O presente texto, pensado na perspectiva
da Filosoa da Educação, toma como base
o alerta adorniano de que o imperativo pri-
meiro de toda educação é o de que Auschwitz
não se repita. Na dialética entre civilização e
barbárie, Auschwitz é a irrupção na história
da barbárie perpetrada. Nestes tempos som-
brios, vivemos um continuum: do nazifascis-
mo daquele momento chegamos ao fascis-
mo do nosso tempo. Na atual conjuntura, de
exacerbação do autoritarismo e de projetos
autocráticos, a hipótese é que temos uma
atualização destes elementos sob a égide do
neoliberalismo e do advento das Redes Sociais,
além da potencialização da capacidade de
manipulação das subjetividades dos existen-
tes pelo uso dos algoritmos. É possível, ain-
da, educar numa civilização cujo legado tem
sido a barbárie? Nosso problema é político.
No contexto do problema, o objetivo se es-
tabelece: reetir sobre a questão do fascismo,
no sentido de se pensar a educação como
condição de emancipação.
João Vicente Hadich Ferreira, Doutor em
Educação pela Universidade Estadual Pau-
lista (UNESP). Mestre em Educação e li-
cenciado em Filosoa pela Universidade
Estadual de Londrina UEL. Professor ad-
junto do Curso de Pedagogia / Campus de
Cornélio Procópio e do Programa de Pós-
-Graduação em Educação (PPEd) / Campus
de Jacarezinho, ambos da Universidade Es-
tadual do Norte do Paraná UENP. Inte-
grante do “Grupo de Pesquisa e Ensino em
Políticas Públicas em Educação e Processos
de Escolarização” GEPEPEE (UENP) e
do Grupo de Pesquisa “Teoria Crí-tica: Fi-
losoa, Educação e Cultura” (UNESP).
A extrema relevância e atualidade deste livro [...] se torna evidente quando con-
sideramos a advertência de Theodor Adorno sobre a persistência das condições
objetivas geradoras do fascismo, mesmo no interior de sociedades democráticas.
[...] O leitor não terá diculdade em reconhecer a extrema atualidade deste livro
[...], pois sua reexão repercute problemas que não fazem parte de um passado
histórico superado, mas reverberam na sociedade brasileira atual, sob o impulso da
catástrofe ética e social representada pelo bolsonarismo recente. É relevante notar
que o início da pesquisa de doutorado que originou a presente obra, data do ano
de 2017, época em que o ovo da serpente estava sendo lentamente gestado, trans-
parecendo na mentalidade moralmente perniciosa do movimento “Escola sem
partido”. [...] Um dos grandes méritos da reexão exposta neste livro consiste em
desmisticar a repulsa pública pela esfera da política, que em si mesma integra o
conjunto de sintomas da síndrome fascista. Ao contrário da mentalidade de recusa
da política, o autor realça a urgência de uma politização autêntica e autônoma da
esfera do poder, para que se torne possível um exercício público potencialmente
resistente à disseminação da barbárie. [...] Hannah Arendt [...] nos lembra que
“política” é a esfera do debate público entre diferentes, movido pela perspectiva
de um mundo comum. A verdadeira política se traduz no exercício da liberdade
potencialmente voltada para o rompimento do estado de exceção que na realidade
atual silencia o debate público e massacra todos aqueles que representam a dife-
rença. [...] O fascista [...] não deseja conservar nada, pois seu desejo, reprimido,
ou muitas vezes declarado, se dirige à destruição de tudo aquilo que for possível,
desde a vida das pessoas que existem à margem da normalidade social, até as pró-
prias instituições democráticas. [...] Em sintonia com as reexões de Theodor
Adorno, Hannah Arendt, e outros pensadores voltados para a crítica do fascismo,
[...] para entender o que é a educação, nesta obra, devemos nos afastar dos aspec-
tos instrumentais muito presentes na escola, buscando compreender esse termo
como sinônimo de formação do espírito, em sentido contrário à barbárie. [...] Os
leitores que estiverem sintonizados com uma compreensão ampla da educação,
voltada para a desbarbarização e pacicação da sociedade, e sobretudo dirigida ao
combate a todo tipo de preconceito, saberão encontrar neste livro uma obra de
leitura intelectualmente estimulante, esclarecedora e prazerosa.
AUTORITARISMO, FASCISMO E EDUCAÇÃO
SINÉSIO FERRAZ BUENO
João Vicente H. Ferreira
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio 396/2021
Processo 23038.005686/2021-36
AUTORITARISMO,
FASCISMO
E EDUCAÇÃO
João Vicente Hadich Ferreira
ainda a premência de que
Auschwitz não se repita
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AUTORITARISMO, FASCISMO E EDUCAÇÃO:
AINDA A PREMÊNCIA DE QUE
AUSCHWITZ
NÃO SE REPITA.
João Vicente Hadich Ferreira
João Vicente Hadich Ferreira
AUTORITARISMO, FASCISMO E EDUCAÇÃO:
AINDA A PREMÊNCIA DE QUE
AUSCHWITZ
NÃO SE REPITA.
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Cláudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação
- UNESP/Marília
Graziela Zambão Abdian
Patrícia Unger Raphael Bataglia
Pedro Angelo Pagni
Rodrigo Pelloso Gelamo
Maria do Rosário Longo Mortatti
Jáima Pinheiro Oliveira
Eduardo José Manzini
Cláudia Regina Mosca Giroto
Auxílio Nº 0396/2021, Processo Nº 23038,005686/2021-36, Programa PROEX/CAPES
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Ferreira, João Vicente Hadich.
F383a Autoritarismo, fascismo e educação: ainda a premência de que Auschwitz não se
repita / João Vicente Hadich Ferreira. Marília : Oficina Universitária ; São Paulo :
Cultura Acadêmica, 2022.
434 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-296-3 (Digital)
ISBN 978-65-5954-295-6 (Impresso)
DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-296-3
1. Educação. 2. Fascismo. 3. Educação Aspectos políticos. 4. Autonomia. I.
Título.
CDD 370.1
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Copyright © 2022, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
In memoriam
Pelos mais de 645.000 brasileiros mortos até este momento, vítimas
da COVID-19. Pessoas, histórias, singularidades, sonhos que se
perderam, famílias que se esfacelaram... Vidas ceifadas, em grande
parte, pelo necroprojeto de um governo que, na atmosfera do fascismo
que exala, revitaliza o continuum de Auschwitz e, em seu pretenso
“corolário” do “cidadão de bem”, de uma ideia de “moral” e de “bons
costumes”, atualiza cotidianamente o conceito de banalidade do mal.
“A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’
(‘Ausnahmezustand’) em que vivemos é a regra. Precisamos construir
um conceito de história que corresponda a esse ensinamento.
Perceberemos, assim, que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado
de exceção; e com isso nossa posição ficará melhor na luta contra o
fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o
enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma
histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos
no século XX ‘ainda’ sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele
não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a
concepção de história em que se origina é insustentável”.
(BENJAMIN, Tese 8, Sobre o conceito de história)
“Cabe àqueles que, em sua formação espiritual, tiveram a felicidade
imerecida de não se adaptar completamente às normas vigentes uma
felicidade que eles muito frequentemente perderam em sua relação com
o mundo circundante , expor com um esforço moral, por assim dizer
por procuração, aquilo que a maioria daqueles em favor dos quais eles o
dizem não consegue ver ou se proíbe de ver por respeito à realidade”.
(ADORNO, Dialética negativa)
Sumário
Prefácio | Sinésio Ferraz Bueno 11
Introito 17
Capítulo I Primeiros ensaios: preâmbulo 31
Capítulo II – La personalidad autoritaria: contexto e breve histórico de
um estudo referencial 65
Capítulo III – Sobre a pesquisa dos frankfurtianos: a inadequação prévia
com o aparato conceitual do marxismo e o papel da psicanálise na
elaboração da Escala F 113
Das concepções do marxismo e das diferentes percepções: o
surgimento do Instituto e seus encaminhamentos
A psicanálise e a teoria crítica: breve contextualização
O estudo da personalidade e a Escala F em La personalidad autoritária
Capítulo IV Da dialética entre civilização e barbárie: do esclarecimento da
razão e da atmosfera do fascismo 219
Do fascismo e do capitalismo: o medium punctum de uma sociedade
administrada
Antissemitismo e propaganda fascista: a mentira manifesta de sempre
Capítulo V Repercussões da pesquisa na crítica ao fascismo: o continuum
de Auschwitz
313
A premência de que Auschwitz não se repita
Da importância da política
Capítulo VI – Considerações sobre o campo educativo: por uma
Educação emancipadora 349
Referências 391
Apêndice: fragmentos e outros ensaios 403
Anexo: Ensaio artístico: releitura de “Os pilares da sociedade” 423
11
Prefácio
A extrema relevância e atualidade deste livro de João Hadich
se torna evidente quando consideramos a advertência de Theodor
Adorno sobre a persistência das condições objetivas geradoras do
fascismo, mesmo no interior de sociedades democráticas. Em
sentido contrário às esperanças iluministas do século XVIII, o
avanço da democracia liberal ao redor do mundo não acarretou
necessariamente um progresso humanitário e racional. Mesmo que
uma quantidade significativa de países adote as regras do liberalismo
político em suas constituições, o conceito de democracia, que
pressupõe a existência de uma comunidade de sujeitos livres,
permanece negado em sua efetividade, sendo condenado a mero
formalismo na esfera política. Essa defasagem entre o conceito de
democracia e a realidade política nas sociedades capitalistas foi o
núcleo temático da pesquisa sobre a personalidade autoritária,
realizada por Adorno e diversos outros pesquisadores nos Estados
Unidos nos anos 1940.
A pesquisa sobre a personalidade autoritária, empreendida
pelo Instituto de Pesquisas Sociais, traduziu em termos quantitativos
e também qualitativos as inclinações emocionais e comportamentais
à adesão a temas e ideologias fascistas. O fato da pesquisa ter sido
realizada junto a vários estratos de populações de uma sociedade
democrático-liberal, revelou a condição de grande vulnerabilidade
emocional a ideologias e palavras de ordem disseminadoras de
preconceito étnico, agre ssividade grupal e diversos tipos de
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-296-3.p11-16
12
estereotipia depreciativa da diferença no tocante a religião, gênero,
nacionalidade etc. Como o objetivo desse trabalho de pesquisa se
relacionou com a estrutura emocional da personalidade do público-
alvo, os aspectos emocionais tiveram uma importância nuclear, em
detrimento das declarações manifestas de preferência ideológica.
Dizer que existe uma defasagem entre o conceito de
democracia e a realidade concreta da sociedade, significa que a
promessa de liberdade e cidadania, que é inseparável do espírito
democrático, é traída quando se propagam tendências expressivas de
preconceito, segregação e perseguição dirigidas contra populações
negras, homossexuais, indígenas, imigrantes etc. A atmosfera
agressiva do fascismo está diretamente relacionada com a
vulnerabilidade emocional da personalidade autoritária a palavras de
ordem disseminadoras de preconceito e violência, e essas tendências
se originam da predisposição a comportamentos agressivos em escala
grupal. Quando o preconceito é perpetrado em grupo, a irmandade
fascista se sente autorizada ao escoamento de pulsões agressivas
reprimidas contra inimigos imaginários artificialmente produzidos.
A análise realizada por Sigmund Freud sobre a psicologia de
massas tem importância nuclear para o entendimento do fascismo,
pois ela possibilita compreender como é possível, que em sociedades
institucionalmente democráticas, a regressão coletiva à barbárie se
torne uma realidade efetiva. A esse respeito, o conceito freudiano de
unheimlich, que significa estranho, mas ao mesmo tempo, familiar,
permite entender a projeção emocional que é inseparável da
atmosfera agressiva do fascismo. Pela projeção emocional da
estranheza de si mesmo sobre o outro, o agente do preconceito se
sente redimido e aliviado dos traços mal resolvidos que danificam
13
sua identidade pessoal. Para o fascista, o estranho é sempre o outro:
o gay, o negro, o pobre, o morador de rua, a mulher; em outras
palavras, os conteúdos conscientes ou inconscientes de impotência e
fracasso que danificam o próprio eu são projetados em todos aqueles
que representam imaginariamente a diferença.
O leitor não terá dificuldade em reconhecer a extrema
atualidade deste livro de João Hadich, pois sua reflexão repercute
problemas que não fazem parte de um passado histórico superado,
mas reverberam na sociedade brasileira atual, sob o impulso da
catástrofe ética e social representada pelo bolsonarismo recente. É
relevante notar que o início da pesquisa de doutorado que originou
a presente obra, data do ano de 2017, época em que o ovo da
serpente estava sendo lentamente gestado, transparecendo na
mentalidade moralmente perniciosa do movimento “Escola sem
partido”. Naquela época, embora muitos de nós não imaginássemos
a magnitude de uma barbárie devastadora que iria afetar a própria
sanidade mental de grande parte dos brasileiros, João Hadich
percebia com clareza incomum os horizontes sombrios dos anos
vindouros, e é justamente por esse motivo que sua pesquisa é
altamente relevante para entender a sociedade brasileira atual.
Um dos grandes méritos da reflexão exposta neste livro
consiste em desmistificar a repulsa pública pela esfera da política,
que em si mesma integra o conjunto de sintomas da síndrome
fascista. Ao contrário da mentalidade de recusa da política, o autor
realça a urgência de uma politização autêntica e autônoma da esfera
do poder, para que se torne possível um exercício público
potencialmente resistente à disseminação da barbárie. Em regimes
fascistas, embora o debate público seja protagonizado pelo líder e seu
14
conjunto de cúmplices ministeriais e milicianos, é importante
ressaltar que, em um contexto assim, o que se tem é uma
pseudopolítica, pois não há debates autenticamente públicos em
torno das questões urgentes que afetam a população. Inspirado por
Hannah Arendt, João Hadich nos lembra que “política” é a esfera do
debate público entre diferentes, movido pela perspectiva de um
mundo comum. A verdadeira política se traduz no exercício da
liberdade potencialmente voltada para o rompimento do estado de
exceção que na realidade atual silencia o debate público e massacra
todos aqueles que representam a diferença.
Embora na esfera da política, e principalmente no campo
moral, as pessoas autoritárias e inclinadas a preconceitos fascistas se
autodenominem conservadoras, é muito importante notar que
suas inclinações agressivas não autorizam esse tipo de denominação.
É mais apropriado pensar que os fascistas se apropriam de pautas
ideológicas e moralistas de viés conservador, mas eles não podem ser
literalmente definidos dessa forma, pois suas manifestações e
atitudes públicas traem tendências destrutivas completamente
antagônicas a qualquer tipo de conservaçãoinstitucional ou moral
propriamente dita. Conservadores aspiram à manutenção de
estruturas econômicas, políticas ou morais, reagindo contra
tendências de transformação ou inovação. O fascista, pelo contrário,
não deseja conservar nada, pois seu desejo, reprimido, ou muitas
vezes declarado, se dirige à destruição de tudo aquilo que for
possível, desde a vida das pessoas que existem à margem da
normalidade social, até as próprias instituições democráticas. É por
esse motivo que a oratória fascista frequentemente assume sentido
15
negativo, ligado à iminência de catástrofes, à disseminação de
discursos conspiratórios e ao fascínio pela destruição.
Em sintonia com as reflexões de Theodor Adorno, Hannah
Arendt, e outros pensadores voltados para a crítica do fascismo, João
Hadich se preocupa especialmente com o tema da educação. Para
entender o que é a educação, nesta obra, devemos nos afastar dos
aspectos instrumentais muito presentes na escola, buscando
compreender esse termo como sinônimo de formação do espírito,
em sentido contrário à barbárie. Assim, a educação deve ser
entendida como processo formativo dirigido contra as tendências de
severidade e frieza emocional, pois são estas que geram a
vulnerabilidade ao fascismo. Uma educação voltada para o
imperativo ético de que Auschwitz não se repita deve mobilizar os
educadores contra todas as tendências de ressentimento cultural e
emocional, coisificação do espírito e de enquadramento cego dos
indivíduos em coletividades agressivas. Os leitores que estiverem
sintonizados com uma compreensão ampla da educação, voltada
para a desbarbarização e pacificação da sociedade, e sobretudo
dirigida ao combate a todo tipo de preconceito, saberão encontrar
neste livro uma obra de leitura intelectualmente estimulante,
esclarecedora e prazerosa.
Sinésio Ferraz Bueno
16
17
Introito...
O texto a seguir é fruto de incômodos que têm se
apresentado ao longo da nossa formação. Evidentemente, não abarca
tudo, mas caminha na compreensão de que, mesmo no recorte que
fazemos, estão presentes elementos de tantas questões que se
manifestaram e se manifestam ao longo da nossa existência e, neste
entendimento também, na compreensão da docência, nossa escolha
profissional.
Entendendo o ato de escrever como processo de
sistematização do pensamento, este tem sido o exercício que nos
desafia a registrar a elaboração das reflexões sobre a Política, a Ética,
a Estética e a Epistemologia que permeiam nossos encontros no
campo da Educação e do entendimento desta como processo de
formação e, consequentemente, humanização.
A escolha pela discussão do tema proposto, Autoritarismo,
Fascismo e Educação: ainda a premência de que Auschwitz não se
repita, se dá exatamente nessa via de compreensão e incômodo. No
contraponto da nossa humanização, encontramos o risco, a tênue
linha que separa a educação da barbárie. Da potencialidade da
formação humana como processo emancipatório e libertador, para a
sedução do domínio do pragmatismo e da técnica, são inúmeras as
possibilidades que se apresentam num mundo cada vez mais
administrado e unidimensionalizado. Terreno fértil para o fascismo.
Neste contexto, não é o pessimismo que nos envolve. Tão
pouco o ufanismo. Não temos respostas. Na realidade, cada vez mais
18
perguntas. Mas isso não implica um niilismo desolador ou
determinismo consolador. Provoca desafio, instiga a busca pelo
entendimento, a curiosidade epistêmica a partir do espanto, como
no thaumázein grego, na descoberta da nossa complexidade humana,
na percepção das entrelinhas que se apresentam por detrás do que
está manifesto e que exigem uma mais acurada percepção,
constantemente.
Esperamos não sermos compreendidos como defensores de
um otimismo ingênuo, mas certamente acolheremos a observação de
que cremos no improvável, na potencialidade, no inaudito. Não
cremos na inexorabilidade da história. Contudo, é inconteste que,
depois de Auschwitz, o continuum que se estabelece coloca em
suspenso a história em seu devir e desnuda, como constatam os
frankfurtianos, a intrínseca relação dialética entre civilização e
barbárie ao longo da nossa existência humana.
Por isso, não são dias fáceis. Tempos estranhos. Há muito,
de contínua “exceção”, que favorece sempre os mesmos que, no
status quo estabelecido, expressam a história da dominação sobre a
natureza e sobre os homens e, consequentemente, da barbárie que se
entrelaça com a ideia de progresso e de civilização.
Crises. Momentos que nos aproximam, portanto, ainda mais
da necessidade de exercitarmos aquilo que representa o principal
elemento da nossa condição humana: a capacidade de pensar. Neste
sentido, pensar filosoficamente.
Deste modo, buscamos organizar nossa discussão e, neste
breve introito, apresentamos os tópicos seguintes como estruturação
do seu desenvolvimento.
19
Inicialmente, o Capítulo I, que representa nossos
Primeiros
ensaios
. Como preâmbulo, apresentamos esta parte exatamente
como a produzimos: como ensaios iniciais que introduzem a
discussão. Almejamos que ajude a encaminhar o leitor no
entendimento de alguns percursos que trilharemos e dos incômodos
que, como relatamos anteriormente, mobilizaram-nos na
empreitada proposta, apontando para os recortes que escolhemos.
Nosso diagnóstico do contexto em que nos encontramos e da
discussão que apontamos, os objetivos que almejamos, metodologia
e hipóteses são apresentados nesta parte inicial, assim como nossa
perspectiva com a tese que propomos.
Na sequência, no Capítulo II
La personalidad autoritaria
:
contexto e breve histórico de um estudo referencial, pensando na
discussão proposta, debruçamo-nos sobre o estudo da personalidade
autoritária desenvolvido por Adorno e os psicólogos sociais da
Universidade de Berkeley, Else Frenkel-Brunswik, Daniel J.
Levinson e R. Nevitt Sanford. A obra em questão é La personalidad
autoritaria (1965). Este é o foco desta parte. Retomando o contexto
desse trabalho, sua produção e vinculação com as outras pesquisas
em que estava envolvido o Instituto de Pesquisa Social (Institut für
Sozialforschung), já sob a direção de Max Horkheimer, buscamos nos
apropriar dos elementos necessários para compreender o estudo
desenvolvido e, neste sentido, destacar sua importância como
referência para as discussões sobre o autoritarismo e o fascismo.
Com o Capítulo III – Sobre a pesquisa dos frankfurtianos:
a inadequação prévia com o aparato conceitual do marxismo e o
papel da psicanálise na elaboração da Escala F, caminhamos na
percepção de que a Escola de Frankfurt avança na perspectiva da
20
superação dos limites da ortodoxia marxista e da ideologização do
Partido na União Soviética. Sob a condução de Horkheimer, os
frankfurtianos transitam pelos pressupostos do marxismo,
revisitando as teses dos hegelianos de esquerda e do jovem Marx,
embora o fiquem restritos às suas categorias ou ao contexto da
época.
No encontro com a psicanálise, o enriquecimento da teoria
crítica se dará na conjugação das análises construídas a partir da
tradição marxista, em sua pretensão de objetividade, mas
aprofundando as questões da subjetividade, terreno escorregadio
para as restrições que se impõem aos defensores do marxismo
ortodoxo.
Entretanto, na contramão da limitação dos freudo-
marxistas, por exemplo, não buscam uma síntese entre Marx e
Freud, mas exploram a dialética entre eles. Na crítica tanto aos
neofreudianos quanto ao marxismo, em sua busca pelo
reconhecimento científico, que desemboca num positivismo
científico, os pensadores da Escola de Frankfurt enriquecem a teoria
em sua perspectiva dinâmica, aberta, investigativa e dialética. Tendo
a psicanálise como constitutiva, a partir de então, da própria base da
teoria crítica, os estudos da personalidade autoritária encontrarão em
suas categorias os elementos para se entender o que não seria possível
apenas pela análise das condições objetivas ou das contradições
materiais da sociedade do capitalismo tardio.
Neste contexto, a produção da Escala F e o desdobramento
dos estudos em La personalidad autoritaria (1965) corroboram a
importância dessa simbiose com o pensamento dos frankfurtianos
que, em si, não é unívoca, mas também permeada por tensões.
21
Companheiros deste percurso são os textos de Sérgio Paulo Rouanet
(2001), Martin Jay (2008) e Rolf Wiggershaus (2006), entre outros.
O Capítulo IV Da dialética entre
civilização
e
barbárie
:
do
esclarecimento
da razão
e da
atmosfera do fascismo
, conduz-nos
para algumas questões da Dialética do esclarecimento (1985), com
destaque para o fragmento Elementos do antissemitismo, além do
encontro com os Ensaios de Psicologia Social e Psicanálise (2015), de
Adorno.
As análises sobre propaganda fascista e a manipulação da
subjetividade nos levam ao aprofundamento da questão do
autoritarismo e do sujeito potencialmente fascista. A partir da
percepção das pesquisas de La personalidad autoritaria (1965) e do
ensaio, olhamos para a necessidade apontada por Adorno (1995) de
uma inflexão para o sujeito.
Da discussão sobre a dialética entre esclarecimento e barbárie,
emerge a urgência de se pensar o significado de Auschwitz na história
e como, do momento do fascismo, derrotado na Segunda Guerra,
vivenciamos hoje um tempo fascista que, da simbiose daquele com o
capitalismo, mantém-se como atmosfera para a barbárie com seu
medium punctum, o neoliberalismo e seu projeto de despolitização e
destruição da política.
No afastamento cada vez maior da política e da esfera
pública, o autoritarismo ganha cada vez mais presença na vida
danificada em sua correlação com o capitalismo da era neoliberal,
esboços do novo totalitarismo na manutenção do constante Estado
de exceção (BENJAMIN, 2012).
Com o Capítulo V Repercussões da pesquisa na crítica ao
fascismo: o
continuum
de
Auschwitz
, continuando as análises
22
propostas na construção do nosso pensamento, ensaiamos os
desdobramentos para nossas considerações. Da consciência do
continuum de Auschwitz e da necessidade de se pensar a história a
contrapelo, o filtro da indústria cultural conceitua o que não é
conceituável e banaliza a barbárie.
Neste sentido, uma educação contra a barbárie é uma
educação para que Auschwitz não se repita. A importância da política
e a perspectiva da esfera pública se manifestam como constituintes
para uma resistência.
Por fim, em nossas Considerações sobre o campo educativo,
Capítulo VI, apresentamos como tese a defesa de uma educação
emancipadora. Diante do quadro que se apresenta, a partir dos
estudos e dos discursos partilhados e compartilhados por aqueles que
nos precederam, almejamos colaborar para enriquecer a discussão
sobre a Educação a partir de uma perspectiva política e politizadora.
Se o autoritarismo, cada vez mais “à vontade” na sombria
atmosfera do fascismo que permeia nossa sociedade, almeja o
domínio, o controle e o fim da política pelo constante flerte com
modelos totalitários, uma educação emancipadora não poderá abrir
mão exatamente de sua prerrogativa, que implica a formação para a
vida comum. Ou seja, da formação humana que se dá na
constituição da autonomia do sujeito que se reconhece e, neste
contexto, capaz de pensar, julgar e agir com, e entre os semelhantes
no mundo público, esfera possível da liberdade e lócus específico para
manifestação da nossa condição humana: a vida política.
À premência de que Auschwitz não se repita, portanto,
desponta a educação política como formação para desnudar a
dialética entre civilização e barbárie e o estado de exceção que dela
23
resulta, permeando nossa existência. Se o mal é banal, apontava
Hannah Arendt (2004b), o pensamento pode contribuir para evitá-
lo. Mas esse é um exercício que, inevitavelmente, exige uma
perspectiva educacional que prepare os novos para o mundo público,
para a vida política que se dá inter homines esse
1
, que exige que
sejamos emancipados, livres, enquanto capazes da ação.
O que está em jogo na política, já dizia Hannah Arendt
(2011), não é a minha vida ou a de outrem simplesmente. É o
mundo. E é neste mundo, em que coabitamos, que exige o amor
mundi
2
arendtiano, que o homem pode reescrever sua história e
produzir, efetivamente, um verdadeiro estado de exceção frente à
destrutividade que vivenciamos, como propunha Walter Benjamin
(2012). A questão fundamental para o pensamento, portanto é,
diante do continuum de Auschwitz, como romper com a barbárie?
Após esta última parte, consideramos por bem incluir mais
alguns textos, apresentando-os como um Apêndice. Composto por
alguns fragmentos e outros ensaios, este material contempla alguns
esboços prévios e, também, pós estudos. Nosso propósito, neste
sentido, é o de apresentar, como nos primeiros ensaios e no destaque
antes do sumário, que o pensamento não se constrói num
monobloco, de um salto ou por percepções que não estejam
vinculadas também ao nosso cotidiano.
1
No sentido de “estar entre os meus semelhantes” (ARENDT, 2004b).
2
Para Hannah Arendt, “o totalitarismo [...] eliminou a liberdade de ação e pensamento,
fez das pessoas meros executores, ou vítimas, das supostas leis da natureza ou da história, e
mostrou ser possível transformar seres humanos em seres supérfluos. É principalmente em
oposição às barbáries deflagradas nesse não mundo e frente às tendências totalitárias das
sociedades modernas que Arendt evoca o amor mundi entendendo o possível mundo
comum como um lugar eminentemente humano e humanizante” (ALMEIDA, 2011, p.
14).
24
As ideias vão se construindo e o pensamento precisa
sistematizá-las. Não é pretensão, contudo, fugir à expectativa e à
normativa acadêmica de publicação, mas apenas e tão somente,
deixar como registro o que nos tem permitido, de alguma forma, a
organização de nosso pensamento e produção neste caminho,
visando sempre ao amadurecimento. Como já explicitado, são
ensaios.
Neste sentido, pensamos na experimentação intelectual, na
perspectiva adorniana, expressa pelo filósofo no diálogo com
Hellmut Becker, registrado no ensaio Educação para quê?: “Eu
diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais. Nesta
medida e nos termos que procuramos expor, a educação para a
experiência é idêntica à educação para a emancipação” (ADORNO,
1995, p. 151).
Neste entendimento ainda, incluímos em Anexo, uma
releitura de uma clássica pintura de 1926 de George Grosz,
intitulada Os pilares da sociedade. Por coincidência, recentemente,
em nossos estudos, encontramos sua presença nos primórdios do
surgimento do Instituto de Pesquisa Social, na relação com Félix
Weil
3
.
Naquele momento, em 2017, quando fomos convidados e
nos propusemos a essa “experimentação artística”, permanecia no ar
ainda a atmosfera das manifestações de 2013, fenômeno que merece
estudos e uma compreensão mais aprofundada.
3
Félix Weil é o fundador do Instituto de Pesquisa Social.
25
Com a ascensão das Redes Sociais e a virtualização de uma
realpolitik, muito nos moldes das estratégias da Industria Cultural
4
e
mais propensa a um processo de despolitização do que o seu inverso,
a esfera pública ganhava “novos/velhos” contornos, sustentada mais
por uma perspectiva de apolitia do que de uma concepção de
cidadania comprometida ou de uma militância esclarecida.
Apesar do curto tempo do ocorrido, é possível inferir que,
além da apolitia presente, estabelecia-se, já naquele momento,
condições para o que seria explorado pelo recrudescimento do
extremismo à direita: o ódio à política.
Neste sentido, fortalecida pelo anacronismo e pela
adequação ao padrão, muitas vezes, de uma esquerda que jogara o
4
O conceito de Indústria Cultural é trabalhado por Adorno e Horkheimer na Dialética do
Esclarecimento e “diz respeito a uma teoria social do conhecimento. De acordo com seus
pressupostos, tudo se transforma em artigo de consumo. No mercado, todas as teorias se
equivalem, seja a de Marx, Hitler ou Lênin. [...] Dissolvendo a tradicional oposição entre
‘alta cultura’ e ‘cultura popular’, a indústria cultural criou uma ‘barbárie estilizada’”
(MATOS, 1993, p. 69). Como toda indústria produz algo para vender, a
indústria cultural
produz “cultura”. Evidentemente, é um tipo de “cultura” que implica o desenvolvimento
da “semicultura”, que não esclarece, mas aliena e mantém-se pela massificação. Deste
modo, impede a experiência estética realmente formadora e emancipadora. De acordo com
Duarte (2002, p. 38-39, grifo do autor), “[...] a indústria cultural atende imediatamente a
necessidade do seu público, mas de um modo que seus legítimos anseios são apropriados
por ela no sentido de cumprir seus objetivos de lucratividade e controle social. Sob esses
aspectos, destaca-se na indústria cultural uma hierarquização dos diversos produtos quanto
à qualidade, no sentido de servir a uma quantificação completa dos seus procedimentos.
Distinções que se fazem, por exemplo, entre filmes A ou B, entre as histórias publicadas em
revistas de diferentes preços, não têm a ver propriamente com seu conteúdo, mas com a
classificação, organização e computação estatística dos consumidores. [...]. De acordo com
Adorno e Horkheimer, já que a indústria cultural decompõe o que podemos perceber em
suas partes elementares e as rearranja de um modo que lhe seja interessante, ela adquire o
enorme poder de influir no modo como nós percebemos a realidade sensível em última
instância, na maneira pela qual percebemos o mundo”.
26
jogo do capital, a extrema-direita começava a “dar as caras” no
cenário político mundial.
No Brasil, destacava-se, capitaneando projetos e ataques
prévios às estruturas da democracia, com discursos que legitimavam
a ruptura do jogo democrático caso da defesa da intervenção
militar , ou da defesa de projetos anticonstitucionais, como o Escola
Sem Partido.
Além disso, ocorria o investimento maciço de grupos ligados
ao extremismo ressurgente nas Redes Sociais na divulgação de pautas
conservadoras e reacionárias ligadas a movimentos que se
catapultariam à cena política em 2018, como o MBL (Movimento
Brasil Livre), por exemplo.
Percebia-se ainda, avaliamos com mais clareza neste
momento, a gestação do “ovo da serpente”
5
na força que ganhava o
“lavajatismo”, com seus métodos “inovadores” na produção de novas
narrativas no campo do Direito e que afetariam, inevitavelmente, a
percepção da política pelo senso comum.
Do “pato” que conduzia as manifestações do nacionalismo
exacerbado e do ódio que se manifestava contra a política
6
, a partir
do prédio da FIESP Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo, na Av. Paulista, centro econômico do Brasil , para o “pato”
que pagamos na atual conjuntura explicitada pelas apostas de uma
elite econômica que avalizou o projeto autocrático do capitão
5
Para tratar do processo de desenvolvimento do nazismo na sociedade alemã, Ingmar
Bergman utiliza a expressão “o ovo da serpente” de forma metafórica no seu clássico filme.
Como naquele momento, o envenenamento da sociedade não se dá de um salto, mas
paulatinamente.
6
Neste momento, canalizado principalmente contra um espectro político, o viés de
esquerda e um partido político, mais especificamente, o Partido dos Trabalhadores.
27
reformado e fez vistas grossas até este momento, ao morticínio
potencializado pela necropolítica
7
bolsonarista na maior crise
sanitária do mundo atual , foi questão de tempo.
Deste modo, o exercício que fizemos da releitura do quadro
de Grosz, naquela época, inspirava-se na tentativa de elaborar, a
partir do contexto que vigia, e ainda vige, quais seriam os potenciais
“pilares da sociedade” hoje, no Brasil. Consideramos que, de certo
modo, uma similitude se encontrava com um momento não tão
distante na história, como ocorrera na Alemanha de Grosz. É o
resultado dessa avaliação que apresentamos em anexo.
O desdobramento da história, já esclarecemos, culminou na
eleição de Jair Bolsonaro e de um universo nada desconsiderável de
representantes da “nova política” que, de nova, só apresentava a
apropriação da estratégia de venda de um “produto” que “sempre
esteve aí”.
Esta estratégia é construída a partir do conceito de
“novidade”, de “consumo” e não no sentido de novo, de inaudito,
mas de repaginação do que já existia. Novamente, a importância dos
mecanismos da propaganda, já explorada e utilizada massivamente
no período do fascismo, na manipulação da subjetividade e na
construção do ódio. Não é, entretanto, apenas mais do mesmo.
7
Necropolítica: o conceito é cunhado por Achille Mbembe (2018), filósofo camaronês em
suas análises sobre os conceitos de biopolítica e biopoder, nas relações com as noções de
soberania e estado de exceção. De acordo com o autor, na abertura do seu ensaio, a ideia
da necropolítica “[...] pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande
medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso,
matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Ser
soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e
manifestação do poder” (MBEMBE, 2018, p. 5).
28
É a manifestação de um refinamento por mais que se
evidencie de forma grotesca no cotidiano da antipolítica, de uma
forma de se implantar a autocracia que não se solidifica
necessariamente pelos clássicos golpes de Estado ou pela explicitação
de uma Ditadura efetivada. Pelo menos, não num primeiro
momento.
É um necroprojeto
8
, que apresenta a defesa de uma pauta de
costumes retrógrada e violenta, a milicialização dos chamados
“cidadãos de bem”, o esgarçamento da democracia e de suas
instituições, tendo como foco a destruição, não a construção do país,
nem o fortalecimento da Constituição ou de políticas públicas em
áreas como a Saúde, a Educação, a Assistência Social, o Meio-
Ambiente e os Direitos Humanos, para ficarmos apenas em algumas.
Com a militarização da política, a ideologização de
praticamente todos os setores do governo pelo aparelhamento
escancarado de seus staffs, além de uma pauta econômica ainda com
os odores da Ditadura Chilena, este projeto de destruição apresenta-
se como um grande laboratório para a testagem do “Estado
suicidário”
9
que, segundo Vladimir Safatle (2020), já vivenciamos.
8
Neste contexto, relacionamos a expressão necroprojetos ao conceito anteriormente citado,
o de necropolítica.
9
Para Vladimir Safatle (2020, p. 2), “engana-se quem acredita que isto é apenas a já
tradicional figura do necroestado nacional. Caminhamos para além da temática
necropolítica do Estado como gestor da morte e do desaparecimento. Um Estado como o
nosso não é apenas o gestor da morte. Ele é ator contínuo de sua própria catástrofe, ele é o
cultivador de sua própria explosão. Para ser mais preciso, ele é a mistura da administração
da morte de setores de sua própria população e do flerte contínuo e arriscado com sua
própria destruição. O fim da Nova República terminará em um macabro ritual de
emergência de uma nova forma de violência estatal e de rituais periódicos de destruição de
corpos”.
29
Nesse sentido, observamos a normalização da violência em
todos os sentidos na propagação da “mentira manifesta” pelas Fake
News de cada dia, pelo discurso ideológico direcionado a um
eleitorado que se serve da democracia, mas é antidemocrático, na
liberação das armas e na construção de mecanismos e sistemas
estatais de censura prévia aos críticos do chefe do Executivo.
É uma violência que se manifesta principalmente na tragédia
anunciada pela negação da ciência e pela omissão na luta contra a
pandemia da COVID-19 que sempre estiveram presentes no
discurso oficial do atual governo e podem ser identificadas como
estratégia, o inépcia ou incompetência.
Seria simplório, porém, atribuir a Jair Bolsonaro ou ao
projeto que ele representa o desfecho específico de uma articulação
conspiratória especificamente. O que se apresenta, como no tempo
de Grosz, Adorno, Horkheimer e Hannah Arendt, é manifestação
dos sintomas de algo que já nos acompanha na dialética entre
civilização e anticivilização e que, conforme a orientação de
Benjamin (2012), exige que olhemos a história a contrapelo.
No continuum de Auschwitz, vai-se normalizando a “barbárie
de cada dia” e referenda-se, no ocultamento da sua existência, aquilo
que Hannah Arendt cunhou como a banalidade do mal. O
bolsonarismo, na sua banalidade é, neste sentido, sintoma e não a
doença.
30
31
Capítulo I
Primeiros ensaios: preâmbulo
É compreensível que o surgimento dos sistemas totalitários não
possa ser explicado psicologicamente. Por detrás dos movimentos
de inimigos da massa existem poderosos interesses políticos e
econômicos; os adeptos desses movimentos, que se denominaram,
não por mera casualidade, Gefolgschaft (sequazes), não são, em
absoluto, os seus verdadeiros representantes, se bem que na
moderna sociedade de massa os beneficiários do movimento não
possam prescindir da massa. Mas os estudos realizados oferecem-
nos alguns conhecimentos sobre as características psíquicas
inconscientes, em virtude das quais poderá obter o seu apoio uma
política que contradiz os interesses racionalmente entendidos pela
massa. Essas características psíquicas, por seu turno, são o produto
de fenômenos contemporâneos tais como a desintegração da
propriedade média, a crescente impossibilidade de uma existência
econômica auto-suficiente, certas transformações na estrutura da
família e certos erros na direção da economia. As grandes leis do
movimento social não regem por cima das cabeças dos indivíduos
e de suas ações (HORKHEIMER; ADORNO, 1978, p. 173).
Vivemos hoje tempos estranhos. Parafraseando a expressão
arendtiana, tempos sombrios
10
. Apesar de ainda imersos na
conjuntura sem um possível distanciamento que só a posteriori se
alcançará, somos açodados constantemente pelas lembranças de
10
Tempos sombrios, a expressão que compõe o título de um dos livros de Hannah Arendt
(Homens em tempos sombrios, 1987) parece representar bem o momento histórico em que
vivemos. Ou seja, a expressão apresenta-se atemporal, pelo menos por enquanto. Na
realidade, mais especificamente, como um continuum.
32
tempos que, acreditávamos, já estavam superados. Pelo menos, em
grande medida. Por isso, pensar este momento implica,
inevitavelmente, rememorar tempos passados que, talvez, não sejam
tão “passados” assim e que se apresentam, no horizonte, como um
déjà vu.
Nestes tempos sombrios, em que somos assolados por uma
pandemia
11
de proporções inimagináveis para o senso comum, numa
sociedade administrada e danificada, preparada para o Show de
Truman e os consumíveis Blockbusters
12
hollywoodianos, apresenta-
se extremamente significativa a análise de Guy Debord (1997, p.
17), ao defini-la como a Sociedade do Espetáculo:
A sociedade que se baseia na indústria moderna não é fortuita
ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente
espetaculoísta. No espetáculo, imagem da economia reinante, o
fim não é nada, o desenrolar é tudo. O espetáculo não deseja
chegar a nada que não seja ele mesmo.
Nessa sociedade espetaculoísta, vivemos dias de polarização, de
exacerbação do ódio e da violência nas redes sociais e,
inevitavelmente, no mundo real. Provavelmente, dos que
manifestam tanto ódio, boa parte nem saiba o que odeia. Não há
11
Até o presente momento, do fechamento deste texto, só no Brasil já contabilizamos mais
de 645.000 mortos pela COVID-19, dados oficiais, sem levar em conta as subnotificações.
No mundo todo, a cifra não é menos impactante e desnuda a contradição, escancara a
desigualdade social e as reais prioridades de uma civilização que se constituiu,
intrinsicamente, numa relação dialética com a barbárie, como já nos apontavam os filósofos
da Escola de Frankfurt.
12
Tentamos atualizar aqui, num simples paralelo, a expressão de Adorno e Horkheimer
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985) na Dialética do Esclarecimento de que a sociedade se
preparou ao longo dos séculos para Vitor Mature e Mickey Rooney.
33
objetivo, enquanto finalidade ou telos desejado. O que importa,
apenas e tão somente, é “o desenrolar” do espetáculo,
independentemente de onde se chegará. Num processo de
semiformação
13
, na produção de uma semicultura e, consequen-
temente, a heteronomização da existência e não o alcance da
autonomia, nossa percepção se constitui sob um filtro o da
indústria cultural que nos dilui, cada vez mais, nos propósitos do
espetáculo. Realidade, sensibilidade, percepção, pensamento,
compreensão e continuidade, tudo é homogeneizado pelo amálgama
que representa aqui a ideia do espetáculo e, inevitavelmente, produz
um mundo unidimensionalizado, administrado e danificado.
Neste sentido, destacamos o fragmento da Dialética do
esclarecimento em que, em uma análise de como o filme sonoro
representa este processo, colaborando nesta produção, esclarecem-
nos Adorno e Horkheimer (1985, p. 104, grifos nossos):
O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria
cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que
percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de
ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente
o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da
produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas
duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a
ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura
do mundo que se descobre no filme. Desde a súbita introdução
13
A semiformação envolve a massificação, a formação de uma cultura de consumo, de
fórmulas prontas e acabadas refletidas em produtos criados pela indústria cultural para uma
repressão do diferente em prol do que é padrão. Perde-se a identidade, constrói-se um
“público-alvo”. Deste modo, expandindo-se para todos os setores da vida humana, a
semiformação produz uma semicultura, implicada e comprometida com a produção de
mercadorias e não da cultura realmente.
34
do filme sonoro, a reprodução mecânica pôs-se ao inteiro
serviço desse projeto. A vida não deve mais, tendencialmente,
deixar-se distinguir do filme sonoro. Ultrapassando de longe o
teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao
pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes
possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra
fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus
dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o
espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a
realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da
espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser
reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos e
entre eles em primeiro lugar o mais característico, o filme
sonoro paralisam essas capacidades em virtude de sua própria
constituição objetiva. São feitos de tal forma que sua apreensão
adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação,
conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem
a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os
fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos.
Num processo de manipulação da subjetividade, como o faz
a propaganda em sua gênese na pretensão da venda do produto,
vivemos em uma sociedade em que a cultura é vendida em escala
industrial, como projeto efetivo de determinação da realidade e não,
evidentemente, como possibilidade de construção humana e política
dela. Como explica Duarte (2002, p. 39),
[...] já que a indústria cultural decompõe o que podemos
perceber em suas partes elementares e as rearranja de um modo
que lhe seja interessante, ela adquire um enorme poder de
influir no modo como nós percebemos a realidade sensível
35
em última instancia, na maneira pela qual percebemos o
mundo.
Neste contexto, segundo o autor, entendem Adorno e
Horkheimer (1985) que
Especialmente o filme sonoro e a televisão [...] podem criar a
ilusão de um mundo que não é o que nossa consciência
espontaneamente pode perceber, mas o que interessa ao sistema
econômico e político no qual se insere a indústria cultural. Esse
sistema, aliás, possui características muito peculiares, pois é o
tipo de capitalismo conhecido como “tardio” ou
“monopolista”, no qual economicamente as oportunidades
para o pequeno empreendedor já se tornaram há muito coisas
do passado, mas o discurso oficial é o liberalismo (DUARTE,
2002, p. 39-40).
Analisando a partir de uma determinada época, o fenômeno
do cinema e da televisão em sua perspectiva de conjugação de som e
imagem para eles uma síntese do rádio com o cinema , Adorno e
Horkheimer (1985) mantêm-se atuais em suas observações, apesar
de termos alcançado neste momento pelos mass media, condições de
manipulação da subjetividade talvez inimagináveis para a época.
Incluímos aqui o advento da internet e as impensadas Redes Sociais,
para o contexto daquele período.
Portanto, vivemos um momento que não é evidentemente
mais o daquele tempo da análise dos frankfurtianos, mas em que se
mantém a pertinência dos seus estudos pelo avanço e o
aprimoramento daqueles processos de dominação. Da percepção do
período do capitalismo tardio para o presente da sociedade
neoliberal, o horizonte não mudou. Na realidade, se agravou em sua
36
potencialidade de maior capacidade destrutiva e manipulatória. Dos
meandros de um capitalismo autoritário, que se servia da
democracia, para um tempo fascista, que produz a sua destruição
pelo ódio à política, a sociedade espetaculoísta de Debord (1997) vai
se tornando a consumação do projeto do anti-esclarecimento,
frutificado na ratio instrumental que nos permitiu vivenciar o
fascismo e seus modelos congêneres de totalitarismo.
Neste instante, distanciados daquele momento, com um
tempo maior de aprofundamento dos problemas formativos,
pensando no campo da educação, nas crises políticas e no
predomínio de forças e mecanismos de afastamento da política ou
de sua destituição da centralidade dos assuntos humanos,
aprofundamos a barbárie sob novas perspectivas. Por isso, olhar o
presente, sem perder de vista o passado, não é saudosismo, tampouco
ingenuidade. É prioridade.
Com esta percepção, pensando no momento
contemporâneo, podemos observar que a realidade se apresenta a
partir de diversos fragmentos. Como um grande quebra-cabeças,
parece poder ser construída peça por peça. Às vezes, demonstra-se
totalmente desconexa, como no início do jogo, em que as peças estão
todas misturadas. Neste contexto, não basta olhar os pedaços, mas
faz-se necessário pensar no que pode compor a imagem, buscar
conexões e refletir sobre os principais elementos que podem nos
ajudar a montar o quadro. A partir desta analogia, pensar o
momento presente é fundamental.
Diante da conjuntura neoconservadora em que nos
encontramos, reconhecendo que não é especificidade do Brasil tal
caldo, temos a impressão de que vivemos não apenas tempos
37
sombrios, mas insanos, embora a insanidade não seja o fator
preponderante. Chegamos aonde nosso projeto de civilização nos
trouxe.
A explosão de uma extrema-direita raivosa, que desenvolve,
a partir de novas ferramentas e tecnologias, formas de propagar uma
normalização da destruição da política e da democracia, demonstra
que a banalização da barbárie caminha a passos largos.
Sustentando-se numa polarização maniqueísta
14
travestida
de oposição política, o que prevalece é a idealização de uma luta do
“bem” contra o “mal” em que, a máxima atribuída à Maquiavel
(1979) de que os fins justificam os meios é potencializada e
descontextualizada de seu pensamento, implicando não a
preservação da política, de seus fundamentos, mas de sua
desqualificação e desmonte. É a antipolítica. É o ódio à política. É a
exploração do ódio como “política”
15
.
14
Utilizamos o termo aqui apresentado como expressão de posicionamentos presentes na
nossa conjuntura polarizada em que, para muitas pessoas, existe puramente uma luta do
bem contra o mal. Desse modo, acredita-se que, destruído aquele ou aqueles que
representam o mal, “salvaríamos” a sociedade. Isso se refere tanto às pessoas, quanto a
partidos políticos ou outras representações na nossa atual realidade e identificadas como
“sendo o mal”. Esta mentalidade, o maniqueísmo, é classicamente reconhecida desde os
tempos do filósofo e teólogo Agostinho de Hipona, que combateu essa doutrina,
considerada herética pelo pensador cristão e assim permanece para a teologia cristã ao longo
dos séculos. Neste sentido, o maniqueísmo é a "Doutrina do sacerdote persa Mani (lat.
Manichaeus), que viveu no séc. III e proclamou-se o Paracleto, aquele que devia conduzir a
doutrina cristã à perfeição. O M. é uma mistura imaginosa de elementos gnósticos, cristãos
e orientais, sobre as bases do dualismo da religião de Zoroastro. Admite dois princípios:
um do bem, ou princípio da luz, e outro do mal, ou princípio das trevas (ABBAGNANO,
2000, p. 641).
15
Destacamos, tratando do assunto, a coletânea de artigos organizada por Esther Solano
Gallego (2018), intitulada O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. Vide
referências.
38
Não importa a alternância do poder para os que defendem
tal perspectiva. O que está em foco não é a democracia, mas o
"extermínio" dos “opositores”, mesmo que estes sejam criação de
conjecturas alienadas e alienantes, produzidas por teorias
conspiratórias e por pseudo-intelectuais terraplanistas de um projeto
de destruição.
Não é a busca do entendimento que se deseja, mas o
prevalecimento das “verdades” das fake news ou de narrativas
negacionistas. Notícias falsas veiculadas a partir do desdobramento
e de processos possibilitados por uma “industrialização cibernética”
no uso dos algoritmos que potencializa, entre outras coisas, o que já
se produzira no nazismo: a propaganda do partido ou do polo, ou
grupo a que se pertence e a mitologização das figuras dos líderes.
Os desdobramentos já conhecemos.
Hoje, com agravantes de maior dinamicidade e alcance, com
o uso das Redes Sociais, para além de um domínio que era
característico dos meios clássicos de comunicação social, os boatos
propagados “valem” mais do que estudos. Mentiras e opiniões são
mais aceitas do que pesquisas ou dados científicos. O que se verifica,
enfim, metaforicamente, é uma estratégia similar à da terra arrasada,
no sentido de solapar toda plausibilidade e coerência do
conhecimento acadêmico, por exemplo, e da possibilidade de um
mínimo bom senso na análise e interpretação dos fatos. Ou seja, de
não deixar “pedra sobre pedra”. Neste sentido, as pessoas não
querem entender. Elas querem respostas prontas e, no fundo,
querem a “sua resposta” ou, em outras palavras, aquela que
corresponde ao pensamento do grupo, da bolha da qual participam.
39
Voltando ao Brasil, em tempos de proposição de uma
“Escola Sem Partido”, de perspectivas de militarização da educação
e de um “ensino” domiciliar que descaracteriza o processo educativo
já previsto constitucionalmente, o extremismo e o negacionismo
ganham forças e os ataques são distribuídos a todas as frentes. Passa
pela destruição do Meio Ambiente, em nome de uma questionável
noção de progresso, ou pelo desmonte financeiro da Educação e das
Pesquisas na área acadêmica, recurso que é fundamental para o
desenvolvimento da ciência em nossas Terras Tupiniquins.
Na deturpação do pensamento de Paulo Freire educador
que é reconhecido mundialmente e de sua contribuição no campo
da Educação brasileira, propaga-se a esdrúxula tese de uma
“doutrinação marxista” dos alunos ou da formação de um “exército
de professores esquerdistas, nunca capitalistas. É fato que todos
aqueles que já passaram por “essa doutrinação” na escola continuam
comprando muito do que não precisam e consumindo
desenfreadamente. E, no auge de uma pandemia letal questão de
saúde pública , protestam pela liberdade individual de voltar a
consumir e de explorar, ou serem explorados, pelo sistema que não
pode parar.
Nesse sentido, o que deveria ser meio para nossa existência
humana, como a economia, passa a ser fim. Cria-se, assim, a falsa
dicotomia entre saúde e economia e se produz uma politização que,
no fundo, é politicagem, pois desconsidera o entendimento da
inevitabilidade da política no trato dos assuntos humanos.
Prevalecem os ranços autoritários de uma sociedade construída na
exploração e no sangue dos explorados, que se estrutura no racismo,
perpetua a exclusão e que, frente ao ideário de uma democracia que
40
luta para se fortalecer, manifesta suas garras e seus alinhamentos com
o capital em suas perspectivas mais totalitárias.
Defensores de um liberalismo que nunca existiu, do qual
conhecem apenas o ocaso de sua ideologia, mesmo os explorados
acreditam no discurso que conclama à liberdade, como se a esfera
pública fosse o domínio da violência, que é própria do totalitarismo.
Na verdade, é exatamente o contrário. É da busca do domínio do
privado sobre o público que se estabeleceram estas grandes
atrocidades. O autoritarismo não reconhece a autoridade, mas
conclama um domínio absoluto sobre tudo e sobre todos, negando
a pluralidade, a diversidade e as singularidades dos existentes. Por
isso, na proposta da igualdade, o que sugere é a homogeneização e a
supressão de toda e qualquer diferença. Não proe a liberdade do
indivíduo, mas o controle de todas as liberdades.
Negando a eficácia das vacinas que podem salvar vidas e, na
contraposição, defendendo medicações que não têm respaldo
científico para o tratamento da COVID-19, por exemplo, vemos a
sabotagem das orientações dadas pelas autoridades sanitárias locais e
mundiais com base na ciência, potencializando a crença em
“informações” e “notícias” que tramitam nas bolhas das Redes
Sociais, as fake news. Subvertendo-se a legislação por Decretos que
liberam cada vez mais armas e munições, vamos acompanhando
cotidianamente o fortalecimento das milícias e do aparato de
militarização paralela ao Estado. Na outra ponta, contemplamos o
aumento do índice de mortes de negros, pobres, mulheres,
41
homossexuais e índios, entre outras minorias. Corpos desviantes da
governamentalidade
16
. Necroprojetos de uma necropolítica.
Nestes tempos que aparentam insanidade, em que a escola
representa para estes extremistas um espaço de ¨corrupção da
inocência das crianças”, alguns termos são cunhados especificamente
para desqualificar determinadas práticas e questões de debate, com
definições imprecisas que podem englobar focos de ódio e medo,
como “ideologia de gênero”
17
e “marxismo cultural”
18
(PENNA,
16
Conforme Foucault (2008a, 2008b).
17
Sobre esta questão, é esclarecedor o comentário de Bulgarelli (2018, p. 102): “[...] a
expressão ‘ideologia de gênero’ merece ser entendida a partir do deslocamento do próprio
significado de gênero. Trata-se de um mecanismo simples, embora bastante engenhoso,
que consiste em reduzir esta categoria a uma ideologia, parcializando sua legitimidade e
neutralizando seus efeitos. É característica desse tipo de disputa a multiplicação de políticos
e candidatos que adotam a 'ideologia de gênero' como um mal a ser combatido. Desde
então, professores passaram a enfrentar reações hostis quando abordam gênero e/ou
sexualidade em sala de aula, temas considerados controversos, quando não proibidos, por
pais e diretores. Essa postura persecutória facilita o trabalho de desconstrução e
transformação de gênero em uma categoria diabólica, a chamada 'ideologia de gênero',
tornando-se facilmente desqualificável. Antes de um mau uso ou de uma interpretação
equivocada do gênero por parte daqueles que o interpretam como uma ideologia, é preciso
estar atento aos efeitos dessas torções. Uma crítica possível ao argumento da 'ideologia de
gênero' passa por decodificar os processos que produzem uma noção do gênero como perigo
a ser combatido. Isso implica uma defesa enfática da natureza social e construída das
diferenças entre os corpos. Afinal, é preciso que fique claro que o gênero já opera nas escolas
e nas universidades, nos museus e nas peças de teatro, no núcleo doméstico e familiar, quer
exista quer não exista um debate sobre o tema em cada uma destas instituições”.
18
Para entendermos melhor a questão do Marxismo cultural, destacamos a análise de
Carapanã (2018, p. 38-39): “a ideia de um ‘marxismo cultural’ como conspiração parece
nova, mas começou com a reedição de uma teoria da conspiração da década de 1930: a do
bolchevismo cultural. Ela carregava a mesma obsessão discursiva com uma suposta erosão
dos ‘valores tradicionais’ promovida por uma ‘cabala de intelectuais’. O termo bolchevismo
cultural foi usado amplamente pela propaganda do Partido Nazista e por outros governos
de extrema-direita europeus para denunciar movimentos modernistas nas artes como parte
de uma ‘conspiração bolchevique’ para erodir a arte e a cultura europeias. Quem trouxe a
narrativa do marxismo cultural de volta ao mainstream político foram dois ideólogos
conservadores norte-americanos: Pat Buchanan e William S. Lind. Ambos fizeram parte de
um esforço para criar um ‘conservadorismo cultural’ como estratégia eleitoral. Com o
42
2016). Nesta “cruzada contra a perversão”, meninos devem vestir
azul e meninas rosa. A Terra “voltou” a ser plana e há uma
“conspiração global” para destruir a “família”, a moral e os bons
costumes. A religião se imiscui com o Estado novamente, numa
promíscua relação de fundamentalistas religiosos, mercadores da fé
e representantes de igrejas midiáticas, verdadeiros conglomerados
econômicos-religiosos.
Atribuindo a Deus aquilo que é da responsabilidade
humana, vão capitaneando a inserção na política de candidatos
saídos das fileiras de seus “rebanhos” ou alinhados às pregações de
seus púlpitos. Neste projeto, vão entranhando na vida da democracia
os elementos de uma “guerra santa” que nos remete, cada dia mais,
aos auspícios de um mundo medieval. Professores são cerceados por
proporem um pensamento crítico para seus alunos, enquanto
muitos padres, pastores e líderes religiosos sentem-se à vontade para
induzir o voto de seus fiéis em candidatos que representam a
excrecência da política. Seria possível, numa análise honesta e
mínima de qualquer cristão, constatar que tais políticos manifestam
iminente fim da Guerra Fria era necessário criar uma estratégia eleitoral que estivesse
afastada do debate econômico, já que o liberalismo se tornara consenso na direita e na
esquerda anglo-saxãs. Lind achava que era mais importante que os conservadores
abraçassem uma política mais centrada em valores culturais (educação, família,
moralidade). A ideia de um ‘marxismo cultural’ criava um adversário comunista
praticamente onipresente: na educação pública, na mídia, nos ativistas dos direitos civis, na
indústria do entretenimento etc. O mais perigoso em torno dessa aceitação mainstream da
teoria da conspiração do marxismo cultural é de que ela traz junto de si outras ideologias
do nazifascismo: a aceitação de teorias da degeneração (cultural e, no caso do mundo
euroamericano, racial), a obsessão com teorias da conspiração vagas que repetem que ‘eles’
estariam tentando destruir você, ameaçar sua família, sua propriedade e sua vida. Como de
costume, esse ‘eles’ sempre precisa ser vago, amplo e maleável: professores doutrinadores,
artistas degenerados, banqueiros socialistas ou os globalistas da ONU”.
43
total contradição com a proposta da mensagem do Cristo em que
dizem que acreditam.
Entre os arautos dessa cruzada, juntam-se aqueles cujo um
dos objetivos é reescrever a história da ditadura e da escravidão, por
exemplo. Defensores de um “revisionismo”, a partir de outra
perspectiva que não a dos dados, fatos e fenômenos que as
constituíram amparadas em pesquisas e no conhecimento das
ciências , propõem os revisionistas “narrativas” que apelam, entre
outras coisas, para a genérica ideia de “liberdade de expressão” ou de
“natureza” que, neste contexto, se fundamentam no negacionismo e
na pura desqualificação de todo esclarecimento possível. Este é o
panorama. Não em absoluto, mas presente em grande parte.
Neste entendimento, a correlação entre o autoritarismo, o
fascismo e o papel da educação explicitados no título proposto de
nossa tese, estreita-se na clássica afirmação adorniana de que é
fundamental que Auschwitz não se repita (ADORNO, 1995).
Dentre as questões que se apresentam no campo da educação
contemporânea, parece-nos que aquela apontada por Adorno em
Educação após Auschwitz
19
é das mais prementes. Para ele, a
prioridade de todo processo educativo é de que se evite a barbárie
que o nazismo e os regimes totalitários do século XX explicitaram.
Não que esta tenha se extinguido, mas, para que Auschwitz não se
repita (ADORNO, 1995), está dado o imperativo de uma educação
contra a barbárie, contra a violência que se estabeleceu a partir de
um momento inominável e sua irrupção na História humana.
19
ADORNO. Educação e emancipação, 1995.
44
Que não se repita a barbárie é seu apelo. Um apelo que evoca
a memória que nos leva à imagem explícita do maior e mais cruel
campo de concentração alemão, representante das "indústrias da
morte" produzidas pelo nazismo na Segunda Guerra Mundial. Que
Auschwitz não se repita, contudo, é mais do que um apelo. É a
constatação da possibilidade de sua atualização, diante do seu
continuum. Sua sombra paira sobre nós e seu significado não se
restringe àquilo que se rememora pela existência do local físico
simplesmente, mas pela sua demarcação na História, pelo evento que
representa enquanto assimilação e normalização da barbárie. Por
isso, nos esclarece Detlev Claussen (2012, p. 48),
[...] Adorno postulou a necessidade, depois de 1945, de uma
teoria social que reconheça Auschwitz como uma catástrofe
social, que pressione a humanidade para um novo imperativo
categórico, a saber, ‘organizar o pensamento e a ação de modo
que Auschwitz não se repita, que não aconteça nada parecido’.
Auschwitz não se deixa conhecer sem teoria social. O
conhecimento da teoria social não promete nem redenção nem
conciliação, mas ele coage, pressiona em direção à
autorreflexão.
Reconhecer o horror, para além da banalização expressada
pela apropriação da indústria cultural e sua versão da luta contra o
nazismo, dos “mocinhos” contra os “bandidos”, é perceber a
confluência entre técnica e destrutividade, na condição estabelecida
da autodestruição da humanidade. Neste sentido, Auschwitz é
fundante da Era Atômica em que, de acordo com Günther Anders
(2013, p. 1, grifo do autor),
45
Em 6 de agosto de 1945, o Dia de Hiroshima, uma Nova Era
começou: a era em que, a qualquer momento, temos o poder
de transformar qualquer lugar do nosso planeta, e até nosso
próprio planeta, em uma Hiroshima. Naquele dia, nos
tornamos, ao menos modo negativo, onipotentes; mas na
medida em que, por outro lado, podemos ser dizimados a
qualquer momento, também nos tornamos totalmente
impotentes.
Portanto, a partir de Auschwitz, da frieza e da indiferença
que nos acompanham, que originariamente também permitiram e
produziram a barbárie, revigoramos sua possibilidade a cada
instante. Por isso, na dialética entre civilização e barbárie, entre
avanços e retrocessos, entendemos que não se pode desconsiderar
que a linha é muito tênue e que, uma educação contra a barbárie,
como nos lembra Adorno (1995), é premente numa sociedade em
que o público se dissolve no privado e em que, o indivíduo, tão
exaltado pelo liberalismo clássico e exacerbado num individualismo
egocêntrico, homogeneizasse na massificação do consumo de tudo,
das ideias às tecnologias gerando, inevitavelmente, o afastamento da
política e da ética.
Diante disso, ao retomarmos o momento do nazismo,
expressão do totalitarismo fascista, apesar da distância que separa
aquele instante do nosso atual, é possível analisar que algumas
similaridades se encontram e que a ruptura provocada por este
horror marcou indelevelmente nossa reflexão. Naquele período do
capitalismo tardio, condições sociais vigentes, o processo de
formação das subjetividades e a manipulação destas pelo mecanismo
da propaganda confluíam para o estabelecimento da barbárie,
46
conforme demonstraram os estudos dos frankfurtianos. Na atual
conjuntura, parece-nos plausível considerar que temos uma
atualização destes elementos sob a égide do neoliberalismo e do
advento das Redes Sociais, além da potencialização da capacidade de
manipulação dos existentes pelo uso dos algoritmos. Além disso, se
a relação com a técnica já era uma preocupação naquele momento,
hoje é inevitável a constatação de sua imbricação com a existência de
forma nunca pensada antes. Se naquela época vimos o surgimento
do fascismo, podemos considerar que, neste instante, vivemos o
tempo do fascismo.
Neste sentido, pensar a educação sem a consideração do
fascismo, daquilo que são seus desdobramentos, de como se
estabelecem suas bases e quais seus elementos de construção, parece-
nos implicar correr o risco de depositar nas técnicas e nos métodos
educacionais uma expectativa que jamais se dará a contento. Já nos
alertava Hannah Arendt (2011), ao tratar da questão da educação
em seu ensaio A crise na educação, que este não é um problema local,
de um país especificamente, tão pouco de fundo metodológico ou
didático. Para ela, se assim fosse, a crise em nosso sistema escolar
não se teria tornado um problema político e as autoridades
educacionais não teriam sido incapazes de lidar com ela a tempo
(ARENDT, 2011, p. 222). Como nos esclarece na sequência,
aqui mais que a enigmática questão de saber por que Joãozinho não
sabe ler(ARENDT, 2011, p. 222). Não é, segundo a autora, uma
crise da educação, mas uma crise maior, que atinge também a
educação. É uma questão política.
Por isso, da observação perspicaz de Adorno e dos trabalhos
com Horkheimer e alguns dos frankfurtianos, além das correlações
47
com o pensamento de Hannah Arendt, destacamos que a questão do
fascismo e do autoritarismo, cerne para o desenvolvimento do
primeiro, é central para a compreensão do processo educativo e de
uma educação contra a barbárie. No desdobramento disto,
fundamental para o desenvolvimento de uma educação que seja
emancipadora e não reprodutora ou, em contexto mais grave,
favorecedora dos elementos necessários para o aflorar do fascismo.
Ou seja, na contramão destes elementos, uma educação política, pois
a barbárie mira a destruição da política.
Neste contexto, a preocupação se dá com pensar o fascismo
para além da perspectiva de sua manifestação em um regime
totalitário. Esta, geralmente explicitada, torna mais claro o embate.
O incômodo perpassa pelo entendimento daquilo que está na
formação dos indivíduos e na constituição do nosso projeto de
sociedade, que expressa as condições para o autoritarismo e para a
barbárie assimilada. A correlação entre capitalismo especialmente
no constructo do neoliberalismo vigente e fascismo, neste sentido,
se demonstrará simbiótica.
São elementos que se constituem e se apresentam na
contradição que se dá, mesmo nas chamadas sociedades
democráticas, nos campos da esquerda ou da direita, dentro de
espaços religiosos ou alternativos, nas redes sociais ou na mera
manifestação das opiniões em qualquer âmbito, desde o familiar ao
profissional, entre outros. Daqui se chega à efetivação dos
totalitarismos.
48
Preconceito, racismo, antissemitismo
20
, nacionalismo,
xenofobia, etnocentrismo, homofobia, machismo, fundamentalismo
religioso ou outros, este conjunto de expressões do autoritarismo são
componentes de uma forma de perceber o mundo que, apesar de
toda a barbárie que causou, encontra espaço no interior da nossa
sociedade: o fascismo. Ou seja, a permanência da barbárie
coexistindo com a democracia, per si, já demonstra que Auschwitz
permeia nossa existência. Não como barbárie explícita diretamente,
mas implícita na esfera que, por condição, deveria possibilitar o
existir das mulheres e dos homens entre os seus semelhantes, a vida
política.
Assim, no ocultamento do problema, na simplificação da
realidade e do existente, com propostas salvíficas ou redentoras,
reaparecem arautos do que há de pior e que já deveria estar superado
em nossa sociedade: o líder fascista e seus sequazes. Pessoas
consideradas comuns, com formação acadêmica ou não, religiosas
ou ateias, “cidadãs do bem” de um cotidiano normalizado no almoço
do final de semana ou nas reuniões entre amigos e familiares, por
mais paradoxal que possa parecer, são capazes de manifestar tal
comportamento ou aderir a uma proposta política que represente
tais pretensões. Ou seja, cidadãos beneficiários de uma democracia
que, rapidamente, podem apoiar um regime antidemocrático.
Não é de monstros, assassinos ou facínoras que estamos
falando inicialmente. Estes também aproveitam este momento e
20
Apenas por questão de esclarecimento, em alguns momentos poderá aparecer ao longo
do texto a palavra antissemitismo grafada ainda como anti-semitismo, que era a forma
adotada antes do acordo ortográfico de 1990. Alertamos, contudo, que tal apresentação
ocorrerá apenas no caso de citações que tragam a palavra assim registrada no original
consultado.
49
ganham seu lugar de destaque. Mas, no contexto apresentado,
referimo-nos a pessoas triviais, comuns, como Eichmann
21
,
aparentemente um cidadão exemplar no contexto do nazismo, e que
se mostrou subserviente na plena obediência às ordens demandadas
pelos líderes do Regime, sem questioná-las. Como ele, muitas
pessoas também são obedientes, subservientes, capazes de acatar
ordens, por mais absurdas que sejam, aceitando-se como peças de
uma engrenagem maior, de um sistema que nos absorve e determina
nossa existência. O lema um manda e o outro obedece não é novidade.
Assim, entender esta realidade fragmentada passa pela
observação dos elementos do fascismo. Defendido no discurso do
político extremista ressurgente e manifesto no fundamentalismo
religioso recorrente, mas não só, o fascismo lança uma cruzada
contra o mal. Fundando-se em premissas generalistas e falaciosas,
corrobora o desmonte dos direitos sociais e a supressão dos Direitos
Humanos, pois representa, na verdade, uma luta contra a política e
as minorias. Paradoxalmente, encontra seus adeptos inclusive entre
aqueles que compõem minorias. Um mínimo pensar destes sobre o
discurso de ódio que estão reproduzindo, talvez lhes revelasse a
contradição com sua própria condição. Contudo, não percebem que
o mal, postado e reproduzido de forma insana nas redes sociais,
21
Já gozando de reconhecimento público por sua obra Origens do Totalitarismo (2012),
Hannah Arendt é convidada para acompanhar o julgamento do carrasco nazista Adolf
Eichmann em Israel e publica, como fruto de suas reflexões, o texto Eichmann em Jerusalém
(1999). Como nos esclarece Bethânia Assy, na Introdução à edição brasileira de
Responsabilidade e Julgamento, “[...] a partir de Eichmann em Jerusam, no início dos anos
1960, Arendt, que tanto se opusera ao enobrecimento da interioridade do self e de suas
supostas atividades ‘invisíveis’, passaria a se ocupar de forma veemente da imbricação entre
as atividades de pensar, querer e julgar e as noções de moralidade, ética e responsabilidade
(ASSY apud ARENDT, 2004b, p. 33).
50
não está num partido ou exposição de arte. O mal é banal
22
, segundo
Hannah Arendt (2004b).
Por isso, não é o psicopata ou o serial killer que nos assusta,
neste contexto. O que nos preocupa é aquele que não pensa mais e,
na composição da engrenagem do sistema estabelecido, é uma peça
eficaz para o seu funcionamento. Cumpre ordens, repassa ideologias
e reproduz os mecanismos de violência. É capaz de ir à igreja para a
prática da sua crença, amar seus filhos e deitar-se com sua esposa.
No dia seguinte, porém, como um bom "funcionário", encaminha
seres humanos para as câmaras de gás, torturará opositores do
Regime nos porões das ditaduras e, em nome de “Deus, da Pátria e
da Família”, excluirá o semelhante e atacará as minorias, pré-anúncio
da barbárie que paira no horizonte.
A questão central que se apresenta até aqui pode ser resumida
da seguinte forma: o que leva pessoas ou grupos diversos à escolha
de uma minoria, daqueles que são ou representam o diferente, como
objetos de sua fúria, transformando-os em seus inimigos e
contrapontos para explicar os problemas da sociedade e da
existência?
Deste modo, contemplando este tempo que vivemos e a
barbárie que se conserva no horizonte, o olhar para o passado recente
nos traz à questão apresentada por Adorno em Educação após
Auschwitz:
22
De acordo com Hannah Arendt (2004b, p. 159-160), “Os maiores malfeitores são
aqueles que não se lembram porque nunca pensaram nas questões, e, sem lembrança, nada
consegue detê-los. Para os seres humanos, pensar no passado significa mover-se na
dimensão da profundidade, criando raízes e assim estabilizando-se, para não serem varridos
pelo que possa ocorrer o Zeitgeist, a História ou a simples tentação. O maior mal não é
radical, não possui raízes e, por não ter raízes, não tem limitações, pode chegar a extremos
impensáveis e dominar o mundo todo”.
51
Como hoje em dia é extremamente limitada a possibilidade de
mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que
geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor à
repetição de Auschwitz são impelidas necessariamente para o
lado subjetivo. Com isto refiro-me sobretudo também à
psicologia das pessoas que fazem coisas desse tipo (ADORNO,
1995, p. 121).
Adorno (1995) não acreditava, neste sentido, que seria
suficiente apelar para valores eternos, pois, efetivamente, os
responsáveis por tais atos reagiriam com menosprezo. Lembremo-
nos de que muitos dos nazistas eram cristãos. Por outro lado, tentar
esclarecer os perseguidores sobre as qualidades positivas de suas
vítimas como, por exemplo, a importância das diversas culturas e a
riqueza da diversidade, contrapondo-as à perspectiva do antissemita
e do supremacista branco, não parecem de grande valia também.
Não é necessariamente um problema de desinformação ou de se
explicitar argumentos racionais contrários. É o caso do machista que,
mesmo sendo esclarecido sobre as implicações de suas ações, afastado
judicialmente da sua vítima, muitas vezes continua explicitando seu
extremismo e, por fim, efetivando o feminicídio. Para Adorno
(1995, p. 121),
É preciso buscar as raízes nos perseguidores e não nas vítimas,
assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se
necessário o que a esse respeito uma vez denominei de inflexão
em direção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que
tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar
tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se
52
tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se
desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. Os
culpados não são os assassinados, nem mesmo naquele sentido
caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns.
Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência,
voltaram contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva.
Portanto, diante da perspectiva que se apresenta, a discussão
nos conduz ao campo educativo, da formação humana na
proposição de uma educação contra a barbárie, preconizada pelo
filósofo frankfurtiano. Nas palavras de Adorno (1995, p. 121), “é
necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso
evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de
si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação
dirigida a uma auto-reflexão crítica”. Considera ainda Adorno
(1995, p. 121) que, “[...] conforme os ensinamentos da psicologia
profunda, todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam
crimes, forma-se na primeira infância”. É necessário que a educação,
que tenha por objetivo evitar a reprodução de tais condições,
portanto, concentre-se já nesta primeira fase.
Diante disto, permitimo-nos fazer uma aproximação com a
questão do caráter autoritário, gênese constitutiva do fascismo,
desnudado no estudo intitulado La personalidad autoritaria, na
década de 40, do século passado, desenvolvido por Adorno e os
psicólogos sociais de Berkeley (ADORNO et al., 1965).
Como registrado na epígrafe de abertura deste tópico,
compreendemos que não se possa explicar o totalitarismo por uma
perspectiva psicológica, ou psicologizante. Tampouco se pode
desconsiderar a existência dos interesses políticos e econômicos,
53
poderosos, que permeiam estes movimentos. Não se desconsidera,
também, que os seguidores dessas propostas representam a
expressão, o desdobramento, não a gênese dessa barbárie.
Por isso, neste sentido, são salutares as variáveis sociais e
econômicas que colaboram para o estabelecimento de uma teoria
social e o aporte dos estudos sobre a subjetividade, das características
psíquicas inconscientes, que nos auxiliem no entendimento da
contradição que se apresenta na escolha feitas pelos adeptos dessas
perspectivas. Fundamentais para uma teoria crítica da sociedade.
Especialmente no tempo em que vivemos. A contradição apontada,
destacamos, está explicitada na adesão que se pela massa de
pessoas que apoiam uma perspectiva como essa que, na realidade, vai
frontalmente contra seus próprios interesses, se racionalmente
sopesados fossem.
Deste modo, na esteira do pensamento e dos estudos dos
frankfurtianos, especialmente Adorno e Horkheimer, transitaremos
pelo desafio de compreender um pouco mais destes elementos
psíquicos inconscientes que podem favorecer o estabelecimento do
fascismo e seu coroamento num modelo de político autoritário e de
um Estado totalitário. Evidentemente, reforçamos, não
desconsiderando as questões sociais que favorecem também tal
desdobramento, pensando no recorte da nossa realidade, do nosso
tempo.
Destacamos, neste entendimento, que não estará em
discussão a adequação do modelo hitlerista, por exemplo, ao atual
momento que vivenciamos de propagação e recrudescimento de
movimentos ligados à extrema-direita. Esta realidade já é premente.
O que nos interessa, efetivamente, é o quanto permanecem presentes
54
elementos psíquicos e sociais que, ainda hoje, permitem florescer
propostas contrárias ao pensamento democrático e ao exercício da
racionalidade nos assuntos humanos, mesmo em uma sociedade que,
aparentemente, não aceitaria mais a barbárie nazista.
Vivemos uma sociedade com efetivas diferenças daquela que
existia naquele momento específico. Contudo, o que há de comum,
ou quais são os elementos novos que se apresentam ou que se
constituíram que nos permitem perceber que não é o modelo
especificamente que se reproduz, mas sua gênese que se mantém?
Como nos esclarece Walter Benjamin (2012, p. 245), em sua tese 8,
A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção”
(“Ausnahmezustand”) em que vivemos agora é a regra.
Precisamos construir um conceito de história que corresponda
a esse ensinamento. Perceberemos assim, que nossa tarefa é
originar um verdadeiro estado de exceção; e com isso nossa
posição ficará melhor na luta contra o fascismo.
Se, como esclarecem alguns
23
, que, diante da atual
conjuntura política, não há que se determinar como fascismo o que
está posto, parece-nos, contudo, ser importante insistir que a questão
não é a de se aplicar o que aconteceu naquele momento histórico ao
hoje, mas sim de se perceber que aquele não foi um ocaso que se
esgotou, mas a eclosão de um tempo que se manifestou e que, na
23
GARCIA, Rafael T. Populismo ou fascismo? Especialistas debatem as bases do
bolsonarismo. Entendendo Bolsonaro. 2020. Disponível em:
https://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2020/07/25/populismo-ou-fascismo-
especialistas-debatem-as-bases-do-bolsonarismo/. MELO, Marcus André. O Estado
brasileiro é fascista?. Folha UOL. 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcus-melo/2020/08/o-estado-brasileiro-e-
fascista.shtml?origin=uol.
55
realidade, sempre nos acompanhou na nossa aventura civilizatória.
Como afirma Benjamin (2012), não foi aquele momento um
“estado de exceção”. Vivemos na história, constantemente, tal
condição representada pela barbárie que está intrínseca ao processo
civilizatório, como nos demonstraram Adorno e Horkheimer (1985)
na Dialética do esclarecimento. Também atestam tal condição os
oprimidos e excluídos, para quem a normalidade sempre foi a
exceção, conforme nos relembra Walter Benjamin (2012).
Portanto, entendemos que é mais claro não a identificação
ou a espera daquele projeto, de um novo líder megalomaníaco como
Hitler, mas sim, a percepção de que o fascismo não está restrito ao
seu modelo clássico representado pelos Estados totalitários ou pela
sanha nazista. Não precisamos de um Führer para que a barbárie se
estabeleça. Nosso entranhamento social com ela já tem sido
suficiente e, aparentemente, vivemos um tempo propício para uma
nova eclosão.
Por isso, o que se apresenta, consideramos como hipótese, é
que os fundamentos de tal percepção de mundo continuam vivos,
constantemente, e a cada momento podem ressurgir seus propósitos
destrutivos reorganizados, remodelados ou reconstruídos sob novas
formas, imbricando modelos em parte democráticos, comportando
novas e velhas leituras e procedimentos capazes de reimplantar a
barbárie em sua expressão inominável. Ou seja, se não veremos
novamente o nazismo se explicitar, não é desconsiderável que não
possamos ver surgir algo pior, mais elaborado ou desenvolvido sob
novas prerrogativas, mas com base nos mesmos projetos de
destruição e morte. Este é o alerta, pensando no campo da Educação.
56
Neste sentido, propomos nossos estudos. E o caminho para
uma educação emancipadora, apresentamos como hipótese, perpassa
a esfera pública, lócus da política, e a educação pública, na sua
condição pré-política e possibilitadora da presença da diversidade,
da pluralidade e do reconhecimento das singularidades que,
necessariamente, se apresentam na existência dos homens.
Apontamos, neste entendimento, que, certamente, a conjuntura
atual ainda encontra suas bases nas condições objetivas que
proporcionaram o surgimento do fascismo, como demonstraram os
estudos dos frankfurtianos. Mas, compreendemos também que,
efetivamente, se aprimoraram e avançaram na sua condição de
degradação da existência e da contraposição à condição de
autonomia e emancipação dos sujeitos, sob a égide do
neoliberalismo. Por isso, o olhar para a subjetividade, a “inflexão
para o sujeito”, como propunha Adorno (1995), se faz necessária.
Diante disso, algumas questões são suscitadas: quais as
possibilidades, neste contexto, de enfrentamento a partir do campo
da educação? Em que a educação pode ajudar ou em que se pode
contribuir para a educação a partir destes entendimentos? Quais as
correlações com a questão política, ética e estética e o papel de uma
educação emancipadora que, apropriando-nos da expressão
adorniana, manifesta-se numa educação contra a barbárie? É
possível, ainda, educar numa civilização cujo legado tem sido a
barbárie?
Nesta perspectiva também, o desafio e o incômodo que se
complementam pela questão proposta por Hannah Arendt no texto
57
Pensamento e considerações morais
24
: pode o pensamento evitar o mal?
Diante do desafio em que nos encontramos poderíamos acrescentar:
como vivenciar, exercitar o pensamento numa conjuntura que
privilegia cada vez mais o não pensar”?
Sem a pretensão de respostas acabadas, numa perspectiva
dialética e, mais ainda, de uma dialética negativa, desafiamo-nos a
fundamentar e aprofundar os estudos sobre estas questões para,
diante do contexto atual, pensar a educação. Deste modo, discutir o
autoritarismo, o fascismo e a educação se apresenta como necessário,
pois, entendemos, é premente que Auschwitz não se repita.
Neste sentido, o objetivo geral do trabalho consiste em
refletir sobre a questão do fascismo, no contexto de se pensar a
educação como condição potencial de emancipação. Para tanto,
partimos da hipótese inicial de que uma educação emancipadora
implica a formação política, ou seja, uma educação que nos prepare
para a vida política, para a compreensão do papel e da importância
da esfera pública, para a inserção no mundo e para a existência e a
convivência de mulheres e homens, no sentido do inter homines esse.
O que se apresenta é um problema político. Este é o foco da nossa
tese, nosso objeto. Portanto, formulando mais diretamente a
questão, importa-nos, neste estudo, tratar dos fundamentos da
educação para a emancipação, em sua perspectiva política, face à
dialética entre barbárie e civilização que permeia nossa existência
humana.
Neste contexto, entendida a vida política como condição
humana e campo da ação, da liberdade humana, consideramos que
24
Responsabilidade e julgamento (2004b).
58
o elemento constituinte da emancipação, proporcionada pela
educação, é o pensamento que, na concepção arendtiana, não é a
restrição à ideia de conhecimento naquela perspectiva da
racionalidade que, conforme nos apontam Adorno e Horkheimer
(1985) na Dialética do esclarecimento, emergiu da dialética entre
civilização e barbárie como a consumação da instrumentalidade e da
prevalência da técnica, a ratio instrumental. Para a filósofa, a
condição humana do pensamento implica a “[...] capacidade de
distinguir o certo do errado, o belo do feio. E isso, na verdade, pode
impedir catástrofes, [...] nos raros momentos em que as cartas estão
abertas sobre a mesa” (ARENDT, 2004b, p. 257).
