JEAN PIAGET
E
PAULO FREIRE
respeito mútuo, autonomia moral e educação
JEAN PIAGET E PAULO FREIRE: respeito mútuo, autonomia moral e educação
Sabrina Sacoman Campos Alves
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 396/2021
Processo Nº 23038.005686/2021-36
Alves
JEAN PIAGET E PAULO FREIRE:
RESPEITO MÚTUO, AUTONOMIA MORAL E
EDUCAÇÃO
Sabrina Sacoman Campos Alves
Sabrina Sacoman Campos Alves
JEAN PIAGET E PAULO FREIRE:
RESPEITO MÚTUO, AUTONOMIA MORAL E
EDUCAÇÃO
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
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Auxílio Nº 0396/2021, Processo Nº 23038,005686/2021-36, Programa PROEX/CAPES
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Alves, Sabrina Sacoman Campos.
A474j Jean Piaget e Paulo Freire: respeito mútuo, autonomia moral e educação / Sabrina
Sacoman Campos Alves. Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica,
2022.
196 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-312-0 (Digital)
ISBN 978-65-5954-311-3 (Impresso)
DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-312-0
1. Piaget, Jean, 1896-1980. 2. Freire, Paulo, 1921-1997. 3. Respeito. 4. Desenvolvimento
moral. 5. Educação. I. Título.
CDD 370.15
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Copyright © 2022, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Aos meus pais, Moacir e Terezinha.
Ao meu querido irmão, Marcel.
Ao amor da minha vida, Flávio.
A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não
pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à
discussão criadora, sob pena de ser uma farsa.
(FREIRE, [1967], 2007).
O direito à educação é, portanto, nem mais nem menos, o
direito que tem o indivíduo de se desenvolver normalmente, em
função das possibilidades que dispõe, e a obrigação, para a
sociedade, de transformar essas possibilidades em realizações
efetivas e úteis. (PIAGET, [1971], 1973).
Sumário
Introdução 11
Capítulo 1 - Piaget e Freire: Questões Epistemológicas e Conceitos
Básicos 21
Capítulo 2 - Piaget e Freire: Questões de Moral 73
Capítulo 3 - Educação Moral: Novos Caminhos 141
Conclusões 173
Referências 189
10
11
Introdução
A pesquisa apresentada neste livro é consequência de um percurso
profissional e acadêmico que nos permitiu um olhar esperançoso para a
educação e para a realidade social. Acreditando na possibilidade
transformadora da educação e, logo, na capacidade de homens e mulheres
de construir uma sociedade mais justa e humana para todos, buscamos
verificar quais são as aproximações entre as teorias de Jean Piaget e Paulo
Freire, quanto a aspectos do desenvolvimento moral, e analisar quais as
implicações dessas aproximações para a teoria e a prática educativa.
Considerando sempre que a educação vise à autonomia e forme sujeitos
capazes de atuar e de pensar a realidade, de maneira crítica e mais humana.
Em uma sociedade como a nossa opressora, em que os direitos
não são para todos, na qual a diferença produz violência, a democracia
sofre ataques diversos, em que há pouco lugar para o respeito mútuo e a
reciprocidade –, é fundamental refletir e dialogar sobre o desenvolvimento
moral e sobre sua relação com a teoria e a prática educativa.
Para abordar as questões da moral, optamos, primeiramente, por
aprofundar as reflexões a cerca das ideias de Jean Piaget, que elaborou uma
teoria sobre o desenvolvimento moral. Piaget já trazia em suas pequisas,
além da busca por entender como o indivíduo constrói o conhecimento,
um olhar específico para a necessidade de uma educação de qualidade, que
possibilitasse a formação para a autonomia, considerando que o sujeito vive
em uma sociedade e que essa convivência precisa ser cada vez mais justa.
12
Com Piaget ([1932], 1994), entendemos que as relações sociais
não são únicas; elas podem ser coercitivas ou cooperativas. As relações de
coação conduzem ao respeito unilateral e as relações de cooperação, ao
respeito mútuo. São as relações em que predomina o respeito mútuo que
permitem ao sujeito chegar à moral do bem, à autonomia. Piaget
reconhece a importância das relações sociais, para que a consciência moral
assuma as normas de forma autônoma.
Na educação, em nosso país, encontramos, prioritariamente,
relações de opressão, marcadas pelo autoritarismo e pela transmissão de
conteúdos. Muitas vezes, o discurso até está voltado para a formação
integral e para a autonomia, mas, na prática, o que ocorre é o
autoritarismo, relações violentas, transmissão de conteúdos e a passividade
do educando.
Essas reflexões nos conduziram à teoria do educador brasileiro
Paulo Freire. Com o olhar de um educador, podemos nos aproximar ainda
mais de uma teoria e prática educativa de qualidade, entendida como
possibilidade de autonomia e transformação. As ideias de Freire
permanecem atuais, pois discutem a construção do conhecimento em uma
perspectiva que vai da ação à consciência, atuando principalmente nas
situações de opressão, com foco na liberdade da consciência e na
transformação da mulher e do homem, e do mundo.
A opressão se apresenta, na teoria de Freire, sob diversos aspectos,
como o antropológico, ontológico, sociológico, psicológico e pedagógico.
No olhar freiriano, podemos encontrar uma análise crítica da opressão e,
baseada em uma concepção epistemológica, a proposta de uma educação
dialógica, que conduz à liberdade.
Ressaltamos que as contribuições de Freire para pensarmos a
construção de uma nova realidade social partem de reflexões teóricas e
13
também de sua experiência concreta, marcada pela opressão. Ele mesmo
relata: “Em Jaboatão experimentei o que é a fome e compreendi a fome
dos demais. Em Jaboatão, criança ainda, converti-me em homem graças à
dor e ao sofrimento que não me submergiam nas sombras da desesperação”
(FREIRE, [1980], 2001, p. 16); e pela sua capacidade de se colocar no
lugar do outro: “[...] comecei a pensar que no mundo muitas coisas não
andavam bem. Embora fosse criança comecei a perguntar-me o que
poderia fazer para ajudar aos homens.” (FREIRE, [1980], 2001, p. 16).
É pensando a ação e a consciência dessa ação que Freire estrutura
sua teoria. Partindo da realidade opressora, em que o homem e a mulher
são vistos como objetos, recebendo a cultura, os valores e as ordens
daqueles que os dominam, Freire vislumbra a possiblidade de uma tomada
de consciência crítica dessa realidade, uma conscientização dos homens e
das mulheres e o seu engajamento na transformação dessa realidade.
Transformando a si, mulherer e homem se tornam capazes de transformar
a sociedade.
Como em Piaget, a construção do conhecimento em Freire assume
papel importante, para que o sujeito alcance uma forma de pensar crítica
e coerente. Em Piaget, encontramos uma preocupação explícita sobre as
questões morais, e uma sistematização de suas ideias sobre esse tema. Em
Freire, percebemos aspectos essenciais da moral, dispersos em sua obra, os
quais nos instigaram a extrair dela um modo de pensar a moral. Fomos, a
partir de leituras iniciais, percebendo a possibilidade de realizar uma
relação entre a teoria desses autores, no que concerne aos aspectos da
moral.
Não encontramos pesquisas anteriores que tiveram como objetivo
principal relacionar especificamente as teorias de Piaget e Freire quanto aos
aspectos da moral, porém acreditamos que essa reflexão nos possibilita
pensar novas alternativas para a educação.
