Mel e Claudia por ouvir os nossos gritos e atender as
nossas preces, Valeu!
À luta do Movimento Negro, das Comunidades Remanescentes de
Quilombos, do Movimento do Trabalhadores Sem Terra, das
comunidades tradicionais e de todas trabalhadoras e todos trabalhadores
que nunca deixaram de acreditar. Resistência e existência!
Aos quilombolas do Vale do Ribeira, em especial, Dona Diva,
Nany, Kauê e Jorlei, do Quilombo Pedro Cubas de Cima, Ivo, Dona
Esperança (in memoria) e Seu João, do Quilombo Sapatu, Francis e José
Rodrigues, do Quilombo Ivaporunduva, Seu Antônio Jorge, do Quilombo
Pedro Cubas e Seu Aurico, do Quilombo São Pedro, pelo material
fornecido em conversas e, mais ainda, pelo que involuntariamente
forneceram, como objeto de investigação.
Aos representantes das diferentes entidades que atuam e atuaram
no território, nomeadamente a Irmã Sueli, da EAACONE, a Raquel
Pasinato, do ISA, ao Thiago do ITESP, ao Ives, do Instituto Florestal pelo
material fornecido em entrevista.
Ao CNPq pelo financiamento da pesquisa que deu origem ao
presente livro.
"Eu só peço a Deus"
“Deixa eu te falar, vim te confessar
Acho que eu também sou poeta e não aprendi a amar
Cruzes que eu já carreguei, cada um com a sua é a lei
Ontem mesmo eu perguntei: "Por que que eu nunca parei? Hein? "
Quer saber o que me move? Quer saber o que me prende?
São correntes sanguíneas, não contas correntes
Não conta com a gente pra assinar seu jornal
Vocês descobriram o Brasil, né? Conta outra Cabral
É um país cordial, carnaval, tudo igual
Preconceito racial mais profundo que o Pré-Sal
Tira os pobres do centro, faz um cartão postal
É o governo trampando, Photoshop social
Bandeirantes, Anhanguera, Raposo, Castelo
São heróis ou algoz? Vai ver o que eles fizeram
Botar o nome desses caras nas estradas é cruel
É o mesmo que Rodovia Hitler em Israel [...]
É o Brasil da mistura, miscigenação
Quem não tem sangue de preto na veia deve ter na mão
Eu só peço a Deus!”
(Eu só peço a Deus, de Renan Inquérito)
Lista de Siglas e Abreviaturas
ABCAR Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural
ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ADI Ação Direita de Inconstitucionalidade
AIA Associação Internacional Americana
ANC Assembleia Nacional Constituinte
ANPTUR Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Turismo
ARQMO Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos
do Município de Oriximiná
ATER - Assistência Técnica e Extensão Rural
BIRD Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento
BNCC - Banco Nacional de Crédito Corporativo
CBA Companhia Brasileira de Alumínio
CBAR - Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações
Rurais
CEDI - Centro Ecumênico de Documentação e Informação
CETESP Companhia Ambiental do Estado de São Paulo
CF Constituição Federal
CNA Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil
CNI Confederação Nacional da Indústria
COMTUR - Conselho Municipal de Turismo
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CQTVR Circuito Quilombola de Turismo do Vale do Ribeira
CRB Confederação Rural Brasileira
CRO - Crédito Rural Orientado
CRQ Comunidades Remanescentes de Quilombos
CRQVR Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do
Ribeira
CRS - Crédito Rural Supervisionado
DEM Partido Democrata
DF – Distrito Federal
EA Entidades de Apoio
EAACONE Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras
do Vale do Ribeira
ECO-92 – Conferência Mundial para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento
EIA Estudo de Impacto Ambiental
EMBRATER - Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
EMBRATUR Instituto Brasileiro do Turismo
ETA Escritório Técnico Brasil Estados Unidos
EUA Estados Unidos da América
FCP Fundação Cultural Palmares
FEA - Faculdade de Engenharia de Alimentos
FGV Fundação Getúlio Vargas
FHC Fernando Henrique Cardoso
FNMA - Fundo Nacional de Meio Ambiente
GTTEA - Grupo de Trabalho Turismo e Educação Ambiental
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
IBC - Instituto Brasileiro de Café
IBD - Instituto Biodinâmico
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia
IDESC - Instituto para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do
Vale do Ribeira
IMB Instituto Marca Brasil
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ISA Instituto Socioambiental
ITCP – Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares
ITESP Instituto de Terras do Estado de São Paulo
MAB Movimentos dos Atingidos por Barragens
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MEC Ministério de Educação e Cultura
MICT Ministério da Indústria, Comércio e Turismo
MNU Movimento Negro Unificado
MOAB Movimento dos Ameaçados por Barragem no Vale do Ribeira
MPF Ministério Público Federal
MRN Mineração Rio do Norte
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MTUR Ministério do Turismo
Nepa - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação
OCDE Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico
ONG Organizações não governamental
OMT Organização Mundial do Turismo
ORNA Ocupações Rurais não-agrícola
OSCIP - Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público
PA Pará
PCH Pequena Central Hidrelétrica
PCQ Programa Comunidades Quilombolas
PE Pernambuco
PFL Partido da Frente Liberal
PNATER Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural
PNMT Programa Nacional de Municipalização do Turismo
PNATER - Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural
PNT Política Nacional de Turismo
PNTRAF Programa Nacional de Turismo Rural na Agricultura
Familiar
PRONATER Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão
Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária
PRONAF Programa Nacional de Agricultura Familiar
PT – Partido dos Trabalhadores
Rede TRAF Rede de Turismo Rural na Agricultura Familiar
RIMA Relatório de Impacto Ambiental
RTC - Relatório Técnico Científico
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SSR Serviço Social Rural
STF – Supremo Tribunal Federal
UC Unidade de Conservação
UFPR Universidade Federal do Paraná
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNIOESTE Universidade Estadual do Oeste do Para
Sumário
Prefácio | Henrique Tahan Novaes.........................................................17
Introdução ........................................................................................... 21
1 A Reorganização da Luta das Populações Negras e os Remanescentes de
Quilombos ........................................................................................... 35
1.1 Entre razões e emoções, a fúria negra ressuscita outra vez ................ 35
1.2 Notas sobre o afro-centrismo e o quilombismo .................................. 42
1.3 O Movimento Negro Unificado (MNU) na luta pelo regime
democrático ...................................................................................... 44
1.4 Os remanescentes das Comunidades de Quilombolas ..................... 53
1.5 Nossos direitos só a luta faz valer: organização, resistência e luta pela
posse de suas terras ........................................................................... 63
2 As Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira .. 75
2.1 Um breve histórico dos ciclos e ocupação do Vale do Ribeira ......... 75
2.2 As Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira
(CRQVR) ........................................................................................ 85
2.3 A saga de um povo ......................................................................... 87
2.3.1 Movimento dos Ameaçados por Barragens no Vale do Ribeira
(MOAB) .............................................................................................. 91
2.3.2 Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale
do Ribeira (EAACONE) ...................................................................... 97
2.4 Caminhos e percalços na luta pelo território quilombola no Vale ... 99
3 Turismo: História, Contradições e Alternativas ............................... 118
3.1 Apontamentos iniciais sobre o turismo ......................................... 118
3.2 O turismo no Brasil: dos anos 1990 ao século XXI ....................... 133
3.2.1 Roteiros do Brasil – Relaxa e goza .............................................. 140
3.2.2 Uma Viagem rumo ao empreendedorismo e a suposta inclusão . 149
3.2.3 O Turismo no Vale do Ribeira .................................................. 159
3.2.3.1 A caminhada e a correria para a construção do Circuito Quilombola
de Turismo Comunitário do Vale do Ribeira (CQTVR) ....................... 175
4 Entidades de Apoio, CRQVR e Turismo Comunitário ................... 195
4.1 O modelo convencional de Assistência Técnica e Extensão Rural
(ATER) .......................................................................................... 195
4.1.1 Uma mirada sobre o papel do ITESP ........................................ 209
4.2 Mediações da resistência de um povo MOAB/EAACONE ........ 216
4.3 Contribuições do Grupo de Trabalho Turismo e Educação Ambiental
(GTTEA) ....................................................................................... 227
4.4 As contribuições do Instituto Socioambiental (ISA) ...................... 236
Conclusão .......................................................................................... 250
Referências ......................................................................................... 260
17
Prefácio
A história das entidades que apoiaram a luta das comunidades
quilombolas finalmente ganhou o seu lugar de destaque. A tese de João
Henrique Souza Pires agora na forma de livro - Entidades de Apoio e
Comunidades Quilombolas: Análise sobre o Circuito Quilombola de
Turismo Comunitário do Vale do Ribeira (SP)” traz uma contribuição
decisiva para a compreensão do papel das Universidades Públicas, ONGs
e Órgãos do Estado que participaram ativamente da resistência dos
quilombos no Vale do Ribeira e a estruturação de um turismo não
mercantilizado.
A pesquisa de Pires se insere num quadro mais amplo de pesquisas
sobre a história das universidades públicas, em especial das parcelas dos
pesquisadores-extensionistas que estão atuando junto aos movimentos
sociais organizados.
O tema de Pires é bastante complexo, pois envolve temáticas como
a da propriedade comunal, trabalho em remanescentes de quilombos,
papel das universidades públicas e outras esferas do Estado capitalista, e
ONGs que de alguma forma atuam na contratendência da reforma do
Estado.
Ao redor de tudo isso está a temática central: as possibilidades e as
contradições do turismo emancipado, sob controle dos quilombolas, onde
o capital não penetra seja através de bancos, empresas de turismo, indústria
da aviação, trabalho alienado, hotéis de luxo, e enfim um turismo voltado
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-319-95.p17-20
18
para a autovalorização do capital e a alienação das camadas altas, médias e
até populares.
Pires nos mostra como as esferas fundamentais da reprodução da
vida e do turismo nas comunidades estão nas mãos dos quilombolas: seja
a apresentação da história da região, as pousadas, os monitores, etc. etc.
É possível um turismo não mercantilizado no momento em que o
capitalismo atinge sua máxima mercantilização? Pires nos mostra que sim,
sem deixar de observar os limites e as contradições dessa luta pela
autogestão territorial, pela preservação de formas de vida anticapitalistas e
de um turismo de base comunitária.
Todas essas dimensões que gravitam em torno das Comunidades
Quilombolas do Vale do Ribeira obrigaram João Henrique Pires a estudar
a história do Brasil, a história da resistência dos negros num país que finge
ser uma democracia racial e a história das comunidades do Vale do Ribeira.
Num contexto de avanço destrutivo do capital em todas as regiões
do país, felizmente o Vale do Ribeira consegue resistir e as comunidades
quilombolas são parte dessa história de resistência à destruição das
condições de vida na região.
Afirmei no dia da defesa da tese, após a arguição da banca, que para
mim o maior problema em questão é o reconhecimento das terras
comunais dos Quilombolas. O levantamento feito por Pires é claríssimo:
boa parte das terras quilombolas ainda não foi reconhecida de fato, mesmo
tendo respaldo jurídico na Constituição de 1988, inúmeras estratégias têm
sido usadas pelas classes proprietárias brasileiras para impedir que a
propriedade de fato seja reconhecida.
Cabe destacar que muitas entidades de apoio foram fundamentais
não só para estruturar o turismo de base comunitária mas também para
reconhecer as Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do
19
Ribeira, em geral no momento de resistência ao avanço das usinas
hidrelétricas na região e de “redemocratização” do país.
Nesse sentido, não pode ser menosprezada a luta das comunidades
remanescentes de quilombos pelo seu reconhecimento, autonomia de seus
territórios e de seu modo de vida, acompanhado de um sistemático avanço
de setores do agronegócio, imobiliário e da mineração sobre as áreas
quilombolas.
Por último, mas não menos importante, cabe destacar alguns
detalhes do autor desta pesquisa: João Henrique Pires é um dos maiores
capoeiristas do Brasil, de fala mansa, gingado rápido, tem formado
gerações e gerações no Brasil e fora do Brasil. É um dos responsáveis pela
disseminação da capoeira na UNESP de Marília. João Henrique também
é uma das lideranças educacionais do Movimento Sem Terra no Estado de
São Paulo, num país onde a educação ainda é um privilégio. Formou-se
em hotelaria, mas optou por estar sempre ao lado dos explorados, e não
caiu na “tentação” de ser mais um trabalhador alienado turismo capitalista.
Se você está interessado na história dos quilombos do Vale do
Ribeira, no papel das entidades de apoio aos quilombos, na autogestão
territorial e no turismo de base comunitária, leia esta bela contribuição de
João Henrique Souza Pires, que tive o prazer de orientar e obviamente
conviver com ele nas lutas de capoeira acadêmicas para se construir uma
tese.
Henrique Tahan Novaes
23 de maio de 2022
20
21
Introdução
Segundo a Lei de Diretrizes de Base (LDB) nº 9.394 de 1996, em
seu artigo 1º, “a educação abrange os processos formativos que se
desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas
instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações
da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
A partir dessa compreensão ampla que a própria LDB dá aos
processos formativos que abrangem o ensino e a aprendizagem, observa-
se, com base em nossa trajetória atuando junto às populações do campo
1
,
que, muitas vezes, os processos de ensino e aprendizagem, bem como de
formação e de capacitação, principalmente técnico, são realizados por uma
variedade de organizações e entidades de apoio.
Desde a reforma do Estado realizada durante o governo de
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), e nos governos Lula-Dilma
(2003-2015), os serviços de assistência técnica e extensão no meio rural,
até então mais restritos a empresas estatais de Assistência Técnica e
Extensão Rural (ATER), além de passarem a contar com um incremento
de alternativas sócio produtivas para o campo, também contou com o
1
Após concluir o curso de Bacharelado em Hotelaria pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (UNIOESTE) em 2008, começamos a atuar com projetos de extensão em comunidades
rurais em 2009 pelo Projeto Rede Solidária Agroecológica coordenado pela UNIOESTE. De 2010
a 2013, atuamos em projetos de educação do campo. Entre 2011 e 2014, atuamos no projeto
Economia Solidária no Turismo coordenado pela ITCP da UFPR. Entre 2014 e 2017, atuamos no
curso pós-médio de Técnico em Agroecologia e, a partir de 2017, temos atuado no curso de ensino
técnico em agropecuária integrado ao ensino médio, ambos coordenados pelo professor Henrique
Tahan Novaes, da Unesp.
22
aumento de entidades de apoio ofertando serviços de capacitação e de
formação no meio rural.
Importante destacar que ao longo de nossa pesquisa bibliográfica,
mas, principalmente, da pesquisa empírica, constatamos que a atuação da
ATER convencional e publica junto às Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Vale do Ribeira (CRQVR) era bastante frágil e que outras
entidades apoio apresentavam papel de maior relevância nos territórios.
Nesse contexto, para dar conta da diversidade de organizações que vão
surgindo durante o contexto, conveniou-se utilizar a definição de
Entidades de Apoio (EA) ou simplesmente entidades.
Há no Brasil uma série de EA que fornecem assessoria tanto no
meio rural quanto no meio urbano. Elas são estruturadas ou organizadas
por Organizações Não Governamentais (ONGs), Organização da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), universidades, movimentos
sociais, centrais sindicais, fóruns nacionais e estaduais, instituições
religiosas, partidos políticos, entre outros.
Diante dessa realidade, o presente trabalho teve como propósito
analisar criticamente a relação entre as CRQVR e as diferentes EA que
trabalham com serviços de assistência técnica, extensão, formação e
capacitação vinculados a organização e ao desenvolvimento de um turismo
não mercantilizado nos territórios remanescentes de quilombos localizados
na porção paulista da região do Vale do Ribeira.
A partir da eleição presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva em
2002, o turismo foi realçado como uma atividade com potencial para
inclusão social e como alternativa sócio produtiva para uma variedade de
segmentos sociais, incluindo as Comunidades Remanescentes de
Quilombos (CRQ). Por influência disso, atividades ligadas à cultura, ao
23
lazer, à recreação, à preservação ambiental passaram a ser incentivadas por
diferentes EA que realizavam ões na região do Vale do Ribeira.
Contudo, considera-se que o turismo convencional se estrutura
historicamente e se desenvolve intrinsecamente por meio da
mercantilização e do consumo do tempo e do espaço. Em contraponto, as
CRQVR se conformaram em torno da propriedade comunal, da auto-
organização do território, da luta e da resistência contra projetos capitalistas
que historicamente ameaçam sua existência e seu modo de vida.
Essa situação que envolve as CRQ e o incentivo e fomento do
Estado e de EA para a capacitação e formação de roteiros e atividade
turística em seus territórios motivou a formulação do seguinte problema
de pesquisa: a relação entre remanescentes de quilombos e as EA que
desenvolvem trabalhos de capacitação, formação, assessoria, assistência
técnica e extensão contribui em algum nível para criação de um turismo
não mercantilizado?
O objetivo geral desta pesquisa é verificar se as ações e as relações
entre as EA e as CRQVR contribuíram para a formulação de um turismo
não mercantilizado a partir do Circuito Quilombola de Turismo de Base
Comunitária do Vale do Ribeira (CQTVR). Dessa forma, justifica-se a
realização da pesquisa como meio de contribuir com a compreensão sobre
a auto-organização das CRQVR, sobre a teoria crítica do turismo e sobre
as ações e os procedimentos teóricos metodológicos das diferentes EA no
território.
Destaca-se também que, como as CRQ se constituíram em um
processo de resistência contra projetos capitalistas e de luta para manter
seu modo de vida e a propriedade coletiva do território, sua relação com
algumas EA sensíveis a sua causa apresenta tendências importantes para o
24
desenvolvimento de uma atividade turística que não seja puramente
exploratória e mercantilizada.
Compreende-se que as formas de produção e reprodução da vida
no caso das CRQVR, em vez de serem consideradas arcaicas, sinalizam a
possibilidade de vida e a utilização adequada da natureza. Isso não significa
que devem estacionar no tempo, mas podem ser aprimoradas sem destituir
suas características principais.
Para tanto, descrevemos e analisamos as relações estabelecidas em
torno do CQTVR, composto por seis comunidades de Eldorado, a saber,
André Lopes, Ivaporunduva, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, São
Pedro e Sapatu, e uma de Cananéia denominada Mandira. O Circuito foi
constituído formalmente entre 2009 e 2013 por meio de um projeto
coordenado pelo Instituto Socioambiental (ISA)
2
.
Apesar de ter sido estruturado de forma mais elaborada entre 2009
e 2013, observa-se que as atividades turísticas junto às CRQVR estão
inseridas em um processo histórico mais amplo, que envolve a participação
de outras entidades que contribuíram e algumas que ainda contribuem
com os processos de formação, capacitação, assessoria, assistência técnica e
extensão junto às comunidades.
A partir desse universo mais amplo e histórico que abrange uma
variedade de entidades que, em algum momento, envolveram-se direta ou
indiretamente com serviços de formação, capacitação e assistência junto às
2
O projeto contou com o apoio do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), da
Secretaria da Agricultura Familiar, da Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras
do Vale do Ribeira (Eaacone), das associações das comunidades quilombolas, das Prefeituras
Municipais de Iporanga, Eldorado e Cananéia, do Ministério do Turismo (MTUR), do Ministério
de Meio Ambiente (MMA), da Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SPPIR),
da Fundação Palmares, da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Projeto Ecoturismo Mata
Atlântica), da Secretária de Esporte e Turismo e do Instituto de Terras do Estado de São Paulo
(ITESP).
25
comunidades, delimitou-se, para fins de análise deste trabalho, além do
ISA, que coordenou o processo, o Instituto de Terras do Estado de São
Paulo (ITESP), o Grupo de Trabalho Turismo e Educação Ambiental
(GTTEA) ligado ao projeto Programa Comunidades Quilombolas (PCQ)
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a Equipe de
Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira
(EAACONE) e o Movimento dos Ameaçados por Barragem no Vale do
Ribeira (MOAB).
A escolha dessas entidades não se deu de forma aleatória ou por um
mero acaso, mas pelo grau de importância que suas ações assumem tanto
no processo de auto-organização do território, quanto para a formação de
uma proposta de turismo diferenciada e não mercantilizada.
Para tanto, como objetivos específicos procuramos:
a) Analisar a construção e o funcionamento do CQTVR;
b) Analisar os procedimentos teóricos metodológicos das Entidades
de Apoio (EA) que desenvolvem ações de assistência técnica, extensão,
formação e capacitação junto ao CQTVR;
c) Verificar as conquistas, os problemas, as contradições e os desafios
presentes na formatação do CQTVR;
d) Verificar os desafios do CQTVR para a construção do turismo não
mercantilizado;
Tendo que investigar uma problemática que envolve diferentes
temas e atores que se inter-relacionam num determinado tempo e espaço,
bem como desenvolver uma escrita que articule os diferentes temas,
fizemos pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e pesquisa empírica.
26
Por meio da pesquisa bibliográfica, consultamos, selecionamos e
analisamos bancos de teses, dissertações, artigos e livros para entender
como se deu o processo histórico de mobilização e luta que culminou no
direito de propriedade das CRQ. Apesar de esse trajeto de exposição não
apresentar novidade empírica e conceitual, a decisão se deu por
entendermos que, para realizar a análise da relação entre EA e as CRQVR
na proposição de um turismo diferenciado em seus territórios, fez-se
necessário compreender os condicionantes de sua existência.
Destaca-se a grande dificuldade de encontrar pesquisas
sistematizadas sobre a história dos quilombos em um recorte temporal
longo, que compreende o período entre pós-abolição no ano de 1888 e a
década de 1970. Não se pode afirmar que não existam trabalhos sobre a
perpetuação e a situação dos quilombos após a abolição, contudo, com
exceção do trabalho de Ramos (1982), apresentado no I Congresso do
Negro Brasileiro, em 1950, não foram localizados outros trabalhos que
tratassem da situação dos quilombos no período supracitado. Destaca-se
que os estudos marxistas concentraram-se na abordagem da inserção do
negro e mestiço na sociedade de classes, produzindo um vácuo nos estudos
sobre quilombos e quilombolas. Fato é que o próprio termo quilombo
passou a ser utilizado como categoria de análise por antropólogos e
cientistas sociais a partir da década de 1980 (ARRUTI, 1997).
Nesse sentido, a análise sobre a questão racial e a integração do
negro na sociedade de classes, bem como a organização e atuação do
Movimento Negro Unificado (MNU), foram de fundamental importância
para compreendermos o levantar das CRQ. Com referência nas análises
realizadas por Fernandes (1978; 2017), Leite (2000), Guimarães (2001a;
2001b), Moura (2014a) e Santos (2015), pode-se estabelecer uma linha de
compreensão que demonstra que o direito de propriedade conquistado
pelas CRQ, em 1988, faz parte de um processo mais amplo de organização
27
da luta da população negra contra o racismo e pelo direito à terra, no nosso
caso.
Em uma totalidade mais ampla e de escala nacional, foi através da
organização da luta contra o racismo em torno do MNU e outros
movimentos negros locais e regionais, da denúncia do mito da democracia
racial e da formulação das concepções do afrocentrismo e do quilombismo
contrariando e revertendo a visão hegemônica sobre o negro no Brasil, que
o direito de propriedade das CRQ foi assegurado como Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Sobre as CRQ em si, os estudos apresentados por Carril (1995),
Arruti (1996), Andrade (1997), Steil (1998), Baiocchi (2006), Carvalho
(2006), Rezende da Silva (2008) e Pinto (2014), foram fundamentais para
compreendermos que, em escala nacional, mesmo tendo o direito de
propriedade adquirido, foi necessária muita luta e resistência contra
projetos capitalistas que ameaçavam os seus territórios e suas
territorialidades, e obviamente seu modo de vida. O caso das CRQ que
compõem o CQTVR, que faz parte de nosso objeto de pesquisa, não foge
a esse dado. Constatou-se que, desde antes da aprovação do Artigo 68 dos
ADCT, eles já se encontravam em situação de conflito e de luta pela
manutenção de seus territórios, primeiro contra os projetos capitalistas de
construção de barragens ao longo do rio Ribeira de Iguape, e, depois, pela
regularização e titularização de seus territórios enquanto remanescentes de
quilombos.
A partir dessa análise, constatou-se que a ação de EA ligadas a
setores progressistas da Igreja Católica, intelectuais tradicionais no sentido
gramsciano, foram de fundamental importância na mediação e formação
da consciência que alavancou a organização da luta contra o projeto de
construção da barragem de Tijuco Alto e, posteriormente, pela titularidade
dos territórios (PINTO, 2014). Tal projeto, além de alagar uma grande
28
parcela dos territórios remanescentes de quilombos, ainda causaria um
grande impacto cultural e ambiental. A análise histórica das CRQVR foi
fundamental para entendermos como se deu o processo de luta e resistência
no território e pelo território, bem como a conscientização pelo
autorreconhecimento da identidade de remanescentes de quilombolas, pela
defesa de suas terras comunais e pela auto-organização de seus territórios.
A respeito das EA, as pesquisas de Fonseca (1985), Caporal (1991),
Rodrigues (1997), Novaes (2012), Oliveira (2013) e Pires (2016), foram
relevantes para estabelecermos uma compreensão sistematizada da história
e das disputas em torno dos trabalhos de extensão, assessoria, capacitação,
assistência técnica e formação particularmente para o meio rural.
Constatamos que, após a redemocratização, principalmente após a virada
do milênio, dentro do processo de reforma do Estado, houve um aumento
em quantidade e em diversidade de entidades que passaram a executar
serviços de extensão, assessoria, capacitação, assistência técnica e formação
para as populações rurais. Entre essas organizações e instituições, destacam-
se Empresas públicas e privadas de Assistência Técnica e Extensão Rural
(ATER), Organizações Não Governamentais (ONG’s), Instituições de
Ensino Superior (IES), Associações, Fundações etc. Mesmo tendo
consciência das particularidades e dos interesses diversos que cada uma
dessas entidades possui, após um longo tempo de reflexão, no qual
buscamos entender esses agentes enquanto intelectuais que têm o objetivo
ensinar e transferir conhecimento codificado, tomamos a posição de reuni-
las num bloco que denominamos de EA.
Destaca-se que entendemos a função dos trabalhos desenvolvidos
pelas EA até pela sua especificidade e tipo de relação estabelecida como de
intelectuais, ou seja, aqueles que realizaram a mediação entre as
comunidades e as outras forças sociais inseridas no contexto. Nos apoiando
em Gramsci (2001), compreendemos que o trabalho intelectual
29
desenvolvido pelas EA é de suma importância, pois são elas que muitas
vezes colocam as comunidades em contato “com a administração estatal
ou local (advogados, tabeliões etc.) e por essa mesma função, possui grande
função político e social, já que a mediação profissional dificilmente se
separa da política” (GRAMSCI, 2001, p. 23).
Dentre a diversidade de entidades que se insere no processo
histórico e estabelece algum tipo de relação com as CRQVR, selecionamos,
por grau de importância, para esta pesquisa:
a) o ITESP, por ser a entidade pública responsável pelo serviço
convencional de ATER às comunidades;
b) o MOAB e a EAACONE, entidades criadas pelos próprios
quilombolas e atuantes até os dias atuais;
c) o GTTEA/PCQ/UNICAMP, pelo seu protagonismo no trabalho
com turismo junto as CRQ;
d) e o ISA, por ter coordenado os trabalhos que formou o CQTVR e
pela importância de suas ações junto às comunidades até os dias atuais.
Entre essas, como já dissemos, o MOAB, a EAACONE, o
GTTEA/PCQ/UNICAMP e o ISA tiveram maior destaque.
No que se refere à análise do turismo mercantilizado e do potencial
do turismo não mercantilizado, dialogamos com Canclini (1983),
Krippendorf (2001), Castelli (2001), Dias (2003), Ouriques (2005) e
Siqueira (2005). Eles foram fundamentais para delinearmos e
descrevermos a consolidação e a expansão da atividade como prática social
e econômica na sociedade capitalista moderna. Compreendido como uma
prática social, econômica e um vetor produtor de espaço, empenhamos
uma análise ctica primeiro em escala mundial, depois nacional, até
chegarmos no caso específico do CQTVR. Nem todos adotam o marxismo
30
como perspectiva teórica, mas foram fundamentais para a descrição e a
análise deste eixo de pesquisa.
A pesquisa bibliográfica foi de profunda importância para
compreensão das CRQVR, das EA e do turismo e seus impactos sociais,
econômicos e espaciais, fornecendo aporte necessário para o
desenvolvimento e análise do estudo e dos dados empíricos. Para além dos
autores já citados, vários outros, de forma direta ou indireta, contribuíram
para compreensão mais ampla sobre as contradições que envolvem o
turismo, a luta das CRQVR no território e pelo território, o histórico e as
ações e os interesses do Estado capitalista.
Na pesquisa documental utilizamos: a Agenda Socioambiental de
Comunidades do Vale do Ribeira (2008); o Planejamento Territorial
Participativo: Relato de Experiências em Comunidades Quilombolas do Vale
do Ribeira SP (2012), o Inventário Cultural de Quilombos do Vale do
Ribeira (2013); o livreto Turismo de Base Comunitária: Circuito
Quilombola (2013).
Devido a questões mais amplas relacionadas ao tempo, espaço e
recursos, a pesquisa empírica foi realizada em três momentos distintos: a
primeira em agosto de 2018, com duração de 6 dias; a segunda em
novembro de 2018, com duração de 8 dias; a terceira em agosto de 2019,
com duração de 6 dias
3
. Foram adotados como procedimentos principais:
a) entrevista semiestruturada: com representantes/lideranças das CRQVR
e com representantes de EA presentes no município de Eldorado e que
atuam nos territórios remanescentes de quilombolas de sua área de
abrangência; b) observação direcionada aos remanescentes de quilombolas
“como um processo pelo qual mantém-se a presença do observador numa
3
Importante destacar que haveria um quarto momento em 2020, contudo, devido à pandemia do
Coronavírus (COVID-19), não foi possível realizar esse quarto momento.
31
situação social, com a finalidade de realizar uma investigação científica
(MINAYO, 2008, p. 273).
O primeiro trabalho de campo (in loco) foi realizado no período
em que os remanescentes de quilombos organizaram a 11ª Feira de troca
de Sementes das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, em agosto de
2018. Sendo uma atividade que reúne a grande maioria das CRQVR, a
escolha desse período teve como principal objetivo mapear a situação dos
remanescentes de quilombos em relação ao turismo e as EA presentes no
território. Essa primeira imersão empírica foi de profunda importância
para termos um conhecimento real (mesmo que parcial) e mais apurado
da complexidade que é se deslocar no Vale do Ribeira, da grande
quantidade de CRQ que existem na região e do quão dificultoso seria
visitá-los, pois, além de distante do centro urbano e dos precários serviços
de locomoção, ao visitar o quilombo Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima,
tivemos a percepção de como seus territórios estão localizados em lugares
de difícil acesso, ainda nos dias atuais.
A segunda vez que voltamos a campo, em novembro de 2018, foi
com a finalidade de realizar as entrevistas com as EA presentes no
município de Eldorado. Com foco nas questões relacionadas ao turismo,
mas sem perder de vista a totalidade das relações estabelecidas no território,
foram realizadas entrevistas com representantes da Diretoria de Turismo
do município de Eldorado, da EAACONE, do ISA, do ITESP e da
Fundação Florestal.
Na terceira vez que realizamos atividade in loco, em agosto de 2019,
para além de reestabelecer contato direto com as principais EA que se
relacionam com os remanescentes de quilombos, tivemos como objetivo
fazer uma incursão pelos territórios remanescentes de quilombos com o
motivo principal de apreender como eles vêm desenvolvendo o turismo
em seus territórios. Em decorrência do tempo e dos recursos para
32
deslocamento, conseguimos visitar quatro comunidades (Ivaporunduva,
Sapatu, Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima) das sete que compõem
originalmente o CQTVR.
Para a análise das mediações entre as EA e as relações estabelecidas
com o CQTVR, ou seja, das conquistas e dos problemas para a formação
de um turismo não mercantilizado e contra-hegemônico, o caminho que
se mostrou mais apropriado e utilizado foi o do Materialismo Histórico-
Dialético.
O materialismo dialético é a base filosófica do marxismo e como tal
realiza a tentativa de buscar explicações coerentes, lógicas e racionais
para os fenômenos da natureza, da sociedade e do pensamento. [...] O
materialismo histórico é a ciência filosófica do marxismo que estuda as
leis sociológicas que caracterizam a vida da sociedade, de sua evolução
histórica e da prática social dos homens, no desenvolvimento da
humanidade. O materialismo histórico significou uma mudança
fundamental na interpretação dos fenômenos sociais que, até o
nascimento do marxismo, se apoiava em concepções idealista da
sociedade humana (TRIVIÑOS, 1987, p. 51).
Frigotto (1991, p. 78) aponta que, para realizar análise
materialista, histórica e dialética, a investigação deve considerar a
concretude, a totalidade e a dinâmica dos fenômenos sociais, que não são
definidos à priori, mas construídos historicamente”. Diante disso,
seguimos o princípio de que tudo se relaciona numa perspectiva de
totalidade histórica formada por relações dialéticas em constante
movimento.
Este trabalho está organizado em quatro capítulos. No primeiro
capítulo, apresentamos uma breve análise da organização do movimento
33
negro unificado (MNU), da concepção do afrocentrismo e do quilombismo,
estabelecendo uma releitura positiva sobre a história das populações negras
na sociedade brasileira, o contexto de luta que possibilitou a aprovação do
Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)
e da luta dos remanescentes de quilombolas para fazer valer o direito de
propriedade das terras que ocupavam.
No segundo capítulo, adentramos à realidade do Vale do Ribeira
em sua porção paulista, e os contextos de luta das CRQ na região, bem
como das EA que atuaram diretamente com as comunidades na
organização e na luta contra projetos capitalistas que avançavam sobre seus
territórios, e da formação da consciência para o autorreconhecimento
enquanto remanescentes de quilombolas.
No terceiro capítulo, o objetivo foi analisar criticamente o
desenvolvimento histórico do turismo enquanto uma atividade que nasce,
cresce e se desenvolve a partir das transformações e avanços da sociedade
capitalista. Para tanto, partimos de uma análise histórica sobre o turismo
em escala global, chegando à realidade brasileira, ao Vale do Ribeira e a
conformações desenvolvidas pelas CRQVR.
No quarto e último capítulo, apresentamos os procedi-mentos
teóricos metodológicos, bem como as ações das EA que consideramos mais
importantes na relação com as CRQVR no sentido de estabelecer uma
relação dialógica e de trocas de saberes, em que foi possível articular
resistência e sobrevivência para a conformação instrumental, não sem
contradições, de um turismo não mercantilizado e contra hegemônico.
34
35
1
A Reorganização da Luta das Populações Negras e os
Remanescentes de Quilombos
1.1 Entre raes e emoções, a fúria negra ressuscita outra vez
Tendo como objetivo entender o processo de organização das
Comunidades Remanescentes de Quilombolas (CRQ) e suas lutas para
conseguir o direito à propriedade de suas terras, houve muita dificuldade
de encontrar referências sobre a história dos quilombos no período entre
1888 e a década de 1970.
Não se pode afirmar que não existam trabalhos sobre a perpetuação
e a situação dos quilombos após a abolição, contudo, com exceção do
trabalho de Ramos (1982) para o I Congresso do Negro Brasileiro em
1950, não conseguimos encontrar outros trabalhos que tratam da situação
dos quilombos no período em questão.
Diante desse limite, tomou-se como procedimento para tentar
chegar aos remanescentes de quilombos contemporâneos, a organização
das lutas das populações negras no período que antecede as mobilizações
pela redemocratização e pelo fim do regime de exceção implantado desde
1964 pelos militares.
Nesse sentido, chegou-se ao Movimento Negro Unificado
(MNU), fundado em 1978. Considerou-se que o MNU foi a organização
de luta das populações negras mais relevante no processo que marca o fim
36
da ditadura, a Assembleia Nacional Constituinte e a luta das populações
negras no contexto da redemocratização na década de 1980.
Integrando diversas representações políticas e étnico-raciais da
cultura afro-brasileira, possivelmente o MNU foi a organização mais
avançada na luta do povo negro na época. Nesse sentido, compreende-se
que a atuação e as ideias que surgiram em torno dele foram fundamentais
na luta da população negra e, consequentemente, dos remanescentes de
quilombolas.
Fernandes (1978), além de apontar que a questão do negro e do
mulato foi assunto inexplorado, ou mal explorado pelos cientistas sociais
brasileiros no período, considera que as populações negras foram o
contingente populacional que teve o pior ponto de partida para integração
ao regime social que se formou após a abolição.
Com a abolição da escravatura, uma das preocupações das classes
dirigentes era o que fazer com os negros e como não permitir que a
população brasileira se tornasse, em sua maioria, negra. Nesse período,
destaca-se, particularmente, as teorias racistas do médico Nina Rodrigues
(1862-1906), que preconizava um verdadeiro apartheid no Brasil (HAAG,
2005).
Inspirado pela eugenia e por um darwinismo social, Nina
Rodrigues, em seu livro “As raças humanas e a responsabilidade penal do
Brasil”, de 1894, defende que as raças têm diferenças ontológicas e sugere
a criação de dois códigos penais diversos, um para a população branca e
outro para os negros (HAAG, 2005).
Nina Rodrigues entendia que o país era o que era por causa da
miscigenação. Diante disso, nada mais natural do que tentar frear esse
processo, separando física e legalmente brancos e negros. Sua teoria
37
inspirou ideias da melhoria da raça de tal forma que vários médicos
defenderam certos hábitos e censuraram outros.
Por outro lado, Silvio Romero (1851-1914), autor de “Histórias
da literatura brasileira”, de 1888, defende que a mestiçagem é algo
inevitável. Diante disso, entende que “a solução estaria num processo de
branqueamento ao longo das gerações, já que não havia mais nada a fazer
(HAAG, 2005, p. 40).
Retomando as teorias de Silvio Romero, Oliveira Vianna (1883-
1951) aceita as hierarquias raciais e a eugenia científica do século XIX,
acreditando que a queda da fertilidade dos africanos, e a vinda de
imigrantes para o Brasil, contribuiriam para branquear, aranizar a nação
(HAAG, 2005, p. 40).
Para os estudiosos da época, o atraso do Brasil decorria de uma
escandalosa mistura de raças, e a miscigenação era tomada como uma
imprescindível característica da nossa formação, em uma concepção
subjetiva de formação nacional, na qual o que importava era o encontro
sexual entre segmentos da população de diferentes raças (HAAG, 2005).
Vai ser Gilberto Freyre que invertendo o discurso hegemônico da
época, a miscigenação e a mestiçagem que era a desgraça nacional, passa
a ser visto como positivo, como valor social e não como uma
decorrência mecânica indesejável, defende uma harmonia social que
vai ser música aos ouvidos do governo de Vargas (HAAG, 2005, p.
41).
Inspirada nos estudos de Freyre, a Unesco, no final da década de
1940 e início da década de 1950, elegeu o Brasil como laboratório para o
seu projeto de pesquisa sobre as relações inter-raciais, envolvendo diversos
38
pesquisadores importantes. As pesquisas coordenadas pela Unesco
comprovaram que não existia harmonia racial alguma, e o assunto raça era
um tópico polemico, um tabu
4
.
Contudo, a ideologia de uma harmonia, de uma democracia racial
no Brasil como um forte mito, continuou a ser utilizada pelos discursos
hegemônicos, tanto que também a ditadura militar instaurada, em 1964,
inspirada nas teorias de Freyre, também explorou as mitologias sobre a
confraternização racial no Brasil. Sob a égide da ditadura militar instaurada
em 1964, a política externa brasileira se aproximou da África Negra,
explorando a ideologia da “democracia racial” e as origens africanas da
cultura brasileira. Essa política abriu um campo fértil e contraditório para
a atuação da militância negra.
Ao mesmo tempo em que, por um lado, a política dos militares
incentivava manifestações culturais afro-brasileiras, por outro, reprimia,
quando não exterminava, o ativismo negro que denunciava como mito a
ideia de uma “democracia racial” no Brasil (GUIMARÃES, 2001b).
Diante desse cenário de incentivo e repressão, a militância negra e
antirracista que denunciava e combatia o discurso governamental, antes
mesmo de se integrar em torno do MNU, deu-se de forma mais
desimpedida no campo da cultura do que propriamente no campo da
política (GUIMARÃES, 2001b).
[...] o patrocínio à ‘cultura afro-brasileira’ gerou, e não apenas na Bahia,
mas também no Rio de Janeiro, uma espécie de renascimento cultural
4
Estiveram envolvidos no projeto Unesco Florestan Fernandes, Roger Bastide, Luiz de Aguiar
Costa Pinto, Oracy Nogueira, Thales de Azevedo, Charles Wagley, René Ribeiro, Marvin Harris,
entre outros. O projeto Unesco produziu um amplo inventário sobre o preconceito e a
discriminação racial no Brasil que evidenciou uma forte correlação entre cor ou raça e status
socioeconômico.
39
que em muito beneficiou a jovem militância negra em formação. Lélia
Gonzalez, por exemplo, cita como fato marcante na formação do
MNU a Semana Afro-Brasileira de 1974, patrocinada pelo Centro de
Estudos Afro-Asiáticos (Ceea) e pela Sociedade de Cultura Negra da
Bahia (Secneb), com uma exposição de arte e cultura negra. Nesse
mesmo ano são fundados a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África
(Siba) e o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), no Rio
de Janeiro, e a Confederação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros (que
se junta à Federação do Culto Afro-Brasileiro, criada em 1946) e o
bloco afro Ilê Ayê, em Salvador. Em 1976 é criado nessa cidade o
Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, e no Rio de Janeiro surgem o Centro
de Pesquisas das Culturas Negras e a Escola de Samba Quilombo.
Ainda em 1976, em Salvador, duas medidas de governo nos dão a
medida exata do que mudava no pacto racial-democrático firmado na
era Vargas: primeiro, um decreto do governador da Bahia põe fim à
exigência de licença policial para funcionamento de terreiros de
candomblé; segundo, a assinatura de um convênio entre a Fundação
Pró-Memória, do governo federal, o Centro de Estudos Afro-Orientais
da UFBA e a Secneb permite a implantação do primeiro currículo
multicultural, na escola do Axé Apô Afonjá, ligada ao terreiro de
mesmo nome (GUIMARÃES, 2001b, p. 157).
Aproveitando-se das brechas possíveis dentro do regime de
exceção, várias entidades negras nas principais cidades do Brasil, por meio
das manifestações culturais, buscaram driblar a censura e construir um
discurso de afirmação étnica do negro, alternativo ao marketing
governamental do sincretismo e do mestiço (GUIMARÃES, 2001b).
Compondo uma totalidade mais ampla, ligada à própria crise do
capital que eclodiu nos países centrais já no início da década de 1970, e
que começou a ser sentida com maior intensidade no Brasil no final da
década, com os claros sinais do esgotamento do modelo econômico
conduzido pelos militares, as problemáticas sociais e políticas não tardaram
40
a se intensificar. As greves do ABC, em 1979, a reorganização da luta pela
reforma agrária, e pelo direito à terra, são exemplos das “novas”
mobilizações de lutas que voltam a emergir em meio a repressão e a
censura.
As diferentes bandeiras se aglutinaram em torno da luta pelo
regime democrático e pelo fim da ditadura. Vários seguimentos da
sociedade civil ocuparam as ruas em todo o país, demonstrando
insatisfação com o regime militar; questões historicamente reprimidas
começaram novamente a aflorar com mais intensidade.
Segundo Nunes (1989), Benevides (1994) e Schiochet (2012), no
final da década de 1970, vários segmentos da sociedade se organizaram em
torno de diferentes entidades como sindicatos e movimentos sociais
pedindo o fim da ditadura militar e a redemocratização do país.
Schiochet (2012) aponta que as contradições e os conflitos que
ocorreram em torno das Diretas Já! instigaram a organização de diferentes
movimentos sociais, tais como: o movimento do custo de vida, o
movimento por moradia, o movimento de luta contra o desemprego, o
movimento pelo transporte coletivo, o movimento pela saúde, entre
outros.
No campo da educação, Dal Ri e Vieitez (2013) apontam que a
luta foi conduzida e articulada principalmente pelo Fórum Nacional em
Defesa da Escola Pública (FNDEP), que propunha a Gestão Democrática
como princípio basilar para a organização da escola pública.
Em meio a essa conjuntura e a esse fervoroso pulsar das
mobilizações sociais, e reorganização dos diversos segmentos de classe,
também as lutas contra as desigualdades raciais ganharam novo fôlego e
organicidade através da consolidação do MNU, em 1978.
41
Acompanhando o acúmulo das experiências históricas da luta do
negro no Brasil e no mundo, em 1978, em um evento nas escadarias do
Teatro Municipal de São Paulo, ainda sob o regime militar, a militância
negra decidiu por constituir o Movimento Negro Unificado (MNU), um
marco na organização da luta contra a discriminação racial no país.
Integrando diferentes grupos étnico-raciais de todo o país, “[…] o
MNU não foi um raio em céu azul, nem surgiu fazendo tábula rasa ao
passado. Sua formação e trajetória se estabeleceu em continuidade ao
acúmulo histórico das ações dos movimentos negros dos anos 1930 e 1960
(GUIMARÃES, 2001b, p. 156).
O movimento negro ressurgiu, em 1978, como o fez em 1944, em
sintonia com o movimento pela redemocratização do país. Em sua
agenda política estavam três alvos principais: (a) a denúncia do
racismo, da discriminação racial e do preconceito de que eram vítimas
os negros brasileiros; (b) a denúncia do mito da democracia racial,
como ideologia que impedia a ação anti-racista; (c) a busca de
construção de uma identidade racial positiva: através do afro-centrismo
e do quilombismo, que procuram resgatar a herança africana no Brasil
(invenção de uma cultura negra) (GUIMARÃES, 2001b, p. 157).
Guimarães (2001a) afirma que a presença de lideranças históricas,
como a de Abdias do Nascimento, foi preponderante para o resgate
histórico das lutas dos negros no país e pela formação ideológica de duas
influências que permearam o Movimento na década de 1980: o afro-
centrismo e o quilombismo.
42
1.2 Notas sobre o
afro-centrismo
e o
quilombismo
Personalidade histórica na luta contra o racismo, com trânsito
internacional, fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), ligado
ao trabalhismo de Brizola e crítico fervoroso da “democracia racial”, Abdias
do Nascimento defendeu que a ideia de uma “democracia racial” no Brasil,
mais que uma falácia, ajudava a impedir ações antirracistas mais
contundentes (GUIMARÃES, 2001a).
Considerado um dos principais intelectuais orgânicos do MNU,
mas não o único, Abdias do Nascimento, por meio da problemática da
“integração do negro à sociedade de classes” (FERNANDES, 1965),
resgatou a herança africana no Brasil e propôs a concepção do afro-
centrismo e do quilombismo (GUIMARÃES, 2001b, p. 157).
(...) o afro-centrismo que foi, nos anos 70, uma doutrina muito
influente nos meios negros anglo-saxônicos (e não apenas norte-
americanos), alimentado principalmente por intelectuais africanos da
Nigéria e Gana, radicados nos Estados Unidos. Vem do afro-centrismo
o projeto de filiar os negros brasileiros a uma “nação” negra
transnacional, de cuja matriz teria evoluído a civilização ocidental,
cujas raízes mais profundas se encontram no antigo Império egípcio e
na presença africana na América pré-colombiana. Trata-se,
evidentemente, de um movimento, ao mesmo tempo, de invenção de
tradições e reivindicação de um processo civilizatório negro
(GUIMARÃES, 2001a, p. 133).
A elaboração da categoria afro-centrismo buscou dar um
entendimento ampliado de negro, como descendente de africanos, e não
somente como pessoas de cor ou com fenótipos negros. A partir disso,
43
propôs um caráter universalista à luta contra a discriminação racial,
configurando-se no caso brasileiro, de uma luta da maioria explorada por
uma minoria, e não de uma minoria oprimida pela maioria, como no caso
dos Estados Unidos (GUIMARÃES, 2001a).
Por meio da concepção ampliada de negro, bem como do
entendimento de raça não só pela pureza biológica, mas em termos de
história e cultura, a luta das populações negras nos anos de 1980, além de
recusar e combater aspectos culturais vistos como anacrônicos e bárbaros,
enfatizou o caráter libertário da cultura afro-brasileira (GUIMARÃES,
2001a).
Aliando radicalismo cultural e político, a ideologia do afro-
centrismo foi articulada ao pensamento marxista, “[…] principalmente
através de sua vertente mais ligada ao nacionalismo brasileiro dos anos 60,
fundamentando que a emancipação do negro brasileiro significava a
emancipação de todo o povo brasileiro da exploração capitalista”
(GUIMARÃES, 2001a, p. 133).
A concepção do afro-centrismo articulada a uma compreensão
étnico-racial expandida e ao marxismo resgatou o debate da luta de classes
à luz do que foi o regime escravagista, com destaque à luta dos quilombolas
contra os proprietários, dando origem ao quilombismo (GUIMARÃES,
2001a).
Utilizando-se dos aspectos de segregação residencial, exclusão do
mercado formal de trabalho e do terrorismo policial, propôs, através do
afro-centrismo e do quilombismo, uma analogia entre a luta do negro
brasileiro e a luta contra o apartheid na África do Sul (GUIMARÃES,
2001a).
Aproximando por analogia o racismo brasileiro ao sul-africano,
“[…] o negro foi definido como trabalhador por excelência, o mais
44
brasileiro, a parcela mais explorada da sociedade brasileira, a maioria
oprimida por uma minoria racista, em grande parte estrangeira”
(GUIMARÃES 2001a, p. 134).
Adotando uma compreensão identitária de luta e denúncia do
preconceito racial ao longo da história, o quilombismo fortaleceu aspectos
da crítica anticapitalista e do anti-imperialismo, bem como da luta da
maioria oprimida contra a exclusão e o terror operado pelas forças de
segurança do próprio Estado brasileiro.
Nesse sentido, compreende-se que o afro-centrismo e o quilombismo
contribuíram para a formação de uma ideologia positiva sobre a história
das culturas de raízes africanas no Brasil, e possibilitaram uma
conscientização que buscou unificar a luta das populações negras e o
antirracismo.
Retomando contradições históricas sobre a “integração do negro à
sociedade de classes”, o MNU, além de se colocar na luta antirracista e por
direitos às populações negras, também participou ativamente do processo
de lutas e mobilizações que marcaram o fim do regime de exceção na
década de 1980.
1.3 O Movimento Negro Unificado (MNU) na luta pelo regime
democtico
Embora não haja um consenso a respeito da designação
movimento social, existe uma concordância de que sua acepção é utilizada
para “denominar organizações estruturadas com a finalidade de criar
formas de associação entre pessoas e entidades que tenham interesses em
45
comum, para defesa ou promoção de certos objetivos perante a sociedade”
(DALR RI, 2010; DAL RI, 2017, p. 168).
Uma definição simplificada seria a de que movimentos sociais são
formas de ação coletiva com algum grau de organização. E para Gohn
(2011, p. 333), “Uma das premissas básicas a respeito dos movimentos
sociais é que: são fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes”
(DAL RI, 2017, p. 168).