Promover a análise destas questões e suas implicações no
campo educativo, portanto, exige considerar a importância do alerta
de Adorno, da necessidade de que toda educação seja uma educação
contra a barbárie, efetivamente.
Não há respostas prontas ou definitivas. Há, na realidade,
uma complexidade com a qual nos deparamos como desafio quando
almejamos o entendimento, na busca pela compreensão e a análise,
não em absoluto, dos elementos que contribuem para que a barbárie
possa se estabelecer e se apresentar como constante ameaça, mesmo
após a clareza histórica do terror proporcionado pela experiência do
nazifascismo em seus modelos totalitários.
Reconhecendo, portanto, a importância dos estudos de
Adorno, dos fundamentos da Teoria Crítica dos frankfurtianos e das
percepções arendtianas que permearão nosso trabalho, propomos
aprofundar os elementos de uma educação emancipadora que, na
perspectiva da vida política, está intrinsecamente relacionada a
59
outras questões que perpassam nossa existência, como as relativas ao
pensamento e sua capacidade de evitar o mal.
Neste ponto, reafirmamos o problema da política na relação
com a educação não na perspectiva doutrinal da “formação” político
partidária ou dogmática, ou pautada numa concepção de educação
“salvífica” capaz de “formar cidadãos críticos”, no sentido formal ou
teórico. Pensamos na sua relação com a liberdade, ou
arendtianamente pensando, no entendimento de que “a raison d’etrê
da política é a liberdade e, seu domínio de experiência é a ação”
(ARENDT, 2011, p. 192). Nesta condição, só pode agir aquele que
é livre. E liberdade, nesta concepção, só é possível no espaço público,
vivenciado pelos iguais, não porque pensam da mesma forma ou
porque desejam as mesmas coisas particulares, mas porque estão
liberados para a vida política e podem, nesta perspectiva, manifestar
suas singularidades na pluralidade do pensamento e na efetividade
da ação (ARENDT, 2011). Igualdade, portanto, não se compreende
como homogeneização, dissolução dos sujeitos ou das
singularidades. Compreende-se, muito mais propiciamente, como a
realização do exercício político, do espaço da liberação e da
autonomia para a ação, por isso público, em que não nos isentamos
da relação com o outro, o existente e, nem tampouco, nos
“liberamos” da convivência com a pluralidade, em todas as suas
possibilidades. Como nos esclarece Duarte (2007), assumindo o
amor pelo mundo amor mundi , o pensamento de Hannah
Arendt
[...] priorizou as experiências políticas fundadoras, greco-
romanas, numa atitude teórica de retorno à Antiguidade que
60
jamais implicou desinteresse pelo presente. Inspirando-se nos
exemplos de gregos e romanos, os povos que forjaram as
principais experiências e conceitos da política ocidental, Arendt
promoveu uma severa crítica da filosofia política, a qual,
segundo ela, não teria sido capaz de transmitir e preservar o
conteúdo das experiências políticas genuínas e originárias
contidas na pólis e na res publica (DUARTE, 2007, p. 14-15).
Neste sentido, conclui Duarte (2007, p. 15),
Ao desenvolver uma fenomenologia inovadora da liberdade e
da ação política e do espaço público, ela procurou trazer à luz
do presente as determinações democráticas e republicanas
essenciais da política. Mas não se tratava de retornar ao passado
para transformá-lo em modelo a ser repetido no presente, pois
o que Arendt realmente buscava no passado era algo ainda
novo. Em suma, ela buscava um conjunto de experiências
voltadas para a felicidade pública e para o prazer da ação e do
discurso em comum, as quais, pensava ela, ainda encontravam
ressonância no presente, a despeito do esgotamento e da crise
política em nosso tempo.
Deste modo, nesta perspectiva arendtiana, o que
apresentamos como condição inicial é que o entendimento da
política é importante para estas questões porque, em todas elas, há a
construção de um pensamento que se solidifica pela compreensão ou
falta de compreensão dela, ou seja, da politização, apolitia ou
despolitização das pessoas. Ao nos afastarmos da política, nos
afastamos da ação e da consequente transformação da realidade.
Abstemo-nos de um espaço que não pode ser de outros, mas que é
ocupado por outros e que se transforma em qualquer coisa, menos
61
no espaço da liberdade. Eis o contraponto do fascismo e o risco a
que nos expomos com a homogeneização do pensamento e os
projetos que, mesmo nos dias de hoje, cultivam os germes do
totalitarismo.
Neste sentido, o encaminhamento para o campo da ética é
inevitável, pois, tratada de modo interdisciplinar pela política
também, a liberdade é mais do que a perspectiva do livre arbítrio ou
da liberdade do indivíduo, proposta pelo liberalismo clássico na
modernidade. Desafia-nos o entendimento de um conceito que
passa pelo campo da responsabilidade moral, mas que também se
manifesta na realização da ação humana para a transformação do
mundo e dos homens. O que se constata é que, nos sectarismos e
autoritarismos, suprime-se essencialmente a liberdade e manifesta-se
a homogeneidade, a supressão ou dogmatização do pensamento e a
perspectiva de uma solução técnica e estratégica, não humanizadora.
Na contramão disto, parece-nos indissociável a condição humana de
sua perspectiva ética e política. Se são suprimidas tais possibilidades
existenciais, desembocamos, efetivamente, num processo
desumanizador.
Concluindo este preâmbulo, para a realização do trabalho
proposto adotamos como procedimento metodológico a pesquisa
em fontes bibliográficas, análises documentais e outras que se
fizeram necessárias, tanto dos autores referenciados como dos
conceitos que foram discutidos. É o caso, especialmente, de Theodor
Adorno e Hannah Arendt
25
.
25
Consideramos por bem realizar uma breve nota de esclarecimento sobre nossa opção de
escolha a partir dos estudos com Theodor Adorno e Hannah Arendt, autores que têm sido
referências nos nossos estudos e, compreendemos, no respeito devido a cada um, que ambos
62
Com o filósofo frankfurtiano, vislumbramos o estudo que
coordenou nos Estados Unidos, registrado na obra La personalidad
autoritaria (1965), Ensaios sobre Psicologia Social e Psicanálise (2015),
além das clássicas discussões de Educação e Emancipação (1995),
publicação póstuma, e Dialética do Esclarecimento (1985), em
parceria com Horkheimer. Algumas outras obras nos ajudaram a
compreender melhor, não apenas o pensamento do filósofo, mas os
fundamentos da discussão que nos propusemos empreender.
Destacamos, por exemplo, as discussões de Martin Jay, em A
imaginação Dialética (2008), Rolf Wiggershaus, com o clássico A
Escola de Frankfurt (2006) e as contribuições de Sérgio Paulo
Rouanet em Teoria crítica e psicanálise (2001). Das leituras de
Hannah Arendt, valemo-nos de A condição humana (2010), Entre o
passado e o futuro (2011) e Responsabilidade e julgamento (2004b),
entre outras que se apresentaram como necessárias.
contribuem para o amadurecimento das questões políticas, éticas, estéticas e
epistemológicas que têm permeado nossos incômodos. Por isso, a discussão com Adorno e
Horkheimer, seus colaboradores e algumas passagens pelo pensamento de Hannah Arendt,
entre outros, representam uma opção para o entendimento, não uma absolutização do
pensamento. Além disso, evidentemente, registramos nosso respeito à produção
incomensurável que ambos legaram para o campo da Filosofia. Assim, buscamos as
convergências e respeitamos as possíveis divergências e, neste contexto, buscamos
estabelecer o topói de onde partimos. Não na pretensão de dar conta de toda a complexidade
dos seus pensamentos, o que demandaria muitas outras teses, mas no intuito de perceber o
quanto há de elementos presentes nestas questões que nos remetem à compreensão do
existente em sua singularidade e na relação com o outro e com os outros, principalmente
sob o “céu dos tempos estranhos” em que vivemos. Se, à dialética negativa, base do
pensamento adorniano pode parecer contraditória a expectativa do amor mundi, um dos
fundamentos das teses arendtianas e de sua proposição política, de nossa parte,
contemplamos os elementos de um mosaico que, evidentemente não almejamos montar
sozinhos, mas, se possível, colaborarmos no desvelamento de algum de seus pedaços, como
mais uma peça para o entendimento da nossa condição humana que se realiza,
efetivamente, passando pela educação.
63
Neste exercício não nos eximimos, nas análises, do
apontamento de nosso entendimento e proposição frente aos
desafios encontrados. Mas não é nossa pretensão apresentar fórmulas
ou manuais pedagógicos. Ao contrário, entendemos ser necessário e
possível provocar a reflexão e a análise dos elementos que foram
discutidos e, inevitavelmente, de questões referentes à Educação que
permeiam nosso cotidiano e o da nossa sociedade ao longo do
tempo.
Embasando-nos na concepção do papel da Filosofia da
Educação em sua contribuição para o pensamento pedagógico,
interessa-nos caminhar nesta linha trabalhando com a perspectiva de
uma reflexão dos fundamentos e não da aplicabilidade ou da
construção técnica do processo educativo, didática ou
metodologicamente falando. Deste modo, a complexidade que se
evidencia esteve constantemente como pano de fundo de nossa
análise sobre a Educação e o entendimento que apresentamos a
partir de nossa compreensão do que venha a representar tal
concepção e sua perspectiva emancipatória.
64
65
Capítulo II
La personalidad autoritaria
:
contexto e breve histórico de um estudo referencial.
Nuestra principal preocupación fue la de estudiar al sujeto
potencialmente fascista, cuya estructura es tal que lo hace
especialmente susceptible a la propaganda antidemocrática.
Decimos “potencialmente” porque no hemos estudiado personas
que fueran declaradamente fascistas o que pertenecieran a una
organización fascista reconocida. En la época em que recogimos la
mayoria de nuestros datos, el fascismo acababa de ser derrotado
em la guerra y, por lo tanto, era difícil encontrar individuos que
se declararan abiertamente de esta idea; no obstante, pudimos
hallar facilmente sujetos cuyos puntos de vista indicaban, por su
índole, que aceptarían gustosamente el fascismo si éste se
convirtiera en un movimento social fuerte o respetable
(ADORNO et al., 1965, p. 27).
Partindo da análise desta epígrafe, fragmento da introdução
de La personalidad autoritaria (1965)
26
, podemos compreender a
principal motivação do estudo desenvolvido por Adorno e seus
colaboradores, Else Frenkel-Brunswik, Daniel J. Levinson e R.
Nevitt Sanford, na década de 40 do século XX nos Estados Unidos.
Num trabalho conjunto entre o Instituto de Pesquisa Social,
representado por Adorno, e o grupo de psicólogos sociais de
26
Publicado originalmente no inglês com o título The Authoritarian Personality (1950),
cujo original está esgotado.
66
Berkeley, nominado, a pesquisa tornou-se histórica e é referência
na questão da categorização de um tipo de personalidade que, nas
conclusões dos pesquisadores, representa o indivíduo com potencial
fascista.
Não é demais lembrar que o problema do fascismo se torna
uma questão de primeira hora na história contemporânea a partir da
experiência da barbárie ocorrida na Segunda Guerra Mundial.
Contudo, o destaque que nos expõem Adorno e seus colegas de
pesquisa se dá para além da questão de estudar o fascismo enquanto
movimento organizado e explicitado, como nos modelos
desenvolvidos pelo nazifascismo. O que se percebe, conforme
esclarecem nesta nota inicial sobre o estudo desenvolvido, é que,
dentro das entrevistas realizadas, declaradamente ninguém se
reconhecia fascista ou não encontraram os pesquisadores alguém que
pertencesse a alguma organização reconhecidamente fascista. Por
isso, cientes também do contexto daquele momento de derrota do
fascismo na guerra que marcaria profundamente nossa história
humana, a pesquisa se desenvolve no sentido de estudar o sujeito
potencialmente fascista.
Mas quem é este sujeito? Como nos esclarecem os autores,
aquele que apresenta uma estrutura suscetível à propaganda
antidemocrática. Neste contexto, retrata aquele indivíduo que,
apesar de não assumir declaradamente as concepções fascistas, sua
índole manifestava que, de bom grado, aderiria ao fascismo se este
se apresentasse como uma proposta respeitável ou, por exemplo, se
se estabelecesse como regime de governo.
Diante destas questões iniciais, entendemos que se faz
necessário compreender o fascismo para além da perspectiva de sua
67
manifestação em um regime totalitário. O que se estabelece como
pano de fundo é a busca pelo entendimento daquilo que pode estar
latente nos indivíduos, expressão do que ficou conhecido a partir dos
estudos já aqui indicados, como a representação da personalidade
autoritária. Interessam-nos aqui elementos que se constituem e se
apresentam na contradição que se dá mesmo em sociedades
democráticas, nos campos da esquerda ou da direita e dentro dos
espaços religiosos ou alternativos, entre outros. Que pulsão de morte
27
é esta que se estabelece e que ecoa na eleição pelo grupo fascista de
uma minoria, daqueles que representam a diferença, a diversidade
27
Sobre a questão da pulsão de morte, cabe um esclarecimento de nossa parte. Ao utilizarmos
o conceito, pela força de sua percepção como constituinte de uma negação da pulsão de
vida, não pretendemos absolutizá-lo como determinante na constituição do, ou, por outro
lado, exclusivo do caráter autoritário. Não é uma mera responsabilização desta pulsão.
Como observado, em La personalidad autoritaria (1965), no estudo das síndromes
apresentadas, o baixo pontuador “tranquilo” (easy-going) é alguém que não usa a
agressividade contra os fascistas. Neste contexto, destacamos apenas que a constatação de
uma pulsão de morte, conforme apontamos no texto, traz a sua força de expressão no sentido
de como esta é catalisada pelo fascismo. Ou seja, como no contexto da virtude da coragem
em Aristóteles, que comporta certa medida de medo, mesmo para aquele que exerce tal
virtuosidade, a pulsão de morte no contexto que apontamos não se manifesta numa
dosificação que permita ao fascista encontrar uma justa medida na conjugação com a pulsão
de vida. Nem a sublimação. Ao contrário, a destrutividade se apresenta como elemento
prevalente na percepção de mundo do fascismo. Ainda diante desta constatação, podemos
concordar que, “a pulsão de morte não é sinônimo de maldade ou crueldade. Ela se torna
perigosa apenas quando é separada, demasiadamente das pulsões de vida, em uma desfusão
que mobiliza processos como idealização, cisão, projeção e narcisismo das pequenas
diferenças. Quando idealizamos alguém, como um mito dotado de poderes excepcionais,
isso incita a divisão que predica bons e maus entre nós e eles. Uma segunda volta da
pulsão de morte ocorre quando depositamos no outro aquilo que não conseguimos admitir
em nós mesmos. A projeção do mal no outro, sua punição ou cancelamento traz um
agradável sentimento de purificação. Essa desmistura gera afetos de ódio e crueldade,
vividos como ressentimento, ou seja, referidos a afetos passados” (DUNKER, 2021).
Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/03/freud-explica-bolsonaro-na-
pandemia-com-conceito-de-pulsao-de-morte.shtml.
68
ou a pluralidade como sendo “inimigos” ou como objetificação da
“purificação” que desejam realizar de suas próprias mazelas? Seriam
fundamentos de tal ódio manifesto contra o outro o que,
geralmente, tem projetado naquele aquilo que o próprio indivíduo
odeia em si mesmo?
Remetem-nos tais questões à força do conceito de fascismo
que encontra, na conjugação de um ideal de coletivo, algo que torna
os “desajustados” fortes para atacar o que representa, em sua
insanidade, ou racionalidade pragmática, aquilo ou aqueles que lhes
relembram suas “fraquezas”. Neste sentido, numa inversão completa
da realidade, encontra-se um ressentimento que se dá não contra o
algoz, não para o enfrentamento do problema, mas contra a vítima
que, na esfera da existência do fascista, representa a si mesmo, ou sua
fragilidade. Podemos contextualizar tal situação, por exemplo,
pensando a questão educacional. Como observa Crochík (2007, p.
19):
Esse ódio ao intelectual, paradoxalmente desenvolvido também
na escola, é gerado como forma de atacar o que é desejado, mas
julgado impossível de se obter aqueles que se sentem
humilhados por não se julgarem e não ser julgados inteligentes
como os outros, por não conseguirem boas notas, combatem,
no desprezo, ao intelectual, o que gostariam de ser. Não é casual
que Horkheimer e Adorno em Dialética do esclarecimento
tenham caracterizado o fascismo como o “nivelamento por
baixo”, como o ressentimento dos que eram desprezados
socialmente. [...] o que ocorre no cotidiano escolar não pode
ser pensado isoladamente, sem referência ao que está ocorrendo
na sociedade e na cultura.
69
Assim, se observarmos rapidamente nosso momento
contemporâneo, não há como desconsiderarmos a atualidade desta
análise. Na perspectiva de um todo que dissolve as singularidades,
esses coletivos geram o que se denominou como os in-group, os
pertencentes ao grupo que, na luta contra os out-group, os de fora do
grupo, alimentam o seu ressentimento.
Estes coletivizados já demovidos de suas singularidades
são ressentidos com a intelectualidade, com a formação e acreditam
ser livres. Entretanto, o que fazem, realmente, é reproduzir o padrão
que está determinado pelo grupo e que encontra no líder a
representação e o acolhimento da neurose que acomete os próprios
liderados. Pode ser o negacionismo da ciência e da vacina, o ataque
às universidades como “antro de drogados” ou a defesa de uma
política que, no fundo, não quer a política, mas a ditadura. Sem
clareza de alguma finalidade, o que importa é a conquista de um
projeto mesmo que não saibam definir que, custe o que custar,
precisa ser implantado como a verdade ou a solução para todas as
mazelas humanas. Ou, pelo menos, mesmo que não reconheçam,
das suas próprias mazelas.
Neste contexto, até aqui abordado, a pesquisa sobre a
personalidade autoritária promovida por Adorno e seus colegas de
Berkeley é um dos mais robustos e producentes trabalhos
desenvolvidos no escopo da Teoria Crítica e seus desdobramentos,
especialmente no campo da Psicologia Social. Por isso, ao tratarmos
da questão do autoritarismo, conforme esboçado no título do nosso
trabalho, tornava-se inevitável utilizarmos como base de consulta
para nossa discussão os estudos realizados e apresentados em The
70
Authoritarian Personality (1950), versão primeira do trabalho
publicado em inglês.
Contudo, material esgotado em seu original, tivemos acesso
à versão publicada na Argentina pela Editorial Proyección, em 1965,
traduzida como La Personalidad Autoritaria. É deste material que
pinçamos a epígrafe inicial. Tradução completa da pesquisa, foi
realizada diretamente do original inglês editado em 1950 por Harper
& Brothers-Nova York, por Dora e Aída Cymbler com correção
técnica de Eduardo Colombo. O exemplar que consultamos
encontra-se catalogado na Biblioteca da Psicologia da USP,
Universidade de São Paulo. Volume denso, com 926 páginas de
registros, o livro traz 23 capítulos e está dividido em cinco partes, a
saber
28
: Medición de las tendencias ideologicas (Parte I), La
personalidad revelada por las entrevistas clinicas (Parte II), La
personalidad a través del material proyectivo (Parte III), Estudio
cualitativo de las ideologias (Parte IV) e Aplicación a grupos especiales
y a individuos (Parte V).
Com o prefácio de Max Horkheimer, uma Introdução como
capítulo I e as Conclusões como capítulo XXIII, cada uma das partes
da pesquisa contempla o restante do número de capítulos,
assinalando-se em cada um qual o pesquisador ou pesquisadores
responsáveis por aquele momento da pesquisa, conforme registrado
no índice geral. Assim, encontramos as seguintes notações: os
capítulos II, VI e XX (distribuídos nas Partes I e V) em nome de R.
28
Em nossa tradução: Medição das tendências ideológicas (Parte I), A personalidade revelada
pelas entrevistas clínicas (Parte II), A personalidade através do material projetivo (Parte III),
Estudo qualitativo das ideologias (Parte IV) e Aplicação a grupos especiais e indivíduos (Parte
V).
71
Nevitt Sanford; os capítulos III, IV, V, VIII e XV (distribuídos nas
Partes I e III) referenciando Daniel J. Levinson; o capítulo VII (Parte
I) apresentando R. Nevitt Sanford, T. W. Adorno, Else Frenkel-
Brunswik e Daniel J. Levinson; os capítulos IX, X, XI, XII e XIII
(distribuídos na Parte II) para Else Frenkel-Brunswik; o capítulo
XIV (distribuído na Parte III) em nome de Betty Aron; os capítulos
XVI, XVII, XVIII e XIX (distribuídos na Parte IV) a cargo de T. W.
Adorno; o capítulo XXI (distribuído na Parte V) assinado por
William R. Morrow; por fim, o capítulo XXII (distribuído na Parte
V) por Maria Hertz Levinson.
A publicação argentina traz ainda um Prólogo à edição em
espanhol, a cargo de Eduardo R. Colombo, e, na sequência, o
Prólogo aos Estudos sobre o preconceito, assinado por Max
Horkheimer e Samuel H. Flowerman, tratando do projeto que
engloba os diversos trabalhos desenvolvidos e que incluem, entre
eles, La Personalidad Autoritaria.
Retomando o sumário da obra, nos primeiros capítulos, que
compõem a Parte I, encontramos os estudos referentes às ideologias,
que tratavam basicamente: do antissemitismo, do etnocentrismo, do
que foi denominado como conservadorismo político econômico, da
que se referia ao etnocentrismo em relação com certas atitudes de
práticas religiosas e, por fim, a das tendências antidemocráticas.
Nestas pesquisas (capítulos II até VII), deparamo-nos, também, com
a construção das escalas utilizadas para referenciar e demarcar essas
ideologias. É o caso da Escala de Antissemitismo, denominada AS,
no capítulo III; da Escala de Etnocentrismo (sigla E), capítulo IV;
da Escala de Conservadorismo Político Econômico (anotada como
CPE), capítulo V e, por fim, da Escala de Fascismo (representada
72
como F), no capítulo VII, que foi produzida em conjunto por
Adorno e os psicólogos sociais de Berkeley. Sobre esta última escala,
que trata do fascismo especificamente, discutiremos a mesma de
forma mais pormenorizada no nosso trabalho, no capítulo III,
intitulado Sobre a pesquisa dos frankfurtianos: a inadequação prévia
com o aparato conceitual do marxismo e o papel da psicanálise na
elaboração da Escala F.
Destacamos ainda nestas notas, que estamos apresentando
sobre La personalidad autoritaria (1965), que a Parte IV (Estudo
qualitativo das ideologias) contempla todos os capítulos assinados
exclusivamente por Adorno e que, para registro, intitulam-se: Os
preconceitos através das entrevistas (capítulo XVI), A política e a
economia nas entrevistas (capítulo XVII), Alguns aspectos da ideologia
religiosa revelados pelas entrevistas (capítulo XVIII) e Tipos e síndromes
(capítulo XIX).
Continuando nossas observações, convém destacar que,
recentemente, em 2019, pela Editora da Unesp, fomos
contemplados com uma edição em português de partes do estudo
original de The Authoritarian Personality (1950), muito bem-vinda
para todos os interessados na produção do pensamento adorniano.
Organizado por Virgínia Helena Ferreira da Costa com tradução da
organizadora em conjunto com Francisco López de Toledo Corrêa
e Carlos Henrique Pissardo, o volume intitula-se Estudos sobre a
personalidade autoritária (2019). A obra integra uma coleção de
textos do filósofo frankfurtiano que apresenta como proposta a de
editar “os trabalhos mais importantes de Theodor Adorno ainda não
publicados em português, assim como algumas novas traduções que
se mostraram necessárias tendo em vista padrões atuais de edição de
73
textos acadêmicos” (SAFATLE et al. apud ADORNO, 2019, p. 10).
Sobre o livro em questão, é importante destacar o esclarecimento
que nos faz a organizadora da edição brasileira:
A presente edição em português dos Estudos sobre a
personalidade autoritária, de Theodor W. Adorno, é resultado
de uma seleção de textos da obra original de quase mil páginas
[...]. Tal seleção segue a edição alemã das obras completas de
Adorno publicadas pela Suhrkamp no volume 9, Escritos
sociológicos IIcomposta pelos capítulos I e VII (assinados por
todos os autores do livro) e os capítulos XVI, XVII, XVIII e
XIX (assinados exclusivamente por Adorno). Contudo, traduzir
apenas as seções selecionadas pela Surhkamp (sic!) seria cometer
certa injustiça ao texto. Dentre outros motivos, porque os
capítulos de Adorno têm por finalidade comentar alguns dos
dados das pesquisas qualitativas apresentadas em partes da obra
não assinadas por ele e que não compõem, portanto, a presente
edição. Soma-se a essa questão o fato de o presente escrito
adorniano não ser muito conhecido e pesquisado no país, o que
pede uma apresentação mínima do contexto de produção do
livro, suas teorias gerais e as partes que o compreendem. No
intuito de sanar tais problemas, apresentaremos a obra de forma
geral e exporemos algumas das decisões mais difíceis de
traduções de termos assumidas conjuntamente pelos
tradutores. Em uma segunda parte, terá lugar um resumo dos
demais capítulos que não aparecem nesta edição (Virgínia
Helena Ferreira da Costa apud ADORNO, 2019, p. 13-14).
Obra de maior importância para a discussão do
autoritarismo, especialmente no momento contemporâneo, a
organizadora ressalta ainda:
74
Deparamo-nos com uma obra cujos pressupostos teóricos e
conclusões debatem como, em plena Segunda Guerra Mundial,
o fascismo não era um episódio isolado, mas estava presente de
forma latente em amostras da população norte-americana da
época. Sua base de argumentação procura expor como o
autoritarismo mantém relações profundas com o “clima
cultural geral” do modo capitalista de organização
socioeconômica o que torna a pesquisa preponderante e atual
(Virgínia Helena Ferreira da Costa apud ADORNO, 2019, p.
14).
Como demonstra esta observação, a questão do fascismo
transcende o elemento político-partidário evidenciado nos governos
totalitários da Alemanha e da Itália, no período destacado.
Manifestando-se potencialmente entre cidadãos de uma sociedade
compreendida como democrática, a norte-americana, o estudo
encontra elementos de que há uma correlação entre o autoritarismo
e a organização do modo de vida capitalista.
En passant, por enquanto, no aprofundamento da hipótese
apresentada, que retomaremos posteriormente, interessa-nos
destacar que a pesquisa, face aos desdobramentos que proporcionou
e dentro do contexto na qual foi produzida, tornou-se referência
desde então e preserva sua atualidade para qualquer discussão que
pretenda tratar do fascismo, especialmente nos tempos em que
vivemos, de notícias falsas, negacionismo histórico e científico e uma
impensada manipulação da subjetividade a partir do fenômeno que
representam as Redes Sociais e sua extraordinária capacidade de
potencializar a racionalidade tecnológica com a larga utilização e
dependência dos algoritmos.
75
Neste sentido, o autoritarismo encontra-se revitalizado na
polarização política que vivenciamos e que vai constituindo,
subjetivamente, o ódio à política que tanto interessa ao fascismo,
consequentemente, favorecendo ainda mais a organização do modo
de vida capitalista que, sob os auspícios do neoliberalismo, vai
fortalecendo a cada dia a aceitação do Estado de exceção
(BENJAMIN, 2012) que se estabelece como um tempo de barbárie.
Neste contexto, faz-se necessário não menosprezar a história
e a memória. Efetivamente, o risco de se normalizar a barbárie e de
não se elaborar o passado acompanham-nos constantemente na
nossa construção civilizatória, sempre prenhe do anticivilizatório,
como já apontava Freud (1978). É preciso estar atento e pensar
preventivamente, pois o processo de formação humana não pode ser
balizado exclusivamente por um modelo economicista da existência.
Este será um importante ponto de discussão a partir das teses
arendtianas
29
sobre a política e suas distinções entre a esfera pública
e privada. Se há momentos de calmaria, é inconteste que há tempos
em que nos perguntamos “como foi possível que isso acontecesse”?
De que forma chegamos a tal monstruosidade e como não
percebemos o que se engendrava entre os homens?
Contudo, apesar dos limites dessas indagações, perceptíveis
ao senso comum, mas limítrofes na sua potencialidade crítica, caberá
à nossa reflexão demonstrar, como apontava Walter Benjamin
(2012, p. 245), que “[...] assim como o próprio bem cultural não é
29
Sobre a questão da economicização da existência, importante a leitura das questões
levantadas por Hannah Arendt e seus estudos sobre a política, a esfera pública, privada e o
surgimento da sociedade moderna. Indicamos a consulta aos textos de A condição humana
(2010), Entre o passado e o futuro (2011) e O que é política? (2004). As obras citadas constam
nas referências deste trabalho.
76
isento de barbárie, tampouco o é o processo de transmissão em que
ele foi passado adiante”. Ou seja, civilização e barbárie não se
dissociaram em sua constituição dialética. Neste sentido,
complementa Benjamin (2012, p. 345), “[...] o materialista hisrico
se desvia desse processo, na medida do possível. Ele considera sua
tarefa escovar a história a contrapelo”. Talvez, afinal, não seja tão
difícil compreender “como chegamos a isso”. Continuaremos
tratando dessa questão ao longo do nosso trabalho pois, como
apontamos anteriormente, retomaremos e aprofundaremos a
discussão da correlação entre capitalismo e fascismo e,
inevitavelmente, ver-nos-emos envoltos no desafio de “escovar a
história a contrapelo”.
Por ora, retomando as análises da obra proposta neste tópico
do nosso trabalho, destacamos a observação de Max Horkheimer e
Samuel Flowerman (HORKHEIMER; FLOWERMAN apud
ADORNO et al., 1965, p. 15) registrada no prólogo de La
Personalidad Autoritaria (1965):
Actualmente el antisemitismo no se manifesta com la furia
destructiva de que, como bien sabemos, es capaz. También las
enfermedades de la sociedad tienen sus períodos de quietud que
permiten que el sociólogo las estudie, tal como el biólogo o el
médico, buscando medios más eficazes de prevenir o reducir la
virulencia del próximo brote. El mundo de hoy parece haber
olvidado ya que hace muy pocos años, y en lo que consideraba
un baluarte de la civilización occidental, fueron perseguidos y
exterminados, en forma mecanizada, millones de seres
humanos. Sin embargo, eso despertó la conciencia de los
muchos que se preguntaban: cómo es posible que en una
cultura regida por la ley, el orden y la razón, hayan perdurado
77
resabios irracionales de los viejos odios raciales y religiosos;
cómo se explica que pueblos enterros hayan presenciado
tranquilamente la exterminación en serie de connacionales
suyos; cuáles son, en la sociedad moderna, los tejidos que se
conservan cancerosos y muestran, pese a nuestra pretendida
civilización, el anacrónico atavismo de los pueblos primitivos;
y qué es lo que dentro de los organismos individuales responde
a ciertos estímulos del medio com actitudes y actos
destructivamente agressivos.
Evidentemente, para a complexidade da questão, não se
logra resposta fácil ou simplista. Não há fórmulas ou modelos, mas
a necessidade de se pensar e repensar, criticamente, para além do que
está dado, assimilado, harmonizado. Contudo, não é só uma questão
de formação acadêmica ou cultural ou de uma esperança como a dos
iluministas, que não se concretizou no projeto da razão dos
modernos. Ao contrário, desdobrou-se na racionalidade
instrumental destacada por Adorno e Horkheimer em suas análises
na Dialética do esclarecimento (1985).
Por isso, aproveitar o tempo, elaborar o passado e estar
atento aos sinais da história e àquilo que não pode ser esquecido, são
elementos necessários para a perspectiva de que possamos evitar a
barbárie e construir uma civilização menos anticivilizada.
Novamente, não há fórmulas ou regras.
Retomando o prólogo de La personalidad Autoritaria (1965),
compreendemos que
[...] no basta ese despertar de las conciencias mientras no incite
a la búsqueda sistemática de una solución. Muy caro ha pagado
la humanidad su ingenua confianza en el efecto automático del
78
simple pasaje del tempo; así como no se disipan por arte de
magia las tempestades, las catástrofes ni las epidemias,
tampouco quien se complace en atormentar a outra persona
deja de hacerlo por repentino hastío (HORKHEIMER;
FLOWERMAN apud ADORNO et al., 1965, p. 15).
Parece que escrito para este momento, as citações anteriores
nos relembram o papel da ciência, mas que não é um absoluto da
verdade que se propõe. O desafio, que exige o estudo, a elaboração
e a não acomodação ao tempo que passa simplesmente, impele-nos
para, parafraseando o clássico texto de Adorno e Horkheimer, uma
dialética do esclarecimento.
Neste sentido, diante do momento atual em que vivemos,
fica claro cada vez mais a percepção de que a discussão não se
encerra. Quase oitenta anos depois da barbárie que nunca deveria ter
ocorrido, encontramo-nos revisitando discursos e memórias que
ainda não foram devidamente elaboradas diante da premissa
adorniana para a perspectiva educacional registrada na célebre
coletânea de Educação e emancipação (ADORNO, 1995): a de que
Auschwitz não se repita.
Apresentadas estas considerações, retomamos nossos
apontamentos no sentido de entendermos melhor o contexto que
envolveu a pesquisa desenvolvida entre o Instituto e a Universidade
de Berkeley. Para nos auxiliar neste propósito, visitamos os estudos
de Martin Jay, no clássico A imaginação dialética (2008), que trata
da História da Escola de Frankfurt e do Instituo de Pesquisa Social
entre os anos de 1923 a 1950, obra de referência e que nos permite
uma aproximação fundamental com o pensamento dos
frankfurtianos. Apoiamo-nos, ainda, nos estudos de Rolf
79
Wiggershaus, com o também clássico A Escola de Frankfurt (2006),
que complementa, de certo modo, os estudos de Jay, abordando a
história, o desenvolvimento teórico e a significação política do que
se constituíram como ideias e projetos do Instituto de Pesquisa
Social e seus pensadores.
Sobre A Imaginação dialética, esclarece-nos César Benjamin
(BENJAMIN apud JAY, 2008), na aba de apresentação da
publicação brasileira, que a obra proporciona ao leitor
[...] a mais importante história de um esforço intelectual que
marcou o século XX e se projeta para o futuro: a Escola de
Frankfurt. Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert
Marcuse, Erich Fromm, Franz Neumann, Otto Kirchheimer,
Leo Lowenthal, Friedrich Pollock e Paul Lazarsfeld, entre
outros, viveram tempos extraordinários e refletiram
profundamente sobre eles, durante décadas. Fundaram o
Instituto de Pesquisas Sociais na Alemanha em 1923. Com a
ascensão do nazismo, foram ao exílio, vivido principalmente
nos Estados Unidos. Só em 1950 a instituição retornou ao solo
natal. Walter Benjamin pagou com a vida a decisão de não
acompan-los, por amor a Paris.
É tratando de forma profunda e meticulosa sobre esse grupo
marcante e esse período profícuo que a obra de Martin Jay se torna
referência para os estudos sobre os pensadores da Escola de
Frankfurt. Esclarece-nos ainda César Benjamin (BENJAMIN apud
JAY, 2008), concluindo a aba de apresentação, que o autor era
professor em Berkeley (EUA) e que
80
[...] foi convidado por Leo Lowenthal a consultar os arquivos
da instituição para escrever sua história. Leu todos os textos,
muitos deles inéditos. Manteve conversações prolongadas e
correspondência pessoal com os integrantes que estavam vivos,
os mais importantes. O resultado é A imaginação dialética,
aclamado em todo o mundo como uma obra fundamental.
Portanto, como o clássico que é, recorrer a Martin Jay é
exigência indispensável para os estudos sobre a Escola de Frankfurt.
Neste sentido, para aprimorarmos o entendimento sobre as bases de
estudo de Adorno e Horkheimer sobre a personalidade autoritária,
a consulta aos registros produzidos em A imaginação dialética (2008)
nos traz as primeiras pistas para nossa busca.
Neste contexto, elucida-nos Martin Jay (2008) que o que se
constituiu como La personalidad autoritaria é um dos volumes de
um projeto maior, os Estudos sobre o preconceito. A questão do
preconceito já aparece destacada no prólogo de La personalidad
Autoritaria (1965), apontando para o projeto citado por Martin Jay
(2008):
El prejuicio racial es uno de los problemas contemporáneos que
todo el mundo discute teóricamente y nadie resuelve; cada cual
se cree, em certo sentido, su proprio sociólogo, por el hecho de
que la sociología hunde sus raíces em la vida cotidiana. Ahora
bien; los hombres de ciencia, al superar las nociones comunes
sobre los fenómenos, pueden señalar rumbos al avance de la
ciencia (HORKHEIMER; FLOWERMAN apud ADORNO
et al., 1965, p. 15).
81
Fica patente também a expectativa de que, a partir da
superação do senso comum sobre o preconceito, os homens da
ciência pudessem contribuir para o avanço do conhecimento e
entendimento sobre tais questões. Demonstrava, assim, a tamanha
importância dos Estudos sobre o preconceito e o desdobramento nos
seus projetos, dentre os quais, o que se configurou na publicação de
La personalidad autoritaria (1965).
Sobre a produção deste volume, o mais importante dos
estudos propostos, tratando sobre o envolvimento de Horkheimer,
que escreve o Prólogo com Samuel H. Flowerman, mas não assina a
obra, explica-nos Jay (2008, p. 302): “como em grande parte do
trabalho realizado pelo Institut, a influência de Horkheimer foi
marcante. Seu nome não aparece entre os coautores porque ele não
participou da redação efetiva do livro”. Contudo, foi ele que, em
1944, “havia estabelecido contato com um grupo de psicólogos
sociais em Berkeley, o qual incluía R. Nevitt Sanford, Daniel
Levinson e Else Frenkel-Brunswik” (JAY, 2008, p. 302). O interesse
de Horkheimer pelos estudos do grupo se deu em função de um
estudo orientado por Sanford que tratou sobre o pessimismo. No
bojo dele, a “irracionalidade básica do pessimismo, assim estudada,
sugeriu que havia nele um traço ou uma constelação de traços de
personalidades subjacentes” (JAY, 2008, p. 302) que, em
congruência com descobertas anteriores do Instituto, permitia
associar um encaminhamento na mesma direção.
Neste contexto, com o apoio financeiro da AJC
30
, “[...]
Horkheimer pôde sugerir uma relação de trabalho entre o Institut e
30
Abreviação de Comissão Judaica Norte-Americana (American Jewish Committee, AJC)
(JAY, 2008, p. 446).
82
os cientistas sociais do grupo de Sanford, que se denominavam
Grupo de Estudos de Berkeley sobre Opinião Pública” (JAY, 2008,
p. 302). É deste encontro e conjugação de interesses comuns que a
proposta de Horkheimer foi aceita, dando início no ano seguinte ao
“trabalho sobre o que viria a se tornar A personalidade autoritária
(JAY, 2008, p. 302).
Como podemos constatar, apesar de Horkheimer não
aparecer como autor direto do projeto sobre a personalidade
autoritária, sua interlocução com Adorno e com os demais
colaboradores fica explicitada a partir das análises de Martin Jay
(2008). Tal observação merece destaque, pois demonstra mais uma
vez a intrínseca relação e intimidade de pensamento de dois dos
maiores representantes da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e
Max Horkheimer. Simbiose profícua, os estudos dos dois filósofos,
a partir das discussões sobre o preconceito e a personalidade
autoritária, legaram-nos uma riquíssima produção e clássicos
imensuráveis do pensamento humano, como a já citada Dialética do
esclarecimento (1985), que também permeia nossas discussões neste
trabalho.
Retomando a questão do desenvolvimento do estudo sobre
a personalidade autoritária, confirmando as análises de Martin Jay
(2008), Max Horkheimer e Samuel Flowerman (HORKHEIMER;
FLOWERMAN apud ADORNO et al., 1965) registram no Prólogo
da edição argentina que o Comitê Judeu Norte-Americano criou o
Departamento de Investigações Científicas para a realização de
estudos sobre os preconceitos. Horkheimer e Flowerman citam
cinco livros produzidos como material das pesquisas: La
Personalidad Autoritaria (ADORNO et al., 1965), Dynamics of
83
Prejudice (BETTELHEIM; JANOWITZ), Psicoanálisis del
Antisemitismo (ACKERMAN y JAHODA), Rehearsal for Destruction
(PAUL MESSING) e Prophets of Deceit (LOWENTAHL y
GUTERMAN). Contextualizando e fundamentando o
desenvolvimento do projeto proposto, Horkheimer e Flowerman
(HORKHEIMER; FLOWERMAN apud ADORNO et al., 1965,
p. 16) apresentam também um esclarecimento sobre o estudo de La
personalidad Autoritaria (1965):
En una serie ofrecemos los primeiros frutos de nuestra labor.
Los cinco volúmenes iniciales constituyen, por así decirlo, una
unidad, un todo completo, em que cada parte arroja luz sobre
una faceta distinta de ese fenómeno que denominamos
“prejuicios” (raciales, religiosos, sociales). Tres de estes libros
tratan sobre aquellos elementos de la personalidad del hombre
moderno que le predisponen a reaccionar en forma hostil ante
ciertos grupos raciales o religiosos e intentan dilucidar: cuáles
son los factores psicológicos que fomentan o impieden em el
individuo la formación de los prejuicios, y qué lo inclinan a
responder más o menos favorablemente a las incitaciones de un
Goebbles o un Gerald K. Smith. Este libro, La Personalidad
Autoritaria, de Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson y Sanford,
elaborado sobre la base de una combinación de distintas
técnicas de investigación oferece una respuesta: demuestra la
estrecha correlación que existe entre los prejuicios manifestados
por un individuo, y una cantidad de rasgos psicológicos
profundamente arraigados. Además, en este libro se ha logrado
presentar un método que permite calcular la proporción en que
aparecen esos rasgos en los distintos estratos de la población.
84
O desenvolvimento da pesquisa de La personalidad
autoritaria (1965), como nos demonstram Horkheimer e
Flowerman, oferece uma resposta à indagação presente nos três
primeiros volumes dos Estudos sobre o preconceito: a de que há uma
correlação entre os preconceitos e a estrutura da personalidade.
Neste sentido, os psicólogos de Berkeley foram fundamentais na
colaboração com o projeto inicial do Instituto, que partia da tese do
antissemitismo. É preciso entender este contexto.
Por isso, trazendo para a análise a colaboração de
Wiggershaus (2006) com seus estudos sobre a Escola de Frankfurt,
destacamos a insistência de Horkheimer junto à Pollock, então
diretor do projeto sobre o antissemitismo e, também, diretor
executivo do escritório do Instituto em Nova York, para a união dos
trabalhos com o grupo de Berkeley. Relata-nos Wiggershaus (2006,
p. 391-392), citando Horkheimer em carta a Pollock em dezembro
de 1943:
A equipe de Berkeley é, certamente, única. O dirigente do
grupo é um distinto professor de psicologia. Os dois assistentes
do grupo são psicólogos excepcionalmente bem treinados que
têm um bom conhecimento dos métodos estatísticos e
sociológicos. Se eu for, alguma vez, a San Francisco, para
organizar com esses amigos uma série de experiências numa
escala maior, teremos possibilidades de publicar um livro sobre
a análise e a avaliação do anti-semitismo. Tal livro seria uma
nova abordagem não apenas de nosso problema específico, mas
também do estudo dos fenômenos sociais em geral. Ele
realizaria o que nós tentamos explicar em nossos primeiros
panfletos depois de nossa chegada a este país: fazer a síntese de
certas ideias europeias e das ideias americanas.
85
O entusiasmo de Horkheimer justificava-se, considerando o
projeto e a proposta do Instituto de construir a perspectiva empírica
do estudo. Na continuidade de seu texto, nos esclarece Wiggershaus
(2006, p. 392) que
O cerne do estudo fornecido pelo grupo de Berkeley (que na
continuação dos trabalhos, tomou o nome de Public Opinion
Study Group) compunha-se da elaboração de uma escala de
avaliação das opiniões blicas e atitudes anti-semitas, e da
elucidação das relações entre anti-semitismo e estrutura de
personalidade. A ideia inicial dos membros desse grupo era que
o anti-semitismo deveria explicar-se pela interação de fatores
internos e externos. Eles consideravam que sua decisão de
concentrar-se no papel da estrutura de personalidade
relacionava-se, simplesmente, com uma estratégia de pesquisa.
Segundo eles, essa era menos estudada do que os fatores
externos e mais difícil de apreender. Eles se sentiam, por isso,
particularmente qualificados para realizar esse difícil estudo do
anti-semitismo “no microscópio”.
Neste contexto, o desenvolvimento dos testes e escalas, os
estudos clínicos e questionários produzidos traziam a expectativa
para Horkheimer de apresentar ao AJC, conforme trecho de sua
carta à Pollock em 25 de março de 1944, citada por Wiggershaus
(2006, p. 393), “a prova científica de que o anti-semitismo é um
sintoma de profunda hostilidade contra a democracia”. Para
Horkheimer, a partir dos resultados da pesquisa realizada em larga
escala em Berkeley se poderia “não só avaliar o anti-semitismo, como
também pôr em ação o governo e todas as forças liberais do país, em
86
particular os educadores desta nação” (HORKHEIMER, apud
WIGGERSHAUS, 2006, p. 393).
Apesar do contexto apresentado, não se confunda a
perspectiva de Horkheimer com praticismo ou aplicabilidade,
especificamente, mas a compreensão do papel do Instituto na
construção do entendimento sobre o antissemitismo e sua
contribuição para fundamentar a contraposição a tal percepção,
escancarada pelo fascismo. Entre certezas e incertezas no
desenvolvimento do projeto, encorajava ainda Pollock, que muitas
vezes se mostrava derrotista e sem inspiração, o que era preocupante,
considerando que cabia a ele a redação do Relatório destinado ao
AJC, financiador da pesquisa (WIGGERSHAUS, 2006).
Para Horkheimer,
[...] o Instituto deu, à grande luta contra o anti-semitismo uma
contribuição que não se pode desprezar por ocasião do primeiro
grant (auxílio financeiro): o aperfeiçoamento de um conjunto
de instrumentos permitindo demonstrar cientificamente as
raízes antidemocráticas do anti-semitismo, a publicação de uma
brochura que despojava de seu encanto a propaganda fascista, a
elaboração do método das particular interviews (entrevistas
particulares) a pesquisa sobre grupos socais fazendo com que
representantes desses grupos formados por especialistas
fizessem perguntas dissimuladas e baseadas em situações
cotidianas. As conclusões tiradas por Horkheimer não se
reduziam à utilidade prática da contribuição do Instituto para
a luta contra o anti-semitismo apelo à solidariedade dos
democratas, reforço do sentimento de sua identidade entre os
democratas e os judeus, associação da pesquisa e do progresso
do Erklärung mas, assinalavam, também, o fato de que o
Instituto era capaz de enfrentar a concorrência científica no
87
plano dos métodos e das técnicas (WIGGERSHAUS, 2006, p.
395).
Deste modo, até a decisão da continuidade do projeto numa
escala ampliada pelo AJC, o que ocorreu no verão de 1944,
Horkheimer trabalhou intensamente na perspectiva de aprovar o
relatório e de fazer as pontes, adequações e entendimentos do projeto
inicial do antissemitismo até sua ampliação para aquilo que se
desdobrou nos trabalhos de La personalidad autoritaria.
Esclarece-nos Wiggershaus (2006, p. 399) que,
Depois que o AJC tomou a decisão definitiva de continuar o
projeto numa escala maior e criar um departamento científico
do qual Horkheimer seria o diretor, este último foi a Nova York
no final de outubro de 1944, para uma temporada de vários
meses. Instalou-se num prédio do AJC (com vista para o
Empire State Building) e organizou o Scientific Department,
cuja missão consistia em esclarecer a importância e as causas do
anti-semitismo nos Estados Unidos, elabora métodos de testes
que permitissem avaliar a eficácia das técnicas atuais de luta
contra o anti-semitismo e, eventualmente, coordenar sua
pesquisa teórica ao programa de ação do American Jewish
Committee.
Estabelecido como diretor científico, lidando com alguns
problemas e continuando os primeiros trabalhos com o grupo de
Berkeley, Horkheimer recebe mais um financiamento para um
segundo projeto do Instituto por meio do Jewish Labor Committee
(JLC). O projeto em questão, que tratava da “’classe operária e anti-
semitismo’ (Labor and anti-semitism) que Horkheimer reduzira ao
88
nível de simples componente do estudo dos grupos sociais”
(WIGGERSHAUS, 2006, p. 400), despertou o interesse de M.
Sherman, diretor de operações do JLC. De acordo com Wiggershaus
(2006, p. 400), interesse que
[...] aumentou ainda mais quando Pollock, numa conversa lhe
explicou “que eles não se interessavam por um estudo
puramente estatístico ou por uma espécie de supersondagem, e
sim, exclusivamente, por um estudo que utilizasse os métodos
qualitativos e quantitativos aperfeiçoados no laboratório (deles)
da costa oeste, sob a direção de Horkheimer.
Desenvolvidas em vários centros industriais dos Estados
Unidos, as pesquisas de campo do “Projeto sobre o anti-semitismo e
a classe operária” utilizaram a técnica evocada por Pollock, que era a
da participant interview. Produziram-se quinhentos e setenta
relatórios, especialmente de natureza qualitativa, que culminaram
num relatório final intitulado O anti-semitismo na classe operária
americana, com as colaborações de Gurland, Massing, Löwenthal e
Pollock. Considerando o material rico, Adorno indica a Horkheimer
que podiam ser acrescentadas considerações teóricas ao Labor
Project, contribuição que veio por parte de Lazarsfeld e Herta
Herzog, do Bureau of Applied Social Research (Agência de Pesquisa
Social Aplicada), num estilo tradicional, para a análise quantitativa
(WIGGERSHAUS, 2006).
Contudo, na percepção do Instituto, e contrariamente
àquilo que estava nas expectativas do JLC,
89
[...] o objeto de estudo estava colocado desde a introdução
como a “natureza e não a extensão do anti-semitismo nas
massas dos operários americanos”. Mas se se aceitasse
considerar que os resultados eram representativos, chegava-se a
uma confirmação das impressões que os haviam levado a lançar
esse estudo: o anti-semitismo estava muito espalhado em meio
aos operários, e era de esperar que aumentasse mais
(WIGGERSHAUS, 2006, p. 401).
Neste contexto, a conferência de Pollock (O preconceito e
as classes sociais), na Universidade de Columbia, numa série
organizada pelo Instituto e intitulada The Aftermath of National
Socialism, esclarecia essa questão a partir das conclusões que ele
apresentava publicamente (WIGGERSHAUS, 2006). Ou seja,
havia uma impressão sobre os judeus, não necessariamente calcada
na realidade, mas permeada por elementos que reportavam à
propaganda antissemita do fascismo e pela construção imaginária da
figura e das atitudes do judeu. Pela amostragem coletada, quase um
terço dos operários que participaram da pesquisa era hostil aos
judeus de forma ativa, um pouco mais de um terço evitavam os
judeus, mas não reivindicavam uma discriminação sistemática e, o
restante, também quase um terço, apresentava uma perspectiva de
bom tratamento com os judeus.
Destacamos o trecho da conferência de Pollock registrado
por (WIGGERSHAUS, 2006, p. 401-402):
A imagem do judeu parece ser fundamentalmente a mesma
para a maioria da amostra. Como eles se comportam de
maneira diferente, sua crítica, seu ressentimento, sua
hostilidade e seu ócio vão para o judeu fantasma. Para a maioria
90
dos operários, o judeu é, aparentemente, um dono de armazém
trapaceiro, um proprietário ou um administrador sem coração,
um agiota pouco escrupuloso, um agente imobiliário ou um
segurador que passará a mão no depósito ou anulará a apólice
no primeiro incidente. A isso mistura-se ideia de que os judeus
são donos de todos os negócios e, ao menos, a maioria dos
judeus está metida em negócios. E tudo isso se deve ao fato de
que os judeus só pensam em dinheiro, são egoístas,
gananciosos, lucram em detrimento dos outros, tapeiam, são
manhosos, mentem, não têm coração nem escrúpulos, e assim
por diante. A maioria dos operários recusa claramente admitir
que existe um grande número de operários judeus. Ou não há
operários judeus, ou eles não trabalham e, simplesmente,
fingem ser operários. Ainda por cima, os operários judeus são
acusados de esquivar-se diante dos trabalhos penosos, de passar
adiante as tarefas chatas, de fingir que dão duro diante dos
patrões, de fazer tudo o que lhes dê vantagem para progredir
pessoalmente e nada por seus colegas de trabalho. Para
terminar, são acusados de tomar ares de superioridade, de serem
indelicados, doutores sabe-tudo, ambiciosos, arrogantes. Todas
as acusações do tempo de guerra... encontram-se em nossa
amostra... A exceção desconcertante é que os nossos
pesquisadores não encontraram praticamente um operário que
acuse os judeus de serem muito de esquerda e comunistas.
Como se pode constatar, há uma conjugação do imaginário
sobre o judeu, independentemente do grupo de amostragem
destacada na pesquisa. Contudo, característica expressa na análise
apresentada por Pollock é a de que, na classe operária, não há a
percepção da vinculação dos judeus à esquerda e ao comunismo,
elementos que se apresentavam, por exemplo, na perspectiva do
antissemitismo burguês e na base das teorias conspiratórias
91
construídas pela propaganda nazista, mesmo que fossem esdrúxulas
suas fundamentações.
No caso dos operários, parece que o imaginário construído
encontrava propagação no senso comum estabelecido, às vezes por
experiências singulares que, generalizadas, eram atribuídas à
condição de ser judeu. Evidentemente, poderiam ser atribuídas a
qualquer pessoa ou cidadão, de qualquer etnia. Cabe considerar
também o que já levantara Adorno em seus estudos sobre a
propaganda fascista
31
, compreensão que já estava presente nesse
período da pesquisa. Entendemos que se destacam, ainda, para a
construção desse imaginário, as reações iniciais, muitas vezes de
indiferença, aos acontecimentos e violações de direitos na Alemanha
nazista pelos demais países, como a Inglaterra, por exemplo, que
evitava propagar claramente o que estava acontecendo com os judeus
(WIGGERSHAUS, 2006). Neste tempo, inclusive, reforçava-se a
manutenção das limitações, e até agravamento, para a imigração de
judeus para os Estados Unidos, apesar de já estar explicitada a
situação em que se encontravam na Alemanha após os fatos
ocorridos na chamada “Noite de Cristal” e de seus desdobramentos.
Conforme observa Wiggershaus (2006, p. 381),
Os acontecimentos nos países dominados pelos nazistas e as
reações que provocaram nos países aliados levaram mais de um
31
Referimo-nos às análises de Adorno sobre os agitadores da Costa Oeste dos Estados
Unidos e sua comunicação antissemita, que culminou na apresentação do trabalho
Antissemitismo e propaganda fascista, em 1944, num simpósio psiquiátrico sobre
antissemitismo (WIGGERSHAUS, 2006) e, também, ao que fundamentaria
posteriormente a publicação de Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista (1951).
Ambos os textos estão reunidos na edição brasileira de Ensaios sobre psicologia social e
psicanálise, pela UNESP (2015).
92
observador a se interessar de mais perto pela variante anglo-saxã
daquilo que provocava tão atrozes consequências para o Velho
Continente. Esses observadores constatavam a existência de um
anti-semitismo mais ou menos camuflado que se combinava
com a aceitação da democracia. Esse ponto alimentava a
suspeita de que o anti-semitismo estava muito mais espalhado
do que se pensava.
Ou seja, a disseminação do antissemitismo se dava às vezes
de forma explícita e às vezes de forma velada, contribuindo para uma
construção da imagem do judeu muito mais afeita àquilo que fora
potencializado pela propaganda fascista, a partir dos esforços do
nazismo e, também, daquilo que se produzira histórica e
culturalmente, conforme nos esclarecem Adorno e Horkheimer
(1985), em Elementos do Antissemitismo, tratando sobre a tese liberal.
Destacam os autores que, como Ideia, ela parte da concepção da
unidade dos homens já realizada como princípio o que,
paradoxalmente, contribui para a realização de uma apologia do
existente. Ao partir da perspectiva de uma política voltada para a
defesa das minorias, servindo-se de uma proposição democrática, o
que ocorre, de fato, é uma ambiguidade retratada, segundo eles, pela
defensiva em que se colocam os últimos burgueses liberais.
Referindo-se a esta percepção sobre os judeus, escrevem Adorno e
Horkheimer (1985, p.140):
Sua impotência atrai o inimigo da impotência. A vida e o
aspecto dos judeus comprometem a universalidade existente em
razão de sua adaptação deficiente. O apego inflexível às suas
próprias formas de ordenamento da vida levou-os a uma relação
insegura com a ordem dominante. Eles esperavam que esta os
93
protegesse, mesmo sem dominá-la. Sua relação com todos os
povos soberanos se fundava na cobiça e no temor. Todavia,
sempre que renunciavam à diferença relativamente ao modo de
ser dominante, os bem-sucedidos recebiam em troca o caráter
frio e estoico que a sociedade até hoje impõe às pessoas. O
entrelaçamento dialético do esclarecimento e da dominação, a
dupla relação do progresso com a crueldade e a liberação, que
os judeus tiveram que provar nos grandes esclarecedores bem
como nos movimentos populares democráticos, também se
mostra no ser dos próprios assimilados. [...] Os judeus liberais,
que professaram a harmonia da sociedade, acabaram tendo que
sofrê-la em sua própria carne como a harmonia da comunidade
étnica [Volksgemeinschaft]. Eles achavam que era o
antissemitismo que vinha desfigurar a ordem, quando, na
verdade, é a ordem que não pode viver sem a desfiguração dos
homens. A perseguição dos judeus, como a perseguição em
geral, não se pode separar de semelhante ordem. Sua essência,
por mais que se esconda às vezes, é a violência que hoje se
manifesta.
Portanto, numa breve consideração, a essência da ordem é a
desfiguração dos homens, se considerarmos conceitualmente sua
concepção antidialética e fundamentalmente homogeneizadora da
existência e dos existentes. Por isso, seja na percepção totalitária, seja
na proposição liberal meritocrática, enviesada com o ideal
democrático, o incômodo com o diferente, a pluralidade, qualquer
que seja a ruptura com a ordenação desejada significa alimento para
a produção da violência por qualquer coletivo que se pretenda
dominante.
Neste sentido, o antissemitismo encontra, inicialmente,
elementos de sustentação nestes dois vieses. O primeiro, na
94
perspectiva do projeto fascista de considerar os judeus como a
antirraça, atribuindo a eles o mal absoluto que precisa ser eliminado,
pois “[...] a terra precisa ser purificada deles, e o grito que conclama
a exterminá-los como insetos encontra eco no coração de todos os
fascistas em potencial de todos os países” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 139). O segundo, pautado na
perspectiva liberal burguesa que se pretende universal e, na sua
concepção também racista, não comporta o diferente, a minoria e os
elementos de dissonância com a ordem que se busca estabelecer. Tal
concepção, apesar de aparentemente distante do modelo totalitário
na sua proposição política, manifestada por uma presumida defesa
da democracia, gesta em seu seio a violência pura. Na realidade,
explicita em sua defesa também racial, “[...] a autoafirmação do
indivíduo burguês integrado à coletividade bárbara” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 140).
Contribuindo com estas análises a partir do elemento
projetivo, destaca Martin Jay (2008, p. 293-294) que
O anti-semitismo, em certo sentido, era o ódio da burguesia a
si mesma, projetado nos judeus, os quais eram relativamente
impotentes, uma vez confinados à esfera da distribuição, com
pouca participação na produção. Dada a persistência das
contradições do capitalismo, os judeus, ou um grupo como eles,
eram uma válvula de escape necessária para frustrações e
agressões reprimidas. A esperança liberal de assimilação era uma
fraude, dado o seu pressuposto de que a humanidade,
potencialmente, era uma unidade nas condições
socioeconômicas vigentes. O liberalismo, assinalaram
Horkheimer e Adorno, havia prometido aos judeus e às massas
a felicidade sem o poder. Mas as massas, ao lhes serem negados
95
o poder e a felicidade, voltavam sua fúria contra os judeus, pela
crença equivocada de que o que lhes fora negado tinha sido
dado a eles.
Na promessa não cumprida, na projeção do inimigo não no
sistema que oprime, mas sobre o que também se encontra
despossuído e alijado do prometido, o ressentimento se manifesta na
equivocada compreensão da realidade. Da projetividade distorcida
de uma realidade paranoica observada pelos indivíduos para as
projeções coletivas, como o antissemitismo que se sobrepunham às
individuais, “a totalidade do sistema delirante paranoico
correspondia ao totalitarismo da sociedade fascista” (JAY, 2008, p.
294).
Portanto, na perspectiva do antissemitismo burguês, os
elementos de contradição do capitalismo que se manifestam na
impossibilidade da igualdade pressuposta pelo liberalismo, da
autonomia, que é roubada pela heteronomização do sujeito que é
subjugado e submetido, diante da meritocracia que nada tem de
justa na ordem estabelecida, a violência é resposta do impotente
contra aqueles que, também impotentes, o relembram da sua
impotência.
Neste entendimento, retomando a questão da pesquisa com
os operários, recorremos à seguinte observação de Wiggershaus
(2006, p. 402-403):
Como Adorno, mais do qualquer outro, observara em suas
propostas para esse relatório da pesquisa sobre os operários, a
condição necessária de uma avaliação correta desses resultados
e das eventuais contramedidas a tomar era aparentemente
96
operar uma distinção entre anti-semitismo operário e anti-
semitismo burguês. Não era evidente que a atitude negativa dos
operários para com os judeus dependia de experiências
concretas infinitamente mais do que ocorria nas classes
superiores? Não era preciso levar em conta o fato de que em seu
comportamento e suas declarações os operários respeitavam
normas pseudodemocráticas bem menos do que os membros
das classes médias e superiores? Chegava-se à hipótese de que se
encontrava em meio aos operários bem menos anti-semitismo
camuflado que nas classes altas, e sua atitude anti-semita era
bem menos racional e poderia ser combatida mais facilmente
do que nas outras classes se lhes fossem explicados fatores
econômicos e sociais. Mas essas considerações não passaram
nunca do estágio de hipóteses.
Entretanto, o trabalho sobre o Labor Project não chegou a
ser publicado, nem tampouco a pesquisa sobre os operários e
trabalhadores. Como nos esclarece Wiggershaus (2006), com a
sobrecarga que adveio para os diretores do Instituto e a discordância
com a versão do relatório para publicação confiada a Lazarsfeld,
sobre a qual
[...] Adorno, Marcuse e os outros representantes do Instituto
concordaram em considerar que os textos elaborados sob a
supervisão de Lazarsfeld davam excessiva importância às partes
quantitativas sem dar a necessária às partes qualitativas, que a
síntese entre quantidade e qualidade era insuficiente e,
portanto, que o conjunto não correspondia aos objetivos do
Instituto (WIGGERSHAUS, 2006, p. 403).
Contudo, “a retomada do Labor Project tinha dado novo
impulso ao Instituto” (WIGGERSHAUS, 2006, p. 403), apesar de
97
alguns momentos de dificuldade para Horkheimer no período
posterior. Neste sentido, a percepção e o cuidado de Adorno com
Horkheimer, manifestados em sua incansável motivação para que ele
não desanimasse, foram fundamentais. As cartas e a dedicação para
ele de seu texto mais pessoal, Minima Moralia, quando do
aniversário de cinquenta anos do decano da Escola de Frankfurt,
certamente, colaboraram para o amadurecimento das ideias que
culminariam no ápice do trabalho desenvolvido com o grupo de
Berkeley.
Do contexto do projeto sobre o antissemitismo entre os
operários para o da personalidade autoritária, podemos entender a
partir da notícia anunciada por Adorno à Horkheimer, quando de
sua chegada à Nova York, que já havia entre eles a percepção de uma
pesquisa mais complexa por um lado, mas menos restrita, por outro.
Conforme lembra Adorno ao amigo, já há algum tempo pensava na
ideia que, segundo ele, tratava-se “[...] de avaliar o anti-semitismo
potencial ou atual unicamente por índices indiretos, isto é, sem
apresentar perguntas sobre os judeus ou temas que os indiquem, a
olhos vistos, que têm a ver com o anti-semitismo a hostilidade para
com os negros, o fascismo político, etc” (WIGGERSHAUS, 2006,
p. 405). Esclarece Adorno (apud WIGGERSHAUS, 2006, p. 405):
Já se achava uma abordagem nessa linha nos projective items do
antigo questionário de Berkeley; mas eu gostaria de ir muito
mais longe e realizar um questionário ‘desjudeusado’ para uma
avaliação estatisticamente confiável do anti-semitismo. Eu não
tenho necessidade de lhe mostrar as vantagens. Naturalmente,
o problema consiste em encontrar os índices indiretos que
constituem as condições por sua vez necessárias e suficientes do
98
anti-semitismo isto é, tais, que suponham uma correlação
com o anti-semitismo efetivo tão elevada, que se possa
negligenciar as diferenças menores.
Na sequência, descrevendo o caminho a seguir para
encontrar tais índices, Adorno destaca que o grupo de Berkeley
trabalhava nessa direção por iniciativa própria, além de já estar
conquistado, o que entusiasmou Horkheimer. Este, por sua vez,
esperava para ver os projetos de produção de tais questionários para
que, pensando numa pesquisa de ampla escala, se pudesse trabalhar
de forma semelhante à Berkeley com grupos em Nova York e
Chicago (WIGGERSHAUS, 2006).
Alguns meses depois, Adorno recebeu um dossiê nominado
como F-Scale, que trazia os esboços do grupo de Berkeley para a
produção do novo questionário. O que estava proposto ainda
deveria ser reformulado em parte para consolidar uma forma,
tratando das questões, para que fosse compreensível para as pessoas
que seriam entrevistadas e, também, para que apresentassem uma
adaptação psicológica. O próprio Adorno elaborou algumas dezenas
de perguntas, sendo uma parte, segundo ele mesmo relata à
Horkheimer, extraídas dos Elementos do Antissemitismo
(WIGGERSHAUS, 2006). Encontrava-se em gestação a famosa
Escala F, e avançavam a pesquisa e a parceria com os psicólogos
sociais da universidade de Berkeley que se transformaria na
publicação de La personalidad autoritaria. Convém ressaltar que “o
projeto de Berkeley constituía o único ponto de continuidade entre
a primeira e a segunda fase do projeto sobre o anti-semitismo, o
único estudo a longo prazo que foi feito sem descontinuidade”
(WIGGERSHAUS, 2006, p. 410).
99
A importância de tal trabalho para o Instituto, que já foi
denotada em alguns momentos desta rememoração do contexto da
pesquisa sobre a personalidade autoritária, remonta à problemática
que se dava na relação deste com as ciências sociais e seus métodos
no período. Explica Martin Jay (2008, p. 284) que,
Desde o começo, a Escola de Frankfurt criticou as tendências
reducionistas implícitas nas ciências sociais que tinham
orientação indutiva e empírica. Ao explorar os fenômenos
sociais, ela priorizava a teoria e não a compilação de “fatos”, do
mesmo modo que na política, punha a teoria à frente da práxis.
Ao mesmo tempo, é claro, a Escola nunca dispensou
arrogantemente a pesquisa empírica, inclusive com
quantificação dos resultados, que caracterizava algumas das
escolas mais obscurantistas da sociologia alemã. Como
demonstraram o estudo de Fromm sobre os trabalhadores
alemães e os Studien über Autorität und Familie, a Escola de
Frankfurt ansiava por usar métodos empíricos para enriquecer,
modificar e respaldar (embora nunca propriamente verificar)
suas hipóteses especulativas.
A discordância dos frankfurtianos com a perspectiva
empírica predominante, a limitação ou primitivismo das técnicas
utilizadas por eles e, certamente, o incômodo que se apresentava no
embate com os cientistas sociais da época, afeitos à quantificação, é
a base na qual se desdobram os trabalhos empíricos do Instituto na
década de 1940. Trabalhos que envolveram não só o desfecho com
La personalidad autoritaria, mas a produção das demais pesquisas já
citadas e outras, sobre as quais não nos ateremos neste momento,
como as desenvolvidas por Adorno com o Escritório de Pesquisas
100
Radiofônicas, que envolvia um projeto sobre a música, por exemplo,
que não vingara (JAY, 2008). O fato é que, segundo anota Jay (2008,
p. 286), “o sucesso de A personalidade autoritária havia demonstrado
que a teoria crítica e a quantificação não eram tão irreconciliáveis
quanto o projeto sobre a música fizera parecer”.
Neste sentido, não era tal constatação uma guinada na
perspectiva do puro empiricismo, mas o encontro com uma
possibilidade de integração, a nosso ver, dos elementos da teoria e da
prática. Não a partir da pura quantificação ou pela pretensão de
aplicabilidade, mas, como já esclarecido, pela possibilidade de
modificar, enriquecer, respaldar, fundamentar as hipóteses
especulativas dos estudos que o Instituto desenvolvia. E isto poderia
se desdobrar em implicações teóricas e práticas. Como esclarece
Horkheimer (apud ADORNO et al., 1965, p. 19),
[...] la actividad teórica y la aplicación práctica no están
separadas por un abismo insalvable. Muy por el contrario, los
autores están plenamente convencidos de que la elucidación
científica, sistemática y sincera de un fenómeno de tal
transcendencia histórica puede contribuir directamente al
mejoramento de la atmósfera cultural en la que se engendran
los odios.
Contudo, alerta ainda Horkheimer (apud ADORNO et al.,
1965, p. 19) que “no debe juzgarse que esta convicción es una
ilusión optimista y desecharla como tal”. O que está em questão não
é a proposição, a partir dos estudos, de um manual prático ou de
adicionar novas descobertas empíricas aos conhecimentos já
existentes. Apresentando-o como um livro que trata sobre a questão
101
da discriminação social, Horkheimer (apud ADORNO et al., 1965,
p. 19) explica que
El tema central de la obra es un concepto relativamente nuevo:
la aparición de una espécie “antropológica” que denominamos
el tipo humano autoritario. A diferencia del fanático de otrora,
parece combinar las ideas y la experiencia típicas de una
sociedad sobremaneira industrializada con ciertas creencias
irracionales o antirracionales. Es, a un miesmo tiempo, un ser
ilustrado y supersticioso, orgulloso de su individualismo y
constantemente temeroso de ser diferente a los demás, celoso
de su independencia y proclive a someterse ciegamente al poder
y a la autoridad. La estructura de carácter que comprende estas
tendencias opuestas ha atraído la atención de filósofos y
pensadores políticos modernos. Este libro encara el problema
con los medios que nos brinda tal investigación
sociopsicológica.
Reforçando a questão anterior, “[...] o intuito do livro não é
desenvolver uma propaganda para a tolerância, nem refutar os erros
e mentiras que embasam preconceitos, mas desenvolver uma
pesquisa sociopsicológica que fomentará uma educação
democrática” (Virgínia Helena Ferreira da Costa apud ADORNO,
2019, p. 30). Portanto, na perspectiva de uma educação que
contribua para uma formação democrática, o entendimento de tal
personalidade contraditória, que conjuga paradoxos que não se
esclarecem apenas por uma existência baseada na materialidade das
coisas nem tampouco por uma percepção puramente teórica, é
elemento importante para o combate ao autoritarismo. Escreve
Horkheimer (apud ADORNO et al., 1965, p. 20):
102
Nuestro propósito fundamental es el de abrir nuevos caminos
en un campo de investigación que puede tomar importancia
práctica inmediata. Buscamos desarrollar y promover el
conocimiento de los factores sociopsicológicos que han hecho
posible que el tipo de hombre autoritario amenace reemplazar
al tipo individualista y democrático predominante en la pasada
centuria y media de nuestra civilización, asi como de los medios
que podrian contener esta amenaza. El análisis progressivo de
este nuevo tipo “antropológico” y de las condiciones que
favorecen su desarrollo, junto con la determinación científica
de diferencias cada vez mejor definidas, acrecentarán las
possibilidades de combatir el problema com métodos
genuinamente educativos.
Lembramos que as bases da discussão da personalidade
autoritária estão interconectadas com a questão dos preconceitos e,
por consequência, com os estudos sobre o antissemitismo.
Elementos que se interconectam com a democracia e o perigo do
fascismo.
Corroborando este entendimento, destaca Wiggershaus
(2006, p. 407) que
Adorno guardava na lembrança a ideia que Horkheimer não
parava de lhe recordar: “O valor imediato” consistia, “para o
Committee em demonstrar a ligação existente entre anti-
semitismo, fascismo e caráter destrutivo”, em administrar “a
prova experimental do perigo que o anti-semitismo representa
para a civilização democrática”.
Neste contexto, Horkheimer, concluindo o prefácio de La
personalidad autoritaria (1965), tecendo os agradecimentos ao apoio
103
do AJC, financiador da pesquisa e criador do Departamento de
Investigações Científicas que estava aos seus cuidados, destaca:
Este organismo estaba destinado a cumplir una doble misión:
ser un centro científico encargado de estimular y coordinar la
labor de distinguidos estudiosos del prejuicio como fenómeno
sociológico y psicológico, a la par que un laboratorio donde se
sopesarian los programas de acción. Si bien los miembros del
cuerpo de investigaciones del departamento están
constantemente ocupados en resolver los urgentes problemas
que se presentan en el trabajo diario de una vasta organización
que lucha por los derechos democráticos em varios amplios
frentes, nunca han abandonado la tarea de promover estudios
fundamentales. Este volumen simboliza dicho vínculo entre
educación democrática e investigación esencial
(HORKHEIMER apud ADORNO et al., 1965, p. 22).
Parece claro, portanto, que a pretensão das pesquisas do
Instituto, em conjunto com os parceiros de Berkeley, vislumbrava
avançar para além das proposições dicotômicas que se encontravam
no período no campo das ciências, e que, inevitavelmente, ainda se
apresentam nos dias de hoje. Descortinando o papel do
conhecimento científico como imprescindível, não se corrobora que
seja absoluto. Como nos esclarecem Horkheimer e Adorno (1978,
p. 182),
A luta eficaz contra os movimentos totalitários não é possível,
certamente, sem o conhecimento das suas causas, sobretudo se
quisermos que essa luta atinja as raízes do totalitarismo, as
condições que lhe são propícias na sociedade. Uma concepção
acertada e capaz de ser, ao mesmo tempo, interpretada de forma
104
racional das estruturas essenciais em jogo, que é missão da
ciência formular, não bastará por si só para fazer o necessário
mas constitui, sem dúvida, uma contribuição insubstituível à
resolução do problema.
Novamente reafirmamos a percepção de que, diante dos
desafios em que nos encontramos, não há necessariamente fórmulas
ou modelos para se determinar, tentação que se coloca
constantemente pela mentalidade organizadora e homogeneizadora
da existência. Isso não implica, contudo, não se debruçar sobre os
problemas e as questões importantes para a nossa coexistência e
condição de vida diante da nossa perspectiva política. Ou seja, o
intercâmbio entre o papel da ciência e sua constituição como meio
para nossa realização humana, que apresenta sua contribuição para
o entendimento daquilo que não é atingível pelo senso comum, não
garante a paz e a prosperidade humanas como relação de causa e
efeito.
É indiscutível, porém, que, frente aos problemas humanos,
não são suficientes a boa vontade e o voluntarismo, tampouco a
proposição negacionista em tempos de pós-verdade. Deslindar os
elementos que fundamentam o ódio, o preconceito, as bases do
fascismo, entre outros, não é, evidentemente, propor uma explicação
determinística da realidade, desconsiderando sua complexidade. É
desafio e condição para entender um pouco mais da trama que se
desenrola na nossa frágil e desafiadora existência, vislumbrando a
importância do conhecimento que nos desafia a superar a
comodidade da subserviência e do enquadramento numa pretensa
normalidade massificadora dos coletivos que subtrai as
singularidades.
105
Cabe destacar, encaminhando-nos para a conclusão deste
capítulo, que, apesar da aparente sinergia que transparece no nosso
relato sobre o contexto de desenvolvimento da pesquisa sobre a
personalidade autoritária, optamos por apresentar um recorte a
partir da nossa percepção da importância do estudo proposto.
Esclarecemos com este destaque que tal recorte não se propõe como
ingênuo na compreensão de que muitas tensões e conflitos
permearam as pesquisas do Instituto em parceria com os cientistas
de Berkeley e as exigências apresentadas pela AJC na questão dos
Estudos sobre o preconceito, como nos relata Martin Jay (2008, p. 297-
298):
[...] a série como um todo, inclusive a obra em que o Institut
havia trabalhado mais amplamente, A personalidade autoritária,
foi um esforço colaborativo. Os que não eram membros do
Institut provavelmente tinham formação psicanalítica, mas, na
maioria dos casos, não estavam familiarizados com a perspectiva
mais ampla da teoria crítica. Assim, apesar de ser o diretor geral
do projeto, Horkheimer não pode exercer a influência
norteadora que havia exercido no Institut em épocas anteriores.
Isso se acentuou depois que sua saúde obrigou-o a retornar à
Califórnia e Samuel Flowerman o substituiu como diretor, em
1946. A correspondência Löwenthal-Horkheimer contém
amplos indícios de que as relações com os representantes da
AJC eram tudo, menos tranquilas. Os atritos pessoais tiveram
seu papel, embora decerto também tenham existido
discordâncias teóricas.
Neste sentido, convém destacar também que a publicação de
La personalidad autoritaria (1965) sofreu críticas severas por parte
dos que consideravam que o Instituto se afastava da gênese da teoria
106
crítica ao realçar as explicações psicológicas, e não as sociológicas do
preconceito que, segundo Jay (2008), fora uma escolha consciente a
partir dos objetivos pedagógicos a que se propunha o projeto. Isso se
destacou, tanto que
[...] dois dos críticos mais sérios de A personalidade autoritária,
Herbert H. Hyman e Paul B. Sheatsley, puderam afirmar que
os autores “retiraram a irracionalidade da ordem social e a
imputam aos entrevistados; por meio dessa substituição, fica
decidido que os entrevistados preconceituosos formam seus
juízos de maneira irracional”. Se fosse verdade, a teoria crítica
teria avançado muito em direção ao abandono de sua postura
original (JAY, 2008, p. 290).
Como já nota Martin Jay (2008) nesta citação, isso implicava
exagero, mas é incontestável que o Instituto fizera concessões nos
desdobramentos dos Estudos diante de diversos contextos que se
apresentaram, como a moderação e substituição de determinadas
terminologias mais características do marxismo e da aproximação
com o campo da esquerda, por um lado, ou a utilização de uma certa
dose de psicologia do ego nas análises desenvolvidas, para além da
perspectiva freudiana. Segundo Jay (2008, p. 290), “[...] a mesma
psicologia do ego de Hartmann e Kris, cujas implicações
conformistas Adorno havia criticado em outro texto”.
Essas e outras questões, que Martin Jay (2008) esmiúça em
A imaginação dialética, não retiram o caráter de importância para o
entendimento sobre o fascismo que representam, tanto os Estudos
sobre o preconceito como, mais especificamente, La personalidad
autoritária (1965). Esclarece-nos Jay (2008, p. 303),
107
O objetivo fundamental de toda a pesquisa foi explorar um
“novo tipo antropológico”, a personalidade autoritária. Tal
como postuladas, suas características assemelhavam-se às do
tipo de caráter sadomasoquista construída por Fromm nos
Studien. Também havia semelhanças com o chamado tipo J,
desenvolvido pelo psicólogo nazista E. R. Jaensch em 1938,
embora as simpatias dos autores, é claro, fossem muito
diferentes das dele. O tipo J de Jaensch era definido por sua
rigidez inflexível. Seu oposto foi chamado de tipo S, de
sinestesia, a capacidade de confundir os sentidos, que Jaensch
equiparou à insegurança decadente e vacilante da mentalidade
democrática. Houve também uma semelhança notável com o
retrato de um anti-semita delineado por Jean-Paul Sartre no
livro A questão judaica, lançado depois que os trabalhos para A
personalidade autoritária já estavam bem adiantados.
Neste contexto e neste entendimento, contrariando a crítica
de Hyman e Sheatsley, citada anteriormente, não estava em questão
a imputação do preconceito à mera responsabilidade do indivíduo,
desconsiderando o arcabouço sociológico que constitui os
desdobramentos da sociedade capitalista e da história humana. Ao
contrário, não era prerrogativa catalogar o indivíduo autoritário,
nem tampouco determinar sua existência, como esclarece Adorno
(Jay, 2008). Mas, a partir da compreensão do caráter autoritário,
encontravam-se as características que identificavam tal
posicionamento, conforme elenca Horkheimer (apud JAY, 2008, p.
304):
Sujeição mecânica aos valores convencionais; submissão cega à
autoridade, aliada a um ódio cego a todos os oponentes e
pessoas de fora; aversão à introspecção; pensamento
108
rigidamente estereotipado; pendor para a superstição;
desapreço, em parte moralista, em parte cética, pela natureza
humana; tendência à projeção.
Neste sentido, qualquer semelhança com a manifestação
cada vez mais explícita desse tipo de caráter na nossa atual sociedade,
em tempos de extrema-direita e populismo nas democracias atuais,
não nos parece ser mera coincidência. Em outras palavras, as
correlações que se identificavam entre a existência de sujeitos
potencialmente fascistas naquele momento da sociedade do
capitalismo tardio e sua forma de organização socioeconômica, se
manifestam, de forma atualizada e reelaborada, em nossa
constituição social atual pautada pela mentalidade introjetada pelo
modelo do neoliberalismo. Retomaremos esta questão
posteriormente, mas a título de contextualização prévia, conforme
nos elucida Yasmin Afshar, no prefácio de A sociedade ingovernável:
uma genealogia do liberalismo autoritário, de Grégoire Chamayou
(2020, p. 11),
[...] o neoliberalismo é interpretado não apenas como uma
doutrina econômica, mas como uma racionalidade, isto é, uma
lógica subjacente as práticas governamentais. Essa
normatividade neoliberal consiste na generalização da
concorrência nos âmbitos da sociabilidade, linguagem,
ordenamento do Estado e subjetividade.
Ou seja, como racionalidade, o neoliberalismo, mais do que
uma perspectiva econômica de renovação do pensamento liberal na
sua faceta política, é, na realidade, assimilado como modo de vida.
Veremos como isso se estabelece numa profunda relação entre
109
autoritarismo, fascismo e despolitização, em nosso terceiro capítulo,
quando trataremos sobre a atmosfera fascista.
Ainda com relação às observações sobre a crítica de que o
Instituto subvertera a teoria crítica abandonando sua metodologia,
Jay (2008) destaca que no geral se preservava a fidelidade aos dogmas
da mesma e, nesta compreensão, apesar de abandonar a tese de que
a práxis embasava a verificação da teoria, mantinha-se a crítica ao
modelo predominante nas ciências sociais, pautado na indução,
herança do método científico moderno e do pensamento positivista.
Neste entendimento, citando Horkheimer, Martin Jay (2008, p.
304) explica que
As categorias têm de ser formadas por um processo de indução
que é o inverso do método indutivo tradicional, que verificava
suas hipóteses pela compilação de experiências individuais, até
elas atingirem o peso de leis universais. Na teoria social, ao
contrário, a indução deve buscar o universal no particular, não
acima ou além dele. Em vez de se deslocar de um particular para
outro, e depois para os píncaros da abstração, deve mergulhar
cada vez mais fundo no particular e descobrir a lei universal que
existe nele.
Deste modo, não é uma perspectiva subjetivista e de
individuação na categorização da personalidade autoritária o que se
propunha nas entrevistas. Ao contrário, buscava-se a compreensão,
delas advinda, dos elementos potenciais que se encontravam nos
sujeitos a partir do aprofundamento das questões propostas e que
permitiam, não uma universalização dos casos particulares nos
moldes do método indutivo tradicional, puramente quantitativo,
110
mas a percepção dos universais presentes nos entrevistados que
proporcionavam uma análise qualitativa. Assim,
Como nos Studien e no trabalho de Sanford sobre o
pessimismo, o pressuposto básico foi a existência de níveis de
personalidade diferentes, tanto manifestos quanto latentes. O
objetivo do projeto foi expor a dinâmica psicológica que se
expressava, na superfície, em uma ideologia preconceituosa ou
indicava o potencial para sua adoção no futuro (JAY, 2008, p.