14
Convém destacar, aqui, a pesquisa realizada por Becker (2011),
que comparou o conceito de aprendizagem nas obras desses autores e
constatou uma aproximação na forma como eles explicam a aprendizagem:
tem-se um sujeito inicialmente incapaz de se descentrar e, posteriormente,
autônomo, que vai da ação à operação, tornando-se cada vez mais
consciente e capaz de transformar a realidade em que está inserido. Becker
reflete sobre a relação entre as teorias de Piaget e Freire, abordando
questões como a tomada de consciência, a relação teoria e prática,
constatanto identidades entre eles, no que diz respeito ao conhecimento
enquanto construção que se baseia na ação. Conclui que a tomada de
consciência, para Piaget, assim como a conscientização proposta por Freire,
são processos que resultam da atividade do sujeito. A pesquisa de Becker é
essencial para pensarmos as primeiras aproximações entre tais autores e nos
abre caminho para pensarmos questões da moral.
Nossa pesquisa pautou-se nas obras principais de Piaget e de Freire
sobre a temática em questão. Nesse propósito, além das obras centrais, que
mais se aproximam da questão da moral (PIAGET, [1932], 1994;
FREIRE, [1996], 2016), fomos ao encontro, por meio também de obras
periféricas, do pensamento epistemológico e sociológico de ambos os
autores, levantando os elementos sobre moral e sobre educação moral.
Todavia, destacamos que, mais do que um levantamento
bibliográfico, nosso intuito foi fazer uma análise das teorias, sob o ponto
de vista da moral e da educação moral, e evidenciar relações entre elas.
Este livro está organizado considerando dois grandes e distintos
momentos. Primeiramente, delineamos a pesquisa e abordamos aspectos
teóricos de Jean Piaget e Paulo Freire, sobre a epistemologia e a relação
entre ação e consciência. Esses aspectos teóricos estão em função de
compreendermos melhor as ideias gerais desses autores sobre como o
sujeito constrói conhecimento, para que possamos, a partir desse ponto,
15
nos aprofundar nas questões de moral, compreendidas dentro de um
sistema teórico. Em um segundo momento, passamos ao objetivo
principal, que é apresentar e discutir as aproximações entre esses autores
em aspectos do desenvolvimento moral, englobando o respeito mútuo, a
autonomia moral e a educação.
No primeiro capítulo, intitulado “Piaget e Freire: questões
epistemológicas e conceitos básicos”, focalizamos as questões
epistemológicas referentes à teoria de cada um desses autores, evidenciando
o papel essencial da ação, nessas teorias, e a relação entre ação e consciência
na construção do conhecimento.
Optamos por realizar, inicialmente, um aprofundamento das
concepções epistemológicas de Jean Piaget e de Paulo Freire, evidenciando
como, para cada um desses autores, o conhecimento é possível, como se
estabelece a relação sujeito e objeto, qual o papel da ação do sujeito dentro
dessa epistemologia, enfatizando a primeira e a essencial aproximação que
podemos fazer entre esses autores. Essa opção se apoia na ideia de que
compreendemos que a concepção epistemológica dos autores fundamenta
sua forma de compreender o desenvolvimento humano e a aprendizagem,
de maneira mais ampla e a moral está inserida dentro desse contexto mais
geral, não podendo uma coisa destacar-se da outra.
A ação do sujeito assume um lugar importante na análise da
epistemologia que embasa esses dois autores. A ação, também concebida
como prática interiorizada e aspecto essencial da relação entre prática e
teoria, é um eixo que norteia as teorias de Piaget e Freire. A dimeno
inventiva e criativa da ação está presente em ambos os autores, o que torna
suas teorias do conhecimento mais próximas. A partir dessa aproximação
essencial entre as epistemologias, chegamos a modos de olhar para a
educação, nos quais se encontram pedagogias coerentes com a construção
ativa de conhecimento.
16
A concepção de como o ser humano adquire conhecimento, como
passa de um nível de conhecimento para outro nível de conhecimento mais
elaborado, se de uma forma passiva ou ativa, determina um tipo de
educação. Poderíamos tratar de uma educação moral efetiva e coerente
com as ideias de Piaget e Freire, se suas teorias do conhecimento não se
encontrassem?
Abordamos, outrossim, uma questão de fundamental importância,
na teoria de ambos os autores, que acreditamos ser essencial para aqueles
que buscam compreender as aproximações entre os pensamentos de Piaget
e Freire: a relação entre teoria e prática, ou entre ação e consciência.
Reconhecemos tal relação como necessária para compreendermos a moral;
o olhar para a questão da ação e da consciência é importante, a fim de que,
além do percurso do desenvolvimento moral, ou seja, além de
conhecermos as sucessivas tendências morais, possamos compreender que
não se passa de uma a outra de maneira mágica.
Aprofundamos nossos estudos sobre a tomada de consciência, para
entendermos como Piaget e Freire teoricamente a compreendem. Em
ambos os autores, encontramos níveis de consciência, que serão
explicitados. Sublinhamos o conceito, amplamente discutido e defendido
por Freire, de conscientização, que traz uma vertente política interessante,
envolvendo questões importantes de serem discutidas, na atualidade, como
o engajamento e a transformação da realidade. A conscientização é
entendida como essência da educação, para Freire. Toda essa discussão
sobre a tomada de consciência e sobre conscientização nos permitirá,
também, ampliar, posteriormente, a discussão sobre a questão da moral no
contexto educacional e sua relação com a vida em sociedade.
No segundo capítulo, denominado “Piaget e Freire: Questões de
moral”, abordamos os aspectos especificamente relacionados à moral.
Apresentamos a teoria de Piaget sobre a moral, recorrendo,
17
principalmente, ao livro O juízo moral na criança ([1932], 1994), e, depois,
as questões sobre moral dispersas no conjunto da obra de Freire, ensaiando
uma teoria do desenvolvimento moral. E, a partir dos eixos “Respeito
Mútuo” e “Autonomia Moral”, enfatizamos algumas relações entre Freire
e Piaget especificamente sobre a moral.
Começamos evidenciando os estudos de Piaget sobre moral. Na
obra O juízo moral na criança ([1932], 1994), Piaget se dedica
explicitamente a compreender como se desenvolve o juízo moral e sua
relação com a prática, a partir de pesquisas com crianças. Em algumas
outras obras, como em Estudos Sociológicos ([1965], 1973a), o autor discute
questões de moral e se posiciona, inclusive, em relação à educação.
Compreender a fundo sua teoria, em especial a relação entre a prática e o
juízo moral abordada em Piaget ([1932], 1994) , o respeito, a
autonomia e a educação, vai ajudar-nos a verificar se ela se aproxima,
quanto aos aspectos morais, da teoria de Freire.
Observaremos os aspectos da moral presentes na obra de Freire. E,
embora não exista uma apresentação sistemática, uma obra específica de
Freire sobre moral, os conceitos e a forma como ele compreende a moral
aparecem diluídos em toda a sua produção teórica. É clara a sua
preocupação com o modo como se estabelecem as relações entre mulheres
e homens e destes com o mundo; nessa perspectiva, o autor trabalha a
questão da opressão e da liberdade, apostando nas relações dialógicas e
amorosas, e apontando como fim da educação a autonomia, moral e
intelectual.