Enquanto movimento social gerador de saberes, o MNU e a
militância negra nas lutas antirracistas se desenvolveram e avançaram em
meio às contradições que envolviam as possibilidades afirmativas de
participação do negro na sociedade de classes, nas políticas de Estado e na
apropriação institucional da cultura afro-brasileira.
No pleito eleitoral de 1982, algumas militâncias negras tiveram,
seja por meio de sua incorporação nas entidades governamentais e estatais,
seja pela criação de núcleos nos principais partidos políticos que passaram
a absorver demandas e reivindicações levantadas pelo MNU, a
oportunidade de partilhar o poder:
Em 1982, por exemplo, a prefeitura de Salvador incorpora ao
patrimônio histórico estadual o terreiro da Casa Branca, primeiro
terreiro de candomblé da Bahia; em 1983 a Secretaria de Educação do
Estado da Bahia regulamenta a inclusão da disciplina "Introdução aos
Estudos Africanos" nos currículos escolares das escolas públicas de
primeiro e segundo graus; em 1984 o governo de São Paulo cria o
Conselho de Participação e de Desenvolvimento da Comunidade
Negra. Em São Paulo e no Rio de Janeiro era a oposição de esquerda
ao regime militar que chegava ao poder e atendia reivindicações de seus
aliados negros, na Bahia tratava-se de um movimento de ampliação dos
direitos culturais do povo negro, que desde os anos 1960 passara a ser
46
utilizado e promovido seja para fins da política exterior do Brasil em
relação à África, seja para fins de expansão da indústria do turismo no
estado (GUIMARÃES, 2001b, p. 158).
A atuação de representantes do MNU no embate político durante
o processo de redemocratização do país e durante a Assembleia Nacional
Constituinte (ANC) colocou a luta contra o racismo e por reconhecimento
dos direitos das populações negras em patamares nunca alcançados.
Historicamente relegado a uma servidão invisível e, quando não,
devido à rebeldia de segmentos negros radicais, criminalizados e
reprimidos pelas forças de repressão do Estado, o MNU, nesse contexto,
conseguiu avançar e colocar-se de forma ativa e organizada na luta pela
redemocratização do país e na elaboração da nova Constituição Federal.
Apesar do pouco material que retrata de forma sistemática e crítica
a atuação do MNU no jogo político do período, que pode ser consequência
da histórica invisibilidade que a literatura convencional relega às
populações negras, trabalha-se com a hipótese de que, sem a sua
participação organizada e consciente, direitos historicamente negados não
teriam sido alcançados
5
.
Havendo a possibilidade histórica da participação e da interlocução
entre as entidades da sociedade civil e as instituições formais de governo
que, talvez, só uma ANC permita, Santos (2015) mostrou que o MNU
encaminhou 7 documentos para a ANC tratando da questão do racismo e
dos direitos das populações negras.
Com base nesses documentos, Santos (2015) observou que,
naquele contexto, em particular na formulação de sugestões, os limites de
5
Destaca-se, particularmente, o direito de propriedade das comunidades remanescentes de
quilombolas e o reconhecimento e proteção das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras.
47
raça extrapolavam o sentido estrito e incorporavam outras variáveis sobre
a condição de vida das populações negras, pobres e periféricas.
Parlamentares como Benedita da Silva (PT-RJ), Carlos Alberto
Caó (PDT-RJ), Edimilson Valentin (PT-RJ), Paulo Paim (PT-RS) e
Florestan Fernandes (PT-SP), participantes da ANC, e sensíveis ao
problema do racismo e das populações negras, foram fundamentais no
embate contra as alas conservadoras e contribuíram para que as demandas
do MNU não fossem relegadas ao segundo plano (SOUZA, 2013;
SANTOS, 2015).
Em meio a esse cenário de intensa complexidade, com
mobilizações dos diferentes segmentos sociais e de classe, a Constituição
Federal, promulgada em 1988, apresentou um processo novo na legalidade
da participação da população negra no Estatuto brasileiro.
Sob a pressão da luta do MNU e das forças progressistas, o Artigo
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), pela
primeira vez, após 100 anos da aprovação da Lei Áurea, reconhece às
Comunidades Remanescentes de Quilombolas (CRQ), que estivessem
ocupando suas terras, o direito definitivo de propriedade.
Além do Artigo 68, também o inciso IV do Artigo 3º, o inciso VIII
do Artigo 4º, o inciso XLII do Artigo 5º, e o inciso XXX do Artigo 7º,
conforme reprodução abaixo, apresentaram cláusulas importantes para o
combate e a criminalização do racismo:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil:
IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação;
48
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos seguintes princípios:
VIII repúdio ao terrorismo e ao racismo;
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLII a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros
que visem à melhoria de sua condição social:
XXX proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de
critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.
(SANTOS, 2015, p. 19-20).
Suponha-se que, num país conservador e autocrático como o
Brasil, que historicamente perseguiu, reprimiu e criminalizou os negros e
suas manifestações, conquistas, mesmo que no plano jurídico-
constitucional, não seriam possíveis sem a ação direta dos diferentes
representantes do MNU.
No plano da preservação do patrimônio cultural e da história afro-
brasileira, destacam-se, também, os parágrafos 1º e 2º do Artigo 215, o
parágrafo do Artigo 216, e o parágrafo 1º do Artigo 242, que
preconizam:
Art. 215 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará
a valorização e a difusão das manifestações culturais.
49
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta
significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
Art. 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos.
Art. 242 - O princípio do art. 206, IV, não se aplica às instituições
educacionais oficiais criadas por lei estadual ou municipal e existentes
na data da promulgação desta Constituição, que não sejam total ou
preponderantemente mantidas com recursos públicos.
§ 1º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições
das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro
(SANTOS, 2015, p. 19-20).
Considera-se que os direitos conquistados na Carta Magna de
1988 representaram um avanço de organização e consciência do MNU, no
sentido em que reafirmam e unificam a cultura afro-brasileira
positivamente, revertendo aspectos estereotipados e racistas que
subjugaram as populações negras ao longo da história.
Com o quilombismo e o afro-centrismo, o discurso negativo sobre o
negro foi criticado, combatido, transformado e reinscrito por meio de uma
compreensão ampla e histórica, que resgatou a presença do negro na luta
contra o escravismo, contra o racismo e contra as desigualdades a que
foram historicamente submetidos.
50
Dessa forma, considera-se a hipótese de que os direitos
conquistados pelas populações negras na Constituição Federal (CF) de
1988 são frutos da luta organizada e do avanço da consciência do MNU,
bem como das diferentes entidades políticas e sociais sensíveis à
problemática racial no Brasil.
Contudo, entende-se que, apesar dos direitos conquistados com a
CF, os caminhos para que esses sejam normatizados dependem do grau de
consciência, força, mobilização e ação que as entidades políticas e os
movimentos sociais demonstrarem no horizonte do período democrático
que se abriu nos anos 1990.
Com ampla dedicação aos estudos sobre a formação da sociedade
brasileira, e sobre a questão do negro na sociedade de classes, Fernandes
(2017), apesar de considerar importantes os direitos conquistados,
apontou limites para o fato de estes acarretarem mudanças pontuais, e não
estruturais.
Fernandes (2017) defendeu que, tendo a ANC aberto espaço para
a criminalização do racismo, era preciso avançar mais; considerava
necessário construir uma proposta que aglutinasse os negros e os de baixo
num amplo movimento radical de rebeldia coletiva. O autor, que também
foi deputado federal constituinte pelo PT (Partido dos Trabalhadores),
eleito pelo estado de São Paulo, entendia que a questão do racismo contra
as populações negras era um problema social e racial simultâneo, além da
pior herança do regime escravagista, que indicava a persistência de uma
sociedade hipócrita e autocrática.
Defendeu que os Negros, assim como os Índios, deveriam ter um
estatuto próprio na Constituição. Diante disso, redigiu a proposta de uma
emenda constitucional “Título VIII, Da ordem social, Capítulo IX, Dos
negros”, justificando que “se quisermos possuir uma República
51
democrática temos de atribuir ao negro, como indivíduo e coletividade,
um estatuto democrático” (FERNANDES, 2017, p. 156).
Contudo, seu próprio partido, o Partido dos Trabalhadores (PT),
“[…] não o entendeu ou não o entendeu por inteiro ou não concordou
por divergir”, terminando a proposta por naufragar (MOURA, 2014a, p.
5).
Com a reabertura democrática institucionalizada, e a eleição de
Fernando Collor de Melo, que assumiu a presidência em 1990, constata-
se que o caminho para combater o racismo, construir políticas afirmativas,
realizar o reconhecimento e a titularidade dos territórios quilombolas ainda
teria que ser pavimentado.
Guimarães (2001b) apontou que, com a institucionalização da
nova ordem jurídica que passou a vigorar a partir de 1988, bem como com
a reforma do Estado que foi realizada no governo Fernando Henrique
Cardos (FHC), a militância negra, que antes se congregava em torno do
MNU, dos partidos políticos, sindicatos e algumas entidades estatais,
passaram a atuar mais livremente no denominado terceiro setor, como no
caso dos remanesces de quilombolas do Vale do Ribeira em torno da
Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do
Ribeira (EAACONE), como veremos nas seções 2 e 4.
Ressalta-se que tal situação não significou que o MNU deixou de
existir, ou que a militância negra perdeu espaço nos partidos políticos e
entidades estatais; ao contrário, a partir de 1995, amplia-se o recrutamento
de negros pelos órgãos federais e a proliferação de militantes do movimento
negro em entidades independentes da sociedade civil (GUIMARÃES,
2001b).
Entretanto, apesar de algumas reivindicações serem rapidamente
absorvidas por parte do Estado brasileiro, em particular aquelas que cabiam
52
dentro da matriz de nacionalidade “cujo teor é o sincretismo das três raças
fundadoras” (GUIMARÃES, 2001a, p. 135),
[...] a partir da compreensão muito peculiar da multirracialidade e do
multiculturalismo como síntese (à maneira freyreana), e não como
convivência entre iguais (à maneira norte-americana), que os brasileiros
passaram a aceitar algumas teses do movimento negro, tais como o
respeito às tradições e às expressões culturais de origem africana e à
estética negra. O fato é que também o estado brasileiro foi ágil em
responder nesse diapasão, através da criação de fundações culturais (a
Fundação Palmares, por exemplo), criação de conselhos estaduais da
comunidade negra, incorporação de símbolos negros (como a
transformação de Zumbi em herói nacional e o reconhecimento oficial
do 20 de novembro como o Dia do Negro); desenvolvimento de
legislação mais apropriada de combate ao racismo (a Constituição de
1988 e as leis 7.716 e 9.459, que regulamentam o crime de racismo);
modificação do currículo escolar, em alguns municípios onde a pressão
e a presença negra são mais fortes, para permitir a multiculturalidade
(GUIMARÃES, 2001a, p 159).
Demandas e reivindicações que dizem respeito a políticas
afirmativas e inovadoras de combate às desigualdades raciais, de renda e de
acesso ao serviço público de qualidade, por exemplo, enfrentaram
resistência por parte das classes dirigentes e por segmentos conservadores
da sociedade civil (GUIMARÃES, 2001a).
A respeito do direito à propriedade das comunidades
remanescentes de quilombolas, foram necessários mais 15 anos de lutas e
mobilizações até que, em 2003, o governo federal publicasse o Decreto nº
4887/03, que, finalmente, estabeleceu os procedimentos técnicos legais
para demarcação e titulação do território.
53
1.4 Os remanescentes das Comunidades de Quilombolas
O Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT) outorgou “aos remanescentes das Comunidades de Quilombolas
que estejam ocupando suas terras, reconhecimento e propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos” (BRASIL,
2016, p. 160).
Destaca-se que o Artigo 68 teria sido incorporado ao ADCT no
apagar das luzes. Isso se deu pela mobilização e luta do Movimento Negro,
mas, também, devido à falta de conhecimento dos constituintes acerca do
número, situação e localização das CRQ no país (ARRUTI, 2006;
REZENDE DA SILVA, 2008).
Embora esse dispositivo legal representasse um grande avanço, uma
conquista para o Movimento Negro do país, e para as CRQ em particular,
vários empecilhos foram colocados para atrasar, quando não barrar, o
caminho para a regularização da lei.
Diante disso, ao analisar o andamento dos processos de titulação,
observa-se que esse pouco avanço se dá conforme a sensibilidade dos
governos em exercício e do grau de mobilização e forças que as CRQ e
movimentos sociais têm para fazer com que o direito conquistado seja
formalizado.
Além da histórica oposição dos grandes latifundiários e
representantes do grande capital, outras questões, como os diferentes
domínios legais sobre a localidade das CRQ, sendo que algumas são terras
devolutas dos diversos estados da federação, outras estão em domínio de
empresas particulares e estatais, e outras tantas estão sob o domínio de
Unidades de Conservação (UCs), também demonstram a complexidade
do processo (REZENDE DA SILVA, 2008).
54
Votado e aprovado como parte dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias eo como uma obrigação permanente
do Estado, infere-se que a visão que predominou nesse processo foi a
de transitoriedade da situação, que vê o país em processo de
embranquecimento. “Diversas tentativas de regulamentação da lei,
feitas em 1995, 1997, 1998 e 1999 indicam a premência que tem a
aplicação do artigo 68 do ADCT, mas até o momento, todas elas
esbarraram [...] no sujeito do direito e nos procedimentos de titulação,
responsabilidades e competências” (LEITE, 2000 apud REZENDE
DA SILVA, 2008, p. 69).
Vale dizer que, com a aprovação do Artigo 68 como ADCT em
1988, outorgando o direito de propriedade aos remanescentes de
quilombos, além de marcar o nascimento de um novo sujeito político,
resgatou um núcleo organizativo historicamente ocultado: o quilombo.
Fruto de um legado histórico de criminalização, quando não de
invisibilidade, apesar do avanço, tanto o Artigo 68, quanto a própria
questão racial e a situação do negro, não tiveram as discussões e os
aprofundamentos necessários para atacar no cerne a pior herança do
regime escravagista brasileiro, como destacou Fernandes (2017).
Frente a esse cenário, além de contar com os interesses contrários
dos latifundiários, os poucos estudos mais profundos e sistematizados
sobre as organizações quilombolas no pós-abolição, e a própria questão
racial, geraram a problemática conceitual sobre quem eram e são os
remanescentes de quilombos.
No campo dos estudos raciais, Arruti (1997, p. 13) aponta que,
entre a década de 1970 e a década de 1980, ocorreu uma mudança na
abordagem sobre a “[…] identidade negra assumida pelo grupo ou
atribuída pelo pesquisador, entre populações eminentemente
camponesas”.
55
Num primeiro momento, os estudos sobre “[…] comunidades
rurais que apresentavam a particularidade de serem negras, eram tratadas
como exemplos institucionalmente isolados [...] sem perspectiva comum
aparente”. Já a partir da década de 1980, ocorre uma inversão da questão,
e uma série de estudos interligados operando o conceito de etnicidade, que
trabalham com “comunidades negras que tinham a particularidade de
serem camponesas” (ARRUTI, 1997, p. 13).
Com o Artigo 68 na do ADCT na CF de 1988, as demandas “[…]
originadas na luta política levaram a uma aliança forçada com perspectivas
até então apartadas, impondo aos estudos etnográficos sobre comunidades
rurais negras a literatura histórica sobre quilombos e vice-versa” (ARRUTI,
1997, p. 13).
Abrindo um campo novo para estudos, poucas bibliotecas
utilizavam o termo quilombos como chave de entrada em seus fichários,
demonstrando a estranheza e a dificuldade para se repensar e reclassificar
os antigos estudos sobre comunidades rurais negras em termos de CRQ
(ARRUTI, 1997).
Os antigos quilombos, pequenos ou grandes, estáveis ou de vida
precária, que foram a unidade básica de resistência do escravo e símbolo
da luta contra o regime servil que se formou em qualquer região em que
existia a escravidão (MOURA, 1981, p. 87), foram resgatados após 100
anos de ocultamento como chave para o entendimento das comunidades
negras rurais.
Compreende-se que, durante o regime escravocrata, os quilombos
e a luta dos quilombolas representaram a contradição produtiva essencial
na estrutura do regime servil que só perdeu sua centralidade com a
aprovação da Lei Áurea e abolição da escravidão das populações negras em
1888.
56
Com a abolição do regime escravocrata em 1888, e a Proclamação
da República no ano seguinte, os antigos quilombos, quando não atacados
ou criminalizados, foram sendo extintos da literatura como se tivessem
simplesmente desaparecido com a aprovação da Lei Áurea.
Considerando que as classes dirigentes tinham um claro empenho
em resolver o dilema de embranquecer a população, entende-se que essa
displicência com a história e as experiências do que foram os quilombolas
no regime escravocrata, e sua perpetuação ou não no pós-abolição, o se
deu por mero acaso.
Sob a problemática de como embranquecer o país, o racismo
contra as populações negras e suas manifestações não deixou de existir com
a abolição; ao contrário, manifestações da cultura negra, como a capoeira
6
e as religiões de origem afro-brasileira, por exemplo, só deixaram o Código
Penal mais de 40 anos após a abolição.
Resistindo a um histórico de invisibilidade, quando não, do
estereótipo de bárbaro, a história dos quilombolas é resgatada e
ressignificada na década de 1970 por meio do quilombismo e do afro-
centrismo, concepções formuladas por intelectuais negros de grande
influência ideológica na atuação do MNU.
A construção de uma identidade racial positiva por meio do afro-
centrismo e do quilombismo, resgatando e ressignificando a herança africana
no Brasil (invenção de uma cultura negra), como apontou Guimarães
(2001b), influenciaram a consciência e a atuação do MNU e de seus
6
Criminalizada pelo Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil de 1890
(promulgado pelo Decreto nº 847, em 1890), em seu artigo 402, inserido no capítulo XII,
intitulado Dos vadios e Capoeiras, foi descriminalizada em 1936 pelo presidente Getúlio Vargas.
Em 2008, a capoeira foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), e em 2014, a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura)
declarou a roda de capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
57
representantes na luta pela aprovação do Artigo 68, pela criminalização do
racismo, e por garantia de direitos às populações negras.
Depois do ano de 1988, no entanto, acontecimentos externos aos
debates propriamente acadêmicos irão interferir na produção
antropológica voltada para os chamados ‘estudos raciais’, no sentido de
incentivá-la e de alterá-la. Nesse ano, o ‘Artigo 68’ das disposições
transitórias criou a possibilidade de se reconhecer às ‘comunidades
remanescentes de quilombos’ o direito sobre as terras que ocupam e,
apesar de ainda não se ter lhe dado uma definição jurídica e
institucional, seus efeitos sociais se fizeram sentir quase que
imediatamente, pela mobilização de ONG’s, aparelhos de Estado,
profissionais de justiça e setores da área acadêmica, entre outros, nem
sempre, todavia, em perfeito acordo, mesmo quando imbuídos de uma
perspectiva política comum. (ARRUTI, 1997, p. 13).
Utilizado para resolver a difícil relação de continuidade e
descontinuidade com o passado histórico em que a descendência não
parece ser um laço suficiente, o termo remanescente foi empregado no
Artigo 68 em semelhança à situação utilizada para descrever as
comunidades indígenas do Nordeste ao longo da década de 1930/40
(ARRUTI, 1997).
Porém, apesar da semelhança, Arruti (1997, p. 22) aponta que:
Se entre os indigenistas o termo serviu para relativizar, na prática (ainda
que por caminhos tortuosos, que acabavam por reafirmar a crença no
modelo), o exótico, o isolamento, a continuidade de uma carga cultural
homogênea e autônoma, no caso das comunidades negras rurais, ou
melhor, para a representação que se passa a fazer delas, seu emprego
pode significar justamente a afirmação ou produção dessas ideias.
58
Principalmente porque, a partir da década de 70, quando a renovação
historiográfica se voltou para os Movimentos populares e para a
‘história dos de baixo’ e da sua ‘resistência, a retomada do tema dos
quilombos transformou-os em símbolos da recusa absoluta à ordem
escravocrata, oligárquica e, em alguns casos, do próprio capitalismo.
Ao serem identificadas como ‘remanescentes’, aquelas comunidades
em lugar de representarem os que estão presos às relações arcaicas de
produção e reprodução social, aos misticismos e aos atavismos próprios
do mundo rural, ou ainda os que, na sua ignorância, são incapazes de
uma militância efetiva pela causa negra, elas passam a ser reconhecidas
como símbolo de uma identidade, de uma cultura e, sobretudo, de um
modelo de luta e militância negra, dando ao termo uma positividade
que no caso indígena é apenas consentida.
Nesse sentido, Arruti (1997, p. 19) revela que, nos “remanescentes
de quilombos”, a presença de “novos” sujeitos e de novas figuras jurídicas
correspondeu a novas unidades de ação social, através de uma “[…]
maximização da alteridade que por um lado subverte a indistinção e por
outro intensifica a comparabilidade”.
Compreendeu-se que as CRQ não são necessariamente uma
reprodução original dos quilombos do passado, visto que as terras
ocupadas quase 100 anos após abolição provêm de origem diversa. A
utilização do termo “remanescente” abriu a possibilidade para que esses
grupos ocupassem um novo lugar no campo político, social e cultural
(ARRUTI, 1997, p. 23).
Dessa forma, o termo não deve ser compreendido como sobras de
antigos quilombos presos por fatos passados e prontos para serem
identificados, mas “através da seleção e recriação de elementos da memória,
de traços culturais que sirvam como os “sinais externos” reconhecidos pelos
mediadores e o órgão que tem a autoridade de nomeação” (ARRUTI,
1997, p. 23).
59
As diferenças que podiam até então distingui-los da população local na
forma de estigmas passam a ganhar positividade, e o próprio termo
‘negro’ ou “preto”, muitas vezes recusados até pouco tempo antes da
adoção da identidade de remanescentes, passam a ser adotados. As
fronteiras entre quem é e quem não é da comunidade, quase sempre
muito porosas, passam a ganhar rigidez e novos critérios de distinção,
genealogias e parentescos horizontais passam a ser recuperados como
formas de comprovação da inclusão ou não de indivíduos na
coletividade. Ao mesmo tempo, a maior visibilidade do grupo lhe
uma nova posição em face do jogo político municipal e, por vezes,
estadual. Enfim, a adoção da identidade de remanescentes por uma
determinada coletividade, ainda que possa fazer referência a uma
realidade comprovável, é, com muito mais força, a produção dessa
própria realidade (ARRUTI, 1997, p. 23).
Sem precedentes anteriores, com o marco do Artigo 68, os
denominados remanescentes de quilombolas surgem como “novos atores
políticos” que, além de precisar de mais especificidades sobre quem de fato
são, abrem discussões para criar processos jurídicos e os mecanismos
necessários para que os preceitos constitucionais pudessem ser cumpridos
(ARRUTI, 1997).
No plano institucional, foi a Fundação Cultural Palmares (FCP),
órgão do governo federal cuja criação foi autorizada pela Lei nº 7.668/88,
e materializada pelo Decreto nº 418/92, que ficou encarregada de
promover a cultura negra e praticar as medidas para efetivação do Artigo
68 (SUNDFELD, 2002).
Apesar da rápida resposta do governo em relação à competência
para implementar as medidas necessárias para o Artigo 68, no plano
prático, a ação não se manifestou com a mesma intensidade, além das
dificuldades conceituais e jurídicas, a lentidão do processo burocrático não
ajudou no processo.
60
Frente a essas complicações conceituais e jurídicas, o Ministério
Público Federal (MPF), que já enfrentava demandas de CRQ que
reivindicavam o reconhecimento de seus territórios, solicitou à Associação
Brasileira de Antropologia (ABA) um estudo mais aprofundado sobre o
tema.
A ABA, atendendo ao pedido do MPF, constituiu um Grupo de
Trabalho e realizou estudos sobre Comunidades Negras Rurais. A partir
dos estudos realizados, a ABA apresentou, em 1994, um entendimento de
que os remanescentes de quilombos são “[…] toda comunidade negra rural
que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e
onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado”
(SUNDFELD, 2002, p. 67).
Segundo Leite (2000) e Rezende da Silva (2008), tal definição
buscou uma compreensão dinâmica de cultura e crítica às concepções que
viam os quilombolas como populações homogêneas, estáticas e isoladas.
Assim, mais que uma herança que ultrapassou o tempo, “[…] os
remanescentes de quilombos deveriam ser pensados em suas diferentes
formas como experiências historicamente situadas na formação social do
país, que na luta por sua existência desenvolveram identidades próprias”
(REZENDE DA SILVA, 2008, p. 80).
Mesmo com a definição da ABA, e apesar das tentativas em 1995,
1997, 1998 e 1999, como afirma Leite (2000), a aplicabilidade da diretriz
constitucional, além da oposição dos diferentes interessados que eram
contrários aos direitos dos quilombolas, esbarrava em outras problemáticas
relacionadas ao sujeito de direito, aos procedimentos de titulação, na
responsabilidade e competências (REZENDE DA SILVA, 2008).
Frente às indefinições e demora nos processos por parte do governo
federal, alguns estados, como Pará e São Paulo, buscando solucionar as
61
demandas dos remanescentes de quilombolas que entravam na justiça
solicitando o reconhecimento de seus territórios, iniciaram procedimentos
para referendar o Artigo 68 do ADTC, e conferir-lhes o direito à
propriedade (ANDRADE, 1997, p. 35).
O caso das Comunidades de Boa Vista, Água Fria e Pacoval, no
Pará, que nos anos de 1995 e 1996 conquistaram junto à representação
regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) no estado do Pará o título de propriedade coletiva inalienável,
representou um marco para o reconhecimento e a titulação de áreas
quilombolas em terras devolutas da União (ANDRADE, 1997).
Sob essa influência, o estado do Pará, antecipando-se ao próprio
governo federal, alguns anos depois, em 1999, instituiu o Decreto Estadual
nº 3.572, no qual estabeleceu providências e competências para
Reconhecimento e Legitimação de Terras dos Remanescentes das
Comunidades Quilombolas.
O estado de São Paulo, já enfrentando demandas dos quilombolas,
particularmente do Vale do Ribeira, região com maior número de
quilombos no estado, por meio do Decreto nº 40.723/96, criou um Grupo
de Trabalho com o objetivo de fazer proposições visando à plena
aplicabilidade dos dispositivos constitucionais do Artigo 68 (ANDRADE,
1997).
O Grupo de Trabalho instituído pelo Decreto 40.723/96 foi integrado
por representantes da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania,
Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”,
Secretaria de Meio Ambiente, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria
de Governo e Gestão Estratégias, Secretaria de Cultura, Conselho de
Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico
(Condephaat), Conselho de Participação e Desenvolvimento da
62
Comunidade Negra do Estado de São Paulo, Subcomissão do Negro,
da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil
- Secção São Paulo e Fórum Estadual de Entidades Negras
(ANDRADE, 1997, p. 17).
Além do Pará e de São Paulo, outros estados, como a Bahia, o
Maranhão, o Mato Grosso do Sul, o Piauí e o Rio de Janeiro, com o
decorrer dos anos, também tomaram providências para estabelecer as
competências para os processos de reconhecimento e de titulação dos
territórios remanescentes de quilombos.
Apesar do aparente avanço em relação ao âmbito federal por partes
desses estados que se empenharam em estudos e na construção de
instrumentos para a titulação de terras para as CRQ, a lentidão no âmbito
federal dificultava avanços mais significativos no processo.
Comprobatório dessa lentidão no âmbito federal, pode ser
evidenciado no fato de que os procedimentos de concessão e regularização
das terras remanescentes de quilombos só foram definidos em 2003, a
partir do Decreto nº 4887, ou seja, 15 anos após a aprovação do Artigo 68
do ADCT.
Nessa mesma lógica de morosidade, somente em 2009, o INCRA,
organismo federal responsável pelo processo de titulação, publicou a
Instrução Normativa 57, com os procedimentos do processo
administrativo para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação, desintrusão
7
, titulação e registro das terras ocupadas por
CRQ.
7
Ato ou efeito de retirar de um imóvel quem dele se apossou ilegalmente ou sem autorização do
proprietário. Frequentemente, o termo se refere à retirada de ocupantes ilegais de áreas reconhecidas
e regularizadas como sendo terras indígenas, reservas ambientais, territórios quilombolas ou de
outros povos e populações tradicionais.
63
1.5 Nossos direitos só a luta faz valer: organização, resistência e luta
pela posse de suas terras
Em sua maioria ocupando áreas de difícil acesso e ricas em recursos
minerais e vegetais, as antigas comunidades negras rurais espalhadas por
quase todo o território nacional já enfrentavam, em algum nível, conflitos
e ameaças sobre as terras que viviam antes de serem reconhecidas como
remanescentes de quilombos.
É nesse histórico de conflito e luta que questões ligadas à cultura e
à origem comum passam a ser tematizadas e objeto de reflexão em diversas
comunidades. Nessa conjuntura, a assunção da identidade de
remanescentes passa a ser reconhecida como instrumento de luta
privilegiada para resistência em suas terras e manutenção de seu modo de
vida (ARRUTI, 1997).
Vários são os casos de violência e insegurança em que as antigas
comunidades negras rurais viviam quando da aprovação do Artigo 68.
Contudo, mesmo após a garantia de propriedade sobre as terras que
ocupavam, o pouco avanço no processo de titulação se deu mais pela
pressão dos quilombolas do que pela vontade do governo.
Diante disso, a presente subsão teve como objetivo apresentar
um pouco das lutas que algumas comunidades negras rurais vinham
empreendendo desde antes da aprovação do Artigo 68, bem como a
composição e a organização das CRQ para fazer valer o direito adquirido.
Como casos emblemáticos e mais conhecidos da situação de
conflitos e lutas que as antigas comunidades negras rurais enfrentavam,
desde antes de 1988, estão os casos das comunidades de Oriximiná no Pará
(PA), dos Kalunga em Goiás (GO), das comunidades do Rio das Rãs na
Bahia (BA), e das comunidades do Vale da Ribeira em São Paulo (SP).
64
Situado à margem do rio Trombetas no norte do Pará, o caso das
comunidades de Oriximiná é importante não só por ser o primeiro caso de
titulação de comunidade quilombola no Brasil, mas, também, pelo título
coletivo da propriedade de suas terras, e pela importância dessa experiência
nos demais casos em todos os estados brasileiros.
Como de praxe em terras ocupadas pelas CRQ, a situação em
Oriximiná não era exceção. Segundo dados da Comissão Pró-Índio de São
Paulo (2015), na década de 1970, a região foi afetada pela instalação da
empresa Mineração Rio do Norte (MRN), e também pela criação da
Reserva Biológica do Trombetas. Isso dificultou o acesso dos moradores
aos principais castanhais da região.
No mesmo documento, a Comissão (2015) aponta, também, que
a edificação de uma vila executada pela Eletronorte para a implantação da
Hidroelétrica de Cachoeira Porteira no Rio Trombetas, o aumento do
número de fazendas e de ocupações de pequenos posseiros atraídos pela
especulação, na década de 1980, agravaram a situação.
Agudizando o cenário de conflitos e ameaças durante toda a
década, em 1989, as comunidades negras, tomando conhecimento do
Artigo 68 e consciência da necessidade de fazer valer o direito adquirido,
organizaram-se em torno da Associação das Comunidades Remanescentes
de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO).
Importante ferramenta de luta na história das comunidades da
região, por meio da organização e ação empreendida pela ARQMO, a
Comunidade Boa Vista, reivindicando-se como remanescente de
quilombos, conquistou, junto ao INCRA no estado do Pará, em 1993, o
primeiro título de propriedade sob as diretrizes do Artigo 68.
Valorosa não só porque incidiu na primeira titulação de
propriedade quilombola no Brasil, a luta em torno da ARQMO foi
65
fundamental também por a emissão da titulação ser coletiva, e isso abriu
precedente servindo de exemplo para ações que se ampliavam por todos os
estados brasileiros. Dessa forma, o caso da luta empreendida pela ARQMO
representou um marco importante na luta das CRQ, que, além de ser o
primeiro caso de título de domínio de terra para os quilombolas, serviu de
exemplo para as demais CRQ de todo o Brasil.
No caso das Comunidades Kalunga em Goiás, Baiocchi (2006)
aponta que, desde o início da década de 1940, com a expansão da ocupação
para o norte do estado, os Kalunga, antigos moradores da região,sofriam
com o processo de grilagem. Após a mudança da capital para Brasília, a
situação se aprofundou com o aumento da especulação nos anos 1960 e
1970. Na década de 1980, a situação se agrava quando mineradoras,
empresas agrícola-pastoris e hidrelétricas se apossam de parte das terras que
os Kalunga ocupavam há décadas (BAIOCCHI, 2006).
Não tendo muito para onde ir, e necessitando continuar resistindo
em suas terras, com a aprovação do Artigo 68, os Kalunga intensificam
suas ações participando de diversos encontros, reuniões e seminários, com
parceiros e aliados na luta pelo reconhecimento de seu território como
remanescentes de quilombos.
A luta dos Kalunga teve uma importante conquista simbólica junto
ao governo do estado de Goiás em 1991. Nesse ano, sua área foi
reconhecida como território tradicional e declarada sítio histórico e
patrimônio cultural Kalunga. Contudo, foram necessários mais oito anos
de luta até que a FCP concedesse o certificado de remanescentes de
quilombolas (BAIOCCHI, 2006).
Apesar do reconhecimento certificado pela FCP, para a
regularização fundiária e a titulação da terra, foram necessários mais de 20
66
anos de luta. Dessa forma, somente em 2014, os Kalunga tiveram uma
parcela do seu território original regularizada e titulada.
Situação similar e conhecida de luta, resistência e morosidade no
processo de reconhecimento, regularização e emissão do título de
propriedade para os quilombolas, é também o caso das comunidades
localizadas entre os rios São Francisco e Rio das Rãs, no município de Bom
Jesus da Lapa na Bahia (BA).
Segundo Steil (1998), desde a década de 1970, os moradores da
região já estavam em processo de luta e resistência. No início da década de
1980, com a compra de terras na região pelo Grupo Bial-Bonfim Indústria
Algodoeira, a situação se agravou, e muitos moradores foram expulsos, fato
que acarretou a extinção de algumas comunidades.
Nessa conjuntura, os moradores do Rio das Rãs, aliados ao MNU
e à Comissão Pastoral da Terra (CPT), observando as diretrizes do Artigo
68, e entendendo-o como importante instrumento de luta para resistirem
em seus territórios, entraram com ação no MPF requerendo a propriedade
como remanescentes de quilombos (DUTRA, 2015).
Com diversas manifestações, a luta das comunidades do Rio das
Rãs foi intensa. Destaca-se, como exemplo, a caravana de 1993 que seguiu
até Brasília para reivindicar a demarcação de 13 mil hectares de terra para
fazer cumprir o Artigo 68 (STEIL, 1998).
Entretanto, a situação de mobilização e luta para a demarcação e
titulação de seu território arrastou-se por mais alguns anos, até que, no
final da década de 1990, conquistaram o título de suas terras, tornando-se
a primeira comunidade da Bahia reconhecida como remanescentes de
quilombos (DUTRA, 2015).
No estado de São Paulo, também já no início da década de 1990,
as comunidades negras da região do Vale do Ribeira, objeto desta pesquisa,
67
iniciaram um intenso movimento pela demarcação de seus territórios e
pela propriedade de suas terras como remanescentes de quilombos.
Já em processo de resistência desde o início dos anos de 1980,
quando os moradores da região sofriam com a ameaça de que as terras em
que viviam pudessem ser alagadas em consequência do projeto de
construção da barragem de Tijuco Alto do grupo Votorantim, as CRQ,
organizadas em torno do Movimento dos Ameaçados por Barragens no
Vale do Ribeira (MOAB), realizaram diversas atividades, mobilizações e
encontros, empunhando a bandeira “Terra sim e barragem não!” (PINTO,
2014).
As comunidades, em articulação com a CPT e o Movimento
Negro, ao tomarem conhecimento do Artigo 68, entenderam-no como
uma importante ferramenta para enfrentar o projeto de Tijuco Alto, e
impedir que suas terras fossem alagadas. Dessa forma, após um longo
período de formação e organização, entraram com ação no MPF, em 1994,
requerendo o reconhecimento de suas terras como remanescentes de
quilombolas.
Na região do Vale do Ribeira, está concentrada a maioria das CRQ
em São Paulo. São 66 comunidades; dessas, apenas as Comunidades Maria
Rosa, em Iporanga, no ano de 2001, e Ivaporunduva, em Eldorado, no
ano de 2003, conquistaram o título integral de suas terras (ANDRADE;
TATTO, 2013).
Para além desses casos mais conhecidos, Arruti (1997, p. 15)
aponta que casos menos conhecidos com os quais teve contato, como, por
exemplo, a “[…] Comunidade de Mocambo, localizada em Porto da Folha
(SE), à beira do São Francisco”, também comprovam o histórico de
conflito, ameaça e resistência dos quilombolas.
68
Mocambo possui 150 famílias negras, distribuídas em um vilarejo de
uma única rua, cujas terras de trabalho, que ocupam há várias gerações,
entram em litígio em 1992. A família que se diz proprietária inicia,
então, uma ação de despejo e as famílias de Mocambo passam a ser
submetidas a sucessivas expulsões, várias vezes operadas por força
armada conjunta de jagunços daquela família e soldados da delegacia
de Porto da Folha, além de serem assediadas constantemente por
pistoleiros. Em consequência disso, em 1994, a Comissão Pastoral da
Terra (CPT), respaldada no Artigo 68”, entra com um pedido de
reconhecimento daquelas terras como terras tradicionais de
remanescentes de quilombos. O interessante, no entanto, é que a área
reivindicada pela comunidade acompanha o formato e se mantém
fronteiriça à área Xocó, com os quais mantêm relações de parentesco,
trocando dias de trabalho, terras de cultivo em épocas de seca ou de
cheia etc. O próprio conflito com a família de proprietários tem início
no ano seguinte, ao fim do qual, depois de um processo extremamente
conflituoso, os Xocó conseguem a demarcação de suas terras
(ARRUTI, 1997, p. 15).
É nesse sentido, e em meio a um processo histórico de conflitos e
disputas, que as comunidades, geralmente assessoradas e aliadas a
representantes ligados a entidades como a CPT, MNU, partidos políticos,
sindicatos e universidades públicas, tomam conhecimento da legislação
aprovada em 1988, e avançam na consciência de ser quilombola e na luta
pela posse de suas terras.
A influência de uma identidade racial positiva, fruto do afro-
centrismo e do quilombismo, formulada por intelectuais negros resgatando
e ressignificando a herança da luta dos quilombolas no Brasil, bem como
o resgate histórico de cada comunidade, seus graus de parentescos e de
organização, fortaleceram o sentimento e o entendimento quanto a
remanescentes de quilombos.
69
Diante dessa consciência e da necessidade de se organizarem
enquanto quilombolas, representantes de diversos estados organizaram,
durante a Marcha Zumbi dos Palmares, realizada em novembro de 1995,
o “I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas”.
Como é possível observar na página eletrônica da Coordenação
Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
(CONAQ), aproveitando que a Marcha reuniu representantes de
comunidades quilombolas com histórico de articulação e mobilização
bastante significativo
8
, o encontro representou um salto de qualidade na
organização dos quilombolas em nível nacional.
No ano seguinte, representantes de diversas entidades quilombolas
e negras se reuniram com o objetivo de fazer avaliação e balanço do I
Encontro Nacional das Comunidades Negras Quilombolas. Foi nessa
reunião que decidiram formar a Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).
A CONAQ foi pensada e constituída enquanto um movimento
social quilombola para lutar pela defesa do território e pela sobrevivência
dos quilombolas enquanto grupo específico ameaçado pelo avanço da
especulação imobiliária, dos grandes empreendimentos, que afetam e
alteram diretamente a existência desses grupos (CONAQ, 2019).
A CONAQ tem, entre os seus objetivos:
[...] lutar pela garantia de uso coletivo do território, pela implantação
de projetos de desenvolvimento sustentável, pela implementação de
8
No Maranhão, os quilombolas acumulavam a experiência da realização de três Encontros
Estaduais; no Pará, havia a atuação da ARQMO responsável pela conquista do primeiro título
emitido sob as diretrizes do Artigo 68; na Bahia, as comunidades do Rio das Rãs traziam um
reconhecido histórico de luta pelas suas terras; no estado de São Paulo, as comunidades quilombolas
do Vale do Ribeira já iniciavam os processos de autodemarcação de seus territórios.
70
políticas públicas de acordo com a organização das comunidades de
quilombo e por educação de qualidade coerente com o modo de viver
nos quilombos (CONAQ, 2019).
Reunindo representantes de 23 estados da federação, desde sua
formação, a CONAQ já realizou 04 encontros nacionais: 17 a 20 de
novembro de 1995, em Brasília – DF; 29 de novembro a 02 de dezembro
de 2000, em Salvador BA; 03 a 07 de dezembro de 2003, em Recife
PE; 03 a 06 de agosto de 2011, no Rio de Janeiro RJ; 22 a 26 de Maio
de 2016, em Belém PA (CONAQ, 2019).
O II Encontro Nacional, realizado no ano 2000, em Salvador,
configurou-se como de grande importância no que concerne ao processo
de afirmação do movimento quilombola. Até esse Encontro, a
coordenação em âmbito nacional era composta por representações do
movimento quilombola e, também, do movimento negro urbano
(CONAQ, 2019).
A partir do II Encontro, as comunidades tomam para si a
representação integral do movimento. Tal decisão forçou que os
quilombolas dos diversos estados que ainda não estavam organizados em
nível local, regional e estadual, começassem a se organizar e a construírem
suas instâncias organizativas (CONAQ, 2019).
Com a formação da CONAQ, os quilombolas organizaram-se
nacionalmente, e construíram um amplo debate sobre os processos de
reconhecimento e os procedimentos de regularização de territórios
quilombolas outorgados a partir do Artigo 68 do ADCT da CF/1988.
Formada para fazer a representação e a defesa dos direitos dos
quilombolas, a CONAQ foi uma das principais entidades de quilombolas
71
que participou ativamente dos processos e ações que geraram o Decreto nº
4887/2003, incidindo, inclusive, na construção do texto legal.
Durante o primeiro ano do governo Lula da Silva e 16 anos após a
aprovação do Artigo 68, o Governo Federal aprovou em 2003 o Decreto
nº 488703 e, finalmente, estabeleceu os procedimentos técnicos legais para
a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a
titulação do território quilombola
9
.
Um marco na luta institucional dos quilombolas, o Decreto
estabeleceu que os quilombolas são “grupos étnico-raciais, segundo
critérios de autoatribuição
10
, com trajetória histórica própria, dotados de
relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (SOUZA, 2013,
p. 36).
Para além da conquista que o Decreto representou em si,
considera-se que o fato de o reconhecimento das comunidades
remanescentes de quilombos serem atestados mediante a autodefinição da
própria comunidade, bem como a titulação coletiva do território,
representou influência direta do modo de vida dos quilombolas.
Contudo, ao observar a situação dos processos de certificação e
titulação dos territórios quilombolas, mesmo após a instituição do Decreto
nº 4887/2003, contata-se que, apesar do avanço em algumas etapas como
9
Criado em 2000 ainda no governo FHC, e extinto por Temer após o golpe que levou ao
impeachment de Dilma Rousseff em 2016, durante o governo Lula (2003-2010) houve considerável
reformulação das políticas no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e no
INCRA. Importante destacar que durante quase todo o governo Lula o Ministro foi Miguel
Rossetto, do Rio Grande do Sul, com forte vinculação aos movimentos sociais.
10
O conceito de autoatribuição que vigora a partir do Decreto 4887/2003 fundamentou-se na
Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais
(1989), que dispõe sobre os direitos desses povos na salvaguarda de seus territórios tradicionais e
suas práticas de territorialidade.
72
identificação e reconhecimento, os processos de regularização e emissão do
título de propriedade da terra ainda é bastante prejudicado pela lentidão e
pela morosidade dos órgãos competentes.
Até o momento não há um consenso acerca do número preciso de
comunidades quilombolas no país, mas dados oficiais vindos da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra), autarquia responsável pelo processo administrativo de
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras ocupadas pelos Remanescentes de Comunidades dos
Quilombos, são 2847 comunidades Certificadas no Brasil, 1533
processos abertos no INCRA e 154 tituladas, 80% delas regularizadas
pelos governos estaduais (CONAQ, 2019).
Apresentamos, no quadro abaixo, o número de comunidades
remanescentes de quilombolas reconhecidas pela FCP em cada estado da
federação, reforçando que, apesar de reconhecidas, a maioria das
comunidades, mais de 90%, ainda não foram tituladas.
Quadro 1 – Número de comunidades reconhecidas pela FCP
Regi
ão
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro
Oeste
Maranhã
34
Pará
40
3
Minas
Gerais
20
4
Rio G.
do Sul
14
8
Mato
Grosso
7
3
Bahia
69
Tocanti
ns
16
Espiri
to
Santo
52
Santa
Catari
na
19
Mato
G. do
Sul
2
5
Piauí
74
Amapá
15
Rio
de
34
Paraná
08
Goiás
3
3
73
Janeir
o
Pernamb
uco
10
2
Rondô
nia
05
São
Paulo
85
Ceará
79
Amazo
nas
03
Rio G. do
Norte
68
Alagoas
52
Sergipe
29
Paraíba
17
Total
1.724
375
175
131
Fonte: Elaboração própria, com base em CONAQ (2019).
Como ressaltado anteriormente, apesar de certo avanço no
processo de autodefinição e da certificação por parte da FCP, o mesmo não
se observa com o processo de regularização fundiária e titulação que deveria
ser efetivado pelo INCRA: apenas 154 das 2.847 comunidades
reconhecidas tem a sua situação fundiária regularizada.
Sobre essa morosidade nos processos de regularização fundiária e
titulação, observa-se que a Instrução Normativa 57, que estabeleceu os
parâmetros para que o INCRA pudesse realizar os procedimentos técnicos
legais, só foi estabelecida em 2009, ou seja, mais de 5 anos após a
instituição do Decreto nº 4887/03.
Além da morosidade estatal, e da cobiça por parte de grandes
empresas que almejam explorar os recursos naturais de suas terras, os
quilombolas enfrentam, também, constantes ataques por parte dos
ruralistas. Como caso mais emblemático, destaca-se a Ação Direita de
Inconstitucionalidade (ADI) n° 3239. Levada em 2003 ao Supremo
Tribunal Federal pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL), atual
74
Democratas (DEM), a ADI nº 3239 questionava os critérios de
autoatribuição e da própria legalidade do Decreto nº 4887/03.
Após mais de 14 anos de tramitação, a ação foi julgada
definitivamente pelo Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2018,
com resultado favorável aos remanescentes de quilombos, reconhecendo a
constitucionalidade do Decreto nº 4887/03 e a improcedência da ADI nº
3239, por ampla maioria de votos.
75
2
As Comunidades Remanescentes de Quilombos
do Vale do Ribeira
2.1 Um breve histórico dos ciclos e ocupação do Vale do Ribeira
O Vale do Ribeira é uma região que abrange os estados do Paraná
e de São Paulo, respectivamente, regiões Sul e Sudeste do Brasil. Recebe
esse nome em função da bacia hidrográfica do Rio Ribeira de Iguapé,
importante rio que nasce dentro do Parque Nacional dos Campos Gerais
(no Paraná), a 100 km de Curitiba, e, após percorrer aproximadamente
470 km, desemboca no Oceano Atlântico na altura de Iguape, município
paulista a 200 km da capital de São Paulo.
Com referência aos estudos do antropólogo Antonio Carlos
Diegues (2007), constata-se que o Vale do Ribeira teve, desde a chegada
dos primeiros colonizadores no século XVI, até meados do século XX, dois
grandes ciclos econômicos que marcaram a ocupação populacional da
região: 1º - o garimpo e a mineração; e 2º - a agricultura e o comércio
naval.
Chegando ao final do século XIX, e iniciando o século XX, o ciclo
da agricultura e do comércio naval entrou em declínio, e a região iniciou
um período de estagnação. No decorrer dos anos, alguns projetos
governamentais foram implementados para tentar ocupar o Vale, mas a
monocultura da banana se hegemonizou e segue forte até os dias atuais.
76
Ocupada originalmente por nativos de origem Tupi, os primeiros
vestígios de colonos no litoral sul de São Paulo datam de 1502, quando
Américo Vespúcio passou pela Ilha do Cardoso e, ao partir, deixou
nomeado um bacharel português, o contravertido e enigmático “Bacharel
de Cananeia”.
Alguns anos mais tarde, em 1508, uma expedição comandada por
João Solis e Vicente Yanes Pizon também passou pelo litoral sul paulista,
e teria deixado, ao partir, sete castelhanos próximos à barra de Cananeia.
A partir de 1531, a chegada de Martin Afonso de Souza e a busca por ouro
impulsionou a entrada para o interior do continente.
Diegues (2007) aponta que a história da ocupação colonial do
interior do Vale do Ribeira se inicia com uma expedição organizada por
Martim Afonso para subir o rio Ribeira. Apesar de essa primeira expedição
nunca ter retornado, em 1550, fora noticiado que havia sido encontrado
ouro de aluvião
11
na região no Alto Ribeira.
A partir dessa descoberta, inicia-se, com base na mineração e no
garimpo, um primeiro ciclo de ocupação entre as regiões onde hoje se
localizam Apiaí e Iporanga. Apesar de curto, esse ciclo com base na busca
e na exploração do ouro, foi o início do povoamento da área que seguia o
rio Ribeira (DIEGUES, 2007).
Responsável pelo início da povoação de Apiaí e Iporanga no Alto
Ribeira, chegando até o Médio Ribeira na região de Xiririca (atual
Eldorado), o ciclo do ouro, além da utilização da mão de obra dos povos
nativos, também se utilizou de um grande número de escravos africanos
(DIEGUES, 2007).
11
Ouro de aluvião é aquele ouro que é encontrado em leitos dos rios. Ouro de Aluvião refere-se ao
ouro encontrado no leito e encostas de rios, no qual possui a densidade 1, e no qual é difícil ser
transportado pela água.
77
Diegues (2007, p. 5) aponta que, em Xiririca, fundada em meados
do século XVIII, e transformada em vila em 1842, quando se separou de
Iguape, havia um grande número escravos que, com o declínio do ciclo do
ouro, “[…] passaram a trabalhar nas plantações de arroz e no transporte
em canoas ribeiranas para Iguape, de onde o produto era exportado”.
Com a descoberta de ouro nas Minas Gerais no século XVII, o
declínio do ciclo do ouro gerou um movimento de migração,
primeiramente, dos povoadores do litoral sul e, posteriormente, dos
povoadores do Alto e Médio Ribeira, onde a mineração de ouro se esgotara
no início do século XIX (DIEGUES, 2007).
Com a decadência do ciclo do ouro, a construção naval em
Cananeia e Iguape, no litoral sul de São Paulo, região em que alguns
mestres carpinteiros, possivelmente vindos do Rio de Janeiro, instalaram-
se, destaca-se, por um curto espaço de tempo, pela construção de
embarcações de cabotagem, tradição de vários povos da região até os dias
atuais (DIEGUES, 2007).