305).
Por fim, parece claro que o trabalho desenvolvido em La
personalidad autoritaria (1965), longe de ser a resposta final para as
discussões propostas, apresenta-se como contribuição para as
análises a que nos propomos e que, evidentemente, também não
absolutizaremos a partir do nosso entendimento e da tese aqui
apresentada. Num momento em que se banaliza e muitas vezes não
se considera a perspectiva do fascismo como algo potencial, mesmo
que em novas roupagens, parece salutar recorrer àqueles que, de
modo precursor, se debruçaram sobre a ocorrência de uma forma de
barbárie que não se esgotou. Barbárie não redutível a um momento
histórico apenas, ou a um modelo partidário antipolítico, mas que
se apresenta sempre prenhe numa sociedade que projeta cada vez
mais a administração dos existentes e a manipulação das
subjetividades.
Dadas estas considerações até o presente momento, com a
proposta de apresentar um panorama geral do contexto que
conduziu aos estudos da personalidade autoritária, culminando na
referenciada obra La personalidad autoritaria (1965), concluímos
111
este capítulo. Na continuidade, nos debruçaremos um pouco sobre
o contexto de produção da famosa Escala F, a partir dos elementos
da psicanálise e dos limites do aparato conceitual do marxismo para
os frankfurtianos em seus estudos e entendimentos sobre o fascismo
e o pensamento totalitário.
Evidentemente, não implica tal proposição que a psicanálise
também não tenha seus limites, como será demonstrado
concomitantemente na crítica aos neofreudianos produzida pelo
Instituto. Neste contexto, o que estará em discussão é a construção
de um instrumento importante, a Escala F, na perspectiva da
pesquisa produzida à época para que se pudesse avaliar, com maior
clareza e legitimidade, as manifestações do autoritarismo e a adesão
potencial dos sujeitos, em maior ou menor escala, ao fascismo.
112
113
Capítulo III
Sobre a pesquisa dos frankfurtianos: a inadequação
prévia com o aparato conceitual do marxismo e o papel
da psicanálise na elaboração da Escala F.
Parece significativo que na sociedade de hoje, com suas massas
fascistas integradas artificialmente, exclui-se quase
completamente referência ao amor. Hitler recusou o papel
tradicional do pai amoroso e o substituiu integralmente pelo
negativo da autoridade ameaçadora. O conceito de amor foi
transferido para a noção abstrata de Alemanha e raramente
mencionado sem o epíteto de "fanático", através do qual até
mesmo este amor obteve um círculo de hostilidade e
agressividade contra aqueles que estão fora dele. Um dos
princípios básicos da liderança fascista é manter a energia
libidinal primária em um nível inconsciente, de modo a
desviar suas manifestações de uma forma adequada a fins
políticos. Quanto menos uma ideia objetiva, tal como a
salvação religiosa, desempenha um papel na formação de
massas, e quanto mais a manipulação de massas se torna o
único fim, tanto mais o amor completamente não inibido
precisa ser recalcado e transformado em obediência. Há muito
pouco no conteúdo da ideologia fascista que poderia ser
amado
(ADORNO, 2015, p. 162-163).
Como há muito pouco que possa ser amado no conteúdo da
ideologia fascista ousamos acrescentar, inevitavelmente nada , nos
114
esclarece Adorno haver a necessidade de “manter a energia libidinal
primária em um nível inconsciente”, o que permitirá a manipulação
de tal desejo politicamente e, efetivamente, na perspectiva de recalcá-
lo e transfor-lo em obediência. Neste sentido, denota-se, na
análise adorniana aqui referenciada, o encontro com os elementos
da psicanálise de cunho freudiano diante do fenômeno que, em
determinado momento da história, subverteu toda a lógica e a
expectativa das explicações a partir das tradicionais teorias políticas
ou sociais vigentes. Este fenômeno, alçado ao poder político a partir
do jogo democrático, constituiu-se no modelo totalitário de Estado
no século XX, dando forma ao horror que jamais deveria ter
ocorrido, como expressava Hannah Arendt (2004b). Da concepção
de superfluidade
32
das pessoas para o estabelecimento das “indústrias
da morte”, a manifestação da barbárie, representada por Adorno pela
lembrança de Auschwitz, marcaria nosso mundo para sempre. É o
passado que precisamos constantemente rememorar e elaborar e a
potencialidade de um presente que não podemos permitir que se
repita.
32
Do conceito de superfluidade, trabalhado por Hannah Arendt, trazemos a citação de
Celso Lafer (2018, p. 214-215) para contextualizar a questão: “O totalitarismo [...] é, com
efeito, uma nova forma de governo que, ao almejar a dominação total por meio do uso da
ideologia e do emprego do terror para promover a ubiquidade do medo, fez do campo de
concentração seu paradigma organizacional. Fundamenta-se, assim, no pressuposto de que
os seres humanos independentemente do que fazem ou aspiram, podem, a qualquer
momento, ser qualificados como ‘inimigos objetivos’ e encarados como supérfluos para a
sociedade. Esta convicção, explicitamente assumida pelo totalitarismo, de que os seres
humanos são supérfluos e descartáveis, representa uma contestação frontal à ideia do valor
da pessoa humana enquanto ‘valor-fonte’ da legitimidade da ordem jurídica, tal como
formulada pela tradição, se não como uma verdade, pelo menos como uma conjectura
plausível da organização da vida em sociedade”.
115
É um incômodo e o desafio que se apresentam desde que o
espectro do fascismo cobriu com sua sombra os complexos e
profundos meandros da existência e das condições necessárias para a
nossa convivência humana. Por mais que sejam tentadoras as
perspectivas de simplificação da realidade e o reducionismo
polarizador da vida humana no campo político, ético ou estético,
dialeticamente não há uma síntese final alcançável ou, entendemos,
desejável. Heracletianamente, almejamos um constante devir. Mas é
inconteste que, depois de Auschwitz e do advento da iminência da
guerra nuclear, a expectativa deviriana encontra-se em suspenso e,
mais especificamente, como manifesta possibilidade de nenhum
devir.
Pela ampliação da nossa capacidade de destruição a partir da
barbárie que representa Auschwitz e sua irrupção na história, o alerta
de Adorno nos convoca para a percepção dessa realidade. Portanto,
ao contrário das clássicas teleologias apresentadas ao longo da
história e do pensamento filosófico, o que parece mais plausível e
procedente é que vivemos abandonados a nós mesmos, responsáveis
pelo que fazemos ou deixamos de fazer na compreensão de que
podemos construir ou destruir nossas existências a partir das escolhas
e direcionamentos pelos quais optamos. Exige-se, neste contexto, o
constante exercício e disponibilidade para o insondável, para a
imprevisível, porquanto incontrolável, perspectiva de uma realização
humana que se dê no exercício da liberdade e da construção da
autonomia dos sujeitos. Não encaminhamos com isso o
entendimento para a aceitação da mera casualidade ou da “pura
sorte”, que nos desresponsabilizaria por nossas ações. Nem
Maquiavel (1979), em toda sua análise política sobre o papel da
116
“fortuna”, ousou isso. Ao contrário, somos responsáveis por nossos
projetos humanos. Por isso, não na presunção de um individualismo
exacerbado pelo liberalismo clássico, ou pela anomia dos existentes,
mas pela construção da vida política que implica o encontro dos
homens com os homens na sua singularidade e pluralidade e que, na
proposta democrática, permite construir, pelas fragilidades e
potencialidades, mais do que pelos determinismos e
inexorabilidades, a condição de um mundo mais comum que nos
cabe habitar e preservar.
Neste sentido, como preâmbulo da temática aqui proposta,
já destacamos no capítulo anterior que não podemos prescindir dos
dados das ciências e de suas perspectivas metodológicas e categorias
de análises, seja qual for a perspectiva de compreensão de mundo
que se tenha. Parece-nos indiscutível, entretanto, que, seja de qual
se trate, não alcançamos uma resposta exclusiva desta ou daquela
perspectiva epistêmica para tais questões, tampouco uma condição
de verdade que se conformaria muito mais a uma dogmatização do
pensamento numa perspectiva cientificista do que a uma análise
crítica da realidade. Na linha tênue entre os dogmas do positivismo
e a criticidade do pensamento, entendemos como fundamental a
proposta dos pensadores da Escola de Frankfurt, como nos esclarece
Martin Jay (2008) na abertura do capítulo dois de A imaginação
dialética, intitulado A gênese da Teoria Crítica: “No cerne da teoria
crítica havia uma aversão aos sistemas filosóficos fechados.
Apresentá-la como um destes, portanto, distorceria seu caráter
essencialmente aberto, investigativo e inacabado" (JAY, 2008, p.
83).
117
O que talvez pareça para muitos como fragilidade,
negatividade ou defeito, diante da concepção de se apresentar numa
perspectiva essencialmente aberta, investigativa e inacabada,
aparentemente contrária à tradição, revela-se, no nosso
entendimento, como uma das virtudes da proposta frankfurtiana de
entendimento: dialeticamente, não temos o finalismo ou um
determinismo estabelecido, mas a potencialidade sempre presente
diante de toda e qualquer inexorabilidade que possa ser declarada. É
uma dialética negativa, que não tem as respostas, mas problematiza
a existência. Contra os ufanismos, numa atitude pessimista, mas sem
cair no puro pessimismo, pretende o desnudamento das
contradições, contra o ocultamento. Na perspectiva do
conhecimento, é sabido, buscamos estabelecer sempre uma
ordenação, um cosmos para a realidade muitas vezes caótica que se
apresenta. O princípio ordenador, em si, é compreensível e desejável.
Entretanto, a perspectiva do imprevisível e do impensado promove
sempre, no contexto dialético, nossa singularidade. Nem tudo pode
ser “encaixotado”. Não que não tentemos.
Deste modo, destacamos que, ao apontar para a condição de
uma inadequação prévia com o aparato conceitual marxista para o
desdobramento das pesquisas dos frankfurtianos, entendemos que
não é uma negação dos pressupostos trazidos a partir das análises
econômicas e sociais de Marx e Engels, por exemplo, o que se
determina. Estas são fundamentais. Compreendemos, ao contrário,
que, na análise destes pensadores, não eram suficientes os elementos
e categorias destas análises para responder, como indicamos no
início, à complexidade toda que representa nossa condição e
118
existência humana e, além disso, depois do inusitado, o perigo
constante do espírito totalitário.
Portanto, como também hoje se manifestam na perspectiva
neoliberal elementos que potencializam o surgimento de novos
horrores, não foi obra do acaso ou erro de percurso o horror que
nunca se deve esquecer ou normalizar. Fundamentou-se numa
percepção de mundo que tinha muito pouco ou, efetivamente, como
já destacamos no início deste capítulo, nada a oferecer como projeto.
Entretanto, talvez significasse para alguns naquele momento,
como hoje para os adeptos da extrema-direita e do extremismo
político, a condição de ver manifesta, na representação do seu líder
político, ou do coletivo, que trazia amalgamada a ideia de força, ou
nas palavras de ordem ecoadas como gritos de guerra, mesmo que
irracionais, suas próprias concepções preconceituosas que,
certamente, não seria de bom tom expor publicamente numa
democracia.
Para outros, quem sabe, a colaboração para tal atrocidade foi
a simples apolitia que se manifesta nos que desejam a neutralidade,
condição impossível de se alcançar em qualquer esfera dos assuntos
humanos ou, mais especificamente falando, da política.
Por fim, para alguma parcela pode ter sido o cálculo de que
haveria uma resposta afinal, frente aos problemas sociais ou ao
descontentamento com os políticos e a política vigente, colaborando
para uma mudança extrema, mesmo que perigosa e frontalmente
contrária às suas próprias perspectivas de vida e crença, se realmente
fizessem tal reflexão.
Também permitindo uma guinada extrema ou a aceitação
passiva e sempre permeada por justificativas de que a situação não
119
era tão grave assim, tantos outros contemplaram a corrosão dos
ideais democráticos e de sua apropriação, indébita, por pretensos
“representantes do povo” que, na realidade, não representavam nem
a si mesmos, partindo do pressuposto de que, na democracia, não há
unanimidade e que o que prevalecia era uma estética da destruição,
e não da partilha da vida política.
O fato é que, diante do desafio que se apresentava, da
exacerbação do antissemitismo, no projeto de morte nazista,
extremado ainda mais pela concepção da chamada “Solução Final”,
pela manifestação dos preconceitos raciais, religiosos e sociais, de
forma velada ou explícita, que não só persistiam como sempre
existiram, mesmo nas sociedades democráticas ou anteriormente a
elas, outras hipóteses se apresentaram na busca pelo entendimento.
Parece-nos que, neste contexto, a ousadia dos frankfurtianos merece
consideração. Conservando seus pressupostos marxistas, mas sem
petrificar o conhecimento, a teoria crítica, contudo, continua
avançando naquilo que já explicitamos anteriormente, de forma
aberta, investigativa e inacabada, de certo modo, na linha contrária
a outras propostas que se sustentavam, aparentemente, em uma
teleologia mais arraigada.
Destacando os encontros e desencontros com os freudo-
marxistas, corrente do marxismo que buscava também em Freud o
entendimento da questão paradoxal da “guinada à direita” na
Alemanha, após as expectativas estabelecidas a partir da Revolução
Bolchevique, Rouanet (2001, p. 70) nos apresenta que, a questão,
“o ‘fio vermelho’ que orientava os freudo-marxistas, e até certo
ponto os frankfurteanos em sua primeira fase, era a pergunta: ‘Como
120
é possível que a classe operária pense e aja contra os seus próprios
interesses?’”.
Assim, recorrendo à introdução da Parte I do trabalho de
Sérgio Paulo Rouanet (2001), intitulado Teoria Crítica e Psicanálise,
destacamos a seguinte citação para compreendermos melhor o
contexto:
O trabalho teórico do Instituto de Pesquisa Social só pode ser
compreendido em sua especificidade se confrontado com um
movimento que em parte lhe foi contemporâneo, e com o qual
partilhou um certo número de temas: o movimento freudo-
marxista dos anos vinte e trinta. Essas primeiras tentativas de
integrar o pensamento de Freud e de Marx tiveram como pano
de fundo dois marcos históricos a revolução bolchevista, em
1917, e a chegada de Hitler ao poder, em 1933. Esses dois fatos
condicionaram a forma e as características da recepção de Freud
pelos marxistas (ROUANET, 2001, p. 13).
Por isso, adentrando de forma mais específica a questão até
aqui levantada, destacaremos na sequência as análises sobre a relação
dos frankfurtianos com a psicanálise, o marxismo e seus antecedentes
históricos e correntes de pensamento no período, como os freudo-
marxistas, os limites para a proposta da teoria crítica e os
desdobramentos que os levaram aos desencontros, fosse com a
ortodoxia marxista ou com a utopia dos defensores também de um
finalismo do pensamento freudiano. Neste contexto, abarcaremos os
estudos desenvolvidos sobre a personalidade e os elementos que
fundamentaram a produção da Escala F, em La personalidad
autoritaria (1965) e seus desdobramentos iniciais.
121
Das concepções do marxismo e das diferentes percepções: o
surgimento do Instituto e seus encaminhamentos
Num período fértil para o pensamento de esquerda e
efervescente, considerando-se a proximidade com a Revolução
Bolchevique de 1917 e o término da Primeira Guerra Mundial em
1918, surgiria o Instituto de Pesquisa Social, em 1923,
posteriormente cognominado A Escola de Frankfurt. No contexto do
marxismo vigente à época dos frankfurtianos, inspirador da
Revolução Russa e que propiciara breve momento na Alemanha com
a Revolução de Novembro, convém destacar que o Instituto é
fundado pelo filho de um rico empresário do ramo de comércio de
cereais, o jovem estudante de economia e ciências sociais, nascido na
Argentina, Felix Weil, em parceria com o professor Kurt Albert
Gerlach, um social-democrata de esquerda.
Herdeiro do milionário Hermann Weil, Felix nutria
politicamente a identificação com o pensamento da esquerda e, neste
contexto, fora a Tübingen para estudar com Robert Wilbrandt,
“professor de economia política [...] um dos raros socialistas do
ensino superior na Alemanha e, por esse motivo, detestado por sua
reputação de extrema esquerda em meio a seus colegas da
Universidade” (WIGGESHAUS, 2006, p. 41). A partir do seu
trabalho escrito e publicado, Natureza e caminhos da socialização
(Wesen und Wege der Sozialisierung), Weil foi encorajado por
Wilbrandt a realizar uma tese de doutorado. Defendida em 1920,
foi publicada em 1921, numa série de volumes intitulada Socialismo
Prático (Praktischer Sozialismus), editada por Karl Korsch
(WIGGERSHAUS, 2006).
122
Apesar de sua incursão pelo meio acadêmico, o papel de
Weil, de acordo com Wiggershaus (2006), consumou-se mais como
o de um mecenas de esquerda, num primeiro momento com o apoio
do pai que se regalava, de certo modo, com o reconhecimento no
pós-guerra de ser considerado um “generoso incentivador da
Universidade de Frankfurt e de diversos estabelecimentos de
assistência social” (WIGGERSHAUS, 2006, p. 45), recebendo
posteriormente, inclusive, “o título de doutor honoris causa da
Faculdade de Economia e Ciências Sociais” (WIGGERSHAUS,
2006, p. 45) por ter fundado o Instituto de Pesquisa Social.
Felix Weil, com recursos familiares, “financiou uma parte
essencial das edições Malik em Berlim, em que foram publicados,
entre outros, Geschichte und Klassenbewusstein (História e
consciência de classe), de Georg Luckács” (WIGGERSHAUS,
2006, p. 45), por exemplo, e auxiliou Georg Grosz, artista de
esquerda ligado ao movimento Nova Objetividade (Neue
Sachlichkeit) e pintor do clássico quadro Os pilares da sociedade, que
satirizava, de forma crítica, a conjuntura alemã no entre guerras, em
que já se destacava a ascensão do Partido Nazista, que culminaria na
barbárie que se abateria sobre a Europa
33
. Proporcionou ainda outros
auxílios financeiros a outras pessoas, algumas ligadas ao partido
33
De acordo com Eva Afonso (2013), “Foi nesta Europa destruída, que passou de credora
a devedora de outras partes do mundo e na ineficaz República de Weimar (Alemanha) que
nasceu um novo movimento artístico - a Nova Objectividade (Neue Sachichkeit) de que
G. Grosz fez parte. Este movimento opunha-se à arte emocional expressionista e à
abstracção cubista e construtivista. Os artistas alemães da Nova Objectividade assumiram,
neste período de pós-guerra, uma abordagem política mais aberta através de trabalhos
mordazes e caricaturais que denunciavam a situação social vivida durante a República de
Weimar”. Disponível em: http://pintaraoleo.blogspot.com.br/2013/02/observando-um-
quadro-de-george-grosz-n.html.
123
comunista alemão, investiu na divulgação da teoria marxista e na
organização, juntamente com Karl Korsch, da Marxistisch
Arbeitswoche (Semana de trabalho marxista), que acabou se
constituindo como predecessora da fundação do Instituto de
Pesquisa Social. A Weil coube o financiamento do encontro. Sobre
esta semana, de acordo com Wiggershaus (2006, p. 47-48),
Havia pouco mais de vinte participantes, que incluíam, entre
outros (além dos organizadores e suas esposas), Georg Lukács,
Karl August e Rose Wittfogel, Friedrich Pollock, Julian e Hede
Gumperz, Richard e Chirstiane Sorge, Eduard, Ludwig e
Gertrud Alexander, Béla Fogarasi e Kuzuo Fukumoto. Eram
todos intelectuais, em sua maioria doutores. Quase todos
colaboravam com o partido comunista. [...] Quase a metade
dos participantes teve algo a ver, mais tarde, com o Instituto de
Pesquisas Sociais, de uma forma ou de outra. Esse encontro
constituía, de fato e nitidamente, uma espécie de “primeiro
seminário sobre a teoria” [...] do Instituto de Pesquisas Sociais
o trabalho mais impressionante e de melhor resultado do
mecenas de esquerda Felix Weil.
Weil certamente era um idealista. Buscava realizar alguma
coisa pela teoria marxista, mas se via diante de um contexto na
Alemanha naquele momento em que “o partido comunista alemão,
[...] em sua primeira fase, não estava ainda determinado pelos
objetivos da União Soviética e a via bolchevista rumo ao socialismo”
(WIGGERSHAUS, 2006, p. 46). Neste sentido, o encontro com
Gerlach, o tipo de intelectual universitário que entendia que a
liberdade da ciência e todo interesse prático de supressão radical da
miséria não se dissociavam, faz coro ao desejo de Felix Weil de
124
institucionalizar a discussão apresentada pelo marxismo “para além
das limitações da ciência burguesa e da estreiteza de espírito
ideológico de um partido comunista” (WIGGERSHAUS, 2006, p.
48). Tem-se o caldo para a inspiração do Instituto e para a
consumação da expectativa de Weil. E, assim, faz jus à chamada que
abre o capítulo I da obra A Escola de Frankfurt, de Wiggershaus
(2006, p. 41): “O filho de milionário Felix Weil funda um Instituto
para o marxismo na esperança de poder entregá-lo um dia a um
Estado soviético alemão triunfante”.
Evidentemente, tal esperança ficou limitada à Weil,
conforme demonstra a história posterior do Instituto. Mas podemos
considerar que apresenta as bases do pensamento marxista que
permeará as discussões dos frankfurtianos e permitia partir do
entendimento e da identificação, quando da direção de Max
Horkheimer o surgimento da teoria crítica.
Sem nos delongarmos no contexto de organização
burocrática e nos esforços e estratégias utilizadas por Felix Weil e
Kurt A. Gerlach para consumar a instalação do Instituto, bem
tratadas por Wiggershaus (2006), queremos apenas destacar, do
texto do próprio pesquisador, a seguinte observação:
As razões determinantes do sucesso de Weil e Gerlach em seu
projeto de um instituto ligado à Universidade, mas
independente dela e diretamente ligado ao ministério, foram a
boa vontade do apoio ministerial e, principalmente, a
generosidade da doação do fundador numa época de miséria e
restrições financeiras. Os Weil estavam prontos a financiar a
construção e instalação do Instituto, a pagar um crédito anual
de 120.000 marcos, a ceder os andares mais baixos à Faculdade
125
de Ciências Econômicas e Sociais, e, mais tarde, até a custear as
despesas da cátedra que o diretor do Instituto ocupava naquela
faculdade (WIGGERSHAUS, 2006, p. 51).
Diante dessa conjuntura, nascia o Instituto de Pesquisa
Social, na cidade de Frankfurt. Na perspectiva de seu projeto,
certamente, Weil conseguiu organizar de tal modo os procedimentos
e definições que culminariam na escolha do diretor do Instituto que,
apesar de ser este obrigatoriamente nomeado pelo ministro da
Educação e Cultura, cabia à Sociedade para a Pesquisa Social, criada
para apoiar a Fundação Weil, a definição do nome. Presidida pelos
Weil e constituída basicamente por nomes conhecidos e próximos a
estes, como o próprio Gerlach e já, neste tempo, Horkheimer, “Felix
Weil pôde decidir quem seria o diretor e, assim, como o diretor
poderia conduzir o Instituto de forma quase ditatorial”
(WIGGERSHAUS, 2006, p. 53), além de definir a linha filosófica
que prevaleceria. Isto permitiu ao Instituto permanecer mais à
esquerda no espectro político, dissonante em certo sentido dos
outros dois Institutos da época, o Instituto de Pesquisa Sociológica
(Forschungsinstitut fur Sozialwissenschaften), de Colônia e o
Instituto para a economia mundial e a navegação, fundado em Kiel
(WIGGERSHAUS, 2006).
Com a expectativa de que o amigo e co-fundador do
Instituto, Kurt Gerlach, fosse o primeiro diretor, não contava Weil
com a morte prematura deste em 1922, ainda com 36 anos. As
opções recaem inicialmente em Friedrich Pollock e Max
Horkheimer, ambos com o doutoramento concluído. Mas, naquele
momento, não poderiam ser alçados a tal condição, mesmo que
desejassem, pois seus nomes encontrariam rejeição. Weil busca
126
diálogo com Gustav Mayer, social-democrata, mas não vislumbra a
possibilidade de avançar num mesmo projeto, pensando na
competência que caberia ao diretor. Por fim, encontra em Carl
Grünberg a figura desejada para o cargo. Como esclarece
Wiggershaus (2006, p. 55),
Felix Weil [...] tinha encontrado, na pessoa de Grünberg, um
diretor de Instituto que era tanto um marxista convicto como
um sábio reconhecido. A Faculdade de Economia e Ciências
Sociais se desenvolveu muito bem com Grünberg e, no começo
de janeiro de 1923, decidiu propor ao ministro a nomeação de
Grünberg para a cátedra de ensino sobre pesquisa social, que
deveria ser fundada pela Sociedade para ensinar ciências
políticas e sociais. Weil, dificilmente teria podido encontrar
alguém mais de acordo com seus planos. Korsch e Lukács, se
estivessem prontos para assumir a direção do Instituto de
Frankfurt, não poderiam fazê-lo, porque seu comunismo
politicamente ativo teria provocado protestos veementes na
universidade inteira. Um professor socialista como Wilbrandt,
que já interpretara Marx e o marxismo anteriormente com
muita sagacidade, mas desaprovava ambos agora, e, em
consideração ao nascimento da República de Weimar, depois
do inverno da revolução, tendia para a acomodação, não teria
correspondido nem de longe às concepções ideológicas e
políticas de Weil.
Neste contexto, Grünberg assume a direção do Instituto e,
frente ainda à atualidade da discussão do comunismo e da revolução,
passaria a imprimir seu ritmo e expectativas quanto à função e aos
trabalhos a serem desenvolvidos pela instituição em acordo com sua
percepção do marxismo. A tarefa de Grünberg não era simples, pois,
127
apesar da expressividade do partido comunista, havia a
discriminação com referência aos professores que se declaravam
socialistas na área da pesquisa, para citar um exemplo da questão.
Neste sentido,
O trabalho de Grünberg, a partir dessa situação, não consistia
nem em tentar discretamente introduzir o marxismo no seio
das universidades, como era o sonho de Felix Weil, nem em
tentar discutir publicamente seus problemas, como se
propunha Max Weber. O que Grünberg fez significava: pedir,
com segurança, que se concedesse a um pesquisador marxista o
que era normal para os outros, isto é, que sua concepção
filosófica não fosse, logo à primeira vista, transformada em
medida de sua seriedade científica (WIGGERSHAUS, 2006,
p. 60).
Ou seja, o respeito à pluralidade do pensamento e das opções
filosóficas não era uma determinante na universidade alemã.
Quebrar o preconceito seria fundamental para garantir à perspectiva
marxista o respeito que era dado às outras propostas acadêmicas no
campo da ciência. No entanto, apesar da dificuldade diante da
perspectiva apresentada, o Instituto foi frutífero no período
Grünberg. Diversos colaboradores, bolsistas, defesas de teses e
produção de revistas, além da participação do Instituto na
“realização da primeira edição histórico-crítica das obras de Marx e
Engels” (WIGGERSHAUS, 2006, p. 63), foram algumas das
contribuições na época. Diante do desafio inicial, para entendermos
o legado de Grünberg, citamos novamente Wiggershaus (2006, p.
66):
128
Ele havia criado, em Frankfurt, uma situação que era única em
seu gênero, no ensino superior alemão e não apenas alemão.
O marxismo e a história do movimento operário podiam
doravante ser ensinados e estudados na universidade, e quem o
desejasse podia também defender tese sobre esses temas. Havia,
a partir de então em Frankfurt, um professor titular de ciências
econômicas e sociais que era reconhecidamente marxista. Havia
um Instituto ligado à Universidade cujo trabalho era
especificamente dedicado à pesquisa sobre o movimento
operário e o socialismo de um ponto de vista marxista, e no
qual, marxistas como Karl Korsch ou marxistas austríacos como
Max Adler, Fritz Adler e Otto Bauer podiam fazer conferências.
Os dois assistentes do Instituto, Fritz Pollock e Henryk
Grossmann, davam ciclos de palestras como assistentes na
Faculdade de Ciências Econômicas e Sociais da Universidade,
onde defenderam suas teses, Grossmann em 1927, Pollock em
1928, e onde Grossmann recebeu uma cátedra em 1930. A
edição das obras de Marx e Engels foi reconhecida de fato como
um dos trabalhos científicos que faziam parte das tarefas da
Universidade.
Dado o contexto de início, ocorreu realmente um grande
avanço para o período. Além disso, como ruptura de um paradigma,
estava “o fato de que um instituto ligado à Universidade contasse,
em suas fileiras, com uma maioria de colaboradores e doutorandos
de filiação comunista” (WIGGERSHAUS, 2006, p. 66), o que era
ainda um caso único. Mas isso não implicava uma unanimidade de
pensamento. Conforme esclarece Wiggershaus (2006, p. 66),
concluindo sua observação,
129
Eles pertenciam, aliás, a grupos diversos, que nem sequer eram
todos respeitados no seio do partido comunista. Havia
“korschistas”, ou melhor, trotskistas, que eram a favor do
comunismo, mas recusavam considerar comunista a versão
soviética podemos citar Heinz Langerhans, Kurt Mandelbaun
e Walter Bichahn; os brandlerianos [Brandlerianer], que
optavam por uma colaboração com a social-democracia e por
soluções de transição como Ernst Frölich e Klimpt; os
membros do partido que seguiam (ainda) a linha (e portanto as
mudanças de linha) do partido que, naquele meio tempo, se
tornara stalinista Fritz Sauer, Paul Massing, Willy
Strzelewicz, Karl August Wittfogel.
Apesar dessas conquistas e da intensidade do momento,
Grünberg teve que se afastar da direção do Instituto por causa de
um ataque cardíaco, em 1928, completando um período de três anos
e meio como diretor. Nessa conjuntura, assumiria Max Horkheimer
que, ainda praticamente desconhecido até aquele momento, tornar-
se-ia uma das mais importantes influências com referência aos
pensadores da Escola de Frankfurt no exercício de sua função.
Seriam estabelecidas também, algumas dissenções com a ortodoxia
marxista e o encontro com a psicanálise, de forma mais efetiva sob a
condução de Horkheimer. Tais direcionamentos já transparecem no
seu discurso inicial ao assumir como diretor. Segundo Wiggershaus
(2006, p. 71),
O tom próprio de Horkheimer era [...] determinado pela
esperança implícita de que, por conhecimentos efetivos, em vez
das ideologias sublimantes, pudessem servir ao homem como
meios para introduzir o sentido e a razão no mundo. Era um
tom intermediário entre aquele do jovem Marx, falando a
130
respeito da realização da filosofia pela ação libertadora do
proletariado, e o de Freud idoso, referindo-se aos modestos
progressos da ciência, ainda recente na escala da história
humana, que escrevia, em 1927, em O Futuro de uma Ilusão:
“Já é alguma coisa, de qualquer modo, alguém saber que está
entregue a seus próprios recursos. Aprende a fazer um emprego
correto deles... Afastando suas expectativas em relação a um
outro mundo e concentrando todas as energias liberadas na
Terra (o homem) provavelmente conseguirá alcançar um
estado de coisas em que a vida se tornará tolerável para todos, e
a civilização não mais será opressiva para ninguém”.
Portanto, a partir de Horkheimer, ocorre uma guinada na
proposta do Instituto, o que gera certo incômodo aos que estavam
mais próximos de Grünberg, num primeiro momento. Se, no
período anterior, ficara clara e pública a orientação marxista dada ao
Instituto, neste novo tempo
[...] Horkheimer tentava superar a crise do marxismo,
associando-a aos desenvolvimentos modernos no campo da
ciência e da filosofia “burguesas” e tomando como pano de
fundo a renúncia de Max Weber e Heidegger a toda
especulação sobre um sentido preexistente da história e uma
essência supra-histórica do homem. Horkheimer estabelecera o
nexo, construído por Korsch e Lukács, dos elementos
filosóficos do marxismo à introdução, feita por Scheler, da
totalidade do saber empírico na filosofia (WIGGERSHAUS,
2006, p. 71-72).
Já não se tratava apenas da repetição de uma proposta
amparada na ortodoxia do marxismo, ou de firmar uma opção
teórica, como pensavam Grünberg e Weil, mas, a partir deste
131
momento, ampliavam-se a percepção e o escopo na perspectiva de,
num exercício potencialmente dialético e crítico, avançar nas
pesquisas e propostas do Instituto para além da proposta marxista.
Inclusive, para tanto, retomando suas origens. No confronto com as
proposições do marxismo ortodoxo, criava-se, na realidade, um novo
potencial para a teoria marxista, que, de certo modo, começava a se
adequar em sua ânsia por reconhecimento científico, aos mesmos
parâmetros do modelo positivista ou, por outro lado, a encontrar-se
limitada à ideologização também em seu fechamento a partir das
determinações do Partido e do marxismo soviético. Neste contexto,
a aproximação com a psicanálise oferecia oportunidades para a busca
de outros entendimentos que pudessem enriquecer os fundamentos
do próprio marxismo. Esclarece-nos Deroche-Gurgel (apud
WIGGERSHAUS, 2006, p. 29) que,
O problema eterno de uma teoria marxista consiste
efetivamente em explicar por quais mecanismos ideológicos as
classes exploradas são levadas a aceitar sua exploração. Essa
atração pela psicologia social é evidentemente reforçada pela
novidade científica da época, a psicanálise, que promete uma
apreensão direta dos verdadeiros fundamentos da atitude
individual.
A proporção do problema citado pode ser contemplada a
partir das observações levantadas por Rouanet (2001) em suas
análises sobre a questão dos paradoxos que se apresentavam na
avaliação dos marxistas, na época, referentes a dois momentos
cruciais para os fundamentos do marxismo. O primeiro, referia-se às
eleições na Alemanha em 1925, que culminaram com a ascensão de
132
Hitler ao poder em 1933, num processo contrarrevolucionário e, o
segundo, debruçava-se sobre o êxito da revolução socialista na União
Soviética, um país essencialmente agrário, economicamente
atrasado, e com uma classe operária praticamente insignificante.
Exatamente o contrário da Alemanha, já altamente industrializada.
Neste sentido, como explicar objetivamente, proposta da ortodoxia
marxista, que a revolução não ocorreu no país europeu que,
teoricamente, apresentava as condições para sua realização e, ao
contrário, encontrou, sua efetividade, naquele momento, num país
que não reunia as condições para tal? O campo da subjetividade,
neste entendimento, manifesta-se como perspectiva inevitável para
uma busca pelo entendimento. Conforme Rouanet (2001, p. 14,
grifos do autor),
Nos dois países houve um descompasso entre os fatores
objetivos e os subjetivos, e nos dois revelou-se a significação
estratégica do polo subjetivo num caso, impondo-se
voluntaristicamente, a uma realidade historicamente imatura, e
no outro recuando diante de uma conjuntura socioeconômica
favorável.
Diante dos dois contextos apresentados, há evidentemente
algumas considerações que podem ser destacadas para o
entendimento do encontro com a psicanálise, tanto na União
Soviética, quanto para os freudo-marxistas, naquele momento, e,
para entendermos, em breve, os encaminhamentos que também
adotariam os frankfurtianos, já sob a direção de Horkheimer.
De acordo com Rouanet (2001), no caso soviético, a
explicação não demandava muitas e prolongadas teorizações. Havia
133
que se considerar que, no fim das contas, o desfecho da revolução
fora favorável aos operários, ficando em acordo com os interesses da
classe, apesar de sua apatia, se considerada a tese da revolução do
proletariado. Ou seja, a ação da classe operária teria sido estritamente
racional ou, se pensarmos na terminologia dos frankfurtianos para
esse uso da razão, pragmática. Contudo, na questão alemã, o dilema
se apresenta com maior profundidade em função da inversão
ocorrida. Acompanhemos o pensamento de Rouanet (2001, p. 14):
Ao votar por Hindenburg, e mais tarde por Hitler, o
proletariado alemão agia num sentido diametralmente oposto
aos seus interesses de classe. Sua ação era irracional, na acepção
mais estritamente weberiana. As explicações oferecidas pelo
marxismo vulgar eram insuficientes. A questão não estava em
saber se a socialdemocracia tinha, ou não, iludido os operários,
mas em saber porque estes se tinham deixado iludir, nem em
saber se a propaganda burguesa era ou não eficaz, mas em saber
porque a contrapropaganda marxista era ineficaz. A resposta
que se impunha era que a ideologia burguesa havia penetrado
profundamente a consciência proletária, e que diante da
radicalidade dessa ideologização a luta antifascista estava
condenada ao fracasso. Mas como explicar a força da ideologia,
que aparentemente não se deixava dissolver nem pela
experiência objetiva da pauperização, que deveria impulsionar
a classe operária para posições crescentemente avançadas, nem
pela verdade “irrefutável” da doutrina marxista, que
encontrava, nessa pauperização, a prova histórica de uma de
suas leis imanentes?
Conclui Rouanet (2001, p. 14), neste contexto, que
134
A psicanálise, enquanto doutrina do funcionamento psíquico
da ação irracional, parecia oferecer os instrumentos para a
compreensão do enigma. Se a ideologia era tão tenaz, não seria
porque derivava sua força de persuasão de mecanismos afetivos,
irredutíveis a argumentação racional, mas acessíveis, em sua
estrutura profunda, às categorias explicativas da psicanálise?
Podemos dizer que, em geral, o freudo-marxismo do período
de entreguerras articulou-se em torno dessa questão.
Podemos compreender, a partir das análises apresentadas,
esta é nossa percepção, que havia que se buscar respostas que, num
primeiro momento, poderiam conflitar com a doutrina marxista das
condições objetivas materiais que, dependendo da perspectiva,
poderia não ser interessante considerada a efetividade da revolução
na União Soviética. É evidente, contudo, que o problema se
ampliava a partir da tese de que a revolução deveria chegar ao mundo
todo, o que implicaria, portanto, tratar da questão que, com certeza,
ocorreria em outras realidades para além da vitória conquistada no
território soviético.
Neste incômodo, sintetizado quase que prioritariamente
pela questão de como explicar a onipotência da ideologia burguesa,
servindo-se da psicanálise e de seus mecanismos, surge um grande
interesse e simpatia pela disciplina na União Soviética. Num
primeiro momento, de forma muito livre e sob os auspícios de
Lenin, a psicanálise encontra espaço no Estado soviético. É o
momento da “revolução cultural” em que, conforme anota Rouanet
(2001), se levou muito a sério a missão de gerar um homem novo,
criando condições para uma vida nova. A educação assumia uma
orientação psicanalítica, os projetos do Estado conduziam-se na
135
perspectiva de transformação pelo viés da subjetividade da
psicanálise. Freud é traduzido para o russo e instalam-se consultórios
dedicados à psicanálise em Moscou. Neste período, na Hungria, sob
o governo de Bela Kun, cria-se uma cadeira dedicada à psicanálise
na Universidade de Budapeste. A psicologia social alçava seus voos.
Com a morte de Lenin, contudo, uma inversão ocorre na
perspectiva proposta e o Partido começa a determinar suas
concepções. A ortodoxia se coloca numa proposição doutrinal e
dogmática, gerando um problema para os freudo-marxistas alemães,
pois estes continuavam com as questões presentes e que não se
modificaram na Alemanha. Veremos que, apesar da dissonância
observada por estas percepções e regramentos que serão
determinados basicamente pela força do Partido a partir da III
Internacional, os freudo-marxistas continuariam próximos da
psicanálise, mas não romperiam com a ortodoxia do marxismo, o
que caberá aos pensadores da Escola de Frankfurt.
Para entender melhor essa guinada na União Soviética,
destacamos o seguinte fragmento de Sérgio Paulo Rouanet (2001, p.
15-16):
Com a morte de Lenin, cessaram essas experiências culturais. A
psicanálise foi banida, substituída inteiramente pela
reflexologia de Pavlov. O marxismo transformou-se em religião
de Estado o “marxismo soviético”. Os textos básicos dessa
nova visão do mundo eram o Materialismo e Empiriocriticismo,
de Lenin, aparecido em 1908, a Dialética da Natureza, de
Engels, publicada em 1925, e os Cadernos Filosóficos, de Lenin,
aparecidos em 1929-1930. O materialismo dialético era a
metodologia científica geral, a diatica da natureza, a
metodologia das ciências naturais (nas quais se incluía a
136
psicologia) e o materialismo histórico, a ciência das formações
socais específicas. A ciência natural ou histórica era um
reflexo da realidade objetiva. O homem podia utilizar suas leis,
mas não podia modificá-las. O mundo histórico, como o
mundo físico, eram regidos por leis imutáveis. Leis redutíveis,
em última análise, às das ciências naturais. Segundo Dahmer,
“o marxismo soviético é o resultado das transformações da
crítica marxista à pseudonatureza social numa justificativa
ideológica, baseada numa pseudociência natural, da ditatura
burocrática”. O Estado soviético é o guardião do saber total.
Saber que tem a objetividade e a imutabilidade dos processos
físicos. O que leva Dhamer a dizer que a burocracia estalinista
é o órgão, não da história humana, mas da história natural.
Classe já no poder, a burocracia soviética usa o marxismo como
ideologia legitimadora, e não como teoria crítica. Ao incluir o
marxismo entre as ciências naturais, anula seu potencial
subversivo. E no mesmo movimento em que exorciza o
marxismo enquanto teoria crítica, exorciza a psicanálise
ideologia “burguesa” que não se enquadra, como a
reflexologia, no universo estático das ciências naturais.
Na contramão, entretanto, permaneceram os freudo-
marxistas alemães nos anos 20 e 30 com o intuito de resolver, de
forma prática, o problema que se delineava pela “defasagem entre a
consciência política e as condições objetivas” (ROUANET, 2001, p.
17), o que os levou ao cientificismo positivista, dada a necessidade
estratégica de não confrontar com o Partido e tão pouco se colocar
em desavença com as propostas da III Internacional que, neste
sentido, já explicitavam o ataque à psicanálise.
Para Rouanet (2001, p. 16-17),
137
[...] os marxistas alemães não tinham as mesmas razões que os
ideólogos da III Internacional para suprimir a psicanálise.
Enquanto para estes se tratava de silenciar qualquer teoria
crítica sociológica ou psicológica o importante, para os
intelectuais alemães, era procurar as razões da falência do
movimento revolucionário, e somente uma teoria crítica, como
a psicanálise, enxertada num marxismo não totalmente privado
do seu potencial contestador, poderia elucidar os mecanismos
da capitulação proletária. Ao mesmo tempo, era preciso
defender a psicanálise no próprio terreno em que ela era
atacada, isto é, refutar as acusações de que o freudismo era uma
filosofia idealista com a afirmação de que, pelo contrário, a
psicanálise era uma ciência materialista, e responder às
tentativas de excluí-la do campo das ciências naturais com a
tentativa correlata de mostrar que mais que qualquer outra
psicologia, a psicanálise podia aspirar ao estatuto de ciência
natural.
Neste intento, efetivamente, o freudo-marxismo busca
manter sua fidelidade à doutrina e, ao mesmo tempo, subvertê-la.
Na manutenção das análises a partir da ortodoxia, sustentaram,
porém, sua preservação, mas desembocaram nos moldes do
cientificismo, pois, no esforço da preservação do sistema, não
avançaram nas críticas que se faziam necessárias. Tão pouco
percebiam, neste entendimento, que avançavam com a concepção
da psicanálise nos mesmos moldes, pretendendo garanti-la a todo
custo, mesmo diante da explícita condenação do Partido pela sua
ideologização do marxismo.
Não nos ateremos aqui ao aprofundamento das discussões
do freudo-marxismo nesta perspectiva, considerando como
suficiente a demarcação até o presente, da base que sustentava o
138
entendimento destes com relação à psicanálise e que encontrará
dissonâncias com o pensamento dos frankfurtianos. Para maiores
aprofundamentos das questões do freudo-marxismo, indicamos a
consulta neste ponto específico ao trabalho de Sérgio Paulo Rouanet,
Teoria crítica e psicanálise (2001), com certeza já bastante conhecido
e utilizado no meio acadêmico e do qual continuaremos nos
servindo também para nossas discussões.
Interessa-nos, portanto, na continuidade de nossa reflexão,
contextualizar um pouco mais o caminho adotado pelo Instituto no
encontro com a psicanálise e sua desvinculação da ortodoxia
marxista. Neste contexto, convém assinalar que a compreensão dos
frankfurtianos com relação ao marxismo, já no período Grünberg,
vinha ao encontro de uma perspectiva de “recuperação das raízes
hegelianas do pensamento de Marx pelos próprios marxistas” (JAY,
2008, p. 84). Tal proposta, adiada para quando acabasse a Primeira
grande Guerra, contemplava a tese de que “a teoria marxista da
sociedade, [...] apesar (ou talvez por causa) de suas pretensões
científicas, havia degenerado em uma espécie de metafísica não
muito diferente daquela que o próprio Marx se dispusera a
desmantelar” (JAY, 2008, p. 84). Manifestava-se, neste sentido, a
pretensão de recuperar a dimensão filosófica do marxismo que, na
ortodoxia dos adeptos da Segunda Internacional não encontrava
espaço diante do materialismo mecanicista.
Apesar da ação dos marxistas ou pensadores contrários a este
reducionismo do pensamento de Marx, nos explica Martin Jay
(2008, p. 84) que, “quando, por essa ou aquela razão, seus esforços
vacilaram, a tarefa de revigorar a teoria marxista foi primordialmente
assumida pelos jovens pensadores do Institut für Sozialforschung”.
139
Por isso, continuando seu raciocínio, afirma Jay (2008, p.
84-85) que,
Até certo ponto, portanto, pode-se dizer que a Escola de
Frankfurt reencontrou os interesses dos hegelianos de esquerda
da década de 1840. Tal como aquela primeira geração de
teóricos críticos, seus membros se interessaram pela integração
da filosofia à análise social. Interessaram-se também pelo
método dialético concebido por Hegel e, tal como seus
predecessores, procuraram transformá-lo em direção ao
materialismo. E, tal como muitos hegelianos de esquerda,
interessaram-se particularmente em explorar a possibilidade de
a práxis humana transformar a ordem social (JAY, 2008, p. 84-
85).
Entretanto, resgatar o pensamento do jovem Marx não
significava simplesmente retomá-lo descontextualizado, mas
compreendê-lo em seu contexto à época e perceber a necessidade de
sua atualização em sua perspectiva crítica, considerando o tempo que
transcorrera e a recusa que, de certo modo, se apresentava no
marxismo ortodoxo. Para Jay (2008, p. 85),
Os hegelianos de esquerda tinham sido os sucessores imediatos
dos idealistas clássicos alemães. Mas a Escola de Frankfurt
estava separada de Kant e Hegel por Schopenhauer, Nietzsche,
Dilthey, Bergson, Weber, Husserl e muitos outros, para não
mencionar a sistematização do próprio marxismo. Como
resultado, a teoria crítica teve de se afirmar contra uma profusão
de correntes que haviam afastado Hegel desse campo. E, é claro,
não pôde deixar de sofrer a influência de algumas ideias deles.
Mais importante, porém, foi que mudanças vitais nas condições
140
sociais, econômicas e políticas entre os dois períodos tiveram
repercussões inconfundíveis no ressurgimento da teoria crítica.
Aliás, de acordo com suas premissas, isso era inevitável.
Ou seja, o contexto dos hegelianos de esquerda, da década
de 1840, em comparação com os frankfurtianos, na década de 1930
era evidentemente bem diferente e, inevitavelmente, levaria à
exigência de uma teoria crítica que não se limitasse às imposições e
determinações dos representantes do próprio marxismo que
predominava no tempo da Escola de Frankfurt. Há que se destacar,
entretanto, que o processo formativo dos frankfurtianos foi,
teoricamente, muito mais plural e conflitante. Provavelmente por
isso, mais crítico com relação a pretensos reducionismos filosóficos
que se apresentavam numa formação mais alinhada
conceitualmente, como ocorrera com a ortodoxia marxista. Por isso,
conforme Martin Jay (2008, p. 83),
[...] a teoria crítica, como diz o nome, expressava-se por uma
série de críticas a outros pensadores e tradições filosóficas. Seu
desenvolvimento deu-se pelo diálogo. Sua gênese foi tão
dialética quanto o método que ela propunha aplicar aos
fenômenos sociais. Só podemos compreendê-la plenamente se
a confrontarmos em seus próprios termos, como uma crítica
instigante de outros sistemas.
Desta forma, atentos aos movimentos e sinais dos tempos e
momentos históricos, e cientes de que uma teoria crítica não
coaduna com a constituição de um sistema filosófico fechado, os
filósofos de Frankfurt ousaram avançar para além das categorias
clássicas de análise, seja por seus limites, seja por se encontrarem
141
petrificadas no interior de uma filosofia que se pretendia
absolutamente verdadeira. No seu contexto dialético, como crítica
de outros sistemas, a teoria dos frankfurtianos é gestada não como
verdade ou exclusivismo. Tão pouco absolutismo. Por isso, a crítica
ao marxismo não implicava a negação dos pressupostos marxistas
que permeavam seus pensamentos. Ao contrário, explicitava sua
existência e a compreensão de que não se domesticava o potencial
dialético em seus próprios fundamentos. Por isso diferiam as análises
dos frankfurtianos quanto aos freudo-marxistas, no momento em
que, os primeiros, transcendiam os limites da objetividade apregoada
pelo marxismo que divorciara Marx de sua perspectiva filosófica e
reduzira a teoria marxista a uma perspectiva cientificista.
Retomando a identificação dos pensadores da Escola de
Frankfurt com o hegelianismo de esquerda, inicialmente, é
interessante resgatar que
Os hegelianos de esquerda escreveram em uma Alemanha que
mal começava a sentir os efeitos da modernização capitalista.
Na época da Escola de Frankfurt, o capitalismo ocidental,
tendo na Alemanha um de seus principais representantes, havia
entrado em uma etapa qualitativamente nova, dominada por
monopólios crescentes e por uma intervenção governamental
cada vez maior na economia. Os únicos exemplos reais de
socialismo à disposição dos hegelianos de esquerda tinham sido
umas poucas comunidades utópicas isoladas. A Escola de
Frankfurt teve a ambígua experiência da União Soviética para
examinar. Por fim, e talvez em termos mais cruciais, os
primeiros teóricos críticos viveram em uma época em que uma
nova força negativa(isto é, revolucionária) na sociedade - o
proletariado - começava a se agitar, uma força que podia ser
142
vista como o agente que realizaria a sua filosofia. Na década de
1930, porém, os sinais da integração do proletariado à
sociedade eram cada vez mais visíveis; para os membros do
Institut, isso ficou ainda mais claro depois da emigração para os
Estados Unidos. Portanto, pode-se dizer da primeira geração de
teóricos críticos da década de 1840 que a deles foi uma crítica
"imanente" da sociedade, baseada na existência de um sujeito
histórico real. Quando de seu renascimento no século XX, a
teoria crítica foi cada vez mais forçada a uma posição de
transcendência, pelo enfraquecimento da classe trabalhadora
revolucionária (JAY, 2008, p. 85).
Neste contexto, lembrando o que já apresentamos,
destacamos a constatação de que havia uma questão básica que
norteava tanto freudo-marxistas quanto os frankfurtianos na
primeira fase do Instituto, que era entender como podia a classe
operária pensar e agir contra seus próprios interesses (ROUANET,
2001). No caso do Instituto, passado o primeiro momento, com o
estabelecimento da fase que significaria a direção de Horkheimer, há
uma readequação da questão. Conforme nos esclarece Rouanet
(2001, p. 70), “a pergunta correspondente, para a Escola de
Frankfurt, passou a ser a seguinte: ‘como é possível que a maioria da
população, nos países industrializados do Leste e do Oeste, pense e
aja num sentido favorável ao sistema que os oprime’?.
Ou seja, o que se coloca para os frankfurtianos, a partir desta
reelaboração da questão, passa pela percepção do momento
histórico, segundo Rouanet (2001), considerando que a primeira
formulação ocorrera num período em que o sistema capitalista ainda
não assimilara a classe operária completamente, conservando o
marxismo sua ortodoxia de tal modo que não era possível pensar a
143
revolução sem a perspectiva da classe operária como sua
indispensável força motora. No caso da preocupação que permeia o
momento dos frankfurtianos, a assimilação da classe operária era
compreendida como inevitável e a revolução, entendia-se, deveria
acontecer por responsabilidade de outros agentes históricos. A
primeira percepção encontrava respaldo na grande Crise de 1929,
que levou à depressão econômica. Já a segunda, baseava-se na
observação do contexto do pleno emprego, mesmo que relativo, mas
representativo demais para a sustentação intocável da ortodoxia pura
e simplesmente. Esta segunda fase nos Estados Unidos, ocorrida
durante a guerra, culminava ainda com a percepção de uma
sociedade em que se apresentava a abundância, manifesta logo após
o término do conflito mundial. Neste sentido, esclarece-nos
Rouanet (2001, p. 70-71), que
[...] essa diferença histórica traduziu-se numa verdadeira
mutação teórica. O que parecia uma simples diferença de grau
ampliação da faixa da falsa consciência, antes limitada à classe
operária, até abranger praticamente a totalidade da população
revelava-se uma alteração qualitativa do próprio conceito de
opressão. Não somente as vítimas da opressão se modificam,
mas também seu conteúdo. Na época da grande Depressão, o
enigma consistia em que a população materialmente
pauperizada dizia sim ao sistema responsável por essa
pauperização. No fim dos anos 40 e 50, a pauperização não
podia mais ser definida em termos materiais. Ao contrário, a
dominação exercia-se na e pela abundância. Os oprimidos da
affluent society dizem sim a uma opressão invisível, que se
manifesta não na privação, mas na superabundância de bens.
144
Naquele primeiro momento, no qual ficaram estagnados os
freudo-marxistas, o conflito residia em compreender como a classe
operária agia irracionalmente, optando politicamente pelo que se
manifestava contra ela própria, prevalecendo a vitória da ideologia
dos opressores sobre a realidade material e objetiva dos oprimidos,
especificamente com a anuência destes. Na perspectiva dos marxistas
alemães, a psicanálise era a resposta que esclarecia por que a ideologia
prevalecera sobre a realidade, contexto que não alcançava a
ortodoxia. Na desmistificação da ideologia, a realidade criticamente
compreendida pela razão era o contraponto preponderante, mas,
para tanto, as categorias explicativas da psicanálise e sua apropriação
eram fundamentais para a resolução do problema da oposição entre
ideologia e realidade.
No caso do momento posterior, novas percepções se
verificam. Assim nos explica Rouanet (2001, p. 71):
A situação é outra no após guerra. Materialmente, a realidade
tinha deixado de ser intolerável para a grande maioria da
população. Consequentemente, a tensão entre a realidade e a
ideologia é absorvida. A ideologia não tem mais como função
negar a realidade presente, seja pela dissimulação, apresentando
o sofrimento como seu contrário, seja pela promessa utópica de
uma ordem futura que o anule. Ao contrário, a ideologia se
torna afirmativa: o presente já é utopia realizada, o que leva os
frankfurtianos à tese extrema de que a ideologia se funde com
o real, e como tal desaparece: é a própria realidade, agora, que
desempenha as funções de mistificação antes atribuídas à
ideologia. A mentira assume a última de suas máscaras, que é a
da verdade. A tarefa de desmistificação se torna assim
praticamente insolúvel.
145
No travestimento da ideologia em realidade, a simulação de
uma harmonia desejada entre o real e o ideal incapacita a consciência
para o discernimento da opressão. Se não há mais conflito, não há
crítica que se faça necessária e a vivência da realidade como utopia
efetivada é o desejo manifesto pelas consciências assimiladas. Deste
modo,
Na nova etapa da razão Iluminista, que coincide com a
unidimensionalização absoluta do real, a realidade não pode
mais ser convocada para depor contra a ideologia, pois o pacto
de aliança entre ambos já foi definitivamente selado. A
consciência, agora, está sujeita à investida conjugada de ambas;
a realidade parece confirmar a ideologia, esta invoca, a seu
favor, a prova da realidade, que se consolida, por sua vez, com
a veracidade da ideologia. A consciência infeliz de antes,
dilacerada pelas pressões contraditórias da realidade e da
ideologia, fecha suas feridas e se instala no grande repouso da
síntese enfim concluída e da contradição enfim silenciada
(ROUANET, 2001, p. 72).
O que está em questão, a partir dessa percepção, é que a
psicanálise, em sua função de crítica à ideologia, adotada e defendida
pelos freudo-marxistas, perde aparentemente sua condição. Dada a
pretensa consumação do processo tético-antitético num arremedo da
síntese final que prometia o marxismo, apresentando-se como
efetivada na percepção das consciências assimiladas pela unificação
da ideologia com a realidade, a própria dialética se esgotaria. O
problema para os freudo-marxistas era que, se não havia mais
opressão e, portanto, a percepção de tal condição, que implicava o
desnudamento da contradição social e de uma opção irracional dos
146
oprimidos quando do apoio aos opressores, como significar uma luta
contra a ideologia se o ajustamento à realidade se apresentava com a
aquiescência da própria consciência?
Na análise da questão, e, diante da inadequação do aparato
conceitual marxista, mesmo em sua associação com o freudismo, os
pensadores do Instituto de Frankfurt caminhariam para outra
percepção. Vejamos:
A resposta dos frankfurteanos é que a síntese unidimensional é
uma caricatura, e não uma reconciliação autêntica. A
reconciliação prometida pelo idealismo alemão, na qual o real
era racional e o racional real, repousava sobre um conceito de
razão e um conceito de realidade que nada tinham a ver com
suas paródias contemporâneas. A razão clássica (Vernunft)
trabalha sobre essências, e não sobre suas manifestações
empíricas; seus instrumentos são conceitos, e não fatos brutos;
seu objetivo é a verdade, e não a adequação instrumental de
meios a fins. Em sua generalidade, os conceitos sempre
transcendem o aqui e o agora que constitui o objeto da
percepção imediata, e apontam, por sua lógica interna, para a
dimensão do possível, em oposição à dimensão do existente.
Em contraste, a razão do Iluminismo em sua última etapa se
degrada no mero entendimento (Verstand), incapaz de integrar
em sínteses verdadeiras a pluralidade das percepções parciais,
incapaz de escapar à pura facticidade e imediaticidade do
existente, e reduzido por isso mesmo, à deificação desse
Existente, convertido em sua própria norma. Por outro lado, o
conceito clássico de real contém um momento de negatividade,
que se opõe ao real petrificado, impelindo-o para novas sínteses
e reconstituindo o real a um nível mais alto. O real clássico é o
que é, e o que não é ainda, o positivo e sua antítese, a unidade
do existente e do virtual. Castrado dessa dimensão virtual, o real
147
confunde-se com o irreal; é o puro nada, não a negatividade
dinâmica cujo exercício coincide com o trabalho da razão, mas
a negatividade reificada que se manifesta como o vazio da razão,
o ponto zero da teoria, e que assume a forma de uma
positividade despótica, incapaz de ser dissolvida por uma razão
se se tornou ela própria irremissivelmente ancorada ao
existente. A síntese unidimensional, em que a realidade se
confunde com a utopia, e em que o real só pode ser visto como
racional ao preço de reduzir o real (Realitaet) ao mero existente
(Wiklichkeit) e o racional ao razoável, repousa, assim, sobre a
unidade repressiva de uma pseudo-racionalidade e de uma
pseudo-realidade. Se assim é, afirmar o Existente
unidimensional é falsa consciência, e isto de forma tão radical
como no passado. Hoje como ontem, falsa consciência é a
incapacidade de distinguir a realidade devido à cegueira
socialmente necessária induzida pela ideologia. Mas se a falsa
consciência do passado significava aceitar uma realidade
repressiva que se apresentava como tal, a atual significa aceitar
uma realidade que se apresenta como não-repressiva, apesar de
ser constituída, em sua estrutura mais íntima, pela repressão.
No passado, a falsa consciência levava à aceitação do
sofrimento, em nome de uma ideologia legitimadora desse
sofrimento; hoje, a falsa consciência consiste em obliterar a
própria noção de sofrimento. No primeiro caso, a alienação era
legitimada; no segundo, a própria consciência da alienação é
suprimida (ROUANET, 2001, p. 72-73).
Apesar da longa citação, consideramos importante o
destaque para entendermos que a percepção dos pensadores de
Frankfurt foi realmente crítica, retomando Hegel e os primórdios do
idealismo alemão e da perspectiva dialética que, de certo modo,
reduzira-se em algum momento à análise do conflito entre o real e o
148
irreal
34
de forma objetiva e ancorada na materialidade
exclusivamente. Neste sentido, presa da artimanha da
unidimensionalidade entre a realidade e a ideologia constituída a
partir das alterações nas condições materiais e objetivas, mesmo da
classe operária em certo grau, a percepção dos freudo-marxistas, que
ainda apostavam na psicanálise, à revelia das determinações também
ideológicas do Partido, não encontrava o espaço para a crítica
fundamental, restringindo-se, assim, à limitação de uma análise que
não confrontaria com a ortodoxia marxista. Não era, evidentemente,
a preocupação dos frankfurtianos.
34
Sobre esse conflito do real com o irreal retomamos, a título de clareza, o entendimento
de Rouanet (2001) que aponta não para uma perspectiva tética/antitética neste contexto,
mas para o desnudamento de uma contradição que se oculta do entendimento. Tal
contraste não se dá na pretensão de se constituir uma síntese, mas pela percepção da
obliteração do próprio processo dialético. Se o realismo, como perspectiva filosófica
comporta na concepção do real um momento de negatividade do real petrificado, ou seja,
sua antítese do que ainda não é, mas pode vir a ser, sua síntese é expressada pela unidade
do existente e do virtual. No caso do irreal, não se encaixa essa categorização. No contexto
apresentado por Rouanet (2001), não é o irreal a antítese do real, mas a confusão deste com
aquele. Como esclarece Rouanet (2001, p. 73), retomando a citação, “[...] é o puro nada,
não a negatividade dinâmica cujo exercício coincide com o trabalho da razão, mas a
negatividade reificada que se manifesta como o vazio da razão, o ponto zero da teoria, e que
assume a forma de uma positividade despótica, incapaz de ser dissolvida por uma razão que
se tornou ela própria irremissivelmente ancorada ao existente”. Neste contexto, o que se
alcança, no conflito apresentado, é a dissolução, a obliteração da própria noção de realidade
ou, mais especificamente, de consciência da realidade. Não se resume à legitimação da
exploração a partir de uma ideologia que levava à aceitação da exploração pelo explorado,
permanecendo ainda a realidade da exploração e sua potencial luta contra a mesma. Neste
caso, oculta a exploração e apresenta-a como uma falsa realidade, de não-exploração, apesar
de continuar assim constituída. Ou seja, o que se perde é a própria noção da exploração. É
a supressão da própria consciência de que existe a opressão. Com certeza, tal mecanismo,
percebido pelos frankfurtianos naquele momento da análise da situação do pós-guerra,
apresenta-se extremamente atual e aprofundando-se nas correlações estabelecidas pelo
neoliberalismo no nosso momento contemporâneo.
149
Por isso, diante da questão demandada, os filósofos da Escola
de Frankfurt avançariam na relação com a psicanálise a partir das
análises que não ficariam presas à artimanha que se impusera no
entendimento da mesma apenas na esfera do patológico, limitando-
a à potencialidade de seus fundamentos para a análise social. Neste
contexto, evidencia-se o problema que enredava os freudo-marxistas.
Ou seja, se
A psicanálise era necessária para explicar uma consciência
incompatível com a realidade; se agora a consciência é
plenamente ajustada à realidade (realitaetsgerecht) não se fecha,
ipso facto, o espaço da patologia, no qual a psicanálise se
movimenta e onde encontra sua justificação? (ROUANET,
2001, p. 72).
Para o grupo de Frankfurt, ao contrário, nova questão se
configura pela falácia da unidimensionalidade apresentada. Há que
se avançar na crítica e entender que, para além de uma crítica
puramente preocupada com a questão ideológica, é preciso
desvendar os mecanismos que permitem confundi-la com a
realidade. Portanto, não é possível tal entendimento apenas pelo
desnudamento da ideologia, mas faz-se necessária a crítica da própria
realidade estabelecida para que, neste sentido, se possa reconhecê-la
novamente. Conforme Rouanet (2001, p. 73):
Se é certo que a ideologia confunde-se, hoje em dia, com a
realidade, em sua definição unidimensionalizada, segue-se que
a crítica da ideologia confunde-se com a crítica da realidade, e
Ideologiekritik é necessariamente Kulturkritik. Dissipar a falsa
consciência não significa mais confrontar os fantasmas da
150
ideologia com a solidez da realidade, mas redescobrir, em
primeira instância, a própria realidade, da qual a fachada
unidimensional constitui a contrafação. Chegar a essa
realidade, significa desprender o virtual, prisioneiro da razão
Iluminista, liberar a dimensão (reprimida) do possível. Desfazer
a falsa consciência significa, assim, confrontar o Ego, não com
o real, mas com o virtual, que este real recalca e dissimula.
Ao recusarem a síntese que era proposta pela
unidimensionalidade do real com o irreal, os frankfurtianos
recolocam a psicanálise na centralidade da proposta crítica
(ROUANET, 2001). O que lhe garante tal posição é a característica
de sua movimentação. Ocorrendo essencialmente na ambiguidade
entre razão e desrazão, a psicanálise está qualificada, “mais que
qualquer outra teoria, para a tarefa de desvendar o irreal que, na
cultura, se apresenta com a máscara da realidade, e desnudar a
Unvernunft essencial de uma ordem que se apresenta como a
encarnação da razão” (ROUANET, 2001, p. 74).
Neste entendimento, diferindo dos freudo-marxistas, os
frankfurtianos recusaram também uma síntese dos pensamentos de
Marx e Freud, base da justificativa dos primeiros para o uso da
psicanálise e sua contribuição com o marxismo. Para os pensadores
do Instituto, a psicanálise “completa a crítica marxista da cultura.
Mas só pode desempenhar esse papel se mantiver a integridade e a
autonomia do seu discurso [...]” (ROUANET, 2001, p. 74).
A ideia da integração do pensamento de Marx e Freud era
desejada mesmo pelos marxistas mais ortodoxos, desde que o
pensamento freudiano fosse “purificado” de seus resquícios de uma
mentalidade burguesa, além da historicização da sua teoria da
151
cultura e a absolutização do princípio de realidade, caminho que,
aparentemente, já fora iniciado pela “economia sexual” de Reich
(ROUANET, 2001).
Para os filósofos da Escola de Frankfurt, tal proposta era
inconcebível e, no entendimento destes, a relação entre Marx e
Freud seria sempre dialógica, nunca sistemática de tal modo que se
consumasse numa síntese. Tratando-se da teoria crítica, afirma
Rouanet (2001, p. 76)
[...] que sua essência está, justamente, nessa relação dialógica
entre Marx e Freud, em que as duas doutrinas funcionam como
limites negativos uma da outra, relativizando-se, e relativizando
qualquer pretensão totalizante, inclusive a totalização absoluta
do freudo-marxismo. Podemos dizer que o uso de categorias
freudianas e marxistas é determinado pelas exigências do seu
objeto, que é a crítica da cultura. Se a Escola de Frankfurt é
crítica da ideologia e crítica da cultura, o é, em grande parte,
através de Marx e de Freud; mas o é, também, contra Marx e
Freud. Aplicando a Freud, esse duplo movimento significa que
sem a psicanálise, os frankfurteanos não poderiam fazer sua
crítica da cultura; mas esta inclui, obrigatoriamente, a crítica da
psicanálise. Destacar esses dois momentos é uma violência
metodológica que se justifica para assegurar a clareza da
exposição, mas não deve fazer perder de vista a força da
dialética, que está justamente na circularidade necessária pela
qual a crítica da cultura se realiza através da crítica do
instrumento que permite essa crítica.
Deste modo, a ousadia dos frankfurtianos, ao preservarem a
integridade das perspectivas marxistas e freudianas, demonstrou-se
frutífera ao longo do tempo e para o desenvolvimento das pesquisas
152
sobre o antissemitismo, os Estudos sobre os preconceitos e a conclusão
das discussões promovidas em La personalidad autoritaria. Fiéis aos
pressupostos da teoria crítica, e em acordo com a pluralidade de sua
formação filosófica, pensamento e discussões que transitavam no
círculo dos membros do Instituto, não se encontrou um fechamento
da teoria ou determinismo das ideias. Sob o escrutínio da razão,
talvez no melhor exemplo da perspectiva Iluminista dos modernos,
projeto que se desviara de sua promessa, avançavam os
frankfurtianos numa proposição dialógica e dialética que, talvez nas
percepções de Horkheimer e Adorno, fossem fundamentais para se
promover uma real dialética do esclarecimento. Assim, no confronto
com a ortodoxia marxista e com o freudismo determinista,
preservaram os frankfurtianos o que nos parece o essencial em
qualquer perspectiva epistêmica: jamais deixar de discutir e
questionar seus próprios fundamentos e, sempre que necessário,
combater toda dogmatização do pensamento tão introjetada
culturalmente a partir dos discursos positivistas e cientificistas que
contribuíram enormemente para uma deficiente compreensão do
pensamento científico pelo senso comum.
Compreendidas estas primeiras questões, na sequência,
trataremos do papel da psicanálise na produção da Escala F para os
estudos de La personalidad autoritaria (1965), visitando, sempre que
necessário, as intersecções com os elementos que fundamentam a
teoria crítica desde seu início.
153
A
psicanálise
e a
teoria crítica
: breve contextualização
Com a inauguração do Instituto de Psicanálise
(Psychoanalytische Institut) em 1929, nas dependências do Instituto
de Pesquisa Social, Horkheimer e seus colaboradores davam mais
um passo na direção das contribuições do pensamento representado,
em grande parte, pelos estudos de Freud. Agregando, a partir do
Instituto de Psicanálise, a participação de Erich Fromm, que era
amigo antigo de Leo Löwenthal, os frankfurtianos começam a
ampliar o leque e os encaminhamentos para estas perspectivas.
Fromm seria o responsável, posteriormente, pela parte que caberia
uma análise psicológica da autoridade nos Studien über Autöritat und
Familie (Estudos sobre a autoridade e a família), o projeto de pesquisa
dos membros do Instituto, que seria publicado em 1936,
antecedendo aos estudos de La personsalidad autoritaria (JAY, 2008).
A posteriori, a guinada, já comentada anteriormente, na orientação
do Instituto com a direção de Horkheimer, efetivar-se-ia pela
publicação do seu ensaio intitulado Traditionelle und kritische
Theorie (Teoria tradicional e crítica) de 1937. De acordo com
Wiggershaus (2006, p. 37), a partir desse momento
[...] a expressão “teoria crítica” tornou-se a designação preferida
dos teóricos do círculo de Horkheimer. Era também uma
espécie de camuflagem para a teoria marxista; entretanto, mais
ainda, uma maneira de demonstrar que Horkheimer e seus
colaboradores não se identificavam com a teoria marxista em
sua forma ortodoxa, presa à crítica do capitalismo enquanto
sistema econômico conduzido pela superestrutura e pela
ideologia mas com aquilo que era princípio na teoria
marxista. Esse princípio essencial consistia na crítica concreta
154
das relações sociais alienadas e alienantes. Os teóricos críticos
não vinham nem do marxismo, nem do movimento operário.
Eles reproduziam, de certo modo, as experiências do jovem
Marx.
Esse pano de fundo dará corpo às reflexões que, ao longo do
tempo, constituirão a unidade dos frankfurtianos em suas pesquisas
sob a orientação, quando não determinação, de Horkheimer. Tal
unidade, contudo, nunca significaria unanimidade. Como um
grupo de intelectuais diversos em suas formações pessoais e
constituição acadêmica, construíram seus ensaios e tratados
transitando algumas vezes por campos diversificados de domínio do
conhecimento, divergindo inclusive publicamente em suas
considerações. Mas havia um comum, especialmente entre aqueles
que eram reconhecidos por uma representatividade pública maior.
É o caso de Adorno, Marcuse e Horkheimer, como nos esclarece o
texto a seguir:
A despeito de todas as divergências, havia uma convicção
comum, pelo menos para Horkheimer, Adorno e Marcuse
depois da Segunda Guerra Mundial: a teoria deveria ser
racional, na tradição da crítica marxista do caráter fetichista de
uma reprodução capitalista da sociedade, e ao mesmo tempo
representar a palavra justa que romperia a maldição imposta aos
homens e às coisas, e a suas relações recíprocas. O cruzamento
dessas duas tendências teve por efeito o fato de que, no
momento mesmo em que a edificação da teoria estagnou e
cresceram as dúvidas sobre a possibilidade de a teoria na
sociedade tornar-se irracional, se manteve vivo o espírito do
qual a teoria poderia germinar (WIGGERSHAUS, 2006, p.
38).
155
A crítica, portanto, não se restringira a uma perspectiva
estanque, ou uniformizada, mas construía-se em todo seu potencial
de não aprisionamento ou fechamento a uma concepção
determinada. A dinamicidade e ousadia conceitual da teoria crítica,
preservou-a, deste modo, no momento de uma certa inanição, de
uma sua possível derrocada, garantindo-lhe o revigoramento pelo
espírito que a norteava.
Relembrando rapidamente o contexto abordado até aqui,
vimos nas considerações sobre os pensadores da Escola de Frankfurt
e os pressupostos do marxismo que permeavam seu pensamento, que
a teoria crítica não se submetia aos limites determinados pela
ortodoxia dos marxistas. Na realidade, permitia-se criticar o próprio
marxismo.
Neste sentido, na compreensão dos estudos de Freud como
fundantes também para o pensamento dos frankfurtianos e de suas
teses desenvolvidas, veremos que o freudismo, tanto quanto o
marxismo, é peça importante para o pensamento crítico. Mas
necessário destacar que, de acordo com Rouanet (2001, p. 11),
[...] o freudismo não é, para a escola de Frankfurt, uma
influência: é uma interioridade constitutiva, que habita seu
corpo teórico e permite à teoria crítica pensar seu objeto,
pensar-se a si mesma, e pensar o próprio freudismo enquanto
momento da cultura. O que implica, em primeira instância,
uma crítica do próprio freudismo, pois [...] se a escola de
Frankfurt é crítica da cultura e da ideologia, o é, em grande
parte, através de Freud, mas também contra Freud.
156
Portanto, na perspectiva do freudismo e do marxismo, os
filósofos de Frankfurt constituem uma excepcionalidade para o
período. Mas, na relação com o freudismo, não é possível
compreendê-la pura e simplesmente como uma influência,
concepção muito forte no período para diversas correntes que o
cotejavam, mas como elemento constitutivo da própria teoria crítica
e das condições para sua continuidade. Importa reiterar que isto não
implicou a impossibilidade da crítica ao próprio pensamento
freudiano, ou à interpretação deste pelos revisionistas, pois na
dialética proposta não perpassava o flerte com uma dogmatização da
teoria.
Essa crítica, tratada por Sérgio Paulo Rouanet (2001),
pressupõe, basicamente, duas questões apontadas pelos
frankfurtianos, a partir do que Adorno e Horkheimer consideraram
como deformações daquilo que eles apontavam como a verdade do
freudismo: o “seu caráter monadológico, na circunstância de que se
assume enquanto verdade particular, que como tal é irredutível a
falsas totalizações” (ROUANET, 2001, p. 78). Para eles, “essa
verdade é mutilada, no momento em que a psicanálise é extraída da
esfera do particular. Tentação a que sucumbe o freudismo clássico”
(ROUANET, 2001, p. 78). Neste contexto se dará a crítica, e as
deformações à que aludimos resumem-se basicamente a duas
questões: a tentativa, pelos próprios psicanalistas, de uma
socialogização das categorias da psicanálise, por um lado e, na outra
vertente, “a tentativa, fora desse campo, de integrar a psicanálise na
sociologia” (ROUANET, 2001, p. 78). Ou seja, o que se pretendia,
segundo a crítica de Adorno e Horkheimer, era a busca por um falso
universal que dissolveria o particular, exatamente na perspectiva
157
contrária daquilo que garantia à psicanálise sua força, promovendo,
neste sentido, uma agressão sociologista totalitarizante do particular
para o universal, à voga da tentação indutivista.
Representantes desse revisionismo criticado por Adorno e
Horkheimer, encontrarmos duas vertentes responsáveis por essa
agressão:
A primeira foi cometida pela chamada escola culturalista
Fromm, Horney, Sullivan. É o revisionismo psicanalítico. A
segunda foi cometida por Parsons, cuja “action theory” tenta
absorver a psicanálise numa totalização sociológica. As duas
sacrificam a verdade do freudismo que, enquanto particular é
índice do Todo, mas que deixa de sê-lo no momento em que é
revisto pelos culturalistas e anexado pelos sociólogos.
Transformando-se, no primeiro caso, numa psicotécnica, e no
segundo em capítulo de uma teodicéia funcionalista
(ROUANET, 2001, p. 78).
Ainda segundo Rouanet (2001, p. 78), “é na crítica o que a
psicanálise não é, que Adorno e Horkheimer explicitam a verdade
do freudismo. Mas ela evidencia, também, o momento de falsidade
do próprio freudismo, mesmo o ortodoxo”. Não nos ateremos ao
esmiuçamento da crítica dos frankfurtianos à psicanálise,
considerando que não é o foco da proposição deste momento.
Recomendamos a leitura do capítulo 5 de Teoria crítica e psicanálise
(2001) para um maior aprofundamento e detalhamento do conflito.
Mas é importante destacar e contextualizar a questão, posto que
trataremos da Escala F, e, basicamente, da interpretação que
prevaleceu para os filósofos do Instituto e os colaboradores de
Berkeley envolvidos nos estudos de La personalidad autoritaria.
158
Deste modo, sem nos alongarmos no problema, é
importante entendermos que na proposta dos Revisionistas, ao
suprimirem a teoria das pulsões, fundamental no pensamento
freudiano, dessexualizando a psicanálise e dissimulando-a na
perspectiva dos impulsos, necessidades e paixões, conduzem-na ao
conformismo social. Segundo Rouanet (2001, p. 79),
A psicanálise radical, ao partir da libido com algo de pré-social
alcança o ponto, ontogenético e filogeneticamente em que o
princípio social da dominação coincide com o psicológico da
supressão pulsional. Por outro lado, ao suprimir a libido, o
revisionismo abre mão de qualquer possibilidade de crítica
ideológica. A essência e a aparência são postas no mesmo nível.
A ilusão não pode ser dissipada, reduzindo-se a seu substrato
pulsional. Nesse sentido, é fundamentalmente hostil à teoria
(theoriefeindlichz). Pactua com o senso comum, contra toda
distinção entre essência e fenômeno, sem a qual a psicanálise é
privada de sua força crítica. Como aliada do senso comum, a
psicanálise não somente confunde aparência e realidade como
inverte causa e efeito. O resultado reificado de um processo
neurótico é apresentado como sua origem; o desfecho de uma
história é absolutizado, na medida em que a própria realidade
de sua gênese é negada.
O desdobramento destas considerações na crítica aos
Revisionistas encaminhará para o entendimento de que, o que eles
acabam gerando é a banalização da psicanálise quando tratam da
estrutura psíquica do homem, pois a conformam ao “socialmente
aceito”, atribuindo-lhe o dever de auxiliar na cura do paciente para
sua reinserção à “normalidade social”. Concomitantemente,
banalizam “também, a descrição do ‘meio’, que por sua
159
irracionalidade seria o principal fator etiológico da neurose”
(ROUANET, 2001, p. 81), o que é extremamente problemático,
pois entende o indivíduo de forma ingênua, como aquele que sofre
a influência da sociedade de modos e graus diversos, praticamente
de forma determinística e absolutizando essa relação. Neste sentido,
ignora
[...] que o indivíduo é em si um produto social, assim como o
próprio conflito indivíduo-sociedade. Não se trata, assim, de
seccionar o indivíduo, arbitrariamente do todo social, para
examinar, nesse átomo abstrato, supostas influências sociais,
mas de mergulhar no mais fundo da consciência individual, para
nela encontrar a presença do social. [...]. Incapaz de explorar a
dimensão profunda do psiquismo, porque recusa a existência
da libido, o revisionismo é forçado a mover-se em sua camada
mais superficial, o Ego, e em vez de encontrar em sua verdade
essencial a tragédia do indivíduo mutilado pelo Todo, encontra
um pseudoconflito entre uma cultura abstrata e impulsos
igualmente abstratos. O culturalismo só opera a junção do
social e do psíquico depois de ter trivializado um e outro
(ROUANET, 2001, p. 81, grifos nossos).
Na deformação que ocasionam os revisionistas, parece-nos
que imperava a perspectiva de aceitação da psicanálise socialmente,
implicando, portanto, como constatam Adorno e Horkheimer, a
impossibilidade dos neofreudianos de produzirem uma crítica séria
dessa mesma sociedade. Sua adaptação interpreta a contradição
social a partir de pressupostos moralistas, que apontam os
frankfurtianos, foram reduzidos à questão da concorrência como o
principal problema social e de onde resultariam os conflitos
160
psíquicos que afetam os sujeitos (ROUANET, 2001). Ou seja, não
aprofundam, como já explicitado, o mergulho na consciência do
indivíduo para encontrar nela a relação com o social. Na sua
perspectiva indutivista, o todo do universal subsume o particular.
Ao interpretarem assim os problemas pessoais e sociais confundem,
por exemplo, a gênese do capitalismo que, falaciosamente apregoava
a livre concorrência, mas efetivamente, “em sua etapa monopolista
[...], é regido pela administração centralizada da economia, ao nível
do Estado como ao nível das grandes empresas, e não pela
concorrência livre entre empresários individuais” (ROUANET,
2001, p. 82). Tampouco se aplica ao capitalismo liberal que, em sua
gênese, também, a lei predominante nunca foi a da concorrência,
mas a da dominação. Deste modo, tragado pela ideologia, o
revisionismo dos neofreudianos não percebe que o princípio da
concorrência é, na realidade,
[...] a auto-imagem de um capitalismo pós-liberal, que se vê
como livre, quando de fato essa liberdade se limita à dois, três
ou quatro Conselhos de Administração que controlam a
economia mundial; ao aceitar a concorrência como a lei que
rege o sistema, o revisionismo aceita, sem crítica, a visão que
esse sistema tem de si mesmo, e difunde sua verdade. A
psicanálise se torna, assim, ideológica nas duas dimensões do
conflito indivíduo-cultura, e assim como escamoteia a
supressão pulsional, reduzindo-a a um problema moral,
escamoteia a contradição objetiva de um sistema que proclama
a liberdade e se funda na dominação, ao endossar, como
verdadeira, a fachada ideológica da dominação, que é a
pseudoliberdade da concorrência. [...]. Em vez de analisar as
sublimações, os revisionistas sublimam a própria psicanálise,
161
tornando-a universalmente aceitável. A força negativa da
psicanálise é silenciada, e a crítica da moral vigente é substituída
por uma antropologia positiva, que reduz o humano ao normal,
e o normal ao útil. A normalidade é uma condição de liberdade
interior, em que todas as faculdades são plenamente utilizáveis
(ROUANET, 2001, p. 82-83).
Como se pode perceber, o caminho traçado pelos
revisionistas encaminha a psicanálise para sua desfiguração, na
observação dos frankfurtianos, obliterando a análise do capitalismo
e das contradições que permeiam a sociedade do consumo,
promovendo pela repressão imposta pela ideia de normalidade, a sua
aceitação. Na análise do narcisismo, por exemplo, esclarece Rouanet
(2001, p. 83):
O sociologismo cego de K. Horney a impede de ver na atitude
narcísica o seu núcleo sociológico: o fato de que na sociedade
da troca universal, aparentemente fundada no intercâmbio dos
equivalentes, todos saem perdendo, exceto o Poder, o que leva
o narcisista a tentar compensar, alucinatoriamente, seus
prejuízos efetivos.