Elegemos três aspectos da moral “respeito mútuo, autonomia
moral e educaçãopara nortearem a nossa análise (sendo que a educação
será tratada no terceiro capítulo). Esses aspectos, os quais assumem o papel
de eixos norteadores para nossa pesquisa, foram escolhidos porque
acreditamos que o respeito seja a essência da moralidade, direcionando as
18
ações ou os juízos para espécies de moral distintas. O respeito mútuo seria
a forma ideal de respeito para que o desenvolvimento moral tenda para a
autonomia, uma tendência moral mais equilibrada. A educação,
considerando a construção da moralidade, assume papel importante
enquanto possibilidade de experiências, interações e reflexões. Escolhemos,
então, evidenciar o que Freire e Piaget dizem sobre esses aspectos e como
esses dizeres se aproximam.
Cotejamos a teoria explícita de Piaget sobre a moral com a teoria
de Freire expressa em sua obra, em geral, seguindo uma trajetória em que,
tendo em vista a questão da ação e da consciência, analisamos as questões
do respeito mútuo, da autonomia moral e da educão. Para cumprirmos
tudo isso, trabalhamos os conceitos de diálogo, cooperação, opressão,
autoridade, liberdade, conscientização, que, dentre outros, permeiam essa
relação. Para essa análise, já não dividimos as ideias dos autores em itens
separados, porém, optamos por ir realizando uma discussão em que vamos
trazendo solidariamente as ideias de cada um deles.
Abordamos, primeiramente, a questão das formas de relações
sociais, posicionando-nos sobre as relações de opressão ou coação e as
relações dialógicas ou de cooperação e reciprocidade. A partir disso,
adentramos na questão do respeito. Encontramos, de forma bem específica
em Piaget, nas obras sobre a moral, seu posicionamento sobre o papel
essencial do respeito para o desenvolvimento moral; ele trata de dois tipos
de respeito, o Respeito Unilateral e o Respeito Mútuo, como cada um deles
se relaciona com a heteronomia ou a autonomia moral. Já em Freire,
destacamos questões que apontam para espécies distintas de respeito entre
os homens e as mulheres, fruto das diferentes modalidades de relação; a
autonomia, na perspectiva do desenvolvimento moral, é compreendida
como um fim desejável, alcançado quando os homens e as mulheres vivem
uma transformação.
19
Buscamos compreender, com base nesses autores, o que significa,
de fato, a autonomia moral. Quando falamos da heteronomia, abordamos
questões, de ambos os autores, que nos fazem olhar para a forma exterior
de lidar com as regras, para a passividade, a cultura do silêncio, a
obediência cega e sem crítica àquilo que vem daquele que é considerado e
que age como superior. Já a autonomia, para os autores, traduz a ideia de
um posicionamento crítico e consciente, fruto de uma construção interna
das regras (ativa), possível quando há reciprocidade e cooperação.
No terceiro capítulo, “Educação moral: novos caminhos”,
apresentamos e discutimos apontamentos sobre educação retirados das
teorias de Piaget e de Freire, estabelecendo relações e sinalizando novas
possibilidades de pensar a educação moral, dentro do contexto geral da
educação.
Não poderíamos refletir sobre questões tão importantes de moral
sem compreendermos como elas se inserem na educação, segundo esses
autores. Tratamos das formas de educação que contemplam a visão de
desenvolvimento moral de Piaget e de Freire, e explicitamos a relação entre
seus posicionamentos quanto à educação moral. A aproximação entre as
teorias em questão implica repensar as relações morais estabelecidas no
âmbito educacional, de maneira geral, atualmente. Abordamos questões
referentes à formação de professores, à autoridade, às regras, às sanções, às
relações que acontecem na escola, ao verbalismo, à coerência entre teoria e
prática, entre outras. A aproximação dessas teorias, sob a ótica da moral,
nos faz pensar como a educação moral tem um papel fundamental na
transformação social.
Nesse sentido, algumas perguntas surgem, diante desse percurso: o
que seria uma educação de qualidade para todos? A escola busca
efetivamente a autonomia ou apenas afirma, em seus discursos, que o faz
20
como acontece nos PPP (Projeto Político Pedagógico) das escolas? Qual
é a relação entre o que é vivido na escola e a nossa vida em sociedade?
Por fim, nas “Conclusões, apresentamos os principais resultados
encontrados em nossa pesquisa e discutimos suas relações com o contexto
social e educacional atual brasileiro.
Esclarecemos que optamos por utilizar, ao longo do texto, “homem
e mulher” ou “mulher e homem” ao invés de apenas homem, ressaltando
e concordando com a posição assumida por Freire, em “Pedagogia da
Esperança” ([1992], 2008), de chamar a atenção para uma das muitas
formas de ideologia opressora da nossa sociedade, expressa, no caso, por
um machismo na linguagem. Que essa simples mudança represente o
desejo de que todas as situações opressoras possam ser transformadas.
Sabemos que apenas a linguagem não é suficiente para mudar a realidade,
ela deve estar inserida em um processo de transformação social.
Apesar de compreendermos que Piaget e Freire percorreram
caminhos diferentes, em suas teorias, acreditamos que em vários
momentos seus pensamentos se aproximam, chegando a alcançar quase
uma identidade, na qual podemos encontrar embasamentos que nos
oportunizem compreender melhor aspectos da moralidade humana, a
educação para a autonomia e a possibilidade de uma sociedade mais
desenvolvida.
21
Capítulo 1
Piaget e Freire:
Questões Epistemológicas e Conceitos Básicos
Ao verificar as possíveis aproximações entre as teorias de dois
autores, dois aspectos são fundamentais: não desconsiderar as possíveis
diferenças e verificar, naquilo que é a essência dessas teorias, no caso, a sua
epistemologia, se esses autores dialogam.
Jean Piaget (1896 - 1980) foi um biólogo, psicólogo e
epistemólogo suíço, que se dedicou a compreender como o sujeito
conhece. Para isso, debruçou-se no estudo de crianças e adolescentes,
perseguindo caminhos inéditos para compreender como o ser humano
passa de um conhecimento mais simples a um mais complexo. Seu
objetivo, expresso inclusive em algumas de suas obras, como em Estudos
Sociológicos (PIAGET, [1965], 1973a), era construir uma teoria do
conhecimento com base em seus conhecimentos de Biologia, levando em
conta os aspectos sociológicos desse processo.
Paulo Freire (1921 - 1997) foi um educador brasileiro, que,
considerando o contexto histórico, político e social em que estava inserido,
a partir de um pressuposto epistemológico, propôs um novo olhar para a
educação e um novo método de alfabetização. Sua trajetória foi marcada
por um olhar crítico para as relações de opressão e pela luta pela
democracia. Trabalhou ativamente com a educação popular,
especialmente com a alfabetização de jovens e adultos. Foi exilado depois
22
do Golpe Militar de 1964, considerado traidor. Hoje é reconheceido, pela
Lei 12.612, Patrono da Educação Brasileira e influencia educadores não
somente no Brasil, mas, também, no exterior.
Não podemos afirmar que Piaget teve como objetivo principal
propor uma pedagogia, mas ele orienta sobre a educação que melhor
alcança a forma como concebe a construção do conhecimento, que melhor
se adequa à sua epistemologia genética. Igualmente, não se pode afirmar
que ele não possuía em sua teoria, uma consciência política, pois podemos
notar dissolvido em sua obra seu posicionamento crítico sobre o direito
à educação, sobre a necessidade de uma educação de qualidade e sobre a
necessidade de uma democracia que se estenda da escola para a sociedade.
