Desafios à segurança
Pública
Lu í s An t ô n i o Fr A n c i s c o d e so u z A
Bó r i s ri B e i r o d e MA g A L h ã e s
th i A g o te i x e i r A sA B A t i n e
(or g .)
Desafios à segurança Pública:
controle social,
Democracia e gênero
Marília
2012
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
Diretora:
Profa. Dra. Mariângela Spotti Lopes Fujita
Vice-Diretor:
Dr. Heraldo Lorena Guida
Copyright© 2012 Conselho Editorial
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
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Antonio Mendes da Costa Braga
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Cláudia Regina Mosca Giroto
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Maria Rosângela de Oliveira
Mariângela Braga Norte
Neusa Maria Dal Ri
Rosane Michelli de Castro
Ficha catalográfi ca
Serviço de Biblioteca e Documentação – Unesp - campus de Marília
Editora afi liada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora Unesp
D441 Desa os à segurança pública : controle social, democracia e gênero / Luís
Antônio Francisco de Souza, Bóris Ribeiro de Magalhães, Thiago
Teixeira Sabatine (org.). – Marília : O cina Universitária ; São Paulo :
Cultura Acadêmica, 2012.
228 p.
Inclui bibliogra a.
ISBN 978-85-7983-280-2
1. Segurança pública - Brasil. 2. Polícia. 3. Controle social. 4.
Democracia. 5. Relações de gênero. I. Souza, Luís Antônio Francisco de.
II. Magalhães, Bóris Ribeiro de. III. Sabatine, Thiago Teixeira. IV. Título.
CDD 363.20981
5
Sumário
Apresentação .................................................................................. 7
O Fim da Inocência: Um ensaio sobre os atributos do saber
policial de rua
Jacqueline de Oliveira Muniz ........................................................... 13
Resguardar ou punir: produção e usos de registros em Guardas
Municipais do Rio de Janeiro
Ana Paula Mendes de Miranda ........................................................ 43
A “cultura policial”: um debate teórico-metodológico
André Rosemberg ............................................................................. 67
Controle Social da Corrupção: a Ouvidoria de Polícia do Estado
de São Paulo
Rita de Cássia Biason; Tamiris Hilário de Lima Batista ..................... 87
Gênero, Feminismos e Políticas Sociais
Lucila Scavone................................................................................. 109
Segurança pública e saúde: a prevenção como desao para
a atuação sobre as violências e acidentes
Bóris Ribeiro de Magalhães; iago Teixeira Sabatine ........................ 127
Aprendendo as tarefas do feminino: os primeiros presídios para
Mulheres no Brasil das décadas de 1930 e 1940
Bruna Angotti ................................................................................. 141
Mulheres Invisíveis? Condição da Mulher no Sistema de
Justiça Criminal brasileiro
Heidi Ann Cerneka ......................................................................... 163
A política prisional paulista e a emergência do PCC: considerações
sobre a formação de uma especíca teia social
Camila Nunes Dias ......................................................................... 181
Sociedade punitiva e novas dinâmicas da segurança nos
municípios brasileiros
Luís Antônio Francisco de Souza ....................................................... 205
Sobre os Autores ............................................................................. 223
7
ApreSentAção
Nas duas últimas décadas, a questão da segurança pública
passou a ser problema fundamental e principal desao ao estado de direito
no Brasil, com discursos e práticas que mobilizaram a opinião pública e
os debates de especialistas. Os problemas históricos da área da segurança
continuam a pautar os debates. De uma forma geral, estão relacionados ao
aumento das taxas de criminalidade e a corrosão da sensação de segurança,
sobretudo nos grandes centros urbanos. Mas a agenda das críticas ainda é
vasta e compreende as diculdades relacionadas à reforma das instituições
da administração da justiça criminal, a persistência da violência policial,
a ineciência preventiva das polícias e a superpopulação nos presídios. A
área da segurança tem interface com as condições de internação de jovens
em conito com a lei, a violência de gênero, contra homossexuais, idosos
e negros. De uma forma geral, o debate em torno da segurança mostra
preocupação com o aumento dos custos operacionais do sistema, com a
ineciência da investigação criminal e das perícias policiais, bem como
com a morosidade judicial. São inúmeros os desaos para o sucesso do
processo de consolidação política da democracia no Brasil, e a segurança
parece ainda ser o nosso calcanhar de Aquiles, imersa em críticas por falta
de transparência e accountability.
Não obstante, nas duas últimas décadas, assistimos ao perceptível
aumento de estudos na área de segurança pública no Brasil, com conexões
com as questões do controle social, da democracia e do gênero. Pesquisas
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
8
realizadas em várias disciplinas acadêmicas têm apresentado temas e objetos
diversicados, adensando o debate no nível teórico e metodológico. Este
contexto de ampliação dos estudos tem intensicado o intercâmbio entre as
ciências humanas e as ciências da saúde, mas também tem proporcionado
novos espaços de diálogo entre academia, governos e sociedade civil.
Observa-se a ampliação dos temas e problemas afetos à segurança
pública, bem como o surgimento de novos atores e de novos paradigmas
nas políticas públicas. O problema da segurança, portanto, não está apenas
adstrito ao repertório tradicional do direito e das instituições da justiça,
particularmente, da justiça criminal, presídios e polícia. Evidentemente,
as soluções passam pelo fortalecimento da capacidade do Estado em gerir
a violência dentro do repertório dos direitos e garantias constitucionais.
Mas envolvem também o estimulo ao aumento dos pontos de contato das
instituições públicas com a sociedade civil e com a produção acadêmica
mais relevante à área.
Em síntese, os gestores da segurança pública (não apenas policiais,
promotores, juízes e burocratas da administração pública) enfrentam
desaos de fazer com que o debate sobre o tema transforme-se em real
controle sobre as políticas de segurança pública. Mais ainda, é importante
que as politicas públicas estejam abertas à parceria entre órgãos do poder
público e sociedade civil na luta por segurança e qualidade de vida dos
cidadãos brasileiros. Trata-se na verdade de ampliar a sensibilidade de todo
o complexo sistema da segurança aos inuxos de novas ideias e energias
provenientes da sociedade e de criar um novo referencial que veja na
segurança espaço importante para a consolidação democrática.
Com intuito de promover o debate necessário sobre os desaos da
segurança, a presente obra procurou reunir as contribuições apresentadas
no I Seminário de Segurança Pública: Controle social, democracia e gênero e
no I Fórum de Pesquisa sobre Vitimização de Mulheres no Sistema de Justiça
Criminal, organizados pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, Departamento de Sociologia e Antropologia, Grupo de Estudos
em Segurança Pública (GESP/UNESP) e o Observatório de Segurança
Pública da UNESP (UNESP/CNPq), na Faculdade de Filosoa e Ciências
da UNESP, Campus de Marília-SP, entre os dias 14 e 16 de setembro de
2011.
9
D S P:
 ,  
Pretende-se abrir um espaço de produção e reexão, reunindo
pesquisadoras e pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento para
pensar o lugar da segurança pública nas pesquisas e na opinião pública
do país. Os desaos contemporâneos são grandes, mas as condições são
favoráveis para a realização de um balanço da produção na área e para
a avaliação das políticas de segurança pública, em termos de avanços,
permanências e retrocessos.
Com o artigo intitulado “O Fim da Inocência. Um ensaio sobre
os atributos do saber policial de rua”, a pesquisadora Jacqueline de Oliveira
Muniz abre a coletânea com uma reexão sobre a prática discricionária
dos policiais militares. Ela questiona como o mandato público de polícia
é acionado no cotidiano, observando as experiências de atendimento à
população. A autora aborda as agruras, os saberes produzidos e os riscos
assumidos no modus operandi desses prossionais.
No artigo “Resguardar ou punir: produção e usos de registros em
Guardas Municipais do Rio de Janeiro”, Ana Paula Mendes de Miranda
trata da organização e gestão da informação na Guarda Municipal. Com
um olhar etnográco, a autora aponta para as formas e atitudes com as
quais os agentes se articulam e efetuam sua organização prossional. O
contato com a população e com outras agências do poder público cria
nos agentes a necessidade de codicar seus atos e reproduzir modelos de
comportamento que não estavam previstos em seus mandatos e em sua
formação.
O artigo A cultura policial’: um debate teórico-metodológico”,
de André Rosemberg, aborda as discussões clássicas e contemporâneas da
Sociologia da Polícia e a produção e uso das convenções acerca da “cultura
policial” ou subcultura policial”, como ferramentas analíticas para
compreender as ações e as atitudes dos prossionais.
No artigo “Controle Social da Corrupção: a Ouvidoria de Polícia
do Estado de São Paulo”, Rita de Cássia Biason e Tamiris Hilário de Lima
Batista apresentam os mecanismos de controle social e transparência das
políticas de segurança pública no contexto da democracia brasileira. Estão
em questão as denúncias apresentadas à Ouvidoria da Polícia de São Paulo
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
10
e a ecácia dos processos instaurados nesta instituição para promover ações
policiais que respeitem os direitos de cidadania.
Embora o país tenha dado passos importantes para o
reconhecimento de direitos, grupos sociais especícos, como negros,
mulheres, crianças, homossexuais e jovens ainda são em grande medida
vítimas de discriminação e têm suas demandas por segurança bloqueadas
por valores e comportamentos arraigados. A segurança pública sofre de um
grave décit de compreensão das diferenças e isto traz consequências para
quem mais precisa dela.
Em “Gênero, Feminismos e Políticas Sociais”, Lucila Scavone
apresenta o longo processo histórico das lutas feministas, bem como as
conquistas de gênero propiciadas pelas lutas contra a discriminação, a
violência e o acesso desigual ao emprego e ao salário. São vários os avanços,
mas também são importantes os desaos à frente. As mulheres, enquanto
atoras sociais de relevo, tem pautado políticas de acesso aos direitos e
provocado a melhor qualidade das políticas públicas, colocando a igualdade
de gênero como ponto de princípio na atual democracia brasileira.
“Segurança pública e saúde: a prevenção como desao para a
atuação sobre as violências e acidentes de Bóris Ribeiro de Magalhães
e iago Teixeira Sabatine é um artigo que atenta para as políticas de
prevenção às violências voltadas para grupos sociais fragilizados. O que
chama a atenção é a vulnerabilidade desses grupos à morbidade e à
mortalidade por causas externas. O texto enfatiza exemplos de políticas
preventivas de saúde e aponta para a urgência do debate e de diálogo entre
saúde e os setores tradicionais da segurança pública.
Em meio aos novos atores da segurança, Bruna Angotti coloca
seu olhar sobre os primeiros presídios para mulheres. Em Aprendendo
as tarefas do feminino: os primeiros presídios para Mulheres no Brasil das
décadas de 1930 e 1940” a autora analisa a medicalização do corpo e os
projetos de reforma moral das mulheres no cárcere, tendência que ainda
habita os discursos atuais das políticas prisionais voltadas para as mulheres.
“Mulheres Invisíveis? Condição da Mulher no Sistema de Justiça
Criminal”, de Heidi Ann Cerneka, ilumina o interior das prisões femininas
brasileiras. Em tom de forte denúncia e colocando os discursos das mulheres
11
D S P:
 ,  
em primeiro plano, o artigo demonstra a falta de cuidados necessários às
mulheres encarceradas, a discriminação que elas sofrem dentro das prisões
e no sistema de justiça criminal e a recalcitrância das políticas nacionais
em adotar as regras internacionais para mulheres presas. As mulheres se
encontram em desvantagem social e simbólica nas instituições da justiça
criminal e na sociedade como um todo.
A política prisional paulista e a emergência do PCC:
considerações sobre a formação de uma especíca teia social”, de Camila
Caldeira Nunes Dias, conta a história e faz o mapa político da emergência
do PCC no interior dos presídios paulistas. Além de uma descrição densa
sobre os códigos e estratégias do crime organizado, o artigo foca aspectos
da política de segurança pública paulista, apontando para suas fragilidades
e para as mudanças dos pers dos encarcerados. A narrativa tem como
pano de fundo o processo de disputa por controle e poder entre presos
organizados e representantes do Estado.
“Sociedade punitiva e novas dinâmicas da segurança nos
municípios brasileiros”, de Luís Antônio Francisco de Souza, pretende
traçar uma visão geral sobre a temática do papel dos municípios na
segurança pública. Evidentemente, os municípios estão buscando trilhar
caminhos em que a obsessão por segurança ganha relevo e pode ameaçar
direitos civis duramente conquistados nas duas últimas décadas. O novo
papel dos municípios na segurança está atrelado ao modelo de uma ampla
estratégia de governo sobre a população urbana no Brasil contemporâneo.
A presente publicação avalia os desaos da segurança na
perspectiva da democracia, dos novos atores e do controle social. As
ambiguidades e as tensões existentes entre as instituições de segurança e a
sociedade civil devem servir de alerta para a necessidade de qualicação do
debate acadêmico e para o aumento das exigências em torno do respeito
incondicional aos direitos.
As contribuições dos autores e autoras apontam para estratégias
de gestão e de conhecimento como parte integrante da mudança das
práticas da segurança no país. São subsídios para qualicação e educação
prossionais, com ênfase na prevenção, no controle social e no respeito aos
direitos. A incorporação de novos atores e olhares para as especicidades de
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
12
grupos sociais excluídos do estado de direito deve ser considerada objetivo
a ser alcançado pelas políticas de segurança no país. Cabe aos especialistas
e à sociedade civil acompanhar os avanços e desaos, mobilizando saberes
e ações na construção de um marco de segurança condizente com a
consolidação democrática.
Esta publicação tornou-se possível graças ao importante apoio das
instituições que nanciaram o I Seminário de Segurança Pública: Controle
social, democracia e gênero e o I Fórum de Pesquisa sobre Vitimização de
Mulheres no Sistema de Justiça Criminal: FAPESP, CNPq, Fundunesp,
e, sobretudo a CAPES que tornou possível a presente edição. Cumpre
agradecer aos pesquisadores e aos colaboradores do Observatório de
Segurança Pública (OSP) que participaram dos eventos mencionados
acima e agradecer especialmente às pessoas do Laboratório Editorial e do
Escritório de Pesquisa da Unesp, campus de Marília, sem as quais este livro
não viria a lume.
Luís Antônio Francisco de Souza
Bóris Ribeiro de Magalhães
iago Teixeira Sabatine
13
o Fim dA inocênciA
um enSAio Sobre oS AtributoS do SAber policiAl de ruA
1
Jacqueline de Oliveira Muniz
Era o seu primeiro dia de trabalho como soldado policial militar
(SDPM) nas ruas do Rio de Janeiro. Já havia sido “passado a pronto” logo
após a conclusão do curso no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de
Praças CFAP, da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - a PMERJ
2
.
À primeira vista, a missão para pagar” era bem simples. A papeleta de
serviço informava que se tratava de preservar a ordem pública”, cumprindo
o plano de patrulha ostensiva estabelecido para um trecho do bairro de
Copacabana, em uma guarnição motorizada composta por mais dois
policiais militares.
1
Este ensaio se benecia do meu convívio com os policiais militares nestes 17 anos de pesquisa de campo, e
inspira-se nas reexões inicialmente esboçadas em minha tese de doutorado Ser policial é, sobretudo, uma razão
de ser. Cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, IUPERJ/UCAM, 1999.
2
Nos termos da atual constituição brasileira, as polícias militares constituem “forças auxiliarese “reservasdo
exército. Sua atribuição é a preservação da ordem públicae, por sua vez, o exercício das atividades policiais
de patrulha. As chamadas “PM” são organizações policiais estaduais com estrutura militar e subordinadas ao
governador de estado.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
14
Contudo, havia algo de excepcional para o jovem policial naquilo
que parecia já ser uma rotina para os demais PM
3
. Era a sua primeira vez,
para valer! O momento ritual do seu batismo de verdade e ele, sob o olhar
gazeteiro e acolhedor de seus experientes companheiros, ainda se ocupava
de reprisar o juramento feito no dia da formatura e de colocar mentalmente
em revista tudo que havia aprendido de polícia na escola.
Confessa, muito emocionado e um tanto encabulado, que ao
entrar para a polícia, tinha também se deixado iludir pelos lmes e seriados
de TV que alimentam o nosso senso comum sobre o mundo policial. Uma
ingenuidade de início de carreira que foi sendo gradativamente desencantada
no vagar pelas ruas, esquinas e becos da cidade. Uma fantasia que foi
perdendo as suas cores nos encontros com os distintos públicos que jurou
servir e proteger”. Uma inocência rapidamente perdida nas interações,
nem sempre com nal feliz, com os diversos outros de nós que, por meio
da dramatização de seus conitos, se inscrevem na, e renegociam a, ordem
pública que desejam e consentem que seja policiada. Relata convencido
que, na vida real, o trabalho de polícia não admite vedetese que as tas
policiais, indiferentes à complexidade da vida ordinária e à invisibilidade
dos cidadãos comuns e seus dramas, projetam os seus holofotes sobre um
mocinhoque sempre “atua sozinhoe sem planejamento”; que nunca
obedece a lei” e que, por tudo isso, se torna um grande herói”, sendo
ainda “premiado com a mulher mais bonita da estória”.
Apesar das brincadeiras e da “pagação de terror” que seus colegas
cascudosfaziam no intuito de descontraí-lo, o jovem PM, naquele dia,
dizia-se ansioso e muito preocupado em fazer a coisa certa, em tirar
polícia sem vacilo”. Lembra-se, aos risos, que seus calejados companheiros
insistiam em lhe dizer: “bola da vez, não adianta tanta teoria, a prática é
outra coisa”. Uma coisa, ao menos, o dedicado “bichosabia: era preciso
“ler as ruas”, pois aprendendo a reconhecer o que se passa nas ruas ele
poderia adquirir o “olho técnico” e o “faro” policiais.
3
A expressão “PM” é amplamente utilizada, dentro e fora do meio policial, para caracterizar tanto a organização
quanto os seus integrantes independente de sua patente ou atribuição. No entanto, no uso cotidiano, reporta-se
aqueles policiais lotados nas atividades m de patrulha ostensiva, os quais pertencem aos níveis hierárquicos
inferiores como os soldados, cabos e sargentos.
15
D S P:
 ,  
Já circulando pelas ruas de Copacabana, diz ter experimentado
a novidade de construir, em ato, o seletivo processo de observação. Mas,
o que observar? O que deveria constituir o seu campo de vigilância? Para
onde olhar? Onde começa e termina a ordem pública cuja preservação
lhe foi atribuída? Tudo parecia saltar aos seus olhos como algo diferente,
instigante e potencialmente periculoso. Tudo, tudo mesmo”, poderia
naturalmente ser convertido em objeto de cuidadosa suspeita e atenção.
Enm, qualquer coisa parecia destacar-se de maneira singular da paisagem
urbana, agora sob vigília: os avisos luminosos das boates, o barulho de uma
sirene, e o entra e sai das pessoas nos bares, a família de mendigos embaixo
de uma marquise, o cachorro revirando o lixo, o homem correndo pela
calçada, a rodinha de jovens na esquina, a jovem mulher (ou um travesti?)
ajeitando eroticamente a sua cinta-liga, o carro parado no acostamento
com a luz interna acesa, o casal gesticulando de forma desmedida em um
ponto de ônibus, a freada brusca em um cruzamento, a sala de um prédio
comercial acesa na madrugada, o bêbado rodopiando com um grande
embrulho nas mãos. Tudo parecia merecer o enquadramento do seu olhar
alerta e em prontidão. Tudo parecia retirá-lo de uma desgastante forma de
espera rumo ao frenesi das formas de ação. Tudo parecia, então, demandar
o imediato pronto-emprego de seus meios, do meio de força policial.
Pergunto como é imaginar a cidade e suas personagens da janela
de uma radiopatrulha? Muitas eram as suas preocupações: anar os ouvidos
para discernir os sons das ruas”, seus ruídos e silêncios; reconhecer e
decifrar os mais distintos comportamentos, códigos e linguagens; capturar
os mais inesperados movimentos; educar o olhar para ver o que está por
trás das coisas”, procurando identicar o que antes estava presente, e ele
não via. Era preciso ser ostensivo, colocar-se em movimento, ver e ser
visto” para vigiar, para poder policiar indivíduos, grupos e territórios.
Havia muitas dúvidas e uma perturbadora certeza: “alguma coisa
está acontecendo agora em algum lugar, como saber e como antecipar?”
Enquanto o jovem PM de primeira viagem se via afogado pelos inúmeros
estímulos saídos das ruas, e se esforçava por identicar algo “anormal” em
um ambiente que ele mesmo teria começado a estranhar, seus colegas de
ronda pareciam fazer o patrulhamento displicentes, conversando animados
sobre coisas alheias ao trabalho policial. E, para a sua perplexidade, foi
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
16
no exato momento em que o bate-papo sobre a última roda de pagode
seguia acalorado que os PM mais velhos pararam rapidamente a viatura e
abordaram dois rapazes “brancos e boa pinta” que andavam discretamente
pela calçada. A surpresa não foi pequena: os playboys estavam armados
e portavam uma razoável quantidade de papelotes de cocaína. Após
encerrar a ocorrênciana delegacia distrital, sua indagação não foi outra:
como vocês sabiam disso?” A resposta obtida de seus companheiros foi
para ele tão inesperada quanto o seu début com um agrante: Ah! Isso
vem naturalmente, você vai sentir, é olhar” responderam os colegas de
guarnição. Disse que conseguiu compreender inteiramente o que lhe
foi ensinado naquele dia depois que havia adquirido mais experiência de
patrulha. Concluiu dizendo que para ser um bom policial nunca se deve
parar de aprender a fazer polícia com as ruas.
Do rico e inesgotável mundo policial tem algo que particularmente
intriga a nossa imaginação. Rero-me a um tipo de conhecimento peculiar
esculpido nas ruas das cidades e que tem, de longa data, inspirado a
sensibilidade de escritores, roteiristas, cineastas e pesquisadores. As
cções, as novelas e os lmes policiais retiram a sua matéria-prima desse
curioso saber, ora enunciado em uma versão romântica e dramática, ora
caricaturado através de ações heróicas e espetaculares.
De fato, esse parece ser um tipo de saber que, nascido da
trivialidade da vida ordinária, imerso na dramaticidade das violações vividas
no cotidiano e exposto à irredutibilidade do acaso e da incerteza, se presta
a toda sorte de encantamentos e fabulações. Sua obviedade desaa, seu
pragmatismo seduz, sua crueza assusta, seu sentimentalismo surpreende,
seu moralismo incomoda e sua nostalgia comove.
O contato com uma espécie de conhecer saído da urgência dos
fatos e da demanda dos outros, que se confunde com o fazer e a presteza do
agir, nos faz pensar que os policiais que patrulham as ruas nas nossas cidades
sabem de coisas que não sabemos ou que o queremos perceber. Sua
sabedoria é constituída aqui na esquina, dia após dia convivendo, de uma
forma explícita e sem mediação, com a dimensão volátil, cômica, dissimulada,
humilhante, violenta, confusa, vulnerável, trágica e freqüentemente patética
daquilo que chamamos de humano. Algumas narrativas policiais falam da
experimentação de um conhecimento elaborado a partir do pior de nós
17
D S P:
 ,  
mesmos”. Reportam-se a um saber que se constitui como uma testemunha
ocular daquelas manifestações que preferimos privadas ou que ambicionamos
sempre que possível esconder. Retratam um modo de recortar o mundo que
se faz estruturado e aberto às sucessivas colisões com o “lado desagradável
da vida”. Um tipo de saber em estado de alerta, sempre preparado para
o pior dos mundos possíveis. Um PM, que muito tira polícia no
trânsito, penetra profundamente em uma psique contraída e tensa. Um PM
que interveio em cenas de assassinato, que preservou inúmeras vezes locais
de homicídios e que socorreu timas de crimes sexuais nos diz coisas que
o dramaturgo e romancista Nelson Rodrigues talvez tenha imaginado.
O que os policiais militares aprendem a saber não está ordenado em um
formato cientíco, não aparece quanticado ou traduzido nas estatísticas,
não pode ser demonstrado com números, tabelas e grácos. Este saber
atrelado ao episódico, constrangido pelas contingências, parece querer resistir
à padronização. Ele está ali em cada evento, na memória prodigiosa de cada
policial. Ele é parte indissociável da trajetória de vida e das experiências
individuais vividas por um personagem que deve aprender a observar - de
um lugar em movimento (a ronda), de um lugar vigilante e suspeitoso nós,
os “outros” personagens que desenham o cenário urbano. Este tipo de saber
descobre-se atento ao menor indício de anormalidade”. Ele está à procura
do que se encontra “fora do lugar”, ele se põe em perseguição a tudo aquilo
que pareça, à primeira vista, “incorreto”, “indevidoe “inadequado”:
Quando você é polícia de verdade, você está sempre querendo saber
o que está acontecendo ao seu redor. Isto está entranhado dentro da
gente. Eu faço isso até na minha folga. Quando eu vejo eu estou fazendo
isso até quando eu levo a minha mulher para passear. Se você um
policial mudando de calçada, sentando na cadeira detrás do ônibus,
procurando uma parede para se encostar, escolhendo uma mesa do
fundo da churrascaria, pode ter certeza que ele está procurando alguma
coisa errada, ele está tentando se antecipar, aí ele procura uma posição
para controlar melhor a situação. Eu tenho o meu jeito que é car
sacando o olhar das pessoas. (Sargento da PMERJ).
Os mundos que os policiais da botton line visitam e que
constituem o seu próprio mundo policial são apresentados à linguagem
como difíceis de descrever, duros de explicar e, em boa medida,
desagradáveis de assistir e de freqüentar por muito tempo. É preciso ter
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
18
estômagopara socorrer um homem anônimo caído na calçada sufocando-
se em seu próprio vômito. É preciso segurar a sensação de repulsa diante de
cenas nas quais se encontram indivíduos mutilados, corpos baleados feito
peneiras e cadáveres em decomposição.
Os PMs da ponta da linhaprivam de um saber que dói e pode
fazer doer, e que por isso, prefere ser partilhado com outros policiais e, às
vezes, com familiares e sua rede de convivência mais próxima. As reservas
em comungar esse saber com outras pessoas mesmo as mais íntimas -
resulta, em parte, da percepção de que esse conhecimento, em toda a sua
nudez, choca, expõe as feridas e desencanta. Ele traz à cena da linguagem
a nua e crua realidade” da vida em seus atos de segredo e revelação, que
vão do egoísmo mais oportunista à expressão mais generosa de compaixão.
Eu estava fazendo patrulhamento na praça do Lido e eu vi a noiva do
meu melhor amigo de infância ali com outras garotas de programa.
Eles estavam de casamento marcado. Lá onde a gente mora ela sempre
se comportou direito, sempre foi honesta. Todo mundo gosta dela, e
para todo mundo ela trabalha à noite como acompanhante de idoso
aqui em Copacabana. Ela não é analfabeta não, ela têm o segundo grau
completo e um curso técnico de enfermagem. Eu não pude acreditar
no que eu estava vendo. O meu amigo foi o primeiro namorado dela.
Quando eu saí do trabalho, eu fui falar com ela. Ela me disse que ela
estava fazendo isso porque ela queria ajudar o meu amigo a terminar
de construir a casa deles. Ela chorou muito e pediu para eu não contar
para ninguém porque ela ia parar com essa vida. Até hoje eu não falei
nada, mas eu quei na minha vigiando ela. Eu não vi mais ela por
ali e as outras garotas falaram que ela tinha sumido. Depois que eu
virei polícia eu comecei a ver que todo mundo tem um lado que quer
esconder. (Soldado da PMERJ).
De alguma maneira, o saber policial de rua desumaniza aqueles
que o fabricam e contaminam os que dele partilham.
Eu não disse para a minha mulher que eu precisei matar um vagabundo.
Eu e meu parceiro surpreendemos um elemento assaltando as pessoas
no ponto de ônibus. O bandido empreendeu fuga e nós zemos o cerco
e enquadramos ele. Ai, eu gritei para o camarada: Se entrega porque
você dançou! É brincadeira, você acredita que o marginal sozinho, se
protegendo atrás do poste, cresceu para cima da gente. Ele atirava e
gritava: Seus putos, seus PMs de merda! Meu parceiro acertou o joelho
do vagabundo e ele caiu atirando na gente. O cara não parava de atirar.
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D S P:
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Aí, eu mandei bala nele. Ele morreu tentando me acertar. Eu quei
muito alterado, eu quei com isso na cabeça: eu matei, eu matei. Eu fui
para casa nervoso. A minha mulher perguntou o que tinha acontecido
e eu só falei que tinha me desentendido no serviço. Aí eu pensei: se eu
contar ela vai car pensando meu marido matou um homem, meu
marido matou um ser humano. Meu marido pode matar alguém de
novo”. Eu passei muito tempo tendo um mesmo sonho: o vagabundo
ia morrendo e ia apontando a arma para mim. (Sargento da PMERJ).
Em suas redes de sociabilidade, os policiais distribuem e fazem
circular o seu saber das ruas de forma extremamente seletiva. As situações
reais ou imaginárias de tensão e perigo, mesmo que estilizadas e abrandadas
ou revestidas de uma retórica moral, heróica e voluntarista, são por eles
consideradas pesadas e, até ser ponto, impróprias ao convívio pessoal. Para
um tipo de saber que se apresenta como iniciático, parece ser preciso aos
comuns dos mortais ingressar em um círculo restrito de conança. Faz-se
oportuno entender o lado da políciaou fazer parte de sua “comunidade
ampliada”, aderindo às estratégias de cooptação de sua envolvente narrativa.
Mostra-se relevante construir alguma dose de cumplicidade, cuja moeda de
troca é uma certa identicação compensatória com os direitos humanos
do policial” face ao seu alegado décit de reconhecimento público. Como
contar que quase ao nal do expediente sua radiopatrulha foi alvejada por
indivíduos não identicados? Como contar que um antigo companheiro
de guarnição foi ferido mortalmente em uma operação especial?
Nesse tempo todo que eu estou na PM eu acho que eu passei por
tudo. Eu já ajudei a fazer parto, eu e meus companheiros conseguimos
escapar de uma emboscada organizada por um marginal que eu tinha
prendido. Eu tive que levar muita gente para o hospital. Eu
salvei a vida de muita gente. Nesse tempo todo que eu tirei polícia,
três companheiros de guarnição foram mortos pela bandidagem. Eu
estava ali na hora. O último morava perto de mim, era um grande
companheiro. Nós não voltamos para casa juntos. Eu quei pensando:
o que eu vou dizer para a mulher dele, para o lhinho dele? Um dia
desses aí, eu estava na minha folga e eu impedi um assalto em um
restaurante. Eles eram três e renderam o gerente. Eu estava no ponto
de ônibus e um senhor gritou por socorro. Eu consegui prender eles.
Eu não ganhei premiação porque eu não matei ninguém. Sabe o que
eu ganhei? Eu ganhei uma úlcera, eu tomo remédio para hipertensão,
até doença de pele por causa dos nervos eu tive. Eu não ganhei
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premiação porque eu não matei. Mas não tem nada não, eu estou
com a minha consciência tranqüila, minha consciência está limpa com
Cristo. (Sargento da PMERJ).
De fato, o lado desagradável da vida não se congura como um
tema de bate-papo aprazível, causando a imediata impressão de que o seu
enunciador possui um apelo mórbido e escatológico, fazendo as vezes de
uma ave de mau agouro. Diferente de outros prossionais, os policiais
aprendem, na prática, a represar reações como nojo, náusea, vertigem ou
mal-estar nos eventos com os quais se deparam em suas rotinas. Da mesma
forma, costumam poupar os ouvidos do seu interlocutor, construindo um
tipo de conversa gradual, defensiva, sob censura e em camadas acerca dos
bastidores do dia-a-dia do seu trabalho. Descrever o socorro a um indivíduo
com ataque epiléptico, narrar a condução de alguém com uma faca cravada
na cabeça para o hospital, relatar um suicídio por enforcamento ou retratar
um tiroteio entre a polícia e bandos armados, eventos que fazem parte
da rotina de atendimento policial, requer a introdução de ltros morais e
pedágios argumentativos.
Para os PMs das mais baixas patentes a vida recortada pelas
lentes do saber policial não costuma estar elmente retratada nos lmes
policiais, e muito menos nos romances e seriados de TV. A sordidez do
seu relato, a sua verdade”, parece não se deixar ser plenamente traduzida
em outra linguagem que não aquela dos fatos reais que advertem sobre
a dureza da vida. E isto de tal maneira que os policiais freqüentemente
falam com ironia e um certo ar de ressentimento sobre o que é mostrado
do mundo deles. Um mundo que, constituído de dentro e vivido desde o
subterrâneo dos nossos mundos sociais, é vivenciado como um mundo a
partequando na superfície das relações sociais e de suas razões de classe,
cor, renda e estatus. Ainda que guardem uma especial predileção pelos
chamados “lmes de ação”, os seus comentários convergem para o mesmo
ponto: tem muito de fantasia, é uma grande ilusão”. Uma epopéia que até
gostariam de copiar, transvertendo a realidade policial com algum glamour
não apenas pela assimilação de uma falsa regularidade das ações policiais
destemidas, mas sobretudo pela aquisição dos brinquedos tecnológicos de
ultima geração exaustivamente explorados nos trailers policiais.
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O que o dever-saber conquistado através dos diversos tipos de
patrulha “tirados” faz com cada PM individualmente é parte integrante da
pedagogia afetiva de sua aprendizagem informal. Mostra-se perturbador
para um policial o esforço cognitivo de separar, por exemplo, os sentimentos
que aoram durante a intervenção em um caso de exploração sexual
infantil ou um acidente fatal envolvendo crianças, das emoções referidas
aos seus próprios lhos. Durante uma visita que z à Brigada Militar do
estado do Rio Grande do Sul, alguns anos atrás, eu tive uma oportunidade
etnográca preciosa ao ser convidada para jantar com dois simpáticos e
inteligentes ociais superiores, em uma agradável chopperia. O tema de
nossa conversa inicial girava em torno dos países e dos costumes que cada
um de nós tinha conhecido e das futuras viagens que gostaríamos de fazer.
Mas a discussão sobre o mundo policial era inevitável. Nós sabíamos que
em algum momento ela aconteceria.
Estimulado por minha curiosidade provocativa e pelo papel que
creditavam a mim como uma antropóloga, ou nos seus termos a policióloga
que entende o lado humano do policial”, um dos ociais resolve me contar
aquele que foi um dos dias mais dramáticos de sua trajetória prossional.
Ele havia recebido um chamado que informava a ocorrência de um foco
de incêndio em uma vila
4
extremamente miserável nos arredores de Porto
Alegre
5
. chegando com a sua guarnição, constatou que o incêndio se
alastrava com muita velocidade pelos barracos construídos de madeira e
papelão. Imediatamente os policiais e bombeiros brigadianos ali presentes
começaram o trabalho de resgate e salvamento das vítimas. Conta que o
que via era terrível: pessoas em estado de choque, outras completamente
descaracterizadas pelas graves queimaduras etc. Homens, mulheres e
crianças gritavam de dor e de desespero. Seu relato seguia recheado de
detalhes comoventes e assustadores. Diz-me que o fogo tinha tomado
conta de tudo e que havia pouco a fazer para tentar salvar os poucos bens
que aquelas famílias possuíam. Enquanto seguiam no dramático processo
de resgate e rescaldo, uma mulher visivelmente transtornada grita por
socorro e agarra o meu condente, dizendo que seus dois lhos ainda se
4
No estado do Rio Grande do Sul, as chamadas favelas” ou comunidades vulneráveis aos riscos sociais são
chamadas de “vila”.
5
O Corpo de Bombeiros do estado do Rio Grande do Sul faz parte da “Brigada Militar” que corresponde à
organização policial militar responsável pelo patrulhamento ostensivo.
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encontravam no interior do barraco. Imediatamente toda a guarnição
dirigiu os seus esforços para salvar as crianças. Fala emocionado que apesar
de todo o empenho e mobilização não foi possível salvar a vida daqueles
dois inocentes”. Enquanto tentavam entrar no barraco, este inteiramente
incandescente começou a se dissolver feito um saco de papel”. Neste
momento eles ouviam os gemidos das crianças e, impotentes, observavam
chorando os seus vultos em chama no meio dos destroços. Um dos policiais
entra em estado de choque, começa a gritar e vai ao encontro das chamas
sendo impedido pelo seu companheiro. A mãe e os demais familiares
desesperados gritam pelo nome das crianças. Revela-me que todos viram
as crianças pegando fogo e não puderam fazer nada”. “Todos nós ouvimos
os gemidos derradeiros delas até o mais completo silêncio”. Os familiares
revoltados e, sob o impacto da tragédia, não paravam de acusar os policiais
de terem deixado os seus lhos morrerem. Conta-me, revivendo a trágica
cena chorando, o quanto foi doloroso segurar em seus braços aqueles corpos
carbonizados, transgurados pelo fogo e pelo carvão. Fala que esta foi uma
cena que os policiais ali presentes jamais esqueceram. Encerra o seu relato
dizendo-me que ao chegar em casa, abraçou sua mulher e seus lhos – que
tinham a mesma idade das vítimas – e permaneceu ali chorando e rezando
por um longo tempo.
Enquanto esse episódio infeliz ia sendo contado, as pessoas que
estavam em mesas muito próximas à nossa, mostravam-se incomodadas e
desconfortáveis com o que se viam obrigadas a escutar. Apesar da discrição
de nossa conversa, aqueles que conseguiam ouvi-la, foram, pouco a pouco,
perdendo a descontração, o paladar e o apetite. Tentavam falar mais
alto, contar uma piada engraçada e mesmo mudar as cadeiras para cada
vez mais longe de nós. Uma moça que comia uma pizza começou a ter
reações de náusea e se encaminhou ao banheiro. Após esse triste relato,
fomos espontaneamente compelidos a voltar conversar sobre coisas mais
amenas”, como os últimos shows a que tínhamos assistido.
Experimentações tão intensas como a que foi acima reproduzida
podem levar à lapidação da perspicácia e do discernimento metódico
insumos indispensáveis ao trabalho policial de rua -, mas também
produzem marcas profundas que se manifestam tanto pelas demonstrações
de solidariedade, quanto pela explicitação de uma aparente frieza e distância
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emocionalmente protetoras. Policiais de diversas polícias falam dos estados
afetivos abruptos que vivenciam no dia-a-dia das ruas, os quais misturam
expressões díspares de ódio e piedade, desprezo e generosidade (GRAEF,
1989). Relatam como a vivência recorrente de situações antagônicas e
por vezes fatais, conduzem a uma espécie de embrutecimentopessoal,
a elaboração de uma cascadefensiva. Assim como psiquiatras e médicos
legistas acostumam-se com eventos extremos e decrépitos, os policiais
acostumam-se a assistir e a se interpor às mazelas humanas. E, diante
delas, desenvolvem mecanismos de auto-defesa, nos quais se incluem
encenações de indiferença e de negação da alteridade, da mesma forma
que a teatralização de um pessimismo moral e de um cinismo extrovertido
(REINER, 1992). A construção de uma percepção ácida e também
debochada da realidade revela-se, por exemplo, em um tipo de humor
amargo e provocativo. Numa primeira visada, ele soa como uma variação
intencional e politicamente incorreta das chamadas piadas de gosto
duvidoso, como expresso no trocadilho direitos humanos para humanos
direitos” amplamente conhecido no meio policial brasileiro.
As mais distintas realidades visitadas pelos policiais militares
durante a sua jornada de trabalho conformam um saber-fazer que procura
se equilibrar nos extremos, que se capacita a lidar com o que se mostra
como desproporcional, paradoxal e disparatado em nossas condutas. Um
PM, com algum tempo de patrulha, logo aprende que as situações que
aparentam ser menos perigosas e que não se caracterizam como criminais
à primeira vista, são precisamente aquelas que podem explodir com um
alto grau de violência. Logo descobre que os conitos domésticos, de
gênero e intrafamiliar que, a princípio, envolvem atores conhecidos que
não possuem uma carreira criminosa, trazem uma alta carga emocional
suciente para multiplicar as oportunidades reais de risco para os litigantes
e para o próprio policial que foi chamado a intervir.
Outra lição aprendida na pedagogia experimental das ruas
é aquela que adverte que os mais trágicos resultados também estão
vinculados a motivos fúteis”, aos pequenos conitos e aos eventos não
intencionais como, por exemplo, os acidentes de trânsito que quase sempre
produzem muitas vítimas. A constatação de que as coisas da vida seguem
cursos mais complexos do que a lógica linear que determina uma falsa
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proporcionalidade entre causas e efeitos - algo do tipo eventos pequenos
geram pequenas conseqüências - contribui para a conformação de um
saber empiricista que se curva às evidências e que se reconhece como
atravessado pelos imponderáveis da vida social. Um saber-agir que se faz
no aqui e agora dos conitos e em seus próprios atos, no curso mesmo dos
acontecimentos, diante do que se revela como contingente. Um saber-fazer
que acredita-se disposto a manobrar com a potência do acaso, habilitado
a buscar modos e meios de ação em ambientes de incerteza e risco, a
tentar equilibrar-se entre os ns da política de policiamento e as distintas
nalidades ou apetites morais dos sujeitos policiados. A experimentação
do perigo, mesmo que na sua pura idealidade, impõe a este saber-prático a
construção discricionária de decisões coercitivas de força que se inscrevem
entre a exigência de produção de alternativas de obediência consentida
a um determinado pacto político-social e o risco sempre presente de sua
extrapolação em uma deliberada e reprovável sujeição.
O dever-saber das ruas, mergulhado na idiossincrasia das
circunstâncias, das situações voláteis e fugidias, prima pela sua adaptabilidade
ou pela sua concessão ao improviso. Benecia-se de alguma medida de
autonomia criativa e do senso de oportunidade. No cumprimento de
sua escala de trabalho, o PM converte-se em um faz-tudo”, um tipo
de especialista que se generaliza no atendimento às demandas de uma
cidadania que se em risco, em confronto ou em conito. Porque se
reconhece, e é reconhecido, como a autoridade que dispõe do recurso de
força e que está autorizada a usá-lo frente tudo aquilo que venha a ser
considerado uma ameaça aos direitos e garantias da comunidade policiada
(BITTNER, 1967, 1970), o PM faz o papel de parteiro, domador
de animais domésticos, mensageiro, assistente social, acompanhante,
paramédico, conciliador, balcão de informações, psicólogo, motorista,
conselheiro sentimental, educador e, por tudo isso, agente da lei que, até
mesmo, combate o crime”. A expectativa social de pronto-emprego e de
presteza policiais no encaminhamento de soluções para um repertório
inndo de problemas, conduz ao desenvolvimento de um saber-agir que
considere e articule diversas habilidades que possibilitem ao policial saber-
ser “um pouco de tudo, para fazer um pouco de cada coisa”.
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Mas, um saber que aprende a saber se colocar nas situações”,
ainda que não goste nem um pouco de perder a autoridade de sua
razão, vê-se compelido a assimilar as irracionalidades das práticas sociais
(MUNIZ; SILVA, 2010). Vê-se levado a “dar algum créditoàs razões do
outros que contextualizam as intenções e justicativas de suas atitudes que
mobilizam a, e direcionam as reações diante da, presença da polícia. Ao
o seu jeitopara responder a qualquer demanda cidadã, esse saber tende
a apresentar-se, em sua narrativa, como um acervo pessoal de preceitos
e práticas resultante de um modo próprio, o do policial, de exercer o
fazer de polícia. A aplicação pelos PMs do Rio de Janeiro do que seja
a doutrina policial” está inserida em um processo de particularização,
comum em sociedades hierarquizadas e desiguais como a brasileira,
que não se restringe à personalização do policial, mas compreendem os
demais atores e os conitos nos quais se inserem, assim como os territórios
policiados (LIMA, 1995; MUNIZ; PROENÇA JR, 2007a). Em parte
por conta disso, esse saber, que se individualiza no ato da fala e que se
envaidece de sua oralidade que o coletiviza, confunde-se, em boa medida,
com a trajetória individual de cada PM. Trata-se de um saber que persegue
a singularidade, em especial a dos seus portadores, disponibilizando-se à
linguagem do senso comum como um testemunho de vida. Por um lado,
o percurso institucional pelos diversos tipos de polícia “tiradas” (operações
especiais, controle de multidão, radiopatrulha, emergência, trânsito,
polícia montada etc.) e, por outro, o relicário de experiências individuais
construído a cada caso atendido, conformam o estoque de percepções e
macetesque estão distribuídos entre os policiais de forma heterogênea,
descontínua e pessoalizada.
Este saber tratado como pessoal faz-se também um saber-
companheiro. Suas dinâmicas informais de aprendizagem e transferência,
por vezes ignoradas pelos mecanismos formais de ensino, ordenam-se por
uma experimentação conjunta do vivido, cujo acesso se seletivamente
pela demonstração de um determinado mérito: o de fazer por merecer a
conança e o respeito dos pares convertendo-se em mais um de nós”.
Seu procedimento de generalização parece ter como premissa oculta a
crença em uma natureza humana comum, representada por um sujeito
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moral e psicológico universal, que serviria de substrato para as vivências
particulares, conferindo inteligibilidade e validação em sua partilha.
um outro aspecto que favorece a personalização desse saber
tecido nas ruas. Este diz respeito à prestação dos serviços ostensivos de
polícia cujo balcão de atendimento é o próprio PM que está na esquina
ou circulando em uma viatura. Trata-se de um serviço ambulante e
individualizado, uma espécie de franquia ocupacional” exercida por cada
soldado, cabo ou sargento da polícia militar alocado nas atividades de
patrulha. O enraizamento do princípio da autoridade legal e legítima na
vida cotidiana das pessoas - que condiciona a própria natureza da polícia
- impõe este tipo de exigência à realidade do trabalho policial de ponta
(BITTNER, 1974). Sob a presente condição, as informações (esculpidas
no varejo das interações com os cidadãos) e a instrumentalização do
seu emprego (que se traduz em habilidades acionadas de acordo com
a demanda) são usualmente percebidas e valorizadas como derivadas
do estilo pessoal de trabalhode cada PM. Neste sentido, a forma de
trabalhar” nas ruas, ainda que faça uso das capacidades e competências
aprendidas nas escolas, adquire, na prática, uma roupagem personalizada
que leva em consideração e superdimensiona o que sejam as características
individuais como o “jeito do policial” ou a sua personalidade, a sua estória
de vida e seus saberes prévios, os seus humores, o seu “caráter que vem do
berço”, sua disposição para o trabalho e, mesmo, a sua anidade com o
tipo de polícia tirado”.
A ampla latitude moral deste tipo de saber-ser tão individualizado
e exível aos clamores sociais, ao que seja a opinião pública do momento
e, sobretudo, ao que se denomina de vontade política do governante
possibilita, por exemplo, que alternativas díspares de ação possam
simultaneamente conviver sem que umas se imponham às outras ou sejam
pensadas como superiores a priori (PROENÇA JR; MUNIZ; PONCIONI,
2009). Enquanto produtos desta sociedade que está e cumpridores
das ordens do governo”, os PM não se ocupam de advogar a propriedade
e a utilidade universal de seus próprios modos de atuação, e muito menos
se mostram refratários a outras formas alternativas de intervenção, nas
quais se incluem as práticas controversas e heterodoxas. Imbuídos de um
realismo tirado das ruas e de posse de um saber-ouvir as pressões sociais
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e, especialmente, o que manda a política de segurança, eles procuram
aproximar a sua cota de conhecimentos formais e informais dos fragmentos
de realidade descontínuos e fugazes nos quais são chamados a intervir, como
um assalto em uma rua movimentada da cidade ou uma “briga de ponto
entre camelôs
6
. Porque os PMs estão todos os dias nas ruas lidando com um
elenco de situações supostamente idênticas e, ao mesmo tempo, irredutíveis
entre si, eles aprendem a saber que os fatores circunstanciais presentes
em cada episódio enfrentado devem ser levados em conta, sob pena de se
multiplicar a oportunidade de efeitos indesejáveis para si mesmos, para os
cidadãos e para o governo (MUNIZ; PROENÇA JR, 2007b). Saber-ouvir
corresponde a manter um ouvido alerta para o que vem de quem manda
e um outro atento para o que vem das ruas. Para saber-agir e fazer o que
é certoé preciso saber-negociar o próprio lugar conferido à autoridade
policial”, construindo uma boa medida entre as diversas e conitantes vozes
de comando. Parece ser preciso conciliar, no caso brasileiro, a ambição
democrática de uma igualdade em direitos com a realidade de uma cidadania
atravessada por razões particularistas que evocam o “direito a diferença” em
um fazer-se desigual (MUNIZ; SILVA, 2010).
É evidente que esse tipo de visão de mundo não pretende negar a
pertinência e a propriedade do conhecimento formal ou do saber escolarizado
para a desejada prossionalização da polícia. A questão central não está na
recusa deliberada do que sejam as normas legais e as diretrizes políticas
que conformam e validam o universo das práticas policiais socialmente
autorizadas. Mas no modo como os conhecimentos formais elaborados e
aprendidos abordam a sua aplicação. Em outras palavras, na forma pela qual
o conteúdo destes elementos prescritivos do mandato policial considera a
práxis de polícia ou reete alguma ordem de diálogo e convergência com a
natureza do trabalho policial e seus atributos intrínsecos.
Assim, o que o saber policial de rua denuncia é o risco de desatenção
em relação aos elementos circunstanciais em favor de um enquadramento
formal e purista da imposição da lei e da ordem que, em termos concretos,
6
Especialmente nas grandes cidades brasileiras, as expressões populares camelô” e (vendedor) ambulante”
referem-se aos comerciantes de rua inseridos tanto na economia formal quanto na informal ou clandestina
que vendem seus produtos em bancas ou pontos xos, assim como em movimento, com alguma anuência
das autoridades de scalização das posturas municipais. Camelô origina-se da palavra camelot que em francês
signica “vendedor de artigos de pouco valor”.
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desconsidera as instâncias de discricionariedade que informam o fazer real de
polícia e, com isso, compromete a sua qualidade decisória (workmanship) e os
seus resultados (PUNCH, 1983). Face à complexidade da demanda pelos seus
serviços e diante da própria realidade de um meio (consentido e comedido)
de força, a polícia, todo PM aprende rapidamente que as orientações
políticas, os dispositivos normativo-legais e os procedimentos operacionais,
quando desencarnados das experiências concretas de policiamento, tendem
a ser interpretados como de pouca serventia.
É evidente que um saber premido pela ocasião, construído e
recapitulado a cada atendimento, apresente uma forte propensão para
superestimar uma leitura contextual dos eventos e dos seus cursos. Talvez
por isso, muito freqüentemente ouvimos um PM ponderar que, apesar
da existência de procedimentos-padrão, em situações particulares a
prescrição acaba sendo suspensa ou adaptada por conta das circunstâncias
que as conformam. Se este tipo de contextualização é freqüente na retórica
policial de rua, ca sucientemente claro para os pragmáticos policiais que
a norma opera como uma referência para a ação (SKOLNICK, 1994). Os
desvios e as divergências em relação à sua execução não são exceções e nem
muito menos acidentes de percurso. Na rua, se faz tudo diferenteporque
a própria aplicação da norma, cuja execução é, por natureza, discricionária,
envolve a sua necessária adequação seletiva ao mundo real. O que seja
o mundo da lei” precisa ser interpretado e, por sua vez, ajustado às
diversas realidades que compõem as “leis do mundo”. O curso de ação
escolhido para intervir em um certo evento, criminal ou não, resulta de
um processo reexivo que considera, ao menos, três dimensões essenciais
de discricionariedade: a decisão da cidadania que escolhe acionar ou não a
polícia; a decisão de governo que determina as estruturas, as capacidades
e as competências policiais à luz de suas prioridades políticas; e a decisão
do policial que, sob as exigências normativas de seu mandato público,
escolhe os meios e os modos para agir diante dos ns da política pública.
Desta maneira, o processo decisório policial considera a natureza, os riscos
e os perigos simbólicos associados ao evento sob intervenção e, com isso,
minimamente pondera sobre as alternativas técnicas de ação disponíveis
para a polícia, a oportunidade de validação legal e de chancela política para
essas alternativas e a possibilidade de aprovação ou sanção dos cidadãos
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sobre a decisão tomada, seus resultados e conseqüências. Em termos ideais,
a solução policial ambiciona ser tecnicamente qualicada, conrmada
legalmente, politicamente orientada e tolerada socialmente. Ela precisa ser
razoável, ela precisa ser aceita, ela precisa ser útil.