Junto a isso, a produção agrícola também passa a ter grande
relevância. Constate-se que, no período, foram exportadas, a partir de
Iguape para os portos do Rio de Janeiro, Rio Grande Sul, Santa Catarina
e Santos, grandes quantidades de farinha de mandioca, arroz, cana de
açúcar, peixe seco e outros produtos alimentícios produzidos no interior
do Vale (DIEGUES, 2007).
Contudo, ao final do século XVIII, a Metrópole proíbe que o
comércio desses produtos seja feito com outros portos, exceto Santos.
Diante dessa ação de controle autoritário e submissão do Porto de Iguape
a Santos, a produção agrícola começou a ser abandonada, e a miséria se
alastrou por quase toda a região (DIEGUES, 2007).
78
A produção agrícola foi retomada em meados do século XIX, com
a monocultura do arroz na região do médio e baixo Ribeira. Nesse período,
o transporte fluvial na bacia hidrográfica do rio Ribeira, e o comércio
naval, possibilitaram que a produção de arroz da região fosse exportada
para portos brasileiros e da bacia do Prata.
Diegues (2007, p. 6) aponta que, na época de expansão econômica
potencializada pela monocultura do arroz, “Iguape e Cananéia contaram
com um sistema adequado de transporte fluvial e marítimo, baseado na
bacia hidrográfica do Rio Ribeira que com seus 400 quilômetros foi o meio
de locomoção mais utilizado”.
Buscando dar maior dinamismo para o escoamento da produção,
em 1827, iniciou-se a construção de um canal fluvial (3 km de
comprimento e 3m de largura), ligando o Porto da Ribeira ao Mar
Pequeno em Iguape. Tal empreendimento buscava dar maior dinamismo
para o escoamento produtivo pelo porto de Iguape.
Situada à beira mar, era Iguape o centro exportador de toda essa grande
bacia hidrográfica de onde vinham os produtos agrícolas, descarregados
no porto da Ribeira, no rio do mesmo nome, a poucos quilômetros da
cidade. Daí os animais de carga transportavam os produtos até o porto
de Iguape, junto ao Mar Pequeno, de onde zarpavam os navios
carregados de mercadorias para os outros portos do Império
(DIEGUES, 2007, p. 06-07).
Com referência em Muller (1922) e Diegues (2007), Iguape e
Cananeia, em 1836, respondiam por quase 80% dos engenhos de arroz da
província de São Paulo. Nesse período, a produção de arroz foi de
aproximadamente 35 mil sacas, sobretudo em Eldorado e Iguape.
79
Tendo como principal eixo de escoamento da produção a bacia do
rio Ribeira, após a conclusão do canal em 1852, a produção e a exportação
de arroz aumentaram consideravelmente nos anos subsequentes. Muller
(1922) e Diegues (2007) apontam que, de 1850 a 1880, a quantidade
média de arroz exportado foi de 50 mil sacas.
Com intenso tráfego de embarcações até então, o movimento
começa a declinar a partir de 1880. Três fatores foram fundamentais para
o declínio do movimento de embarcações no Porto: i) a mudança do eixo
do comércio para Santos, ii) a abolição da escravatura e iii) o assoreamento
do canal que ligava o Porto da Ribeira ao Mar de Dentro
Na virada do século, o eixo do comércio começou a ser deslocado
do litoral sul para Santos, os investimentos e a expansão das estradas de
rodagem melhoraram significativamente a comunicação entre o planalto e
a capital, acabando por desarticular o “sistema formado pelo Porto de
Iguape e a retro-terra que o alimentava” (DIEGUES, 2007, p. 7).
Principal mão de obra nas plantações de arroz, os escravos eram
utilizados inclusive em propriedades menores, dependentes dos donos de
engenho que financiavam sua produção. Além dos escravos de “campo”,
havia também os de ofício, marceneiros, pedreiros, entre outros que
executavam esses trabalhos para seus patrões (DIEGUES, 2007).
Sendo uma média de 60 escravos para as grandes propriedades, e
de 7,5 escravos para cada fogo (unidade familiar extensa), a abolição da
escravatura em 1888 desarticulou a estrutura da principal mão de obra
utilizada nas monoculturas de arroz (DIEGUES, 2007).
Por fim, ocorreu o próprio declínio do Porto de Iguape, que foi se
tornando inadequado para receber embarcações maiores devido ao
assoreamento, particularmente do canal que ligava o Porto da Ribeira ao
80
Mar de Dentro, impossibilitando a entrada e a saída das embarcações pela
Barra de Icapara (DIEGUES, 2007).
Diegues (2007) aponta que, na época da construção do canal
ligando o Porto da Ribeira ao Mar de Dentro, não se considerou o grande
volume de água e terra derrocado no canal pelo rio Ribeira. Com o tempo,
esse grande volume de água e terra foi derrocando a margem do rio e, ao
mesmo tempo que alargava a sua passagem, formando o chamado Vale
Grande, acaba por assoreá-lo. Além do assoreamento do canal, o grande
volume de água e terra que o Ribeira desalojava no Mar Pequeno,
principalmente em consequência das suas cheias, contribuiu para diminuir
a salinidade da área e provocou um grave desequilíbrio biológico na região
(DIEGUES, 2007).
O final do ciclo do arroz, a ‘abolição’ da escravatura e o declínio
do Porto de Iguape geraram um duplo movimento nos grupos
populacionais que habitavam a região. As classes patronais, donos de
grandes fazendas, deixaram a zona rural e mudaram-se para as cidades de
Iguape, Cananéia, Santos e Rio de Janeiro. Os pequenos produtores
autônomos, os posseiros e os ex-escravos permaneceram nos sítios, ou
formaram comunidades em meio às matas à margem da bacia do Rio
Ribeira, e passaram a dedicar-se à agricultura de subsistência, ao
extrativismo, à caça e à pesca (DIEGUES, 2007).
Esse movimento estabeleceu na região uma economia de
subsistência aglutinando pequenos proprietários, caiçaras, posseiros e ex-
escravos. Nesse período, a navegação de cabotagem
12
e canoa pela bacia do
rio Ribeira foi o principal meio de locomoção e comunicação entre as
populações do Vale.
12
O termo “cabotagem” se refere a um modo de navegação realizada entre “cabos”, sem perder a
terra à vista. Portanto, entende-se que a navegação de cabotagem ocorre entre portos de um mesmo
país.
81
Sendo importante para locomoção e comunicação entre os povos
do Vale, a utilização da navegação de cabotagem e canoas foram intensas
até 1930, quando começaram a ser abandonadas devido à chegada das
primeiras estradas de rodagem e sua expansão pela região nos anos
posteriores (DIEGUES, 2007).
Com o declínio da monocultura do arroz, as classes dirigentes
consideravam que a região caiu em um problema de isolamento geográfico,
econômico e social. Desconhecendo a realidade da região, viam a
necessidade de fundar novos núcleos de colonização na baixada santista e
no Vale do Ribeira.
Tendo o preconceito usual que as classes dirigentes têm em relação
às classes subalternizadas (GRAMSCI, 2002), o atraso na região fora
considerado culpa das populações que residiam e ocupavam aquelas terras
que, devido a suas origens grosseiras, não se enquadravam aos moldes de
produção e comercialização capitalista, sendo necessário substituí-los por
uma classe empresarial rural (CARVALHO, 2006).
Desconhecendo a realidade das populações que povoavam as áreas
ao longo da bacia do rio Ribeira, a Secretaria da Agricultura do Estado de
São Paulo, em 1930, operacionalizou um plano de colonização com base
na discriminação e na aquisição de terras devolutas por particulares
13
.
Segundo Paiva (1993) e Carvalho (2006), a falta de conhecimento
e o distanciamento na compreensão dos dirigentes sobre as terras devolutas
discriminadas acaba por gerar vários problemas fundiários na região, pois
grande parte das terras consideradas devolutas pelo Estado já eram ocupada
13
Terras devolutas são terras públicas sem destinação pelo Poder Público e que em nenhum
momento integraram o patrimônio de um particular, ainda que estejam irregularmente sob sua
posse. O termo "devoluta" relaciona-se ao conceito de terra devolvida.
82
por pequenos posseiros de origens variadas (caboclos, caiçaras, negros,
migrantes e imigrantes).
O rigor imposto pelo Estado aos pequenos posseiros que foram
desalojados daquelas terras que já ocupavam há anos, em uma espécie de
“grilagem oficial”, não foi aplicado com a mesma intensidade aos grandes
produtores de bananas que começaram a adquirir as supostas terras
discriminadas, e se instalarem na região (CARVALHO, 2006, p. 12).
Com o suposto objetivo de povoar o Vale com pequenas
propriedades modernas, o resultado foi que as poucas condições para que
esses mantivessem a pequena propriedade aprofundou a concentração
fundiária, e acabou por instalar na região grandes propriedades inseridas
na monocultura de banana.
A partir da década de 1940 e 1950, como consequência da grande
aceitação da banana pelos trabalhadores da indústria paulista, seu baixo
custo e as demandas de outros países, como Argentina e Uruguai, a
produção de banana foi intensificada e ampliada (CARVALHO, 2006).
Mais tarde, a ideia de industrializar o Vale, e torná-lo atraente para
o capital privado, foi mais uma vez a opção das classes dirigentes para a
região. Assim, a partir da década de 1960, houve investimentos pesados
em obras de transporte, comunicação e energia, com a finalidade de atrair
setores voltados para o mercado externo.
Muller (1980) e Carvalho (2006) apontam que, simulta-neamente
à construção da BR 116 (rodovia Regis Bitencourt), entregue em 1961,
ocorreram diversos incentivos fiscais para a aquisição de terra na região,
intensificando o processo de especulação imobiliária e agravando ainda
mais os conflitos fundiários da região.
O processo de comercialização das terras devolutas, e a especulação
fundiária durante a segunda metade do século XX no litoral e no Vale do
83
Ribeira, funcionaram como mecanismo de incorporar terras sem
aproveitá-las e sem pov-las, assumindo uma configuração aos moldes
primitivos de como as terras são inseridas na lei do valor (MULLER,
1980).
Carvalho (2006, p. 13) destaca que, apesar das obras e convênios
que foram realizados para atrair e potencializar a industrialização do Vale,
grande parte do empresariado que se aproveitou do investimento público,
e da especulação, aplicou os lucros em outras regiões e, “com exceção da
banana e do chá, que já estavam implantados desde os anos trinta, nenhum
desses investimentos conseguiu de fato industrializar o Vale”.
Diegues (2007) ressalta que a construção da BR-116 e a
consequente valorização das terras, muitas das quais sem titulação válida,
novamente, gerou um grave problema de grilagem de terras que afetou
praticamente todos os municípios do Vale do Ribeira e do litoral,
ocasionando, em alguns casos, verdadeiros conflitos armados.
Tendo como referência as antigas comunidades negras rurais que,
de longa data, ocupam a região, o Instituto Socioambiental (ISA) aponta
que outra iniciativa de regularização fundiária implementada por meio de
um convênio entre a Superintendência para o Desenvolvimento do Litoral
Paulista (Sudelpa) e a Procuradoria do Patrimônio Imobiliário, na década
de 1970, além de não contribui para sanar os conflitos, gerou problemas
futuros para as comunidades. Não considerando a ocupação coletiva do
território pelas comunidades negras, o convênio definiu que as terras
fossem loteadas em propriedades individuais. Esse procedimento acarretou
que algumas famílias vendessem seu lote para terceiros, agravando os
conflitos e gerando sérios problemas internos para a organização das
comunidades.
84
Junto a isso, faz-se necessário destacar, antes de finalizar essa seção
sobre os ciclos econômicos e a ocupação do Vale do Ribeira, o processo de
delimitação de áreas de proteção, e a criação das várias UCs que pipocaram
na segunda metade do século passado.
Mais pela necessidade de obter um controle mais efetivo desse
vasto e rico território, que abrigou a guerrilha comandada por Carlos
Lamarca, no final da década de 1960, do que por uma consciência
ambiental e necessidade de preservação da Mata Atlântica, as áreas de
controle foram ampliadas no período supracitado.
Em 1958, foi criado o Parque Estadual do Alto Ribeira (PETAR)
abrangendo os municípios de Apiaí e Iporanga; em 1962, cria-se o Parque
Estadual da Ilha do Cardoso em Cananéia; em 1969, o Parque Estadual
do Jacupiranga (PEJ), cobrindo parte dos municípios de Barra do Turvo,
Cajati, Cananéia, Eldorado, Jacupiranga e Iporanga; e, em 1977, o Parque
Estadual Carlos Botelho foi criado, abrangendo os municípios de Sete
Barras, Tapiraí, São Miguel Arcanjo e Capão Bonito.
Diegues (1994), por meio de um estudo em 67 unidades de
conservação no Espírito Santo, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo,
demonstra, e Carvalho (2006) reafirma, que 73% das áreas naturais
pesquisadas têm em seu interior populações tradicionais (caiçaras,
extrativistas, índios, quilombolas), e não tradicionais (comerciantes,
empresários, fazendeiros, servidores públicos, veranistas) residentes. Dessa
forma, podemos supor que também o processo que implantou as Unidades
de Conservação não levou em consideração que parte dessas áreas já eram
ocupadas por diferentes populações tradicionais (quilombolas, caiçaras,
ribeirinhos), contribuindo para conflitos de sobreposição e de interesse não
resolvidos até os dias atuais.
85
Marcada por um processo histórico de desapropriação realizado,
muitas vezes, de forma violenta, através de jagunços que ameaçavam e
expulsavam os moradores, mas, também, pelo o uso de artifícios legais,
algumas comunidades encontram-se, hoje, em situação irregular nas
encostas das serras, em áreas de restinga e mangue, consideradas áreas de
proteção permanente (APPs).
2.2 As Comunidades Remanescentes de Quilombos
do Vale do Ribeira (CRQVR)
Abrangendo os estados de São Paulo e Paraná, o Vale do Ribeira
recebe esse nome em função da bacia hidrográfica do Rio Ribeira de
Iguape, que nasce dentro do Parque Nacional dos Campos Gerais, no
Paraná, e desemboca no Oceano Atlântico em Barra Ribeira, no município
de Iguape, litoral sul de São Paulo.
Percorrendo uma extensão de aproximadamente 470 km, dos quais
90 km são de divisa entre os dois estados, 130 km são em terras
paranaenses, e 250 km em território paulista. A bacia hidrográfica do rio
Ribeira abrange sete municípios no lado paranaense, e vinte e três na sua
porção paulista.
Parte do complexo Estuário Lagunar de Iguape, Cananeia e
Paranaguá, o Vale do Ribeira, além de abrigar a maior e uma das principais
áreas de preservação de remanescentes do bioma original da Mata
Atlântica, possui uma grande diversidade ecológica e sociocultural.
Tratando a diversidade sociocultural do Vale do Ribeira e do
litoral, Diegues (2007, p. 4) aponta que, na região:
86
[...] encontra-se povos indígenas como os Guaranis, os caiçaras,
descendentes dos índios, sobretudo dos Carijós, colonizadores
portugueses e escravos negros, caipiras, no Alto e Médio Ribeira, além
de inúmeros núcleos quilombolas, remanescentes da mão-de-obra
escrava usada nas monoculturas e na mineração e de caipiras,
existentes, sobretudo no Médio e Alto Ribeira. A esses grupos humanos
vieram se ajuntar, mais tarde, outros migrantes europeus como suíços,
franceses, alemães, italianos, também norte-americanos e japoneses.
A região, em sua porção paulista, foco desta pesquisa, ocupa 10%
da área do estado e é dividida em três sub-regiões: alto Ribeira - nos
municípios de Iporanga, Apiaí e Ribeira; a baixada do Ribeira - nos
municípios de Eldorado, Jacupiranga, Pariquera-u, Registro e Sete
Barras; e a sublitorânea - envolvendo os municípios de Iguape e Cananeia.
Na região do Vale do Ribeira, mais especificamente entre os
municípios de Iporanga no alto Ribeira, e ao longo do percurso do rio até
Iguape no baixo Ribeira, encontra-se o maior número de Comunidades
Remanescentes de Quilombos (CRQ) do estado de São Paulo, e uma das
maiores do Brasil.
Segundo Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira de
2013, entre territórios Apontados, Identificados, Reconhecidos,
Registrados ou Titulados são mais de 60 CRQ na região.
Muitas dúvidas podem ser levantadas sobre como e por que essas
CRQ foram se concentrar na região. Como se deu o processo de
autorreconhecimento? Quais são suas origens? Qual sua estrutura
organizacional? Quais são suas bases socioprodutivas?
Além das dúvidas mais gerais, que sempre estiveram muito
presentes durante todo o processo de levantamento histórico, a
problemática sobre as CRQVR se aprofunda na questão do processo
87
inserido no recorte histórico que se inicia nos anos 1980, com a
reorganização das lutas sociais e o processo de redemocratização.
Surgindo como novos sujeitos de direito com a CF de 1988, como
essas comunidades tomaram consciência do direito adquirido? Como se
deu a auto-organização da luta para o autorreconhecimento dos seus
territórios? Quais foram as articulações e parcerias que fortaleceram o
fenômeno naquela região?
Além de importante pesquisa bibliográfica e histórica sobre o tema
e o Vale do Ribeira, utilizou-se também a pesquisa empírica e observação
nas CRQ na cidade de Eldorado, e entrevistas semiestruturadas com
representantes das comunidades e das entidades públicas e privadas
atuantes na região.
2.3 A saga de um povo
14
Como tentamos apresentar na seção sobre os ciclos econômicos do
Vale do Ribeira, desde o século XVI, constata-se a presença de escravos
negros nas expedições que adentraram o interior de São Paulo. Carvalho
(2006) e Carril (1995) salientam que não era incomum a utilização de mão
de obra escrava indígena e negra na mineração e no cultivo de arroz.
Também não foi incomum a organização das populações indígenas
originais contra a escravidão. Desde muito cedo, as populações indígenas
refugiaram-se em meio à mata, em movimento de resistência e autonomia,
para não serem escravizados.
14
Inspirado no título do livro MOAB: A saga de um povo de Maria Ap. Mendes Pinto de 2014.
88
Após o início da colonização portuguesa, a região ao longo do rio
Pardo, de acesso extremamente difícil, constituiu-se em área de refúgio
para as populações indígenas originais e também para os indígenas
fugitivos que chegavam de Cananéia e da Ilha do Cardoso. Depois
disso, a constituição geográfica do Vale do Ribeira, com áreas
protegidas pelas serras e inúmeros rios de navegação perigosa,
continuou atraindo para a região populações indígenas perseguidas
pelo bandeirantismo escravagista (CARVALHO, 2006, p. 17).
Junto às populações indígenas que adentram a mata em busca de
refúgio contra o bandeirantismo escravagista, os escravos negros inseridos
a partir do bandeirismo da mineração, libertos e/ou fugidos seguem rota
similar e também vão se abrigar em meio às serras e matas ao longo da
bacia do rio Ribeira de Iguape e seus afluentes (CARVALHO, 2006).
Com o decorrer dos anos e o aperfeiçoamento das condições de
transporte e comunicação, bem como a busca por terras disponíveis,
pequenos produtores e fazendeiros não submetidos às relações escravistas,
e inseridos em um ciclo rizicultor mais amplo, também ocuparam a região
(CARVALHO, 2006).
Carril (1995) e Carvalho (2006) apontam que a origem dos
diversos bairros negros presentes na região, de difícil acesso e de
inconstância econômica, deu-se pela fixação do escravo em fuga e pela
libertação ou abandono após a decadência da mineração e do arroz.
Esses grupos fixados em terras apossadas mato adentro eram, conforme
se pode perceber nos memoriais descritivos de terras realizados na
década de 1850, reconhecidos e respeitados por seus vizinhos brancos
porque forneciam produtos para as fazendas, além de serem
“participantes de um circuito que enriquecia comerciantes locais,
reserva de mão-de-obra em períodos de safra e também como
89
detentores de um saber sobre as técnicas de navegação dos perigosos
rios, principal via de comunicação regional” (STUCCHI, 2000 apud
CARVALHO, 2006, p. 18).
Diante disso, observa-se, que apesar de a região ser utilizada como
refúgio pelos negros que fugiam da escravidão, eles não viviam isolados; ao
contrário, estavam inseridos em uma ampla rede de relações econômicas e
sociais que beneficiava determinados setores presentes na região e a
economia da Colônia, do Império e do Estado Nacional (CARVALHO,
2006).
Vivendo em meio à mata, as margens do rio Ribeira e de seus
afluentes, os bairros negros que surgiram e se estruturaram no Vale vão
resistir, ao longo das décadas, às diversas pressões de fazendeiros e empresas
que eram atraídos por incentivos fiscais e projetos para capitalizar e
modernizar o Vale. Vivendo em situação de conflitos fundiários e
resistência ao longo de sua ocupação no Vale, a permanência das
comunidades negras do Vale foi novamente ameaçada pelo projeto da
Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), para a construção da barragem
de Tijuco Alto.
Já sendo objeto de estudos para projetos de construção de barragem
desde a década de 1970, além do projeto de Tijuco Alto, a previsão era
para a construção de quatro barragens entre os municípios de Adrianópolis
(alto Ribeira), no Paraná, e Eldorado (médio Ribeira), em São Paulo.
Esses projetos ameaçavam alagar uma grande área e afetar toda a
região. Com a ameaça de inundação e, consequentemente, de serem
expulsas de suas terras, as comunidades ribeirinhas e negras rurais que
viviam ao longo da bacia do rio Ribeira começaram a se mobilizar e se
organizar para lutar contra o projeto das barragens.
90
Constata-se por meio da pesquisa bibliográfica e empírica, que a
organização das comunidades ribeirinhas e negras rurais, que se colocaram
em luta pela defesa de seu território no final da década de 1980, deu-se
menos pela consciência de que eram remanescentes de quilombos e do
direito à propriedade das terras que ocupavam, e mais pela necessidade de
barrar os projetos de barragem.
Maria Sueli Bernanga, que trabalha com as comunidades do Vale
desde 1986, relata que, antes, as comunidades não eram chamadas de
quilombos. Foi com o decorrer do processo de auto-organização e
mobilização contra o projeto das barragens que outras questões começaram
a surgir, inclusive a questão da aprovação do Artigo 68 do ADTC
15
.
Em um primeiro momento, não se tinha a consciência de que
aquelas comunidades negras rurais fossem remanescentes de quilombos. A
aprovação do Artigo 68 do ADCT de 1988 era bastante recente e, quando
se tomou conhecimento de sua existência, ele foi entendido como uma
ferramenta a mais na luta contra as barragens
16
.
Foi com a caminhada e com as discussões que diversos temas foram
surgindo, inclusive da identidade e do território, de tal forma que se foi
tomando consciência de que o direito aos territórios que estavam
ocupando não era só uma ferramenta de luta contra projetos econômicos
contrários às comunidades, mas primordial para sua existência.
Diante disso, faz-se necessário apresentar, de forma mais detalhada,
um pouco do processo e da história de auto-organização e luta do
Movimento dos Ameaçados por Barragens no Vale do Ribeira (MOAB) e
15
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
16
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
91
sua função como polo aglutinador da luta das Comunidades
Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira (CRQVR).
2.3.1 Movimento dos Ameaçados por Barragens no Vale do Ribeira
(MOAB)
Mais importante do que apresentar os atores particulares que atuam
no processo de formação do MOAB, que não são poucos, devido ao seu
caráter popular, parece-nos mais importante compreender, assim como
propôs Gramsci (2001), as razões de sua difusão e de seu ser coletivo.
Em 1986, a Congregação das Irmãs de Jesus Bom Pastor, as
“Pastorinhas”, iniciaram um trabalho pastoral da Igreja Católica na cidade
de Eldorado. A partir de visitas periódicas às comunidades rurais, inicia-se
um processo de estudos “bíblicos” fazendo relação com os problemas da
época (PINTO, 2014, p. 08). O trabalho das “Pastorinhas” inicia-se no
mesmo ano em que a CBA apresenta o projeto de Tijuco Alto. Diante
disso, a incerteza sobre suas vidas com a construção de barragens ao longo
do Ribeira é um dos problemas mais agravantes, que apareceu de forma
generalizada sobre todas as comunidades.
Não tendo muito conhecimento sobre os impactos reais que as
barragens poderiam causar, surgiu a necessidade de organizarem-se para
estudar e buscar informações sobre os possíveis impactos que as barragens
poderiam causar às comunidades rurais do Vale do Ribeira (PINTO,
2014).
Empenhados em entender melhor a situação, os quilombolas
formaram grupos de estudos e de busca de informação. Esse processo
92
envolveu visitas em outras regiões
17
e diálogo com populações atingidas
por barragens, bem como um profundo estudo das leis e de artigos sobre
barragens, conversas com técnicos e com especialistas (PINTO, 2014).
Em meio a esse processo de estudos e busca de informações,
começaram a entender que, em benefício de grupos financeiros, a fauna e
a flora de um grande território da região do Vale do Ribeiro e da Mata
Atlântica seriam submersas, incluindo suas terras e suas origens.
Como nos descreve Pinto (2014, p. 09):
Em suas comunidades os grupos informaram a todos o que viram e o
que sabem sobre barragens e chegaram à conclusão que os projetos das
barragens iriam trazer desgraça, ti-los da terra, acabar com suas
origens, matar suas raízes, destruir o rio, a fauna, a flora e as
comunidades.
Tomando consciência da necessidade de organizar e lutar contra os
projetos de barragens e o interesse dos grupos financeiros, organiza-se, em
1989, a primeira mobilização contra as barragens. De forma coletiva e
unificada, as comunidades empunharam a bandeira de que não queriam
barragens no Vale do Ribeira (PINTO, 2014).
Dispostos a barrarem os projetos de barragem, viram a necessidade
de ampliar o diálogo e as forças com as comunidades de outros municípios
da região. No ano seguinte, em 1990, organizaram a primeira Comissão
para fazer a articulação nos diferentes municípios e comunidades do Vale.
Através dessa ação, comunidades de outros municípios, como Iporanga e
Registro, compreenderam a problemática e uniram-se às mobilizações;
17
Pinto (2014) aponta que foram realizadas visitas em áreas atingidas pela Usina de Hidrelétrica de
Urubupungá, em Porto Primavera, Itaparica, Machado e Itá.
93
várias entidades da região também passaram a integrar as ações no
movimento de luta contra a construção de barragens ao longo do rio
Ribeira de Iguape.
Sentindo a necessidade de dar mais organicidade à luta contra os
projetos de barragens, as comunidades do Vale, em um encontro realizado
no dia 21 de abril de 1991, com representantes da Comissão Pastoral da
Terra (CPT) de Registro, criaram oficialmente o Movimento dos
Ameaçados por Barragens no Vale do Ribeira (MOAB) (PINTO, 2014).
Assumindo o nome sugerido por Janio Leal da Silva, assessor da
CPT Diocesana, o MOAB
18
foi composto principalmente pelas
comunidades negras rurais, mas, também, por integrantes da Igreja
Católica, sindicatos e ambientalistas (ANDRADE; TATTO, 2013, p. 13).
Formado diante da ameaça de serem desalojados pela construção
de um conjunto de barragens (Tijuco Alto, Funil, Batatal e Itaóca) no rio
Ribeira, o MOAB foi criado com o objetivo de conscientizar, capacitar,
organizar e informar a população do Vale do Ribeira sobre os projetos de
barragens.
Segundo representante do MOAB, desde o início, ele vem
realizando as seguintes atividades:
Promover encontros de formação com o objetivo de informar e
capacitar lideranças e a população em geral em relação aos projetos de
construção de barragens no rio Ribeira de Iguape.
Promover a troca de experiências com os atingidos por barragens
de outras regiões do Brasil.
18
Leia mais em: https://eaacone.webnode.com.br/moab/. Acesso em: 20 ago. 2019.
94
Buscar parcerias com Entidades, Grupos, Universidades,
Políticos... na luta por "Terra Sim! Barragem Não!".
Produzir e divulgar materiais que conscientizem a população do
Vale sobre os problemas causados com a construção de barragens em
outras regiões do país.
Estudar a política energética do Brasil.
Divulgar as alternativas de geração de energia.
No processo de luta que se iniciou contra as barragens, nos estudos
e conversas sobre os impactos da barragem e na consolidação organizativa
do MOAB, as comunidades à margem do Ribeira tiveram conhecimento
de que, na nova Constituição Federal, aprovada em 1988, havia um artigo
que poderia contribuir com a luta contra as barragens.
A advogada Dra. Michael Mary Nolan, através de uma amizade
estabelecida com as Irmãs Pastorinhas, tendo conhecimento do confronto
entre comunidades do Ribeira e o projeto de barragens, chamou a atenção
das Irmãs sobre o Artigo 68 da nova Constituição Federal, que outorgava
o direito à posse da terra às CRQ que as estivessem ocupando (PINTO,
2014).
Ligado a transformações mais amplas e elemento desconhecido das
comunidades negras rurais da região e das próprias Irmãs, de imediato, o
conhecimento sobre Artigo 68 da ADCT foi visto como uma ferramenta
a mais para tentar barrar o projeto das barragens.
Destaca-se que as comunidades não eram chamadas e/ou
reconhecidas como remanescentes de quilombolas até aquele momento; as
comunidades eram denominadas bairros rurais, denominação que é
95
utilizada até os dias atuais por diversos moradores dos quilombos quando
estão contando histórias da comunidade.
Com as informações obtidas através da amizade entre a advogada
Dra. Michael Mary Nolan e as Irmãs Pastorinhas, iniciou-se, junto aos
bairros que estavam ameaçados pelas barragens, um processo intenso de
estudos sobre a nova CF de 1988, com destaque ao Artigo 68 do ADCT,
e dos artigos 215 e 216 da CF.
Avançando com os estudos, umas das particularidades que logo
chamou a atenção dos envolvidos foi o fato de a maioria da população dos
bairros ser constituída por pessoas negras. Ciente da importância dessa
particularidade, em maio de 1992, é organizado, na comunidade de
Ivaporunduva, no município de Eldorado, um encontro reunindo as
comunidades negras da região com o objetivo de estudar a história do
negro no Brasil (PINTO, 2014).
No mesmo ano, também na cidade de Eldorado, as mulheres dos
bairros foram protagonistas e organizaram o primeiro Encontro de
Mulheres do município. Defendendo a bandeira “Terra sim! Barragem
não!”, além de reivindicações por melhores condições de infraestrutura,
saúde e educação, a questão da identidade e do território também vão
permear os debates do Encontro.
Nesse processo intenso de estudos, de debates e de resgate de suas
origens históricas, aquelas pessoas, em sua maioria, negras, moradoras de
bairros de difícil acesso em meio à Mata Atlântica, foram criando
consciência de os territórios que ocupavam eram remanescentes de
quilombos (PINTO, 2014).
Tomando consciência de que “os bairros” formados por famílias
negras eram territórios remanescentes de quilombos, foi se
compreendendo também que a aprovação do Artigo 68 e o direito à posse
96
da terra não era só uma ferramenta de luta para conter os projetos das
barragens, mas, primordial para existência e reprodução daquelas
famílias
19
.
Diante desse entendimento, compreendeu-se que a estratégia não
era necessariamente contra o projeto das barragens, apesar da consciência
da luta permanente contra projetos do tipo até os dias atuais, mas, o
fundamental era a conquista e a defesa do território reconhecido pela
Constituição.
A partir disso, três novas diretrizes apareceram como fundamentais
nas ações e objetivos do MOAB: a) Lutar pelo reconhecimento,
demarcação, titulação e registro das terras dos Remanescentes de
Quilombos; b) Fortalecer a organização das Comunidades Tradicionais do
Vale do Ribeira, em defesa de suas terras e contra os projetos de construção
de barragens; e c) Discutir e buscar projetos de desenvolvimento para as
comunidades em parceria com outras entidades.
Contudo, aquelas comunidades negras rurais, que há séculos
viviam em meio à floresta, com identidade e auto-organização próprias,
também começaram a ter lucidez de que, apesar do direito instituído, sua
normatização e aplicação efetiva por parte do Estado não caminhava com
a mesma intensidade.
Como já ressaltado anteriormente, quando se tratou de forma mais
ampla e generalizada dos processos de titularização das CRQ, muitos
foram os limites administrativos, jurídicos e políticos para aplicabilidade
da lei, bem como certa falta de vontade e lentidão de ação por parte do
Estado.
19
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
97
Em meio ao processo, sentiu-se a necessidade de criar uma
entidade jurídica que, além de comportar as demandas do MOAB, atuaria
principalmente no processo de formação política e de luta pelo
reconhecimento e titularização dos territórios remanescentes de
quilombos. Dessa necessidade, surgiu a Equipe de Articulação e Assessoria
às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE).
2.3.2 Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do
Vale do Ribeira (EAACONE)
Segundo Pinto (2014), a EAACONE surgiu no primeiro Encontro
Anual das Comunidades Negras, realizado em Registro, entre os dias 4 e 5
de novembro de 1995. Constitui-se como entidade jurídica sem fins
lucrativos, com o objetivo de assessorar as comunidades do Vale do Ribeira
na busca pelo cumprimento do Artigo 68 do ADCT.
Atuando particularmente no Vale do Ribeira, a EAACONE
assessora as comunidades na recuperação de sua história, de seus valores
culturais, na autoidentificação, no encaminhamento das documentações
aos órgãos públicos pedindo o reconhecimento e a titulação coletiva de
suas terras, na formação das Associações que iriam gerir o território
quilombola, e por políticas públicas que venham melhorar a vida das
comunidades quilombolas da região
20
.
Segundo Bernanga (2018), a EAACONE é fruto da auto-
organização das próprias comunidades. Sua função é incentivar a formação
política e fomentar junto a elas o seu direito, “levantar a história de cada
20
Nos municípios de Barra do Turvo, Iporanga, Eldorado, Iguape, Cananéia, Miracatu, Registro e
Itaóca. Leia mais em: https://eaacone.webnode.com.br/eaacone/. Acesso em: 20 ago. 2019.
98
comunidade, valorizar essa história e conscientizar a importância dessa
identidade populacional”
21
.
Diante desse cenário de luta que envolve a organização do MOAB
e da EAACONE, as comunidades fizeram a luta pelo autorreconhecimento
e pela titulação de seus territórios. Com poucos recursos próprios, a partir
de um projeto aprovado junto à Cáritas
22
, foi possível, no início dos anos
de 1990, que fosse contratado um topógrafo que iniciou, junto às
comunidades, pesquisas para realizar a medição e a demarcação dos
territórios.
As Comunidades de Ivopurunduva, São Pedro e Praia Grande
23
,
tomando a dianteira do processo em um exercício de autodemarcação,
através de mutirões, vão abrindo picada em meio à mata, mostrando ao
topógrafo contratado os limites de seus territórios
24
.
Junto a isso, contratou-se, também, a assessoria de um etnólogo
que contribuiu na elaboração de um laudo de Ivaporunduva, São Pedro e
Praia Grande. A partir do laudo, os moradores de Ivaporunduva deram
entrada em uma ação judicial junto ao Ministério Público Federal (MPF)
requerendo a titulação de seu território como remanescente de quilombos
(PINTO, 2014).
Tendo como referência o Quilombo de Ivaporunduva,
considerado o que mais avançou naquele processo, destaca-se o processo
21
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
22
“Em defesa de 2 mil famílias ameaçadas de perderem suas terras e de outras 100 mil pessoas que
sofreram consequências pela construção de hidrelétricas no Vale do Ribeira São Paulo Brasil”
Projeto enviado à Cáritas Regional de São Paulo que pede apoio da Cáritas Francesa. (PINTO,
2014, p. 13).
23
O livro sob o MOAB de Pinto (2014) aborda também a Comunidade de Pilões, em Iporanga.
24
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
99
da autodemarcação dos territórios, pois, ao entrar com a ação no MPF em
1994, o Estado Brasileiro ainda não tinha estabelecido os mecanismos
necessários para a aplicação do Artigo 68.
Outros processos similares ao caso do Quilombo de Ivaporunduva
já se manifestavam em outras Unidades da Federação, como, por exemplo,
o caso da Comunidade Remanescente de Quilombos Rio das Rãs, na
Bahia, e a titulação executada pelo INCRA em nome da Associação das
Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná
(ARQMO), no estado do Pará.
O caso da ARQMO e da titulação coletiva do território serviu de
exemplo a ser adotado pelas demais comunidades quilombolas que
iniciavam a luta pela propriedade das terras que ocupavam. As
comunidades do Vale, influenciadas pelo caso da ARQMO, também
formaram suas associações, e a EAACONE assumiu papel fundamental na
assessoria jurídica para encaminhar os processos das associações e da luta
jurídica pela posse da terra.
2.4 Caminhos e percalços na luta pelo território quilombola no Vale
Não foi o Estado compelido da obrigação de fazer cumprir a lei
que se fomentou a demarcação dos territórios quilombolas no Vale. Ao
contrário, foram as comunidades que, tomando consciência do processo e
se auto identificando como remanescentes de quilombolas, que avançaram
e autodemarcaram os limites do seu território.
Essas ações pressionaram o Estado, como observado no livro
organizado por Andrade (1997). O estado de São Paulo só empossou um
Grupo de Trabalho com o objetivo de fazer proposições visando à plena
100
aplicabilidade dos dispositivos constitucionais do Artigo 68 em 1996
25
, ou
seja, após a ação iniciada pelo Quilombo Ivaporunduva.
No mesmo livro, é reportado o inquérito civil aberto pelo
Ministério Público Federal. Observa-se a preocupação com áreas
requeridas como remanescentes de quilombos na região do Vale do
Ribeira, em particular aquelas que se encontram em áreas sobrepostas às
Unidades de Conservação (UCs), como no caso do Parque Estadual
Intervales e Parque Estadual do Jacupiranga (PEJ).
Como já apontado, a implantação das UCs no Vale do Ribeira, e
via de regra na maioria do território brasileiro, não considerou, ou
simplesmente ignorou as populações que já moravam no interior das áreas
demarcadas. Assim, as CRQVR, além de enfrentarem a ameaça das
barragens e a lentidão da aplicabilidade da lei, passam a enfrentar também
o dilema da sobreposição de seus territórios com as UCs.
Carvalho (2006, p. 20), com base em laudo elaborado pelo MPF,
destaca que, em 1995, representantes de Ivaporunduva e São Pedro
noticiaram a Procuradoria da República no Estado de São Paulo que os
limites do Parque Estadual Intervales “[…] recairiam sobre parte
significativa das terras ocupadas por, pelo menos, cinco comunidades:
além das duas citadas, ainda, Pedro Cubas, Pilões e Maria Rosa”.
Enquanto a equipe do Ministério Público Federal dava início à
pesquisa antropológica nos primeiros meses de 1997, o governo
estadual preparava o Decreto no 41.774, criando o Programa de
Cooperação Técnica e de Ação Conjunta entre a Procuradoria Geral
do Estado e as Secretarias da Justiça e da Defesa da Cidadania, do Meio
Ambiente, da Cultura, da Agricultura e Abastecimento, da Educação,
25
Posteriormente, em 1997, institui a Lei nº 9757, que dispõe sobre a legitimação de posse de terras
públicas estaduais aos Remanescentes de Quilombolas (ANDRADE, 1997, p. 159).
101
e do Governo e Gestão Estratégica. Esse programa, além de visar a
identificação e a regularização fundiária das terras devolutas ocupadas
pelos “remanescentes de comunidades de quilombos”, apresenta um
ambicioso projeto de inúmeras ações desenvolvimentistas nas áreas de
educação, cultura, meio ambiente, agricultura, extrativismo,
agropecuária, entre outras. A data escolhida para a publicação desse
decreto foi 13 de maio de 1997. Em 15 de setembro do mesmo ano,
foi publicada a Lei Estadual no 9.757, que dispõe sobre a legitimação
de posse de terras públicas estaduais aos remanescentes de
comunidades de quilombos, em atendimento ao artigo 68 do ADCT.
Em 1998, com base na pesquisa antropológica realizada pelo
Ministério Público Federal, o Itesp efetivou o reconhecimento dos
bairros de Pilões, Maria Rosa, São Pedro, Ivaporunduva e Pedro Cubas
(CARVALHO, 2006, p. 21).
Contudo, apesar do reconhecimento citado, ao observar o
andamento dos processos de titulação, constata-se que o avanço ou não do
processo foi dependente da sensibilidade dos governos em exercício, e do
grau de mobilização e de forças que as CRQ e movimentos sociais exerciam
na luta para fazer valer o direito conquistado.
Apesar das diretrizes políticas e do avanço na autoidentificação por
parte das CRQVR, assim como em outras regiões do território nacional,
várias complicações surgiram para atrasar, quando não barrar, o caminho
para o cumprimento efetivo da lei.
Rezende da Silva (2008) salienta que a histórica oposição dos
grandes proprietários latifundiários e representantes do grande capital,
bem como os diferentes domínios legais sobre a localidade das
comunidades, sendo que algumas são terras devolutas, outras estão em
domínio de empresas particulares e estatais, e outras tantas estão sob o
domínio de UCs, destacam-se entre as principais complicações.
102
Como já exposto no capítulo em que foram apresentados os ciclos
econômicos e os projetos para desenvolvimento e ocupação do Vale do
Ribeira, as ações estatais para o Vale, além de gerar surtos especulativos,
estabeleceu por quase toda a região UCs sem considerar as comunidades
que viviam naquelas florestas.
Herdeiros desse longo processo de marginalização e ocultamento,
com o processo de organização que se inicia com a luta contra as barragens
e avança para a conquista dos territórios após o direito outorgado com o
Artigo 68 da CF, os diferentes interesses sobre aqueles territórios começam
a se tornar mais evidentes para a aplicação da lei.
Com base em documentação elaborada pelo Instituto de Terras do
Estado de São Paulo (ITESP) em 2007, e reproduzida pelo ISA em 2008,
esboçamos, no Quadro 2, como estava a situação de cada comunidade em
relação ao reconhecimento e à titularização efetiva dos territórios
reivindicados como propriedade de remanescentes de quilombolas.
Quadro 2 – Situação das comunidades quilombolas do Estado de São Paulo com
relação ao processo de reconhecimento e titulação de suas terras até 2007
Comunidades
Municípi
os
Área total
(ha)
Área devoluta
(ha)
Área
particular
(ha)
Ano de
Reconhecimen
to
1
Ivaporunduva
Eldorado
2.754,36
672,28
2.082,07
1998 **
2
Maria Rosa
Iporanga
3.375,66
3.375,66
0
1998 *
3
Pedro Cubas
Eldorado
3.806,23
2.449,39
1.356,84
1998***
4
Pilões
Iporanga
6.222,30
5.925,99
296,31
1998 *
5
São Pedro
Eldorado/
Iporanga
4.688,26
4.558,20
130,07
1998 *
6
Cafundó
Salto de
Pira
209,64
Sem
informação
Sem
informação
1999
7
Caçandoca
Ubatuba
890,00
Sem
informação
Sem
informação
2000
103
8
Jaó
Itapeva
165,77
Sem
informação
Sem
informação
2000
9
André Lopes
Eldorado
3.200,16
3.049,20
76,14
2001
1
0
Nhunguara
Eldorado/
Iporanga
8.100,98
8.100,98
0
2001
1
1
Sapatu
Eldorado
3.711,62
1.584,06
2.127,56
2001
1
2
Galvão
Eldorado/
Iporanga
2.234,34
1.942,83
291,5
2001 ****
1
3
Mandira
Cananéia
2.054,65
Discriminató
ria
Discriminató
ria
2002
1
4
Praia Grande
Iporanga
1.584,83
416,68
1.104,26
2002
1
5
Porto Velho
Iporanga
941,00
Sem
informação
941
2003
1
6
Pedro Cubas de
Cima
Eldorado
6.875,22
3.074,97
3.800,24
2003
1
7
Capivari
Capivari
6,93
Sem
informação
Sem
informação
2004
1
8
Brotas
Itatiba
12,48
Sem
informação
Sem
informação
2004
1
9
Cangume
Itaóca
724,60 0
724,60
0
2004
2
0
Camburi
Ubatuba
972,36
Sem
informação
Sem
informação
2005
2
1
Morro Seco
Iguape
164,69
Sem
informação
Sem
informação
2006
2
2
Biguazinho
Miracatu
790,00
-
-
EFR
2
3
Bombas
Iporanga
1.200,00ª
-
-
EFR
2
4
Poça
Eldorado
1.126,14ª
-
-
EFR
2
5
RibeirãoGrande/Te
rra Seca
Barra do
Turvo
3.471,04ª
-
-
EFR
2
6
Fazenda da Caixa
Ubatuba
-
-
-
EFR
2
7
Fazendinha Pilar
Pilar do
Sul
-
-
-
EFR
2
8
Reginaldo
Barra do
Turvo
-
-
-
EFR
2
9
Cedro
Barra do
Turvo
-
-
-
EFR
104
3
0
Pedra Preta
Barra do
Turvo
-
-
-
EFR
3
1
Cazanga (Sertão de
Itamambuca)
Ubatuba
-
-
-
EFR
3
2
Batatal
Eldorado
-
-
-
TRS
Fonte: ITESP - Instituto de Terras do Estado de São Paulo / Assistência Especial de
Quilombos - ano 2007
26
(SANTOS; TATTO, 2008, p. 14).
Como é possível observar no Quadro 2, em 2007, o ITESP
registrou a existência de 32 CRQ no Estado de São Paulo, sendo 28
localizadas na região do Vale do Ribeira, com destaque aos municípios de
Eldorado e Iporanga com respectivamente dez (10) e oito (8)
comunidades, quatro (4) em Ubatuba, uma (1) em Capivari região de
Campinas, uma (1) em Salto de Pira região de Sorocaba e uma (1) em
Itapeva. Também com relação aos dados contidos no quadro, apesar da
falta de informação clara sobre a discriminação dos territórios de um
número considerável de comunidades, constata-se que grande porção deles
encontravam-se na mão de particulares ou do Estado.
Nesse sentido, observa-se, também, a complexidade, bem como a
lentidão do processo no que tange à titulação do território, sendo que, dos
trinta e dois (32) quilombos levantados pelo ITESP em 2007, apenas seis
se encontravam em processo de homologação da posse do território.
Anos mais tarde, no Inventário Cultura de Quilombos do Vale do
Ribeira elaborado pelo ISA em 2013, entre aqueles Apontados,
26
(*) Terras devolutas tituladas em 15/01/01; (**) Terras devolutas tituladas em 12/09/03; (***)
Terras tituladas em 20/03/03; (****) Terras tituladas em 2007. (ª) Área estimada. EFR = Em Fase
de Reconhecimento (Trabalhos do Itesp em andamento). TRS = Trabalhos de Reconhecimento
Suspensos em 2007.
105
Identificados, Reconhecidos, Registrados ou Titulados
27
, há um aumento
considerável do número de quilombos, identificando-se a existência de 66
CRQVR, como se pode ver no quadro abaixo.
Quadro 3 - Situação Jurídica dos quilombos de São Paulo
Quilombos
Munícipio
Sit. Atual
Quilombos
Munícipio
Sit. Atual
1
Abobral
Margem
Direita
Eldorado
Apontado
34
Taquari/Santa
Maria
Cananéia
Identificado
2
Biguá Preto
Miracatu
Apontado
35
Varadouro
Cananéia
Identificado
3
Caiacanga
Registro
Apontado
36
Poço Grande
Iporanga
Identificado
4
Capitão Brás
Cajati
Apontado
37
Bairro do
Engenho
Eldorado
Identificado
5
Cascalheiras
Eldorado
Apontado
38
Boa Esperança
Eldorado
Identificado
6
Coveiro
Iguape
Apontado
39
Jurumirim
Iporanga
Identificado
7
Desiderio
Iporanga
Apontado
40
Retiro Ex
Colônia Velha
Cananéia
Identificado
8
Fau
Miracatu
Apontado
41
Bairro da
Aldeia
Iguape
Identificado
9
Ilhas
Barra do
Turvo
Apontado
42
Biguazinho
Miracatu
Identificado
10
Itapitangui
Cananeia
Apontado
43
Abobral
Margem Esq.
Eldorado
Identificado
11
Itatins
Eldorado
Apontado
44
Bombas
Iporanga
Identificado
12
Lençol
Jacupiranga
Apontado
45
Piririca
Iporanga
Identificado
13
Mandira
Cajati
Apontado
46
André Lopes
Eldorado
Reconhecido
27
Apontado: Primeira sinalização de existência do Território Quilombola, ainda sem nenhum ato
normativo jurídico vinculado, considerando apontamento feito pelo Estado ou Movimento Social.
Identificado: Primeiro ato normativo referente à existência e regularização do Território
Quilombola, considerando abertura dos processos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra), no órgão estadual competente (Ex: Itesp) e/ou a Certidão da Fundação Cultural
Palmares. Reconhecido: Reconhecimento do Território como Remanescente de Quilombo,
considerando a Portaria de Reconhecimento do Incra ou o Relatório Técnico Científico (RTC) no
caso do Itesp. Titulado Integralmente: Outorga do título de domínio referente a toda da área do
território. Considerando título do Incra para áreas particulares e/ou órgão estadual para áreas
devolutas. Titulado Parcialmente: Outorga do título de domínio referente a parcela da área do
território, considerando título do Incra para áreas particulares e/ou órgão estadual para áreas
devolutas. Registro Parcial: Registro em Cartório do título de domínio referente a parcela da área
do território. Registro Integral: Registro em Cartório do título de domínio referente a toda da área
do território (ANDRADE; TATTO, 2013, p. 14).
Continua
106
14
Manoel
Gomes
Cajati
Apontado
47
Cangume
Itaóca
Reconhecido
15
Morro
Grande
Cajati
Apontado
48
Cedro
Barra do
Turvo
Reconhecido
16
Padre Andre
I
Jacupiranga
Apontado
49
Mandira
Canáneia
Reconhecido
17
Padre Andre
II
Jacupiranga
Apontado
50
Nhunguara
Iporanga/
Eldorado
Reconhecido
18
Patrimônio
Iguape
Apontado
51
Pedra
Preta/Paraíso
Barra do
Turvo
Reconhecido
19
Pavoa
Iguape
Apontado
52
Pedro Cubas
de Cima
Eldorado
Reconhecido
20
Pontal
Cananéia
Apontado
53
Peropava
Registro
Reconhecido
21
Ribeirão
Iporanga
Apontado
54
Poça
Eldorado/
Jacupiranga
Reconhecido
22
Rio das
Minas
Iporanga
Apontado
55
Porto Velho
Iporanga
Reconhecido
23
Taquaruçu
Jacupiranga
Apontado
56
Praia Grande
Iporanga
Reconhecido
24
Vila Andréia
Cajati
Apontado
57
Reginaldo
Barra do
Turvo
Reconhecido
25
Anta Magra
Barra do
Chapéu
Apontado
58
Ribeirão
Grande/ Terra
Seca
Barra do
Turvo
Reconhecido
26
Bananal
Pequeno
Eldorado
Apontado
59
Sapatu
Eldorado
Reconhecido
27
Castelhanos
Iporanga
Apontado
60
Morro Seco
Iguape
Reconhecido
28
Momuna
Iguape
Apontado
61
Ivaporunduva
Eldorado
Registrado
Integralmente
29
Rio da
Cláudia
Iporanga
Apontado
62
Galvão
Iguape
Registrado
Parcialmente
30
Tocos
Barra do
Chapéu
Apontado
63
Maria Rosa
Iporanga
Titulado
Integralmente
31
Ariri
Cananéia
Identificado
64
Pedro Cubas
Eldorado
Titulado
Parcialmente
32
Porto
Cubatão
Cananéia
Identificado
65
Pilões
Iporanga
Titulado
Parcialmente
33
São Paulo
Bagre
Cananéia
Identificado
66
São Pedro
Eldorado/
Iporanga
Titulado
Parcialmente
Fonte: Andrade e Tatto (2013, p. 14).