Por outro lado, não se pode, em absoluto, sustentar que Freire não
tenha uma epistemologia, porque, em sua obra, encontramos uma
concepção de como mulheres e homens constroem conhecimento. Sua
pedagogia não está solta, assim como seu caráter político se fundamenta
em uma epistemologia.
Que tenham utilizado caminhos diferentes, ao pesquisar crianças
ou adultos, ou mesmo que tenham dado ênfase a aspectos distintos em suas
obras, não negamos. Porém, verificamos que convergem no modo de
conceber a construção da capacidade cognitiva. Com efeito, negando a
suficiência de Apriorismo e Empirismo, Piaget e Freire assumem uma
concepção de construção de conhecimento pautada pelo Interacionismo,
atribuindo papel essencial à ação, o que leva a outras aproximações.
Contudo, qual é a epistemologia que embasa as teorias de Jean Piaget e
Paulo Freire? É sobre isso que trataremos, no próximo tópico.
23
A epistemologia de Jean Piaget
Jean Piaget interessou-se profundamente pela questão do
conhecimento. Buscou verificar como se constroem e se desenvolvem as
estruturas do conhecimento e, por extensão, do pensamento. Como os
sujeitos constroem conhecimento? Como se passa de um nível de
conhecimento para outro nível mais elaborado? Piaget pôde retirar das
respostas de crianças e adolescentes explicações para o desenvolvimento
intelectual e para outras áreas do desenvolvimento humano, como a da
moral.
Ele realizou grande quantidade de pesquisas com crianças e
adolescentes. Apesar de sua teoria não tratar apenas de explicações da
psicologia da criança, Piaget reconheceu que ocorrem, na infância, grandes
avanços do sujeito, mesmo antes da linguagem, no período sensório-
motor. A criança constrói o universo prático que a cerca e chega a construir
diversas estruturas de conhecimento nos dois primeiros anos de vida
(aproximadamente), no período sensório-motor, rico em
desenvolvimento, preparando a emergência do pensamento.
Suas pesquisas chegaram a ser equivocadamente confundidas, por
muitas pessoas, com um método pedagógico. A despeito de ter-se
dedicado, em alguns momentos, à pedagogia, trabalhou no sentido de
apresentar sua teoria de conhecimento e apontar concepções educacionais
que melhor atendiam a essa teoria, deixando a orientação de que os
educadores fizessem dela o melhor uso.
No Brasil, Piaget ficou amplamente conhecido, especialmente a
partir da década de oitenta, com a implantação do “Construtivismo nas
escolas. Sua teoria foi, em muitos casos, reduzida apenas aos estágiosem
24
vez de estádios
1
do desenvolvimento; porém, sua epistemologia se traduz
em uma totalidade muito maior e mais completa.
Piaget sempre deixou clara sua posição quanto à insuficiência do
Apriorismo e do Empirismo, para explicar o desenvolvimento cognitivo
humano ou a construção do conhecimento.
O Apriorismo tem como tese fundamental que o indivíduo, ao
nascer, traz em si capacidades determinantes do conhecimento e da
aprendizagem. Essas condições previamente determinadas podem se
manifestar já no nascimento, no caso do Inatismo, ou durante o processo
de maturação. Existiriam estruturas anteriores, uma bagagem hereditária,
as quais se desenvolveriam, de maneira endógena, dependendo do próprio
indivíduo, para se realizar.
Por outro lado, o Empirismo fundamenta-se na ideia de que é pela
experiência do indivíduo, concebida como vivência sensorial, por
internalização do meio físico e social que o cerca, que se efetivaria a
aprendizagem; o desenvolvimento não seria outra coisa senão o resultado
do somatório das aprendizagens. O meio exerceria pressão sobre o
indivíduo, registrando nele suas marcas. Para essa abordagem, a ação do
sujeito não exerce papel determinante; ela também é comandada por esse
meio.
Piaget explica que, nessas teorias, a atividade do sujeito não é
considerada, em benefício de um todo elaborado (PIAGET, [1936],
1975). Ele não compartilhava dessas duas concepções, para explicar a
1
Ressaltamos a deformação do conceito de estádio que ocorreu no Brasil. Como vemos em Becker
(2012, p.153-154) Piaget tratou de estádios do desenvolvimento, mas o conceito foi erroneamente
transposto para o português como estágios, que significa uma experiência a que nos submetemos
para atingir um nível de aprendizagem que ainda não possuímos, mas a criança que se encontra em
um estádio de desenvolvimento não está se submetendo a nada em busca de aprendizagens do
próximo estádio.
25
gênese do conhecimento. Embora concordasse com certos aspectos
presentes nessas teses, uma vez que reconhece no processo a presença de
mecanismos de origem hereditária e a importância das experiências vividas,
não pensa que uma das duas ou mesmo a simples soma delas pudesse dar
conta de explicar a construção da capacidade cognitiva, a aprendizagem ou
o desenvolvimento do sujeito. Sua teoria traz como fator central a
equilibração e um conceito de experiência profundamente divergente de
ambas; impõe-se não apenas a soma dessas teorias, mas sua superação.
Piaget utilizou a expressão “Epistemologia Genética”, para
descrever sua teoria da gênese das capacidades cognitivas. Genética, no
sentido de gênese, origem, pois explica a construção do desenvolvimento.
Para ele, o conhecimento parte da ação exercida sobre os objetos, enquanto
interação, portanto, o conhecimento é construído progressivamente,
mediante interação sujeito-meio. Essa ão é criativa e inventiva porque,
ao agir sobre o meio e enfrentar a resistência dele, o sujeito se refaz,
refazendo o meio. O conhecimento não está somente no objeto ou
somente no sujeito, ele é resultante de construções e reconstruções
progressivas, fruto dessa interação sujeito-meio.
De acordo com Piaget, o desenvolvimento pode ser considerado
como resultante de equilibrões progressivas, em função das quais se
atinge, cada vez mais, estado de maior equilíbrio (PIAGET, [1975], 1976).
Utilizando suas próprias palavras:
O desenvolvimento, portanto, é uma equilibração progressiva, uma passagem
contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio
superior. Assim, do ponto de vista da inteligência, é fácil se opor a instabilidade
e incoerência relativas das ideias infantis à sistematização do raciocínio do
adulto. (PIAGET, [1964], 1967, p. 11).
26
O conhecimento é fruto do funcionamento das estruturas mentais,
que são orgânicas, antes de serem formais; mesmo sendo formais não
deixam de ser orgânicas. Convém ressaltar que são, segundo Piaget
([1964], 1967), as estruturas que atingem formas cada vez mais
equilibradas, as quais são variáveis. As estruturas são as formas de
organização da vida mental, que se desenvolvem formando novas e
originais totalidades com uma nova forma de equilíbrio. Os estádios do
desenvolvimento (Sensório-Motor, Pré-Operatório, Operatório Concreto
e Operatório Formal), propostos por Piaget, consistem em estruturas
sucessivas comuns a todos os indivíduos, que se caracterizam como
possibilidades de aprendizagem. Entretanto, nem todos os indivíduos,
necessariamente, alcançarão todas as estruturas, afinal, cada indivíduo
vivenciará circunstâncias específicas (cada um tem sua história, pertence a
um grupo social diferente, vive situações diferentes etc.). Conforme vemos
em Ramozzi-Chiarottino (1988), as estruturas mentais não são inatas: o
que existe no genoma são capacidades, próprias do ser humano, que
podem ou não se concretizar, mas que, para se concretizarem, dependem
da interação sujeito-meio.