Não conseguindo realizar-se e relacionar-se, o narcisista
dirige para si as pulsões não efetivadas. Na busca constante pelo
novo, na perspectiva da novidade, o que satisfaz Narciso é o mantra
da sociedade de massas, que a cada consumo apresentado se mostra
como inédito, mas, no fundo, perpetua sua base estrutural. Não
percebendo que o novo que surge é uma artimanha para envolver o
indivíduo administrado, o sociologismo revisionista fecha os olhos
para a percepção de que “[...] a cultura contemporânea se caracteriza,
162
exatamente, pela cega repetição de traços arcaicos. O presente
Iluminista é a reiteração compulsiva do mesmo” (ROUANET,
2001, p. 84).
Na continuidade da crítica, Adorno e Horkheimer atacariam
as interpretações produzidas pelos revisionistas a respeito das
questões do Ego, do Superego e do Id
35
e os erros em que Freud teria
incorrido, o que não é pouca coisa. Mas, a partir deste ponto,
faremos nosso recorte e, como já explicitamos anteriormente, fica o
convite para a leitura de Rouanet (2001). O que importa alinhar,
nesta breve análise, é que, na crítica ao freudismo, os frankfurtianos
constituem os fundamentos para a teoria crítica em sua análise da
subjetividade e avançam na percepção da inter-relação entre o social
e o individual para além da obliteração dos revisionistas ou dos
limites da ortodoxia marxista. Percebendo a dimensão do freudismo,
e não absolutizando sua compreensão, “[...] a psicanálise ajuda a
teoria crítica a pensar-se a si mesma, a pensar o todo, e a pensar o
indivíduo enquanto particular mediatizado pelo todo”
(ROUANET, 2001, p. 98). O que contribuirá fundamentalmente
para as discussões em La personalidad autoritaria (1965).
Neste diapasão, concluídas estas observações, avancemos
para os estudos sobre a personalidade e, mais especificamente, sobre
a produção da Escala F e seus desdobramentos para o entendimento
do fenômeno do fascismo, questão que continuaremos tratando no
35
Adiantamos que, mais à frente no texto, diante da utilização da obra Estudos sobre a
personalidade autoritária (ADORNO, 2019), organizada por Virgínia Helena Ferreira da
Costa e publicada pela UNESP, os termos Ego, Superego e Id aparecerão registrados em
algumas citações como Eu, Supereu e Isso. Tal condição se deve ao fato de que os tradutores
do texto consultado optaram por essa grafia ao invés da anterior, já mais consagrada. Neste
contexto, esclareceremos, no devido momento, a opção dos autores.
163
decorrer do trabalho e nos encaminhamentos para o campo da
educação também nas nossas considerações.
O estudo da personalidade e a Escala F em
La personalidad autoritaria
Já tratamos no capítulo II deste trabalho sobre o contexto de
produção dos estudos registrados em La personalidad autoritaria
(1965) e sua importância como referência para as discussões, a partir
de então, sobre o fascismo. Por isso, neste tópico, trataremos
primeiramente de uma rápida apresentação das escalas produzidas e
utilizadas no decorrer da pesquisa e, na sequência, da proposta da
Escala F que, efetivamente, foi o instrumento concebido para que o
estudo tivesse seu desfecho.
Tendo como base a psicanálise freudiana, o estudo da
personalidade proposto pelo Instituto e os psicólogos sociais de
Berkeley que, como já registramos, compunham um trabalho maior,
que eram os Estudos sobre os preconceitos, visava a entender os
mecanismos psíquicos que compõem a personalidade humana e,
mais especificamente, conforme o prefácio de Horkheimer (apud
ADORNO et al., 1965, p. 19), “[...] un concepto relativamente
nuevo: la aparición de una espécie ‘antropológica’ que
denominamos el tipo humano autoritario”.
Neste sentido, pode ser que “talvez o objetivo metodológico
primário do projeto fosse desenvolver um dispositivo relativamente
simples, para testar a existência da estrutura ou das estruturas
psicológicas subjacentes às crenças autoritárias e, possivelmente, o
comportamento autoritário” (JAY, 2008, p. 305). Mas, no
164
desdobramento do trabalho, torna-se claro que o estudo coordenado
por Adorno em parceria com o grupo de Berkeley se encaminhou
para entender o grau de predisposição dos norte-americanos, nos
anos 40, para assumirem a ideologia fascista. Partiram os autores da
hipótese de que a adesão a uma ideologia específica “pode ser
mediada por necessidades psíquicas profundas, e não
necessariamente pela sua racionalidade” (CROCHÍK, 1996, p. 62).
Esta opção por analisar a adesão à ideologia fascista é
esclarecida quando da apresentação do problema na Introdução,
capítulo I, de La personalidad autoritaria (1965), que aqui
reproduzimos a partir da versão traduzida como Estudos sobre a
personalidade autoritária (2019):
Ao concentrarmo-nos no fascista potencial, não queremos com
isso sugerir que outros padrões de personalidade e ideologia não
possam do mesmo modo ser estudados de maneira profícua. É
nossa opinião, no entanto, que nenhuma tendência político-
social impõe um perigo maior aos nossos valores e instituições
tradicionais do que o fascismo e que o conhecimento das forças
de personalidade que favorecem sua aceitação pode em última
instancia provar-se útil para combatê-lo (ADORNO, 2019, p.
72).
E, ao possível questionamento de “por que” não se deu tanta
atenção ao estudo também da personalidade do antifascista
potencial, se o objetivo era combater o fascismo, esclarecem os
autores:
A resposta é que, sim, estudamos as tendências que se colocam
em oposição ao fascismo, mas não pensamos que elas
165
constituam qualquer padrão singular. Uma das maiores
descobertas do presente estudo é a de que indivíduos que
apresentam extrema suscetibilidade à propaganda fascista têm
muito em comum. (Eles exibem numerosas características que
juntas formam uma “síndrome”, embora variações típicas no
interior desse padrão maior possam ser distinguidas.) Os
indivíduos que estão no extremo oposto são muito mais
diversos. A tarefa de diagnosticar o fascismo potencial e estudar
seus determinantes requer técnicas especialmente concebidas
para esses objetivos; não se poderia esperar que elas servissem
também para vários outros padrões. Não obstante, foi possível
distinguir diversos tipos de estrutura de personalidade que
pareciam particularmente resistentes a ideias antidemocráticas
e a essas é dada a devida atenção nos capítulos seguintes
(ADORNO, 2019, p. 72).
Como podemos perceber, o direcionamento para o
entendimento da estrutura de personalidade do potencial fascista se
mostra premente, o que não presume a desconsideração pelas outras
formas de personalidade. Aliás, elas também foram estudadas. Mas,
a fim de que pudesse ser frutífero o estudo proposto, os esforços
foram direcionados à produção dos instrumentos e técnicas
específicas para o objetivo demandado.
Por isso, para a realização da pesquisa foram desenvolvidas
escalas de atitudes, relativas à opinião dos entrevistados, um Teste
de Apercepção Temática e um questionário composto por perguntas
projetivas, mediante a perspectiva psicanalítica que pautava o
trabalho. Com a experiência adquirida com os Studien, quando da
pesquisa com a classe trabalhadora, e com o trabalho de Sanford
sobre o pessimismo, a depuração dos novos trabalhos de pesquisa
ocorreu no sentido de evitar, por exemplo, questionários relativos à
166
manifestação de uma opinião pública, pois, ou não apresentavam
uma opinião coerente no conjunto ou não tinham sido capazes de
perscrutar quais as predisposições psicológicas que se manifestavam
quando da observação do conjunto. Deste modo, segundo Jay
(2008), questionários contendo indagações sobre fatos, algumas
escalas de opinião formuladas para buscar mensurar os escores e as
perguntas projetivas, algumas das quais retomadas dos Studien,
foram distribuídos inicialmente para estudantes universitários, num
total de setecentos.
As escalas de opinião foram produzidas a fim de
proporcionar estimativas que mensurassem quantitativamente a
questão do preconceito a partir de algumas percepções iniciais. Por
exemplo, a manifestação do antissemitismo, do etnocentrismo e a
existência de um conservadorismo político econômico, que
favoreceriam tal predisposição. A ideia era que, elaboradas nesta
perspectiva, garantissem um grau de segurança mais efetivo para a
avaliação. Neste contexto, produziram-se três escalas. A primeira
delas foi nominada como Escala A-S
36
, relativa ao antissemitismo. A
segunda, tratava do etnocentrismo e foi registrada como Escala E
37
.
Por fim, a terceira escala vislumbrava estimar o grau de
conservadorismo político e econômico dos pesquisados, identificada
com a sigla CPE
38
. Como nos esclarece Jay (2008, p. 305),
36
A sigla A-S (antissemitismo) aqui registrada por Martin Jay é a mesma na
correspondência com a tradução recente dos Estudos sobre a personalidade autoritária (2019)
registrada como AS e também em La personalidad autoritaria (1965), cujo registro do
espanhol também aparece como AS (antisemitismo).
37
A escala E (que se refere ao etnocentrismo) aparece com o mesmo registro em todas as
obras consultadas.
38
O registro da escala CPE como “conservadorismo político e econômico” no texto de A
imaginação dialética é a versão correspondente à tradução realizada nos Estudos sobre a
167
As escalas foram aprimoradas com a prática, de modo que itens
específicos de cada uma tornaram-se indicadores confiáveis de
uma configuração mais geral de opiniões: “O procedimento
consistia em reunir, em uma escala, itens que, por hipótese e
conforme a experiência clínica, pudessem ser considerados
‘reveladores’ de tendências relativamente arraigadas na
personalidade, e que constituíssem uma predisposição a
expressar espontaneamente (ou em ocasiões propícias) ideias
fascistas ou a se deixar influenciar por elas.
Ao final, a pesquisa contabilizou o envolvimento de 2.099
entrevistados, um número expressivo para a época, divididos em
alguns grupos e, necessário destacar, limitada basicamente a pessoas
brancas, norte-americanas, não judias e de um padrão econômico
identificado como classe média. A decisão por tal amostragem se deu
por algumas questões que, segundo os próprios pesquisadores,
relacionadas aos procedimentos de coleta de dados, que
reproduziremos e trataremos rapidamente aqui.
A primeira, implicava uma opção por haver poucos recursos
inicialmente para o projeto, o que os levou à escolha de estudantes
universitários para a primeira etapa. Descrevem os autores:
Havia razões práticas suficientes para determinar que o presente
estudo, que em seu começo tinha recursos e objetivos limitados,
devesse começar com estudantes universitários como sujeitos
pesquisados: eles estavam disponíveis para perguntas, tanto
individualmente como em grupo, cooperavam de boa vontade
e podiam ser contatados sem muita dificuldade para repetir o
personalidade autoritária (2019) como PEC. Na tradução argentina de La personalidad
autoritaria (1965), a sigla adotada segue apresentação similar à adotada por Martin Jay
(2008), também como CPE (conservadorismo politicoeconómico, no espanhol).
168
teste. [...] o nível intelectual e educacional era alto o suficiente
para que fosse necessária uma restrição relativamente pequena
a respeito do número e da natureza dos temas que podiam ser
levantados [...]. Podia-se estar bastante seguro de que os
estudantes universitários teriam opiniões sobre a maioria dos
tópicos considerados. [...] podia haver uma relativa certeza de
que todos os sujeitos entendiam da mesma forma os termos das
questões e que as mesmas respostas tinham significado
uniforme. [...] por maior que fosse a população que se pudesse
testar, provavelmente se descobriria que a maioria de suas
generalizações tinha, em todo caso, de limitar-se a várias
subclassificações relativamente homogêneas do grupo total
estudado; estudantes universitários formam um grupo que é
relativamente bem homogêneo a respeito dos fatores que,
poder-se-ia esperar, influenciam a ideologia. E eles representam
um importante setor da população, tanto por meio de suas
conexões familiares quanto por sua prospectiva liderança na
comunidade (ADORNO, 2019, p. 104-105).
Quando houve a ampliação dos recursos, os pesquisadores
buscaram selecionar outros participantes para o estudo a partir do
entendimento de que, na medida do possível, se contemplasse uma
variedade mais ampla de norte-americanos na fase adulta
(ADORNO, 2019). Objetivavam, deste modo, examinar uma
amostragem de pessoas que possuíssem, em graus diferentes, uma
amplitude maior das variáveis sociológicas que consideravam
implicitamente de maior relevância para o estudo. Destas variáveis,
destacavam-se, por exemplo, as relacionadas à política, às questões
religiosas, às suas ocupações, capacidade de renda e associativismo a
grupos sociais, em algum contexto (ADORNO, 2019). Neste
sentido, contudo, nos esclarecem os autores, que não foi
169
encaminhado o estudo para ampliar representatividade, na
expectativa de uma generalização referente a populações maiores. Ao
contrário, caminharam no direcionamento de uma investigação
mais intensa com “grupos-chave” que, no entendimento deles,
apresentavam elementos mais específicos, com características mais
próprias para o tratamento do problema proposto.
Por isso, para contextualizar melhor a questão e concluir os
motivos da opção pelos recortes que não contemplaram uma
diversidade étnica, ou minorias, por exemplo, reproduzimos a seguir
parte da redação dos autores sobre a escolha dos últimos grupos:
Alguns grupos foram escolhidos porque seu estatuto
sociológico era tal que se podia esperar que eles
desempenhassem um papel vital em uma luta em torno da
discriminação social, por exemplo, veteranos, clubes de serviços
ou associação de mulheres. Outros grupos foram escolhidos
para o estudo intensivo porque apresentavam manifestações
extremas das variáveis de personalidade consideradas as mais
cruciais para o indivíduo potencialmente antidemocrático, por
exemplo, detentos e pacientes psiquiátricos. Com a exceção de
poucos grupos-chave, os sujeitos foram extraídos quase
exclusivamente da classe média socioeconômica. Descobriu-se
bastante cedo no estudo que a pesquisa de classes mais baixas
requereria diferentes instrumentos e diferentes procedimentos
em relação àqueles desenvolvidos por meio da pesquisa com
estudantes universitários e, portanto, essa foi uma tarefa que se
preferiu postergar. Evitaram-se grupos nos quais havia uma
preponderância de membros de minorias e quando aconteceu
de membros de um grupo de minoria pertencerem a uma
organização que cooperava com o estudo, seus questionários
foram excluídos dos cálculos. Não que as tendências ideogicas
170
em grupos de minoria tenham sido consideradas
desimportantes, e sim porque seu exame envolvia problemas
especiais que estavam fora do escopo do presente estudo
(ADORNO, 2019, p. 111).
Portanto, considerados estes apontamentos, e avançando nas
discussões sobre os procedimentos da pesquisa, retomamos nossas
observações sobre o estudo da personalidade autoritária. De acordo
com Rouanet (2001), convém destacar, os filósofos de Frankfurt
buscavam apresentar no campo empírico, o que tornariam ricos a
teoria crítica e seus entendimentos sobre o processo de
ideologização. Por isso, La personalidad autoritaria se torna um
estudo importante, pois marca, por sua perspectiva empírica, como
um estudo que procura examinar de forma concreta, “ao nível da
conscncia individual, a forma pela qual se dá a interseção entre
ideologia e a estrutura da personalidade” (ROUANET, 2001, p.
162).
Neste sentido, para conceber as escalas utilizadas, a
metodologia do estudo incluiu “o uso de questionários mais
refinados, que vão além do nível da opinião de superfície, e a
utilização de vários outros instrumentos, com o objetivo geral de
descobrir os determinantes psicológicos profundos de determinadas
opções ideológicas” (ROUANET, 2001, p. 164). Numa tentativa
de integrar os estudos de grupo com estudos dos indivíduos através
de métodos clínicos, os questionários trouxeram em seu bojo as
escalas que já citamos anteriormente: a Escala AS, que mediria
opiniões sobre o antissemitismo, a Escala E, relativa ao
etnocentrismo, e a Escala PEC, que trataria da questão do
conservadorismo político econômico (ROUANET, 2001).
171
Por isso, explicitando um pouco mais a questão da estrutura
dos questionários e das perguntas que incluíam, encontramos uma
divisão basicamente em três grupos: um que englobava as chamadas
questões factuais, outro que apresentava as consideradas opinativas e,
por fim, as formuladas como perguntas projetivas (ROUANET,
2001). As primeiras perguntas referiam-se a pontos como filiação
religiosa, patamar de renda e preferência por partido político. O
segundo grupo, o das opinativas, contemplava perguntas que
manifestavam pontos de vista do entrevistado a partir de vários itens
apresentados dentro do questionário. O último grupo de perguntas,
o das projetivas, caracterizava-se por provocar uma carga emocional
alta no entrevistado, com questões como “[...] O que faria V. se
tivesse apenas seis meses de vida? [...] com o objetivo de facilitar a
expressão de tendências profundas da personalidade, normalmente
reprimidas” (ROUANET, 2001, p. 164).
Apesar dos avanços na elaboração dos questionários desde a
experiência com a pesquisa nos Studien, que já fora um considerável
início para os frankfurtianos na perspectiva de um trabalho
empírico, algumas questões inevitavelmente afloraram com a
aplicação dos instrumentos. Rouanet (2001, p. 165) esclarece que
[...] essas três escalas, por maior que fosse o cuidado na
formulação dos itens, eram excessivamente explícitas: o sujeito
poderia responder os diferentes quesitos, não na base de sua
convicção íntima, mas na base do que julgava ser socialmente
aceitável. As escalas, em outras palavras, mediam apenas os
valores ostensivos, e não os determinantes profundos,
enraizados na estrutura da personalidade. Não seria possível
172
construir uma escala que atingisse, precisamente, esse nível
profundo?
Portanto, a partir do incômodo suscitado, elaboraram os
autores um plano gradual para construir uma escala que permitisse
mensurar o preconceito sem, contudo, parecer que fosse esse o
objetivo (ADORNO, 2019). Ou seja, que não parecesse para o
entrevistado a sugestão de que se procurava avaliar a questão do
preconceito, primando por não haver menção, também, a nenhum
grupo de minorias. No entendimento dos pesquisadores, tal
instrumento, se efetivado e se mantivesse uma correlação,
principalmente com as escalas AS e E, que tratavam explicitamente
do preconceito, poderia inclusive substituí-las.
Constatando que a Escala PEC, que podia ser confiável
como indicadora de preconceito, revelara-se de forma insuficiente
na correlação com as outras duas escalas, buscaram índices que
fossem mais afeitos a AS e E do que às questões do conservadorismo
político econômico. Neste caminho, a busca natural os levava
[...] para o material clínico já coletado, no qual
particularmente nas discussões dos sujeitos de pesquisa sobre
temas como o self, família, sexo, relações interpessoais, valores
morais e pessoais surgiram inúmeras tendências que, segundo
pareceram, poderiam estar ligadas ao preconceito (ADORNO,
2019, p. 124).
Neste contexto, a nova escala começava a ser produzida
partindo do propósito inicial, de encontrar uma estimativa que fosse
válida com relação às tendências antidemocráticas para além da
173
superficialidade, mais especificamente no nível da personalidade.
Para os autores, na época, já estava claro que o antissemitismo e o
etnocentrismo não diziam respeito somente a questões relacionadas
a uma superficialidade da opinião, mas sim a tendências gerais que,
apresentavam suas origens, mesmo que em parte, em lugares mais
profundos na estrutura de personalidade da pessoa (ADORNO,
2019).
Conjugado com esse propósito, não se perdia de vista a
primeira pretensão na análise das escalas anteriores, que era “de
mensurar o antissemitismo e o etnocentrismo sem que fosse feita
menção a grupos de minorias ou questões político-econômicas
atuais. Pelo contrário, parecia-nos que as duas coisas poderiam ser
alcançadas conjuntamente” (ADORNO, 2019, p. 126), escrevem os
autores.
Para enriquecer todo o contexto apresentado, reproduzimos
a seguir as observações de Rouanet (2001, p. 165-166), ao apresentar
a nova escala:
Foi elaborada, assim, a famosa escala F, destinada a medir o
potencial fascista. A teoria era que se o anti-semitismo e o
etnocentrismo derivavam de uma estrutura comum de
personalidade, seria possível construir uma escala que tivesse
uma correlação estatística suficiente com as escalas AS e E para
que a partir dos scores nela obtidos fosse possível prognosticar,
com alguma exatidão, os scores que seriam alcançados na escala
do anti-semitismo e do etnocentrismo. Essa escala mediria algo
como um (sic!) síndrome F uma estrutura latente de
personalidade que determinaria a receptividade do sujeito a
ideologias racistas e etnocêntricas. Com esse fim, seria
necessário evitar a inclusão na escala de itens abertamente
174
“ideológicos”, como a atitude com relação a minoria
linguísticas ou religiosas, incluindo-se, em vez disso, itens
voltados para as camadas psicanaliticamente mais profundas da
personalidade, do gênero “Hoje em dia, com tantas pessoas se
misturando tão livremente, é preciso tomar um cuidado
especial para evitar infecção e doença”. Depois de várias
experiências e revisões, a escala F, em sua forma final, revelou-
se um instrumento válido para medir essas camadas profundas.
Sua correlação com as escalas AS e E foi considerada suficiente,
do ponto de vista estatístico, o mesmo não ocorrendo com a
escala PEC [...].
A Escala F, portanto, apresentava-se inicialmente como
promissora, atendendo às expectativas dos pesquisadores e
praticamente podendo substituir as escalas AS e E. Martin Jay
(2008, p. 306-307) destaca, por exemplo, que
A conquista metodológica mais valiosa do projeto foi a
condensação das três escalas originais, referentes à atitude, em
um só conjunto de perguntas, capaz de medir o potencial
autoritário no nível psicológico latente. O novo dispositivo de
mensuração foi a célebre “escala F”. A análise de conteúdo dos
recursos dos debatedores, a experiência prévia com o trabalho
empírico nos Studien über Autorität und Familie e os estudos
feitos em Nova York sobre o anti-semitismo na classe
trabalhadora, tudo isso contribuiu para a construção da escala.
Na constituição da escala, a proposta era de que ela testasse
nove variáveis básicas da personalidade que poderiam explicitar as
tendências ao fascismo: o convencionalismo como adesão rígida a
valores da classe média, a submissão acrítica à autoridade, uma
175
agressividade autoritária, a antiintrospecção, a superstição e a
estereotipia, o elemento de poder e “dureza (relação líder-seguidor,
por exemplo), a destrutividade e o cinismo, a projetividade e, por fim,
a preocupação com o sexo, no sentido do exagero com a conduta sexual
(JAY, 2008).
Evidentemente, todo o contexto apresentado até aqui pode
não ser suficiente ainda para representar toda a complexidade da
construção da escala F. Há questões que seriam levantadas
posteriormente a partir das críticas que os estudos de La personalidad
autoritaria sofreria. Mas as virtudes, tanto das pesquisas, quanto da
escala F, também não podem ser desconsideradas. Cientes da
complexidade, continuamos nossas análises e acreditamos ser
providencial a observação da organizadora da tradução da versão
alemã de The Authoritarian Personality, Virgínia Helena Ferreira da
Costa, que chega às nossas mãos como Estudos sobre a personalidade
autoritária (2019), ao tratar sobre a Escala F:
Dentre as escalas que compõem os questionários, a construção
da famosa escala F, apresentada no Capítulo VII de nossa
edição, deve ser exposta com mais cuidado. Ela é constituída
por itens implícitos, que não indicam imediatamente
preconceitos. Seu intuito é mensurar o potencial
antidemocrático dos entrevistados, uma vez que eles
reproduzem parte da propaganda e ideologia autoritárias
veiculadas pela indústria cultural. Cada um dos itens da escala
F foi balanceada entre níveis de irracionalidade e verdade
objetiva. A proeza da escala F é que nenhum grupo de minorias
é mencionado. Sendo a escala F composta por variáveis de
personalidade potencialmente fascistas, ao mesmo tempo que
expõe características de ideologias autoritárias, sua alta
176
pontuação revela a existência de padrões típicos socialmente
difundidos que ameaçam a democracia (ADORNO, 2019, p.
24).
Como nos esclarece a citação, apesar de constituída por itens
implícitos que não indicam, de imediato, preconceitos, a escala
consegue abster-se de influenciar os entrevistados não dando
margem para a identificação de nenhuma minoria. Além disso, ao
pontuar de forma elevada expondo as características próprias de
ideologias autoritárias, permite que se revele, por esta pontuação, o
fato de que existem padrões típicos socialmente que estão difundidos
e, por sua espécie, ameaçam a democracia. Caminhemos.
Tratando sobre a correlação entre as escalas e, reforçando a
exatidão da escala F, nos esclarece Martin Jay (2008, p. 307):
Um certo número de perguntas pretendia revelar, da maneira
mais indireta possível, a posição do sujeito em cada variável.
Em momento algum se mencionou explicitamente qualquer
grupo minoritário. Com o aumento dos testes, a correlação
entre a escala F e a escala E atingiu aproximadamente 0,75, o
que foi considerado um sinal de sucesso. Mais questionável,
porém, foi a correlação de 0,57 entre as escalas F e CPE. Para
explicar essa falha, introduziu-se uma distinção entre os
conservadores autênticos e os pseudoconservadores,
considerando-se apenas estes últimos como personalidades
verdadeiramente autoritárias. Não se fez nenhuma tentativa
(ou, pelo menos, nenhuma foi relatada nos resultados finais) de
correlacionar a escala F com a escala A-S. As correlações mais
específicas dentro dos subgrupos da amostra apontaram uma
coerência considerável entre os diferentes grupos. Como vimos,
as entrevistas clínicas foram usadas para corroborar os
177
resultados da escala. Os exames dos resultados pareceram
confirmar a exatidão da escala F.
Sobre a distinção introduzida entre conservadores autênticos e
pseudoconservadores, que pode parecer deslocada, no contexto
mencionado na citação, apresentamos o esclarecimento de Rouanet
(2001, p. 174):
O interesse da introdução do conceito do pseudoconservador
(ou pseudoliberal) não está, necessariamente, no fato de
constituir uma resposta perfeita ao dilema da baixa correlação
entre as escalas, mas, ao contrário, no fato de revelar uma
perplexidade teórica que pode revelar-se mais fecunda que as
certezas dogmáticas dos freudo-marxistas. A sequência linear:
caráter neurótico/ideologia fascista, ou caráter genital (ou
revolucionário) / opção socialista, não tem interesse teórico. O
interesse está nas descontinuidades, e não nas correspondências.
Estas fornecem respostas; as primeiras são mais produtivas,
porque sugerem perguntas.
Portanto, escapando novamente das perspectivas
deterministas, a proposta do estudo não estava em confirmar
correlações dogmatizadas por percepções teóricas que,
aparentemente, buscavam a confirmação da linearidade na oposição
dos polos dialéticos e sua certeza subentendida. Não está dado, de
modo absoluto, que todo caráter neurótico, como estabelecido por
Reich e no qual os freudo-marxistas se apoiavam, seria
determinantemente fascista ou, contrariamente, que todo
representante do caráter revolucionário fosse favorável ao socialismo.
178
As descontinuidades indicavam que havia mais a se entender sobre a
questão.
Retomando a discussão da complexidade da escala e de que,
mesmo sujeita às críticas, como é inevitável com qualquer
instrumento que se apresente em pesquisas tão intrínsecas quanto
foi a de La personalidad autoritaria, o olhar a posteriori se mostra
sempre importante também para trazer maior clareza e garantias ao
instrumento. Não pela perspectiva de se tornar inquestionável, mas
como cabe ao instrumental metodológico, para potenciais revisões e,
também, para reforçar a validade do estudo, quando de seu
reconhecimento. Neste sentido, por exemplo, destaca Martin Jay
(2008, p. 308), que
Paul Lazarsfeld que ao colaborar com Adorno, demonstrara
grande ceticismo em relação à aplicação irrestrita da teoria
crítica a problemas empíricos mostrou-se bem mais positivo.
Os indicadores individuais da escala F, escreveu em 1959,
desempenhavam um papel expressivo em relação ao traço
subjacente, e um papel preditivo em relação à observação
originária que o traço pretende explicar. Roger Brown, um
crítico mais severo do projeto, concluiu sua análise admitindo
que há uma substancial possibilidade de que a principal
conclusão do trabalho de questionário esteja correta’.
Com um olhar atento sobre a produção da escala e na
experimentação de mais de uma apresentação da mesma, os autores
do estudo foram depurando os trabalhos para minimizar seus
problemas. Por exemplo, na avaliação do “grupo de Berkeley, as
rubricas não ideológicas e puramente ‘psicológicas’ da F-Scale
ofereciam um acesso quase imediato à estrutura de personalidade.
179
Foi precisamente por essa razão que se atribuiu uma importância
muito especial às imperfeições daquela escala” (WIGGERSHAUS,
2006, p. 448) que, efetivamente se buscava corrigir.
Deste modo, o que está em questão, e expectamos ter
demonstrado, é que, na produção da pesquisa, com todos os limites
ou complexidades que envolvem a linha tênue da conjugação entre
os dados empíricos e a fundamentação de uma hipótese apresentada,
especialmente no campo das Ciências Humanas e Sociais, o trabalho
com La personalidad autoritaria estabeleceu seu registro e serve como
referência para as discussões sobre o fascismo e o preconceito. Para
reforçar e enriquecer esta percepção, é deveras representativa a
análise de Martin Jay (2008), quase ao final do capítulo 7 de A
imaginação dialética, em que trata do trabalho empírico do Instituto
na década de 1940:
Poderíamos mencionar outras dificuldades da metodologia e
das conclusões de A personalidade autoritária, mas se nos
estendêssemos indevidamente nelas perderíamos de vista a
tremenda realização desse trabalho como um todo. Como o
próprio Adorno admitiu posteriormente, “se A personalidade
autoritária trouxe alguma contribuição, esta não deve ser
buscada na validade absoluta dos achados positivos, menos
ainda nas estatísticas, e sim, acima de tudo, na enunciação dos
problemas, que foi motivada por uma autêntica preocupação
social e se relacionou com uma teoria que, até então, não fora
traduzida em investigações quantitativas desse tipo”. Apesar de
ter quase mil páginas, o volume final foi considerado pelos
autores como apenas um “estudo piloto”. Se esse era o
verdadeiro propósito, não há dúvida de que teve sucesso. Um
dos primeiros comentaristas de todos os volumes dos Estudos
sobre o preconceito acertou em chamá-los de “um acontecimento
180
memorável na ciência social”. Nos anos seguintes, o estímulo
fornecido por eles, e em particular pelo estudo de Berkeley
resultou em uma enxurrada de pesquisas (JAY, 2008 p. 315).
Dado este contexto geral, que achamos necessário para nos
apropriarmos, ainda que de forma breve, da dinâmica dos estudos
sobre a personalidade autoritária e sua importância, cabe tratarmos,
antes de finalizarmos este capítulo, das variações básicas da
personalidade identificadas na pesquisa a partir dos avanços
conseguidos com a Escala F e em todo o desenvolvimento do
trabalho.
Tratadas como síndromes ou tipologias, essas variações
encontradas representam a análise para os organizadores de La
personalidad autoritaria do resultado dos trabalhos com as entrevistas
e as escalas, especialmente a destacada Escala F. Cientes das críticas
já existentes à época sobre a questão da tipologia, na perspectiva do
engessamento ou da determinação caracterológica de qualquer
indivíduo ser sempre considerada uma abordagem incompleta e,
portanto, trivial, esclarecem os autores os motivos de sua opção por
tal registro. Não nos ateremos a fundamentar todos os argumentos,
muito bem desenvolvidos no início do capítulo XIX do estudo, mas
destacaremos brevemente alguns poucos pontos.
Era claro para os autores que, além dos argumentos
plausíveis para a contrariedade ao uso de tipologias,
[...] a crítica dos tipos psicológicos expunha um impulso
verdadeiramente humano, dirigido contra essa espécie de
subsunção de indivíduos em categorias preestabelecidas que foi
consumada na Alemanha nazista, onde a rotulação de seres
181
humanos vivos, independentemente de suas qualidades
específicas, resultou em decisões sobre sua vida e morte
(ADORNO, 2019, p. 518-519).
Referindo-se às análises do “cientista nazista” Jaensch sobre
a personalidade, já citado anteriormente no capítulo II do nosso
texto, e a sua manipulação arbitrária das descobertas empíricas, os
autores esclarecem que “a natureza essencialmente não dinâmica,
‘antissociológica’ e quase biológica de classificações como as de
Jaensch, é diretamente oposta à teoria do nosso trabalho, bem como
aos seus resultados empíricos” (ADORNO, 2019, p. 519).
Destacando que um dos motivos para a insistência na abordagem
tipológica não é nem biológica, nem estática, mas, ao contrário,
dinâmica e social, explicitam o entendimento de que ao longo do
tempo a sociedade dos homens tem sido dividida e classificada em
classes. Neste sentido, isto influencia mais os homens do que suas
relações externas, e as marcas da repressão social são deixadas em sua
alma. E complementam:
As pessoas formam classes psicológicas por terem sido
marcadas por processos sociais variados. Provavelmente isso seja
válido para a nossa própria cultura de massas padronizada em
um grau ainda maior do que em períodos anteriores. [...] Em
outras palavras, a crítica da tipologia não deve negligenciar o
fato de que um grande número de pessoas não são mais, ou
nunca foram, indivíduosno sentido da filosofia tradicional do
século XIX. O pensamento de ticket é possível apenas porque a
existência real daqueles que se entregam a ele é largamente
determinada por tickets, processos sociais padronizados,
opacos e avassaladores que deixam ao “indivíduo” pouca
182
liberdade de ação e individuação verdadeira. Assim, o problema
da tipologia é colocado em uma base diferente. Há razões para
procurar por tipos psicológicos porque o mundo em que
vivemos é tipificado e produz diferentes tipos de pessoas.
Somente identificando traços estereotipados em seres humanos
modernos, e não negando sua existência, pode-se desafiar a
tendência perniciosa à classificação e subsunção generalizadas
(ADORNO, 2019, p. 522).
Portanto, sem a ingenuidade de se pautar por equivocadas
percepções sobre o uso da tipificação na análise dos casos, os
pesquisadores de La personalidad autoritaria (1965) caminham na
compreensão de que tal procedimento cumpra uma função mais
especificamente dialética do que nos moldes cientificistas e
positivistas que encantaram tantos pesquisadores inicialmente e se
mostraram como perversos na mão dos nazistas.
Para encerrar este ponto, destacamos apenas mais um
fragmento da argumentação dos autores (ADORNO, 2019, p. 523-
524):
Dentro do contexto de nosso estudo, outra reflexão de natureza
inteiramente diferente aponta para a mesma direção. E ela é de
natureza pragmática: a necessidade de que a ciência forneça
armas contra a potencial ameaça que representa a mentalidade
fascista. É uma questão em aberto e até que ponto o perigo
fascista realmente pode ser combatido com armas psicológicas.
O “tratamento” psicológico de pessoas preconceituosas é
problemático por causa de seu grande número, bem como
porque elas não estão de modo algum “doentes”, no sentido
usual, e, como vimos, pelo menos no nível superficial
costumam ser frequentemente ainda mais bem “ajustadas” do
183
que as não preconceituosas. Como, no entanto, o fascismo
moderno é inconcebível sem uma base de massa, a compleição
interna de seus prováveis seguidores ainda mantém seu
significado crucial e nenhuma defesa seria verdadeiramente
“realista” se não levasse em conta a fase subjetiva do problema.
É óbvio que as contramedidas psicológicas, em vista da extensão
do potencial fascista entre as massas modernas, são promissoras
apenas se forem diferenciadas de tal maneira que sejam
adaptadas a grupos específicos. Uma defesa geral se moveria em
um nível de generalidades tão vagas que provavelmente
permaneceria rasa. Pode ser considerado como um dos
resultados práticos de nosso estudo que tal diferenciação tenha,
pelo menos, de ser também uma que siga as linhas psicológicas,
já que certas variáveis básicas do caráter fascista persistem de
forma relativamente independente de diferenciações
acentuadas.
Ao tratar sobre o viés pragmático também do estudo, não
significava para os autores que se encerrava a argumentação na
consideração de que sejam estudadas e discutidas apenas as questões
subjetivas. Ao contrário, é claro para eles que
O caráter potencialmente fascista deve ser considerado com um
produto da interação entre o clima cultural do preconceito e as
respostas “psicológicas” a esse clima. O primeiro consiste não
apenas em fatores externos brutos, como condições econômicas
e sociais, mas em opiniões, ideias, atitudes e comportamentos
que parecem ser do indivíduo, mas que o se originaram nem
de seu pensamento autônomo nem de seu desenvolvimento
psicológico autossuficiente, sendo devidos ao seu
pertencimento à nossa cultura. Esses padrões objetivos são tão
disseminados em sua influência que explicar por que um
184
indivíduo resiste a eles é tão difícil quanto explicar por que eles
são aceitos (ADORNO, 2019, p. 530-531).
Por isso, cientes de toda a problemática subjacente ao uso
das tipologias, mas cientes também dos fundamentos que
sustentavam o projeto, atuando nas duas frentes, a da subjetividade
e a das condições objetivas, Adorno e o grupo de Berkeley
estabeleceram suas análises e avaliações, considerando onze
síndromes relacionadas aos escores de pontuação. Destas onze
tipificações, seis apresentaram um alto escore e, cinco, uma
pontuação baixa. As síndromes que tiveram alta pontuação foram
denominadas como: ressentimento superficial, a síndrome
convencional, a síndrome autoritária, o rebelde e o psicopata, o
alucinado e o tipo manipulador. Nas relacionadas com a menor
pontuação, temos as síndromes do baixo pontuador “rígido”, o baixo
pontuador “manifestante”, o baixo pontuador “impulsivo”, o baixo
pontuador “tranquilo” e o liberal genuíno.
Nas análises dos altos pontuadores, segundo os autores, os
tipos convencional e autoritário se apresentaram como os mais
frequentes e, no caso dos baixos pontuadores, prevaleceram os tipos
manifestante e tranquilo. Mas alertam os autores “que os baixos
pontuadores são, como um todo, menos ‘tipificados’ do que os altos
pontuadores, de modo que devemos evitar qualquer generalização
indevida” (ADORNO, 2019, p. 569).
Na sequência, numa breve apresentação dos vários tipos,
retomamos o encaminhamento a partir dos que atingiram alta
pontuação.
185
O primeiro tipo, caracterizado como o do ressentimento
superficial, representa o indivíduo que concorda com estereótipos de
preconceitos construídos fora dele, os quais assume como se fossem
seus a fim de justificar seu próprio fracasso. É acessível à
argumentação racional e, também, é capaz de justificar seu
preconceito de forma sensata, pois o racionaliza para construir sua
legitimação. Mas prevalece como acrítico na sua atitude. Acredita
que o “outro” é o responsável e culpado pelo que ele não tem.
Destaca a análise que,
Provavelmente, buscam primeiramente essa culpa dentro de si
mesmas e se consideram, pré-conscientemente, como
“fracassadas”. Os judeus as aliviam superficialmente desse
sentimento de culpa. O antissemitismo lhes oferece a
gratificação de serem “boas” e inocentes e de colocar o ônus em
alguma entidade visível e altamente personalizada. Esse
mecanismo foi institucionalizado. Pessoas como as do nosso
caso 5043 provavelmente nunca tiveram experiências negativas
com os judeus, mas simplesmente adotam o julgamento
pronunciado externamente por causa do benefício que extraem
dele (ADORNO, 2019, p. 538).
Neste sentido, poderia ser qualquer minoria ou
representação, o negro, o imigrante ou alguma outra categoria que
representasse esta “justificativa”. Pode manter-se nesse nível do
preconceito e até diminuí-lo, por sua abertura a um certo
entendimento, mas, como pontua alto em todas as escalas, expressa
a generalidade da perspectiva preconceituosa que evidencia como as
tendências subjacentes da personalidade seriam os determinantes
últimos” (ADORNO, 2019, p. 534). Provavelmente, no caso da
186
força de uma ideologia fascista manifesta politicamente, este
indivíduo poderia se tornar mais hostil e aderir a este projeto
destrutivo.
O indivíduo caracterizado pela síndrome convencional
identifica-se pela estereotipia que é externa, mas que se integra à sua
personalidade no sentido de conformação geral. É o caso, por
exemplo, da ideia de virilidade masculina como padrão para o
homem e a limpeza e a feminilidade para a mulher. Como um dos
destaques que mais apareceram nas altas pontuações da escala,
identifica-se com um grupo ao qual pertence ou nutre o desejo de
pertencer e, por isso, afasta-se de qualquer outro grupo, assumindo
preconceitos contra ele, sem refletir, se estiverem de acordo com o
grupo a que acredita pertencer. Prevalece, portanto, um pensamento
que se firma na relação in-group e out-group. É o trabalhador bem-
educado, adaptado, não necessariamente de classe social elevada, que
não apresenta impulsos violentos, mas também não conflitará com
as determinações a que está submetido, psíquica ou socialmente.
Avesso aos extremos, seguirá as regras sem questioná-las, buscando
preservar um status quo e os “valores da civilização e da decência”.
A síndrome autoritária, que como o convencional também é a
que mais aparece nas altas pontuações destacadas pelo estudo,
apresenta um indivíduo que “segue o padrão psicanalítico ‘clássico’,
que envolve uma resolução sadomasoquista do complexo de Édipo
e que foi assinalado por Erich Fromm sob o título de caráter
‘sadomasoquista’ (ADORNO, 2019, p. 543-544). Conforme
Crochík (1996, p. 66),
187
O tipo autoritário dirige impulsos hostis ao objeto do
preconceito. Devido à sua ambivalência frente ao pai, que
representa a autoridade, cinde os seus afetos, dirigindo o seu
amor ao pai e o ódio àqueles que representam uma ameaça
imaginária ao grupo a que pertence. O ódio que sente também
é cindido em uma parte masoquista, que emprega para
submeter aqueles que julga mais frágeis a si. A experiência e a
razão pouco podem fazer para atenuar ou eliminar o seu
preconceito e, de outro lado, como a nossa cultura preza a
hierarquia, a obediência e a força, não se sente inadaptado a ela.
Na perspectiva do autoritário, sua condição de ajuste social
se dará no prazer que sente pela obediência e pela subordinação,
manifestando, neste contexto, o sadomasoquismo. Sente-se bem,
“mandando” em outros, para ele inferiores, mas submete-se
irrestritamente à obediência a um líder ou a um grupo com o qual
se identifique, considerados superiores. Na resolução do seu
complexo de Édipo, o ódio pelo pai, frente ao amor pela mãe, que é
proibido, “transforma-se” em amor pela figura do pai austero,
severo, violento, mas que fez “tudo para seu bem” e porque “ele
merecia”. O ódio pelo progenitor, não resolvido e conformado em
amor, é transferido para aquele ou aqueles que serão vítimas do seu
preconceito. Neste sentido,
O judeu frequentemente se torna um substituto para o pai
odiado, muitas vezes assumindo, em um nível de fantasia, as
mesmas características do pai contra as quais o sujeito se
voltava, tal como a de ser prático, frio, dominador e mesmo um
rival sexual. A ambivalência é generalizada, sendo evidenciada
principalmente pela simultaneidade da crença cega na
autoridade e da prontidão para atacar aqueles que são
188
considerados fracos e que são socialmente concebidos como
“vítimas”. A estereotipia, nessa síndrome, não é apenas um
meio de identificação social, mas tem uma função
verdadeiramente “econômica” na própria psicologia do sujeito:
ajuda a canalizar sua energia libidinal de acordo com as
exigências de seu supereu
39
extremamente rigoroso. Assim, a
própria estereotipia tende a se tornar fortemente libidinizada e
desempenha um papel importante na constituição interna do
sujeito (ADORNO, 2019, p. 545).
Apresentando uma crença religiosa aparentemente
compulsiva e altamente punitiva, paradoxalmente concebe como
aceitáveis determinados comportamentos condenáveis na sua
própria moral, desde que não represente um conflito social. Por
39
Refere-se ao Superego. Como adiantamos anteriormente, ao trazermos citações que
remetem aos textos de Estudos sobre a personalidade autoritária (2019), seguiremos o registro
apresentado pelos tradutores, que optaram por utilizar os termos Eu, Supereu e Isso, no
lugar de Ego, Superego e Id. Quando for de nosso próprio registro, manteremos os termos
em sua forma já consagrada. Isso não implica necessariamente discordância com a opção
dos tradutores, mas por uma questão de proximidade de nossa parte com a terminologia
que, acreditamos, facilita também para uma compreensão do público em geral. Contudo,
consideramos importante registrar o esclarecimento dos tradutores: “[...] a tradução de
‘ego’, ‘superego’ e ‘id’ por ‘eu’, ‘supereu’ e ‘isso’, fruto de bastante debate entre os
tradutores, merece maior atenção. Poderíamos ter optado pela manutenção dos termos
latinos e mais literais relativamente ao original em inglês, algo que evitaria possíveis
confusões em leitores não muito versados nos termos psicanalíticos freudianos. Afinal,
Adorno não comenta ou critica a tradução do original ‘Ich’ pelo conceito inglês ‘ego’ em
nenhum momento de sua obra. No entanto, consideramos o posicionamento adorniano
contra os neofreudianos, que ‘expandiram’ o termo ‘ego’ para aplicações e contextos que
fogem à letra e ao espírito freudianos, como uma ‘socialogização’ da psicanálise para fins de
controle e adequação social, ignorando os conflitos sofridos e a dialética enfrentada por essa
instância psíquica o que é retratado neste livro pela ênfase dada por Adorno às
contradições dos mais autoritários. É como forma de situar Adorno em uma posição mais
afastada de releituras freudianas e mais próximo ao ‘espírito’ de Freud que emprega
termos usuais no alemão correntemente adotados por seus pacientes para designar conceitos
psicanalíticos que resolvemos fazer o mesmo ao traduzir as instâncias psíquicas
mencionadas por ‘eu’, ‘supereu’ e ‘isso’” (ADORNO, 2019, p. 27-28).
189
exemplo, concebe que a mentira é errada, mas, se quem mente é
respeitável e não foi descoberto, então a atitude não estaria errada.
Psiquicamente, está em constante ambivalência na sua existência,
pois no conflito in-group-out-group, para que não haja rupturas,
impõe disciplina autoritária a si mesmo pela identificação com a
estrutura da família ou com o próprio grupo. Ou seja, ao todo a que
está submetido.
O rebelde e o psicopata, a quarta síndrome registrada,
caracteriza-se especialmente pela tendência a ações excessivas
consideradas toleradas, como por exemplo, grandes bebedeiras, entre
outras que manifestem rebeldia, mas não são pessoas tão rígidas
quanto o autoritário em sua constituição ortodoxa (ADORNO,
2019). Explica-nos Crochík (1996, p. 66) que,
[...] ao contrário do autoritário, identifica-se com a autoridade
inconscientemente, mas manifestamente se contrapõe a
qualquer tipo de poder. É niilista e preza o presente. O alvo de
seu preconceito não é especificamente elaborado, serve, apenas,
para dar vazão aos seus impulsos hostis. A sua agressividade em
geral, é dirigida aos mais frágeis, e se dá, segundo os autores,
devido a uma aliança inconsciente com a autoridade que
representa a força. Não consegue identificar-se com a
hierarquia no mundo do trabalho, pois não quer seguir regras;
quando trabalha, a sua realização não se dá como uma forma
de sublimação, mas pela satisfação direta de seus impulsos
hostis. Ainda segundo esses autores, o rebelde é um tipo de
indivíduo comum nas camadas mais pobres da população e se
adapta bem ao trabalho de torturador nos regimes
manifestamente fascistas.
190
Como alguém que se rebela constantemente contra os
códigos e os padrões, o psicopata vive a ansiedade de ter satisfeitos,
imediatamente, os “prazeres da gratificação”. Não consegue esperar
e, além disso, manifesta também o componente masoquista. A
primeira condição provavelmente por um fracasso na constituição
do superego, prejudicando a formação do ego. A segunda, numa
perspectiva punitivista, pois, ao resolver o complexo de Édipo pela
insurreição contra a autoridade do pai, o psicopata não encontra, na
realidade, um caminho que o estabilize. Permanece uma percepção
da culpa e a crença de que merece o castigo (ADORNO, 2019).
No caso do alucinado, percebe-se um padrão de frustração.
São pessoas que não se ajustam à realidade, que não encontraram o
[...] equilíbrio entre renúncias e gratificações e cuja vida interior
é determinada pelas negações impostas sobre elas de fora, não
só durante a infância, mas também durante a vida adulta. Essas
pessoas são levadas [driven] ao isolamento. Elas têm que
construir um mundo interior ilusório, que muitas vezes se
aproxima da alucinação, enfaticamente estabelecido contra a
realidade do exterior. Elas podem existir apenas por
autoengrandecimento, juntamente com a rejeição violenta do
mundo externo. Sua “alma” se torna sua mais querida
possessão. Ao mesmo tempo, são altamente projetivas e
desconfiadas. Uma afinidade com a psicose não pode ser
negligenciada: elas são “paranoicas” (ADORNO, 2019, p. 556-
557).
Essas pessoas dependem do preconceito para garantir que
não sucumbam às doenças mentais agudas, decorrentes da
coletividade e, também, para que possam construir sua falsa
191
realidade, expressando sua agressividade contra o objeto do
preconceito. São propícias a teorias conspiratórias, desde o antigo Os
protocolos dos Sábios de Sião aos atuais QAnon e o famigerado
“marxismo cultural”, repaginação do bolchevismo cultural dos
nazistas. Passíveis de uma “revelação divina” e suscetíveis a
“experiências sobrenaturais”, as seitas e os agitadores panfletários, na
política, por exemplo, são atraentes para suas percepções de mundo.
Por fim, nos altos escores, encontramos o tipo manipulador.
Não é a síndrome que mais aparece nas altas pontuações, mas, para
Adorno, de todas, é a mais perigosa. O indivíduo manipulador tem
seu afeto deslocado para a técnica. Sua mentalidade se caracteriza
pelo cálculo pragmático e pela frieza. Destacamos a análise de
Wiggershaus (2006, p. 458):
Para Adorno, o tipo potencialmente mais perigoso mais do
que o indivíduo sofrendo de “ressentimento superficial”, de
“conformismo”, de “autoritarismo”, mais do que o “psicopata
e o “tecelão” era o “manipulador”. [...] Himmler é o símbolo
dos numerosos portadores dessa síndrome entre os políticos
anti-semitas e fascistas da Alemanha. Sua inteligência fria e sua
ausência quase completa de sentimentos fazem com que
ignorem a piedade. Como eles lançam sobre tudo os olhos do
organizador, estão predispostos às soluções totalitárias. Seu
objetivo é a construção de câmaras de gás mais do que o pogrom.
Não sentem sequer necessidade de odiar os judeus, ‘despacham’
suas vítimas por via administrativa sem ter com elas contato
pessoal”. Afinal, o elemento decisivo não eram as atitudes anti-
semitas, e sim atitudes e comportamentos totalmente isentos de
respeito pelos seres vivos, pelos humanos, pelas vítimas da
discriminação. Não era o anti-semitismo que era decisivo, era a
ausência de um verdadeiro anti-semitismo. Essa ausência
192
tornava anti-semitóides (essa palavra é de Horkheimer) mesmo
aqueles que, colocados num ambiente de intimidade ou de
camaradagem, não mostravam nenhum vestígio de anti-
semitismo. Por isso, o recuo do anti-semitismo nos Estados
Unidos não tinha nada para tranquilizar a equipe de Berkeley e
Adorno tanto menos que tinha sido encontrado um
substituto há muito tempo, o anticomunismo.
Segundo o registro dos autores (ADORNO, 2019),
definindo-se por uma estereotipia extrema, o manipulador divide o
mundo em um modelo administrativo, esquematizado e vazio, onde
deve prevalecer a eficiência, e suas concepções técnicas são tomadas
como fins em si mesmas, não meios. Não manifesta praticamente
nenhuma empatia e, ao contrário da paranoia do alucinado, pode
ser relacionado com a esquizofrenia. Talvez sua única qualidade
moral, mas também com um fim pragmático na perspectiva do
indivíduo manipulador é a lealdade que, aparentemente é sua
compensação pela falta de afetos que ele mesmo tem. Lealdade que
se traduz na identificação completa com o grupo ao qual pertence,
em que deve prevalecer o bem do “todo”, da sua “unidade” ou
“tropa”, independentemente de sua individualidade. Para concluir
sobre este tipo de alto pontuador, cabe a observação de Crochík
(1996, p. 67):
Aprecia o trabalho quando este lhe permite
exercer um controle eficaz, sem que o conteúdo
do trabalho em si mesmo importe. Se não há
afetos em relação às pessoas, esse são deslocados
para a técnica. Segundo dizem os autores, é de
se esperar um número crescente desse tipo de
193
indivíduo em nossa cultura, pois esta preza a
eficácia do emprego da técnica de forma
desarticulada dos fins visados.
Na nossa compreensão e análise, até aqui, continua
atualíssimo o estudo de La personalidad autoritaria (1965). Dadas
estas considerações sobre os altos pontuadores, encaminhamo-nos
para um breve entendimento das tipificações dos baixos
pontuadores.
Destas síndromes, a primeira, a do baixo pontuador “rígido”,
representa os indivíduos que tendem a apresentar um superego forte,
manifestando concomitantemente, compulsividades, substituindo a
figura do pai pela idealização de alguma coletividade, “[...]
possivelmente moldada a partir da imagem arcaica do que Freud
denomina horda fraterna” (ADORNO, 2019, p. 568). O tabu que
prevalece para estes, dirige-se contra violações daquilo que
representa o amor fraterno, seja ele uma realidade, seja mera
suposição de sua parte. Essa síndrome se destaca inicialmente porque
mostra características marcadamente estereotipadas. Apresenta a
ausência de preconceito, mas isto não se fundamenta numa
experiência efetiva, que se integra no interior da personalidade. Ao
contrário, provém de alguma padronização geral, que vem do
exterior e fundamenta-se ideologicamente. Segundo os autores,
As últimas categorias de baixos pontuadores estão
definitivamente dispostas ao totalitarismo em seu pensamento;
o que é acidental, até certo ponto, é a marca particular da
fórmula ideológica de mundo com a qual eles por acaso entram
em contato. Encontramos alguns sujeitos que se identificaram
194
ideologicamente com algum movimento progressista por um
longo tempo por exemplo, com a luta pelos direitos das
minorias , mas em quem tais ideias continham características
de compulsão, mesmo de obsessão paranoica, e que, a respeito
de muitas de nossas variáveis, sobretudo a rigidez e o
pensamento “total”, dificilmente poderiam ser diferenciadas de
alguns dos nossos altos pontuadores extremos. Todos os
representantes dessa síndrome podem, de uma forma ou de
outra, ser considerados como contrapartidas do tipo
“Ressentimento superficial”. O caráter acidental de sua
perspectiva geral faz que sejam suscetíveis a mudar de lado em
situações críticas, como foi o caso de certas categorias de
radicais sob o regime nazista. Podem ser frequentemente
reconhecidos por certo desinteresse em relação a questões
cruciais das minorias per se, sendo, antes, contra o preconceito
enquanto um princípio da plataforma fascista; mas, às vezes,
eles também veem somente os problemas das minorias
(ADORNO, 2019, p. 570-571).
Geralmente, entre estudantes e jovens progressistas, pode-se
encontrar representantes dessa síndrome, por apresentarem um
desenvolvimento pessoal incompatível com doutrinações ideológicas
que abraçam com o ímpeto da jovialidade. Na perspectiva fraternal,
a rigidez religiosa se manifesta no entendimento da aceitação
racional do punitivismo, por exemplo, do fumante que morreu por
causa do cigarro (mereceu...) e, provavelmente, da minimização da
ação do estuprador por causa da “provocação” causada pela vítima.
Dotada de um “otimismo oficial”, mesmo que as evidências se
manifestem contrárias socialmente e que haja um projeto fascista em
andamento, essa pessoa, “sob diferentes condições, [...] poderia estar
195
disposta a se juntar a um movimento subversivo, desde que este finja
ser ‘cristão’ e queira o ‘melhor’” (ADORNO, 2019, p. 574).
O baixo pontuador “manifestante”, que Crochík (1996) anota
como protestador, recordamos, é um dos que mais prevalecem no
caso dos baixos escores. Representa, em muitos aspectos, o
contraponto do autoritário, e o que o determina não é a
racionalidade, mas características psicológicas. Edipianamente, são
profundamente afetados ao resolverem a insurreição contra a
autoridade paterna, internalizando, em alto grau, a imagem do
próprio pai. Neste sentido,
O tipo protestador tem um superego bem desenvolvido, tem
uma consciência interna que se opõe à autoridade externa e
tenta reparar as injustiças contra as minorias. Apresenta, tal
como o rígido, um ideal coletivo que parece aproximar-se de
um ideal, de um mundo perfeito, o que talvez o afaste da
experiência que lhe permitiria fortalecer o ego (CROCHÍK,
1996, p. 67).
Por isso, sentem-se frequentemente culpados. Sem
manifestar o autoritarismo, possuem uma internalização da
consciência muito forte, mas, paradoxalmente, encontram limites
psicológicos, sendo “incapazes de agir de forma tão enérgica quanto
sua consciência exige. É como se a internalização da consciência
tivesse tido tanto sucesso que eles se tornam severamente inibidos ou
mesmo psicologicamente ‘paralisados’” (ADORNO, 2019, p. 575).
Pela presença dessa consciência forte, análoga provavelmente
à força da consciência religiosa, mas não restrita a esta e muitas vezes
nem identificada com ela, o protesto do manifestante se fundamenta
196
na perspectiva moral, de forma autônoma e desprendida de códigos
morais externos, caso da própria religião. Detentora de um senso de
justiça forte, contra qualquer ideia de tirania, encontra sua base mais
no superego, bem desenvolvido, do que na perspectiva
intelectualizada do ego menos resolvido (ADORNO, 2019).
No caso do baixo pontuador “impulsivo”, encontramos as
pessoas que nunca alcançaram a integração dos fortes impulsos do
id com o ego e o superego. Em constante conflito com uma libido
avassaladora, “[...] estão, de certa forma, tão próximas da psicose
quanto o ‘Alucinado’ e o ‘Manipulador’ entre os altos pontuadores
(ADORNO, 2019, p. 569). Manifesta-se a síndrome em pessoas
bem ajustadas, com um id muito forte, mas basicamente livres de
impulsos destrutivos. Nesse sentido, pela questão libidinal que
prevalece, são simpáticas a tudo que consideram como reprimido.
Atraem-se pelo que é diferente e que aparenta garantir uma nova
gratificação. Na presença de elementos destrutivos, parece que
catalisam para si mesmas estas questões ao invés de posicionar-se
contra outras pessoas. Síndrome ampla, pode conter em seu espectro
pessoas libertinas, viciadas das mais diversas categorias, prostitutas,
criminosos não violentos, atores, profissionais do circo e aqueles que
são tidos como vagabundos (ADORNO, 2019). De acordo ainda
com os autores,
É difícil dizer quais são as fontes psicológicas mais profundas
dessa síndrome. Parece, no entanto, que há fraqueza tanto no
supereu
40
quanto no eu
41
e que isso torna esses indivíduos um
40
Superego.
41
Ego.
197
tanto instáveis em questões políticas, assim como em outras
áreas. Eles certamente não pensam por estereótipos, mas é
duvidoso em que medida conseguem conceitualizar qualquer
coisa (ADORNO, 2019, p. 581).
O baixo pontuador “tranquilo”, nominado despreocupado por
Crochík (1996), juntamente com o tipo manifestante é o que mais
prevalece nos baixos escores. Suas características são opostas à do
“Manipulador”, de alto escore. Na análise desta síndrome,
consideraram que o id parece encontrar pouca repressão,
sublimando-se em compaixão, com um superego bem desenvolvido.
As funções extrovertidas do ego, por sua vez, que se apresenta bem
articulado, não refletem o mesmo ritmo. Podem aproximar-se da
neurose nas tomadas de decisão, pois seu maior receio, medo
efetivamente, é de que venham a machucar alguém ou alguma coisa
a partir do seu agir (ADORNO, 2019).
Deste modo, contrariamente ao tipo impulsivo, apresenta
controle sobre sua experiência e evita molestar os outros a qualquer
custo. Apresentando uma certa riqueza psicológica no seu viver
cotidiano,
Raramente são radicais em sua perspectiva política, mas, antes,
comportam-se como se já estivessem vivendo sob condições não
repressivas, em uma sociedade verdadeiramente humana, uma
atitude que tende, às vezes, a enfraquecer seu poder de
resistência. Não há evidências de tendências verdadeiramente
esquizoides. São completamente não estereopáticos o que
resistam a estereotipias, mas simplesmente não conseguem
entender o anseio [urge] por subsunção (ADORNO, 2019, p.
584-585).
198
Segundo os autores, o tipo “Tranquilo” tem uma etiologia
um tanto quanto obscura. Aparentemente sem a predominância de
alguma agência psicológica ou qualquer traço de regressão à fase
infantil, precisam ser entendidos numa perspectiva dinâmica. Neste
sentido,
São pessoas cuja estrutura de caráter não se tornou “congelada”:
nenhum padrão de controle por qualquer uma das agências
[agencies] da tipologia de Freud se cristalizou, mas eles são
completamente “abertos” à experiência. Isso, no entanto, não
implica fraqueza do eu, mas antes ausência de experiências e
deficiências traumáticas que poderiam de outra forma levar à
“reificação” do eu. [...] Talvez possam ser mais bem
caracterizados como aqueles que não têm medo das mulheres.
Isso pode explicar a ausência de agressividade. Ao mesmo
tempo, é possivelmente um indicativo de um traço arcaico: para
eles, o mundo ainda tem um aspecto matriarcal. Assim, podem
muitas vezes representar, sociologicamente, o genuíno
elemento “popular” contra a civilização racional (ADORNO,
2019, p. 585).
Encontrados nos estratos das classes média-baixa, não
manifestarão nenhuma ação política. Contudo, finalizam os autores,
“pode-se contar com eles como pessoas que, sob qualquer
circunstância, jamais se ajustarão ao fascismo político ou
psicológico” (ADORNO, 2019, p. 586).
Finalmente, o liberal genuíno, última síndrome analisada, é
o contrário do tipo tranquilo, pois, acompanhando Crochík (1996,
p. 67),
199
[...] aproxima-se do ideal freudiano e apresenta um bom
equilíbrio entre as três instâncias psíquicas. Introjeta os valores
ideais paternos, mas não de forma rígida, o que lhe permite dar
vazão a alguns impulsos provenientes do id. Identifica-se com
as minorias sem deixar de diferenciá-las, percebe a realidade não
através de classes ou de categorias, mas de indivíduos.
Com um ego bem desenvolvido, não refém da libido,
raramente manifesta o narcisismo. Capaz de lidar com a
manifestação do id, assumindo as consequências, aproxima-se do
“tipo erótico” de Freud. Sua coragem moral extrapola sua avaliação
racional das situações e não se sujeita ao silêncio se algo está errado,
mesmo que implique risco para sua segurança. Plural em suas
características, compartilha muitas delas com as outras síndromes
destacadas em baixas pontuações. Assim,
Como o “Impulsivo”, ele é pouco reprimido e até tem certa
dificuldade em manter-se sob “controle”. No entanto, seu
emocional não é cego, e sim dirigido para a outra pessoa como
sujeito. Seu amor não é apenas desejo, mas também compaixão
na verdade, pode-se pensar em definir essa síndrome como o
baixo pontuador “compassivo”. Compartilha com o baixo
pontuador “Manifestante” o vigor e a identificação com o
oprimido, mas sem compulsão e sem traços de
sobrecompensação: não é um “amante de judeu” [“Jew lover”].
Como o baixo pontuador “Tranquilo”, ele é antitotalitário, mas
muito mais conscientemente, sem o elemento da hesitação e
indecisão. É essa configuração, em vez de um único traço, que
caracteriza o “Liberal genuíno”. Interesses estéticos parecem
existir com frequência (ADORNO, 2019, p. 590).
200
Neste contexto, a partir da análise do liberal genuíno, os
autores de La personalidad autoritaria concluem que, se for possível
generalizar esta última constatação, extraindo consequências
referentes aos pontuadores de escore mais alto, seria possível
defender que o crescimento significativo do caráter fascista está
relacionado, em grande contexto, a mudanças fundamentais na
estrutura da própria família (ADORNO, 2019). Crochík (1996)
nos esclarece que, de modo geral, a descrição das síndromes encontra
sua estruturação a partir da resolução ou não do Complexo de
Édipo, passando, portanto, pela família. Pela apresentação do liberal
genuíno, entende-se que a família colaborou de forma efetiva, ao
transmitir ao sujeito, compreensão, carinho e condições que
facilitaram a superação deste complexo. Neste entendimento, se o
conflito edipiano está relacionado em sua base às dimensões
psíquicas, estas não estão imunes à influência da família sobre o
próprio complexo, na perspectiva de resolução deste.
***
Como foi possível perceber, as indicações de origens nas
famílias dos tipos de síndromes estudadas, constituíram-se em
importantes observações nas análises do estudo sobre a
personalidade na perspectiva de entendimento de suas estruturas
psíquicas e para o desvendamento da chamada personalidade
autoritária. Na perspectiva freudiana, a relação com a figura do pai
e a forma de resolução do complexo de Édipo eram determinantes
para a melhor integração ou desintegração das esferas psíquicas do
201
Ego, Superego e Id e, consequentemente, a construção social desse
sujeito.
Neste sentido, um pequeno aparte. Apesar da prevalência
naquele momento da ideia de família burguesa, construída e
estabelecida histórica e socialmente na perspectiva de um modelo,
entendemos que não é esta a questão que está em discussão. A
estrutura familiar, seja em que formato for, é lócus principal de
acolhida dos novos no mundo, espaço privado de proteção e
promoção de uma formação inicial imediata para nossa
humanização e, portanto, de nossa estruturação psíquica no
desenvolvimento da nossa personalidade em grande parte.
Evidentemente, o oposto é proporcionalmente possível. Ou seja,
sem utopismos, é uma estrutura que sempre exige atenção, pois
também pode contribuir como espaço de deformação, inicialmente,
violência e repressão, colaborando para a dificuldade ou
incapacidade de personalidades mais integradas existencialmente.
Na perspectiva de uma educação emancipadora, há que se considerar
necessariamente, todas as instâncias de nossa vida humana e,
efetivamente, a família é das principais. Assim,
Conforme revelado pelas entrevistas disponíveis, as
personalidades autoritárias tinham mais tendência a formar-se
em famílias em que a disciplina era rigorosa mais amiúde
arbitrária. Os valores parentais, com frequência, eram muito
convencionais, rígidos e exteriorizados. Como resultado, havia
uma probabilidade de esses valores permanecerem alienados do
ego também nas crianças, o que impedia o desenvolvimento de
uma personalidade integrada. O ressentimento com a rigidez
parental era comumente deslocado para outras pessoas,
enquanto a imagem externa do pai e da mãe se mostrava
202
sumamente idealizada. O pai severo e distante, descrito com
frequência nas entrevistas com pontuações elevadas na escala F,
muitas vezes parecia promover nos filhos uma passividade
combinada com agressividade e hostilidade reprimidas. Essas,
convém lembrar, eram características evidentes no tipo
sadomasoquista elaborado por Fromm nos Studien über
Autorität und Familie. Em contraste, os pais dos respondentes
de pontuação baixa eram lembrados como menos conformistas,
menos preocupados com o status e menos arbitrariamente
exigentes. Em vez disso, eram mais ambivalentes, afetuosos e
capazes de demonstrar emoções. Por conseguinte, a imagem
que os filhos tinham deles era menos idealizada e mais realista.
E, o que talvez fosse mais importante, a alienação do ego em
relação às normas morais era menos pronunciada, indicando a
probabilidade de uma personalidade mais integrada (JAY,
2008, p. 309).
Necessário esclarecer, retomando os propósitos apresentados
para os estudos e para as determinações tipológicas consideradas por
Adorno e o grupo de Berkeley, que não implica que as conclusões
apresentadas até aqui devam ser compreendidas numa perspectiva
indutivista. Como já foi explicitado e discutido, não se trata da
simples universalização dos particulares para a definição de uma
teoria geral, comumente defendida pelo modelo científico clássico e
criticado pelos frankfurtianos. No estabelecimento das análises e das
conclusões, o que se encontra é exatamente a percepção, a partir da
teoria crítica, da compreensão e utilização da psicanálise em sua
proposta monadológica, já tratada anteriormente. Não é um
absoluto que se estabelece, mas as perguntas que se instalam. Não se
trata de tomar como determinação social a análise particular dos
sujeitos, mas ter a percepção dos elementos que se instalam e se
203
encontram no sujeito que representam sua percepção do social.
Neste sentido, cumpre à psicanálise o papel que os frankfurtianos
defendiam, como percepção de uma “verdade particular” que não
pode ser reduzida a falsas totalizações, já tratada aqui. Trata-se de
uma condição que permite a compreensão da existência de
mecanismos psíquicos no profundo da estrutura da pessoa, o que
não implica a perspectiva da universalização ou tipificação como
subsunção dos sujeitos. Ao contrário, manifesta-se como
potencialidade de entendimento de que a relação entre a formação
da pessoa, sua subjetividade, as relações objetivas com a
materialidade, sua constituição social e a representação do social que
ela constrói dentro de si não são nem absolutas, nem estanques. Na
dialética entre o pessoal e o social, a subjetividade não pode ser
desconsiderada e, muito menos, a forma como se constitui esta
subjetividade. A própria estrutura do sujeito é dialética, nesta
perspectiva. E a relação com a estrutura familiar, fundamental para
a constituição de personalidades mais integradas, menos integradas
ou extremamente cindidas. Neste sentido,
A personalidade é “uma organização de forças, mais ou menos
durável, dentro do indivíduo”. A personalidade é um produto
histórico, o desfecho de um processo genético, cujos
determinantes mais profundos vêm da socialização familiar,
que determina de que forma os fatores ambientais
contemporâneos influenciam o comportamento. Por sua vez,
essa socialização familiar, pela qual o passado, num certo
sentido, predetermina as reações a estímulos presentes, depende
da situação social, étnica, e religiosa, de cada família. A
personalidade, uma vez constituída, constituiu um sistema, que
204
predispõe o indivíduo à aceitação de certas ideologias, e à
rejeição de outras (ROUANET, 2001, p. 168).
Por isso, para a clássica expressão, aparentemente dogmática
e incômoda, quando não irônica, reproduzida pelo senso comum,
de que “Freud explica tudoprovavelmente fruto do revisionismo
dos neofreudianos quando buscaram sociologizar a psicanálise ,
contrapomos a percepção de que “Freud não explica tudo”. A
psicanálise, neste sentido, é instrumento que colabora para o
entendimento ao dialetizar a existência e não absolutizá-la.
Neste contexto, retornando à questão da estrutura familiar,
anteriormente ao período da pesquisa, o Instituto ficara
impressionado com a análise da família alemã realizada por Erikson
em que se demonstrava que faltava ao pai uma autoridade
verdadeira. Neste contexto, a pseudo-revolta que Fromm classificara
como “o rebelde” significava, pela falta de um modelo adequado de
autoridade na casa, a busca por uma nova autoridade, síndrome que
os estudos de La personalidad autoritaria reconheceram e destacaram
nas análises adornianas “sobre os tipos ‘elevados de caráter’” (JAY,
2008, p. 310). Por isso,
[...] ao descrever a “síndrome autoritária”, Adorno remeteu o
leitor ao caráter sadomasoquista de Fromm e lançou mão das
ideias de Freud sobre o complexo de Édipo para explicar suas
origens. Nos casos em que os conflitos edipianos eram mal
resolvidos na infância, a agressividade contra o pai se
transformava em obediência masoquista e deslocamento da
hostilidade sádica. O que ligava essa explicação puramente
psicológica à perspectiva mais sociológica dos Studien era a
teoria de Horkheimer de que “a repressão social externa é
205
concomitante ao recalcamento interno das pulsões. Para chegar
à ‘internalização’ do controle social, que nunca dá tanto ao
indivíduo quanto tira dele, a atitude deste último para com a
autoridade e sua instância psicológica, o superego, assume um
aspecto irracional”. Adorno concluiu que essa era uma
síndrome que prevalecia amplamente na baixa classe média da
Europa e devia existir nos Estados Unidos “entre pessoas cujo
status real difere daquele que elas efetivamente aspiram”. Em
suma, a síndrome autoritária clássica não significava a simples
identificação com uma figura paterna forte, mas implicava, ao
contrário, ambivalência e conflito consideráveis quanto a essa
relação. A repressão externa, quando intensificada, servia para
ativar as tensões latentes da situação edipiana mal resolvida
(JAY, 2008, p. 310).
Na análise dos frankfurtianos, portanto, havia elementos que
transcendiam uma perspectiva puramente psicológica ou puramente
sociológica. Nem subjetivista nem objetivista em sua proposta. Na
dialetização das esferas de constituição da personalidade,
encontravam-se as pistas para a compreensão do fenômeno do
fascismo em sua perspectiva totalitária. A ambivalência e o conflito
que se manifestavam na constituição e estabelecimento da
personalidade do indivíduo, aparentemente encontravam corpo,
também, naquilo que se dava na existência e na percepção social
quando da aceitação da população que pensa e age em concordância
com o sistema que a oprime. Daquilo que se manifesta pelo recalque
interno das pulsões a partir da repressão social que se tem, o
autoritário, neste contexto, encontra gratificação. Aprofundando a
questão da família autoritária, nos aponta Martin Jay (2008, p. 311),
206
Dos dados de entrevistas emergiu uma família autoritária que,
por sua vez, era um reflexo de pressões externas crescentes.
Preocupada com seu status, aderindo rigidamente a valores que
já não sustentava de forma espontânea, a família autoritária
obviamente supercompensava o vazio que existia no seu
interior. A autoridade que ela tentava tão freneticamente
proteger já não era racional, na verdade. Como afirmou
Horkheimer num ensaio escrito em 1949, quanto mais as
funções econômicas e sociais da família eram liquidadas, mais
desesperadamente ela enfatizava suas formas convencionais
ultrapassadas. Até a mãe, cujo calor humano e proteção antes
haviam servido de amortecedores contra a dureza arbitrária do
mundo patriarcal as restrições de Fromm ao maternalismo
fizeram eco nesse ponto , já não era capaz de funcionar do
mesmo modo. A mamãe, escreveu Horkheimer, é a máscara
mortuária da mãe. Em contraste, revelou A personalidade
autoritária, a família do homem que tipicamente obtém uma
pontuação baixa parece centrar-se em sua mãe cuja função
primordial é dar amor, e não dominar, e que não é fraca nem
submissa. Não era de surpreender, portanto, que a
personalidade autoritária não costumasse sentir piedade, que é
uma qualidade materna. O solapamento da família pelos
nazistas, apesar de sua propaganda em contrário, não ocorrerá
por acaso. A família autoritária não produzia filhos autoritários
só pelo que fazia fornecer um modelo de dominação arbitrária
, mas também pelo que não podia fazer proteger o indivíduo
das exigências para a sua socialização, feitas por agentes
extrafamiliares. Assim, embora A personalidade autoritária
tenha-se concentrado nas origens intrafamiliares do novo tipo
antropológico, as implicações de sua análise apontaram para
fora, para a sociedade em geral. A ênfase do Institut no declínio
da família, a despeito do que disse Bramson em contrário, foi
preservada no retrato da família autoritária que ele desenhou
em seu trabalho posterior (JAY, 2008, p. 311).
207
Percebe-se, assim, que os elementos do autoritarismo
estudados não implicaram uma limitação da percepção pelo objeto
de estudo. Ao trabalharem com a hipótese da constituição da
personalidade autoritária a partir do declínio da família e das famílias
autoritárias, Adorno e o grupo de Berkeley também aprofundam
suas análises para o escopo da sociedade e da manifestação dessa
síndrome em suas estruturas. Na tensão da desestruturação do
modelo de família, socialmente, idealizado, ou da ideia de um
equilíbrio e proteção prometidos que já não se sustentavam, modelo
que também se calcara na dominação, o surgimento desse “novo tipo
antropológico” de personalidade autoritária encontrava espaço
numa sociedade que se transformava, ela própria, na sua feição
autoritária.
Neste sentido, antes de avançarmos, cabe um rápido
comentário apresentado por Martin Jay (2008, p. 311), tratando da
questão conceitual que subjaz nos estudos de La personalidad
autoritaria:
[...] deve-se fazer uma importante distinção entre autoritarismo
e totalitarismo. A Alemanha guilhermina e a nazista, por
exemplo, foram fundamentalmente dessemelhantes em seus
padrões de obediência. O que A personalidade autoritária
realmente estudou foi o tipo de caráter de uma sociedade
totalitária, e não de uma sociedade autoritária. Por isso, não
deveria causar surpresa que essa nova síndrome fosse fomentada
por uma crise familiar em que a autoridade paterna tradicional
ficava sob fogo cerrado.
O femeno totalitário, neste sentido, é o desdobramento
dessa personalidade autoritária que encontra a condição de
208
realização material e objetiva de seu projeto de destruição, expressão
de seus próprios conflitos interiores com a autoridade e a sua
limitação para uma verdadeira emancipação, manifestando-se na
barbárie que nunca deveria ter ocorrido. Na sociedade do
capitalismo tardio, da administração dos existentes e da
unidimensionalização entre o real e o ideal, pautada na perspectiva
da dominação, o flerte com o totalitarismo e o favorecimento para o
surgimento dessa síndrome autoritária não é mera coincidência.
Neste contexto, conforme nos apresenta Wiggershaus (2006, p.
449),
As características fundamentais do caráter fascista mostravam,
pois, um apego muito rígido aos valores dominantes,
principalmente aos valores convencionais da classe média: o
comportamento e a aparência exteriormente corretos e que
evitavam chamar atenção, o ardor pelo trabalho, a limpeza, o
sucesso, tudo isso aliado a uma antropologia pessimista, que
desprezava o homem, e com tendência para acreditar em
movimentos selvagens e perigosos no mundo e para temer, por
toda parte, os excessos sexuais; um pensamento e uma
sensibilidade preocupados, antes de mais nada, com a
hierarquia, combinados a uma submissão às autoridades
idealizadas de seu próprio grupo e ao desprezo por grupos
externos e elementos desviantes, discriminados, fracos; o
afastamento da auto-reflexão, da sensibilidade e da imaginação
ao mesmo tempo que a inclinação para a superstição e para uma
percepção da realidade falseada pelos estereótipos.
Diante desses elementos, e diante dos estudos apoiados na
psicanálise de La personalidad autoritaria, pode-se ainda afirmar,
sobre o caráter fascista, que
209
A fórmula psicanalítica se assim se pode dizer que, por um
lado, fora sugerida pelas descobertas feitas e, por outro lado,
tinha orientado a sua interpretação e teorização lembrava o
seguinte: o caráter fascista era caracterizado por um Ego fraco,
um Superego colocado fora do indivíduo e um Id estranho ao
ego. Seu Ego prendia-se às mudanças do estereótipo, da
personalização, do preconceito discriminatório; identificava-se
com o poder e só defendia a democracia, a moral e a
racionalidade para destruí-las; satisfazia suas pulsões em nome
de sua submissão à moral e de sua opressão nos grupos exógenos
e nos outsiders (WIGGERSHAUS, 2006, p. 450).
A identificação do caráter fascista, então, a partir da estrutura
psíquica que o compõe, nos remete novamente à epígrafe que
escolhemos para este capítulo, quando se lê que “parece significativo
que na sociedade de hoje, com suas massas fascistas integradas
artificialmente, exclui-se quase completamente referência ao amor”
(ADORNO, 2015, p. 162). Como não há o que amar no fascismo,
qualquer possível desejo do amor precisa ser recalcado e
transformado em obediência. A satisfação das pulsões se dá, nesta
perspectiva, na obediência irrestrita e no moralismo maniqueísta que
busca a destruição dos outros que, nesta ótica, são seus inimigos.
Considerados outsiders, não pertencem ao “seu grupo”, seja o judeu,
alguma minoria ou o opositor político. Neste sentido, concluindo
com as observações apresentadas por Wiggershaus (2006, p. 451),
O anti-semitismo era, de preferência, um componente de uma
atitude geral que dizia respeito não só aos judeus, nem sequer
mesmo unicamente às minorias, mas também à humanidade
em geral, à história, à sociedade e à natureza. Essa atitude geral
estava enraizada numa estrutura psíquica precisa. Era, afinal,
210
essa estrutura psíquica que aliás se reconhecia sempre,
inevitavelmente, por certas opiniões e certos tipos de
comportamento, mesmo aqueles que aparentemente se
referiam a temas totalmente pessoais ou neutros que decidia
sobre eles e permitia reconhecer que qualquer um tinha ou não
um caráter fascista e, portanto, era ou não um anti-semita em
potencial.
Reafirmando nossa percepção no encontro com os estudos
de Adorno e o grupo de Berkeley, parece muito claro que a pesquisa
apresenta sua importância, não só naquele momento, mas
provavelmente por muito tempo ainda, ao tratar do que é
primordial. Fugindo da armadilha cientificista ou da miragem do
empiriocentrismo que vigorava, os estudos não se pautaram na
identificação das pessoas fascistas ou tão pouco na ideia de
subsunção, por uma taxionomia das síndromes, de estabelecer uma
estereotipia aplicável a quem pudesse ser identificado como fascista.
Não caminharam também no sentido de estabelecer uma
conceituação, histórica ou dos elementos técnicos da estrutura do
fascismo a partir de sua manifestação política nazifascista. Não estava
em questão a catalogação ou estabelecimento de um processo de
registro permanente da história dos sujeitos estudados ou da
produção de um manual psicanalítico que permitisse identificar
quem é potencialmente fascista. Tampouco uma segregação das
pessoas por suas características ou pela pretensão de um domínio de
mecanismos de uma ciência que, coerente na metodologia, mas
nunca absoluta em suas conclusões, pudessem ser aplicados para nos
preservar do fascista em potencial.
211
Ao contrário, parte-se da tese de que há elementos possíveis
de serem entendidos como constituintes dessa personalidade
autoritária e que, estudando-os e entendendo-os, podemos pensar
perspectivas educacionais que resistam ou contraponham-se a estes
pontos. Moveram seu olhar para a constituição do pensamento
fascista, do seu potencial a partir das estruturas psíquicas que
constituem nossa personalidade em sua dialeticidade com a estrutura
social. Demonstraram, de forma ousada, que o fascismo é mais do
que uma teoria política que depende de ser implantada. É uma
forma de pensar, constituída psiquicamente, interconectada a uma
percepção de mundo e condições sociais que, se encontra clima
favorável, independentemente de nosso conhecimento histórico e
acadêmico, introjeta-se como “cultura de morte”. Neste sentido, vai
envenenando, aos poucos, as instituições democráticas e
favorecendo modelos autocráticos que, a depender da capacidade e
da criatividade desses legítimos representantes do tipo autoritário,
podem fazer o nazismo parecer brincadeira de criança. Aliás, não é
uma forma de pensamento que se exauriu com a derrota do nazismo.
Ao contrário, continua existindo e, de tempos em tempos,
manifesta-se de forma mais intensa ou mais restrita.
Deste modo, concluindo nossas análises sobre a questão da
personalidade autoritária, indicamos outro elemento que é
fundamental para a compreensão do potencial fascista nas sociedades
democráticas e que, desde sua utilização pelo nazismo na Alemanha,
adaptada e aprimorada pela Indústria Cultural, apresenta-se como
importante nas pretensões totalitárias: a propaganda. Nesta
percepção, encerramos com a seguinte citação de Wiggershaus
(2006, p. 458):
212
Adorno, [...] em sua interpretação do material reunido com as
entrevistas, escrevia sem usar meias palavras: Nos anos do
passado próximo, o conjunto da gigantesca maquinaria da
propaganda para intensificar a emoção anticomunista foi
organizado com a finalidade de criar um ‘pânicoirracional, e
não há, ao que parece, muitas pessoas com exceção das ‘fiéis
à linha’ capazes de resistir à longo prazo a essa pressão
ideológica incessante. Ao mesmo tempo, de uns dois anos para
cá, é cada vez mais ‘de bom-tom’ denunciar publicamente o
anti-semitismo se o grande número de artigos de revistas,
livros e filmes de altas tiragens pode ser considerado um
sintoma de tal tendência. Essas flutuações não podem quase ser
reduzidas a uma modificação da estrutura caracterial. Se
pudessem ser explicadas com certeza, demonstrariam a
importância extrema da propaganda política. Quando a
propaganda se dirige ao potencial antidemocrático da
população, ela determina, largamente, a escolha dos objetos
sociais de agressividade psicológica(WIGGERSHAUS, 2006,
p. 458).