107
Como é possível observar no Quadro 3, apenas o Quilombo de
Ivaporunduva, com a posse de seu território registrado integralmente, e o
Quilombo Maria Rosa, com a emissão do título integral de seu território,
possuíam certa estabilidade jurídica formal. Os demais, entre aqueles com
título parcial, e aqueles apontados para reconhecimento, sessenta e quatro
(64) não possuíam seu direito assegurado em 2013.
Constata-se que, apesar de certo avanço em algumas etapas, em sua
maioria, os processos não caminhavam de forma integral, como se observa
com o caso das Comunidades de São Pedro, Pilões, Pedro Cubas e Galvão,
que, apesar de o título ou registro ser de 1998, como já apontado no
Quadro 3, ainda em 2013 o processo não tinha sido concluído.
Vários são os dilemas enfrentados na luta pela posse jurídica dos
territórios que ocupam, contudo, entre as principais causas que
contribuem para a lentidão do processo, duas questões parecem ser
fundamentais, sendo a primeira o fato de várias comunidades terem seu
território sobreposto com UCs, problemática já noticiada em 1995 ao
MPF pela Comunidade de Ivaporunduva sobre o caso de Pedro Cubas,
Pilões e São Pedro, sem resolução até então.
Um segundo problema está ligado diretamente à especulação
imobiliária e à ocupação dos territórios por particulares, ou como dizem as
próprias comunidades, pelos terceiros, consequência das excludentes
propostas de governos que almejam industrializar o Vale a qualquer custo
na segunda metade do século passado, sem considerar as populações que
já ocupavam aquelas terras.
Além disso, várias outras problemáticas contribuem para que as
comunidades remanescentes de quilombos não tenham o seu direito
assegurado. Vale lembrar a Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI)
108
n° 3239 levada em 2003 ao Supremo Tribunal Federal pelo antigo PFL, e
com continuidade dada pelo DEM.
A ADI nº 3239 questionava a legalidade do Decreto nº 4887/03 e
defendia a aplicação do marco temporal, ou seja, só teriam direito ao título
de seu território as comunidades que estavam em sua posse no dia 5 de
outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Passando por diferentes embates no STF, a ADI nº 3239 só foi
rejeitada em julgamento que ocorreu em fevereiro de 2018, quando o STF
declara a constitucionalidade do Decreto nº 4887/03, e os quilombolas
venceram o embate de anos contra os ruralistas, a Confederação da
Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Confederação Nacional da
Indústria (CNI) que defendiam a irregularidade do Decreto.
No caso particular do Vale do Ribeira, além das questões
relacionadas à sobreposição de seus territórios com as UCs, bem como o
caso dos terceiros, as ameaças vindas a partir do projeto de construção de
Tijuco Alto seguiu até 2016.
A partir da concessão dada à CBA, em 1988, para a construção da
Usina Hidrelétrica no Rio Ribeira de Iguape, foram 25 anos de luta e
resistência numa adversa conjuntura em que até a FCP, instituição federal
que tem a obrigação de reconhecer oficialmente as CRQ, contrariando a
posição das comunidades, emitiu parecer favorável à construção da
Usina
28
.
28
Disponível em:
https://www.xapuri.info/meio-ambiente/sustentabilidade-meio-ambiente/valedoribeira-
hidreletrica-tijuco-alto/; https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-
socioambientais/populacao-do-vale-do -ribeira-esta-livre-de-tijuco-alto;
http://ceget.fct.unesp.br/assets/site/pdf/Laura_dos_Santos_Rougemont.pdf;
https://www.revistamissoes.org.br/2009/12/nao-as-barragens-no-ribeira-de-iguape/. Acesso em: 22
ago. 2019.
109
Foram muitas idas e vindas durante esses anos. Em 1999, o MPF
suspende a licença prévia de construção da Usina, considerando-o como
passível de licenciamento federal, ficando, a partir de 2003, o IBAMA
encarregado de realizar o licenciamento ambiental
29
.
Abrigando o maior remanescente de Mata Atlântica do Brasil, e
dono de indiscutível riqueza socioambiental, a partir da virada dos anos
2000, com o aumento da denominada consciência ambiental, várias outras
entidades compuseram a luta contra as barragens ao longo do rio Ribeira.
Além do MOAB, da EAACONE, do MAB e de representantes da
Igreja Católica que já faziam a resistência junto às comunidades desde o
início do processo, organizações não governamentais, como o ISA,
também compõem de forma consistente a luta ao lado das comunidades,
e contra as barragens.
Desde a virada do século, há um complexo processo que envolvia
desde Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto
Ambiental (RIMA) apresentado pela CBA, bem como audiências públicas
e manifestações das comunidades do Vale defendendo “Terra sim!
Barragem Não”, com destaque para a marcha de 10 km na BR 116 em
2006, e a ocupação do IBAMA em 2008 (PINTO, 2014).
Contudo, como já ressaltado anteriormente, a FCP, instituição
pública que era ligada ao extinto Ministério da Cultura, com competência
para emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em
cadastro geral, simplesmente ignora o grito das CRQ e apresentou, em
maio de 2013, parecer favorável à construção de Tijuco Alto.
29
Disponível em: http://www.mabnacional.org.br/noticia/guerra-no-vale-do-ribeira-contra-uma-
hidrel-trica. Acesso em: 22 ago. 2019.
110
O parecer apresentado pela FCP gerou revolta das CRQ. No
mesmo mês, reuniram-se em Registro com várias
30
entidades para
articularem a luta contra a construção da barragem e, além de repudiarem
a declaração, cobraram que a FCP mudasse sua declaração
31
.
Por outro lado, em 2014, o IBAMA negou o pedido da CBA que
tentava a renovação da concessão que se expirava em 2018 e, em agosto de
2016, o órgão reconhece que a região, além de muito sensível à presença
de CRQ, entende que:
[...] a construção, no bioma Mata Atlântica, estava planejada para uma
Área com Prioridade Extremamente Alta, de Importância Biológica
Alta, de Prioridade de Ação Extremamente Alta, com muitas Áreas de
Preservação Permanente (APPs) relevantes, e duas grutas, da Rocha e
da Mina, que seriam inundadas, demonstrando que o
empreendimento não se justifica do ponto de vista ambiental
32
.
Tal entendimento acaba por sepultar em definitivo a proposta de
construção de Tijuco Alto e representou uma vitória das CRQ que,
articulando-se com várias organizações, conseguiram, após quase trinta
anos, barrar o projeto e o alagamento de seus territórios, bem como da
fauna e da flora do Vale do Ribeira.
30
Estiveram presentes representantes do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), do
MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens), da APEOSP, do ISA, do SOS Mata Atlântica,
do Ponto de Cultura Caiçara de Cananeia, da Academia de Capoeira Angola IIê Axé, além de
professores, trabalhadores e estudantes da região.
31
Disponível em: http://www.mabnacional.org.br/noticia/comunidades-do-vale-do-ribeira-
cobram-mudan-posi-da-funda-palmares. Acesso em: 22 ago. 2019.
32
Disponível em:
https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/arquivos/ document.pdf.
Acesso em: 22 ago. 2019.
111
Contudo, como se pode observar na lentidão dos processos de
titulação da maioria das CRQ na região, bem como da ameaça vinda de
proposta de construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), e de
empreendimentos ligados à mineração ainda em análise pelo IBAMA,
apesar da vitória contra o projeto Tijuco Alto, a luta não terminou.
Além da morosidade no processo de emissão dos títulos e
transferência da posse às comunidades, vários outros dilemas podem ser
apontados como dificultosos para que essas comunidades possam ter sua
autonomia sobre seus territórios, dentro os quais, aponta-se a sobreposição
com UCs, a legislação ambiental e a criminalização das roças tradicionais.
Focando no caso das comunidades que compõem o Circuito
Quilombola de Turismo Comunitário do Vale do Ribeira (CQTVR), e, em
particular, as 6 comunidades que estão localizadas na região do médio
Ribeira entre Eldorado e Iporanga, destaca-se a problemática da
sobreposição dos territórios entorno do Mosaico do Jacupiranga
(MOJAC).
Criado por meio da Lei estadual nº 12.810/2008, o MOJAC foi
um esforço por parte do governo de São Paulo no sentido de tentar
reorganizar os limites do antigo Parque Estadual do Jacupiranga (PEJ),
criado por decreto estadual em 1969, com uma área de 150.000 ha,
sobreposta com vários territórios remanescentes de quilombos.
Com essa lei, o MOJAC passou a ter uma área total de 243.885,78
ha, subdividido em três parques: o Parque Estadual Caverna do Diabo,
envolvendo os municípios de Eldorado, Iporanga, Barra do Turvo e Cajati;
o Parque Estadual Rio Turvo, envolvendo os municípios de Barra do
Turvo, Cajati e Jacupiranga, e o Parque Estadual Lagamar de Cananéia,
envolvendo os municípios de Cananéia e Jacupiranga. Além dos parques,
o MOJAC reúne cinco Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS),
112
quatro Áreas de Proteção Ambiental (APA), duas Reservas Extrativistas
(RESEX) e duas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN).
Quadro 4 – Unidades de Conservação que compõem o Mosaico do Jacupiranga (SP)
Nome da UC
Município
Área (ha)
P. E. da Caverna do Diabo
Barra do Turvo, Eldorado,
Iporanga
40.219,66
P. E. do Rio Turvo Barra do Turvo
Barra do Turvo, Cajati,
Jacupiranga
73.893,87
P. E. do Lagamar de Cananéia
Cananéia, Jacupiranga
40.758,64
APA do Planalto do Turvo
Cajati, Barra do Turvo
2.721,87
APA do Rio Vermelho e Rio
Pardinho
Barra do Turvo
3.235,47
APA de Cajati
Cajati
2.975,71
APA Quilombo do Médio Ribeira
Eldorado, Iporanga
64.625,04
RDS Barreiro / Anhemas
Barra do Turvo
3.175,07
RDS Quilombos de Barra do Turvo
Barra do Turvo
5.826,46
RDS dos Pinheirinhos
Barra do Turvo
1.531,09
RDS de Lavras
Cajati
889,74
RDS Itapanhapima
Cananéia
1.242,70
RESEX Ilha do Tumba
Cananéia
1.128,26
RESEX de Taquari
Cananéia
1.662,20
Fonte: Moura et. al. (2011).
113
Imagem 1 – Mapa de Unidades de Conservação que compõem o Mosaico Jacupiranga
Fonte: Bim; Furlan (2013, p. 18).
Diante disso, a área dos territórios das Comunidades de
Ivaporundunva, São Pedro, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, André
Lopes e Sapatu foram definidos como Área de Proteção Ambiental (APA).
Com uma área de 64.625,04 (ha) a APA Quilombo corresponde a uma
114
categoria de Unidade de Uso Sustentável, segundo classificação dada pelo
Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).
Como unidade de conservação da categoria uso sustentável, a APA
permite a ocupação humana. Estas unidades existem para conciliar a
ordenada ocupação humana da área e o uso sustentável dos seus
recursos naturais. A ideia do desenvolvimento sustentável direciona
toda e qualquer atividade a ser realizada na área
33
Contudo, apesar do projeto propor um modelo de gestão
participativa entre as áreas que fazem parte do MOJAC, observa-se, com
base nas informações coletadas durante a pesquisa empírica, que tal
proposta não se aplica de fato, e que apesar dos territórios quilombolas
estarem numa categoria de APA, muitos gestores a consideram como área
de proteção integral, enrijecendo a fiscalização ambiental e dificultando a
permissão para as comunidades fazerem suas roças.
Maria Sueli Bernanga ressalta, por exemplo, as dificuldades para
conseguir a licença para fazer a roça, elemento da identidade cultural
daquelas comunidades. Destaca que os empecilhos para a emissão da
licença se trata do modus operandi autoritário do Estado que atua tentando
controlar o modo de vida dos quilombolas
34
.
33
A Área de Proteção Ambiental (APA) é uma extensa área natural destinada à proteção e
conservação dos atributos bióticos (fauna e flora), estéticos ou culturais ali existentes, importantes
para a qualidade de vida da população local e para a proteção dos ecossistemas regionais. O objetivo
principal de uma APA é a conservação de processos naturais e da biodiversidade, através da
orientação, do desenvolvimento e da adequação das várias atividades humanas às características
ambientais da área. Disponível em: https://uc.socioambiental.org/pt-br/noticia/152206 Acesso em
27 jan. 2020.
34
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
115
Raquel Pasinato (2018) também evidencia essa dificuldade de
entendimento entre os interesses estatais e os interesses das comunidades,
salientando um grau de preconceito e de falta de comprometimento dos
representantes estatais na implementação de uma gestão participativa e
eficiente para o MOJAC
35
.
Sobre o licenciamento para a realização das roças, Raquel Pasinato
(2018) diz que o processo é muito burocrático e moroso, que depende
muito do ITESP que é a entidade responsável pela assistência técnica e
pelo planejamento, que depois deve ser encaminhado para Companhia
Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), que é a entidade
responsável pela emissão da licença.
Nesse burocrático e moroso processo que envolve as licenças, as
comunidades particularmente do médio Ribeira, segundo Pasinato (2018),
passaram sete anos, entre 2006 e 2013, sem terem essas autorizações pra
fazer a roça. Destacou que apesar do desgaste com a fiscalização e com a
truculência da Polícia Ambiental, esse processo também foi de resistência,
onde eles construíram, por exemplo, a Feira de Sementes com o propósito
de guardar e trocar as sementes pra continuar plantando. Eles não
desistiram de fazer a roça, a roça é o cerne da cultura deles
36
.
Seu Antônio Jorge do Quilombo Pedro Cubas nos relatou em
conversas durante a Feira de Sementes de 2018, que as dificuldades para
conseguir a autorização para fazer as roças perduravam até então, disse ele
que as autoridades ambientais não dialogam com as comunidades, não
fazem esforços para esclarecimento e sim para punições e multas.
35
PASINATO, Raquel, Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 08 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
36
PASINATO, Raquel, Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 08 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
116
Seu Aurico do Quilombo São Pedro, também durante a Feira de
Sementes em 2018, relatou que tanto a demora e a morosidade do processo
por parte das entidades responsáveis, como o fato da licença ser apenas de
2 anos, dificultava, quando não inviabilizava o preparo da roça. Para tanto,
disse que os quilombolas propunham que a licenças fossem para pelo
menos de 5 anos.
Constata-se que os quilombolas reivindicam mais autonomia para
preparar as suas roças, e que as licenças cheguem no tempo certo. Contudo,
esse bloqueio das roças continua sendo um dos maiores empecilhos para
que as comunidades consigam manter seus modos de vida e sua
subsistência.
Como veremos no próximo capítulo, foi também diante desse
contexto de criminalização e bloqueio das suas roças de subsistência, que
algumas comunidades, mais pela necessidade do que pelo próprio desejo,
começam a trabalhar em parceria com algumas Entidades de Apoio (EA)
mais sensíveis a suas causas, com a organização e o planejamento do
turismo comunitário em seus territórios.
117
118
3
Turismo: História, Contradições e Alternativas
3.1 Apontamentos iniciais sobre o turismo
Segundo os pressupostos da Organização Mundial do Turismo
(OMT), adotados oficialmente pelo Brasil, o turismo está relacionado às
“atividades que as pessoas realizam durante viagens e estadas em lugares
diferentes do seu entorno habitual, por um período inferior a um ano, com
finalidade de lazer, negócios ou outras” (BRASIL, 2006, p. 04).
Definido normalmente como uma atividade vinculada à viagem e
ao lazer, o turismo enquanto uma atividade socioeconômica vem
ganhando certo espaço na literatura contemporânea, cursos e programas
de graduação começaram a ser direcionados para estudar as viabilidades e
os impactos do turismo. A diversidade de estudos e formas do turismo nos
últimos anos torna a sua compreensão bastante controversa e difusa: fala-
se em turismo de negócio, turismo de aventura, turismo religioso, turismo
rural, turismo gastronômico, um leque de definições que deixa sua
compreensão volátil à intencionalidade do pesquisador.
Enquanto disciplina e produto do conhecimento científico, quase
sempre é abordado a partir da disciplina que está sendo tratada:
Administração, Arquitetura, Economia, Educação, Psicologia, Sociologia,
Geografia e Turismo, dificultando compreender uma identidade própria
para o tema (SIQUEIRA, 2005).
119
Frente a esse cenário em que os estudos, políticas e investimentos
para a área de turismo ganham cada vez mais destaque em diferentes
lugares do globo terrestre, não há dúvida de que o turismo, enquanto uma
atividade socioeconômica, bem ou mal, é um fenômeno real na sociedade
moderna. Nesse sentido, mais interessante do que entender os tipos e
mesmo os benefícios ou malefícios do desenvolvimento desse fenômeno,
parece-nos mais importante demonstrar o processo histórico e as
transformações políticas, econômicas e culturas que estabeleceram as
condições reais para a sua consolidação.
Dessa forma, visto o leque de categorizações que são sugeridos para
analisar os tipos de turismo, trataremos nesse primeiro momento, do que
denominamos de turismo convencional, ou seja, aquele que independente
da categorização, tenha seu processo de desenvolvimento histórico ligado
intrinsecamente à lógica mercantil capitalista da sociedade moderna e suas
contradições.
Compreende-se que a expansão do turismo convencional, ou
simplesmente do turismo, se deu num primeiro momento, entre outros
fatores, em consequência ao complexo processo que envolveu o
desenvolvimento da indústria capitalista, a redução do tempo de trabalho
necessário para a produção de mercadorias, a luta por melhores condições
de trabalho e conquistas como os finais de semanas e as férias remuneradas.
As condições para o dinamismo e a ampliação do turismo na
sociedade moderna foi fruto da melhoria do padrão de vida dos
trabalhadores, da criação de uma “civilização do automóvel”, da redução
do tempo de trabalho e da implementação de uma indústria do lazer. O
turismo se desenvolveu como uma atividade de “reconstituição
capitalista”, que, apesar de guarda sua gênese em tempos mais antigos, se
expande “no contexto da transformação do tempo de não-trabalho em
120
tempo do capital”, que ganhou sentido e potência fetichizante na sociedade
contemporânea (OURIQUES, 2005, p. 18).
Conforme destacou Rule (1990), Thompson (1987) e Ouriques
(2005, p. 28), com os desdobramentos consolidados com a Revolução
Industrial, a burguesia começou a demonstrar preocupação e necessidade
de “disciplinar o ócio dos trabalhadores, aumentando o tempo de trabalho,
reduzindo os feriados, as festividades e inserindo modificações no uso do
espaço públicoa rua”.
A população em geral praticava seu lazer e divertimento com
atividades diversas, muitas vezes, vinculadas ao calendário agrícola, às datas
religiosas
37
e às feiras livres, ou, “no caso dos trabalhadores industriais,
estavam associadas à Santa Segunda” (THOMPSON, 1987; RULE, 1990
p. 302; OURIQUES, 2005, p. 29).
Embora de origem controversa, a segunda-feira ou “Santa
Segunda” fora o dia de folga socialmente estabelecidos pelos trabalhadores,
além de que o consumo excessivo de bebidas alcoólicas cometidos por
alguns trabalhadores nas manifestações de domingo tornava a segunda um
dia de ressaca (RULE, 1990; RYBCZYNSKI, 2000; OURIQUES, 2005).
Compreende-se que, já no início das transformações industriais e
do avanço da lógica capitalista, as classes dominantes imprimiram grandes
esforços para sujeitar os trabalhadores a uma nova ordem de civilidade e
de controle não só do tempo de trabalho
38
, mas também do tempo de não
trabalho (OURIQUES, 2005).
37
Vale ressaltar que, desde a Idade Média, a Igreja Católica exercia forte influência sobre o repouso
dominical; as corporações de ofício incluíam em seus estatutos a obrigação do descanso aos
domingos. Entre o final do século XV e o início do XVI, com a legislação das Índias, Felipe II, na
Espanha, torna obrigatório o descanso dominical e em dias de festas religiosas.
38
Engels (2004) em a “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, demonstra com primor
como a burguesia ascendente agiu para disciplinar o proletariado nascente para o tempo de trabalho.
121
Thompson (1987, p. 294-295) analisando “A formação da classe
trabalhadora inglesa” e Ouriques (2005, p. 29) descrevendo a “a
preparação dos trabalhadores para o turismo”, destacam que:
No início da Revolução industrial, o ano de um trabalhador ainda se
compunha de ciclos de grande fadiga e provisões escassas, intercalados
por dias de festa, em que a bebida e a carne eram mais abundantes, as
crianças ganhavam laranjas e fitas e as danças, o namoro, as visitas
sociais e os esportes envolviam o povo. Praticamente até o final do
século XIX, havia uma série de feiras que se realizavam por todo o país
(as autoridades tentaram emo limitar ou simplesmente proibir
muitas delas) nas quais se podiam encontrar grupos de mascates,
trapaceiros, ciganos autênticos ou não, cantores ambulantes e
quinquilheiros (OURIQUES, 2005, p. 29).
Diante das exigências e da disciplina que a produção industrial e a
ascendente lógica capitalista requisitava, as festas populares, as
manifestações culturais, as formas de lazer, de divertimento e o ócio dos
trabalhadores foram desclassificadas e reprimidas pelas classes
dominantes
39
. Thompson (1987, p. 300) apud Ouriques (2005, p. 29-30)
caracteriza esse processo que envolve desclassificação e repressão das festas
populares e do ócio dos trabalhadores como parte de uma “imposição da
disciplina social, no qual a perda do tempo livre e a repressão ao desejo de
se divertir tiveram tanta importância quanto a simples perda física dos
direitos comunais e dos locais para recreio”.
39
Antonio Gramsci (2002) comentando sobre a história de David Lazzarretti nós dá uma clara
demonstração da forma como a elite social da época desclassificava a questão dos grupos subalternos
e populares sempre como algo bárbaro ou patológico.
122
As formas de lazer, de divertimento e de ócio dos trabalhadores,
considerados anárquicos e depravados, além da “disciplina social” para
combater os “excessos”, fora necessário reordenar e reorganizar tanto o
tempo quanto os espaços de lazer dos trabalhadores, fato que ganhou mais
dinamismo com o desenvolvimento das ferrovias e das excursões
planejadas (RULE, 1990, p. 324 apud OURIQUES, 2005, p. 30).
As classes dominantes, já em meados do século XIX, constataram
as vantagens das viagens de trem e de pequenas excursões mecanizadas para
a massa de trabalhadores como uma forma mais adequada, controlável e
disciplinada de diversão e lazer durante o tempo livre.
Essas excursões para as massas também tornaram-se possíveis pela
criação do fim de semana, que surge na Inglaterra do século XIX como
folga de um dia e meio e vai, paulatinamente, substituindo a “Santa
Segunda”. Esta, alias, abriu caminho para o fim de semana: primeiro
porque as pessoas se acostumaram com as vantagens de um descanso
semanal de dois dias e segundo, porque serviu para popularizar a
viagem de recreio (RYBCZYNSKI, 2000, p. 104 apud OURIQUES,
2005, p. 31).
Contudo, apesar desse preparo da classe trabalhadora para um
modelo específico de lazer que fora constituído com o avanço do modo de
produção capitalista e sua necessidade e imposição de uma disciplina
social, a disseminação de forma mais elaborada de uma indústria do
turismo ocorreu ao longo do século XX. Potencialmente constituído com
a evolução das estradas de ferro, dos transportes mecanizados, da
comunicação, do avanço técnico e da transformação do espaço geográfico
(SANTOS e SILVEIRA, 2008).
123
Para se consolidar em meio à classe trabalhadora e como uma
atividade de massa, o turismo contou também com as conquistas da classe
trabalhadora ligadas aos descansos remunerados e com as políticas de bem-
estar social. Entende-se que, ao passo que o modo de produção industrial
capitalista foi se estabelecendo, consolidando-se e introduzindo um
disciplinamento do tempo de trabalho e do tempo livre, as bases para a
formatação de uma indústria do turismo mais elaborada e dinâmica
também foi se constituindo no espaço geográfico.
O desenvolvimento do sistema de engenharia e as descobertas
envolvendo a química, o petróleo, o aço e a eletricidade na segunda fase da
Revolução Industrial proporcionou a expansão da produção de bens de
consumo, da indústria automobilística e do desenvolvimento da aviação,
meios necessários para a massificação dos deslocamentos humanos pelo
território (SANTOS; SILVEIRA, 2008, p. 21; OURIQUES, 2005).
O desenvolvimento produtivo a partir da segunda fase da
Revolução Industrial foi fundamental para a disseminação do turismo
convencional, pois, ao ponto que permitiu a redução do tempo necessário
para produção de bens materiais, possibilitou a redução do tempo de
deslocamento de mercadorias e de pessoas pelo território. Junto às
transformações materiais, outro fator preponderante para a expansão das
viagens modernas ao longo do século foram as conquistas trabalhistas e
sociais consolidadas no conturbado e complexo contexto que envolve
revoluções e duas guerras mundiais em menos de meio século
40
.
40
Rybczynski (2000) e Ouriques (2005) destacam que, no período entre guerras, os governos da
Itália fascista e da Alemanha nazista, propondo um modelo cultural coletivista, buscou popularizar
as incipientes práticas de excursões iniciadas na Inglaterra, incentivando os trabalhadores a fazerem
turismo em vez de descansar em casa.
124
As conquistas trabalhistas ligadas à redução da jornada de trabalho,
aos descansos semanais
41
e às férias remuneradas disseminadas às vésperas
da Segunda Guerra Mundial possibilitaram uma maior disponibilidade de
tempo livre, passível de ser usado para o lazer, para as viagens, para o
turismo (OURIQUES, 2005).
Krippendorff (2001, p. 38-39), apresentando as influências sociais
que impeliam as pessoas a viajarem, destaca que as conquistas relacionadas
ao descanso semanal, as férias remuneradas e às políticas de bem-estar vão
sendo trabalhadas quase como sinônimos de tempo para o consumo e para
fazer turismo. Para o capital, o descanso remunerado dos trabalhadores
empregados e o aumento do tempo livre representavam perda de produção
e de lucro, daí a intencionalidade de incentivar o trabalhador, através de
uma indústria do turismo, a consumir em seu tempo livre.
Utilizando-se das mais diferentes estratégias relacionando o desejo
da liberdade, o direito ao lazer e ao consumo, a ascendente indústria do
turismo vai operando para transformar em turista aquele trabalhador
empregado, com direito a descanso remunerado e maior disponibilidade
de tempo livre ao mesmo tempo em que vai “produzindo espaços relativos
aos afazeres turísticos” (CRUZ, 2009, p. 98).
O turismo cresce associado ao tempo livre como uma alternativa
agradável para o relaxamento e a reconstituição das forças desgastadas na
rotina do trabalho, por uma ideologia de poder viver livremente e conhecer
novas experiências fora do seu cotidiano e pela produção de espaço para
fazer turismo (KRIPPENDORF, 2001; CASTELLI, 1990; OURIQUES,
2005; CRUZ, 2009).
41
Com exceção da Rússia soviética, na qual o descanso era concedido após o quinto dia de trabalho,
independentemente do dia da semana, o que se plasmou à cultura foi a fixação do descanso semanal
nos finais de semana.
125
As conquistas sociais relacionadas ao tempo livre e ao descanso
pago possibilitaram que estudos relacionados à ética do trabalho, até então
predominante, fosse combinado a uma ética do lazer, estabelecendo
elementos condicionantes para o turismo contemporâneo (GROPPO,
2006; CANDIOTTO, 2007). As mudanças de valores em direção ao
individualismo e de uma ideologia romantizada pelo lazer e pelo turismo,
bem como a idealização da busca pela liberdade individual, do tempo
disponível, do tempo de não trabalho, do tempo de reestabelecimento
físico e psíquico em atividades de lazer, entretenimento, viagens e turismo
serão usadas “para a afirmação de uma ética do consumo
(CANDIOTTO, 2007, p 142).
Dessa forma, a ascendente indústria do turismo ao passo que
transforma o tempo de não trabalho ou o tempo livre em tempo para o
consumo e, consequentemente, em tempo para o capital é “entendida pela
apropriação capitalista dos momentos de ócio individual, transformados
em um imenso aparelho coletivo de enriquecimento privado”
(OURIQUES, 2005, p. 18).
Trabalhando na elaboração de sua principal mercadoria, a
indústria do turismo vai agindo para transformar em turista o trabalhador
com tempo disponível, interesse e condição para consumir e viajar, ao
passo que vai estendendo seus tentáculos ao mais longínquo reduto que
tenha potencial para ser consumido pela mercadoria turista. Diante disso,
o lazer e o turismo vão se tornando atividades econômicas lucrativas e com
efeitos multiplicadores, de modo que a criação e a organização de
diferentes atrativos e destinos turísticos começam a ser incentivados e
estabelecidos em diferentes lugares.
Análises econômico-setoriais identificam a existência de uma
cadeia produtiva composta por agentes (como agências, parque,
restaurantes, hotéis etc.) criados exclusivamente para o turismo e setores
126
de infraestrutura básica, como da rede hospitalar, de segurança, transporte,
água, esgoto, entre outros (LAGE; MILONE, 2001). Verificando como é
constituída a indústria do turismo, observa-se que ela se estabelece através
de organizações dos setores públicos e privados, que normalmente estão
agrupadas com o objetivo de preparar os turistas e o espaço que satisfaça
às necessidades e anseios desses turistas.
Assim, ao mesmo tempo em que a indústria do turismo vai
formatando e motivando aquele sujeito com tempo disponível e condição
de consumo para ser turista, também move de forma articulada um leque
de agentes públicos e privados na elaboração e preparo do espaço turístico.
Em um contexto mais generalizado, o turismo quase sempre é
vendido como uma atividade benéfica, que pode conciliar o
desenvolvimento econômico e o ecológico, pois, diferente das indústrias
tradicionais, consideradas poluente, a “indústria do turismo” quase sempre
se fundamenta pelo respeito socioambiental.
Tendo como parte importante para seu produto o que Ouriques
(2005, p. 20) definiu como “mercadoria paisagem”, é conveniente e
necessário para os propagandistas e defensores da indústria do turismo o
vender como um segmento que respeita o meio ambiente
42
. Contudo, ao
analisar mais detalhadamente os efeitos do turismo convencional, observa-
se que, apesar de ser menos poluente que as indústrias tradicionais,
dependendo do empreendimento, além de transformar completamente a
paisagem de um lugar, causa grandes impactos ambientais e sociais.
Conquistando a classe trabalhadora melhores condições
econômicas e descansos pagos, articulado ao avanço do desenvolvimento
42
A “mercadoria paisagem” passa necessariamente pelo fetichismo da mercadoria da forma que
lugares de natureza exuberante tornam-se elemento fundamental do consumo turístico
(OURIQUES, 2005).
127
do sistema de engenharia (SANTOS e SILVEIRA, 2008, p. 21), as
atividades de lazer e de turismo passaram a ser acessíveis e, de certa forma,
oferecidas de forma mais ampliada, ao mesmo tempo em que estruturas de
balneários, clubes, parques, restaurantes, hotéis, entre outros, passaram a
ser incentivadas.
A ampliação da dimensão do consumo do trabalhador e o
crescimento da oferta de lazer e de turismo tornou-se um novo e promissor
mercado para investimentos, potencializando também investimentos em
infraestrutura de logística e de deslocamentos (estrada, aeroporto e portos)
pelo território.
Nesse aspecto, a evolução produtiva, a redução do tempo de
trabalho humano necessário para produzir bens materiais e a suposta
tendência que defendia o fim do trabalho, o turismo e o lazer ganharam
preponderância para o desenvolvimento econômico no último quarto do
século XX. O desenvolvimento das tecnologias da informação, da
comunicação e o surgimento do trabalho de escritório, informacional e
digital, começam a gerar expectativas sobre o fim da dimensão do
sofrimento do trabalho e, quiçá, o fim do trabalho (ANTUNES, 2018).
Tendo os EUA e a Europa à frente, a tese de que a classe
trabalhadora estava em franca retração global ganhou força. Antunes
(2018, p. 32) destaca que “a ideia de um capitalismo maquínico e sem
trabalho se expandia e mesmo se consolidava, conseguindo ampla adesão
no universo acadêmico, sindical e político em várias partes do mundo”.
Movida quase exclusivamente pelo avanço do sistema de
engenharia e pelas transformações operadas a partir de uma nova etapa de
domínio maquínico-informacional-digital, essa concepção vendia a
ideologia de um capitalismo sem exploração do trabalho humano e, diante
128
desse futuro inevitável, a classe trabalhadora teria mais tempo disponível
(ANTUNES, 2018).
Antunes (2018) comprova que em sua totalidade, mais do que o
fim da exploração do trabalho humano e da classe trabalhadora, essa ideia
que corroborou com a ascensão do capitalismo financeiro e do setor de
serviços desenvolveu cada vez mais uma simbiose entre o que é produtivo
e o que é improdutivo.
O mito de que a “sociedade de serviços pós-industrial” eliminaria
completamente o proletariado se mostrou um equívoco enorme.
Evaporou-se. Desmanchou-se no ar. Na contrapartida, vem aflorando
em escala global uma outra tendência, caracterizada pela expansão
significativa de trabalhos assalariados no setor de serviços (ANTUNES,
2018, p. 38).
Em meio a essas mudanças no mundo produtivo, da ascensão do
setor de serviços, das áreas de comunicação, de informação, de circulação
e de mundialização do capital (globalização), que Braverman (1987)
explica detalhadamente, em seu livro “Capital Monopolista”, o
desenvolvimento do turismo vai ganhar fôlego como atividade econômica
emergente.
Com o avanço do capital monopolista, da mundialização do capital
e da ideologia neoliberal, ocorre a expansão da “sociedade espetacular”, um
contexto em que “o mundo da mercadoria domina tudo o que é vivido”,
ou seja, “a mercadoria ocupa totalmente a vida social” (DEBORD, 1997,
p. 28-30).
Diante disso, o fetichismo da mercadoria é potencializado, “a vida
social ultrapassa a fase do ter e desemboca no parecer”, onde o principal
129
sentido explorado é a visão, dessa forma, a “mercadoria-paisagem”, o
componente paisagístico assumiu caráter fundamental para o consumo dos
turistas (OURIQUES, 2005, p. 52).
Em meio a esse complexo contexto, o turista vai cada vez mais
sendo condicionado pela necessidade de sair do local cotidiano, do
anticotidiano, do bucólico, do natural, do prazer vinculado ao
deslocamento para outro lugar que traga a sensação e a aparência de
liberdade (KRIPPENDORFF, 2007).
Considerada uma atividade positiva em termos de
desenvolvimento econômico e com potencial de crescimento quase
ilimitado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE), por exemplo, as Nações Unidas vão declarar o ano
de 1967 como o “Ano Internacional do Turismo” (DIAS, 2003, p. 13).
Acreditava-se que os hábitos de lazer e de viagens de quem vivia nos
países ricos iriam abrir as portas do desenvolvimento econômico aos
habitantes dos países pobres. E desse modo, um bom número de países
em desenvolvimento passam a incentivar o turismo sem estudos
adequados de sua viabilidade (DIAS, 2003, p. 13).
É importante destacar que, a partir da década de 1960, devido às
consequências das contradições que o modelo capitalista de consumo e
utilização dos recursos naturais já vinham gerando desde anos anteriores,
começou a ganhar força nos países de capitalismo central o debate sobre a
possibilidade de esgotamento dos recursos naturais. Trabalhos como
“Primavera Silenciosa”, de Rachel Carson (1962), que apresentou um
contundente questionamento sobre o uso de pesticidas químicos, sobre a
130
responsabilidade da ciência e os limites do progresso tecnológico,
incitaram a necessidade de uma consciência ambiental.
A partir dessas preocupações, os turistas passaram a demandar não
só os atrativos habituais, como no caso do turismo de sol e praia, entendido
como turismo de massa e supostamente degradante, mas também uma
paisagem preservada, exuberante, valorizando o romântico, o lúdico, a
nostalgia pelo passado e pelo ambiente preservado.
Vale ressaltar a emergência do debate sobre o meio ambiente na
transição da década de 1960-1970 com destaque a primeira Conferência
das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano
(Conferência de Estocolmo) realizada em 1972 em Estocolmo na Suécia,
simbolizando a inauguração de uma agenda mundial para as questões
ambientais
43
.
Com a ascensão do debate sobre a importância do meio ambiente,
do suposto aumento da consciência ambiental e de resgate da natureza
particularmente em países de capitalismo avançado, a indústria do turismo
vai desenvolver novos segmentos de mercado. Dias (2003, p. 16) aponta o
surgimento de um turismo alternativo, que propunha maior contato com a
natureza em atividades “como o agroturismo, ecoturismo, turismo de
aventura, montanhismo, canoagem, etc.”. Nesse sentido, o turismo em
CRQ tem uma contradição, pode representar tanto um novo segmento de
mercado quanto uma resistência ao avanço da mercantilização, conforme
veremos a partir do capítulo 3.2.3.
Em virtude desses novos segmentos de mercado turísticos, os
trabalhadores dos países de capitalismo avançado, usufruindo das
conquistas do bem-estar e convertido na mercadoria turista, passam a
43
Teve como desdobramentos da Conferência a elaboração da Declaração de Estocolmo, com 26
princípios e a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).
131
procurar de forma cada vez mais frequente viagens para destinos inusitados
em países de capitalismo dependente, com paisagens exóticas e paradisíacas
como, por exemplo, o Brasil.
Considerando o movimento da totalidade histórica capitalista e o
entendimento de que o mundo é regido por uma Divisão Internacional do
Trabalho (DIT) fruto de um movimento desigual e combinado, Ouriques
(2005, p. 12) aponta que em países de capitalismo dependente como o
Brasil, “o turismo, ao produzir a mercantilização progressiva em lugares
até então não inseridos nos círculos do capital, age como um dominador”
que contribui como uma nova “faceta estética e fetichista do colonialismo”.
A professora Rita Cruz (2009, p. 93) num esforço de desvendar as
“contradições econômicas e sociais dos países de capitalismo periféricos ou
dominados pelo imperialismo” destaca que o desenvolvimento desigual e
combinado também está diretamente relacionado ao conceito de Divisão
Territorial do Trabalho (DTT), nesse sentido, “o modo de produção
capitalista sendo um modo de produção social da riqueza e de apropriação
privada, seu desenvolvimento se dá no âmbito de um processo
contraditório, entre outras razões porque o capital é seletivo do ponto de
vista espacial”.
Analisando a realidade brasileira particularmente em relação ao
desenvolvimento da indústria de turismo e “seu lugar no processo social e
histórico de produção do espaço”, destaca-se que apesar do turismo se
impor aos lugares, ele não faz sobre “uma tabula rasa” e “sobre espaços
vazios e sem donos” (CRUZ, 2009, p. 98).
Portanto, não são apenas Estados, mercado e turistas que produzem os
espaços relativos aos fazeres turísticos, mas também as sociedades que
vivem nesses lugares, parte delas transformada, por força de novas
contingências, em empreendedores turísticos ou, mesmo, em muitos
132
casos, atuando como contra-racionalidades às determinações
hegemônicas. A produção do espaço envolve seu uso e apropriação e,
neste caso, o conflito termina por ser imanente ao processo (CRUZ,
2009, p. 98).
Produto do complexo contexto e transformações do capitalismo ao
longo dos anos, seja convencional ou alternativo, o fato é que o turismo
chega ao início do século XXI como uma das atividades econômicas que
mais cresce no mundo. Dias (2003, p. 09), fazendo referência à OMT,
destaca que “de 1950 a 2000, os deslocamentos de turistas internacionais
passaram de 25 para 699 milhões por ano”.
Nesse contexto em que houve um avanço do setor de serviços em
geral e do turismo em específico, diversos países de capitalismo
dependente, incluso o Brasil, passaram a investir no turismo primeiro
como uma oportunidade para tentar superar a crise que assolou os países
dependentes na transição da década de 1970/80 e depois, como uma
alternativa para geração de divisas e empregos.
Diante dessa contextualização mais ampla sobre a totalidade do
turismo e a forma como ele vai se estruturando em meio ao
desenvolvimento e contradições da sociedade capitalista, particularmente
nos países do centro do capitalismo, passamos a partir do próximo tópico
a analisar como ele se manifesta no território brasileiro.
Vejamos, a partir do próximo tópico, como o Brasil vem se
preparando e organizando o turismo nos últimos anos.
133
3.2 O turismo no Brasil: dos anos 1990 ao século XXI
Apesar de delinearmos para o presente tópico a transição dos anos
90 para o século XXI, não significa que ignoramos que desde tempos
anteriores, tanto o Estado brasileiro como as organizações que compõe a
indústria do turismo nacional e internacional não tenham agido
potencializa-lo como segmento de mercado.
Compreende-se que já faz anos que o Brasil olha com fetiche para
o turismo, seguindo as tendências dos novos segmentos de mercado
turístico que emanam principalmente dos países do centro do capitalismo,
é possível observar já na transição da década de 1960-1970 ações relevantes
por parte do Estado no sentido de adequar o país tropical, abençoado por
Deus e bonito por natureza para o consumo da mercadoria turista.
Como exemplo notório, destaca-se o Decreto-Lei nº 55/66 no qual
o Estado Brasileiro estabelece o Sistema Nacional de Turismo e constituí
a Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) e o Conselho Nacional
de Turismo. Diante disso, por meio de financiamentos e incentivos fiscais,
o poder público torna-se o principal agente de todas as ações referente ao
turismo no território nacional (CRUZ, 2000; TRENTIN; FRATUCCI,
2011).
Vale ressaltar que nesse período o Brasil estava sobre o regime
autoritário da ditadura militar instaurada em 1964, sendo assim, as ações
foram conduzidas de forma centralizada onde a atuação estatal canalizou e
determinou no espaço do território nacional as regiões com condições
favoráveis para o desenvolvimento do turismo, com destaque para a costa
litorânea.
Com o fim do regime de exceção após uma longa jornada de
mobilizações pela redemocratização que marcou quase toda a década de
134
1980, em 1988, foi aprovada a nova Constituição Federal, considerada um
avanço em relação aos direitos democráticos essa nova constituição,
denominada cidadã, apresentou pressupostos de bem-estar social.
Entretanto, apesar do pressuposto de bem-estar nos
encaminhamentos constitucionais, na ordem mundial do capital, fatores
determinantes e relacionados às diretrizes vindas desde as formações
avançadas não corroboravam os apontamentos de um Estado de bem-estar
social, e, sim, determinantes de hegemonia mercadológica e
neoliberalizante.
Nas palavras de Netto (1999, p. 76), esse impasse acarretou que:
[...] ao tempo em que, no Brasil, criavam-se mecanismos político-
democráticos de regulação da dinâmica capitalista, no espaço mundial
tais mecanismos perdiam vigência e tendiam a ser substituídos, com a
legitimação oferecida pela ideologia neoliberal, pela
desregulamentação, pela flexibilização e pela privatização elementos
inerentes à mundialização (globalização) operada sob o comando do
grande capital
Dessa forma, o pacto social plasmado pela Constituição de 1988,
assim que promulgada, passou a ser o centro do debate político, ainda que
“a burguesia e seus sócios tenham jogado tudo para desqualificá-la (desde
o impedimento da preparação da legislação complementar até a pura e
simples violação dos seus preceitos)” (NETTO, 1999, p. 78).
Daí que, na sequência que entra em vigor a nova Constituição,
configura-se um cenário de embate que, por um lado, abriga seus
defensores como alternativa para que as massas trabalhadoras pudessem
135
reverter sua dramática situação histórica e, por outro, os setores ligados ao
grande capital lutando para inviabilizar essa alternativa
44
(NETTO, 1999).
É nessa conjuntura, seguindo as orientações da OMT, que se
daram os encaminhamentos mais contundentes, após a redemocratização,
na reorganização do turismo no território nacional, com destaque a
homologação do Decreto-Lei nº 448, de 14 de fevereiro de 1992, que
regulamenta os dispositivos da Lei n° 8.181, de 28 de março de 1991, e
dispõe sobre a Política Nacional de Turismo (PNT).
Apesar da lentidão e dos descompassos desse momento, em que até
a EMBRATUR foi extinta por um curto espaço de tempo, como parte de
uma possível reforma no governo Collor, o Brasil foi palco da Segunda
Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-
92).
Resultado das discussões sobre as mudanças climáticas e dos
impactos ambientais ao longo da década de 1970 e 1980 em várias partes
do mundo, a Eco-92 ocorreu na cidade do Rio de Janeiro e, entre outros
resultados, consolidou o movimento pelo desenvolvimento sustentável e a
importância das questões ambientais na política internacional e nacional.
Organizada pelas Nações Unidas, a Conferência, além de ter como
resultado a Agenda 21 (documento assinado por 179 países com estratégias
a serem adotadas para a sustentabilidade do meio ambiente), servira
também como importante marketing turístico no imaginário daqueles que
queriam conhecer esse Brasil bonito por natureza.
44
Entre alguns fatos que podem comprovar essas informações, estão, por exemplo, a lentidão para
aprovar o Decreto nº 4887/03, a Lei nº 10.639/03, que modifica a Lei nº 9.394/1996 e dispõe
sobre a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de
ensino da educação básica, e a Lei nº 11.645/2008, que introduz a obrigatoriedade do ensino da
História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena na educação básica.
136
Nesse contexto, Cruz (2005) destaca que a Lei nº 81.181 e o
Decreto-Lei nº 448 buscou regulamentar e reorganizar a ação estatal
adequando-a as novas demandas emanadas da lógica neoliberal e do setor
de turismo, eliminando eventuais entraves para a ação da administração
pública como fomentadora e facilitadora de um turismo massivo e
internacionalizado.
Com o impeachment de Collor de Mello, o novo presidente Itamar
Franco, por meio da Secretaria Nacional de Turismo e do Ministério da
Indústria, Comércio e Turismo (MICT), deu andamento às propostas de
desenvolvimento do turismo com o Programa Nacional de
Municipalização do Turismo (PNMT).
Travestido de um discurso de gestão participativa e local, o PNMT
foi de fato, um programa voltado para capacitação dos municípios
interessados em desenvolver a atividade turística em seus territórios aos
moldes do que Cruz (2005, p. 32) chamou de “gestão miúda”, pois, a
tomada das decisões orientadoras do desenvolvimento da atividade ficou
centrada na esfera federal.
Contudo, apesar de institucionalizado pela Portaria nº 130 do
MICT, de 30 de março de 1994, o PNMT foi implementado, de fato, a
partir da PNT (1996-1999), no governo de Fernando Henrique Cardoso
(FHC), em meio a grandes transformações e reformas como, por exemplo,
a reforma do Estado.
137
Denominada Reforma Gerencial
45
, além de absolutamente inter-
relacionada com o modelo econômico que sustentou o plano real
46
nos
primeiros anos, a reforma objetivou o enxugamento da máquina
burocrática do Estado e “a revisão da relação Estado/sociedade civil no que
tange as políticas públicas na área social” (BRITO, 2016, p. 27).
Considerou-se que os custos de prestação de serviços diretos
realizados pelo Estado eram muito custosos e que a arrecadação não era
suficiente para garantir os direitos. Dessa forma, seria necessário reduzir o
tamanho da estrutura do Estado e criar novas formas de prestação de
serviços com menos custos (ler-se menos direitos) (MONTAÑO, 2007).
Operando uma separação entre o que seriam atividades exclusivas
de Estado e a produção de bens e serviços para o mercado, considerou-se
que uma série de atividades na área social, científica e cultural poderia não
envolver o poder do Estado e, diante disso, não era uma atividade
exclusivamente sua
47
(BRESSER-PEREIRA, 1997).
Estabeleceu-se que as atividades não exclusivas, para um melhor
desenvolvimento, deveriam sair do âmbito estatal e ser colocadas sob a
lógica de competitividade, podendo “ser controladas não apenas através da
45
Para maiores conhecimentos sobre a interpretação do Ex-ministro, ver: O Caráter Cíclico da
Intervenção Estatal (1989); Crise da América Latina: Consenso de Washington ou Crise Fiscal
(1991); Reformas Econômicas em Democracias Recentes (1993); A Reforma do Estado dos anos
90: Lógica e Mecanismos de Controle (1997).
46
O plano real consolidou 3 medidas macroeconômicas (tripé macroeconômico): 1º - metas de
inflação, 2º - liberdade do câmbio câmbio flutuante; e 3º - Adoção da política de superávit
primário (economia que o governo faz para o pagamento da dívida pública antes de direcionar esse
dinheiro para o orçamento).
47
“Incluem-se nesta categoria as escolas, as universidades, os centros de pesquisa científica e
tecnológica, as creches, os ambulatórios, os hospitais, entidades de assistência aos carentes,
principalmente aos menores e aos velhos, os museus, as orquestras sinfônicas, as oficinas de arte, as
emissoras de rádio e televisão educativa ou cultural, etc.” (BRESSER-PEREIRA, 1997, p. 25).
138
administração pública gerencial
48
, mas também e principalmente através
do controle social e da constituição de quase-mercados” (BRESSER-
PEREIRA, 1997, p. 25).
Caberia ao Estado executar somente os serviços essenciais; os
serviços considerados não essenciais deveriam ser liberados para a inciativa
privada e para as organizações públicas não estatais (as diferentes
organizações constituídas pela sociedade civil associações, cooperativas,
organizações não governamentais). É nesse contexto que se multiplicaram
EA, tal como as analisadas nesta tese de doutorado.
Seguindo a lógica neoliberal imposta pela reforma do Estado, a
PNT e o PNMT vão ser desenvolvidos em uma suposta concepção de
descentralização, sustentabilidade, motivação, capacitação e parceria
envolvendo poder público, instituições privadas, organizações não
governamentais e comunidades.
Constata-se que, apesar dos debates e de certa inserção dos
diferentes atores, bem como, da crescente empolgação frente às supostas
possibilidades econômicas, muitos foram os limites e, com muitas raras
exceções, o programa não conseguiu criar e manter uma estrutura
sustentável em longo prazo.
O PNMT caracterizou-se como um programa de descentralização da
gestão do turismo sem repasse financeiro direto. Os municípios não
eram obrigados a aderirem ao programa e quando o faziam, recebiam
apenas, o repasse de tecnologia e de informações, com uma série de
oficinas de planejamento participativo, baseadas em técnicas de
48
“Reforma Gerencial do Estado descentralização administrativa ou municipalização
transferência de responsabilidade dos órgãos federais para instâncias municipais” (MONTAÑO,
2007, p. 193).