Já o funcionamento, enquanto motivação geral das condutas e do
pensamento, é constante em todos os indivíduos e em toda as idades. Toda
ação é movida por uma necessidade, a qual se manifesta como um
desequilíbrio, proveniente do meio ou do próprio indivíduo, lembrando
que uma mesma situação pode gerar ou não desequilíbrio em sujeitos
diferentes, e espécies diferentes de desequilíbrio.
A equilibração é o fator essencial da epistemologia genética, pois se
constitui como uma relação entre sujeito e objeto, através dos processos de
assimilação e acomodação. “Toda necessidade tende: 1º a incorporar as
coisas e pessoas à atividade própria do sujeito, isto é, ‘assinalar’ o mundo
exterior às estruturas já construídas, e 2º, a reajustar estas últimas em
27
função das transformações ocorridas, ou seja, ‘acomodá-las’ aos objetos
externos.” (PIAGET, [1964], 1967, p. 15).
Os conceitos de assimilação, ou seja, a integração do objeto às
estruturas anteriores do sujeito, e de acomodação, isto é, a atividade do
sujeito de modificação das estruturas mentais devido à resistência do
objeto, para compensar tal resistência (uma resposta aos desafios da
assimilação), trazidos da Biologia, são utilizados por Piaget para explicar a
formação da capacidade cognitiva, o conhecimento e o pensamento
humano e suas capacidades inventivas. O sujeito que age sobre o objeto
novo, por assimilação, pode sofrer um desequilíbrio por não entendê-lo
naquele momento e sentir-se desafiado por ele; urge acomodar seus
esquemas ou estruturas assimiladoras, atingindo um novo patamar de
equilíbrio. O equilíbrio entre assimilação e acomodação é chamado de
adaptação. A construção do conhecimento passa, portanto, por
desequilíbrio e reequilibração.
Podemos pensar esse processo de construção do conhecimento
também sob a ótica da abstração. A abstração empírica retira informações
dos objetos, enquanto a abstração reflexionante retira informações das
coordenações das ações. A construção do conhecimento se dá
simultaneamente por abstração empírica e reflexionante, porque a criança
organizará informações que ela retira do mundo, mediante a ação, e
informações que ela retira das suas próprias ações e coordenações de ações.
O bebê nasce com reflexos, que se encontram como respostas aos
estímulos, já programadas na bagagem hereditária. Tais reflexos são
modificados em função das experiências vivenciadas pelo bebê, pois,
conforme exercita seus reflexos, eles são acomodados pelo sujeito,
originando seus esquemas de ação. Através desses esquemas, a criança
assimila os objetos do meio e, por sua vez, acomoda seus esquemas
assimiladores. Os esquemas de ação são o que há de comum nas aplicações
28
das ações. Se pensarmos no reflexo de sucção, por exemplo, ele se repete
várias vezes e dá origem ao esquema de sugar, de sorte que a criança suga
tudo a sua volta; nesse caso, o esquema de ação é o que há de comum no
sugar, e não no que é sugado. Esse esquema é considerado um esquema
primário, porque deriva de um reflexo. Os esquemas primários, uma vez
construídos, tendem a se aplicar a diversas situações e, nessa aplicação,
tendem a se diferenciar, formando os esquemas secundários, os quais
possibilitam que a criança reproduza os novos resultados, não mais ao
acaso. Enquanto bebê, antes mesmo da linguagem, a criança torna-se capaz
de coordenar seus esquemas, e um esquema que era um fim em si mesmo
passa a ser utilizado como meio para atingir outro fim, ordenando suas
ações.
Segundo Piaget, já há inteligência na criança, antes mesmo da
linguagem. Mesmo havendo atividade inteligente, a partir da coordenação
dos esquemas, ela é limitada, pois não há uma invenção, somente uma
aplicação dos esquemas conhecidos às situações novas. O universo prático
começa a ser construído nesse período anterior à linguagem, graças à ação
prática dos esquemas e à percepção, visto que, nesse momento, “[...] ainda
não existem nem operações propriamente ditas, nem lógica, mas onde as
ações já se organizam segundo certas estruturas que anunciam ou preparam
a reversibilidade e a constituição das invariantes. (PIAGET, [1964],
1967, p. 112). O período do nascimento até por volta dos dois anos,
aproximadamente, é rico em construção de conhecimento, pois, pela ação
sobre os objetos, a criança vai construindo o real (PIAGET, [1937], 2008).
Por exemplo, no universo do bebê recém-nascido, não há diferenciação
entre a criança e o mundo; por volta dos nove meses de idade,
aproximadamente, a criança começa a compreender que existem outros
objetos e que eles existem independentemente dela. Inicialmente, a criança
atribui a causalidade dos objetos a ela mesma, em função da sua ação;
29
progressivamente, ela vai percebendo, por força das estruturas que
constrói, que existem leis de causalidade independentemente dela. A
criança vai objetivando o mundo e a si, através das estruturas de
conhecimento e as aprendizagens:
O eu, no início, está no centro da realidade, porque é inconsciente de si mesmo
e à medida que se constrói com uma realidade interna ou subjetiva o mundo
exterior vai se objetivando. Em outras palavras, a consciência começa por um
egocentrismo inconsciente e integral, até que os progressos da inteligência
senso-motora levem à construção de um universo objetivo, onde o próprio
corpo aparece como elemento entre outros, e, ao qual se opõe a vida interior,
localizada neste corpo. (PIAGET, [1964], 1967, p. 19).
A qualidade da inteligência se amplia com a função semiótica, a
capacidade de representação, ou seja, de pensar um objeto por meio de um
significante diferenciado. A criança passa a utilizar a representação, seja
pela imitação diferida, seja pelo desenho, pelo jogo simbólico (brinquedo)
ou pela linguagem. A inteligência continua composta da ação, mas, a essa
altura, além disso, da representação. A função semiótica proporciona a
interiorização dos esquemas de ação, e o pensamento é uma reconstrução
em nível representativo do que foi construído na ação. A linguagem torna
o conhecimento possível de ser socializado. Como explica Piaget, com a
linguagem, a criança passa a narrar suas ações presentes e, aos poucos
também as passadas e a antecipar verbalmente as ações futuras, o que
possibilita a socialização, o pensamento e a ação interiorizada:
Daí resultam três consequência essenciais para o desenvolvimento
mental: uma possível troca entre os indivíduos, ou seja, o início da
socialização da ação: uma interiorização da palavra, isto é o
aparecimento do pensamento propriamente dito, que tem como base
a linguagem interior e o sistema de signos, e, finalmente, uma
30
interiorização da ação como tal, que, puramente perceptiva e motora
que era até então, pode daí em diante se reconstruir no plano intuitivo
das imagens e das “experiências mentais”. (PIAGET, [1964], 1967, p.
23-24).
Nesse período, a criança começa a ter um contato mais explícito
com as regras exteriores, mas que a inserem mais diretamente em relações
morais. O egocentrismo, quer dizer, a dificuldade da criança em
diferenciar seu ponto de vista do de outrem, permanecendo centrada,
continua forte.
A criança, ainda nesse período anterior às operações, está muito
focada nas aparências das coisas e das relações. Por isso, vemos muito
explicitamente essas crianças julgarem, por exemplo, situações de mudança
de formato da matéria em que não há alteração de conteúdo sem nenhum
princípio de conservação, da mesma forma que avaliam os atos dos seus
semelhantes em função da consequência material e não da intenção
empregada.