Um saber que se mostra vaidoso de sua utilidade e atento a
tudo aquilo que emerge ora como prescritivo, ora como contingente não
se conna à máxima de uma prática (que) nega a teoria”. neste saber
uma teoria nativa que parece por à luz do dia a expectativa de fabricação
de uma justiça que se espera “justa”. Identica-se neste saber uma vontade
de fazer justiça aos fatos que manifesta-se como moralizadora quando
enseja, ou é demandada a, “passar um corretivo”, “dar uma lição de moral”
ou enquadrar uma conduta”. Compelido a produzir alguma solução,
mesmo que provisória, para os nossos conitos no seu tempo presente,
o saber policial de rua compartilha um sentido substantivo, popular de
justiça, situando-se no hiato entre o apetite da lei e a vontade de ordem
(SKOLNICK, 1994; KLOCKARS, 1999; FOUCAULT, 2003). Ao se
apresentar aos litígios antes da mediação judicial e seguir sendo mobilizado
para além de suas alternativas jurídicas de solução, este saber acionado pelas
chamadas emergenciais à polícia, inscreve-se na assimetria existente entre o
repertório nito das expressões formais de legalidade e a innidade de modos
de produção de legitimidade, os quais vivicam as regras sociais do jogo de
resolução de conitos. Se o sistema de justiça para ser justo deve atuar “pós
fato”, a polícia para se fazer justa, merecedora de seu mandato, precisa agir
no fato”, não somente antes de acontecer, não apenas depois do acontecido
mas, especialmente, durante o acontecimento que mobiliza sua atenção.
De certo modo, este saber que aparece como uma espécie de alter
ego social, ou nos termos de Bittner (1974) como o “senão” da sociedade,
carrega consigo um certo tom missionário ou proselitista. Sua economia
discursiva, que quando oportuno também paga sermão”, encontra-se a
serviço de uma moral da sociedade”. Ela acredita estar do lado certoe não
se furta a evocar a conversão dos sujeitos à civilidade ou a “boa ordempor
meio do controle disciplinar de suas condutas e intenções (FOUCAULT,
2005, 2008). Este saber - dispositivo, ao ter como fundamento a produção
de obediências, vigia e se põe em vigília diante da possibilidade sempre
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aberta de servir a opressão, de perder a razãoe deixar-se conduzir pelo
destempero de seus portadores ou dos indivíduos sobre os quais intervém.
Esta forma de saber-fazer para saber-ser, que vai se experimentando
para produzir respostas imediatas para os problemas também imediatos,
revela um certo gosto pelo que é intenso. Chamado a atuar na emergência
das pessoas, das coisas e das situações, este saber manifesta-se atras de uma
apropriação presentista da temporalidade. A profundidade da experimentação
do presente, do que é iminente e inadiável para os “outros”, está posta para
qualquer PM que patrulha a cidade. Ela contribui para um recorte singular
de uma cronologia que privilegia o tempo dos acontecimentos. Que volta-
se para a sua “hora da verdade”, o aqui e agora dos nossos receios, medos
e inseguranças, e empreende uma espécie de caçada pela interioridade do
que ocorre entre o tempo de abertura e o tempo de fechamento de uma
ocorrência policial. Parece indispensável a esse saber coercitivo, que tem no
recurso à força a sua divisa, ser capaz de agenciar no processo decisório a
intensidade dos outros e a suciência de seu próprio fazer.
Inscrito, portanto, na urgência prescrita por aqueles que mobilizam
os serviços da polícia, esse saber que prediz o futuro e que reordena o
passado pelo espírito do presente, parece não poder prescindir do que sejam
os atributos não racionais, ou melhor, de tudo aquilo que classicamos na
vida ordinária como emocional” e “intuitivo”. A fenomenologia da ação
policial cotidiana, faz uso do mundo das emoções como um recurso que
deve estar a seu serviço.
Quando o lado racional falha e o lado militar falha também, a gente
apela para a emoção, a gente se apega à intuição que todo o polícia tem.
(Cabo da PMERJ).
Na rotina de patrulha, os policiais experimentam de forma densa
e irregular estados afetivos díspares: caminha-se do mais monótono tédio
ao mais agudo estágio de alerta e apreensão, assistem-se desde reações
emocionais contidas até agudas manifestações de desespero. Quando se
lida ou se exposto a situações que envolvem todo tipo de sentimento,
como ódio, indignação, fúria, desprezo e medo, desenvolve-se alguma
economia do afeto que se demonstre capaz de promover o autocontrole
para a administração dos estados emocionais dos outros. Espera-se, por
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exemplo, que o policial mostre-se habilitado a atuar de uma forma superior
ao descontrole emocional típico das pessoas comuns em situações de crise.
No atendimento às ocorrências isso se traduz, por exemplo, em não aceitar
provocações”, não entrar no jogo das pessoas para não perder a razãoou
a “moral de polícia”.
A “intuição policial” expediente afetivo extremamente
valorizado nas ruas ora se apresenta como um recurso decisivo rumo
à tomada de decisão, ora como uma poderosa justicativa face à ação
empreendida e os seus resultados. Diante de situações difusas ou de
difícil categorização, os pressentimentos ou o sexto sentido do policial”
assumem um papel decisivo na condução dos eventos. O saber sentir
a situaçãopara saber-agir não se detém onde o que seja a conduta
racional do policial” paralisa. Sua busca por algum sentido que oriente
a tomada de decisão segue guiada por uma forma de enquadramento
intuitivo da realidade, que põe a seu serviço um sistema classicatório que
distingue e hierarquiza a periculosidade de pessoas, atitudes e eventos em
função, por exemplo, do que os perigos simbólicos e os riscos morais ou
objetivos podem representar para os outros e para os próprios policiais.
Estereótipos e clichês sobre indivíduos, suas identidades e trajetórias sociais
mesclam-se a conceituações jurídicas, psicológicas e criminológicas sobre
as práticas humanas. Entre metáforas e conceitos, este saber que vigia toma
de empréstimo alegorias e racionalizações que possam vir a serem úteis e
funcionais à práxis do policiar. Nem tanto ao céu e nem tanto a terra, os
PMs aprendem que necessitam saber-ser razoáveis”, situando-se entre o
que manda a lei” e o que se demanda como paz social” e preservação
da ordem públicanum dado contexto. Observa-se um tipo de sociologia
nativa do desencanto que tem na desconança prévia e na encenação de
uma postura ressabiada a expressão de um circuito de trocas assimétricas
entre policiais e policiados, irremediavelmente moderadas pela expectativa
presente do potencial ou do concreto de força que caracteriza o exercício
legal e legítimo da autoridade policial. Uma vez que todos mentem para
a políciae todos querem ter (alguma) razãoparece ser preciso por em
circulação um saber defensivo que saiba agir como uma autoridade”,
buscando manter-se tanto acima das meias-verdadesquanto protegido
dos riscos de identicação com a performance das vítimas e agressores.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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Em suas narrativas percebe-se que os PMs sentem-se mais
confortáveis e seguros naquelas situações cuja atuação se constrói em
oposição a um criminosoclaramente congurado como tal, ainda que
nestas ocorrências a possibilidade de resistência violenta à autoridade
policial esteja colocada desde o seu início. De fato, os PMs mostram-se mais
conantes em seus próprios métodos e performances naqueles episódios
que são previamente classicados como um crime em andamento”. Nestas
ocorrências, “a polícia sabe o que a espera”, porque os policiais conseguem
minimamente presumir e caricaturar o comportamento-padrão ou o
modus operandi dos seus costumeiros oponentes: de arma na mão eles
[os criminosos] são todos valentões; é desarmar que eles se comportam
como adolescentes rebeldes”.
O mesmo não procede quando se trata daquelas situações
conituosas, imprecisas do ponto de vista penal, e que envolvem, sobretudo,
querelas entre pessoas comuns ou cidadãos de bem”. A ambigüidade e,
mesmo, o andamento desses conitos diculta a classicação antecipada
das partes envolvidas em termos de vítimas e agressores típicos. É,
por excelência, neste último grupo de eventos que a dupla exigência de
legalidade e legitimidade da ação policial e, por conseguinte, o exercício
da discricionariedade são postos em questão. Principalmente em um
contexto no qual os PMs de baixa patente se vêem com direitos de menos
e reconhecem nos cidadãos direitos demais”. No mundo dos conitos
domésticos e interpessoais, o chamado fator surpresa”, que se faz presente
tanto na atitude dos envolvidos, quanto no desenrolar dos fatos, adquire,
do ponto de vista policial, proporções extremamente elevadas, dicultando
a elaboração antecipada de padrões uniformes de conduta esperada e, por
sua vez, o acionamento de reações policiais típicas. Isto se traduz em um
problema real da ação de polícia: enquanto nas colisões com os chamados
“bandidosa preocupação maior do PM é a possibilidade de inação (“z
menos do que devia e podia”), nas interações com os cidadãos ordeiros
a sua questão é a possibilidade do excesso de iniciativa (“z mais do que
devia e podia”). Esse é, certamente, um dos clássicos dilemas morais
vividos no dia-a-dia pelos policiais, cujas conseqüências e sua repercussão
na sociedade e para o próprio mandato policial são igualmente complexas
e problemáticas.
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É precisamente aqui, neste último cenário, que a intuição policial
é chamada a contribuir de forma decisiva. E não apenas para reduzir a
insegurança quanto à escolha dos modos e dos meios de intervenção, mas
também para justicá-los diante dos seus ns políticos ou da missão policial
recebida, face a um questionamento latente ou explícito acerca da esperada
proporcionalidade do uso da força empregada. De toda maneira, diante
das resistências à mediação policial vindas dos sujeitos criminalizados e
dos cidadãos honestosque mereceriam um voto policial de conança,
o saber de rua apela intuitivamente para o que os policiais interpretam
como sendo o amplo, e nem sempre harmônico, “bom senso”. Em um
universo no qual a cidadania é hierarquizada por distintos endereçamentos
– classe, status, gênero, cor, orientação sexual etc. – ter “bom senso” pode
corresponder a saber-fazer uso de um senso de justiçasituacional que
arme a expectativa de igualdade em direitos dos cidadãos considerando a
desigualdade em privilégios de seus pertencimentos sociais.
Um outro aspecto fundamental do saber policial de rua é a sua
comunhão ou os seus planos de contigüidade com outros saberes que
orientam as personagens que vivem das ruas ou estão freqüentemente
nas ruas, transitando pelas dimensões ocultas, clandestinas, periféricas e
informais da cidade. O chamado conhecimento de (sua) áreadesenvolvido
sobretudo pelas guras que circulam na noite, como os boêmios, os porteiros,
as prostitutas, os travestis, a população de rua, os jornaleiros, os taxistas, os
bandos de jovens etc., aproxima-se bastante daquele que vai sendo elaborado
pelos PMs. O mapeamento das territorialidades dos sujeitos, dos seus uxos,
dos seus códigos informais de convivência, enm, dos seus dispositivos de
sociabilidade, reconhecimento e aceitação, faz parte do empreendimento
daqueles que redenem a cidade através de suas inserções, e que disputam
os seus lugares inscrevendo neles a sua própria forma de estar no mundo. De
certa maneira, essas personagens estão como os policiais atentos ao seu
próprio pedaçoe aos seus trajetos, observando e vigiandoa cidade em
nome das suas paixões, sentidos e interesses. Estão, cada um ao seu modo,
fabricando alguma ordem, auto-referida ou ampliada, por meio de seus
mecanismos informais de controle e regulação. Todos eles, invariavelmente,
sabem o que acontece ao seu redor, quem entra e quem sai dos seus territórios,
quem está fazendo o quê” e o que está procurando”.
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Tradicionalmente, o acervo de informações contido no
conhecimento de área” caracteriza-se como objeto de cobiça dos PMs. As
interações amistosas com os atores que estão nas ruas e as colaborações
forçadas com a autoridade policial” dos indivíduos que se encontram no
limiar da clandestinidade (como os anelinhas
7
, os camelôs e os apontadores
do jogo do bicho
8
), dos que são colocados à margem da vida social (como
os sem-tetoe os mendigos) ou dos que apresentam uma identidade social
estigmatizada (como os “jovens drogados e os prossionais do sexo”)
constituem uma regra não escrita do trabalho cotidiano de polícia. Anal,
a vigília dos outros e de seus próprios atos, o sentido do policiar está posto
especialmente para aqueles que ingressam de uma forma ilegal, clandestina
ou informal na gramática ampliada das ruas. E isto de tal maneira que os
sujeitos que vivenciam a cidade pelo seu vagar, estão a negociar os seus
pontosde xação ou de deslocamento e, com isso, realizam, no limite
dos seus territórios físico e simbólico, uma forma do controle social que é
empreendido prossionalmente pelos policiais em todo o espaço urbano.
Assim, as representações e práticas das múltiplas cidades recortadas por
cada tribo urbana são visitadas, a convite ou não, pelos PMs no cotidiano
de suas rondas. O trabalho diuturno de patrulha, a missão de preservar a
ordem públicacompele os policiais a cruzarem as fronteiras simbólicas, a
ingressarem em outros mundos morais e a minimamente decifrarem o seus
sentidos para policiar o que sejam as distintas ordens que estas realidades
fazem aparecer.
7
A expressão “anelinhaé freqüentemente usada para designar aqueles trabalhadores informais que prestam
pequenos serviços aos motoristas que estacionam os seus carros nas vias públicas, tais como indicar ou reservar
vagas, auxiliar nas manobras realizadas e vigiar os carros estacionados. O pagamento por estes serviços ocorre por
livre consentimento do motorista ou, principalmente, pela coação que conta, por vezes, com a chancela velada
de policiais ou guardas municipais que scalizam uma certa área. A origem do nome resulta da antiga prática
do uso da anela para limpar os carros. De acordo com a legislação brasileira a atividade de anelinha pode
ser interpretada como uma contravenção - o “exercício ilegal de prossão-, ou mesmo uma prática associada
aos crimes de extorsão” e formação de quadrilha”. Nas principais cidades brasileiras a atividade informal de
“anelinha” convive com a prestação regulamentada deste serviço realizada pelas prefeituras.
8
O “Jogo do bicho” é uma das práticas de jogo ilegal mais populares no Brasil. Trata-se de uma bolsa ilegal
de apostas em números que representam animais e cujas “bancasou pontos do bicho”, com anotadores ou
apontadoresdas apostas, encontram-se distribuídos por territórios controlados pelos chamados “bicheiros”
ou contraventores”. Estes são também conhecidos como “bem-feitoresou presidentes de honrade várias
escolas de sambano Rio de Janeiro, por exemplo. O jogo do bicho foi inicialmente criado, em 1892, pelo
barão Viana Drummond, fundador e proprietário do primeiro jardim zoológico do Rio de Janeiro no bairro
histórico de Vila Isabel.
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A anidade do saber policial de rua com esses outros saberes
ordinários e informais põe em evidência uma importante característica
comum a todos eles: a baixa visibilidade das sintaxes produzidas nas ruas.
Construído a partir da vivência do subterrâneo e das encruzilhadas da vida
em sociedade, este tipo de conhecimento é objeto de emprego e circulação
restrita entre aqueles que, de alguma forma, perderam a sua inocência
experimentando e decifrando as derivas da cidade. Silencioso e inaudito,
ele resulta das dinâmicas de interação e observação de atores sociais
cujos discursos, ainda que produzam ruídos na “boa ordem”, têm a sua
legitimidade sob suspeiçãopelo seu convívio com o que seja considerado
o lado desregrado, potencialmente atraente e perigoso da vida.
Para alguns estudiosos de polícia, uma das razões pelas quais o
processo discricionário policial de tomada de decisão segue sendo tratado
como uma caixa preta refratária a responsabilização ou a produção de
accountability, reporta-se ao fato de que ele se centra, principalmente, em
torno da vida de pessoas cujas vozes contam muito pouco ou tendem a ser
tuteladas quando do seu ingresso na agenda pública
9
. É raro que um PM
tome alguma decisão que afete as condições de vida dos membros das classes
média e alta. Normalmente, estes segmentos sociais mais bem posicionados
no mercado da cidadania dispõem de outros meios além da polícia para
resolverem os seus conitos e, por isso, costumam experimentar a sua
interferência, ou melhor, a sua presença contínua sobretudo na forma do
controle do tráfego, nos conitos e acidentes de trânsito. Contudo, para o
resto dos cidadãos comuns em particular, os pobres e a classe média baixa
- o policial se destaca como uma autoridade investida de um expressivo
poder de intervenção. O que um PM faz ou deixa de fazer altera de forma
mais direta e substantiva as suas vidas. Os atendimentos assistenciais (que
respondem por uma parcela signicativa das ocorrências registradas pela
PM do Rio de Janeiro), as atividades de mediação e resolução de litígios
civis e as atuações em episódios propriamente criminais têm envolvido
sistematicamente o público, porém aquela parcela do público composta
pelos menos favorecidos que utilizam os serviços ofertados pela polícia de
uma forma mais universal.
9
Para um discussão sobre a dimensão política dos processos decisórios policiais e seus impactos na vida dos
cidadãos ver: Skolnick (1994 [1966]), Bittner (1974), Goldstein 1977, Muir Jr. (1977), Klockars (1985),
Shearing (1992), Manning (1994, 2003) e Muniz e Proença Jr (2007a).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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ainda uma outra marca distintiva desse saber que se mostra
am e interessado nos outros saberes tecidos na vida ordinária. Suas teoria
e práticas alimentam-se do apego desmedido à minúcia, atualizam-se
por uma espécie de obsessão pelo pormenor, pelo que se manifesta como
singular. Este saber confeccionado pelos executivos da esquinapode ser
apresentado como um saber invasivo, de certa forma bisbilhoteiro sobre o
que seja a natureza humana”, porque se ocupa dos mais desapercebidos
detalhes. Um saber do mundo sensível que se faz vigilante frente a tudo
aquilo que possa adquirir algum relevo para o mapeamento dos indivíduos e
de suas condutas. Um traço físico qualquer um adquire uma signicativa
importância para o PM que diariamente interage com as inúmeras almas
anônimas que compõem a massa urbana. Um bigode, uma voz, um cheiro,
uma cicatriz, um cabelo pintado, uma tatuagem, uma pantomima, um
trejeito etc. fazem parte do escopo de atenção do saber policial que não só
personaliza quem o detém, mas que também procura individualizar, até o
limite, as pessoas sobre as quais debruça a sua suspeitosa observação.
Este é um saber com traços casuísticos, cujo apetite regulador
diante das múltiplas e simultâneas causas que circunscrevem os fenômenos
humanos, apóia-se em uma moral evolucionária que espera reduzir a
complexidade social e generalizar-se por meio de uma espécie de sobre-
determinação causal. Salvo exceções, todos policiais com os quais convivi
nestes meus longos anos de pesquisa acha que conheceu um tipo
parecidocom, conhece ou conhecerá aquelas pessoas que porventura se
tornam objeto do seu olhar vigilante. Expressões do tipo eu acho que te
conheço”, eu te vi em algum lugar” ou você está me lembrando alguém
que eu conheço” são expressões deste modo de conhecer a, que se faz pelo
controle da, realidade.
Não se trata de um conhecimento de fatotal como denido
pelos cânones cientícos, mas de um conhecimento dos fatos”. Um
tipo de saber empirista que prima pela oralidade e cuja teorização não
reivindica autoria porque se faz coletiva no ato mesmo em que se enuncia.
Ela acede à linguagem pelo alargamento das, e pela adesão doutrinária
às, vivências compartilhadas. Esta forma de apreensão do mundo que
pretende identicar o que está ou não dentro da normalidade” desejada,
necessita desenvolver uma memória prodigiosa que seja capaz de armazenar
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uma coleção de pessoas, coisas, locais e situações mapeadas. As estórias
contadas pelos PMs a que tive acesso foram invariavelmente narradas
como epopéias que descreviam, com riqueza de detalhes, os indivíduos,
os seus nomes e vulgos, os lugares, os objetos, enm, a mecânica dos
eventos”. Através de analogias e extrapolações, conecta-se aquilo que ainda
se apresenta como desconhecido ou suspeitocom o que foi mapeado
e classicado. Por esse percurso cognitivo, os PMs procuram reduzir a
variedade de possibilidades de compreensão abertas pela innidade de
detalhes levantados a um conjunto nito de chaves interpretativas capazes
de seguir orientando o seu campo de vigilância e a sua forma de atuação.
Tudo isso orientado por um saber que se move por um projeto utilitário e
nalístico: a produção de uma verdade a serviço da suspeição.
O saber policial extraído das ruas é, pois, um dispositivo que
produz e arma um tipo de poder do qual se espera que faça uso do
argumento de autoridade por sobre a autoridade dos argumentos
acionada pelos cidadãos em seus conitos. Seus signos de distinção
(uniforme, armamento, distintivo etc.) comunicam por antecipação a
chegada da polícia”, isto é, a presença de um saber poder mais para saber
fazer por menos (com comedimento), que funciona como uma referência
de verdade que se põe como anterior aos fatos consumadospara servir
como o el da balança aos atos em curso e sob intervenção.
É claro que o saber factual produzido pelos policiais corresponde
a um modo de olhar que, como tantos outros olhares que capturam a
vida cotidiana, possui algum domínio etnográco do campo de observação
a que ele, por ora, se dedica. Entretanto, esta forma de produção de
verdade serve a propósitos radicalmente distintos daqueles que denem a
antropologia como um campo cientíco de produção de conhecimento.
A narrativa nativa policial tem uma natureza e nalidade políticas
que enviesam o seu modo de recortar a realidade: a tarefa de policiar”.
Enquanto a narrativa etnográca, como teoria e método, busca reetir
sobre a realidade fazendo aparecer os sentidos e signicados das práticas
e representações sociais, a narrativa policial traz consigo um projeto
compulsório e prescritivo que ordena e classica o mundo por meio de
uma variante inquisitorial de normalização” (FOULCAUT, 2005, 2008).
Sua instrumentalidade responde a uma lógica de domesticação que se põe
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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a serviço de uma determinada ambição cognitiva – vigiar para conhecer.
Sua missão primeira é a de controlar para então compreender,
incluindo e excluindo, de forma assimétrica e seletiva, os sujeitos, suas
visões de mundo e suas práticas. Tudo isso, a partir de uma determinada
moralidadecomunitária que possibilita subordinar e negociar o que seja
a “moral da estória” entre os atores sociais que se apresentam ao alcance do
olhar policial.
Tem-se, pois, a fabricação de um modo de conhecer, um saber
policial das ruas, cujo olhar vigilante, de certa forma panóptico, assenta-se
sobre a expectativa de uma verdade substantiva. Uma verdade saída das
regras morais do jogo social, que é apropriada e redenida por um processo
de particularização, que incorpora a singularidade de cada encontro com
a polícia, para disciplinar as verdades situacionais trazidas pelos atores
sociais em cada contexto interativo. De posse de certo um status quo, de
um universo valorativo que acredita-se hegemônico ou monopolista, o
saber policial, de natureza política e coercitiva, (re)arma uma ordem, sua
vontade de conhecer, classicando o mundo social pela distinção do que é
tolerável”, “aceitoe “normal”, daquelas formas de conduta interpretadas
como desviantes”, suspeitas e criminosas”. Sua nalidade prática
policiar”, volta-se para a produção de controle, mesmo que difuso e
indireto.
A vontade de saber policial consiste no principal dispositivo para
o saber-fazer e o saber-ser policiais. É a partir dela que o PM que patrulha
o nosso quarteirão dene as suas formas de inserção como agente da lei e
da ordem e, por sua vez, os seus modos de decidir e agir. Buscar conhecer
o que seja o saber policial construído nas ruas é uma tarefa de enorme
relevância para que se possa compreender, de uma maneira mais na, como
se combinam as dinâmicas informais e formais de produção de saberes, as
quais permitem apontar rumos para o processo corporativo de ensino e
aprendizagem voltado para os policiais. Muito que do que se apresenta na
fala dos policiais como uma resistência ao que lhes é ofertado nas instituições
de ensino pode ser creditada ao desconhecimento ou descaso com o que
eles vivenciam no seu cotidiano prossional. Quando os PMs com os quais
convivi dizem que nos seus primeiros dias de trabalho logo aprendem a lição
esqueça o tempo na escola”, eles estão se referindo ao “choque de realidade
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que experimentam nas ruas. Este, por sua vez, deve ser compreendido como
uma crítica aos modelos pedagógicos de “instruçãoou adestramentoainda
adotados que seguem na contramão de uma formação policial continuada
em sintonia com as alternativas de trajetórias policiais. Tais modelos tendem
a negligenciar tanto os saberes prévios que os policiais possuem quanto sua
capacidade de formulação de juízos críticos. Mais ainda, desconsideram o
que sejam a natureza do trabalho de polícia e o exercício do seu mandato em
sociedades democráticas. A costumeira ênfase normativa sobre o que não
se pode fazer” deixa a cargo dos próprios policiais a elaboração solitária dos
conteúdos positivos sobre os “que”, os porque”, os “como”, os quandoe
os “onde” que conformam os seus fazeres. Como resultado deste abandono
intelectual, tem-se por um lado, policiais cada vez mais escolarizadose, por
outro, policiais cada vez menos educadossobre o que de fato consiste a sua
missão de “servir e proteger”.
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42
43
reSguArdAr ou punir: produção e uSoS
de regiStroS em guArdAS municipAiS
do rio de JAneiro
Ana Paula Mendes de Miranda
intRodução
Nos últimos dez anos, a gestão da informação
1
tem sido
considerada um dos pressupostospara uma política de segurança eciente.
O tema apareceu com uma das diretrizes
2
de reforma das instituições de
segurança pública, chamada de “Gestão do Conhecimento
3
pelo Sistema
Único de Segurança Pública (SUSP)
4
. A proposta apresentada para a gestão da
segurança municipal, sistematizada no documento Arquitetura Institucional
1
A gestão da informação geralmente está associada a estruturação de formas de acesso e difusão da informação.
2
De acordo com documentos da SENASP, os pressupostos são os rumos que a política deve assumir. uma
diretriz é uma forma de propor a implantação/desenvolvimento de um conjunto de ações.
3
A gestão do conhecimento tem como objetivo valorizar as informações, contextualizando-as como foco na sua
aplicabilidade institucional.
4
O Programa Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI), apresentado em 2007, tem dentre suas
ações estruturais a proposta da modernização das instituições de segurança pública e do sistema prisional, mas
nenhum item é dedicado especicamente ao tema da gestão da informação.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
44
do Sistema Único de Segurança Pública (LESSA et al., 2004) descreve como
padrões mínimos esperados no processo da gestão municipal: o tipo
de perl do gestor, no que se refere a sua competência teórica, política,
interpessoal e estratégica; a unidade gestora, que deve ser formalmente
denida e dotada dos poderes e recursos necessários para assumir a
condução de políticas locais de segurança municipal” (LESSA et al., 2004,
p. 177), que prevê a implantação de um sistema de informação, análise
criminal, monitoramento e avaliação; e canais de interação em âmbito
intergovernamental, regional, com instituições da área de segurança, com
a comunidade cientíca e a comunidade local. A base do sistema proposto
é a cooperação vertical e horizontal, entendidas como a integração entre
as instâncias inter e intraníveis municipal, estadual e federal, para o que
se pretende estimular a circulação de informações originárias de registros
administrativos, surveys temáticos, indicadores sociais e informações
sobre criminosos. Havia também a previsão do desenvolvimento de um
sistema nacional geocodicado que possibilitasse o monitoramento da
criminalidade e das organizações e instituições que poderiam inuenciar
no controle da criminalidade. Assim, o princípio fundamental do sistema
de gestão da informação proposto pelo SUSP é o encaminhamento das
informações dos municípios e estados à federação, orientado pela ideia de
compartilhamento do conhecimento.
O tema havia sido abordado no Projeto Segurança Pública
para o Brasil (BISCAIA, 2003), cujo objetivo era contribuir para que
seja devolvido aos cidadãos de nosso país o sagrado direito democrático à
segurança pessoal, familiar e comunitária” (grifos nossos), que apresentava
cinco linhas de intervenção, destacando a importância da modernização
da gestão, com destaque especial à necessidade de reformas substantivas na
esfera municipal, identicada como uma das áreas mais problemáticas no
que se refere aos instrumentos operacionais disponíveis, principalmente
àquelas voltadas as “ações preventivas da violência”.
Porém, o primeiro a abordar o tema a gestão da informação
foi o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP), que foi lançado em
2000
5
, com objetivo de aperfeiçoar o sistema de segurança pública
5
Para Sento-Sé e Ribeiro (2004), o governo Fernando Henrique Cardoso teve o mérito de introduzir o tema da
segurança pública na agenda federal, deslocando o foco até então voltado para a ideia de segurança nacional,
45
D S P:
 ,  
brasileiro, por meio de propostas que integrem políticas de segurança,
sociais e ações comunitárias, de forma a reprimir e prevenir o crime e
reduzir a impunidade”. No seu 15º “compromisso” havia a recomendação
da implantação de um Sistema Nacional de Segurança Pública, no qual
estavam previstos cinco programas relacionados à gestão da informação:
Programa Nacional de Integração Nacional de Informações de Justiça e
Segurança Pública; Observatório Nacional de Segurança Pública; Censo
Penitenciário; Construção de Base de Dados para o Acompanhamento das
Polícias; Pesquisa Nacional de Vitimização
6
.
Atualmente está em funcionamento o Sistema Nacional de
Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal (SINESPJC), que foi
desenvolvido, a partir de 2003, com o objetivo de reunir as informações de
segurança pública e justiça criminal produzidos pelos estados:
“Registro de Ocorrências”, que recebe dados oriundos das polícias civil
e militar;
“Perl das Instituições de Segurança Pública”, cujo objetivo é compilar
dados organizacionais das instituições, tais como estrutura, condições
de funcionamento, quantidade de recursos humanos e materiais, ações
desenvolvidas, orçamento e gastos
7
.
Embora não seja o escopo deste trabalho, é preciso salientar que
uma grande discussão sobre as diferenças entre gestão da informação
e gestão do conhecimento. O que se pode identicar no que se refere ao
debate na área de segurança é que os modelos propostos partem da ideia
de uma complexicação progressiva: DADOS INFORMAÇÃO
CONHECIMENTO.
Segundo essa concepção os dados estariam associados aos registros
e corresponderiam a uma informação desestruturada, construída a partir de
observações sobre a realidade”. Já a informação estaria associada às formas
predominante no período da ditadura militar, o que implicou em redenições do papel do poder federal no
tratamento do tema.
6
Apenas em 2010 teve início a primeira pesquisa de vitimização de âmbito nacional coordenada pela SENASP.
7
Segundo a SENASP são levantadas as informações das seguintes instituições: Polícia Civil, Polícia Militar,
Corpos de Bombeiros Militares, Academia de Polícia Civil, Academia de Polícia Militar e Corpos de Bombeiros,
Centros de Formação e Aperfeiçoamento de Praças, Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente, DEAM,
Guardas Municipais, IML, Corregedorias e Secretarias de Segurança Pública.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
46
de análise, que pressupõem algum consenso sobre os signicados atribuídos.
Enquanto o conhecimento o seria uma mera soma de todas as partes, mas
uma reexão sobre dados e informações num contexto especíco.
Essa breve contextualização do tratamento que a gestão da
informação tem recebido nos planos de segurança nacionais recentes tem
o objetivo de demonstrar que, apesar de sua proclamada relevância, o tema
ainda carece de atenção sobre sua efetiva implantação. A maior parte dos
trabalhos apresenta as deciênciasdos dados ou estão voltados a prescrever
como se deve organizá-los, mas poucos se dedicam a compreender por que
é tão difícil fazê-lo. Tenho como hipótese que isso ocorre porque se assume
o pressuposto de que o Estado
8
é “desorganizado” e “incompetente” e que
“basta um choque de gestão”, com a incorporação de tecnologias de última
geração, para resolver o problema.
Parto de outra perspectiva, penso que essa aparente desordem dos
dados deve ser analisada como a expressão de outras formas de classicá-
los e organizá-los, e que para compreendê-la é preciso uma conhecer essas
práticas. Nesse sentido, o foco deste artigo é a percepção dos agentes
do Estado, em especial, aqueles envolvidos em políticas municipais de
segurança, os guardas municipais, sobre o processo de transformação
de dados em informações organizadas, ressaltando toda a complexidade
que o processo envolve. Ressalto que não pretendo discutir a dimensão
tecnológica da construção de sistemas de informação, mas sim debater
como os agentes envolvidos na segurança pública lidam com a ideia de
organizar seus papéis esparsos em arquivos públicos e digitais, sabendo
que, na maior parte das cidades do Estado do Rio de Janeiro, não a
preocupação com a sistematização de informações, sejam relativas a
atividades administrativas, crimes ou informações socioeconômicas, para
ns de planejamento de estratégias de prevenção e controle da violência, tal
como previsto nos planos nacionais (MIRANDA; PAES; FREIRE, 2008).
O interesse pelo tema da gestão da informação no âmbito municipal
surgiu a partir de 2002, em face de diversas experiências de pesquisa voltadas
ao diagnóstico da segurança municipal e a capacitação de Guardas Municipais
no Estado do Rio de Janeiro, que têm sido desenvolvidas pelo Núcleo
8
Opto por diferenciar a escrita de Estado com letra maiúscula quando se referir a sua atuação, que se distingue
do conceito de estado, conforme propõe Tiscornia (2008, p. 13).
47
D S P:
 ,  
Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP-UFF)
9
, quando se identicou
que a forma tradicional de registro de eventos, geralmente extraordinários,
em livros de ocorrência não permitia a compilação, a análise e a publicidade
das informações acerca do trabalho realizado pelas instituições de segurança
municipal nos moldes geralmente propostos.
Na pesquisa realizada em Niterói o registro de ocorrências não
foi apontado como uma prática rotineira dos guardas municipais, tendo
sido dito que cerca de 90% dos eventos atendidos ou observados não
eram registrados. Mas nas situações em que o registro era feito o seu
conteúdo se dividia em eventos ocorridos na rua e o comportamento
dos guardas. Armavam também que o registro das ocorrências dependia
principalmente da avaliação que o inspetor fazia acerca da necessidade
de realizá-lo, geralmente relacionada ao registro de eventos considerados
extraordinários, tais como, acidentes e conitos com os camelôs
(MIRANDA; MOUZINHO; MELLO, 2003).
Nos últimos anos, o problema se revelou mais complexo a partir de
um incremento a crião de Guardas Municipais, sem que a isso correspondesse
ao desenvolvimento de estratégias diferenciadas de geso na área da seguraa
blica. Ao contrio, o que se viu na maior parte das vezes foi a reprodução
de processos de trabalho inerentes à Polícia Militar (MARSCHNER, 2009;
MELLO, 2007; MISSE; BRETAS, 2010). No caso do Rio de Janeiro foi
identicado que algumas Guardas Municipais, que demonstraram interesse
em organizar suas informões, utilizaram-se do modelo do tao de registro de
ocorrências da Polícia Militar, que se mostrou inadequado ao registro de suas
atividades (MIRANDA; PAES; FREIRE, 2008).
Assim, o texto apresenta algumas reexões iniciais sobre pesquisas,
que tiveram início em 2006
10
, voltadas à análise do processo de construção
9
Foram realizados projetos nos municípios de Mesquita, Niterói, Teresópolis, São José do Rio Preto, São Gonçalo
e São Pedro da Aldeia. Ver Barbosa et al. (2008); Miranda, Mouzinho e Mello (2003); Paes (2010); Veríssimo
(2010). Mais informações: <http://www.proppi.u.br/nufep/planos-de-seg>. Acesso em: 19/08/2010.
10
Dois projetos foram concluídos: Integração dos bancos de dados da Polícia Civil, da Polícia Militar e das
Guardas Municipais, realizado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), com nanciamento da Secretaria
Especial de Direitos Humanos / União Européia; e Elaboração do processo de coleta de dados para construir
um padrão de categorização relativo aos atendimentos realizados pelas Guardas Municipais, que integrou o
Projeto Segurança Pública e Violência Urbana: a descentralização de formas institucionais de administração
de conitos, Instituto Pereira Passos (IPP) e Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP-UFF), com
nanciamento da Finep.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
48
da informação referente aos atendimentos realizados por Guardas
Municipais no estado do Rio de Janeiro, cujo objetivo era compreender
como se dava a construção de um padrão de categorização pelos agentes de
segurança pública municipais.
Trata-se, portanto, de uma abordagem peculiar que pretende
articular uma discussão acadêmica acerca dos procedimentos institucionais
de administração de conitos com a identicação de problemas inerentes
à implantação de uma política pública de gestão da informação para a área
de segurança pública, em especial, no que se refere ao registro de queixas da
população e dos atendimentos realizados por Guardas Municipais.
Políticas Públicas: notas metodológicas sobRe uma aboRdagem
antRoPológica
Antes de passar a discussão sobre os registros nas Guardas
Municipais é preciso esclarecer como a categoria políticas públicastem
sido incorporada ao discurso na área de segurança pública, tendo como
referência que o termo se refere genericamente a um conjunto de “decisões
e ações de governo e outros atores sociais (HEIDEMANN, 2009, p.
28), ressaltando que aquilo que os governos deixam de fazer também é
um aspecto que deve ser observado empiricamente, que uma política
públicaexpressa simultaneamente duas dimensões a intenção e a ação.
Outro ponto que serviu de orientação à análise das “políticas públicas” é o
fato de que a administração pública no Brasil tem sua base na “repartição
e no funcionário”, o que expressa uma tradição de burocratização e
formalismo, apropriação corporativa e baixa participação dos cidadãos
(FAORO, 1991; SCHWARTZ, 1979).
Contemporaneamente, na área de segurança pública, o modelo
predominante tem sido o gerencialismo”, cujo foco está na denição de
estratégias pelos gestores e nas decisões tomadas para alcançar metas,
em especial no que se refere à adoção de instrumentos de racionalização
orçamentária e de avaliação de desempenho organizacional, com a
transposição de modelos administrativos comumente utilizados por
empresas, como se a realização de atividades de planejamento e gestão
49
D S P:
 ,  
fosse suciente para produzir uma reformado Estado que o tornaria mais
eciente e efetivo.
A partir da leitura dos documentos ociais e da análise de discurso
dos prossionais envolvidos na área de segurança, nota-se que a preocupação
em reformar o Estado aparece formalmente unicada à melhoria do
desempenho administrativo, e associada à democratizão e ampliação dos
serviços públicos, com qualidade. Porém, na prática, as instituições de segurança
blica ainda o muito reticentes à participão dos cidaos, à transparência
das informões e aos processos de responsabilizão dos policiais.
O estudo do funcionamento do Estado o é um tema novo nas
Ciências Sociais no Brasil, podemos lembrar, por exemplo, dos estudos
clássicos de Oliveira Viana, Vitor Nunes Leal, dentre outros, mas é importante
salientar que as abordagens tinham um enfoque macrossociológico, enquanto
o que pretendo realizar está mais voltado a uma abordagem micro, voltada às
interações entre pequenos grupos e suas consequências.
Portanto, a partir de experiências empíricas espero analisar como
os mecanismos concretos de gestão são aplicados visando compreender
seu impacto sobre a ordem social, o que se coaduna com uma abordagem
mais contemporânea sobre o tema (HOCHMAN; ARRETCHE;
MARQUES, 2007).
Partindo da pergunta como se governa, proponho que analisar
uma política públicanão pode signicar apenas compreender o que Estado
realiza como um resultado de seu funcionamento frequente, nanciado
pelos impostos arrecadados ou recursos obtidos mediante cooperação
internacional, com o m de assegurar direitos. Penso que é preciso
priorizar a dimensão prática das políticas públicas”, ou seja, a análise deve
corresponder à identicação de distintas formas de intervenção por meio
das quais os agentes do Estado normatizam e codicam comportamentos
e valores, revelando interesses corporativos que podem, ou não, estar em
consonância com demandas sociais e garantia de direitos.
Nesse sentido, considero que o desenvolvimento das pesquisas
envolvendo as Guardas Municipais tem sido original porque apresenta
ponderações sobre a contribuição da antropologia na análise de políticas
públicas, que seu foco é a identicação das condições dinâmicas que
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
50
estão subjacentes à ordem social. Trata-se de apreender a dinâmica das
relações entre os agentes públicos e a sociedade civil”, considerando
as incompatibilidades, as contradições e as tensões que são inerentes
à realização de qualquer intervenção do Estado (MIRANDA, 2005b;
MIRANDA; PAES; OLIVEIRA, 2007), o que revela uma concepção
diferenciada do que seja a avaliação de um serviço público, o que tem
suscitado debates em diferentes áreas do conhecimento.
No cenário internacional, a avaliação de um serviço tem sido
considerada como dimensão obrigatória na formulação de políticas
públicas, área que tem sido inuenciada pelas premissas da adoção de
um modelo de restrição de gastos; a mudança na visão do que é um
governo, com a incorporação da idéia da transformação das políticas
sociais universais em políticas focalizadas; a crença de que as políticas
públicas devem ser capazes de impulsionar o desenvolvimento econômico
e promover a inclusão social; accountability (FREY, 2000; HEIDEMANN;
SALM, 2009; HOCHMAN; ARRETCHE; MARQUES, 2007).
A transposição desse modelo ao contexto da segurança pública,
num cenário de agravamento dos problemas no país, tem direcionado
a atenção para a tentativa de denição de parâmetros do que seria um
desempenho policial adequado aos princípios democráticos. No entanto,
o debate não tem ultrapassado as fronteiras do dever-ser, mantendo-se
bastante alheio ao que ocorre na prática, ou tem se limitado a uma forma
de julgamento sobre “boas ou máscondutas dos agentes públicos. Nas
duas situações mantém-se um distanciamento com relação ao cotidiano
dos serviços, num caso o foco é o modelo, no outro o indivíduo.
Acredito que para se realizar a avaliação de um serviço público
é imprescindível partir das práticas, bem como identicar que tipo de
avaliação se pretende realizar. De modo que se a perspectiva for a análise
gerencial”, deve-se pesquisar o processo e o produto do trabalho, a m
de compreender como o trabalho é feito e o que o usuário/beneciário
do serviço diz sobre ele. Neste tipo de avaliação a ênfase recairá sobre a
ecácia e eciência. Já quando a perspectiva for voltada a problematizar
os resultados do serviço na transformação da realidade”, deve-se buscar
informações que demonstrem quais são práticas tradicionais, como elas
consideradas pela instituição e/ou pela sociedade, e descrever os conitos
51
D S P:
 ,  
relacionados à introdução de mudanças nos processos organizacionais/
institucionais, mudanças nos processos decisórios e de interação com novos
atores. Aqui a ênfase estará direcionada para a efetividade e o impacto.
Este tipo de avaliação deve ser capaz de perceber a dimensão subjetiva do
trabalho do servidor, o que não é alcançado pela mensuração por meio de
índices, sejam eles de produtividade ou de criminalidade.
O presente trabalho está baseado numa discussão teórico-
metodológica sobre a natureza dos conitos administrados
institucionalmente por órgãos públicos (LIMA, 2008), com especial
destaque para:
a) pesquisas etnográcas sobre intervenções estatais cujo foco seja a
formulação de políticas públicas para a minimização da violência
(social, delitiva e estatal);
b) pesquisas etnográcas sobre intervenções estatais voltadas para o
atendimento de demandas sociais por reconhecimento de direitos
encaminhadas às instituições policiais e judiciais.
Esta abordagem tem o objetivo de consolidar uma linha de
pesquisa, cujo recorte metodológico seja a etnograa sobre esses temas,
vinculando-a às discussões teóricas, de maneira que se enriqueça o debate
mediante a possibilidade de comparação de processos sociais e políticas
públicas em diferentes contextos e pertencimentos institucionais, levando à
desnaturalização e desomogeneização do conceito de estado. Outro aspecto
a ser ressaltado diz respeito à contribuição que essa abordagem, advindos
da imposição de modelos por parte do Estado, pode ter na compreensão
da complexidade da natureza subjetiva da atividade política, de forma a
expor as diferentes concepções dos grupos sujeitos a essas políticas e as
percepções dos agentes envolvidos na implantação das mesmas.
Do ponto de vista metodológico, acreditamos que a utilização
da pesquisa etnográca é fundamental para romper com a perspectiva
normativista que tem marcado a temática das políticas públicas de
segurança nas abordagens que privilegiam a discussão sobre a gestão das
políticas. Outra contribuição relevante da abordagem etnográca é a
análise da construção de um saber práticodos agentes (BOURDIEU,
1980; GUEDES, 2008), que atuam nas mais variadas funções estatais,
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
52
permitindo perceber como vêem seu papel na instituição e desempenham
suas atividades. Tal perspectiva é uma dimensão essencial quando se trata
de políticas públicas”, tendo em vista que os funcionários são identicados
como um dos fatores fundamentais na possibilidade de sucesso ou
fracasso na formulação/implantação de políticas públicas(FREY, 2000;
HOCHMAN; ARRETCHE; MARQUES, 2007).
as foRmas de RegistRo de infoRmações em guaRdas municiPais no Rio
de JaneiRo
Os registros administrativos são documentos produzidos pela
administração pública na condução de suas atividades cotidianas, sendo
que alguns documentos, em função do cargo do funcionário que o produz,
passam a ter “fé pública” (MIRANDA, 2000, p. 65), ou seja, presume-se a
sua veracidade, autenticidade e legitimidade, como é o caso de um registro
feito por um escrivão de polícia civil.
O uso dos registros administrativos como fonte de pesquisa para
a descrição e contabilização das diversas ações realizadas pelo Estado é,
portanto, uma forma de acesso às representações construídas sob a ótica
das instituições públicas. Assim, a geração de estatísticas a partir desses
registros deve levar em consideração que se trata de um relato daquilo que
a instituição julgou relevante registrar, e não que se refere à totalidade de
demandas apresentadas pela população ou de casos existentes na sociedade.
As informações públicas relativas à segurança pública têm como
base, no estado do Rio de Janeiro, os registros de ocorrências efetuados
nas Delegacias Policiais. Na prática, não se leva em consideração um
vasto campo de informações relativas às ocorrências atendidas pela Polícia
Militar
11
ou pelas Guardas Municipais, cujos agentes não são dotados de
fé pública”.
A Guarda Municipal da cidade do Rio de Janeiro (GM-Rio)
foi a única no estado que desenvolveu um projeto de implantação de um
talonário próprio
12
para o registro de ocorrências e uma forma de tratar
11
Sobre o registro de ocorrências na Polícia Militar ver Ferreira (2008), Guedes (2008) e Ramos (2002).
12
O talão próprio para Guardas Municipais foi desenvolvido no âmbito do projeto realizado pelo Instituto
de Segurança Pública (ISP), Integração dos bancos de dados da Polícia Civil, da Polícia Militar e das Guardas
53
D S P:
 ,  
os dados, em parceria com o Instituto Municipal de Urbanismo Pereira
Passos (IPP). A GM-Rio participou ativamente do projeto de discussão do
talonário junto ao ISP, pois reconheceu que a incorporação do modelo da
Polícia Militar não atendia às especicidades do trabalho realizado pelos
guardas. A instituição tinha o intuito de padronizar o processo de registro de
ocorrências, de modo a possibilitar a construção de um banco de dados com
informações relativas aos atendimentos realizados pela instituição, o que
poderia facilitar a identicação dos problemas vivenciados pela população
e que foram registrados pelos Guardas Municipais; a identicação de ações
priorizadas pela instituição; bem como o tratamento das informações
para o planejamento das suas a utilização dos dados para a elaboração de
relatórios de prestação de contas.
Acreditava-se que o tratamento das informações facilitaria a
realização de diagnósticos municipais que sirvam, por um lado, como
insumo a uma melhor utilização dos recursos disponíveis na Guarda e,
por outro, como fonte qualicada na identicação de prioridades no
desenvolvimento de políticas públicas que atendam as particularidades de
cada área da cidade no que se refere à segurança pública.
Outro aspecto fundamental é que as ocorrências atendidas pela
GM-Rio deixaram de ser restritas ao conhecimento exclusivo dos agentes
envolvidos no fato. A análise qualicada da informação era considerada
um instrumento importante para a avaliação e o monitoramento da
instituição, como uma forma de dar visibilidade ao trabalho realizado pelos
Guardas Municipais, em especial no que se refere às atividades voltadas à
prestação de serviços à população. A informação compartilhada possibilita
uma visibilidade ao trabalho desempenhado pela instituição, que de outra
forma não teria o reconhecimento público.
De forma simples e objetiva, o Talonário e a Codicação de
Ocorrências adotados pela GM-Rio consolidam conteúdos mínimos
de registro para os atendimentos comumente efetuados pelos guardas
municipais. No formulário, campos onde se pode descrever de forma
geral o fato ocorrido; campos que se referem aos encaminhamentos
originados pela ocorrência, buscando identicar uma possível interface com
Municipais, entre 2006 e 2008, sob minha coordenação geral, e foi desenvolvido a partir de um intenso debate
com guardas municipais de quase todo o estado em três seminários.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
54
outras instituições, e, ainda, campos classicatórios que são preenchidos de
acordo com os códigos disponíveis no talonário, a saber:
1. Crimes: Referem-se às ocorrências criminais previstas na legislação
penal nacional, entendo-se o crime como uma ação ou omissão que
constitui um dano ou uma ameaça a um bem jurídico individual ou
coletivo;
2. Contravenções: Referem-se às ocorrências contravencionais previstas
na legislação penal nacional. A principal diferença entre a contravenção
e o crime está na forma de punição mais branda e ao fato de que não
se pune a tentativa de uma contravenção;
3. Posturas Municipais: Referem-se às ocorrências infracionais previstas
na legislação municipal. No caso, do Município do Rio de Janeiro, o
Código de Posturas Municipais está dividido em duas partes, a primeiro
referente ao licenciamento, funcionamento e scalização das atividades
econômicas e da publicidade, e a segunda relativa à manutenção da
ordem e à convivência urbana na cidade;
4. Trânsito: Referem-se às ocorrências infracionais e criminais previstas
na legislação nacional de trânsito;
5. Auxílios: Referem-se às ocorrências em que a Guarda Municipal
prestou assistência ou subsídio a indivíduos ou instituições;
6. Apreensões: Referem-se às ocorrências administrativas de retenção de
mercadorias em desacordo com a lei ou de origem ilícita, de guarda de
incapazes (crianças e adolescentes), ou recolhimento de animais;
7. Acidentes: Referem-se às ocorrências indesejáveis, fortuitas e em certos
casos inesperadas, que causam danos pessoais, materiais e nanceiros,
que se manifestam de modo não intencional;
8. Meio ambiente: Referem-se às ocorrências infracionais e criminais
previstas na legislação nacional de meio ambiente.
Atualmente, a GM-Rio e o IPP continuam realizando o tratamento
das informações registradas, aprimorando o sistema desenvolvido para
geolocalização dos casos registrados, mas segundo foi relatado não
analistas especializados em segurança que possam desenvolver estudos
55
D S P:
 ,  
sobre os dados e nenhuma forma de divulgação sistemática das informações
à sociedade, em função da mudança de comando ocorrida em 2009
13
,
de modo que os mapas produzidos não costumam ser utilizados como
insumos para a gestão cotidiana.
A realização dos projetos Desenvolvimento e Monitoramento de
Indicadores de Segurança Social e de Segurança Pública a partir dos atendimentos
realizados pela Guarda Municipal de São Gonçalo
14
e Desenvolvimento
e análise de banco de dados com os registros relativos aos atendimentos
realizados pelas Guardas Municipais de São Gonçalo e de Rio Bonito
15
tem
possibilitado constatar empiricamente que a padronização da informação
não faz parte das prioridades de estruturação e organização dos órgãos de
segurança pública municipais. Assim, os pesquisadores envolvidos
16
nos
projetos têm buscado compreender de que forma os dados são registrados
pelos guardas municipais e pela administração central, visando discutir os
limites e possibilidades de se pensar uma política públicavoltada à gestão
das informações oriundas das Guardas Municipais e identicar alguns
fatores que tornam inviáveis, na prática, a possibilidade de agregação das
informações existentes nas Guardas Municipais às bases de dados das
instituições policiais e judiciais.