139
dinâmica de grupo que misturavam diversos métodos, entre eles o
método Metaplan e o ZOPP
49
(FRATUCCI, 2008, p.165).
Considera-se que o PNMT, apesar das propostas e objetivos
almejados, serviu mais para treinar e adequar os diferentes agentes públicos
e privados ligados ao setor de turismo para a nova ordem estatal de lógica
neoliberal, operada em consonância com a reforma do Estado.
Fazendo um breve levantamento sobre o PNMT nos anais do
Seminário Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Turismo (ANPTUR), constata-se que o processo em diferentes
municípios, além da questão financeira, apresentou diversos limites em
nível de responsabilidade, formulação, articulação e implementação.
O Programa, que se manteve como estratégico durante os governos
de FHC, talvez pelos próprios limites de concepção, não conseguiu efetivar
de fato uma gestão participativa com formação de Conselhos Municipais
de Turismo e Fundos Municipais do Turismo compostos de forma
equitativa por representantes do setor público, da sociedade civil
organizada e do setor privado.
Apesar dos limites, foi através dos programas de governos gestados
nos anos 1990 e começo dos anos 2000, que começou “a ser atribuído
crescente importância à atividade econômica do turismo, que passa a ser
vista como engendradora de processos de desenvolvimento regional e,
consequentemente, como instrumento minimizador de (históricas)
49
Metaplan é uma técnica destinada a promover o envolvimento das pessoas nas discussões,
esclarecer dúvidas, gerenciar conflitos e levar um grupo a alcançar, de forma consistente, os objetivos
propostos para discussão. É fundamental para o processo de moderação de reuniões, de grupos de
trabalho, de oficinas de planejamento, monitoria e avaliação. A metodologia ZOPP, do alemão
"Ziel orientierte Projekt Planung" - Planejamento de Projetos orientado por Objetivos - foi criada
pela Agência Alemã de Cooperação Técnica (GTZ), com sede em Escborn, na Alemanha, entre as
décadas de 1970 e 1980.
140
desigualdades regionais” (CRUZ, 2005), importância que será continuada
e ampliada no governo Lula da Silva como veremos no próximo tópico.
3.2.1 Roteiros do Brasil
Relaxa e goza
50
Em 2003, com o início do governo Lula da Silva, o turismo deixa
de ser parte de outros órgãos federativos e, pela primeira vez, é elevado à
categoria de Ministério. Constituída pela relevância que o setor assume, o
Ministério de Turismo (MTUR) foi criado com a missão de desenvolver o
turismo como atividade econômica autossustentável em geração de
empregos e de inclusão social (BRASIL, 2016).
Considerando que, desde tempos mais remotos, devido
particularmente aos seus bens naturais e culturais, o Brasil é apontado com
propensão e potencialidades para o desenvolvimento do turismo, com a
criação da pasta, essa predisposição começa a ser operacionalizada de forma
mais elaborada e ampliada.
No mesmo ano, o MTUR lança seu PNT (2003-2007) com os
seguintes objetivos gerais: a) Desenvolver o produto turístico brasileiro
com qualidade, contemplando as diversidades regionais, culturais e
naturais; b) Estimular e facilitar o consumo do produto turístico brasileiro
no mercado nacional e internacional
51
.
50
Referência à declaração da então Ministra do Turismo Marta Suplicy em 2007. Disponível em:
http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,MUL51536-5601,00.html Acesso em: 01 abr. 2020.
51
Objetivos específicos: a) Dar qualidade ao produto turístico; b) Diversificar a oferta turística; c)
Estruturar os destinos turísticos; d) Ampliar e qualificar o mercado de trabalho; e) Aumentar a
inserção competitiva do produto turístico no mercado internacional; f) Ampliar o consumo do
produto turístico no mercado nacional; g) Aumentar a taxa de permanência e gasto médio do turista
(BRASIL, 2003, p. 22).
141
Apesar do novo status na estrutura organizacional, o MTUR,
através do PNT, vai continuar com a racionalidade operacional de gestão
descentralizada e um suposto fortalecimento dos órgãos estaduais, regionais
e municipais, bem como, de parceria e terceirização de atividades de
extensão, capacitação, assistência técnica e formação.
Isto ocorre, no Brasil, em concordância com os objetivos da Reforma
Gerencial do Estado, promovida pelo ex-ministro Bresser Pereira no
governo FHC. Assim, a descentralização refere-se tanto ao processo de
municipalização ou descentralização administrativa transferência de
responsabilidade dos órgãos federais para instâncias municipais -,
quanto ao que Bresser Pereira chama (enganosamente) de publicização
ou seja, transferência de responsabilidade e funções para o setor
privado e para as organizações do chamado terceiro setor, isto é, uma
verdadeira privatização (MONTAÑO, 2007, p. 192).
Destaca-se que a descentralização administrativa ou
municipalização “significa a transferência de responsabilidade e
competência dos órgãos federais para instâncias municipais e locais”,
porém, sem os recursos correspondente e/ou necessários (SOARES, 2000
apud MONTAÑO, 2007, p 193).
Sobre o processo, avaliou-se que a maioria dos municípios tinham
limites para vender seus produtos turísticos. Dessa forma, o MTUR
assumia a função por meio de editais e projetos, de contratar e/ou fazer
parceria com EA para ensinar os municípios não só a desenvolver a sua
plataforma local, mas também capacitá-los para captação de investimento
(fluxo de capitais, fluxo de empresas atrás de oportunidades) e empreender.
Nessa mesma levada e seguindo os pressupostos da publicização, da
descentralização e de uma suposta gestão participativa, em 2004, o MTUR
142
lança com o propósito de incentivar os municípios a trabalharem em
conjunto nas diferentes regiões o Programa de Regionalização do Turismo
Roteiros do Brasil
52
.
Propondo estabelecer convergência e interação das ações
desempenhadas pelo MTUR com estados, regiões e municípios, o
Programa de Regionalização teve como objetivo apoiar e incentivar ações
de estruturação dos destinos potenciais, de melhoria da gestão e de
promoção do turismo no País.
Tendo como diretrizes políticas e linhas de ação a gestão coordenada;
o planejamento integrado e participativo; e a promoção e apoio à
comercialização, nascia o modelo oficial de implementação da
regionalização no País. O caminho seria longo para chegar a todo o
Brasil, a todas as regiões, aos municípios. Ações e estratégias não
faltaram para isso. Sensibilizações, mobilizações, salões do turismo,
encontros de Interlocutores, cadernos de turismo, verbas, sistemas,
redes, parceiros, cursos a distância, oficinas, estudos de
competitividade, roteirizações, políticas e macropolíticas, articulações,
enfim, um manancial de dispositivos foi criado no âmbito do
Programa. Tanto que, no PNT 2007-2010, o Programa ganha status
de macroprograma, intitulado Regionalização do Turismo. O
Programa de Regionalização passaria, também, a ser um grande motor
da gestão descentralizada do turismo. Um facilitador desse processo,
que pretende que as políticas públicas sejam compartilhadas entre
governo federal, Estados e municípios, passando pelas instâncias de
governança, como CNT, Fornatur, fóruns e conselhos estaduais e as
instâncias de governança regional. Mais uma vez, exigia-se uma
mudança de cultura política e de gestão (BRASIL, 2010).
52
O Programa é fruto do Plano Nacional do Turismo 2003-2007: Macroprograma 4
Estruturação e Diversificação da Oferta Turística, que teve como ponto de partida o debate nacional
com os segmentos representativos da sociedade, de modo a promover o desenvolvimento turístico
sustentável de forma regionalizada no Brasil (BRASIL, 2004b).
143
Por meio do Programa de Regionalização do Turismo, foram
realizadas ações articuladas com Órgãos e Fóruns Estaduais de Turismo,
levantando e mapeando roteiros e regiões com potenciais turísticos em
todo o território, terminando por selecionar 65 destinos turísticos que
teriam como meta induzir o desenvolvimento de roteiros e de regiões.
Compondo uma das metas do PNT (2007-2010), os 65 destinos,
além de induzir o desenvolvimento nos respectivos territórios em todas as
Unidades Federadas, deveriam ser qualificados para servirem de modelos
para o desenvolvimento turístico-regional, devendo as experiências e
práticas exitosas serem multiplicadas para outros destinos que integram as
regiões turísticas do País.
Não se trata de nosso objetivo e nem teríamos como, neste
momento, analisar as metas do PNT, do processo de regionalização e de
capacitação dos 65 destinos indutores, contudo, faz-se necessário fazer
algumas ressalvas sobre sua dinâmica e desenvolvimento.
Sob as determinações de uma lógica de gestão compartilhada e de
parceria entre o governo federal e as instâncias regionais, municipais e as
entidades da sociedade civil e da iniciativa privada, coube ao Instituto
Marca Brasil (IBM) fazer gestão do projeto para capacitação, planejamento
estratégico, governança e inter-relação dos destinos com suas regiões.
Simultaneamente, o MTUR, em parceria com o Serviço Brasileiro
de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e com a Fundação
Getúlio Vargas (FGV) realizaram o mapeamento dos 65 destinos e criaram
o índice de competitividade do turismo brasileiro, instrumento de análise
composto por 13 dimensões para medir o nível de desenvolvimento e
competitividade de cada destino
53
.
53
As 13 (treze) dimensões eram: 1º - Infraestrutura, 2º - Serviços e equipamentos, 3º - Acesso, 4º
- Atrativos turísticos, 5º - Marketing e promoção do destino, 6º - Políticas públicas, 7º - Cooperação
144
Usando toda uma nova linguagem de influência neoliberal, como
o caso da proposta de desenvolvimento de uma metodologia de capacitação
inovadora e participativa, avalia-se que as os serviços prestados,
fomentaram na gestão pública toda uma nova lógica de gestão e um dialeto
mais usual no setor privado.
Como assinalado pelo próprio IMB em documentário produzido
em parceria com o MTUR, o índice de competitividade foi o instrumento
utilizado para fomentar mudanças e conduzir os processos de
desenvolvimento e de competitividade dos destinos turísticos brasileiros.
Pela primeira vez no Brasil o governo federal protagoniza a execução
de tão amplo projeto para desenvolvimento da atividade turística no
país, criando indicadores, identificando necessidades, disseminando
conhecimento e mobilizando os municípios indutores do turismo, com
isso contribui com a criação e o fortalecimento de políticas públicas e
investimentos pela melhoria da competitividade no cenário político
internacional (IMB e MTUR)
54
.
Com referência ao citado documentário, os resultados
apresentados após dois anos da implementação do projeto foram
considerados satisfatórios e efetivos na formação de governanças
estruturadas (Conselho Municipal de Turismo - Comtur, Fórum regional
e Fórum estadual) comprometidas com os destinos.
Contudo, apesar dos resultados positivos apresentados pelo
documentário, as contradições se fizeram presentes em trabalhos e análises
regional, 8º - Monitoramento,- Economia local, 10º - Capacidade empresarial, 11º - Aspectos
Sociais, 1- Aspectos ambientais e 13º - Aspectos culturais (Relatório Brasil Índice de
Competitividade, 2014, p. 54).
54
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Y4HtWiMKiPg. Acesso em: 20 mai. 2020.
145
sobre alguns dos destinos em específico que apresentaram resultados
diferentes sobre a efetividade e a organização do turismo no destino em
questão
55
. Além de apontarem limites sobre a falta de planejamento a
curto, médio e longo prazo, também apresentaram críticas contundentes
sobre a infraestrutura de turismo e básica.
Através de uma consulta aos anais do Seminário da ANPTUR de
2005 a 2012, utilizando como palavra-chave políticas e índice de
competividade, constata-se que, em sua maioria, os artigos que tratam do
tema, apesar de apontarem certo avanço sobre o entendimento e a
disseminação do turismo, quase de forma unânime, apontam diversos
contradições e limites de gestão, infraestrutura básica, turística e
capacitação de pessoal.
Tal constatação pode ser averiguada também em entrevista de
2013 do Sr. Vinícius Lummertz, então Secretário Nacional de Políticas de
Turismo do MTUR, na qual também aponta uma mudança de
consciência em todo o território nacional sobre a importância do turismo
e reconhece que, com poucas exceções, a maioria dos destinos está longe
de atingir as expectativas de sua vocação turística
56
.
Montaño (2007, p. 192) avaliando de forma ampla o processo de
descentralização, parceria e publicização operada a partir das diretrizes da
reforma do Estado, destaca “a precarização das respostas estatais as
necessidades e demandas sociais particularmente nos municípios mais
pobres, sem recursos e sem capacidade de financiamento de infraestrutura
e políticas sociais adequadas”.
55
Para uma leitura mais específica sobre os aspectos positivos e limitações do índice de
competitividade no turismo, ver Sette e Tomazzoni (2016).
56
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z5qCj13oAPM. Acesso em: 20 mai. 2020.
146
Sobre a capacitação e formação de pessoal particularmente dos
serviços de atendimento, em quase todos os trabalhos e documentários que
foram consultados, constata-se certa dubiedade, pois, ao mesmo tempo em
que, muitas vezes, o serviço de receptivo é apontado como um diferencial
positivo, ele também aparece como um limite para a potencialidade
turística do destino
57
.
É quase consenso, nas leituras realizadas, que os trabalhadores são
vistos com um baixo conhecimento sobre o funcionamento do turismo e
um baixo acesso e acúmulo de capital cultural e políticas sociais, situação,
considera-se, vinculada diretamente aos problemas estruturais e históricos
relacionados à desigualdade social que aflige a grande massa trabalhadora
do país.
Supõe-se que a problemática relacionada aos limites do turismo no
Brasil, que não consegue ter perenidade, nem obter consistência e
credibilidade perante os diversos atores envolvidos no processo, mesmo sob
o mantra vocacional, está vinculada ao seu próprio projeto de
desenvolvimento quase exclusivamente voltado para satisfazer as diretrizes
do mercado e de seus representantes hegemônicos.
Considerando que não existe turismo sem deslocamento espacial,
Cruz (2005) desde uma perspectiva territorial, aponta que os limites para
o turismo no Brasil entre outras coisas estão relacionados ao fato das
diretrizes estatais reduzir o espaço a lógica mercantil, transformando-o em
57
As positividades apontadas estão ligadas quase sempre à suposta cordialidade, à alegria e à
hospitalidade considerada típica do povo brasileiro e os limites aparecem vinculados à pouca
formação da mão de obra, por exemplo, em línguas estrangeiras, e à pouca aptidão em empreender.
Veja, por exemplo, o debate organizado pelo Brasilianas.org com Rafael Guaspari (Presidente do
Conselho do Fórum dos operadores hoteleiros do Brasil-Fohb), o professor Luis Gonzaga Godoi
Trigo (Universidade de São Paulo-USP) e José Francisco de Salles Lopes (Diretor do departamento
de estudos e pesquisas do Mtur), mediado por Luis Nassif. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=BEaU0TPsJxs&t=2808s. Acesso em: 20 mai. 2020.
147
produto de consumo passível de competição no mercado internacional de
produtos (lugares) turísticos.
O turismo assim concebido soa ser mais uma forma de fragmentação
do espaço, já profundamente fragmentado por tantas e tão distintas
formas de apropriação. Reduzido à mercadoria, vê-se submetido à
consagração dos enclaves e das bolhas. Neste caso, as desigualdades
regionais tendem a aprofundar-se ao invés de dissiparem-se (CRUZ,
2005, p. 35).
Constata-se que, a partir da reforma do Estado e da ascensão da
lógica neoliberal, o Estado prioriza a promoção das atividades econômicas
desenvolvidas pelos atores hegemônicos (setor empresarial), enquanto a
coletividade se torna cada vez mais subordinada às determinações do
mercado (TAVEIRA; FONSECA, 2009).
Esse percurso é diferente do realizado, por exemplo, pelos países de
capitalismo avançado, como no caso europeu, que consolidou um processo
de produção de bens materiais e de políticas de bem-estar e,
simultaneamente, foram estruturando, de forma mais organizada e
disciplinada, o lazer e o turismo.
O Brasil se lança à sua suposta vocação para o turismo em uma
formação socioeconômica e territorial desigual, segmentada e com
infraestrutura básica de saúde, segurança e moradia precárias, bem como,
sem consolidar um Estado de bem-estar que possibilitasse a massa de seus
trabalhadores gozar de melhores condições de vida e de trabalho.
Com isto, conforme aponta Laurell (1995, p. 163), “no campo
específico do bem-estar social, os neoliberais sustentam que ele
148
pertence ao âmbito privado, e que as suas fontes ‘naturais’ são a família,
a comunidade e os serviços privados”, o que estaria demarcando “um
avanço em relação ao passado”. Coincidentemente, para Soares (2000,
p. 79), registra-se com isto um claro “retrocesso histórico” porquanto
há um “retorno à família e aos órgãos da sociedade civil sem fins
lucrativos, como instância do bem-estar social [para além da esfera do
mercado] (MONTAÑO, 2007, p. 189-190).
Assim, supõe-se que, a partir da constituição do MTUR, o Brasil
passou por um processo de massificação do serviço turístico embasado em
uma suposta vocação devido às suas belezas naturais e culturais, contudo,
sem estabelecer as condições adequadas de desenvolvimento social e de
infraestrutura.
A ideologia da vocação turística, em nosso ponto de vista, deve ser
compreendida como uma forma de reedição do velho determinismo
ambiental, sistematizado e divulgado no século XIX pelo geógrafo
alemão Frederic Ratzel. Repete a mesma procissão histórica dos
determinismos anteriores, com a diferença de que agora não são mais
a extração de riquezas e a produção de mercadorias industriais que
fazem nossa “ordem e progresso”: agora, basta vendermos nossa
paisagem natural, já que temos um povo “naturalmente” receptivo
(OURIQUES, 2005, p. 126).
Observa-se que o turismo, ocupando lugar estratégico no plano de
desenvolvimento do governo, talvez devido a sua dinâmica e à diversidade
de setores que mobiliza, foi utilizado como um dos principais pilares
149
supostamente propulsores do desenvolvimento social e econômico do
país
58
.
Diante desse contexto, o turismo, além de oferecer o gozo e o
relaxamento, foi proposto de forma generalizada e sob uma lógica
empreendedora como alternativa para geração de trabalho e de renda em
diversas localidades que não estavam diretamente transformados para o
consumo turístico, dentre as quais, destacam-se para este estudo o meio
rural e particularmente os territórios das CRQVR.
3.2.2 Uma Viagem rumo ao empreendedorismo e a suposta inclusão
Com o lançamento do Plano Nacional de Turismo 2007-2010
Uma Viagem de Inclusão a regionalização migra de Programa de Roteiros
Integrados para política de desenvolvimento do turismo, ou seja, passou a
ser um macroprograma, reunindo um conjunto de programas, com ações
específicas para desenvolver o turismo no território brasileiro.
Considerado supostamente um poderoso instrumento para gerar
trabalho, renda e inclusão social, o turismo, além de ser estimulado por
meio de uma série de medidas e projetos de capacitação e qualificação
profissional desenvolvido por diferentes EA, também recebeu estímulo
para o consumo de camadas mais baixas, por meio de políticas
segmentadas para aposentados, trabalhadores e estudantes (BRASIL, 2007,
p. 7).
58
Importante destacar que, a partir de 2007, quando o Brasil entra no circuito dos grandes eventos,
todo um arranjo dos mais diferentes ramos industriais e financeiros são articulados para preparar o
país. Assim, além de capacitação de pessoal e adequação do trade turístico, várias obras de
infraestrutura movimentam uma grande parcela da economia nacional.
150
Seguindo os pressupostos da descentralização e de publicização, ou
seja, a transferência da responsabilidade do Estado de áreas consideradas
não exclusivas, diversas EA foram selecionados como parceiras em projetos
de desenvolvimento e capacitação de destinos turísticos
59
.
Para operacionalizar o processo de publicização e o “repasse de
recursos públicos para o âmbito privado”, três conceitos viraram palavras
de ordem: descentralização, parceria e organizações sociais ou terceiro setor
(conjunto de entidades públicas não estatais regidas pelo direito civil
privado) (MONTAÑO, 2007, p. 46).
A respeito do denominado terceiro setor, Montaño (2007) chama a
atenção para a falta de rigor na definição das entidades que o compõem, e
aponta que, no Brasil, como parte do processo neoliberal de
desresponsabilização do Estado, desenvolveu-se uma legislação que ajudou
a criar certas entidades privadas com interesse público, sem fins lucrativos
e não governamental
60
.
Este conceito, mais do que uma “categoria” ontologicamente
constatável na realidade, representa um constructo ideal que, antes de
esclarecer sobre um “setor” da sociedade, mescla diversos sujeitos com
aparentes igualdades nas atividades, porém com interesses, espaços e
significados sociais diversos, contrários e até contraditórios
(MONTAÑO, 2007, p. 57).
59
Seguindo a lógica e as determinações da reforma do Estado de que a partir desse “pressuposto de
que um grande número de áreas, particularmente na social e científica, o Estado pode ser mais
eficiente, desde que use instituições e estratégias gerenciais, e utilize organizações públicas não
estatais para executar os serviços por ele apoiados” (BRESSER PEREIRA, 1998 apud
MONTAÑO, 2007, p. 43).
60
Lei nº 9.608, de 1998: dispõe sobre o Serviço Voluntário; Lei nº 9.637, de 1998: qualifica como
organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, cujas atividades sejam
dirigidas ao ensino pesquisa, desenvolvimento tecnológico, preservação e proteção do meio
ambiente; Lei nº 9.790, de 1999: qualifica pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos,
como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) (MONTAÑO, 2007, p. 203).
151
Frente à falta de rigor sobre a sua especificação e caráter, o chamada
terceiro setor engloba várias EA (ONGs, Oscips, empresas cidadãs,
associações, fundações, instituições filantrópicas) que, apesar de
carregarem a alcunha de serem sem fins lucrativos, mais confundem que
esclarecem.
O próprio caráter de não lucrativo de uma parcela dessas entidades,
em alguns casos, braços assistências de empresas (Fundações Marinho,
Boticário, Bradesco, Itaú) “não podem esconder seu claro interesse
econômico por meio de isenções de impostos, ou da melhora de imagem
de seus produtos” (MONTAÑO, 2007, p. 58).
Na maioria dos casos, as organizações do “terceiro setor” não geram
receitas suficientes para manter em operação; assim, essas organizações
tem extrema necessidade em captar recursos fora de suas atividades
fundantes. Essas atividades e sua característica de “gratuidade” levam a
uma falta de auto sustentabilidade tal que a captação de recursos, ou
fundraising, torna-se não apenas uma atividade essencial da
organização, mas ainda pode passar a orientar a filosofia e a condicionar
a sua “missão” (MONTAÑO, 2007, p. 207).
Sobre a índole dessa tríade que envolve a descentralização, a parceria
e a publicização, diversas ações e projetos voltados ao turismo, seja para
melhorar a competitividade, seja para a inclusão social, seja para geração
de trabalho e renda, foram implementadas por diversas EA em várias
regiões do país.
Como exemplo, destaca-se, de forma geral, a parceria do MTUR
com o Instituto Marca Brasil (IMB), entidade que desempenhou o papel
de coordenar a capacitação, o planejamento estratégico, a governança e a
inter-relação dos destinos indutores, bem como, do Sebrae e da FGV na
152
elaboração e na aplicação do índice de competitividade do turismo nas
regiões.
Atendo-se à presença e aos interesses dessas entidades, com exceção
do IMB, sobre o qual não conseguimos muitas informações, constata-se
que tanto o Sebrae quanto a FGV, organizações supostamente sem fins
lucrativos, são vinculadas ao empresariado e voltadas para desenvolver e
estimular o empreendedorismo
61
.
Vinculado à lógica neoliberal, o avanço de uma visão
empreendedora no Brasil se dá em consequência de uma conjugação de
fatores que envolvem o aumento do desemprego, do subemprego, da
precarização, da desregulamentação do trabalho e da perda de direitos
sociais particularmente após a reforma do Estado (ANTUNES, 2019).
Com a substituição do trabalho regulamentado e contratado, pelo
modo de acumulação flexível nas formas mais distintas de informalidade e
precarização, os trabalhos temporários, terceiri-zados, voluntarismo,
cooperativismo, empreendedorismo ganham cada vez mais destaque
(ANTUNES, 2019).
[...] a noção de empreendedorismo serve de mediação entre a
possibilidade de conseguir emprego ou ocupação e a persistência de um
contexto marcado pela restrição de empregos formais, regulamentados,
fundados em direitos do trabalho. Tal noção, dessa forma, enraíza e dá
sentido à ideia de empregabilidade, porque traduz, de fato e mais
fielmente, a impossibilidade de reversão do tímido papel do mercado
formal, mantidas as características do padrão de acumulação
predominante do capitalismo mundializado, e lança aos próprios
indivíduos a responsabilidade sobre sua condição social. “Ter
61
Para maiores informações sobre Sebrae e FGV, ver:
https://m.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/canais_adicionais/conheca_estrategia;
https://eaesp.fgv.br/escola/historia. Acesso em: 05 jun. 2020.
153
emprego” sucumbe ante a noção de “ser empreendedor” (CÊA, 2007,
p. 310).
Nesse contexto de desemprego e precarização social, o
empreendedorismo em diferentes segmentos do mercado turístico assumiu
uma forma mistificadora como possibilidade de combater o desemprego e
gerar trabalho e renda em uma sociedade que é incapaz de preservar
trabalho digno com direitos (ANTUNES, 2019)
62
.
Diante dessa concepção mistificadora que o empreendedorismo
63
assumiu e das possibilidades de trabalho e renda que devem ser geradas
através da cadeia produtiva do turismo, constata-se que, de forma ampla,
diversos projetos e EA são financiados pelo poder público com o objetivo
de capacitar trabalhadores para empreender junto à cadeia produtiva do
turismo.
A partir do MTUR como órgão da administração direta e
articulador do turismo com os demais ministérios, com os governos
estaduais e municipais, com o setor empresarial, com o terceiro setor e com
instituições públicas, diferentes EA vão agir com o propósito de
desenvolver a segmentação e a capacitação da oferta turística.
Fundamentado em um entendimento positivista sobre novas
motivações de viagens e expectativas dos turistas, os projetos abrangiam
propostas que visavam a identificar, motivar e capacitar novos roteiros
turísticos para atender aos “desejos e preferências” dos diferentes
“consumidores de turismo” (BRASIL, 2010a, p. 09).
62
Disponível em:
https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2019/09/14/entrevista-
sociologo-ricardo-antunes-trabalho-emprego-empreendedorismo.htm?cmpid=copiaecola Acesso
em: 05 jun. 2020.
63
Para uma leitura mais detalhada sobre empreendedorismo, ver: Lopes (2017); Chiavenato (2005).
154
Não só no campo dos editais públicos e dos projetos, mas também
consultando os anais dos Seminários da ANPTUR (2003-2013), contata-
se, no campo dos estudos acadêmicos, uma grande diversidade de trabalhos
e pesquisas abordando as possibilidades e o desenvolvimento do turismo
relacionado a diversos segmentos e temáticas
64
.
No campo acadêmico e científico, o turismo é tratado a partir da
disciplina que o aborda, sobre tudo, ancoradas na necessidade da
mercadoria e produto, dessa forma, foram às necessidades do capital e da
ciência na modernidade que impuseram os caminhos de estudos e análises
sobre o tema. “Por sua vez, cada disciplina constrói conceitos específicos
para cada uma de suas “áreas disciplinares”, além de subáreas do
conhecimento (sociologia rural, urbana, do lazer; antropologia das
sociedades complexas, indigenista)” (SIQUEIRA, 2005, p. 87).
Deis Siqueira (2005, p. 93) ainda aponta que tanto as disciplinas
quanto as ações:
Nasceram com data marcada, a partir das necessidades de realização da
mercadoria e do lucro do investidor capitalista, e no final da
modernidade, ou seja, dentro da expansão do setor de serviços, como
saída às dificuldades do capitalismo de enfrentar a diminuição da
geração de posto de trabalho nos setores primário (agricultura) e
secundário (indústria).
É nesse movimento, em que se mistura uma suposta diversidade
dos interesses do turista, bem como o propósito de combater o desemprego
e gerar alternativas de trabalho e de renda, que o turismo passa a ser uma
64
Sustentabilidade, competitividade, marketing, gestão, segmentação, educação, cultura, meio
ambiente, comunidades tradicionais, economia solidária, entre outras.
155
opção empreendedora para diversas populações do meio rural, incluindo
os remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira.
Entre os diferentes segmentos
65
que passam a ser incentivadas
junto aos remanescentes de quilombos, destacam-se os denominados
segmentos de turismo rural, ecoturismo, turismo de aventura, turismo de
base comunitária, turismo cultural, entre outras variáveis passíveis de ser
convertidas em produtos
66
.
O turismo no espaço rural tem sido tomado como um conceito
guarda-chuva, amplo, que abarca as definições mais específicas das
atividades ocorridas nesse meio, como turismo rural, ecoturismo,
agroturismo, turismo verde, turismo no campo, entre outras
(OURIQUES, 2005).
Em 2004, a partir de uma iniciativa do Ministério de
Desenvolvimento Agrário (MDA) em articulação com MTUR, foi
instituído o Programa Nacional de Turismo Rural na Agricultura Familiar
(PNTRAF), com a finalidade de promover o desenvolvimento rural
sustentável.
O PNTRAF tinha como objetivo implantar e fortalecer atividades
turísticas no meio rural, integradas aos arranjos produtivos locais, com
agregação de renda e geração de postos de trabalho, com consequente
melhoria das condições de vida das populações residentes no meio rural
(BRASIL, 2004a; BONETTI; CANDIOTTO, 2012).
65
Com a função primordial de redução da pobreza, de inclusão social e de melhorias da condição
de vida, os diferentes seguimentos apontados são Turismo Cultural, Turismo Rural, Turismo de
Aventura, Turismo Náutico, Turismo de Pesca, Turismo de Negócios e Eventos, Turismo de
Estudos e Intercâmbio, Turismo Social (BRASIL, 2010).
66
Sobre os cadernos e manuais de segmentação, ver: http://www.turismo.gov.br/assuntos/5292-
caderno-e-manuais-de-segmenta%C3%A7%C3%A3o.html. Acesso em: 10 jun. 2020.
156
O Ecoturismo surgiu a partir dos debates sobre a necessidade de
conservação do meio ambiente por meio de técnicas sustentáveis e da
atividade turística. Possui, entre seus princípios, a conservação ambiental
aliada ao envolvimento das comunidades locais, devendo ser desenvolvido
sob os princípios da sustentabilidade, com base em referenciais teóricos,
práticos e no suporte legal (BRASIL, 2010b).
Conjuntamente, expandem-se as ações pró-ativas do trade
turístico, em especial agências de turismo e meios de hospedagem que
atuam em áreas naturais na operacionalização de atividades que
apresentam correspondência com atividades de outros segmentos, como
Turismo de Aventura, Turismo Cultural, Turismo Rural, entre outros
(BRASIL, 2010b).
O Turismo de Aventura surge como uma atividade associada ao
Ecoturismo, com o decorrer dos anos vai criando certa autonomia, por
meio dos movimentos turísticos decorrentes da prática de atividades de
aventura de caráter recreativo e não competitivo (BRASIL, 2010c).
No fim dos anos 90, os primeiros equipamentos para a realização de
atividades de natureza (capacetes, caiaques infláveis, cordas, entre
outros) começaram a ser produzidos no Brasil. Em 1999, foi
organizada a primeira feira do setor de Turismo de Aventura, a
Adventure Sports Fair, que proporcionou a promoção e conhecimento
sobre as atividades do segmento. A feira teve um importante papel para
o associativismo do segmento, onde algumas associações foram criadas
(BRASIL, 2010c, p. 13).
As mudanças conceituais e as diretrizes de proteção à cultura
tiveram influência direta na caracterização do Turismo Cultural. Diante
da abrangência dos termos turismo e cultura, das inúmeras possibilidades
157
de interação entre as duas áreas em benefício do desenvolvimento de
ambas, o MTUR, em parceria com o Ministério da Cultura e o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e com base na
representatividade da Câmara Temática de Segmentação do Conselho
Nacional do Turismo, realizou a releitura das atividades e de suas
características para, dessa forma, definir e conceituar o Turismo Cultural.
Turismo Cultural compreende as atividades turísticas relacionadas à
vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio
histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo
os bens materiais e imateriais da cultura. [...] Implica em experiências
positivas do visitante com o patrimônio histórico e cultural e
determinados eventos culturais, de modo a favorecer a percepção de
seus sentidos e contribuir para sua preservação (BRASIL, 2010b, p. 15-
16).
A concepção de turismo de base comunitária surgiu a partir da
aproximação entre o debate sobre a atividade turística e a economia
solidária de tal modo que as comunidades possuindo a autogestão do
território, organizam de forma associativa arranjos produtivos associadas à
exploração do turismo.
Registram-se com maior frequência algumas praticas bem sucedidas de
atividades turísticas, com características mais populares, voltadas ao
desenvolvimento social, com distribuição da riqueza. Elas podem
aparecer com nomes variados, como “turismo comunitário”, “turismo
de base local”, experiência de “economia solidária”, “turismo
alternativo”, “turismo solidário” dentre outras denominações.
(CORIOLANO, 2009, p. 57).
158
Para que o turismo seja uma atividade comunitária, Coriolano
(2009) argumenta que é fundamental que as comunidades realizem a
elaboração de um pacto interno com os próprios residentes em defesa de
sua propriedade, comprometendo-se com sua preservação e organização
coletiva.
Considerando que o turismo é um fenômeno que reproduz as
contradições por seguir uma lógica oligopolista controlada pelas
megacorporações do trade turístico internacional, promovendo grandes
níveis de concentração e integração de conglomerados atuantes nos
principais mercados emissores, o turismo de base comunitária tem sido
apresentado como uma alternativa às comunidades autóctones para se
organizarem e resistirem a especulações dessas megacorporações.
Para além da especificidade de cada um, o turismo se manifesta e
expande-se devido a modificações históricas que interferem nos mais
diversos aspectos econômicos, políticos, ambientais e sociais, impactando
consideravelmente todo o ambiente em que ele começa a ser desenvolvido
(CAMPOS; GONÇALVES, 1998).
Ele produz a expansão da lógica mercantil a lugares e populações
até então não inseridas nos circuitos do capital, age como “um novo
dominador, consome paisagens, transforma modos de vida e impõe aos
habitantes locais o império do valor de troca” (OURIQUES, 2007, p. 12).
O capitalismo, sobre tudo o dependente em seu processo de
desenvolvimento não precisa sempre eliminar as culturas populares,
pelo contrário, ele se apropria delas e reorganiza o seu significado e
função, seus recursos preferidos são a reordenamento da produção e do
consumo no campo e na cidade, a expansão do turismo e a presença de
políticas estatais de refuncionalização ideológica (CANCLINI, 1983,
p.12-13).
159
Fascínio pelo nostálgico, pelo rústico, pelo natural são motivações
invocadas pelos agentes do turismo, apesar da exigência homogênea do
sistema capitalista, suas contradições mantém comunidades arcaicas como
museus vivos, oscilação entre a uniformidade e o incentivo seletivo das
diferenças, “requer uma mescla com avanço tecnológico: as pirâmides
ornadas com luz e som, a cultura popular transformada em espetáculo”
(CANCLINI, 1983, p. 67).
Contudo, apesar do avanço do capital e das contradições imposta
pelo desenvolvimento turismo em diferentes grupos autóctones, observa-
se em alguns casos que envolvem comunidades de resistência e de luta,
como veremos no caso das CRQVR, que o turismo assume características
contra hegemônica e tentam e de alguma forma se contrapõem ao modelo
mercantil convencional.
3.2.3 O Turismo no Vale do Ribeira
O Vale do Ribeira, região localizada entre dois dos estados mais
ricos do Brasil, abrangendo respectivamente parte do leste paranaense, e o
sudoeste de São Paulo, em sua porção paulista, área de abrangência desta
pesquisa, além de abrigar a maior quantidade de territórios remanescentes
de quilombos do estado, comporta os mais importantes remanescentes
contínuos de Mata Atlântica do território nacional.
Em meio a uma totalidade mais ampla em que as questões
ambientais vão ganhando cada vez mais espaço político, sobretudo, a partir
da década de 1980, no Vale do Ribeira, região onde está localizada a maior
área continua do bioma original do que resta da Mata Atlântica, ocorreu
um aumento significativo de áreas de proteção ambiental e de UCs.
160
Observa-se que, no governo de André Franco Montoro (1983-
1987), o primeiro governador eleito após um longo período de
autoritarismo sob o regime militar iniciado em 1964, a SULDELPA
67
sofreu uma mudança em seu paradigma de ação, direcionando suas
orientações para as emergentes questões ambientais e para uma suposta
resolução de problemas sociais
68
.
Neste contexto, foram criadas nove novas UCs na região, sendo 6
estaduais e 3 federais (Quadro 5). Contudo, mais uma vez, a ação estatal
pareceu desconsiderar ou mesmo ignorar as populações que já ocupavam
aqueles territórios, e tinham sua sobrevivência baseada, majoritariamente,
na agricultura de subsistência e no extrativismo.
Quadro 5 Unidades de Conservação criadas na década de 1980 no Vale do Ribeira
em São Paulo
UC
Decreto
Ano
criação
Área (ha)
1
Parque Estadual Carlos Botelho
Estadual
1985
22.500
2
Área de Proteção Ambiental Cananéia-Iguape-
Peruíbe
Federal
1984
1.964.600
3
Área de Proteção Ambiental Serra do Mar
Estadual
1984
469.450
4
Área de Relevante Interesse Ecológico Ilha
Ameixal
Federal
1985
356
5
Estação Ecológica Tupiniquins
Federal
1986
43,25
6
Estação Ecológica Chauás
Estadual
1987
2.699,60
7
Estação Ecológica Juréia-Itatins
Estadual
1987
79.270
8
Área de Proteção Ambiental Ilha Comprida
Estadual
1987
17.527
9
Área de relevante interesse Ecológico ZVS Ilha
Comprida
Estadual
1989
13.024
Fonte: Todesco (2007, p. 31)
67
Autarquia criada pelo governo estadual em 1969, sob o regime militar, com o objetivo de traçar
políticas de desenvolvimento para a baixada santista, litoral norte-sul e Vale do Ribeira.
68
Com a provação da Política Nacional do Meio Ambiente - Lei 6.938 de 31/08/1981, a discussão
sobre o Vale vai se deslocando do paradigma econômico-social para o ambiental (TODESCO,
2007).
161
Tal processo, de forma contraditória, ao mesmo tempo em que foi
fortalecendo a questão ambiental e atraindo diferentes entidades e
movimentos de proteção ambiental exógenos à região, enfraqueceu o
debate no território sobre a reforma agrária e a situação fundiária das
comunidades. Estas, por sua vez, passaram a colher um sentimento de que
os ambientalistas traíam seus interesses (ROMÃO et. al., 2006;
TODESCO, 2007).
Em relação às CRQ, as questões ambientais e o aumento
significativo de UCs na região, além de apresentarem elementos que vão
complexificar a luta e os procedimentos para a titulação de seus territórios
devido à sobreposição das áreas, impuseram, por meio da legislação
ambiental, várias restrições às roças de subsistência, limitando suas práticas
agrícolas e o extrativismo.
Carregados por uma lógica de ocultamento e desconsideração
reproduzida historicamente em relação aos grupos subalternos na região, a
ação estatal e as novas restrições ambientais passaram a prejudicar a
reprodução do modo de vida e as práticas de produção das CRQ que já
ocupavam aqueles territórios de mata densa ao longo do rio Ribeira de
Iguape séculos.
A contradição gerada pela forma autoritária como a fiscalização
ambiental foi imposta na região foi de tal tamanho que, segundo o
Relatório Técnico Científico (RTC) da CRQ São Pedro, além de
prejudicar as práticas tradicionais de manejo das comunidades, que ficaram
impedidas de abrir novas roças, potencializou a extração clandestina e
predatória do palmito e não garantiu a proteção ambiental, pelo contrário,
ainda que indiretamente, incentivou a devastação da floresta (SÃO
PAULO, 1998).
162
Compreende-se que tanto a ação estatal imposta à CRQ,
proibindo a instalação de suas roças, e restringindo o uso dos recursos
naturais de seus territórios, bem como, conforme Capobianco (2004) e
Todesco (2007), o aumento do ativismo ambiental e da atuação de
diferentes EA
69
com uma visão preservacionista, estão consubstanciados
numa concepção que Diegues (2001) descreveu como “neomito da
preservação da natureza”
70
.
Tal ideologia tem relação com o conflito entre os interesses
preservacionistas e os interesses tradicionais, sobretudo sobre a questão
ambiental. Nesse embate que envolve saber científico e saberes tradicionais
sobre a natureza, o primeiro, muitas vezes, o só ignora o segundo, como
também o desautoriza, à medida que lhe impõe restrições por meio da
legislação ambiental (DIEGUES, 2001).
Configura-se, nesse caso, o confronto de dois saberes: o tradicional e o
científico-moderno. De um lado está o saber acumulado das
populações tradicionais sobre os ciclos naturais, a reprodução e a
migração da fauna, a influência da lua nas atividades de corte de
madeira, de pesca, sobre os sistemas de manejo dos recursos naturais,
69
Para se ter um parâmetro da diversidade de EA que passam a atuar no território, por parte do
terceiro setor, em 1982, a ONG Oikos é fundada em SP por Fábio Feldmann, Randau Marques e
Roberto Klabin; Em 1986, em um evento com a presença do Governador Franco Montoro para
assinatura do Decreto 24.646, de 20 de janeiro, integrantes da ONG Oikos e do Movimento Pró
Juréia tomam a decisão de criar a ONG SOS Mata Atlântica, que estabelece sede na cidade de
Cananéia em 1986; Em 1989, é fundado o Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e
Paz (Vitae Civilis); Em 1994, João Paulo Capobianco, um dos fundadores da ONG SOS Mata
Atlântica, funda o Instituto Sócio Ambiental. Por parte da ação estatal destaca-se o Consórcio de
Desenvolvimento Intermunicipal do Vale do Ribeira (CODIVAR) em 1989 (TODESCO, 2007).
70
Esse neomito foi transposto dos Estados Unidos para países do Terceiro Mundo, como o Brasil,
onde a situação é ecológica, social e culturalmente distinta. Nesses países, mesmo nas florestas
tropicais aparentemente vazias, vivem populações indígenas, ribeirinhas, extrativistas, de pescadores
artesanais, portadores de outra cultura (chamada neste trabalho de tradicional), de seus mitos
próprios e de relações com o mundo natural distintas das existentes nas sociedades urbano-
industriais (DIEGUES, 2001, p. 10).
163
as proibições do exercício de atividades em certas áreas ou períodos do
ano, tendo em vista a conservação das espécies. Do outro lado está o
conhecimento científico, oriundo das ciências exatas que não apenas
desconhece, mas despreza o conhecimento tradicionalmente acumu-
lado. Em lugar da etnociência, instala-se o poder da ciência moderna,
com seus modelos ecossistêmicos, com a administração "moderna» dos
recursos naturais, com a noção de capacidade de suporte baseada em
informações científicas (na maioria das vezes, insuficientes)
(DIEGUES, 2001, p. 42).
Nesse sentido, “o mundo natural tem vida própria, é objeto de
estudo e manejo aparentemente sem a participação dos seres humanos”
(DIEGUES, 2001, p. 42). Essa tendência que supostamente monopoliza
o conhecimento lido sobre a natureza relega ao esquecimento todo um
leque de conhecimentos locais sobre ela (DIEGUES, 2001, p. 42).
Entende-se que essa ideologia preservacionista, ao mesmo tempo
em que prejudicou a manutenção do modo de vida dos CRQ, e levou
muitos para a atividade clandestina, gerou dependência de produtos
adquiridos no meio urbano e também potencializou, segundo Pinto
(2014), a migração para grandes centros como São Paulo e Curitiba, em
busca de melhores condições de trabalho.
Por parte da ação estatal, é importante destacar a contradição e a
seletividade do discurso e da ação, pois, ao mesmo tempo em que
endurecia a fiscalização e as restrições sobre as práticas agrícolas e
extrativistas das CRQ, com um suposto pretexto de preservação ambiental,
também estudava a liberação do projeto para a construção de barragens ao
longo do rio Ribeira e a liberação para construção de duas usinas nucleares
no Morro do Grajaúna e Maciço da Juréia
71
, ambos empreendimentos
71
Em 1980, por meio do Decreto Federal 84.771, uma área de 23.600ha foi destinada como de
utilidade pública com a finalidade da construção de usina nucleares sob responsabilidade da
164
passíveis de grande impacto socioambiental e danos à preservação da
natureza.
Nesse contraditório contexto de conflito de interesses, a mineração
também ocupa papel de destaque. Base do processo histórico de ocupação
da região, com a construção da BR 116, novas empresas do setor aparecem
com interesse na região, passando a atuar mais intensamente a partir da
década de 1970.
Segundo reportagem do ISA (2013)
72
, a quantidade de solicitações
para mineração em territórios quilombolas tem aumentado
substancialmente, de tal forma que as leis e regulamentos de preservação
parecem não se refletir na prática para a atividade. Em conversas com
quilombolas da cidade de Eldorado, muitos questionavam que, para a
regularização fundiária e a liberação de suas roças, a legislação é plenamente
endurecida, porém, ao mesmo tempo, é flexível aos interesses da
mineração, permitindo, sem grandes discussões, escavações e pesquisas no
território.
Em relação às EA que passam a ganhar notoriedade no cenário
político e socioambiental do Vale do Ribeira, já nos últimos anos século
XX, Capobianco (2004) e Todesco (2006), analisando a ação do terceiro
setor, apontam que, num primeiro momento, elas tinham uma visão
preservacionista, situação que fez com que as comunidades os vissem,
muitas vezes, como traidores. Contudo, com o decorrer dos debates e das
diretrizes que foram discutidas essencialmente na ECO 92, muitas dessas
Empresa Nucleares Brasileira S.A (NUCLEOBRAS). Foi um período de conflitos e contradições
que perpassam a proteção ambiental como símbolo (simbolicamente um espaço natural intocável)
que se finda com a criação da Estação Ecológica Juréia- Itatins em 1986, solução que foi considerada
uma vitória do movimento ambientalista (TODESCO, 2007).
72
Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/impactos-
socioambientais-da-mineracao-no-vale-do-ribeira-sao-debatidos-em-seminario. Acesso em 01 out.
2020.
165
entidades vão modificando a orientação de suas ações, transitando de uma
compreensão preservacionista para uma orientação conserva-cionista e de
desenvolvimento socioambiental.
Diante desse complexo e contraditório contexto que envolve a
organização da luta das CRQ contra a construção de barragens no Ribeira,
e pela titulação de seus territórios, os limites impostos pela legislação
ambiental as suas práticas agrícolas e extrativistas, as dificuldades para
titulação dos territórios devido à sobreposição com UCs, e do crescente
assédio dos interesses da mineração, o turismo surge como uma
possibilidade de desenvolvimento sustentável
73
para as comunidades da
região.
Ocorre que, a partir dos anos 1990, tanto pelo Estado, por meio
de programas e incentivos, mas, também, por diferentes entidades públicas
e privadas, que passam a ter cada vez mais destaque e atuação na região, o
turismo, em especial, o denominado segmento do Ecoturismo, passa a ser
cada vez mais vislumbrado como uma possibilidade de modernizar e gerar
desenvolvimento sustentável para a região.
Em 1995, o governador Mario Covas, eleito no ano anterior, inicia
o processo de construção da Agenda de Ecoturismo do Vale do Ribeira, um
programa regional desenvolvido com o objetivo de estudar, planejar e
fomentar o ecoturismo na região como uma estratégia de desenvolvimento
sustentável
74
.
No mesmo ano, atuando principalmente no baixo Ribeira
(Iguape), e na parte litorânea (Cananéia e Ilha do Cardoso), a ONG SOS
73
Capobiando (2004) e Todesco (2007) destacam que uma importante entidade criada nessa
perspectiva de desenvolvimento sustenvel foi Instituto Socioambiental (ISA), em 1994,
concidentemente, uma das principais entidades que desenvolve trabalhos com as CRQVR.
74
Disponível em: http://www.iea.sp.gov.br/out/LerTexto.php?codTexto=775. Acesso em 01 out.
2020.
166
Mata Atlântica (fundada em 1986 e com sede em Cananéia) com o
objetivo de desenvolver um rede de destinos distribuídos estrategicamente
entre Iguape e Cananéia, e de um trade pool de operação local, inicia o
projeto Pólo Ecoturístico do Lagamar (PEL)
75
.
Conforme estudo realizado por Capobianco (2004) e Todesco
(2007), tanto as ações do Estado para a região, quanto a da SOS Mata
Atlântica, tiveram influência das Oficinas de Capacitação em Ecoturismo,
executadas em parceria pelo Conservation International e a Embratur em
1994.
Promovido pela Conservantion International em parceria com a
Embratur, nessas oficinas estavam presentes o Devancyr A. Romão do
Instituto de Economia Agrícola do Estado de São Paulo (IEA)
vinculado a secretaria de agricultura - mentor e coordenador da Agenda
de Ecoturismo do Vale do Ribeira e os consultores João Allievi e Oliver
Hillel formuadores do PEL (TODESCO, 2007, 170)
76
.
Importante destacar que, com a Reforma do Estado implantada no
primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, pavimentando o caminho
para a lógica neoliberal e para o “enxugamento” do Estado, a
descentralização, publicização e parceria, passam a fazer parte do modus
operandi do Estado. Contudo, apesar da aparente “intenção progressista”,
não conduz a outro sentido senão ao de reafirmar/legitimar o aspecto
conservador/regressivo da (contra-) reforma do Estado e do novo trato à
“questão social” (MONTAÑO, 2007, p. 87).
75
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/10/28/turismo/31.html e
https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/22D00019.pdf. Acesso em 02 out.
2020.
76
Também em 1994, a Embratur, em parceria com o Ministério de Meio Ambiente e Ministério
da Industria, do Comércio e Turismo, publicou as “Diretrizes para uma Política Nacional de
Ecoturismo”; os consultores João Allievi e Oliver Hillel, propositores do projeto do PEL, também
participaram da elaboração do documento.
167
Com base em particularidades segmentadas por fora do Estado, e
sem o devido questionamento ao modo de produção, visando ao consumo
e à redistribuição (com demandas surgidas das necessidades da população)
não só supraclassistas, mas em parceria e articulada com o capital e com o
Estado, esse novo trato foi acompanhado das perdas dos direitos
conquistados no contexto de Bem-Estar (MONTAÑO, 2007).
De forma contraditória, essas demandas não surgem diretamente
das necessidades da população, mas das condições de financiamento das
entidades e fundações financeiras; a perspectiva de luta e confronto são
trocados pela parceria e acordo entre classes; a procedência popular das
demandas passa a ser definida pelas áreas de interesse ou ação das entidades
financeiras ou pelo Estado, sem as mediações necessárias, encobrindo seu
real beneficiário, o capital” (MONTAÑO, 2007, p. 149-150).