Progressivamente, a criança vai alcançando a capacidade de operar.
A operação é a ação interiorizada reversível, ou seja, agir sobre o mundo,
representar a ação, conseguir pensar essa ação e voltar ao ponto inicial dela,
sem prejuízos do processo. Essa reversibilidade é característica da
capacidade de operar, e permite a organização lógica do pensamento.
Inicialmente, essa operação será no nível de situações concretas, sem
dissociar-se por completo dos dados empíricos. Posteriormente, na
adolescência, a operação passa a acontecer sobre formas; o sujeito passa a
raciocinar não apenas sobre objetos concretos e suas representações, mas,
sobre proposições, ou hipóteses, e essa capacidade se ampliará na vida
adulta.
31
Ora, após os 11 ou 12 anos, o pensamento formal torna-se possível,
isto é, as operações lógicas começam a ser transpostas do plano da
manipulação concreta para o das ideias, expressas em linguagem
qualquer (a linguagem das palavras ou dos símbolos matemáticos, etc.),
mas sem o apoio da percepção, da experiência, nem mesmo da crença.
(PIAGET, [1964], 1967, p. 63).
Para Piaget, o conhecimento se dá, como acontece na ciência, por
construção contínua, que vai passando da ação à operação. Podemos citar,
como exemplo, as noções lógico-matemáticas, as quais, como Piaget
demonstrou em suas pesquisas, têm sua origem nas ações práticas e nas
coordenações dessas ações. Conceitos como a conservação, a classificação
e a seriação não se encontram prontos no sujeito ou no meio: procedem
das coordenações das ações do sujeito, na interação sujeito-meio, e chegam,
mediante as progressivas tomadas de consciência, a tornar-se ação
conceituada.
A ação do sujeito assume papel central na concepção
epistemológica piagetiana. Durante todo o desenvolvimento do
conhecimento, da ação enquanto prática à ação interiorizada ou
conceituação, está presente a atividade do sujeito. Não se trata de uma
ênfase no objeto ou de uma ênfase no sujeito, mas de uma ênfase na relação
entre sujeito e objeto realizada pela ação.
Tendo em vista as formulações de Becker (1993, 2012),
compreendemos que a epistemologia de Piaget ou o construtivismo
piagetiano é uma epistemologia relacional, a qual conduz a uma pedagogia
relacional, em que se considera que o sujeito deve agir sobre o objeto do
conhecimento e problematizar sua ação, para que possa construir novos
conhecimentos, e que os conhecimentos que o sujeito já possui são
importantes para a aquisição de um novo conhecimento. O professor que
32
compreende e assume essa epistemologia concebe que o ser humano não
nasce pronto, mas traz consigo uma bagagem hereditária, a partir da qual
vai construindo progressivamente suas capacidades de conhecimento;
concebe que o meio social é importante para o conhecimento, contudo,
não é determinante, a despeito de as experiências do sujeito na interação
com o meio serem de grande importância para o processo da própria
cognição. A equilibração é o fator essencial desse processo.
Para esse professor, que compreende e pratica a epistemologia
relacional, a criança age, desde o nascimento, sobre o mundo físico e social,
assimilando-o e respondendo aos desafios que essa assimilação enfrenta;
está construindo conhecimento. Na relação entre assimilação e
acomodação, é possível retomar o equilíbrio que foi perdido, quando a
criança, por assimilação, entra em contato com o novo. As atividades
pedagógicas devem desafiar o aluno, problematizar o mundo, convidá-lo a
refletir sobre sua prática. A cada nova equilibração, atinge-se uma forma
mais consistente de equilíbrio. Tanto o sujeito quanto o objeto passam a
existir na relação mediante essa ação, assim como a consciência, que só será
possível, quando o sujeito se apropriar das coordenações de suas ações.
Nessa concepção, o sujeito sempre poderá aprender, e a relação professor-
aluno será uma relação em que ambos ensinam e aprendem, como propõe
Freire.
E essas concepções epistemológicas e pedagógicas de Piaget se
aproximam da nossa escola atual? Não é da escola tradicionalmente
autoritária e transmissora de conhecimento que essa concepção se
aproxima. Não se aproxima da escola que mantém as carteiras enfileiradas,
para que os alunos não possam conversar, que coloca o professor,
literalmente, à frente e acima dos alunos, porque acredita que ele é o
detentor do conhecimento e que deverá transmitir tudo que sabe aos
alunos; uma escola em que estes se mantêm suficientemente quietos, para
33
captar, como uma esponja, todo o conhecimento transmitido e reproduzi-
lo com exatidão, sob pressão de uma disciplina que se identifica com a
passividade. o é aquela escola que crê nos castigos físicos ou que fazem
sofrer demasiadamente e que prioriza as regras arbitrárias, em lugar das
regras baseadas em valores morais ou que avalia quantitativamente,
exaltando os que acertam, segundo seus padrões, e excluindo os que erram.
Não se aproxima da escola em que não há prazer, não há diálogo, não há
trocas, não há vida. Não, definitivamente, não é dessa escola que Piaget
tratava, mas do contrário dela.
A epistemologia de Paulo Freire
Paulo Freire teve sua trajetória fortemente marcada pela criação de
um método de alfabetização de adultos. Todavia, a formulação desse
método, assim como sua crítica à educação bancária, não deve ser vista de
forma isolada, mas pensada, como fez Freire, a partir de uma concepção
epistemológica. Pensar Paulo Freire apenas como um método pedagógico
seria um grande equívoco, pois o próprio Freire, em diversos momentos,
faz referência a sua preocupação com a questão do conhecimento;
inclusive, sua prática foi caracterizada por experiências de construção do
conhecimento, porque estava sempre problematizando seu conhecimento,
em diálogo com outros, considerando o conhecimento de seus
interlocutores.
Vemos claramente, nas críticas e nas propostas feitas por Freire, a
pergunta: como o homem ou a mulher pode sair de um conhecimento
espontâneo, não crítico, e chegar a um conhecimento mais elaborado e
crítico?
34
Segundo Andreola (1993), para Freire, a educação é uma teoria do
conhecimento colocada em prática, repetindo com os indivíduos o que a
humanidade viveu, em termos de construção de conhecimento, da
passagem do saber para o saber que se sabe; podemos dizer, em outras
palavras, da passagem da ação à consciência da ação. O autor destaca que
Freire, em sua obra, trata da “[...] dimensão epistemológica da educação,
isto é, a educação como ato de conhecimento. Já declarou, aliás, que sua
preocupação teórica sempre foi mais a construção de uma teoria do
conhecimento do que uma teoria pedagógica.” (ANDREOLA, 1993, p.
33).
A alfabetização, mais que um simples método, só faz sentido se
entendida como uma teoria do conhecimento, a qual possibilita que o
sujeito passe de um conhecimento espontâneo para um conhecimento
crítico. Freire, ao pensar a alfabetização, lançou como primeira hipótese
que ela poderia acontecer por introjeção de um nome associado a uma
imagem, porém, depois de uma experiência vivida com uma mulher
analfabeta, ele percebeu que, para além de introjeção e extrojeção,
alfabetizar exigia uma compreensão crítica da palavra. Freire pediu que a
cozinheira que trabalhava em sua casa, uma mulher analfabeta, o ajudasse.