Temos utilizado como referência contrastiva outras pesquisas que
demonstram que não na administração pública uma forma de gestão dos
dados como ferramenta de prestação de serviços ao público (MIRANDA;
13
Houve apenas uma apresentação pública de dados referentes aos primeiros seis meses de realização deste
trabalho (MIRANDA; FUSCO, 2008).
14
Integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração
Institucional de Conitos (INCT-InEAC), da Universidade Federal Fluminense, coordenado pelo Prof. Roberto
Kant de Lima. O INEAC é composto por núcleos de pesquisa e programas de pós-graduação de diferentes
estados do Brasil, a saber: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Distrito
Federal. Também conta com a participação de grupos e de pesquisadores associados e consultores internacionais
da Argentina, França, Canadá, Portugal, Alemanha e Angola. Foi constituído para promover um programa de
pesquisa e formação, nas áreas de Ciências Humanas e de Ciências Sociais a respeito das formas institucionais
de administração de conitos em diferentes âmbitos dos Sistemas de Segurança Pública e de Justiça Criminal.
Seu principal objetivo é, portanto, a produção de pesquisas empíricas, em suas bases quantitativas e qualitativas,
que permitam propor e avaliar políticas públicas, em nível federal, estadual e municipal, na área da Segurança
Pública e do Acesso à Justiça, bem como desenvolver tecnologias inovadoras de intervenção social nesses campos.
15
Financiado pela FAPERJ - Edital Auxilio à Pesquisa - APQ 1 (2009-2010).
16
Fernando Carlos de Souza, bolsista Mestrado CAPES; Joelma de Souza Azevedo, bolsista Mestrado -
EditalMCT/CNPq Nº 70/2009 – Programa de Expansão da Pós-Graduação em Áreas Estratégicas – PGAEST;
Marcos Vinicius Moura – Bolsista de Treinamento e Capacitação – FAPERJ; Talitha Miriam do Amaral Rocha
– PIBIC-UFF; Vinicius Cruz Pinto – PIBINOVA-UFF.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
56
FERREIRA, 2008; MIRANDA; LIMA, 2008; MIRANDA; DIRK,
2010), mas sim como mecanismos de apropriação privada de informações
(MIRANDA, 2000, 2005a, 2008).
A escolha pela Guarda Municipal de São Gonçalo se deu em
virtude do fato de que esta instituição esteve entre as primeiras no Estado
a incorporar o modelo de talão de atendimento próprio e dar início a
digitação de suas informações. Outra razão para a escolha deve-se ao fato
de que o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas realizou, mediante
um convênio com a Secretaria Municipal de Segurança, um diagnóstico
dos problemas que afetam à segurança e elaborou um Plano de Segurança
Municipal, onde se identicou a ausência de mecanismos de gestão da
informação referente aos atendimentos realizados pela Guarda Municipal.
Já a Guarda Municipal de Rio Bonito foi inserida na pesquisa por apresentar
características distintas no que se refere à organização interna, além de
não possuir um talonário especíco de registros para o atendimento das
ocorrências, a instituição apresenta condições mais precárias de serviço, o
que foi considerado como um interessante elemento para contraste.
Outro aspecto que diferenciam as duas Guardas são as
características socioeconômicas dos municípios, pois se tratam de cidades
com dimensões territoriais distintas
17
, mas que merecem atenção em função
do crescimento sem controle e planejamento a que já foram submetidas e
que será agravado com a implantação do Complexo Petroquímico do Rio
de Janeiro (COMPERJ).
A pesquisa tem se dedicado até o momento a analisar como
as Guardas Municipais têm desenvolvido o registro das ocorrências
e atendimentos. Para isto realizamos entrevistas com autoridades
municipais da área de segurança; grupos focais com os guardas municipais;
acompanhamento do trabalho da supervisão dos guardas municipais e dos
guardas em atividades rotineiras; realização de um workshop com guardas
dos dois municípios para discutir as questões identicadas até o momento,
e iniciamos o trabalho de leitura e análise dos registros.
17
São Gonçalo é um município da região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, enquanto Rio Bonito está
localizado no interior do leste uminense.
57
D S P:
 ,  
É importante ressaltar que a metodologia da discussão com os
guardas tem sido fundamental para permitir a interação com os mesmos.
Em 2006, os debates possibilitaram o desenvolvimento de um modelo de
talão de registro de ocorrências que acabou sendo incorporado pela Guarda
Municipal do Rio de Janeiro. No momento, o encontro possibilitou
a discussão sobre quais são os limites da introdução de um trabalho de
construção de banco de dados.
Durante a realização do trabalho de campo identicamos que as
formas mais comuns de registro são:
os “livros de ocorrência”, que estão presentes nas duas cidades.
As anotações são realizadas diariamente, sem uma clara separação
entre as informações administrativas e as informações referentes aos
atendimentos. Assim, uma ocorrência de furto, uma discussão entre
vizinhos, uma confusão que tenha o envolvimento de funcionários
públicos, ou a passagem de serviço de um guarda para o outro, são
exemplos de eventos registrados no livro de forma sequencial.
o “talão de registro de ocorrência” (TRO) está presente apenas em São
Gonçalo, mas não é a forma mais usual e o seu uso não é obrigatório.
Os casos que foram mencionados o registro em talão foram situações
de socorro a uma pessoa na rua, casos de agressão, ou um assalto em
que o guarda levou a vítima até a delegacia para realizar um registro de
ocorrência. Estes eventos são considerados simples”, de modo que o
registro é facultativo. Outras situações que podem ser registradas no
talão são casos em que o guarda identicava a necessidade de algum
tipo de problema, tal como a falta de iluminação na rua”. Como o
talão é individual, uma cópia do registro ca com o guarda e a outra
ca arquivada na sede da instituição. Os guardas consideram isso como
um “resguardo” em situações que podem representar questionamentos
a sua atuação, como num caso citado por um entrevistado:
Numa batida entre dois carros, se foi feito um acordo amigável entre
os motoristas, mas depois um deles se sente prejudicado e vai recorrer.
Assim, o guarda tem como provar através do TRO que, no dia da
batida, foi feito um acordo entre os motoristas envolvidos. (Guarda
Municipal há doze anos).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
58
Além disso, existem outras fontes de informação que podem
ser consideradas importantes na atuação das guardas, como as ordens de
serviços, documentos oriundos de outras secretarias para solicitar a atuação
da Guarda Municipal em algum local da cidade; os talões de multa, quando
a instituição tem autorização legal para atuar no trânsito; as planilhas de
controle de viatura; as planilhas de monitoramento, chamadas de “Justiça
e Disciplina”, que têm a nalidade de controlar a “cha prossional” do
guarda no que se refere à disciplina, contendo elogios e punições. As duas
últimas fontes de informação eram consideradas pelo comando da Guarda
de São Gonçalo como importantes “mecanismos de controle interno”.
Pode-se concluir, até o momento, que o registro das atividades
realizadas pelas Guardas Municipais é feito em diferentes suportes, mas o
conteúdo das informações está divido em três áreas principais:
1. os fatos relacionados à administração da GM;
2. o controle dos guardas municipais;
3. as atividades realizadas pelos guardas municipais.
Os três expressam um predomínio de interesses relacionado ao
funcionamento da instituição, que pouco ajuda a compreender os conitos
cotidianos que os guardas são chamados a intervir.
os usos das infoRmações
Foi possível identicar que o uso das informações é diferenciado
entre os guardas municipais, que realizam o trabalho de rua, e os agentes que
atuam na administração (inspetores, comandante e secretários municipais).
O principal uso por parte dos guardas é o que os Guardas chamam de
resguardo”. Segundo os depoimentos dos Guardas, os registros servem
quase que exclusivamente para proteger o Guarda Municipal de qualquer
questão que se tenha dúvida ou um fato a ser esclarecido, como em uma
situação de um possível arrolamentoem um inquérito policial, ou uma
acusação por omissão em um atendimento.
59
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Na visão dos Guardas Municipais ter em sua posse a informação
do que aconteceu o deixa resguardadodiante de uma possível punição
administrativa ou judicial, dependendo de qual for do caso em questão.
Alguns Guardas destacaram a existência de um “livro particular”,
que seria um bloco ou caderno onde eles anotam todos os eventos ocorridos.
Mesmo tendo o talão, o livro é construído pelos Guardas como mais uma
maneira de se “resguardar”:
Primeiro faço um rascunho, depois passo para o TRO e quando
chego em casa faço o registro no meu caderno, faço isso por causa
da Justiça. Ninguém sabe o dia de amanhã. Muitas vezes o Guarda é
chamado para a audiência como testemunha ou tem alguém dizendo
que a multa foi indevida. E você sabe como demora [o processo
judicial]? Então, eu escrevo no meu caderno quando eu chego em
casa. (Guarda Municipal há 12 anos).
Assim, para os guardas, a principal utilidade dos registros,
informações dos livros e talonários é se proteger de possíveis punições ou
ações na justiça, o que de certa forma explica porque os registros se referem
mais a eventos excepcionais”, ou seja, casos que podem ter desdobramentos
que podem afetá-los diretamente. Como disse um dos guardas no grupo
focal: “o registro serve para resguardar o guarda”.
Outro uso do registro relatado pelos guardas se refere a casos em
que eles identicam danos ao patrimônio público. Porém, essa armação
não foi consensual entre os guardas. Alguns armaram que não faziam este
tipo de relato, pois houve uma época, no município de São Gonçalo, que o
comando achava que o guarda que fazia esses registros era um cri-cri”, isto
é, cava rotulado como uma pessoa que incomodava e, por isso, até houve
casos quem guardas foram punidos com mudança de posto.
O comando de o Gonçalo que estava em atuação durante a
realização da primeira fase da pesquisa apresentava uma visão distinta. Apesar
de reconhecer que os livros eram lidos todos os dias por um superintendente
ou pelo comandante da guarda, que, dependendo do caso, tomavam as
devidas providências”, foi reconhecido que as informações dos talões, livros
e outras fontes ainda não eram trabalhadas”. Ele armava que se fossem
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
60
informatizadas iria fortalecer os seus argumentos para pedir à administração
municipal mais equipamentos, viaturas e aumento de efetivo.
Para o ex-comandante, os registros serviriam também para
mostrar aos guardas que eles trabalhavam muito, mas que tinham poucos
instrumentos para comprovar isso, que quando se observa algo muito
grave registrado num talão que não era da alçada da Guarda, o comando
mandava um ofício ao órgão competente para pressionar os gestores,
que nem sempre estariam sensibilizados em realizar suas funções. Essa
foi uma das razões para justicar a necessidade de um banco de dados
com as informações dos talões, que estava em andamento na Secretaria de
Segurança de São Gonçalo, mas que ainda não fora implantado. De acordo
com o secretário de segurança, o principal obstáculo ao projeto seria a
cultura do não registrodos eventos cotidianos, que foi relacionado às
condições de confecção do registro, onde o livro de ocorrências seria mais
prático, porque quando um relato é feito de forma circunstanciada”, a
leitura diária do livro permitiria que as autoridades tomassem providências
cabíveis” ou realizassem os encaminhamentos a outros órgãos. Enquanto o
registro no talão, embora fosse mais fácil de ser feito pelo guarda, acabava
sendo depositado num arquivo de metal e lá cava.
A realização do trabalho de campo permitiu levantar outra
hipótese para que os guardas se recusem a registrar os fatos cotidianos em
função do uso dos registros para scalização e punição do comportamento
dos guardas, como no caso das informações das planilhas de controle de
viatura e a planilha de monitoramento dos guardas são utilizadas para
saber quantos quilômetros as viaturas percorrem por dia, para monitorar
se os percursos previstos nas rondas eram executados, e para o comando
vericar como anda a situação funcional dos prossionais, no que se refere
a elogios e punições.
Notou-se que o uso das informações para o planejamento e gestão
das ações das Guardas não faz parte do cotidiano das instituições. Assim,
os comandos reconhecem que a distribuição do efetivo é baseada apenas
na experiência”. Como exemplo foi citado o modo de distribuição do
efetivo que ca responsável pelo controle do trânsito, que seria alocado
em pontos considerados mais importantes. Mas, segundo os entrevistados
não haveria nenhum dado que comprovasse que tais lugares precisem
61
D S P:
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realmente da presença de guardas municipais. Disseram também que não
um histórico de produtividade de nenhum setor nas guardas, que a
distribuição dos guardas é feita de acordo com o velho método empírico”,
os guardas são mandados para as áreas de maior visibilidade da cidade e
para as áreas para as quais há “pedidos” dos políticos locais.
Pode-se perceber, portanto, que o maior obstáculo à implantação
de um sistema de gestão de informações é o seu uso apenas para scalização
e punição dos guardas, o que diculta a possibilidade do tratamento
das informações conforme o modelo proposto nos planos de segurança
nacionais, como a efetivação de um sistema de informações úteis aos
gestores por meio da integração de diferentes fontes, da realização de
pesquisas e da avaliação constante de estratégias utilizadas na realização das
políticas públicas” de segurança.
consideRações finais
A necessidade de novos paradigmas na segurança pública é
um fato incontestável, mas para que as intenções sejam transformadas
em ações, é preciso considerar que a “inovaçãosomente torna-se uma
transformação estrutural quando produz uma transformação das práticas
(JACOBI; PINHO, 2006). Nesse sentido, julgo ser importante observar
que os programas e planos de segurança pública, a partir da implantação do
Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), indicam que a introdução de
tecnologias de gestão da informação não produz imediatamente alterações
substantivas e qualitativas no processo de gestão.
As transformações mais signicativas estão relacionadas à instauração
de pades de comportamento, suscitar sentimentos e acionar percepções
coletivas que possibilitem mudanças estruturais” nas instituições de seguraa
blica municipais, estaduais e federais (SOARES, 2006, p. 95).
A “inovação pressupõe, portanto, a difusão e a replicabilidade
em contextos diferenciados a partir da expansão de um conhecimento
crítico e reexivo acerca de práticas institucionalizadas. Assim sendo, a
explicitação dos conitos e tensões inerentes à formulação e implantação
de políticas públicas no que se refere aos procedimentos de registro nas
Guardas Municipais possibilita a construção de um diálogo entre saberes
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
62
e práticas distintos, o que tem possibilitado a inclusão de novos atores
na busca por soluções para os problemas identicados, bem como o
favorecimento da articulação de novos arranjos institucionais por meio de
transferências de tecnologias sociais, que tem possibilitado a mobilização
de atores governamentais e não-governamentais em torno de um problema
especíco: a informação deve ser pensada como um insumo importante,
pois seu uso possui efeitos públicos, que afetam todo o sistema e a sociedade.
No caso das informações produzidas pelas guardas municipais,
para que elas possam ter efeitos públicos é preciso questionar o fato de que
a instituição é colocada numa posição inferiorizada entre as instituições de
segurança, provavelmente, devido ao fato de que a informação produzida
pela instituição não possui “fé pública”.
Fica evidente, então, um círculo vicioso. Na medida em que a
informação produzida pela instituição é deslegitimada pelo sistema de
justiça criminal, os funcionários não vêem importância no ato de registrar
suas atividades rotineiras. Ao não faze-lo compromete a visibilidade do
trabalho que é realizado pela instituição, reforçando a ideia de que não há
nenhuma atividade importante no caso, isso é entendido como combate
ao crime” o que tem por consequência a desvalorização da Guarda
Municipal em face aos outros órgãos da segurança pública.
A demanda por cartorializar as instituições é um tema comum no
que se refere a uma estratégia de valorizar a Guarda Municipal, porém essa
proposta se pode servir para dar poder numa disputa entre as instituições da
área de segurança, não possui nenhuma vantagem no que se refere à gestão
da informação, pois as práticas cartoriais são orientadas pelo princípio do
sigilo, que é incompatível com a ideia da circulação da informação.
Outro ponto que merece atenção é o fato de que a aparente
desorganização dos registros nas Guardas Municipais pode ser pensada
como uma forma dos guardas resistirem ao controle de seus superiores,
cuja consequência é o enfraquecimento da imagem da instituição. Quanto
menos os guardas registram, menos possibilidade a instituição tem de
se legitimar na sociedade, que a Guarda Municipal é, por excelência,
uma das principais instituições responsáveis pela ordenação do espaço
público, intervindo e auxiliando na mediação dos problemas que afetam
63
D S P:
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cotidianamente a população local. Desse modo, é imprescindível que
a Guarda publicidade aos problemas relativos à segurança pública
municipal e sua própria atuação.
que salientar que a publicidade é a única forma de se enfrentar
a tradição
18
inquisitorial (LIMA, 2008), marcada por práticas da “política
do sigilo”, cuja característica principal é a expressão de certo temor: os
documentos públicos quando analisados podem signicar censura a uma
má administração. Segundo José Honório Rodrigues, a política do sigilo
(1989/1990, p. 13) corresponderia a uma velha tradição portuguesa que
pretende esconder e sonegar os documentos, independentemente do
tempo já decorrido.
Esse desao necessita ser enfrentado para que se possa efetivamente
compreender que a relação entre informação e democracia é biunívoca, ou
seja, uma não pode existir sem a outra (FERRARI, 2000). É preciso reetir
também que esta relação deveria assegurar o direito-dever de informar, o
que equivale à possibilidade de constituir e gerir fontes de informação,
evitando-se os monopólios, bem como o direito de ser informado, o
que corresponderia ao acesso a uma pluralidade de fontes informativas
diferenciadas e de qualidade, evitando-se as informações manipuladas por
má fé e/ou por ocultação de fatos.
A publicidade é um princípio da administração pública, que diz
respeito à obrigação de levar ao conhecimento de todos, os atos, contratos
ou outros instrumentos jurídicos para dar transparência, de modo que
qualquer pessoa possa questionar aquilo que é produzido regularmente
pelos agentes do Estado.
Assim, a organização e disponibilização dos dados produzidos
por guardas municipais sobre suas práticas cotidianas e eventuais devem
propiciar um conjunto organizado de informações, que possam estimular
a produção de análises consistentes acerca dos principais problemas
enfrentados nos municípios, o que permitirá alguma comparabilidade
na atuação das Guardas Municipais, sem afetar a diversidade de atuação
18
O conceito de tradição é entendido aqui como um determinado padrão”, inconsciente, produzido e
reproduzido por um grupo através de suas práticas.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
64
inerente a uma proposta de intervenção descentralizada, tal como está
postulado no plano nacional de segurança pública.
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67
A “culturA policiAl”: um debAte
teórico
-metodológico
André Rosemberg
1
Em 29 de março de 1906, o chefe de polícia de São Paulo
recebeu em mãos uma carta de São João da Bocaina, município modesto
da região central do estado, vizinho a Jaú. Subscrito por um indignado Gil
Cardia, a missiva dava conta dos abusos praticados pelo destacamento da
Força Pública estacionado na cidade. Escrevia ele:
Levo ao conhecimento de V. Sa. Ima. que acha-se aqui esta População
sem garantia devidamente as praças aqui destacadas que marcham,
não para obterem a ordem pública, mas sim para efetuarem desordem
contra a nossa População tão humilde e pacata e encontrando um
qualquer pobre, embriagado, eis então que o Valente Militar aproveita
as espadas governativas, espanqueando a qualquer que seja e nem
mesmo atender as ordens do cabo/comandante por serem incorrigíveis
todos [...] de maneira que V. Sa. para formar Alicerces novos para obter
ordem e não desordem nesta vila tão prosperosa deveria sem falta
1
Este trabalho teve auxílio da FAPESP. Uma primeira versão deste texto foi apresentada no III Seminário
Nacional Sociologia & Política - repensando desigualdades em novos contextos, organizado pela UFPR, em
Curitiba, entre 26 e 28 de setembro de 2011.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
68
providenciar, punindo as praças aqui destacadas; pois chegaram ontem
até darem tiros de fronte à cadeia pública, e hoje um vestiu-se a paisano
(Borguez) não se sabe a qual m. (CARDIA, 1906, grifo do autor).
2
Se o contexto histórico, passados mais de cem anos, torna o cenário
político, social, geográco deslocado aos olhos de um observador do
século XXI, ao menos uma permanência se faz surpreendente. Salvo, talvez,
pela linguagem do documento, o episódio não soa de todo estranho.
Reconhece-se de pronto a polícia e os policiais – os interlocutores
privilegiados do Estado com a população; é familiar, igualmente, a intriga
a narrativa que denuncia o abuso, o desrespeito e o cinismo por parte dos
agentes estatais. Mais impressionante ainda seria reconhecer a incidência de
cena parelha em contextos mais afastados no tempo e no espaço. Se o
Rio de Janeiro está logo ali (BRETAS; PONCIONI, 1999), a historiograa
desvela episódios semelhantes na Londres vitoriana (STORCH, 1985); na
Calcutá imperial (KIDAMBI, 2004) ou em Nova York (THALE, 2004.
Anal, o que explicaria essa tendência reiterada? Ou, nas palavras de um
decano dos estudos policiais, esse traço “universal, estável e duradouro” que
acomete os departamentos de polícia mundo à fora (SKOLNICK, 2008).
A resposta, segundo uma parcela copiosa dos sociólogos que se
debruçam sobre o fenômeno, reside na força pervasiva de uma cultura
policial”, fenômeno que perpassaria experiências sociohistóricas tão
díspares, apresentando como único ponto em comum as dinâmicas
intrínsecas à polícia, considerada aqui em sua forma contemporânea, ou
seja, uma burocracia formada de “[...] pessoas autorizadas por um grupo
para regular as relações interpessoais dentro deste grupo através da aplicação
de força física.” (BAYLEY, 2006, p. 20).
A intenção deste capítulo, portanto, está em revisar, a partir da
análise de parte da bibliograa internacional disponível, os usos que se fazem
da cultura policial” como ferramenta analítica para se explicar atitudes e
comportamentos de policiais, bem como de sua crítica, a m de colocar
sob debate uma potencial validade metodológica do conceito aplicado
em contextos distantes e distintos. Nesse processo, é igualmente nosso
2
Carta de Gil Cardia para o chefe de polícia de São Paulo, em 29/03/1906. Arquivo Público do Estado de São
Paulo, co3099.
69
D S P:
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objetivo questionar as características que compõem uma cultura policial”,
assim como aferir a extensão do grau de coalizão e de homogeneidade
“ideológicae de comportamento - no interior de organizações policiais,
o que também nos possibilitará ampliar a análise sobre a viabilidade
operatória do conceito.
“cultuRa Policialna sociologia da Polícia
A cultura policial” é um dos temas mais espinhosos no debate
contemporâneo. Dominique Monjardet arma, inclusive, ser o calcanhar-
de-aquilesdos pesquisadores que estudam o tema. Segundo o sociólogo
francês, ela funcionaria como a “variável imprevista” de que o pesquisador
lança mão para explicar condutas que fogem da lógica organizacional,
justamente porque dos policiais ao contrário de outras prossões, cujos
mandatos e prescrições são bem denidos – não se espera que realizem seu
trabalho sem que levem em conta um sistema de valores compartilhados
intragrupo (MONJARDET, 2003, p. 162-163).
Mas, antes de nos embrenharmos pelo caminho da crítica, vale
apresentar algumas das linhas mestras presentes na literatura especializada.
Como se verá a seguir, há um problema de fundo que converge na maioria
dos trabalhos: o de se estabelecer um consenso sobre a denição e os limites
do que seja a “cultura (ou mesmo uma subcultura) policial”.
Diante dessa diculdade, alinhavamos uma compilação de
características que formariam, conforme uma plêiade considerável de
pioneiros” (BANTON, 1964; CAIN, 1973; MANNING, 1995; MUIR,
1977; REUSS-IANNI; IANNI, 2004 [1983]; SKOLNICK, 1975 [1966];
WESTLEY, 1970; VAN MAANEN, 2004 [1978]), e de outros especialistas
que organizaram sínteses (CRANK, 1998; FOSTER, 2003; REINER,
2004; WESTMARLAND, 2008), o core da “cultura policial”.
Grosso modo, a “cultura policial” é tida como um guia, composto
de normas informais que orientam a ação dos policiais (principalmente
os de menor patente), e que opera nos interstícios das rígidas regras
organizacionais, longe dos olhos supervisores. Uma cultura policial”
viceja devido à fragilidade dos mecanismos superiores de controle e à
grande carga de discricionariedade com que contam os policiais de base
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
70
quando em campo, numa relação inversamente proporcional à posição
hierárquica que ocupam: quanto mais distante o policial se encontra da
cúpula do comando com maior autonomia ele pode operar (WILSON,
1968). A imprevisibilidade das situações cotidianas de trabalho, a
pluralidade de mandatos a serem cumpridos impõem aos policiais uma
situação contraditória, que opõe a uma prática situacionalmente orientada
(o policiamento) uma organização estabelecida em rígidos padrões
burocráticos e regimentais, muitas vezes para-militar (ou abertamente
militar, no caso brasileiro), de hierarquia verticalizada, de estrita obediência
às normas internas.
Nesses moldes, a “cultura policial” funcionaria como um código
informal e tácito de regulagem da atuação do policial diante das situações
que se apresentam, moldando a maneira como ele se relaciona com os
colegas, com a instituição e com o público. Ou, conforme se aduz, é a
maneira como as coisas são feitas por aqui(O’NEILL; MARKS; SINGH,
2007, p. 2). Nesse contexto, os policiais (principalmente os de baixa
patente) mostrariam um razoável grau de coesão, compartilhando, não
somente experiências práticas de policiamento, mas também um conjunto
de atitudes (valores) em relação ao ofício, aos colegas, à administração e
ao público, que transcende o tempo e o espaço, e se constitui em marca
de unidade dos departamentos de polícia pelo mundo, à parte das
singularidades históricas e culturais de cada período e local.
Dessa primeira reunião geral, sobressaltam-se três características
principais. A primeira aponta para a preeminência dos policiais de baixa
patente na composição do campo de pesquisa. Isso se deve à preferência
das primeiras pesquisas etnográcas citadas acima ao estudo dos rank and
les que realizavam policiamento de rotina (rondas), em detrimento da
observação de outras escalas hierárquicas e funcionais (ociais, detetives,
gerência, agências especializadas, polícia política, pessoal burocrático, etc).
Uma depuração que desse conta das complexidades organizacionais dos
departamentos de polícia teve lugar em estudos mais tardios (MARX,
1988; REUSS-IANNI; IANNI, 2004 [1983]; YOUNG, 1991).
A segunda, e talvez a mais presente, tem a ver com a potência
transformadora e persuasória inscrita no enquadramento ocupacional dos
policiais. Dito de outro modo, a maioria dos trabalhos tende a concordar
71
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 ,  
que o ingresso do indivíduo no mundo institucional e as particularidades
inerentes ao mundo institucional policial (o serviço desempenhado, as relações
hierárquicas, as expectativas do público) mostram-se capazes de incutir uma
visão de mundo singular e, mais ainda, asseveram que as atitudes oriundas a
partir do processo de incorporação institucional, modelado de acordo com as
situações especícas próprias do trabalho policial (risco, perigo, autoridade,
pressão por eciência, etc.), tornam-se o vel mais destacado para justicar
um comportamento tipicamente policial.
Em terceiro lugar, tanto a atitude (que se manifesta no plano
retórico), quanto o comportamento do policial em relação à função social
exercida e à interação com o público assumem perspectivas geralmente
perniciosas, que são deagradas por manifestações racistas, sexistas,
abusivas e corruptas. Trata-se, portanto, de uma espécie de desvio – moral
e funcional nefário que se perpetua no tempo, na passagem geracional,
e se mostra refratário a reformas que pretendem sanear comportamentos,
implantar controle externo e exigir accountability.
A despeito da metonímia persistente que extravasa para toda a
instituição os atributos de uma parcela especíca do pessoal, parece ser
cada vez mais consensual o reconhecimento de que não se pode falar em
uma cultura (ou subcultura) policial”, mas sim em culturas policiais (no
plural) ou subculturas policiais (REINER, 2004; WESTMARLAND,
2008), ainda que tal reconhecimento não arrefeça completamente um
certo complexo de homogeneidade com o qual se reputam as experiências
institucionais (SKLANSKI, 2007).
Outra divisão que se encontra na literatura aponta para uma
sutileza teórica, em relação ao processo de aquisição dos atributos
compartilhados pelos policiais. Cinde-se entre aqueles que acreditam que
cultura policial inclina-se em torno de uma marca axiológica, isto é, que a
transmissão dos saberes e o impulso para a prática se orientam na esfera dos
valores, numa perspectiva mais ortodoxa dos estudos culturais (REINER;
2004; REUSS-IANNI; IANNI, 2004 [1983]); SKOLNICK, 1975 [1966],
e os que entendem que a conduta policial e a reprodução e transmissão das
habilidades se operam no âmbito relacional, da sedimentação das práticas
e da rotinização de aspectos situacionais (CHAN, 1997; MANNING,
2007), numa perspectiva embebida nas proposições de Goman e,
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
72
principalmente, de Bourdieu, que desloca dos valores compartilhados
pelo grupo para as práticas e experiências reiteradas no instrumento
cognitivo com os quais os policiais instruem a ação em campo.
3
a face maléfica de Jano
Para Robert Reiner (2004, p. 132), “Culturas são complexos
conjuntos de valores, atitudes, símbolos, regras e práticas, que emergem
quando as pessoas reagem às exigências e situações que enfrentam,
interpretadas através de estruturas cognitivas e de orientações que trazem
consigo de experiências anteriores.É a partir de uma série padronizada
de acordos”, reproduzidas e assimiladas por “gerações sucessivas”, que é
possível socializar os policiais. Reiner ressalva que esse não é um processo
passivo nem que os policiais sejam manipulados por regras didáticas”.
A transmissão do repertório e das estratégias que instruem a ação é
realizada por meio de um acervo simbólico bastante heterodoxo composto
de “histórias, mitos, piadas”; narrativas, enm, que orientam a conduta
adequada (REINER, 2004, p. 132). O autor insiste na pluralidade
da cultura policial ela não é monolítica”, que se dene a partir de
regras informais, moldadas por meio de circunstâncias concretas ao
mesmo tempo em que apresenta uma tipologia de traços característicos,
compartilhados por policiais premidos por pressõessimilares inerentes
às democracias liberais modernas”. Em síntese, dos policiais espera-se
que, em âmbito universal, compartilhem de senso de missão, suspeição,
isolamento/solidariedade, conservadorismo, machismo, pragmatismo e
preconceito racial.
O cabedal valorativo pernicioso que se instila na “personalidade”
de policiais que experimentam pressões semelhantes, segundo Reiner, não
pode deixar de mediar a relação dos agentes com sua clientela. O retrato
que se origina dessa bricolagem tende a mostrar uma fácies pejorativa
da instituição e de seus membros; trata-se de uma presença negativa, no
sentido em que a polícia e os policiais, nas sociedades democráticas, a
despeito de qualquer orientação ideológica e normativa segundo a qual
3
Ver os conceitos de “habitus e eld(BOURDIEU, 1990, 2000), capital de informação” (GOFFMAN, 1985)
e “tool kits” (SWIDLER, 1986).
73
D S P:
 ,  
se espera que fundamentem seu trabalho (obediência à lei; respeito aos
direitos fundamentais; treinamento competente), tendem a subverter as
prioridades formais que justicam sua razão de ser, a m de se colocar em
funcionamento um código de práticas e valores (informais) que deprecia e
estigmatiza, quando não viola, a sua clientela.
Em outro trabalho clássico, Van Maanen (2004 [1978]) aponta
para a tendência de os policiais rotularem o público com o qual interagem
em tipos bem denidos: os know nothing”, os assholes”, os suspicious”.
Segundo o autor, a estigmatização e a punição extra-legal, decidida a
partir da aplicação de um código de “regras policiaisdos que “merecem”,
principalmente no que concerne os assholes, pode parecer aleatória,
desnecessária e impulsiva da parte de um observador externo, mas se
justica plenamente pela lógica policial. A estigmatização e a atitude
hostil e depreciativa para com os assholesfuncionam como estratégias
compensatórias, marcando a distância em relação à audiência; explica e
confere sentido a atitudes e comportamentos alheios; serve a propósitos
ocupacionais, promovendo a excitação similar à excitação provocada pelo
real police work (que pressupõe o law enforcement”), mesmo em se
tratando de situações em que tal componente esteja ausente; punir um
assholefunciona como compensação, um ersatz”, que supre a frustração
dos policiais impedidos de interferir na vida daqueles a maioria do
público que não se enredam no rastelo da polícia, que são inatingíveis
ou que costumam criticar e manifestar indignação em relação ao trabalho
policial (VAN MAANEN, 2004 [1978], p. 291-293). Nesse caso, os
policiais se mostram incapazes de propor uma visão compreensiva do corpo
social, em que eles próprios se veriam integrados. Ao contrário: o cinismo
que recobre essas qualicações aponta para uma posição externa ou, no
máximo, limiar, a “thin blue line” que separa dois mundos de moralidades
inconciliáveis.
Esse apanágio negativo, que se sintetiza em uma potência de
violência descompensada (simbólica ou efetiva), seria, portanto, o traço de
união, atávico que, ao mesmo tempo em que delineia as arestas identitárias
do grupo, subsidiando tanto ao público interno como externo, os elementos
básicos de reconhecimento; emprestaria uma singularidade à instituição
e às atividades policiais que transbordariam fronteiras cronológicas e
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
74
geográcas. Dizendo em outras palavras, a polícia, enquanto organização,
instituição e prossão, apresentaria uma estrutura particular, um fator
imutável, que prevaleceria em relação a outros contextos históricos
especícos.
É fato que desde as etnograas pioneiras de Westley (EUA)
(1970)
4
, Banton (EUA e Reino Unido) (1964) e, depois, Skolnick (EUA)
(1975 [1966]), produzidas nas décadas de 1950 e 1960, as análises
focalizam o policial de linha, uniformizado, o patrulheiro incumbido
da ronda cotidiana, na tradição anglo-saxã. Em todos esses exemplos,
atributos exclusivos do ofício do policial teriam o condão de moldar-lhes
a personalidade de uma maneira especíca e única, articulando, a partir
daí, os modos de interação entre si, com a instituição e com o público.
Skolnick (1975 [1966]) cunha a expressão ¨working personality¨ para
designar a maneira como o comportamento e as atitudes do policial são
inuenciados pelo trabalho que realiza. Em grupo, os policiais desenvolvem
uma cultura comum a partir de “lentes cognitivasprivativas do ofício
que desempenham. O autor destaca três atributos especícos que os
compungem: o perigo, a autoridade e a pressão por eciência.
Ademais, prossegue o autor, uma tendência vocacional atrairia para
as leiras da polícia indivíduos previamente afeitos a lidar com um contexto
moralmente enviesado ou não puritanoem que comportamentos
viciosos seriam mais encontradiços. Do perigo, os policiais desenvolveriam
uma atitude constante de suspeição em relação ao público; da necessidade
do uso da autoridade, o afastamento da comunidade e a solidariedade
intergrupal; da pressão por eciência, o cinismo e um aguçado senso de
missão (como mencionado acima, os policiais se considerariam a ¨thin blue
line¨ entre a barbárie e a decência) (SKOLNICK, 1975 [1966], cap. 3). O
policial se vê, então, como um pária, e, aos outros”, enxerga como inimigo
(WESTLEY, 1970).
Portanto, se essa marca negativa, axiologicamente qualicada,
é uma digressão indesejada e indevida; por trás de si lhe origem um
outro atributo que apresenta, em teoria, uma qualidade neutra, resiliente,
instrumental: o uso da força física. A potencialidade de seu emprego
4
A tese de doutorado de Westley, que restou impublicada, é de 1951.
75
D S P:
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importa no elemento basal e primevo que qualica seu beneciário
exclusivo, a polícia. Uma equação fundamental que articula esses conceitos
foi teorizada por Egon Bittner nos anos 1960, sem que uma alternativa
teórica viável tenha sido oferecida para disputar a primazia concedida ao
sociólogo britânico.
5
O adágio é famoso: a polícia é “[...] um mecanismo
de distribuição de força coercitiva não negociável empregada de acordo
com os preceitos e as exigências da situação.” (BITTNER, 2003, p. 138).
Portanto, ao nos armos em Bittner, é a possibilidade do uso
da força física que faz da polícia polícia entendida em sua composição
contemporânea; enm, é o uso da força que empresta o fundamento
universal e privativo às organizações policiais. A questão fundamental que
se impõe é determinar o móvel que materializa, sobre o terreno, a força em
potência. Dito em outras palavras, a questão que se abre aos pesquisadores
está em qualicar as variáveis que colocam em marcha a força acondicionada
em mera expectativa, isto é, de que maneira se constroem e se articulam
os mandatos policiais. Segundo Bittner, o emprego da força avaliza-se
conforme a circunstância se apresenta; a autorização é auto-referente,
inerente à situação: inscreve-se na esfera do instinto, na indistinção da voz
passiva, que se destaca no seu discurso: “when force may be used”. Assim, o
sociólogo tempera a assertiva com uma normativa: se necessário for, a força
em potencial deve ser modulada para um grau mínimo para contornar a
situação emergencial.
O sociólogo francês Dominique Monjardet (2003) tece um
reparo à tese de Bittner. Para ele, não são as circunstâncias que acionam
o uso da força pela polícia, mas é a metáfora do martelo que explica o
móvel da ação policial: assim como o martelo, a polícia necessita de um
comando externo para entrar em funcionamento e que oriente os objetivos
de seu uso. Portanto, estão nos variados mandatos policiais a chave para
a compreensão do emprego da força pela polícia. Mas os mandatos
não têm origem no poder político ou nas normas regulamentares. São
várias as mãos habilitadas a manipular o instrumento: da conjunção
política (claro), passando pelas demandas do público, às particularidades
organizacionais e aos interesses prossionais. A força em potencial,
portanto, em essência vazia de carga valorativa, preenche-se de acordo
5
Nesse sentido, ver os comentários de Brodeur (2003b), e Lévy (2001).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
76
com a variedade de mandatos disponíveis, que se articulam na complexa e
assimétrica arena social.
Encontra-se o elemento variável da equação policial que tem
na potencialidade do emprego da força seu atributo universal e imutável.
Destarte, as similitudes narradas acima, delineando a reputação negativa
da polícia, não se atrelam à disponibilidade de uso da força em si (marca
universal), mas sim aos modos como ela é posta em funcionamento por
meio dos diferentes mandatos disponíveis (articulações variáveis).
A hipótese inscrita numa grande parcela das narrativas que
cinzelam o retrato da polícia e dos policiais, e explicitam sua função social,
parte de uma espécie de petição de princípio quando decalcam a reprodução
daquela imagem estilizada da instituição e de seus agentes diretamente
do elemento universal e imutável inerente ao ser policial, qual seja, a sina
intrínseca à função somada ao fardo que carregam: a inextricabilidade do
uso da força e da imposição da autoridade.
O contexto mais amplo com o qual a organização-instituição e
seus agentes se articulam e de onde se modelam os mandatos policiais
é relegado a um plano secundário. Sob tal perspectiva, as implicações
próprias ao mundo da polícia se comporiam para plasmar um meio
cultural” especíco autônomo em relação a outros campos culturais
em que práticas, valores, saberes seriam compartilhados pelos policiais,
reproduzidos entre as gerações, impelindo a elaboração de uma visão de
mundo privativa e servindo como uma espécie de guia de condutas.
Mais surpreendente, conforme aventado anteriormente, é o fato
de que as atitudes e comportamentos policiais, assemelhados portanto,
perpassam experiências em estruturas histórico-sociais altamente díspares.
Donde, pode-se concluir, um pouco apressadamente talvez, que tal
semelhança proviria ou da homogeneização cultural inerente à modernidade
(campo histórico da polícia contemporânea), que padroniza o output de sua
missão”; ou da reprodução acrítica de um estereótipo que se consagrou em
algum momento da trajetória da sociograa sobre a polícia. Esse apanágio
que se incrusta como um distintivo nos dispositivos genéticos (a imagem é
77
D S P:
 ,  
de Geertz)
6
das polícias seria, portanto, um derivativo do poder coercitivo;
uma extensão imprópria da autoridade.
olhaRes cRíticos
Há dois vieses de críticas que podem se levantados em relação ao
emprego da cultura policial” como ferramenta analítica: um é de ordem
metodológica; o outro, teórica. A crítica metodológica é mais viável a partir
de uma posição externa ao debate da Sociologia da Polícia. No conjunto,
parece não ser uma preocupação central dos autores estabelecer um ponto
de partida conceitual-metodológico que se estabeleça como base para as
análises empíricas. Já se disse que cultura é dos conceitos mais insidiosos
no repertório instrumental das Ciências Humanas (SEWELL, 2005a). Seu
uso está embebido de variantes analíticas que cambiam de acordo com o
campo de estudo e, não raro, estabelecem-se divergências metodológicas no
interior mesmo desses campos. No que concerne à Sociologia da Polícia,
não são raros os trabalhos que descartam uma discussão metodológica
de fundo e terminam por trilhar caminhos conceituais discrepantes,
ou, por vezes, antagônicos, reunindo no mesmo cadinho as inuências
de Bourdieu, Goman e Geertz, entre outros teóricos, sem que haja
uma clivagem analítica mais ponderada (CRANK, 1998; SHEARING;
ERICSON, 1991).
7
A critica teórica, por sua vez, está localizada no interior mesmo
do debate acadêmico. Isso porque existe grande discrepância por parte dos
pesquisadores a respeito da denição, da amplitude e do sentido de uma
cultura (ou subcultura) policial”, ou mesmo se é legítimo eleger-se um
domínio cultural que seja exclusivo aos policiais, enquanto ocupação ou
prossão, em oposição a domínios culturais de outras prossões/ocupações,
tal como médicos, professores, garis, etc.
6
Aqui faço um uso extensivo da proposição de Geertz, que usa a analogia genética para delinear a inuência dos
sistemas simbólicos nos padrões de comportamento. Segundo o autor, os complexos de símbolosfuncionam
como “fontes de informação extrínsecas [...] que provêm um planta ou modelo nos limites dos quais processos
externos a si próprios adquirem uma forma denitiva.”(GEERTZ, 1973, p. 92). Para uma análise crítica a essa
abordagem, ver Sewell (2005b).
7
Exceções podem ser encontradas em Chan (1997) e Hebert (1998).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
78
Não existe nem mesmo uma denição de limites entre os termos
cultura e subcultura, ambos empregados aleatoriamente sem demarcações
teóricas claras.
8
Dominique Monjardet (2003, p. 163) refere-se a uma
vulgata anglo-saxã”. Para o autor, a complexidade da burocracia policial,
da origem étnico-social dos policiais, da multiplicidade de funções e de
interesses inter-departamentais inviabiliza a identicação de um traço
policial especíco que amalgame a totalidade dos indivíduos-policiais numa
cultura unitária. No máximo, a temática propiciaria aos pesquisadores um
campo de debates”. Ainda segundo Monjardet, é mais fácil perceber, nas
pesquisas empíricas, as distâncias, tensões e rivalidades entre os vários ramos
da organização que se constituem ao longo da vida do indivíduo na polícia,
desfazendo-se o apelo para a comunhão de experiências, simbolizada pelo
recrutamento comum e pela iniciação na carreira.
Por seu turno, o sociólogo canadense Jean-Paul Brodeur arma que
a noção de subcultura policial não passa do “[...] desdobramento etnológico
ingênuo do caráter uniforme do grupo estudado.(BRODEUR, 2003a,
p. 22). No caso, Brodeur se refere ao transbordamento das características
encontradas num recorte especíco de policiais os de baixa patente
(patrulheiros) para o resto dos grupos que compõem a instituição, na
tentativa de se conceber uma teoria integrada da polícia”. Nem os dissensos
naturaisrealçados na bibliograa mais contemporânea que salientam os
problemasoriundos da “democratizaçãodos departamentos de polícia,
com a amplitude étnica e de gênero na composição dos policiais (BROWN,
2007; O’NEILL; HOLDAWAY, 2007; PUNCH, 2007; SKOLNICK,
2008) parecem capazes de esgarçar essa malha inconsútil que une os
policiais em suas atitudes e comportamentos em relação à prossão, à
função social e ao público.
Janet Chan (1997), ao estudar práticas racistas na interação da
polícia com a população de origem não anglo-saxã em South Wales, na
Austrália, trata a cultura ocupacional da polícia, como sendo uma “[...]
camada de normas e valores ocupacionais informais, operando sob a
aparentemente rígida estrutura hierárquica das organizações policiais.
(CHAN, 1997, p. 43). A autora, baseando-se nos trabalhos de Bourdieu
e Sackmann, lançando mão dos conceitos de habitus e eld, tece críticas
8
Neste trabalho, decidimos por não fazer distinção, a não ser quando explicitamente distinguido pelos autores.
79
D S P:
 ,  
à apropriação que se faz, nos estudos sobre a polícia, à maneira como
se constrói um modelo cultural para a polícia que, apesar das seguidas
ressalvas em contrário, reforça o caráter homogêneo (primado de um tipo
de subcultura: a do policial de base); passivo (o policial seria um mero
receptáculo da transmissão da carga cultural); insular (impermeável a
pressões políticas e à cultura de fora”) e imune a reformas e mudanças.
Para a autora, a prática cultural policial deve ser explicada nos termos
da interação entre o social e o contexto do trabalho policial (o eld) e
percepções, valores, estratégias e esquemas institucionalizados (o habitus)”.
A vantagem dessa “estrutura” explicativa está na possibilidade de conceber
a existência de múltiplas culturas e a capacidade de teorizar sobre mudança
cultural. Retomando as análises de Garnkel, Chan lembra que os policiais
não são “idiotas culturais[“cultural dopes”], sujeitos passivos no processo
de construção e reprodução cultural. A proatividade do policial explicaria,
segundo a autora, por que reformas organizacionais parecem surtir pouco
efeito nas práticas racistas da polícia (CHAN, 1997, p. 92-93).
Outra objeção que se observa à concepção predominante faz ver
que não se deve empreender correspondência obrigatória entre atitudes e
comportamentos. P. A. J. Waddington (1999), estudioso da polícia inglesa,
coloca em xeque o processo de transmissão automática de elementos
culturais presentes no discurso e na retórica dos policiais para a ação
efetiva em campo. Segundo o autor, as práticas dos policiais estariam
justicadas muito mais devido à inuência de motivações situacionais
do que pela ingerência de um sistema articulado de crenças e valores.
A base semiológica da cultura policial que reforça discursos racistas,
individualistas, sexistas, cínicos tem vigência apenas no nível retórico,
no papo de cantina [“canteen talk”], arengado em interações casuais
ou nas celebrações coletivas, em que os policiais se jactam uns aos outros
(ou seduzem os sociólogos), por meio de narrativas, anedotas, mitos,
todos temperados daqueles elementos estimulantes que ornamentam o
idealismo do “real police work”, em que se valorizam a ação, a perseguição
de criminosos, o risco e a imposição da autoridade. Ao contrário, a rotina
real do policial, segundo Waddington, se consubstancia na repetição de
atividades sensaboronas e tediosas. Assim, o autor sugere que o canteen
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
80
talk” serve de “[...] retórica que dá sentido à experiência e sustenta a auto-
estima ocupacional.” (WADDINGTON, 1999, p. 295).
novas PeRsPectivas
O modelo prevalente que reforça as qualidades negativas
da cultura policial, principalmente na relação com o público, sempre
estabelecida em bases de desconança e hostilidade, quando não de
violência aberta, é reproduzido desde então. Na análise de David Sklanski
(2007), tal modelo se petricou numa marca indelével, um ¨Esquema de
Subcultura Policial¨ [“Police Subculture Schema”], a reforçar uma espécie
de lugar-comum que se reproduz da academia aos elaboradores de políticas
públicas para a polícia e para a área de segurança. As características descritas
por Sklanski os policiais sendo paranóicos, insulares, e intolerantes,
contrafeitos a mudanças e sob intenso controle externo ou do topo
encontram ressonância, por exemplo, em Reiner (2004) e Fielding (1994).
9
Sklanski aduz que o poder explanatório dessa metonímia falaciosa,
válida para a década de 1950 e 1960, diculta “[...] a identicação das
diferenças entre ociais, de novas complexidades da identidade policial
e dos processos dinâmicos da força de trabalho policial. (SKLANSKI,
2007, p. 21). Ainda sob a perspectiva anglo-saxã, as grandes mudanças nos
departamentos de polícia, com o ingresso de minorias étnicas, mulheres,
gays e lésbicas etc., mudaram a composição, o comportamento e atitudes
dos policiais, subvertendo o esquema construído naquelas décadas.
Por outro lado, a despeito das alterações demográcas sensíveis, que
certamente impuseram uma nova ordem à constituição policial de EUA e
Reino Unido, atitudes e comportamentos tradicionais (i.e. negativos”) se
mostrariam recalcitrantes. Sklanski arma que a ressonância do Esquema
de Subcultura Policial nas várias instâncias da produção do discurso
atravanca as iniciativas que poderiam investir na identicação dos policiais
que fogem do padrão normativo. A pergunta não seria por que os policiais
9
Paoline (2004) classica Muir (1977) entre os pesquisadores que enxergam a cultura policial a partir de um
prisma tipológico, isto é, as atitudes, crenças e valores levadas a cabo pelos policiais devem ser individualizadas
na análise. Eles variam de acordo com cada policial. Além de Reiner, citado, outras tipologias podem ser
encontradas em Brown (1988) e Worden (1995).
81
D S P:
 ,  
fazem o que fazem”, mas sim averiguar por que alguns policiais se tornam
mais efetivos e mais conáveis do que outros”.
Essa foi a premissa de que partiu William Ker Muir Jr (1977) ao
analisar a conduta de uma série de policiais em uma cidade americana da
década de 1970. Além de construir uma tipologia que avalia as atitudes
e o comportamento dos policiais (“professional, reciprocating, enforcement,
avoidance”) diante de situações de risco, isto é, diante de situações em que
o poder coercitivo de que se mune o policial está ameaçado (paradoxo
de dispossession, detachement, face, irrationality), ele identica os
procedimentos e posturas mais apropriados, propondo uma via moralmente
aceitável a ser emulada pelos policiais no contato com o público:
Um policial se torna um bom policial na medida em que consegue
desenvolver duas virtudes. Intelectualmente, ele precisa compreender
a natureza do sofrimento humano. Moralmente, ele precisa resolver a
contradão de como atingir os ns justos empregando meios coercitivos.
Um policial [patrolman] que desenvolve esse senso trágico e essa
equanimidade moral tende a realizar um bom trabalho, mostrando mais
conança, habilidade, sensibilidade e conhecimento. (MUIR, 1977, p. 3).
Manning (2007) estende a crítica ao armar que o quadro ideológico
expressado pelos policiais de linha (“uniformed cops”) controle do crime,
ações de risco, empreendedorismo individual, cinismo sobre a conabilidade
dos cidadãos, desconança da burocracia, supervisão e política costuma
abranger, nas pesquisas acadêmicas, outras formas ocupacionais da polícia,
tais como, os detetives, o “high policing”, segurança interna, grupos de elite,
de anti-terror, polícia estadual (no caso norte-americano), regulação civil,
num grau de complexidade que sobrepassa as análises que esboçaram níveis
de diferenciação dentro dos departamentos de polícia.
A perspectiva tradicional” tende a simplicar a complexidade
organizacional da polícia e a natureza situacional” da ocupação, além
de menosprezar a inuência decisiva da burocracia, da administração/
comando, e das políticas públicas no trabalho policial. O pior nesse
argumento, segundo Manning, é que todos os movimentos de negociação
internos à organização, as relações de poder, patronagem e regras da
burocracia que de fato inuenciam a prática policial em todos os níveis da
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
82
ocupação são desmerecidos em prol de explicações que privilegiam causas
externas: a “atitude em relação ao público, o perigo, regras, cidadãos”.
Assim, Manning propõe alternativas conceituais para o esquema
que associa uma carga valorativa degenerada à cultura policial, ao propor
uma denição arrimada na ocupação, isto é, “[...] um conjunto de rotinas,
práticas e outros meios de enfrentar as vicissitudes e incertezas [...] de um
trabalho remunerado.A cultura ocupacional não é única, mas depende
da interação que o autor estabelece com uma determinada situação.