Num momento em que já estava em campo e ganhando
força o movimento macarthista
42
e em que, de certo modo, a questão
42
Diante da conjuntura atual e da discussão a que nos propomos no campo educativo, é
importante um breve destaque a respeito do macarthismo, ocorrido nos Estados Unidos
naquele momento e a correlação com o Movimento Escola Sem Partido (ESP), uma das
frentes de ataque à Educação encampado pela extrema-direita no Brasil. O macarthismo,
movimento de cunho político-ideológico iniciado e liderado pelo Senador americano
Joseph Raymond McCarthy (1908-1957) representa um momento histórico marcado pela
forte repressão política e por uma excessiva perseguição ideológica àqueles que, suposta ou
comprovadamente, eram identificados ou considerados como comunistas. Base de
sustentação do contexto da Guerra Fria, o conflito entre Estados Unidos da América (EUA)
e a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), hoje Rússia, produziu
delírios como o de McCarthy que, efetivamente, desembocou numa caça às bruxas no
período que vai dos anos de 1940 a 1950, aproximadamente. Neste contexto, “pessoas
foram perseguidas, suas vidas foram aniquiladas socialmente e direitos foram retirados pelo
213
do antissemitismo se torna mais explícita e incômoda, ou talvez
relegada a segundo plano pragmaticamente, Adorno observa a
importância da propaganda política que, no seu direcionamento
para o potencial antidemocrático, cumpre importante papel para
que se constitua efetivamente o clima cultural para o fascismo. Neste
contexto, não é questão apenas do antissemitismo, mas da
determinação de qualquer objeto de ódio que, explorando os
elementos sempre presentes do preconceito, seduz e ganha adesão
daqueles que, conforme apontaram os estudos de La personalidad
autoritaria (1965), representam o terreno fértil para tais sementes do
pensamento fascista e de suas pretensões totalitárias.
Mais do que uma união de indivíduos para a constituição de
uma forma de comportamento político pelas massas fascistas, o
fascismo está presente na nossa sociedade. Por isso, a análise
proposta pelos frankfurtianos nos estudos, conduzidos por Adorno,
bem maior que era a defesa da pátria. Diversos professores perderam seu direito de lecionar,
sendo investigados e suas aulas gravadas, alguns foram presos, inclusive professores da
educação infantil. A alegação para tal fato era a de que esses professores estariam tentando
implantar o comunismo no país, usando seu poder de influência para isso. Pessoas públicas,
diretores de escolas, pais, jornalistas ou quem, de alguma forma, estivesse em destaque
passaram a ter medo de ser acusados de comunistas. Em consequência disso, denunciavam
anonimamente seus colegas de trabalho, alunos, professores e até mesmo familiares. Alguns
professores, além de perderem seu direito de lecionar, foram considerados traidores. [...]
Nos moldes do macarthismo, que apresentava o fantasma do comunismo, com toda a
deturpação de suas interpretações, os adeptos do Escola Sem Partido bebem nesta fonte e
repaginam sua teoria conspiratória a partir da tese do marxismo cultural e de sua
implantação através da escola por meio de uma doutrinação dos alunos capitaneada por
professores esquerdistas-marxistas. Neste contexto, repetindo os passos do [...] macarthismo,
apresenta-se como uma forma de calar e oprimir professores e coordenadores de escolas e,
por extensão, outras manifestações culturais que encontram seu espaço de reconhecimento
a partir de uma formação educacional pública que não privilegie uma ideologia, mas a
pluralidade do pensamento” (FERREIRA; FÁVARO; CARVALHO, 2020, p. 171-173).
214
Horkheimer e os psicólogos sociais de Berkeley, debruçou-se sobre
o potencial fascista latente nas pessoas, e não sobre a definição do
fascismo como um modelo político ou a preocupação com a sua
constituição estrutural e hierárquica em si. Os desdobramentos na
macropolítica são, neste caso, o apogeu do que é gestado e
apropriado, anteriormente, por um tipo de personalidade definida,
a partir dos estudos desenvolvidos, como sendo de caráter
autoritário.
Cada vez mais, a semiformação a que estamos submetidos,
na constituição de uma semicultura, nos aproxima dos elementos
que potencializam a violência e que, introjetados como forma de
vida nas sociedades capitalistas, mais especificamente, produzem a
barbárie à qual se deve resistir. Neste contexto, a pesquisa também
apresenta o entendimento da correlação entre o capitalismo e o
fascismo por seus mecanismos de organização da vida administrada
e sua afeição ao controle. Não implica aqui interpretar os fascistas
como “agentes do capitalismo”, mas compreender que, na
perspectiva capitalista, o fascismo encontra terreno fértil para sua
manifestação.
Parece evidente, por mais este ponto, que a contribuição da
psicanálise é ferramenta importante para a análise e a compreensão
de alguns elementos que se apresentam e se constituem na
subjetividade dos indivíduos. Potencializada pela percepção de
mundo destes sujeitos, na projetividade em grande parte das próprias
mazelas no inimigo escolhido que se estabelece e se reforça pelo
discurso da liderança, as técnicas da propaganda, desenvolvidas pelo
fascismo e apropriadas pelo capitalismo, aprisionam a subjetividade
215
e sublimam a experiência, elementos que se desnudam a partir dos
estudos da psicologia social e seu aparato psicanalítico.
Deste modo, a psicanálise, na perspectiva da Escola de
Frankfurt, não é conhecimento definidor do estudo proposto, mas
instrumento de aprimoramento de pesquisas, métodos e percepções
que envolvem também a análise social, filosófica e histórica das
questões demandadas. Num estudo de amplo espectro, La
personalidad autoritaria se interliga dentro dos Estudos sobre o
preconceito para além da preocupação histórica, do olhar do
historiador em seu “mapeamento” do fenômeno e de seus possíveis
antecedentes e, também, dos seus posteriores desdobramentos.
Numa análise multidisciplinar, a categorização da personalidade
autoritária não representa uma definição absoluta ou um
psicologismo explicitado. Tão pouco um sociologismo
psicanalisado. Nem sequer uma tentativa de “vitória” da psicanálise,
mas um elemento a mais para os estudos do fascismo enquanto
forma de pensamento. A partir do sujeito, no todo de sua
particularidade, encontram-se, pela psicanálise, os elementos do
universal potencial que se manifesta na adesão ao pensamento
antidemocrático e fascista. Reiterando, não se trata de um
determinismo biológico psicologizado e nem, de outro modo, de um
psicologismo social determinante da existência dos sujeitos. Mas das
potencialidades que permeiam a constituição do sujeito fascista que,
grosso modo, pode se manifestar em qualquer um.
Por isso, como preambulo de uma percepção que desejamos
aprofundar, o que se demonstra como primordial na proposta de
uma educação contra a barbárie, na construção de um potencial
emancipador, não é simplesmente o conhecimento teórico ou
216
aplicado do que define o fascismo, do que o constitui como projeto
de destruição e amálgama de possíveis desajustados e, também, de
cidadãos comuns. Não nos parece, portanto, importante psicanalisar
Hitler ou Mussolini. Na realidade, um dos elementos que merece
atenção e talvez seja um dos que mais favoreça a possibilidade de
repetição de um projeto fascista, seja nos moldes do hitlerismo, o
que primariamente duvidamos, seja em novas configurações, mais
perversas certamente, mas mantendo sua natureza, é a perpetuação
do domínio da técnica, seja em que área for, na perspectiva da (de)
formação humana que, a fim e a termo, concorre para nossa
desumanização. Ou, se a perspectiva do controle e do domínio do
conhecimento instrumentalizado for a proposta de um antídoto ao
estabelecimento do mal, o que sobra, aparentemente, é herança do
mesmo padrão que produz e reproduz a violência e o medo, que
escraviza e inferioriza o existente, desconsiderando sua subjetividade
e complexidade. Se esse tipo de conhecimento fosse suficiente,
poderíamos afirmar que teria sido impossível Auschwitz, pois,
dotados de um conhecimento científico e instrumental, muitos dos
quais com um alto grau acadêmico, médicos, engenheiros, militares,
contadores e outros profissionais não teriam se tornado arquitetos
conjuntos da barbárie estabelecida. Como nos lembra Adorno
(1995, p. 132), “os homens inclinam-se a considerar a técnica como
sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria,
esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens”. Lembremo-
nos do tipo “manipulador”, o mais perigoso na análise de Adorno
em La personalidad autoritaria. Completando seu raciocínio, destaca
que
217
Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da
técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o
ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela
supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um
sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz com
maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com estas
vítimas em Auschwitz (ADORNO, 1995, p. 133).
Assim, sem a resposta final ou a definição de uma fórmula,
tão esperada por tantos que se envolvem nos estudos sobre o
fascismo, numa proposição de uma dialética negativa, o que se
apresenta como ponto de partida é pensar, constantemente, a
respeito dos elementos de uma educação contra a violência e suas
potencialidades emancipatórias. Não especificamente como
conteúdo, mas, necessariamente como formação, em sua perspectiva
política, ética e estética, para além da técnica. Cientes das
fragilidades e da tênue linha que separa educação e barbárie, pensar
dialeticamente, não na proposição de encontrar uma síntese final
diante do conflito tético-antitético, mas para garantir o processo e
permitir que sejam desnudadas as contradições que, nos moldes do
pensamento fascista, têm que ser combatidas e homogeneizadas,
posto que sua pretensão é a assimilação pela ordem e o não
pensamento. Neste sentido, o pensamento dos frankfurtianos não se
estagnou e avançou, no aprofundamento de suas teses,
especialmente com Adorno, Horkheimer e Marcuse que, mesmo a
par de algumas divergências entre eles, constituiu-se como um
núcleo fortemente representativo da teoria crítica da Escola de
Frankfurt.
218
Neste contexto, finalizando nossas observações,
encaminhamos nossos olhares para o próximo capítulo, que
intitulamos “Da dialética entre civilização e barbárie: do
esclarecimento da razão e da atmosfera do fascismo”.
219
Capítulo IV
Da dialética entre
civilização
e
barbárie
: do
esclarecimento da razão
e da
atmosfera do fascismo
43
.
Se um mal tão profundamente arraigado na civilização não
encontra sua justificação no conhecimento, o indivíduo
também não conseguiria aplacá-lo, ainda que seja tão bem-
43
Queremos destacar que o conceito de atmosfera fascista não é insight nosso, posto que o
extraímos da fala de Sinésio Ferraz Bueno (2020) em O fascismo em dez lições. Disponível
em:
https://www.youtube.com/channel/UCoYJWPJnrSOiVOBjOUZJcGQ/videos. Acesso
em: 29 dez. 2020. De nossa parte, identificamos na expressão a correlação com o incômodo
que trazemos no entendimento das análises do fenômeno fascista, neste momento
contemporâneo, em que a contemporização do problema tem se demonstrado
preocupante, especialmente no Brasil, nossa realidade mais próxima. Se a barbárie se
manifestava mais visivelmente nas bolhas das Redes Sociais com a polarização política que
se reforçou com as últimas eleições presidenciais, normaliza-se a cada dia que passa na ação
que alcança as ruas, também mais explicitamente pelo ódio que move “muitos cidadãos de
bem”, agora mais armados. Transformou-se no cotidiano de uma sociedade que sempre foi
violenta, racista, cindida, mas também violentada e esgarçada e que, através da ação de um
governo que exala o fascismo, conjugada com a tragédia de uma pandemia que ceifa as
vidas com a anuência desse mesmo governo, eclode aquilo que sempre se dissimulara.
Colabora neste sentido, para essa atmosfera, a omissão ou a amenização da realidade por
grande parte da classe política, empresarial, religiosa e de profissionais liberais, como
médicos e advogados, veículos ou profissionais de imprensa, além do judiciário, entre
outros, que poderiam conter estes arroubos autocráticos mais explicitamente para além das
notas de indignação ou da crítica às barbáries de um presidente pois, ao mesmo tempo, se
mantém a defesa de uma agenda econômica que não está dissociada da mesma barbárie.
Tragédia anunciada e discurso falacioso que ainda tenta sustentar a ideia de que as
instituições estão funcionando e de que a democracia brasileira é sólida, além do que,
acreditam alguns, as Forças Armadas estariam cientes do seu papel de servir ao Estado
constitucionalmente, e não a governantes. Estamos muito mais próximos, na realidade,
daquela relação com os “cervejeiros bávaros” e os “inteligentes” que garantiam a Adorno
que o nazismo não se tornaria a barbárie que se tornou (ADORNO; HORKHEIMER,
1985).
220
intencionado quanto a própria vítima. Por mais corretas que
sejam, as explicações e os contra-argumentos racionais, de
natureza econômica e política, não conseguem fazê-lo, porque
a racionalidade ligada à dominação está ela própria na base do
sofrimento. Na medida em que agridem cegamente e
cegamente se defendem, perseguidores e vítimas pertencem ao
mesmo circuito funesto
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 141).
Ora, o que o discurso fascista, em particular a propaganda
antissemita, deseja alcançar? Certamente, seu objetivo não é
“racional”, pois ele não tenta convencer o povo e sempre
permanece em um nível não argumentativo
(ADORNO, 2015, p. 142-143).
A proposta do título deste capítulo ancora-se na percepção
de que, frente ao nosso processo civilizatório, é preciso reconhecer
que produzimos e manifestamos, concomitantemente, os elementos
que possibilitam a barbárie. Como explicitado nas epígrafes de
abertura desta página, a dominação constitui-se de uma
racionalidade que contém, nela mesma, a base do sofrimento. Por
isso, na circularidade que se manifesta entre a agressão e a sua defesa,
na qual se encontram o agressor e o agredido, ambos ficam
enredados no mesmo circuito funesto. Neste sentido, corroborando
e agravando esse condicionamento, o propósito da propaganda
antissemita, e acrescentamos do preconceito em geral, apropriado
pelo discurso fascista, não é o do esclarecimento ou de uma
argumentação racional, mas da manutenção da barbárie.
Esta perspectiva da dominação, que se manifesta como
desejo do homem do esclarecimento, com relação à natureza e sua
221
imbricação com a ideia de progresso, expressa a aporia com a qual
Adorno e Horkheimer (1985) se depararam na Dialética do
esclarecimento, revelando-se assim como o objeto primeiro da
investigação proposta: a autodestruição do esclarecimento. Ou seja,
no seio do próprio esclarecimento estão presentes também os
elementos do anti-esclarecimento. Explicam os autores (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 13):
Não alimentamos dúvida nenhuma e nisso reside nossa petitio
principii de que a liberdade na sociedade é inseparável do
pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter
reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse
pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as
instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém
o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se
o esclarecimentoo acolhe dentro de si a reflexão sobre esse
elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino.
Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento
destrutivo do progresso, o pensamento cegamente
pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também
sua relação com a verdade. A disposição enigmática das massas
educadas tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascínio
de um despotismo qualquer, sua afinidade autodestrutiva com
a paranoia racista, todo esse absurdo incompreendido manifesta
a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teórico
atual.
Como nos esclarecem os frankfurtianos, se não se considera
a questão do elemento regressivo que está presente na própria
percepção de progresso, constituída pelo desvio do projeto do
esclarecimento e que colaborou para o advento de uma racionalidade
222
instrumental, técnica, a possibilidade do pensamento esclarecedor,
proposta inicial e condição para a perspectiva de liberdade na
sociedade do iluminismo, exaure-se em si mesma. Na constatação
do projeto que não se realiza, a proposta de uma dialética do
esclarecimento nos provoca para o desafio de um novo olhar, frente à
promessa do progresso humano que se mostrou prenhe em seu
interior, da manifestação dos elementos da barbárie do cotidiano.
A relação com a técnica, contida na expressão “das massas
educadas tecnologicamente” nos alerta para a relação ambígua do
homem com a tecnologia e o aprofundamento da frieza burguesa
que, conjuntamente com as atitudes de ódio, representam as
manifestações do indescritível horror de Auschwitz. Atitudes de ódio
que se apresentam na violência praticada contra as vítimas pelos
algozes que as praticaram, mas violência que só foi possível porque,
“não só o ato agressivo em si gera barbárie, mas também o não se
envolver, o olhar de lado, o ‘não estar nem aí’” (PUCCI, 2012, p.
4). É essa frieza burguesa, que é a indiferença em relação ao outro e
que, além dos algozes, envolvia aqueles que não praticaram
diretamente a violência, mas que não se opuseram a ela. É uma
indiferença que, nos nossos dias, das mídias globalizadas, das Redes
Sociais e aplicativos que dominam nossas vidas pelo acesso imediato
com um celular, se consolida cada vez mais na capacidade que temos,
por exemplo, de almoçar na frente da televisão, alimentando a
audiência de programas policiais que nos conduzem a uma
normalização cotidiana da barbárie. Tecnologia que nos permite
enviar as saudações de um “bom dia” para todos os participantes de
um grupo de WhatsApp e, na sequência, encontrando-nos com
alguns deles nas ruas ou no trabalho, mantermo-nos indiferentes às
223
suas existências, alegrias ou tristezas, sem nos relacionarmos
pessoalmente. Por isso, como nos esclarece Pucci (2012, p. 12-13),
Para os frankfurtianos, há uma ambiguidade na tecnologia, que
não se resume apenas no uso que se faz dela: se é utilizada para
o bem ela é eticamente correta; se é utilizada para o mal é falsa.
Isso é verdade; mas a ambiguidade se manifesta de maneira
incisiva, sobretudo no interior da constituição da tecnologia.
[...] Há uma intencionalidade de precisão e funcionalidade nos
aparatos tecnológicos que, mesmo quando utilizados para
minorar a dor dos homens, eles geram frieza, distância e
manipulação.
Neste contexto, “a disposição enigmática” dos nativos
digitais, pensando nos dias de hoje, para deixar-se dominar por
perspectivas políticas que representam prévias do totalitarismo
fascista, aderindo cegamente a coletivos reacionários ou a propostas
antidemocráticas, demonstram, como analisam Adorno e
Horkheimer (1985), o quanto o pensamento teórico atualmente está
enfraquecido. Uma imagem vale mais que mil palavras,
especialmente se ela viraliza e recebe milhares de likes e views. Fake
news e teorias conspiratórias encontram mais adesão e propagação,
mesmo entre pessoas estudadas, do que a busca pelo esclarecimento
que, evidentemente, exige o exercício do estudo, da reflexão e a
consulta a fontes mais seguras ou conversas com especialistas para
alcançar um entendimento.
Por fim, implica a ausência da experiência do pensamento
em sua inequívoca condição do olhar para si mesmo, do
desenvolvimento da capacidade de pensar o próprio pensamento,
contexto com que nos provocava Kant (2005, p. 63-64) na sua
224
definição sobre o esclarecimento: “Esclarecimento [Aufklärung] é a
saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. [...]
Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio
entendimento, tal é o lema do esclarecimento”. Pensar sobre o que
pensamos, portanto, é exigência de aprofundamento do
entendimento.
Ao contrário, na perspectiva do anti-esclarecimento, o que
ocorre é o reencontro com o elemento mítico, da narrativa que
ganha força como explicação, na busca pela organização do caos
interior que se instala causado pelo medo, pela incerteza, pela
constante insegurança diante da força da natureza que expõe nossa
fragilidade, caso de um simples vírus. Substituindo os aedos rapsodos,
os poetas cantores do período mítico grego, o reconhecimento da
autoridade do narrador hoje se dá de modo difuso para o pensamento
mitificado. Encontramos o reconhecimento dessa crença na
divulgação da manifestação do influencer no Youtube, na
apropriação da propaganda do conglomerado econômico na grande
mídia que molda nosso viver na sociedade de consumo, ou na
homilia dos pregadores midiáticos em seus templos e redutos de um
mundo paralelo, que produz um “espiritualismo” paradoxalmente
desumanizante corroborando uma “moral de rebanho”, como já
denunciava Nietzsche (1978).
Tal crença também está no ódio que se constrói da política,
nas falas das lideranças fascistas, mesmo quando o líder seja alguém
que não se assemelhe nem de perto à figura do poeta, de um clássico
narrador ou de alguém que consiga simplesmente concatenar as
ideias para além de expressões chulas e execráveis que manifestam
sempre uma violência frente aos interlocutores, mesmo os da sua
225
“claque”. Mas isso não tem importância. Como nos aponta Adorno
(2015), não é a racionalidade o objetivo destas narrativas, mas a
manutenção dessas crenças sempre em um nível não argumentativo.
Por isso, como uma “solução mágica” divulgada num aplicativo do
gadegt utilizado, mesmo que esta solução não seja sustentável
empírica, lógica e cientificamente, os posts são compartilhados e a
crença se manifesta na percepção, por mais irracional que se
demonstre, de que ao adepto desse coletivo foi revelada “a verdade”.
Acredita o sectário que ele faz parte dos “iluminados”, enquantoo
resto do mundo está corrompido. Manifesta-se um caráter narcisista.
Mecanismos da propaganda fascista, que discutiremos também com
Adorno.
Numa perspectiva antidemocrática, a síndrome fascista
representa a destruição da política na sua pretensão de um mundo
administrado de modo totalitário. Na pretensão de uma burocracia
perfeita (ARENDT, 2004b), que, no campo do governo, significaria
o domínio de ninguém das o pessoas, dos não pensantes, dos não
existentes , o auge se daria na eliminação dos incômodos para este
sistema, para esta engrenagem, “azeitada” pelo óleo que sangraria das
próprias “peças”, seus adeptos e asseclas. Aqueles incômodos, “peças
defeituosas”, desviantes e ingovernáveis (FOUCAULT, 2008b),
todos aqueles que teimam em pensar, em existir contrariamente à
mentalidade do fascista e, aqui, especialmente daquele que
representa o mais perigoso dos altos pontuadores para Adorno et al.
(1965), o manipulador , constituir-se-iam no material que
alimentaria novos fornos e crematórios ou, de forma mais elaborada
e perversa, outros mecanismos de eliminação dos indesejáveis.
226
Evidentemente, depois de eliminados estes indesejáveis,
como uma besta fera que se alimenta de suas crias, o fascismo não
pouparia nem seus adeptos, pois nada há que se preserve nessa
perspectiva destrutiva. Nem os mais fiéis agitadores e seguidores. Por
isso, como derradeiro ato, quando se apresenta iminente a derrota,
nada deve restar, nada deve ficar. É o que determinava a ordem de
Hitler aos seus generais através do Telegrama 71 em que, diante da
guerra perdida, estabelecia a destruição da Alemanha em sua
infraestrutura, pelo próprio exército alemão, a partir do enunciado
“se a guerra está perdida, que a nação pereça” (SAFATLE, 2020, p.
2).
Apesar de não implantada ainda efetivamente essa burocracia
perfeita, seus ensaios e esboços se manifestam, cotidianamente, nesse
estado de exceção sob o qual existimos na história e que, longe de um
fim, atualiza seu continuum pela existência de Auschwitz. Do pogrom
ao campo de extermínio, orquestrados e eficazmente administrados,
a barbárie que permeava a civilização não é mais apenas a sua
antítese. De modo inominável, pelo horror indescritível, arvora-se
como a síntese e, para sempre em nosso meio, tornou-se realidade
expectante.
Por isso, o que implica o estudo e o entendimento dessas
questões, pensando no campo da educação, e de uma educação para
a resistência contra a barbárie, é o combate a esses elementos e
estruturas que, em suas potencialidades, prenunciam continuamente
que há muito que se fazer. Alimentados pela semiformação e pela
semicultura produzidas por uma sociedade administrada e
danificada, em que tudo passa pelo filtro da indústria cultural, que
se mantém voltada para a perspectiva do progresso e o constante
227
desejo da dominação, o objetivo é que os existentes pouco, ou em
quase nada existam, posto que tudo se conduz pela ratio pragmática,
que instrumentaliza e despersonaliza os homens para que os meios
que prevalecem sobre os fins propiciem a constante manutenção do
espetáculo. Não existe finalidade. Tão somente, necessidades.
Nesta sociedade, da frieza que se identifica com a técnica, da
indiferença que permite aceitarmos a superfluidade das pessoas,
eliminadas aos montes nos noticiários do mundo todo, o surgimento
crescente de manipuladores em nossa cultura é um modus operandi.
Ou seja, é condizente com a realidade de uma sociedade
administrada e danificada em que, os afetos são deslocados das
pessoas para o aparato técnico e em que, o controle e a eficácia são
valorizados em si mesmos, independentemente dos fins que estejam
implicados (CROCHÍK, 1996).
Na regressão ao pensamento mitificado, da pretensão de
domínio da natureza para a dominação do homem pela submissão à
técnica como fim, “o saber que é poder não conhece barreira alguma,
nem na escravização da criatura, nem na complacência em face dos
senhores do mundo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 18).
Na esteira do lema baconiano de que saber é poder, escrevem os
frankfurtianos:
A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e
imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a
utilização do trabalho de outros, o capital. As múltiplas coisas
que, segundo Bacon, ele ainda encerra nada mais são do que
instrumentos: o rádio, que é a imprensa sublimada; o avião de
caça, que é artilharia mais eficaz; o controle remoto, que é uma
bússola mais confiável. O que os homens querem aprender da
228
natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela
e aos homens (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 18).
Portanto, na intrínseca relação entre saber e poder, o
conhecimento, proposta do esclarecimento, da busca epistêmica em
sua perspectiva original, é desvirtuada em sua essência. Não é o
conhecimento que importa. Transformado em poder, este saber se
apresenta como dominação da natureza e dos homens que, buscando
desmistificar a existência, constrói nova mitificação em torno da
eficácia e da aplicabilidade que se pretende agora. É o domínio pelo
domínio, sem a perspectiva de conhecimento como entendimento,
contemplação e busca de uma finalidade maior para existir. Para os
modernos, assume a expressão e a concepção da aplicabilidade e da
eficiência, que instrumentaliza o real na busca por respostas de um
contínuo presente que se consome, que não pode ser contido e
tampouco é pensado.
Deste modo, se a ciência é, em sua condição, meio para nossa
realização humana, transmuta-se como fim em si mesma, puramente
instrumentalizada pela técnica e instrumentalizando-nos a partir de
sua eficácia e aplicabilidade. Como conhecimento seguro e das
“verdades” comprováveis, a ciência imiscui-se com a técnica e, na
sua expressão tecnológica, representa no imaginário o progresso em
uma perspectiva absoluta e ilimitada, mesmo que sob o medo que
pretendíamos dominar e sob o qual estamos dominados, sejamos
capazes de projetar mais eficazmente nossa destruição, de forma
nunca antes imaginada.
Prometeu nos fez nova promessa. Mas, como já nos ensinava
a mitologia, ela viria acompanhada de novos castigos perpetrados
229
por Zeus. Uma nova caixa de Pandora atiçou nossa curiosidade. Do
Novum Organum baconiano ao cogito cartesiano, a crítica e a
ruptura com o pensamento antigo apresentavam-se promissoras e
permitiriam ao homem desvendar relações e fatos antes impensados
ou administrados pela mente humana. De projeto do esclarecimento
pelo iluminismo, fundamental para nossa compreensão de mundo e
superação dos limites impostos pela natureza precedente e à qual
permanecemos vinculados, deparamo-nos com o advento de um
novo tipo de racionalidade, fruto de desvio ou desviante da
proposição inicial.
Essa racionalidade, ao intensificar-se na busca por fins
desejados, não de forma teleológica, mas pragmática, mitigou nossa
percepção transformando-nos em meros instrumentos, ou apenas
meios para fins desejados. Deste modo, a ideia dos meios e fins que
se estabelece predomina sobre a compreensão de uma finalidade,
identificando-se com aquilo que Horkheimer (2015, p. 11-12)
chamará de razão subjetiva:
[...] a força que, em última instância, torna possíveis ações
razoáveis é a faculdade de classificação, inferência e dedução,
não importando qual o conteúdo específico o funcionamento
abstrato do mecanismo do pensar. Esse tipo de razão pode ser
chamado de razão subjetiva. Está essencialmente preocupada
com meios e fins, com a adequação de procedimentos para
propósitos tomados como mais ou menos evidentes e
supostamente autoexplicativos. Dá pouca importância à
questão de se os prositos em si são razoáveis.
A partir da Revolução científica na Modernidade e de suas
bases mecanicistas, o mundo interpretado na perspectiva de uma
230
razão subjetiva entenda-se instrumental passa a ser
compreendido mecanicamente, desconsiderando-se sua finalidade
ou o finalismo das coisas. Muda nossa relação com o corpo, com a
morte, com a existência. Nossa sociedade ocidental, autora e ainda
herdeira dessa visão mecanicista na contemporaneidade busca a
longevidade acima de tudo e, neste sentido, morrer é inadmissível.
Nutrindo o horror pela morte, culturalmente constituído
juntamente com a formação burguesa ocidental, vivemos imersos
num universo de coisas que vivemos e fazemos que, na maioria das
vezes, não apresentam para nós finalidade alguma. O amor à vida
aqui, no sentido hedonista e não na perspectiva de um processo
humanizador, realizador e significativo, absolutiza-se como
realização do irrealizável e, desconsiderando nossa finitude e
fragilidade, objetifica-se não no bem viver eudaimónico aristotélico,
mas no viver bem a qualquer custo, não importa quais sejam os meios
necessários para se consegui-lo.
Se para Aristóteles o telos das coisas, ou sua causa final, não
se desvincularia de suas outras três causas, a saber, a formal, a
eficiente e a material, sendo a primeira citada a principal para que
algo exista, numa sociedade baseada no mecanicismo, ou seja, da
precedência da técnica e do saber como poder, o que se desconsidera
é a finalidade. Vivemos, assim, a mercê de um mundo baseado nas
três primeiras causas e pouco preocupados com a finalidade da
existência. Importa-nos a materialidade das coisas, a forma e a
eficiência com que são realizadas. Se há finalidade para tal, isto é
mero detalhe. O que passa a valer não é a finalidade enquanto
condição teleológica do existente, mas os fins desejados
pragmaticamente. A eficácia alcançada. Neste contexto, portanto,
231
Poder e conhecimento são sinônimos. Para Bacon, como para
Lutero, o estéril prazer que o conhecimento proporciona não
passa de uma espécie de lascívia. O que importa não é aquela
satisfação que, para os homens, se chama verdade, mas a
operation, o procedimento eficaz. Pois não é nos discursos
plausíveis, capazes de proporcionar deleite, de inspirar ou de
impressionar de uma maneira qualquer, nem em quaisquer
argumentos verossímeis, mas em obrar e trabalhar e na
descoberta de particularidades antes desconhecidas, para
melhor prover e auxiliar a vida, que reside o verdadeiro
objetivo e função da ciência. Não deve haver nenhum mistério,
mas tampouco o desejo de sua revelação (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 18).
Nessa mentalidade da técnica, da operation, a propaganda da
ciência foi mitificada e seu conhecimento como que reservado aos
iniciados, aos capacitados. O cientista, identificado pelo senso
comum como a figura de jaleco branco dentro do laboratório,
dedicado à pesquisa e desconectado da normalidade da vivência
humana, contrasta com o paradoxo que a realidade manifesta e busca
legitimar a ideia de que a ciência é neutra e nada tem a ver com as
questões sociais, mesmo quando libera, diretamente da nova caixa
de Pandora, a bomba que implementou nossa possibilidade de não-
existência.
No ideal positivista, o peso das ciências exatas e das naturezas
foi hiperdimensionado e, as humanidades, subscritas à
marginalidade. Na sociedade da eficácia e da aplicabilidade, do
conhecimento que se dá pela objetividade e pela comprovação da
existência do objeto, a subjetividade do sujeito que conhece, no
palco do espetáculo que se contempla, é relegada à coadjuvante. No
232
tubo de ensaio do laboratório se encontra a prática efetiva do modelo
científico e, na descoberta dos elementos ao microscópio, a resposta
aplicável da valorizada ciência que transforma a existência
resolvendo problemas, muitas vezes, criados pela própria ciência.
Na miscigenação entre técnica, ciência e tecnologia,
constituiu-se o senso comum de um pensamento cientificista que se
identifica com o progresso e com a dominação, cujos limites não se
encontram numa perspectiva ética, mas na capacidade do próprio
poder. Ou seja, saber é poder e, quanto mais se souber e se puder
fazer, mais se pode dominar. Novamente, não interessa a finalidade,
mas a realização da operation. Neste sentido,
O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera
objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de
seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder.
O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se
comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que
pode manipulá-los. O homem da ciência conhece as coisas na
medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-
ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como
sempre a mesma, como substrato da dominação (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 21).
Na relação com o mundo administrado, em que prevalece a
técnica e a frieza burguesa, a regressão se dá na proporção do
esclarecimento. O esclarecimento produzido pela ciência da
dominação não é suficiente para frear a regressão, na medida em que
a sedução pelo mito se manifesta como perspectiva de liberação da
própria canga da ciência dominadora. Por isso, para o fascismo, na
esfera do ressentimento em que se constitui, a negação da ciência
233
encontra gratificação, mesmo que não haja nada que se coloque no
lugar, restando tão somente desolação e destruição.
Deste modo, na dialética entre civilização e barbárie, o que
se apresenta, portanto, é a constatação, a partir da ameaça do
fascismo, de que “[...] o progresso converte-se em regressão”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 14). Neste sentido,
[...] a adaptação ao poder do progresso envolve o progresso do
poder, levando sempre de novo àquelas formações recessivas
que mostram que não é o malogro do progresso, mas
exatamente o progresso bem-sucedido que é culpado de seu
próprio oposto. A maldição do progresso irrefreável é a
irrefreável regressão (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
41).
A concepção de progresso, compreendida como
encadeamento de fatos, procedimentos, avanços, sob a égide do
pensamento científico moderno e do capitalismo emergente, oculta,
em seu seio, a catástrofe que se gera na sua proposição de dominação
constante. Solidifica-se a ideia de que progredimos material, tecnica
e existencialmente pelo acúmulo do conhecimento científico e
desenvolvimento tecnológico, ou porque um governo tira uma
parcela da população da linha da pobreza, ou porque fizemos um
início de transposição de um momento ditatorial para uma
democracia. Não percebemos, contudo, que, concomitantemente,
acostumamo-nos à frieza que nos torna indiferentes ao outro, que,
na antinomia de um mundo desenvolvido material e
tecnologicamente, de alguns avanços sociais, ainda nos deparamos
cotidianamente com a miséria e a morte de tantos semelhantes que,
234
nem sequer são reconhecidos para além dos números de uma
estatística.
Se olhamos a história nessa linearidade e concebemos a
mesma ingenuamente como realização do progresso humano em sua
condição racional, como um evolucionismo social, somos obrigados a
nos defrontar com o contexto da aporia a que se referem Adorno e
Horkheimer (1985) na Dialética do esclarecimento. Como nos
explicam os autores,
O aumento da produtividade econômica, que por um lado
produz as condições para um mundo mais justo, confere por
outro lado ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o
controlam uma superioridade imensa sobre o resto da
população. O indivíduo se vê completamente anulado em face
dos poderes econômicos. Ao mesmo tempo, estes elevam o
poder da sociedade sobre a natureza a um nível jamais
imaginado. Desaparecendo diante do aparelho a que serve, o
indivíduo se vê, ao mesmo tempo, melhor do que nunca
provido por ele. Numa situação injusta, a impotência e a
dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a
ela destinados (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 14).
Paradoxalmente, concomitante à melhoria das nossas
condições materiais para nossa existência de um modo mais justo
neste mundo, a partir do domínio da técnica e de seu
aprimoramento, fortalece-se a dominação dos sujeitos na
constituição de um mundo administrado por aqueles que detêm o
controle destes aparatos e que, a termo e a cabo, também são
dominados pela própria condição da dominação. O indivíduo, o
existente, dissolvido na sociedade danificada, homogeneizada em sua
235
proposição e produção, vê-se anulado em sua subjetividade, mas
compensado em certo grau de materialidade muito pouco para
muitos e muito para muitos poucos que dissimula a contradição e,
principalmente, a dominação. Neste contexto, o aprimoramento do
processo de dominação se estabelece, cada vez mais, com a anuência
do próprio dominado.
Parece ser a ideologia perfeita. Mas é mais que ideologia. É
o pano de fundo da questão sobre a qual se debruçavam os
frankfurtianos naquele momento de contradições do período entre
guerras e do advento do fascismo. Ou seja, como entender que a
maioria da população nos países industrializados da época, pensasse
e agisse favoravelmente em acordo com o sistema que as oprimia?
Por que ocorria a dissonância entre consciência política e condições
objetivas (ROUANET, 2001) que permitiram, por exemplo, a
ascensão do nazismo numa Alemanha que estaria muito mais
propícia à revolução do proletariado?
Para os frankfurtianos, a constatação, conforme discutimos
no capítulo anterior, pressupunha o entendimento de que não se
tratava apenas de desnudar a contradição, a ideologia por trás da
dominação. O que se estabelecia naquele momento, não era
simplesmente desvendar uma relação tética-antitética entre a
realidade e a ideologia, mas compreender que, naquele instante, a
ideologia se fundia com o real, de tal modo que ela desaparecia para
a percepção do dominado e permitia, assim, que a própria realidade
assumisse uma condição de ocultamento de si mesma. Relembrando
a nota de Rouanet (2001, p. 71), “a mentira assume a última de suas
máscaras, que é a da verdade. A tarefa de desmistificação se torna
assim praticamente insolúvel”.
236
Se nos voltarmos para o momento contemporâneo, é
possível constatar, com a tranquilidade de que não será exagero, que
tais condições se aprimoraram, como demonstraremos em breve,
tratando da questão do neoliberalismo. Como modo de vida, de
pensamento introjetado na existência de um mundo cada vez mais
administrado e danificado, o neoliberalismo aprofunda a fusão da
ideologia com o real de tal modo que oblitera, cotidianamente, no
domínio da subjetividade
44
humana, a impossibilidade de
percebermos que há um verdadeiro paradoxo, dada a condição
material alcançada pela humanidade e, na outra ponta, a não
efetivação da vida política, do inter homines esse.
A título de ensaio utópico, no sentido lato da expressão e de
sua contraposição à distopia que nos espreita no horizonte, é possível
compreender, de forma lógica, que haveria hoje condições técnicas
e materiais para que cada ser humano trabalhasse poucas horas,
provavelmente, poucos minutos por dia, eliminando o desemprego
e a fome sobre a Terra. Evidentemente, isso implicaria a
compreensão de que deveria ocorrer uma melhor distribuição da
renda e das condições objetivas de sobrevivência. Incorreria também
44
O ataque ao exercício da subjetividade perpassa pelo processo de despolitização da
sociedade. Fundamental para os propósitos do neoliberalismo, posto que, se temos
trabalhadores mais politizados, por exemplo, suas expectativas “[...] se ampliam, ganham
uma dimensão mais qualitativa. Eles exigem do emprego mais que a renda: relações
interpessoais, conteúdo, ‘sentido’. Passagem de um estado de espírito ‘pós-materialista’”
(CHAMAYOU, 2020, p. 41). Deste modo, “[...] quanto mais se afirma essa subjetividade,
menos ela tolera se submeter a um trabalho alienante. Max Weber já havia alertado: ‘A
ordem econômica capitalista precisa dessa entrega de si à ‘vocação’ de ganhar dinheiro’,
dessa estranha disposição que quer ‘que alguém possa tomar como fim de seu trabalho na
vida exclusivamente a ideia de um dia descer à sepultura carregando enorme peso material
em dinheiro e bens’. Se outros apetites sobressaem, ‘a ética do trabalho’ é abalada”
(CHAMAYOU, idem, ibidem).
237
em pensar uma economia diferente, que não fosse predatória,
depredatória e de puro consumismo. Tampouco a que contempla a
possibilidade de um único ser humano que representa uma elite
no percentual mundial , por exemplo, amealhar em sua conta
bancária US$ 177 bilhões
45
, acreditando-se no imaginário popular
que esta tenha sido fruto exclusivamente do mérito, pelo esforço
próprio e do trabalho diário, como preconizava o liberalismo
econômico na gênese do capitalismo moderno. Não é do trabalho
que se trata.
Em contrapartida, nas outras partes do planeta, milhões não
têm o que comer hoje e uma criança pode trabalhar de dez a doze
horas por dia, ou mais, em algum país ou região livre de qualquer
garantia de direitos trabalhistas, lembrando-nos o período da
Revolução Industrial , recebendo U$ 1,00 em média de
remuneração diária para trabalhar na cadeia de produção de
produtos que serão vendidos ou negociados pelas empresas desse
mesmo bilionário. E, cinicamente, chamamos de
empreendedorismo o que, categoricamente, não passa de exploração
e de um novo tipo de escravização e exclusão. Dissimulando a
45
Fortuna recentemente estimada de Jeff Bezos, fundador da Amazon e, pelo quarto ano
consecutivo, a pessoa mais rica do mundo, segundo a Revista Forbes. Destaca-se que esta
estimativa corresponde a 2020 e representa na diferença com a sua fortuna em 2019, um
acréscimo de U$ 64 bilhões pelo aumento das ações da empresa no ano da pandemia. Neste
conjunto, as dez pessoas mais ricas do mundo somaram uma fortuna de US$ 1,15 trilhão
que, no ano anterior, estava em US$ 686 bilhões. O PIB do Brasil no mesmo período, com
uma população aproximada de 220 milhões de habitantes foi de US$ 1,42 trilhão
(ROSCOE, 2021). Disponível em: https://www.poder360.com.br/internacional/jeff-
bezos-e-a-pessoa-mais-rica-do-mundo-segundo-a-forbes-com-us-177-
bi/#:~:text=O%20fundador%20da%20Amazon%2C%20Jeff,CEO%20da%20Tesla%2
C%20Elon%20Musk.
Acesso em: 17 abr. 2021.
238
dominação com a oferta de uma liberdade que não existe, mantém-
se a circularidade do sistema entre explorado e explorador e sublima-
se, assim, a alienação a que nos submete uma sociedade
administrada.
Neste contexto, considerando o tempo em que vivemos, um
tempo de exceção, continuamente mantido pelo capital, escreve Paulo
Arantes (2014, p. 315):
Esse buraco de agulha para elefantes é a contradição terminal
do nosso tempo: o reino da liberdade está enfim à vista e,
todavia, iremos todos morrer na praia da mais crassa
necessidade material, como se ainda engatinhássemos nos
tempos da pedra lascada. A contradição desse último capítulo
que não acaba de acabar a liberação possível do fardo da
exploração como condição do progresso tornou-se, a rigor, uma
verdadeira expulsão, por assim dizer, na boca do guichê foi,
no entanto, identificada por Marx desde a origem: a compulsão
do capital a eliminar do processo de valorização econômica a
fonte mesma de todo o valor, o trabalho vivo. Por paradoxal
que possa parecer, o capital foge do trabalho (como relembrou
recentemente John Holloway), que por seu turno também
fugiria do capital se tivesse para onde ir, o que não é mais o
caso, por motivo de expropriação originária e continuada.
O estágio que alcança o capitalismo hoje e seus mecanismos
de exploração e expropriação consumam a antinomia retratada da
liberdade que já seria possível, mas que se mantém para sempre
negada. Como dissemos anteriormente, o horizonte não é favorável,
mas, continuando nosso ensaio utópico, seria possível uma
sociedade em que cada pessoa trabalhasse, no cômputo geral, por
exemplo, uma semana por mês e tivesse o restante do tempo livre
239
para a vida em sua condição existencial, na perspectiva de sua
formação humana, posto que liberado para o ócio. Superada toda
exploração na perspectiva do progresso, concomitante às condições
objetivas das necessidades materiais e da mera luta pela sobrevivência
biológica, encontrar-se-ia o sujeito com uma segunda vida, a do bios
politikos, a vida política, aquela que os gregos descobriram
(ARENDT, 2010) na constituição da Polis e de sua manifestação na
Ágora. Vida que se dá na esfera pública, que preserva a existência
privada para a proteção e o descanso diário, mas que se exige pela
participação maior na vida comum, no encontro da história como
um tempo do agora que se estabelece não como progresso, mas como
devir. Vida que possibilita o constante vir-a-ser que se renova em
cada nascimento e em cada potencialidade na perspectiva da
preservação e da melhoria de dois mundos: um mundo que estava
aqui antes de nós e nos acolhe como estrangeiros e um mundo que
construímos como humanos, como nos encaminha Hannah Arendt
(2011) em seus ensaios sobre a questão política e a educação.
Mas, neste contexto levantado, na antiga ideologia, uma das
mentiras estabelecidas é a de que a todos é permitido ser aquele
bilionário. De que o modo de vida estabelecido que importa e que,
objetivamente desejamos é esse, uma plenitude da vida privada que
se dissocia da esfera pública e, consequentemente, da política. Neste
entendimento, o trabalho ainda aparece ao senso comum como
imaginário de realização do homem pelo seu enriquecimento e
enobrecimento, de sua inserção no mercado como um igual aos
demais, com poder de negociação e reconhecimento de dignidade,
inclusive com aquele que detém o poder do capital. Entretanto, o
que resta dessa antiga falácia do liberalismo econômico é seu
240
princípio meritocrático que, evidentemente nunca proporcionou a
equidade social que evocava pelo esforço de cada um, mas que
continua acomodando consciências, mesmo dos explorados, na
crença de que, quem se esforça alcança o sucesso financeiro.
Neste sentido, no auge dessa ideologia, reduzindo
enriquecimento ao esforço individual pelo trabalho, frente à
ideologização da ideia de livre comércio, mesmo no contexto em que
prevalece a mundialização do capital
46
, são desconsideradas as
condições objetivas e as contradições sociais sob as quais existimos.
Mas, especialmente, é ocultada a percepção de que a liberdade não
existe nessa sociedade, pois o que subsume essa possibilidade é a
dominação que se realiza através da falsa ideia de que somos, ou
temos que ser, livres para realizar tudo o que desejamos, mas que
nunca conseguiremos.
No fundo, todo o ideal do trabalho, na ideologia liberal
capitalista, é mera dissimulação da emergência da sobrevivência que
se dá, dia após dia, submetendo-nos à eterna gratidão pelo emprego
que conseguimos diante do universo de desempregados que
superamos. Portanto, mesmo que não alcancemos jamais o ápice do
capitalista, que justificamos encontrar-se lá por mérito e esforço,
sentimo-nos confortados porque, na selva diária em que vivemos,
46
É importante rememorar, conforme já destacamos no capítulo anterior, a partir das
análises com ROUANET (2001), que, efetivamente, prometendo, mas não entregando, o
capitalismo nunca proporcionou a livre concorrência. Em sua origem, quando de sua etapa
de monopólio, o que existia era uma administração centralizada, tanto no âmbito do Estado
como das grandes empresas e não através de uma concorrência livre de empresários isolados.
Mesmo no momento posterior, do capitalismo liberal, a predominância foi da dominação
e não da concorrência. O que prevalece, portanto, ideologicamente, é a “[...] auto-imagem
de um capitalismo pós-liberal, que se vê como livre, quando de fato essa liberdade se limita
à dois, três ou quatro Conselhos de Administração que controlam a economia mundial
[...]” (ROUANET, 2001, p. 82).
241
vencemos aqueles que “não querem trabalhar”, “que não gostam de
trabalhar”. Mérito nosso, queremos acreditar, por mais que tal
engodo não se sustente.
Sob essa imagem, cultuada e idolatrada, reconheceremos
nossa incompetência se não nos realizarmos e louvaremos a
inteligência dos que nela se manifestam como representantes do
espírito de um tempo, do Zeitgeist que elegemos conforme
determinada época em que nos encontramos. Contudo, a falácia
explicitada omite que o sol não é para todos e que, quem pode
usufruir da sombra um pouco, também viverá numa “briga de
foices”, para atualizar a metáfora hobbesiana da guerra de todos contra
todos, em que o homem é o lobo do homemo homo hominis lupus
est.
Nessa sociedade danificada, liberdade é uma quimera, pois
consideramo-nos livres quando somos, sob o domínio do consumo,
liberados apenas para escolher entre o produto A e o B, mesmo um
Z, desde que possamos comprá-los. Liberdade para agir e modificar
essa sociedade, em contrapartida, se encontra ocultada, dissimulada
e negada. No individualismo que se constitui, a esfera pública é
relegada como contrária à liberdade. Neste sentido, compreendendo
o ser livre como a possibilidade da vivência absoluta de uma vida
privada, fruto do nosso esforço e mérito, afastamo-nos da política e
nos identificamos, cada vez mais, com a gestão da empresa
(CHAMAYOU, 2020) que se apresenta como o modelo para uma
sociedade ingovernável.
Deste modo, na fusão entre ideologia e realidade, encontra-
se o mais abastado, que se auto justifica em seu privilégio social, e,
também, aquele que sai de casa antes do amanhecer para trabalhar,
242
numa metrópole como São Paulo, utilizando quatro transportes
coletivos e retornando para casa tarde da noite para reiniciar o ciclo
na próxima madrugada. Este também está submerso nesse sistema
com a mentalidade do pequeno burguês, ávido para poder consumir
e manter-se inserido nessa sociedade em que, o que define os
existentes, os não invisíveis é sua capacidade de compra.
Por isso, lampejos de realização se dão pela satisfação de
poder comprar uma Smart TV, por exemplo, mesmo que em vinte
e quatro prestações, para acompanhar e se apropriar, cotidianamente
quando lhe sobra um mísero tempo livre dos desejos e das
necessidades criadas, para todos nós, do que seria uma boa vida que,
efetivamente, se manifesta na manutenção de uma existência
danificada.
Neste encontro, portanto, explorado e explorador,
retomando o circuito funesto da violência a que se submetem,
sublima-se a verdadeira alienação, a contradição real de um sistema
que promete a liberdade, mas se estabelece na pura dominação.
Dominação que se realiza por uma falsa liberdade de concorrência
que, no fundo, é apenas mais do mesmo, vidas que se regem a partir
da criação da necessidade do consumo.
Assim, numa pandemia como a que presenciamos hoje,
pensando na situação brasileira, na falsa dicotomia explorada pela
propaganda fascistóide de que a saúde é importante, mas temos que
preservar a economia, o que prevalece, efetivamente, é o ocultamento
da realidade, não porque se apresenta como ideologia simplesmente.
O que está introjetado, apropriado no imaginário, do mais simples
ao, aparentemente mais esclarecido, é a insolúvel questão de que, a
mentira manifesta é a verdade produzida e que aqueles que nos
243
encaminham para o morticínio são os mesmos que a representam,
os privilegiados que não abrem mão de seus privilégios. Pelo poder
administrativo e econômico que têm sobre os existentes dessa
sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997) em que vivemos, mas à
qual também estão submetidos pela dominação que se constitui por
uma falsa ideia de liberdade, irrealizável e insustentável fora da
perspectiva da esfera pública, perpetua-se a ilusão de que somos todos
iguais, mas que precisamos aceitar que alguns são melhores. Por isso,
não se resolve um problema de saúde pública com ideias ancoradas
numa perspectiva privatista de um individualismo que se pauta pelo
processo meritocrático. Nesta linha, desembocamos para o
darwinismo social
47
, não para a responsabilidade pelos assuntos
humanos que se dá, efetivamente, no campo da política.
Para Guy Debord (1997, p. 168), A sociedade do espetáculo
representa “[...] o que o espetáculo moderno já era essencialmente:
o reino autocrático da economia mercantil que acedera ao status de
soberania irresponsável e o conjunto das novas técnicas de governo
que acompanham esse reino”. Não há nada de novo. Na realidade,
elaborações mais aprimoradas das perspectivas autoritárias que
sempre estiveram na base de sustentação do capitalismo. Nosso
progresso nos trouxe até aqui. Não há assombro, rememorando a
constatação benjaminiana.
Nessa relação, a constituição do capitalismo nos conduz a
uma percepção da história que se unifica mundialmente e, no
47
Em um paralelo com a teoria darwinista da evolução das espécies, no sentido de que se
resolverá a questão pandêmica, por exemplo, de forma natural, num processo de seleção
natural, sustentada a tese na ideia de que os mais fortes, os melhores ou os mais preparados
sobrevivem.
244
estabelecimento do seu predomínio, nos mantém presos ao mesmo
determinante. Ainda, de acordo com Debord (1997, p. 101),
Com o desenvolvimento do capitalismo, o tempo irreversível
unificou-se mundialmente. A história universal torna-se uma
realidade, porque o mundo inteiro está reunido sob o
desenvolvimento desse tempo. Mas essa história, que em todo
lugar é a mesma, ainda é apenas a recusa intra-histórica da
história. O tempo da produção econômica, recortado em
fragmentos abstratos iguais, se manifesta por todo o planeta
como o mesmo dia. O tempo irreversível unificado é o do
mercado mundial e, corolariamente, do espetáculo mundial.
Por isso, como nos esclarece Walter Benjamin (2012), se
queremos entender a história da nossa civilização e a sua constituição
na constante dialética com a barbárie, é necessário que escovemos a
história a contrapelo. Para o filósofo, se assim não for, o que de fato
ocorre é que o investigador historicista acaba estabelecendo uma
empatia com “o vencedor”, na perspectiva de sua análise e de seu
relato histórico. Neste sentido, esclarece Benjamin (2012, p. 244-
245), em sua Tese 7:
[...] os que num momento dado dominam são os herdeiros de
todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor
beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso já diz o
suficiente para o materialista histórico. Todos os que até agora
venceram participam do cortejo triunfal, que os dominadores
de hoje conduzem por sobre os corpos dos que hoje estão
prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo
triunfal, como de praxe. Eles são chamados de bens culturais.
O materialista histórico observa com distanciamento. Pois
245
todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual
ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não
somente ao esforço de grandes gênios que os criaram, mas
também à servidão anônima dos seus contemporâneos.
Para o filósofo, é possível observar a correlação entre
civilização e barbárie, no sentido de que “nunca houve um
documento da cultura que não fosse simultaneamente um
documento da barbárie” (BENJAMIN, 2012, p. 245). Continua
Benjamin (2012, p. 245): “[...] assim como o próprio bem cultural
não é isento de barbárie, tampouco o é o processo de transmissão em
que foi passado adiante”. Por isso, apresenta-se como tarefa do
materialista histórico a prudência na sua análise, desviando-se desse
processo puramente empático com o momento historicizado e,
assim, olhar a história na sua contradição e regressão. O progresso,
como já constatamos, traz em si a perspectiva da regressão.
Neste contexto, Walter Benjamin (2012), em sua Tese 9,
nos fala do anjo da história que, segundo ele, deve se parecer com o
Angelus Novus, de Klee. Como na figura retratada pelo artista, o
semblante se mostra voltado para o passado. A par desta imagem, de
acordo com Benjamin (2012, p. 246),
Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre
ruína e as arremessa a seus pés. Ele gostaria de deter-se para
acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que
o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele volta as costas,
246
enquanto o amontoado de ruínas diante dele cresce até o céu.
É a essa tempestade que chamamos de progresso.
O anjo da história, neste contexto, nos representa na nossa
ingênua apropriação da ideia de progresso humano como vinculada
ao inevitável alcance de nossa realização ética e política, ou seja, de
uma condição humana que superasse a barbárie e nos aproximasse
da perfeição, próximo do ensaio utópico que apresentamos há
pouco. Entretanto, na realidade, obrigados a contemplar o passado
à nossa frente, desnudam-se para nós suas tragédias e violências,
pelas barbáries que geramos. E, por mais que tentemos, somos
impelidos pela tempestade do progresso rumo a um futuro que não
vislumbramos, pois de frente para a história, e não para as
possibilidades de um devir que não pensamos ou cotejamos, as ruínas
que produzimos até aqui se nos apresentam como a realidade de um
futuro nada promissor.
Do fascismo e do capitalismo: o
medium punctum
de uma
sociedade administrada
No campo da política, após um período de choque e de
traumas com a experiência do nazismo, manifestou-se
aparentemente um apreço maior pela democracia após o horror de
Auschwitz, o que não evitou, contudo, a manipulação deste
sentimento para justificar outras barbáries no período da Guerra
Fria. Estratégia, por exemplo, que se mantém ainda hoje de forma
mais elaborada na justificativa da guerra contra o terrorismo ou nos
conflitos armados que seguem perenes em determinadas regiões do
247
planeta, ceifando as vidas de milhares de pessoas sob a indiferença
das grandes potências.
Nos países ocidentais especialmente, alinhados aos Estados
Unidos e defensores da ideia de liberdade, de igualdade e de justiça,
promovidas pelo credo liberal clássico, vê-se a apropriação destes
ideais ligados ao modelo capitalista muito mais como a dissimulação
para a dominação do que para a emancipação e constituição de
nações livres e autônomas, pensando no tabuleiro político do século
XX e, evidentemente, nas suas realocações neste começo de século
XXI. Numa outra vertente, nos países da herança socialista, não é
diferente a perspectiva, mas repagina-se agora a polarização no
esquadro do embate entre Estados Unidos e China, sem
desconsiderar a sempre presente Rússia, e produz-se um híbrido,
expressona figura de um Estado autocrático ou ditatorial que conduz
um capitalismo tão voraz quanto na perspectiva liberal.
No fundo, ambos os modelos ensaiam a ditadura perfeita e
perpetuam o maniqueísmo que alimenta os extremismos políticos,
promovendo, conjuntamente, o afastamento da política e a ilusão
do progresso constante como promessa que, a cabo e termo, é a
negação do existente e a destruição da liberdade humana que,
efetivamente, ocorre na esfera pública. Seja sob o domínio de um
Estado ditatorial, imbricado com o modelo de uma economia
capitalista, seja pela submissão à ideia de um Estado liberal, que vige
sob a ditadura do capital, ambas condições buscam e garantem a
dominação, não a emancipação dos existentes. O fascismo permeia
suas constituições.
248
Pela reflexão de Guy Debord (1997, p. 75-76), destacamos,
aqui, como alguns elementos dessa percepção que se mostra
entremeada pelo fascismo, o Estado e o capitalismo:
Entre as duas guerras, o movimento operário revolucionário foi
aniquilado pela ação conjunta da burocracia stalinista e do
totalitarismo fascista, que havia copiado a forma de organização
do partido totalitário experimentado na Rússia. O fascismo foi
uma defesa extremista da economia burguesa ameaçada pela
crise e pela subversão proletária, o estado de sítio da sociedade
capitalista, pelo qual essa sociedade se salva e concede a si
própria uma primeira racionalização de emergência, fazendo o
Estado intervir maciçamente em sua gestão. Mas essa
racionalização vem onerada pela imensa irracionalidade de seu
meio. Embora o fascismo se dedique à defesa dos principais
pontos da ideologia burguesa tornada conservadora (a família,
a propriedade, a ordem moral, a nação) ao resumir a pequena-
burguesia e os desempregados assustados com a crise ou
decepcionados com a impotência da revolução socialista, em si
ele não é fundamentalmente ideológico. Apresenta-se como
aquilo que é: uma ressurreição violenta do mito, que exige a
participação em uma comunidade definida por pseudovalores
arcaicos: a raça, o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmo
tecnicamente equipado. Seu ersatz [sucedâneo] decomposto do
mito é retomado no contexto espetacular dos mais modernos
meios de condicionamento e de ilusão. Assim, ele é um dos
fatores de formação do espetáculo moderno. Sua parte na
destruição do antigo movimento operário torna-o uma das
forças fundadoras da sociedade presente: mas como o fascismo
também é a forma mais custosa da manutenção da ordem
capitalista, tinha normalmente que deixar o proscênio do palco
ser ocupado pelos Estados capitalistas que desempenham papéis
249
mais destacados, eliminado por formas mais racionais e mais
fortes dessa ordem.
Como aponta Debord (1997), a partir do contexto
explanado, a imbricação entre o fascismo e o capitalismo e seu
aprimoramento no Estado capitalista contemporâneo e
acrescentamos, seja o que está no espectro político à esquerda ou à
direita , são faces da mesma moeda que, efetivamente, é a moeda
do capital. No cara ou coroa jogados, conduzido pelo ilusionismo
do prestidigitador, não importa o resultado. O que prevalece,
sempre, é a moeda. Neste contexto, abrindo espaço para uma nova
perspectiva totalitária, o fascismo, que se constituíra como
movimento, mesmo saindo de cena, permanece como atmosfera.
Aprofundando um pouco mais estas questões, auxilia-nos,
como esclarecimento, também a análise de Paulo Arantes (2014, p.
317):
Segundo o historiador do direito constitucional Gilberto
Bercovici, quando a luta de classes finalmente arrancou do
capital as constituições sociais de compromisso, deixava de ser
uma evidência que a ordem constitucional era a melhor
garantia do mercado, passando o estado de exceção a ser
decretado quase que em permanência, culminando no abismo
fascista: tratava-se agora da salvaguarda do próprio capitalismo.
A derrota militar do fascismo não cancelou esse estado de
emergência, cuja trajetória ascendente passou por uma nova
calibragem, como atesta o consenso subsequente em torno das
políticas keynesianas de ajuste e contenção.
250
Portanto demonstra-se, cada vez mais, a necessidade
simbiótica entre o capitalismo e a manutenção de um constante
estado de exceção, ou de sítio, desnudando, efetivamente, que a vida
política expressa pela perspectiva burguesa democrática liberal
sempre foi um mero detalhe instrumental. O capitalismo caminha
muito bem sem a democracia.
Como registra Chamayou (2020, p. 22),
A democracia, Samuel Huntington afirmava em 1975, em um
famoso relatório da Comissão Trilateral [...], encontrava-se
afetada por um “problema de governabilidade”: uma onda
popular que minava a autoridade por toda parte e
sobrecarregava o Estado com suas infinitas exigências.
No auge ainda do conflito da Guerra Fria, discutiam os
gestores do capital os elementos do liberalismo autoritário que,
conforme nos apresenta Grégoire Chamayou (2020) em A sociedade
ingovernável, expressa-se no neoliberalismo e seu esvaziamento da
democracia.
Neste sentido, a par da polarização vivenciada pelo mundo
após a Segunda Grande Guerra, de um pequeno arrefecimento nessa
bipartição com a derrocada do chamado “socialismo real” na década
de 1980 e começo dos anos 90, e o desnudamento do já existente
neoliberalismo, o que acompanhamos é a criação de novas condições
de dominação, mais perversas e competentes, como nos alerta
Arantes (2014, p. 317-318),
251
[...] os poderes excepcionais acionados durante a longa guerra
civil imperialista de 1914 a 1945 não foram a rigor desativados:
é preciso não esquecer que a trégua social transcorria sob um
guarda-chuva nuclear. Tampouco o fim da Guerra Fria
desarmou aquela fusão emergencial entre afluência consumista
e complexo industrial-militar. O que se viu foi o capitalismo
enfim mundializado dar uma derradeira volta no parafuso do
estado de urgência latente: segundo o alarmismo apologético
corrente, vivemos desde então numa sociedade securitária de
risco, cujo governo é a somatória de um sem-número de
estratégias preventivas, nos moldes do Direito Penal do
Inimigo, pelo menos como ponto de fuga “normativo”. A
mesma lógica parece reger algo como uma situação de perene
emergência econômica, uma vez que não há mais a menor
“segurança cognitiva” quanto à conduta anômica dos fluxos de
capitais. Daí o novo tipo de salvaguarda jurídica: os dispositivos
constitucionais se assemelham cada vez mais ao modelo
europeu de uma conveão econômica cuja elaboração não
emana de qualquer poder constituinte popular, tampouco
requer a existência de um Estado, basta moeda e Banco Central,
pois se trata apenas de assegurar a vida bruta do capital. Não é
mais necessário que o Estado de Direito saia de cena, basta que
no vasto espaço funcional em que se transformou o mundo do
capital globalizado não seja mais possível distinguir o regime das
leis e o regime da regra (para lembrar da distinção clássica de
Foucault), porém de tal modo indistintos que o infrator
potencial do segundo apenas confirme sua condição prévia de
fora da lei, do direito ou do contrato.
Conforme se constata, assistimos após as duas guerras
mundiais, ao estabelecimento de um poder que suplantará a
constituição do próprio Estado de Direito, que permanece
institucionalmente, mas não por suas perspectivas originárias nas
252
teses dos Modernos. Se bem que, inevitável destacar, lá também
prevalecia, no fundo, no ideário do Contrato Social, a defesa da
propriedade. A mundialização do capital encontra, contudo, as
condições para a realização da dominação em níveis inimagináveis
anteriormente. Se no imaginário comum ainda prevalecia a ideia do
Estado Moderno no seu fundamento democrático, o que se
apresenta não é o investimento nesta proposta, que nunca se realizou
plenamente, mas o predomínio do capital suplantando a concepção
e os limites do Estado de Direito e produzindo sua proteção por
mecanismos que subvertem a lógica da democracia. Na sua essência
autoritária, o capitalismo se organiza de modo a dissimular tal
prerrogativa, mas efetiva-a cotidianamente pela atmosfera constante
da crise e da emergência. Na prevalência da economia sobre a
política, na assimilação pelos existentes de uma vida pautada pelo
economicismo como ciência primeira, o que importa é garantir uma
condição de sobrevivência mínima, dadas as condições objetivas
estabelecidas e o projeto de despolitização encampado pelo sistema
como meio para atingir seus fins. Na defesa do capital bruto,
preserva-se seu espólio e submete-se o mundo e os existentes ao seu
ocaso. E, a qualquer tentativa de reação, disponibilizam-se
instrumentos imediatos para sua contenção.
Por isso, nesse estado de exceção permanente, o processo
contrarrevolucionário também se apresenta ininterrupto. Seja por
golpes militares que produziram sangrentas ditaduras, como a
ocorrida no Brasil em 1964 e, concomitantemente, em vários outros
locais da América Latina restringindo a observação ao nosso
Continente , seja por reformas verdadeiros desmontes nas áreas
econômica, social e de direitos fundamentais, em suas diversas
253
esferas, promovendo a inação de qualquer perspectiva crítica que se
apresente contra o capital. Neste sentido, vivemos em constantes
crises econômicas que exigem contínuas reformas, que nunca
mexem no capital, mas na base explorada, e que conciliam a ideia de
desenvolvimento econômico, penalizando, geralmente, as áreas
básicas de investimento social, como Saúde, Educação e Segurança.
Como verdadeiro governante, o mercado, esta entidade abstrata e
soberana, elege ou derruba governos, mas mantém o Estado
capitalista, não o Estado de Direito, de forma vigorante.
Considerando as questões até aqui apresentadas, é
importante destacar que há um ganho exponencial nos
procedimentos de apropriação da técnica e da mentalidade
tecnológica, que já era preocupação de Adorno e Horkheimer
(1985) na Dialética do esclarecimento e nas análises desenvolvidas no
estudo da personalidade autoritária. Ainda em consonância com os
Estudos sobre o preconceito no período do nazismo e seus
desdobramentos no pós-guerra, a correlação dessa mentalidade,
afeita à técnica e à manipulação, apresentava no horizonte a
potencialidade de uma barbárie ainda maior, mais pela condição de
fortalecimento do que de esclarecimento, da frieza burguesa e da
ratio instrumental, que favorecera as condições para que Auschwitz
acontecesse.
No limiar de um mundo mais afeito à técnica, ao
desenvolvimento e ao signo do progresso infindável, portanto, os
elementos da barbárie, que já estavam presentes no próprio processo
civilizatório, puderam ser potencializados por uma sociedade cada
vez mais atomizada, no individualismo de seus membros em
detrimento da singularidade do indivíduo que se manifesta e se
254
reconhece na esfera pública e, ao mesmo tempo, mais
uniformizada no processo de administração dos existentes. Ou seja,
ao mesmo tempo em que estamos cada vez mais integrados por uma
sociedade globalizada, regidos pela lógica mecanicista da composição
de um sistema, mais isolados nos encontramos na perspectiva
política pelo esvaziamento desta com o constante projeto de
destruição do mundo público.
Neste contexto, a perspectiva de um totalitarismo nos
moldes do nazifascismo, que parece superado na cena presente,
transmuta-se na condição de um totalitarismo introjetado,
internamente constituído a partir dos processos de semiformação e
semicultura, como solução de continuidade da indústria cultural, sob
a ótica do neoliberalismo. Este, por sua vez, apresenta-se não
meramente como uma atualização da teoria liberal no campo
político, econômico e ético, mas como a própria natureza do
capitalismo em sua perspectiva do lucro e da dominação que,
efetivamente, nunca teve em sua essência a intenção da democracia
ou da justiça social.
O neoliberalismo, neste sentido, simboliza muito mais do
que uma forma de governo. Como modo de vida assimilado,
significa a representação de um governo de si, tão introjetada na nossa
existência sob a égide do individualismo que desconhece a esfera
pública e o espaço comum, posto que se constitui num pensamento
que vai sendo cotidianamente homogeneizado para a despolitização.
À margem da possibilidade da percepção de um processo ideológico,
que provocaria a crise e o confronto com o sistema estabelecido, o
neoliberalismo pode se dar ao luxo de dispensar, muitas vezes, a
disciplinarização. Já estamos disciplinados.
255
Por isso, soa como anacrônica uma teoria conspiratória
como a da doutrinação marxista de alunos na escola por um exército de
professores esquerdistas, uma das pautas do atual e, também,
anacrônico governo, baseada na ideologia da extrema direita sobre
um marxismo cultural. Num olhar de sobrevoo, parece plausível
constatar que na escola é mais fácil as crianças aprenderem os credos
do capitalismo em sua proposta liberal como já apontamos aqui,
anacrônica também , do que ocorrer uma doutrinação socialista-
marxista.
Empiricamente, sem ousarmos absolutizar qualquer
constatação, não acreditamos que seja fácil encontrar alunos que,
chegando ao ensino superior, por exemplo, após anos de
“doutrinação”, saibam explicar quem é Marx ou o que ele propunha.
Ou que defendam a Revolução. Contudo, geralmente avessos à
política, desconhecendo a importância da esfera pública e
pretendentes a uma vaga no mercado mais de consumo do que de
trabalho , muitos se encontrarão inseridos na lógica capitalista de
comprar, vender, consumir, empreender mesmo que seja uma
quimera para a maioria e, por fim, legitimar a ideia da liberdade
individual na perspectiva do individualismo neoliberal, não na
compreensão da sua singularidade existencial que exige, como
condição para uma vida comum, o encontro e a existência política
com outras individualidades. Muitos destes dirão, numa pandemia,
questão de saúde pública, que é direito individual deles não se
vacinarem ou recusarem-se a usar máscaras.
Nossa compreensão de mundo, neste sentido, está
fundamentada numa racionalidade econômica, que serve ao mercado
e que passa a gerir nosso viver. Deste modo, o mercado de trabalho
256
não representa mais o desejo de inserção daquele homo oeconomicus
do liberalismo clássico, mas seu anseio é por estar inserido no
mercado de consumo que, no novo liberalismo, denota,
falaciosamente, nossa condição de igualdade. Como nos esclarece
Foucault (2008a, p. 310-311),
No neoliberalismo também vai-se encontrar uma teoria do
homo oeconomicus, mas o homo oeconomicus, aqui, não é em
absoluto um parceiro de troca. O homo oeconomicus é um
empresário, e um empresário de si mesmo. Essa coisa é tão
verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que
fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo
oeconomicus parceiro de troca por um homo oeconomicus
empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo
para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de
[sua] renda. [...] O homem do consumo não é um dos termos
de troca. O homem do consumo, na medida em que consome,
é um produtor. Produz o quê? Pois bem, produz simplesmente
sua própria satisfação. E deve-se considerar o consumo como
uma atividade empresarial pela qual o indivíduo, a partir de
certo capital de que dispõe, vai produzir uma coisa que vai ser
sua própria satisfação.
Na perspectiva desse homo oeconomicus, permeada por
elementos da Teoria do Capital Humano
48
, dá-se o entendimento de
48
Teoria que ganha força nos anos 1970, destacamos aqui o esclarecimento de Aranha
(2006, p. 258): “Outra influência na tendência tecnicista aplicada à educação encontra-se
na Teoria do Capital Humano (TCH), divulgada sobretudo por Theodore Schultz, autor
de O valor econômico da educação. Para ele, ‘as escolas podem ser consideradas empresas’
especializadas em produzir instrução. A adaptação do ensino à mentalidade empresarial
tecnocrática exige o planejamento e a organização racional do trabalho pedagógico, a
operacionalização dos objetivos, o parcelamento do trabalho com a devida especialização
das funções e a burocratização. Tudo para alcançar mais eficiência e produtividade. Como
257
que é responsabilidade exclusiva do indivíduo, numa perspectiva
meritocrática que oblitera as contradições sociais, o investimento em
si mesmo para que construa seu próprio capital. Neste viés,
direcionam-se esforços no campo da educação, pois, sem esta, não
há formação do capital humano e, portanto, amolda-se a escola nesse
viés. Na perspectiva empresarial, reorganiza-se a escola para uma
formação empreendedora dos indivíduos
49
, para que sejam capazes
de chegar ao governo de si mesmos com vista ao capital , numa
compreensão diametralmente desvirtuada da proposta de autonomia
kantiana. Dessa forma, num processo contínuo de individuação, não
de autonomização, tudo o que der errado neste investimento, aquilo
que se desviar ou se perder pelo caminho não será culpa do Estado,
das contradições sociais e do projeto de dominação que subjaz na
essência do capitalismo. O único responsável, ideia inclusive
apropriada por cada um que se identifica com esta mentalidade,
todo processo em que predominam práticas administrativas, a tendência tecnicista
privilegia as funções de planejar, organizar, dirigir e controlar, intensificando a
burocratização que leva à divisão do trabalho. Os técnicos tornam-se então responsáveis
pelo planejamento e controle, o diretor da escola é o intermediário entre eles, e os
professores reduzem-se a simples executores. Com isso, o plano pedagógico submete-se ao
administrativo. Contudo, não convém situar essa tendência apenas até a década de 1970.
Porque no atual momento de globalização da economia e de fortalecimento do ideário
neoliberal, continua existindo o risco de encarar a educação como uma técnica de adaptação
humana ao mundo do mercado”.
49
Sobre esta questão, também é autoexplicativa a citação a seguir: “Nessa linha, fica claro
o reducionismo do papel da educação, pelo seu atrelamento a interesses estranhos a ele.
Mais adiante, Ramos completa: ‘Não é demais reafirmar que a implementação de muitas
dessas ações está embasada em geral numa compreensão de educação enquanto
mercadoria e de investimento em educação como uma inversão em ‘capital humano’, já
presentes em Friedman e na TCH (Teoria do Capital Humano). Conforme Nereide
Saviani, esse conjunto de medidas adotadas tem ‘por eixo um novo conceito de público’,
que estaria ‘desvinculado do estatal e gratuito’, com a transferência da responsabilidade para
a sociedade civil, a comunidade, a família, embora se admitindo subsídios para os
necessitados tal como já recomendava Friedman” (ARANHA, 2006, p. 331).
258
mesmo que inconscientemente, é o próprio indivíduo. Nem o
mercado será culpabilizado, pois esta, a culpa, será sempre de
responsabilização pessoal.
Merece um aparte aqui a questão da responsabilidade
pessoal. Não se subsume a responsabilidade moral dos indivíduos,
evidentemente, atribuindo a um sistema a culpa por suas escolhas e
ações. Mas, diferentemente daquilo que implica a responsabilidade
moral do indivíduo no caso do totalitarismo, como nos esclarece
Hannah Arendt
50
, o que vemos aqui é o processo de alienação e de
exploração a que se submete o sujeito pelo neoliberalismo.
Se na questão moral, não tenho como responsabilizar
abstratamente o sistema, pois quem responde perante um tribunal é
uma pessoa, que fez escolhas, ou deixou de fa-las ao colaborar com
50
Sobre a questão do julgamento de Eichmann e dos nazistas pelas suas ações no regime,
Hannah Arendt analisa o colapso que se dá na perspectiva jurídica quando destes
procedimentos no pós-guerra ao suscitarem questões morais, para além do usual tecnicismo
do Direito. Para a filósofa, “a razão pela qual esses procedimentos do tribunal puderam
ressuscitar questões especificamente morais o que não é o caso nos julgamentos de
criminosos comuns é óbvia; essas pessoas não eram criminosas comuns, mas antes pessoas
comuns que tinham cometido crimes com mais ou menos entusiasmo, simplesmente
porque fizeram o que lhes foi mandado” (ARENDT, 2004b, p. 122). Considerando,
portanto, a justificativa de Eichmann para seus atos, afirmando que obedecia a ordens,
Hannah Arendt (2004b, p. 121) analisa que “a transferência quase automática de
responsabilidade que ocorre habitualmente na sociedade moderna sofre uma parada
repentina no momento em que se adentra a sala de um tribunal. Todas as justificações de
uma natureza abstrata não específica tudo, desde o Zeitgeist, até o complexo de Édipo,
que indica que você não é um homem, mas função de alguma coisa e, por isso, é algo
substituível em vez de alguém entram em colapso. Não importa o que possam dizer as
modas científicas da época, não importa quanto elas possam ter penetrado na opinião
pública e com isso influenciado os profissionais da lei, a própria instituição as desafia
inteiramente, e deve desafiá-las ou desaparecer. E no momento em que se chega ao
indivíduo, a pergunta a ser feita não é mais: Como esse sistema funciona?, mas: Por que o
réu se tornou funcionário dessa organização?”. Mesmo sob o regime do terror, justificar
nossa indiferença nunca será suficiente para isentar-nos da nossa responsabilidade pessoal
frente à barbárie perpetrada.
259
a barbárie, na perspectiva neoliberal, a desconsideração do processo
de alienação que fundamenta a administração desse sistema é mero
subterfúgio que oblitera para o existente a exploração a que está
submetido. Ao se auto responsabilizar como o único agente, omite-
se do exercício de entender os mecanismos que o subjugam e o
violentam, de forma autoritária, numa existência administrada e
danificada que perpetua, cotidianamente, a atmosfera fascista que
permeia a sociedade do capitalismo.
O carrasco nazista não pode se desresponsabilizar por suas
ações, afirmando simplesmente que cumpria ordens. No caso do
sujeito neoliberal, não seria a questão de responsabilizar o sistema
porque ele não alcançou o sucesso que, alienadamente, acreditava ser
possível puramente pelo seu mérito. Ao contrário, trata-se de romper
com a alienação, enquanto difusa na conjugação da realidade e da
ideologia a que está submetido e que, nem sequer encontra o
mínimo vestígio do que assim está subsumido. Neste caso, a
liberdade prometida nunca será consumada, pois está introjetada no
sujeito uma subserviência sempre sublimada.
Por meio das micropolíticas, portanto, o pensamento fascista
se desdobra em microfascismos que vão se estabelecendo no
cotidiano nos mais diversos espaços. Não se apresenta como um
poder totalitário, mas é eficazmente a totalidade de um poder que
está presente nas famílias, na escola, nas redes sociais, nas igrejas e
na existência de cada um. Não é necessária, neste sentido, uma
política de Estado, posto que o neoliberalismo está assimilado como
modo de vida.
Por isso, independentemente do espectro político da
governança que se encontra na gestão do Estado, podemos encontrar
260
pontos de contradição com o estabelecido, mas efetivamente, não
possibilidades de ruptura estruturais que abalem o sistema. Por isso,
a constatação de que nunca é suficiente a troca ou a retirada de um
governo. O que está em questão não é a centralidade de um poder
soberano, mas a existência do poder disseminado e mantido pelas
artes de governo e pelos dispositivos de segurança que compõem a
sociedade e sua população, a biopolítica e o biopoder, como nos
apontava Foucault (2008b) em suas análises sobre
governamentalidade. Neste sentido, o que entende Foucault por
governamentalidade? É o próprio autor quem nos responde:
Por esta palavra, governamentalidade, entendo o conjunto
constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e
reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa
forma bem específica, embora muito complexa, de poder que
tem por alvo principal a população, por principal forma de
saber a economia política e por instrumento técnico essencial
os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por
governamentalidadeentendo a tendência, a linha de força que,
em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito,
para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar
de governosobre todos os outros - soberania, disciplina - e que
trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de
aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o
desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por
governamentalidade, creio que se deveria entender o processo,
ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça
da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado
administrativo, viu-se pouco a pouco governamentalizado
(FOUCALT, 2008b, p. 143-144).
261
As discussões de Foucault (2008b) sobre a ideia de
governamentalidade, neste sentido, comportam muito mais do que
a clássica ideia de governo do soberano e do súdito, daquele que
governa e daqueles que são governados, por exemplo. Envolve muito
mais complexidades do que a ideia da virtude política do príncipe
maquiaveliano ou da pura representatividade assimilada pelo
modelo liberal de democracia que permeia nosso imaginário.
Governamentalidade, para Foucault (2008b), representa uma forma
bem específica e complexa de poder, que visa ao governo da
população
51
que deve ser docilizada, neste sentido, pois não pode
ser ingovernável e que tem, como principal saber o da economia
política e, por instrumento técnico essencial, os que se relacionam
51
Foucault (2008b) contrapõe o conceito de população ao conceito de povo.
Classicamente, a ideia de povo fundamentou as discussões sobre o Estado e a soberania
deste, além da percepção dos homens para a vida política. A própria origem da palavra
democracia, em sua origem grega, nos remete à conjugação dos termos demos e kratia,
fundamentando a tese de um governo do povo. No Estado administrativo contemporâneo,
o termo população aparece mais afeito a uma dissolução das singularidades e das diferenças,
corroborando as perspectivas neoliberais quando se trata do conceito de igualdade como
padronização da existência, em que, aparentemente, somos todos iguais. Na contramão,
historicamente, a ideia de povo se apresenta como oriunda de uma perspectiva em que não
é tão tranquila a condição de governo e que pressupõe, mesmo nos moldes da democracia
moderna, um conflito com a ideia de governo do povo ou, então, da revolta popular. Na
pretensão neoliberal, isso se apresenta como incômodo. Por isso, no cotidiano de uma
existência administrada, geralmente nos afastamos de tais questões e, habitualmente,
promovemos a fuga de tal percepção. No processo educacional, por exemplo, preocupamo-
nos em formar a população, num padrão que não comporta o diferente, o ingovernável, mas
em que se pretende evitar aquilo ou aqueles que nos afastam da normalidade. Ou seja,
educamos para formar a população dentro do normal da sociedade economicista que
promete a felicidade pela homogeneidade e não a formação para a autonomia, para a
criticidade, para a vida política, para um mundo plural em que deveriam habitar os seres
humanos. Apesar disso, em alguns momentos, resistências acontecem, pois pontos fora da
curva aparecem quando se demonstra que, sem os filtros da ciência positivista, da
propaganda e da mídia, o mundo administrado é imperfeito, danificado e, efetivamente,
não condiz com a estética apresentada e criada pelo modelo capitalista e neoliberal.
262
aos dispositivos de segurança, já destacados, a biopolítica e o biopoder.
Para ele, o Estado moderno constituiu-se nos elementos da
biopolítica, com o prevalecimento de uma tecnologia do biopoder
da segurança.
Contrariamente ao reino antigo, em que preponderava um
poder de soberania que facultava ao soberano fazer morrer ou deixar
viver o súdito, conforme quisesse demonstrar seu beneplácito, ou
não, no novo modelo, o que passa a prevalecer é a gestão da vida da
população e o que se apresenta como condição implícita é o fazer
viver e deixar morrer. Neste sentido, o fazer viver compreende a ideia
de não perder ninguém, nenhuma vida neste Estado, na condição de
que todos devem chegar à vida da população. Não, evidentemente,
a uma vida autônoma, mas governável.
Esta perspectiva, então, ocorre em duas vertentes. Uma,
ancorada na ideia salvífica, apresentando uma concepção pastoral de
que todos devem ser salvos, logicamente, desde que em acordo com
o modelo de vida estabelecida. A segunda vertente, por sua vez,
manifesta a prerrogativa da inclusão de todos, o que traz como pano
de fundo, não o respeito às diferenças e à pluralidade, mas a
proposição de que todos devem ser incluídos como potenciais
consumidores, sob a falácia da igualdade. Neste sentido, incluir
todos aqui explicita uma questão de mercado e não a bondade de
um Estado administrativo.