Então, mostrou-lhe um desenho de um menino com a palavra ‘menino’
escrita abaixo do desenho e questionou o que era e ela respondeu ‘um
menino’; depois, mostrou-lhe outra imagem do mesmo menino com a
escrita ‘meno’ abaixo do desenho, perguntou-lhe se faltava algo e ela
respondeu ‘falta o do meio’; fez a mesma coisa com a escrita ‘meni’ e ela
respondeu ‘o final’. Ela, então, quis parar, pois estava cansada. Ele notou
que ela era capaz de trabalhar nos afazeres domésticos o dia todo, mas se
cansara depois de alguns minutos de um exercício intelectual. Não era uma
questão apenas de método, mas do ato de conhecer, aliado à curiosidade.
Relata Freire “Descobri que faltava desafiar, desde o início, a
35
intencionalidade da consciência, ou melhor, o poder de reflexão da
consciência, a dimensão ativa da consciência, e não como eu pensava
antes.” (FREIRE, [1980], 2001, p. 57).
Capaz de refazer sua teoria da alfabetização, ao tomar consciência
de uma situação vivida, Freire nos demonstra que o conhecimento é
conseguido por construção e reconstrução progressiva, que parte de
questionamentos; para Piaget, de desequilíbrios. Sem ficar preso a uma
única verdade, o sujeito deve estar aberto a refletir acerca de suas ações e
suas concepções, a partir da assimilação das ações e concepções dos outros.
O conhecimento, para Freire, não é passivo, ele só é possível
mediante a ação; homens e mulheres se constroem pelas suas ões; não
são determinados pelo meio ou pelo genoma. É a relação entre a ação e a
reflexão que fará que homem e mulher cheguem ao conhecimento crítico
das suas relações com outras pessoas e com o mundo. A construção do
conhecimento não se dá fora da prática, a qual leva em conta a experiência
humana como um todo, e parte da experiência já vivida pelos homens e
mulheres em sua realidade.
Pelas palavras de Freire:
Conhecer, na dimensão humana, que aqui nos interessa, qualquer que
seja o nível em que se dê, não é o ato através do qual um sujeito,
transformado em objeto, recebe, dócil e passivamente, os conteúdos
que outro lhe dá ou impõe. O conhecimento, pelo contrário, exige uma
presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação
transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante.
Implica em invenção e reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada
um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece
conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o “como” do seu
conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato.
(FREIRE, [1969], 1977, p. 27).
36
A conscientização é compreendida como processo de construção
de conhecimento do homem e da mulher. E, enquanto processo de
construção de conhecimento, a conscientização só é possível na relação
entre prática e teoria, e na relação do homem e da mulher com o mundo
e com outras mulheres e homens. A tomada de consciência, que, conforme
Freire, vai da consciência semi-intransitiva à consciência transitivo-crítica,
passando por um nível intermediário de consciência ingênuo-transitiva, é
um processo que possibilita construção de conhecimento, mas a
conscientização é ainda mais ampla, pois atribui à ação do sujeito uma
responsabilidade crítica, engajada com uma ação transformadora,
consciente da dimensão histórica, e que se faz utópica, por denunciar uma
realidade e anunciar uma nova forma de ser:
A realidade não pode ser modificada, senão quando o homem descobre
que é modificável e que ele pode fazê-lo. É preciso, portanto, fazer desta
conscientização o primeiro objetivo de toda educação: antes de tudo
provocar uma atitude crítica, de reflexão, que comprometa a ação.
(FREIRE, [1980], 2001, p. 46).
Como conhecimento implica conhecer o real, em sua totalidade e
não de forma fragmentada, Andreola (1999) destaca a
interdisciplinaridade proposta por Freire, em sua obra e em sua vida, como
requisito para uma visão da realidade dentro da unidade, da globalidade e
da totalidade. Nessa perspectiva, a epistemologia e a pedagogia de Freire,
pedagogia do oprimido e da autonomia, devem ser compreendidas como
interdisciplinares, abarcando diferentes dimensões, dentre as quais a
psicológica, a antropológica, a ontológica, a econômica, a política e a
pedagógica. O projeto político-pedagógico de Freire visa a uma educação
37
libertadora, e não pode ser compreendido fora de uma concepção de
conhecimento, que é interdisciplinar e, assim, pode ser objetiva, porque
busca desvendar o real como um todo.
A concepção de conhecimento de Freire não é racionalista nem
intelectualista, pois sua tese é de que o conhecimento não pode ser somente
teoria, deve ser prática. Conhecer é vivenciar uma prática concreta e
repensá-la, e, em consequência, poder viver uma nova prática. Para ele, o
conhecimento tem que dar sentido ao mundo, é uma arte, tem seu caráter
estético. Dessa forma, não acredita em uma concepção mecanicista de
conhecimento. O conhecimento não deve ser visto como algo passivo,
estático ou sombrio, mas como movimento e vida.
Não podemos tratar da epistemologia de Freire sem evidenciar que
ele sempre salientou os aspectos mais humanos do ato de conhecer; não
ficou preso a um ato apenas intelectualizado; reconheceu todo
empreendimento afetivo que envolve o conhecer. Sublinhou, em seu
pensamento, o papel do amor para a educação, enquanto construção de
conhecimento; falou da necessidade de uma educação amorosa, explicou o
diálogo, necessário à educação, como um encontro amoroso, que une e
organiza a relação e possibilita uma ação mais coerente, que tem em vista
e valoriza o outro: “Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor
ao mundo e aos homens. Não é possível a pronuncia do mundo, que é um
ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda.” (FREIRE,
[1970], 2011, p. 110).
Como em Piaget, Freire faz a opção por uma pedagogia relacional,
pautada em uma epistemologia relacional, conforme terminologia
utilizada por Becker (1993, 2012). Ele não aceita que o conhecimento
esteja pronto no sujeito, desde o nascimento, ou que o meio seja
determinante. Apesar de considerar o contexto em que o sujeito está
inserido e focar seus estudos, principalmente em situações de miséria e
38
violência, tem certeza da possibilidade, graças à ação, de superação da
condição de opressão. A ação do sujeito, numa relação entre prática e
teoria, percorre toda sua concepção de construção de conhecimento. Isso
faz com que a pedagogia do oprimido, ou a pedagogia da autonomia, tenha
como objetivo uma transformação que só é possível mediante a ação da
mulher e do homem.
A concepção de que o sujeito aprenderá mediante o desafio
intencional de sua consciência, explicitada na pedagogia do oprimido, nos
diz que a construção do novo conhecimento acontecerá por meio da ação.
Para Freire, na educação, não há uma dicotomia entre educador e
educando: ambos aprendem e ensinam, em uma relação dialógica. Seus
conhecimentos prévios assumem grande importância no processo. Nesse
sentido, a conscientização, enquanto processo ativo, permite conhecer o
mundo, a realidade, as relações e engajar-se na sua transformação.
Em Pedagogia da autonomia, Freire retoma sua ideia de que o
conhecimento é uma construção, quando assevera que o saber necessário à
prática docente é “[s]aber que ensinar não é transferir conhecimento, mas
criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.
(FREIRE, [1996], 2016, p. 47). Enfatiza que esse saber não pode ser
apenas teórico, mas deve ser testemunhado na prática. Dentre outros
relevantes aspectos presentes em sua obra, Freire fala da importância do
respeito à autonomia do educando, pois considera que é a ação, prática e
teórica, que lhe possibilitará a construção de conhecimento. Freire explica
a importância da curiosidade, ressaltando que professor e aluno devem se
assumir epistemologicamente curiosos, e que os desafios poderão
contribuir para essa curiosidade.