Resumindo, a cultura não é a interação em si, mas sim a resultante dessa
interação, “[...] um artefato, uma abstração, sedimento de interações
anteriores em torno de que emerge um núcleo de sentido e de tradição ao
qual se referem os membros”; é uma versão ou apanhadode histórias,
tradições, etiquetas e rotinas – que não se reduz a um conjunto de normas,
valores ou atitudes e que instrui aqueles que realizam as tarefas rotinizadas
e que compartilham esse arsenal simbólico. Nesse sentido, naliza, “[...]
uma cultura ocupacional reete não apenas aquilo que é feito, como deveria
ser feito (e como não deveria ser feito), mas também uma idealização do
trabalho.” (MANNING, 2007, p. 62)
10
.
conclusão
A complexidade organizacional, a multiplicidade de pessoal, as
pressões políticas, os interesses prossionais e as demandas do público
inviabilizam a identicação de uma cultura ocupacional que se arrogue
escopo universal e transtemporal. As táticas empregadas diante das situações
cotidianas, as ações policiais, precisam ser compreendidas antes como a
reprodução de com o perdão da redundância práticas pragmáticas
que se mostram ecientes ao longo do tempo, do que como a operação de
um sistema coerente de crenças e valores ontologicamente” policiais, que
tenderiam à naturalização e ao enregelamento.
É preciso mesmo ter cautela para atestar categoricamente a
existência de uma linha de unidade entre atitudes e comportamentos dos
policiais de um mesmo departamento, compartilhando formação e rotinas
de trabalho. Se a sedimentação das práticas, repetidas diuturnamente, cria
10
Ver também Manning (1995).
83
D S P:
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uma estruturapersuasiva o suciente para emular uma ação em detrimento
de outra; é de se colocar em dúvida a força institucional e corporativa de
forjar uma visão de mundo compartilhada entre os atores. A contradição
que permeia o trabalho policial que compreende ações justicadas pela
situação premidas em uma organização burocraticamente constituída, em
que prevalecem a hierarquia, a rotina, as regras pré-denidas, a necessidade
(formal) de supervisão matiza a cultura ocupacional” a partir das
variantes organizacionais. Esse aspecto estrutural, por assim dizer, não
pode ser desprezado como elemento que dene as práticas e as expectativas
de carreira (MANNING, 2007, p. 73-75).
O repertório do policial não é forjado a partir da premissa invariável
que universaliza as polícias (a possibilidade do uso da força), mas sim a
partir de variáveis que se equacionam no terreno das contingências; não
do geral, mas do especíco. Ainda que na forma, as narrativas etnográcas,
historiográcas e mesmo o inside talkcompartilhem estruturas comuns,
elas devem ser tratadas como um construto que se reproduz e se homogeneíza
no esteio do lugar-comum das expectativas criadas no âmbito midiático e,
algumas vezes, acadêmico. O resultado dessas experiências, o sentido que se
constrói a partir delas, pertencem à alteridade, ao contextual. Vale, então,
buscar compreender como os agentes construíam os signicados de uma
circunstância peculiar a que estavam expostos, imersos numa instituição que
se pretende insular, mas que está permeável ao contágio de fora. Para tanto,
é preciso dispor de cautela ao se recorrer à “cultura policial” como categoria
universal e transtemporal, ainda que subdividida nos múltiplos segmentos
que a pesquisa recente vem propondo, como estratégia explicativa de
atitudes e comportamentos dos policiais. Não está propriamente na natureza
do trabalho policial a genealogia de um ¨código ético¨ que se pretende
exclusivo. Voltando a Monjardet (2003), a atenção deve ser envidada não ao
martelo, mas à mão que o move.
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controle SociAl dA corrupção:
A ouvidoriA de políciA do eStAdo de São pAulo
Rita de Cássia Biason
Tamiris Hilário de Lima Batista
I
ntRodução
A Segurança Pública apresenta uma série de deciências
que conduzem e constituem uma teia de problemas dentre as quais
podemos destacar: a falta de investimento (traduzida nos baixos salários
dos policiais), a formação deciente dos agentes, a herança autoritária
do Estado brasileiro (com resquícios não apenas do período autoritário,
mas também de sua formação oligárquica), a militarização da segurança
pública (em termos de estruturas, doutrinas, formação, estratégias e
táticas), abuso aos direitos humanos, relações conitivas com comunidades
menos abastadas, corrupção policial, dentre outros (CANO, 2006, p. 140-
141). Nos últimos anos, entretanto, esforços têm ocorrido no sentido de
reformar a segurança pública, suas instituições e agentes, indicando uma
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
88
possível mudança de paradigmas. Dentre as iniciativas podemos destacar a
criação das Ouvidorias de Polícia em vários estados brasileiros.
a ouvidoRia de Polícia do estado de são Paulo
A Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, objeto do presente
artigo, foi criada em 1995, tendo sido regulamentada por lei em 1997. A
ideia, considerada pioneira e bem sucedida, conduziu outros estados da
federação a replicarem o modelo do referido mecanismo de controle. Em
mais de uma década de existência esta teria recebido em torno de 47.673
1
denuncias a partir das quais teceria diagnósticos quanto às irregularidades
das policias civil e militar – tornando-se porta-voz da sociedade civil.
2
De acordo com a denição apresentada pela própria Ouvidoria da
Polícia do Estado de São Paulo, tratar-se-ia de “[...] um órgão dirigido por
um representante da sociedade civil, com total autonomia e independência,
cuja principal função é ser o porta-voz da população em atos irregulares
praticados pela Policias Civil e Militar.
3
Nota-se que esta não teria
quaisquer ligações orgânicas com a Polícia Civil e a Polícia Militar e que o
Ouvidor, indicado pela sociedade civil (Conselho Estadual de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana – Condepe), seria escolhido pelo governador e
possuiria um mandato de dois anos, com direito a uma recondução.
Quanto às suas atribuições, assim como arma Cunha, a partir
de atos arbitrários, desonestos, indecorosos ou aqueles capazes de violar os
direitos individuais ou coletivos, esta funcionaria tal como um canal entre a
vítima e o agressor (autoridades e agentes policiais) ouvindo, encaminhando
e acompanhando denúncias e reclamações provenientes da sociedade civil
(CUNHA, 2000). Ressalta-se que para a Ouvidoria da Polícia do Estado
1
Denúncias quanticadas de 1995 a 2009.
2
Ressalta-se que o período de análise escolhido, compreenderia da gestão de Mario Covas (1999-2001), na
qual o Ouvidor era Benedito Domingos (1995-2000) e as gestões de Geraldo Alckmin (2001-2006) e Cláudio
Lembo (2006-2007), com Firmino Fechio (1999-2007) como Ouvidor. Estes seriam os momentos nos quais
uma quantidade razoável de informações disponíveis. A escolha se deve também ao fato de que em seus 15 anos
de existência, sete deles estiveram sob a égide de um mesmo partido político.
3
SÃO PAULO (Estado). Ouvidoria da Polícia. Disponível em: <www.ouvidoria-policia.sp.gov.br>. Acesso em:
28 jun. 2010.
89
D S P:
 ,  
de São Paulo
4
, aqueles casos nos quais violação à integridade física
(homicídio, tortura e abuso de autoridade) teriam tratamento prioritário
em relação aos demais.
No que se refere especicamente às denúncias, a Ouvidoria
da Polícia não teria como função apura-las, mas acompanhar os casos
e contribuir para que as investigações sejam mais rápidas, rigorosas e
efetivas. Esta manteria sigilo quanto às “[...] denúncias, reclamações e
sugestões que recebe, garantindo também o sigilo da fonte de informação,
assegurando, quando solicitada, a proteção dos denunciantes.
5
O
processo para encaminhamento parece ser bastante simples. Basicamente,
a vítima deve reportar um histórico dos fatos ocorridos, com o máximo
possível de informações, tendo-se em vista que “[...] quanto mais dados
forem fornecidos, maiores serão as chances de o resultado das apurações
seja satisfatório.
6
E, assim como orienta a Ouvidoria, seja por e-mail,
correspondência, telefone, fax ou pessoalmente, o denunciante
7
teria três
opções quanto a sua identicação:
1. Identicar-se e autorizar sua identicação. Considerada pela Ouvidoria
a forma mais ecaz de encaminhamento de denúncia, uma vez que
viabilizaria resultados mais conclusivos e efetivos no processo de
apuração;
2. Identicar-se, mas não autorizar a identicação. A identicação do
denunciante, neste caso, se daria no caso de não haver material
suciente e consistente para comprovar dada irregularidade, objeto da
denúncia;
3. Apresentar a denúncia e permanecer no anonimato. Existiria a possibilidade
da realização das denuncias sem a identicação do denunciante. Arma-
4
SÃO PAULO (Estado). Lei Complementar nº 826/97 criou a Secretaria de Segurança Pública e a Ouvidoria da
Polícia do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.ouvidoria-policia.sp.gov.br/pages/Lei826.htm>.
Acesso em: 28 jun. 2010.
5
SÃO PAULO (Estado). Ouvidoria da Polícia. Disponível em: <www.ouvidoria-policia.sp.gov.br>. Acesso em:
28 jun. 2010.
6
SÃO PAULO (Estado). Ouvidoria da Polícia. Disponível em: <www.ouvidoria-policia.sp.gov.br>. Acesso em:
28 jun. 2010.
7
Nos relatórios da Ouvidoria os denunciantes são: familiares de vítimas; programas de rádio ou jornal (Estado
de São Paulo, Folha de São Paulo, Diário Popular); Comissão de Direitos Humanos; Conselho Estadual de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana; Deputados Estaduais; Pastoral Carcerária; Ministério da Justiça; OAB;
a própria vítima e os anônimos.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
90
se, entretanto, que os resultados seriam mais frágeis e inconsistentes,
uma vez que o anonimato dicultaria o esclarecimento dos fatos.
8
As denúncias o encaminhadas às Corregedorias, que seriam tais
como departamentos de assuntos internos das policias, para serem investigadas
e a Ouvidoria continuaria a acompanhar aos processos de investigão.
Quanto às atribuições da Corregedoria da Polícia, se referem
principalmente ao controle das Polícias Civil e Militar, tendo surgido no
Brasil também no contexto pós-redemocratização. Esta seria responsável
pela investigação de crimes e infrações administrativas praticadas por
policiais. Seu trabalho transcenderia, portanto, aquele realizado pela
Ouvidoria, uma vez que o trato dado às denúncias conduziria à análise,
à investigação e à busca de soluções aos crimes e infrações administrativas
cometidas pelos agentes. Ou seja, enquanto uma instituição tem apenas
a função de acompanhamento e recomendação, à outra caberia maior
pragmatismo para com “os objetos” em questão.
Faz-se necessário considerar que, enquanto a Ouvidoria trabalha
com denúncias provenientes tanto de infrações da Polícia Civil quanto da
Polícia Militar - com uma relação orgânica inexistente -, cada corporação
tem, entretanto, uma corregedoria própria. Isso ocorreria não apenas pela
complexidade do trabalho policial, mas também porque o escopo de suas
funções seria distinto, isto é, cabe à polícia civil investigar homicídios, roubos
e sequestros nos limites do estado e à polícia militar prevenir condutas
criminosas e zelar pela ordem pública. Assim como arma Cano, a Polícia
Militar é, dentre as muitas denições existentes, “[...] a força uniformizada
cuja tarefa é o patrulhamento ostensivo e a manutenção da ordem.(CANO,
2006, p. 140-141). Já a Policia Civil, de acordo com o autor, possui caráter
investigativo. Apresentando campos de atuação similares, mas objetivos
distintos, tais instituições não completariam o que chama de ciclo da
segurança pública”, de prevenção e repressão, podendo residir a origem da
duplicidade e rivalidade entre as mesmas (CANO, 2006, p. 140-141).
Com a ampliação do quadro efetivo de policiais
9
e, por
conseguinte, de suas competências, tais organismos passaram a objetivar
8
SÃO PAULO (Estado). Ouvidoria da Polícia. Disponível em: <http://www.ouvidoria-policia.sp.gov.br/
pages/introdenuncia.html>. Acesso em: 16 ago. 2012.
9
Até 2009 a polícia militar possuía 85.980 ociais e a polícia Civil 34.710 ociais.
91
D S P:
 ,  
departamentos capazes de assegurar a disciplina e a apuração de infrações
penais. Cumprindo atribuições legais
10
, a Ouvidoria de Policia caria,
então, responsável pela proposição de medidas para o aperfeiçoamento
dos serviços prestados pelas polícias, o que se daria através da elaboração
de Relatórios de Prestação de Contas nos quais dados estatísticos e
resumos dos casos prioritários. Levaria, com isso, os casos de deciência das
corporações ao público como uma forma de diminuir aos atos irregulares
cometidos (LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003).
As principais propostas feitas pela Ouvidoria são, com tudo,
direcionadas à solidicação de uma Polícia Cidadã, ainda que sejam
apenas sugestões e recomendações: a idéia de uma segurança pública
mais democrática, com maior atenção à prevenção, o surgimento de
novos atores, a noção de polícia comunitária ou, simplesmente, de
uma polícia que compatibilizasse eciência com respeito aos direitos
humanos são sintomas do novo período de debate e efervescência.
(CANO, 2006, p. 137-138).
seguRança Pública: bReves PeRsPectivas
O processo de redemocratização do Brasil (1985) representou
um marco à história do país, pois teria um signicado para além do
rompimento com a ditadura: a promulgação da Constituição de 1988,
chamada Constituição Cidadã, teria nos aproximado dos caminhos para
a consolidação dos direitos políticos e sociais necessários numa nação
democrática e republicana (ADORNO, 1998). Uma vez redirecionado o
papel do Estado de modo a assegurar garantias fundamentais aos cidadãos
foi inaugurado um novo paradigma no provimento público de segurança
(CARUSO; PATRÍCIO; ALBERNAZ, 2006, p. 106).
A ampliação dos canais de participação e representação política
e dos direitos (civis, sociais e políticos); o desbloqueio da comunicação
entre sociedade civil e Estado; o reconhecimento das liberdades civis e
públicas; a abolição dos organismos paralelos à segurança pública; a maior
transparência nas decisões e procedimentos políticos; a sujeição do poder
público ao império da lei democraticamente votada são exemplos de
10
Atribuição legal prevista na Lei Complementar 826/97, que institucionalizou a Ouvidoria da Polícia.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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mudanças capazes de munir a sociedade de instrumentos de defesa contra
o arbítrio do poder do Estado (ADORNO, 1998).
Ao longo dos anos, no entanto, tornou-se perceptível o fato de
que houve apenas um reconhecimento dessas garantias e que as políticas,
instituições e agentes persistiram numa espécie de cultura autoritária
(PINHEIRO, 1996). A isso se somou o crescimento demográco paulatino
nas áreas urbanas, a instabilidade econômica a perda da capacidade de
investimentos no Estado e outras coisas mais, o que teria igualmente
contribuído ao distanciamento e à sensibilização entre a sociedade e o
Estado. O projeto de nação alicerçado na coesão social e na universalização
de direitos estava ameaçado (BRASIL, 2009).
A Carta Constitucional de 1988 teria transferido o eixo de atuação
das polícias para o provimento de segurança blica com o foco no reforço de
canais de participação comunitária enquanto instrumento de planejamento,
controle social e legitimidade das ações policiais (KANT DE LIMA, 1995
apud CARUSO; PATRICIO; ALBERNAZ, 2006, p. 164).
De acordo com o governo brasileiro o novo paradigma de
segurança pública teria alicerces no fortalecimento institucional do Estado
para atuar preventivamente, mas também na elaboração de políticas
públicas capazes de estruturar uma nova concepção de atuação policial e
de, ao mesmo tempo, fortalecer laços com a comunidade (BRASIL, 2009).
Uma vez inaugurado o novo paradigma no provimento público
de segurança, passou-se a questionar: que é a segurança pública, então?
Apesar de estar presente desde o início do século XX, no Brasil,
o termo teria ganhado relevância na agenda pública a partir do início
do processo de redemocratização do país. Contudo, pode-se armar que
ainda em tempos atuais se trata de um termo bastante volátil e cujas
abordagens jurídicas parecem se aproximar de um conjunto mais variado
de denições. Talvez porque, assim como Rolim (2006, p. 23) propõe,
“[...] não temos na área de segurança pública, clareza sequer com relação
ao objeto de estudo, o que em decorrência, impede o desenvolvimento de
uma ciência da área.Reforça-se tal armação na medida em que não
93
D S P:
 ,  
nem no texto da Constituição Federal uma denição do que é segurança
pública, anal.
11
o ministéRio da Justiça bRasileiRo manifesta que
A Segurança Pública é uma atividade pertinente aos órgãos estatais
e à comunidade como um todo, realizada com o to de proteger a
cidadania, prevenindo e controlando manifestações da criminalidade
e da violência, efetivas ou potenciais, garantindo o exercício pleno da
cidadania nos limites da lei. (BRASIL, [2012?], grifo do autor).
As perspectivas normativas apresentam denições mais simples
e objetivas, como aquela de José Afonso da Silva: “‘Segurança públicaé
a manutenção da ordem pública interna.(SILVA, 1999, p. 777, grifo do
autor). Este completa dizendo que
A segurança pública consiste numa situação de preservação ou
restabelecimento dessa convivência social que permite que todos
gozem de seus direitos e exerçam suas atividades sem perturbação de
outrem, salvo, nos limites do gozo e reivindicação de seus próprios
direitos e defesa de seus legítimos interesses. Na sua dinâmica, é uma
atividade de vigilância, prevenção e repressão de condutas delituosas.
(SILVA, 1999, p. 778, grifo do autor).
Acrescentando insumos à reexão Brodie (2009, p. 687,
tradução nossa) aborda ao assunto do ponto de vista da segurança (em
suas várias formas). O termo seria, hoje, apropriado para ns especícos.
Embora reconheça que a temática, a qual estaria no centro das discussões
contemporâneas, seja congurada de maneiras diferentes, ao longo do
tempo e de acordo com cada localidade, sugere que, de modo geral, os
discursos de segurança pronunciariam estados de insegurança entre o
innito de complexidades e mudanças da vida social e política. Segurança
teria, com isso, força em seu apego as outras palavras e coisas, por exemplo,
segurança territorial, segurança social, segurança ambiental, segurança
11
O Artigo 144 da Constituição diz: A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,
é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos
seguintes órgãos: I – policia federal; II – policia rodoviária federal; III – policia ferroviária federal; IV – polícias
civis; V – polícias militares.” (BRASIL, 1988).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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pessoal. Segundo a autora, cada um geraria suas próprias ontologias quanto
à insegurança do cidadão, atribuindo-lhe objetos proporcionais e agentes
de culpabilidade.
Partindo da premissa de Zygmunt Bauman (2001, 2006, 2007
apud BRODIE, 2009) de que todas as palavras têm signicados e que
algumas vão além da acepção metalinguística, ou seja, irradiariam uma
sensação”, a segurança possuiria um leque de signicados. Para além
daquele que envolveria as instituições, aos agentes e as organizações,
assim como ao engajamento destes em nos proteger de possíveis prejuízos
físicos e morais, irradiaria algo como uma percepçãoquando utilizada
para conotar um estado subjetivo de conança. Seria, portanto, uma
necessidade fundamental, um valor central que permearia o pensamento
humano (BAUMAN, 2007 apud BRODIE, 2009).
Para além do que vimos até agora, tomando de empréstimo as
palavras de Stewart, a tendência em ressignicar a segurança blica parece
demonstrar também policiais e cidadãos se auto reconhecendo com co-
produtoresda segurança blica(BAYLEY; SKOLNICK, 2002, p. 11).
Com tudo, a compreensão deste signo complexo e das variáveis que o rodeiam
se realizará mediante sua denição conceitual. A partir do envolvimento de
agentes distintos no trato do tema, somadas ao novo contexto e às demandas
sociais emergentes, o debate se alargará e será enriquecido. Só então a
segurança pública podeser vista, ao mesmo tempo, com ns de preservação
e garantia da integridade física, mas também moral dos indivíduos – já que
sua realização plena resultaria num sentimento coletivo (e compartilhado) de
conança e liberdade, isto é, num estado subjetivo.
o
Ombudsman
Pode-se dizer que após a redemocratização a sociedade passou a
requer cada vez mais participação na formulação e execução de políticas
públicas em diversos segmentos, sobretudo, na área de segurança pública. E
assim o fez por meio dos canais de participação, através dos quais surgiram
importantes instrumentos de planejamento e controle social, capazes de
legitimar as ações policiais. É nesse contexto que, no Brasil, emergem as
guras do Ombudsman e das Ouvidorias.
95
D S P:
 ,  
Originário da Suécia, durante o século XVI, a gura do
Ombudsman ou Delegado Parlamentar estava vinculada aos interesses da
burguesia e a necessidade de proteção dos direitos individuais. A priori,
o Ombudsman era um “[...] funcionário do rei encarregado de exercer o
controle da atividade dos juízes.” (AMARAL, 1993, p. 21 apud CUNHA,
2000, p. 11). A escolha do Ombudsman era feita pelo Parlamento possuindo
um mandato de quatro anos.
Apesar de algumas modicações que esta agência sofreu desde seu
aparecimento há mais de três séculos, suas funções e seu papel de scal
das atividades do Estado passaram a determinar sua importância nos
regimes democráticos. (CUNHA, 2000, p. 12).
As funções do Ombudsman seriam
[...] receber as reclamações e dencias dos cidadãos; produzir informações
e estatísticas sobre a conduta dos agentes e das instituições blicas;
propor mudanças ao governo a m de adeq-lo aos direitos do cidadão;
fazer recomendações para a realização de um melhor servo; promover
queixas e investigões às autoridades competentes e, em alguns casos,
impor saões administrativas, instaurar inquéritos e mesmo iniciar ações
penais e civis contra ações ilegais de agentes ou demais agências do Estado.
(AMARAL, 1993, p. 21 apud CUNHA, 2000, p. 10).
No contexto da segurança pública a gura do Ombudsman
muito nos importa: de acordo com a Secretaria Estadual de Segurança
Pública, uma Ouvidoria da Polícia seria “[...] uma espécie de ombudsman
da segurança pública [...]”.
12
Goldstein reforça a armação ao armar
que “[...] o conceito de um ombudsman [...] é essencialmente uma
sistema para dar aos cidadãos a oportunidade de apelar contra as decisões
administrativas. [...] Como o conceito de ombudsman aplica-se a todas
as agências do governo que o empregam, a policia não ca isolada para
tratamento especial.” (GOLDSTEIN, 2003, p. 228-229)
Sendo assim, quanto aos mecanismos de controle brasileiros, mais
especicamente das policias civil e militar, existem projetos nacionais desde
1990 e, no estado deo Paulo, desde o governo de Franco Montoro (1983
12
SÃO PAULO (Estado). Ouvidoria da Polícia. Disponível em: <http://www.ouvidoria-policia.sp.gov.br/pages/
Oque.htm >. Acesso em: 31 mar. 2010.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
96
– 1987). Como mencionado anteriormente, dirigida por um representante
da sociedade civilnão possuindonculos quaisquer com as instituições –,
esta teria por função mediar a relação entre os agentes sujeitos da segurança
pública como mecanismos de monitoramento e pressão.
13
o contRole social das ouvidoRias de Polícia
O controle social costuma ser vinculado às ideias de participação
na gestão pública, uma vez que se considera que através deste envolvimento
os indivíduos possam nortear a administração pública de maneira que
esta atenda aos interesses públicos – e, exigir, ao mesmo tempo, prestação
de contas do Estado.
14
Além disso, parece ser característico à sociedade,
não apenas fazer uso de mecanismos voltados à preservação de políticas
públicas, mas se organizar para defender aos interesses dos vários grupos
sociais existentes.
Sendo assim, Bresser Pereira dene que
A democracia direta ou o controle social é [...] o mecanismo de
controle mais democrático e difuso. Por intermédio do controle social,
a sociedade se organiza formal e informalmente para controlar não
apenas os comportamentos individuais, mas e é isto que importa
neste contexto para controlar as organizações públicas. (BRESSER
PEREIRA, 1997, p. 10).
Para Bobbio por controle social
[...] se entende o conjunto de meios de intervenção, quer positivos
quer negativos, acionados por cada sociedade ou grupo social a m
de induzir os próprios membros a se conformarem às normas que a
caracterizam, de impedir e desestimular os comportamentos contrários
às mencionadas normas, de restabelecer condições de conformação,
também em relação a uma mudança do sistema normativo. (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 283).
13
As principais diculdades desta se acentuariam ao haver inúmeros mecanismos de rotina disponíveis à
realização deste trabalho, mas que privilegiariam apenas a vigilância, a scalização e a cobrança em detrimento
da formação e orientação dos agentes (LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003). O resultado: a baixa
efetividade em responder as queixas e, por consequência, a diminuição da conança em sua capacidade de
atuação.
14
PORTAL da Transparência. Disponível em: <http://www.portaltransparencia.gov.br/controleSocial/ >.
Acesso em: 15 maio 2010.
97
D S P:
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Entendido por muitos como um avanço quanto à consolidação
democrática no Brasil, quando e se estabelecido como instrumento de
proteção dos direitos fundamentais do cidadão, o controle social fomentaria
espaços de cidadania e sociabilidade política inovadores, resultando
não apenas num melhoramento quanto à formulação e execução de
políticas públicas, mas também na efetivação de um processo contínuo de
democratização. (ANTUNES; FREITAS; RIBEIRO FILHO, 2010, p. 2)
Ressalta-se, entretanto, que este compartilhamento de
responsabilidadesentre as partes requer a conscientização realizada pela
exaustiva divulgação dos mecanismos de controle existentes, tornando-
os acessíveis a sociedade civil. Para tanto, devem ser parte integrante do
imaginário social para, então, fazer com que indivíduos e coletivos se
identiquem e viabilizem as mudanças pretendidas. Ou seja, enquanto o
controle social não zer parte da cultura popular, não poderá substituir aos
demais controles formais existentes. (DI PIETRO, 1998 apud ANTUNES;
FREITAS; RIBEIRO FILHO, 2010, p. 3)
Apresentadas, mesmo que brevemente, denições de controle
social, parte-se à compreensão de seus mecanismos.
Antes de tudo, ao tratar do assunto, cabem algumas ressalvas
importantes: há grande quantidade de informações oriundas de bibliograa
estrangeira (sobretudo Europa e America do Norte); noutros lugarejos
são chamados de civilian oversights ou lhes é conferida uma conceituação
menos precisa sem especicações maiores se são externos, internos,
naturais, institucionais, etc. -, são apenas e tão somente controles”; tratando
especicamente do controle do trabalho policial, o comportamento dos
agentes está vulnerável também, segundo Bayley (2001, p. 174), à inuência
de mecanismos de controle informais como cultura, educação e consciência.
Nota-se que, ao redor do mundo, a complexidade do trabalho
policial (atuação e contextos variados) dicultaria a padronização de
metodologias destes mecanismos (GOLDSTEIN, 2003). Cada qual
possuiria particularidades das quaiso poderia se lançar mão. Isso ocorreria,
possivelmente, porque, assim como arma Goldstein (2003, p. 203), este foi
durante muitos anos e talvez ainda o seja uma colcha de retalhos”. Ou
seja, não havendo um delineamento institucional preciso não haveria como
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
98
aplicar quaisquer distinções de nomenclaturas aos instrumentos e às teticas
que o envolverem (BAYLEY; SKOLNICK, 2002).
O controle social da polícia, segundo Bayley, nos remeteria
à questão da responsabilização, uma vez que um implicaria no outro.
15
Em suas palavras, tratar-se-ia de algo como o comportamento da policia
em conformidade ao que deseja a sociedade. Os dois processos (controle
e responsabilização) não poderiam, portanto, ser desvinculados que
ambos se refeririam àquilo que adequaria o comportamento policial às
necessidades sociais vigentes (BAYLEY, 2001, p. 174-176).
Bittner (2003, p. 330), por sua vez, aborda aos mecanismos de
controle policial sob critérios de adequação os quais denomina legalidade
e capacitação da mão-de-obra – se referindo à supervisão do cumprimento
das disposições legais e à responsabilização ou accountabillity
16
. Segundo o
autor, a primeira seria responsável por regular ações antes ou no momento
das ocorrências, de modo a limitar infrações. Nota que se faria uso de
pessoal especializado e autorizado a invocar e aplicar sanções devidamente
especicadas. A segunda estaria relacionada à prestação de contas não
apenas entre policiais, mas entre esses e representantes da comunidade ou
diretamente a ela (BITTNER, 2003, p. 330).
As Ouvidorias brasileiras são notadamente mais limitadas,
talvez pelo fato de serem mais recentes (LEMGRUBER; MUSUMECI;
CANO, 2003). A crise institucional das últimas décadas teria estimulado
a terceirização da vigilância às organizações da sociedade civil (ou ao
chamado terceiro setor). Mais recentemente é que a presença da gura
do ombudsman tornou fundamental o debate em torno de suas questões
práticas e metodológicas – mais que as conceituais. A preocupação estaria
mais em como avaliar o desempenho dos mecanismos de controle e em
como testar suas efetividades aspectos como inuência na diminuição
de condutas irregulares, capacidade de identicação de problemas e de
provocar mudanças nas políticas, procedimentos e culturas institucionais
15
A responsabilização implica em controle, e o controle gera responsabilização.” (BAYEY, 2001, p. 174).
16
Partindo da classicação de O’Donnell, a Ouvidoria é uma forma de accountability horizontal, ou seja, “[...] a
existência de agências estatais que têm o direito e o poder legal e que estão de fato dispostas e capacitadas para
realizar ações, que vão desde a supervisão de rotina a sanções legais até o impeachment contra ações ou emissões de
outros agentes ou agências do Estado que possam ser qualicadas como delituosas.(O ‘DONNELL, 1998, p. 40).
99
D S P:
 ,  
dos órgãos de segurança pública –, fazendo destes, peças chave no processo
de transição política (SPECK, 2002, p. 73).
No Brasil, a quantidade numérica de Ouvidorias tem crescido
progressivamente ao longo dos anos. Segundo Bobbio, o sucesso e a
proliferação dos sistemas de ombudsman se justicariam pela “[...]
insatisfação quanto ao sistema de garantias que se oferecem em relação aos
comportamentos da administração pública [...]” (BOBBIO, 1998, p. 838).
Protegendo o diálogo entre os cidadãos comuns e os servidores públicos, de
modo geral, estas incentivariam “[...] o surgimento de uma responsabilidade
reexa de outro vel, no próprio cidadão.(SPECK, 2002, p. 82). Ademais,
poderiam ser reconhecidas como “mecanismos de pressão e saneamento”,
que através da scalização popular se faz possível atingir o que Speck chama
de “incorreções da administraçãopública (SPECK, 2002, p. 82).
Segundo Zavechura (2008, p. 225-226), discutir a instituição
Ouvidoria da Polícia de um modo meramente técnico não seria a melhor
saída, tendo-se em vista que também se trata de uma questão política e
que tal tipo de arranjo institucional poderia tanto fortalecer, quanto
fragilizar a legitimidade da democracia de um país. Ressalta também que
não seriam instituições trabalhando contra as organizações policiais, mas
com as mesmas, bem como os demais órgãos governamentais e a sociedade
civil. O autor ainda considera que “[...] Reforma na polícia quer dizer
melhorar a eciência e a ecácia na prevenção e repressão ao crime, com
o fortalecimento do método democrático de policiamento, ou seja, a sua
responsabilização (accountability).” (ZAVECHURA, 2008, p. 224).
17
O modelo de policiamento brasileiro vigente acompanha a
necessidade das reformas administrativas e institucionais do Estado. Assim,
a polícia careceria de políticas voltadas à melhoria de seu desempenho,
ou do que Resende chama de performance, e à mudança institucional,
isto é, aquelas mudanças nas “[...] estruturas organizacionais, na cultura
burocrática e, de modo mais geral, nas regras do jogo.(RESENDE, 2002,
p. 125). Tal reformulação das políticas de segurança e de seus agentes,
entretanto, tem gerado resultados distantes do esperado, fazendo com que
17
Entendemos esta denição por accountability horizontal.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
100
os governos se envolvam num ciclo vicioso de formulação e execução de
políticas a cada gestão
(RESENDE, 2002, p. 125).
O desao que se salienta consiste em buscar formas
alternativas de contenção da violência e do crime compatíveis com a
manutenção do Estado de Direito, direcionadas aos valores democráticos
e, principalmente, que se estendam à cidadania (ALVAREZ, 2004, p.
1). A presença da sociedade civil, por meio dos mecanismos de controle
social, representaria os esforços para que políticas públicas estejam menos
centradas no Estado e para que haja uma nova tentativa de reformulação
na área de segurança.
Por m, o cumprimento das decisões previstas nas políticas
públicas de segurança e a garantia de continuidade dada às diretrizes
estruturadas a cada governo conguram, dentre tantos, o maior desao a
ser superado (DINIZ, 1998, p. 31 apud SANTOS, 2005, p. 60).
o contRole da coRRuPção na ouvidoRia
A questão da corrupção nas Ouvidorias é relatada por meio
dos crimes contra a administração pública, especicamente: peculato,
concussão, prevaricação, extorsão, corrupção passiva e enriquecimento
ilícito. Todos os crimes estão contemplados no código penal e são passíveis
de punição.
18
O Peculato
19
é a apropriação ou desvio de valores, bens móveis,
que o funcionário público tem posse justamente em razão do cargo e/ou
função que exerce. A pena para este crime é reclusão, de 2 a 12 anos.
A Concussão
20
é o ato de exigir para si ou para outrem, dinheiro
ou vantagem em razão da função, direta ou indiretamente, ainda que fora
da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida. A
pena é reclusão, de dois a oito anos. Esta prevista a pena de multa, que é
cumulativa com a de reclusão.
18
Exceção ao enriquecimento ilícito. Ressaltamos que dois projetos de lei, tramitando no Congresso Nacional,
para criminalizar esta prática.
19
Artigos 312 e 313 do Código Penal Brasileiro.
20
Artigo 316 do Código Penal Brasileiro.
101
D S P:
 ,  
A Prevaricação
21
é um dos crimes praticados por funcionário
público contra a administração. Em geral, consiste em retardar ou deixar
de praticar devidamente ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição
expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Funcionários
públicos também podem responder por esse crime, pelo uso indevido
das ferramentas públicas de trabalho, como carros, telefones, internet,
documentos e tudo o que possa executar ou auxiliar o trabalho de um
servidor público dentro ou fora do horário de expediente, inclusive. A
pena é detenção, de três meses a 1 anos, e multa.
A Extorsão
22
é o ato de obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa, por meio de ameaça ou violência, com a intenção de obter
vantagem, recompensa ou lucro. Pena prevista é reclusão de 4 a 10 anos,
e multa.
A Corrupção passiva
23
é o ato de solicitar, para si ou para alguém,
direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la,
vantagem indevida ou aceitar promessa. A pena é reclusão de 1 a 8 anos,
e multa.
O Enriquecimento ilícito, no direito administrativo, refere-se
a Lei de Improbidade (BRASIL, 1992) e refere-se a um desvirtuamento
da administração pública, principalmente no que se diz respeito a
desonestidade no âmbito patrimonialsempre às custas do Estado. A Lei
8429/92 estabelece três tipos de atos de improbidade praticados por
agentes públicos, seja servidor ou não, contra a administração pública,
quais sejam: atos que importam em enriquecimento ilícito (artigo 9)
24
;
os que causam lesão ao patrimônio público (artigo 10); e os que atentam
contra os princípios da Administração Pública (artigo 11).
21
Artigo 319 do Código Penal Brasileiro.
22
Artigo 158 e 159 do Código Penal Brasileiro.
23
Artigo 317 do Código Penal Brasileiro.
24
Na hipótese do art. 9°, a punição será, “[...] perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio,
ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito
a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar
com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos scais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda
que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos.” (BRASIL, 1992).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
102
Tabela 1- Denúncias sobre a Polícia Militar (1999 – 2007)
Casos 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Total
Total 781
Concussão
/ Extorsão
100 62 14 8 13 17 23 9 13 259
Corrupção
Passiva
6 30 7 3 7 10 8 10 23 104
Peculato 16 25 15 11 2 5 2 1 1 78
Prevarica-
ção
39 62 31 21 8 16 58 52 24 311
Enrique-
cimento
ilícito
6 9 2 3 4 1 0 - 0 25
Extorsão - - - - - 4 0 - 0 4
Fonte:O PAULO (Estado). Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.ouvidoria-policia.sp.gov.br/pages/Relatorios.htm> Acesso em: 30 jun. 2011.
Na Tabela 1, podemos observar que entre 1999 a 2007 foram
encaminhadas a Ouvidoria do Estado de São Paulo 781 denúncias de crimes
contra administração pública, praticados pela Polícia Militar. Dentre estes, os
de maior incidência foram prevaricação (311), concussão (259) e corrupção
passiva (104) e os casos de extorsão registram apenas 4 denúncias.
103
D S P:
 ,  
Tabela 2- Denúncias sobre a Polícia Civil (1999 – 2007)
Casos 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Total
Total 1876
Concussão / Ex-
torsão
277 143 45 26 44 63 36 49 38 721
Corrupção Pas-
siva
14 38 22 9 13 52 51 21 43 263
Peculato 17 15 10 5 13 4 2 2 0 68
Prevaricação 91 149 83 56 27 33 86 85 45 655
Enriquecimento
ilícito
22 16 8 7 8 2 2 - 3 68
Extorsão - - - - - 10 0 - 1 11
Fonte:O PAULO (Estado). Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.ouvidoria-policia.sp.gov.br/pages/Relatorios.htm> Acesso em: 30 jun. 2011.
No mesmo período, foram encaminhados 1876 denúncias a
Ouvidoria referente a Polícia Civil e os casos de maior incidência foram:
concussão (721); prevaricação (655); e corrupção passiva (263) e o de
menor foi extorsão, com apenas 11 denúncias.
Tabela 3- Total de denúncias sobre as Polícias Civil e Militar (1999 2007)
Casos 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Total por ano 590 553 248 94 141 237 297 237 200
Concussão / Extor-
são
379 206 62 35 57 82 64 60 53
Corrupção Passiva 20 68 33 12 21 64 74 32 69
Peculato 33 41 25 16 15 23 6 3 1
Prevaricação 130 213 117 21 35 51 150 142 73
Enriquecimento ilí-
cito
28 25 11 10 13 3 2 - 3
Extorsão - - - - - 14 1 - 1
Fonte:O PAULO (Estado). Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.ouvidoria-policia.sp.gov.br/pages/Relatorios.htm> Acesso em: 30 jun. 2011.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
104
A Tabela 3 demonstra, que no acumulado de 1999 a 2007, os
anos de 1999, 2000, 2005 e 2001 são aqueles que apresentam maior
número de denúncias de crimes contra a administração pública.
Tabela 4 – Total por especicidade de crime 1999-2007
Casos 1999-2007
Concussão / Extorsão 980
Corrupção Passiva 367
Peculato 146
Prevaricação 966
Enriquecimento ilícito 93
Extorsão 15
Fonte:O PAULO (Estado). Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.ouvidoria-policia.sp.gov.br/pages/Relatorios.htm> Acesso em: 30 jun. 2011.
Nesta última tabela temos o total de crimes no período,
merecendo destaque para concussão com 980 denúncias, prevaricação
com 966 e corrupção passiva com 367. A extorsão aparece em todos os
momentos com o menor índice, no período temos 15 casos. O perl dos
denunciantes
25
atendidos pessoalmente na Ouvidoria, segundo relatório
de 2000
26
, é predominante masculino, branco, empregado e com segundo
grau completo.
27
A maioria das denúncias é feita, pessoalmente, pela
própria vítima.
Nos oito anos analisados acerca do desempenho da Ouvidoria
predominaram os casos de concussão, prevaricação e corrupção passiva,
todos crimes que envolvem a solicitação de algum benefício por parte
do funcionário público. O cargo ocupado pelo agente público serve para
benefício pessoal em detrimento aos interesses coletivos, ou seja, trata-se
de corrupção no sentido strict sensu. Infelizmente não é possível saber, por
ausência de dados relativos a estes crimes contra a administração pública
28
,
25
uma diculdade em delimitar com precisão o perl dos cidadãos que buscam a Ouvidoria, pois muitas
denúncias são anônimas.
26
Não há dados após este período que permita traçar o perl do denunciante.
27
Dados disponíveis em: <http://www.ouvidoria-policia.sp.gov.br/pages/PerlDenunciantes.htm>. Acesso em:
30 jun. 2011.
28
Na página da Ouvidoria há apenas os dados absolutos e não por natureza de crime.
105
D S P:
 ,  
quantos destes casos foram solucionados, que agentes foram punidos, ou
não, e quais foram às punições aplicadas.
C
onsideRações finais
A criação da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo
representa um instrumento importante de controle social, porém é frágil
a avaliação de sua ecácia, uma vez que não sabemos quantos dos casos de
crime contra a administração pública foram solucionados. A accountability
horizontal, institucionalizada pela Ouvidoria, representa um elemento
importante em termos de acesso à justiça e resolução de conitos se
comparados aos tradicionais sistemas de controle (Tribunais, por exemplo).
Institucionalmente, a acessibilidade e a responsabilidade das
Polícias Civil e Militar foram ampliadas e isto tem delineado um novo
comportamento na corporação, que contrasta com os históricos padrões
autoritários.
A imparcialidade e eciência da Ouvidoria podem ser
facilmente observadas por meio do modelo de agência adotado do tipo
monitoramento, ou seja, sem a atribuição de investigação, tem permitido
o encaminhamento de várias denúncias desde a sua criação
29
.
Há algumas limitações que este tipo de Ouvidoria pode suscitar,
como: ausência de mecanismos de prevenção aos crimes; diculdade de
monitoramento e acompanhamento das denúncias e dos agentes públicos
envolvidos; baixa credibilidade e conabilidade, pelos denunciantes, na
instituição; e escassez de recursos humanos e nanceiros.
Os casos de corrupção representam, simultaneamente, um
desvio da função do agente público e expõem um conito ético, pois os
que deveriam ser responsáveis pela proteção ao cidadão convertem-se em
uma ameaça aos mesmos. A Ouvidoria tem nas denúncias de corrupção
contra a administração pública, um instrumento valioso para ampliar seu
conhecimento acerca da dinâmica entre sociedade e policiais e, ao mesmo
tempo, compreender a cultura da corrupção presente na corporação.
29
Desde a sua criação foram registradas 47.673 denúncias (1995-2009).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
106
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109
gênero, FeminiSmoS e
políticAS SociAiS
1
Lucila Scavone
O objetivo deste texto é fazer uma reexão sobre os avanços
e impasses das políticas sociais de gênero na sociedade brasileira
contemporânea. Para tanto, é necessário considerar um longo processo social
e político que incluí a diversidade histórica do feminismo contemporâneo
no Brasil com suas lutas e demandas especícas, como também, do ponto
de vista político institucional, a criação de órgãos governamentais voltados
para os direitos das mulheres e às questões de gênero. Além disto, que
considerar os acordos tirados nas conferências internacionais relacionados
às demandas feministas e seus efeitos nas políticas sociais no país. Percorrer
tópicos deste complexo processo contribui para localizarmos a antiga e
tensa relação dos movimentos feministas com as instituições políticas, em
1
Este texto é um dos frutos da Pesquisa Estudos de Gênero e Feministas: implicações cientícas e sócio-políticas.
CNPq/UNESP.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
110
última instância, com o Estado e que culmina em 2003 com a criação da
Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM)
2
.
Cabe destacar que uma das características marcantes do feminismo
brasileiro contemporâneo tem sido o compromisso político com um projeto
de sociedade democrático, igualitário e antiautoritário que sempre esteve
associado, direta ou indiretamente, ao seu engajamento primordial com as
questões de gênero (ALVAREZ, 1997). Este compromisso teve início com
a resistência à ditadura, nas lutas pela volta à democracia no país e pela
consolidação de um Estado de direito. As lutas pelos direitos das mulheres
em geral – trabalho, educação, saúde, - e por direitos sexuais e reprodutivos,
além de outros direitos especícos, se prolongam ao longo da Historia
contemporânea do movimento feminista brasileiro. Esta atuação é observável
tanto em seus diferentes matizes políticos de esquerda, em suas múltiplas
tendências, como na própria descontinuidade deste processo histórico.
Não podemos fazer tábula rasa do vigor com que estas lutas se
conduziram e ainda se conduzem, como também, de suas oscilações e
contradições, em um país cujos liames sociais são, frequentemente, ditados
pela lógica da dominação masculina. Lógica, simbólica e culturalmente,
alicerçada nas práticas do machismo, do racismo, da homofobia, nas
quais se pré-denem lugares e papéis sociais com base no pertencimento
de sexo e de raça, invariavelmente articulados à situação de classe. Neste
texto interessam-nos situar algumas das demandas notórias do movimento
feminista brasileiro a partir dos anos 1980 e as mudanças nas políticas
sociais de gênero por parte do Estado.
caminhos das Políticas feministas
Tanto em nível organizacional como político, o movimento
feminista consolidou durante o processo de democratização do país suas
reivindicações próprias e, por meio delas, foi um dos atores de peso neste
processo. Com a Anistia política as exiladas voltaram com a experiência
europeia do Feminismo, inegável estímulo para uma maior denição do
2
No corpo deste artigo rero-me à história do feminismo contemporâneo no singular, embora o singular não
consiga abarcar toda sua diversidade, especialmente, com as novas correntes que surgem. A abordagem do tema
proposto concerne às demandas de políticas sociais feministas de maior consenso.
111
D S P:
 ,  
movimento no país. As trocas de experiências, entre as feministas que
voltaram e as que aqui estavam, foram acrescidas dos contatos com
outros movimentos sociais emergentes: mulheres da periferia, negros e
homossexuais.
Dos anos 1980 aos anos 1990 destacamos a constituição de
grupos autônomos em todo o país, articulados em nível nacional e
politicamente engajados: na campanha das “Diretas, ”; na realização da
nova Constituinte e em diversas interferências políticas, sobretudo, na
saúde e violência contra as mulheres. Ao escolher sua estratégia política
que esteve até então, dividida entre privilegiar as lutas gerais ou as
lutas especícas - o feminismo brasileiro optou por participar das lutas
gerais, mas passou a partir de então a assumir com ênfase crescente as
lutas especícas. Ademais, a autonomia feminista frente aos partidos de
esquerda foi gradativamente fortalecida, especialmente, para aquelas que
tinham uma dupla militância.
A partir deste período o feminismo brasileiro centrou suas ações
em duas grandes áreas, que remetiam à formulação de políticas sociais e
ampliavam o debate da democratização: a saúde reprodutiva e a violência
contra as mulheres. Com isto, a atuação do movimento se direcionava mais
para as classes populares, desprovidas de direitos à saúde e de direitos de
assistência aos danos da violência de gênero. De fato, a maioria dos grupos
feministas autônomos, de então, se constituíram em torno destas questões:
SOS Corpo de Recife; SOS Mulher e Centro de Informação da Mulher,
em o Paulo; SOS Violência, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte,
entre inúmeros outros grupos em todo país. No começo dos anos 1980 era
assinalada a existência de aproximadamente 30 grupos no país, do meio norte,
em o Luís do Maranhão, ao extremo sul, em Porto Alegre (SCHUMAER;
BRAZIL, 2000). Estes grupos faziam intenso trabalho político: nas ruas
(manifestações, peças teatrais); nas periferias (formando grupos de discussão,
ou de pesquisas militantes); e no atendimento social (saúde e violência).
O trabalho de mobilização em todo país era articulado em
Encontros Feministas e nas grandes campanhas políticas nacionais pela
redemocratização do país. Os primeiros Encontros Nacionais Feministas,
entre 1979-1985, aconteceram junto aos Encontros anuais da SBPC.
Com a ampliação do movimento as reuniões passaram a ser organizadas
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
112
independentemente; entre 1979 e 2000 foram realizados 13 Encontros
Nacionais em diferentes cidades do país (SCHUMAER; BRAZIL, 2000).
No início do período eram frequentes e depois foram rareando, dado os
inúmeros outros Encontros que ocorriam e demonstravam não a força
do movimento, como, também, sua crescente fragmentação em questões
especícas. Podemos citar, entre outros, os Encontros Feministas da América
Latina e do Caribe, que entre 1979 e 2002 realizou 9 encontros; Encontros
de Mulheres Negras; Encontro de Mulheres Lésbicas Latino-americanas,
Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais (FERREIRA; BONAN, 2012).
Além disto, que considerar a realização dos Encontros Preparatórios às
Conferências Internacionais e, mais recentemente, as reuniões preparatórias
às Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres. A primeira Conferência
ocorreu em 2004, a segunda em 2007 e a terceira em 2011, com intensa
participação dos grupos feministas do país.
O período do processo de institucionalização das demandas
feministas pelo Estado começou com a criação do Conselho Estadual
da Condição Feminina (CECF/São Paulo), em 1983 e do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM/Brasília) em 1985 e a partir daí
se multiplicou nos municípios e estados. De fato, em junho de 2009 os
números dos Conselhos de Direitos das Mulheres cadastrados na SPM eram:
345 Conselhos Municipais e 25 Conselhos Estaduais (OBSERVATÓRIO
BRASIL DA IGUALDADE DE GÊNERO, 2011).
O primeiro momento de institucionalização coincidiu com o
início da abertura política no país e a criação destes dois Conselhos em
um país que estava ainda em uma complexa transição política pode ser
compreendida por fatores conjunturais. Internamente, a vitória nas
eleições estaduais do amplo partido da oposição (PMDB) para o governo
de São Paulo, em 1982, favoreceu a intervenção política institucional do
movimento feminista em nível estadual e nacional, ao trazer feministas para
a cena política. Por outro lado, internacionalmente, as recomendações da
Conferência da ONU para a Década da Mulher em Nairob, em 1985, no
sentido de fomentar o desenvolvimento de políticas públicas de promoção
aos direitos das mulheres tiveram importante peso.
A proposta da criação do CNDM provocou um processo de intensa
discussão política no movimento feminista. As feministas se dividiam
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em grupos que prezavam a autonomia e grupos que consideravam ser
importante a interlocução com o Estado para programar e realizar políticas
sociais destinadas às mulheres. Apesar de esta divisão ter sido central no
VII Encontro Nacional Feminista de 1985, em Belo Horizonte, a criação
do CNDM foi efetivada. Este foi um dos começos, em nível nacional,
de uma longa relação que, coincidiu, também, com o início de mudanças
importantes dentro do movimento feminista brasileiro, notadamente, o
início da onguização/prossionalização dos grupos autônomos.
A análise da “Carta de Belo Horizontemostra as tensões internas
no movimento frente à criação do CNDM, entre as quais, o receio de perder
sua autonomia, de ter seu contradiscurso e suas reivindicações cooptadas
e neutralizadas por uma institucionalização burocratizada e anódina.
Entretanto, a força simbólica da institucionalização política e do poder
do Estado falou mais forte e o CNDM foi aprovado nesse Encontro sob
as seguintes condições: que o Conselho fosse administrado por feministas;
que tivesse dotação orçamentária própria; que o movimento participasse
na elaboração, execução e acompanhamento das políticas ociais, entre
outras. Uma série de demandas que supunham garantir a continuidade
da luta feminista em nível institucional, sem perda total da autonomia
(SCHUMAER; VARGAS, 1993). A experiência paulista apontava que
algumas destas reivindicações eram possíveis, pois o CECF em São Paulo
mantinha profícuo diálogo com o movimento feminista.