O deixar morrer, por sua vez, apresenta como perspectiva a
ideia do abandono daqueles que, estando à margem da população,
que não são enquadráveis no padrão da governança, ficam
submetidos a uma política econômica que determina sobre quem é
exercida a violência. Nestes casos, os mecanismos de segurança são
263
suspensos e essas vidas ingovernáveis são colocadas em risco e
submetidas a uma existência precária. São os vários tipos de sujeitos
que estão fora da concepção de população, posto que são corpos
desviantes, vidas que são demarcadas como não merecendo viver. Na
ausência da proteção do Estado, o deixar morrer os corpos desviantes,
dos negros, dos homossexuais, das mulheres vítimas da violência e
do machismo, dos pobres e de qualquer esfera de representação que
se tenha como ingovernável, não é incompetência, mas projeto.
Estes são o estrato principal da necropolítica, termo cunhado pelo
filósofo camaronês Achille Mbembe (2018).
Retomando Chamayou (2020, p. 23), ele destaca que
Foucault falava de uma “crise de governamentalidade” que [...] não
se tratava de um simples movimento de ‘revoltas de conduta’, e sim
de um bloqueio do ‘dispositivo geral de governamentalidade’, e isso
por razões endógenas, irredutíveis às crises econômicas do
capitalismo, ainda que a ela articulado”. Neste sentido, ainda
acompanhando Foucault, esclarece Chamayou (2020, p. 24):
Se a sociedade é ingovernável, não o é em si, mas, retomando a
fórmula do engenheiro saint-simoniano Michel Chevalier, ela
é “ingovernável tal como a queremos governar atualmente”. Eis
um tema clássico nesse gênero de discurso: não há
ingovernabilidade absoluta, somente relativa. E é nessa
diferença que residem, simultaneamente, a razão de ser, o
próprio objeto e o desafio construtivo de toda arte de governar.
Assim, na perspectiva do neoliberalismo até aqui explicitado,
o cerne de sua constituição se dá no estabelecimento de uma arte de
governar que implica minimizar as tensões e as possibilidades de
264
contraposição ao modus vivendi de uma sociedade administrada,
apesar de não existir ingovernabilidade absoluta. Uma sociedade que
possa ser governada “como se querpor aqueles em que a esfera da
decisão não passa pelas instâncias democráticas e não, como
pressupõe a teoria política, enquanto esfera pública da existência dos
homens e da discussão dos destinos do mundo comum (ARENDT,
2011).
Neste sentido, diante das crises e das constantes exigências
sociais que preconizam intervenções estatais, ao tratar de dois de seus
eixos de estudo em A sociedade ingovernável, Grégoire Chamayou
(2020) anota algumas das questões fundamentais para os gestores do
capital:
[...] Diante da iniciativa sobretudo dos movimentos
ambientalistas nascentes, novas regulações sociais e ambientais
se impõem. Assim, à pressão indireta dos movimentos sociais
acrescenta-se a pressão vertical de novas formas de intervenção
pública. Como obstruir tais projetos de regulação? O que
contrapor a eles, na teoria e na prática? [..] A que se deve,
fundamentalmente, esse duplo fenômeno de contestação
generalizada e de maior intervenção governamental? Aos vícios
de uma democracia de bem-estar social nos garantem que,
longe de assegurar o consenso, cava a própria cova. Aos olhos
dos neoconservadores, assim como dos neoliberais, é o próprio
Estado que está prestes a se tornar ingovernável. De onde vêm
as perguntas: como destronar a política? Como limitar a
democracia? (CHAMAYOU, 2020, p. 27).
Na perspectiva da defesa do capital, o incômodo com a
democracia e, efetivamente, com a política, ilumina os fundamentos
265
do neoliberalismo. Neste contexto, inclusive contra elementos
produzidos pelo próprio liberalismo como respostas às crises ou aos
embates com os contrapontos do socialismo soviético no período da
Guerra Fria, como o Welfare stateo Estado de bem-estar social.
Por isso, como no pressuposto fascista, não é à política que
se reporta o neoliberalismo, mas contra a política. Neste sentido, as
regras do jogo democrático são incômodos que precisam ser
superados. Contudo, não é por um pensamento ideologizado de
forma homogênea, unívoca que se compreende a vertente neoliberal.
Diante da preocupação da ingovernabilidade do próprio Estado, o
neoliberalismo se constitui multifacetado, complexo e, reiteramos,
não como uma forma de governo, características das perspectivas
clássicas. Vivemos uma era neoliberal que, segundo Chamayou
(2020, p. 25), constitui-se por “[...] um neoliberalismo híbrido, um
conjunto eclético e em muitos aspectos contraditório, cujas sínteses
estranhas se esclarecem apenas pela história dos conflitos que
marcaram sua formação”.
Apesar de sua intrínseca complexidade, nossa percepção de
sua manifestação como solução de continuidade das perspectivas
totalitárias explicitadas com o nazifascismo e o aprimoramento na
salvaguarda do capital, compreende-se, enquanto a introjeção de um
modo de vida, de pensar que, efetivamente, apresenta-se como um
medium punctum entre o fascismo e o capitalismo. Isto posto,
permitimo-nos afirmar que, ao vivermos uma era neoliberal,
vivenciamos, concomitantemente, um tempo fascista constituído por
uma atmosfera fascista que permeia nossa existência e permite a
manifestação mais elaborada do capitalismo autoritário.
266
Neste contexto, o neoliberalismo atualiza o Estado de exceção
permanente na história – que Benjamin (2012) já denotara em suas
teses , e dissolve o indivíduo e sua individualidade, na submissão
de um todo existencial que não representa o bem comum, mas o
comum de um viver reificado de extremo individualismo
administrado que, nos moldes da sociedade de consumo, consome
tudo e consome-se existencialmente numa vida sem significado.
Num modelo totalitário, de certo modo mitigado para a percepção
do senso comum, aparentemente “indenunciável”, encontramo-nos
aqui com as palavras de Aldous Huxley (1977, p. XV-XVI), na
introdução do seu livro Admirável mundo novo:
Não há, por certo, nenhuma razão para que os novos
totalitarismos se assemelhem aos antigos. O governo pelos
cassetetes e pelotões de fuzilamento, pela carestia artificial, pelas
prisões e deportações em massa, não é simplesmente desumano
(ninguém se importa muito com isso hoje em dia); é, de
maneira demonstrável, ineficiente e numa época de
tecnologia avançada a ineficiência é o pecado contra o Espírito
Santo. Um estado totalitário verdadeiramente eficiente seria
aquele em que o executivo todo-poderoso de chefes poticos e
seu exército de administradores controlassem uma população
de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam
sua servidão. Fazer com que eles a amem é a tarefa confiada,
nos estados totalitários de hoje, aos ministérios da propaganda,
diretores de jornais e professores. Seus métodos, porém, são
ainda primitivos e pouco científicos. A afirmação jactanciosa
dos antigos jesuítas, de que, se lhes fosse dado educar a criança,
se responsabilizariam pelas opiniões religiosas do homem, não
era mais do que o produto da racionalização de um desejo. E o
pedagogo moderno é, com toda probabilidade, bem menos
267
eficiente no condicionamento dos reflexos de seus alunos do
que o eram os reverendos padres que educaram Voltaire. Os
maiores triunfos da propaganda têm sido obtidos, não por atos
positivos, mas pela abstenção. [...] os propagandistas totalitários
têm influenciado a opinião com muito mais eficácia do que
poderiam tê-lo feito pelas mais eloquentes invectivas, pelas mais
convincentes refutações lógicas.
Assim sendo, no predomínio que vai se estabelecendo de um
novo modelo de totalitarismo, o ataque à política é projeto que não
se restringe mais, como no fascismo clássico, ao embate direto,
manifestado pela violência do partido. Isso continua e sempre
encontra seu espaço. Mas, nos moldes do neoliberalismo, a
desqualificação da política e a limitação da democracia são,
estrategicamente, pensadas num processo de despolitização
contínuo, elementos fundamentais para que se possa lograr uma
gestão efetiva dos indivíduos em uma sociedade cada vez mais
administrada.
Neste viés, o papel da propaganda, na sua perspectiva
dissimulatória e na constituição das narrativas, é outra condição
fundamental para que se mantenha, sempre presente, a atmosfera
fascista na qual se embala o continuum de Auschwitz, mesmo que
negada sua realidade pela ratio administrativa do capitalismo em sua
intransigente defesa do progresso humano.
268
Antissemitismo e propaganda fascista:
a
mentira manifesta
de sempre
O uso da propaganda na manipulação da subjetividade foi
explorado pelo fascismo, de forma competente, para os seus
propósitos, no período do nazifascismo. Na máxima de Goebbels,
Ministro da Propaganda Nazista, de que uma mentira repetida
inúmeras vezes se torna verdade, subjazem mecanismos de
manipulação da subjetividade humana que, apropriados pela
indústria cultural e pelos procedimentos do marketing e da
propaganda no capitalismo tardio, ampliaram seus meios para o
consumismo exacerbado e a dominação em outros níveis, conforme
destacamos anteriormente, neste tempo neoliberal.
Nesta questão, sua eficácia se demonstra na sedução pela
ideia de posse e utilidade que conjuga. Manipulando nossa
subjetividade, apresenta-nos imageticamente a realização do
irrealizável, da posse de um desejo que nunca se consuma, posto que
sempre se renova, mas que é sublimado pela adesão que fazemos pelo
produto, pela forma e pela ideia de eficiência que se apresenta na
subsunção de sua utilidade sem, necessariamente, nos preocuparmos
com a finalidade, seja da propaganda, do produto ou deste para a
nossa existência.
Neste contexto, a propaganda continua sendo a “alma do
necio”, ajudando a consumar também uma atmosfera fascista,
porquanto se aplica tão bem para a venda de um produto quanto
para a propagação de uma notícia falsa, as fake news. Na falsa teoria
que se propaga de forma ingênua não pelo que a produz, mas pelos
muitos que a repassam –, encontra-se o desejo de acreditar numa
269
verdade, de ter a posse de sua revelação. No ato de difundi-la, a crença
de sua utilidade, como alguém que está ajudando a desvelar ao
mundo a verdade que fora ocultada. Narcisisticamente, o que se
estabelece é uma lógica do consumo na sustentação de uma
sociedade do consumo. Uma constante dominação pela contínua
operation. Por trás do palco do espetáculo cotidiano, o algoritmo usa
o usuário.
Por isso, retomando brevemente nossas análises nos
Capítulos II e III quando tratamos dos estudos dos frankfurtianos
em associação com os psicólogos sociais de Berkeley , destacamos
que, nas conclusões de La personalidad autoritaria (1965), um dos
elementos para se compreender o sujeito potencialmente fascista é
exatamente aquele que trata de sua afeição à propaganda
antidemocrática, identificado a partir do estudo das síndromes que
comportavam os baixos e altos pontuadores na Escala F. Mais uma
vez ressaltamos aqui que não se tratava de uma proposta de
tipificação comum, conforme alguns modelos psicologizantes ainda
em voga
52
. Como nos esclarece Costa (2019, p. 228),
52
É fácil a sedução pelas tipificações frequentes que, de tempos em tempos, se apresentam
como teorias que enquadram os seres humanos em modelos ou personificações que, para o
senso comum, são tomadas como absolutas. Muitas vezes, tais teorias acabam fortalecendo
muito mais preconceitos e obsessões por enquadrar determinadas pessoas sob certos
modelos, justificando ou naturalizando, por exemplo, limitações, traços comuns ou
comportamentos compartilhados, desconsiderando as questões sociais e suas contradições,
para legitimar a continuidade de violências, exclusões ou segregações raciais. De acordo
com Costa (2019, p. 228), “O próprio Adorno apresenta as críticas mais recorrentes que
condenam o uso de tipologias em estudos das ciências humanas em geral. Ele nos diz que
a tipologia recebe ataques, de um lado, da versão mais ‘teórica e generalizante’ dos estudos
sociais por não conseguir captar os casos particulares, tornando iguais e equivalentes sujeitos
dotados de especificidades, modo de tratar seres humanos como meros objetos classificáveis
e generalizáveis. De outro lado, a tipologia também recebe ataques dos partidários de uma
ciência quantitativa: afinal, as generalizações tipológicas não são estatisticamente válidas”.
270
[...] Adorno defende o que ele chama de uma tipologia crítica,
algo que, segundo ele, inclusive Freud teria produzido. Afinal,
se os seres humanos são socialmente divididos pelo próprio
sistema capitalista, a tipologia revelaria, entre outros, os
resultados das diferentes medidas de repressão e controle social
na constituição psíquica. Não esqueçamos que se TAP
53
trata
de um “novo tipo antropológico autoritário”, este tipo não
aborda o sujeito de modo completo, mas diz mais sobre um
ambiente cultural e social vigente. Nesse sentido, a tipologia de
TAP não seria uma mera artimanha metodológica para facilitar
a apreensão dos dados expostos no livro, mas um resultado
social que não deve ser negligenciado na pesquisa crítica.
Portanto, a proposta é a de demonstrar que, social e
psiquicamente, entrelaçam-se os elementos que proporcionam a
constituição de um “novo tipo antropológico autoritário”, o sujeito
potencialmente fascista que, se não necessariamente se reconhece
como fascista, contudo, de bom grado, apoiaria o fascismo e aderiria
aos seus pressupostos caso se sentisse seguro e gratificado
libidinalmente. Como esclarece Costa (2019), esta tipificação não
implica uma abordagem do sujeito em sua completude, mas o
desnudamento de sua relação e estabelecimento que se dá, muito
mais, pelo ambiente cultural e social estabelecido.
Neste sentido, a relação do autoritarismo com o nosso
processo civilizatório e o surgimento de sujeitos mais autoritários
quanto mais aprimoramos nossa relação com a técnica e a
dominação, demonstram-se simbióticos na época dos
Contudo, não se encaixava nestas condições e pretensões a pesquisa de La personalidad
autoritaria (1965).
53
Nota nossa: TAP The Authoritarian Personality.
271
frankfurtianos, pelo ambiente da sociedade do capitalismo tardio e,
atualmente, pela introjeção na nossa existência, do neoliberalismo.
Por isso, sem a preocupação de darmos conta da completude da
formação psíquica do sujeito, o recurso aos estudos de La
personalidad autoritaria (1965) continua atual e fundamental para
que possamos compreender como se favorecem, socialmente e
educacionalmente, estruturas psíquicas que se manifestam nessa
síndrome e que, efetivamente, podem se apresentar em qualquer
pessoa. Ou seja, permite-nos compreender, mais especificamente,
que atualmente esses elementos se encontram fortalecidos e
ampliados de forma geral numa sociedade sob a égide do
neoliberalismo e de uma atmosfera fascistaque se encontra cada dia
mais favorável ao autoritarismo e aos propósitos do fascismo.
Sobre o papel da propaganda neste contexto, no ensaio
Antissemitismo e propaganda fascista
54
, Adorno registra que foram
analisadas amostras de propagandas antidemocráticas e antissemitas
a partir de transcrições, por taquigrafia, de palestras pelo rádio,
panfletos e algumas publicações semanais, promovidas por alguns
agitadores, assim chamados os que divulgavam tais propagandas, a
partir de um recorte que priorizou a Costa Oeste dos Estados
Unidos. Convém destacar que o estudo em questão ocorre no
período pós Segunda Guerra, quando o fascismo havia sido
derrotado, mas que se revelava, por este e outros estudos, já
disseminado no seio também de países democráticos, como os
54
Com base em três estudos realizados pelo Programa de Antissemitismo, conduzidos por
Adorno, Leo Lowenthal e Paul W. Massing, com o apoio do Instituto de Pesquisa Social
na Universidade de Columbia.
272
Estados Unidos. Este estudo corrobora também os desenvolvidos,
posteriormente, em La personalidad autoritaria (1965).
Na publicação sobre o antissemitismo e a propaganda
fascista, Adorno esclarece que a natureza do trabalho é de cunho
principalmente psicológico, pois, embora abordem também
problemas econômicos, políticos e sociológicos, é a análise de como
funciona psicologicamente a propaganda, e não objetivamente, o
que está sendo considerado. Contudo, não é um tratado
psicanalítico sobre a propaganda antidemocrática o que se buscou
realizar, mas objetivamente, salientar alguns resultados que, embora
preliminares e fragmentários, pudessem sugerir uma avaliação
psicanalítica ulterior (ADORNO, 2015).
Neste sentido, destaca Adorno (2015) que o material em si
pressupõe esta perspectiva psicológica, pois não é uma proposta
objetiva o que apresenta, e sim, proposições para a manipulação de
mecanismos inconscientes das pessoas, a fim de convencê-las do que
está sendo propagado. Não se apresentam ideias ou argumentos, mas
procedimentos de manipulação. Neste sentido, esclarece Adorno
(2015, p. 138):
Não apenas a técnica oratória dos demagogos fascistas é de uma
natureza astuciosamente ilógica e pseudoemocional; mais do
que isso: programas políticos positivos, postulados, ou
quaisquer outras ideias políticas concretas desempenham um
papel menor quando comparados aos estímulos psicológicos
direcionados à audiência. É através desses estímulos e de outras
informações, e menos das plataformas confusas e vagas dos
discursos, que podemos identificá-los como fascistas.
273
Ou seja, a preocupação do agitador fascista não é o
convencimento argumentativo, racional, pautado na objetividade da
questão e no exercício da subjetividade do sujeito em sua análise. Ao
contrário, o que se pretende é a manipulação dos sentimentos, da
subjetividade do existente, o estímulo à polarização, ao confronto,
ao enfrentamento de pretensos “inimigos”, em nome de um
pseudoprojeto, geralmente apresentado de forma confusa ou esparsa,
sem sustentabilidade clara, se submetido à análise mais depurada.
Portanto, o que caracteriza o fascista e, neste caso, o agitador fascista,
é seu discurso ilógico e pseudoemocional, voltado para estímulos
psicológicos em seus ouvintes e seguidores, especialmente,
mantendo viva uma “chama por algo” que, mesmo que não se
entenda racionalmente, importa mais do que a compreensão de um
projeto efetivamente.
Neste contexto, referindo-se àquele momento
55
da
propaganda fascista norte-americana, Adorno (2015) esclarece que
foram consideradas três características de sua abordagem que são
predominantes em seu viés psicológico. Destacamos brevemente as
três e, na sequência, esmiuçamos um pouco mais o contexto de cada
uma. São elas (ADORNO, 2015, p. 138-140):
1. Trata-se de uma propaganda personalizada,
essencialmente não objetiva. Os agitadores despendem grande
55
Apesar de ser datado o estudo e o texto aqui em análise, entendemos a sua atualidade
devido ao contexto que, conforme veremos ao longo da discussão, encontra nos dias de
hoje os mesmos elementos repaginados neste momento. Isso não se dá necessariamente no
uso dos mesmos meios de comunicação utilizados na época, como o rádio, palestras e
panfletagem, mas, principalmente, pela potencialização alcançada pelas Redes Sociais e pelo
uso dos algoritmos como instrumentos incrivelmente eficazes para o desenvolvimento de
formas de manipulação da subjetividade ainda mais perigosas.
274
parte de seu tempo falando sobre si mesmos ou sobre suas
audiências.
2. Todos esses demagogos substituem os fins pelos
meios. Falam muito sobre “este grande movimento”, sobre sua
organização, sobre um amplo renascimento norte-americano
que esperam realizar, mas raramente dizem alguma coisa sobre
aquilo que se supõe que tal movimento conduzirá, para qual
fim a organização é boa ou o que o misterioso renascimento
pretende positivamente alcançar.
3. Dado que toda a ênfase dessa propaganda é promover
os meios, ela mesma se torna o conteúdo último. Em outras
palavras, ela funciona como um tipo de realização de desejo. Este
é um de seus mais importantes padrões. As pessoas são
convidadas a entrar, tal como se compartilhassem uma droga.
Elas são recebidas com confiança, tratadas como se fossem da
elite que merece conhecer os obscuros mistérios, ocultos a
quem está de fora.
A partir destes elementos, cabe uma consideração sobre o
nosso momento atual para se compreender, pela análise de alguns
dados, como, apesar de datado, o estudo apresentado por Adorno é
atemporal.
Sobre a primeira característica, se observarmos alguns
exemplos atuais de nossos políticos autocráticos do momento, como
o americano Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro,
percebemos em seus discursos exatamente essa personalização e sua
hipervalorização para o seu público. Não se trata de um projeto, mas
de uma identificação com o imaginário dos seus apoiadores que
percebem neles a representação de um homem “comum” e
“incorruptível”, que “chegou lá”, mas que continuamente tem que
275
lutar contra tudo e contra todos que não permitem que ele cumpra
sua missão. Por isso,
Eles se apresentam como lobos solitários, como cidadãos norte-
americanos saudáveis e sadios, com instintos robustos, como
altruístas e infatigáveis; incessantemente divulgam intimidades
reais ou fictícias sobre sua vida e de sua (sic!) famílias. Além
disso, aparentam ter um caloroso interesse humano nas
pequenas preocupações diárias de seus ouvintes, apresentados
por eles como cristão nativos, pobres, mas honestos, de bom
senso mas não intelectuais. Eles se identificam com seus
ouvintes e colocam particular ênfase em serem
simultaneamente tanto homens pequenos e modestos quanto
líderes de grande calibre (ADORNO, 2015, p. 138-139).
Como se constata, apesar de realizados nos anos 1940, os
estudos de Adorno e seus colaboradores demonstram que os modos
são os mesmos. Podemos, pensando no nosso caso, substituir a ideia
do “americano saudável” pela do “brasileiro saudável”, com
“histórico de atleta” e que, numa pandemia passaria apenas por uma
“gripinha”. Neste caso ainda, maior se dá a identificação com as
características mencionadas, quando resgatamos as cenas do
cotidiano que são publicadas nas Redes Sociais pelo presidente
brasileiro, desde o estar de bermuda com a camisa de um time de
futebol, ou lavando roupas na lavanderia da residência, passando
pela praia na conversa com o ambulante ou comendo um
“churrasquinho” na praça da grande cidade. Esteticamente
apresentada, a construção do imaginário da “claque” que se guia por
suas falas desconexas geralmente, sem responsabilidade lógica, mas
com pretensões provocativas e polarizadoras, encontra eco e se
276
potencializa pelas Redes e pelos grupos e influenciadores digitais que
disseminam o ódio à política. Por fim, o recurso ao “cristianismo
nativo”, como representação de um “país cristão”, e não plural na
sua religiosidade, complementa a incorporação e a personificação de
um “verdadeiro messias” saído do meio do povo.
Na segunda característica, da substituição dos fins pelos
meios, o foco do fascista está sempre na realização de um “grande
projeto”, de um “renascimento” do que foi corrompido
apresentando-se como ideia de conservadorismo que, na realidade,
no fascismo tem outra conotação e, do qual, os “bons”, os
“cidadãos de bem”, entre outras identificações, estão chamados a
realizar. Apesar de nunca se explicar o que seria esse “projeto”, como
se realizaria, que bem traria, o que prevalece sempre é a exaltação da
ação, da luta, da insistência de que “algo está mudando”.
Deste modo, sem esclarecer ou aprofundar a questão, se
esconde e sempre se substitui o propósito do tal movimento, pois o
foco está nos meios (ADORNO, 2015). Neste sentido, o que
prevalece é sempre uma generalização, permeada pelos germes do
totalitarismo que apresenta como finalidade, por exemplo, “[...] que
nós possamos demonstrar ao mundo que existem patriotas, homens
e mulheres cristãos tementes a Deus, que ainda estão dispostos a dar
suas vidas à causa de Deus, ao lar e à pátria
56
” (ADORNO, 2015, p.
140).
56
Adorno apresenta esta citação, esclarecendo que é um registro literal, sem alterações, das
transcrições taquigráficas do material analisado. Esta, portanto, é a fala de um dos
agitadores da Costa Oeste do Estados Unidos, naquela época. Qualquer semelhança com a
nossa realidade não será mera coincidência.
277
Inevitáveis algumas perguntas: que causa de Deus é essa?
Onde se pretende chegar com isso? Que mundo seria esse? Haveria
espaço para os que pensam diferente? O que esses patriotas, homens
e mulheres cristãos tementes fariam com seus parentes e amigos, não
tão patriotas ou cristãos tementes? Perguntas que nunca são
respondidas, pois, como afirmado, o foco está na ideia de uma ação
e não do entendimento da finalidade. Não existe projeto.
Por fim, a terceira característica nos leva à percepção de
como, ainda hoje, a perspectiva da propaganda fascista de sempre
promover os meios em detrimento dos fins, torna esta propaganda
o conteúdo último. Como já esclarecido, ela funciona no sentido de
uma realização de desejo, que não implica necessidade de reflexão,
mas de satisfação libidinal. Ou seja, como no caso de um usuário de
drogas, os posts encaminhados pelo WhatsApp hoje, a “informação”
recebida pelos “iluminados do Youtube” ou das bolhas das Redes
Sociais representam compensação emocional ao serem
compartilhados, indiscriminadamente e inconsequentemente. Não
interessa avaliar se a informação é verdadeira, no caso do ingênuo
que repassa, pois a informação que parece personalizada esconde a
finalidade e permite uma satisfação pessoal. Parece que o indivíduo
foi “iluminado” com uma “verdade sobre uma “medicação
milagrosa”, uma “conspiração” revelada contra a pátria, a verdade
sobre a Terra “ser plana” e, inevitavelmente, ele precisa “repassar
para o maior número de pessoas possíveis para que a verdade possa
chegar ao mundo todo”.
No contexto ainda desta última característica da
propaganda, neste efeito drogadiço, parece-nos que os “viciados
nesses aplicativos sentem-se conectados, pertencentes ao grupo dos
278
“iluminados”, que compartilham com o líder a sua missão de levar a
“luz” aos demais. Podemos perceber aqui a construção dos
sentimentos de pertença ao grupo, o in-group e, consequentemente,
o ódio que se manifestará contra “os de fora”, aqueles representados
como o out-group. Concluindo sobre este conteúdo último da
propaganda como realização de desejo, tais pessoas
[...] são recebidas com confiança, tratadas como se fossem da
elite que merece conhecer os obscuros mistérios, ocultos a
quem está fora. O prazer de bisbilhotar é tanto encorajado
quanto satisfeito. Constantemente se contam histórias
escandalosas, a maioria fictícias, particularmente de excessos
sexuais e atrocidades; a indignação com a obscenidade e a
crueldade nada mais é, entretanto, do que uma fina
racionalização, propositalmente transparente, do prazer que
essas histórias proporcionam ao ouvinte (ADORNO, 2015, p.
140).
Como naquele momento dos estudos adornianos,
provavelmente hoje também não encontraremos muitos adeptos da
extrema direita dispostos a se assumirem como fascistas ou
antidemocráticos. Ao contrário, se dirão democratas, mesmo
colaborando para corroer a todo tempo as estruturas e as instituições
que a representam. Seja por Decretos, mudanças na legislação ou
atitudes explícitas, como a participação em atos antidemocráticos,
pedindo intervenção militar com elogios à Ditadura e a torturadores,
e a criação de notícias falsas para espalhar nas Redes Sociais,
referendando-as em discursos ou lives. Além disso, apesar de não
admitirem o fascismo, criam narrativas falsas, como, por exemplo,
de que o nazismo é de esquerda, aparelham o Estado e produzem
279
dossiês ou promovem perseguições, paradoxalmente, contra
antifascistas, professores, artistas, cientistas ou à críticos do governo
em geral. Ou seja, numa antinomia, negando seus objetivos ou
propósitos fascistas, ao mesmo tempo em que se utilizam de
mecanismos já conhecidos das propostas de regimes totalitários em
plena luz do dia democrático.
Percebe-se também que, como destaca Adorno (2015),
inerente ao fascismo, sempre uma imprecisão relativa àquilo que
é sua finalidade política. Em parte, porque na natureza do fascismo
a teoria não é intrínseca, ou seja, não há uma preocupação com tal
questão, pois é projeto de destruição e não de construção.
Há a valorização de uma contra-intelectualidade apologética,
para pura desqualificação da intelectualidade e obstrução da
compreensão, estratégias adotadas pelos olavistas
57
, por exemplo,
entre outros arquitetos da extrema-direita na atualidade. Nas
mentiras manifestas de cada dia, estabelecem-se novas narrativas da
“verdade”, opiniões sem lastro efetivamente teórico, histórico e
57
Olavistas: assim chamados os discípulos de Olavo de Carvalho, um brasileiro que mora
nos Estados Unidos, autointitulado filósofo e que promove cursos misturando elementos
da Filosofia com a Astrologia, fundamentalismo religioso e proselitismo político. Num
misto de senso comum, conhecimento acadêmico e regras de, apresenta concepções
geralmente preconceituosas e produz teorias conspiratórias ao bel prazer dos consumidores
de um pensamento da extrema-direita que vive de nutrir o ódio por tudo o que represente
um pensamento de esquerda. Na realidade, isso representa apenas o “inimigo imaginário
que comporta todas as variantes conspiratórias que sustentam a guerra ideológica, como a
do marxismo cultural ou o que os adeptos do conservadorismo extremista chamam de
ideologia de gênero. Cabem nesta guerra, também, ataques à direita, quando se manifesta
contra a extrema-direita e a todos e todas que representem qualquer possibilidade de
dissenso ou contradição. Neste sentido, independentemente da predominância do ataque
ao pensamento de esquerda, o que está na base destes extremistas, como de todo fascismo
de sempre, é o ódio à política, na perspectiva de sua destruição manifesta pelo incômodo e
pelos ataques, fundamentalmente, a qualquer possibilidade de estabelecimento e
manutenção das vias democráticas. Não se trata de política, mas de antipolítica.
280
político, teorias da conspiração, cuja finalidade é equiparar a opinião
mais espúria com o entendimento, academicamente, depurado.
Assim, buscam alçar o negacionismo ao patamar de conhecimento
científico, apesar de este não encontrar fundamentação nesse nível.
Neste sentido, a grande mídia presta um desserviço ao dar
espaço, por exemplo, em jornais ou programas de televisão, para um
“debate” entre quem acredita que a Terra é plana e quem não
acredita, para ficarmos num dos exemplos mais esdrúxulos. Ou seja,
não é uma questão de opinião esta permanece no campo pessoal
, mas de dar palanque ao negacionismo na sua mais nefasta
representação, deturpando tanto o conceito de liberdade de
expressão quanto o de conhecimento na sua perspectiva epistêmica.
Adorno (2015) esclarece ainda que, além dessa natureza não
teórica do fascismo, sua imprecisão com relação aos seus fins
políticos também ocorre, porque, ao final, percebendo ou não, os
seguidores do fascismo serão trapaceados. Como não há proposição
de mundo comum, de sociedade, de liberdade a se efetivar na gênese
do fascismo, ou seja, nada que possa ser amado neste contexto
(ADORNO, 2015), quem lidera precisa evitar formulações teóricas
consistentes que possam levar, posteriormente, ao compromisso de
reafirmação dessa teoria.
Deste modo, de forma genérica, é plausível para o fascista
alardear a bandeira da luta contra a corrupção, para ficarmos em um
exemplo, e fazer vistas grossas à corrupção em seu governo. Ou
defender a ideia de liberdade, papagueando o credo liberal e,
paradoxalmente, perseguir críticos ou desafetos com o
aparelhamento do Estado, demonstrando o viés autocrático que
prevalece interiormente. Mas, diferentemente do que ocorre nos
281
mais variados governos, de esquerda ou de direita, o esboço fascista
não se restringe às práticas condenáveis da corrupção costumeira.
Neste sentido, esclarece Adorno (2015, p. 141),
Deve-se notar também que em relação às medidas repressivas e
de terror, o fascismo habitualmente vai além do que é
anunciado. Totalitarismo significa desconhecer limites, não
permitir nenhuma pausa para fôlego, conquistar impondo
dominação absoluta, exterminar completamente o inimigo
escolhido. Diante desse significado do “dinamismo” fascista,
qualquer programa claramente delineado funcionaria como
uma limitação, uma espécie de garantia dada até mesmo ao
adversário. É essencial à regra totalitária que nada seja
garantido, nenhum limite seja imposto à arbitrariedade
impiedosa.
Dentro deste contexto, destacamos também as análises
arendtianas sobre a violência em que nos apresenta algumas
considerações sobre o sentido do terror no Estado totalitário. Escreve
a filósofa:
O terror não é o mesmo que a violência; ele é, antes, a forma
de governo que advém quando a violência, tendo destruído
todo poder, em vez de abdicar, permanece com controle total.
Tem sido observado que a eficiência do terror depende quase
totalmente do grau de atomização social. Toda forma de
oposição organizada deve desaparecer antes que possa ser
liberada a plena força do terror (ARENDT, 2018, p. 72).
Por isso, o investimento fascista perpassa o ataque e
destruição de qualquer perspectiva democrática que possa permitir,
282
mesmo que de forma sugestiva, um mínimo dissenso ou contradição
com aqueles que se encontram na função governamental. O apoio a
atos antidemocráticos, por exemplo, a perseguição a opositores e a
tentativa constante de limitar qualquer crítica ao governo na pessoa
do seu representante máximo, são os ensaios e tentativas prévias de,
no tensionamento cotidiano e paulatino, preparar o terreno para a
autocracia. Neste contexto, é importante não apenas o
aparelhamento ideológico do Estado, mas a disseminação dessa
atmosfera fascista no dia a dia das pessoas, para que se alcance essa
atomização social. Esclarece Hannah Arendt (2018, p. 72-73):
Essa atomização uma palavra ultrajantemente pálida e
acadêmica para o horror aí implicado é sustentada e
intensificada por meio da ubiquidade do informante, que pode
se tornar literalmente onipresente porque já não é mais um
mero agente profissional a soldo da política, mas,
potencialmente, qualquer pessoa com quem se tenha contato.
É o estabelecimento do estado policial, em que o vizinho ou
o “guarda da esquina”, metáfora utilizada na época da Ditadura no
Brasil, pode denunciar qualquer um que ele considere contrário ao
governo que ele defende, ou à ideologia que ele apoia. Não é o jogo
democrático, mas a pretensão da onipresença do Estado ideológico
pela disseminação de seus apoiadores como informantes em
qualquer esfera, do meio acadêmico ao escritório, do interior de um
hospital ou de dentro de um veículo de imprensa. Pelas correntes de
WhatsApp, divulgam-se nomes, identidades, endereços e uma
exposição execrável da vida de opositores ou críticos do governo.
283
Não nos parece outra coisa o que estamos contemplando nestes
tempos atuais.
Contudo, esse processo todo, sustentado pela propaganda
fascista, dos memes viralizados às peças produzidas
institucionalmente, que seduzem o seguidor, na realidade, é apenas
a antessala do terror que se prepara. Como não há projeto no
fascismo, só o propósito destrutivo e, portanto, a não aceitação de
qualquer limite, os próprios seguidores são traídos, cedo ou tarde,
pela quimera em que se apoiaram. Sobre o ápice do terror, no
totalitarismo, nos explica Hannah Arendt (2018, p. 73),
A diferença decisiva entre a dominação totalitária, baseada no
terror, e as tiranias e as ditaduras, estabelecidas pela violência, é
que a primeira investe não apenas contra seus inimigos, mas
também contra seus amigos e apoiadores, temendo todo poder,
mesmo o poder de seus amigos. O ápice do terror é alcançado
quando o Estado policial inicia a devoração de suas próprias
crias, quando o executante de ontem se torna a vítima de hoje.
E esse também é o momento que o poder desaparece
completamente.
Como já explicitamos anteriormente, a besta fera o poupa
suas crias.
No retorno à análise adorniana sobre essa manipulação da
subjetividade pelo fascismo, é necessário entender que,
[...] devemos ter em mente que o totalitarismo considera as
massas não como seres humanos autodeterminados que
decidem racionalmente seu próprio destino e que devem,
portanto, ser tratados como sujeitos racionais, mas sim que ele
284
os trata como meros objetos de medidas administrativas,
ensinados, acima de tudo, a se autoanular e a obedecer ordens
(ADORNO, 2015, p. 142).
Temos aqui, o que Hannah Arendt (2004b) denominou
como “peças da engrenagem” de um sistema que substitui, sempre
que preciso, a peça que não está funcionando devidamente. Numa
breve contextualização, não é desproposital a afirmativa do atual
presidente brasileiro quando, nos seus fundamentos autocráticos, diz
que “Ministro é igual fusível”. Neste sentido, “queima” o Ministro
para não “queimar” o presidente. E, neste entendimento também, se
sustenta a afirmativa de que “um manda e o outro obedece”. É fato!
Muitos aderem a isso.
Neste sentido, Hannah Arendt (2004b) se questionava em
suas análises sobre a responsabilidade moral, perguntando: por que
muitas pessoas concordaram com essa falta de limite? Na verdade,
por que apoiaram as atrocidades, na perspectiva de obediência às
ordens dadas, como explicitou Eichmann em seu julgamento, e
nunca se perguntaram qual o limite, ou seja, até onde poderiam ir?
Evidentemente, que nem todos agiram assim. Por isso Arendt
(2004b) considera que, nos momentos de crise, os mais confiáveis
não são os obedientes, mas aqueles que se questionam sobre se tal
limite pode ser ultrapassado.
Adorno (2015) alerta, ainda, sobre a duvidosa tese de uma
hipnose de massa sob o fascismo, perguntando “[...] se ela não é uma
metáfora fácil que permite ao observador dispensar uma análise mais
aprofundada”, pois, segundo ele, “a sobriedade cínica é
provavelmente mais característica da mentalidade fascista do que a
intoxicação psicológica” (ADORNO, 2015, p. 142). Continua o
285
filósofo, “há sempre algo autoestilizado, auto-ordenado, espúrio, em
relação à histeria fascista, que demanda atenção crítica, se a teoria
psicológica sobre o fascismo não quer ceder aos slogans irracionais
que o próprio fascismo promove” (ADORNO, 2015, p. 142).
Neste sentido, esclarece o filósofo, não é pretensão do
fascismo convencer o povo. Ao contrário, permanece sempre em um
nível não argumentativo a partir de algumas estratégias para manter
cativo seu adepto da histeria contínua. Por isso, geralmente resulta
como inócua qualquer tentativa de conversar argumentativamente
com o fascista
Destacando dois pontos, Adorno (2015, p. 143) anota como
primeiro que “a propaganda fascista ataca fantasmas [bogies] e não
oponentes reais, ou seja, ela constrói um imaginário do judeu ou do
comunista, separa-o em pedaços sem prestar muita atenção a como
esse imaginário se relaciona com a realidade”. Podemos atualizar
aqui os bogies citados com a figura do esquerdismo e do petismo
desenvolvidos pela extrema-direita e apropriados pelo discurso
bolsonarista em nossas terras. No caso americano, um rápido olhar
pelas teorias mirabolantes do QAnon
58
e sua quase divinização do ex-
58
Sobre o QAnon, dada sua excentricidade, achamos interessante reproduzir aqui alguns
fragmentos da reportagem QAnon: teoria da conspiração dos EUA ganha apoiadores no Brasil.
Produzida por Marie Declercq (2020) para o UOL Tab, encontra-se disponível em:
https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/10/02/qanon-teoria-da-conspiracao-chega-
no-brasil-com-acusacoes-de-pedofilia.htm. Referente ao surgimento do movimento,
registra Declercq (2020): “O QAnon surgiu após o Pizzagate, uma teoria da conspiração
difundida durante as eleições presidenciais dos EUA em 2016, que acusava patrocinadores
da campanha de Hillary Clinton de estarem envolvidos em abuso e tráfico sexual de
crianças. A fachada para o esquema era uma pizzaria, cujo dono era doador de campanha
da democrata. Os boatos surgiram após e-mails do gerente de campanha de Clinton
vazarem e serem falsamente acusados de conter informações criptografas. O boato foi tão
forte que, no mesmo ano, um homem armado apareceu na pizzaria com um rifle e chegou
a atirar duas vezes dentro da loja. Segundo a polícia, o atirador alegou que foi investigar o
286
presidente americano Donald Trump como o salvador da
humanidade permitem encontrar também estes elementos nas
acusações contra os membros do Partido Democrata, celebridades e
outros potenciais desafetos. Como não há preocupação com a lógica
esperada, o que se produz é a imaginação que alimenta a teoria
conspiratória, a partir de fragmentos, generalidades e inverdades. Há
sempre um inimigo a combater.
Por isso, como segundo ponto, destaca-se que a propaganda
fascista
[...] não emprega uma lógica discursiva mas, particularmente
em exibições oratórias, serve-se do que poderia ser chamado um
fluxo organizado de ideias. A relação entre premissas e
inferências é substituída por vínculos de ideias baseadas em
mera similaridade, frequentemente através de associação, ao
empregar a mesma palavra característica em duas proposições
que são logicamente bastante desconexas. Este método não
que estava acontecendo no local”. Apesar de oculta por um tempo, sem uma ação mais
presente após o incidente, registra a repórter: “A vitória de Donald Trump acabou
adormecendo o Pizzagate nas redes sociais, até que, em 2017, um membro anônimo do
4chan (um dos maiores fóruns da alt-right, termo que se refere a uma fração da extrema-
direita) chamado ‘Q’, recuperou a boataria do ano anterior e fez uma série de postagens
enigmáticas, dizendo ter informações confidenciais sobre a luta do governo Trump contra
um esquema envolvendo satanismo, cabala, tráfico sexual de crianças, políticos democratas,
antenas 5G e China. Falava ainda da existência de um ‘deep state’ (Estado Profundo) que
atua por baixo dos panos em nível internacional. Eis a origem de QAnon (de ‘Q’ e
‘anônimo’)”. Sobre o desembarque da teoria no Brasil, anota Marie Declercq (2020): “Nos
últimos tempos, redes sociais e sites brasileiros incorporaram uma narrativa fantasiosa de
peso às teorias da conspiração habituais. O QAnon (se pronuncia kiu-anôn), movimento
surgido nas redes que está por trás de diversos protestos nos EUA contra o uso de máscara,
espalha-se por diversos países. Aglutinando toda sorte de conspiração (Nova Ordem
Mundial, Illuminati, lavagem cerebral por antenas de 5G e até teorias místicas), ele tem
sido citado por usuários da internet para imputar falsas acusações de pornografia e abuso
infantil a celebridades, políticos e influenciadores digitais.
287
apenas se furta ao mecanismo de controle do exame racional,
como também torna psicologicamente mais fácil para o ouvinte
“seguir”. Este não tem que constituir exatamente um
pensamento, pois pode abandonar-se passivamente a uma
corrente de palavras na qual mergulha (ADORNO, 2015, p.
143).
Um fluxo de ideias que vai se vinculando, sem
necessariamente ter conexão lógica das proposições, não significa,
contudo, uma falta de estratégia. A propaganda fascista não é
irracional, nem tampouco desorganizada. Na perspectiva do seu
propósito, “[...] é conscientemente planejada e organizada
(ADORNO, 2015, p. 143). Por isso, por mais que possa parecer
irracional, ela cumpre um papel de uma irracionalidade organizada,
em acordo com a lógica da cultura de massa.
Na questão da propaganda fascista ainda, a figura do
agitador é preponderante, mesmo que seja ele, em grande medida, o
reflexo da confusão mental que acomete também seus potenciais
seguidores. Neste sentido, diz Adorno (2015, p. 144) que, mesmo
que “[...] seus líderes sejam eles próprios de tipo histérico ou
paranoico, eles aprenderam, a partir de vasta experiência e do
exemplo enfático de Hitler, como utilizar suas próprias disposições
neuróticas ou psicóticas para fins totalmente adaptados ao princípio
de realidade (realitätsgerecht)”.
Sobre essa relação patológica do agitador e seus seguidores,
analisa Adorno (2015, p. 143):
As condições prevalecentes em nossa sociedade tendem a
transformar a neurose e até mesmo a loucura moderada em uma
288
mercadoria, que o doente pode facilmente vender, bastando
que ele descubra que muitos outros têm uma afinidade com sua
própria doença. O agitador fascista é usualmente um exímio
vendedor de seus próprios defeitos psicológicos. Isso somente é
possível devido a uma similaridade estrutural geral entre
seguidores e líder, e o objetivo da propaganda é estabelecer um
acordo entre eles, em vez de dirigir à audiência quaisquer ideias
ou emoções que não fossem dos próprios seguidores desde o
começo. Assim, o problema da verdadeira natureza psicológica
da propaganda fascista pode ser formulado: em que consiste
esta relação entre líder e seguidores na situação da propaganda?
Para responder à questão, Adorno (2015) considera alguns
pontos. A primeira consideração é com relação ao espetáculo que se
apresenta e a gratidão que manifesta o seguidor pelo show. Ao obter
prazer, satisfação com a propaganda fascista, o seguidor a aceita,
adere à ideologia ou à teoria conspiratória como uma condição de
gratidão ao líder espetaculoso. Neste contexto da gratidão aos
líderes, embora estes na maioria das vezes realmente reflitam seus
seguidores, o que diferencia de forma importante os primeiros dos
segundos é que os líderes não se inibem quando se expressam para a
claque. Neste sentido,
Eles atuam de forma vicária por seus ouvintes desarticulados ao
fazer e dizer o que os últimos gostariam mas não conseguem ou
não se atrevem a tal. Violam os tabus que a sociedade de classe
média colocou sobre qualquer comportamento expressivo por
parte do cidadão normal e realista. Pode-se dizer que alguns dos
efeitos da propaganda fascista são conseguidos por essa ação
invasiva. Os agitadores fascistas são tomados a sério porque
arriscam a se passar por tolos (ADORNO, 2015, p. 145).
289
No picadeiro do show que apresenta, o líder fascista não está
comedido por freios sociais e, paradoxalmente, muitas das pessoas
que prezam e exigem socialmente esses filtros acabam se encantando
e se identificando com o agitador. Continua gerando espanto como,
ainda hoje, esse tipo de discurso e performance encontre eco para
pessoas que, formadas academicamente e capazes de fazer uma
análise mais elaborada do discurso pelo menos aparentemente
reforcem essas falas e ainda defendam o agitador fascista. Mas, talvez
não seja tão espantoso assim, considerando a análise adorniana sobre
aquele período:
Pessoas educadas em geral têm dificuldade em compreender o
efeito dos discursos de Hitler, porque eles soavam por demais
insinceros, não genuínos ou, como diz a palavra alemã, verlogen.
É uma ideia enganosa, porém, que as assim chamadas pessoas
comuns tenham uma propensão firme pelo que é genuíno e
sincero, e desprezem o que é falso. Hitler foi aceito, não apesar
de suas bizarrices baratas, mas precisamente por causa delas, de
sua entoação falsa e suas palhaçadas. Tudo isso foi observado
como tal e apreciado (ADORNO, 2015, p. 145-146).
Catalisando o sentimentalismo próprio do homem comum,
muitas vezes disfarçado e contido na relação social e familiar, mas
tolerante à piada racista, ao machismo, à fala desmedida para
expressar os impulsos e os desejos, o líder fascista atende à
expectativa do seu ouvinte aguerrido. Cumpre, segundo Adorno
(2015), um ritual de identificação do seguidor com o líder. A
gratificação que oferece o seguidor está na resposta a esta
identificação a partir do que oferece o líder e do que lhe permite a
propaganda, no sentido de revelar a sua identidade, configurando-
290
se, assim, “este ato de revelação e o abandono temporário da
seriedade responsável e autônoma são o critério decisivo do ritual
propagandístico” (ADORNO, 2015, p. 146).
Dadas estas análises, o estudo adorniano sobre o
antissemitismo e a propaganda fascista, que não propunha uma
teoria abrangente naquele momento, permitia referenciar algumas
características desse ritual estabelecido entre o líder, o seguidor e a
estrutura da propaganda fascista. Resumimos brevemente, a seguir,
essas características.
A primeira, é que existe uma impressionante estereotipia que
se encontra em todo o material da propaganda conhecido. Os
padrões e os clichês eram os mesmos para diferentes locutores de
diferentes locais. A mais importante estereotipia presente nos
materiais era a clássica dicotomia entre o amigo e o inimigo ou o
preto e o branco, na linha da orientação para dividir o mundo em
ovelhas brancas e negras, dada por Hitler no Mein Kampf
59
.
Apesar de esta referência poder ser a fonte comum para estes
agitadores panfletários, Adorno (2015) ressalta que a razão de tal
coincidência deve ser buscada em outro lugar, considerando que os
modelos são padronizados a partir de razões psicológicas. Segundo
ele, “o possível seguidor fascista demanda esta repetição rígida, tal
como o jitterbug
60
demanda o modelo padronizado de canções
populares, e se enfurece se as regras do jogo não são estritamente
59
No Mein Kampf (Minha Luta), Hitler “[...] diz que, para alguém se afirmar com eficácia
contra um adversário ou um concorrente, é necessário pintá-lo com as tintas mais negras
(HORKHEIMER; ADORNO, 1978, p. 175). É o velho truque, também recomendado
pelo líder nazista, da “[...] subdivisão do mundo em ovelhas brancas e ovelhas negras, os
bons, a cujo grupo se pertence, e os maus, ou seja, o inimigo criado expressamente para as
finalidades da demagogia” (HORKHEIMER; ADORNO, 1978, p. 175).
60
O tradutor apresenta uma nota esclarecendo que o jitterbug era o entusiasta do jazz.
291
observadas” (ADORNO, 2015, p. 148). Por isso, um dos aspectos
essenciais do ritual é a aplicação mecânica desses modelos.
Como naquele tempo, podemos constatar atualmente que
esta relação de preservação da dicotomia, sob o risco de desagradar
os seguidores, mantém uma repetição rígida, a partir do inimigo
elencado, e tudo pode ser associado a este inimigo, fortalecendo o
ódio ao opositor.
A segunda característica referenciada é a de que muitos dos
agitadores fascistas possuem uma atitude religiosa falsa. Segundo
Adorno (2015, p. 148-149),
Psicologicamente [...] o que permanece da antiga religião,
neutralizado e desprovido de qualquer conteúdo dogmático
específico, é colocado a serviço da atitude ritualística fascista.
Linguagem e formas religiosas são utilizadas para fornecer a
impressão de um ritual sancionado, que é realizado
constantemente por alguma “comunidade”.
Desta característica, podemos pensar na ação de alguns
ministros religiosos midiáticos que, no pretenso exercício de sua
função pastoral, colaboram para promover o ódio, por exemplo, às
minorias sociais e à propagação das pautas da extrema-direita,
vinculando-as ao Evangelho e à ação de líderes fascistas como sendo
escolhidos por Deus para uma grande missão. Além da atitude
religiosa falsa que se apresenta, conduz a um fortalecimento da
imiscuidade entre a religião e a política, no apoio a candidatos saídos
dos púlpitos de suas igrejas ou a políticos que sejam condescendentes
aos seus apelos, mesmo que aparentemente.
292
Um pouco nesta linha ainda, a terceira característica trata da
substituição do conteúdo religioso e específico sendo substituído por
aquilo que poderia ser denominado como o culto do existente. Numa
assimilação pelas massas de uma ideia que, aparentemente, muitos
estão seguindo ou realizando, passa a ser tomada como o certo a
seguir, independentemente de sua legitimação. Conta com a força
de testemunhos e o apoio de pessoas famosas, por exemplo,
implicando uma ressonância maior com a seguinte significação:
alguma coisa que é, que tenha estabelecida sua força, está certa e é o
certo a seguir. Neste sentido, “glorifica-se a liderança como tal,
desprovida de qualquer ideia ou objetivo visíveis. Fetichizar a
realidade e as relações de poder estabelecidas é o que tende, mais do
que qualquer outra coisa, a induzir o indivíduo a abdicar de si
mesmo e a entrar na suposta onda do futuro” (ADORNO, 2015, p.
149).
Da quarta característica, destaca-se a insinuação em que,
raramente, o agitador fascista demonstra explicitamente o que está
sendo insinuado. Para proteger-se de processos legais, evita-se a
clareza, mas produz-se a divulgação das ideias de forma indireta.
Envolvendo provavelmente gratificação, o agitador promove a
insinuação e os seguidores são gratos ao líder, pois confirmam sua
identificação com ele, a partir da compreensão do que fora
insinuado. É autoexplicativo o texto de Adorno (2015, p. 150):
Por exemplo: o agitador diz “aquelas forças sombrias, e vocês
sabem quem eu tenho em mente”, e a audiência compreende
de uma vez que suas observações são direcionadas contra os
judeus. Os ouvintes assim tratados como um in-group que já
sabe tudo o que o orador deseja-lhes contar e que concorda com
293
ele antes de qualquer explicação. A concordância de sentimento
e opinião entre locutor e ouvinte, acima mencionada, é
estabelecida por insinuação, que serve como confirmação da
identidade básica entre líder e seguidores.
E, por fim, a quinta característica está identificada com a
performance ritualística na propaganda fascista. Como propósito
último, destaca-se aqui o desejo por um assassinato ritualístico do
judeu na base da propaganda que, em sua gênese, portanto, é
antissemítica. Permeada por elementos religiosos nessa constituição,
a simbologia da propaganda fascista remete à tese de que o Cristo foi
assassinado pelos judeus constituída ao longo da história do
cristianismo a partir de uma perspectiva antissemítica e, por isso,
a lembrança é traduzida pelo lema “o sangue judeu deve jorrar”.
Neste sentido, “a crucificação é transformada em um símbolo do
holocausto” (ADORNO, 2015, p. 151-152) e, não por acaso, a cruz
aparece em diversas representações fascistas.
Para o fascismo, os judeus são uma antirraça que precisa ser
eliminada. Mas, no pano de fundo de Auschwitz, o genocídio não
se explica sem a indiferença dos gentios
61
que, no contexto da
perseguição, também constituíram uma hábil exploração de
vantagens com o ocorrido. Por isso, “a história do antissemitismo
não fornece a explicação para Auschwitz. A pesquisa sobre o
antissemitismo ou publicística –, que não leva isto em
consideração, a banaliza. A ideia de que o antissemitismo teria
acabado com Auschwitz é compreensível, mas ingênua”
(CLAUSSEN, 2012, p. 59).
61
Os não israelitas.
294
Neste sentido, contextualizarmos o antissemitismo é
importante para entendermos melhor os pressupostos do
preconceito e do fascismo e, nesta correlação, o investimento da
propaganda fascista.
Como já tratamos em capítulo anterior, a disseminação do
antissemitismo, de forma geral, ocorria a partir de dois contextos.
Na abertura do texto Elementos do antissemitismo: limites do
esclarecimento, vemos a seguinte observação de Adorno e
Horkheimer (1985, p. 139):
Atualmente, o antissemitismo é considerado por uns como uma
questão vital da humanidade, por outros como mero pretexto.
Para os fascistas, os judeus não são uma minoria, mas a
antirraça, o princípio negativo enquanto tal; de sua
exterminação dependeria a felicidade do mundo. No extremo
oposto está a tese de que os judeus, livres de características
nacionais ou raciais, formariam um grupo baseado na opinião
e na tradição religiosas e nada mais. [...] Ambas as teses são
verdadeiras e falsas ao mesmo tempo (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 139).
No primeiro caso, muitas vezes de forma explícita, o
antissemitismo ancora-se naquilo que produzira o nazismo em sua
perspectiva de extermínio do povo judaico. Considerados pelos
nazistas como a antirraça, como um mal absoluto, o propósito era
erradicá-los e, consequentemente, seus ideais encontravam, e ainda
encontram, coro nos fascistas de outras partes do mundo. Este era o
projeto fascista explicitado. É uma tese falsa, mas que se torna
verdadeira somente no sentido de que o fascismo a tornou
295
verdadeira. Como já destacado, é o exemplo mais concreto de uma
mentira que, repetida inúmeras vezes, se torna verdade.
No segundo caso, que encontra sua base na perspectiva da
burguesia liberal, o antissemitismo se apresentava também numa
concepção racista, violenta na perspectiva de ataque à diferença, a
uma minoria que significava a dissonância com a ordem que se
pretendia estabelecer a ordem burguesa. Neste sentido, nos
esclarecem Adorno e Horkheimer (1985, p. 140) que
A raça não é imediatamente, como querem os racistas, uma
característica natural particular. Ela é, antes, a redução ao
natural, à pura violência, a particularidade obstinada que, no
existente, é justamente o universal. A raça, hoje, é a
autoafirmação do indivíduo burguês integrado à coletividade
bárbara.
O que se explicita em ambas as concepções antissemíticas é
que a figura do judeu interpretada pelo nazismo como a antirraça,
e pela burguesia liberal como o diferente, o estranho, aquele que
desfigurava a ordem é atacada por aquilo que se constitui, no
imaginário do racista, pela força do preconceito.
Efetivamente, fosse no nazismo, fosse na perspectiva liberal
burguesa, a ordem estabelecida não vive sem a desfiguração dos
homens. Por isso, “a perseguição dos judeus, como a perseguição em
geral, não se pode separar de semelhante ordem. Sua essência, por
mais que se esconda às vezes, é a violência que hoje se manifesta
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 140).
Essa violência fortuita, gratuita, que se avoluma e encontra
cada vez mais correspondência na sociedade do neoliberalismo,
296
encontra na base antissemítica o seu impulso organizador de uma
ordem que não aceita a diferença, a pluralidade, a liberdade, mas
pretende-se, totalitária na sua constituição. Neste contexto, seja no
ódio ao judeu e sua pretensão eugenista e higienizadora, seja na
governamentalidade dos corpos desviantes, como nos apontava
Foucault (2008b), o que se pretende é o estabelecimento da ordem
que tudo reduz, em sua perspectiva ordenadora, à subjugação dos
existentes, dominados e dominadores, ao mesmo dia, ao mesmo
tempo, um tempo fascista que perpetua o Estado de exceção. Como
nos apontam Adorno e Horkheimer (1985, p. 142),
A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a
atenção. E como as vítimas são intercambiáveis segundo a
conjuntura: vagabundos, judeus, protestantes, católicos, cada
uma delas pode tomar o lugar do assassino, na mesma volúpia
cega do homicídio, tão logo se converta na norma e se sinta
poderosa enquanto tal. Não existe um genuíno antissemitismo
e, certamente, não há nenhum antissemita nato. Os adultos,
para os quais o brado pelo sangue judeu tornou-se uma segunda
natureza, conhecem tão pouco a razão disso quanto os jovens
que devem derramá-lo.
A cegueira que guia o antissemitismo é a mesma que guia o
preconceituoso, na perspectiva de uma válvula de escape. O ódio se
manifesta na impotência diante da ordem e se realiza na projeção
desse ódio sobre a vítima escolhida. E, como já destacaram Adorno
e Horkheimer (1985), vítimas e assassinos se intercambiam,
conforme quem se encontre em uniformidade com essa ordem.
Neste sentido,
297
O antissemitismo baseia-se numa falsa projeção. Ele é o reverso
da mimese genuína, profundamente aparentada à mimese que
foi recalcada, talvez o traço caracterial patológico em que esta
se sedimenta. Só a mimese se torna semelhante ao mundo
ambiente, a falsa projeção torna o mundo semelhante a ela. Se
o exterior se torna para a primeira o modelo ao qual o interior
se ajusta, o estranho tornando-se o familiar, a segunda transpõe
o interior prestes a saltar para o exterior e caracteriza o mais
familiar como algo de hostil. Os impulsos que o sujeito não
admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem, são
atribuídos ao objeto: a vítima em potencial. Para o paranoico
usual, sua escolha não é livre, mas obedece às leis de sua doença.
No fascismo, esse comportamento é adotado pela política, o
objeto da doença é determinado realisticamente; o sistema
alucinatório torna-se a norma racional no mundo, e o desvio a
neurose (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 154).
Assim, da mimese recalcada, o fascismo se apresenta, acima
de tudo, como um fenômeno projetivo. Para o fascista, o outro
representa uma tela em que ele projeta as suas próprias mazelas,
aquelas com as quais ele não consegue lidar. Na perspectiva
sadomasoquista já destacada, identificando-se com a figura do líder
que dissemina o discurso do ódio de forma repetida contra os
diferentes, as minorias sociais que, muitas vezes, expressam
exatamente o que o fascista tenta ocultar em si mesmo. Nesse
encontro, submete-se ao grupo que compartilha desse ódio
naquele sentimento do in-group e, militantemente, promove o
ataque e a violência a estes que, objetificados como alvos desse
coletivo representados pelos out-group , são as vítimas
preferenciais do seu ressentimento.
298
Essa concepção do in-group versus out-group, que retomamos
aqui, nos ajuda a compreender as relações estabelecidas de ódio e
violência que se manifestam nesse tempo fascista. Seja na polarização
política ou no proselitismo apologético religioso que se apresenta de
forma reavivada pelos arautos de uma teologia da prosperidade, o que
estão presentes são mecanismos de projeção, tratados pela psicanálise
e que nos permitem compreender o discurso fascista. Apesar de seu
pano de fundo irracional, o que se contempla, pela evidência, não é
a necessidade para o sujeito fascista, ou potencialmente fascista, de
uma compreensão racional. Muito mais desejada é uma satisfação
libidinal que busca transformar em amor o que não pode ser amado.
Neste contexto da projeção, o conceito freudiano de
unheimlich (ADORNO, 2015) representa a ideia daquilo que nos é,
ao mesmo tempo, o estranho e o familiar. Quando olho para o
outro, manifesto estranheza, mas, simultaneamente, encontro
familiaridade. Ou seja, o que repele o outro por sua estranheza é
porque lhe é demasiado familiar. O que parece estar fora de mim,
na realidade, também se encontra dentro de mim e o que abomino
no outro é o que percebo em mim mesmo. A vítima eleita me é
estranha, mas também familiar. A miséria que critico, os defeitos que
lhe atribuo são lembranças do ressentimento ou a repressão dos
desejos do ressentido. Assim,
O mecanismo que a ordem totalitária põe a seu serviço é tão
antigo quanto a civilização. Os mesmos impulsos sexuais que a
raça humana reprimiu souberam se conservar e se impor num
sistema diabólico, tanto dentro dos indivíduos, quanto dos
povos, na metamorfose imaginária do mundo ambiente. O
indivíduo obcecado pelo desejo de matar sempre viu na vítima
299
o perseguidor que o forçava a uma desesperada legítima defesa,
e os mais poderosos impérios sempre consideraram o vizinho
mais fraco como uma ameaça insuportável, antes de cair sobre
eles. A racionalização era uma finta e, ao mesmo tempo, algo
de compulsivo. Quem é escolhido para inimigo é percebido
como inimigo. O distúrbio está na incapacidade de o sujeito
discernir no material projetado entre o que provém dele e o que
é alheio" (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 154).
Por isso, nessa questão da projeção ainda, esclarecerão
Adorno e Horkheimer (1985, p. 158) mais adiante que, “segundo a
teoria psicanalítica, a projeção patológica consiste substancialmente
na transferência para o objeto dos impulsos socialmente condenados
do sujeito”. Neste sentido, “o eu que projeta compulsivamente não
pode projetar senão a própria infelicidade, cujos motivos se
encontram dentro dele mesmo, mas dos quais se encontra separado
em sua falta de reflexão. Assim, conjugados num eterno retorno do
ressentimento e do recalque, do agredir e do sentir-se agredido em
sua luta quixotesca referindo-nos aqui ao fascista , “[...] os
produtos da falsa projeção, os esquemas estereotipados do
pensamento e da realidade, são os mesmos da desgraça. Para o ego
que se afunda no abismo de sua falta de sentido, os objetos tornam-
se as alegorias de sua perdição encerrando o sentido de sua própria
queda” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 158).
Neste contexto, o coletivo dos fascistas potencializa essa
infelicidade e, consequentemente, a destrutividade que emana de si
e do seu entorno, na perspectiva da projetividade que não encontra,
em canto algum, nada além da representação da sua própria
patologia. Por isso, na relação com o grupo, no seu pertencimento,
300
o indivíduo se libera, liberando a própria barbárie recalcada e
liberando-se dos freios que poderiam conter a violência.
Na violência do fascismo, a consciência é coisificada e o
outro, objetificado, não merece a empatia. A frieza burguesa e a
relação com a técnica proporcionam o embrutecimento tanto da
consciência quanto das relações com o outro e, neste contexto, o tipo
manipulador da síndrome fascista, conforme destacado por Adorno
(2019), o mais perigoso, encontra terreno para realizar sua obsessão
administrativa.
Indiferente, seja ao judeu, ao negro ou a qualquer outra
vítima da ordem em que acredita, não é pessoal a sua relação, mas
coisificada, afastada de qualquer sensibilidade e que não comporta
sentimentos, nem em relação a si nem aos seus “produtos”, seres
humanos objetificados. Não há empatia, nem consigo, nem com o
outro. Prevalecem os meios sobre os fins e, da finalidade que será
alcançada se as pessoas vão morrer ou se é crime o que se propõe
, não lhe perpassa o desejo de uma mínima sombra de reflexão, pois
o que importa é a eficácia desejada e a realização daquilo que lhe
representa a relação com a operation. Escreve Adorno (1995, p. 132-
133):
No que diz respeito à consciência coisificada, além disto é
preciso examinar também a relação com a técnica, sem
restringir-se a pequenos grupos. Esta relação é tão ambígua
quanto a do esporte, com que aliás tem afinidade. Por um lado,
é certo que todas as épocas produzem as personalidades - tipos
de distribuição de energia psíquica - de que necessitam
socialmente. Um mundo em que a técnica ocupa uma posição
tão decisiva como acontece atualmente, gera pessoas
301
tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua
racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos
influenciáveis, com as correspondentes consequências no plano
geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo
de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao "véu
tecnológico". Os homens inclinam-se a considerar a técnica
como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força
própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens.
Os meios - e a técnica é um conceito de meios dirigidos à
autoconservação da espécie humana - são fetichizados, porque
os fins - uma vida humana digna - encontram-se encobertos e
desconectados da consciência das pessoas (ADORNO, 1995,
p. 132-133).
Deste modo, do apogeu do capitalismo autoritário na
constituição da sociedade do consumo, mais imbricada com a
técnica e a tecnologia na sua ambiguidade de melhorar nossa
existência e, ao mesmo tempo, dela nos distanciar , o aumento da
frieza e da valorização da eficácia se torna desdobramento e, ao
mesmo tempo, determinação da submissão dos existentes à lógica da
administração que almeja o totalitarismo.
Nesta conjuntura, neste mundo preparado, pode-se
compreender, como escrevem Adorno e Horkheimer (1985, p. 164),
que “os antissemitas estão em vias de realizar com as próprias forças
seu negativo absoluto, eles estão transformando o mundo no inferno
que sempre viram nele”. Para eles,
O antissemitismo praticamente deixou de ser um impulso
independente, ele não é mais que uma simples prancha da
plataforma eleitoral: quem dá uma chance qualquer ao fascismo
subscreve automaticamente, juntamente com a destruição dos
302
sindicatos e a cruzada antibolchevista, a eliminação dos judeus.
A convicção por mais mentirosa que seja do antissemita foi
substituída pelos reflexos predeterminados dos expoentes
despersonalizados de suas posições. Quando as massas aceitam
o ticket reacionário contendo o elemento antissemita, elas
obedecem a mecanismos sociais nos quais as experiências de
cada um com os judeus não têm a menor importância. De fato,
ficou provado que as chances do antissemitismo são tão grandes
nas regiões sem judeus como até mesmo em Hollywood. A
experiência é substituída pelo clichê e a imaginação na
experiência pela recepção ávida (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 165).
Na análise destacada nesta citação, podemos considerar,
brevemente, nosso momento contemporâneo a partir do alerta para
quem dá uma mínima chance ao fascismo. Na volta aos palcos através
da eleição de líderes com pretensões autocráticas, de forma
desinibida e praticamente sem o mínimo constrangimento em países
considerados democráticos, vemos o desdobramento das
consequências elencadas e intercambiáveis. O que compõe a
plataforma eleitoral do fascista perpassa, grosso modo, as mesmas
propostas de sempre: contra os trabalhadores, buscando a destruição
dos sindicatos, o antibolchevismo repaginado para
anticomunismo, marxismo cultural ou Fórum de São Paulo , a
morte da esquerdalha e as propagandas mentirosas para justificar
pontos como esses hoje potencializadas pelos algoritmos e as fake
news , que afirmam por exemplo, que o nazismo era de esquerda
ou que os comunistas dominam o mundo infiltrados em
importantes setores da sociedade ao estilo do macarthismo
303
americano. A proposta de eliminação dos judeus se encontrará nesse
crescente.
Ora, a mentalidade do ticket, que passa a prevalecer,
fortalece o preconceito e estrutura o fascismo como atmosfera, que
impregna a existência na sociedade do mass media e da manipulação
da subjetividade, promovendo a dissolução do elemento antissemita
em meio às estereotipias gerais promovidas pelo líder fascista, mas
fincadas no antissemitismo.
Os atos de pensar e de julgar, neste contexto, transformam-
se em aceitação sem questionamento e sem necessidade de
elaboração. Já está elaborado. Segundo os autores da Dialética do
esclarecimento:
No mundo da produção em série, a estereotipia que é seu
esquema substitui o trabalho categorial. O juízo não se apoia
mais numa síntese efetivamente realizada, mas numa cega
subsunção. [...] Antes, o juízo passava pela etapa da ponderação,
que proporcionava certa proteção ao sujeito do juízo contra
uma identificação brutal com o predicado. Na sociedade
industrial avançada, ocorre uma regressão a um modo de
efetuação do juízo que se pode dizer desprovido de juízo, do
poder de discriminação. Quando o fascismo substituiu no
processo penal os procedimentos legais complicados por um
procedimento mais rápido, os contemporâneos estavam
economicamente preparados para isso; eles haviam aprendido a
ver as coisas, sem maior reflexão, através dos modelos
conceituais e termos técnicos que constituem a estrita ração
imposta pela desintegração da linguagem. O percebedor não se
encontra mais presente no processo da percepção (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 166).
304
O estereótipo, a etiqueta que se cola no outro que se nega, é
contra o pensamento. Simplificado e simplificador é esquemático
para a eliminação da capacidade de pensar e de julgar.
Despersonaliza-nos e nos adequa, a mim e ao outro, dentro da
tipificação que se pretende universal e acomoda nossa condição de
percepção da realidade a um economicismo, tanto conceitual quanto
da capacidade de interpretação. Portanto, numa condição de
destruição da linguagem e da capacidade de análise do sujeito
cognoscente, o sujeito que percebe é afastado do próprio processo de
percepção.
Se pensarmos nos nossos dias, da muitas vezes chamada
sociedade da informação, numa linguagem cada vez mais
simplificada, nos moldes da novilíngua da distopia orwelliana
62
, a
62
Referimo-nos à obra de George Orwell, 1984, a distopia do mundo totalitário de
Oceania, sob o controle do Big Brother e da guerra interminável, mas intercambiável, ora
contra a Eurásia, ora contra a Lestásia, que tinha a modificação do inimigo de acordo com
as determinações do Partido. Neste mundo distópico, o Ministério da Verdade era o
responsável pela produção das informações e da simplificação, cada vez maior, da
linguagem, coibindo a riqueza do pensamento e o desejo da interpretação da realidade e,
consequentemente, do exercício da subjetividade. Registra Castro (2008, p. 2):
Em novilíngua não havia imprecisão ou gradação de sentido. Seu vocabulário foi
construído para fornecer a expressão exata da palavra, excluindo todas as ambiguidades e
sentidos implícitos, bem como a possibilidade de se chegar a eles por vias indiretas. Havia
uma total reciprocidade entre as partes do discurso, um acesso direto e, portanto, sem a
dimensão da equivocidade. A redução do vocabulário era um objetivo por si só,
independente dos sentidos heréticos, pois a finalidade da novilíngua era diminuir a extensão
do pensamento, reduzindo o número de palavras ao mínimo. Elas eram amalgamadas de
modo facilmente pronunciável, reduzidas a um som expressando claramente um único
conceito. Nesse processo, primavase (sic) pela eufonia associada à exatidão de sentido, sem
considerar qualquer critério etimológico. Como uma espécie de estenografia verbal, uma
série de ideias era englobada em poucas sílabas, oferecendo um significado mais preciso.
[...] A Revolução completar-se-ia quando a língua se tornasse perfeita, isto é, quando fosse
impossível cogitar formas de pensamento divergentes de seu princípio, tornando qualquer
pensamento herético impensável. Destarte, o que não tem palavras não pode ser concebido.
Não haveria então pensamento, pois ortodoxia significava não precisar pensar. Sua
305
apropriação do conhecimento se confunde com o consumo de
informações rápidas e sintéticas pílulas para consumo e a escrita,
como sistematização do pensamento, se vê marginalizada nos limites
dos aplicativos, que nos tornam sintetizadores das palavras ou
minimizadores, com os usos dos naum, tb, +, vc e abçs, por exemplo
ou, mais recentemente, nos conduzem a um relacionamento
emocional com os outros composto por expressões e emoções
manifestas pelos emojis como opções.
Continuam os frankfurtianos:
No campo das ciências sociais bem como no da experiência
individual, a intuição cega e os conceitos vazios são reunidos de
maneira rígida e sem mediação. Na era do vocabulário básico
de trezentas palavras, a capacidade de julgar e, com ela, a
distinção do verdadeiro e do falso estão desaparecendo. Na
medida em que o pensamento deixa de representar uma peça
do equipamento profissional, sob uma forma altamente
especializada em diversos setores da divisão do trabalho, ele se
torna suspeito como um objeto de luxo fora de moda: armchair
thinking(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 166).
É deste contexto, do não pensamento, que se vai favorecendo
e estabelecendo como desejo de consumo da consciência coisificada,
que se forma pela técnica e pelos ideais da eficácia e da
aplicabilidade, que se sedimenta a mentalidade do ticket e,
utilização para fins literários ou discussões filosóficas era impossível. Uma opinião
heterodoxa só podia ser expressa superficialmente, como blasfêmia, mas nunca ser
sustentada por uma argumentação justificada, porque não havia as palavras necessárias.
Apareciam de forma vaga, em termos muito amplos, os quais condensavam todos os tipos
de heresia sem defini-los”.
306
consequentemente, se favorece o preconceito e a estereotipia.
Segundo Adorno e Horkheimer (1985, p. 166),
As etiquetas são coladas: ou se é amigo, ou inimigo. A falta de
consideração pelo sujeito torna as coisas fáceis para a
administração. Transferem-se grupos étnicos para outras
latitudes, enviam-se indivíduos rotulados de judeus para as
câmaras de gás. A indiferença pelo indivíduo que se exprime na
lógica não é senão uma conclusão tirada do processo
econômico. O indivíduo tornou-se um obstáculo à produção.
Na perspectiva do sistema que tudo pretende controlar, que
gera e que mói, na vida ou na morte, os existentes que vão se
despersonalizando porquanto não mais sujeitos, indivíduos
individualizados ou seres pensantes, independentemente da
definição que se pretenda , a sociedade administrada do capitalismo
monopolista da época dos frankfurtianos, ou o mundo neoliberal
sob o qual nos encontramos, defende o progresso como meta
ocultando a regressão, sempre presente, que se entranha no seu
processo. Diante da racionalidade econômica que predomina, a
superfluidade das pessoas é um elemento da administração que se
estabelece. A incapacidade de pensar nos torna burocratas do sistema
e peças da engrenagem que se move, na perspectiva do fascismo, para
alimentar as “indústrias da morte”. Referindo-se a Eichmann,
escreve Hannah Arendt (2004b, p. 226-227):
Por mais monstruosos que fossem os atos, o agente não era nem
monstruoso nem demoníaco, e a única característica específica
que se podia detectar no seu passado, bem como seu
comportamento durante o julgamento e o inquérito policial
307
que o precedeu, era algo inteiramente negativo: não era
estupidez, mas uma curiosa e totalmente autêntica
incapacidade de pensar. Ele funcionava tão bem no papel de
ilustre criminoso de guerra quanto tinha funcionado no regime
nazista: não tinha a menor dificuldade em aceitar um conjunto
inteiramente diferente de regras. Sabia que aquilo que tinha
outrora considerado seu dever era agora chamado de crime, e
aceitava esse novo código de julgamento como se não passasse
de outra regra de linguagem.
Portanto, desta autêntica incapacidade de pensar que
permeia os Eichmanns do mundo administrado, no contexto das
conexões entre o preconceito, o autoritarismo e o fascismo que
permeiam essa sociedade, é preciso considerar o amálgama que
produzem nestas perspectivas da propaganda fascista e do
capitalismo em sua gênese autoritária. No seu desdobramento, o
autoritário é a representação daquele indivíduo capaz de obedecer
cegamente ao líder em sua perspectiva de representação autoritária,
identificando-se com perspectivas ideológicas totalitárias e com o
preconceito em geral. Considerando os estudos desenvolvidos em La
personalidad autoritaria (1965), Horkheimer e Adorno (1978, p.
173) anotam:
Os resultados da investigação de que falamos são
independentes, em grande medida, de condições econômicas,
políticas e, provavelmente geográficas. Referem-se às condições
sociopsicológicas da moderna loucura totalitária e, para além
desta, ao preconceito étnico e nacionalista, em geral. O foco da
investigação foi a ligação entre ideologia política e
características psíquicas dos que se convertem em seus adeptos.
Esta ligação, até há algum tempo observada apenas como vaga
308
suposição, está hoje amplamente documentada e concretizada.
Obtiveram-se resultados decisivos na definição das forças
psicológicas que tornam um indivíduo receptivo à propaganda
do nacional-socialismo ou de outras ideologias totalitárias.
Doravante, está justificado que se fale de um “caráter
autoritário” e do seu oposto: o homem livre, não vinculado,
cegamente, ao que constitui a autoridade (HORKHEIMER;
ADORNO, 1978, p. 173).
Como esclarecem os autores, o autoritarismo se dá a partir
de condições que independem, na maioria das vezes, das questões
econômicas, territoriais ou políticas, mas que são constituídas, social
e psicologicamente, por esse elã totalitário que permeia nossa
sociedade contemporânea. Além disso, destacam, está presente
também o preconceito referente a concepções étnicas e nacionalistas
que, classicamente, nos remetem à questão do antissemitismo. Neste
sentido, nessa sociedade da etiqueta, da tipificação, do rótulo que
define pelo preconceito o que é estranho e familiar,
Não é só o ticket antissemita que é antissemita, mas a
mentalidade do ticket em geral. A raiva feroz pela diferença é
teleologicamente imanente a essa mentalidade e está - enquanto
ressentimento dos sujeitos dominados pela dominação da
natureza - pronta para se lançar contra a minoria natural,
mesmo quando eles são os primeiros a ameaçar a minoria social
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 171).
Neste contexto, concluem Adorno e Horkheimer (1985, p.
171),
309
[...] o conteúdo do ticket fascista é tão vazio, que ele só pode ser
mantido de pé - como um sucedâneo do melhor - graças aos
esforços desesperados dos logrados. O que ele contém de
horrível é a mentira manifesta e, no entanto, persistente. Ao
mesmo tempo em que não admite nenhuma verdade com a
qual possa ser confrontado, a verdade aparece negativamente,
mas de maneira tangível, em toda a extensão das contradições
desse ticket, dessa verdade, os destituídos do poder de julgar só
podem ser separados pela perda total do pensamento. O
próprio esclarecimento, em plena posse de si mesmo e
transformando-se em violência, conseguiria romper os limites
do esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
171).
Por isso, esse tipo de “caráter autoritário” e seus
desdobramentos apresentam-se como um dos contrapontos a uma
educação emancipadora. Além disso, entendemos, é o espaço aberto
para o recrudescimento dos totalitarismos que, conforme nos
alertam Hannah Arendt e Theodor Adorno, é algo que jamais
deveria ter acontecido e o que não devemos permitir que se repita,
como nos conclama a máxima adorniana para a educação.
Neste contexto ainda, a suscetibilidade do sujeito
potencialmente fascista à propaganda antidemocrática encontra seus
fundamentos na questão do preconceito, cuja base é o
antissemitismo e, correlatamente, a sua adesão a um coletivo que
catalisa esses sentimentos e expressa, na figura do líder, sua
gratificação libidinal com o autoritarismo, numa perspectiva
sadomasoquista
63
e, inevitavelmente, destrutiva.
63
Sadomasoquismo:
significando perversão sexual, a expressão consiste na conjugação dos
conceitos do sadismo e do masoquismo. O primeiro relaciona-se à satisfação erótica que
310
Em outras palavras, o fascista nutre-se do preconceito e
encontra, no coletivo que comunga dessas ideias e sentimentos, uma
significação de pertença ao grupo in-group que, na luta contra
tudo e todos que representam o objeto de sua fúria qualquer
outsider que componha o out-group , submete-se ao domínio
autoritário do líder e do grupo masoquismo e, consequentemente,
submete à violência os seus inimigos sadismo , muitas vezes numa
pretensão purificadora e higienizadora da existência e dos existentes.
Na morte do outro, no ódio manifesto, na luta por um projeto que
não tem finalidade, apenas a operation, busca recompensa libidinal
o fascista que, permeado pelo ressentimento, não vê outro horizonte
que não a luta incessante. Destruição e não construção fundamenta
o fascismo.
No conjunto da propaganda fascista, Adorno (2015) chama
a atenção para o fundamento psicológico do fascismo, que é a
destrutividade. Neste sentido, o fascismo e sua expressão
propagandística conjugam o propósito da destruição dos inimigos
objetificados, mas também dos próprios fascistas. A ideia da ruína,
da destruição iminente é uma excitação para o adepto do fascismo
que, na sua perspectiva de submissão e identificação com o
autoritarismo, espera do líder a ação, o caminho a seguir, mesmo
que não perceba que, ao final, se consuma num processo destrutivo.
Lembremo-nos do Telegrama 71 de Hitler.
advém de atos de violência ou crueldade física ou moral infligidos ao parceiro sexual e, por
extensão, socialmente, é o prazer com o sofrimento alheio. O masoquismo, por sua vez, é
a perversão sexual em que a pessoa só tem prazer ao ser maltratada física ou moralmente e,
por extensão, socialmente, é o prazer que se sente com o próprio sofrimento (FERREIRA,
1999 Novo Aurélio Século XXI).
311
Na união do horrível com o maravilhoso, em que o delírio
da aniquilação se mascara como salvação, nos exorta Adorno (2015,
p. 152):
A esperança mais forte de efetivamente contrariar todo este tipo
de propaganda reside em ressaltar suas implicações
autodestrutivas. O desejo psicológico inconsciente de
autoaniquilação reproduz fielmente a estrutura de um
movimento político que, em última instância, transforma seus
seguidores em vítimas.
Portanto, da propaganda antissemita, do preconceito
normalizado, das ideias que projetam o fascismo e da constituição
da estrutura psíquica do sujeito, para a prática violenta, o pogrom e
o campo de extermínio, o que ocorre é um crescente. Por isso, sua
perspectiva é destrutiva. Entender a relação da propaganda neste
contexto, mas perceber também sua relação com o modo de vida
capitalista e a promoção da barbárie cotidiana, da banalidade do mal
que se subestima pela normalidade que se estabelece, são condões
para se pensar a contradição e a resistência.
312
313
Capítulo V
Repercussões da pesquisa na crítica ao fascismo: o
continuum
de
Auschwitz
Uma das lições que a era hitlerista nos ensinou é a de como é
estúpido ser inteligente. Quantos não foram os argumentos
bem fundamentados com que os judeus negaram as chances
de Hitler chegar ao poder, quando sua ascensão já estava clara
como o dia! Tenho na lembrança uma conversa com um
economista em que ele provava, com base nos interesses dos
cervejeiros bávaros, a impossibilidade da uniformização da
Alemanha. Depois, os inteligentes disseram que o fascismo era
impossível no Ocidente. Os inteligentes sempre facilitaram as
coisas para os bárbaros, porque são tão estúpidos. São os juízos
bem informados e perspicazes, os prognósticos baseados na
estatística e na experiência, as declarações começando com as
palavras: "Afinal de contas, disso eu entendo", são os
statements (declarações, enunciados - N.T.) conclusivos e
sólidos que são falsos. Hitler era contra o espírito e anti-
humano. Mas há um espírito que é também anti-humano: sua
marca é a superioridade bem informada
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 173).