Diante dessa nova orientação da ação estatal, como parte da Agenda
de Ecoturismo, entre 1995 e 1996, foi desenvolvido o primeiro curso de
monitores ambientais por meio do programa de Agentes Municipais de
Ecoturismo, coordenado pela ONG Ing-Ong de Planejamento. Viabilizado
com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), as atividades
se concentraram no Alto Ribeira (região das cavernas) e se desdobraram,
ao passo que, em 2003, já tinham sido formados 450 monitores ambientais
(TODESCO, 2007).
Também como parte da Agenda, foi idealizada, com auxílio da
consultoria Bioma Assessoria e Educação Ambiental, o primeiro Inventário
Turístico do Vale do Ribeira. Realizado por meio do convênio firmado entre
a Fundação Florestal (FF) e a Embratur, o Inventário buscou levantar: a)
os atrativos naturais da região que tem como fonte os próprios acidentes
naturais ou recursos da fauna e da flora; b) os atrativos culturais
168
relacionados com atividades humanas; e c) os equipamentos e serviços de
infraestrutura turística disponíveis na região
77
.
Os dados do Inventário subsidiaram a Oficina de Avaliação e
Planejamento dos Trabalhos da Agenda de Ecoturismo do Vale do Ribeira.
Realizado em 1999 no Parque Estadual da Ilha do Cardoso com o
propósito de analisar os avanços e deficiências dos trabalhos, a Oficina
contou com a participação de representantes das prefeituras de vários
municípios da região, ONGs, associações de monitores ambientais,
proprietários de pousadas, estudantes de turismo e equipe da Agenda de
Ecoturismo.
Na Oficina, foi elaborado um documento denominado Carta da
Ilha do Cardoso. Esse documento destaca, entre os avanços obtidos em
relação aos trabalhos desenvolvidos, o próprio Inventário Turístico, a
capacitação dos monitores, a conscientização das pessoas, tanto do meio
urbano como do meio rural, para a importância do ecoturismo na região,
e a criação de várias organizações de diferentes níveis para articular as ações
necessárias.
No que tange às deficiências diagnosticadas, foram apontados a
relativa ausência de coordenação regional, a falta de integração dos
diferentes atores sociais da região, a falta de infraestrutura e de legislação
pertinente, bem como a pouca noção da importância do ecoturismo como
atividade econômica, o baixo apoio para seu desenvolvimento e a ausência
de crédito.
Ao observar os avanços e as deficiências diagnosticados na Carta,
constata-se uma clara contradição quando, por exemplo, afirma-se a
conscientização das pessoas tanto do meio rural quanto o meio urbano, ao
77
Disponível em: http://www.iea.sp.gov.br/out/LerTexto.php?codTexto=775. Acesso em 05 out.
2020.
169
mesmo tempo em que aponta a pouca noção dos sujeitos locais sobre a
importância econômica do ecoturismo para a região
78
.
Seguindo nessa leitura histórica sobre o turismo na região, no ano
2000, durante o segundo mandato do governo Mario Covas, foi realizado,
no município de Registro, com representantes do CODIVAR e UVEVAR
(União dos Vereadores do Vale do Ribeira), o Fórum de Desenvolvimento
do Vale do Ribeira: Caminhos do Futuro, uma proposta sustentável.
Após uma suposta análise das considerações expressas em planos
anteriores, o Fórum identificou “três grandes vertentes vocacionais para a
região: Turismo, Mineração e Agropecuária/ Pesca” (SÃO PAULO, 2000,
p. 7). Considerou-se que os três ramos se desenvolviam de maneira
espontânea e desorganizada, carecendo de incentivos, fomentos e
planejamentos ordenados para alavancar o crescimento econômico e social
dos municípios que integram a região (SÃO PAULO, 2000).
Prevendo a atuação sobre “as três grandes vertentes vocacionais” da
região, o governo estadual anunciou no Fórum a criação do Fundo de
Desenvolvimento Econômico e Social do Vale do Ribeira
(FUNDESVAR). Todesco (2007) afirma que o FUNDESVAR, apesar de
se mostrar de grande relevância, não conseguiu alterar o quadro
socioeconômico da região, entre outros fatores, por causa das condições
irregulares de domínio da terra e da própria falta de conhecimento dos
processos burocráticos para empréstimos por parte da população
79
.
Também no ano 2000, a Agenda de Ecoturismo, além de integrar-
se na elaboração do Fórum, entra com pedido de recurso junto ao Fundo
Nacional de Meio Ambiente (FNMA), ao Programa Nacional de
78
Disponível em: http://www.iea.sp.gov.br/out/LerTexto.php?codTexto=775. Acesso em 05 out.
2020.
79
Todesco (2007, p. 181) salienta ainda que “Um fundo de desenvolvimento para o Vale era visto
como necessário desde a ‘Operação Caiçara’ de 1958”.
170
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e ao no Fundo
Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO) por meio do Comitê de
Bacias, para elaborar o projeto Desenvolvimento sustentável da bacia do
Ribeira de Iguape: uma análise das condições e limitações socioeconômicas ao
ecoturismo.
Visando, entre outras questões, analisar as informações do
Inventário de 1998 e, de fato, elaborar um plano de desenvolvimento
turístico para a região, os recursos para o projeto só foram aprovados em
2002, fato que tornou as informações defasadas, de tal forma que foram
necessárias atualizações e novas parcerias.
Todesco (2007, p. 183) destaca, nesse contexto, a ONG Instituto
Vitae, que, por meio do projeto Apoio a Conservação da Mata Atlântica no
Corredor Ecológico da Serra do Paranapiacaba no Alto Ribeira, criou um
Grupo Consultivo
80
com a função de formular um Plano Estratégico de
Desenvolvimento do Ecoturismo na região.
De acordo com Todesco (2007), os interesses da Agenda e do
Instituto Vitae convergiam, pois, ao tempo em que a primeira pretendia
desenvolver um plano para o desenvolvimento do turismo em todo o Vale,
a segunda pretendia trabalhar na mesma linha, mas com foco no Alto Vale;
isto possibilitou uma unificação dos esforços de estudos e análises.
Desde os resultados e o produto final apresentado pela Agenda em
2003, intitulado de Desenvolvimento Sustentável da Bacia do Ribeira de
Iguape uma análise das condições e limitações socioeconômicas ao ecoturismo,
Todesco (2007) afirma que, até aquele momento, ele teria sido o trabalho
mais completo sobre turismo para a região, contudo, em vez de
80
Esse grupo era formado por organizações da sociedade civil, terceiro setor, prefeituras,
empreendedores do setor turístico, órgãos estaduais e mídia local (TODESCO, 2007, p. 193).
171
potencializar uma ação integrada, foi o último trabalho da Agenda, que
acabou sendo isolada dentro do corpo de Governo.
Em relação aos resultados do Instituto Vitae, também apresentados
em 2003, apesar de ostentar como êxitos a formação e manutenção do
Grupo Executivo para aplicação do Plano Estratégico de Ecoturismo do Vale,
Todesco (2006) ratifica que este só se reuniu em 6 ocasiões e que não
conseguiu se consolidar como Fórum de Ecoturismo do Vale como previa a
ONG; dessa forma, após o prazo de execução, terminou como mais uma
ação pontual e sem continuidade na região.
Em 2004, a Fundação Florestal (FF) propôs o projeto Conservação
e Sustentabilidade no Continuum Ecológico de Paranapiacaba SP. Tal
projeto não abrangia todo o Vale, mas todos os municípios que têm
Parques Estaduais em seus territórios (Eldorado, Iporanga, Sete Barras,
Tapiraí, Apiaí, Guapiara, Capão Bonito e São Miguel Arcanjo).
Imagem 2 – Mapa de Unidades de Conservação que compõem o
continuum
ecológico
de Paranapiacaba
Fonte: Campos (2011 p. 14).
172
Para fazer a articulação local, foi proposta a formação de um
Comitê Gestor composto por órgãos públicos estaduais (FF, ITESP e
Instituto Florestal) e organizações da sociedade civil (ISA, IDESC,
Instituto Amigos da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, Associação
Quilombolas e Comunitárias). Contudo, observa-se a ausência de inserção
do poder público local (prefeituras) (TODESCO, 2007).
Para financiar o projeto, a FF recorreu ao Fundo Brasileiro para a
Biodiversidade (FUNBIO) por meio do Programa Integrado de
Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade (PICUS), porém, como
este só financiava organizações do terceiro setor, o ISA foi colocado como
proponente do projeto Conservação e Sustentabilidade no Continuum
Ecológico de Paranapiacaba SP.
Em uma coordenação conjunta entre FF e ISA, o projeto foi
aprovado com orçamento de um milhão e meio de dólares e prazo de doze
anos para a execução. Entretanto, apesar de aprovado, o FUNBIO
interrompeu o repasse de recurso pela falta de contrapartida dos
proponentes e o projeto acabou por ser paralisado (TODESCO, 2007).
A partir da virada do século e do começo do século XXI, após a
Reforma do Estado e o estabelecimento de marcos regulatórios mais bem
definidos para atuação do terceiro setor, bem como dos processos de
concessão, parceria e terceirização, organizações, endógenas ao território do
Vale do Ribeira, também são criadas, dentre elas, destaca-se o IDESC,
constituído em 2001, e o CONSAD, constituído em 2004.
Dessa forma, também em 2004, outro projeto que se inicia na
região é o Plano de Desenvolvimento Sustentável Territorial do Vale do
Ribeira, abrangendo a porção paulista e paranaense do Vale. O Plano foi
uma ação proposta de forma integrada pelo MMA, MDA e MDS com
173
financiamento do FUNBIO e viabilizado pelo CONSAD (TODESCO,
2007).
No mesmo ano, foi realizado o Fórum de organizações do
CONSAD, e o IDESC foi escolhido como a entidade responsável pela
execução do projeto. Todesco (2007) destaca ter sido esta a primeira ação
mais incisiva do Governo Federal na região e que isso pode estar ligado à
baixa dinâmica econômica da região, configurando-se como prioritária
para as políticas de combate à pobreza desenvolvidas pelo Governo Lula
da Silva.
Com base nos estudos de Carolina Todesco (2007), compreende-
se que a concepção de desenvolvimento do turismo no Vale do Ribeira vai
sendo dinamizada de forma mais efetiva por meio do incentivo estatal a
partir dos anos de 1990, e da atuação de organizações do terceiro setor,
que não têm sua atuação de origem ligada ao turismo mas,
particularmente, às questões ambientais.
Esse processo ocorre em meio ao avanço das problemáticas
relacionadas ao meio ambiente, mas, também, das concepções neoliberais
e, sobretudo, da Reforma do Estado, acontecimentos que abriram caminho
para que tanto os processos de planejamento, mas, principalmente, as
atividades de capacitação e as ações diretas no território fossem passíveis de
publicização e terceirização.
Maria Bezerra Macedo (2017), analisando o PRODETUR/NE e a
terceirização na política pública de turismo, destaca como esse processo se
amplia ao longo dos anos e, além de impactar atividades centrais da
competência do Estado, sobretudo, de planejamento, gera a precarização
do serviço público devido ao baixo investimento na contratação e no
treinamento do pessoal de quadro de funcionários.
174
Sobre os processos de terceirização, seja para realização de
capacitação, diagnóstico e planejamento, Montaño (2007) demonstra
como isso é contraditório e dependente, pois, como ocorreram com
diversos projetos desenvolvidos no Vale, quando cessa o repasse de recursos
estatal por algum motivo, os projetos acabam sem seu desenvolvimento de
forma contínua e integral, e as organizações voltam seus esforços para
conseguir recursos.
Montaño (2007, p. 209) demonstra como as organizações sem fins
lucrativos têm debilidades para manter seu autossustento. Isso faz com que
a captação de recursos (fundraising) se torne atividade essencial, gerando
certa profissionalização da atividade. Isso escamoteia os fundamentos da
“missão” organizacional e alimenta certo fetiche da doação como padrão de
regulação social: constitutiva de direito e de caráter universal para uma
“esmola” oficializada e “profissionalizada”.
É nesse contexto, em que o turismo cresce como uma possibilidade
de desenvolvimento sustentável e modernização do Vale, bem como de
geração de trabalho e renda, que as CRQ, em parceria com diferentes EA,
passam a organizar de forma mais elaborada as possibilidades de trabalhar
com o turismo em seus territórios.
Compreende-se que isso se deu em meio à necessidade de organizar
de forma articulada a resistência e a sobrevivência. Resistência aqui se faz
em seu sentido amplo, mas, principalmente no território, contra o
ocultamento perante as leis estatais ao longo dos anos, contra os
empreendimentos capitalistas em seus territórios, e contra uma visão
ambientalista pura e fetichizante da natureza.
E a sobrevincia, também em seu sentido amplo, mas
essencialmente no território, lutando pela garantia do direito adquirido,
pela preservação do seu lugar, pela manutenção de seu modo de vida e da
175
sua cultura, precisando e aprendendo a se relacionar com uma série de
novos atores, legislações e adversidades que vão afetar a dinâmica de seus
territórios.
Diante disso, as CRQ André Lopes, Ivaporunduva, Mandira,
Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, São Pedro e Sapatu, em conjunto
com o ISA e o apoio da Associação de Monitores Ambientais de Eldorado
(Amamel), da Rede de Turismo Rural na Agricultura Familiar (Redetraf)
e da Rede Brasileira de Turismo Solidário e Comunitário (Rede Turisol),
desenvolvem o Circuito Quilombola de Turismo Comunitário do Vale do
Ribeira (CQTVR), como vemos no tópico seguinte.
3.2.3.1 A caminhada e a correria para a construção do
Circuito
Quilombola de Turismo Comunitário do Vale do Ribeira
(CQTVR)
Considerando a tônica de Marx (2008, p. 207) de que os “homens
fazem sua própria história, mas não há fazem segundo a sua livre vontade,
mas nas circunstâncias imediatamente encontradas e transmitidas pelo
passado”, compreende-se que o Circuito Quilombola de Turismo
Comunitário do Vale do Ribeira (CQTVR) é produto da luta dessas
comunidades, articulada às necessidades e possibilidades de resistência e
sobrevivência no território.
Tanto a caminhada, quanto a correria, propostas no título desta
subseção, buscam articular esse processo histórico, compreendendo que,
apesar de as comunidades desenvolverem sua própria história (caminhada)
de luta e resistência em seus territórios, elas o fazem sob as circunstâncias
(correrias) imediatamente encontradas, conforme Marx (2008).
176
A categoria caminhada, dentro de uma cultura e linguagem negra
e periférica, está relacionada ao percurso que já vem sendo trilhado de
longa data; ela está relacionada a uma jornada mais ampla e ao acúmulo
adquirido ao longo do tempo, e dos percursos possíveis e percorridos.
Já a categoria correria, no contexto e linguajar cotidiano de
comunidades negras e periféricas, sobretudo dos mais jovens, está
relacionada aos afazeres do dia a dia, aos compromissos, às obrigações, à
labuta referente às necessidades e possibilidades ligadas à sobrevivência
imediata.
Dessa forma, entende-se que a aproximação das CRQ com o
turismo no Vale do Ribeira está relacionada a uma caminhada histórica de
resistência e de luta dessas comunidades negras pela conquista da
propriedade de seus territórios, articulada às correrias necessárias para
sobreviverem e manterem sua territorialidade e seu modo de vida.
Às transformações políticas, econômicas e culturais na transição do
século XX para o século XXI, as CRQ encontravam-se no empasse de
defender e lutar por autonomia de seus territórios, mas, também, de
articular essa luta às necessidades e possibilidades de sobreviver e manter
seu modo de vida no território.
Importante destacar, nesse contexto, o avanço da lógica neoliberal,
assimiladas pelas classes dirigentes a partir dos ditames do Consenso de
Washington, e ajustada por meio da reforma do Estado, estabelecendo os
parâmetros legais para desobrigação e terceirização das ações do Estado,
particularmente em relação às questões sociais.
Como já destacado no capítulo 2, a região do Vale do Ribeira, em
sua porção paulista, além de abrigar parte do maior contínuo de Mata
Atlântica preservada, também abriga a maior quantidade de remanescentes
de quilombos do estado de São Paulo. Segundo dados do ISA, são mais de
177
60 comunidades (ver quadros 2 e 3) vivendo em meio à mata por toda a
região.
Historicamente subjugada e mesmo invisibilizada e criminalizada
pela ação estatal, essas comunidades, ao passo que conquistaram, no bojo
da luta do movimento negro, o direito de propriedade de seus territórios,
e o direito de salvaguarda de seu modo de vida e da sua cultura, é
impactada pelo avanço dos interesses capitalistas sobre seus territórios, pela
sobreposição dos territórios com UCs, e com uma ideologia
preservacionista que enfraqueceu o debate sobre a situação fundiária dos
grupos subalternos na região.
Diante desse contexto em que a questão ambiental passou a ganhar
cada vez mais destaque no cenário político global, o Vale, por ter o maior
remanescente do pouco que resta da Mata Atlântica, atraiu a atenção e a
presença de diversas entidades e ativistas ligados à questão ambiental.
Como destacado no capítulo anterior, grande parte dessas
entidades, que eram exógenas ao território, tinham uma visão
preservacionista que prejudicou o debate sobre a reforma agrária, a
titulação dos territórios quilombolas e a situação fundiária das
comunidades da região, situação que gerou um sentimento de
desconfiança por parte das comunidades em relação aos interesses das
entidades ambientalistas.
Com certa mudança de paradigma que transfere a orientação de
algumas entidades para uma concepção mais conservacionista e de
desenvolvimento sustentável, o turismo vai cada vez mais sendo inserido
no contexto do Vale como uma possibilidade de desenvolvimento
sustentável.
Nesse cenário que conta também com incentivos estatais,
quilombolas de diferentes comunidades da região, aproveitando as
178
possibilidades dadas por meio de projetos e cursos, vão se aproximando do
debate e se inteirando de um conhecimento mais sistematizado sobre o
turismo.
Visto que, desde 1995, por meio da Agenda de Ecoturismo, e
também do PEL, vários cursos, particularmente de monitor ambiental,
foram oferecidos na região. Constata-se, a partir da formação da
Associação de Monitores Ambientais de Eldorado (AMAMEL), que vários
quilombolas participaram dos cursos
81
.
José Rodrigues (2019), liderança do Quilombo Ivaporunduva,
relatou-nos não ter certas a data e nem a entidade que ofereceu o primeiro
curso de monitor ambiental, mas que foi em meados da década de 1990.
Reforçou que vários quilombolas fizeram curso de monitor ambiental e
que, a partir dessas formações, já nesse período, começaram a trabalhar
com o turismo na comunidade
82
.
Na conversa, o quilombola ainda relatou que, no início, não se
tinha estrutura de recepção e que isso, na época, era feito nas casas de taipa
dos moradores, e as “conversas”, ou seja, a apresentação da história da
comunidade, quando o grupo era mais numeroso, era feita na Praça da
Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
83
.
81
A AMAMEL é uma associação com mais de 20 anos de atuação na região, formada
exclusivamente por quilombolas. A Associação é responsável pela monitoria ambiental no Parque
Estadual Caverna do Diabo. Disponível em:
https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/fundacaoflorestal/2019/02/parque-caverna-
do-diabo-tera-monitoria-ambiental/. Acesso em: 03 nov. 2020.
82
SILVA, José Rodrigues, Quilombo Ivaporunduva, em apresentação realizada durante visita ao
Quilombo Ivaporunduva, em 23 de agosto de 2019.
83
SILVA, José Rodrigues, Quilombo Ivaporunduva, em apresentação realizada durante visita ao
Quilombo Ivaporunduva, em 23 de agosto de 2019.
179
A Capela de Nossa Senhora do Rosário foi erguida por escravos negros,
em taipa de pilão, por volta de 1775, na região de Ivaporunduva, cuja
riqueza, ainda por esta época, devia-se à extração de ouro. A conclusão
das obras da capela apenas se efetivou no século XIX, ocasião em que
se introduziu a capela-mor, em alvenaria de pedra cangicada. A planta
constitui-se de nave única e de capela-mor, este último corpo menor e
mais baixo, coberta por telhado de duas águas. A sua fachada principal,
bem simplificada, possui uma única porta e, acima, na altura do coro,
duas janelas
84
.
Foto 1 – Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
Autor: João Henrique Souza Pires (2019).
Com base nas visitas que realizamos e nas referências que
consultamos sobre o turismo na região, considera-se que os quilombolas
começaram a ter contato com um conhecimento mais elaborado sobre o
turismo, bem como uma compreensão de desenvolvê-lo como uma
alternativa socioeconômica, entre outros fatores, devido à realização das
84
Disponível em: http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/capela-nossa-senhora-do-rosario-
dos-homens-pretos/. Acesso em: 01 dez. 2020.
180
roças estarem prejudicadas pela fiscalização ambiental e pelos cursos
ofertados por diferentes EA.
Apesar de reconhecermos certo interesse estatal em potencializar o
turismo na região, como também as ações de diferentes EA atuando na
proposição de diagnóstico, capacitação e planejamento para o
desenvolvimento do turismo na região, constata-se certa ausência de
atuações direcionadas mais especificamente aos quilombolas.
A partir dos trabalhos de Todesco (2007), Aguiar e Souza (2017),
Santana (2008), e da entrevista com Thiago Marques do Oliveira (analista
de desenvolvimento agrário do Itesp) em 2018, observa-se que a atuação
das entidades na promoção do ecoturismo nesse período que abrange a
transição do século XX para o século XXI, além de ser bastante pontual,
estava muito influenciada pela ideia da promoção da mercadoria
paisagem
85
.
Nesse momento em que o turismo, em especial o ecoturismo, vai
ganhando espaço na região, as ações, apesar de trazerem uma alusão ao
desenvolvimento sustentável, tinham uma compreensão mais voltada à
promoção e ao preparo do território com trilhas, cavernas, cachoeiras e
natureza conservada, para o consumo consciente da mercadoria ecoturista.
Tanto as ações estatais como das EA que atuavam com a promoção
do ecoturismo na região foram, sob uma lógica de transferência do
conhecimento, de promoção de oficinas e de capacitação, que forneceu um
primeiro conhecimento para alguns quilombolas sobre o tema, ao passo
que desconhecia e/ou subjugava os interesses prioritários das CRQ no
território.
85
Importante destacar que, nesse contexto, o debate sobre a questão agrária e fundiária sofria grande
influência da ideia de agricultura familiar, visto que o PRONAF se tornara uma das principais
políticas para a pequena agricultura, estandardizando um modo de organização do território e da
agricultura.
181
Buscando descobrir quando e como se deu a elaboração do
CQTVR, identificou-se que o projeto Programa Comunidades
Quilombolas (PCQ) da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), desenvolvido pelo Grupo de Trabalho de Turismo e
Educação Ambiental (GTTEA), talvez tenha sido a primeira ação que
buscou trabalhar o turismo especificamente junto as comunidades
quilombolas da região.
Diante das diferentes EA que atuavam na região, com a
UNICAMP e o PCQ, identificamos pela primeira vez a presença da
Universidade Pública como proponente e coordenadora de um projeto
com o objetivo de desenvolvimento do turismo articulado à educação
ambietal, direcionado especificamente para uma parcela organizada das
CRQVR (SANTANA, 2008).
O GTTEA do PCQ da UNICAMP atuou no território entre 2005
e 2006, ainda no primeiro Governo Lula da Silva. Dessa forma, entende-
se que ele estava inserido num contexto diverso de debates sobre o papel
da universidade, e particularmente da extensão universitária, articulada a
outros temas como tecnologia social, economia solidária e turismo de base
comunitária
86
.
Segundo entrevista do professor Celso Lopes, um dos
coordenadores do projeto, as ações foram constituídas a partir das
86
Importante destacar, nesse contexto, as Incubadoras Tecnológica de Cooperativas Populares
ITCP, criadas no âmbito do Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida (COEP) pelo
COPPE/UFRJ em 1995, com o apoio da Finep e da Fundação Banco do Brasil (FBB). A missão
desse projeto era desenvolver a metodologia de incubação de cooperativas populares e de difusão
dessa tecnologia social para outras universidades do país. Em 1997, foi criado o PRONINC -
Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares, tendo como signatários a Finep, o
Banco do Brasil, a FBB e o COEP. Em 2003, no primeiro governo Lula da Silva, a Finep e a
Fundação Banco do Brasil, em parceria com a Secretaria Nacional de Economia Solidária
(SENAES), do Ministério do Trabalho e Emprego, retomaram a discussão sobre os rumos do
PRONINC, decidindo financiar novas ITCP’s e dar apoio à manutenção das incubadoras em
operação.
182
demandas levantadas junto às comunidades de André Lopes, Sapatu, São
Pedro, Poça, Pilões e Galvão, sendo elas:
Agentes Comunitários de Desenvolvimento; Agroindústria; Arte;
Capoeira; Comunicação e Divulgação; Desenvolvimento de Sítios na
Internet; Elaboração e Administração de Projetos; Escolas; Espaço
Quilombola na Unicamp; Esportes; Gestão Cultural; Informática;
Memória, Origens e Costumes; Produção Cultural; Turismo e
Educação Ambiental
87
.
Sendo um projeto de extensão universitária, o PCQ, além de ter
como objetivo articular mediações e atividades que resultassem em ações
integradas e em benefício ao desenvolvimento das comunidades
quilombolas da região, também objetivou a possibilidade e oportunidade
de exercitar uma relação de responsabilidade acadêmica com as classes
subalternas e a experiência e formação diferenciada dos discentes
envolvidos.
As seis comunidades levantadas e selecionadas para o projeto estão
localizadas na região do médio Ribeira, mais especificamente nos
municípios de Eldorado e Iporanga. Todas, em alguma medida,
enfrentavam problemas com a lentidão do processo de regularização
fundiária, a fiscalização ambiental embargando as roças, e a sobreposição
de seus territórios, particularmente com o Parque Intervales e o antigo
Parque Estadual do Jacupiranga (PEJ), atual MOJAC
88
.
87
Disponível em:
https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/divulgacao/gestao2005_09/cap3_
extensao.php. Acesso em: 02 dez. 2020.
88
Criado por decreto estadual em 1969, com aproximadamente 150.000ha abrangendo parte dos
municípios de Barra do Turvo, Cajati, Cananéia, Eldorado Paulista, Jacupiranga e Iporanga, em
2008, com o intuito de resolução de partes dos conflitos na região, fragmentou o antigo PEJ e criou
o Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga (MOJAC) com 3 Parques Estaduais, 5
183
De acordo com Ivie Santana (2008), das seis comunidades que
eram atendidas pelo GTTEA/PCQ/UNICAMP, apenas Sapatu e And
Lopes apresentaram, naquela ocasião, interesse nas ações relacionadas ao
turismo articulado à educação ambiental. A autora (2008) destaca que
ambas estão localizadas próximas à Rodovia Benedito Pascoal de França
(SP-165), via que dá acesso à Caverna do Diabo e à cachoeira do Meu
Deus, dois dos principais atrativos naturais da região.
Santana (2008) relata que, apesar do interesse, havia muita
preocupação em relação às atividades turísticas nas comunidades, e que
este receio estava ligado à própria natureza rural delas, ao pouco
conhecimento sobre o turismo e à ameaça de uma visitação desordenada
que, entre outras coisas, poderia trazer mudanças nos hábitos
comunitários, riscos de consumo de drogas, prostituição e a invasão das
casas familiares.
Segundo exposição e análise de Santana (2008), o planejamento
foi desenvolvido com base no contexto social das comunidades e na ideia
comunitária de turismo. Dessa forma, a proposta foi construída
procurando articular os aprendizados científicos adquiridos na
universidade e os saberes locais, tendo como orientação a necessidade do
controle territorial frente à interferência sociocultural, e privilegiando o
uso comunitário ao uso turismo.
Visto que, pelo fato de abrigar belezas naturais, passíveis de serem
exploradas como atrativos, os territórios já recebiam diferentes turistas.
Considera-se que a importância das ações desenvolvidas junto aos
Quilombos Sapatu e André Lopes pelo GTTEA se apresenta por
Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), 2 Reservas de Extrativismo (RESEX) e 4 Áreas
de Proteção Ambiental (APA), entre elas, a APA Quilombola do Médio Ribeira em Eldorado e
Iporanga, com uma área de 64.625,4ha Ver quadro 4 e Figura 1.
184
estabelecer um diálogo que possibilitou que as comunidades pudessem
fazer uma reflexão mais crítica sobre o turismo em seus territórios.
Considera-se que as ações articulando os interesses e as demandas
da comunidade com o debate sobre o turismo de base comunitária, e o
controle do território, apresentaram elementos importantes, que
contribuíram com a consciência sobre a importância de as comunidades se
inserirem no debate do turismo, e que este não estava apartado da luta para
manter certo grau de autonomia e controle sobre os seus territórios.
Apesar de entender o GTTEA/PCQ/UNICAMP como um
projeto importante, que estabeleceu um debate mais elaborado e crítico
sobre o turismo com os quilombolas, foi alguns anos mais tarde, a partir
da parceria estabelecida no projeto coordenado pelo Instituto Sócio
Ambiental (ISA), que as comunidades André Lopes, Ivaporunduva,
Mandira, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, São Pedro e Sapatu se
organizaram em torno do Circuito Quilombola de Turismo Comunitário do
Vale do Ribeira (CQTVR).
Raquel Pasinato em entrevista realizada em 2018, relatou-nos que
a demanda por formação sobre o turismo apareceu para o ISA durante o
desenvolvimento do projeto da Agenda Socioambiental de Comunidades
Quilombolas do Vale do Ribeira, realizado entre 2004 e 2008. Destacou que
algumas comunidades que já vinham trabalhando com o turismo
apresentaram interesse na construção de um trabalho mais sólido para os
territórios.
O ISA, em articulação com as Associações das CRQ André Lopes,
Ivaporunduva, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, São Pedro e Sapatu,
em Eldorado, e Mandira, em Cananéia, que demonstraram interesse em
aprofundar o conhecimento sobre as possibilidades e impactos do turismo,
185
formularam um projeto, que contou com apoio financeiro do MTUR,
para trabalhar o turismo nas comunidades.
Raquel Pasinato (2018), explicando o desenvolvimento do projeto,
destacou que, num primeiro momento, foi realizado um processo de
formação, de pensar o turismo que eles queriam. Relatou que havia uma
grande preocupação com o potencial exploratório e consumista que o
turismo possui, e que, nesse contexto de estudos, o turismo de base
comunitária se apresentou como a alternativa mais adequada
89
.
Apesar das contradições intrínsecas ao turismo, por seguir uma
lógica oligopolista imposta pela mundialização do capital e, em alguma
medida, pela mercantilização do tempo e do espaço, Cruz (2009) destaca
que o turismo comunitário se apresenta como uma possibilidade e
alternativa em que as comunidades autóctones assumem o controle de seu
desenvolvimento nos territórios.
Durante a pesquisa empírica nos Quilombos Pedro Cubas, Pedro
Cubas de Cima, Sapatu e Ivaporunduva, entre 2018 e 2019, ficou
evidente, nas conversas com representantes das comunidades, que, além da
possibilidade de gerar renda e trabalho particularmente para a juventude e
para as mulheres, apropriar-se do turismo também parecia ser essencial
para manter certo grau de autonomia e autocontrole dos territórios.
Compreende-se que o CQTVR foi resultado de uma proposta que
articulou a história de luta e resistência no e pelo território, com o
reconhecimento do modo de vida dos quilombolas e com a preservação e
manutenção do patrimônio cultural e natural que cada comunidade
possuía. Com referência à apresentação descrita no livreto elaborado pelo
89
PASINATO, Raquel, Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 08 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
186
ISA (2013) em parceria com as Associações dos Quilombolas, observa-se
que:
Esta é uma oportunidade única de fazer turismo de base comunitária e
ao mesmo tempo conhecer a cultura afro-brasileira, participando de
seu cotidiano, observando seus conhecimentos tradicionais, visitando
as belezas naturais e, principalmente, ouvindo as histórias de luta e
resistência das comunidades, que contribuem até hoje para preservar as
riquezas da sociobiodiversidade da região.
Ainda sobre as visitas que realizadas nas quatros comunidades
supracitadas, constatou-se, além da preocupação e da importância de ter o
controle de acessos a seus territórios, também o objetivo de trazer aos
visitantes a história ocultada da literatura convencional sobre a cultura
negra e a luta dos quilombolas ao longo dos anos.
Tal qual a proposta de autocontrole e auto-organização das próprias
Associações Quilombolas e da ocupação dos territórios, entende-se que os
debates e estudos sobre turismo também seguiu parâmetros e se compôs
por meio da cooperação e da auto-organização, buscando, além do bem-
estar e da equidade custo-benefício, a preservação da natureza, do modo
de vida e da cultura.
Além da coordenação do ISA e das Associações das sete
comunidades envolvidas na construção do projeto, destaca-se, também, a
participação da Associação de Monitores Ambientais de Eldorado
(Amamel), da EAACONE, da Rede de Turismo Rural na Agricultura
Familiar (Redetraf), e da Rede Brasileira de Turismo Solidário e
Comunitário (Rede Turisol) (ISA, 2013).
187
Diante das informações coletadas durante a pesquisa empírica,
compreende-se que o CQTVR propôs a organização dos territórios para
receber visitação com o objetivo, além de gerar recursos para subsistência,
também de divulgar/apresentar suas tradições culturais, a luta afro-
brasileira e a riqueza cultural e natural preservada pelas comunidades.
Importante destacar, conforme os próprios quilombolas costumam
dizer, que o acesso às comunidades é um tanto dificultoso, primeiro pela
escassez do transporte público e da precariedade da SP-165, rodovia de
acesso às seis comunidades de Eldorado. Segundo, pela própria distância,
sendo que Sapatu, a mais próxima do centro urbano, está a cerca de 30
km, e São Pedro, a mais longe, na divisa com o município de Iporanga,
fica a cerca de 60 km Ribeira acima.
Com exceção de Sapatu e Ivaporunduva, para acessar as demais
comunidades (São Pedro, Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima) em
Eldorado, ainda é necessário atravessar o rio Ribeira de Iguape pela balsa e
percorrer uma distância de aproximadamente 13 km de estrada não
pavimentada.
Para acessar o Quilombo do Mandira, única comunidade do
Circuito que não está localizada no município de Eldorado, mas em
Cananéia, o acesso é feito pela Estrada Itapitangui/Ariri na altura do km
11, que fica a aproximadamente 35 km do centro urbano do município de
Cananeia.
Com referência ao livreto de divulgação do CQTVR, aos
Relatórios Técnicos Científicos (RTC) das comunidades realizados pelo
ITESP e o trabalho de campo, aponta-se, de modo sumário, as sete
188
comunidades que optaram por iniciar com um turismo comunitário
diferenciado em seus territórios
90
.
Inicia-se pelo Quilombo Ivaporunduva, o mais antigo da região.
Surgiu no século XVII, com a ocupação de mineradores e pessoas negras
escravizadas antes mesmo da formação de Eldorado. Com o declínio da
mineração, a população negra que ficou na região foi ampliando sua
ocupação sobre as terras e estabelecendo um reduto de negros livres,
libertos e fugidos. Ivaporunduva organizou seus atrativos turísticos em
gastronômico, cultural e natural.
Na sequencia apresentam-se o Quilombo São Pedro.
Diferentemente de Ivaporunduva, São Pedro organizou seus atrativos
apenas em naturais e culturais. Constituído por volta de 1830, sua
formação está ligada ao Quilombo Galvão, seu vizinho direto, ambos
possuem parentesco com Bernardo Furquim, negro livre que ficou
conhecido por ter mais de 20 filhos e constituir várias famílias na região
(ISA, 2013).
Formado em meados de 1830 devido à expansão da ocupação
realizada por grupos de negros em torno de Ivaporunduva, São Pedro e
Nhunguara e de negros fugidos do recrutamento forçado para a Guerra do
Paraguai, o Quilombo André Lopes é o único quilombo de Eldorado que
possui ensino fundamental I e II na Escola Estadual Maria Antônia Chules
Princes, responsável por receber estudantes dos demais quilombos do
munícipio.
90 Para mais informações sobre os atrativos turístico do Circuito, ver o livreto CIRCUITO
Quilombola do Vale do Ribeira: turismo de base comunitário. Disponível em
https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/circuito-quilombola-do-vale-do-ribeira-
turismo-de-base-comunitaria. Acesso em 13 mai. 2019.
189
Na sequência, evidencia-se o Quilombo Sapatu, formado por volta
de 1870, também por negros que fugiram do recrutamento forçado para a
guerra do Paraguai e famílias vindas de outras comunidades que foram
ocupando a área. A comunidade se estabeleceu pelo grau de parentesco,
pelas relações internas de convivência e de uso e ocupação da terra; as
famílias estão organizadas no território em três grandes núcleos
(Indaiatuba, Sapatu e Cordas).
A origem dos Quilombos Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima
igualmente está associada à formação dos outros quilombos da região, em
especial, Ivaporunduva, pois muitos dos troncos familiares registrados em
Ivaporunduva também aparecem em Pedro Cubas e Pedro Cubas de
Cima, conforme registros do Livro de Terras de Xiririca/Eldorado. Apesar
de serem formalmente duas comunidades separadas, são formadas por
famílias aparentadas que compartilham as mesmas referências históricas e
culturais. Diante disso, optaram por organizar os atrativos turísticos em
conjunto.
Por último, apresenta-se o Quilombo Mandira, o único do
Circuito que está localizado no munícipio de Cananéia. O quilombo foi
constituído em terras doadas por Celestina Benícia de Andrade a seu irmão
Francisco Mandira em 1868. Francisco era filho de uma escrava com
Antônio Florêncio de Andrade, pai de Celestina e antigo dono da fazenda
onde hoje é a comunidade.
Para além dos atrativos apresentados no livreto, observa-se, ao
visitar a região, observar e sistematizar a exposição de lideranças dos
Quilombos Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, Sapatu e Ivaporunduva,
que as comunidades buscam a ideia de um turismo diferenciado, mais
adequado ao seu modo de vida e contrário à lógica exploratória do mercado
capitalista.
190
Ivo, do Quilombo Sapatu, nos relata, em entrevista realizada por
WhatsApp, que o turismo de base comunitária é importante tanto para
gerar uma renda que colabora com a economia interna da comunidade,
como também para resgatar e manter viva a história da comunidade e da
importância do sistema agrícola quilombola
91
.
Relata que, a partir do turismo comunitário, trabalha-se, dentro do
território do quilombo Sapatu, com o segmento de aventura através de
trilhas, cachoeira e cavernas; e com o segmento étnico-cultural e
pedagógico, voltado à recepção de grupos e estudantes com interesse em
conhecer a cultura local, o sistema agrícola quilombola e a história de luta
e resistência dos quilombolas.
Benedito Alves da Silva (Ditão), membro do Quilombo
Ivaporunduva, evidencia que a comunidade trabalha com o turismo de
“um ponto de vista étnico-cultural”. Enfatiza que a visitação só pode ser
realizada com agendamento e que, a despeito de receber grupos de turistas
nacionais e internacionais, dão preferência para grupos de escolas e
faculdades
92
.
O quilombola José Rodrigues, liderança histórica de
Ivaporunduva, relata que, durante as visitas dos grupos de escolas e
faculdades, ele e outros quilombolas que têm formação de monitor
ambiental fazem palestra para os alunos contando a história do Vale, dos
quilombos e da luta do povo negro da região
93
.
91
ROSA, Ivo Santos, Monitor ambiental, Quilombo Sapatu, em entrevista realizada por João
Henrique Souza Pires, em 05 de outubro de 2020, via WhatsApp.
92
Disponível em:
https://www.facebook.com/movimentopopularlivre/videos/2103747766438617/. Acesso em: 05
jul. 2020
93
SILVA, José Rodrigues, Quilombo Ivaporunduva, em apresentação realizada durante visita ao
Quilombo Ivaporunduva, em 23 de agosto de 2019.
191
Ainda sobre como o turismo se inseriu no contexto das
comunidades, Dona Diva, do Quilombo Pedro Cubas de Cima, evidencia
que, a partir dos cursos e aprendizados, o debate sobre o turismo ajudou a
comunidade a se organizar em torno da auto-organização do território e do
acesso dos terceiros
94
.
Kauê, monitor ambiental também do Quilombo Pedro Cubas de
Cima, salienta que a organização do turismo se constituiu como uma
atividade necessária para o conhecimento e controle do território, bem
como uma possibilidade de renda para os jovens e para as mulheres por
meio do artesanato e da gastronomia
95
.
Diante disso, apesar de concordarmos com Ouriques (2005, p.
112) quando defende que o turismo carrega um impulso fascinante de
dominação capitalista sobre a paisagem e as “manifestações tradicionais,
inclusive inventando-as e recriando-as de forma espetacular”, considera-se
que o CQTVR, para além de atrair a mera contemplação bucólica e/ou
folclórica, busca consolidar-se como território de resistência e construção
de novas relações sociais, ambientais e culturais.
É evidente que os quilombolas, em alguma medida, têm
consciência de que uma parcela dos turistas que visitam as comunidades
busca experiências valorizando o romântico, o lúdico, o nostálgico, o
rústico, a natureza preservada e a folclorização da cultura, mas não é isso
que eles buscam incentivar.
Seja por meio da auto-organização sócio produtiva dos quilombolas
no território, bem como da expressão de sua territorialidade, identifica-se
um movimento interessante e diferenciador quando se pensa no turismo,
94
SILVA, Edvina (Dona Diva), Quilombo Pedro Cubas de Cima, em entrevista realizada por João
Henrique Souza Pires, em 16 de agosto de 2020, em Eldorado/SP.
95
SILVA, Kauê Santos, Monitor ambiental, Quilombo Pedro Cubas da Silva, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 06 de novembro de 2018, em Registro/SP.
192
visto que se contrapõe à lógica liberal burguesa de propriedade privada e
de coisificação socioambiental.
Essas comunidades, que lutam pela propriedade coletiva e não
alienável, bem como pela soberania e auto-organização dos seus territórios,
buscam construir uma proposta de desenvolvimento do turismo contra
hegemônico e adequado a sua autodeterminação e aos seus interesses, ou
seja, com fortes características de não mercantilização.
Visto que as CRQVR são grupos que se organizam pelo
pertencimento, pela ancestralidade negra transmitida de geração em
geração ao longo dos tempos e pelas práticas de resistência na manutenção
de seus modos de vidas contrastivas à territorialidade do capital, e o
turismo sendo uma atividade que se desenvolve primordialmente sobre
uma lógica fetichista e espetacular “que mercantiliza o tempo livre e
transforma o valor de uso do território em valor de troca” (OURIQUES,
2005, p. 86), considera-se que existe uma clara contradição entre os
princípios das comunidades quilombolas, que desenvolvem uma
identidade coletiva e de contraposição aos projetos de hegemonia do
capital, e o desenvolvimento do turismo, entendido como uma
apropriação capitalista do tempo e do espaço.
Apesar das contradições entre os quilombolas, antigo reduto de
resistência e de luta da população negra, durante muito tempo
criminalizado, e até os dias atuais sem ter seu pleno direito à propriedade
assegurado, e o turismo, atividade que se desenvolve sob a luz do
desenvolvimento capitalista, da mercantilização e do consumismo, o fato
é que o turismo se apresenta quase que de forma inevitável, faz parte da
vida dos quilombolas. Diante dessa imposição, tornou-se imprescindível
que se estabelecesse um processo de estudos e de debates para que as
comunidades pudessem se preparar da melhor forma possível para lidar
193
com o avanço do turismo sobre os seus territórios e, acima de tudo,
controlá-lo.
Nesse sentido, compreende-se que o processo constituído
particularmente por meio da ação do GTTEA/PCQ/UNICAMP e do
ISA, com o Programa Vale do Ribeira, gerou elementos de mediação
consideráveis para se construir uma alternativa com e pelas comunidades.
Em tempos de neoliberalismo, observa-se que a mediação/relação nesses
casos estabelece elementos teóricos e práticos compromissados com a
identidade e emancipação das comunidades, criando espaços coletivos de
estudos e de decisões sobre as possibilidades ou não do turismo nas
comunidades.
Com referência em Novaes (2012, p. 133), considera-se que o
serviço dessas entidades buscou romper como o modelo difusionista e de
transferência tecnológica, e desenvolveu-se com o objetivo de “fortalecer a
capacidade de gerar conhecimentos, já existente na comunidade
capacidade de questionar, analisar e testar possíveis soluções para os
próprios problemas”.
Dentro dos limites e possibilidades dados pela própria lógica
neoliberal, que determina as ações de cima para baixo, observa-se que as
mediações/relações construídas tanto pela UNICAMP, quanto pelo ISA,
com as comunidades, buscaram fortalecer o diálogo e a capacidade de
autoaprendizagem para a auto-organização do turismo comunitário, não
mercantilizado, em seus territórios, ou seja, os remanescentes de
quilombolas não perderam o controle do território para uma grande
empresa de turismo, muito menos para uma empresa de hotelaria,
preservando as relações sociais naquele território.
194
195
4
Entidades de Apoio, CRQVR e Turismo Comunitário
4.1 O modelo convencional de
Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER)
Destaca-se que, quando iniciamos nosso projeto de pesquisa,
tínhamos como objeto de análise a relação entre a Assistência Técnica e
Extensão Rural (ATER) pública convencional e as CRQVR. Contudo,
durante as pesquisas bibliográficas e, posteriormente, durante a pesquisa
empírica, foi confirmado que tal relação, ou melhor, a relação pontual
entre o ITESP e as comunidades, demonstrou certo limite de relevância
para o trabalho.
Contudo, como iniciamos com um intenso trabalho de pesquisa
bibliográfica sobre a ATER convencional, decidimos manter essa análise,
menos pela sua importância na proposição do CQTVR, e mais pela sua
referência e relevância histórica enquanto entidade que realiza trabalho
intelectual junto às populações do meio rural até os dias atuais.
Gramsci (2001), ao analisar o papel dos intelectuais, entende que
a especificidade do seu trabalho se dá pela ação sobre a consciência e na
formação da ideologia, assim, dentro do conjunto das relações sociais,
entende-se que ele é o ‘ator’ que faz a mediação entre a classe dominante e
os grupos subalternos, formam e difundem a ideologia dominante entre os
grupos sociais, e formalizam a hegemonia da classe dirigente e dominante.
196
Diante das reflexões de Gramsci (2001) sobre os intelectuais,
compreende-se que o serviço convencional de ATER brasileiro, cumpriu,
no meio rural, a função de intelectuais da burguesia no processo da
modernização conservadora e difusão da revolução verde, ou seja, foram os
principais profissionais que realizaram a mediação técnica científica entre
as classes dominantes e os grupos subalternos com a finalidade de conservar
o status quo.
O processo de expansão do serviço de ATER no Brasil está bastante
vinculado aos acordos bilaterais e às políticas de ajuda junto aos Estados
Unidos da América (EUA). Oliveira (2013) destaca que, a partir de 1945,
acordos particularmente de cooperação técnica entre os dois países
injetaram recursos materiais e intelectuais, com perspectivas de trocas de
tecnologia e formação de técnicos brasileiros via intercâmbio em cursos e
treinamento nos EUA.
Sob essa influência, foi criada em 1945 a Comissão Brasileiro-
Americana de Educação das Populações Rurais (CBAR) que, com o apoio
da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), estabeleceram as condições para a Campanha Nacional de
Educação Rural, cujo fundamento era a ideia de que o atraso das zonas
rurais decorria da falta de preparo do homem do campo (SOUZA;
CAUME, 2008).
A proposta defendia um “plano de educação complementar de
novo tipo”. Dessa maneira, era um “empreendimento educativo”, com
característica de um ensino informal (fora da escola) e objetivo de
“produzir mudanças nos conhecimentos, nas atitudes e nas habilitações
para que se atingisse o desenvolvimento tanto individual como social”
96
96
Fato ilustrativo é a propaganda difundida a partir de 1948 pelo interior do país pela Associação
Brasileira de Crédito e Assistência Rural (ABCAR) “Um homem, uma professora e um jipe”
(OLIVEIRA, 2013; RODRIGUES, 1997; SOUZA; CAUME, 2008).
197
(FONSECA, 1985 apud OLIVEIRA, 2013, p. 64). O planejamento foi
moldado sob a influência da política agrícola estadunidense e da
articulação das classes patronais nacionais reunidas na Associação Brasileira
de Crédito e Assistência Rural (ABCAR) (OLIVEIRA, 2013).
Observa-se que, apesar de criada como uma entidade sem fins
lucrativos, de direito civil privado e com a finalidade última de maximizar
a produção agrícola brasileira, a ABCAR possuía relação direta com o
Ministério de Agricultura, tanto pela alocação de recursos quanto pela
manutenção e contratação de pessoal que prestava serviços de assistência
técnica e extensão rural (OLIVEIRA, 2013).
Caporal (1991) aponta que o modelo importado era
profundamente dependente, tanto que a Associação Internacional
Americana (AIA), e o Escritório Técnico Brasil-Estados Unidos (ETA),
foram seus membros fundadores e mantenedores junto com o Banco do
Brasil, a Confederação Rural Brasileira (CRB) e suas filiadas.
Posteriormente, ingressaram o Ministério da Agricultura, o Ministério da
Educação e Cultura (MEC), Serviço Social Rural (SSR), Instituto
Brasileiro de Café (IBC) e o Banco Nacional de Crédito Corporativo
(BNCC). Nessa dinâmica, técnicos americanos integravam a assessoria da
ABCAR, e técnicos brasileiros obtiveram oportunidades de treinamento
nos EUA (CAPORAL, 1991, p. 38).
Com referência em Rodrigues (1997), observa-se que, a partir
dessas ações, o serviço de ATER convencional, durante quase toda a
segunda metade do século XX, passou basicamente por três períodos que
marcam as suas diretrizes e características de ação.
Guardadas as especificidades e interesses hegemônicos de cada
período, apresenta-se, na tabela abaixo, de forma sumária, a prevalência, a
especificidade, os principais elementos e características do serviço de
198
ATER estatal, convencionalmente estabelecida pelo Estado brasileiro a
partir da década de 1940.
Quadro 6 – Caracterização sumária dos três períodos que marcam o processo
evolutivo da extensão rural no Brasil
Especificidade
Especificação Humanismo
assistencialista
Difusionismo produtivista
Humanismo crítico
Prevalência
1948-1962
1963-1984
1985-1989
Unidade de
Trabalho
Família rural
Produtor Rural
Família rural
Orientação
pedagógica
Ensinar a fazer fazendo
Difusionista
Dialógica-problematizadora
Papel do agente
de extensão
Indutor de mudanças de
comportamento
Elaborador de projetos de
crédito rural
Catalisador de processos
sociais
Tipo de
planejamento
Vertical ascendente
Vertical descendente
Circular
Papel da
tecnologia
Apenas subjacente:
instrumento para melhorar
as condições de vida da
família rural
Finalístico: modernizar o
processo produtivo
aumentando a
produtividade da terra e do
trabalho
Essencial, mas dentro de
padrões de equilíbrio
ecológico, energético e
social.