Em sua primeira gestão (1985-1989), o CNDM estava ligado
ao Ministério da Justiça e tinha uma estrutura deliberativa e executiva,
semelhante a uma secretaria de estado, que lhe possibilitou ações mais
efetivas nos campos da saúde, trabalho, legislação especíca, violência e
combate ao racismo. Esta gestão teve duas presidentes feministas, Ruth
Escobar (1985-1986) e Jacqueline Pitanguy (1986-1989). Uma das mais
importantes ações do CNDM foi sua atuação conjunta com o movimento
feminista com as associações de mulheres, em todo país, e com a bancada
feminina suprapartidária, criada pelas 26 deputadas do Congresso
Constituinte de 1988. A ação cou conhecida como o “lobby do batom”,
denominação que fora dada pelos constituintes de direita, com o intuito de
desqualicar as articulações feministas na Constituinte. Em contrapartida,
o movimento passou a utilizá-la de forma positiva, o que desconcertou
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os adversários. Esse lobby mobilizou grupos feministas do país inteiro,
que de diferentes formas pressionavam os parlamentares para o apoio às
reivindicações feministas na Constituinte. Schumaer (2007) relata que
“No Congresso até o mais distante dos Parlamentares esbarrava no recado:
Constituinte, as mulheres estão de olho em você!”. Costa (2005) mostra
que com o slogan “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher
[...]” e o uso da tática feminista “[...] de uma ação direta de convencimento
dos parlamentares [...]” “[...] o movimento feminista conseguiu aprovar
em torno de 80% de suas demandas, se constituindo no setor organizado
da sociedade civil que mais vitórias conquistou.
Entretanto, alguns problemas tabus e polêmicos como a questão
da descriminalização do aborto, passaram por negociações no processo
constituinte: de acordo com análise de (ROCHA; NETO, 2003) houve um
acordo entre os parlamentares progressistas de que o aborto não deveria ser
matéria constitucional, mas regulamentada pela legislação. Ressalta-se que
a criminalização do aborto ainda continua uma ferida aberta para as lutas
feministas brasileiras e podemos dizer latino-americanas. De fato, as ações
feministas em prol da liberalização do aborto no Brasil foram marcadas
por avanços, recuos e, sobretudo, por inúmeras negociações políticas
(SCAVONE, 2008) que não chegaram a resultados mais concretos.
mais de 70 anos o aborto é crime no Código Penal Brasileiro, exceto nos
casos de risco de vida da mulher e de gravidez decorrente de estupro, tais
exceções legais só começaram a ser efetivadas a partir de 1989 quando foi
implantado no Hospital Jabaquara, em São Paulo, o primeiro “Programa
de Aborto Legal para prestar atendimento aos Casos Previstos por Lei”.
Este Programa se expandiu, posteriormente, pelo Brasil afora, mas seus
resultados ainda são pouco divulgados e/ou analisados por pesquisas. De
certa forma, é como se ele existisse, também, clandestinamente, tal a pouca
divulgação que lhe é feita.
Após a intensa participação do movimento feminista na
Constituinte, o CNDM continuou seu trabalho priorizando temáticas
ameaçadoras para uma estrutura estatal com fortes resquícios de
autoritarismo. Entre estas temáticas a campanha nacional relacionada às
mulheres negras, na ocasião do Centenário da Abolição da Escravatura
no país (1988), “Cem anos de discriminação, cem anos de armação não
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foi bem recebida pelo Ministério da Justiça. Da mesma forma, as questões
dos direitos das trabalhadoras rurais; dos direitos reprodutivos não eram
bem-vindas e isto resultou em clima desfavorável ao sta do CNDM que
renunciou em massa, com o acordo do movimento feminista. Segundo
Jacqueline Pitanguy (2002, p. 10)
A experiência exitosa do CNDM e seu desmantelamento no segundo
semestre de 1989, levantam questões importantes de sustentabilidade.
[...] remetem ao jogo de forças no interior do governo, que, por não
constituir um bloco monolítico, delineia as linhas mestras de seu
perl a partir de coligações, alianças e tensões entre setores e interesses
diversos.[...]. Estas disputas, elemento crucial nas discussões sobre
governabilidade, se acirraram no nal do governo Sarney, cuja base de
sustentação era cada vez mais conservadora.
Naquele momento cavam claras as diculdades do trabalho
das feministas em um governo conservador que barrava o avanço das
propostas que beneciassem a situação social das mulheres. Em sua gestão
posterior o CNDM perdeu seu perl político feminista, foram nomeadas
mulheres conservadoras para compor o Conselho no governo de Collor de
Melo. Nos anos do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC, 1995-
2002) o CNDM não teve muita expressão, pois lhe foi retirado o status
executivo. Em 2003, a partir do primeiro mandato do governo Lula, o
CNDM passou a integrar a nova Secretaria de Políticas para as Mulheres
(SPM) a qual, com status de Secretaria de Estado, mantem como desao
a incorporação das especicidades das mulheres nas políticas públicas e
o estabelecimento das condições necessárias para a sua plena cidadania”,
segundo apresentação de seu Portal (BRASIL, SPM, 2011).
Nesse longo período inúmeras mudanças ocorreram no
movimento social decorrentes da diminuição do papel do Estado no
cenário mundial, da globalização da economia, da maior participação
da sociedade civil nas agendas das políticas públicas no Brasil, com a
consolidação paulatina da democracia no país. Ampliam-se as ONGs e
uma consequente prossionalização do movimento feminista que, na
maioria das vezes, foi subvencionado por organizações internacionais.
Ocorre, também, a crescente fragmentação das identidades, cada qual se
construindo com parâmetros especícos; novos grupos e reivindicações
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emergiram e se formaram com base em desdobramentos identitários:
negras, lésbicas, jovens e assim por diante. Cabe ressaltar, por exemplo,
que a reexão especíca das mulheres negras as conduziu do ponto de
vista feminista à apropriação de suas origens históricas e culturais africanas,
ao questionamento dos estereótipos de suas sexualidades e, entre outras
lutas culturais e sociais, à vericação de indicadores especícos de saúde e
mortalidade. Em sintonia, a SPM em suas políticas públicas direcionadas
às mulheres - passou a dar atenção uma atenção especial à questão da raça/
etnia, articulada com as questões da discriminação de gênero no trabalho,
na educação, na violência, na saúde, na política, na sexualidade.
De fato os desdobramentos identitários do feminismo
aumentaram cada vez mais dos anos 90 em diante: o movimento lésbico sai
do movimento feminista (heterossexual) e do movimento gay masculino;
as mulheres negras lésbicas saem do movimento feminista negro, os
grupos se formam em identidades cada vez mais especícas, processo
que a partir do séc. XXI se acelera em todos os movimentos sociais. Este
desmembramento (se assim podemos chamá-lo) passa a ser articulado pela
formação de redes virtuais e/ou reais que buscam aglutinar a diversidade
no espaço nacional e latino-americano. Tais redes privilegiaram
alguns grandes eixos de debate: a saúde reprodutiva/direitos sexuais e
reprodutivos e a violência de gênero, questões, que, aliás, sempre foram
fortes na pauta das feministas brasileiras. Estes eixos possibilitaram uma
articulação ampla, pois atravessavam os interesses de grupos diferenciados,
entretanto, ainda uma carência muito forte em articulações de outros
eixos importantes como, por exemplo, trabalho, educação, sexualidade e
todas suas manifestações (homossexualismo, transexualismo,) que indicam
a complexidade das denições de políticas sociais. A REDESAÚDE, por
exemplo, sistematizou, por meio de pesquisas, informações necessárias para
assessorar as políticas sociais da área; além de estar alerta às ocorrências
de racismo, sexismo, machismo, homofobia, lesbofobia, transfobia, como
também, às questões do trabalho. Vale dizer que esta rede continua seu
trabalho de monitorar e acompanhar as políticas de saúde voltadas para as
mulheres, não somente na área da saúde, mas, também, articulando-a com
a violência de gênero, entre outras questões.
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Também não podemos esquecer as reuniões preparatórias das
Conferências Internacionais dos anos 1990 em diante, e a participação que
as feministas tiveram, ao contribuir para legitimar e, em alguns casos,
efetivar, em nível político nacional, as demandas de gênero na sociedade
civil. As Conferências serviram como parâmetro de acompanhamento
das políticas em benefício das mulheres no país. Entre elas: Conferência
da ONU sobre Meio-Ambiente, no Rio de Janeiro, 1992, quando o
feminismo brasileiro organizou uma importante força paralela, O Planeta
Fêmea; Conferência de Direitos Humanos Viena, 1993; Conferência da
População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; Conferência Internacional da
Mulher, Beijing, 1995; Cúpula Social na Dinamarca, 1995; Conferência
Mundial contra o Racismo a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância
Correlatas, África do Sul, 2001 e assim por diante.
Todas elas recomendavam programar políticas públicas voltadas
para as mulheres. Estas conferências ”[...] têm como objetivo criar
consenso internacional sobre as matérias discutidas e cada país tem a
responsabilidade de decidir como implementar os princípios aprovados
pela conferência como parte de suas políticas públicas.(BRASIL, SPM,
2011). Em decorrência criaram-se compromissos políticos rmados pelo
governo brasileiro frente à comunidade internacional e que foram até o
início dos anos 2000 cumpridos de forma lenta, com a desarticulação do
CNDM. Com a criação da SPM e a inclusão do CNDM nesta estrutura,
como órgão que faz a ligação do Estado com a sociedade civil, o cenário
das políticas sociais voltadas às mulheres passou a ter maior visibilidade.
As três Conferências de Políticas Públicas para as Mulheres
realizadas pela SPM (2004, 2007, 2011) mais os Planos Nacionais de
Políticas para Mulheres foram frutos do diálogo da sociedade civil (em
nível municipal, estadual e nacional) com o governo. Os Planos incluíram
diversos Programas nas áreas de trabalho, saúde, violência, educação,
política. As três conferências incluem e dão continuidade aos princípios
gerais do primeiro Plano, destacam-se os mais emblemáticos na luta da
igualdade de gênero com compromissos, entre os quais se destacam:
combate a todas as questões que envolvem a desigualdade na diversidade;
assegurar às mulheres o poder de decisão sobre suas vidas e corpos, assim
como as condições de inuenciar os acontecimentos em sua comunidade e
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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país; promover a igualdade de oportunidades entre os gêneros; autonomia
das mulheres e laicidade do Estado. Evidenciam princípios que também,
estão relacionadas com a erradicação da extrema pobreza e ao exercício
da cidadania das mulheres no Brasil (BRASIL, SPM, Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres, 2005).
Nas três conferências a questão do aborto foi discutida.
Entretanto, foi na Primeira Conferência (2004), que a discussão teve
mais resultados, pois ali foi declarada a existência de um estado laico e
recomendada a revisão da criminalização do aborto. Nesta questão é bom
lembrar que movimento feminista católico no país (Católicas pelo Direito
de Decidir/CDD), tem a mesma posição em relação à importância da
laicidade do Estado brasileiro. A SPM designou uma Comissão Tripartite,
com representantes do Executivo, Legislativo e Sociedade Civil (inclusive
feministas), para analisar a questão do aborto. Esta Comissão elaborou um
projeto preliminar de descriminalização e legalização do aborto, que foi
enviado ao Congresso e que de não saiu. No nal de 2007, o governo
lançou um Programa Especial de Planejamento Familiar e foi apoiado por
um grupo de feministas. Este grupo aproveitou a ocasião para manifestar os
princípios feministas do estado laico; dos direitos reprodutivos; da questão
do aborto inseguro e do projeto de descriminalização.
Embora haja teoricamente a inclusão de grande parte das
reivindicações feministas nos propósitos destas Conferências, a efetivação de
compromissos é morosa e, em muitas questões, as intercorrências de forças
políticas conservadoras no âmbito governamental, atravancam ou revisam
a efetivação dos compromissos assumidos. Como exemplo de impasses da
relação movimento social e governo, o lançamento em 2011 do Programa
Rede Cegonha, cujos objetivos são voltados a um atendimento em parto e
puerpério de qualidade, aliás, obrigação do Estado, não foi bem recebido
pelas feministas. A utilização desta ave migratória como símbolo da
campanha pode parecer, a primeira vista, simpática para o grande público.
Entretanto, ela mobiliza símbolos ultrapassados e negativos da maternidade,
pois reforça a ideia de maternidade sem sexualidade, sem corpos, sem
líquidos, sem escolhas: os bebês chegam como presentes, literalmente,
vindos dos céus. Esta imagem separa a gestação, parto e nascimento das
outras etapas da vida sexual, reprodutiva e da saúde das mulheres, o que
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indica uma orientação política seccionada sobre a maternidade, portanto,
assistencialista e não preventiva. A crítica do movimento feminista sobre
este Programa esteve relacionada com a destruição do Programa de
Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) o qual, pelos meados
dos anos 1980 foi elaborado pelo Ministério da Saúde, com colaboração
de feministas, e propunha que os serviços à saúde das mulheres fossem
integrados em todos os períodos de suas vidas.
Cabe ressaltar que a questão de políticas sociais para a Maternidade
não poderiam deixar de assegurar a livre escolha das mulheres em relação
a ter ou não lhos/as, ao número de lho/as, ao modo de concebê-los,
ao momento e ao modo de tê-los (SCAVONE, 2004). Mesmo que esta
armação possa ser retrucada pela ideia que é o casal quem escolhe, não
para negarmos que a maternidade ainda passa durante nove meses no
corpo das mulheres, as quais em seguida assumem parte considerável dos
cuidados do nascituro, com prazer ou sofrimento, mas este é outro capítulo.
Entre estas políticas, o direito ao aborto seria um ponto importante, pois
cabe ressaltar que em pesquisa feita pelo Instituto Guttmacher, entre
1995-2008, o maior número de abortos ocorre em países com legislação
restritiva, como o Brasil. Ressalta-se que a América Latina é o continente
que tem o segundo maior índice de abortos inseguros por ano, com altos
riscos à vida das mulheres (GUTTMACHER, 2012).
a questão da violência de gêneRo
A questão da violência de gênero mereceu destaque especial
do movimento feminista brasileiro a partir dos meados dos anos 1970 e
suas campanhas tiveram ressonâncias e, provavelmente, efeitos políticos
institucionais mais concretos que as lutas relacionadas aos direitos
reprodutivos. Podemos dizer que a mobilização em torno do caso de
Ângela Diniz, assassinada, em 1976, por seu namorado, virou o símbolo
do início de uma mobilização nacional das mulheres contra a violência de
gênero (GROSSI, 1993; BLAY, 2008. O réu foi absolvido no primeiro
julgamento e as feministas lançaram uma mobilização nacional “Quem ama
não mata, que se espalhou rapidamente pela mídia. Levado ao segundo
julgamento, ele foi condenado a 15 anos de prisão e cumpriu a pena em
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dois anos com sursis. A absolvição, em primeira instância, foi baseada na
tese jurídica da “legítima defesa da honra”, que assegurava aos agressores
o direito de não serem traídos. Este tipo de recurso perdurou até março
de 2005 quando foi promulgada a lei que revogou o adultério como crime
contra o casamento, presente no Código Penal de 1940.
As experiências desenvolvidas pelos grupos feministas autônomos
SOS Violência foram uma das formas de buscar soluções para o problema
da violência de gênero nos anos 1980. O aprofundamento da questão em
Encontros nacionais ou regionais, como o de Valinhos (SP, 1980), também,
criavam condições de viabilizar saídas políticas para a questão. O problema
envolvia tanto a esfera policial, quando as mulheres registravam queixa
contra o agressor; como a esfera jurídica em casos de separação judicial. O
registro da queixa nas delegacias era penoso, dado o despreparo dos policiais
para a questão, o que resultava em atitudes constrangedoras para as mulheres.
Nos meados dos anos 80, portanto, foram criadas as Delegacias de
Defesa da Mulher (DDM) hoje, também chamadas de Delegacias Especiais
de Atendimento às Mulheres (DEAM) - a primeira nasceu em São Paulo
(1985) - e se tornaram parte da política de Estado contra a violência de
gênero
3
. A proposta foi criar um espaço estatal que desse uma cobertura
jurídica, policial e psicológica para o combate e prevenção à violência
contra mulheres”. Um espaço que, sem a carga do machismo policial,
possibilitasse às mulheres agredidas se expressarem, sem constrangimentos,
sobre a violência física, psicológica e/ou sexual vivida. Para tanto as DDM
foram inicialmente constituídas por policiais mulheres, delegadas, escrivãs,
investigadoras e por uma equipe de assistentes sociais e psicólogas; a idéia
foi dar atenção diferenciada integral às mulheres em situação de violência.
Assim, as mulheres poderiam registrar a queixa contra os agressores (em geral
maridos, companheiros); providenciar a separação conjugal no serviço social,
ou buscar superar os traumas das agressões sofridas e identicar os problemas
do relacionamento, seguidamente ligados ao alcoolismo do agressor.
Previa-se a necessidade de uma capacitação especial de gênero
para que a equipe de atendimento estivesse preparada para tratar a questão
como resultante de uma relação do casal ou familiar. O crescimento do
3
Neste texto só utilizaremos a sigla DDM.
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trabalho das delegacias no Brasil mostrou inúmeras falhas em seu sistema,
provenientes não do despreparo das equipes, mas, também, de uma
falta de padronização dos procedimentos, que elas são vinculadas aos
governos estaduais cada um com suas características e orçamentos. A
falta de treinamento das equipes parece ter sido um dos pontos fracos das
DDMs no país (IZUMINO, 2003; SAFFIOTI, 2004). Em 2010 havia no
país 421 DDM em funcionamento (BRASIL, SPM, 2011).
A SPM buscou, então, integrar os diversos serviços existentes, em
um plano nacional de “Enfrentamento à violência contra as mulheres”,
integrado no seu I Plano Nacional de Políticas para Mulheres, Neste plano
está inclusa a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha,
que “tipica a violência doméstica e familiar como um crime, podendo o
agressor ser preso em agrante. Segundo dados SPM, desde então, foram
abertos mais de 300 mil processos e promulgadas mais de 100 mil sentenças
e prisões em agrante. Os Centros de Referências de Atendimento às
Mulheres; as Casas-Abrigo às Mulheres alvo de violência; as Defensorias
Públicas de atendimento às Mulheres; os Juizados de Violência Doméstica
e Familiar contra as Mulheres. Experiência brasileira pioneira as DDM
expandiram-se no interior do país e se espalharam em outros países, hoje
elas existem na Argentina, Uruguai, Colômbia, Equador, Costa Rica, El
Salvador, Nicarágua, Espanha, Paquistão e Índia (BRASIL, SEPM, 2006).
Pesquisas em Centros de Referências das Mulheres mostraram como o
contato entre as mulheres nestes espaços com atendimento psicossocial,
atividades de prevenção, ocinas, palestras, orientações sobre direitos
contribuiu para que as mulheres violentadas saíssem de uma espécie de
torpor que as faz considerar a violência sofrida como ocorrência corriqueira
da vida em casal, pela tendência de internalizarem o habitus da dominação
masculina (BOURDIEU, 1998; CORTÊS, 2008).
Em 2009 foi criada pela SPM a Subsecretaria de Enfrentamento
à Violência contra as Mulheres (Decreto nº 7.043, de 22 de dezembro
2009), um órgão especial cuja competência é, entre outras: “[...] formular
políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres, que visem à
prevenção e ao combate à violência, bem como, à assistência e direitos às
mulheres em situação de violência [...]” (BRASIL, 2009). A promoção de
ações de prevenção, avaliação e acompanhamento das políticas voltadas ao
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
122
acombate da violência de gênero estão previstas na atuação deste órgão, que
indica um compromisso assumido pelo Estado de tratar como política
pública e social este grave e histórico problema das mulheres brasileiras.
Cabe em seguida à sociedade civil e aos grupos feministas acompanharem
atentamente a implentação destas políticas.
Reflexões finais
O percurso das ações feministas em prol da conquista dos direitos
políticos sociais e econômicos de gênero e sua relação com o incremento
de políticas públicas direcionadas às mulheres é marcado por realizações,
impasses e tensões. A criação da SPM em 2004, com status de Secretaria de
Estado foi um avanço importante para a ampliação e execução de políticas
de igualdade de gênero e, em certa medida, para dar maior visibilidade aos
preconceitos sexistas e à luta feminista no país e também, ao reconhecimento
crescente da importância da inclusão das mulheres para a construção de
uma sociedade Democrática plural.
Entretanto, não podemos esquecer que apesar das demandas
feministas locais, estas políticas são tributárias dos Planos Internacionais.
E de fato, as demandas das políticas sociais feministas e de gênero, mais
relacionadas aos direitos sociais, motivaram entre os experts de Políticas
Públicas Internacionais a desenvolver o que é chamado de sensibilidade de
gênero (JENSON, 2012). Esta autora ressalta muito bem, como as relações
entre o movimento de mulheres e o experts das politicas públicas continuam
tensas, que frequentemente, elas não são chamadas para dialogar. De fato,
ela faz uma importante crítica à efetivação do conceito de sensibilidade de
gênero ao mostrar que se ele reconhece o importante papel das mulheres
para o desenvolvimento, por outro lado, ele reforça o lugar tradicional das
mulheres na família, como es, e todas as responsabilidades daí advindas.
Portanto, tende a connar as mulheres novamente no espaço doméstico e
desvia-se dos princípios da equidade de gênero.
As críticas às políticas de benefícios sociais condicionados que
transferem para as mulheres toda a responsabilidade do acompanhamento
da vida familiar (crianças na escola e saúde das crianças), que são as
mulheres que mais cuidam destes aspectos. Veja-se o funcionamento da
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Bolsa Família no país, que funciona com este princípio político, até para
impedir que os homens queimem os benefícios nas bebidas. A questão das
relações de gênero colocadas é fundamental e sempre é bom se perguntar
como fazer uma reeducação da responsabilidade masculina na educação
das crianças e na família como um todo.Deste modo, ressalta-se que o
apoio à educação de gênero das novas gerações é importante, Por outro
lado, observa-se que o SPM efetivou apoios nanceiros importantes às
pesquisas acadêmicas de gênero, em parceria com o CNPq, e concursos
para todos os níveis do ensino, estimulando a abordagem feminista e de
gênero na produção cientíca e na educação das novas gerações.
Podemos dizer que os avanços das políticas públicas para as
mulheres se devam, não só, ao resgate da luta histórica do movimento
feminista brasileiro contemporâneo a partir do nal da década de 1970
e subsequentes, como também, à manutenção crescente de um diálogo
do governo com grupos deste movimento social. A SPM como Secretaria
de Estado confere importância política e um reconhecimento à questão
de gênero, entretanto, há por vezes, um esvaziamento de uma abordagem
feminista na implementação das políticas públicas, como os exemplos
da Rede Cegonha, da Bolsa Família, entre outros. Mesmo assim, apesar
dos impasses e diculdades na efetivação das políticas sociais de gênero é
possível armar que os avanços alcançados pela SPM poderão se congurar
no futuro como um feminismo de estado”, que poderá contribuir, em
longo prazo, para criar um novo “habitus, social e institucional, sobre
as questões feministas, de gênero e correlatas na sociedade brasileira
contemporânea. E que, sobretudo, tudo isto se deve ao resgate e respeito
à História e papel do movimento feminista brasileiro na construção de
uma sociedade democrática plural. Entretanto, sempre é bom lembrar
que todas as organizações estatais voltadas para as mulheres no país
passam por administrações conitantes de acordo com os governos em
vigência (progressistas, assistencialistas, conservadoras,) e, também, que o
feminismo ainda é tabu na sociedade brasileira. Portanto há, sem dúvida,
um longo e acidentado percurso a trilhar.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
124
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SegurAnçA públicA e SAúde: A prevenção como deSAFio
pArA A AtuAção Sobre AS violênciAS e AcidenteS
Bóris Ribeiro de Magalhães
iago Teixeira Sabatine
O modelo atual de segurança pública ainda ênfase às ações
de caráter reativo, enquanto que as políticas da área de saúde têm uma
longa tradição preventiva. A primeira procura combater o crime e a
violência com ações padronizadas em busca de alocar seus recursos com a
eciência do modelo burocrático. A segunda concebe suas práticas sempre
na perspectiva da racionalidade entre meios e ns a serem alcançados.
Neste contexto, foca-se sobre a necessidade de um trabalho
conjunto entre segurança e saúde, principalmente em termos de prevenção
das violências e dos acidentes, uma vez que deparamos com pouco diálogo
entre os dois setores.
No Brasil a ideia de segurança tradicionalmente foi ligada a uma
postura de combate e repressão aos inimigos do convívio social pacíco
e ordenado por meio do aparato disponível (forças policiais, sistema de
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
128
justiça criminal, entre outros), que ensejam medidas, sobretudo de caráter
punitivo ou conciliador.
A concepção centrada na repressão ao crime reverberou em
práticas pouco ecientes na garantia da segurança como direito, e impôs
limites ao campo das políticas desta área, distanciadas das possibilidades
de interlocução com outras políticas públicas e atores sociais, que podem
convergir para a construção da convivência pacíca.
De modo geral, o modelo do setor de segurança pública possui as
seguintes características: dissociação entre repressão ao crime e prevenção
como estratégias para garantia de direitos; reduzidos canais de dialogo
entre as instituições policiais e da justiça criminal com a sociedade civil
e outras instituições do poderblico; investimento pouco concentrado
na qualicação dos prossionais da segurança, bem como nas suas
condições de trabalho e saúde; valorização da força em detrimento de
estratégias de garantia de direitos e de redução da letalidade. Por exemplo,
as ões policiais repressivas que violam direitos contra populações mais
vulneráveis (SOUZA, 2009).
Entender a segurança de modo ampliado auxilia na compreensão
de suas complexidades e enraizamentos culturais e a necessidade de ações
intersetoriais articuladas, entre o poder público e a sociedade civil. A
reconstrução de territórios urbanos marcados pelas fragilidades e exclusões
de direitos básicos e pela violência, neste sentido, passa ao lado da criação
e ampliação de equipamentos públicos de cultura, lazer, esporte, saúde
e educação, investimento em saneamento e iluminação, regularização de
territórios ilegalmente ocupados, entre outros (SOUZA, 2009).
Enxergar a valorização do tecido relacional e dos equipamentos
públicos de saúde, cultura, lazer, esporte e educacionais são fundamentais
para o fortalecimento dos laços entre as pessoas, como promoção de novas
congurações da relação com a cidade, bem como no enfrentamento das
vulnerabilidades vivenciadas por parcelas da sociedade como a juventude.
A segurança pública mostra-se pouca afeita a colaboração da
sociedade civil e outros setores. Especialmente em comparação com o setor
de saúde pública, que incorporou, em suas estratégias, mecanismos como
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conselhos, conferências
1
e estudos que mostram caminhos no sentido de
formulação de políticas e diretrizes mais próximas da sociedade.
O ponto de conexão entre as instituições de segurança e de saúde
diz respeito à vitimização e aos danos causados pelas violências e acidentes.
A violência torna-se um problema para o setor de saúde em primeiro lugar
porque compromete a qualidade de vida e cria agravos à saúde (MINAYO,
1997).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) dene saúde como o
“[...] estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente
a ausência de enfermidade ou invalidez.A Constituição brasileira dene
saúde como direito social (art. 6º) e como responsabilidade, opção e dever da
sociedade e do Estado garantir as políticas sociais e econômicas que visem
à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação
(art. 196). Esta denição está em agrante relação com a segurança pública.
Cabe ressaltar que o conceito ampliado de segurança diz respeito à garantia
de direitos, liberdade e a incolumidade das pessoas (art. 144).
No setor de saúde as violências são inseridas nos dados de
noticação de causas externas”, seguindo a Classicação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde Décima
Revisão (CID-10), que congrega eventos como acidentes, suicídio,
homicídios, lesões que podem ser intencionais ou acidentais
2
.
As causas externas são responsáveis por 12,5% das mortes entre
brasileiros no ano de 2009 (MASCARENHAS et al., 2011b). De 1.103.088
mortes em 2009, 138.697 foram por causas externas. A distribuição dos
1
No Brasil somente em 2009 foi realizada uma conferência de caráter nacional e propositiva para o setor de
segurança pública com a sociedade, conhecida como I Conferência Nacional de Segurança Pública (CONSEG),
de outro lado, a área de saúde vem realizando conferencias nacionais desde 1941, com a participação de
prossionais, gestores e sociedade civil organizada.
2
Os códigos do capítulo XX da CID-10 distingue os seguintes agrupamentos entre as causas externas (V01-Y98).
Acidentes (V01-X59): - Acidentes de transporte terrestre ATT (V01-V89): pedestres (V01-V09), motociclistas
(V20-V39) e ocupantes de veículos (V40-V79) – Quedas (W00-W19): no mesmo nível (W00-W03, W18), de
um nível a outro (W04-W17), não especicadas (W19) – Demais acidentes (V90-V99, W20-X59). Violências
(X60-Y09, Y35-Y36): - Homicídios agressões, intervenções legais e operações de guerra. Em intervenções
legais (Y35) inclui-se violências inigidas pela polícia. (X85-Y09, Y35-Y36): incluem agressões por arma de
fogo (X93-X95), agressões por instrumento perfurocortante (X99) e outras violências. - Lesões autoprovocadas
intencionalmente – suicídios – (X60-X84). Eventos cuja intenção é indeterminada (Y10-Y34). Demais causas
externas (Y40-Y98).
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130
casos de mortes deste grupo revelam discrepâncias regionais como segunda
causa nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, a terceira causa na
região Sul e a quarta na região Sudeste. Segundo a distribuição por grupos
etários, foi a terceira causa entre crianças de zero a 9 anos, primeira causa
entre adultos jovens de 10 a 39 anos; terceira causa na faixa etária de 40 a
59 anos e sexta entre idosos com 60 anos ou mais.
Para a saúde as causas externas incluem diferenças entre acidentes
e violência, que podemos observar nas diretrizes e conceitos da Política
Nacional de Redução da Morbi-mortalidade por Acidentes e Violências
(Portaria MS/GM n.737 de 16/5/2001), um marco no que diz respeito a
inserir as violências como problemas de saúde. O texto dene a violência
como ações que produzem danos físicos, emocionais e espirituais a si
próprio ou aos outros, e nela está implícita a noção do uso da força e
intencionalidade que leva a cabo a responsabilização dos sujeitos individuais
e coletivos diante das ações violentas, e traz igualmente uma historicidade
para a compreensão e superação da mesma (MINAYO, 2006, p. 70).
De outro lado, os acidentes são caracterizados como eventos
que causam agravos de modo não intencional, ao mesmo tempo em que
podem ser evitáveis. Na prática a operacionalização do conceito deixa
sempre uma ambiguidade e imprecisão quando, por exemplo, questiona-
se a responsabilidade das famílias que deixam produtos tóxicos ao alcance
das crianças, dos homens embriagados que se acidentam no trânsito, e
dos danos provocados no trabalho como a negligência do trabalhador
e a do empregador, das quedas, por negligencias e devido aos espaços
arquitetônicos inadequados a uma sociedade que envelhece ou que recebe
maus tratos de seus familiares (MINAYO, 2006, p. 70).
As violências têm custos materiais, econômicos, emocionais e
sociais complexos, ligadas a diferentes fatores, da sociedade atravessada por
hierarquias e conitos.
No que diz respeito especialmente ao homicídio, cujas taxas
são elevadas no país, destacam-se os impactos como sofrimentos, medos
e revoltas que ensejam várias conseqüências sociais. Num sentido mais
restrito, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) calculou
que a violência custou ao Brasil cerca de US$ 30 bilhões em 2004, assim
131
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onerou-se o setor público, e o Sistema Único de Saúde, com internações
hospitalares por agressões, muitas das quais relacionadas à tentativa de
homicídio.
A violência e as lesões (acidentais ou não) representam o 3º lugar
nas causas de mortalidades no Brasil, e ocupa o lugar das causas de
internações hospitalares, além de alta prevalência de violência doméstica
que demanda cuidados no sistema de saúde pública.
Homens jovens, negros, pobres são os principais agressores e
consequentemente as grandes vítimas da violência. De outro lado, as mulheres
e crianças negras e pobres ilustram as estatísticas como as principais vítimas
dessa violência, incluindo a doméstica (REICHENHEIM et al., 2011).
Há diversos caminhos para a compreensão dos fatores que levam
a violência. Nas comunidades excluídas de benefícios e recursos sociais
viceja o tráco de drogas e armas, a violência policial, a incivilidade social
que atravessa o cotidiano, e que são corroboradas por políticas de segurança
inecazes, marcadas pela negação de direitos e por procedimentos penais.
O uso de drogas lícitas ou ilícitas são fatores presentes em situações
violentas de vitimização, e de produção de agravo à saúde. A disseminação
do uso de drogas e seus efeitos tanto individuais e sociais devem constituir
um incentivo ao dialogo entre as áreas da saúde, educação, segurança e
sociedade de maneira ampla.
É certo que as instituições policiais, sobretudo em relação
às drogas ilícitas vêm pautando suas ações na inibição do usuário e nas
desarticulações de redes de tráco, com ênfase na punição dos infratores.
A política em torno das drogas no Brasil apresenta outros
caminhos estratégicos de enfrentamento e de responsabilização do Estado,
suscitando a ênfase na prevenção e em ações de acolhimento ambulatorial
para o tratamento de dependentes.
Por exemplo, por meio dos dispositivos de atenção à saúde
mental, revistos em função da reforma psiquiátrica, existem experiências
diversas de implantação de Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS)
com ênfase no tratamento de dependentes de álcool, cocaína, crack e
outras drogas, oferecendo acompanhamento clínico e ambulatorial diário.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
132
A estes investimentos somam-se outras necessidades como a
transformação das condições de vida dos usuários de drogas, como o acesso
ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços
familiares e comunitários (REICHENHEIM et al., 2011).
Portanto, aspectos relativos à garantia da saúde é parte integrante
das questões que afetam a gestão da segurança. A pressão das violências e
suas dinâmicas nos setores de saúde pública e as respostas da área ilustram
um cenário que contradiz as expectativas para uma sociedade mais segura.
As causas externas relacionadas a óbitos, as internações e as
noticações nos serviços de saúde destacam um perl dos principais
indicadores que envolvem as violências, com a contabilização e vigilância, e
acena para as respostas institucionais para minimizar e enfrentar a situação
levadas a cabo pelo setor.
No ano de 2009 a taxa de mortes por violências chegou a
32,1 óbitos por 100 mil habitantes, ao mesmo tempo em que a taxa de
acidentes apresentou incidência com 32,6 óbitos por 100 mil habitantes
(MASCARENHAS et al., 2011b). As ocorrências relacionadas ao trânsito,
que representam grande parte das pressões das causas externas com agravos
sobre a saúde dos indivíduos podem ser ilustrativas para pensar novas
maneiras de dissolver as fronteiras estanques das agencias públicas voltadas
para o enfrentamento do fenômeno.
a violência no tRânsito e as Políticas Públicas
Os acidentes de transporte terrestre (ATT) respondem a 26,5%
das mortes por causas externas no Brasil no ano de 2009 contabilizados no
Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), com a taxa de 19,6 óbitos
por 100 mil habitantes. No período de 2000 a 2009 ocorreu o incremento
de 14,9% neste tipo de óbito, sobretudo em relação aos acidentes com
motocicletas que variam em 224,2%, para a taxa atual de 4,9 óbitos por
100 mil habitantes (MASCARENHAS et al., 2011a).
Os óbitos de ocupantes de veículos sofrem o acréscimo de 36,1%,
e decréscimo em mortes envolvendo pedestres com variação de -9,9%.
Observando a partir das faixas etárias, 45,6% dos casos de óbitos por ATT
133
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ocorreram com pessoas entre 20 e 39 anos, o que corresponde à taxa de
26,7 óbitos por 100 mil habitantes deste grupo. Nesta faixa etária, entre
os homens, a taxa de óbitos chega a 46,4, enquanto entre as mulheres 7,3
óbitos por 100 mil habitantes (MASCARENHAS et al., 2011a).
O vertiginoso impacto de acidentes de trânsito nos índices de
mortalidade relaciona-se a fatores como a imprudência e incivilidades, o
consumo de álcool e drogas, a falta de investimentos nas malhas viárias, o
aumento da frota de motocicletas e outros veículos, que compõem o triste
quadro da letalidade e das morbidades que sobrecarregam o sistema de
saúde e corroboram com o aumento dos dados estatísticos vinculados pelas
agencias que contabilizam as vítimas.
Desde 1966, com o Código Nacional de Transito (CNT), se
produz leis que visam regulamentar os transportes terrestres e reduzir as
incidências de agravos à saúde. Ao longo dos anos o código passou por
reformas e acréscimos como a introdução de medidas como o seguro
obrigatório; o uso de cinto de segurança, bem como, a efetivação
dos estados e municípios em legislarem dentro de suas fronteiras as
especicidades de seus trânsitos; a periodicidade dos testes psicológicos
obrigatórios aos motoristas prossionais e os limites de velocidade para ns
de violações e penalidades; a venda de bebidas nas estradas e o limite zero
para o teor de álcool no sangue dos condutores, assim como, mecanismos
de divulgação de mensagens para conscientização da segurança no trânsito
e o estabelecimento de uso obrigatório de dispositivos de restrição
complementar (airbag) e regras para o transporte de crianças menores de
10 anos de idade.
As polícias têm se dedicado a aplicar os regulamentos legais e
medidas punitivas aos infratores das leis. Não obstante, a articulação entre os
operadores da segurança blica e as diversas áreas de atuações sobre os ATT
ainda está por se fazer. Medidas discricionárias como a scalização da “Lei
Seca” esbarram com a falta aparelhos etilômetros para regulação de infrações
com o uso de álcool, tanto quanto a articulação entre a ênfase nas operações
de trânsito realizadas pelas polícias, punição dos infratores, o atendimento a
saúde das vítimas e a prevenção (REICHENHEIM et al., 2011).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
134
Com efeito, a interação entre álcool e trânsito e o alto índice
de jovens vitimados, aliada ao aumento da frota de veículos automotivos
3
impulsionam os índices de letalidade e morbidades no trânsito. As
motocicletas chamam atenção como um transporte mais barato e acessível
economicamente, utilizado como alternativa nos centros urbanos inclusive
para o trabalho de transporte de pessoas e mercadorias, e contribuem para
o crescimento dos danos provocados por ATT.
Estes constituem a segunda causa de internações hospitalares por
causas externas contabilizadas no Sistema de Informações Hospitalares do
SUS (SIH/SUS), e correspondem a 15,7% do total de hospitalizações.
ATT com motociclistas respondem a taxa de 3,7 internações por 10
mil habitantes em 2010. Os homens são mais afetados pelo ATT com a
hospitalização de 12,2 por 10 mil habitantes, sobretudo devido ao acidente
com motocicletas envolvendo 6,2 internações por 10 mil habitantes. As
mulheres apresentam taxas também em crescimento, e respondem a 7,6
internações por 10 mil habitantes envolvendo ATT, e a taxa de 3,7 com
motocicletas (MASCARENHAS et al., 2011a).
Os estudos vêm apontando como o desrespeito às regras de
trânsito, a incivilidade e o uso de bebidas alcoólicas são preponderantes
como fator de risco que levam a este cenário violento no Brasil. Mesmo
com medidas como a Lei Seca (11.705), de 2008, que reduziu para zero o
teor de álcool permitido no sangue de motoristas, fomentando impactos
positivos para a redução de acidentes (MELCOP; CHAGAS; AGRIPINO
FILHO, 2011).
A pesquisa O consumo de álcool e os acidentes de trânsito (MELCOP;
CHAGAS; AGRIPINO FILHO, 2011) identicou o impacto do uso
de álcool em acidentados em seis capitais brasileiras (Recife, Manaus,
Fortaleza, Brasília, São Paulo e Curitiba). Para o conjunto das cidades a
colisão (34,1%) representa o principal evento do acidente, seguidos de
queda (21,7%) e atropelamento (20,5%).
3
O Brasil registra uma frota motorizada de aproximadamente 71 milhões de veículos, sendo que em janeiro
de 2012 conforme dados do DENATRAM Departamento Nacional de Trânsito Ministério das Cidades,
cerca de 40 milhões são automóveis, e 15 milhões de motocicletas. Com o aumento do poder aquisitivo das
classes sociais menos favorecidas se observa o crescimento da frota de motocicletas que vitimam, portanto, os
mais pobres.
135
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O estudo observou a prevalência de teor de álcool que ultrapassa
0,2g/l de sangue entre motoristas acidentados, que por sua vez, respondem
a 27%. Prevalecem os homens adultos com a combinação álcool e
direção, comportamento observado em menor proporção entre jovens
acidentados do que em mais velhos entre 50 e 59 anos, que responde a
32,6% deste grupo e entre 40 e 49 anos, 32,4%. O álcool também está
associado à imprudência de pedestres, ciclistas e motociclistas, os últimos
que constituem a maior proporção das vítimas 40,1% observadas nos
atendimentos de ATT nos hospitais (MELCOP; CHAGAS; AGRIPINO
FILHO, 2011).
Frente a crescente demanda, causada pela violência no trânsito
nos sistemas de atendimento hospitalar, o Ministério da Saúde, ainda
que de maneira incipiente, tem patrocinado desde 2001 (BRASIL, 2005)
projetos educativos em direitos no trânsito, especialmente com a ampliação
do atendimento de emergência às vítimas.
No ano de 2011 o Ministério da Saúde e Ministério das Cidades
lançaram o Pacto Nacional pela Redução dos Acidentes no Trânsito Pacto
pela Vida, com o objetivo de reduzir a letalidade e lesões em acidentes de
transporte pela próxima década. Com isso, o país passa a aderir ao Plano de
Ação da Década de Segurança no Trânsito 2011-2020 lançado pela OMS
em 2010.
O Pacto estabelece ações entre as quais se destacam a integração
entre as bases de dados dos setores de Segurança Pública, Saúde, e
Transportes, para monitoramento de indicadores e produção de análises
para identicação de ocorrências das lesões e mortes no trânsito; prevenção
a partir de projetos conjuntos com as unidades da federação e municípios
para ações educativas, implantação de rede de atenção às urgências com
ênfase para vítimas de motocicletas; advocacy para novas legislações e
políticas públicas, desenvolvimento de estudos e qualicação de recursos
humanos para a vigilância e prevenção de ATT.
O desenvolvimento de ações concretas para a prevenção de ATT
ainda que limitados começam a surgir com projetos no setor de saúde
com recursos nanceiros previstos do Fundo Nacional de Saúde para os 26
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
136
estados e Distrito Federal para desenvolvimento de ações como o Projeto
Vida no Trânsito lançado em 2010 e para execução até 2014.
Apesar dos esforços os cenários se apresentam críticos e as ações
de caráter pouco abrangente frente às associações de risco que criam as
condições para o elevado impacto do ATT sobre a vida. Resvalam em
diversos fatores que contribuem para a expansão da incivilidade no trânsito,
com o equipamento viário urbano e rodoviário sucateado. Um exemplo
dos problemas da área são os prossionais que trabalham no trânsito
sejam caminhoneiros ou motoboys que possuem jornadas desgastantes,
mal remuneradas, pressionadas pela lógica da velocidade induzida pelo
mercado em expansão de circulação de bens e pessoas.
A falta de transparências das políticas e do emprego de recursos
nanceiros deixa um fosso entre as expectativas normativas e diretrizes das
políticas e sua real efetividade. Assim como ganha destaque a necessidade
de investimentos na segurança das malhas viárias urbanas e rodoviárias, e
dos veículos como fatores estratégicos para a mudança do cenário violento
do trânsito no Brasil, e, sobretudo das práticas educativas e preventivas
voltadas para o respeito aos direitos.
Assim como os acidentes, as morbidades associadas à violência
doméstica e interpessoais representam indicadores dos problemas de
segurança para a saúde.
as violências domésticas, sexuais e inteRPessoais
A noticação de violências no Sistema Único de Saúde se dá por
meio da Ficha de Noticação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual
e/ou outras Violências Interpessoais, documento padronizado relativo a
cada paciente quando suspeita da ocorrência de agravo decorrente de
violência. Com a criação do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes
(VIVA) no Ministério da Saúde, desde o ano de 2006, vem se permitindo
coletar dados e gerar informações sobre violências e acidentes para subsidiar
políticas em saúde pública direcionadas a esses agravos (BRASIL, 2010).
O VIVA possui dois componentes: 1- VIVA Connuo, com a
vigincia connua nos serviços de sde em relão a vioncia doméstica,
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sexual, e/ou outras vioncias interpessoais e autoprovocadas. 2- VIVA
Inqrito, baseado em levantamento sobre vioncias e acidentes atendidos
em serviços de urncia e emerncia em munipios selecionados, o último
inquérito realizado no ano de 2009 abrangeu 136 serviços situados no Distrito
Federal, capitais de Estado e municípios selecionados (BRASIL, 2010).
A noticação desde o ano de 2006 é contínua e compulsória nas
situações de violências envolvendo crianças, adolescentes, mulheres e idosos
conforme determinado pelas Leis nº 8.069, de 1990 (Estatuto da Criança
e Adolescente), 10.741, de 2003 (Estatuto do Idoso), e 10.778, de
2003 (Noticação de Violência contra Mulher). Com a integração da
noticação ao Sistema de Informação de Agravos de Noticação (Sinan)
no ano de 2009, assumiu caráter universal nos serviços do SUS.
Os dados disponíveis no Sinan, para o primeiro ano de noticação
de violência na rede de saúde, apontam uma cifra de 36.604 casos com
uma tendência crescente, observadas em dados parciais divulgados pelo
Ministério da Saúde para os anos seguintes, com uma projeção para o
primeiro biênio do mecanismo compulsório em 108.393 vítimas e o ano
de 2011 com 98.115 casos (MASCARENHAS et al., 2011a).
Tomando como base o ano 2009 observamos que as mulheres
representam aproximadamente 66% dos casos noticados. Tendência que
se distribui com os dados do ano seguinte (2009-2010), com a faixa etária
de 20 a 59 anos com 53,8% dos casos deste grupo, seguidas das faixas
etárias de 10 a 19 anos e de zero a 9 anos. Entre os homens maior
incidência na faixa etária de 20 a 59 anos (43%), seguidos de 10 a 19 anos
e de 0 a 9 anos (MASCARENHAS et al., 2011a).
A violência física chama atenção com predomínio de agressão
física (64,7%) no biênio 2009-2010. A violência física atinge especialmente
as mulheres e os homens como primeira causa do atendimento. Os homens
respondem a 70,1% dos casos como vítimas de violência física seguida da
negligência que afeta 14,6%. Entre as mulheres as violências psicológicas
e morais ocupam a segunda posição no grupo e também em termos
globais (24,4% das noticações), seguida da violência sexual (18,7% das
noticações) (MASCARENHAS et al., 2011a).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
138
Os homens apresentam maior número quanto ao dano à saúde
provocado por meio de agressão por força física que permeia as relações
de poder que se observam nas performances viris, e leva o grupo a ser
mais vitimado por objetos perfurocortantes, armas de fogo, que também
se ligam fortemente ao ethos guerreiro e a produção de masculinidades.
As mulheres por outro lado além de serem vitimadas com o uso de força
física acrescenta-se a ameaça e os danos psicológicos, as humilhações e
subalternização frente aos companheiros e familiares.
Os dados acerca da agressão apontam a predominância de
agressores homens tanto em relação às mulheres quanto em relação aos
próprios homens, entre os últimos geralmente na condição de amigos
ou conhecidos da vítima, e as mães. Entre as mulheres os agressores são
homens do convívio familiar, especialmente cônjuges, amigos, e também
fora do círculo de conhecimento da vítima.
Os dados do Sinan sobre violências constituem uma oportunidade
para conhecermos o cenário impactante do fenômeno no setor de saúde,
bem como, as características das vítimas e grupos, permitindo estabelecer
políticas públicas focadas sobre a situação.
Expandiram-se consideravelmente as informações sobre
violências que não geraram nem óbito e internação no SUS. Articula-se a
coleta de dados a garantia de direitos, uma vez que pressupõe nesta prática
a integração com a rede de proteção social e serviços de referencias voltados
ao atendimento de vítimas de violências presentes nas localidades, como
Conselhos Tutelares, Ministério Público, Defensorias, Varas e Juizados e
Delegacias. O desao, portanto é que se garantam intervenções abrangentes
entre os setores para promover a qualidade de vida e a cidadania de grupos
fragilizados.
Nos anos de 2009-2010 os dados do Sinan contabilizaram o
encaminhamento das vítimas do sistema de saúde para instituições como o
Conselho Tutelar da Criança e dos Adolescentes, para meninos e meninas
vitimadas, seguidos das delegacias de polícia. Bem como, 20,5% das
mulheres são atendidas pelas Delegacias Especializadas da Mulher, e de
outras delegacias (16,6%). 2% dos indivíduos atendidos faleceram devido
139
D S P:
 ,  
à violência, entre aqueles cujo destino foi o hospital, a maioria passou por
altas (MASCARENHAS et al., 2011a).
Os cenários de vitimização encerrados no cotidiano como
negócios interpessoais e familiares e a capacidade dos recursos humanos
para o uso do instrumento de noticação constituem obstáculos e desaos
para a vigilância e controle.
A padronização do uso da cha de noticação não é suciente
para a melhoria do registro dos dados, e os registros realizados nem sempre
convergem como instrumento de inclusão dos indivíduos nas redes externas
de atendimento e proteção as vítimas. Assim são inegáveis os limites
técnicos do setor, na incorporação de varias diretrizes, que por vezes na
prática são marcadas por esquivas e olhares que se fecham e negligenciam
as violências e seus impactos.
Atendimentos especializados, centros de referencias, casas abrigo,
defensorias, juizados, delegacias especializadas, e também delegacias comuns,
serviços de saúde, de assistência social, para estas instituições colocam-
se desaos para que os serviços funcionem de maneira estrategicamente
articulada a m de intervir numa realidade complexa de violações.
Os diferentes casos observados indicam como os acidentes
de trânsito, as violências domésticas, o uso de drogas, entre outros, a
pertinência de se pensar em políticas públicas articuladas, em torno da
segurança pública e da saúde, envolvendo a prevenção como componente
estratégico para a garantia de direitos.
Embora o país tenha dado passos importantes para o
reconhecimento de direitos de cidadania, ainda são pouco debatidos e
explorados como questões relacionadas à segurança e a saúde, não apenas
em relação ao combate dos crimes e das violências, mas também para a
atenção aos danos provocados nos grupos sociais especícos.
Ainda muita falta de informação e muitas concepções
valorativas que depreciam, no interior das políticas públicas, estes mesmos
grupos. Portanto, é necessário focar estas questões para que as políticas
incorporem uma versão moderna e intersetorial.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
140
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13-31.
141
Aprendendo AS tAreFAS do Feminino: oS primeiroS
preSídioS pArA mulhereS no brASil dAS
décAdAS de 1930 e 1940
1
Bruna Angotti
intRodução
A história do aprisionamento feminino no Brasil não é recente,
mas o mesmo não pode ser dito acerca dos primeiros estabelecimentos
prisionais voltados para as mulheres no país, que datam das décadas de 30
e 40 do século XX. Até então, as mulheres eram presas em estabelecimentos
com população carcerária majoritariamente masculina, nos quais ocupavam
celas conjuntas ou separadas por sexo. Em relatórios sobre o sistema
penitenciário brasileiro, datados do século XIX e início do XX, é possível
encontrar relatos de abusos sexuais, doenças e desamparo vividos pelas
presidiárias. A pequena quantidade de mulheres condenadas e processadas
1
O presente artigo apresenta, de maneira sucinta, temas abordados na minha dissertação de mestrado intitulada
Entre as Leis da Ciência, do Estado e de Deus. O surgimento dos presídios femininos no Brasil, orientada pela Profa.
Dra. Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer e defendida no Departamento de Antropologia Social da Universidade de
São Paulo em 19/12/11.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
142
retardava soluções propostas por penitenciaristas
2
e por grupos, como o
Patronato das Presas, que denunciavam e reetiam sobre as condições do
aprisionamento feminino.
Entre os anos de 1923 e 1924, José Gabriel de Lemos Britto, ativo
penitenciarista brasileiro e futuro presidente do Conselho Penitenciário do
Distrito Federal
3
, viajou pelo Brasil com o objetivo de analisar e registrar
a situação carcerária nos principais estados. O autor, que retratou a sua
experiência no livro denominado Os Systemas Penitenciarios do Brasil,
publicado pela Imprensa Nacional em 1924, abordou na sua pesquisa temas
como capacidade prisional, situação dos estabelecimentos e quantidade de
presos por estado
4
. Apesar de pouco aparecerem, as mulheres presas estão
presentes no relato, que mostra sua pequena quantidade, em torno de 5%
da população carcerária total do país (LEMOS BRITTO, 1924).