A primeira das notas e esboços que aparece registrada quase
ao final da Dialética do esclarecimento (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985) é intitulada Contra os que têm resposta para
tudo. Reproduzida na epígrafe, ela é extremamente provocativa o
que, entendemos, nos permite ousar um pouco na comparação
314
inevitável com o momento contemporâneo em que nos
encontramos, um presente muito permeado por flashes de um
passado não tão remoto que, muitas vezes, teima em se repetir. Se,
por um lado, exige-se cautela para não extrapolarmos na
interpretação do objeto pela proximidade e intensidade com a qual
nos deparamos e o vivenciamos, por outro, permite-se observar que
não é de uma proposta democrática que estamos tratando nestes dias
de fortalecimento da extrema-direita.
Nestes “tempos estranhos” de arroubos autoritários, de
projetos de destruição da democracia e de alguns avanços sociais
conquistados, de negacionismo da ciência e da história, não só no
caso do Brasil, relemos a nota dos frankfurtianos com grande pesar.
Talvez, a lição que a era hitlerista nos ensinou de “como é estúpido
ser inteligente”, poderíamos acrescer uma “ode à arrogância” da
imbecilidade sublimada pelos algoritmos das Redes Sociais que
permeiam nosso atual quarto de século com uma inevitável
constatação: mais do que nunca é fundamental uma educação contra
a barbárie.
Auschwitz é mais do que o registro histórico de um campo
de concentração nazista: representa o continuum da barbárie que se
manifestou e marcou, para sempre, nossa existência humana dada
sua magnitude e proporcionalidade em relação a tudo o que já
ocorrera neste mundo. Auschwitz é evento, é momento. É a
constatação de que não é mais possível relativizar a banalidade do
mal, como demonstrava Hannah Arendt (2004b), após acompanhar
o julgamento de Adolf Eichmann.
A barbárie que nos espreita hoje e manifesta-se muitas vezes
dissimulada no nosso cotidiano é aquela que inicialmente se espraia
315
como erva daninha, tomando conta do terreno sem que se perceba,
por debaixo das flores e plantas e eclodindo na sua inter-relação com
o próprio ambiente em que se desenvolve. Como no caso Eichmann,
não se manifesta necessariamente como um arroubo de poder de
facínoras ou psicopatas, num primeiro momento. Tampouco se dá,
na maioria das vezes, pela clareza de um golpe de Estado no ataque
à democracia, de imediato. Lenta e paulatinamente, encontra nos
“cidadãos de bem”, nos homens comuns e triviais do nosso
cotidiano, no “tiozão” do almoço de domingo, as condições e
desdobramentos para ferir a democracia, para minar suas
instituições, para liberar o potencial fascista que permeia a existência
de cada um.
Despersonalizada em suas existências, cada pessoa que se
exime do pensar, do entendimento, da crítica colabora, como o
“ninguém” explicitado por Eichmann, para o desenvolvimento e a
manutenção do “sistema” e sua “engrenagem”. Neste sentido,
transformados em “peças” de um grande maquinário, podemos nos
sentir como desresponsabilizados de nossas escolhas, das opções que
fazemos, e isso exteriorizar. Mas não podemos fugir, por mais que
desejemos, do princípio e do fato de que, no fundo, são pessoas que
aceitam, que consentem com os projetos que se manifestam e se
apresentam na pretensão de um controle total, de uma
uniformização da existência para, efetivamente, uma
unidimensionalização do real.
O fenômeno totalitário não se dá simplesmente pela
ascensão ao poder de líderes megalomaníacos, mas principalmente,
pelo apoio e consentimento que encontram de seus adeptos,
daqueles que se sentem representados por tal proposta. Também
316
catalisa a omissão dos que relativizam e normalizam tais projetos
por sua indiferença, frieza e estúpida inteligência ou interesses outros
considerando-os apenas como uma outra proposta política, apesar
de sua gênese apresentar, partindo-se de um olhar mais acurado, a
proposição da destruição e, consequentemente, da morte que
espreita a todos, especialmente os oprimidos.
Entretanto, simplório seria atribuir o fenômeno totalitário
ao mero acaso de uma conjuntura que conjuga esses adeptos num
determinado momento da história. Como discutimos até o presente
momento, o autoritarismo tem encontrado há bom tempo as
condições sociais e culturais para se manifestar e, nos interesses dos
gestores do capitalismo, evidentemente, um líder megalomaníaco
não é um ponto fora da curva, visto que atende aos interesses da
pretensão totalitária de dominação sobre os existentes.
Neste sentido, escovar a história a contrapelo é o grande
desafio.
A premência de que
Auschwitz
não se repita
O continuum de Auschwitz na história certamente é elemento
importante que compõe o tempo vazio e homogêneo de que nos
falava Benjamin (2012), na percepção de que não melhoramos
muito as coisas de lá para cá. Contudo, com sua eclosão, demos à
existência humana uma condição que não produzíramos até então,
como nos relata Günther Anders (2013): a da possibilidade de nos
tornarmos, a qualquer momento, inexistentes. Auschwitz é a cena
de entrada de uma era de suspensão, que, a partir da conjugação da
técnica com a nossa capacidade de destrutividade, explicitada pelo
317
nazismo, potencializou nossa barbárie com a construção da Bomba,
paradoxalmente defendida em nome da paz. Nessa Era Atômica, que
passa a definir nosso modo de ser “como ‘ainda não sendo
inexistentes’, ‘ainda não exatamente sendo inexistentes’” (ANDERS,
2013, p. 1), a clássica questão moral básica que permeava nossa vida
humana exige uma reformulação. Ao invés de nos perguntarmos
“‘Como devemos viver’, devemos agora perguntar ‘Iremos viver?’
(ANDERS, 2013, p. 1).
Nesta perspectiva, da capacidade de autodestruição que
produzimos e da potencialidade de que, a qualquer momento,
apertemos o botão que deflagraria nossa extinção, explica Anders
(2013, p. 1):
Para nós, que somos “ainda não inexistentes” nessa Era de
suspensão, só há uma resposta: embora a qualquer momento O
Tempo do Fim possa se converter n’O Fim do Tempo,
devemos fazer tudo a nosso alcance para tornar o Tempo Final
infindável. Na medida em que acreditamos na possibilidade
d’O Fim do Tempo, nós somos Apocalípticos, mas na medida
em que lutamos contra esse Apocalipse fabricado pelos homens,
nós somos e isto nunca existiu Anti-Apocalípticos”.
Neste contexto, na dialética entre civilização e barbárie, o
tempo homogêneo e vazio que se estabelece na pretensão do
progresso é essa suspensão sob a qual nos encontramos.
Classicamente, na perspectiva teológica cristã ocidental somos
apocalípticos ao aguardarmos o Apocalipse, como o Final dos
Tempos, que ocorreria como o telos purificador na História da
Humanidade, de acordo com o texto bíblico. Contudo, a partir de
318
Auschwitz e de seu continuum, fomos capazes de subverter a
expectativa teológica ao colocarmos em suspensão, por nossas
próprias mãos, a potencialidade de um suicídio coletivo, no sentido
metafórico posto que nem todos desejariam se suicidar , da
capacidade de autodestruição de toda existência humana, ou seja,
abusando da redundância, pelas próprias mãos dos homens.
Torna-se inevitável a constatação, conforme já tratamos no
capítulo anterior, de que a relação entre o que chamamos de processo
civilizatório e a barbárie não se sustenta meramente na percepção de
dois polos opositores, porquanto isolados e simplesmente
conflitantes numa perspectiva maniqueísta. Continua sendo
tentador classificar quem são os bárbaros e quem são os civilizados,
como fizemos ao longo da história, sob o imaginário do progresso e
de uma condição de aperfeiçoamento que almejamos objetivando
uma plenitude da justiça sob a ótica do civilizado e a idealidade
utópica de um mundo perfeito.
Nesta sedução, como nos lembra Benjamin (2012),
geralmente nos simpatizamos com os vencedores e continuamos
perpetuando um tempo vazio e homogêneo em que, alocamos em
seu interior de forma inseparável, a ideia do progresso humano ao
longo da história. Tempo de um dia talvez em que, apesar de seus
avanços tecnológicos, é um dia que nunca acaba e que mantém seu
momento universal, de um permanente Estado de exceção que insiste
em se afirmar, como de desenvolvimento e liberdade, mas sempre
dissimulando sua pretensão de dominação totalitária.
Na contramão dos civilizados, estariam os bárbaros, ou a
vida da anticivilização. Identificados com povos, raças, etnias ao
longo dos séculos, reforçaram a compreensão polarizadora e não
319
dialética, entre civilização e barbárie. Evidentemente, pressupunha
tal compreensão a clássica limitação de análise, intencionalmente
produzida e utilizada para fins de demagogia, como também já
propunha Hitler em seu Mein Kampf, (apud HORKHEIMER;
ADORNO, 1978) destacado na discussão da propaganda fascista
da divisão do mundo em ovelhas brancas e negras, tornando clara,
pela manipulação da subjetividade, o conflito dos polos do bem e do
mal, do civilizado e do bárbaro, dos bons e dos ruins.
Neste sentido, a luta contra a barbárie, ainda assim
compreendida pela maioria, identifica nos estranhos os bárbaros o
out-group e, nos seus o in-group , a ideia da civilização. Oblitera,
assim, pela polarização, a relação que é intrínseca e que se apresenta
em todo o constructo daquilo que chamamos de civilização. É o que
nos desnuda Benjamin (2012) com a constatação de que não há um
documento da cultura que não tenha sido, concomitantemente, um
documento da barbárie.
Auschwitz, portanto, é um marco que explicita a
contradição, não a polarização. Se houver dois polos, ambos estão
entremeados pela barbárie. Neste sentido, a luta contra o fascismo
não pode ser compreendida como uma luta entre dois polos. Em seu
seio, não há contradição. O fascismo é barbárie que permeia
qualquer polarização.
A irrupção de Auschwitz coloca em xeque nossa civilização,
nosso conhecimento e o que produzimos que nos trouxe até aqui: a
arte, a cultura, o progresso, como discutiram Adorno e Horkheimer
(1985) na Dialética do esclarecimento. Por isso, Adorno (1995, p.
119) afirmará que “a exigência de que Auschwitz não se repita é a
primeira de todas para a educação”. Por isso também, qualquer meta
320
educacional precisa levar em conta a resistência contra essa barbárie.
E, o que constata Adorno (1995) é que, apesar de se falar de uma
ameaça de regressão à barbárie, na realidade, não é essa a condição
após Auschwitz, pois esta barbárie já foi a regressão e, neste sentido,
continuará a existir enquanto lhe forem favoráveis as condições que
geram essa regressão.
Escreve Adorno (1995, 119): “É isto que apavora. Apesar da
não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se
impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e
que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz”. Ou
seja, Auschwitz é o ápice e não o ponto fora da curva de nosso
processo civilizatório, prenhe daquilo que é anticivilizatório.
Continua Adorno (1995, p. 119-120):
Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud,
efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um
dos mais perspicazes parece-me ser aquele que a civilização, por
seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é
anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz,
os seus ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia das massas e
análise do eu mereceriam a mais ampla divulgação. Se a barbárie
encontra-se no próprio princípio civilizatório, então pretender
se opor a isso tem algo de desesperador.
Portanto, a premência de que Auschwitz não se repita se
entrelaça com essa constatação desesperadora de que não é o caso de
seu retorno como ocorrera o que fundamenta o alerta, mas mais
especificamente, o olhar para o seu continuum que, como momentum
de ruptura do progresso idealizado, de uma história humana que se
considerava avançada, escancara que as condições que permitiram
321
tal barbárie permanecem numa sociedade que se autoproclama
civilizada. Auschwitz não se encerrou. Por isso, complementa
Adorno (1995, p. 120):
A reflexão a respeito de como evitar a repetição de Auschwitz é
obscurecida pelo fato de precisarmos nos conscientizar desse
elemento desesperador, se não quisermos cair presas da retórica
idealista. Mesmo assim é preciso tentar, inclusive porque tanto
a estrutura básica da sociedade como os seus membros,
responsáveis por termos chegado onde estamos, não mudaram
nesses vinte e cinco anos. Milhões de pessoas inocentes e só o
simples fato de citar números já é humanamente indigno,
quanto mais discutir quantidades foram assassinadas de uma
maneira planejada. Isto não pode ser minimizado por nenhuma
pessoa viva como sendo um fenômeno superficial, como sendo
uma aberração no curso da história, que não importa, em face
da tendência dominante do progresso, do esclarecimento do
humanismo supostamente crescente. O simples fato de ter
ocorrido já constitui por si só a expressão de uma tendência
social imperativa.
Apesar dos vinte e cinco anos passados daquela geração, no
momento em que Adorno escrevia, e, portanto, contabilizando em
torno de setenta e cinco anos neste presente em que nos
encontramos, pudemos constatar que, apesar de terem ocorrido
mudanças estruturais consideráveis com relação àquela sociedade do
capitalismo tardio, o tempo neoliberal que vivemos não é menos
regressivo. Ao contrário, supera seu antecessor. A superfluidade da
vida humana se exacerbou, a Era Atômica trivializou nossa existência
e os constantes arroubos de um progresso que continua manifesto
na história que se perpetua como constante Estado de exceção, num
322
mundo cada vez mais administrado e danificado, solidifica o
autoritarismo e nos prepara, na atmosfera do fascismo, as condições
para que Auschwitz se repita ou, algo ainda inimaginável se
manifeste.
Neste contexto, apesar do idealismo contemporâneo, em sua
expressão capitalista e progressista, da crença no avanço civilizatório
que desconsidera a primazia da política enquanto condição
humana no trato dos assuntos humanos em detrimento da
economia, vista como fim e não como meio e onde a esfera pública
aparece como óbice do privado, a contradição prevalece e a barbárie
se entrelaça. Não estamos distantes, portanto, daquele tempo dos
frankfurtianos mais do que alguns minutos de um dia que se
constitui como único, num tempo que se universaliza e que não
chega ao seu ocaso. Tempo de um dia que, na proporção que
conclama o sucesso de seu progresso, como se chegasse à meia-noite
para a virada de um novo tempo, promove a regressão para a
madrugada, da qual ainda não despertamos e que prenuncia o
mesmo dia que ainda não vencemos.
Por isso, numa sociedade que aprimorou seus procedimentos
de controle, em que a unidimensionalização da realidade se
apresenta, na perspectiva do trabalhador ou do burguês, enfim de
todo existente, obliterada em suas contradições pela cada vez maior
unicidade da dominação,
É possível falar da claustrofobia das pessoas no mundo
administrado, um sentimento de encontrar-se enclausurado
numa situação cada vez mais socializada, como uma rede
densamente interconectada. Quanto mais densa é a rede, mais
se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua
323
densidade impede a saída. Isso aumenta a raiva contra a
civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta e
irracional (ADORNO, 1995, p. 122).
Apesar de Adorno não ter contemplado o advento da
internet e, muito menos das Redes Sociais, qualquer semelhança não
será mera coincidência. E continua Adorno (1995, p. 122): “De uma
perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade,
ao mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências
de desagregação. Essas tendências encontram-se bastante
desenvolvidas logo abaixo da superfície da vida civilizada e
ordenada”.
Parece-nos alusiva, neste sentido, a dificuldade de
compreensão das pessoas no contexto da necessidade de uma luta
coordenada e integrada, por exemplo, contra a atual pandemia que
tem assolado o mundo. Olhando para o nosso caso específico, é de
grande expressividade a relação que muitos estabeleceram com a
perspectiva de uma volta à normalidade, mas que, a cada movimento
desagregatório, em nome do individualismo e da polarização
política, torna mais distante a possibilidade de algo próximo disso.
Evidentemente esta é uma faceta. Há outras. Diante do continuum
de Auschwitz, a minimização pelo atual governo dos mortos pela
COVID-19 e seu descaso com o combate à pandemia manifestam,
de forma similar, a insensibilidade dos que, na tentativa de
ocultamento das torturas nos porões da Ditadura, exaltavam a “mãe
Pátria” enquanto matavam muitos de seus filhos sob seu olhar.
Por fim, a discrepância social, que perpetua a opressão,
impede qualquer agregação em nome de uma ofensiva ideia de
civilidade, que coloca no mesmo patamar o que está privilegiado e o
324
que não tem o que comer. Da frieza burguesa, que determina que se
precisa consumir, se vai do “não estou nem aí” a indiferença para
o colapso da saúde e para a acirrada defesa de um direito individual
que se baseia, apenas e tão somente, na já velha e assimilada falácia
neoliberal.
Como tudo passa pelo filtro da indústria cultural, na
produção do espetáculo dessa sociedade espetaculoísta debordiana,
cada momento da barbárie é assimilado como mais uma cena
produzida a partir dos ensaios orientados pela visão do diretor. Seu
desdobramento parece um momento específico, controlado pelo
tempo que se inicia com a fala do assistente da direção, o “claquete...
ação!”. Na sequência, se conclui, não necessariamente se encerra,
com a clássica expressão “corta!” que suspende a continuidade
da atuação, até o momento da próxima cena.
Neste sentido, Auschwitz desaparece (CLAUSSEN, 2012).
Seu continuum não é, assim, percebido, mas apenas compreendido,
como um momento registrado, emoldurado na memória, que nos
lembra algo horrível, mas não impede o continuum de sua
permanente existência. Não ocorre, como alertavam ser necessário,
tanto Adorno (1995) quanto Hannah Arendt (2004b), um processo
de elaboração do passado, mas ao contrário, é a efetividade de um
mecanismo de sublimação da barbárie, na linha de um consumo
como aquele a que se presta qualquer drama ou dramalhão
hollywoodiano.
Alimentando nossa sensibilidade danificada, a partir de uma
estética comprometida pelo apelo ao sentimentalismo, o sofrimento
que nos causa o sofrimento da personagem ou no caso de
Auschwitz, dos judeus exterminados , resume-se ao momento que
325
se exaure, rapidamente, na expectativa de um novo momento e de
uma nova imagem. Mesmo em seu potencial catártico, conjuga-se,
pela técnica produzida, pela imagem construída, pela manipulação
da realidade e a sensibilização pensadamente ambientada, com a
trilha sonora ao fundo e o apelo à compulsão, o desejo quase puro
do consumo pelo consumo, que alimenta a consumação de uma
semicultura por um processo de semiformação.
Subsumido pelo conceito de holocausto, Auschwitz é
assimilado pela cultura de massas. Mesmo que pareça indiferente a
escolha da palavra para representar a barbárie ocorrida, nos esclarece
Detlev Claussen (2012, p. 50) que “[...] o fato de que o holocausto
recalcou Auschwitz enquanto designação segue uma lógica social”.
Neste contexto, esmiúça para nós sua significação, o próprio autor:
Quando o nome Auschwitz ocorre, o contexto não é claro, mas
é explicável. O topônimo Auschwitz remete a um lugar
concreto, histórico e geográfico, do acontecido. Auschwitz
representa, enquanto parte de um todo, o universo dos campos
de concentração e extermínio, cujo fenômeno mais forte
ocorreu no território da Polônia. Como nome alemão para um
local na Polônia, Auschwitz remete à autoria alemã do ato
criminoso, que, sem o projeto dos nazistas de se tornar potência
mundial, não seria compreensível. A denominação alemã de
um lugar polonês simboliza esse projeto. Auschwitz se encontra
na então fronteira linguística do leste, a qual desempenhou um
papel muito importante na história da constituição dos Estados
nacionais europeus e com orientações políticas e culturais judias
ligadas a esse processo. A solução final da questão judaica,
proposta pelos nazistas, deveria dissolver em Auschwitz a
história do judaísmo europeu numa nova ordem europeia
(CLAUSSEN, 2012, p. 50).
326
Portanto, a significação de Auschwitz não se encontra no
conceito de holocausto, difundido e popularizado a partir da
ascensão da televisão como meio principal de comunicação e,
consequentemente, mediação da realidade (CLAUSSEN, 2012). A
introdução da palavra holocausto de forma global, a partir da série
televisiva homônima de 1978, e do sucesso da Lista de Schindler,
filme de Steven Spielberg de 1994, permitiram que, como um filtro,
o holocausto tomasse “[...] o lugar do dispositivo ligado à cultura de
massa chamado Auschwitz” (CLAUSSEN, 2012, p. 49). Neste
sentido, contrapondo a consideração anterior que explica Auschwitz,
Claussen (2012, p. 50) nos esclarece que
A palavra holocausto sinaliza uma terra de ninguém linguística
que reside em algo incerto espaço-temporalmente. Ao mesmo
tempo, a palavra estrangeira holocausto tematiza um sentido
oculto que só é decifrado por aquele que o conhece. Quem quer
traduzir holocausto como fogo sacrifical classifica
espontaneamente o acontecido na história ocorrida na
obscuridade do medievo europeu, com suas lutas religiosas e
perseguições. Holocausto separa o ato do contexto linguístico
da experiência do presente como algo totalmente estranho, do
qual podemos nos aproximar apenas com comparações. A
referência à religião numa época secularizada fornece o
fundamento, ainda que obscuro, para aquilo que é dificilmente
explicado. A designação permanece tão vaga que qualquer um
pode imaginar o que quiser sobre esse conceito. Quando
Auschwitz é muito frequentemente mencionado, as pessoas
fecham os ouvidos.
A aspereza auditiva que representa Auschwitz, neste sentido,
é amenizada pelo filtro de uma palavra que, afeita aos produtos da
327
indústria cultural “[...] preenche, diferentemente do que o faz o
nome ‘Auschwitz’, as condições de comunicabilidade em termos de
meios de massa. Ele codifica um segredo público, mas dificilmente
suportável, num hieróglifo que é utilizado de várias maneiras”
(CLAUSSEN, 2012, p. 50). Por isso, como também destaca o autor,
à palavra holocausto se permite agregar ou associar à sua significação
qualquer ideia que empobreça ou desvie a atenção da significação
real da barbárie nazista, como a ideia de um holocausto nuclear,
ecológico ou outras metáforas congêneres que se possam criar. No
reducionismo conceitual que se constrói pela cultura de massas,
ainda nos explica Claussen (2012, p. 47):
Conceituar aquilo que não é conceituável foi transformado
numa banalidade trivial, da qual a humanidade deve extrair
lições, cuja desimportância dificilmente se deixa esconder. Os
produtos muito efetivos no público da cultura de massa
produzem, pós-crime, um sentido que é, exatamente através de
Auschwitz, desmentido. Os sentimentos diferenciados de culpa
são, por meio do confronto dos meios de comunicação de
massa com os crimes, transformados, na consciência, em
sentimentalidade, uma forma do kitsch que é muito típica da
indústria do entretenimento. A anedota nova-iorquina
encontrou a formulação adequada para este fenômeno: “não há
negócio como o negócio da shoah.
Dissimulando o significado, obliterando a percepção, a
indústria cultural banaliza o que não é banal e monetiza atualmente
pelas selfs, pelos likes ou pelos views, entre outros procedimentos
mecanicizados e introjetados no dia a dia do consumidor de seus
produtos , o que não precisaria de um registro momentâneo, ou do
328
clássico souvenir que consagra o consumo de uma viagem, também
consumida. Alheios ao passado, que não elaboramos, nos escapa à
lembrança que, no seu continuum, Auschwitz não é um mero
acontecido, uma cena do espetáculo, mas é a própria regressão, a
barbárie a que chegamos. É isso que torna imperativo, se algum devir
ainda almejamos, reconhecer que o progresso civilizatório que tanto
cotejamos é aquela tempestade que no seu ritmo alucinante vai
deixando atrás de si, escancarada à nossa frente, uma pilha de ruínas
que, nos humanos corpos desumanizados de Auschwitz, explicita nossa
incrível capacidade, pela técnica e pela frieza, de consumar nossa
própria destruição.
Neste sentido, a “[...] banalização de Auschwitz em termos
da práxis comunicativa não se diferencia qualitativamente da
sabedoria cotidiana de que a vida prossegue” (CLAUSSEN, 2012,
p. 51). Permite-nos trivializar uma pandemia ou a necropolítica no
dia a dia, que legitima a morte de milhares sob os olhares
indiferentes, como do rico empresário que sobrevoa a megalópole
acima do campo de batalha, os engarrafamentos e o tumulto na luta
dos subalternos por uma vida danificada da qual, por mais que não
perceba, ninguém, nem mesmo sua existência escapa. É evidente que
o seu dano é infinitamente menor que o infligido ao desprovido e
sua responsabilidade não se extingue pelo privilégio que lhe cabe,
escancarando a falácia da meritocracia. Mas a indiferença atinge
também o trabalhador, espremido e atrofiado, no transporte público
que o leva de sua casa um alojamento de descanso, como nos campos
de extermínio, que permitiam um ligeiro repouso para retornar aos
trabalhos sem sentido para a lida diária que se resume à
sobrevivência, a uma sobrevida resumida pelo redundante ciclo do
329
comer, beber, trabalhar e dormir. Basicamente, sem significado, no
puro suprimento da necessidade e excluído do banquete reservado à
elite do capital. Por isso,
Partindo do fato de que, a partir de Auschwitz, para a vida das
pessoas pós-Auschwitz, nada se segue, brotaram as colocações
de Adorno de que toda forma de práxis cultural depois de
Auschwitz teria o signo de barbárie. A ciência da cultura, ao
buscar justificação para a práxis cotidiana, para o modo como
a comunicação de massa lida com Auschwitz, prepara o
caminho para uma banalização estética. No trivial, a
consciência cotidiana dos consumidores e as práticas de
produção em termos da indústria cultural se comunicam. O
sucesso do processamento da realidade por parte da indústria
cultural reside no seu efeito libertador para os consumidores.
Desse efeito os cientistas gostariam de participar (CLAUSSEN,
2012, p. 51).
Liberados do pensar, os consumidores não precisam
interpretar a realidade. Abolindo o exercício necessário do encontro
de si, consigo mesmo, como nos indica Hannah Arendt (2004b), o
sujeito se liberta da consciência e da memória, pois não se faz
necessário rememorar ou entender o que passou, mas apenas esperar,
dia após dia, pelo novo que ainda não chegou. A banalidade estética
se avoluma na ausência da real fruição estética, transformada em
puro consumo, pois, ao consumir a cultura, para aquele que a
consome a realidade já está processada.
Assim, “o consumidor de cultura pode fruir o artefato
holocausto, que os meios de comunicação de massa usaram para
processar Auschwitz, porque nele suas necessidades e a práxis de des-
330
realizar Auschwitz se encontram” (CLAUSSEN, 2012, p. 52). Para
uma potencial ruptura com tal condição, qualquer um que pretenda
se aproximar da realidade de Auschwitz precisa realizar um esforço
no sentido de manter um comportamento crítico às próprias
emoções, pois, “somente o pensamento traz o horror
desmaterializado de volta à consciência” (CLAUSSEN, 2012, p. 52).
Rememorando as discussões sobre a manipulação da
subjetividade e os propósitos da propaganda fascista, aquilo que a
indústria cultural produz em sua práxis objetiva também visa
satisfazer necessidades para os seus consumidores, privando-os dos
esforços da conceituação, que se demonstram dolorosos. Na popular
expressão do senso comum, pensar dói ou, ainda, pensar cansa. O que
está por trás desse mecanismo é um processo psíquico de rejeição da
realidade que se repete mecanicamente a partir da práxis da indústria
cultural. Explicitado por Freud, implica a liberação do eu da
representação insuportável, que se apresenta como uma parte da
realidade, mas “[...] na medida em que o eu realiza esse desempenho,
ele se separa total ou parcialmente da realidade” (CLAUSSEN,
2012, p. 52). Fica mais fácil viver o inferno normalizado e realizar-
se sob os mantras do consumo e da dominação.
Neste sentido, o cotidiano se expressa, segundo Claussen
(2012), como religião que afasta toda criticidade, na perspectiva da
recusa à reflexão e na resistência ao esclarecimento. Nos moldes da
comunicação da propaganda fascista, o cotidiano se estabelece como
realidade confortável para o existente que se exime da necessária
tarefa do pensamento crítico, porquanto incapaz de sequer pensar
uma vida que poderia desestruturar o que se considera como
segurança. Por isso,
331
A incapacidade de distinguir entre tabus fundamentados e não
fundamentados não é a incapacidade de luto, mas pode ser
responsabilizada pela recusa à reflexão. No cotidiano, a
percepção do indivíduo coincide com a segurança dada pelos
estereótipos sociais num sistema que poder-se-ia chamar de
religião do cotidiano. Este sistema unifica as impressões
fragmentadas em uma crença prática que faz com que as pessoas
dominem seu cotidiano por meio da consciência, como se
tivessem tudo nas mãos e nada que fosse humano lhes fosse
estranho. A religião do cotidiano faz das opiniões um sistema
resistente contra o esclarecimento e, para manter-se enquanto
sistema, isso deve se fechar contra o pensamento crítico
(CLAUSSEN, 2012, p. 55).
Nesta normalidade, que o espírito cativo se recusa a romper,
a religião do cotidiano
64
produz terreno fértil para a banalidade do
mal. Na perspectiva em que destacava Hannah Arendt (2004b), a
recusa ao pensamento produz os Eichmanns e Himmlers que hoje,
na sociedade do consumo e nesse contexto da religião do cotidiano
apresentada por Claussen (2012), potencializam os horizontes mais
bárbaros.
64
Detlev Claussen (2012) apresenta a seguinte conceituação para o termo religião do
cotidiano: “[...] pode-se designar uma forma regressiva da autoconsciência, um sistema
psíquico conforme a massa dos partícipes médios da sociedade moderna, o qual confere aos
indivíduos que se sentem socialmente impotentes um sentimento de soberania. Este sistema
psíquico fornece um enquadramento para as experiências imediatas e, também, para as
participações nos meios de massa. As necessidades regressivas se encontram na religião do
cotidiano com normas infantis, com satisfações de pulsões narcísicas observadas por Janine
Chasseguet-Smirguel na sua investigação das perversões. Na religião do cotidiano, que é
virtualmente compartilhada por todo consumidor da cultura, encontram-se ocupações
narcísicas de pulsões, de que toda formação do eu precisa, e adulações manipulatórias de
potenciais consumidores” (CLAUSSEN, 2012, p. 56).
332
Segundo o autor, na religião do cotidiano, a consciência
pública é privatizada, conduzindo o desempenho de cada um em
acordo com aquilo que condiz com a maioria dos membros da
sociedade, no sentido da unidimensionalização e não da pluralidade
do pensamento ou da liberdade que se dá no campo da política.
Nessa linguagem do cotidiano, a submissão ao “todos” que se
apresenta, não é um compartilhamento político, mas a subsunção à
banalidade de uma existência não pensada. Neste sentido, ocorre
“[...] um desempenho de acordo com a massa dos membros da
sociedade que, nas formulações da linguagem cotidiana, aparece
como ‘todos fazem isso’ ou ‘na realidade todos pensam isso, mas
apenas não têm coragem de dizer’” (CLAUSSEN, 2012, p. 56).
A esta forma de pensar, característica dos nossos dias, faz-se
necessário o enfrentamento. Pela não-conceituação, pela não-
reflexão, pela simplificação que produz a indústria cultural, prepara-
se o consumidor para uma perspectiva de conhecimento que não
busca o entendimento, que não anseia pela verdade, mas aceita uma
realidade simples, compreensível, que não exige o esforço do
pensamento ou do fundamento do conceito. Deste modo, “as
produções da indústria cultural confirmam os indivíduos na sua
exigência narcísica. [...] Uma posse infantil é idealizada, uma
aparente disponibilidade sobre coisas materiais e espirituais
(CLAUSSEN, 2012, p. 57).
A fuga do entendimento da atualidade de Auschwitz é
sintoma de que a barbárie encontra espaço para sua continuidade.
Fortalecendo o preconceito, assimilando a mentalidade do ticket
discutida e, normalizando a semiformação, a indústria cultural
produz a semicultura que nos afasta do esclarecimento e encoraja a
333
regressão. Na expressão do holocausto assimilado, dissolve
Auschwitz e tudo o que representa, restando às consciências
liberadas do pensamento o sentimento de repulsa que, rapidamente,
se oblitera. Frente ao progresso que se cultua, na religião do
cotidiano e num entendimento humano que seja sadio para o
consumidor (CLAUSSEN, 2012), descomplicado e sem necessidade
de aprofundamento, acreditamos que avançamos para um mundo
melhorado, de benefícios tecnológicos, de saúde avançada, de
cultura democratizada. Cremos que Auschwitz é passado e o
antissemitismo, desconsiderado no seu contexto social, é estilizado
como “[...] variante antropológica religiosa ou em termos de cultura
nacional [...]” (CLAUSSEN, 2012, p. 59).
Contudo, como já discutimos no tópico sobre o
antissemitismo e a propaganda fascista, e, também, em acordo com
Claussen (2012, p. 59), entendemos que “o antissemitismo está
fundamentado na vida cotidiana da sociedade moderna como uma
parte constitutiva da religião do cotidiano conforme a massificação”.
Por isso, “a teoria crítica da sociedade caracterizou [...] a
sociedade moderna, que na Europa tomou o lugar da sociedade
agrária cristã anterior, como uma sociedade antissemítica”
(CLAUSSEN, 2012, p. 59). E, o que é assustador é o fato de que
ocorreu uma “[...] difusão generalizada de pontos de vista
antissemitas muito além das fronteiras alemãs e também do período
do nazismo” (CLAUSSEN, 2012, p. 59), o que não permite,
portanto, que relativizemos Auschwitz e, acima de tudo, exige que
nos questionemos sobre a sociedade que construímos que permitiu
Auschwitz e que continua embrenhada do antissemitismo, mesmo
334
após tanto tempo, sempre renovando suas representações
(CLAUSSEN, 2012).
Neste contexto, neste tempo fascista de uma sociedade
neoliberal, num processo que objetiva a destruição da política
tanto pela construção do ódio pelo primeiro, quanto pelo processo
de despolitização promovido pela segunda , que se conjuga com o
antissemitismo e a produção da indústria cultural, o não-
pensamento é solução de continuidade do legado da barbárie. No
Estado de exceção que não se encerra, vivemos a história num
constante em que o autoritarismo se apresenta mais à vontade e as
condições sociais e culturais que vicejam sob o filtro da indústria
cultural , favorecem a dissimulação da dominação e a
administração dos existentes.
Na imbricação entre tecnologia e frieza, a indiferença se
acentua e o escopo do fascismo se amplia. Empobrecido no
entendimento e nos conceitos, afeito à propaganda fascista, o sujeito
danificado se reduz ao consumo e, incapaz de perceber a
contradição, esconde-se na realidade normalizada, em que o pensar
não é opção. Novos cumpridores de ordens, novos manipuladores,
masoquistas, sádicos ou sadomasoquistas, num mundo que deforma,
pela semiformação, Auschwitz é um continuum que exige ser
contido.
Tantos anos depois, continuamos naquele dia. O muito que
podemos ter feito continua pouco, um instante, nesse tempo
homogêneo e vazio da história, que perdura e nos gera a sensação de
que o que se escreveu naquele momento parece ter sido escrito para
o agora. Por isso, no encerramento deste tópico, o resgate do texto
adorniano ao final de Educação após Auschwitz é salutar:
335
Benjamin percebeu que, ao contrário dos assassinos de gabinete
e dos ideólogos, as pessoas que executam as tarefas agem em
contradição com seus próprios interesses imediatos, são
assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os outros.
Temo que será difícil evitar o reaparecimento de assassinos de
gabinete, por mais abrangentes que sejam as medidas
educacionais. Mas que haja pessoas que, em posições
subalternas, enquanto serviçais, façam coisas que perpetuam
sua própria servidão, tornando-as indignas; que continue a
haver Bogers e Kaduks, contra isto é possível empreender algo
mediante a educação e o esclarecimento (ADORNO, 1995, p.
138).
Assim sendo, uma educação contra a barbárie é uma
educação para que Auschwitz não se repita. E, efetivamente, é uma
educação política, pois o que está em jogo na política, como nos
exortava Hannah Arendt (2011), não é a vida pessoal, a nossa
individualidade, pressupostos do liberalismo e sua perspectiva de
progresso, mas o mundo. O mundo comum, não apenas como local
da habitação humana, mas o mundo como um todo que contempla
a nossa existência e nossos feitos, nossa história e cultura, nossa arte.
Mundo que nos desafia, na dialética entre civilização e barbárie, a
romper com um legado de destruição e inaugurar um novo tempo,
um novo conceito de história que realmente promova a exceção a
tudo o que nos trouxe até aqui, nesta Era Atômica, uma era de
suspensão em que inauguramos o Fim do Tempo (ANDERS, 2013).
O mundo que, como planeta, mas também pensado como
fruto da ação humana, dado o nível de barbárie que alcançamos, vive
em constante risco pela capacidade de destruição que produzimos
pelas nossas próprias mãos e que, ao que tudo indica, não estamos
336
muito dispostos a repensar. Neste sentido, convém destacar que a
Terra ainda estará aqui e, certamente, será capaz de se recompor,
caso optemos pela nossa extinção. Possivelmente, o planeta não
sentirá nossa falta.
Da importância da política
Uma das questões principais levantadas por Hannah Arendt
(2004a, p. 38) na coletânea O que é Política? é expressa pelo seguinte
questionamento: “Tem a Política ainda algum sentido?”.
Segundo a autora, “para a pergunta sobre o sentido da
política existe uma resposta tão simples e tão concludente em si que
se poderia achar outras respostas dispensáveis por completo. Tal
resposta seria: o sentido da política é a liberdade” (ARENDT,
2004a, p. 38). Contudo, esclarece Arendt (2004a, p. 38), “essa
resposta não é, hoje, natural nem imediatamente óbvia”.
Neste sentido, aprofundar o entendimento, pensar o
pensamento já pensado, refletir sobre os preconceitos e sobre o lugar
comum em que colocamos a discussão política, são procedimentos
fundamentais para vasculharmos, de forma mais experiencial no
sentido do pensamento que experimenta , o significado de por que a
política ainda tem sentido.
Para Hannah Arendt (2004a, p. 25),
Em nosso tempo, ao se pretender falar sobre política, é preciso
começar por avaliar os preconceitos que todos temos contra a
política visto não sermos políticos profissionais. Tais
preconceitos, comuns a todos nós, representam algo de político
no sentido mais amplo da palavra: não brotam da soberba das
337
pessoas cultas e não são culpados do cinismo delas, que viveram
demais e compreenderam de menos. Não podemos ignorá-los
porquanto estão presentes em nossa vida, e não podemos
aten-los com argumentos porquanto refletem realidades
incontestáveis e, com maior fidelidade ainda, a atual situação
existente, de fato, justamente em seus aspectos políticos.
Superar os preconceitos, portanto, é a proposição inicial para
entendermos a importância da política, como nos incentiva Hannah
Arendt. Mesmo que os argumentos para não se discutir a política
possam ser diversos.
À luz do senso comum, o não gostar de política aparece como
justificativa sem passar, geralmente, pelo crivo do pensamento.
Simplesmente pelo processo da assimilação de um banalizado
desgosto social que vai sendo expresso a respeito da política.
Reproduz-se a expressão não gosto sem muitas vezes nunca se ter
refletido, efetivamente, sobre o porquê não se gosta.
Quando se esboça a reflexão, geralmente descamba o
pensamento para a exemplificação, mas não para a definição
conceitual e significação. Comumente, se associa o não gostar da
política com os políticos pelos exemplos, nada republicanos e
democráticos, que muitos deles manifestam publicamente. Neste
procedimento, portanto, a associação é o reforço de um estereótipo
que, à luz do pensamento weberiano, se desdobra a partir da questão
da política como vocação, assim expressada pelo sociólogo: “há duas
formas de exercer a política. Pode-se viver ‘para’ a política ou pode-
se viver ‘da’ política. Nada há de exclusivo nessa dualidade. Até, ao
contrário, geralmente se faz uma e outra coisa simultaneamente,
tanto na idealidade quanto na prática” (WEBER, 2001, p. 68).
338
Contudo, a significação da política, neste contexto do
estereótipo, fica restrita à perspectiva economicista e não alcança, na
questão demandada, a significação da política. Identificando-a
simplesmente com o que fazem os políticos, produzem um outro
estereótipo, o de que a política é da alçada dos políticos e não dos
homens e mulheres que habitam o mundo em sua pluralidade.
Como Sócrates que provocava seus interlocutores com a maiêutica
sobre os significados dos conceitos e das virtudes, o mesmo é
necessário fazermos com relação à política. É a isso que nos provoca
Arendt (2004a).
Como nos indica a filósofa, “[...] esses preconceitos não são
juízos definitivos. Indicam que chegamos em uma situação na qual
não sabemos pelo menos ainda nos mover politicamente”
(ARENDT, 2004a, p. 25). E, neste caminho, nos alerta:
O perigo é a coisa política desaparecer do mundo. [...] os
preconceitos se antecipam; ‘jogam fora a criança junto com a
água do banho’, confundem aquilo que seria o fim da política
com a política em si, e apresentam aquilo que seria uma
catástrofe como inerente à própria natureza da política e sendo,
por conseguinte, inevitável. “Por trás dos preconceitos contra a
política estão hoje em dia, ou seja, desde a invenção da bomba
atômica, o medo da Humanidade poder varrer-se da face da
Terra por meio da política e dos meios de violência colocados à
sua disposição, e estreitamente ligada a esse medo a
esperança de a Humanidade ter juízo e, em vez de eliminar-se
a si mesma, eliminar a política” através de um governo
mundial que transforme o Estado numa máquina
administrativa, liquide de maneira burocrática os conflitos
políticos e substitua os exércitos por tropas da polícia
(ARENDT, 2004a, p. 25-26).
339
Encontro da expectativa do senso comum com a perspectiva
do Estado totalitário, Arendt (2004a) retrata, diante da Era Atômica
(ANDERS, 2013) e do continuum de Auschwitz, a confusão que se
tem com relação à política em sua finalidade e de como ela é
utilizada, gerando a equivocada compreensão de que é desejável o
fim da política. Como temos tratado até aqui, o estado de exceção que
se perpetua neste tempo neoliberal ensaia seus arroubos para a
ditadura perfeita, dissimulando, para o existente, o significado da
importância da política visando à constituição de um desejo do fim
da política. Neste sentido, promovendo-se a despolitização e
reduzindo-se a política à perspectiva geral da relação entre
dominadores e dominados, gera-se uma utopia para os que assim
imaginam como positivo o fim da política. Segundo Arendt (2004a,
p. 26),
Sob tal ponto de vista, conseguiríamos, em lugar da abolição da
política, uma forma de dominação despótica ampliada ao
extremo, na qual o abismo entre dominadores e dominados
assumiria dimensões tão gigantescas que não seria mais possível
nenhuma rebelião, muito menos alguma forma de controle dos
dominadores pelos dominados. Esse caráter despótico não seria
modificado pelo fato de não se poder mais descobrir uma
pessoa, um déspota no contingente mundial visto o domínio
do bureau, não ser menos despótico pelo fato de ‘ninguém’
exercê-lo; pelo contrário, é ainda mais terrível porque nenhuma
pessoa pode falar com esse Ninguém nem lhe apresentar uma
reclamação.
Entender a política, portanto, a partir da perspectiva da
dominação, do poder e da violência, é a ideia classicamente
340
estabelecida pela tradição política do nosso tempo vazio e homogêneo
que, na dialética entre civilização e barbárie nos tem legado, na
perspectiva do progresso, a instrumentalização da política para uma
pretensão totalitária. Neste contexto, o afastamento de uma política,
cada vez mais favorecida e promovida pela sociedade administrada e
danificada, conduz-nos ao niilismo do puro desamparo em que,
nessa era de suspensão do devir, experienciamos o efeito da nadeidade
não-imaginada, conforme nos apresenta Günther Anders (2013, p.
2):
O perigo apocalíptico é tão mais ameaçador porque somos
incapazes de conceber a imensidade de uma tal catástrofe. Já é
difícil imaginar alguém como não-existindo, um amigo amado
como morto; mas comparada à tarefa atual da nossa filosofia,
aquela é brincadeira de criança. Pois o que temos hoje que
imaginar não é o não-ser de algo determinado dentro de um
contexto cuja existência pode ser dada como certa, mas a
inexistência desse próprio contexto, do mundo como um todo,
ao menos do mundo enquanto humanidade.
Entretanto, é na contramão da perspectiva danificada que
Arendt (2004a) compreende a política. Neste sentido, a vida política
contrapõe-se frontalmente à perspectiva fascista, da pretensão
totalitária, de domínio total pela violência e desfiguração dos
existentes. Representa ela, diante da barbárie, a esfera da resistência
na sua potencialidade de constituição do mundo comum, de um
mundo público que se contrapõe, efetivamente, ao não mundo
proposto pela destrutividade da barbárie fascista.
A política como condição humana ganha, para Arendt,
contornos decisivos a partir da descoberta de Auschwitz. Numa
entrevista para Günter Gaus, ao programa da TV alemã Zur Person
341
(Sobre a pessoa), Hannah Arendt “conta que o mundo desmoronou
para ela, de modo irreparável, quando ficou sabendo de Auschwitz”
(ALMEIDA, 2011, p. 52). Segundo Vanessa Sievers de Almeida
(2011, p. 52), é a barbárie deflagrada no século XX que move as
reflexões de Arendt sobre o mundo humano. Os pontos de partida
são o não mundo a possibilidade de destruir o espaço que nos
permite ser humanos e a pergunta sobre como podemos lidar com
o ocorrido”.
Por isso, baseando-se na pluralidade dos homens, a política
trata, segundo Arendt (2004a), da convivência entre os diferentes. É
a política a condição da ação, do agir humano, possibilidade de
transformação do mundo, na perspectiva de um mundo comum.
Para Hannah Arendt (2010, p. 8),
A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os
homens, sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde
à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens,
e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Embora
todos os aspectos da condição humana tenham alguma relação
com a política, essa pluralidade é especificamente a condição
não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam
de toda vida política. Assim, a língua dos romanos talvez o
povo mais político que conhecemos empregava como
sinônimas as expressões “viver” e “estar entre os homens” (inter
homines esse), ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens”
(inter homines esse desinere). [...] A pluralidade é a condição da
ação humana porque somos todos iguais, isto é, humanos, de
um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que
viveu, vive ou viverá.
342
Neste sentido, denota Hannah Arendt a questão da
igualdade no campo da política, por isso lócus da liberdade também
e, também, a singularidade de cada existente.
Apesar da célebre afirmação aristotélica de que o homem é um
animal político, o que nos tem levado muitas vezes a interpretar
classicamente uma natureza política do homem, como uma essência,
não é neste contexto que esta se dá. Para Arendt, “o homem é a-
político. A política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente
fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substância
política original” (ARENDT, 2004a, p. 23).
Com o desenvolvimento da política na Grécia, assistimos ao
surgimento de duas esferas que, para os gregos, constituíram-se em
dois espaços a esfera pública e a esfera privada , distintos,
específicos e que, sem a confusão de um para com o outro, o que se
valorizava, mais do que uma possível individualidade, era a vivência
de um espaço da cidadania.
Por isso, podemos entender que o homem recebeu uma
segunda vida, o seu bios politikos que não era natural, mas que se
daria a partir do surgimento da cidade-Estado. É, pois, neste
momento, que se estabelece uma clara distinção dos domínios do
público e do privado, constituindo-se o primeiro num espaço entre-
os-homens que não era o espaço da casa e da família, mas o da praça
da cidade, a Ágora, representação da esfera pública por excelência.
Neste contexto, nos esclarece Arendt (2010, p. 28) que,
Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de
organização política não apenas é diferente dessa associação
natural cujo centro é o lar (oikia) e a família, mas encontra-se
em oposição direta a ela. O surgimento da cidade-Estado
343
significou que o homem recebera, “além de sua vida privada,
uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada
cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma nítida
diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o
que é comum (koinon)”
65
.
Arendt (2010) refere-se ao lar e à família como uma
associação natural, considerando o contexto de que o mesmo se dá
com os outros tipos de animais que se associam para sua preservação
ou subsistência e, neste sentido, não constitui o homem um espaço
político, mas econômico oikia na perspectiva do atendimento
destas necessidades.
Habitamos o mundo como homens e, em entendimento
com Arendt (2011), são os homens, na sua pluralidade, que habitam
o mundo. Nesta condição, os homens criaram os espaços para sua
convivência, distinguindo-os, em algum momento, na sua esfera
pública e privada. Para ela, os gregos foram os grandes criadores
deste feliz momento, ao separarem as coisas da casa oikos das
coisas da vida pública koinon.
Ali, nasce a política verdadeiramente como exercício da
liberdade que, em sua análise, com a qual concordamos, só é possível
na esfera pública. É importante destacar que é por esta experiência,
a de ser livre o homem, que se manifestava a importância do espaço
público.
Neste sentido,
A pólis diferenciava-se do lar pelo fato de somente conhecer
“iguais”, ao passo que o lar era o centro da mais severa
65
Arendt, citando Werner, Jaeger. Paidéia (1945), III, 111.
344
desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar
sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e
também não comandar. Significava nem governar nem ser
governado. Assim, dentro do domínio do lar, a liberdade não
existia, pois o chefe do lar, seu governante, só era considerado
livre na medida em que tinha o poder de deixar o lar e ingressar
no domínio político no qual todos eram iguais. É verdade que
essa igualdade no domínio político tem muito pouco em
comum como o nosso conceito de igualdade: significava viver
entre pares e ter de lidar somente com eles, e pressupunha a
existência de “desiguais” que, de fato, eram sempre a maioria
da população na cidade-Estado. A igualdade, portanto, longe
de estar ligada à justiça, como nos tempos modernos, era a
própria essência da liberdade: ser livre significava ser isento da
desigualdade presente no ato de governar e mover-se em uma
esfera na qual não existiam governar nem ser governado
(ARENDT, 2010, p. 38-39).
Por isso, para Arendt (2011), a compreensão da liberdade
não se dará a partir daquilo que se arraigou em nossa cultura
ocidental como sendo o problema da vontade do indivíduo, de sua
relação entre o poder e o dever, classicamente entendido como algo
de resolução interior simplesmente e que exigiu o afastamento do
mundo, da vida pública.
Para ela, desde a opção platônica de afastamento do filósofo
das “coisas do mundo”, há uma dicotomização entre a Filosofia e a
Política que nos levou a interpretar o campo da liberdade,
supervalorizada a partir da modernidade e das concepções liberais,
como o espaço do indivíduo, de seu confinamento no espaço do
privado e da vida privada.
345
Restringiu-se, assim, a concepção da liberdade geralmente à
esfera da vontade e da deliberação do indivíduo, de sua ação no
campo da interioridade, mas não necessariamente no espaço e na
relação entre outros.
Para Hannah Arendt (2011), o problema da liberdade não
surgiu do pensamento sobre a questão, mas da experimentação entre
ser livre e não ser livre, aquilo que, para os fundadores da Pólis, foi a
exigência da criação do espaço público, que permitiu aos que
estavam liberados de suas necessidades, um pleno e efetivo exercício
da política.
Portanto, política e liberdade se correspondem não como
próximos, mas como sendo a liberdade, para a pensadora, a própria
raison d’être da política. Neste sentido, só na esfera do espaço
público, exercício da vida política, teríamos a real possibilidade da
verdadeira liberdade.
Ao constatarmos isto, é inevitável o esclarecimento de que,
o espaço privado que, para os gregos, era o lar, lugar da economia
oikos e do que lhe era próprio idion , não era, em hipótese
alguma, o espaço político e tampouco se autorizava que tais questões,
privadas e da economia privada, adentrassem o campo da política.
De acordo com Arendt (2010, p. 46-47),
Quem quer que vivesse unicamente uma vida privada um
homem que, como o escravo, não fosse admitido para adentrar
o domínio público ou que, como o bárbaro, tivesse escolhido
não estabelecer tal domínio não era inteiramente humano.
Hoje não pensamos mais primeiramente em privação quando
empregamos a palavra “privatividade”, e isso em parte se deve
346
ao enorme enriquecimento da esfera privada por meio do
moderno individualismo
.
Por isso, ainda para os gregos, a democracia representava,
efetivamente, o exercício da liberdade, esfera da política, não como
mera vontade da maioria ou como conjugação de interesses
particulares e privados, mas como compreensão da existência e da
busca de um “bem comum” – koinon. Neste sentido,
Quem ingressasse no domínio político deveria, em primeiro
lugar, estar disposto a arriscar a própria vida; o excessivo amor
à vida era um obstáculo à liberdade e sinal inconfundível de
servilismo. A coragem, portanto, tornou-se a virtude política
por excelência, e só aqueles que a possuíam podiam ser
admitidos em uma associação que era política em conteúdo e
propósito e que por isso mesmo transcendia o mero estar junto
imposto igualmente a todos escravos, bárbaros e gregos
pelas premências da vida (ARENDT, 2010, p. 43-44).
Essa ideia de comum, contudo, não representaria aquilo que
classicamente vem definido muito mais como “interesses comuns”,
a partir da modernidade e da ideia de sociedade que Arendt (2010)
apresentará, em A condição humana, como uma esfera híbrida,
contrapondo-a às concepções de público e privado. Neste sentido, a
sociedade, uma esfera regida pela economia derivada do oikos, da
casa e pela reunião dos interesses privados dos “sócios” e não
pelo bem comumkoinonia. Escreve Arendt (2010, p. 46):
O aparecimento da sociedade a ascensão da administração do
lar, de suas atividades, seus problemas e dispositivos
organizacionais do sombrio interior do lar para a luz da esfera
347
pública não apenas turvou a antiga fronteira entre o privado e
político, mas também alterou o significado dos dois termos e a
sua importância para a vida do indivíduo e do cidadão, ao
ponto de torná-los irreconhecíveis.
Hibridamente definida, a sociedade nos levaria à confusão
entre público e privado, tornando muitas vezes público o que deveria
ser privado e expondo ao público o que deveria estar no cuidado, na
proteção do privado. Para ilustrar, poderíamos pensar nas Redes
Sociais, por exemplo, em que as pessoas postam instantaneamente
fatos da vida privada, como o nascimento de um filho, tornando
público o que mereceria o cuidado e a proteção e, por outro lado,
toleram a “privatização” no sentido de tornar privada ou “ocultar”
na apresentação das contas públicas do Estado.
Por fim, o espaço público da política, neste sentido da
liberdade, não é a sociedade aqui entendida, mas o espaço do bem
comum que, efetivamente, não teríamos em plenitude na nossa
contemporaneidade.
A esfera privada, por sua vez, era a esfera da proteção da vida,
da preservação desta no sentido de sua manutenção e, por isso,
mantida sob cuidados e atendimento de suas necessidades.
Nesta condição, a existência dos homens plurais nestas
esferas nos permite falar da pessoa, do singular, da pessoalidade,
daquele que pensa e que é capaz de agir, julgando e fundando sua
existência em determinadas condições que sejam compreendidas
como princípios ou valores, que permitam aos homens serem
coerentes consigo mesmos.
Evidentemente, não se contava aqui com o ódio fascista e seu
projeto de destruição da política, mas exatamente pelo que
348
representa a política neste sentido arendtiano, é possibilidade de
resistência.
349
Capítulo VI
Considerações sobre o campo educativo:
por uma Educação emancipadora.
É bem verdade que o que é suspeito não é a representação da
realidade como um inferno, mas a exortação rotineira a fugir
dela. Se o discurso ainda pode se dirigir a alguém hoje, não é
nem às massas, nem ao indivíduo, que é impotente, mas antes
a uma testemunha imaginária, a quem o entregamos para que
ele não desapareça totalmente conosco
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 210).
De certo modo, é esta a sensação, tão bem retratada por
Adorno e Horkheimer nesta citação, que nos acomete na produção
acadêmica, especificamente em se tratando de uma tese. Num frisson
que perpassa a alma quando do término e, mesmo um certo gozo
depois do encontro praticamente amoroso com o pensamento
elaborado e registrado, contudo, fica a impressão de que, além de ser
um projeto sempre inacabado, permanece aquela sensação de que as
palavras estão jogadas ao vento, imaginando tantas pessoas com
quem gostaríamos de dialogar e que talvez nunca consigamos fazê-
lo. Por isso, o discurso dirigido a uma testemunha imaginária é,
inevitavelmente, uma grande esperança.
Nestes tempos de Redes Sociais e textos minimalísticos, de
propagação de ódio e fake news, em que o diálogo foi suprimido, o
relacionamento humano, que precisa do contato e do afeto parece
350
ter sido transformado em likes e views. Sublimando o prazer que
nunca será alcançado, encontra-se a oferta de uma euforia
momentânea que, rapidamente, a cada deslizamento do dedo na tela
do gadegt utilizado, necessita de nova manipulação, de uma nova
“curtida”. Evidentemente, é o mecanismo, a técnica desenvolvida
para que se possa, ao longo de um tempo exaustivo para a vista e
para o físico, concentrados num pequeno visor artificialmente
iluminado, sentirmo-nos recompensados, aceitos e amados, mesmo
que não profundamente realizados.
É a consumação da sociedade de consumo que, no seu máximo
potencializado, como se destaca numa fala de O dilema das Redes
66
,
transformou-nos, para além de consumidores naquilo que
especialmente aos viciados em drogas é atribuído como título de
classificação: usuários. Numa sociedade administrada e danificada,
afeita à técnica, potencializamos a frieza burguesa e a indiferença.
Urge pensarmos. Urge agirmos.
A história não é inexorável e se constrói pelas
potencialidades. É dialética. Pode ser esperançosa, no sentido de que
é possível reescrevê-la. Entretanto, o continuum de Auschwitz nos
coloca o desafio, o enfrentamento político, que nos possibilita
romper com a suspensão em que se encontra a história em seu devir.
A Era Atômica, apontou Günther Anders (2013), nos trouxe ao
Tempo do Fim que, a qualquer momento, pode converter-se no Fim
do Tempo.
66
O dilema das Redes: trata sobre o processo de manipulação das subjetividades pelas Redes
Sociais. Documentário produzido pela NETFLIX em associação com a ARGENT Pictures.
Produção Executiva de Laurie David et al. Direção de Jeff Orlowski. Disponível no serviço
de streaming NETFLIX.
351
Nossa esperança, como nos escreve Walter Benjamin (2012,
p. 249, tese 14), é que “a história é objeto de uma construção cujo
lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de
‘tempo de agora’”. Segundo ele, “a Roma antiga era para Robespierre
um passado carregado de ‘tempo de agora’, que ele fez explodir para
fora do continuum da história. A Revolução Francesa via-se como
uma Roma ressurreta” (BENJAMIN, 2012, p. 249). Na relação
dialética entre passado e presente, para um futuro que se desenhe,
está a linha tênue que se manifesta na ideia de progresso e o uso que
faz dela a sociedade administrada. Na concepção que predomina, “a
ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da
ideia de seu andamento no interior de um tempo vazio e
homogêneo. A crítica da ideia desse andamento deve estar na base
da crítica da ideia do progresso em geral” (BENJAMIN, 2012, p.
249, tese 13).
Segundo a perspicaz observação de Benjamin (2012, p. 249),
“a moda tem um faro para o atual, onde quer que ele se oculte na
folhagem do antigamente. Ela é um salto do tigre em direção ao
passado. Ele se dá, porém, numa arena comandada pela classe
dominante”. Entretanto, na ruptura com esse tempo homogêneo e
vazio que se estabelece na perspectiva da dominação, “o mesmo
salto, sob o céu aberto da história, é o salto dialético da Revolução,
como a concebeu Marx” (BENJAMIN, 2012, p. 249, tese 14).
Por isso, retomando o pensamento adorniano e a
singularidade arendtiana, vale a insistência em sistematizar o pensar,
em desafiar-se para elaborar o discurso, a consulta aos grandes
homens e mulheres, que, mesmo localizados no seu tempo, ao longo
da história, nos legaram seus registros, escritos, teses e testemunhos
352
do ato do pensamento, com quem ainda podemos conversar e
dialogar, encontrá-los em seus escritos e registros e, neste momento,
cumprir nosso desígnio como suas testemunhas imaginárias.
Neste sentido, compreendemos a Filosofia como esta
possibilidade de encontro, de conversas e diálogos, de uma troca de
cartas entre os que teimam em registrar de forma a insistir na nossa
condição humana , o pensamento, os sentimentos, nossa
experiência e análise estética, nossa percepção de mundo, princípios
e sonhos. Também nossas utopias e nossos medos, com as possíveis
distopias que se mostram como pré-anúncio da barbárie que, às
vezes, não sabemos descrever, mas parece que conseguimos perceber.
Barbárie que pode se manifestar de uma hora para outra e nos levar
novamente ao oposto da nossa humanidade. Barbárie que,
efetivamente, se instalou de modo até então impensado, com
Auschwitz, e que mantém seu continuum no tempo, naquele tempo
vazio e homogêneo.
Deste modo, faz-se necessário enfrentar o “inferno
normalizado”, desnudar a exploração, as contradições, desnormalizar
o que tem sido normalizado, desnaturalizar o que foi naturalizado.
Perguntar as perguntas que nunca perguntamos, porque sempre
recebemos respostas antes mesmo de fazê-las. Conversar sobre o que
nunca conversamos, porque sempre dissemos que não “era hora de
conversar sobre isso ou aquilo”. E essa hora nunca chegou. Escutar
as músicas que nunca escutamos, porque enquadrados na
“quadratura do círculo”
67
, nunca ousamos romper com os padrões
67
O conceito pode ser compreendido a partir das questões trabalhadas por Adorno em seu
artigo com George Simpson intitulado Sobre a música popular. Segundo os autores, “a
composição escuta pelo ouvinte. Esse é o modo de a música popular despojar o ouvinte de
353
da indústria cultural. Por fim, mas não por esgotado, experimentar
esteticamente o que nunca experimentamos e como nunca
experimentamos, pois na estética comprometida da sociedade
administrada e danificada, nosso gosto, nossa visão e nossa
experienciação se resumem cotidianamente à padronização.
Seja como for, diante do contexto em que nos encontramos
nessa sociedade do consumo, retomando a sensação inicial, é
fundamental que não abdiquemos do discurso, da fala. Enfim, que
não se decline da esperança, nem de registrá-la. E, em acordo com
Adorno, entregar nosso pensamento sistematizado a uma
testemunha imaginária se apresenta como uma ótima opção.
Por isso, os estudos sobre o fascismo e a discussão sobre ele
não são para, como pode ser a expectativa à primeira vista, realizar
uma análise quantitativa ou estatística da questão do fascismo ou de
seus adeptos. Neste contexto, a colaboração da psicalise sempre
ocorreu na perspectiva qualitativa do entendimento da subjetividade
que se dá na constituição do caráter humano. Como registrou
sua espontaneidade e promover reflexos condicionados. Ela não somente dispensa o esforço
do ouvinte para seguir o fluxo musical concreto, como lhe dá, de fato, modelos sob os quais
qualquer coisa concreta, ainda remanescente, pode ser subsumida. A construção
esquemática dita o modo como ele deve ouvir, enquanto torna, ao mesmo tempo, qualquer
esforço no escutar desnecessário. A música popular é ‘pré-digerida’, de um modo bastante
similar à moda dos digest de material impresso” (ADORNO; SIMPSON, 1986, p. 121).
Mais à frente, estabelecem uma correlação entre o processo de estandardização na produção
da música popular, na perspectiva da indústria cultural e a sensação de escolha do ouvinte,
como se ele fosse livre para escolher. Esclarecem os autores que “o correspondente
necessário da estandardização musical é a pseudo-individuação. Por pseudo-individuação
entendemos o envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livre-escolha,
ou do mercado aberto, na base da própria estandardização. A estandardização de hits
musicais mantém os usuários enquadrados, por assim dizer escutando por eles. A pseudo-
individuação, por sua vez, os mantém enquadrados fazendo-os esquecer que o que eles
escutam já é sempre escutado por eles, ‘pré-digerido’” (ADORNO; SIMPSON, 1986, p.
123).
354
Contardo Calligaris (2020), em sua coluna na Folha de São Paulo,
tratando sobre o livro de Antonio Scurati, intitulado “M. O Filho
do Século”, uma biografia de Benito Mussolini:
[...] a chegada do fascismo ao poder (e sua persistência lá) foi
permitida ou facilitada por uma série de pequenas ou grandes
covardias (do rei, de uma parte do empresariado etc.), mas ela
não teria sido possível se a própria feiura do fascismo não tivesse
seduzido e conquistado a massa dos italianos. [...] o fascismo se
insinuou nos corações e nas mentes de quase todos, inclusive
nas fileiras da própria militância antifascista. É como se cada
italiano tivesse sido seduzido por ao menos um traço do regime,
da doutrina e da militância. Houve os que eram atraídos por
um patriotismo ufanista, os que achavam “viril” a violência
assassina da milícia, os que perdoavam sua ignorância graças ao
anti-intelectualismo fascista, os que autorizavam assim seu
próprio racismo, seu machismo, sua boçalidade. [...] a obra de
Scurati leva o leitor a interrogar o fascista nele mesmo. Qual
parte de mim teria sido conquistada pela fúria insensata desse
horror? Quem é o fascista em mim? (CALLIGARIS, 2020, p.
3-6).
Neste sentido é que falamos da atmosfera fascista e, como já
explicitamos anteriormente, da tese de que vivemos um tempo de
fascismo.
Portanto, identificar os potenciais sociais para o fascismo, ou
a dinâmica mecanicista e logística que envolve a implantação de um
modelo como tal, são elementos que não podem ser desprezados,
mas cumpre reafirmar o entendimento de que não é uma possível
revitalização desse modelo ou reimplantação do hitlerismo o que
acreditamos que ocorreria.
355
Na sua potencialidade destrutiva, na atmosfera que nos
envolve, nossa identificação com o fascismo tende a produzir
horrores maiores e sempre impensáveis do ponto de vista da política
e da vida democrática. Especialmente se, cientes do fenômeno e de
sua efetividade na história trágica do século XX, constituindo-se na
nova barbárie, naquela que nunca vislumbráramos antes, que não
elaboramos e que não tratamos desse passado.
Deste modo, retomando nosso incômodo inicial, a
contemporização do problema ou o reducionismo academicista à
discussão de que, se é possível a “volta do fascismo”, se não é exagero
ou abuso considerar este momento como já de um presente fascista,
reiteramos o entendimento de que a discussão precisa transpor esses
limites observacionais. Não é uma questão de implantação do
fascismo, mas de como desconstruir este tempo fascista, sua atmosfera
favorável, que permeia nossas democracias, vidas pessoais e
familiares, religiões e grupos sociais das mais diversas estirpes.
Auschwitz mora ao lado. Continua prenhe em nossas existências.
Como o preconceito e o racismo, por exemplo, congêneres e
indissociáveis em sua gênese, o fascismo é estrutural em sua
constituição. Se aflorou num momento histórico de forma
organizada e estruturada administrativamente, e foi combatido pela
manifesta excrecência que representou, seu grande trunfo
atualmente não parece ser a proposição ou a repetição do modelo
laboratorial que o produziu e apresentou-o ao mundo. Disseminado,
nunca se reduziu a um coletivo de desajustados. Sua manifestação e
potencialidade destrutivas continuam presentes nos meandros da
sociedade do neoliberalismo, que produzimos, e, na perspectiva da
356
nossa formação humana, que, na sua complexidade e nas suas
contradições, merece todo cuidado na educação.
Neste contexto, educar para um tempo de agora num tempo
vazio e homogêneo é o grande desafio. Educar para a emancipação
num tempo fascista sob a égide do neoliberalismo é, certamente, o
desafio de educar a contrapelo.
Neste sentido, retomamos aqui algumas das questões que
nos propúnhamos inicialmente, nos nossos primeiros ensaios: é
possível ainda educar num mundo em que o legado é a barbárie?
Como pensar, vivenciar o pensamento numa sociedade que
privilegia, cada vez mais, o não pensar?
O pano de fundo se estabelece na relação entre educação e
política e a preparação para o mundo público, espaço efetivamente
possibilitador da ação humana, enquanto transformadora e
constituidora do mundo comum, que se dá entre mulheres e
homens, na singularidade dos existentes e na pluralidade das
existências em uma efetiva constituição do inter homines esse. Como
elemento constitutivo de toda perspectiva emancipatória, do
encontro com a autonomia, está a importância do pensamento.
Considerando os estudos realizados e o permanente estado
de exceção a que estamos submetidos, evidentemente não teremos
uma resposta positiva. Nesse contexto, ela será mais negativa. Na
perspectiva da dialética negativa. Neste sentido, de resistência e não
de ufanismo.
Com isso não se entende que não se deva educar num
mundo em que o legado é a barbárie ou que não seja possível pensar
sob essa condição. Ao contrário. Certamente, é necessário que
eduquemos e que provoquemos o pensamento. O que não podemos,
357
também certamente, é vislumbrar um mundo idílico nestes
entendimentos. Na sociedade do espetáculo que Debord (1997) nos
desnuda, o tempo vazio e homogêneo da história se realiza no
continuum de Auschwitz.
Neste contexto, desenvolvemos nosso pano de fundo,
passando pela questão de uma educação emancipadora como uma
educação política, que tem como constitutiva a importância e a
necessidade da esfera pública e que não abra mão do pensamento para
a autonomia que emancipa, sendo fundamental contra a banalidade
do mal.
Inicialmente, é bom destacar, a concepção de educação que
apresentamos trata da esfera escolar, mas, evidentemente, contempla
a percepção da amplitude da realidade extra pedagógica que a
envolve. Ou seja, o processo educativo é sistematizado e
fundamentalmente necessário no espaço pedagógico, mas,
inevitavelmente, estamos todos, no nosso processo de formação
humana, submetidos a um universo de interações e influências fora
desse escopo. Isso fica claro nos estudos apresentados sobre a
indústria cultural, o antissemitismo e a propaganda fascista, por
exemplo, além das pesquisas de La personalidad autoritaria (1965).
Uma educação política, neste contexto, precisa extrapolar os
muros da escola na sua disseminação formativa e comporta uma
educação social.
Com Adorno (1995), entendemos que o investimento na
educação contra a barbárie já deve focar a primeira infância e, com
Hannah Arendt (2011), que aos adultos cabe o cuidado com os
novos que chegam ao mundo, tanto para prote-los do mundo
quanto para proteger o mundo deles.
358
Não pensamos também a educação, neste contexto, como
fechamento, mas amplitude. Ao considerarmos o conceito de
formação, não o vemos como um estabelecido, um definido, mas
como processo que não pode ser estanque, mas contínuo, numa
perspectiva deviriana e sem o controle absoluto daquele que forma
sobre aquele que se forma, no sentido de se promover a autonomia.
A autoridade é importante, jamais o autoritarismo. A
primeira termina quando o segundo se impõe. A primeira é
reconhecimento, o segundo é usurpação. É da ruptura com a
autoridade que se chega à autonomia. É da expansão e normalização
do autoritarismo que se chega ao fascismo.
Portanto, não se trata de banir ou decretar a morte da
autoridade, ou que se mantenha um levante contra ela. Mesmo
quando Adorno (1995) afirma em sua conversa com Hellmut
Becker, relatada no texto Educação contra a barbárie, “[...] que a
perpetuação da barbárie na educação é mediada essencialmente pelo
princípio da autoridade [...]” (ADORNO, 1995, p. 166), o que ele
está expressando é sua preocupação com o autoritarismo e não
contra a autoridade. Isto fica claro na sequência de sua fala quando
registra o seguinte:
A tolerância frente às agressões, colocada com muita razão pelo
senhor como pressuposto para que as agressões renunciem a seu
caráter bárbaro, pressupõe por sua vez a renúncia ao
comportamento autoritário e à formação de um superego
rigoroso, estável e ao mesmo tempo exteriorizado. Por isto a
dissolução de qualquer tipo de autoridade não esclarecida,
principalmente na primeira infância, constitui um dos
pressupostos mais importantes para uma desbarbarização
(ADORNO, 1995, p. 166-167, grifos nossos).
359
Deste modo, ao propormos o enfrentamento do
autoritarismo, visando a uma educação emancipadora, o temos feito
conscientes de que não implica isto, em nenhum momento de nossa
parte, a proposição da supressão da autoridade dentro do âmbito
escolar, especialmente.
Apesar disso, nos diz Hannah Arendt (2011, p. 128) que é
um fato “a maioria das pessoas concordar em que uma crise
constante da autoridade, sempre crescente e cada vez mais profunda,
acompanhou o desenvolvimento do mundo moderno em nosso
século”. Neste sentido, muito se perdeu na formação com a crise da
autoridade que atingiu a escola na figura do professor. Muitos
passaram a confundir autoridade com autoritarismo. Para outros,
tem sido apenas o momento de manifestar mais tranquilamente o
seu fascismo.
Concordamos com a autora também que “essa crise,
manifesta desde o começo do século, é política em sua origem e
natureza” (ARENDT, 2011, p. 128). E isto, efetivamente, refletiu
no campo da educação.
A autoridade, independentemente da relacionada ao
exercício da docência ou a qualquer perspectiva do espaço humano,
como a do ancião que acumula a sabedoria, compreendemos
constitui-se não por violência, força, coerção ou argumentação, mas
por concessão. Neste sentido, manifesta-se pelo reconhecimento e
não pela usurpação do direito. Assim nos esclarece Hannah Arendt
(2011) em seu ensaio Que é Autoridade?, sobre o que o constitui a
autoridade:
360
[...] a autoridade exclui a utilização de meios externos de
coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo
fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a
persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um
processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a
autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária
da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre
hierárquica. Se a autoridade deve ser definida de alguma forma,
deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força
como à persuasão através dos argumentos (ARENDT, 2011, p.
129).
Por isso, uma educação política não suprime a autoridade.
Combate o autoritarismo. E, quando a criança se torna adulta, na
participação do mundo público, da esfera pública, da vida política,
que só é possível entre os semelhantes, mulheres e homens que
constituem um mundo comum, não é a autoridade que prevalece,
mas a igualdade.
Não a falaciosa igualdade do liberalismo autoritário de
mercado e nem tampouco a igualização homogeneizadora do
neoliberalismo fascista. Essas concepções com seu projeto de mundo
excludente e necrófilo têm produzido os germes do totalitarismo
sempre presente que, vez ou outra atualmente mais vezes do que
outra , encontra estruturas psíquicas favoráveis para os seus
necroprojetos de Estados suicidários.
Como demonstramos ao longo do texto, não se explica o
autoritarismo e o fascismo simplesmente por fatores psicológicos.
Tampouco exclusivamente por fatores materiais e condições
objetivas de sobrevivência. É no amálgama das estruturas psíquicas
comprometidas ou seduzidas e do progresso produzido pela
361
sociedade administrada e danificada, da ratio instrumental, da frieza
burguesa e da indiferença, afeita à técnica e ao consumo, que surgem
os Eichmanns, os Himmlers e se vai, do pogrom aos campos de
extermínio.
Relembrando a recomendação de Adorno (1995), em
Educação após Auschwitz, uma inflexão para o sujeito, para suas
condições subjetivas que favorecem a barbárie, é imperativa para a
desbarbarização. Não é nas vítimas que estão os problemas ou a
culpa, mas nos perseguidores é que se deve buscar as motivações. Em
uma sociedade administrada e danificada, que perpetua o racismo,
que aceita o machismo em que a vítima do estupro ainda é avaliada
pela roupa que usava ou pelos motivos que poderia ter dado ao
violentador , ainda estamos mais próximos de Auschwitz do que de
seu ocaso. Como nos explicitaram Freud (1978), Adorno e
Horkheimer (1985), nosso processo civilizatório continua prenhe do
anticivilizatório.
Portanto, retomando a questão da esfera pública e de uma
educação política, o ódio do fascista à democracia é o incômodo
recalcado com a pluralidade e a diversidade que, fica claro na
Dialética do esclarecimento (1985), não é comportada na perspectiva
da ordem que, em sua violência pelo progresso, submete ou elimina
os existentes que divergem do ideal de um mundo
unidimensionalizado.
É somente na esfera pública que somos iguais porque livres.
Livres das necessidades do cotidiano da vida pelo menos naquele
tempo de agorapara nos encontrarmos na Ágoraa Praça Pública
dos gregos e construirmos um mundo comum, nossa história. Na
praça, no espaço público e não nos quartos privados é que se
362
discutem os assuntos humanos. Nos quartos privados, geralmente
descansamos, amamos e geramos outros humanos. Mas, no tempo
fascista em que vivemos, parece que produzimos outros substratos.
Por isso que, na política, também não cabe a autoridade,
pois, campo das pessoas emancipadas e livres, é o encontro das
autonomias nas suas singularidades, pluralidades e diversidades que
projetam a história, no seu tempo de agora e produzem nova história.
É na política, condição humana, que temos a possibilidade da ação,
do agir que transforma ou reforma, que conserva e que avança, não
para um progresso da história, mas uma história humanizada que
suprima todo estado de exceção que nos reporta sempre a um tempo
vazio e homogêneo.
Dando continuidade ao raciocínio anterior, a autoridade se
concede por reconhecimento, implicando assim que quem tem
autoridade a tem por reconhecimento dos demais. Não pode ser
fruto de uma imposição ou da simples regração por força de lei.
Neste sentido, falamos de um fundamento da autoridade, não de sua
existência técnica que muitas vezes vivenciamos, como a de cargos e
funções. O que também não autoriza o autoritarismo. Mas nos
fundamentos da autoridade, o reconhecimento é a sua essência.
Por isso encontramos professores que não precisam gritar ou
extrapolar nas suas atitudes, pois o que conquistaram e tem como
reconhecimento perante sua sala de aula é exatamente uma condição
de autoridade. O professor autoritário é temerário. Como o fascista
sadomasoquista que pisa sob a cabeça dos que considera inferiores e
submete seu pescoço à bota de seus superiores. Cumpre ordens e,
como não alcançou a autonomia, alcança uma gratificação libidinal
363
com a humilhação que sofre, podendo humilhar os que passa a odiar
por preconceito ou por comodidade.
Assim sendo, a concepção do educador se aproxima do
cuidado, daquele que forma, pressupondo formação humana, e se
afasta do controle formatador, do modelo que de-forma. Isso não
significa não ter projeto, método, sistematização. Ao contrário,
implica realçar novamente a perspectiva desses procedimentos como
meios, e não fins do processo de formação, para que não caiamos
ingenuamente na sedução da formatação. As infindáveis discussões
da teoria e da prática na educação, das metodologias ou dos
fundamentos são apenas a superficialidade da questão. A finalidade
é a formação. A técnica é o meio, não a consumação.
Neste sentido que, para Hannah Arendt (2011), a crise na
educação é política e, por detrás, está presente “mais que a
enigmática questão de saber por que Joãozinho não sabe ler”
(ARENDT, 2011, p. 222).
Formar pessoas é muito diferente de formatá-las. Em acordo
com o pensamento arendtiano, compartilhamos o entendimento de
que,
A educação está entre as atividades mais elementares e
necessárias da sociedade humana que jamais permanece tal qual
é, porém se renova continuamente através do nascimento, da
vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além
disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser.
Assim, a criança, objeto da educação, possui para o educador
um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e
se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e
é um ser humano em formação (ARENDT, 2011, p. 234-235).
364
Para Hannah Arendt (2011), a educação é formação, não
fabricação. Nós fabricamos produtos para nossa subsistência, para
suprir alguma necessidade e com alguma utilidade. Por isso, sobre o
produto eu tenho controle de fabricação. Posso descartá-lo se estiver
com defeito, ou consertá-lo. Sobre o educando, a ascendência do
professor é formativa. Não ter o controle significa não saber o
término do processo da vida formativa. O formar não é
determinação da vida do outro, pois se deve buscar a emancipação.
Não fabricamos pessoas.
Podemos educar tecnicamente, metodologicamente, as
pessoas do mesmo jeito, com os mesmos padrões e protocolos, mas
não teremos os mesmos resultados. São pessoas. E quanto mais se
descobrem como pessoas, quanto mais se humanizam, mais devem
fugir ao controle.
É o importante momento da ruptura com a autoridade, no
desnudamento da vida que descobre a imperfeição dos pais ou as
fraquezas da professora ou do professor admirado. Contudo, não é
morte, apesar do luto. É processo necessário, para quem visa à
autonomia do que estava a seu cuidado. Não significa perda de
respeito, mas encontro das singularidades.
Por causa destas condições, a limitação, quando não funestas
intencionalidades, de processos de avaliação escolares
internacionais, nacionais ou regionais que, na métrica da operation
do esclarecimento cientificista dos modernos, computa ao
quantitativo o que só é possível avaliar pelo qualitativo. Na
perseguição à objetividade, pelo desejo da eficácia e o deleite do
cálculo, suprime-se o entendimento e atualiza-se, mais e novamente,
365
o lema baconiano do saber é poder, alijando o conhecimento do
verdadeiro deleite epistêmico.
Avaliação é processo. E a métrica é necessária. Mas,
novamente, é meio e não fim e, embora a estatística possa nos
apresentar a realidade, a conhecemos, realmente, no encontro
com as singularidades. Por isso, mesmo a avaliação comporta a
perspectiva política.
Na dinâmica da educação, a dialética se apresenta no
continuum da formação. Não deve ser o ocultamento o que se mire,
mas o desnudamento da contradição, que vise a emancipar o
pensamento e a existência, num projeto que não termine pelas mãos
do educador, mas que garanta ao educando autonomia e a
experiência do encontro consigo mesmo no encaminhamento de um
projeto para si e para um mundo comum.
Por isso, o duplo aspecto da criança de ser nova no mundo
e um novo ser humano – citado por Hannah Arendt (2011, p. 235),
[...] não é de maneira alguma evidente por si mesmo, e não se
aplica às formas de vida animais: corresponde a um duplo
relacionamento, o relacionamento com o mundo, de um lado,
e com a vida, de outro. A criança partilha o estado de vir a ser
com todas as coisas vivas; com respeito à vida e seu
desenvolvimento, a criança é um ser humano em processo de
formação, do mesmo modo que um gatinho é um gato em
processo de formação. Mas a criança só é nova em relação a um
mundo que existia antes dela, que continuará após sua morte e
no qual transcorrerá sua vida. Se a criança não fosse um recém-
chegado nesse mundo humano, porém simplesmente uma
criatura viva ainda não concluída, a educação seria apenas uma
função da vida e não teria que consistir em nada além da
366
preocupação para com a preservação da vida e do treinamento
e na prática de viver que todos os animais assumem em relação
aos seus filhos.
Deste modo, considerando a responsabilidade dos
educadores num mundo pós-Auschwitz, formar para a emancipação
é resistir contra a barbárie. Não será a escola capaz de resolver tudo,
mas na escola, lócus principal de resistência, é possível avançarmos
em perspectivas emancipatórias. Isto requer, evidentemente, o
cuidado com os novos, na formação de professores e investimentos
públicos. Cuidados com o ambiente escolar e com as relações na
escola, como nos alerta Adorno (1995, p. 116):
Mudanças de fundo exigem pesquisas acerca do processo da
formação profissional. Seria preciso atentar especialmente até
que ponto o conceito de “necessidade da escola” oprime a
liberdade intelectual e a formação do espírito. Isto se revela na
hostilidade em relação ao espírito desenvolvido por parte de
muitas administrações escolares, que sistematicamente
impedem o trabalho científico dos professores,
permanentemente mantendo-os down to Earth (com os pés no
chão), desconfiados em relação àqueles que, como afirmam,
pretendem ir mais além ou a outra parte. Uma hostilidade,
dirigida aos próprios professores, facilmente prossegue na
relação da escola com os alunos.
Mecanismos de violência contra os quais uma educação
política tem que resistir. Por isso, uma educação política tem que ser
também politizadora. E, neste sentido, retomando sua amplitude,
não é a proposta de uma educação de cima para baixo, ou da
perspectiva de que o professor já esteja politizado. Ao contrário, é
367
uma educação política e politizadora, que forma o educando, mas
também forma quem educa. Assim, é práxis que se efetiva,
superando a dicotomia na perspectiva dialética e dialógica de
transformação.
No contexto da práxis, compreendemos a perspectiva da
relação que integra a teoria e a prática, não na subsunção de uma
pela outra ou na dicotomização conflitante. Ao contrário, na
distinção que se mantém, mas que consuma a interdependência.
Práxis que se dá pela ação que exige reflexão, e reflexão que gera a
ação.
Neste sentido, para não ficar numa superficial compreensão,
é dialética na sua relação e, portanto, deviriana na sua vivencialidade.
Uma está prenhe da outra, e o vir-a-ser de que se nutre é o
movimento que não se contém ou retém, pois não se controla o
pensamento.