Tipo e uso do
crédito rural
Supervisionado: cobre
investimentos no lar e na
propriedade (produtivos ou
não)
Orientado: voltado para
produtos com o fim de
viabilizar tecnologias de uso
intensivo de capital
Orientado: voltado
preferencialmente para
viabilizar tecnologias
apropriadas”
Organização da
população
Cria grupos de agricultores,
donas de casa e jovens rurais
Não se preocupa com este
tipo de ação
Estimula a organização e o
associativismo rural
autônomo
Fonte: Rodrigues (1997, p. 122).
Tendo como referência o quadro elaborado por Rodrigues (1997),
pode-se observar que o serviço de ATER, a partir do Humanismo
199
Assistencialista, foi proposto com o objetivo de educar os pequenos
agricultores com vistas a melhorar suas condições de vida, e difundir
conhecimento como indutor de mudanças de comportamento. Buscou
modernizar formas de pensamento e comportamento do homem do
campo brasileiro, consideradas atrasadas e anacrônicas (RODRIGUES,
1997, SOUZA; CAUME, 2008; OLIVEIRA, 2013).
Sob a égide da ideologia nacional desenvolvimentista, e do anseio
em superar o atraso no campo, o serviço de ATER foi estabelecido de
forma a garantir instrumentos de interiorização do progresso técnico, a fim
de dar meios para que a agricultura cumprisse suas funções de produção
(RODRIGUES, 1997; CAPORAL, 1991).
Para tanto, foi instituído, em 1948, o Crédito Rural
Supervisionado (CRS), com a suposição de atender a uma parcela da massa
de proprietários marginalizados (minifundiários, arrendatários, parceiros e
ocupantes) que, em função de não auferirem rendas suficientes para
colocarem em prática aquilo que aprendiam, não podiam se beneficiar
plenamente de um trabalho educacional como era o serviço de extensão.
Essa modalidade de crédito, destinada fundamentalmente a capitalizar o
pequeno produtor, procurou conjugar os serviços de crédito à educação
rural (RODRIGUES, 1997; CAPORAL, 1991).
O CRS destinava-se prioritariamente a atender pequenos
agricultores, com o objetivo de cobrir despesas de investimento e custeio,
não só de atividades agrícolas, como também de economia doméstica, para
a melhoria das condições de habitação, nutrição, saúde, educação,
vestuário e lazer (RODRIGUES, 1997).
Contudo, na medida em que o Estado se defronta com a
necessidade de intervir mais diretamente para modernizar a base técnica
produtiva do setor agrícola, e passa a utilizar instrumentos de
200
planejamento mais sistematizados, o serviço de ATER vai ser modificado
pelas diretrizes das prioridades estabelecidas pelos planos governamentais,
como aconteceu com o Plano Trienal de 1963-65 (CAPORAL, 1991;
RODRIGUES, 1997; OLIVEIRA, 2013).
A partir da década de 1960, com a clara finalidade de dar
dinamismo e expandir os serviços de ATER no interior do país, por
exemplo, a ABCAR é redirecionada por um novo plano com significativas
metas de crescimento e práticas produtivistas que distorcia a orientação e
o público-alvo definido até então
97
.
Essas orientações eram mais flexíveis e propagavam a difusão de
tecnologias atreladas ao Crédito Rural Orientado (CRO), tornando-se
estratégia central do programa de ATER, que abandona por completo o
Humanismo Assistencialista e configura um modelo que se convencionou
chamar de Difusionismo Produtivista (RODRIGUES, 1997; SOUZA;
CAUME, 2008).
O modelo Difusionismo Produtivista foi imposto sob a lógica da
modernização conservadora e do paradigma da revolução verde durante a
ditadura militar, caracterizado pela não realização da reforma agrária, pela
transferência tecnológica e pela formação limitada da força de trabalho
para o ciclo capitalista urbano. Expressa categoricamente o
desenvolvimento dependente do capitalismo brasileiro e o
conservadorismo do pacto político das elites nacionais.
97
Para fins de provável qualificação para o crédito supervisionado, em 1956, a ABCAR classificou
as famílias rurais em três grupos: a) agricultores grandes: administrativamente sofisticados,
tecnologicamente modernos e geralmente com acesso ao crédito; b) agricultores médios:
intermediários entre agricultores grandes e pequenos; c) agricultores pequenos: propriedades
demasiadamente pequenas para oferecer condições mínimas de subsistência ou proporcionar uma
base modesta para a formação de capital, que faziam uso de técnicas tradicionais, além do que
apresentavam deficiências em todos os aspectos, o que dificultava conseguirem tirar proveito do
Programa de ATER (OLIVEIRA, 2013).
201
A Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
(EMBRATER), criada em 1974, marca a consolidação, de uma vez por
todas, das orientações do Difusionismo Produtivista. Ela assume a ação de
braço forte do Estado junto ao povo rural, tendo como empenho a função
de potencializar a modernização e guiar o processo de implantação do
pacote tecnológico da revolução verde.
A criação da EMBRATER e, posteriormente, das EMATER, deu ao
Estado um novo poder de ação junto ao meio rural, pois como diziam
os Ministros na Exposição de Motivos n.º 08/74, que propunha ao
Congresso a criação da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e
Extensão Rural (EMBRATER1975:10), se fazia necessário um
“mecanismo de operação flexível e poderoso”, um “organismo forte e
ágil”, um “instrumento rápido e eficiente para a execução de programas
integrados...”. Desde então, as atividades de Assistência Técnica e
Extensão Rural das empresas públicas respondem aos interesses
maiores, estabelecidos nos planos do governo, quer no nível federal,
quer no estadual (CAPORAL, 1991, p. 59).
O CRO foi direcionado às culturas agrícolas sob a base do uso
intensivo de capital e do aumento da produção e da produtividade da terra
e do trabalho, cobrindo despesas de custeio e investimento. Tinha como
beneficiários, preferencialmente, médios e grandes empresários rurais
possuidores de um patrimônio que garantisse a obtenção do crédito e a
necessária capacidade de pagamento (SOUZA; CAUME, 2008).
Supostamente, pequenos produtores também teriam acesso ao
crédito, desde que produzissem uma renda razoável e apresentassem
capacidade potencial de pagamento, e disposição de aceitar e receber
orientação para incremento da produtividade de seu empreendimento
agrícola (SOUZA; CAUME, 2008).
202
A inadequação entre os pressupostos teóricos e a prática só foi
reconhecida formalmente quando, por exemplo, a ACAR-MG, através do
seu Plano Diretor para o quadriênio 1968/72, estabeleceu um novo estilo
de trabalho, inspirado no slogan “Integrar para Desenvolver”. A partir de
então, suas ações foram definidas para “assistir o agricultor que explora
comercialmente sua propriedade, ao invés de pequenos e médios
produtores, cuja evolução é demorada e retarda o avanço econômico do
Estado” (SILVA, 1969, p. 17).
A população rural brasileira, bastante diversa, foi dividida em três
categorias: a) os grandes empresários, que deveriam receber orientação
específica, em termos de assistência técnica, para que fizessem melhor uso
dos fatores de produção; b) os pequenos e médios proprietários, que
deveriam ser estimulados a um conjunto de maiores necessidades e na
maneira de satisfazê-las produtivamente; e c) os meeiros e assalariados
(cerca de 80% da população do campo), que deveriam ser conduzidos à
sindicalização rural, aos quais estaria feita sua assistência, promovendo sua
capacitação para direcionarem-se às cidades (SOUZA; CAUME, 2008).
O Difusionismo Produtivista implicou um processo de
aceleramento da penetração da lógica capitalista na produção agrícola e no
trabalhador rural, bem como o endividamento devido aos crescentes custos
produtivos diante da dependência do uso intensivo de fertilizantes de
síntese química, de agrotóxicos, e pela deterioração dos recursos do solo e
da água que foram tornando os recursos naturais escassos.
O tamanho das grandes fazendas aumentou substancialmente […]. A
taxa de adoção de novas tecnologias estava diretamente relacionada ao
tamanho da propriedade […]. Houve uma rápida adoção de tecnologia
biológica, e especialmente, de fertilizantes químicos; esse processo de
adoção aumentou significativamente os custos de operação [...]. Houve
203
um dramático aumento no uso de crédito agrícola nos anos recentes;
todos os aumentos da oferta de crédito foram canalizados através de
instituições formais de crédito; […]; taxas reais negativas de juros
geralmente prevaleceram e distorceram a alocação de capital e crédito;
taxas reais negativas de juros também resultaram em substancial
transferência de renda para os usuários de crédito (SILVA, 1981, p.
29).
Assim, à medida que os objetivos produtivistas se tornaram
hegemônicos nos procedimentos das entidades de ATER, em detrimento
de metas humanistas, a pequena produção vai sendo abandonada, tanto
em relação às políticas de financiamento produtivo, quanto de serviço. Foi-
se, gradativamente, construindo o paradigma de que esse segmento social
seria potencialmente incapaz de atender, com eficiência, às novas
demandas de uma economia em processo de industrialização e urbanização
(SOUZA; CAUME, 2008).
Segundo Pretto (2005), a posse da terra era requisito exigido para
obtenção do crédito bancário, condição única pela qual se atribuía ao solo
um valor de mercado em razão dos financiamentos que eram repassados
com taxas de juros negativas, ou seja, uma espécie de transferência de renda
entre os que contraíam os empréstimos e os credores.
Essa postura acentuou as desigualdades entre os pequenos, médios
e grandes produtores, contribuindo para a expansão da miséria dos
pequenos produtores, visto que estes precisaram se desfazer dos seus meios
de produção, dadas as dificuldades, ou mesmo a impossibilidade, de se
manterem e sobreviverem ante a expansão da modernização no campo.
Muitos dos pequenos proprietários tiveram que aumentar a sua jornada de
trabalho e a da sua família, ao passo em que alguns findaram por vender
sua força de trabalho a outrem.
204
A política agrária adotada no processo de modernização, de
revolução verde e de difusionismo produtivista, teve claros interesses de
substituição de uma parcela dos trabalhadores pela intensa mecanização e
a não realização de mudanças na estrutura fundiária, contribuindo para a
formação de uma grande massa de sujeitos em desempregos sazonais.
Mesmo uma parcela dos trabalhadores tentando manter-se na área
de origem, intensificando a produção no espaço disponível, e buscando
complementar a renda fora da unidade familiar, a exemplo do part-time
farmer, ou imigrando para tentar a sorte na fronteira agrícola, o saldo foi
uma grande parcela da população vivendo em condições miseráveis nas
áreas periurbana e/ou periferias das grandes e médias cidades, em
desempregos sazonais, buscando renda em ocupações agrícolas e não
agrícolas, quando não no crime (MARTINS, 1994; DELGADO, 2001;
SILVA, 2002; SOUZA; CAUME; 2008).
Em decorrência dos impactos da crise do capital na década de
1970, o consequente esgotamento do milagre econômico, a retirada de
recursos para o serviço de ATER e as claras contradições (políticas,
econômicas e sociais) da orientação produtivista e difusionista, com o
projeto de tecnificação acelerada da agricultura, uma parcela dos
profissionais de ATER cogitaram o retorno da orientação humanista
assistencialista, que ganhou um ar entre 1980 e 1984, abrindo precedente
para se formar uma terceira orientação caracterizada por Humanismo
Crítico.
O Humanismo Crítico surgiu como uma proposta de promoção
humana integral das maiorias demográficas do campo, mas supostamente
sem o paternalismo do Humanismo Assistencialista. Propunha uma
perspectiva libertadora, em que o trabalhador rural, proprietário ou não
das terras onde labuta, seria sujeito de suas ações como cidadão,
205
problematizando a sua realidade e tomando decisões (RODRIGUES,
1997).
Compreende-se que essa orientação sofreu grande influência do
pensamento de Paulo Freire, com destaque às contribuições em “A
Pedagogia do Oprimido” de 1969, e particularmente a da obra “Extensão
e comunicação” do mesmo ano, na qual Freire realiza uma reflexão crítica
tanto da semântica, quanto da prática do profissional de assistência técnica
e extensão.
Ao analisar semanticamente o termo extensão, e a intencionalidade
educativa do profissional extensionista, Paulo Freire (1983, p. 15) verifica
que esta tem assumido, ao longo do tempo, uma lógica de transferência do
conhecimento, de ação “anti-dialógica” e de “invasão cultural”,
incompatível com uma ação educativa de caráter libertador, e assumindo
sentido e caráter de educação como prática da “domesticação”.
Por tudo isto, o trabalho do agrônomo não pode ser o de adestramento
nem sequer o de treinamento dos camponeses nas técnicas de arar, de
semear, de colher, de reflorestar etc. Se se satisfazer com um mero
adestrar pode, inclusive, em certas circunstâncias, conseguir uma maior
rentabilidade do trabalho. Entretanto, não terá contribuído em nada
ou quase nada para a afirmação deles como homens mesmo. Desta
forma o conceito de extensão, analisado do ponto de vista semântico e
gnosiológico, não corresponde ao trabalho indispensável, cada vez mais
indispensável, de ordem técnica e humanista, que cabe ao agrônomo
desenvolver (FREIRE, 1983, p. 23).
Entende-se que as reflexões de Paulo Freire (1983) causam um
impacto provocativo sobre os profissionais de ATER em específico, mas,
também, em outros profissionais que realizam trabalhos de assistência
206
técnica, assessoria, capacitação, formação e extensão junto a grupos
subalternos. O sentido e o caráter educativo de suas ações, além de lhe
propor o esforço de autocrítica a respeito de seu lugar como detentor
exclusivo do conhecimento e de sua ação de transferência de um
conhecimento depositário, propõe a opção da intercomunicação entre
sujeitos no sentido de compreender os processos para transformar uma
realidade mais complexa.
Diante disso, compreende-se que o Humanismo Crítico não se
opunha à proposta de viabilizar o progresso técnico e o aperfeiçoamento
gerencial das minorias que historicamente tinham sido marginalizadas no
campo, contudo, o profissional não seria mais um agente de mudança
manipulador, seria o interlocutor tecnicamente competente com suas
ações pautadas por um relacionamento dialógico horizontal com o
trabalhador do campo dialógico (RODRIGUES, 1997).
Mesmo com a mobilização de alguns profissionais do setor, as
instruções do Humanismo Crítico foram apenas esboçadas, já que, com o
avanço da lógica neoliberal no início dos anos 1990, houve um claro
abandono do fornecimento do serviço convencional de ATER,
particularmente para as camadas mais pobres e necessitadas.
Contudo, destaca-se a importância de compreender as
características dessas orientações, pela referência que uma ou outra exerce
sobre a ação de diferentes entidades de apoio e fomento que, a partir da
reforma do Estado, também passam a executar trabalhos de assistência
técnica, assessoria, capacitação e formação para as populações rurais,
periféricas e comunidades tradicionais.
Deixado à mercê das políticas de ajustes estruturais e das difíceis
condições financeiras dos respectivos estados, o serviço convencional de
ATER estatal em nível de política federal só foi retomado de forma mais
207
elaborada em 2003, a partir da elaboração de uma nova Política Nacional
de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER), através do Ministério
do Desenvolvimento Agrário, no primeiro governo Lula da Silva (BRASIL,
2004).
Apesar de considerarmos de suma importância o rico processo que
se abre com a retomada da ATER convencional, e de uma clara expansão
do serviço ao longo dos governos Lula e Dilma, parece importante, nesse
momento, para finalizarmos o assunto e darmos sequência ao tema,
apresentar dois elementos que ocorreram no período do “limbo” que
influenciaram diretamente, não sem resistência, o operacional desses
serviços.
Como fato ilustrativo, destaca-se a realização, em Brasília, do
Seminário Nacional Agricultura Familiar e Extensão Rural, e a
consequente criação do Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (PRONAF) em 1995. A partir desses eventos,
observa-se que as políticas de governos escolhem o modelo da agricultura
familiar como forma ideal de organização produtiva para o meio rural.
Tal influência pode ser observada, por exemplo, no caso do
PNATER, que, apesar de supostamente assumir certos compromissos
progressistas como estimular, animar e apoiar iniciativas de
desenvolvimento rural sustentável e agroecológico, tem como centro o
fortalecimento da agricultura familiar
98
(BRASIL, 2004).
No caso das metodologias educativas, estas deveriam ser
participativas e integradas às dinâmicas locais, participando na promoção
e animação de processos capazes de contribuir para a construção e a
98
Em 2010, a Lei nº 12.188 alterou a Lei nº 8.666, de 1993, e instituiu a Política Nacional de
Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária PNATER
e o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na
Reforma Agrária PRONATER.
208
execução de estratégias de desenvolvimento rural sustentável e
agroecológico, centrado na expansão e fortalecimento da agricultura
familiar e das suas organizações
99
(BRASIL, 2004).
Não se trata de não reconhecer a importância da agricultura
familiar no país, mas, de considerar que, apesar de trazer elementos
importantes como o desenvolvimento sustentável e a agroecologia,
considera-se que a opção do governo pelo uso operacional do modelo da
agricultura familiar, representa uma clara opção pela via de mercantilização
para solucionar o problema agrário e fundiário brasileiro.
Sem as devidas mediações sobre a particularidade de cada grupo,
observa-se que assentados e acampados da reforma agrária, pequenos
proprietários, extrativistas florestais, ribeirinhos, indígenas, pescadores
artesanais, seringueiros, faxinalenses e remanescentes de quilombolas, são
designados de forma operacional e homogênea sob o modelo de agricultura
familiar.
Com origem em meio ao avanço da lógica neoliberal e da reforma
do Estado, observa-se que, junto ao modelo da agricultura familiar,
definições mais sofisticadas como empresa rural e empreendedor rural
também passam a ser utilizadas de forma “operacional” para caracterizar
grupos sociais do meio rural bastante heterogêneo.
Ao mesmo tempo em que isso conformou um processo de
dinamização pelos grandes complexos setoriais do agronegócio e de
propriedade privada, envolveu determinados segmentos de organização
coletiva, obscurecendo um movimento latente de conflito fundiário e
concentração da renda, de alteração da matriz produtiva e de
99
Em 2010, o Decreto nº 7.215 regulamentou a Lei nº 12.188, definindo a extensão como serviço
de educação não formal, de caráter continuado, no meio rural, que promove processos de gestão,
produção, beneficiamento e comercialização das atividades e dos serviços agropecuários e não
agropecuários, inclusive das atividades agroextrativistas, florestais e artesanais.
209
homogeneização territorial como lógicas intrínsecas do capital
monopolista no meio rural (SOUZA, 2010; MELO; SOUZA, 2011).
Dessa forma, compreendemos que essa aceitação operacional de
agricultura familiar, empreendedor rural e empresa rural, consubstanciam
uma lógica individualista de propriedade privada, que permeia a ação do
Estado, muitas vezes contraditória à propriedade comunal das
comunidades quilombolas, como é possível observar na relação, ou
ausência dela, quando analisamos a figura do ITESP.
4.1.1 Uma mirada sobre o papel do ITESP
Segundo descrição de seu sítio eletrônico, a Fundação Instituto de
Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva” ITESP está
vinculada à Secretária da Justiça e Cidadania, e tem como responsabilidade
o planejamento e a execução das políticas agrárias e fundiárias do estado
de São Paulo.
Responsável pelo serviço de ATER a 140 assentamentos e a 1445
famílias quilombolas, em 14 municípios das regiões do Vale do Ribeira,
Vale do Paraíba e Sorocaba. Contudo, de acordo com informações
levantadas junto a assentados e quilombolas, existe um esvaziamento que
torna as ações do ITESP pontuais e, praticamente, ausentes nos territórios.
Não se trata de uma completa ausência de atuação do ITESP junto
às CRQVR; observa-se, por exemplo, sua contribuição, não sem pressão,
nas construções dos Relatórios Técnicos Científicos (RTC) desde a década
de 1990. Contudo, e por diversas razões, suas ações, além de pontuais,
carrega toda uma lógica de organização socioprodutiva pautada para o
agronegócio ou para o modelo da agricultura familiar.
210
Tendo como referência principal a entrevista que realizamos com
Thiago Marques do Oliveira do ITESP em 2018, ele nos relata que, apesar
de a questão quilombola ser bastante recente, em alguns poucos
momentos, houve algumas ações mais consistentes de interesse em montar
equipes voltadas às especificidades quilombolas
100
.
Ele relata que, durante o período que pode ser considerado como
o mais próspero desse tipo de interesse, em meados dos anos de 2010,
chegou-se a trabalhar com um quadro de 20 técnicos. Contudo, devido à
falta de conhecimento sobre as especificidades da organização comunitária
dos quilombolas, as ações eram voltadas para a geração de renda e para a
organização produtiva individualizada, situação que gerou divergência
com a organização das comunidades
101
.
Nesse contexto, o entrevistado destacou que foi necessário certo
período de experiência e de estudos sobre os remanescentes de quilombos
para que os técnicos envolvidos no processo conseguissem avançar com
uma proposta de assistência técnica e extensão rural voltada às
especificidades quilombolas.
Contudo, devido a um cenário em que, constantemente, o ITESP,
além de sofrer com a falta de orçamento, com a precarização das condições
de trabalho para os técnicos e com os mandos e desmandos
governamentais, ações nesse sentido foram sendo modificadas e bastante
reduzidas sob o argumento de cortar custos.
Questionando os representantes das diferentes comunidades que
compõem o CQTVR sobre a atuação do ITESP, os argumentos, sejam de
forma incisiva ou mais compreensível à situação política e à suposta
100
OLIVEIRA, Thiago Marques, Analista de desenvolvimento agrário do ITESP, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 07 de novembro de 2018, em Registro/SP.
101
OLIVEIRA, Thiago Marques, Analista de desenvolvimento agrário do ITESP, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 07 de novembro de 2018, em Registro/SP.
211
precarização da entidade, foi de forma unânime de que o ITESP pouco
aparece no território.
Atendo-se à particularidade do turismo, Thiago ressaltou que
também seguiu uma lógica convencional de geração de trabalho e renda,
muitas vezes, folclorizando as culturas quilombolas, situação que também
gerou descompasso entre a entidade e as comunidades. Esse fato começou
a ser um pouco alterado quando alguns técnicos, mais por militância
própria do que por incentivo institucional, além de estabelecerem diálogos
com outras entidades que atuam no território, como a EAACONE e o
ISA, por exemplo, começaram a estudar e se aproximar do debate sobre a
identidade quilombola e o turismo de base comunitária.
Contudo, destaca que, para a sustentabilidade de um projeto
conduzido por uma lógica participativa e de organização comunitária para
o turismo, é necessário um planejamento de ação de médio a longo prazo,
planejamento que o ITESP não possui, o que acaba por gerar ações
pontuais que, apesar de mostrarem certo potencial, minguam pela falta da
continuidade
102
.
Questionando sobre um plano de ação para o desenvolvimento do
turismo com os remanescentes de quilombos, observa-se, mais uma vez, a
inconstância das ações, pois, ao passo que se estabelece uma parceria com
a Secretaria Estadual de Turismo com o intuito de montar um Circuito
Quilombola Paulista, os interesses e empecilhos causados por mudanças
políticas e orçamentárias dificultam, quando não impedem por completo,
o desenvolvimento do projeto.
Nesse contexto, o entrevistado nos apresentou o último projeto
voltado para o turismo em CRQ lançado pelo Estado naquela ocasião,
102
OLIVEIRA, Thiago Marques, Analista de desenvolvimento agrário do ITESP, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 07 de novembro de 2018, em Registro/SP.
212
denominado Circuito Quilombola Paulista. O projeto foi montado em
parceria com a Secretaria de Turismo e com a Secretaria da Justiça e da
Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.
Imagem 3 – Banner
Circuito Quilombola Paulista
Fonte: ITESP (2018).
Composto por 15 CRQ localizadas entre os municípios de Barra
do Turvo, Cananeia, Eldorado, Iporanga, Registro e Ubatuba, segundo o
próprio entrevistado, o Circuito tem como fundamento uma lógica focada
na geração de renda e na adequação das comunidades, dos patrimônios
culturais e naturais, como produto a ser consumido pelo turista, sendo essa
a lógica do Estado.
Apesar dessa discordância da concepção do Circuito com a própria
concepção comunitária e contra hegemônica que as comunidades buscam
213
dar para o turismo em seus territórios, contata-se, com base na entrevista,
que o projeto, além do diálogo insuficiente com as comunidades, não tem
um direcionamento e nem um planejamento estabelecido, acabando por
gerar ações pontuais, individuais e espontâneas.
Diante disso, compreende-se que as ações do ITESP seguem uma
lógica de transferência tecnológica e de transferência do conhecimento,
entre outros fatores, porque essa é a lógica do Estado, e tal lógica não
permite que os poucos técnicos que atuam no campo consigam
desenvolver um programa mais amplo com tempo e recursos para
empreender uma ação dialógica e de trocas de saberes que possa
potencializar a autoaprendizagem e a auto-organização das comunidades e
dos técnicos.
Ademais, analisando a situação do projeto do Circuito naquele
momento, destaca-se também que, pelo fato de o projeto sair sem o devido
direcionamento e sem um orçamento adequado, acaba por sobrecarregar
os poucos técnicos comprometidos com o seu trabalho, que, mesmo sem
as condições adequadas, tentam, por meio de uma militância, dar um
andamento para o projeto.
Para dar ênfase à precarização e aos ataques que o ITESP vem
sofrendo historicamente submetido dentro da estrutura do Estado,
destacamos o Projeto de Lei nº 529/2020, do governador João Doria,
eleito em 2018, que propunha a extinção do ITESP e de várias outras
autarquias e empresas públicas do estado de São Paulo.
Responsável pelo serviço público de ATER no Estado de São
Paulo, além dos próprios servidores, organizações como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), CONAQ, EAACONE, MOAB,
entre outros, não sem a ressalva de que os serviços deveriam melhorar
214
muito, encamparam uma ampla mobilização pela manutenção dos serviços
do ITESP.
Após essa forte mobilização dos servidores e de vários segmentos
sociais organizados contra a extinção do ITESP, a Assembleia Legislativa
do Estado de São Paulo aprovou, na madrugada de 14/10/2020, um novo
texto substitutivo do Projeto de Lei 529, que retirava o ITESP da lista das
companhias que estavam nos planos do governo paulista para a extinção
das atividades
103
.
Apesar da vitória parcial dos setores sociais organizados que
reivindicam e lutam por um serviço de ATER pública e de qualidade,
observa-se que, mesmo tendo resistido e não tendo sido extinto de fato, o
descaso do governo deixa os serviços do ITESP bastante debilitados,
quando não paralisados totalmente.
Diante disso que pontuamos, isto é, além de uma
incompatibilidade entre a lógica de atuação do ITESP e os interesses de
propriedade comunal propostos pelos quilombolas, uma ausência, pois
os constantes cortes de orçamentos e de falta de reposição de funcionários
que se aposentam, por exemplo, deixa a entidade quase que inoperante.
Vale ressaltar que, ao passo que o serviço público de ATER vai
sendo boicotado, ocorre um avanço desses serviços oferecidos pelo terceiro
setor na região. Todesco (2010) demonstra que a maioria dos projetos de
manejo e uso sustentável no Vale do Ribeira, e em toda área de Mata
Atlântica do país, é predominantemente executada por ONGs
ambientalistas principalmente.
Efeito dos processos de flexibilização, parceria, publicização e
descentralização que avançou com a reforma do Estado, conforme
103
Para mais informações ver: https://revistaprojeto.com.br/noticias/assembleia-legislativa-aprova-
pl-529-2020/. Acesso em: 10 dez. 2020.
215
Montaño (2007). Importante destacar que a maioria desses projetos tem
como principal financiador o Estado, e que essa dependência dos recursos
públicos representa, para o terceiro setor, um risco de influência e até da
ingerência em seu caráter, modo de funcionamento e objetivos
(TODESCO, 2010, p. 16; CARVALHO, 1999, p. 07).
Além desse risco de ingerência devido à dependência do
financiamento impactar os projetos de entidades de terceiro setor, ela cria,
também, um círculo vicioso, pois, ao passo que o Estado frequentemente se
ampara nos serviços prestados pelo terceiro setor e pelas diferentes
parcerias, ele deixa de investir na contratação e no treinamento do seu
próprio corpo de funcionários, o que leva à precarização dos quadros
técnicos e, consequentemente, do serviço público (MACEDO, 2018).
Maria Sueli Bernanga (entrevista, 2018) também chama a atenção
sobre uma ingerência do Estado, por exemplo, no caso de um excessivo
controle sobre a APA quilombola, que, mesmo estando fora do perímetro
de proteção integral, é tratada pelos gestores dos Parques com as mesmas
exigências de uma área de proteção integral. E acentua dizendo que, além
da lentidão nos processos de titulação e na excessiva e seletiva fiscalização,
não fornece um serviço de ATER público e de qualidade.
Olhando de longe todo o cenário e a atuação do Estado, e mais
precisamente do estado de São Paulo, ao considerar sua atuação, por
exemplo, na questão produtiva e na questão ambiental em relação às
CRQVR, considera-se que o Estado cerceia as comunidades pelo menos
em duas pontas que se complementam: 1ª) na questão produtiva, que no
caso dos quilombolas está ligada ao próprio modo de vida, fornecendo um
escasso e despreparado serviço público de ATER; e 2ª) na seletiva rigidez
da fiscalização ambiental, que não reconhece o sistema de coivara como
tradicional, e dificulta a liberação das licenças para o preparo da roça de
subsistência.
216
4.2 Mediações da resistência de um povo MOAB/EAACONE
Conforme o conteúdo trabalhado nos capítulos anteriores,
observa-se que as Comunidades Remanescentes de Quilombos do Vale do
Ribeira (CRQVR) ascendem como sujeitos políticos detentores do direito
de propriedade dos territórios em um contexto de transformações políticas,
produtivas e de avanço da lógica neoliberal.
Observa-se que, historicamente, essas comunidades não eram
assistidas no sentido positivo pelo serviço ATER público estatal, e que,
apesar de conquistarem o direito de propriedade com o Artigo 68 do
ADCT em 1988, essa situação não se alterou de imediato, fato que pode
ser comprovado, por exemplo, na lentidão do Estado em realizar os
processos de demarcação e titulação dos territórios.
A partir da pesquisa bibliográfica, mas, principalmente, da
pesquisa empírica, ao passo que constatamos uma debilitada atuação da
ATER convencional junto às CRQVR, evidenciamos que, ao longo do
processo, outras entidades apresentavam papel de maior relevância nos
territórios. Diante disso, para dar conta da diversidade de organizações que
vão surgindo durante o contexto, conveniou-se utilizar a definição de
Entidades de Apoio (EA) ou simplesmente entidades.
Ocupando uma região que abriga a maior quantidade de vegetação
remanescente de Mata Atlântica do Brasil, as comunidades quilombolas
do Vale do Ribeira encontram-se integralmente ou parcialmente dentro de
unidades de conservação ambiental que, quando criadas, desconsideraram
as populações que já ocupavam aquelas áreas.
A título de uma breve ilustração de algumas entidades que passam
a compor esse complexo processo que envolve a luta dos remanescentes de
quilombos no Vale do Ribeira, no contexto de transição do século XX para
217
o século XXI, podemos apontar órgãos do Estado ligados à fiscalização
ambiental e à gestão dos parques e das Unidades de Conservação (UCs), e
organizações relacionadas à questão ambiental, conforme já tratamos no
capítulo 3.
Mesmo tendo como objeto a relação do Circuito Quilombola de
Turismo Comunitário do Vale do Ribeira (CQTVR), e as entidades que
apoiaram a sua conformação, parece-nos fundamental compreender esse
processo à luz dos acontecimentos históricos e de como algumas entidades
contribuíram com as mediações que deram as bases da territorialidade
comunal, visto que esta não pode ser apartada da forma como as
comunidades vão escolher o tipo e a forma de turismo.
As mediações necessárias para compreender as bases e as
concepções que estabeleceram as razões da propriedade coletiva da terra e
da auto-organização do território, no caso dos remanescentes de
quilombos, em sua totalidade serão aprofundadas em estudos posteriores,
vista a singularidade cultural e a situação socioeconômica de cada
comunidade. Tais elementos carecem de mais estudos para compreender
de forma mais sistematizada a proposta de coletivização das terras e da
auto-organização dos territórios para essas populações: quais são as
influências, as mediações estabelecidas, as dificuldades e os limites, são
alguns questionamentos que podem contribuir para um aprofundamento
nessa direção.
Contudo, com base no recorte que propomos sobre os
remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira, e, em particular, os que
têm desenvolvido de forma mais elaborada o turismo comunitário em seus
territórios, apresentamos alguns elementos importantes para compreender
o contexto, as mediações, os limites e avanços para a coletividade da terra
e a auto-organização desses territórios.
218
Propondo um delineamento que se inicia a partir dos anos 1980,
destacam-se, num primeiro momento, particularmente, os intelectuais
ligados à Igreja Católica, pois como afirmou Maria Sueli Bernanga, em
entrevista realizada em novembro de 2018, na transição dos anos oitenta
para os anos noventa não havia ninguém realizando trabalho com aquelas
comunidades além da Igreja Católica
104
.
Maria Sueli Bernanga nos relatou que, na virada dos anos 1980-
1990, não tinha “Ministério Público, não tinha ITESP na época não
tinha nada”, a única parceira das comunidades era a Igreja Católica. Nesse
sentido, ressaltou que os trabalhos iniciais eram voltados para as questões
religiosas e que, a partir desse trabalho de formação religiosa e de diálogo,
outros elementos ligados à insegurança das populações devido a propostas
de empresas externas ao território, em particular, a da construção da Usina
de Tijuco Alto, suscitaram a necessidade de outras mediações que deram à
base e a consciência necessária para se organizar contra esses projetos
105
.
Talvez a única entidade atuando diretamente no território com as
comunidades naquele contexto, contata-se que as mediações e reflexões
iniciais eram inspiradas nos ensinamentos bíblicos e que, a partir desses,
alcançou-se uma problemática sobre a ameaça material real que as
comunidades sentiam com o projeto das barragens. Diante disso, constata-
se, também, que os procedimentos adotados envolvem a formação de um
grupo composto por quilombolas e intelectuais da igreja para realizar
estudos teóricos sobre impactos causados por projetos de barragens, bem
como visitas e diálogos com comunidades que tiveram seus territórios
impactados por esses tipos de projetos.
104
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
105
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
219
O grupo formado por intelectuais ligados à Igreja, e por membros
das comunidades, após um intenso processo de estudos e trocas com outras
comunidades, chegaram à conclusão de “que os projetos das barragens
iriam trazer desgraça, tirá-los da terra, acabar com suas origens, matar suas
raízes, destruir o rio, a fauna, a flora e as comunidades. O único objetivo
seria beneficiar um grupo financeiro” (PINTO, 2014, p. 09).
Desses estudos e informações coletadas por esse grupo, geraram-se
mediações que deram subsídios à necessidade de se organizarem para lutar
contra o projeto de barragens no Vale do Ribeira. Diante disso, com o
compromisso de “perseverar na busca de informações, de formar
lideranças, na conscientização e organização das pessoas contra todos os
projetos que possam a ameaçar a vida”, nasce em 1990 o MOAB (PINTO,
2014, p. 09).
Compreende-se que as ações organizadas em torno do MOAB, e
as mediações realizadas por meio de eventos, encontros e diálogos com
outras entidades, forneceram um ambiente rico para um salto de
consciência das comunidades que compreenderam que a luta contra as
barragens, apesar de substancial, não era estratégica, mas tática. A estratégia
fundamental era a luta pela propriedade das terras que ocupavam, pois essa
representava materialmente, e simbolicamente, sua identidade enquanto
grupo.
A partir dessa consciência de que a estratégia primordial era a luta
pelo território, e não necessariamente contra o projeto das barragens,
apesar de contê-lo ser uma tática imprescindível, as comunidades sentiram
a necessidade de criar, a partir do MOAB, e junto com ele, uma entidade
jurídica que pudesse dar aporte legal à luta pela propriedade das terras que
ocupavam; nasce, então, a EAACONE.
220
A EAACONE é criada e formada por intelectuais da Igreja
Católica e representantes das CRQ com a função de lutar e fomentar, junto
às comunidades, os direitos adquiridos com a CF/1988. Maria Sueli
Bernanga (2018) destacou que, desde a sua formalização, ela fez e faz as
mediações necessárias, levantando, valorizando e conscientizando cada
comunidade de sua história e da importância da identidade quilombola
106
.
Formada a partir da organização e da luta em torno do MOAB,
compreende-se que a EAACONE resulta da necessidade de criar uma
entidade jurídica que, para além de articular a luta contra a barragem de
Tijuco Alto, também e, principalmente, mobilizasse e organizasse as
comunidades para reivindicar o direito de seus territórios enquanto
remanescentes de quilombos.
Diante dessa mesma origem, que mescla intelectuais da Igreja e
representantes das comunidades, compreende-se que as atuações
articuladas e casadas entre o MOAB e EAACONE se complementam e
formam, a nosso ver, uma espécie de vanguarda que media e conduz as
ações das CRQVR desde os anos 1990.
Com referência em Gramsci (2004, p. 308), a respeito da unidade
e da conformação de uma vontade coletiva, compreende-se ser muito
difícil para um grupo subalterno “chegar à solução de seus problemas e à
realização dos objetivos contidos em sua existência, e na força geral da
sociedade, sem que uma vanguarda se forme e conduza esta classe até a
realização destes objetivos”.
Composto por um grupo de pessoas que acompanham as
comunidades desde 1989, Pinto (2014, p. 110) aponta que
MOAB/EAACONE realizaram diversas atividades de conscientização dos
106
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
221
possíveis problemas que a implantação de barragens no Ribeira poderia
causar, bem como de resgate da identidade quilombola e do direito à
propriedade da terra que estavam ocupando.
Apesar dessa vanguarda, constata-se, devido às determinações que
provêm da realidade objetiva e dos “inúmeros problemas relacionados à
terra, posseiros, invasores, documentação, ações processuais, além de
tantos outros, como já demonstrou Pinto (2014, p. 108), elas
estabeleceram contato e mediações com outras entidades que pudessem
contribuir com o processo de luta das comunidades.
Encontros, seminários, palestras, cartazes, vídeos de construção de
outras barragens, cópias de artigos, materiais audiovisuais, cartilhas e
jornais tratando tanto do impacto causado por projetos de barragens,
quanto do resgate histórico da identidade e cultura quilombola, foram
alguns dos procedimentos para formar e conscientizar as comunidades.
Em meio a esse intenso processo que envolve aliança com alguns
aliados, a luta contra as barragens, pelo direito à propriedade dos
territórios, e de certa conscientização para o autorreconhecimento das
comunidades enquanto remanescentes de quilombos, resultou na auto-
organização e fundação das associações de moradores.
Esse processo de criação das associações demandou tempo, muitas
reuniões, visitas e estudos dos estatutos para que as normas fossem
elaboradas de acordo com a realidade local e que a mesma tivesse
clareza dos compromissos assumidos. A EAACONE cumpriu bem esse
papel (PINTO, 2014, p. 111).
Principal entidade que assessorou as comunidades na criação de
suas Associações, constata-se, com base na entrevista com Maria Sueli
222
Bernanga na sede do MOAB/EAACOE em 2018, que a reconstrução da
proposta de propriedade coletiva se deu em meio a um processo árduo de
estudo e formação, que resgatou os antigos costumes e formas de
organização daqueles grupos no território
107
.
Foto 2 - Banner na recepção da sede da EAACONE e do MOAB
Autor: João Henrique Souza Pires (2018)
Ainda sobre a propriedade coletiva do território, Maria Sueli
(2018) fortaleceu que esse era um costume antigo, que se perdeu um
pouco, ao passo que pessoas de fora do Vale começaram a adquirir terras
107
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
223
na região, aprofundando a especulação imobiliária e o conflito
fundiário
108
.
Contudo, nesse contexto de luta organizado entorno do
MOAB/EAACONE, pelo território e de construção da identidade
quilombola, foi possível, a partir das ações ordenadas na autodemarcação
dos territórios e de um processo de muito estudo e reflexões sobre as suas
próprias origens e ancestralidade, recuperar e fortalecer a ideia de grupo e
de propriedade coletiva do território.
Além de recuperar essa ideia de identidade grupal e da auto-
organização coletiva da terra, vista como essencial para a reprodução do seu
modo de vida, e não como mercadoria, as ações realizadas a partir do
MOAB, e as mediações realizadas a partir da EAACONE, fortaleceram,
também, um entendimento de que coletivamente eles teriam mais forças
para resistirem à pressão de fazendeiros e de outros projetos sobre os seus
territórios.
Diante disso, entende-se que tanto o MOAB, quanto a
EAACONE, apresentam-se como os intelectuais coletivos que
estabeleceram as mediações e reflexões necessárias que forjaram a
identidade político-cultural das comunidades quilombolas do Vale do
Ribeira. Com referência em Gonçalves (1999, p. 76), compreende-se que
essa identidade se colocou “como uma possibilidade concreta diante da
ameaça à sobrevivência material e simbólica derivada da nova configuração
socio-geográfica” imposta pelos projetos hegemônicos.
Entende-se essa identidade cultural “como um dos elementos
fundamentais na organização das classes subalternas, capaz de romper com
a sua desagregação e abrir caminhos para a construção de uma vontade
108
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
224
coletiva, contrapondo-se às concepções de mundo oficiais”
(SEMIONATTO, 2009, p. 45).
A coletividade deve ser entendida como produto de uma elaboração de
vontade e pensamento coletivos, obtidos através do esforço individual
concreto, e não como resultado de um processo fatal estranho aos
indivíduos singulares: daí, portanto, a obrigação da disciplina interior,
e não apenas daquela exterior e mecânica (GRAMSCI, 2000, p. 232).
A vontade coletiva em Gramsci (2000) representa o momento
teleológico da ação humana, articulada organicamente com o momento
“casual-genético como um momento decisivo que se articula com as
determinações que provêm da realidade objetiva, particularmente das
relações reais de produção” (SEMIONATTO, 2009, p. 34).
Ao longo desse processo de luta e resistência contra as barragens,
mas, principalmente, pelo autorreconhecimento e pela propriedade coletiva
de seus territórios remanescentes de quilombos, considera-se que as ões,
mediações e reflexões elaboradas em torno do MOAB/EAACONE, foram
fundamentais para resgatar os vínculos ancestrais de identidade e fortalecer
essa vontade coletiva de propriedade comunal, rompendo, até certa
medida, com a ideologia hegemônica da propriedade privada individual da
terra.
Com base em Linera (2010) e Zibechi (2006), que levam a ideia
de comunidade ao seu “limite positivo”, não como uma “categoria geral
útil para nomear diferentes objetos, mais um conceito para um devenir
histórico social: é o nome de um código político-organizativo determinado
como tecnologia social singular” (NASCIMENTO, 2019, p. 41).
225
A categoria comunidade, no caso dos remanescentes de quilombos
na Vale do Ribeira, é entendida como nomeação das formas da ação
coletiva que, em um determinado período histórico, organizaram-se e se
consolidaram para resistir a sua desintegração, e forjaram a sua (re)
existência e seu modo de vida tradicional (NASCIMENTO, 2019).
A partir dessa análise histórica sobre o papel do
MOAB/EAACONE nos debates e mediações que deram as bases e os
elementos para a auto-organização de uma espécie de propriedade
comunal, bem como sua atuação como intelectual coletivo de vanguarda
junto às comunidades até os dias atuais, entende-se a sua importância no
contexto da auto-organização do turismo pelas comunidades.
Maria Sueli Bernanga (2018) declara que foram 28 anos de luta
para conseguir realmente conter o projeto da barragem de Tijuco Alto,
mas que, apesar dessa conquista, problemáticas mais pulverizadas em torno
de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), da mineração, do avanço da
produção de pinos e da legislação ambiental, ainda ameaçam a autonomia
e o direito quilombola
109
.
Declara que, por um lado, a EAACONE continua atuando e
estabelecendo as mediações necessárias para fazer valer o direito e a
identidade quilombola contra o avanço de projetos capitalistas que visam
à apropriação das riquezas minerais, da fauna e da flora que os territórios
ainda preservam.
Ao mesmo passo, atua para superar um controle excessivo do
Estado por meio das UC e do entendimento de alguns gestores, que trata
a APA quilombola com as mesmas exigências que têm uma área de parque
109
BERNANGA, Maria Sueli, membro da EAACONE, em entrevista realizada por João Henrique
Souza Pires, em 13 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
226
com proteção integral, dificultando, por exemplo, as licenças para a
realização de suas roças.
Bernanga (2018) destacou que não são poucas as formas que os
órgãos estatais (federais e estaduais) atuam num sentido de desagregar e
esvaziar a auto-organização das comunidades no território. Cita, por
exemplo, o caso das licenças para realização das roças que devem ser
emitidas pela CETESB, que, além de não chegar no período correto,
parece desconsiderar os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, e a
própria Lei da Mata Atlântica, que direito às comunidades tradicionais
de se reproduzirem dentro da mata.
Argumenta que, apesar do direito das comunidades, e mesmo da
APA quilombo estar fora da área de proteção integral do Parque Caverna
do Diabo, que faz parte do MOJAC, por exemplo, sempre se apresenta
uma situação conflitante de expansionismo do controle estatal que não tem
a ver diretamente com a preservação, mas, com um autoritarismo do
Estado e uma possível tendência em beneficiar os interesses capitalistas
sobre esses territórios.
Nesse contexto, representantes da EAACONE, em evento
realizado no dia 20/11/2020, destacam que o racismo atravessa o dia a dia
das populações negras do Vale do Ribeira. O ano de 2020 foi mais um ano
de muitas ameaças, violências, retrocessos, lutas e resistências, um ano em
que houve a tentativa de extinção do ITESP, órgão que possui atribuições
para assistência técnica e regularização fundiária no estado de São Paulo,
sucateamentos das políticas quilombolas, a letalidade da pandemia de
Covid-19 nos quilombos, e a ausência de um plano de enfrentamento.
Entre outras ações, constata-se que, atualmente, a EAACONE está
trabalhando na construção de um Protocolo de Consulta Prévia dos
Territórios Quilombolas do Vale do Ribeira SP, que, com base na
227
Convenção 169 da OIT, garante às comunidades quilombolas o direito à
consulta livre, prévia e informada, sempre que existirem medidas ou atos
que venham a afetar direta ou indiretamente os seus territórios. A
construção do Protocolo de Consulta é pautada pelas comunidades
quilombolas já há alguns encontros, e se traduz em mais um instrumento
de luta e de reafirmação de direitos
110
.
Nesse sentido, apesar de não ser a principal EA que estabeleceu e
conduziu a proposta de formatação do CQTVR, considera-se o
MOAB/EAACONE uma espécie de intelectual coletivo de vanguarda
orgânico que estabeleceu e estabelece as bases e os elementos essenciais para
a propriedade comunal da terra e, consequentemente, para a estrutura de
diversos projetos, incluindo o de um turismo alternativo e contra
hegemônico.
4.3 Contribuições do Grupo de Trabalho Turismo e Educação
Ambiental (GTTEA)
Como já destacado na seção 3.2.3.1, uma importante entidade que
desenvolveu projetos de capacitação, formação, pesquisa e extensão junto
às CRQVR, foi a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Constata-se, por meio de pesquisa bibliográfica e de noticiários eletrônicos,
que, apesar de o Grupo de Trabalho Turismo e Educação Ambiental
(GTTEA) entrar em cena no final de 2005, desde a virada dos anos 2000
já se observa a presença de algum projeto da UNICAMP na região.
110
Disponível em: https://www.iisc.org.br/post/lan%C3%A7amento-do-protocolo-de-consulta-
das-comu nidades-quilombolas-do-vale-do-ribeira?fbclid=IwAR3BI6-
Ng4S108Xp5sI9YTafa1u1A1kDZ97nazcqH MwaDIpVqhFXHjI63U. Acesso em: 20 nov. 2020.
228
O professor Celso Lopes da Faculdade de Engenharia de Alimentos
(FEA) da UNICAMP, em entrevista para o Jornal da universidade, em
outubro de 2003, destacou que, por meio de uma parceria do Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Alimentação (Nepa) com o Instituto
Socioambiental (ISA) e Associação Quilombo de Ivaporunduva, desde
2001, a universidade começou a desenvolver um projeto para a viabilização
de um programa que buscasse métodos de gestão de qualidade de produção
certificada (KASSAB, 2003).
Sobre esse contexto, o professor aponta que o objetivo da equipe
era:
Aplicar e avaliar, com a comunidade, metodologia para concepção,
formulação, projeto e avaliação de sistemas para produção
agroindustrial, constituído por práticas, métodos e instrumentos de
gestão da qualidade e da produção apropriados a comunidades de
pequenos produtores da agricultura familiar, visando à geração de
renda, ao aumento da qualidade de vida, à preservação e conservação
ambiental e à obtenção de produtos com certificação social e orgânica.
Simultaneamente, serão desenvolvidas as competências necessárias
para os produtores e elaborados os estudos e os projetos executivos para
que os mesmos implantem uma agroindústria para banana e outras
frutas (KASSAB, 2003)
111
.
Observa-se, a partir dos objetivos descritos pelo professor, que a
atuação tinha uma compreensão das comunidades em similaridade ao da
agricultura familiar, contudo, o professor aponta que é a população, por
meio do diálogo e da reflexão, que deve definir como as coisas devem ser,
e frisa que essa relação “leva em conta as peculiaridades, os valores
111
Disponível em
https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/outubro2003/ju233pag06.html. Acesso em:
13 ago. 2019.
229
subjetivos e a tradição oral da comunidade, o que não significa que o rigor
científico seja deixado de lado” (KASSAB, 2003).
Esse primeiro proj
eto teve como objetivo mais específico a
produção orgânica certificada e a implantação de uma planta de
processamento de produtos da banana; a partir dele, o Nepa/UNICAMP
propôs, em parceria com a ONG Unisol, outro projeto denominado de
“Fortalecimento de Associações de Remanescentes de Quilombos do Vale
do Ribeira” (KASSAB, 2003).
Atendendo às
Comunidades Quilombolas de Ivaporunduva,
Sapatu, André Lopes, São Pedro e Galvão na região do médio Ribeira,
além de ter como propósito “colocar o universitário em contato com uma
realidade diferente, ampliar seu horizonte e comprometê-lo socialmente
como futuro profissional”, tinha como objetivo “integrar e capacitar”
representantes das comunidades na elaboração e gestão de projetos futuros
(KASSAB, 2003).
É nesse contexto que, também coordenado pelo professor Celso
Lopes, nasce o Programa Comunidades Quilombolas (PCQ), vinculado à
Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (PEAC) da
UNICAMP. Além de atuar com as cinco comunidades já citadas, o
programa abrangeu, também, as comunidades Nhunguara, Pilões e Poças,
todas da região do médio Ribeira (KASSAB, 2003).
A partir do PCQ, foram levantadas e apresentadas algumas
demandas das comunidades, dentre as quais destaca-se, para fins deste
trabalho, a formação de um Grupo de Trabalho de Turismo e Educação
Ambiental (GTTEA), que, após os primeiros contatos com as
comunidades, decidem por elaborar uma proposta de turismo local
norteada pelo planejamento de base comunitária (SANTANA, 2008).
230
Tendo como referência a dissertação de mestrado de Ivie Santana
(2008), que foi membro do grupo, e fez uma análise sobre o trabalho do
grupo e o planejamento turístico como um possível instrumento para
legitimação cultural dos territórios quilombolas, apenas as Comunidades
André Lopes e Sapatu demonstraram interesse em participar das Oficinas
de Planejamento Comunitário do Turismo.