Cândido Mendes de Almeida Filho, primeiro presidente do
Conselho Penitenciário do Distrito Federal publicou, em 1928, relatório
denominado As mulheres criminosas no centro mais populoso do Brasil no qual
explicita dados sobre mulheres encarceradas entre julho de 1926 e outubro
de 1927 nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Espírito
Santo e no Distrito Federal. Tal relatório, fruto de uma preocupação cada
vez maior do Conselho Penitenciário com o aprisionamento feminino no
país, retrata a precariedade do sistema prisional nacional, bem como reforça
a pequena quantidade de mulheres presas (ALMEIDA, 1928, p. 6293).
Tempos depois, em considerações escritas em 1941, Lemos Britto
relata um levantamento estatístico sobre o aprisionamento de mulheres
no Brasil feito pelo Conselho Penitenciário do Distrito Federal, com a
2
Os penitenciaristas eram homens empenhados em pensar o cárcere, seu papel e funções na sociedade e as
soluções para o seu melhor funcionamento. A modernização da instituição prisional deveria, necessariamente,
passar pelas reexões, sugestões e projetos desses homens especializados na “ciência penitenciária”. São exemplos
de penitenciaristas brasileiros que atuaram na criação dos estabelecimentos prisionais femininos no país, o
tenente Victório Caneppa e os juristas Roberto Lyra, Cândido Mendes de Almeida Filho e José Gabriel de
Lemos Britto.
3
O decreto nº 16. 665, de 06 de novembro de 1924 criou os Conselhos Penitenciários, que deveriam: intervir
(vericar a conveniência da concessão de Livramento Condicional; tratar de liberdade vigiada em caso de
menores delinquentes); manifestar-se sobre graça, indulto e comutação de pena, bem como opinar e atuar em
temas referentes às reformas prisionais. (ARQUIVOS PENITENCIÁRIOS DO BRASIL, 1940, p. 264).
4
Em geral as estatísticas reunidas em seu trabalho são das penitenciárias das capitais dos estados brasileiros, dada
a diculdade de percorrer todas as cidades com cadeias ou estabelecimentos prisionais de algum tipo. Mesmo
quando o autor cita casas de detenção e cadeias em cidades interioranas em geral não apresenta dados numéricos.
143
D S P:
 ,  
ajuda dos Conselhos Penitenciários Estaduais, traçando um panorama
aproximado da quantidade de mulheres presas à época. Pôde-se apontar,
dentre sentenciadas e processadas, cerca de 400 mulheres aprisionadas no
país em 1941 (ARQUIVOS PENITENCIÁRIOS DO BRASIL, 1942b,
p. 27). Já, em palestra denominada As mulheres criminosas e seu tratamento
penitenciário, proferida por Lemos Britto em 1943, o autor aponta que,
em média, a porcentagem de mulheres condenadas no Brasil era de 6% da
população masculina encarcerada (LEMOS BRITTO, 1943, p. 9).
Os dados apresentados nos relatórios e relatos acima apontados
permitem mapear em números o aprisionamento feminino no Brasil
desde o início do século XX até o momento de criação dos primeiros
presídios femininos no país. Como mencionado, o fato das mulheres
encarceradas representarem minoria absoluta do sistema carcerário
justicou o adiamento de soluções para a situação degradante na qual se
encontravam. Apesar dos esforços do Conselho Penitenciário do Distrito
Federal – em especial de seus membros Cândido Mendes e Lemos Britto,
entusiastas e militantes da criação dos presídios femininos bem como das
pressões do Patronato das Presascriado por senhoras da sociedade carioca
e Irmãs da Congregação de Nossa Senhora do Bom Pastor d´Angers
5
no
ano de 1921, com o objetivo principal conseguir solução condigna
para o aprisionamento de mulheres –, foi apenas em 1937 que surgiu no
Brasil a primeira prisão feminina o Instituto Feminino de Readaptação
Social, na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Já no início da
década de 1940 surgiram o Presídio de Mulheres de São Paulo, de 1941, e a
Penitenciária Feminina do Distrito Federal, em Bangu, em 1942 – a única,
dentre as três, especialmente construída para tal nalidade.
Além dos estabelecimentos prisionais femininos de Porto
Alegre, São Paulo e do Rio de Janeiro, menção a outros estabelecimentos
voltados para as mulheres, que deveriam funcionar em breve, aparecem
nos documentos pesquisados. O decreto 11.214, de 06 de fevereiro
de 1939, que organizava o serviço penitenciário do Estado da Bahia,
estipulava a criação de reformatório para mulheres criminosas, que deveria
funcionar nos dois primeiros pavilhões de ocinas da própria penitenciária
(ARQUIVOS PENITENCIÁRIOS DO BRASIL, 1942a, p. 309-310). A
5
Congregação originária da França, onde recebe o nome de Notre-Dame de Charité du Bon Pasteur D’Angers.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
144
principal exigência era que houvesse a certeza de completa separação entre
o a ala masculina e a feminina. Em artigo de 1940, Roberto Lyra cita
inúmeras instituições prisionais em construção no país, dentre elas realça a
Penitenciária para mulheres de Santa Catarina. Já em 1941 foi inaugurado
um pavilhão especicamente para mulheres na penitenciária de Recife.
***
Traçado um breve panorama geral do aprisionamento feminino
no período anterior à criação das primeiras prisões femininas, aponto alguns
aspectos do cenário político e legislativo que permitiram a construção dos
primeiros estabelecimentos prisionais voltados para mulheres no Brasil,
bem como ressalto as principais características dessas instituições. A
quem estavam voltadas, como foram estruturadas, quem as administrava,
quais as principais razões alegadas para a sua criação, bem como quais
os objetivos declarados para essas instituições são temas ora abordados.
Retomando elementos históricos, teorias criminológicas, propostas e
práticas de encarceramento, e elementos que evidenciam os lugares sociais
ocupados por homens e mulheres no período, recomponho elementos
relevantes que circundam essas instituições. Para tanto foram utilizados
documentos legais, como decretos, anteprojetos de leis, regulamentos e
leis vigentes; artigos e relatórios publicados em periódicos temáticos, em
especial nos Arquivos Penitenciários do Brasil (APB) e na revista A Estrela
(AE); obras de autores que tratavam do tema; discursos proferidos por
atores envolvidos na elaboração das instituições em questão; anuários do
Serviço de Estatística Policial do Estado de São Paulo; bem como autores
recentes que, em alguma medida, se debruçaram sobre o tema
6
.
cenáRio JuRídico e Político
Para compreender a criação dos primeiros presídios femininos
no Brasil é fundamental destacar alguns elementos do cenário jurídico e
penitenciário do período. A década de 1940 e a primeira metade da década de
1950 foram períodos de grande ebulição do debate e da prática penitenciária
no país, e a criação dos estabelecimentos prisionais femininos fez parte desse
6
Estes documentos foram utilizados para a pesquisa e posterior escrita da minha já mencionada dissertação de
mestrado, sendo o presente artigo resultado de pontos principais levantados no trabalho.
145
D S P:
 ,  
contexto. Foram anos de intensa atividade dos Conselhos Penitenciários,
tanto dos estados quanto do Distrito Federal; de institucionalização do
país; da realização de construções e reformas penitenciárias em alguns
estados, pautadas em um modelo de cárcere ressocializador voltado para a
educação moral dos aprisionados; de elaboração e propagação de grandes
críticas a modelos penais ultrapassados, que imputavam sofrimento físico e
moral aos presos; de diálogo, por meio de congressos especializados e visitas
mútuas, entre penitenciaristas brasileiros e estrangeiros; além de tempos de
intensa produção legislativa no âmbito penal, haja vista a promulgação do
Código Penal em 1940 e do Código de Processo Penal em 1941.
O Código Penal de 1940 (CP) previa, dentre outros, a
individualização da pena, tratando-a como “[...] defesa social humana,
mas eciente e justaposta, através de sanções reparadoras, porem,
intimidantes.(APB, 1940, p. 32). A nova legislação atentou para questões
prisionais e, em certa medida, acelerou o processo de reformas prisionais
almejado pelo Conselho Penitenciário (APB, 1940, p. 29). Para Roberto
Lyra, membro da comissão revisora do CP, uma legislação que forçasse
a reforma penitenciária era positiva, pois possibilitaria ao Brasil investir
de maneira mais contundente na modernização carcerária. Em relação ao
aprisionamento feminino a nova legislação, no parágrafo 2º do artigo 29,
era taxativa ao armar que as mulheres cumprem pena em estabelecimento
especial, ou, à falta, em secção adequada da penitenciária ou prisão comum,
cando sujeita a trabalho interno”. Tal previsão legal acelerou a construção
de estabelecimentos prisionais para mulheres, posto que o aprisionamento
que não atentasse para a separação dos apenados por sexo passava a ser
contrário à legislação vigente.
O país, que buscava a passos largos se modernizar, tinha inúmeras
feridas abertas em relação ao atraso institucional, e, nesse sentido, o
sistema carcerário nacional representava um ponto crítico. Em relação ao
aprisionamento feminino em especial, têm-se notícias de que em 1645 foi
inaugurada a primeira prisão para mulheres da Europa, a e Spinhuis,
localizada em Amsterdã, na Holanda, e voltada para abrigar mulheres pobres,
criminosas, bêbadas e prostitutas, bem como meninas mal comportadas
que não obedeciam aos seus pais e maridos (ZEDNER, 1995, p. 329).
Mas foi principalmente no século XIX que países como Estados Unidos,
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
146
França e Inglaterra investiram de maneira mais contundente na construção
de estabelecimentos voltados para as mulheres delinquentes (ZEDNER,
1995, p. 329-333). O convívio dos penitenciaristas brasileiros com
especialistas de outros países, não apenas do continente americano, mas
também europeus, permitia que fossem feitas comparações constantes entre
o aprisionamento aqui e nos demais países (SALLA, 1999, p. 126). Nesse
sentido, o atraso do Brasil em relação aos países citados acima, bem como,
em especial, aos vizinhos Argentina, Chile e Peru, que, respectivamente,
desde 1880, 1864 e 1871 já tinham seus presídios femininos, representava
uma pressão adicional à criação desses estabelecimentos.
Ademais, em tempos de Estado Novo, período de centralização
política e investimento na organização da estrutura estatal, a questão
penitenciária foi uma bandeira importante assumida por Getúlio Vargas,
sempre mencionado em discursos como o grande incentivador das inovações
penitenciárias e um homem visionário que colocava o Brasil em “patamares
de modernidade”. Um Estado forte era, por essas avaliações, um Estado
com instituições fortes. Assim, o sistema de repressão estatal deveria ser bem
organizado e bem aparelhado, sendo, especicamente no caso prisional,
urgente a construção de novos e modernos estabelecimentos. Havia, a
partir de meados do século XX, uma evolução em curso”, na perspectiva
daqueles diretamente envolvidos com a questão penitenciária. Por exemplo,
ao ressaltar a importância das inaugurações da Penitenciária de Mulheres e
do Sanatório Penal, Lemos Britto retoma o passado para mostrar o curso
evolutivo que estava ocorrendo no país e, em especial, na Capital Federal:
Para dar o signicado destes estabelecimentos basta realçar o que
era até ontem, dia 08 de novembro de 1942, na capital do Brasil, o
alojamento das mulheres criminosas postas sob a tutela e proteção do
Estado, e o que tem sido, através de mais de um século da nossa vida
como nação soberana, o tratamento dispensado aos condenados; ali,
uma dependência de rés do chão, acanhada, úmida e mal iluminada
de um presídio de homens, em condições tais que todo devotamento
e boa vontade dos respectivos diretores pouco podiam fazer para lhes
suavisar os sofrimentos, sofrimentos mais para lamentar quando se
tratavam de mulheres de boa condição social atiradas à promiscuidade
daquela inadjetivável prisão. (APB, 1942b, p. 10).
147
D S P:
 ,  
Assim, fruto de um cenário político mais amplo, os presídios
femininos brasileiros surgem em momento propício, dada a conuência
de elementos políticos e jurídicos que facilitaram que saíssem do papel.
Em tempos de reforma penitenciária e de prática de um novo paradigma
prisional, focado na humanização da pena, os penitenciaristas, em especial
Lemos Britto, encabeçaram politicamente e organizacionalmente o processo
de criação dessas instituições, juntamente com o apoio de grupos como a
Congregação do Bom Pastor, futuramente responsável pela administração
das instituições prisionais femininas em suas primeiras décadas.
a quem destinava o cáRceRe feminino?
Nas vésperas da criação desses estabelecimentos, as principais
razões alegadas para a separação entre mulheres e homens eram, em
especial, a promiscuidade sexual em ambientes nos quais conviviam ambos
os sexos, a precariedade dos espaços que sobravam para as mulheres nas
penitenciárias e cadeias, bem como a promiscuidade das próprias presas
entre si, pois, além dos possíveis envolvimentos sexuais entre elas
considerados uma grande ameaça à integridade feminina –, e de estarem
juntas condenadas e mulheres aguardando julgamento, eram presas no
mesmo espaço “criminosas sórdidas” com “mulheres honestas”.
No texto do anteprojeto da Exposição de Motivos do Regimento
da Penitenciária de Mulheres de Bangu, entregue por Lemos Britto ao
Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Alexandre Marcondes Campos,
em 1942, é possível identicar uma escala de criminosas”, que vai da
mulher honesta à mais perigosa representante do universo criminal”
feminino. Em suas palavras:
Ao lado da mulher honesta e de boa família condenada por um
crime passional ou culposo, ou que aguarda julgamento, seja por
um aborto provocado por motivo de honra, seja por um infanticídio
determinado muita vez por uma crise psíquica de fundo puerperal,
estão as prostituídas mais sórdidas vindas como homicidas da zona
do baixo meretrício, as ladras reincidentes, as mulheres portadoras de
tuberculose, sílis e moléstias venéreas ou de pele, hostis à higiene,
quando não atacadas de satiríase, tipos acabados de ninfômanas, que
submetem ou procuram submeter pela força as primeiras aos mais
repugnantes atos de homossexualismo [...] ( APB, 1942b, p. 27).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
148
A mistura, no ambiente prisional, desses diferentes tipos de
mulheres era, para o representante do conselho, o que havia de mais
perigoso na falta de espaço para o enclausuramento feminino, dado que
o contágio moral poderia provocar danos irreversíveis àquelas que não
eram originalmente delinquentes, mas cometeram, ocasionalmente, um
delito. Era necessário separar esses tipos de mulheres, de modo a garantir
a individualização da pena e isolar as pertencentes a uma categoria
“impura daquelas que mais se aproximavam da pureza”. Os tipos de
crimes cometidos em associação com os tipos de mulheres que os cometia
deniam as categorias mais ou menos delinquente associadas às mulheres.
Assim, as mulheres honestas e de boa família eram associadas a crimes mais
brandos”, por exemplo, os culposos; a um estado próprio da natureza
feminina”, como o infanticídio; decorrentes da atitude de um terceiro que
as desonrou, como o aborto; ou eram fruto de um estado passageiro de
loucura, como o crime passional. as mulheres associadas às categorias
impuras, como as ladras reincidentes e as prostitutas do baixo meretrício,
são acusadas dos piores crimes, como o homicídio doloso; e/ou de serem
ninfomaníacas e portadoras de doenças sexualmente transmissíveis.
A classicação dos tipos de criminosas, bem como a recorrente
associação da prostituição à criminalidade denota uma aproximação entre
Lemos Britto e o pensamento do médico Cesare Lombroso em sua La Donna
Delinquente, la Prostituta e la Donna Normale, originalmente publicada em
1893, principal obra sobre criminalidade feminina produzida até a década
de 1950. Representante do Positivismo Criminológico considerada a
primeira Escola a formular modelos cientícos para a compreensão do
crime e do criminoso, vinculando o crime, principalmente, a patologias
físicas dos indivíduos Lombroso escalonou as criminosas em uma
gradação que ia da prostituta, a criminosa por excelência, às mulheres
normaisacometidas por furores momentâneos. A semelhança entre os
tipos” traçados por Lemos Britto e Lombroso é evidente.
Hilda Macedo, assistente da cadeira de Introdução à Criminologia
da Escola de Polícia de São Paulo, em artigo sobre a criminalidade feminina
publicado nos Arquivos da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São
Paulo destacava a vinculação entre criminalidade, pobreza e prostituição.
Segundo a autora:
149
D S P:
 ,  
Predisposta diante da falta de recursos econômicos, começa, quase
sempre, enveredando pela prostituição, e da prostituição ao crime é
um passo, que esta, se não for um crime, é entretanto equivalente
dele. E as nossas delinqüentes, via de regra, são mulheres de escassos ou
nulos recursos econômicos. (MACEDO, 1953, p. 288).
Era constante à época, associações entre a criminalidade feminina
e a falta de educação moral, de suporte familiar e o meio no qual as
mulheres viviam. Quanto mais vinculadas a um ambiente considerado são,
menos associadas ao potencial criminoso e vice versa. Enquanto as esposas
devotadas, as boas mães, as mulheres recatadas, em suma, as que seguiam
os padrões de um dever ser feminino eram consideradas mulheres
honestas”, as prostitutas, mães solteiras, mulheres masculinizadas,
mulheres escandalosas, boêmias, histéricas e outras compunham o grupo
de risco a quem a criminalidade era vinculada com mais frequência. O
papel feminino esperado no período contrastava diretamente com as
classicações das guras do desvio – de um lado as que seguiam a cartilha
de um “dever ser” e do outro as potenciais criminosas perigosas.
A classe social, a prossão, a mobilidade no espaço público, o local
de residência, o estado civil, são importantes indicadores da perseguição
a determinados estereótipos femininos, considerados os mais tendentes
à prática de condutas criminosas. A análise dos Anuários Estatísticos da
Polícia Civil do Estado de São Paulo, produzidos no nal da década de 1930
e primeiros anos da década de 1940, permite mapear elementos registrados
do aprisionamento feminino no período, como crime praticado, prossão
das mulheres presas, número de condenadas em denitivo e processadas
7
.
Dados sobre as detenções policiais e correcionais ocorridas no
estado de São Paulo em 1943 permitem vericar a grande diferença no
número de homens e mulheres detidos, uma vez que as mulheres detidas
na capital e no interior em 1943 representam 12,7% do total de detenções
ocorridas, enquanto os homens 87,3%. Dentre as detidas foi possível
apontar um predomínio de mulheres jovens, entre 18 e 30 anos de idade,
faixa etária de maior vulnerabilidade em relação ao sistema de justiça
7
Optou-se por trabalhar com os dados do anuário de 1943, pois ele é comparativo dos volumes anteriores,
publicados, respectivamente, em 1938, 1939, 1940, 1941 e 1942.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
150
criminal, bem como um total de 7,2% de mulheres estrangeiras. Em
especial aquelas que frequentavam em alguma medida os espaços públicos
estavam mais sujeitas às vigilâncias policiais, o que justica o fato de a
maioria das detidas pela polícia em 1943 ter uma prossão, dentre elas
estavam criadas de servir (a maioria), domésticas e meretrizes.
A maioria das mulheres detidas tanto na capital quanto no
interior, representando 37% do total de detenções no estado, o foi por
desordem” que, apesar de não ser uma contravenção tipicada na Lei das
Contravenções Penais, abrange comportamentos considerados antissociais,
como aquele previsto no artigo 42 dessa Lei, que prescreve pena aos que
perturbam o trabalho ou o sossego alheio, ou o previsto no artigo 61, que
considera contraventor aquele que importuna a ordem pública de modo
ofensivo ao pudor. Já 31,3% do total das detenções femininas ocorridas no
estado foram por alcoolismo. Considerado elemento de degeneração e de
risco à ordem pública, o álcool era considerado um catalisador para crimes
e desordem social. Das condutas responsáveis por detenções correcionais
e policiais na capital e no interior do estado de São Paulo, aquela pela
qual o número de mulheres detidas supera o de homens detidos é o
escândalo”, prática associada à embriaguez, prevista no artigo 62 da Lei
das Contravenções Penais
8
.
A detenção para averiguação, bem como as detenções correcionais
e policiais nos casos de práticas de contravenções penais dava margem
para a atuação policial, voltada à manutenção da ordem pública, podendo
retirar do convívio social aqueles que provocassem desordem na cidade.
Exemplo disso é a denição de vadiagem como contravenção penal
como manobra política para a valorização do trabalho. De acordo com o
sociólogo Luís Antônio Francisco de Souza, em pesquisa histórica sobre
a Polícia Civil e práticas policiais na São Paulo da primeira república, a
valorização do trabalho e do recato e o combate aos vícios guiaram muitos
dos tipos de contravenção previstos na Lei. A consideração da vadiagem
como contravenção almejava: a) coibir a vadiagem, fazendo com que os
indivíduos xassem suas residências; b) refrear a criminalidade; c) punir e
8
As contravenções penais em geral, mas em especial aquelas constantes no capítulo VII da Lei, relativas às
políticas de costumes, são as condutas consideradas antissociais em uma sociedade que buscava edicar-se sob a
égide da ordem, da moral e dos bons costumes.
151
D S P:
 ,  
regenerar o criminoso; e d) construir uma nova ordem social baseada na
ideia de ordem pública.” (SOUZA, 2009, p. 407).
Já em relação aos crimes ocorridos na capital, no ano de 1943,
72% das mulheres registradas como delinquentes eram acusadas de
cometerem crimes contra a pessoa, sendo a maioria deles lesões corporais
leves. os crimes contra o patrimônio representavam 23,8% dos crimes
registrados sob autoria feminina. Assim como nos índices de detenção no
estado de São Paulo, a faixa etária entre 18 e 30 anos, concentra a maioria
das mulheres acusadas e/ou condenadas por crimes na capital. Do total
de mulheres acusadas ou condenadas por crimes na capital, 23% eram
estrangeiras, taxa alta se comparada às estrangeiras detidas no estado de
São Paulo. As prossões das acusadas ou condenadas por crimes na capital,
neste período, acompanham aquelas das detidas: a maioria era criada de
servir e doméstica.
***
Uma vez exposto brevemente o perl das mulheres submetidas
ao Sistema de Justiça à época da criação dos primeiros estabelecimentos
prisionais femininos e a caracterização dos tipos criminosos traçados pelos
penitenciaristas e estudiosos do período, vale questionar, partindo do
pressuposto que o Sistema de Justiça Criminal é seletivo e está voltado para
determinados grupos sociais, qual era o modelo de cárcere feminino ideal
para abrigar essas mulheres. Em outras palavras, o que deveria objetivar as
instituições prisionais femininas, como estes estabelecimentos deveriam se
estruturar, como foram organizados em um período no qual se esperava
posturas especícas de acordo com normativas de um dever ser feminino?
Em que consistia a correção destinada às mulheres acusadas de delinquirem?
as PRimeiRas décadas
Em primeiro lugar é interessante notar que, quando em pauta
as novas instituições prisionais femininas um discurso institucional que
homogeneíza as internas passa a predominar, em detrimento das falas de
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
152
promiscuidade, dos escalonamentos de diferentes tipos de criminosas, das
menções às corrigíveis e incorrigíveis, prevalecendo a ideia de que, uma
vez na instituição, todas são iguais, pois são mulheres. Esta mudança na
abordagem remete-se à perspectiva da igualdade legal que deve ser, ao
menos teoricamente, respeitada pelas instituições. A fala institucional
passa a ocupar os discursos e escritos dos penitenciaristas que não
ressaltam, mas também se defendem das acusações de estarem garantindo
às mulheres delinquentes um encarceramento repleto de regalias, contrário
àquele destinado aos homens. Defendendo-se Lemos Britto ressalta que:
Não é o crime em si, ou a capacidade de delinqüir das mulheres que
interessa ao regime penitenciário, mas o dever de segregá-las da sociedade,
quando forem condenadas, dando-lhes a assistência compatível com seu
sexo. Não se pleiteia para elas a impunidade, ou o deleite, ou a inércia
na prisão, mas um regime de execução da pena que se adapte à sua
condição de mulheres. Assim, o que se deve fazer não é transformar em
paraíso as prisões destinadas às mulheres que matam, roubam, injuriam,
incendeiam, produzem ferimentos e praticam crimes como os homens,
tendo a consciência dos seus atos, na medida em que a ciência admite a
auto-determinação humana. (APB, 1942a, p. 311).
A prisão feminina é tratada como uma prisão em geral, com a
função de segregar e punir aquela que cometeu um ato ilícito, levando
em consideração as peculiaridades de seu sexo. E é justamente esta última
previsão que torna as penitenciárias femininas, do período pesquisado,
distintas das masculinas, seja em relação à sua administração, aos seus
objetivos e ao seu cotidiano. Nas décadas de 1940 e 1950, a prisão tinha
como funções declaradas a defesa social, ou seja, a retirada, da sociedade,
de indivíduos considerados perigosos, bem como função ressocializadora,
capaz de recolocar os indivíduos reabilitados na sociedade. Nesse contexto,
a valorização do trabalho como meio principal de ressocialização, em
prática em alguns estabelecimentos desde meados do século XIX no Brasil,
estava presente. No entanto, era necessário que fosse tomado o devido
cuidado para fornecer aos encarcerados e encarceradas trabalhos no cárcere
que pudessem reproduzir na sociedade uma vez que de nada adiantaria
ocupar o tempo dos detentos com trabalhos e técnicas aos quais não teriam
acesso para além dos muros das prisões. Às mulheres deveriam ser garantidos
meios de reprodução de uma vida ideal feminina, em consonância com
153
D S P:
 ,  
um modelo de dever ser” mulher, ao passo que os homens deveriam ser
treinados especialmente para o trabalho fabril, em acordo com um “dever
ser” masculino.
Nesse cenário de garantir às mulheres um tratamento igualitário,
mas de acordo com as peculiaridades do sexo feminino, cabia uma questão
relevante: a quem atribuir a administração das penitenciárias femininas?
Isso porque havia na década de 1940 poucas mulheres no mercado de
trabalho formal sendo destas raras funcionárias públicas, alocadas, em
geral, em setores mais femininos”, como os escritórios. Conseguir um
grupo de mulheres dispostas a trabalhar com aquelas contaminadas”,
que se desviaram do seu papel social, consideradas por vezes perigosas,
violentas, perdidas e/ou degeneradas era tarefa complexa. Entregar o
cotidiano prisional feminino à administração e gerência masculina era ir
contra os preceitos de cárcere segregado por sexo, e poderia trazer mais
problemas que soluções aos administradores carcerários.
Como solução o Brasil imitou seus vizinhos chilenos,
peruanos e argentinos, contratando para a administração dos primeiros
estabelecimentos prisionais femininos uma congregação religiosa a
Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’ Angers.
Ao apresentar ao Ministro da Justiça duas propostas para a gerência da
Penitenciária de Mulheres de Bangu, Lemos Britto pontua as vantagens da
administração religiosa das Irmãs:
Duas opiniões se apresentam a êste respeito [administração dos
estabelecimentos prisionais femininos]: a da direção laica e a de
direção a cargo de Irmãs do Bom Pastor, especializadas neste serviço
em alguns países. Cada qual delas tem por si argumentos valiosos.
Pela última depõem a experiência dessa ordem, a simplicidade da
organização administrativa, uma certa economia com o pessoal. Pela
primeira, o respeito ao regime penitenciário em vigor, as necessidades
da instrução e educação das reclusas nos moldes estabelecidos na Lei
e no regulamento, a facilidade da scalização por parte do Conselho
Penitenciário e a fé pública que devem ter as informações, calcadas em
estudo individual de cada sentenciada para concessão do livramento
condicional. (APB, 1942d, p. 23-24).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
154
As facilidades para contratar as Irmãs, bem como sua presença nos
cárceres femininos dos vizinhos Chile, Peru e Argentina
9
, foram levadas
em conta pelos penitenciaristas e governantes brasileiros. A Irmandade
voltada para salvação das almase a “cura moral” de meninas e mulheres
em estado de abandono material e moral, nasceu na França, na cidade
de Angers, em 1829. Desde então, se espalhou pelos diversos continentes
cuidando de abrigos de meninas órfãs, de estabelecimentos para menores
infratoras, de presídios e casas de correção feminina. Com a principal
missão de cooperar com Deus na salvação das almasas Irmãs investiam
na recomposição moral das desvalidas, realizada, principalmente, por meio
do perdão divino. O fato de as Irmãs estarem no Brasil desde o nal
do século XIX, inclusive participando do Patronato das Presas, também
contribuiu para que elas fossem nomeadas administradoras. Isso porque
havia uma pressão da Congregação pela construção de presídios femininos
no país, não pelo fato de as novas casas garantirem à Irmandade a
prática de sua missão, mas também pois a Congregação tinha uma meta de
expansão, sendo a criação de presídios sob a sua tutela uma maneira segura
de xar-se no Brasil.
Um artigo originalmente veiculado no jornal Correio do Povo,
de Porto Alegre, publicado nos Arquivos Penitenciários do Brasil justica
a entrega da administração do Instituto Feminino de Readaptação Social à
Congregação e fala do apoio ocial ao trabalho da Ordem:
A nalidade maior da Ordem não é propriamente a que tem exercido
nesta capital: serviço carcerário ou guarda a mulheres criminosas.
Muito mais complexa, a nalidade do seu trabalho em todo o mundo
consiste em reconduzir à vida social, pela assistência e pela educação, as
mulheres abandonadas e as mulheres decaídas. No mais amplo sentido,
usando termos da Ordem, seu trabalho é a regeneração da mulher que
foi jogada ou se lançou à margem da sociedade e da família. Para isso,
conta a Ordem com normas de ação seguramente traçadas através
dos seus trezentos anos (sic) de experiência em todo o mundo. Está
claro que a execução dêsse delicado e complexo trabalho antes de tudo
precisa de uma organização material e técnica de vulto. É isso que as
Irmãs do Bom Pastor vão realizar aqui em Porto Alegre. Animadas pelo
9
As historiadoras María José Correa Gómez (2005), em artigo sobre as discussões e reformas dos cárceres para
mulheres, no Chile, e Lila M. Caimari (1997), que analisa o trabalho do Estado, da Igreja e dos patronatos
na reabilitação das presas na cidade de Buenos Aires, tratam da presença das Irmãs do Bom Pastor d’Angers
respectivamente, nos cárceres chilenos e argentinos. Em seus artigos elas abordam características dos cárceres
femininos nestes países.
155
D S P:
 ,  
apôio ocial e popular que a sua obra no Reformatório tem merecido
[...] (APB, 1942b, p. 260-261).
O documento rmado entre a Secretaria de Justiça do estado
do Rio de Janeiro e a Congregação do Bom Pastor d’Angers, cedendo às
Irmãs a administração da Penitenciária de Mulheres de Bangu, de 1942;
e o contrato assinado entre a Congregação e a Secretaria de Justiça e
Negócios do Interior de São Paulo, referente à contratação das Irmãs para
a administração do Presídio de Mulheres do Carandiru, de 1946, esclarecem
os termos dessas parcerias
10
.
Elça Mendonça Lima, pesquisadora que na década de 1980
investigou a criação do presídio feminino do Rio de Janeiro, interpreta o
contrato carioca como sendo um atestado da submissão da Congregação
a um poder central masculinizado. As Irmãs, apesar da autonomia que
tinham no cotidiano prisional, prestavam contas a um órgão central a
quem estavam contratualmente submetidas. Segundo Lima: as freiras se
constituem em governantas’ da casa e sua autonomia é reservada às tarefas
domésticasda instituição e à função auxiliar de observação e vigilância
interna: o olhoauxiliar do poder [...]”, que é masculino (LIMA, 1983,
p. 57). Porém, para além de uma limitação administrativa imposta pelo
Estado é possível pensar a concessão da administração das penitenciárias
femininas às Irmãs como uma troca conveniente para ambas as partes:
a Irmandade, que visava à sua expansão com a missão de salvar almas,
contratava com o Estado que precisava seguir o CP de 1940 e aprisionar as
mulheres delinqüentes em estabelecimento próprio.
cotidiano PRisional
O cotidiano prisional feminino deveria pautar-se no trabalho,
na regeneração moral e física das delinquentes. Estar presa signicava
estar submetida às regras e ao tempo prisional. As Irmãs administradoras
deveriam trabalhar pela cura da almadas detentas, investindo em um
10
É possível encontrar o contrato rmado entre o estado de São Paulo e a Congregação no Diário Ocial de
10 de julho de 1946; e o rmado entre as Irmãs e a Secretaria de Justiça do Estado do Rio de Janeiro pode ser
encontrado nos Arquivos Penitenciários do Brasil, ano III, nº 3/4, 3º/4º trim. 1942, p. 56.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
156
cotidiano de trabalho, disciplina, oração, resgate de valores morais, doação
e caridade. As mulheres deveriam aprender a ser boas donas de casa, mães
dedicadas, boas esposas, prossionais cuidadosas e corretas. Deveriam
desviar-se dos caminhos do crime por meio do aprendizado dos papéis
designados para o feminino, cumprindo-os com esmero. A reconstituição
moral das detentas estava em pauta, e era essa a principal missão das Irmãs.
Elça Mendonça Lima ressalta que às Irmãs caberia o cuidado do
corpo e da alma dessas mulheres detentas – cuidado médico-moral visando
a doutrinar as mulheres sob sua tutela. O contrato selado entre as Irmãs e
o Estado ressalta que
Na ordem da enumeração das tarefas, enfermagem e assistência
aparecem como o atributo principal do serviço contratado. As
outras tarefas são apresentadas como correlatas e dão a impressão de
que sua explicitação corresponderia a uma simples preocupação de
exaustividade do enunciado. Isto é, buscariam esgotar os âmbitos
possíveis de obrigações da administração de um ‘internato’. [...] as duas
primeiras idéias, enfermagem e assistência’, dotam o governo desse
‘internato de uma qualidade eminentemente clínica. Ora, a ênfase
neste aspecto pode estar advertindo da razão precípua porque se
contratou a Congregação, qual seja, a de que as freiras são especialistas
do cuidado do corpo e da alma. De um cuidado com a alma que implica
certa relação de disciplina e vigor com o corpo. (LIMA, 1983, p. 55).
Tal análise concorda com os relatos dos trabalhos das Irmãs
nos cárceres femininos, onde deveriam cumprir o papel de enfermeiras
de corpos e almas. A cura do corpo viria antes pela disciplinarização
deste que propriamente pelo cuidado médico inculcar nos corpos das
detentas os registros do tipo de mulheres que deveriam ser quando
saíssem do cárcere. O comportamento corporal, a ordem, a higiene são
exemplos dos investimentos sobre os corpos que deveriam ser praticados
pelas Irmãs. Por exemplo, o Guia das Internas do Presídio de Mulheres da
Penitenciária de Mulheres de Bangu frisa a importância da ordem para o
bom funcionamento da instituição, ressaltando que:
A ordem é um princípio de felicidade e paz. O corão ca satisfeito,
quando, dominando o capricho e cumprindo o dever, pode vericar que
nobremente cumpriu a sua missão. A ordem é ainda um princípio de
progresso, pelo ambiente benfazejo que ela estabelece – Olhai para a nossa
157
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Bandeira, e nela encontrareis um lema, que é todo um programa de vida:
ORDEM E PROGRESSO. (RIO DE JANEIRO, 1983, p. 79).
A ordem deveria estar presente no espaço e no tempo: não apenas
o estabelecimento deveria ser organizado sicamente, como também era
fundamental a organização do tempo prisional, de modo a distribuir
cronologicamente um cotidiano de disciplinas. Como ressaltava o próprio
Guia, se a ordem é necessária em toda a parte, quanto mais é indispensável
em tudo o que rodeia a existência da mulher”. Além disso, a higiene do
corpo reetia a higiene da alma, ou seja, a ordem externa simbolizava a
ordem interna, expondo, ao menos simbolicamente, a faxina moral”
realizada pelas Irmãs.
O trabalho carcerário previsto, no caso feminino, no parágrafo
do artigo 29 do CP de 1940 deveria ser exercido de acordo com as
habilidades de cada detenta, com o cuidado de garantir que pudesse ser
reproduzido extramuros. Tal cuidado com as habilidades e dons de cada
uma possivelmente justicava a divisão de trabalho de acordo com a classe
social e outras clivagens no interior do cárcere, cabendo às mais pobres os
trabalhos mais pesados, como os domésticos, enquanto as eventuais detentas
de classe mais alta deveriam realizar trabalhos manuais, por serem, como
ressaltado pelo plano da penitenciária de mulheres elaborado pela Inspetoria
Geral Penitenciária, “inadaptáveis a outros serviços” (APB, 1940, p. 89). O
trabalho prisional não deveria promover transformação social, mas pessoal,
como pode ser vericado na seguinte armação de Lemos Britto,
É de temer que as mulheres, em sua maioria pobres, pois a nossa
criminalidade feminina em geral vai buscar nas classes inferiores os
elementos de que se nutre, adquirindo hábitos e aprendendo uma
prossão incompatível com sua condição econômica e social não mais
tolere o meio humilde de onde saiu e a ele não queira mais submeter-
se, gerando-se desse repúdio outros problemas igualmente sérios.
(LEMOS BRITTO, 1943, p. 22).
O combate ao ócio e a aprendizagem de um ofício eram os
principais objetivos do trabalho prisional feminino. A Exposição de
Motivos do Regimento da Penitenciária de Mulheres e do Sanatório Penal de
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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Tuberculosos de Bangu destacava-se que a promiscuidade e ociosidade são
por bem dizer sinônimos de degradação, de corrupção e de ignomínia. O
trabalho é tônico da vida física e moral do indivíduo [...]. Ele constitue
uma ginástica do corpo e do espírito [...]” (APB, 1942b, p. 38-39).
Trabalhos de costura, artesanato e domésticos, como os de lavanderia, eram
as principais ocupações práticas voltadas às mulheres. A desvalorização
do trabalho feminino era constante, uma vez que o trabalho manual era
considerado menor, menos voltado para o lucro e mais para ocupar o
tempo. Ainda assim, era estimulado, uma vez que, era considerado um
trabalho tipicamente feminino capaz de auxiliar na missão de tornar as
detentas “mulheres padrão”.
Interessante notar que, nos documentos pesquisados, alusões
de que em alguns presídios femininos, como em Bangu e na ala feminina
do Presídio de Pernambuco, os serviços de lavanderia e costura para
suprir necessidades dos próprios estabelecimentos, de outros, como os
masculinos, e de demais órgãos públicos, eram realizados pelas detentas.
Um relatório do sistema prisional do Rio de Janeiro e Distrito Federal de
1954, publicado em A Estrela, apontava que havia grande movimento
nas ocinas de costura da penitenciária de Bangu, onde foram feitos,
naquele ano, 403 uniformes e 804 peças ao Serviço de Assistência Social
da Penitenciária Central e lavadas 17.003 peças do Sanatório Penal; 1.297
peças do Destacamento Policial; 14.038 peças da Comunidade e 16.904
peças das Internas.
***
Além do trabalho, a preocupação com o espaço físico prisional
era um tema presente nos debates e no cotidiano carcerário feminino.
Como organizar sicamente os estabelecimentos prisionais femininos? O
modelo arquitetônico deveria dialogar com a função prevista para a pena?
Como deveria ser a segurança do prédio? Questões como estas e outras
estiveram em pauta durante a construção de espaços prisionais femininos,
ou a adaptação de espaços já existentes para abrigar as prisões de mulheres.
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Parte fundamental das reformas prisionais de meados do século
XX era o investimento em um modelo de prisão que superasse a prisão
masmorra”. Modernizar os prédios de modo a torná-los mais parecidos
com escolas e menos parecidos com cárceres era tarefa primordial para o
novo tempo penitenciário”. Um ambiente prisional higiênico, arejado,
limpo e salubre era capaz de cumprir a missão do cárcere como espaço
ressocializador. Como recuperar os detentos para a vida em sociedade em
um local insalubre? O cárcere deveria representar a ordem passível de ser
praticada para além dos muros.
Em relação à segurança, os muros altos e as grades pesadas
simbolizavam outro tempo penitenciário era importante garantir segurança,
sem, contudo, parecer uma prisão opressora e ilhada. Especicamente os
estabelecimentos prisionais femininos, de acordo com seus idealizadores,
deveriam antes parecer um lar de acolhimento que um espaço de
encarceramento. O reforço de um estereótipo de passividade feminina surge
nos discursos sobre arquitetura prisional, uma vez que o perigo de fugas em
estabelecimentos para mulheres não era uma preocupação, o que pode ser
percebido na fala de Lemos Britto, em 1939, sobre o planejamento de um
reformatório provisório para mulheres no Estado da Bahia:
À exceção do muro destinado a defender o estabelecimento da
curiosidade pública e de qualquer ligação direta e indireta com
o depósito de presos, o arquiteto evitará tudo quanto signique
preocupação de dar ao reformatório aspecto e segurança de prisão, pois
não perigo de que as mulheres ai reunidas pretendam amotinar-se
e evadir-se em massa, forçando os obstáculos naturais opostos a sua
comunicação com o exterior. (APB, 1942a, p. 314).
As grades seriam antes morais que físicas pela disciplina
se controlaria as detentas, não sendo necessário recorrer aos recursos
arquitetônicos de isolamento prisional. Além disso, o cárcere feminino
deveria, sempre que possível, reproduzir o modelo de um lar. Quanto
mais parecido com uma casa, mais as mulheres se tornariam adaptadas
ao modelo que deveriam reproduzir na rua. A similaridade entre a Prisão
de Mulheres de Bangu e uma “grande casaé apontada pelo repórter da
Revista A Estrela, no qual o autor busca reforçar sua imagem de ambiente
puro e organizado:
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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A higiene e o bom gosto são sempre os fatores predominantes,
aproveitam-se os cobertores de lã em dobras artísticas que enfeitam as
camas; o aspecto não é de prisão. Se não fosse tão corriqueiro diríamos:
parece um hospital mas ainda não estaríamos certos, lembra-nos
mesmo, numa visão geral uma grande casa onde residem muitas
pessoas. (AE, 1951, p. 7).
conclusão
Espaço de trabalho, arrependimento, aprendizado do lar e de
papéis sociais femininos – a “grande casa” deveria transformar as mulheres
desviantes em mulheres exemplares. O sistema penitenciário feminino
foi edicado de maneira bastante peculiar com o objetivo de devolver à
sociedade boas mães e esposas, ou seja, mulheres livres dos vícios e das
mazelas que as desviavam do caminho esperado. A criminalidade feminina,
vista como um desvio do papel social que a mulher deveria cumprir,
precisava ser contida e corrigida.
Mesclando elementos religiosos com preceitos criminológicos,
o cotidiano carcerário feminino era voltado para a recuperação moral e
disciplinarização das mulheres, sem, contudo promover transformações
efetivas que fossem capazes de modicar as condições de sujeição e
precariedade que as tornavam vulneráveis e cada vez mais expostas aos
aparatos da justiça criminal. Moldar pessoas, receitando comportamentos
ajustados com base em padrões sociais que se buscava reproduzir, era a
principal meta destas instituições. Em um período de expansão fabril e
de aumento da participação da mulher no mercado de trabalho o cárcere
as treinava, principalmente, para funções do lar e realização das tarefas
próprias do ambiente doméstico. A mulher era peça fundamental para a
organização da família, célula elementar do “Brasil moderno”, e as que não
sabiam sê-lo deveriam aprender. Ainda, acreditava-se que, com a mulher
resguardada ao lar, a potencialidade da criminalidade feminina diminuiria,
dado que o aumento do número de crimes cometidos por mulheres era
atribuído, por alguns, à sua maior participação na vida pública.
Apesar das críticas, vale ressaltar que o momento de sua criação foi
um dos poucos momentos que os cárceres femininos receberam a atenção
de penitenciaristas e do Estado. No decorrer das décadas posteriores à sua
161
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 ,  
implementação, em especial a partir da década de 1980 com o aumento
da população carcerária feminina e a saída das Irmãs da administração
dos estabelecimentos, as prisões femininas nacionais foram sucateadas, e
muito pouco se prestou atenção às peculiaridades das detentas, tratando-as
como extensão dos estabelecimentos prisionais masculinos. O retorno à
história permite visualizar as permanências e rupturas das instituições no
tempo de modo não a compreender suas origens mas, principalmente,
a evidenciar suas (des) continuidades.
RefeRências
A ESTRELA: Órgão da Penitenciária Central do Distrito Federal, Rio de Janeiro, ano I,
n. 3, jun. 1951.
ALMEIDA, Cândido Mendes de. As mulheres criminosas no centro mais populoso do
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163
mulhereS inviSíveiS? condição dA mulher
no SiStemA de JuStiçA criminAl brASileiro
Heidi Ann Cerneka
As mulheres encarceradas nunca foram contempladas com uma política
criminal e penitenciária que as considere, em nenhuma legislação
especial, como sujeitos de direitos, e nem o Estado brasileiro jamais se
responsabilizou por elas. (BRASIL, 2009, p. 292).
Ana Cristina nunca tinha sido presa, mas no dia em que a
polícia prendeu suas colegas que estavam na praça, jogou pedras na viatura
em sinal de protesto. Ficou presa por sete meses, sem que o judiciário e o
sistema prisional tomassem conhecimento. As colegas de cela chamaram a
atenção da Pastoral Carcerária para sua situação, num gesto de solidariedade
comum entre presas: “quero que você me ajude, mas antes, ajuda ela, pelo
amor de Deus, pois, está aqui somente porque jogou algumas pedras numa
viatura!” Ana Cristina foi presa por estar num bairro suspeito”, com
colegas suspeitas e porque ofendeu alguns policiais. E permaneceu
presa por desleixo do judiciário.
Claudia foi presa no dia 15 de setembro de 2009 e ninguém
informou o juiz da Vara onde tramitava seu processo. Depois de um ano
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
164
de cárcere, e de sua insistência sobre a morosidade do processo, a Pastoral
Carcerária descobriu que ela ainda constava como procurada e informou a
Vara sobre a sua captura. Só então o processo começou a rastejar. Claudia
foi sentenciada no dia 4 de julho de 2011 (um ano e dez meses depois
de sua prisão). Até 29 de fevereiro de 2012, ela não havia recebido a
intimação referente a essa sentença. Até mesmo a defensora do processo só
tomou ciência da sentença em janeiro de 2012, ou seja, seis meses depois
de proferida a sentença.
As mulheres encarceradas são invisíveis para o Estado. Elas são as
Anas Marias, as Claudias e muitas outras que ingressam no sistema prisional.
O Estado não sabe lidar com elas; não percebe que não são indivíduos
isolados, mas parte de toda uma rede de pessoas. Aliás, a mulher faz parte
de um sistema familiar e é muitas vezes responsável por esse sistema que
sofrerá com os efeitos colaterais de sua prisão. Uma declaração pintada
pelas mulheres na muralha de um presídio em Goiás esclarece, muito
bem, a situação: “Somos milhares de mulheres- extensa raça em todo o
mundo - não somos presas – estamos presas no momento como hóspedes
da justiça.Pois, elas se identicam não pelo crime que cometeram, mas
por toda a sua vida fora do presídio. Elas são mães, lhas, companheiras,
esposas e cuidadoras. Elas são portadoras de necessidades especiais e
trabalhadoras. Elas estão doentes, grávidas, em processo de amamentação
e, às vezes, vivendo com doença mental. Construir presídios que tenham
um berçário e creche é um bom começo, mas contempla apenas uma parte
do ser feminino que ocupará aquele espaço. A construção de um presídio
feminino deve considerar o espaço para trabalhar as questões de relação
familiar, especialmente com os lhos, de prossionalização e de autoestima.
Ou seja, não é preciso gastar tanto dinheiro em altíssima segurança para
a maioria das mulheres presas. Pois, os crimes cometidos pelas mulheres
no geral, são menos violentos. Poderia, portanto, o poder público investir
mais em espaço de visita para os lhos, espaço de amamentação e equipe
técnica de saúde, psicologia e serviço social.
Nos últimos anos, houve grandes avanços na legislação e em algumas
políticas públicas que contemplam as especicidades das mulheres, mas a
realidade não se alterou muito. Porque o Estado trabalha a partir do crime
que a mulher cometeu e não atua no processo que a levou a cometê-lo. Dessa
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D S P:
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maneira a atuação estatal continuará construindo cada vez mais presídios
ao invés de buscar maneiras de reduzir a população prisional tanto com
prevenção quanto com alternativas à prisão. Fabiana, artista nata, sobrevivia
na penitenciária desenhando cartões para as outras detentas. Ela teve um
lho enquanto estava presa e acompanhava sua situação, pedindo a todos
com quem tinha contato para telefonarem para o abrigo, para onde ele foi
levado, em busca de notícias. Pouco antes de ganhar livramento condicional,
descobriu que perdeu a guarda do lho. Ela sempre falava em voltar para a
casa da mãe, continuar os estudos e conseguir um trabalho.Meses depois,
foi encontrada na rua, com um cachimbo na mão pronta para fumar uma
pedra de crack. Ela não recebeu apoio quando saiu do presídio e quis mudar
de vida. Nesse sentido não como discutir as mulheres encarceradas sem
falar das drogas, pois no Brasil, segundo dados de junho de 2011, 62%
das mulheres presas respondem pelo crime de tráco de drogas, enquanto
apenas 23% dos homens respondem pelo mesmo delito (BRASIL, 2012). E
não como discutir as drogas sem pensar alternativas ao encarceramento.
Para lidar com esta questão há que se fortalecer o debate sobre tratamento,
descriminalização e legalização de drogas.
quem são as mulheRes encaRceRadas hoJe?
Historicamente, a mulher encarcerada não existia no Brasil,
pois, as leis nacionais, as convenções e acordos internacionais, os
regimentos internos do sistema prisional tratavam apenas do homem
preso, considerando que a mulher estava naturalmente contemplada no
tratamento dado a eles. É claro que se abriu um parêntese sobre a gravidez e
amamentação, mas nada mais. O sistema prisional foi criado por homens e
para homens. cinco anos a lista de produtos que os familiares poderiam
levar para o parente preso no Estado do Rio Grande do Sul incluía cuecas
e não incluía calcinhas, sutiãs e absorventes.
Quando nalmente a condição do encarceramento feminino
passou a ser discutido, o faziam como se a mulher encarcerada tivesse um
perl único. A mulher encarcerada é jovem!”. Se a população feminina,
dentro das unidades prisionais, tem algumas características comuns, também
tem as idiossincrasias das mais de 35.000 mulheres que a compõem.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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A maioria é jovem, solteira e heterossexual. A maioria trabalha na
economia informal e tem renda de até três salários mínimos. Em torno de
60% delas são pretas e pardas. Várias pesquisas revelam que mais de 80%
das mulheres encarceradas são mães, e que mais de 60% delas possuem
ensino fundamental incompleto
1
. a penitenciária feminina de Santana
(SP), com aproximadamente 2.700 presas, nos mostra a diversidade de sua
população, pois, conta com mais de 150 mulheres com idade superior a 50
anos, segundo dados da penitenciária de setembro de 2011. O delito mais
comum entre elas é o de tráco de drogas. A média nacional de mulheres
presas que se enquadra no crime de tráco de drogas é de 63%, sendo que
deste total, 7% o estrangeiras. O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
(ITTC) desenvolveu nos últimos 12 anos um trabalho de acompanhamento
das mulheres estrangeiras que se encontram encarceradas nos presídios do
Estado de São Paulo. No início deste trabalho no ano de 2001, havia pouco
mais de quarenta estrangeiras encarceradas, hoje já são 550!
As mulheres também têm necessidades diferentes no que tange
à visita. Muitas unidades prisionais delimitam o número de pessoas que
podem visitar um preso, além de restringir a visita apenas aos parentes em
primeiro grau: pai, mãe, irmãos ou lhos, sendo a única exceção os (as)
avós. Porém, frequentemente, os lhos das mulheres encarceradas estão
dividos entre vários parentes ou até amigos. Estas restrições dicultam a
visita dos lhos, principalmente quando estão com mais de uma pessoa ou
um parente mais distante. Além disso, uma unidade feminina em Espírito
Santo só permite que se escreva carta de uma folha de sulte por semana.
E a maioria dos estados proibem acesso ao telefone público. Como ela vai
escrever para os vários lhos e manter o vínculo afetivo com eles se não
pode mandar mais de uma carta e não pode telefonar?