Com isso, suplantando a indagação da relação teoria e
prática para uma disciplina como a Filosofia, compreendemos ser
insossa a questão, no sentido de que, ao lermos um texto
procedimento prático, ativo , estará implícita a reflexão o
pensamento em seu encontro com a teoria e, inevitavelmente, não
seremos mais os mesmos. Devirianamente, o vir-a-ser que se projeta
no recôndito interior.
Evidentemente, é possível a dicotomização também, na
clássica perspectiva de que o pensamento que não se move se aliena,
e o movimento que não é pensado também está alienado. Podemos
encontrar aqui as justificativas para a refração, tanto à prática quanto
à teoria, dos que afirmam a necessidade da teoria sobre a prática ou
da prática sobre a teoria. Parecem-nos sintomas dos coletivos das
368
torcidas organizadas de qualquer coisa que possa ser apropriado
para embate que repousam nas bases do pensamento da operation,
da eficácia e da aplicabilidade.
Percebe-se o incômodo de quem não consegue entender o
que demanda a atividade intelectual que parece vaga, etérea
acreditando que a “prática” de um trabalho braçal ou de uma
atividade técnica que apresente um resultado aplicável é que deve
ser mais valorizada. Nem uma, nem outra na perspectiva de uma
educação política , mas a compreensão da perspectiva da práxis que
deveria estar subsumida em ambas.
Contudo, é evidente a existência do recalque do ódio
fascista à intelectualidade e a ampliação e aprimoramento dos
processos de alienação na sociedade danificada e administrada do
capitalismo tardio ao neoliberalismo em que a realidade se integra
com a ideologia como se tudo fosse o real e oblitera, assim, a
percepção da contradição. Paradoxalmente, dicotomiza-se a relação
da teoria com a prática e integra-se a ideologia com a realidade. A
mentira veste a última de suas máscaras (ROUANET, 2001), a
máscara da “verdade”.
Neste contexto que apresentamos, sobre a práxis
demonstram-se compreensíveis as respostas de Adorno (2003) ao
jornalista da Der Spiegel na clássica entrevista intitulada, A Filosofia
muda o mundo ao manter-se como teoria:
Sou um homem teórico, que sente o pensamento teórico como
extraordinariamente próximo de suas intenções artísticas. Não
é agora que eu me afastei da prática, meu pensamento sempre
esteve numa relação muito indireta com a prática. Talvez ele
tenha tido efeitos práticos em consequência de alguns temas
369
terem penetrado na consciência, mas nunca eu disse algo que se
dirigisse diretamente a ações práticas. [...] creio que uma teoria
é muito mais capaz de ter consequências práticas em virtude da
sua própria objetividade do que quando se submete de antemão
à prática. O relacionamento infeliz entre teoria e prática
consiste hoje precisamente em que a teoria se vê submetida a
uma pré-censura prática (ADORNO, 2003, p. 132).
Necessário destacar, retomando a questão da esfera pública,
campo da ação, da vida política para Hannah Arendt, que implica
não a prática pela prática, mas, entendemos, na perspectiva da
práxis.
Ainda na questão da esfera pública, ressaltamos também a
importância da escola pública e, no seu fundamento, a tese da
educação como sendo prioritariamente pública. Nessa questão, é a
escola um espaço formativo e representativo dessa esfera pública.
Neste sentido, não temos uma educação privada na escola, mesmo
que a instituição seja privada. A educação que lhe cabe oferecer é
concessão da esfera pública. Evidentemente, pode a escola privatizar
sua oferta de escolarização, a partir do viés religioso ou ideológico,
mas, efetivamente, tem que se submeter aos acompanhamentos da
esfera pública.
A perspectiva de privatização da educação ocorre em sua
esfera privada, na alçada da família de forma informal ou, na
pretensão da oficialização do questionável e ideológico, projeto de
“escolarização doméstica”, o homeschooling
68
defendido pelas pautas
68
Consideramos importante demarcar a questão levantada por Penna (2019) em seus
estudos sobre este ponto. Em artigo intitulado A defesa da "educação domiciliar" através do
ataque à educação democrática: a especificidade da escola como espaço de dissenso (2019), o
autor utiliza como opção de tradução o termo escolarização doméstica, do qual
370
conservadoras sob os auspícios da extrema direita política no Brasil.
Os riscos e o pano de fundo desse inconstitucional projeto são
obliterados na defesa inflamada de seus defensores pela sempre
falaciosa mentira liberal e neoliberal da ideia de liberdade que se
propõe fora da esfera pública.
Para Hannah Arendt (2011), a escola seria uma esfera p-
política, transitória entre o lar o espaço privado e o mundo
público, ao qual a criança só adentrará efetivamente, quando adulta.
Ou seja, a vida política.
Como já explicamos no capítulo V, no tópico intitulado Da
importância da política, os gregos foram os felizes criadores da esfera
pública ao ganharem, como surgimento da Pólis a cidade Estado
uma segunda vida, para além da vida biológica, a vida política o
bios politikos.
Como nos esclarece Hannah Arendt (2011), é na esfera
pública, espaço do bem comum o koinonque o cidadão exercerá
sua cidadania. Decidirá os destinos da cidade, encontrará seus
semelhantes e, com eles, discutirá e constituirá, pela igualdade
compartilhamos, para tratar do homeschooling. Esclarece-nos: “Utilizaremos, no presente
texto, o termo escolarização doméstica - nossa proposta de tradução para o termo
homeschooling usado na bibliografia de língua inglesa. A palavra escolarização foi escolhida
porque é a tradução literal de schooling e permite evitar a confusão entre ‘os processos
formativos que se desenvolvem na vida familiar’ e aqueles que se desenvolvem
‘predominantemente, por meio do ensino, em instituições culturais’ (Lei nº9394 de 1996,
art. 1º). A opção pela palavra escolarização expõe a tentativa de a família substituir, no
espaço doméstico, os processos formativos complexos que acontecem nas escolas por meio
do ensino. A palavra home foi traduzida por doméstica para evitar a confusão com o regime
de exercícios domiciliares (com acompanhamento da escola), previsto no decreto-lei
nº1044 de 1969 e nas leis nº6.202 de 1975, 6.503 de 1977 e 7.892 de 1988. A escolha do
termo, além de uma tradução, constitui também, neste sentido, a tentativa de marcar um
novo território da escolarização doméstica, que tem pressupostos e premissas diferentes do
atendimento domiciliar” (PENNA, 2019, p. 10-11).
371
manifesta na liberdade que lhes é conferida, o espaço do dissenso
que se resolve, não pela violência, mas pela vivência democrática. É
o espaço dos assuntos humanos, em que a igualdade se dá não pela
homogeneidade dos existentes, mas pelas singularidades que se
encontram em sua pluralidade de vidas e pensamentos e possuem,
como iguais, a liberdade, o fato de estarem livres das necessidades da
sobrevivência para ali estarem.
Essa esfera pública da existência é diametralmente oposta à
esfera privada da oikia do lar, em que prevalecem os assuntos
domésticos, as necessidades do dia a dia ligadas à sobrevivência e ao
suprimento da vida biológica. Neste espaço privado, fundamental
para a vida biológica, se encontra o descanso e a proteção, o
provimento dos existentes e a convivência dos diferentes, não pelas
singularidades especificamente, mas pelas desigualdades, posto que
não é o espaço da política.
O que prevalece nessa esfera da vida não é o bem comum
o koinon mas a oikiaque dará origem à palavra economia
69
e a
preocupação com as necessidades da existência que visa à proteção
da vida. Nessa esfera, em que não há a liberdade pública, pode
69
Lembramos também, conforme tratado no capítulo V, sobre a importância da política,
que a perspectiva da economia oikonomia , que era dos assuntos domésticos, invade a
esfera pública na Modernidade do capitalismo autoritário. Como constituição de uma
terceira esfera híbrida que mistura o que é público ao privado e vice-versa , surge a
sociedade camarim dos sócios e não dos cidadãos. Passa a predominar o economicismo
existencial, que assume a cena principal. A vida humana, que não é mais pública ou privada
distintamente, imiscuída nos negócios na esfera econômica – pela negação do ócio, em que
prevalece o negotium abandona a importância dos assuntos humanos a política , em
favor dos “sócios”. Do mercado liberal para o mercado de consumo, da promessa do progresso
para a regressão à barbárie com Auschwitz, no palco da encenação, o dia é o mesmo, de um
mesmo tempo que nunca acaba de começar.
372
prevalecer uma liberdade privada, interior geralmente, que não tem
significação política. Como nos explica Arendt (2011, p. 192),
A liberdade que admitimos como instaurada em toda teoria
política e que mesmo os que louvam a tirania precisam levar em
conta é o próprio oposto da “liberdade interior”, o espaço
íntimo no qual os homens podem fugir à coerção externa e
sentir-se livres. Esse sentir interior permanece sem manifestações
externas e é, portanto, por definição, sem significação política.
Por isso, a importância da democracia e sua fragilidade são
sempre objeto de cuidado para todos aqueles que a entendem como
condição fundamental para o exercício da vida política e da
existência da esfera pública.
É sabido, e não precisamos tomar por má fé os
questionamentos inevitáveis e válidos, de que a democracia grega
nossa fonte de inspiração ocidental não pressuponha a igualdade
dos livres fundamentada na justiça social, posto que as mulheres,
crianças, metecos escravos e estrangeiros não usufruíam de tal
possibilidade da esfera pública. Contudo, é preciso entender o
argumento e perspectiva arendtiana em suas análises e a proposição
da importância do espaço público que propomos.
Tanto para Arendt, quanto para nós, não há a expectativa de
retorno ao modelo, ou de implementação de um mesmo sistema
pautado na escravidão para a liberação do cidadão. Parece-nos que
não seria preciso nada disso numa sociedade como a nossa que já
atingiu as condições materiais e econômicas suficientes para
lembrar nosso ensaio utópico no capítulo III de permitir uma vida
digna a todos os seres humanos. Uma vida com poucas horas de
373
trabalho e a possibilidade de liberação dos existentes para o ócioo
tempo livre , que permitiria a vida política, a fruição estética e o
conhecimento que não desejasse a operation como finalidade. Já
sabemos por que isso não ocorrerá.
O que acompanha nosso raciocínio, arendtianamente
falando, é olhar para o passado que nos mostra a inspiração para a
história que temos que construir, vislumbrando o verdadeiro estado
de exceção, como nos desafiava Benjamin (2012), que precisamos
implantar com os oprimidos que, até hoje, não conheceram outra
coisa em nome do progresso que sempre prometeu, mas nunca
implantou: um não estado de exceção.
Procuramos, como a moda espreitando a folhagem do
antigamente, comandada pela classe dominante, dar o salto para um
tempo de agora que destrua, pela sua irrupção, o tempo homogêneo e
vazio da história a que estamos submetidos. Não é o retorno. É o
devir.
Dado o contexto, a falta do espaço público ou sua supressão
representam a impossibilidade do exercício da liberdade, razão de ser
da política, como nos ensina Hannah Arendt (2011) em seu clássico
texto O que é liberdade?. Relembramos que, para a autora, a
liberdade aqui tratada não é aquela dos modernos, como já
destacamos, defendida pelo pensamento liberal ou a que se respalda
na ideia do liberum arbitrium cristão. É exatamente o seu oposto,
como já demonstrado. Reiteramos que o que defende a pensadora é
a liberdade que se dá na política, no espaço público, onde os homens
são iguais porque livres para a ação.
Em proximidade com Arendt, Rancière (2014, p. 72) nos
esclarece que
374
[...] existe uma esfera pública que é uma esfera de encontro e
conflito entre as duas lógicas opostas da polícia e da política, do
governo natural das competências sociais e do governo de
qualquer um. A prática espontânea de todo governo tende a
estreitar essa esfera pública, a transformá-la em assunto privado
seu e, para isso, a repelir para a vida privada as intervenções e
os lugares de intervenção dos atores não estatais. Assim, a
democracia, longe de ser a forma de vida dos indivíduos
empenhados em sua felicidade privada, é o processo de luta
contra essa privatização, o processo de ampliação dessa esfera.
Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado
discurso liberal, exigir a intervenção crescente do Estado na
sociedade.
Para o filósofo, mesmo nos governos democráticos,
apresenta-se a tendência a um estreitamento da esfera pública, num
viés privatista desta esfera e no afastamento da arena política para a
vida privada daqueles que não representam institucionalmente o
governo ou seus interesses. E, como nos esclarece também o autor,
não prevalece aqui o credo liberal de defesa do Estado mínimo em
confronto com a necessidade de ampliação da esfera pública. Ao
contrário, a ampliação dessa esfera não tem a ver necessariamente
com ampliar a intervenção do Estado, mas em garantir a existência
dos iguais.
A questão da igualdade, tratada geralmente como condição
a ser atingida em nossas perspectivas pedagógicas, ou deturpada pela
perspectiva liberal de uma igualdade que se alcança pelo exercício da
meritocracia, implica uma percepção equivocada. Segundo Rancière
(2013, p. 11), quem estabelece a igualdade como objetivo a ser
atingido, a partir da situação de desigualdade, de fato a posterga até
375
o infinito. A igualdade jamais vem após, como resultado a ser
atingido. Ela deve sempre ser colocada antes”.
Tratando da experiência do pedagogo francês Joseph Jacotot
no início do século XIX, o autor parte da tese de que há uma
igualdade que depende da emancipação das inteligências. Para ele,
Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é
sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino
deve se fundar. Instruir pode, portanto, significar duas coisas
absolutamente opostas: confirmar uma incapacidade pelo
próprio ato que pretende reduzi-la ou, inversamente, forçar
uma capacidade que se ignora ou se denega a se reconhecer e a
desenvolver todas as consequências desse reconhecimento. O
primeiro chama-se embrutecimento e o segundo emancipação
(RANCIÈRE, 2013, p. 11-12).
Continua ainda sua reflexão, afirmando que não se trata de
uma questão de método, pois é uma questão filosófica propriamente
e uma questão política. Na primeira, trata-se de saber se a palavra do
outro, daquele que ensina é um testemunho de igualdade ou de
desigualdade. E, na segunda questão, implica saber o que sustenta o
sistema de ensino: a pressuposição de que se precisa reduzir a
igualdade ou a verificação da condição de igualdade (RANCIÈRE,
2013).
Dados tais parâmetros, a Educação, em sua perspectiva
formativa, representa um processo de formação para a vida
democrática, para a emancipação e autonomia diante da opressão a
que se pretende submeter a esfera pública e os sujeitos. Não um
processo formatador, controlador ou homogeneizador. Por isso, a
376
democracia e uma educação democrática, porquanto políticas, são
fundamentais.
Entretanto, na conjuntura atual, diante dos desmontes e
ataques à educação e à instituição escolar em sua perspectiva
democrática, vislumbramos as nuances de um projeto totalitário,
antidemocrático, fazendo um aparte para nossa realidade.
No Brasil, como um continuum o Escola Sem Partido
70
, a
"escolarização domiciliar"
71
, preconizada pelos defensores do
70
De acordo com Ximenes (2016), é objetivo do movimento Escola sem Partido subverter
a diferenciação necessária entre educação formal, não-formal e informal. Neste sentido,
esclarece-se que a primeira se refere ao bem público (independentemente de ser ofertada
pela iniciativa privada) encontrada na esfera escolar; a segunda realiza-se no âmbito da fé
ou das políticas partidárias, entre outros espaços e a terceira, essa sim, como “uma atribuição
corriqueira da família e da comunidade, que acontece ainda que de forma inconsciente
enquanto dimensão de socialização” (XIMENES, 2016, p. 55). Na proposta de uma
educação neutra no âmbito escolar, portanto, o que está em pauta é a defesa de que cabe à
esfera da educação formal (a escola) “tão somente reproduzir a ideologia e a cultura
transmitidas nas demais instâncias educacionais, ainda que essas comumente sejam
discriminatórias, machistas, misóginas, 'homolesbotransfóbicas', racistas, insensíveis às
injustiças econômicas etc” (XIMENES, 2016, p. 55).
71
Quanto à “escolarização domiciliar”, complementando a questão, o que está em cena é
um processo de ataque (PENNA, 2019) às escolas e aos professores. Mesmo que sujeita a
ideologizações e tentativas de submissão a novos determinismos existenciais, como bem
demonstra querer implantar o Escola sem Partido, é fato que a escola passa a ser a
possibilidade do dissenso, da contradição e da construção de um diferente, do conflito e da
existência da diversidade e das pluralidades na perspectiva de novas potencialidades. É o
espaço para uma educação democrática. Como podemos perceber, a defesa do espaço
escolar em contraposição ao homeschooling tem como pano de fundo a questão pública.
Não é a defesa de uma ideologia, como preconizam os que se encantam com propostas que
abrem caminhos para um projeto totalitário. Neste sentido, é muito mais propício para a
ideologização a ideia de ter a criança restrita apenas à formação familiar e às suas crenças e
percepções de mundo, o modelo militar de educação em que prevaleça a ordem, a disciplina
e a obediência sem questionamentos ou mudanças e uma escola em que seja banida a
política, condição sine qua non que perpassa nossa formação humana. Neste sentido, está o
choque entre uma perspectiva privatista e ideológica versus a compreensão da escola como
lócus público para a educação.
377
homeschooling e, por fim, a defesa da militarização da educação pelos
investimentos maciços voltados para o favorecimento da
implantação de colégios no modelo militar, corroboram um mesmo
projeto. O que temos na tríade apresentada é um projeto reacionário
de Educação. Neste entendimento, uma perspectiva, na realidade,
não educativa, emancipadora, mas de embrutecimento, submissão e
ideologização.
Por isso, uma educação política demanda uma educação que
nos prepare para a esfera pública, para uma vida inter homines esse.
E, neste sentido também, será uma educação contra a violência, o
autoritarismo, a meritocracia, o preconceito, que proporcione uma
verdadeira inclusão, que subverta a lógica e a ótica da biopolítica e
do biopoder do neoliberalismo em sua governamentalidade dos
corpos.
Diante das questões levantadas nos nossos estudos referentes
ao autoritarismo e ao fascismo, a inevitável constatação do ódio à
política e, mais especificamente, da perspectiva de destruição da
política, merece destaque. Neste sentido, está a necessidade de tratar
sobre a política, que nos provoca a reflexão na expectativa da
compreensão, frente à tradição e ao cotidiano do mundo político
não necessariamente politizado que nos envolve, e de sua
importância e correlação com outro campo fundamental, o da
educação.
Inclusive, neste momento, em tempos de mídias sociais e
comunicação full time, em que o senso comum se apropria de uma
ideia de não política a partir do modo de vida neoliberal, que em seu
projeto consagra a despolitização, uma temerária concepção se
estrutura, pelo ódio à política, que é a do fim da política.
378
Neste contexto, a par das perspectivas adornianas de uma
educação política, a qual não perdemos de vista, procuramos
também, nos ensaios de Hannah Arendt, o aprofundamento da
questão exatamente pela significação que ela confere a tal assunto. A
partir de sua perspicaz observação sobre as esferas pública e privada
e a inevitável constatação de que a verdadeira liberdade que
possibilita a ação humana, o agir, se dá pela política condição para
a existência humana e não pelo empreendimento privado, mais do
que as teorias sobre governantes e governados, construímos o
entendimento de que a formação política é, neste sentido,
imprescindível.
Apesar de não aceitar a educação como política, Arendt
(2011) não deixará de constatar em seu ensaio A crise na educação
que o problema que acomete essa esfera não é didático-metodológico
simplesmente, mas do escopo da política. Por isso, efetivamente, ela
nominará o texto como A crise na educação e não A crise da educação.
Convém destacar que a concepção arendtiana no campo da
educação se dá no processo de formação dos novos e da sua
possibilidade de transformação do mundo, quando inseridos na
esfera pública. Neste sentido, não se educam adultos, e a política não
é da esfera das crianças e, para ela, uma formação política seria um
simulacro. Concordamos com Arendt neste contexto, sobre o risco
de se procurar uma formatação.
Contudo, como esclarecemos anteriormente, é contra esse
processo que luta uma educação política. Destacamos também que,
na amplitude e no escopo da concepção de educação que
apresentamos, a educação não se restringe ao tempo da escolarização
ou ao limite da entrada na fase adulta. É entendida como formação
379
humana, humanização, processo que não se encerra, como a
escolarização, mas se constitui cotidianamente na existência.
Neste sentido, uma educação política não implica
doutrinação política, mas reconhecimento, pela formação e pelo
exemplo, da vida política que pode ser alcançada e desejada, mas
também destruída, se este for o projeto dos novos na sua perspectiva
de mudança do mundo. Evidentemente, serão novos fascistas.
Certamente, os riscos de ceder à tentação de transformar em
simulacros toda formação repete o incômodo adorniano na
entrevista à Der Spiegel de que a teoria hoje se vê submetida a uma
pré-censura prática.
Com Adorno, também encontramos um caminho para a
antinomia arendtiana, na perspectiva educacional. Esclarece-nos o
frankfurtiano:
A seguir, e assumindo o risco, gostaria de apresentar a minha
concepção inicial de educação. Evidentemente não a assim
chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de
modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a
mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa
morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma
consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância
política; [...] (ADORNO, 1995, p. 141).
E concluirá o filósofo, destacando a questão da democracia:
[...] uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas
operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas.
Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma
sociedade de quem é emancipado. Numa democracia, quem
380
defende ideais contrários à emancipação, e, portanto, contrários
à decisão consciente independente de cada pessoa em
particular, é um antidemocrata, até mesmo se as ideias que
correspondem a seus desígnios são difundidas no plano formal
da democracia (ADORNO, 1995, p. 141-142).
A proliferação de antidemocratas no âmbito da formalidade
democrática, em nosso país e em outras regiões do mundo, confirma
que estamos distantes de uma sociedade de pessoas emancipadas.
Por isso, a proposta de uma educação política, no encontro
do contexto adorniano ou sob a ressalva da contestação arendtiana,
nos fortalece na perspectiva dialética, de uma dialética negativa.
Nesta percepção, é provocar a resistência a toda não educação, ao
invés de promover um modelo pedagógico ou fórmula educacional
para uma perspectiva da politização. Pensar é o substrato
fundamental para que não caiamos na sedução da operation que
preconiza a eficácia.
Como alertáramos no início, não pressupomos uma resposta
positiva à saída para a educação em tempos de barbárie, mas a
resistência à não educação. E, para tanto, a necessidade do
pensamento por isso é possível e necessário pensar em tempos de
barbárie, mesmo que não se privilegie mais o pensamento. É preciso
pensar a contrapelo.
Neste entendimento, caminhamos na compreensão da
interface entre política, educação e a resistência contra a barbárie,
proposição que permeia nossa tese.
Partindo também da compreensão arendtiana, a educação
para o exercício do pensamento apresenta-se como um grande
desafio na conjuntura atual.
381
Para além dos clichês de uma "educação reflexiva" que
permanece no imaginário pedagógico, ou a partir das perspectivas
da formação de um "cidadão crítico", muitas vezes expresso na mera
formalidade dos Projetos Políticos Pedagógicos das Escolas ou nas
Diretrizes Curriculares de instâncias governamentais, a provocação
que continuamos fazendo é para a concepção e significação da
Educação como formação humana.
Neste sentido, não só como processo de escolarização, de
conhecimento científico ou acadêmico, mas de constituição de nossa
humanização, de nossa condição humana, como seres singulares que
coabitam num mundo comum. Um mundo em que a liberdade e a
igualdade se dão na esfera política, e a pluralidade e a diversidade da
existência humana se manifestam como potencialidades de
renovação e transformação. A possibilidade sempre de um novo
começo, de um novo início, como nos mostra Arendt (2011, p.
216):
No nascimento de cada homem esse começo inicial é
reafirmado, pois em cada caso vem a um mundo já existente
alguma coisa nova que continuará a existir depois da morte de
cada indivíduo. Porque é um começo, o homem pode começar;
ser humano e ser livre são uma única e mesma coisa. Deus criou
o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar: a
liberdade.
Por isso, na percepção dessa potencialidade humana,
apontamos para a compreensão do exercício do pensamento como
condição para a realização de nossa humanização. Exercício aqui no
sentido kantiano, de pensar o próprio pensamento, ou seja, para
382
além da petrificação de conhecimentos ou registros, da aquisição de
hábitos ou regras, um exercício de problematização da realidade e da
existência.
Neste contexto, apesar da inegável importância do
conhecimento em sua perspectiva acadêmica, em que solidificamos
nossas ciências e a tradição, ressaltamos a questão do pensamento na
esteira da análise arendtiana que entende que,
A inclinação ou a necessidade de pensar, [...], mesmo que não
provocada por nenhuma das veneráveis ‘questões supremas’,
metafísicas e irrespondíveis, não deixa nada de tão tangível atrás
de si, nem pode ser saciada por intuições supostamente
definitivas dos ‘sábios’. A necessidade de pensar só pode ser
satisfeita pelo pensar, e os pensamentos que tive ontem somente
satisfarão essa necessidade hoje à medida que eu possa pensá-
los novamente (ARENDT, 2004a, p. 230-231).
Respaldada em Kant, Arendt (2004a) esclarece a
importância do pensar e a necessidade de sua atividade por todo e
qualquer ser humano, independentemente de sua condição
acadêmica ou não. O pensamento como condição humana é
primário e o oposto da elitização proposta pela formação erudita ou
dos que identificam o pensar com o conhecimento, tornando este
restrito a um seleto grupo de iniciados nas questões das ciências em
que não há espaço para as pessoas comuns. Para Arendt (2004a, p.
231),
[...] a capacidade e a necessidade de pensar não se restringem
absolutamente a qualquer tema específico, como as questões
que a razão propõe e sabe que nunca será capaz de responder.
383
Kant não ‘negou o conhecimento’, mas separou o conhecer do
pensar, e abriu espaço não para fé, mas para o pensamento.
Como certa vez sugeriu, ele na verdade ‘eliminou os obstáculos
pelos quais a razão atrapalha a si mesma. Em nosso contexto e
para nossos fins, essa distinção entre conhecer e pensar é crucial.
Se a capacidade de distinguir o certo do errado tiver alguma
coisa a ver com a capacidade de pensar, então devemos ser
capazes de ‘exigir’ o seu exercício de toda pessoa sã, por mais
erudita ou ignorante, inteligente ou estúpida que se mostre.
Kant, a esse respeito quase o único entre os filósofos, ficava
muito incomodado com a opinião comum de que a filosofia
existe para uns poucos, precisamente por causa das implicões
morais dessa opinião.
Uma educação para o pensar, portanto, não é uma
proposição de desconsideração pelo conhecimento ou pela formação
acadêmica, científica. Acima de tudo, é a compreensão de que ambas
não se excluem, mas são distintas e, neste entendimento,
complementares. O que parece ruir, entretanto, é a apropriação que
se dá pelo imaginário de que, quanto mais escolarização, mais
integridade humana e moral se terá. Fórmula dos iluministas
retratada no pensamento de Voltaire, apesar de termos aberto tantas
escolas e vivenciarmos uma época de esclarecimento segundo as
expectativas kantianas de então, não reduzimos as prisões e
desembocamos, no século XX, na maior de todas as barbáries já
ocorridas até hoje na História da Humanidade. De toda essa ruína,
o que se torna claro é que
A incapacidade de pensar não é estupidez; pode ser encontrada
em pessoas altamente inteligentes, e a maldade dificilmente é a
sua causa, nem que seja porque a ausência da capacidade de
384
pensar, bem como a estupidez, são fenômenos muito mais
frequentes que a maldade. O problema é precisamente que
nenhum coração malvado, um fenômeno relativamente raro, é
necessário para causar um grande mal. Por isso, em termos
kantianos, precisaríamos da filosofia, o exercício da razão como
a faculdade do pensamento, para impedir o mal (ARENDT,
2004a, p. 231-232).
O que se provoca é a percepção de que o processo educativo
nessa sociedade administrada e danificada em que vivemos encontra,
na escolarização, basicamente, a condição sine qua non para que o
pensamento seja exercitado, apropriado como elemento constitutivo
e fundante daquilo que nos torna humanos.
Para que se possibilite uma vida que vale a pena ser vivida,
como nos incomodava com sua picada constantemente o moscardo
socrático, é preciso que saibamos discernir o certo do errado e que
sejamos capazes, ao final do dia, de dormirmos conosco mesmos.
Neste sentido, kantianamente falando, não se ensina filosofia, mas a
filosofar. Não se ensina o pensamento, mas a pensar.
Na tragédia dos dias que vivemos, com os mortos que
enterramos e com o negacionismo da ciência que enfrentamos, urge
pensar como formaremos, daqui para frente, o conhecimento
científico. Se cindido do pensamento no seu entrelaçamento com a
técnica e, portanto, como prenúncio de novas tragédias, ou no
reencontro conjunto ao exercício do pensamento.
Mais uma vez, se a ânsia pelo fortalecimento do pensamento
científico se manifestar pelo simulacro da operation e da eficácia,
continuaremos distantes dos fundamentos epistêmicos e da
385
finalidade da ciência. Na lógica invertida, continuaremos sendo
meios para os fins da ciência, do cientificismo, ou do negacionismo.
No mundo dos adultos que conduzem a educação, seriam
opções políticas. Na conjuntura dos adultos que tudo consomem
para alimentar os negócios, os assuntos humanos da política
podem parar no triturador de papéis do escritório.
Neste sentido, a conversão de Eichmann em uma condição
de não existência, de um ninguém que apenas se adaptava ao
sistema e às regras vigentes é a expressão mais clara do perigo do não
pensamento. Não significava que ele não raciocinasse, que não
tivesse conhecimento. A questão que se apresenta é, por que ele não
rompeu com o determinado?
Arendt sentiu-se atraída pela observação sobre aqueles
poucos que resistiram à dominação totalitária, pois, diferentemente
de Eichmann, foram capazes de dizer para si mesmos, não posso! Os
limites se estabelecem. Para ela, quando dos momentos de crise e
exceção, as pessoas mais confiáveis não são as mais seguras na sua
determinação moralista ou no cumprimento do dever, mas aquelas
capazes de questionar qual o limite do que pode ser feito. Não são
as que têm certezas, mas as que manifestam a dúvida diante do
estabelecido.
Manter-se respeitável diante da sociedade, ajustado aos
padrões morais e ou ideológicos de uma determinada concepção de
mundo não representa esperança de um mundo melhor. Ao
contrário, aqueles que, sem recorrer ao medo do inferno ou a
qualquer tábua de valores, não se ajustaram e correram riscos
simplesmente porque sabiam que a vida não valeria a pena depois de
386
praticarem aqueles atos (CORREIA, 2007, p. 50) é que
possibilitam essa esperança. Por isso,
[...] a principal característica do pensamento é que ele
interrompe todo fazer, todas as atividades comuns, sejam quais
forem. [...] pois é verdade que, no momento em que
começamos a pensar em qualquer questão, paramos tudo o
mais, e esse tudo o mais, seja lá o que for, interrompe o processo
de pensar; é como se entrássemos num mundo diferente. O
fazer e o viver no sentido mais geral de inter homines esse, ‘estar
entre os meus semelhantes’ o equivalente latino para estar
vivo , impede positivamente o pensar. Como Valéry disse
certa vez: ‘Tantôt jê suis, tantôt jê pense’, ora sou, ora penso
(ARENDT, 2004a, p. 232).
Neste sentido, o pensamento, base para o julgamento que
possibilita a ação humana, é elemento primordial para a realização
da nossa condição de liberdade, raison d'être da vida política. E,
quando na política se exige a coragem, a principal de suas virtudes,
a escolha que fazemos é que determina nossa luta pela liberdade.
Neste momento, destaca-se o sentido do amor mundi
arendtiano, o amor pelo mundo, na perspectiva da política. Segundo
Hannah Arendt (2011, p. 203),
[...] o âmbito político como tal contrasta na forma mais aguda
possível com nosso domínio privado, em que, na proteção da
família e do lar, tudo serve e deve servir para a segurança do
processo vital. É preciso ter coragem até mesmo para deixar a
segurança protetora de nossas quatro paredes e adentrar o
âmbito político, não devido aos perigos específicos que possam
estar à nossa espreita, mas por termos chegado a um domínio
387
onde a preocupação para com a vida perdeu sua validade. A
coragem libera os homens de sua preocupação com a vida para
a liberdade do mundo. A coragem é indispensável porque, em
política, não a vida, mas sim o mundo está em jogo.
Se, na regressão à barbárie, no continuum de Auschwitz,
instalamos uma era de suspensão (ANDERS, 2013), em que a
qualquer momento o Tempo do Fim pode se tornar o Fim do Tempo,
não é uma vida pessoal, na sua esfera da existência privada que está
em jogo. É o mundo comum, de toda existência. O amor ao mundo
se apresenta como a opção contra a possibilidade de um não mundo.
Por isso, é importante destacar que, no encontro consigo, a
experiência do pensamento se dá na interrupção de todo fazer pelo
fazer para que, no diálogo entre dois que são apenas um, da conversa
do eu que sou comigo mesmo, se encontre o elemento purificador
do ato de pensar, a maiêutica socrática.
Distinto da ideia de conhecimento como exacerbação da
condição de uma racionalidade pragmática, o pensamento manifesta
a singularidade de cada existente e proporciona a ruptura com o
estabelecido ou determinado. Por isso, como cuidado com os novos
que chegam ao mundo, a educação é condição para que se permita
a todo homem, quando de sua inserção no mundo público, a ação
política. Com e entre os homens. Ação que favorece, a qualquer
instante, a renovação do mundo comum, pelo milagre que
representa o nascimento de cada homem que se constitui tal no
mundo e na vida que se dá na pluralidade dos homens. Vidas
pensadas que, como faróis nas noites escuras, possibilitam dissipar as
névoas da banalidade do mal que acomete, de tempos em tempos, o
mundo dos homens.
388
Para Hannah Arendt (2004b), a questão que se apresentava
com relação ao pensamento é se este poderia evirar o mal. Na
percepção arendtiana, não só seria capaz, como o pensar é
eminentemente político por sua implicação. Neste contexto, o
pensamento é libertador, porquanto capaz de nos oportunizar a
capacidade do julgamento que, segundo a autora, das capacidades
espirituais humanas é a mais política. Vejamos suas palavras:
Quando todo mundo é arrebatado sem pensar por aquilo que
todos os demais fazem e acreditam, aqueles que pensam são
puxados para fora de seus esconderijos porque a sua recusa a se
juntar ao grupo é visível e, com isso, se torna uma espécie de
ação. O elemento purificador do pensar, a maiêutica socrática,
que traz à luz as implicações das opiniões não examinadas e com
isso as destrói - valores, doutrinas, teorias e até convicções -, é
político por implicação. Pois essa destruição tem um efeito
libertador sobre uma outra faculdade humana, a faculdade do
julgamento, que podemos chamar, com alguma justificação, a
mais política das capacidades espirituais do homem. É a
faculdade de julgar os particulares sem subsumi-los naquelas
regras gerais que podem ser ensinadas e aprendidas até se
tornarem hábitos que podem ser substituídos por outros
hábitos e regras. [...] A manifestação do vento do pensamento
não é o conhecimento; é a capacidade de distinguir o certo do
errado, o belo do feio. E isso, na verdade, pode impedir
catástrofes, pelo menos para mim, nos raros momentos em que
as cartas estão abertas sobre a mesa (ARENDT, 2004a, p. 256-
257, grifo da autora).
Neste sentido, pode-se compreender, mais do que conhecer,
os homens em sua singularidade. Em tempos de crise, pequenos ou
389
grandes "luzeiros" podem surgir. Pessoas capazes de julgar,
independentemente de sua condição intelectual, quais caminhos
seguir, que rumos tomar. Mesmo que, como expressava Hannah
Arendt, não se tenha um corrimãoa nos guiar.
Na perspectiva de uma educação emancipadora, a formação
política é a perspectiva emancipatória, e o pensamento, o substrato
para a sua realização. Emancipação, na perspectiva política, é a vida
entre os seres humanos, no espaço público, a vida democrática que,
por condição das mulheres e dos homens, por sua escolha é a
realização do inter homines esse, que permite a liberdade humana para
agir e transformar o mundo.
***
Para encerrar nossa discussão, considerando a perspectiva
política arendtiana e a luta que se desdobra cotidianamente por uma
educação contra a barbárie, a partir da premissa adorniana,
concluímos nossa tese destacando uma última citação:
“O mundo já possui o sonho de um tempo. Para vivê-lo de fato,
deve agora possuir consciência dele” (DEBORD, 1997, p. 110).
390
391
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402
403
Apêndice: fragmentos e outros ensaios...
Ode
à arrogância atual, prima pobre da inteligência estúpida
da era hitlerista
Ó bela arrogância, como te prezo e te louvo!
Da inteligência dos antecessores não deixas nada a desejar,
Porque respostas para tudo, sempre em ti há de se encontrar.
Dúvidas não ficaram e respostas não faltaram,
Pois formadas nas certezas, dos “profetas” que falaram
Sobre a “Nova Ordem”, o horizonte nos mostraram.
Quando a ciência, essa pobre forma de pensar
Em conhecimento se arvora, para a dúvida implantar,
Lição da arrogância, é o oponente desqualificar.
Afinal, quem mais sabe não é o que o estudo realizou,
Mas o líder que, por seu achismo, se encantou
E que, ovacionado por sua claque, nunca nem sequer se retratou.
Ó bela e maravilhosa amiga arrogância!
Que consolos nos traz quando a consciência nos alenta,
Do sofrimento nos priva e da maldade nos isenta.
Não há doença que resista, pandemia que subsista
Com quixotescos argumentos e certezas mui grotescas
404
Luto contra tudo e contra todos, e não sou antifascista!
Porque sabemos tudo, a verdade nos mostraram.
Os posts que repassamos, da ignorância nos salvaram
Uma imagem vale mil palavras, a lacração é nosso regalo.
Fostes sempre atacada, vilipendiada e detestada
Pelos que estudam e desejam, como o Sócratesda Ágora,
A sabedoria que se alcança, quando a ignorância é encontrada.
Mas são bufões do conhecimento
Que desejam, de forma bem maldosa,
Destruir-te ó arrogância, mas tu és bem mais ruidosa!
Tua lição, espaço hoje vai encontrando
Suplantando a busca dos que perdem tempo estudando
Pois muito mais aprendemos, pela Rede navegando.
Para que tanto esforço de ler, entender e escrever?
Se o blogueiro e o influencer em sua bolha radical,
Como arautos de todo “bem”, nos mostram todo “mal”?
Com o apoio do algoritmo e com a certeza do boçal,
Nos encantamos com a imagem, a teoria conspiratória, o viral...
E nos seduzimos pelos likes... que nunca têm final!
O que vale é a curtida, a sensação e não o entendimento
A percepção da realização nunca supera a frustração
405
Mas, ó arrogância, como sempre, és a nossa consolação!
Espaço “verdadeiramente democrático”... “visse”?
O Face, o Insta e o Twitter, o encontro nos permite,
Com o “esclarecimento”, o que a política nos omite!
Conhecemos a “verdadeira” realidade e o chorume,
Dos que conspiram contra a “moral e os bons costumes”,
Em nome do respeito à pluralidade e à diversidade.
Quem são estes que defendem... Direitos Humanos?
De onde vêm... essas minorias?
Quem inverteu a ordem dominante... que garantia a harmonia?
Porque temos que... nos controlar?
Quando foi que virou crime... bulinar?
Esqueceram que o homem, tem um instinto a preservar?
Não podemos contar piada? Não podemos polemizar?
Qual o problema de falar o que se quer achar,
De expressar o sentimento e a galera inflamar?
Quem deu espaço para a mulher e para o negro se expressar?
Devem ser aqueles mesmos, que no ocaso da harmonia
Uma tal de igualdade, se apressaram a implantar.
Acreditam que te conhecem, ó arrogância incompreendida
Mas não percebem nesta lida
406
Que a arrogância é nossa amiga!
Se não implantarmos nessa vida, um projeto tão cruel
Quanto fez a nossa prima, sob o antigo céu,
Pela arrogância que se estima, pior será, não duvide o infiel!
407
O preço da apolitia
Quando Brecht falava do analfabeto político
72
em seu clássico
poema, talvez não imaginássemos quão presente continuaria tal
condição na nossa história humana. Parece que, apesar de sua clareza
e provocação para o pensamento em tão simples versos, tantos anos
depois ainda nos encontramos com a mesma percepção: de que nada
mudou ou, se mudou, muito pouco se avançou. Não gostar da
política, não querer saber de política, considerar a política ruim e
avaliar a política a partir de uma perspectiva moralista e equivocada
continuam sendo, de tempos em tempos, manifestações que se
“colam” no imaginário das pessoas que, crendo em tais premissas,
colaboram ou se omitem, com sua atitude, para que “outra coisa”
seja colocada no lugar do viver político. Este tem sido um preço caro
a se pagar pela apolitia.
Pior que a apolitia, a antipolítica
Se a apolitia já era um problema, o aparecimento da
antipolítica se demonstra como a barbárie. Se o analfabetismo
político se mostra no afastamento das coisas da política, na não
compreensão da política em sua perspectiva fundante da nossa
72
Escreve Brecht (2020): “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do
feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato, e do remédio dependem das decisões
políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que
odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política nasce a prostituta, o
menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra,
corrupto e lacaio dos exploradores do povo”. Disponível em:
http://www.sociologia.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video=4701.
408
condição humana, a antipolítica se apresenta como projeto contra a
política. Necroprojeto. Não é por equívoco ou simploriedade na
compreensão dos que defendem a antipolítica. É luta contra a
política, é produção pensada contra a vida política que pressupõe a
liberdade e em que não cabe o autoritarismo, o totalitarismo e sua
expressão máxima, o fascismo. Se na apolitia vemos a apatia dos
homens no envolvimento com a coisa pública, na antipolítica vemos
o projeto de destruição da coisa pública, da vida política em sua
representação democrática. Portanto, o que está em curso não é o
jogo democrático, mas o ataque e o desrespeito às regras pactuadas,
o esgarçamento das instituições democráticas e dos fundamentos do
mundo público. Instala-se uma polarização que não é entre esquerda
e direita no espectro político, mas entre política e antipolítica. O que
está na pauta, é a sobrevivência da política.
Racismo, preconceito e normalidade: a divisão do mundo em
“preto” e “branco” e o desejo da monocromia
Se o mundo fosse pintado em preto e branco, imagino que
todos concordaríamos que extremamente chato ele seria. Parece
inimaginável que, para além das representações pictóricas dos
desenhos produzidos como registros nas cavernas ou a ficção em
determinados momentos, que quiséssemos um mundo com tal
coloração polarizada. Contudo, para muitos (que acreditamos não
analisam isso em que acreditam), o mundo teria uma só cor (branca),
uma só referência (ocidental) e uma só crença (com base numa única
moral religiosa). Por isso, “civilizar os índios”, “embranquecer” o
negro, destruir a cultura do diferente, excluir os “deficientes”,
409
subjugar o feminino e homogeneizar o pensamento, apresenta-se
como a construção de um “mundo melhor”. Portanto, pior ainda do
que pensar num mundo com duas cores é concebê-lo num ideal
monocromático. Civilização e barbárie, nesse contexto, são a mesma
face de uma única moeda.
Contra os inteligentes e os que tem as certezas...
Como expressavam Adorno e Horkheimer na primeira das
Notas e esboços, ao final da Dialética do esclarecimento, permitimo-
nos retomar seus possíveis sentimentos diante da barbárie que
representou o nazismo para expressarmos os nossos, frente ao
momento antidemocrático que vivemos no mundo com a expansão
da extrema-direita, representada no Brasil pelo bolsonarismo. Como
naquele tempo, parece que sempre encontramos os “que têm
resposta para tudo”, que “garantem que as instituições democráticas
estão funcionando”, que “falam em liberdade de expressão” sem
sequer questionar os limites entre “liberdade” e “crime”. Não são
poucos os que tentam salvar um projeto que traz em sua gênese a
destruição, a violência, fragmentando-o em esferas específicas como
a economia, os costumes e a política, tentando justificar que há
exagero em uma, mas proposição democrática em outra. Como se
não fossem, no seu contexto, propostas do mesmo projeto ou,
efetivamente, da ausência de um verdadeiro projeto, a não ser aquilo
que fundamenta o fascismo: o ódio. Nas suas análises e
conjecturações, encontram as justificativas para os descompassos
com a democracia e, nas certezas de que os “pesos e contrapesos”
estão funcionando, minimizam ou amenizam a interpretação do que
410
se apresenta no horizonte: as nuances daquele horror que nunca
deveria ter ocorrido. Muitas vezes tratando como excessivas ou
desmedidas as falas do líder megalomaníaco, atribuindo ao “jeito de
ser” do mesmo, desconsideram os elementos da estratégia que
permeia o pensamento fascista e sua necessidade de polarizar a
existência e dividir o mundo em “bons e maus”, como já
recomendava Hitler. Segundo ele, era estratégica “a subdivisão do
mundo em ovelhas brancas e ovelhas negras, os bons, a cujo grupo
se pertence, e os maus, ou seja, o inimigo criado expressamente para
as finalidades da demagogia” (HORKHEIMER; ADORNO, 1978,
p. 175). Neste entendimento, “os primeiros estão salvos, os outros
condenados, sem transição ou limitação, e sem exame de
consciência, como Hitler recomenda numa passagem célebre do
‘Mein Kampf’” (HORKHEIMER; ADORNO, 1978, p. 175).
Nesta passagem, registra-se que, “[...] para alguém se afirmar com
eficácia contra um adversário ou um concorrente, é necessário pintá-
lo com as tintas mais negras” (HORKHEIMER; ADORNO, 1978,
p. 175). Por isso, nestes tempos estranhos, em que as certezas se
manifestam pelos inteligentes para apaziguar o horror que se sublima
cotidianamente na imprensa, nas Redes Sociais e na vida
administrada, paira no ar a indagação: qual o limite? Parece-nos que,
nestes casos, não ter estas certezas, ou o pensamento dogmático na
defesa de determinados valores como absolutos seja a melhor
perspectiva de esclarecimento. Na confusão entre legalidade e
moralidade, o dia a dia do “cidadão de bem” se harmoniza com a
barbárie que se manifesta travestida de “moral e bons costumes”, em
que impera o dever a que não se pode furtar uma consciência que
não questiona o limite, mas faz o seu cálculo entre manter a ordem,
411
cumprir a lei e uniformizar a existência. Deste modo, o contraponto
seria permitir que os “maus”, já demagogicamente definidos pelo
líder, destruam os mais caros valores” de uma sociedade
ideologizada que, no fundo, não seria capaz de se reconhecer se
arriscasse uma autoanálise através de um escrutínio baseado nos
princípios democráticos e morais. Por isso, não é difícil entender,
como escreveu Hannah Arendt, que “moralmente, as únicas pessoas
confiáveis nos momentos de crise e exceção, ‘quando as cartas estão
sobre a mesa’, são aquelas que dizem ‘não posso’” (ARENDT,
2004b, p. 143). Para elas, o limite não está simplesmente no dever a
ser cumprido, na regra estabelecida de forma pura ou no
cumprimento das ordens, mas naquilo que não se pode jamais fazer,
independentemente da ideologia. Não é a lei que garante a
moralidade. Como não se pode chegar a cinco na somatória de dois
mais dois, a barbárie continuará sendo barbárie, mesmo quando
legalizada pelo Estado, condição que se estabeleceu no nazismo. Esta
certeza sim, que traz como auto evidente o princípio moral é
importante nestes momentos. Mas, certamente não será suficiente se
não encontrar seu desdobramento na questão política que, por sua
condição, implica na ação dos homens no mundo. Neste sentido,
não é uma questão de liberdade individual ou de expressão, de
preservação da minha vida que está em jogo. É a preservação do
mundo, da vida dos homens e da possibilidade de existência para
todos, na esfera pública e na esfera privada. Na política, portanto, o
combate ao fascismo não é o desrespeito a uma “forma de
pensamento”, a prerrogativa de uma pluralidade do pensamento.
Neste caso, ao contrário, o que se apresenta é a luta contra um
projeto de morte e destruição, necrófilo em sua essência e sem nada
412
a oferecer. Deste modo, o que urge nestes casos, é a necessidade da
preservação daquilo que é o fundamento do pensamento político na
história dos homens, sua raison d’etrê (ARENDT, 2011): a
liberdade, entendida arendtianamente, na sua condição de realização
na esfera pública.
Sobre o bolsonarismo: exercício de reflexão com
um bolsonarista (imaginário)
Propor um exercício de reflexão com um bolsonarista sobre
o bolsonarismo exigiria, no mínimo, conforme destacamos acima,
imaginação. Pensando no processo de reflexão como uma proposta
dialógica, entre sujeitos que buscam o conhecimento e o
entendimento de questões diversas, está subsumida a necessidade de
interlocução entre as partes com perguntas e respostas e análises dos
argumentos apresentados. Por isso, a ideia de refletir com um
bolsonarista, por exemplo, não parece comportar, de modo algum,
a pretensão de conversar com um, especificamente ou pessoalmente.
Isso não por desprezo ou descaso à pessoa em sua dignidade humana,
mas porque efetivamente é praticamente impossível conversar com
um adepto do bolsonarismo raiz, pois o que está em pauta para este
não é o entendimento, mas a polarização. Por isso, algumas análises
que gostaríamos de fazer, numa perspectiva de diálogo e busca de
reflexão, deixamos registradas aqui como sendo dirigidas a um
bolsonarista imaginário e, não só a este, mas talvez também aos
admiradores deste coletivo e ou seus apoiadores de primeira hora,
muitos dos quais provavelmente já arrependidos. Nesta potencial
reflexão, exercício da imaginação, pressupomos alguém com quem
413
fosse possível estabelecer um mínimo comum na perspectiva daquilo
que nos provoca o pensamento: a busca pelo entendimento. Mesmo
cientes de que, provavelmente, um bolsonarista nunca leia estas
proposições, pois, a partir do título, é possível que já se dê por
definida sua percepção de mundo e entendimento. Poucos, nos
parecem, se desafiariam a realmente serem honestos e francos na
discussão política ou moral, por exemplo. Isto exige generosidade,
paciência, respeito e, em alguns momentos, concessão em
consideração ao outro em sua interpretação do mundo e da
realidade. Na mentalidade à qual estão arraigados, o que prevalece
não é a busca pela compreensão e pela solução do dissenso na busca
do consenso que se estabelece pelo bom senso. Ao contrário, o
mantra que predomina é o da negação sempre e da desqualificação
constante do oponente, muito antes de se pretender ouvi-lo ou
entendê-lo, mesmo que se caia em contradições ao fa-lo ou
reproduza incoerências insustentáveis ao mínimo escrutínio do
pensamento. Na sanha belicista do bolsonarismo, o que interessa
não é o entendimento, mas o não permitir, de qualquer modo, que
alguém entenda alguma coisa ou pense sobre alguma coisa, inclusive
o próprio interlocutor bolsonarista. Desdobra-se num esforço
libidinal intenso, na perspectiva freudiana, para transformar em
amor o que não pode ser amado. E, tal frustração constante,
manifesta-se na cegueira do coletivo que encontra na representação
do líder caricato e incapaz, ou pouco afeito à percepção do outro, a
sua compensação por aquilo que nunca alcançará, sustentado no seu
ódio ao entendimento, à intelectualidade, à ciência e a própria
compreensão de sua existência. Pelo muito pouco que tem a
oferecer, muito pouco tende a exigir de si. Para além da obediência
414
ao líder, admiração irrestrita, banalidade de uma vida administrada
e não experienciada, porquanto capaz de ser pensada, o que sobra ao
bolsonarista é viver o seu eterno nós contra todos, mesmo sem
perceber que, ao final de tamanha insanidade polarizada, nem
mesmo o s sobraria. Como não há projeto, como não há
perspectiva política, como não há fundamento ético que não saia da
pífia identificação com o moralismo da pior estirpe, a existência
pobre e triste do bolsonarismo raiz se resume ao pensamento mítico
e à crença nas teorias conspiratórias produzidas cotidianamente
pelos seus líderes, à aceitação da “mentira manifesta”, à “lacração
tão em voga nos espaços das Redes Sociais e ao culto à personalidade
do líder messiânico. Para tanto, alimenta-se do ódio à
intelectualidade, ao diferente, às minorias e à pluralidade do
pensamento. Sente-se confortável na liberação de seus
“entendimentos” e manifestações preconceituosas na análise das
coisas e sonha com um mundo politicamente incorreto, em que
imperaria a meritocracia, a competitividade, a valorização da
competência técnica na sua pior perspectiva, entre outros, quesitos
aos quais nem o próprio líder cultuado se encaixa. Inevitavelmente,
esse adepto também teria dificuldades para se encontrar ou se
reconhecer. Portanto, não é de política que trata o bolsonarismo.
Não é uma corrente de pensamento político. Ao contrário, é a
manifestação do ódio contra a política.
415
Um cristão no trono de São Pedro (
In
Homens em tempos
sombrios
)
Hannah Arendt incluiu a vida de Angelo Giuseppe Roncalli,
o papa João XXIII, no rol daqueles que, para ela, “iluminaram” o
mundo em “tempos sombrios”. Coloca-o ao lado de pessoas que
nada têm em comum entre si, aparentemente, a não ser o fato inicial
de, na sua maioria, serem contemporâneos e, apesar disso, nem se
conhecerem (ARENDT, 1987). Por outro lado, como relata a
própria Hannah Arendt no prefácio da obra, o que ela faz é reunir
uma coletânea de ensaios e artigos que “se refere basicamente a
pessoas como viveram suas vidas, como se moveram no mundo e
como foram afetadas pelo tempo histórico” (ARENDT, 1987, p. 7).
Por isso, deixa claro também que “os que buscam representantes de
uma época, porta-vozes do Zeitgeist, expoentes da História (com H
maiúsculo), aqui procurarão em vão” (ARENDT, 1987, p. 7). Não
é sua intenção, neste sentido, produzir um relato histórico, heroico
ou utópico de nenhuma das personagens escolhidas para compor
esta galeria. Demonstra-se, sim, sua intencionalidade de apresentar,
considerada sua condição de julgamento, a vida das pessoas que, para
ela, destacaram-se pela forma como viveram e se moveram, apesar
do “establishment” existente. Pessoas que, de algum modo, fizeram
brilhar sua luz, por mais fraca ou incerta que fosse irradiando-a
durante seu tempo no mundo (ARENDT, 1987).
No caso de João XXIII, a escolha de Arendt não é,
provavelmente, por afinidade religiosa, considerando o
distanciamento histórico entre judeus e cristãos católicos.
Tampouco se sustentaria se o critério fosse a intelectualidade,
416
condição da qual aparentemente não compartilhava o risonho papa
Roncalli, como relata a própria Hannah Arendt: “fosse quem ou o
que fosse o papa João XXIII, não era interessante nem brilhante, e
isso totalmente à parte do fato de ter sido um estudante medíocre e,
nos anos posteriores de sua vida, sem nenhum interesse marcado
intelectual ou erudito que fosse” (ARENDT, 1987, p. 65).
Entretanto, parece sugestiva a inclusão do homem que era não o
“título”, mas ele mesmo, considerando a perspectiva arendtiana de
julgamento a partir da existência de alguém, de seus atos, do seu agir.
Certamente, para Hannah Arendt, merece destaque a figura do
humilde Roncalli por ter transitado, dentro da estrutura da Igreja,
com a desenvoltura e a coerência de alguém que se manteve fiel aos
princípios, às opções e crenças que assumiu, demonstrando assim
um cuidado com o mundo e com a vida. E, apesar de tudo, não se
despersonalizou.
A própria escolha de Angelo Giuseppe Roncalli para papa já
demonstra uma condição que poderia ser explicada dentro da
concepção de milagre que Arendt entendia como a possibilidade do
novo, do inaudito, da mudança que foge ao controle e aos padrões
estabelecidos. Um acontecimento, um evento que vem para
“iluminar” o que estava obscurecido. Também, por que não dizer, o
nascimento de “algo novo”, inesperado. Talvez essa compreensão do
milagre, não conceitualmente ou intelectualmente, mas
vivencialmente esteja implícita na pergunta da camareira romana
que Hannah Arendt relata no início do texto. É o espanto, o não
entendimento de como tal coisa foi possível, no seu entender, a de
que um “verdadeiro cristão se sentasse no trono de São Pedro”
(ARENDT, 1987, p. 57). E, parece-me, que é dessa possibilidade
417
que trata a pensadora judia ao referir-se aos relatos que demonstram
a existência de alguém que se responsabiliza, assumindo sua história
e suas condições, como foi o caso de João XXIII que, para além das
estruturas hierárquicas da instituição católica, entende ela manteve-
se fiel ao Evangelho do Cristo e à sua simplicidade.
Por isso, para Arendt, sem o compromisso do relato
histórico, o que interessa é demonstrar a imagem do homem, a partir
do senso comum, servindo-se de histórias sobre a sua pessoa e as suas
ações. Não destaca as biografias oficiais ou não se prende somente a
elas para compreender a pessoa. Neste sentido, esclarece que “[...] as
histórias principais e mais ousadas que então corriam de boca em
boca não foram narradas [...]” e que “[...] mesmo que se negasse sua
autenticidade, sua própria invenção seria bastante característica do
homem e daquilo que as pessoas pensavam a seu respeito, para torná-
las dignas de relato” (ARENDT, 1987, p. 60).
Quando ainda a camareira, em sua espontaneidade pergunta
se “ninguém tinha consciência de quem ele era?”, espantada com o
fato de terem-no escolhido para papa sem que ele representasse
aparentemente as expectativas costumeiras da alta hierarquia da
Igreja, esta parece para Arendt uma questão chave. Ou seja,
realmente não conheciam os cardeais o homem Roncalli, mas apenas
a figura de alguém que não criaria maiores problemas e serviria para
um processo de transição do papado. Evidentemente, no seu curto
tempo como papa, João XXIII pôde ser um pouco mais “conhecido”
por aqueles que podem ter articulado estrategicamente a simples
manutenção de uma estrutura. Como o prenúncio de um “tiro pela
culatra”, cita Arendt que Roncalli anotou que “ser manso e
418
humilde... não é a mesma coisa que ser fraco e complacente”
(ARENDT, 1987, p. 58). Completa ainda:
Era precisamente isso que iriam descobrir, que a humildade
perante Deus e a docilidade perante os homens não são o
mesmo, e, por maior que fosse a hostilidade contra esse papa,
único entre certos setores eclesiásticos, é algo que depõe a favor
da Igreja e da hierarquia o fato de não ser uma hostilidade ainda
maior, e assim muitos altos dignatários, os príncipes da Igreja,
puderam ser derrotados por ele (ARENDT, 1987, p. 58).
A análise de Hannah Arendt sobre a vida de Angelo
Giuseppe Roncalli, o papa João XXIII, é dotada de uma sagacidade
e de uma vivacidade em seu relato que nos permite também uma
compreensão da pessoa da própria Arendt. A sua opção por Roncalli
e por outras figuras elencadas na obra, demonstra-se como escolha
de exemplos de pessoas que estiveram fora do seu tempo e com as
quais ilustra questões que, todavia, são atemporais e que podem
iluminar nosso presente. Aqueles que são “párias”, fora do seu
tempo, que não representam o “espírito do seu tempo” (Zeitgeist)
são, preferencialmente, pessoas da sua escolha. Para Arendt, a
preocupação não é historiográfica, mas formativa. Neste sentido, a
experiência é que deve ser compreendida em sua inteligibilidade e
não um simples relato.
Tais concepções ancoram-se, provavelmente, na sua
percepção da necessidade da tradição, não como reprodução espúria
do que está estabelecido, mas como possibilidade de aprender com
as “lições do passado”, com a observação dos “modelos” que se
tornaram aqueles que se mantiveram fiéis aos princípios e que não
419
ficaram apenas “ao sabor dos ventos”. Tradição no sentido de não se
perder “os fios da história”, mas também, de possibilitar o
surgimento do novo, do milagre que pode se apresentar a qualquer
momento, independentemente do que se tente determinar ou
encerrar deterministicamente. Essa parece ser uma das características
da vida do então inexpressivo Roncalli, antes e depois de ser papa.
Assim, é rica a análise de Hannah Arendt (1987, p. 66) ao final do
texto quando sintetiza aquilo que representava a figura de João
XXIII:
Sem dúvida, foi a pobreza de espíritoque o preservou das
ansiedades e cansativas perplexidades e lhe deu a força da
simplicidade audaciosa. É ela também que contém a resposta à
pergunta sobre como foi que se escolheu o homem mais audaz,
quando o que se queria era um homem dócil e complacente.
Ele realizou seu desejo, recomendado pela Imitação de Cristo
Thomas à Kempis, um dos seus livros favoritos, de ser
desconhecido e pouco estimado, palavras que já em 1903
adotou como seu motto. Provavelmente era tido por muitos
afinal, viveu num meio intelectual como um tanto tolo, não
simples, mas simplório. E é improvável que aqueles que
observaram durante décadas que ele realmente parecia nunca
[ter] sentido nenhuma tentação contra a obediência, tenham
entendido o tremendo orgulho e autoconfiança desse homem
que nunca, nem por um momento, renunciou aos seus juízos,
ao obedecer àquilo que para ele não era a vontade de seus
superiores, mas a vontade de Deus. Sua fé: Seja feita a vossa
vontade, e é verdade, embora tivesse dito ele mesmo, que ela
era totalmente evangélica em sua natureza, e verdade ainda
que ela exigia e obtinha respeito universal e edificava a muitos.
Foi a mesma fé que inspirou suas palavras mais grandiosas,
420
quando no leito de morte: Todo dia é um bom dia para nascer,
todo dia é um bom dia para morrer.
Independentemente da referenciação religiosa, Roncalli
apresenta-se como legítimo integrante daqueles que Hannah Arendt
escolheu para seus companheiros de viagem na História. Viveu ele,
de alguma forma, considerando a concepção arendtiana, o amor
mundi e, certamente dotou de significado sua existência. Neste
sentido, pode-se compreender, mais do que conhecer, os homens em
sua singularidade. Em tempos de crise, pequenos ou grandes
“luzeiros” podem surgir. Pessoas capazes de julgar,
independentemente de sua condição intelectual, quais caminhos
seguir, que rumos tomar. Mesmo que, como expressava Arendt, não
se tenha “um corrimão” a nos guiar.
Sobre o aplauso
Uma forma de manifestação das pessoas, em shows,
palestras, eventos ou algumas outras atividades, é o aplauso que,
geralmente, eleva a figura do aplaudido à condição, mesmo que
subliminarmente entendida, de aparentemente melhor entre os
demais. Confere admiração e reconhecimento, enquanto destaque
diante dos existentes, por sua expressividade ou percepção de algum
mérito que, aparentemente, não caberia aos demais. Ou, neste
sentido, à plateia que aplaude. Por isso, sobre a questão do aplauso,
se me permitem, gostaria de apropriar-me aqui da constatação
421
freireana
73
de que, quando aplaudimos alguém, na realidade estamos
nos aplaudindo. Ou seja, aplaudimos alguém porque concordamos
com o seu pensamento, porque pensamos como aquele que
aplaudimos ou encontramos alguém que pensa como nós ou, ainda,
representa aquilo que pensamos. Por isso, me parece que não é
mérito algum ser aplaudido, mas reconhecimento de sua
proximidade com a realidade contemplada por muitos, que
compartilham, pelo menos fundamentalmente, das mesmas
percepções. Neste sentido, sem a pretensão de tratar de uma falsa
modéstia que muitas vezes permeia quem assim é reconhecido, o que
nos provoca a reflexão é a necessidade de pensarmos filosoficamente,
cada vez mais, sobre quem ou o que estamos aplaudindo. E,
também, se almejamos ser aplaudidos por determinados coletivos.
Certamente, isso diz muito sobre nós mesmos.
73
Consta que, indagado uma vez sobre se não se incomodara ou se sentira constrangido
diante de uma plateia que o aplaudira efusivamente após uma fala na ONU Organização
das Nações Unidas, Paulo Freire respondeu com tranquilidade que, na realidade, não, pois,
para ele, quando as pessoas aplaudem alguém, na realidade elas “se aplaudem”. Seria, assim,
o reconhecimento de que se identificam com aquele que aplaudem e, concomitantemente,
que muitas pessoas compartilham da proximidade dos pensamentos de umas com as outras.
422
423
ANEXO:
Ensaio artístico: releitura de “Os pilares da sociedade
Evento: Diálogos Educacionais
Tema: Elaborar o passado para pensar o presente
Ano: 2017
Local: UENP Universidade Estadual do Norte do Paraná
Atividade: releitura de uma obra de arte
FICHA TÉCNICA:
Obra:Os pilares da sociedade
Autor: George Grosz
Onde ver: Staatliche Museenzu Berlin, Alemanha - Patrimônio
Prussiano, Galeria Nacional
Ano: 1926
Técnica: Óleo sobre tela
Tamanho: 2,00m x 1,08m
Movimento: Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade)
424
Sobre a obra OS PILARES DA SOCIEDADE
A obra pintada em óleo sobre tela por George Grosz (1853-
1959) no ano de 1926 apresenta uma crítica à sociedade da época.
Expressão do movimento alemão Nova Objetividade (Neue
Sachlichkeit), a obra é datada do período entre guerras, que apresenta
o contexto de derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial
(1914-1918) e, que, na sequência, se fechará com a explosão da
Segunda grande Guerra (1933-1945). De acordo com Eva Afonso
(2013)
74
,
Foi nesta Europa destruída, que passou de credora a devedora
de outras partes do mundo e na ineficaz República de Weimar
(Alemanha) que nasceu um novo movimento artístico - a Nova
Objectividade (Neue Sachichkeit) de que G. Grosz fez parte.
Este movimento opunha-se à arte emocional expressionista e à
abstracção cubista e construtivista. Os artistas alemães da Nova
Objectividade assumiram, neste período de pós-guerra, uma
abordagem política mais aberta através de trabalhos mordazes e
caricaturais que denunciavam a situação social vivida durante a
República de Weimar.
Pintor e caricaturista, Grosz viveu esse período conturbado
que representou o primeiro grande conflito mundial. A chamada
Primeira Guerra modifica o mapa europeu e, também, os valores da
região. Num momento em que tudo parecia estar à deriva, a Europa
sangrou praticamente até a última gota (AFONSO, 2013). Neste
contexto, certamente sem saber que em breve o mundo entraria num
74
Pintar a óleo. Acesso em: 27 maio 2017.
425
novo conflito, mais feroz e sem precedentes, que levariam à
experimentação daquilo que Adorno definiria como a barbárie de
um novo modo e de onde Hannah Arendt extrairia, a partir de suas
observações, conceitos como a banalidade do mal, é que George
Grosz produz a sua obra. Ele satiriza a sociedade alemã e os pilares
sobre os quais ela se assenta: os que enganam, os corruptos, os
fazedores de opinião, antes da ascensão de Hitler ao poder
(AFONSO, 2013). A partir da visão difundida de que a sociedade
tinha seu sustentáculo, o artista fará uma crítica a partir da
satirização e questionamento dos chamados pilares da sociedade”.
Por isso, as personagens típicas da República de Weimar estão
presentes: o militar, o religioso - representado por um padre, o
político, o jornalista e o chauvinista (em primeiro plano) que,
teoricamente, chefia os Pilares da Sociedade” (AFONSO, 2013).
Aparentemente, Grosz observa e destaca os elementos que,
de certo modo, estavam presentes num contexto que se
transformaria, em pouco tempo, na página mais terrível da História
da Humanidade. Neste contexto, para melhor entendermos a obra
de Grosz, reproduzimos abaixo os principais destaques da tela, rica
em detalhes e, certamente, profética em sua apresentação estética
daquilo que ninguém jamais deveria desejar que se repetisse. Os
destaques foram retirados do comentário de Raul Cézar (2014):
1 - O plano de fundo: para representar o caos social sustentado
pelos "pilares", o pintor criou a obra sobre completa desordem
- que chega ao auge no prédio em chamas (parte superior
esquerda da obra).
426
2 - O pilar social "militar": para fortalecer a ironia, Grosz pôs
- na parte superior direita da obra - alguns soldados, e o soldado
em evidência tem sua espada suja de sangue e ainda aponta uma
arma para frente.
3 - O pilar social "religioso": Com um sorriso tosco, o clérigo
corre em direção oposta aos militares e com os braços abertos.
Grosz grita a hipocrisia que mora nas elites religiosas que
permaneceram - e ainda permaneceriam - caladas durante as
atrocidades da guerra.
4 - O pilar social "político": Com merd - merda mesmo - na
cabeça, o líder político alemão é retratado como um fantoche
das imposições políticas. O social-democrata é satirizado pelo
rosto que aparenta embriaguez.
5- O pilar social "jornalístico": Com um penico na cabeça, o
jornalista da pintura exibe uma pena extensa e pomposa, segura
também seus escritos com aparente irritação. Grosz apresenta o
jornalista louco e irrisório no caos político que se desenhara
naquele momento da história.
6- O pilar social "ultranacional": Em primeiro plano -
indiscutível destaque - está o cidadão ultranacionalista.
Exibindo a suástica - símbolo nazista por excelência - na
gravata, o homem empunha uma espada numa mão e na outra
segura um copo de cerveja. Em sua cabeça, há uma imagem de
batalha: um cavaleiro empunhando uma lança.
Por fim, podemos dizer que Grosz usava a fealdade como
uma arma. Apresentava uma arte violenta para responder à violência
que existia na sociedade do seu tempo(AFONSO, 2013).
427
FICHA TÉCNICA:
Obra: Releitura de Os pilares da sociedade” - Brasil 2017
Autor: João Vicente Hadich Ferreira
Exposição: Diálogos Educacionais - 2017 - Anfiteatro do PDE -
Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP - Cornélio
Procópio - Paraná
Ano: 2017
Técnica: Óleo sobre tela
Tamanho:1,10m x 0,70m
Movimento: Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade)
Sobre a releitura da obra OS PILARES DA SOCIEDADE de
George Grosz
428
Pensando na releitura de uma obra de arte, mais
especificamente, uma tela, apresentou-se à nossa lembrança o
quadro de 1926 de George Grosz (1853-1959), pintor e caricaturista
do movimento Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade). Tivemos um
primeiro contato com a imagem ao final de 2004, quando da
publicação do Livro Didático de Filosofia do Estado do Paraná em
que a tela em questão figurou como a abertura de todos os capítulos
do conteúdo de política. Portanto, como primeiro exercício no
campo da pintura, nos desafiamos na expectativa de atualizar a
experiência estético-política produzida pelo artista naquele contexto
do início do século XX que, se não é o mesmo que estamos vivendo
na conjuntura atual, parece-nos apresentar elementos semelhantes
para que possamos fundamentar uma releitura deste clássico. É neste
sentido que nos esforçamos para transpor para a tela, dados os nossos
limites artísticos, uma forma de leitura que a imagem proporciona,
buscando a experienciação estética e sua fruição, não no contexto do
consumo ou do prazer demandados pela perspectiva da sociedade de
massas, mas da manifestação estético-política citada.
Mantendo no possível a fidelidade às ideias do autor
referenciado, enquanto tributo à sua criatividade, ousamos, por
outro lado, fazer uso da liberdade que nos permite uma releitura no
sentido de adequar elementos da obra para uma contextualização da
nossa realidade presente. Evidentemente, não é na perspectiva de
agradar ou torná-la consumível, mas na perspectiva de realmente
seguir a proposta do original de observar e refletir (e, se possível levar
outros à reflexão), mantendo um traço satírico, sobre os possíveis
pilaresda nossa sociedade brasileira que, salvo algum engano da
nossa parte, são muito similares aos do tempo de Grosz. No nosso
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caso, elencamos como representações destes sustentáculos sociais
atualmente, algumas personagens que, parece-nos, estarão em
acordo com o imaginário popular e as narrativasproduzidas pela
mídia e redes sociais, entre outros meios possíveis. À figura do
sacerdote católico apresentada pelo artista como a representação da
omissão da Igreja no período, que levaria ao nazismo, colocamos
como alternativa, neste momento, a figura do juiz, representando o
judiciário e sua magnânima indiferença ao sofrimento do povo, por
assim dizer, representando em muitos contextos mais uma casta
privilegiada do que a defesa sem interesses da justiça efetivamente.
Das outras figuras, mantivemos a imagem dos soldados,
representando a polícia como o aparato armado do Estado, o povo
no exercício de uma das suas formas de luta e o político que deveria
representar a defesa da via constitucional. Compõem, também, a
imagem do jornalista, ainda com o penico na cabeça e a figura do
político extremista, aquele que recrudesce e representa uma boa
parcela da sociedade que traz à tona o moralismo religioso, o
atrelamento com o capital e as ideias nacionalistas, intervencionistas
e, evidentemente, fascistas.
Neste contexto, permitimo-nos trabalhar com as cores, às
vezes, mais vivas e a inserção de elementos que são próprios do nosso
tempo, mas que, apesar de sua atualidade material ou tecnológica,
não diferem muito dos modos, meios e métodos de sempre que,
tanto no período do quadro original, quanto no de hoje, expressam
uma mesma possibilidade: a do retorno da barbárie a qualquer
momento.
Numa conjuntura de polarização das ideias, centradas em
posicionamentos não dialéticos, mas excludentes da compreensão do
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pensamento diferente, deparamo-nos com o recrudescimento do
fascismo. Tal fato está expresso, por exemplo, em manifestações
características daqueles que acabam se identificando com uma
personalidade autoritária, como aponta e esclarece a tese
apresentada por Adorno et al. (1965) em seu clássico estudo dos anos
1940 nos Estados Unidos. Rememorando a percepção arendtiana
sobre a banalidade do mal”, coloca-nos em alerta o fato de que tais
manifestações deste pensamento fascista estão espraiadas nos mais
diversos setores ou campos da sociedade brasileira ou mundial, nos
mais diversos países, ideias e ideologias, religiões ou partidos
políticos. O autoritarismo recrudesce nas relações e nas perspectivas
de uma sociedade homogênea, harmônica, equilibrada, sem
conflitos ou contradições e nas propostas de projetos ideológicos,
como o da escola sem partidoe nas abomináveis manifestações
higienistas de governantes pretensamente apolíticos ou, em outros
casos, machistas, sectários e moralistas. Nem por isso, menos
corruptos.
Deste quadro, portanto, e de muitos outros que se compõem
como um grande mosaico neste momento da história, propusemos
uma releitura que, na sequência, com os destaques dos detalhes
retratados, almejamos tornar ainda mais clara.
1 - O plano de fundo: seguindo a inspiração de Grosz,
mantivemos a representação do caos social sustentado pelos
"pilares", constituindo o conjunto da obra como uma completa
desordem, com a manifestação mais expressa disso na imagem
também do prédio em chamas no canto superior esquerdo do
quadro. Na direção desse caos, o povo, na sua expressão
trabalhadora com o cartaz da greve, mas ignorado pelo
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judiciário e, tendo ao lado, de costas, quem deveria defendê-lo,
marchando sob a bandeira do grande capital, com armas
brancasensanguentadas e outras prontas para disparar.
2 - O pilar social militar: atualizando este pilar,
apresentamos as imagens dos soldados da tropa de choqueda
Polícia Militar, representando a violência legitimada pelo
Estado quando das vezes em que, não preservando as garantias
constitucionais dos cidadãos, promovem um banho de sangue
ou uma verdadeira guerra contra o comum dos mortais - o
trabalhador - e suas lutas. Exemplo cssico, o massacre de 29
de abril de 2015 no Estado do Paraná, onde ficaram feridos
mais de 200 professores da Rede Estadual de Educação. No
cumprimento das ordens, muitos policiais militares atendem
aos governantes e descolam-se de sua condição de trabalhadores
também. Neste contexto, o cassetete substitui a espada, mas da
mesma forma, mantêm-se sujo de sangue. A arma continua
empunhada e apontada para a frente, representando o elemento
de poder que, muitas vezes, sustenta a arbitrariedade de decisões
tomadas contra aquele que está inferiorizado.
3 - O pilar social jurídico: Neste personagem, apresentamos
uma substituição à figura do sacerdote, representante do "pilar
social religioso" de Grosz. Se naquele contexto, no período
entre guerras em que se dará a ascensão do nazismo, o padre é
representado com um sorriso tosco, correndo com os braços
abertos em direção oposta aos militares, hoje apontamos com
essa característica a figura do judiciário em seu juridiquêse na
sua manutenção dos privilégios aviltantes para uma realidade
que não garante nem a dignidade mínima para a maioria dos
trabalhadores brasileiros. Em tempos de golpe e rupturas do
jogo democrático, de convicções mais do que de provas, juízes
aparecem como heróis, defensores da moral e da ética, mas,
como a igreja no tempo de Grosz, representam a hipocrisia. Se
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lá, se referia ao silêncio do clero, aqui se refere à manutenção
dos seus altos salários e penduricalhos, achando-se dignos para
tal e, deste modo também, silenciando ou procrastinando
muitas vezes, o exercício da justiça diante das atrocidades que
se manifestam. No mesmo contexto da obra original, de costas
para o povo.
4 - O pilar social político: Como o político da tela original,
o nosso representante tamm contém fezes na cabeça.
Mantendo a ideia da proximidade com o original, a liderança
política brasileira, tanto quanto a alemã daquele momento, é
representado como um fantoche das imposições políticas
(CÉZAR, 2014). Aparentando também a embriaguez, o retrato
do político atual é identificado com as duas promessas e
predominâncias políticas ao longo de praticamente 30 anos de
redemocratização, com o botom e o broche símbolo dos
principais partidos e o Pavilhão Nacional em sua mão,
representando sempre a ideia de Ordem e Progressoque, no
fundo, tem sido dada pela manifestação da realidade fisiologista
da nossa política.
5- O pilar social jornalístico: Mantendo o penico na cabeça,
o jornalista da releitura mantém aquela mesma pena extensa e
pomposa(CÉZAR, 2014), segurando também vários de seus
escritos com certa irritação. Explicitando os textos, a pauta a ser
tratada é tida como positiva, mesmo que, na realidade, seja
impositiva. A logo do penico representa o monopólio da
informação e a criação da narrativa que representa interesses,
expressa também na pauta. Como elemento tecnológico novo,
o celular numa das mãos indica a celeridade de uma sociedade
da informação, mas não necessariamente o processo de
esclarecimento e formação.
6- O pilar social ultranacional: Como na obra original,
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aparece em primeiro plano a figura do cidadão e político
ultranacionalista. Apesar de ninguém aparentemente fazer uso
publicamente, nossa figura continua exibindo a suástica
(símbolo nazista por excelência) que representa aqui o
pensamento fascista, juntamente com outros sinais que o
complementarão. Como o chauvinista alemão do tempo de
Grosz, esta figura aparece muitas vezes como lutador e herói,
marcado pelas cicatrizes em seu rosto e pela defesa dos
interesses nacionais. Com a cor do terno lembrando a da farda
do exército, traz em sua cabeça a imagem da força militar - o
tanque de guerra - e o crachá de apoio à intervenção militar.
Evidentemente, representa uma percepção defendida na
conjuntura atual de que os militares não deram um golpe de
Estado em 1964, mas fizeram uma revolução, libertando o
Brasil do comunismo, mesmo que a maioria das pessoas nem
saiba o que é democracia, quanto mais o comunismo. No
conjunto destes elementos ainda, a Bíblia numa das mãos,
representação da bancada política que recrudesceu nos últimos
tempos e ganhou força, conhecida como Boi, Bala e Bíblia e,
na outra, o pato que arrastou milhares pelas ruas, dando
início ao retrocesso dos direitos conquistados a partir da
Constituição de 1988. Representando tanto o extremismo
religioso quanto os interesses do capital financeiro, essa
liderança política ultranacionalista e moralista é, na verdade, a
expressão mais pura do pensamento fascista.
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SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Lívia Pereira Mendes
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
O presente texto, pensado na perspectiva
da Filosoa da Educação, toma como base
o alerta adorniano de que o imperativo pri-
meiro de toda educação é o de que Auschwitz
não se repita. Na dialética entre civilização e
barbárie, Auschwitz é a irrupção na história
da barbárie perpetrada. Nestes tempos som-
brios, vivemos um continuum: do nazifascis-
mo daquele momento chegamos ao fascis-
mo do nosso tempo. Na atual conjuntura, de
exacerbação do autoritarismo e de projetos
autocráticos, a hipótese é que temos uma
atualização destes elementos sob a égide do
neoliberalismo e do advento das Redes Sociais,
além da potencialização da capacidade de
manipulação das subjetividades dos existen-
tes pelo uso dos algoritmos. É possível, ain-
da, educar numa civilização cujo legado tem
sido a barbárie? Nosso problema é político.
No contexto do problema, o objetivo se es-
tabelece: reetir sobre a questão do fascismo,
no sentido de se pensar a educação como
condição de emancipação.
João Vicente Hadich Ferreira, Doutor em
Educação pela Universidade Estadual Pau-
lista (UNESP). Mestre em Educação e li-
cenciado em Filosoa pela Universidade
Estadual de Londrina – UEL. Professor ad-
junto do Curso de Pedagogia / Campus de
Cornélio Procópio e do Programa de Pós-
-Graduação em Educação (PPEd) / Campus
de Jacarezinho, ambos da Universidade Es-
tadual do Norte do Paraná UENP. Inte-
grante do “Grupo de Pesquisa e Ensino em
Políticas Públicas em Educação e Processos
de Escolarização” GEPEPEE (UENP) e
do Grupo de Pesquisa “Teoria Crí-tica: Fi-
losoa, Educação e Cultura” (UNESP).
A extrema relevância e atualidade deste livro [...] se torna evidente quando con-
sideramos a advertência de Theodor Adorno sobre a persistência das condições
objetivas geradoras do fascismo, mesmo no interior de sociedades democráticas.
[...] O leitor não terá diculdade em reconhecer a extrema atualidade deste livro
[...], pois sua reexão repercute problemas que não fazem parte de um passado
histórico superado, mas reverberam na sociedade brasileira atual, sob o impulso da
catástrofe ética e social representada pelo bolsonarismo recente. É relevante notar
que o início da pesquisa de doutorado que originou a presente obra, data do ano
de 2017, época em que o ovo da serpente estava sendo lentamente gestado, trans-
parecendo na mentalidade moralmente perniciosa do movimento “Escola sem
partido”. [...] Um dos grandes méritos da reexão exposta neste livro consiste em
desmisticar a repulsa pública pela esfera da política, que em si mesma integra o
conjunto de sintomas da síndrome fascista. Ao contrário da mentalidade de recusa
da política, o autor realça a urgência de uma politização autêntica e autônoma da
esfera do poder, para que se torne possível um exercício público potencialmente
resistente à disseminação da barbárie. [...] Hannah Arendt [...] nos lembra que
“política” é a esfera do debate público entre diferentes, movido pela perspectiva
de um mundo comum. A verdadeira política se traduz no exercício da liberdade
potencialmente voltada para o rompimento do estado de exceção que na realidade
atual silencia o debate público e massacra todos aqueles que representam a dife-
rença. [...] O fascista [...] não deseja conservar nada, pois seu desejo, reprimido,
ou muitas vezes declarado, se dirige à destruição de tudo aquilo que for possível,
desde a vida das pessoas que existem à margem da normalidade social, até as pró-
prias instituições democráticas. [...] Em sintonia com as reexões de Theodor
Adorno, Hannah Arendt, e outros pensadores voltados para a crítica do fascismo,
[...] para entender o que é a educação, nesta obra, devemos nos afastar dos aspec-
tos instrumentais muito presentes na escola, buscando compreender esse termo
como sinônimo de formação do espírito, em sentido contrário à barbárie. [...] Os
leitores que estiverem sintonizados com uma compreensão ampla da educação,
voltada para a desbarbarização e pacicação da sociedade, e sobretudo dirigida ao
combate a todo tipo de preconceito, saberão encontrar neste livro uma obra de
leitura intelectualmente estimulante, esclarecedora e prazerosa.
AUTORITARISMO, FASCISMO E EDUCAÇÃO
SINÉSIO FERRAZ BUENO
João Vicente H. Ferreira
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 396/2021
Processo Nº 23038.005686/2021-36
AUTORITARISMO,
FASCISMO
E EDUCAÇÃO
João Vicente Hadich Ferreira
ainda a premência de que
Auschwitz não se repita