As Oficinas de Planejamento Comunitário do Turismo foram
organizadas em forma de reuniões com grupos definidos pelas
associações de André Lopes e de Sapatu. Essas reuniões foram
chamadas “oficinas” pelo caráter de discussão e construção coletiva
sobre propostas e conceitos que se apresentou inicialmente e que
orientou as atividades desenvolvidas durante todo o processo
(SANTANA, 2008, p. 97).
Ivie Santana (2008) apontou que o GTTEA, seguindo as
orientações e os procedimentos teóricos e metodológicos que o
PCQ/UNICAMP já vinha discutindo com as comunidades, adotou
procedimentos e abordagens que buscavam desenvolver a participação
coletiva e a organização comunitária.
[...] as oficinas representavam uma proposta de formação reflexiva das
comunidades em torno da iniciativa de se desenvolver o turismo
localmente. Partiu-se do pressuposto de que o turismo empreendido
espontaneamente, sem quaisquer formas de regulação ou controle,
poderia impactar negativamente as comunidades, considerando-se a
influência que a atividade exerce sobre a configuração do território. E
ainda, pelo fato de as comunidades pleitearem o título do território que
ocupam, o planejamento figuraria, nesse contexto, como importante
instrumento para que elas pudessem definir, autonomamente, o uso
turístico de seus territórios (SANTANA, 2008, p. 99).
231
Com base nos estudos de Santana (2008), constata-se que muitas
foram as intempéries, as dificuldades, as singularidades e as
particularidades de cada comunidade. Contudo, em ambas, a preocupação
com a auto-organização do território e a autonomia da gestão sobre os
possíveis atrativos, sempre se mostrou como um elemento fundamental do
debate.
Diante disso, compreende-se que as mediações estabelecidas por
meio do PCQ/UNICAMP, e particularmente do GTTEA, ao mesmo
tempo em que contribuiu para uma reflexão crítica sobre os impactos do
turismo para a comunidade, trouxeram fundamentos da importância de as
comunidades se apropriarem do debate para terem um planejamento
próprio sobre o turismo em seus territórios.
Por meio das mediações e trocas estabelecidas no decorrer das
Oficinas de Planejamento Comunitário do Turismo, constata-se que as
comunidades se inseriram em outras esferas de discussão sobre o turismo,
como, por exemplo, em reuniões do Conselho Municipal de Turismo
(COMTUR), e com representantes da prefeitura para tratar da elaboração
do Plano Diretor do Município de Eldorado
112
(SANTANA, 2008).
Para além das dificuldades históricas em relação ao COMTUR, e
ao próprio plano diretor, destaca-se que a relação construída entre o
GTTEA e as comunidades estabeleceu parâmetros e ações que permitiram
às comunidades compreender que grande parte dos atrativos da Estância
Turística de Eldorado encontravam-se dentro dos territórios
remanescentes de quilombos.
112
Tanto o Comtur quanto o plano diretor são obrigatórios para o município de Eldorado, pelo
fato de ser reconhecida como “estância turística” pelo governo do Estado e por receber repasses
orçamentários específicos por essa condição. O plano diretor do município de Eldorado foi
aprovado em 2006.
232
Atendo-se à situação das duas comunidades que estiveram
envolvidas diretamente com o GT e as oficinas, observa-se que, no
território de André Lopes, fica a Caverna do Diabo, principal atrativo
turístico da região, e em Sapatu, fica a Cachoeira do Meu Deus, que,
segundo os residentes, configura a maior cachoeira do estado de São Paulo.
Foto 3 – Entrada para a Cachoeira do Meu Deus e Vale das Ostras Quilombo
Sapatu
Autor: João Henrique Souza Pires (2018)
233
Foto 4 – Cachoeira do Meu Deus Quilombo Sapatu
Autor: João Henrique Souza Pires (2018)
A partir desses elementos, Santana (2008, p. 136) destacou
também a proposta de “elaboração de pequenos projetos comunitários a
serem submetidos a um edital disponibilizado pelo Instituto para o
Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira (IDESC),
uma organização não governamental atuante na região”.
Essa proposta foi organizada de uma forma com que cada grupo,
de cada uma das comunidades, fosse dividido em dois subgrupos, que
elaboraram cada qual uma proposta de projeto. Em André Lopes, as
propostas foram 1) “Projeto de Educação Ambiental na Comunidade de
André Lopes”; e 2) “Projeto de conservação de espécie para fins de geração
de renda a médio e longo prazo na Comunidade de André Lopes”. Em
Sapatu foram: 1) “Projeto de desenvolvimento do ECOTURISMO em
234
Sapatu; e 2) “Projeto de viveiro de plantas nativas para reflorestamento e
comercialização” (SANTANA, 2008, p. 136-139).
A partir dessas duas propostas, destaca-se um intenso processo de
diálogo, debate e reflexão sobre as exigências do edital, e qual proposta
cada grupo deveria submeter. Pelo lado do Quilombo André Lopes, foi
realizada uma readequação e, por meio de uma parceria entre a Associação
dos Remanescentes de Quilombo do Bairro de André Lopes, e o ISA, com
a colaboração da UNICAMP no decorrer das Oficinas de Planejamento
Comunitário do Turismo, foi elaborada e submetida a proposta
“Conservação da espécie do palmito juçara em extinção para fins de
geração de renda a médio e longo prazo no Quilombo André Lopes”,
aprovada pelo IDESC, em agosto de 2006 (SANTANA, 2008, p. 140).
Em relação a Sapatu, apesar de a maioria dos participantes
julgarem a proposta 2 como a melhor opção para a comunidade, a proposta
não teve consenso; tal situação se manteve até acabar o prazo do edital.
Diante dessa falta de consenso, ficou decidido que a comunidade deveria
amadurecer suas decisões para um futuro edital.
A partir da avaliação das propostas, o grupo, em sua maioria, julgou a
“Proposta 2” como melhor. Essa proposta, de forma geral, mantinha
mais afinidade com o grupo e com a própria comunidade, que caso
tivesse a proposta aprovada pela ONG, assumiria pela primeira vez, a
gestão integral de um projeto. Contudo, a maioria do grupo foi
questionada pelo fato da proposta não ter importância turística; os
questionamentos partiram especialmente de alguns monitores
ambientais que tinham interesse em melhorar a estrutura de recepção
na área da Queda do Meu Deus (SANTANA, 2008, p. 137).
Apesar de nem André Lopes, nem Sapatu, proporem como
fundamentais as propostas voltadas para o turismo, importa destacar como
235
os procedimentos e as mediações realizadas por meio do GT e das oficinas
proporcionaram um ambiente rico e contraditório sobre os impactos e as
possibilidades do turismo em cada uma das comunidades.
No espaço de reflexão aberto pela realização das oficinas, as
comunidades notadamente conduziram um processo de visualização
do próprio território, indo além do objetivo aparentemente proposto,
qual seja, o de realizar o planejamento do turismo. Elas trabalharam
norteando-se fundamentalmente pela dinâmica comunitária,
determinando prioridades e escolhas concretas para a conformação do
território (SANTANA, 2008, p. 148).
Nesse sentido, faz-se importante destacar, também, que, apesar de
os apontamentos do primeiro projeto nortearem-se por uma ideia
organizativa da agricultura familiar, e da pequena propriedade privada,
conforme descrição do professor Celso Lopes, com o decorrer dos
trabalhos e das relações estabelecidas com as comunidades, percebe-se que
ocorre uma mudança de abordagem para uma compreensão de
organização comunitária, mais adequada à identidade grupal dos
remanescentes de quilombos.
Por meio das reflexões sobre as ações realizadas pelo
PCQ/UNICAMP e, particularmente, pelo GTTEA nas análises de Ivie
Santana (2008), compreende-se que a organicidade e o uso social da terra
desenvolvido pelas comunidades está vinculado a características
socioambientais que conformam um tipo específico de produção social no
território e de propriedade comunal da terra.
A partir do estudo supracitado, constata-se que os intelectuais
vinculados ao PCQ/GTTEA/UNICAMP desenvolveram um
procedimento dialógico e problematizador, ao passo que vão contribuindo
236
com o planejamento e com a reflexão crítica sobre o turismo para as
comunidades, vão assimilando a identidade quilombola que fora
construindo positivamente a partir dos debates que surgiram em torno do
afrocentrismo e do quilombismo.
Apesar de algumas diferenças devido à singularidade e ao processo
de cada comunidade, a identidade quilombola passa a ser entendida como
um processo de afirmação política inserido num contexto de conflito
fundiário, no qual a identidade coletiva do território mostra-se de
fundamental importância para resistirem nesses territórios.
Nesse contexto, apesar da lógica intrínseca que envolve a dinâmica
do turismo convencional na sociedade capitalista, compondo os espaços a
partir da inserção de bens e serviços muitas vezes externos ao lugar, de
mercantilização da paisagem, visto como um bem espetacular e objeto de
desejo do turista, considera-se que, a partir da concepção comunitária de
planejamento do turismo construída pelos pesquisadores extensionista do
PCQ/GTTEA/Unicamp, em parceria com as Associações Quilombolas,
apresenta-se uma concepção diferenciada de apropriação do turismo para
os seus territórios, como uma ferramenta de auto-organização e de diálogo
com os sujeitos que visitam seus territórios.
4.4 As contribuições do Instituto Socioambiental (ISA)
Tendo como principal referência a entrevista que realizamos com
Raquel Pasinato (Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do Instituto
Socioambiental ISA) em 2018, constata-se que o ISA nasceu em 1994,
237
fruto do desmembramento do Centro Ecumênico de Documentação e
Informação (CEDI)
113
.
Referência na temática socioambiental no Brasil, o ISA é uma
entidade sem fins lucrativos, constituída com os seguintes objetivos:
defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos, relativos ao meio
ambiente, ao patrimônio cultural e aos direitos dos povos indígenas. Desde
2001, o ISA é uma Oscip Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público com sede em São Paulo (SP) e subsedes em Brasília (DF),
Manaus (AM), Boa Vista (RR), São Gabriel da Cachoeira (AM), Canarana
(MT), Eldorado (SP) e Altamira (PA)
114
.
Raquel Pasinato (2018) relata que os trabalhos do ISA iniciaram-
se muito vinculados às questões indígenas, tanto que, até os dias atuais, os
indígenas são as principais populações atendidas pelo ISA, fazendo parte
de todos os programas da entidade, com exceção especialmente do
Programa do Vale do Ribeira, que tem os quilombolas como as principais
populações atendidas
115
.
Para sua atuação no território, o ISA se organiza por bacia
hidrográfica; dessa forma, além do Programa do Ribeira, o ISA tem o
Programa Rio Negro: abrangendo a bacia hidrográfica do Rio Negro e
113
O CEDI nasceu da experiência do CEI Centro Evangélico de Informação, criado em
1964/1965 por militantes ligados à Confederação Evangélica do Brasil, afastados de suas igrejas
após o golpe civil-militar de 1964. Em 1968, com a incorporação de militantes católicos, o CEI
passou a denominar-se Centro Ecumênico de Informação e, em 1974, institucionalizou-se como
CEDI Centro Ecumênico de Documentação e Informação. A sede inicial foi no Rio de Janeiro,
mas a ampliação de suas atividades deu origem a uma subsede em São Paulo. Em 1994, o CEDI
desdobrou-se em quatro outras instituições, dando autonomia aos seus departamentos
fundamentais: Ação Educativa, ISA Instituto Sócio- Ambiental, NETS - Núcleo de Estudos e
Trabalho e Sociedade, sediados em São Paulo, e Koinomia, no Rio de Rio de Janeiro. Dos quatro,
apenas o NETS teve vida breve; os demais continuam ativos até os dias atuais. Disponível em:
http://forumeja.org.br/node/2931. Acesso em: 20 dez. 2020.
114
Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/o-isa. Acesso em: 20 dez. 2020.
115
PASINATO, Raquel, Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 08 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
238
trabalhando, especificamente, com populações indígenas; e o Programa
Xingu: abrangendo a bacia do rio Xingu. Esse programa, além de assistir
os povos indígenas, trabalha, também, com extrativistas e populações
ribeirinhas.
Para além dos programas de campo, Raquel Pasinato (2018)
destaca, também, o que eles denominam de programas meio: Programa de
Políticas Públicas e Direito, que fica em Brasília desenvolvendo atividades
ligadas à legislação, direito e políticas públicas; Programa de
Monitoramento de Áreas Protegidas, que fica em São Paulo com serviços
de banco de dados, informação, produção de informação e monitoramento
portarias, conflitos sobre as comunidades e UC, monitoramento de
portarias e conflitos; e, também, em São Paulo está a sede do ISA, que
abriga os serviços de administração.
Abrangendo a bacia hidrográfica do rio Ribeira de Iguape, e
atuando especialmente com as comunidades remanescentes de quilombos,
o Programa Vale do Ribeira começou entre 1998-1999 em decorrência de
uma ação que se chamava Mata Atlântica, iniciativa que tinha como
objetivo realizar um diagnóstico socioambiental na região.
A proposta desse diagnóstico socioambiental buscou analisar o
Vale do Ribeira com o intuito de entender as características da região.
Constatou-se que na região, além de uma grande riqueza ambiental, havia
muitas comunidades tradicionais, dentre essas, os remanescentes de
quilombos, que, apesar de terem seus direitos reconhecidos desde 1988,
eram um grupo muito desassistido e que necessitava de assistência técnica
e apoio, inclusive sobre a regularização fundiária naquele espaço territorial
permeado por uma série de UCs.
Destaca-se que, nesse contexto, as comunidades estavam
organizadas na luta contra os projetos de barragens no rio Ribeira. Dessa
239
forma, o ISA também se insere nesse processo de luta contra a construção
da barragem de Tijuco Alto. Compreende-se que, a partir desse
movimento, o ISA começa a se aproximar de forma mais sistemática das
comunidades, do MOAB e da EAACONE.
Com essa aproximação, o ISA começou também a oferecer
assessoria e assistência às comunidades. Partindo de procedimentos ligados
à lógica do desenvolvimento local, iniciou um projeto de banana orgânica
com Ivaporunduva. Vale destacar que, por meio de parceria nesse projeto,
o Nepa/UNICAMP começou a atuar na região. Além do
Nepa/UNICAMP, o projeto contou também com a participação do
Instituto Biodinâmico (IBD), parceiro até os dias atuais.
Raquel Pasinato (2018) destacou que, a partir dos anos 2000,
oportunidades que surgiram por meio de iniciativas e políticas,
principalmente do governo federal, com a finalidade de apoiar pequenos
projetos ligados às comunidades tradicionais, contribuíram para a
elaboração de propostas mais abrangentes, abrindo caminho para discutir
melhor as prioridades e questões de organização, gestão e planejamento a
médio e longo prazo
116
.
Em meio a uma série de ações e de iniciativas que foram
desenvolvendo, primeiro com Ivaporunduva e, depois com outras
comunidades, sentiu-se a necessidade de entender o que eram as demandas
dessas outras comunidades, quais eram as prioridades para o território e os
desafios. Dessas reflexões, surgiu a proposta de construir uma Agenda
Socioambiental de Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.
A Agenda foi um projeto coordenado e desenvolvido pelo ISA com
apoio financeiro do Fundo Nacional de Meio Ambiente (FNMA) através
116
PASINATO, Raquel, Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 08 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
240
da linha de financiamento “Demanda Espontânea”, do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA), e da Igreja da Noruega através da
operação Dia do Trabalho (AIN-OD) (SANTOS; TATTO, 2008).
A construção dessa Agenda foi iniciada ainda em 2004, com a
participação de representantes das comunidades quilombolas nas
discussões para a elaboração do projeto, através de reuniões organizadas
pelo ISA com o apoio da EAACONE. Em 2006, em parceria com 14
comunidades quilombolas
117
, iniciam-se as ações de campo, através das
primeiras reuniões nas comunidades para apresentações do projeto de
discussões sobre estratégias de sua implementação. No âmbito desse
projeto, ocorreram oficinas temáticas onde foram trabalhados os temas
como: organização e fortalecimento comunitário, legislação ambiental;
cultura, artesanato tradicional quilombola; manejo de recursos
florestais saneamento, manejo de lixo e cuidados com os agrotóxicos
(SANTOS; TATTO, 2008, p. 07).
Tendo como referência a própria Agenda e as entrevistas com a
Raquel Pasinato (2018), constata-se que a construção da Agenda se deu por
meio de diagnósticos participativos, envolvendo pessoas de cada uma das
comunidades, de tal forma que os próprios moradores conduziram os
levantamentos e as entrevistas. Dessa forma, compreende-se que, além do
protagonismo dos sujeitos, houve também um importante processo de
formação e capacitação para o desenvolvimento das atividades
118
.
Foi realizado um processo intenso de oficinas sobre cartografia para
que eles pudessem desenhar os territórios, indicando onde se encontram as
nascentes, as vilas, as casas, as roças e os espaços de convivência
comunitária. Foi como cartografia social, mas não com os mesmos
117
Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, Sapatu, Nhunguara, Ivaporunduva, Galvão, São Pedro,
Bombas, Cangume, Porto Velho, Morro Seco, Mandira, André Lopes, Poça.
118
PASINATO, Raquel, Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 08 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
241
procedimentos. Diferentemente da cartografia social, o ISA levava a base
geográfica feita em laboratório com o limite do território que já tinha sido
realizado pelos RTC e, a partir dessa base, eles iam desenhando em cima
119
.
Foi um processo bem intenso e, a partir do momento que fechou
a Agenda em 2008, tinha-se um quadro das principais demandas e
prioridades para trabalhar. Raquel Pasinato (2018) destacou que a ideia da
Agenda não deveria se limitar apenas às ações desenvolvidas pelo ISA.
Também era uma ferramenta de luta para que as comunidades, a partir
dela, pudessem reivindicar seus direitos sobre os territórios e, além disso,
para que gestores e formuladores de políticas públicas pudessem consultar
o material e entender melhor as prioridades de cada uma das comunidades.
A partir do trabalho da Agenda, Raquel relata que o ISA conseguiu,
de forma mais elaborada, entender as demandas e identificar as prioridades
que poderiam contribuir. Dentre essas prioridades, a questão do resgate
cultural, demandada particularmente pelos mais velhos e de planejamento
territorial, mostraram-se de grande relevância, criando o ambiente para a
proposta da construção de um Inventário Cultural e do Planejamento
Territorial Participativo
120
.
Atendo-se ao Inventário, observa-se que, além de resgatar a cultura
e aproximar os mais jovens de suas origens ancestrais, mostrou-se também
como um possível instrumento de luta contra os projetos da barragem, por
exemplo, identificando e sistematizando todo aquele universo cultural que
a construção da barragem poderia alagar e extinguir.
119
PASINATO, Raquel, Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 08 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
120
PASINATO, Raquel, Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 08 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
242
A proposta de fazer o levantamento dos bens culturais nasce dos
próprios quilombolas, preocupados pela falta de conhecimento e
reconhecimento por parte do Estado e da sociedade brasileira em
relação aos seus direitos territoriais e pela ameaça permanente dos
grandes projetos de infraestrutura na região, entre eles, os de barragens
no Rio Ribeira de Iguape, com grande potencial de impacto para a
região e diretamente sobre alguns territórios quilombolas
(ANDRADE; TATTO, 2013, p. 07).
Diante das mediações e reflexões que foram sendo potencializadas
pelo ISA junto às comunidades, entendeu-se que o resgate e a manutenção
da cultura e o modo de vida quilombola, além de um instrumento para
lutar contra as barragens, também eram direitos resguardados pelos artigos
215 e 216 da Constituição Federal.
A construção do Inventário Cultural de Quilombos do Vale do
Ribeira se deu por um intenso processo de trabalho que durou 4 anos.
Além da assessoria do ISA e da EAACONE, o projeto contou também
com suporte do IPHAN e apoio financeiro da Petrobrás por meio da Lei
Rouanet.
Amparado pela metodologia do Inventário de Referências
Culturais INRC/IPHAN, o levantamento envolveu 16 CRQ
121
e
identificou 180 bens culturais que foram classificados em cinco categorias:
Celebrações; Formas de Expressão; Ofícios e Modos de Fazer; Lugares e
Edificações (ANDRADE; TATTO, 2013).
Raquel Pasinato (2018) destacou que o processo levou todo esse
tempo, entre outras razões, porque a equipe era pequena, mas,
121
Abrobral (Margem Esquerda), Bombas, Cangume, Galvão, Ivaporunduva, Mandira, Maria
Rosa, Morro Seco, Nhunguara, Pedro Cubas, Pedro cubas de Cima, Pilões, Porto Velho, Praia
Grande, São Pedro e Sapatu.
243
principalmente pela questão metodológica, que, apesar de seguir as
orientações do INRC/IPHAN, o ISA, enquanto coordenador da proposta,
sugeriu fazer os procedimentos de forma participativa, de forma similar ao
processo feito para a construção da Agenda.
Visto que o INRC/IPHAN tem uma metodologia própria, foi
necessário fazer capacitações e adequações para o processo, de uma forma
que permitisse que os próprios quilombolas fizessem as entrevistas. Havia
a antropóloga que coordenava o processo, mas eram os próprios membros
das comunidades que iam fazendo as entrevistas com os mais velhos.
Diante disso, foi necessário adaptar o questionário e as linguagens, fato que
demandou um tempo maior
122
.
O Planejamento Territorial Participativo, apesar de abranger uma
porcentagem maior de comunidades que se organizaram e debateram o
licenciamento ambiental com técnicos e profissionais de diversas
entidades
123
, enquanto ação planejada e coordenada pelo ISA, envolve
diretamente as comunidades de Morro Seco em Iguape e São Pedro em
Eldorado (PASINATO, 2012).
A escolha dessas comunidades se deve a diferentes razões. Em São
Pedro, a comunidade sempre atuou de forma proativa em diferentes
projetos com destaque na luta pelo licenciamento das roças, pautada
em parte pelas pesquisas sobre a dinâmica do uso da terra e pela
organização frente aos desafios pela sobrevivência. Em Morro Seco, a
comunidade é fortemente organizada em torno da Associação, e sofre
122
PASINATO, Raquel, Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 08 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
123
Destacam-se técnicos do ITESP e do extinto Departamento Estadual de Recursos Naturais
(DEPRN) que teve suas atribuições incorporadas à Companhia Ambiental do Estado de São Paulo
(CETESB), pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto de Botânica do Estado
de São Paulo, da Fundação Florestal e do ISA (PASINATO, 2012, p. 05).
244
sérias limitações espaciais, tendo que lidar com muitos ocupantes
terceiros em um território pequeno (PASINATO, 2012, p. 6).
Com base no material elaborado pelo ISA, para o Planejamento
Territorial Participativo, foi desenvolvido um intenso processo de
sensibilização, mobilização, envolvimento e participação. Foram inúmeras
reuniões e oficinas sobre Patrimônio Cultura e Turismo, Agricultura e
extrativismo, Adequação Ambiental, Organização Comunitária,
Diagnóstico Rural Participativo e outras atividades complementares.
O planejamento territorial foi importante para pensar as ações baseadas
na especialização do uso atual e futuro, que podem concretizar
demandas locais e proporcionar meios para atingir os objetivos do
território como a garantia de desenvolvimento e qualidade de vida para
as famílias, compatibilizando a sobrevivência da população com o uso
sustentável dos recursos naturais em seus espaços territoriais
(PASINATO, 2012, p. 07).
Nesse intenso e rico processo que envolve a construção da Agenda
Socioambiental, o Inventário Cultural e o Planejamento Territorial
Participativo é que também algumas CRQVR que já se defrontavam com
atividades turísticas em seus territórios identificam a necessidade de se
estruturarem de forma mais organizada para tratar com o turismo nos
territórios.
Visto que o turismo já se manifestava e impactava os territórios
quilombolas devido à grande quantidade de turistas que visitavam
anualmente a Caverna do Diabo, que fica no quilombo de André Lopes, e
a cachoeira do Meu Deus, que fica no Quilombo de Sapatu, por exemplo,
as comunidades sentiram a necessidade de construir uma alternativa que
lhes proporcionasse certo grau de controle sobre os bens naturais e
245
culturais, materiais e imateriais que eram explorados por outros em seus
territórios.
Diante dessa compreensão, as Comunidades de Ivaporunduva,
Mandira, André Lopes, Sapatu, São Pedro, Pedro Cubas e Pedro Cubas de
Cima, em parceria com o ISA, elaboraram um projeto que obteve apoio
financeiro do MTUR, com a finalidade de estruturar um Circuito
Quilombola de Turismo Comunitário do Vale do Ribeira (CQTVR).
Seguindo o modus operandi que o ISA já vinha desenvolvendo
junto às comunidades desde suas primeiras ações, a proposta de construção
do CQTVR também seguiu procedimentos de capacitação e formação que
potencializava e incentivava a construção participativa, comunitária e as
prioridades locais.
Raquel Pasinato (2018) destacou que foi realizado um processo de
formação e capacitação interno, envolvendo as comunidades no
levantamento e mapeamento dos possíveis atrativos, no desenho de um
mapa e no desenvolvimento de um material de divulgação, além de um
curso de monitor ambiental.
No decorrer do processo de debate, reflexão e construção da
proposta, os membros das comunidades realizaram visitas técnicas e troca
de saberes com outras CRQ que também estavam trabalhando com o
turismo, como, por exemplo, o Quilombo de Monte Alegre no Espírito
Santo e o Quilombo Campinho da Independência no Rio de Janeiro.
Em relação às visitas técnicas, constata-se, com base no
documentário sobre o CQTVR, que as atividades foram de fundamental
importância para a troca de experiência, mas principalmente para
observarem como outras comunidades vêm discutindo e propondo o
246
turismo nos territórios, sempre com muita politização, respeito e
consciência de um conhecimento ancestral
124
.
Os cursos e oficinas de capacitação com foco em planejamento,
gestão, monitoria, precificação, trilha, entre outras temáticas que foi
necessário tratar de forma mais aprofundada durante o processo, serviu
para as comunidades materializarem as possiblidades e os limites do
turismo em seus territórios, bem como compreender e definir como
utilizá-lo e desenvolvê-lo.
Raquel Pasinato (2018) apontou que o ISA, enquanto mediador,
contribuiu como um problematizador que tinha como princípio fomentar
as diferentes possibilidades, bem como os limites e as consequências dessas
possibilidades, potencializando reflexões que incentivassem a
autoaprendizagem para que as próprias comunidades a escolhessem e
tomassem suas decisões.
Entre 2008 e 2012, quando foram desenvolvidas todas as ações,
formou um conselho gestor, denominado pela alcunha de Conselho
Gestor do Circuito Quilombola, composto por representantes das 7
comunidades que compunham o Circuito. Após esse prazo e a finalização
das etapas do projeto, o ISA foi se retirando dessa assistência focada no
turismo e deixando a condução do processo para o conselho, contudo,
devido a divergências e particularidades entre os membros, o Conselho,
com o tempo, foi deixando de funcionar.
Importante destacar que, nesse período, os quilombolas criaram
outra entidade, chamada de Centro de Educação, Profissionalização,
Cultura e Empreendedorismo (CEPCE), com a missão de ser um efetivo
124
Circuito Quilombola Vale do Ribeira; Realização: ISA; Apoio: EAACONE, Federação das
Associações Quilombolas do Vale do Ribeira (FAQUIVAR), Núcleo Oikos, MTUR Secretária
Nacional de Políticas de Turismo e MDA Secretária da Agricultura Familiar. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=JZUvZoqXINI. Acesso em: 15 out. 2020.
247
agente promotor do desenvolvimento sustentado e representar, de forma
inclusiva, os direitos e interesses de grupos tradicionalmente excldos, em
especial, as comunidades quilombolas
125
.
De acordo com a entrevista com Raquel Pasinato (2018), ao passo
que o projeto foi dando seu prazo de encerramento, o ISA foi se retirando
desse debate mais específico sobre o turismo, e a CEPCE começou a
assumir a condução desses debates e até conseguiram aprovar um outro
projeto para trabalhar com o turismo junto à Petrobras.
Contudo, ao que tudo indica, a CEPCE está inoperante. Tentando
entender melhor a situação da entidade com alguns quilombolas que mais
ou menos acompanharam o processo, esse debate sobre a CEPCE se
mostrou muito caro, as pessoas sempre desconversavam ou mesmo se
recusavam a falar abertamente sobre ela, não nos possibilitando avançar
mais sobre o que realmente sucedeu nesse contexto.
Pontuado isso, constata-se que, apesar de considerar o processo de
discussão e de construção do Circuito todo muito rico, Raquel Pasinato
(2018) considera que a falta de um acompanhamento contínuo debilitou
a estruturação e o funcionamento do circuito de forma integrada e coletiva,
e as comunidades passaram a trabalhar mais de forma autônoma, focadas
na organização do seu território, e não como circuito.
A proposta foi de fazer uma coisa mais integrada e em rede, de tal
forma que o grupo pudesse visitar as comunidades e passar mais tempo
envolvidas no Circuito, contudo, devido às particularidades e limites
internos e externos que envolvem as singularidades e dificuldades de cada
comunidade, isso não ocorreu de fato
126
.
125
Disponível em: https://www.facebook.com/CEPCE-Organiza%C3%A7%C3%A3o-
Quilombola-129493347227155/. Acesso em: 30 ago. 2018.
126
PASINATO, Raquel, Coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, em entrevista
realizada por João Henrique Souza Pires, em 08 de novembro de 2018, em Eldorado/SP.
248
Ainda assim, Raquel considera que o turismo é uma alternativa
importante que, além de possibilitar uma renda bacana, funciona como
uma ferramenta de planejamento territorial, bem como de diálogo e
comunicação com os turistas e as demais pessoas que visitam seus
territórios, apresentando sua cultura e suas histórias de luta e de resistência.
Fazendo mea culpa dessa debilidade no funcionamento de forma
integrada do CQTVR, Raquel destacou que esse trabalho suscitou e serviu
de base para outras inciativas, inclusive a de formação do Circuito
Quilombola Paulista, proposto pelo Estado por meio do ITESP e da
Secretária Estadual de Turismo.
Contudo, como já destacamos, quando tratamos sobre o ITESP, o
Circuito Quilombola Paulista, apesar de ter sido proposto entre 2016 e
2018 no governo de Geraldo Alckmin, devido às transformações políticas
dos últimos anos, ainda não possui um direcionamento de assessoria e
assistência que de fato atende às comunidades nesse sentido.
Para finalizar esse processo de análise e reflexão do ISA sobre as
CRQVR, e mais especificamente sobre sua contribuição na formatação do
CQTVR, destaca-se que, apesar de ter se retirado do debate específico
sobre o turismo, o ISA tem se inserido em várias outras ações que
fortalecem o processo de resistência e luta das CRQVR, com destaque ao
seu engajamento na construção e manutenção da Feira de Trocas de
Sementes dos Quilombos do Vale do Ribeira e na campanha de defesa e
salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola.
Nesse sentido, compreende-se que a importância do ISA, enquanto
entidade que atua diretamente prestando serviços de assistência,
capacitação e formação junto às comunidades para a concepção de um
turismo alternativo e contra hegemônico, esta consubstancia, no seu
249
histórico de atuação, que sempre buscou fortalecer e reconhecer o direito
e a auto-organização dessas comunidades sobre seus territórios.
Diante disso, compreende-se que o ISA desenvolve suas ações de
forma dialógica-problematizadora com enfoque transdisciplinar, que
debate as necessidades e as possibilidade das comunidades a partir de uma
perspectiva que busca fortalecer a capacidade de autoaprendizagem e auto-
organização.
Apesar de ser um processo que leva um tempo maior do que a
simples transferência do conhecimento, contata-se que esse tipo de ação
busca estabelecer, por meio do diálogo, da reflexão e da problematização,
subsídios para que a própria comunidade tenha conhecimento dos
processos e possam, assim, tomar a decisão mais adequada às suas
demandas e necessidades.
250
Conclusão
A análise sobre as ações das EA e a formulação de uma proposta de
turismo diferenciado pelo CQTVR, sobretudo, de uma proposta contra
hegemônica e não mercantilizada, foi o objetivo desta pesquisa. Para tanto,
buscamos, nos condicionantes histórico-sociais, o processo de reorgani-
zação do movimento negro e da luta antirracista, ao mesmo tempo em que,
e em decorrência desse contexto, analisamos a ascensão dos remanescentes
de quilombolas e a luta travada em prol da propriedade e do modo de vida
em seus territórios. O resgate histórico da luta pela manutenção dos seus
territórios e contra o projeto da construção da Barragem de Tijuco, bem
como o debate sobre a questão racial e as mediações realizadas por
intelectuais em torno do MNU, foram fundamentais para
compreendermos os condicionantes históricos que deram origem às
CRQVR. Compreendemos que as CRQVR são resultado da luta
antirracista e quilombista, da luta de classes no campo, da sua capacidade
de auto-organização, da resistência pela manutenção de seu modo de vida
e pelo autocontrole dos seus territórios.
A preocupação por organizar de forma mais elaborada o turismo
originou-se da necessidade que as comunidades sentiram de manter certo
grau de domínio da atividade que já se manifestava sobre os seus territórios,
gerando, assim, um turismo sob forte controle deles e não mercantilizado.
Ao longo dos anos, diversas entidades públicas e privadas passaram a atuar
no Vale com o propósito de desenvolvimento do turismo, isso possibilitou
que alguns quilombolas participassem de forma aleatória e individual de
cursos e capacitações para atuar como monitor ambiental nas diferentes
251
UC da região. A partir dessas relações, algumas comunidades sentiram a
necessidade de criar espaços de formação e capacitação para entender as
necessidades e possibilidades de trabalhar com outro tipo de turismo nos
territórios.
Procuramos mostrar a complexidade territorial do Vale do Ribeira,
uma região que tem um dos mais baixos IDH do Estado de São Paulo,
uma das maiores áreas de remanescente contínuo de Mata Atlântica do
território nacional, com uma grande área controlada pelo Estado através
das UC em sobreposição com territórios de diferentes comunidades rurais,
ribeirinhas, indígenas e quilombolas. Com as transformações em relação à
questão ambiental e com a reforma do Estado, o número e o interesse de
entidades que, de forma direta ou indireta, por meios de cursos de
capacitação, formação, assessoria, fiscalização e assistência técnica,
presencial ou on-line, aumentaram e se diversificaram.
Diante disso, o número de entidades que tiveram e ainda têm
atuação na região e, dessa forma, possuem alguma relação de maior ou
menor grau com os remanescentes de quilombos em suas diferentes
gerações é bastante amplo e diverso, tornando impossível tratar com
qualidade todo esse universo, o que nos obrigou a selecionar aquelas
entidades que mais se destacaram nos acontecimentos históricos que
possibilitaram a conformação do CQTVR.
Como vimos, dentre essas entidades, destacamos o MOAB e a
EAACONE, entidades criadas pelos próprios quilombolas e de
fundamental importância pela forma como eles pensam e se auto-
organizam no território; o ITESP, que, mesmo tendo atuações pontuais,
foi a principal entidade pública que presta serviço de ATER na região e
recentemente tinha lançado a proposta de um Circuito Quilombola
Paulista; a UNICAMP, por ter sido a primeira entidade que trabalhou com
a capacitação e a formação em turismo especificamente com os
252
quilombolas; e o ISA, entidade que atuou e atua com as comunidades
mais de 20 anos e foi responsável pelo projeto final que formou o CQTVR.
Compreendemos que a relação estabelecida pelos quilombolas com
essas entidades, bem como os processos de mediações, reflexões em
diferentes espaços de formação e capacitação composto por elas, não sem
atritos, contribuíram para que as comunidades se apropriassem do
conhecimento sobre o turismo e, por meio de uma reflexão - articulando
sobrevivência e resistência, aplicam os conhecimentos sobre o turismo para
uma alternativa de renda que preservasse as relações sociais, visto que as
roças de subsistência estavam embargadas pela fiscalização ambiental, mas
principalmente como um instrumento de disputa pelo autocontrole dos
seus territórios, como uma ferramenta de fortalecimento da identidade
quilombola e de relação direta com os diferentes grupos e sujeitos que
visitam a região, permitindo-lhes, assim, contar a sua versão da história
sobre a luta e a resistência naqueles territórios. Isso permitiu uma
combinação rara e excepcional no campo do turismo, isto é, a geração de
renda, o controle do território pelo povo e a preservação das relações
sociais. Não encontramos trabalho explorado e grandes empresas
utilizando aquele espaço para obter lucro, ao contrário, os próprios
quilombolas controlaram todo o processo e com outros objetivos, distintos
da acumulação de capital.
O MOAB e a EAACONE, entidades criadas pelas próprias
comunidades, sendo a primeira para organizar a luta contra os projetos de
barragens e a segunda para organizar a luta pela posse e titularização dos
territórios, assumem um papel de vanguarda que conduz a formação e a
ação das comunidades em diferentes momentos e temáticas. Considerando
mais especificamente a EAACONE, entidade que nasce do MOAB e
conduz o processo das associações e da propriedade coletiva da terra,
compreendemos que ela também é a principal entidade dos quilombolas,
253
que estabelece as relações e mediações com as outras entidades que também
atuam com os quilombolas do Ribeira. Sua atuação contínua no território
e com os quilombolas, acompanhando e intervindo nos processos, parece-
nos fundamental para a formatação de um turismo diferenciado, não
mercantilizado e contra hegemônico, pautado na luta e na resistência.
Em relação ao papel do ITESP, organização estatal responsável
para prestar serviços de ATER à população rural do Estado de São Paulo,
incluindo os remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira, apesar dos
esforços, particularmente de alguns técnicos com uma concepção mais
crítica e militante, constatamos alguns limites e dificuldades, entre outras
questões, por as ações terem grande influência de uma concepção
produtivista, de transferência tecnológica e de um modelo de organização
privada e individual historicamente constituído, mas, principalmente, pelo
descaso estatal do estado a serviço das classes proprietárias na sua fase
neoliberal em fornecer um serviço público e de qualidade, não
estabelecendo um serviço com pessoal, orçamento e planejamento
contínuo e mais consonante com a organização comunal das comunidades.
Com relação ao papel do GTTEA do PCQ desenvolvido pela
UNICAMP, constatamos que suas ações tiveram sua importância, entre
outras razões, por ter sido a primeira entidade que buscou desenvolver um
trabalho de formação, capacitação e planejamento para o turismo
articulando o conhecimento científico codificado produzido na
universidade e o saber tradicional das comunidades locais.
Seguindo um propósito que potencializa a troca de conhecimentos,
observa-se que as ações do GTTEA desenvolveram-se de uma forma
dialógica-problematizadora, conduzindo as mediações e as reflexões dentro
de padrões que buscam o equilíbrio ambiental e social, bem como de
estímulo à autonomia e à auto-organização das comunidades, além de lhe
propor ferramentas de planejamento e elaboração de projetos.
254
Responsável pelo projeto que conduziu a formatação do CQTVR,
consideramos que o ISA entidade com atuação direta na região - também
desenvolveu suas ações junto às comunidades quilombolas com
procedimentos dialógicos, com uma atuação que potencializou a
organização comunitária, o conhecimento local e a construção de processos
participativos, de um turismo de baixa escala, em bases comunitárias.
Constata-se que o ISA tem seus procedimentos focados no diálogo
e na troca de saberes, buscando o equilíbrio entre a missão da entidade e
as demandas das comunidades, partindo do princípio de que a entidade
deve sensibilizar e problematizar os limites e possibilidades, bem como
fornecer as condições para que as comunidades tomam suas decisões. Em
termos gerais, o ISA enquanto entidade atua dentro da ótica do
desenvolvimento sustentável, mas lá na ponta, seus técnicos foram decisivos
para o desenvolvimento de um turismo não mercantilizado.
Diante disso, compreendemos que particularmente a EAACONE,
o GTTEA da Unicamp e o ISA, nesse processo histórico, foram as
principais entidades que, de forma positiva, buscaram potencializar e
fortalecer procedimentos para a autoaprendizagem das comunidades,
realizando as mediações que possibilitaram que elas forjassem o desenho
de um turismo não de hegemonia exploratória e consumista, mas de
fortalecimento da cultura quilombola, de conservação ambiental e com
auto-organização dos seus territórios.
Contudo, mesmo com os esforços constituído por meio da luta e
resistência no território, compreendemos, diante do avanço da lógica
neoliberal e individualista, que são inevitáveis as dificuldades e as
contradições enfrentadas para construção da propriedade comunal, bem
como para construção de um turismo não mercatilizado e contra
hegemônico.
255
Sobre a propriedade comunal do território, destacamos as palavras
de Maria Sueli Bernanga (2018), quando ressalta que isso ainda é um
projeto inacabado e que exige um exercício constante, pois a ideologia da
propriedade privada e da herança, por exemplo, sempre se manifesta como
uma contradição constante. Pessoas que já estão fora da comunidade há
mais de 20 anos às vezes retornam reivindicando a herança, num
entendimento da propriedade individual; não entendem que se trata de
um território coletivo constituído pela ancestralidade e identidade grupal
de cada comunidade. É preciso destacar também que, legalmente, a maior
parte dos territórios não foi oficialmente registrada, o que gera
instabilidade e possíveis regressões a essa luta.
Em relação ao CQTVR, percebem-se, nas palavras de Raquel
Pasinato (2018), que o Circuito ainda possui dificuldades para se
desenvolver da forma como foi concebido, organizado de forma integral e
em rede, envolvendo todas as comunidades e não só atividades soltas e
restritas aos próprios territórios. Ainda com base na entrevista com Raquel
Pasinato (2018), vimos que esse limite no funcionamento integral do
Circuito se dá também pela falta de acompanhamento contínuo em longo
prazo, seja pela parte do próprio ISA, que só obteve recurso para manter
as ações durante a vigência do projeto, seja pela ausência de um serviço de
ATER público contínuo e de qualidade, como nos relatou Thiago em
entrevista em 2018.
Acerca das contradições e dificuldades enfrentadas pelo CQTVR,
vale destacar que se trata de um grupo em luta contra o sistema do capital.
Dessa forma, há que se considerar as condições objetivas em que eles levam
sua proposta de turismo, que ora corroboram, ora contrariam e não
raramente desafiam a proposta do turismo convencional exploratório e
capitalista.
256
Importante destacar que ainda temos poucas pesquisas que buscam
analisar criticamente as experiências de luta e resistência das CRQ
articuladas ao turismo e as relações com as diferentes EA que vêm
trabalhando com CRQ, o que garante originalidade a esta pesquisa. Torna-
se sugestível, para pesquisas futuras, analisar mais profundamente esse
processo que envolve CRQ e intelectuais situados em diferentes EA.
Compreendemos que pesquisas nesse caminho possam estabelecer mais
subsídios para construção de uma proposta de ação mais dialógica e crítica,
bem como de alternativas para descolonizar o conhecimento científico e o
turismo.
Apesar das contradições e dificuldades, compreendemos que o
propósito e a razão de ser do turismo desenvolvido pelos remanescentes de
quilombos em torno do CQTVR escapam a uma lógica capitalista e
puramente mercantil, assumindo caraterísticas de luta e resistência pelo
território como instrumento de diálogo, comunicação e apresentação de
sua história e sua cultura à sociedade.
Para finalizar, faz-se imperioso destacar que, durante o processo de
construção dessa tese, em consequência do golpe de 2016, que resultou no
impeachment de Dilma Rousseff e, posteriormente, na eleição presidencial
de Jair Messias Bolsonaro em 2018, os direitos quilombolas e de outros
grupos sociais do campo e da cidade se encontram ameaçados.
Bolsonaro chegou ao planalto prometendo que, se dependesse dele,
“não teria um centímetro demarcado para reserva indígena e quilombola”,
além de declarações racistas fazendo referência direta aos remanescentes de
quilombos do Vale do Ribeira, região onde o Jair cresceu e passou parte da
sua juventude
127
.
127
Segundo declaração de Bolsonaro no clube Hebraica, na zona sul do Rio, “O afrodescendente
mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais”.
Disponível em:
257
Vistos os acontecimentos dos últimos dois anos relacionados à
questão ambiental com o aumento das queimadas e a célebre frase do
Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, sugerindo passar a boiada,
bem como a precarização e o desmonte do INCRA, para citarmos apenas
dois exemplos, contata-se que, além de não demarcar terras indígenas e
quilombolas, o governo federal vem trabalhando arduamente para
aumentar o número de terras para o agronegócio e para a mineração,
dando novo impulso à acumulação primitiva permanente (NOVAES;
MACEDO; CASTRO, 2019).
No caso do Estado de São Paulo, João Doria, que foi eleito
governador apoiando Bolsonaro em 2018 e que hoje tenta se desvincular
da aliança BolsoDória, constata-se que as dificuldades dos quilombolas,
para terem seus direitos assegurados, não difere muito do propósito federal.
Destaca-se, por exemplo, as informações que coletamos durante a
reunião sobre o Plano de Desenvolvimento Econômico Sustentável do
Vale do Ribeira em setembro de 2020 como parte do Programa Vale do
Futuro, lançado pelo governo Dória, que contraditoriamente, ao mesmo
tempo que discursava sobre o desenvolvimento do Circuito Quilombola
Paulista de sua importância para a região, propunha a extinção do ITESP,
entidade supostamente responsável para desenvolver o Circuito junto às
comunidades.
Com o avanço da pandemia de Covid-19, não foram poucas as
denúncias da EAACONE, da CONAQ e de outras entidades, por meio
das mídias sociais e das diferentes lives debatendo a questão da pandemia
e da saúde das populações quilombolas, notificando as dificuldades e a falta
de acompanhamento técnico e médico para esses territórios.
http://www.justificando.com/2017/04/04/nem-um-centimetro-para-quilombola-ou-reserva-
indigena-diz-bolsonaro/. Acesso em: 29 jan. 2021.
258
Contudo, apesar do cenário de adversidades, constatamos que as
CRQVR continuam organizadas e articuladas na luta pelo
reconhecimento dos territórios, pelo fortalecimento da identidade
quilombola e pela manutenção de seu modo de vida. A partir dessa
consciência de luta, continuam resistindo à lógica mercantilizante do
capital e propondo formas alternativas e contra hegemônicas de
organização produtiva e territorial, conforme esta tese procurou
demonstrar.
Para tanto, destacamos a importância de mais entidades sensíveis à
luta da classe trabalhadora em geral e das comunidades quilombolas em
particular, desenvolvendo mediações entre o saber científico e o popular,
potencializando o diálogo, as trocas de saberes e a autoaprendizagem dessas
populações. Essas relações são fundamentais para se criarem processos
consistentes de luta contra a lógica capitalista de posse e uso da terra, da
natureza e dos sujeitos.
259
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SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Lívia Pereira Mendes
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
João Henrique Souza Pires
Neste livro, resultado de amplo levantamento bibliográco e documen-
tal, e relevante investigação empírica para o entendimento do objeto de
estudo, João Henrique Souza Pires busca analisar o impacto da atuação
de Entidades de Apoio que desenvolvem trabalhos ligados à capacitação,
formação, assessoria, assistência técnica e extensão na organização do tu-
rismo em Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, no estado de
São Paulo.
O autor debruça-se sobre questões teórico-metodológicas que orientam o
trabalho dessas entidades nos territórios quilombolas, demonstrando, por
meio da discussão dos resultados de sua extraordinária pesquisa, que as ati-
vidades ali desenvolvidas são pautadas por uma lógica crítica, horizontal,
dialógica, problematizadora e de troca de saberes com os povos tradicio-
nais que desenvolvem o Circuito Quilombola de Turismo Comunitário do
Vale do Ribeira.
Desse modo, trata-se de uma obra fundamental para aqueles que buscam
conhecer a resistência e a luta histórica dos quilombolas pelo reconheci-
mento de seus territórios e preservação de seu modo de vida. Ademais, o
autor aponta que as práticas formativas de assistência técnica desenvolvidas
ali, ao contemplarem um turismo voltado para a valorização do território e
a auto-organização dos sujeitos quilombolas, potencializam o processo de
resistência dessas comunidades e se contrapõem ao sistemático avanço de
setores do agronegócio, da especulação imobiliária e da mineração sobre
áreas quilombolas, setores estes regulados pela lógica capitalista e destrui-
dores das culturas tradicionais.
João Pires, assim, desnuda ao leitor as evidências históricas dos quilom-
bolas como “classe em si” no contexto das lutas empreendidas no Vale do
Ribeira.
O livro de João Henrique Pires in-
titulado Entidades de apoio e comunidades
quilombolas: análise sobre o circuito quilom-
bola de turismo comunitário do Vale do Ri-
beira apresenta resultados de pesquisa atual
e relevante.
O objetivo principal da pesquisa
foi o de analisar as relações existentes entre
as Entidades de Apoio e as Comunidades
Remanescentes de Quilombos do Vale do
Ribeira (SP). As Entidades de Apoio reali-
zam trabalhos e desenvolvem projetos de
capacitação, formação, assessoria, assistên-
cia técnica e extensão com o objetivo de
organização do turismo das Comunidades
de Quilombos.
Nesta obra, o autor analisa criti-
camente os procedimentos teórico-me-
todológicos de Entidades de Apoio que
desenvolvem suas ações com o Circuito
Quilombola de Turismo Comunitário do
Vale do Ribeira no Estado de São Paulo.
Este livro é relevante, pois possui atuali-
dade e, principalmente, porque mostra as
lutas das comunidades remanescentes de
quilombos pelo reconhecimento e auto-
nomia de seus territórios e de seu modo de
vida. As práticas formativas de assistência
técnica, que fomentam um turismo volta-
do para a valorização do território e au-
to-organização dos sujeitos remanescente
de quilombos na região, colaboram com
o processo de resistência das comunidades
e se contrapõem ao avanço de setores do
agronegócio, imobiliário e da mineração
sobre as áreas Quilombolas.
O autor apresenta e analisa a luta
das comunidades quilombolas pelo seu
território aliadas aos projetos alternativos
de organização do turismo, que se contra-
põem às práticas de turismo mercantiliza-
das e alheias aos interesses da comunidade
local.
Desse modo, esta obra apresenta
uma contribuição para o entendimento das
lutas e das formas de resistência das Comu-
nidades Quilombolas na sociedade capitalis-
ta e, de forma especíca, das possibilidades
de desenvolvimento de projetos alternativos,
que buscam um desenvolvimento econômi-
co autônomo aliado à produção de conheci-
mento cientíco.
Apresentar um estudo que colo-
ca em epígrafe a experiência econômica e
cientíca de Comunidades Quilombolas
que lutam pelo seu território e por justiça é
também um ato de resistência. Desse modo,
os atributos positivos deste livro o elevam a
uma leitura de referência para os leitores e
leitoras interessados na temática.
ENTIDADES DE APOIO E
COMUNIDADES QUILOMBOLAS
ENTIDADES DE APOIO E COMUNIDADES QUILOMBOLAS
João Henrique S. Pires
análise sobre o Circuito Quilombola de Turismo
Comunitário do Vale do Ribeira (SP)
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 396/2021
Processo Nº 23038.005686/2021-36
NEUSA MARIA DAL RI
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