As mulheres encarceradas geralmente saem da prisão e voltam
a cuidar de seus lhos e de sua família estendida. Isso signica que tanto
ela quanto os lhos precisam de um trabalho terapêutico para diminuir
os efeitos negativos da separação e da prisão. As mulheres são mais
responsáveis pelo cuidado dos lhos e pela manuteção da casa do que os
homens. O problema é que elas perdem a casa com mais frequência do
1
pesquisas do Censo Penitenciário do Estado de São Paulo, InfoPen, do Ministério de Justiça e uma
pesquisa do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) junto com a Pastoral Carcerária Nacional que ainda
não foi publicada.
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que os homens encarcerados, porque não ninguém para tomar conta
da casa durante o período da prisão. Por causa disso, o impacto da prisão
é desproporcionalmente mais grave para as prisioneiras, frequentemente
resultando na perda do lar e em danos graves na vida de seus lhos.
Importante reconhecer que o padrão dos crimes cometidos
pelas mulheres é de menor potencial ofensivo, e isso signica que há mais
possíbilidade de exibilizar a sentença, conforme a necessidade dela e de
seus lhos. Desta forma o Estado poderia gastar menos recursos, investindo
em assistências às mulheres do que na construção de presídios de segurança
máxima. Numa decisão que exemplica a importância da individualização
da pena, Sabrina (processo 1042/2009 da Quinta Vara Criminal de
Guarulhos) foi sentenciada ao regime aberto apesar de ser condenada por
tráco de drogas.
Condeno a Sabrina [...] à pena privativa de liberdade de 1 ano,
11 meses e 10 dias de reclusão... pela prática do delito previsto no
artigo 33, com a causa de aumento do artigo 40, inciso III, da Lei
11343/06 [...] Quanto ao regime inicial de cumprimento da pena deve
obedecer aos mesmos critérios do art. 59, do C.P. e evidentemente
buscar a individualização da pena para se manter dentro dos preceitos
constitucionais (Súmula 718, do STF). Assim, considerando os
antecedentes da ré, sua colaboração com a Justiça, ser mãe e arrimo
de família, na verdade ser a única fonte de sustento de seis crianças,
as quais a segregação em regime inicial fechado da mãe certamente
nada trará de bom para suas vidas, impor o regime mais gravoso seria
desatender o principio da individualização da pena e as normas dos
Direitos Humanos. Destarte, co o regime aberto para o início da
pena privativa de liberdade [...]
As Regras de Bangkok conrmam a necessidade de considerar
que as mulheres presas representam menores riscos às demais, assim
como os efeitos particularmente nocivos que podem ter as medidas de
alta segurança e níveis elevados de isolamento para as presas. Ana Maria
morava na rua com seu marido e seu lho de 15 anos. Eles foram presos por
tentativa de furto, mas na hora da prisão, Ana Maria, que tem diculdade
em controlar suas emoções, discutiu com os policiais, e além da tentativa
de furto, cuja vítima nunca fez boletim de ocorrência e não compareceu em
três audiências, respondeu por desacato. Angela foi presa (por um simples
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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furto que virou roubo quando a vítima ameaçou o casal e o casal reagiu)
no dia 3 de junho de 2010 e recebeu a sentença (de medida de segurança)
15 meses depois!
Ana Maria teve uma oportunidade inédita no presídio, quando
foi realizada uma reunião com a equipe cnica: a psicóloga, três advogados
voluntários, que acompanharam o processo, a Pastoral Carcerária, uma
representante da Fundação Casa, que acompanhava o caso do lho que se
encontrava internado desde quando a mãe foi presa, e duas funcionárias da
Unidade Básica de Saúde, que tinham acompanhado Ana Maria por anos.
Todos trabalharam juntos para ajudar Ana Maria, pois, como o psiquiatra
disse: “O que me parece, é que se trata de pessoa com deciência mental e
portanto com limitações para lidar com os assuntos de sua vida e interesse.
A meu ver, portanto, trata-se maisde um problema social do que judicial.
Meses depois, Ana Maria se encontrava na mesma cela, na mesma unidade
prisional, encarando uma prisão que ela e muitos outros consideraram injusta
e desnecessária. Para o dia-dia de Ana Maria, aquela reunião “inéditanão
alterou nada. Ela continuou trancada até o próximo dia.
Nos últimos dez anos a população prisional feminina aumentou
260%, enquanto a população masculina aumentou 106%, conforme
dados do Depen relativos a 2010. No Brasil, as mulheres compõem 7% da
população prisional, tendo chegado a 35.596 em junho de 2011. O Estado
de São Paulo concentra mais de 30% desta população, sendo 12.170
mulheres em junho de 2011. Apesar de promessas governamentais para
fechar todas as carceragens em delegacias, ainda existem 44 carceragens
femininas, com quase 1.900 mulheres.
2
É importante constatar que a
prioridade máxima da maioria das mulheres encarceradas é a proximidade
à família para facilitar a visita e contato com seus lhos. Assim, quase todas
preferem estar num lugar totalmente inadequado e às vezes imundo como
as delegacias, do que ir para uma penitenciária nova que se situa mais longe
e impossibilita a visita familiar.
Dessas mulheres, 73% declaram-se solteiras, viúvas ou separadas,
e respondem sozinhas pela manutenção da casa e da família. Além disso,
mais de 80% das mulheres presas são mães. O homem preso sabe que ao
2
Dados fornecidos pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2011).
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D S P:
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nal da pena voltará para sua casa, pois a mulher e os lhos aguardam
sua volta. As mulheres encarceradas não têm esta certeza. Elas perdem o
domicílio e os lhos são espalhados entre a família, amigas, etc. Apenas
20% das crianças cam sob a guarda do pai quando a mãe é presa, enquanto
quase 90% dos lhos de homens presos permanecem sob os cuidados das
mães. E se as crianças estão abrigadas em instituições, as egressas têm de
provar renda e uma casa para conseguir retomar a guarda de seus lhos.
As mulheres apresentam mais problemas de saúde e de saúde mental
quando presas. Muitos presídios não têm nenhum médico, e também não
tem nem auxiliar de enfermagem à noite e nos ns de semana. As mulheres
também historicamente tomam mais remédios controlados. O ITTC e uma
pesquisa feita por Iara Ilgenfritz mostram que 95% das mulheres presas
foram vítimas de alguma violência em algum momento na vida.
as dRogas
O Núcleo de Estudos da Violência (NEV) publicou um relatório
em 2011 de uma pesquisa aprofundada dos casos de prisão em agrante
por tráco na cidade de São Paulo. O resultado demonstra o aumento
vertiginoso de prisões por tráco de drogas no Estado de São Paulo.
Em 2006, havia 17.668 presos por tráco de drogas 12% do total de
presos. Em 2010, este número saltou para 42.849, 142% superior a 2006,
representando 25% de todos os presos no estado e 42% do total de presos
por crimes contra o patrimônio (JESUS, 2011, p. 15). Nestes agrantes,
69% eram de uma pessoa e 57,28% não tinham antecedentes criminais.
Isso signica que a grande maioria estava entrando no sistema prisional
pela primeira vez e não tinha ligação com uma rede de tráco ou crime
organizado. A Lei 11.343/2006 foi proposta para reconhecer que o usuário
não precisa de prisão. Mas como o artigo, “Uma lei que pegou demais”,
da Revista Época de 01/05/2011, mostra: A legislação antidrogas previa
encaminhar os dependentes para tratamento. Eles estão indo - em grande
número - para a cadeia” (MAIA JUNIOR, 2011).
Elisa, depois de passar nove meses presa, foi considerada uma
usuária de drogas, ou seja, esperou nove meses presa para o juiz decidir que
ela não devia estar presa. Líliam, presa desde outubro de 2010, arma que
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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é usuária de drogas. Ela espera há um ano e cinco meses para fazer o exame
toxicológico para provar que não deve estar presa. E, no entanto, o habeas
corpus impetrado pela defensoria pública por excesso de prazo foi negado.
A lei antidrogas e a política proibicionista têm outros efeitos:
O saldo de quase cem anos de proibicionismo pode ser resumido
da seguinte forma: a oferta de drogas não foi reduzida, o consumo
aumentou, a situação da saúde pública agravou-se, o sistema prisional
está superlotado e próximo à falência, aumentou a corrupção, e os
grandes tracantes continuam soltos; os lucros nunca foram tão altos,
e a circulação de dinheiro sujo não diminuiu; novas drogas estão
disponíveis nos mercados, as drogas naturais foram geneticamente
modicados e estão cada vez mais potentes. (IBCCRIM, [2012?]).
Segundo Iara Ilgenfritz (2003) as mulheres entram no mundo
da venda de drogas ilícitas em razão do vínculo afetivo e diculdades
nanceiras. Carla disse para a agente da Pastoral Carcerária que estava
precisando muito de dinheiro e alguém lhe ofereceu R$50,00 para levar
drogas dentro do corpo em um dia de visita na penitenciária. As mulheres
alegam que estavam juntas aos namorados, que portava a droga, no
momento da prisão, ou guardavam as drogas em casa, ou foram agradas
na revista íntima. Maria cou desesperada quando o marido foi preso,
pois, ela cuidava de quatro lhos e não tinha renda para sustentar a família.
Ela pediu dinheiro emprestado à vizinha. A vizinha cobrou o valor devido,
propondo uma forma para quitar a dívida. Maria teria de transportar drogas
quando fosse visitar o marido no presídio. Ela foi agrada na revista.
Luciana Boiuteaux (2009), em sua pesquisa sobre o Rio de Janeiro
e Brasília, mostrou que dos presos por tráco, 55% eram réus primários,
94% não portavam armas quando foram presos e 60% estavam sozinhos
na hora da prisão. De 2005 a 2010, 7 em cada 10 mulheres foram presas
por tráco de drogas. No Amazonas, 82,4% das mulheres presas estão
sendo acusadas ou sentenciadas por tráco de drogas (BRASIL, Infopen
Estatística, 2012). Um delegado de Belém do Pará declarou que, o índice
de mulheres presas em Belém por associação ao tráco de drogas ano
passado cresceu 98% em relação ao ano anterior” (BLANCO, 2010). Um
delegado do Amazonas declarou que a principal justicativa das mulheres
agranteadas (vendendo drogas) é que o dinheiro da venda das drogas
171
D S P:
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ajuda na renda familiar da casa(BRITO, 2010). Leiliana com 18 anos foi
presa por tráco de drogas. Ela foi ao ponto de venda para conversar com
outra jovem que estava trabalhando no local. Durante a batida policial,
ela não tinha os R$5.000,00 exigidos para evitar a prisão em agrante. A
proporção de mulheres encarceradas que também armaram ter abusado
das drogas em algum momento da vida chegou a 42,2% (ILGENFRITZ,
2003). Muitas mulheres presas relatam que as drogas entram livremente
nas unidades prisionais e que elas continuam consumindo drogas depois
de presas. Um estudo no Rio de Janeiro mostrou que para cada ano a
mais que se passa na prisão, a chance de usar cocaína aumenta em 13%”
(CARVALHO et al., 2005).
Estima-se que pelo menos 75% das mulheres que ingressam no
sistema prisional da Inglaterra têm algum tipo de problema relacionado
às drogas no momento da prisão. Outra estimativa aponta que 75% das
mulheres que ingressam nos presídios da Europa são dependentes de
drogas e alcoól (UNODC, 2008, p. 9). Um estudo nos Estados Unidos
demonstrou que até 80% das mulheres presas apresentam problemas
graves e duradouros de dependência química. Em muitas delas, o abuso de
drogas coincide com pobreza e múltiplos problemas psicossociais, doenças
mentais e histórias de trauma e violência. Carmen foi presa por furto
pela terceira vez. Quando perguntada sobre o furto, ela respondeu, meu
problema não é o furto. Meu problema é as drogas. Eu furto para comprar
drogas”. O contingente de mulheres no sistema prisional está aumentando
e elas estão permanecendo no sistema por mais tempo.
a Justiça e as mulheRes
Em 2006, A Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema
Prisionalconcluiu seu trabalho e publicou relatório nal, com um capítulo
especíco dedicado à questão da mulher encarcerada, dizendo:
Não há uma discussão efetiva da criminalidade feminina na maioria das
teorias do Direito Penal e das ações governamentais da discriminação e
seletividade do sistema de justiça penal, que acaba punindo grupos mais
vulneráveis social e economicamente, e a mulher se insere nesse contexto
antes da fase processual e após a sentença transitada em julgado.
[...]
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
172
Em relação ao perl das mulheres presas, diversas pesquisas demonstram
o quanto elas integram as estatísticas de vulnerabilidade e exclusão
social: a maioria tem idade entre 20 a 35 anos, e é chefe de família,
possui em média mais de dois lhos menores, apresenta escolaridade
baixa e conduta delituosa que se caracteriza pela menor gravidade.
(BRASIL, 2009, p. 269-270).
O relatório da CPI concluiu seu capítulo sobre as mulheres com
propostas legislativas e propostas para o Executivo: a garantia de direito à
prisão apartada de presos do sexo masculino; a alteração da legislação sobre
a questão da Mulher “Mula” nos crimes de tráco, e a publicação anual do
Índice do Desenvolvimento Humano das mulheres encarceradas.
Em 2007, o Grupo de Estudo e Trabalho “Mulheres Encarceradas
composto de entidades da sociedade civil, realizou uma audiência temática
na Comissão de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos
(OEA) sobre a questão de mulheres encarceradas, e posteriormente lançou
seu relatório sobre Mulheres Encarceradas no Brasil
(CEJIL, 2007). A
audiência aconteceu com a participação do Governo Federal, que criou o
Grupo de Trabalho Interministerial sobre a questão das mulheres presas.
Este GTI contou com a participação de 14 ministérios e duas representantes
da sociedade civil para discutir a questão das mulheres encarceradas e
como melhor atender suas necessidades. O grupo publicou um relatório
sobre a Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino em
dezembro de 2007 (BRASIL, 2007).
O indulto natalino é um benefício que concede o perdão judicial,
ou seja, a extinção da pena concedida através do decreto de número 7.046,
do presidente da República.Por ser revisado e publicado sempre no nal do
ano, é conhecido como Indulto Natalino. Desde 2008, o Indulto Natalino
também contempla a questão da mulher mãe (e o homem pai), abrindo
a possibilidade de beneciar quem tem lho ou lha menor de dezoito
anos ou com deciência mental, física, visual ou auditiva. O indulto não
é aplicável às condenadas por tráco ilícito de drogas”, o que exclui do
benefício 62% das mulheres encarceradas.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a Lei
de Execução Penal (LEP), e o Estatuto da Criança e Adolescente garantem
173
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o direito de amamentação da criança cuja mãe está privada de liberdade.
Porém, não havia regulamentação especíca até a “Lei de Amamentação”.
3
A Lei garante espaço especíco para gestantes e para seus lhos. O bebê
pode car no mínimo seis meses e no máximo até aos sete anos de idade.
Apesar disso, centenas de mulheres continuam sem tratamento adequado
a sua condição de gestantes e mães de recém-nascidos. Alguns Estados
têm construído presídios com berçários, outros têm reformado um espaço
existente para receber as mães e seus lhos. Porém, a grande maioria
continua sem assegurar espaço adequado. Andreia, 18 anos de idade e
grávida de gêmeas, presa numa cidade pequena, perdeu a guarda das lhas
por uma ordem judicial que deu guarda provisória a um casal, depois de
somente 15 dias de amamentação. Um ano e sete meses depois, ela não
tinha sido ouvida pela juíza responsável pelo processo de guarda/adoção. O
fórum tem uma única Vara, e assim, a juíza do processo criminal é também
a juíza do processo de guarda.
O Estado de São Paulo, apesar de ter a maior população prisional
feminina, e um número signicativo de mulheres amamentando, nunca
prestou atenção a esta questão. Quando nalmente começou considerar
o direito de amamentação sempre “in-adequou” um espaço “temporário”.
E a decisão de quando separar a mãe de seu lho é sempre avaliada pela
necessidade de vagas. Não se considera primeiramente o bem-estar da
criança, ou se a mãe tem uma pena baixa que daria a possibilidade dela sair
junto com seu lho. Priscila foi condenada a um ano e oito meses de prisão
e foi presa grávida de dois meses. Depois de mais sete meses de gravidez
e seis meses de amamentação, ela foi obrigada entregar o lho à família.
4
Alguns juízes, em casos especícos, têm reconhecido que a prisão
não é lugar para criança e tem autorizado que as mães amamentem em
casa. Em Minas Gerais, a juíza Lúcia Regina Vertnan Freschi Landgraf, em
2008, reconheceu o direito da mãe e seu lho à amamentação e sentenciou
a mãe à prisão domiciliar:
3
BRASIL. Lei 11.942, de28 de maio de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2007-2010/2009/Lei/L11942.htm>. Acesso em: mar. 2012.
4
Somente após o escândalo nacional trazido à tona pela Pastoral Carcerária das mulheres dando a luz algemadas,
o governador de São Paulo publicou o Decreto 57.783 de 10 de fevereiro de 2012 que proibe “o uso de algemas
durante o trabalho de parto da presa e no subsequente período de sua internação em estabelecimento de saúde.
Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2012/decreto%20n.57.783,%20de
%2010.02.2012.htm>. Acesso em: mar. 2012.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
174
Com relação ao pedido de prisão domiciliar, embora a sentenciada não
faça jus ao benefício e não haja previsão legal, mas considerando o
informado à f. 64 de que o Presídio local não dispõe de condições
físicas para os cuidados necessários para os primeiros meses de um
recém- nascido e o sistema prisional de Minas Gerais está carente de
vagas para gestantes em penitenciária, concedo o benefício da prisão
domiciliar, nos termos da Portaria 112/04 deste Juízo, pelo período
de cento e vinte dias contados do nascimento da criança, devendo, ao
término do prazo, a sentenciada apresentar-se para recolhimento no
Presídio local. (VIDAL, 2012).
Em São Paulo, Ana Paula foi sentenciada em regime fechado pelo
delito de roubo (art. 157), mas pela condição de amamentação, a juíza
concedeu o benefício de prisão albergue domiciliar enquanto o processo
de apelação tramitava
5
.
No nal de 2011, o governo Federal lançou seu plano de
“Melhorias Penitenciárias designando R$1,1 bilhão do orçamento,
para construção de presídios, com a promessa de zerar o defícit de vagas
femininas. O presídio com maior superlotação no Estado de São Paulo é a
Penitenciária Feminina da Capital. Sua população chega a ser 323% maior
que a capacidade da prisão. A unidade tem vagas para 251 presas, mas sua
população, em novembro de 2011, era de 810 presas.
A “Lei Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade
Provisória
6
, que entrou em vigor em julho de 2011, entre outras
considerações, trata especicamente da mulher como mãe, gestante e
cuidadora. A lei abre a possibilidade de prisão domiciliar quando seja
“imprescindível (a presença da acusada para garantir) aos cuidados especiais
de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deciência(Art. 318,
inc. III); ou quando ela é gestante a partir do 7º mês de gravidez, ou antes
com laudo provando que é gravidez de alto risco (inc. IV). Além disso,
esta lei não veda a possibilidade de liberdade provisória para a acusação de
tráco de drogas, deixando a critério do juiz, o que poderia ter um forte
impacto nas prisões das mulheres.
5
Termo de Advertência, Processo 050.10.045338-4, 8465/2010, da Vara Criminal da Capital, SP,
26/10/10.
6
BRASIL. Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm>. Acesso em: mar. 2012.
175
D S P:
 ,  
As Regras Das Nações Unidas Para O Tratamento De Mulheres
Presas E Medidas Não Privativas De Liberdade Para Mulheres Infratoras
(Regras De Bangkok)
7
são complementares às Regras Mínimas para o
Tratamento de Reclusos (adotadas por ONU em 1955) e às Regras de Tókio
(sobre medidas não-privativas de liberdade) e tratam das questões especícas
às mulheres encarceradas e àquelas cumprindo medidas não-privativas de
liberdade. Elas foram aprovadas na Assembléia Geral da ONU em outubro
de 2012. Diferentemente das Convenções da ONU, as regras mínimas
têm por objetivo estabelecer princípios e regras de uma boa organização
penitenciária e das práticas relativas ao tratamento de prisioneiros. O
Estado brasileiro, por ser membro da ONU, tem o deverde respeitar
as regras, mas não pode sofrer sanção por não cumpri-las. Entre outras
considerações, elas contemplam a realidade da mulher mãe em situação de
prisão; o fato de que atualmente a grande maioria de mulheres é presa pelo
envolvimento com drogas; a realidade das estrangeiras, a questão de saúde
em geral e a saúde mental, e o direito de contato com sua família (seja por
visita ou por telefone). A segunda regra trata da necessidade da mulher ter
como denir com quem pode deixar os lhos enquanto estiver presa, e, se
necessário, até ter a prisão suspensa enquanto procura resolver esta questão.
De extrema importância neste momento no Brasil, as regras dizem que
jamais se utilizarão algemas (medidas de coerção) no caso de mulheres em
dores de parto, durante o parto e no período imediatamente pós-parto
(Regra 24). As Regras 47-62 tratam a questão de acesso à justiça, inclusive
reconhecendo que é comum que as mulheres infratoras cometam crimes
com menos violência, que apresentam um baixo potencial ofensivo e que
devem ter, quando possível, acesso às alternativas à prisão. E nalmente,
em concordância com os resultados do CPI do Sistema Prisional Feminino
no Brasil, as regras reconhecem que são muito poucos os estudos sobre
mulheres encarceradas.
7
As Regras estão ocialmente publicadas nas línguas da ONU, que inclui inglês e espanhol, disponíveis no
site da Pastoral Carcerária. Sou da Paz e a Pastoral Carcerária estão em processo de terminar uma versão em
português. Até a publicação deste artigo, deve estar disponível nos sites das duas entidades. Versão em Espanhol,
disponível em: <http://www.carceraria.org.br/fotos/fotos/admin/mulher%20presa/Bangkok%20Rules%20
(ESP).pdf>. Acesso em: mar. 2012.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
176
conclusão
avanços signicativos nas políticas públicas e leis que
contemplam as mulheres encarceradas. Não basta lutar por melhores
condições dentro dos presídios; é necessário também mudar a sociedade.
A cultura de punição e da violência precisa mudar. A Pastoral Carcerária
Nacional participou de um encontro com todas as Pastorais Carcerárias
da Igreja Católica da América Latina, organizado por CELAM (Conselho
Episcopal Latino-americano), e encerrou o encontro com um documento
produzido pelos participantes: O Sonho de Deus! Um Continente Sem
Prisões. “Queremos que o sonho de Deus seja nosso sonho: que não existam
prisões, para isso de se transformar o modelo de sociedade imperante
em nosso Continente” (PASTORAL CARCERÁRIA, 2008).
Não seria preferível gastar o dinheiro dos impostos com saúde,
educação e cultura? Não seria preferível nos sentir tranquilos voltando
para casa à noite? Não seria preferível saber que se nós, ou nossos lhos, se
deparamos com a dependência química, teríamos assistência de saúde em
vez de prisão e violência? A Mahatma Gandhi é atribuída a frase, “eu sonho
com o dia em que meus netos me perguntarão,vo, o que é prisão?” Não é
isso o que queremos para os nossos netos? Isso signicaria que encontramos
alternativas mais ecazes e mais duradouras para os problemas da vida em
sociedade. Queremos um mundo sem prisões, mas enquanto isso não chega
a realizar-se, queremos garantir acesso à justiça, tratamento digno e a garantia
dos direitos das pessoas que estão privadas de sua liberdade.
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180
181
A políticA priSionAl pAuliStA e A
emergênciA do pcc: conSiderAçõeS Sobre A
FormAção de umA eSpecíFicA teiA SociAl
Camila Nunes Dias
O surgimento da organização de presos autodenominada
Primeiro Comando da Capital (PCC) é um fenômeno complexo, para
o qual ainda não se esgotaram análises para apontar as causas de seu
aparecimento e as condições para a expansão e a consolidação de seu poder
no sistema prisional de São Paulo
1
. Neste texto, não temos a pretensão
de desenvolver uma explicação denitiva para este fenômeno, mas serão
apresentados alguns aspectos da política de segurança pública paulista,
sobretudo da política prisional, durante a década de 1990, que lançam
luzes para a compreensão das condições sociais e políticas que permitiram
– ou favoreceram – o desenvolvimento deste processo.
Embora não seja possível estabelecer uma relação de causa e
conseqüência, consideramos que as orientações políticas que presidiram as
1
Análises sobre o PCC podem ser encontradas em: Adorno e Salla (2007), Salla (2008), Biondi (2010), Dias
(2009, 2011a, 2011b), Marques (2010). Sobre a história do PCC, ver: Jozino (2005), Souza (2006), Souza
(2007).
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
182
práticas do governo estadual durante a década de 90 acabaram por exercer
fortes pressões no sistema prisional, fator que associado a outros (mudança
no perl dos criminosos, no padrão de criminalidade, disseminação de
tecnologias, sobretudo do celular) acabou por criar as condições de
emergência do PCC. Tendo em vista a existência de uma multiplicidade
de fatores direta ou indiretamente relacionados ao desenvolvimento do
PCC, vamos nos limitar aqui à exposição das práticas do governo estadual
que consideramos relevantes para o delineamento de um peculiar contexto
histórico-político da segurança pública paulista.
***
Conforme apontado por rgio Adorno, na impossibilidade de
construir uma ligação entre direitos humanos e segurança blica reside o
nó da questão no que concerne às diculdades de promover reformas nessa
esfera, gerando um descompasso entre o processo de democratização política
e a forma de atuação das instituições que compõem o sistema de justiça
criminal, ainda pautadas pelo autoritarismo (ADORNO, 2000, p. 147).
Neste sentido, a atuação na área da segurança pública nos
diferentes governos que tiveram lugar a partir da redemocratização foi
decisiva para a transformação do perl da população carcerária durante
os anos 1990, com a emergência de várias facções prisionais, dentre as
quais o PCC. Dada a natureza do pacto federativo brasileiro, que reserva
aos estados a atribuição na formulação e implementação de políticas nesse
setor, a atuação do governo federal permanece absolutamente dependente
dos acordos construídos no âmbito do poder Legislativo, no qual os
lobbies envolvendo as várias corporações ligadas direta ou indiretamente ao
sistema de justiça criminal produzem não poucos obstáculos para a adoção
de políticas liberalizantes ou a construção de um controle social externo
sobre tais instituições (ADORNO, 2000). É no âmbito estadual que reside
o núcleo mais claro e preciso do qual emergem as diretrizes que estão
subjacentes à atuação das corporações policiais e do sistema penitenciário.
O caso paulista é emblemático dos dilemas e da complexidade dos fatores
183
D S P:
 ,  
relacionados com a manutenção da lei e da ordem, em um contexto social
e político marcado pela mudança de paradigma.
Assim, a adequada compreensão do peculiar processo social
ocorrido em São Paulo passa pela compreensão do papel do Estado nos
anos de transição democrática, na formulação e implementação de políticas
na área de segurança. Políticas que ora tendiam para a garantia dos direitos
humanos e o concomitante controle das ações policiais e no interior do
sistema carcerário, ora atendiam a apelos populares e de setores sociais e
políticos conservadores, no sentido de permitir a atuação “rme e dura
das polícias, o que signicava dar a estas instituições carta branca para o
abuso e a violência institucional.
A atuação das forças policiais em São Paulo assim como
nos demais estados da federação pode ser contada como uma longa
história de abusos, especialmente voltados contra a população pobre. Em
decorrência da impossibilidade de se fazer neste espaço uma história dessas
práticas, vamos nos limitar a pontuar algumas situações importantes para
a compreensão do contexto social e político que nos interessa diretamente.
A despeito do pado historicamente autoririo e violento das
ões policiais, houve variões signicativas ao longo dos vários governos
democraticamente eleitos no estado de o Paulo, o que demonstra a
importância das orientações poticas mais amplas que incluem as nomeações
para os cargos de secretário e a escolha da chea das pocias, por exemplo
que eso na base das formulações dos programas de segurança pública.
O governo de Franco Montoro (1983-1987), primeiro governador
eleito após a instauração do regime militar, foi marcado pela tentativa de
expandir o processo de democratização, elevando o discurso de respeito
aos direitos humanos a uma posição central em suas formulações políticas.
No tocante às polícias, a par da instabilidade provocada pela resistência
das corporações ao modelo de controle que o governo tentava manter
que pode ser expresso claramente pela troca de secretários de Segurança
por três vezes –, os números de mortos em confronto continuaram altos
quando comparados com taxas de anos anteriores, embora se mostrem
extremamente baixos se comparados com as taxas de letalidade vericadas
nos governos que o sucederam.
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184
0
200
400
600
800
1000
1200
1400
1600
1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Policiais mortos em serviço Mortos em confronto com a policia Feridos em confronto com a policia
LETALIDADE POLICIAL E POLICIAIS MORTOS EM SERVIÇO NO ESTADO DE SÃO PAULO
1984/2009
Gráco 1: Letalidade policial e policiais mortos em serviço no Estado de
S. Paulo (1984/2009)
Fonte: 1984-1995 Caldeira (2000).
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Paulo. Disponível em: <http://www.ssp.sp.gov.br>. Acesso em: 1 mar. 2011
Como se pode vericar no gráco acima, em 1984 foram 300
civis mortos por policiais militares em São Paulo, número que sobe para
585 em 1985, decai para 294 em 1988, subindo progressivamente a partir
deste ano, passando de 585 mortos em 1990 à espantosa cifra de 1.140 em
1991, chegando a 1.470 mortes em 1992. No ano seguinte, essa taxa caiu
drasticamente para 409, chegando a 253 em 1996.
A taxa de letalidade policial pode ser afetada por uma miríade de
fatores estruturais e conjunturais. Assim, em que pese a incidência de tais
fatores aumento de confrontos, falta de treinamento policial, aumento
da circulação de armas de fogo, aumento do poder de fogo de criminosos
que podem ajudar na explicação das oscilações do período 1984-1990,
o salto ocorrido entre 1990 e 1991 é revelador da profunda mudança de
paradigma da segurança pública, ou do retorno a velhos paradigmas, com
a eciência policial voltando a estar acoplada ao número de cadáveres que
a instituição produz.
185
D S P:
 ,  
Após o desgaste do governo Montoro provocado, sobretudo,
por sua política de garantia dos direitos humanos , ocorreu um verdadeiro
retrocesso nas políticas de segurança. O tema da segurança pública foi
central durante a campanha de 1986, ocasião em que políticos de direita se
apropriaram das críticas e oposição enfrentadas pelo governo e passaram a
atacar os direitos humanos, associando-os ao aumento da violência urbana
e da desordem social. Nesse contexto, é eleito Orestes Quércia, que nomeia,
como titular da pasta da Segurança Pública, Luis Antonio Fleury Filho,
cuja atuação o habilitaria a tornar-se o próximo governador do estado. O
período em que a segurança pública paulista esteve sob as ordens de Fleury
(1987-1990, na condição de secretário de Segurança; 1991-1994, como
governador) foi revestido de um intenso recrudescimento da violência e
do arbítrio policial, dentro e fora do sistema carcerário, chegando ao seu
ápice em 1992, com o número de mortos por policiais atingindo a marca
dos 1.470, incluindo-se neste total os 111 presos assassinados no evento
conhecido como massacre do Carandiru, sobre o qual voltaremos adiante.
Após atingir o pico da ilegalidade e da truculência policial, a gestão de
Fleury, pressionada pela opinião pública, promoveu uma distensão dessa
orientação política, trazendo de volta à pasta da Segurança, Michel Temer,
que já havia ocupado o posto no nal do governo Montoro.
A eleição de Mário Covas representou uma nova tentativa de
limitar os abusos de poder no âmbito das forças de segurança. Tanto no
plano federal quanto no estadual, as plataformas políticas indicavam uma
aproximação com o discurso dos direitos humanos. Como reexo destas
orientações políticas, ocorre uma signicativa redução da taxa de mortes
provocadas pela ação policial, sobretudo em 1996, 1997 e 1998, ano a partir
do qual se verica nova tendência de alta, acentuada no ano 2000, com
ligeira queda em 2001, seguida de nova tendência de alta que permanece
até 2003. De 2004 em diante, observa-se a estabilização desses números em
patamares mais baixos, com ligeiras oscilações, até os dias atuais.
Os anos de 1999, 2000 e 2001 foram marcados por um
incremento em praticamente todas as modalidades de crime, assim como
pelo aumento da turbulência no sistema prisional do estado. Até mesmo as
taxas de óbito de policiais em serviço dão um salto importante em 1999,
reforçando a percepção de que se trata de um contexto social marcado
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
186
pelo recrudescimento da violência urbana e pelo acirramento da oposição
entre policiais e criminosos. É também neste período que o PCC começa
a sair do anonimato e as ações envolvendo seus integrantes cada vez
mais ousadas tornam-se mais frequentes, o que pode ter estimulado
respostas mais violentas por parte da polícia, com mais desfechos fatais.
Já o ano de 2004, em que esses números retornam para patamares mais
baixos, corresponde a um período de trégua entre o PCC e o estado,
conforme foi apontado em pesquisa realizada no período (DIAS, 2008).
Não nos deteremos nesta discussão, aqui ca o registro da congruência
deste episódio com as oscilações vericadas nas taxas de violência policial,
o que pode indicar a convergência desses fatores, com a conformação de
contextos turbulentos ou apaziguados.
As utuações políticas em São Paulo tiveram um reexo
importante também no sistema carcerário. A fracassada pretensão de
Franco Montoro de elevar os direitos humanos à categoria de prioridade
nas políticas de segurança foi ferozmente boicotada também dentro das
prisões, da mesma forma que a truculência e o arbítrio da gestão Fleury
encontraram ressonância nos números que despontam do interior do sistema
carcerário. No caso da gestão Covas, em que pese seu comprometimento
com a contenção dos abusos das forças de segurança, a orientação política
mais “humanistaesteve fortemente atrelada a uma política de expansão de
vagas no sistema prisional, com impactos importantes na sua conformação
social e nos problemas que adviriam desse conjunto de elementos. Além
disso, o recrudescimento da violência dentro dos cárceres e o aumento
da turbulência no sistema prisional produziram sobre o governo pressões
que acabaram por reverter importantes medidas garantistas, uma vez mais
consideradas causas do aumento dos distúrbios.
A promulgação da LEP em 1984 é representativa de um (curto)
período em que os direitos humanos estiveram no cerne do debate público
e guraram como tema central nos programas de governo de pelo menos
dois dos estados mais importantes da federação, Rio de Janeiro, com Leonel
Brizola, e São Paulo, com Franco Montoro. Da mesma forma que a sua
criação retratava um peculiar contexto político, marcado pela emergência
da agenda dos direitos humanos no debate público, o seu naufrágio, que
teve início com a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos, em 1990,
187
D S P:
 ,  
e recebeu o golpe fatal com a promulgação da nova LEP, em 2003, esteve
fortemente atrelado ao conjunto de elementos políticos e sociais que
conformaram uma guinada conservadora no campo da segurança pública,
com um forte retrocesso na garantia dos direitos humanos dos presos.
Até o início da década de 1990 o sistema carcerário paulista
estava sob a responsabilidade da Secretaria de Justiça, primeiro por meio
do Departamento dos Institutos Penais do Estado (Dipe) e, em 1979, após
reformulação feita pelo doutor Manoel Pedro Pimentel, titular da pasta da
Justiça, foi criada a Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciários do
Estado (Coespe), que gradualmente passou a ter autonomia na gestão do
sistema. Como reexo das orientações políticas da gestão Fleury, a Coespe
foi transferida para a Secretaria da Segurança Pública, em 15 de março de
1991, o que acabou por concentrar o sta prisional e o contingente policial
do estado, revelando claramente uma ão de empoderamento da pasta da
Segurança Pública, em detrimento do sta da Justiça (SALLA, 2007, p. 78).
Logo após o episódio do massacre do Carandiru (em 1992), e como
um de seus desdobramentos, em janeiro de 1993 foi criada a Secretaria de
Administração Penitenciária (SAP), que se constitui como pasta autônoma
diante da Segurança Pública e da Justiça e tem como seu órgão executivo
a Coespe. Até 2000, o secretário de Administração Penitenciária cumpria
o papel de mero articulador político, sendo que a gestão do sistema
carcerário continuava atrelada à estrutura burocrática e administrativa da
Coespe, assim como os processos decisórios continuavam concentrados na
gura do seu coordenador (TEIXEIRA, 2006, p.140-141). A mudança
dessa estrutura ocorreu apenas na gestão de Nagashi Furukawa, que em
1999, ao assumir a SAP, deu início a uma ampla reforma na sua estrutura
administrativa e organizacional, culminando na descentralização e posterior
extinção da Coespe, dando lugar a cinco coordenadorias regionais e uma
de saúde, as quais respondiam diretamente ao secretário, agora investido
de fato das funções de gestão e execução das políticas do setor.
A forma de atuação em eventos de ruptura da ordem nas
prisões isto é, as rebeliões e motins constitui-se como termômetro do
compromisso das autoridades com a garantia dos direitos humanos dos
presos – certamente este é o ponto de maior fragilidade e encontra a maior
resistência da população e das autoridades. Assim, governos cuja política
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
188
de segurança está atrelada a um compromisso mais forte com os direitos
humanos tendem a privilegiar desfechos negociados e com intervenção
mínima da Polícia Militar. os governos cujas plataformas políticas não
são anadas com o discurso dos direitos humanos tendem a não hesitar na
utilização da Polícia Militar na resolução de rebeliões, que acabam, via de
regra, por produzir um elevado número de mortos.
O Brasil tem uma longa história de violência nas prisões, o que
adquire visibilidade com a erupção de tais eventos. A década de 1980
foi particularmente sangrenta no sistema carcerário paulista. Em 1982,
no governo de Paulo Maluf , o saldo de mortos em uma rebelião na Casa
de Detenção de São Paulo foi de 13 presos e 3 funcionários. durante
o m do governo Montoro, profundamente desgastado em função da
sua política de humanização, ocorreu outro evento com trágico desfecho.
Desta vez, o palco foi a Penitenciária de Presidente Venceslau, onde, após
uma frustrada tentativa de fuga e o início de um motim, a intervenção
militar resultou na morte de 14 presos, a maioria a pauladas. Tal evento,
ocorrido em setembro de 1986, foi indicativo da reversão da política de
segurança inicialmente pretendida no governo Montoro, que, a essa altura,
havia perdido seu principal expoente, José Carlos Dias, secretário de
Justiça substituído por Omar Cassin, coordenador da Coespe no governo
Paulo Maluf e o titular da pasta nos dois eventos com trágico desfecho
acima mencionados (SALLA, 2007, p. 76).
Se o m do governo Montoro sinalizava a revero da proposta
de estender o processo de redemocratizão em curso no país às instituições
do sistema de justa criminal, os governos seguintes, de Qrcia e Fleury,
representaram um enorme retrocesso nessa área, como pode ser claramente
percebido a partir de três eventos que marcaram a potica carcerária do peodo.
Em julho de 1987, mais uma fuga frustrada resultou em rebelião,
desta vez na Penitenciária do Estado. Portando armas de fogo, os presos
zeram vários reféns entre os funcionários e destruíram boa parte da
unidade prisional. A intervenção da Polícia Militar deixou um saldo de
28 presos mortos, além de um funcionário que era mantido refém pelos
amotinados.
189
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 ,  
Em 1989, ocorreu o caso do 42.º Distrito Policial, onde, em
represália a uma frustrada tentativa de fuga, em uma cela de 1,5 X 4 metros
foram connados 51 presos, sem ventilação, o que provocou a morte de 18
deles por asxia.
Por m, em outubro de 1992, a truculência e o abuso de
poder que marcaram a gestão de Fleury no campo da segurança pública
atingiram seu ponto culminante com a tragédia do Carandiru: a partir da
invasão da Tropa de Choque da Polícia Militar, foram mortos 111 presos, a
grande maioria com claros sinais de execução sumária. Internacionalmente
conhecido como massacre do Carandiru, o evento foi expressão máxima da
política de intervenção violenta da Polícia Militar no sistema carcerário,
em curso desde 1986. Assim, como arma Fernando Salla (2007, p. 78), o
massacre do Carandiru não representa um evento inusitado das práticas de
intervenção policial, antes faz parte de um contínuo cuja lógica subjacente
era a da baixa preocupação com os direitos humanos e uma percepção de
que a ação policial não encontrava limites na lei.
Por sua repercussão negativa pelo menos em comparação com
outros eventos semelhantes e pela pressão que se exerceu sobre o governo,
esse episódio constituiu um divisor de águas nas políticas do setor: a partir
dele foram tomadas, no âmbito do Executivo, várias medidas para uma
retomada mínima das garantias constitucionais da população encarcerada.
No início da primeira gestão Covas, houve uma clara orientação no sentido
de evitar a participação da Polícia Militar na resolução dos conitos que
eclodiam no sistema prisional para interromper o ciclo de desfechos
violentos que marcaram os governos anteriores. Contudo, os casos de
rebelião e motim explodiram durante todo o seu governo de Mário Covas,
aumentando as pressões para que a Polícia Militar ocupasse novamente o
lugar central no enfrentamento dessas situações.
A resistência da SAP em admitir a invasão de presídios pela PM
era vista como sinal de fraqueza e, portanto, como a causa do aumento
vertiginoso dos episódios durante os dois governos Covas. Aqui vale apontar
a mútua inuência e a interpenetração desses processos sociais, na medida em
que a violência e a instabilidade do sistema prisional, a partir da emergência
do PCC (que, por sua vez, está diretamente atrelada ao contexto social e
político aqui delineado) também foram propulsoras da guinada à direita na
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190
política do setor, na medida em que se alimentava a sensação da população
de que o governo era leniente demais no trato dos distúrbios, o que acabava
por incentivá-los. Uma vez mais, transparece o gap entre direitos humanos
e segurança pública, evidenciando a ausência de um consenso político sobre
a forma de se implementar lei e ordem sem comprometer as políticas de
proteção aos direitos humanos (ADORNO, 2003, p. 137).
Se as rebeliões traziam à cena pública as chagas das prisões
paulistas, assim como as formas violentas e arbitrárias rotineiras na
resolução desses distúrbios, outros dispositivos de abusos e arbitrariedades
perpetradas pelo Estado permaneciam funcionando de forma discreta
e silenciosa no âmbito do sistema prisional de São Paulo. É o caso do
Anexo da Casa de Custódia de Taubaté, inaugurado em 1985 para abrigar
os indivíduos imputáveis dotados de periculosidade, além daqueles que
possuíam problemas disciplinares nas suas unidades prisionais de origem
(TEIXEIRA, 2006, p. 119). Embora os procedimentos disciplinares
estivessem restritos a determinadas previsões legais como duração da
medida disciplinar, critérios para denição de falta grave etc. –, essas
previsões foram sistematicamente ignoradas em todos os governos e, em
consequência, o Anexo tornou-se uma das mais obscuras instituições
do sistema prisional paulista, funcionando como à revelia de qualquer
formalização ou regulamentação, livre de qualquer procedimento de
controle, seja do Judiciário, seja do Executivo.
O Anexo cou conhecido nacionalmente por ser também um
núcleo de práticas violentas e arbitrárias por parte dos funcionários,
os maus-tratos sendo parte da rotina da instituição. Dentre os abusos
cometidos pelos funcionários estão espancamentos com barras de ferro;
distribuição insuciente de alimentação ou introdução de dejetos e insetos
nas refeições; manutenção de válvulas de descarga do vaso sanitário do lado
de fora da cela, podendo ser acionada somente pelo funcionário, que o fazia
a seu bel-prazer; ausência de limpeza das dependências da unidade, na qual
se acumulavam lixo, restos de comida, dejetos etc., congurando condições
sanitárias, higiênicas e de habitabilidade que colidiam fortemente com o
respeito mínimo aos direitos básicos da pessoa humana.
O Anexo, tal como funcionava desde sua criação, foi desativado
em 2003, ocasião em que se transformou em Centro de Readaptação
191
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Penitenciária Feminino, agora em conformidade com os preceitos da
nova LEP, promulgada no mesmo ano, que prevê o Regime Disciplinar
Diferenciado (RDD). Porém, antes disso e não por acaso, essa instituição
se converteu no celeiro do grupo que viria a constituir a maior ameaça à
estabilidade do sistema carcerário do Estado, o PCC.
exPansão física do sistema e o aumento veRtiginoso da PoPulação
caRceRáRia
A guinada conservadora da década de 1990, no que concerne às
políticas de segurança em geral e do sistema carcerário em particular, pode
ser também expressa pelo vertiginoso aumento da população prisional nesse
período, no Brasil como um todo, mas particularmente em São Paulo.
O incremento da população carcerária brasileira nos anos
1990 seguiu uma tendência global de encarceramento massivo, com as
prisões sendo desacreditadas na sua função reabilitadora e buscando
alcançar objetivos mais modestos, como a segregação social do criminoso
(GARLAND, 2001; WACQUANT, 2001). Em função da histórica
desigualdade social, da restrição de direitos e da impossibilidade de acesso
à justiça para amplas camadas da população, e ainda contando com a
ação seletiva da polícia, que se volta prioritariamente para as classes mais
pobres, no Brasil esses processos mais amplos adquirem contornos ainda
mais dramáticos, contribuindo para alimentar um círculo vicioso que
aprofunda cada vez mais as disparidades sociais, econômicas, políticas e de
acesso à justiça entre os brasileiros mais pobres e os mais ricos.
Em termos nacionais, a taxa de encarceramento por 100 mil
habitantes era de 65,2 em 1988. Com um aumento constante, ela chegou
a 134,9 em 2000, 181,5 em 2003 e, pelos dados recentemente divulgados,
chegamos a uma taxa nacional de 258,1 presos por 100 mil habitantes
em junho de 2010. Esses números não são mais alarmantes quando
comparados com a taxa de encarceramento do estado de o Paulo. No
estado mais rico da federação, havia 51 presos por 100 mil em 1988, subindo
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192
para 94,4 em 1992, 149,2 em 2000, 219,6 em 2003 e, em junho de 2010,
atingindo a assustadora cifra de 418,18 presos a cada 100 mil habitantes.
2
O estado de São Paulo tem sido considerado referência nacional em
termos de investimento no sistema carcerário. Entretanto, esse investimento
limitou-se, quase exclusivamente, à ampliação sica do sistema em um
ritmo assustador. Ao nal do governo Quércia, em 1990, havia 37 unidades
prisionais
3
em 1994, no nal do governo Fleury, o número chegou a 43,
abrigando cerca de 32.018 presos. Mário Covas e seu sucessor, Geraldo
Alckmin, deram continuidade e acentuaram essa tendência de expansão.
Em 1999, segundo ano da gestão Covas, a administração penitenciária
4
contava com 64 unidades para 47 mil presos (SALLA, 2007). Em 2006, nal
da gestão Alckmin que nos últimos meses foi assumida pelo vice-governador
Cláudio Lembo, em função da campanha de Alckmin à presidência da
república , a estrutura penitenciária de o Paulo alcançava a espantosa
cifra de 130.814 encarcerados,
5
distribuídos em 144 unidades prisionais. Em
maio de 2009, quando a SAP retomou, depois de alguns anos, a divulgação
dos números relativos à população carcerária do estado, apresentou-se um
total de 147 estabelecimentos, com 149.097 presos
6
. Segundo os últimos
números divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen),
em dezembro de 2010 a população carcerária de o Paulo chegava a 170.916
presos, distribuídos em 148 estabelecimentos prisionais.
A expansão sem precedentes do sistema carcerário paulista não
foi acompanhada do investimento na infraestrutura dos estabelecimentos e
muito menos nos números e na qualicação de seus funcionários. A relação
funcionário-preso, que em 1994 era de 1 para 2,17, passa a 1 para 4,99
em 2006 (ADORNO; SALLA, 2007), houve redução para praticamente
2
Os dados referentes a dezembro de 2010 podem ser encontrados no endereço eletrônico: <www.mj.gov.br/
depen> enquanto os dados referentes ao sistema penitenciário nacional foram extraídos de Salla (2006, p. 290)
e aqueles referentes ao Estado de São Paulo estão citados em Teixeira (2006, p. 105).
3
Estes números se referem apenas às unidades pertencentes à administração penitenciária, primeiro a cargo da
COESPE (Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciários) e depois da SAP (Secretaria de Administração
Penitenciária).
4
Neste mesmo período, a Secretaria de Segurança Pública abrigava 31.343 presos, dos quais 11.860 já estavam
condenados.
5
Além de 13.616 presos nas unidades da Secretaria de Segurança Pública.
6
Alegando motivo de segurança, a SAP não divulgava o número da população carcerária do estado e o total de
encarcerados em cada unidade prisional desde o nal de 2006.
193
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a metade. Se considerarmos apenas os agentes penitenciários, ocialmente
responsáveis pela custódia dos presos (ainda que muitos agentes estejam
alocados em funções administrativas ou serviços gerais), a proporção é
ainda mais alarmante, com 1 agente para 7,3 presos, de acordo com os
dados de junho de 2010.
7
E essa dupla expansão física e da população
carcerária não foi acompanhada de melhorias em termos de trabalho,
educação, assistência social e atendimento à saúde dos presos. O resultado,
como se pode perceber a partir dos últimos números divulgados, é a
demanda sempre crescente por mais e mais vagas, e a reiteração das mesmas
promessas, da mesma orientação política a construção de novas unidades.
Embora recorrente por toda a década, a expansão do sistema
foi acelerada a partir de 1998, no início do segundo governo Covas, que
priorizou a criação de vagas no sistema penitenciário como uma de suas
principais ações políticas. Para contextualizar essa expansão, é importante
apontar algumas questões intimamente relacionadas entre si e com a
política do governo Covas.
Há que se considerar a prioridade desse governo em transferir os
presos dos estabelecimentos sob o comando da SSP para a SAP. Até 1997,
apenas 54% dos presos do estado estavam sob custódia da SAP, sendo que
45% dessa população encontrava-se em distritos policiais (DPs), carceragens
e cadeiões sob responsabilidade da SSP. Em 2006, o número de presos sob
a custódia da SSP havia vertiginosamente para 9,43%,
8
em decorrência do
investimento durante os dois governos Covas, cujas orientações políticas
nessa área tiveram continuidade com Geraldo Alckmin.
9
Em junho de 2010, entre os 173.060 presos do estado, havia
164.425 em estabelecimentos sob o comando da SAP, enquanto 8.635
permaneciam em unidades sob jurisdição da SSP, ou seja, cerca de 5% da
população total. O gráco abaixo, ainda que considere um período menor,
7
De acordo com os dados disponíveis no site do DEPEN, a população carcerária de São Paulo sob custódia da
SAP é de 164.425, enquanto o total de agentes penitenciários é de 22. 515. Para avaliar a extensão deste décit
de funcionários, há que se considerar ainda que os agentes penitenciários trabalham em turnos de 12/24 horas,
isto é, estão divididos em 4 plantões, sendo 2 diurnos e 2 noturnos, o que torna a relação agente/preso ainda
mais desproporcional.
8
Estes dados se encontram no site da Secretaria da Administração Penitenciária: www.sap.sp.gov.br
9
Note-se que a promessa de transferência dos presos em DPs já era antiga, presente, por exemplo no governo
Quércia, conforme notícia na Folha de S. Paulo de 27/10/1990, “Quércia pretende acabar com a superlotação
de DPs”. Fonte: Banco de Dados da Imprensa, NEV-USP.
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194
ilustra essa mudança do sistema carcerário paulista, que tomou forma a
partir do primeiro governo de Mário Covas.
10
Gráco 2: População carcerária do Estado de S. Paulo (1994-2006)
Fonte: SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de
São Paulo. Disponível em: <http://www.sap.sp.gov.br>. Acesso em: 22 mar. 2011.
A transferência de presos da SSP para a SAP tem um signicado
político amplo, muito além de mera conguração administrativa ou
burocrática.
Em primeiro lugar, é importante considerar o desvio de função
de policiais civis, que se vêem obrigados a custodiar os internos nos
estabelecimentos prisionais da SSP. Em que pese o histórico de violência
10
O gráco está disponível em <www.sap.sp.gov.br>. Acesso em: 22 mar. 2011. Após as mudanças políticas e
administrativas ocorridas na SAP no ano de 2006, a qual discutiremos adiante, a secretaria deixou de publicar
alguns dados referentes a população prisional, sendo que os mesmos podem ser encontrados na página do
DEPEN, conforme mencionado anteriormente.
195
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 ,  
e abuso de poder que abrange o sistema carcerário como um todo
(estabelecimentos da SSP e da SAP), é relativamente consensual que os
agentes penitenciários, embora com deciências graves na sua formação,
possuem melhores condições para exercer o trabalho para o qual foram
preparados, mesmo que essa preparação não tenha sido tão boa. O policial
civil que se encontra na função de carcereiro, além de um claro desvio de
sua função ocial, acaba por se enredar em uma situação paradoxal, um
claro conito de interesses entre sua função ocial e o trabalho prático
que exerce. No limite, ele pode custodiar indivíduos cuja detenção foi
ocasionada pelo trabalho de investigação por ele mesmo realizado.
Em segundo lugar, a expansão do sistema carcerário no âmbito da
SAP, em detrimento da SSP, está ligada a uma retomada do compromisso
com os direitos dos presos, o qual se fez presente nas plataformas políticas
para os governos estadual e federal desde a eleição de Covas e Fernando
Henrique Cardoso, respectivamente. Embora esse comprometimento
não tenha se mostrado tão amplo como na década anterior, no governo
Montoro, e tenha se mesclado a uma política de encarceramento massivo
que, no limite, acaba por fazer reuir tais concepções políticas liberais,
houve ações que buscaram limitar o uso da violência na atuação policial
dentro e fora das prisões, conforme mencionado. Dentre tais ações
podemos incluir o processo de retirada dos presos sob custódia de policiais,
com um investimento maciço na construção de um sistema voltado
especicamente para essa função, delimitando e separando claramente a
função de investigar e prender e a função de custodiar.
11
Além da falta
de preparo dos policiais para exercer uma função que não é a sua, a
grande maioria das unidades da SSP não possui condições mínimas de
habitabilidade, não possibilitando ao preso o engajamento em atividades
educativas, laborterápicas ou de lazer.
Um terceiro aspecto, talvez o mais importante, diz respeito à
segurança dos estabelecimentos prisionais da SSP e daqueles da SAP. Em
regra, as unidades sob responsabilidade da SSP não apresentam condições
mínimas de segurança. As delegacias de polícia (DPs), por exemplo,
11
Vale lembrar que, ao contrário dos agentes penitenciários, os policiais civis que trabalham na custódia de
presos portam armas de fogo durante o serviço, o que, em si, revela uma força desmedida na relação entre
custodiadores e custodiados, e qualquer instabilidade pode desencadear uma grande tragédia, como ocorreu
não poucas vezes.
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196
possuem carceragens destinadas aos presos em agrante e que deveriam lá
permanecer por 48 horas no máximo, tão inadequadas são as condições em
termos de segurança tais locais são constituídos por celas pequenas, muito
próximas à porta de entrada e saída da DP e, portanto, extremamente
suscetíveis a ações de fuga e resgate. Durante as décadas de 1980 e 90, boa
parte dos presos sob custódia da SSP se encontrava nesses locais, sendo que
alguns DPs chegavam a abrigar mais de 100 internos, muitos dos quais
cumpriam toda a pena de prisão nesse tipo de estabelecimento ou seja,
sem qualquer acesso a educação, trabalho e banho de sol, direitos previstos
na Constituição. A permanência de muitos presos por um período longo e
a superlotação dos estabelecimentos zeram com que as unidades da SSP,
especialmente as DPs, se tornassem “barris de pólvora” que colocavam em
risco a vida não apenas dos presos que ali se encontravam, mas também a
dos policiais e dos moradores cujas casas circundavam esses locais.
A transferência dos presos de tais estabelecimentos para unidades
prisionais adequadas ao cumprimento da pena de prisão pelos condenados
(penitenciárias) e unidades destinadas aos sujeitos que aguardavam
julgamento em regime fechado (casas de detenção) tornou-se medida
central nos discursos e programas de segurança pública, tamanha era a
ameaça que representavam os estabelecimentos nos bairros onde se
localizavam, espalhados por toda a cidade. As verbas federais destinadas a
São Paulo durante o governo de FHC, com o objetivo de investimento no
sistema prisional, foram importantes alavancas do processo de expansão
dos estabelecimentos prisionais vinculados à SAP, na velocidade indicada
pelos números expostos anteriormente. Essas novas unidades apresentavam
condições muito melhores em termos de segurança e para o cumprimento
da pena de prisão, de acordo com o estabelecido na legislação.
Há, ainda, outro fator a se considerar na compreensão da forma
como se deu a expansão do sistema prisional paulista. A desativação
da Casa de Detenção de São Paulo ocupava espaço nas plataformas
eleitorais dos candidatos ao governo do estado desde os anos 1980.
12
Ela expressava melhor do que qualquer outra unidade prisional todas as
mazelas do sistema carcerário, com a ampliação exponencial de todos os
problemas que assolam as prisões brasileiras: superlotação, agravada pela
12
Para um relato sobre esta unidade prisional durante a década de 1970, ver Souza ([1980]).
197
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estrutura física e pelo gigantismo desta instituição;
13
corrupção endêmica
e sistêmica, levando a reiteradas substituições de diretores e funcionários;
fugas espetaculares que envolviam construção de túneis sosticados ou
procedimentos mais simples como a saída pela porta da frente ou através da
muralha;
14
violência institucional com o uso de celas-fortes, espancamento
e outras formas de castigo sem qualquer formalização; funcionamento de
um enorme mercado ilegal de celas, presos de boa e delicada aparência
(para se transformarem em mulherde outro preso), drogas, bebidas e
todo tipo de objeto lícito ou ilícito, sem qualquer controle por parte da
administração prisional;
15
presença de formas extremas de violência entre
os presos, sendo que as brigas, estupros e assassinatos eram acontecimentos
que faziam parte do cotidiano.
16
Agrava ainda o impacto de todos esses problemas o fato de a Casa
de Detenção estar localizada em um bairro de classe média na região central
da cidade de São Paulo. A pressão do setor imobiliário e da população
que residia próxima ao Complexo do Carandiru
17
era muito forte no
sentido de acabar com aquilo que era chamado de barril de pólvora e que,
supostamente, colocava em risco a segurança de seu entorno residencial.
Nos anos 1990, o crescimento das fugas através dos sosticados túneis que
levavam até os dutos por onde era escoado o esgoto, permitindo sair através
de bueiros muitas vezes em avenidas movimentadas ou no interior de
13
No auge da superlotação, no início de 2001, a Casa de Detenção chegou a abrigar cerca de nove mil presos.
14
Alguns presos que foram entrevistados para esta pesquisa e haviam passado pela Casa de Detenção relataram
que era comum o pagamento de propina aos agentes penitenciários e aos guardas das muralhas (postos que
eram ocupados por policiais militares), que chegavam até mesmo a lançar a corda e puxá-la, para ajudar na
concretização das fugas.
15
Durante pesquisa de mestrado (DIAS, 2008), um preso que fora responsável por uma denominação religiosa
na Casa de Detenção relatou que a sua igreja pagava cerca de R$ 2.000,00 para obter uma cela e destiná-la ao
uso dos evangélicos.
16
A existência de um fosso na Casa de Detenção, no local onde inicialmente funcionavam elevadores, é apontada
por muitos presos e até mesmo funcionários como local de desova de corpos que sequer eram contabilizados
pela administração prisional. Neste local também teriam sido despejados os corpos de dezenas ou centenas (a
depender da versão) de vítimas do massacre do Carandiru – que, segundo esses relatos, ultrapassou em muito os
111 mortos ocialmente reconhecidos. Ficção ou não, o fato é que essas histórias revelam o descalabro e a falta
de controle da administração prisional sobre o funcionamento e o andamento dessa instituição.
17
O Complexo do Carandiru era composto pela Casa de Detenção, a Penitenciária do Estado, o Presídio
Especial da Polícia Civil e a Penitenciária Feminina da Capital. Atualmente, funcionam apenas as duas últimas
unidades, sendo que a Penitenciária do Estado foi transformada em presídio feminino, com a denominação
Penitenciária de Santana, e o espaço onde era localizada a Casa de Detenção foi transformado no Parque da
Juventude.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
198
residências aumentou as pressões sobre o governo para a desativação da
Casa de Detenção, principal foco dos problemas que ampliavam a sensação
de insegurança da população local.
Mesmo com todos esses problemas, a Casa de Detenção resistia a
todas as pressões por conta da sempre presente e premente falta de vagas no
sistema carcerário, que fazia dessa instituição uma espécie de absorvedouro
de pessoas sempre que não se conseguia vaga em outro local. A questão era
tanto mais importante porque impunha ao governo estadual o desao de
alocar a imensa população desse presídio em um sistema que funcionou,
sempre, acima de seus limites.
A desativação dessa unidade sempre esteve nos planos dos
governadores Mário Covas e de Geraldo Alckmin,
18
tomando contornos
mais denidos a partir da nomeação de Nagashi Furukawa para o
comando da SAP. De acordo com o ex-secretário,
19
as pressões sobre o
sistema penitenciário eram muito fortes, o que postergava indenidamente
a desativação da Casa de Detenção. Contudo, essa foi uma das condições
para que ele permanecesse no cargo após a primeira megarrebelião de
fevereiro de 2001, que atingiu 29 unidades do estado, tendo o PCC como
protagonista do evento e a Casa de Detenção como seu epicentro.
O processo de desativação da unidade teve início ainda em 2001
e foi nalizado no ano seguinte, tendo na implosão parcial da instituição
o seu marco fundamental. A desativação da Casa de Detenção foi também
o marco de um processo de construção de uma nova territorialização
dos presídios paulistas (GÓES; MAKINO, 2002), que se deslocaram da
capital em direção ao interior do estado, sobretudo sua porção oeste,
20
promovendo profundas alterações no mapa prisional, com importantes
18
A desativação da Casa de Detenção é, inclusive, um dos itens do Plano Nacional de Direitos Humanos do
governo FHC, promulgado por meio do Decreto 1.904, de 13 de maio de 1996. Vale lembrar que FHC e
Mário Covas pertenciam ao mesmo partido político, o PSDB, o que facilitava as alianças entre os dois níveis
de governo, pelo menos no que diz respeito à alocação e a transferência de verbas para a execução dos projetos.
19
Tais declarações constam da entrevista realizado com o ex-secretário, que gentilmente me recebeu por duas
vezes, sendo uma na cidade de São Paulo e a outra em Bragança Paulista.
20
Este processo pode ser dimensionado a partir da distribuição das unidades prisionais entre as cinco coordenadorias
regionais: Coordenadoria da Capital e Grande São Paulo, 28 unidades; Coordenadoria da Região Central
(Campinas), 30 unidades; Coordenadoria do Vale do Paraíba e Litoral, 17 unidades; e coordenadorias da região
Noroeste e Oeste (divisão meramente administrativa), que, juntas, possuem 68 estabelecimentos sob sua jurisdição.
Essas informações se encontram no site <www.sap.sp.gov.br>, consultado no dia 15 de fevereiro de 2011.
199
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consequências sociais, políticas e econômicas para as regiões que receberam
a maior parte desses estabelecimentos.
21
Além da reconguração geográca do sistema prisional, o
processo de expansão de vagas em curso nos anos 1990 e 2000 foi orientado
por novos modelos na arquitetura penitenciária, priorizando presídios
menores e mais compartimentados, tal como são as unidades prisionais
denominadas penitenciárias compactas, cuja origem data exatamente
desse período.
22
As unidades maiores e menos compartimentadas, que
ainda existem, são resquícios do período anterior e são percebidas como
desfuncionais do ponto de vista da manutenção da ordem prisional, uma
vez que permitem a aglomeração de um grande contingente populacional,
facilitando a organização de movimentos coletivos.
Fica evidente que a megarrebelião de 2001 teve um impacto
determinante na conformação das orientações políticas e administrativas
que acabaram por remodelar a estrutura do sistema prisional em São Paulo,
a partir de novas bases geográcas e arquitetônicas que tiveram por objetivo
dicultar a mobilização da população carcerária tal como foi possível neste
episódio. Dispersão e compartimentação passaram a ser ideias centrais no
trato da população carcerária. Como cou evidente em maio de 2006, tais
orientações políticas não lograram os objetivos pretendidos, mas isso será
objeto de discussão mais á frente.
Se essa reconguração obteve algum êxito, ele está ligado à
redução signicativa das fugas e dos resgates de presos em decorrência da
construção de dezenas de penitenciárias e centros de detenção provisória
(CDPs), bem como à simultânea desativação ou esvaziamento das
unidades prisionais mais problemáticas, como as carceragens de DPs,
as cadeias públicas e a Casa de Detenção.
23
Com melhor infraestrutura
21
Sobre o processo de interiorização das unidades prisionais paulistas, além do já citado texto de Góes e Makino
(2002), ver também Dias e Silvestre (2010).
22
Muito embora essas unidades possuam capacidade semelhante às mais antigas, elas apresentam uma divisão
interna muito grande, o que impede o encontro de um grande contingente populacional.
23
Apesar disso, há matérias jornalísticas que apontam o aumento do número de presos nas cadeias públicas e
carceragens, alguma das quais estão voltando a car superlotadas. Uma vez que a demanda por vagas não para
de crescer e, considerando que a capacidade de construção de novas unidades prisionais tem limites claros,
haveremos de assistir diversas vezes a esses ciclos de maior ou menor inchaço nos estabelecimentos prisionais
sem infraestrutura adequada para abrigar presos durante um período maior.
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200
e novos dispositivos de segurança, tais ocorrências tiveram uma queda
considerável, embora ainda ocorram com relativa frequência.
* * *
O contexto social, político e econômico que se desenhou neste
texto nos permite identicar elementos que compõem uma especíca teia
social a partir da qual emergiu o PCC, considerado uma das principais
organizações criminosas do Brasil e que por mais de uma vez obteve
êxito em desestabilizar a segurança pública de São Paulo. Todos os
elementos apresentados aqui contribuíram, cada um a seu modo e em
graus evidentemente variáveis, para formar o amálgama que possibilitou
a origem, a expansão, a consolidação e, nalmente, a hegemonia do PCC.
Embora não seja possível precisar em que medida a ausência de um ou
mais desses elementos incidiria diretamente sobre o processo, é possível
armar que alguns deles deram o impulso inicial, constituindo forças
motrizes, enquanto outros estiveram indiretamente vinculados ao processo,
fornecendo instrumentos para que ele se efetivasse na direção que assumiu
dada. De qualquer forma, o processo social cujo ponto de partida é o
período imediatamente anterior ao aparecimento do PCC (décadas de 1970
e 80) e cujo ponto de chegada é a atual hegemonia política e econômica
do grupo, só reuniu as condições – materiais, políticas, econômicas, sociais
para tanto em um momento determinado na história da segurança pública
brasileira, e de São Paulo em particular, a partir de constelação de fatores,
alguns dos quais apresentamos aqui.
Fica muito claro, para citar um exemplo, que mudanças
organizacionais e os rearranjos políticos e administrativos que envolvem
Justiça, SSP e SAP estão atrelados direta ou indiretamente ao contexto
de maior ou menor estabilidade que envolve a área de segurança pública,
que tem no surgimento do PCC um poderoso fator na balança. O
PCC é, portanto, produto e produtor dessas mudanças no âmbito
político-administrativo. Porém, as variações em termos de estabilidade
e instabilidade também são, nesta área, fortemente inuenciadas pelos
201
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arranjos e desarranjos acima mencionados, de forma que esses processos
incidem um sobre o outro, em uma inuência recíproca.
Devem ser considerados ainda outros elementos funcionais, que,
a princípio, não tem relação com os fatores políticos e administrativos
discutidos antes, como por exemplo o desenvolvimento tecnológico. A
disseminação do aparelho de telefone celular constitui fator indireto, mas
preponderante, na conformação dessa teia social, fornecendo as condições
técnicas sem as quais o PCC não poderia ter se estruturado de forma
organizada e articulada tal como demonstrado em inúmeros episódios.
Não se pode considerar, portanto, essas questões a partir de
uma relação causal, por meio da qual seria possível apontar elementos
determinantes e determinados, causas e consequências. Ao invés disso,
compreendemos esses processos sociais como o resultado de uma teia
complexa de ações cujo resultado, em geral, não é previamente denido,
e que acabam por produzir transformações na rede de interdependência
que envolve os indivíduos ocupantes de diversas posições sociais. De
acordo com Norbert Elias (2008, p. 31), os processos sociais e as ações
de seres humanos singulares são inseparáveis. Contudo, nenhum ser
humano é um começo, visto que suas ações brotam de processos sociais
em andamento, da mesma forma que os processos sociais, embora contem
com certa autonomia frente às ações individuais, não são absolutamente
independentes delas.
RefeRências
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204
205
SociedAde punitivA e novAS dinâmicAS dA
SegurAnçA noS municípioS brASileiroS
Luís Antônio Francisco de Souza
1
bioPolítica e sociedade Punitiva
No famoso curso de 17 de março de 1976, Michel Foucault
havia proposto a discussão sobre a emergência do poder sobre a vida,
em contraposição ao poder sobre a morte, característico da soberania.
A biopolítica, neologismo criado para caracterizar esta nova estratégia de
poder, lida com a população como problema político, cientíco e biológico.
Durante a segunda metade do século XVIII, esta nova tecnologia de poder
emerge na Europa, que complementa e a integra a disciplina. Essa tecnologia
não visa o corpo do homem enquanto indivíduo, mas o corpo-espécie. A
biopolítica introduz, como problema de administração e racionalização do
poder, toda uma preocupação com a seguridade, a segurança, a poupança,
a cidade e a riqueza. A sociedade ocidental seria, então, caracterizada como
1
Agradecimentos aos estudantes que colaboraram com a pesquisa: César Grusdat de Assis, Bruna M. Celestino
Palhuzi e Maíra F. Torelli, bolsistas PIBIC-CNPq.
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206
uma organo-disciplina do corpo individual e como uma bio-regulamentação
da população (FOUCAULT, 1999, p. 289).
Em A vontade de saber, Michel Foucault introduz o tema do
governo da população na conuência entre sexualidade, natalidade e
mortalidade. Ele arma que o biopoder “[...] se situa e exerce ao nível
da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população.
(FOUCAULT, 1985, p. 129). O poder sobre a vida desenvolveu-
se a partir de duas formas principais. De um lado, teve origem no
adestramento, utilidade e docilidade do corpo pelos procedimentos das
disciplinas, processo demonstrado extensivamente em Vigiar e punir. De
outro, ele nasceu no corpo-espécie”, no ser vivo, na proliferação da vida,
nos nascimentos, na mortalidade, na saúde e na duração da vida. Essas
formas, ao mesmo tempo, anatômicas e biológicas, individualizantes e
generalizantes, designam uma série de intervenções e regulamentações,
uma verdadeira biopolítica da população, cujo papel principal não é mais
matar, mas investir sobre a vida” (FOUCAULT, 1985, p. 131).
2
O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie
viva num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência,
probabilidade de vida, saúde individual e coletiva, forças que se podem
modicar, e um espaço em que se pode reparti-las de modo ótimo. Pela
primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reete-se no político;
o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que emerge
de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em
parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder. Este
não está mais somente às voltas com sujeitos de direito sobre os quais
seu último acesso é a morte, porém com seres vivos, e o império que
poderá exercer sobre eles deverá situar-se no nível da própria vida; é o
fato do poder encarregar-se da vida, mais do que a ameaça da morte,
que lhe dá acesso ao corpo. (FOUCAULT, 1985, p. 134).
As novas tecnologias de poder caminham na direção de um
governo da população e da administração da vida. O poder disciplinar, a
governamentalidade e o biopoder, conjuntamente, organizam um espaço
social analítico e tornam todas as dimensões do mundo social disponíveis
e acessíveis à gestão produtiva por parte de instituições e por parte de
2
É preciso lembrar que Foucault procura diferenciar e integrar a microfísica e a macrofísica do poder (Cf.
GORDON, 1991, p. 4).
207
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governos. Nesse sentido, estamos em face de um processo histórico, que
ainda não se completou, de ampliação do universo das disciplinas, de
universalização da pirâmide do olhar e de disseminação das técnicas de
governo (FOUCAULT, 2008).
Este processo pode ser designado claramente pela incursão da vida
e da política no âmbito da segurança, no que podemos designar de sociedade
punitiva ou sociedade de controle. Ao mesmo tempo em que as sociedades
ocidentais avançadas entram em crises econômicas sem precedentes, na
esteira do desmantelamento do antigo modelo do Estado de Bem-Estar
Social, um investimento privado e público na dimensão do controle
social pela via das altas taxas de encarceramento, reforçando a obsessão por
segurança e por punição (GARLAND, 2008; WACQUANT, 1999). Neste
sentido, toda uma indústria do crime e da insegurança emerge e se alimenta
dos altos níveis dos riscos do capitalismo globalizado. Por exemplo, esta nova
conguração daquilo que alguns autores chamam de modernidade tardia
tem impacto no emprego e no mercado de trabalho, no crime organizado
transnacional, na estrutura das cidades e no meio ambiente (GIDDENS,
2000). Elementos de controle social high-tech começam a se tornar parte
da paisagem social e mesmo as novas cidades globais inteligentes são
possíveis na conuência do aumento dos gastos públicos com gestão da
segurança e privatização dos serviços de vigilância, monitoramento e gestão
da informação (BAUMAN,1999, 2003; BECK, 2010).
David Garland (2008) nos um bom balanço dos dilemas
da sociedade capitalista contemporânea em termos dos mecanismos e
dos custos sociais da punição e do controle. Segundo o autor, estamos
vivendo numa nova cultura do controle do crime. Nos últimos 30 anos,
vivenciamos uma crise sem precedentes do sistema penal do estado social.
Ocorreu a expansão das estratégias de controle do crime na modernidade
tardia que conciliam as respostas ao crime na direção do endurecimento
da pena e disseminação de mecanismos sutis de controle social. Esta é uma
sociedade com altas taxas de criminalidade, com desinvestimento público
em políticas sociais e com a sensação de que as instituições tradicionais da
área da justiça criminal estão em crise profunda. Os sinais de perigo estão
por toda parte. Há o declínio do ideal de reabilitação, endurecimento das
punições, reinvenção da prisão, expansão da infraestrutura da prevenção e
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repressão do crime, comercialização do controle do crime e disseminação
de técnicas eletrônicas de vigilância. O apoio de práticas mais duras de
controle e combate da criminalidade pode ser um re exo das práticas
herdadas do modelo de justiça reativa e punitiva e também das abordagens
sensacionalistas das mídias nas divulgações de crimes, problemas observados
em vários países do planeta na atualidade (CALDEIRA, 2000).
o tamanho da seguRança
Os sinais dos tempos estão chegando ao Brasil e nem sempre
pela porta da frente. O país está gastando mais com segurança. O total
de gastos realizados pelos governos estaduais em segurança pública subiu
de R$ 24 bilhões para R$ 33,5 bilhões, de 2005 para 2008. Em 2006,
apenas a União gastou com segurança algo em torno de 9 bilhões de reais.
Este crescimento representou um aumento de 36%, passando de R$
130,52 para R$ 176,95 por habitante. Em termos dos valores absolutos,
os estados que se destacaram pelo maior investimento em 2008 foram São
Paulo (27%), Rio de Janeiro (15%) e Minas Gerais (15%). Em termos
de gasto por habitante, destacaram-se Acre (R$ 335,8/hab.), Amapá (R$
370,6/hab.), Rondônia (R$ 327,6/hab.), Roraima (R$ 332,8/hab.) e Rio
de Janeiro (R$ 309,9/hab.).
Grá co 1- Despesas em Segurança Pública
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Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF, 2011.
209
D S P:
 ,  
O dispositivo biopolítico da segurança coloca a sociedade
brasileira na encruzilhada em que gastar mais parece ser a única solução
para as demandas securitárias crescentes. Como demonstra o gráco 1, as
despesas do Estado de São Paulo não param de crescer, tendo na verdade
dobrado nos últimos 4 anos. E estes gastos não demonstram mudanças no
paradigma da segurança, na verdade, reforçam a sensação de que a gestão
da segurança continua enfatizando a relação entre polícia, gestão policial
dos conitos e contenção social via pena de prisão. Os dados da Secretaria
do Tesouro Nacional mostram que as despesas com segurança pública para
o Estado de São Paulo concentram-se no quesito policiamento:
D  E  S P  P
2007 486.918.275,35
2008 593.968.161,07
2009 595.079.755,30
2010 726.942.003,71
Quadro 1- Gastos com policiamento
Fonte: BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Disponível em:
<http://www.tesouro.fazenda.gov.br/>. Acesso em: mar. 2012; BRASIL. Ministério da Justiça.
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF, 2011.
Gráco 2 – Gastos com Policiamento
Fonte: BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Disponível em:
<http://www.tesouro.fazenda.gov.br/>. Acesso em: mar. 2012; BRASIL. Ministério da Justiça.
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF, 2011.
0,00
200.000.000,00
400.000.000,00
600.000.000,00
800.000.000,00
2007
2008
2009
2010
Despesas do Estado de São Paulo com
Policiamento
Despesas do Estado de São
Paulo com Policiamento
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
210
Embora os dados possam parecer inconclusos, matérias recentes
e de grande impacto midiático mostraram o quanto o investimento em
polícia no Estado de São Paulo está articulado com uma concepção de
intervenção policial sobre problemas e questões que deveriam ser tratados
no âmbito das políticas sociais (HIRATA, 2012; SOUZA, 2012).
Os custos crescentes em segurança são acompanhados de perto
pelo aumento dos efetivos policiais. O país conta hoje com quase 600
mil policiais, entre policiais militares, civis e federais. Uma ampla rede
de policiais se espraia pelo país, ocupando cidades, rodovias e fronteiras.
O controle policial incorpora diversos serviços como aduana, imigração,
migração, circulação de mercadorias, prestação de socorro, corpo de
bombeiros, scalização de esportes e lazer, policiamento em escolas,
scalização de jovens que gazeteiam escola ou que circulam fora do
horário permitido”, polícia orestal, ações de reintegração de posse (em
geral desastrosas e virulentas), telecomunicações, atividades bancárias,
scalização urbana e rural etc. Este controle tende a crescer na medida em
que aumentam as pressões para que forças de ação rápida, e especializadas
sejam constituídas e mobilizadas, por meio de dotação de recursos do
Ministério da Justiça. Outra pressão provém da atual crise da política
de drogas no país, que tem dado ênfase à limpeza social dos espaços
urbanos, sobretudo em relação aos usuários de crack. As Forças Armadas
também estão sendo sistematicamente mobilizadas para conter os conitos
urbanos de caráter civil, sem contar seu papel crescente na estabilização
dos conitos que emergem no interior das forças policiais, como greves,
manifestações por direitos dos policiais e participação dos policiais no
crime organizado. Sem contar, por último, o efetivo da segurança privada.
A segurança privada merecerá uma reexão à parte, dentro da ideia de
que é parte do atual quadro de securitização da sociedade a constituição
da segurança como uma mercadoria a ser adquirida por quem tem posses
e pode se precaver dos riscos crescentes da modernidade tardia. O efetivo
da segurança privada tende a ser três vezes maior do que o efetivo policial
ocial, sem contar os seguranças privados que atuam de forma irregular,
com o detalhe de que todos portam armas de fogo.
211
D S P:
 ,  
o gulag bRasil
As taxas de encarceramento estão crescendo, o sistema punitivo
está se expandindo, e, no caso de São Paulo, toda uma micro-física punitiva
está se disseminando pelas cidades do interior. Segundo Relatório da CPI
sobre o Sistema Carcerário (2009), o sistema prisional brasileiro é o quarto
do mundo em número de presos, cando atrás apenas dos Estados Unidos
(2,2 milhões de presos), China (1,5 milhão de presos) e Rússia (870 mil
presos). Segundo o relatório, os presos estavam assim distribuídos: 56.014
nas delegacias de polícia (13,26%); 366.359 em estabelecimentos penais.
Dados do Infopen, relativos ao ano de 2010, atualizam este quadro e
mostram a tendência de crescimento do encarceramento no país inteiro,
sendo puxada pela locomotiva penal que é o Estado de São Paulo, conforme
Quadro 2, abaixo. Ou seja, de 366 mil presos em 2007 o país saltou para
445 mil em 2010. O país está passando pela síndrome das broken revolving
doors: o sistema recebe mais presos do que libera, não obstante o importante
trabalho do Conselho Nacional de Justiça nos mutirões carcerários, que
liberam centenas de milhares de presos irregulares no país todo ano.
Observando o Quadro 2 e o Gráco 3, o país prende muito e prende mal.
Uma pequena parcela dos presos estão em regime aberto e semiaberto. Não
uma pesquisa no país que demonstre que os presos merecem permanecer
em regime fechado a maior parte da pena. Ao contrário, os dados sugerem
que os presos são, em sua maioria, réus primários que cometeram crimes de
pequena monta e estão longe de pertencer ao crime organizado. A pena de
prisão, na verdade, cria um mercado cativo de mão de obra para o crime.
De fato, a prisão cria os delinquentes como argumenta Michel Foucault no
seu famoso Vigiar e punir.
um desvio agrante do uso da pena prisão, são mais de 350 mil
presos em regime provisório e em regime fechado. Além de ser excessiva, a
política prisional está enviesada, pois a grande maioria dos presos está em
regimes fechados, se juntarmos os presos provisórios e os que efetivamente
cumprem este tipo de pena: mais de 67% da massa carcerária!
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
212
Quantidade de Presos/Internados
2010
Masculino Feminino Total
Indicador: Quantidade de Presos custo-
diados no Sistema Penitenciário
417.517 28.188 445.705
Presos Provisórios 154.780 9.903 164.683
Regime Fechado 176.910 11.867 188.777
Regime Semi Aberto 64.754 4.495 69.249
Regime Aberto 17.426 1.320 18.746
Medida de Segurança – Internação 3.120 250 3.370
Medida de Segurança - Tratamento am-
bulatorial
527 353 880
Quadro 2 - Presos custodiados no sistema prisional - Brasil
Fonte: BRASIL. Ministério da Justiça. Sistema Prisional Infopen. Disponível em: <http://www.
infopen.gov.br/>. Acesso em: mar. 2012.
Gráco 3 – Presos no sistema penitenciário
Fonte: BRASIL. Ministério da Justiça. Sistema Prisional Infopen. Disponível em: <http://www.
infopen.gov.br/>. Acesso em: mar. 2012.
213
D S P:
 ,  
As mulheres caram, historicamente, fora da biopolítica prisional.
A gestão da delinquência de gênero sempre foi tratada, assim como durante
muito tempo o acolhimento de crianças e adolescentes, como problema
privado e, portanto, relegado à assistência e ao assistencialismo. Mas,
com a ampliação do rol de crimes considerados hediondos, incluindo o
transporte de drogas, as mulheres tornaram-se presas fáceis às estratégias
penais de controle social. O crescimento do encarceramento feminino é
visível no país inteiro e, mais uma vez, o Estado de São Paulo reponde com
um percentual signicativo de presas. E as condições de cumprimento das
penas são muito piores, pois boa parte das mulheres cumpre penas em
estabelecimentos inadequados, adaptados e que não oferecem o mínimo
que a legislação internacional recomenda.
Gráco 4 - Total de pessoas encarceradas no Estado de São Paulo
Fonte: BRASIL. Ministério da Justiça. Sistema Prisional Infopen. Disponível em: <http://www.
infopen.gov.br/>. Acesso em: mar. 2012.
O Estado de São Paulo apresenta uma taxa de encarceramento da
ordem de 400 presos por cem mil habitantes, em 2011. E estes números
não reetem a realidade, pois segundo estimativas do próprio governo
estadual, há um décit de quase 80 mil vagas no estado, com a necessidade
de criação de mais de 50 presídios nos próximos 12 meses.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
214
Gráco 5 - Total de pessoas encarceradas no Estado de São Paulo
Fonte: BRASIL. Ministério da Justiça. Sistema Prisional Infopen. Disponível em: <http://www.
infopen.gov.br/>. Acesso em: mar. 2012.
O crescimento do encarceramento vem acompanhado da
interiorização das prisões no Estado de São Paulo. Apenas nos quatro
primeiros anos da década de 2000, este processo representou a geração de
18 mil novos empregos, resultantes de um investimento de 230 milhões
de reais. Este processo foi explorado politicamente como compensação aos
supostos malefícios da presença das prisões nos municípios. No ano de
2009, São Paulo contava com 147 unidades prisionais, 115 delas no
interior e no litoral e 32 localizadas na Capital e Região Metropolitana.
As regiões centro-oeste e noroeste contam com um total de 97 unidades.
A coordenadoria da região oeste, com sede no município de Presidente
Venceslau, conta com 35 unidades distribuídas em 21 municípios. Em
14 deles, a população é inferior a 30.000 habitantes, segundo dados
da Fundação Seade de 2007. Quando os detentos cumprem penas em
municípios distantes, a maioria das famílias tem que se submeter à uma
dura rotina de viagens e hospedagens em condições precárias e humilhantes.
A presença das prisões nestes municípios ainda cria impactos ambientais,
sociais e urbanos que escapam das políticas públicas locais. Ainda tramita na
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei 556/2007,
que obriga o Estado a executar ações compensatórias e de minimização
dos efeitos negativos gerados por unidades prisionais onde são instaladas.
215
D S P:
 ,  
O projeto propõe compensação aos municípios que recebam ou receberão
unidades prisionais, isso porque os impactos gerados nessas cidades passam
pela agressão ambiental, desvalorização imobiliária, sobrecarga no sistema
de saúde, educação, segurança e no judiciário.
ceRcamentos modeRnos
A exposição exacerbada da insegurança nas mídias, como
demonstra a recente matéria de capa da revista Veja São Paulo de fevereiro de
2012, contribui para o alarmismo que, longe de resolver o problema, coloca
os outros (populações da periferia, negros, jovens, dependentes de crack,
moradores de bairros degradados ou de ocupações) como os responsáveis
pela violência que assola nossas cidades. Neste sentido, as políticas recentes
na área da segurança, longe de permitir aos cidadãos usufruírem do espaço
da cidade, tem reforçado o sentimento de insegurança e contribuído para
ossicar cidadanias diferenciadas no acesso aos benefícios da vida urbana.
De um lado, as periferias não param de crescer, avançando sobre as áreas
de mananciais e de preservação da mata atlântica. De outro, condomínios
de luxo competem entre si para ocupar as fímbrias da cidade, longe do
centro expandido e da presença considerada incômoda dos moradores das
comunidades do entorno. Ou ainda, grandes empreendimentos imobiliários
disputam território com os antigos bairros, acelerando a divisão social e as
condições sofríveis de acessibilidade e qualidade de vida. E, como não
poderia deixar de ser, o poder público alimenta este processo corrosivo,
enquadrado na nova cultura do capitalismo (SENNETT, 2006), ao
deixar que amplas áreas urbanas centrais se degradem e depois possam ser
vendidas nos milionários esquemas das chamadas operações urbanas que
dão ao incorporador o direito de “legalmenteviolar a lei de zoneamento
e alterar o potencial construtivo das áreas em troca de semáforos e faixas
para pedestres. E sabemos o que acontece com os moradores xos ou
temporários destas áreas que são uma espécie de reserva de segurança para
o crescimento urbano da cidade na lógica privatista em vigor.
As cidades estão sendo fortemente marcadas em sua paisagem
pela presença de condomínios fechados, com uma estimativa de 4,5
milhões de pessoas vivendo neste tipo de residências. Outras formas de
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
216
segregação urbana estão sendo criadas e estimuladas. São empreendimentos
complexos que garantem moradia, acesso ao comércio, ao lazer, à educação
e ao trabalho, tudo em um único e exclusivo local. A atual marginal
Pinheiros, na capital, está passando por esta remodelação que, em pouco
tempo, está pontuando a via de torres de vidro high-tech e de construções
de alto valor, em meio ainda a condomínios populares e a construções de
baixo valor agregado. Em contraponto a esses condomínios fechados, a
população de baixa renda é deslocada para novos espaços, geralmente na
periferia, através de programas do governo de incentivo à casa própria que
na verdade acaba por segregá-los. O processo passa também pelo abandono
das áreas centrais das cidades e precarização da zeladoria urbana. São os
efeitos da cidade de muros, dos enclaves forticados (CALDEIRA, 2000).
Este quadro não é exclusivo de São Paulo. As principais capitais
do país e as regiões metropolitanas estão experimentando os mesmos
problemas. Fragmentação do espaço público, ilegalismos de toda ordem,
conluio entre interesses privados e o Estado, convivência entre o ilegal e o
legal (TELLES, 2010). Os problemas urbanos não param na visão tradicional
de segurança como crime e violência. Diante da crise dos espaços públicos,
percebe-se a falta de áreas verdes e de lazer. O trânsito das cidades, que
privilegia o transporte individual motorizado, é responsável pelos índices
alarmantes de acidentes. As administrações municipais são incapazes de
oferecer alternativas de transportes amigáveis e ambientalmente viáveis.
Nos municípios do país ainda são violados os direitos de migrantes e de
populações de rua (SENTO-SÉ, 2005).
Esta tendência de privatização do espaço público vem sendo
observada há algum tempo. Mas as políticas públicas no país insistem em
permitir que o urbano seja recortado, cercado, pelos interesses corporativos
e pelas ações do mundo das relações sociais diferenciais. Para os jovens das
grandes periferias do país, continua o desao de encontrar, em meio às
dinâmicas contraditórias do crime, dos ilegalismos e da violência, espaço
para realizar todo o seu potencial e todos os seus desejos. As cidades
brasileiras modernas parecem não comportar espaços para os projetos
dos jovens das periferias, estes ainda são vistos como problemas e como
ameaças à vida social (SILVA, 2008).
217
D S P:
 ,  
Em São Paulo, tem pessoas que nunca foram ao Teatro Municipal
ou ao famoso edifício do Masp. Passam suas vidas inteiras imobilizadas
nos bairros distantes do centro da capital, alguns destes distam quase 30
quilômetros do marco zero. A vida cercada tem, portanto, um sentido
mais amplo do que se pode imaginar. Não são apenas os muros e cercas.
A distância social se produz por várias formas de segregação e a segurança
parece estar contribuindo para este processo. As áreas mais policiadas da
cidade de São Paulo são as áreas nobres e os pontos turísticos. Mas, diante
das cercas, dos arames, dos alarmes, dos carros blindados, dos seguros, da
desconança, uma miríade de problemas públicos, de gestão das cidades
deve ser levada em consideração para reverter a tendência de aumento das
distâncias sociais e das desigualdades. Por isto, as conexões entre o mundo
urbano o trabalho escravo, as drogas, o tráco de pessoas e a exploração
sexual de meninas ainda requerem estudos e políticas especícas que
garantam acesso ao trabalho, à moradia e à cidadania para parte da
população que é expulsa da cidade e demonizada pela mídia e pela opinião
pública.
seguRança é negócio
Tema sensível para os municípios é a disseminação da segurança
privada ou corporativa, que envolve monitoramento eletrônico. Na cidade
do Rio de Janeiro, gastar milhões de reais em sistemas de monitoramento
sem licitação é um dos aspectos da tendência à privatização. Os custos são
astronômicos e é lamentável não existir uma pesquisa séria que aponto
o tamanho do problema (ou do negócio). Não basta fazer estimativas
conservadoras. Teríamos que colocar no papel tudo o que é gasto com
segurança, como seguros de casas, de carros, de cartões de crédito, cercas,
grades, alarmes, muros, guardas noturnos, guaritas, blindagem, armas,
rastreamento, medicamentos, cursos etc.
A parte mais tangível do negócio é mesmo a segurança corporativa,
sobretudo de bancos, empresas, grandes empreendimentos imobiliários e
shopping-centers. E a segurança implicada nos grandes eventos esportivos
desta década também representa uma face do mesmo problema. Um bom
exercício de reexão seria calcular o montante dos gastos com segurança na
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
218
preparação e realização destes eventos e de outros que ocorrem de forma
cotidiana no país.
O Brasil conta com um verdadeiro exército de seguranças
privadas. Como mostra a tabela abaixo, o crescimento das empresas de
segurança privada nos últimos anos, foi superior ao aumento do efetivo
policial civil e militar:
Gráco 6- Efetivo das Polícias e Segurança Privada, SP
Os dados são evidentemente subestimados. O Estado de São
Paulo, que detém o maior efetivo policial e o maior número de prossionais
na área da segurança corporativa, conta com 250 mil pessoas armadas,
envolvidas em segurança. As estimativas não são consistentes, pois giram
em torno de 500 mil a três milhões de seguranças no país, todos armados e
nem todos preparados para desempenhar essa função. Como as estimativas
apontam para o fato de que em cada quatro vigilantes apenas um trabalha
em empresa legalizada, teríamos que considerar o efetivo de pessoas
trabalhando com segurança na margem máxima de 3 milhões de pessoas.
219
D S P:
 ,  
o que os municíPios estão fazendo de eRRado?
Além de seguirem as tendências do mercado privado de segurança e
da disseminação dos condomínios fechados, os municípios brasileiros estão
clamando por mais segurança. O que representa na prática a constituição
de guardas municipais armadas, vigilância eletrônica e diminuição da
tolerância em relação às sociabilidades juvenis. Nos últimos anos, vem
crescendo o efetivo das guardas municipais. Antes restritas às capitais, as
guardas estão se disseminando para cidades médias e pequenas. Elas são
formadas por policiais fardados e armados que tem como responsabilidade a
preservação do patrimônio público e o auxílio em situações de emergência.
Elas também devem fazer a segurança de prefeitos e seus secretários e auxiliar
os municípios no controle de atividades essencialmente urbanas, tais como
a scalização de transporte coletivo, de comércio ambulante e uso ilegal do
solo urbano. Muitas vezes, não obstante restrição constitucional, as guardas
desempenham papel de polícia, realizando detenções e encaminhando
suspeitos às delegacias. denúncias contra as guardas municipais e a
experiência recente tem mostrado que é difícil controlar suas atividades.
Segundo o IBGE, dados de 2006, 87,5% dos municípios brasileiros com
mais de 500 mil habitantes possuíam guardas municipais.
Outra tendência preocupante, como já foi dito, é a disseminação
de mecanismos de controle eletrônico. As câmeras de vigilância estão
sendo adotadas como apanágio para resolver todo e qualquer problema de
segurança nos municípios. É preciso cautela. É certo que os dispositivos
eletrônicos estão cando mais baratos e a tecnologia está melhorando
muito. É certo que as câmeras passam para os transeuntes uma sensação de
segurança, anal, sempre se acredita que há alguém por trás do panóptico.
É certo que a vigilância eletrônica pode diminuir o custo geral da
administração da polícia e pode minimizar a penosidade e periculosidade
do trabalho policial. Entretanto, não se pode aceitar que a vigilância seja
ecaz em todos os crimes e em todas as circunstâncias. Além disso, a
vigilância eletrônica sempre levanta a questão de accountability, ou seja,
quem é scaliza os scais? Como são usadas as imagens? Qual é custo
real do sistema? Como são feitas as licitações? Como garantir o direito à
privacidade? Várias questões que ainda permanecem abertas ao debate. O
que se sabe, com segurança, é que o uso das câmeras deve estar pautado
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
220
por uma política pública de segurança, sem a qual o dispositivo por si
não pode garantir ecácia.
O outro problema diz respeito ao cerco feito pelas autoridades
e pela opinião pública aos jovens e às culturas urbanas. Muito foi dito
sobre este assunto e muito mais precisa ser dito, mas o espaço deste artigo
não permite ir além do presente aviso.
o que os municíPios estão fazendo de ceRto?
Nos últimos anos, os municípios emergiram como atores
importantes no desenho, implementação e acompanhamento de políticas
de segurança pública. Essa posição dos municípios é nova e seguiu de perto
o envolvimento das capitais e das cidades das regiões metropolitanas em seu
esforço por conter a escalada da violência urbana e, mais particularmente,
a escalada da criminalidade (SENTO-SÉ, 2005). A tentação de tornar o
município mais um braço armado da segurança é grande, mas deve ser
evitada. O município pode fazer muito para a segurança desde que faça o
link entre cidadania, justiça e direitos. A presença do município na segurança
deve estar ligada às ideias de governo local, de cidadania participativa e
de sustentabilidade. Mecanismos como conselhos locais e municipais de
segurança são alentos. No âmbito estritamente policial, não há razões para
que os municípios não adotem mecanismos de policiamento comunitário
e de aproximação entre polícia e comunidade. Uma ótima oportunidade
para as eleições 2012 é acompanhar as cidades que desenvolveram, com
relativo sucesso, planos locais e municipais de segurança. Esses planos
transformaram-se em instrumentos de políticas públicas e aumentaram as
lentes para os problemas que podem ser geridos no âmbito local, como a
atenção à vulnerabilidade social dos jovens.
conclusões
O atual dispositivo biopolítico da segurança aponta para
dimensões contraditórias. De um lado, o aumento do investimento público
e privado na segurança, com ampliação de efetivos e de custos. De outro, um
crescimento das estratégias de vigilância e de segregação urbana, sobretudo
221
D S P:
 ,  
daqueles grupos sociais que ainda são considerados como pertencentes
às classes perigosas. Violações de direitos, expansão do encarceramento,
dispositivos técnicos de vigilância, espaços segregados, mercantilização da
segurança são alguns dos componentes deste dispositivo. Os municípios
estão se integrando a estas estratégias de uma forma pragmática e errática.
Os instrumentos para uma participação mais ecaz e cuidadosa dos
municípios existem e em grande parte não dependem de mudanças
legais ou constitucionais, mas apenas da consciência de que a prevenção
pode acompanhar as políticas públicas em áreas estratégicas de atuação
tradicional das cidades, lá onde os jovens e as populações vulnerabilizadas
historicamente mais precisam.
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Sobre oS AutoreS
ana Paula mendes de miRanda
Doutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de São Paulo (USP);
Professora do Departamento de Antropologia e Coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense/RJ; Coordenadora
do Curso de Especialização em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança
Pública (UFF-RENAESP), Pesquisadora do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas
(NUFEP-UFF), Pesquisadora do Instituto Nacional de Estudos Comparados em
Administração Institucional de Conitos (INCT-InEAC).Tem experiência na área
de Teoria Antropológica, com concentração em Antropologia Jurídica e Antropologia
Política, atuando principalmente em pesquisa sobre os temas: políticas públicas de
segurança; gestão da informação; crimes, conitos e percepções da violência; formas de
intolerância religiosa.
andRé RosembeRg
Possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1998), mestrado em
História Social pela Universidade de São Paulo (2003) e doutorado em História Social
(2008) pela mesma universidade. Fez doutorado-sanduíche em Paris IV-Sorbonne, no
Centre de Recherche en Histoire du XIXeme Siécle. Atualmente é pesquisador pós-doutor
no Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho, campus Marília. Atua na área de História, com ênfase em história da
polícia, do crime e do controle social.
bóRis RibeiRo de magalhães
Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosoa e Ciências,
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília, onde
desenvolve a pesquisa intitulada “Risco, saúde e obesidade na prática prossional dos
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
224
Policiais Militares do Estado de São Paulo”. É Coordenador Executivo do Observatório
de Segurança Pública (OSP). Um dos organizadores da coletânea Michel Foucault:
sexualidade, corpo e direito (publicado pela Cultura Acadêmica). Tem experiência na
área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do corpo e saúde, atuando principalmente
nos seguintes temas: políticas públicas de saúde e segurança, biopolítica, sexualidade,
corporalidade, obesidade e alimentação.
bRuna angotti
É mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2011) e especialista em
Criminologia pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (2010). Possui graduação
em Direito pela Universidade de São Paulo (2006) e graduação em Ciências Sociais
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007). Atualmente é professora na
Faculdade de Direito da Universidade Braz Cubas e coordenadora da área de Justiça
Criminal do Instituto Sou da Paz.
camila nunes dias
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora do da
Universidade Federal do ABC, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV)
da USP e colaboradora do Observatório de Segurança Pública. Suas pesquisas abrangem
a área da Sociologia da Violência, atuando principalmente nos seguintes temas: sistema
prisional, criminalidade organizada, PCC, segurança pública, conversão religiosa de
presos.
heidi ann ceRneka
Mestre em Teologia Pastoral pela Loyola University, Chicago. Coordenadora para a
Questão da Mulher Presa na Pastoral Carcerária Nacional. Presidente do Instituto Terra,
Trabalho e Cidadania.
Jacqueline de oliveiRa muniz
Antropóloga. Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, Universidade Candido Mendes
UCAM e Pós-Doutora em Estudos Estratégicos pela COPPE-UFRJ. Professora do
Mestrado em Direito e do IUPERJ, Universidade Candido Mendes - UCAM. Membro
do Grupo de Estudos Estratégicos (Coppe/UFRJ) e do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública. Tem experiência nas áreas de Antropologia e ciência política, com ênfase em
Segurança Pública e Justiça Criminal, atuando principalmente nos seguintes temas:
polícias, estudos estratégicos, criminalidade e violência, gestão penitenciária e direitos
humanos.
225
D S P:
 ,  
lucila scavone
Graduada em Ciências Sociais pela UFRGS (1971), Mestre em Sociologia Política e
Antropologia, Université de Paris III (1976) Doutora em Sociologia, Université de
Paris III (Sorbonne-Nouvelle) (1980). Pós-Doutorado INSERM/França (1991). Livre-
docente pela UNESP (2001), Titular Departamento Sociologia UNESP (2010). Integra
Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UNESP/Araraquara desde
1986. Pesquisadora CNPq I. Trabalha com Teorias sociais contemporâneas; Estudos de
gênero e feministas; tecnologias reprodutivas; maternidade, corpo e sexualidade, entre
outras questões relacionadas às articulações de gênero com a diversidade social, política
e cultural.
luís antônio fRancisco de souza
Doutor em Sociologia na Universidade de o Paulo, com Estágio Sanduíche na Universidade
de Toronto, Canadá. Pesquisador na área de História da Polícia Civil, Processo Criminal,
Violência Policial, Controle Externo sobre a Polícia, Políticas de Segurança blica,
Violência e Direitos Humanos. É livre-docente na Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho”, campus de Marília, atuando nos cursos de Graduação em Ciências
Sociais e Relações Internacionais, bem como no curso de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, no nível de mestrado e de doutorado. Atualmente é chefe do Departamento de
Sociologia e Antropologia, Vice-supervisor do Instituto de Políticas Públicas da Unesp,
campus de Marília, e coordenador cientíco do Observatório de Segurança Pública (OSP),
do Observatório da Condição Juvenil (OCJovem), do Grupo de Estudos em Segurança
Pública (GESP) e do Grupo de Estudos da Condição Juvenil (Gejuve). Site dos projetos e
demais atividades dos grupos: www.observatoriodeseguranca.org
Rita de cássia biason
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e doutorado
em História Social pela Universidade de São Paulo. É professora assistente doutora
no Curso de Relações Internacionais, UNESP- Campus de Franca e coordenadora do
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Corrupção, na mesma instituição. Tem experiência
na área de Ciência Política atuando principalmente nos seguintes temas: mecanismos de
prevenção e controle de corrupção, cooperação internacional no combate à corrupção e
corrupção política.
tamiRis hiláRio de lima batista
Graduada em Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista - Campus de
Franca e pesquisadora no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Corrupção.
Luís Antônio F. souzA; Bóris r. MAgALhães & thiAgo t. sABAtine (org.)
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thiago teixeiRa sabatine
Mestre em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosoa e Ciências, Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília, atuando principalmente
nos seguintes temas: sexualidade, travestilidades, territorialidades, gênero, políticas
de segurança pública e saúde. Um dos organizadores da coletânea Michel Foucault:
sexualidade, corpo e direito (publicado pela Cultura Acadêmica). Atualmente é pesquisador
e coordenador executivo do Observatório de Segurança Pública (OSP).
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sobRe o livRo
Formato 16X23cm
Tipologia Adobe Garamond Pro
Papel Polén soft 85g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Acabamento Grampeado e colado
Tiragem 300
Catalogação Telma Jaqueline Dias Silveira
Normalização Maria Luzinete Euclides
Capa Edevaldo D. Santos
Diagramação Edevaldo D. Santos
2012
Impressão e acabamneto
Gráca e Editora Shinohara
(14) 3432-2830