Como pensar alunos vivenciando sua curiosidade e criatividade,
em uma escola que não favorece a atividade e preza a passividade?
Impossível. Por isso, a escola que se pretenda coerente com as ideias de
39
Freire, assim como aquela preconizada por Piaget, deve inverter a lógica da
escola tradicionalmente autoritária e reprodutora de conhecimento,
abrindo-se à perspectiva da educação ativa e transformadora. Para isso,
métodos, espaços, tempos e materiais devem se adequar à cooperação entre
os sujeitos e a ação dos alunos. Deve-se dar voz ao aluno, para que seus
conhecimentos prévios, suas dúvidas, seus pensamentos e sentimentos
possam permear todo o processo de aprendizagem.
Passamos, no item subsequente, a tratar mais especificamente da
relação entre ação e consciência, abordando os conceitos de tomada de
consciência e de conscientização, os quais nos auxiliarão a compreender
melhor questões do desenvolvimento moral.
Ação e consciência
Notamos que as teorias de Freire e Piaget se aproximam, e muito,
naquilo que podemos considerar que seja a base de qualquer relação entre
autores, a epistemologia que fundamenta as suas ideias. Essa epistemologia
assume praticamente uma identidade, já destacada por Becker (2011),
quanto ao papel da ação do sujeito na construção do conhecimento.
Pensamos que a questão da relação entre ação e consciência exerce um
papel de extrema relevância para compreendermos tais autores e
destacarmos as aproximações entre suas teorias, também no que diz
respeito à moral.
Em Freire, fica clara sua concepção de que o conhecimento do
homem e da mulher, fruto das suas vivências e das relações, é fundamental
para que possam alcançar novas formas de conhecimento. Freire reserva
espaço fundamental, em sua teoria do conhecimento, para a ação,
enquanto ponto de partida para o processo de construção do pensamento
40
crítico. Assim, a educação considera as vivências prévias dos educandos e
todo o conhecimento que essas vivências permitiram. Entretanto, Freire
não fica preso apenas à ação prática e aos conhecimentos prévios, explica
que é preciso ir alcançando novas formas de conhecimento, mais
elaboradas, mediante reconstruções que partem dessas ações iniciais. A
tomada de consciência é fundamental nesse sentido. Permite formas mais
elaboradas do pensamento, culminando em um pensamento crítico, capaz
de transformar a ação, de gerar uma nova forma de agir.
Piaget propõe uma teoria do conhecimento que vai da ação à
consciência, explicando cada construção como uma tomada de consciência
daquilo que já se fez na prática. A educação que ele acredita corresponder
à sua teoria de conhecimento é aquela que prioriza a ação e a possibilidade
de reflexão da ação. Não trata somente da ação prática, mas, especialmente,
da ação interiorizada do sujeito, a qual possibilita construções e
reconstruções, que permite agir sobre a prática. À ação interiorizada, que
emerge das coordenações das ações, Piaget dá o nome de operação. A
operação, quando em conjunto com outros sujeitos que operam, leva o
nome de cooperação. A cooperação só é possível entre sujeitos autônomos,
pois implica a capacidade, a contade e a determinação de colocar-se no
lugar dos outros, em atitude solidária.
Em Dongo-Montoya (2006), vemos que a relação entre a ação e a
consciência é fundamental para compreendermos a teoria de Piaget,
relação explicitada por ele, quando trata da questão da linguagem e do
pensamento. Salienta que a construção do pensamento ocorre mediante
um processo que vai da inteligência sensório-motora à inteligência
conceitual, dos esquemas de ação aos esquemas conceituais, um processo
que envolve continuidade e reconstruções. A linguagem favorece, pelos
relatos ou narrativas, o processo de socialização do pensamento, ensejando
a troca de pontos de vista e que se chegue à conceitualização; a narrativa
41
possui papel importante para alcançar os esquemas conceituais, à medida
que faculta os pré-conceitos e as transduções. Entretanto, a linguagem
também é elaborada graças à construção dos esquemas conceituais, o que
torna recíproca a relação entre pensamento e linguagem. Para Piaget,
inicialmente, as crianças agem sobre os objetos e constroem seus esquemas
de ação; desses decorrem os esquemas verbais, os quais, reconstruídos,
passam a pré-conceitos e, desses, chegam aos conceitos; tudo isso graças à
interiorização progressiva dos esquemas e de suas coordenações:
O conceito e o juízo do indivíduo são produtos das transformações
ocorridas no processo de interiorização dos esquemas e coordenação de
esquemas de ação (esquemas verbais, pré-conceitos, transduções), o
que envolve necessariamente reorganizações por abstrações
reflexionantes. Como sabemos, a capacidade de classificação e
ordenamento de assimetrias não se retira dos objetos exteriores, nem
mesmo da sintaxe da linguagem, mas sim, das formas classificatórias e
ordenadas próprias às coordenações cada vez mais móveis e complexas
dos esquemas sensório-motores. Nesse processo é evidente que a
formação e acabamento da função simbólica é fundamental.
(DONGO-MONTOYA, 2006, p. 124).
A construção do conhecimento, seja em qual área for, passa pela
relação entre prática e teoria, ou seja, pela relação entre ação e consciência.
A ação, tida como um saber prático, eficaz e autônomo, apesar de não se
tratar ainda de um saber conceituado, é fonte dessa conceituação; a ação
tem êxito precoce com relação à compreensão função da conceituação.
São as progressivas tomadas de consciência que possibilitam que a ação se
transforme em conceituação. A conceituação evolui para as operações
formais, implicativas, por meio de abstrações reflexionantes. Em suma, o
42
saber fazer e a sua compreensão são essenciais no processo de construção
do conhecimento.
Pensar a construção de uma consciência crítica, autônoma, requer
compreender que ela parte da ação; a conceituação, necessária a essa
consciência, consiste de reorganizações, as quais acontecem na
interiorização dos esquemas, das coordenações dos esquemas, das
coordenações de sistemas de esquemas etc.
Tanto para Piaget como para Freire, a construção do
conhecimento implica ação e consciência. E a educação tem como objetivo
favorecer a ação e desenvolver o juízo crítico, capaz de fazer escolhas e
posicionar-se. Eles acreditam em uma educação que caminha no sentido
da liberdade, e a ação do próprio homem ou mulher é o que torna isso
possível.
A educação que se faz política e democrática antecipa uma ação
política e democrática futura, na sociedade. Por isso, deve assumir uma
coerência entre seus princípios e sua ação: formar para a liberdade exige
que se viva uma educação pautada na liberdade do educando.
Homem e mulher agem sobre a realidade externa, sendo possível
fazê-lo de forma consciente. São capazes de olhar para a realidade,
distanciando-se dela, refletir e nela agir. Logo, a mulher e o homem são
entendidos como sujeitos e não como objetos, seja na vida como um todo,
seja na educação. A ação educativa deve considerar sempre quem é essa
pessoa a educar-se e a sua realidade, o contexto em que está inserida; a
partir dessa reflexão, será possível pensar uma educação para a autonomia
intelectual e moral, uma ação cultural para a liberdade, como pensada por
Freire.
A educação deve buscar desenvolver a tomada de consciência, nos
termos de Piaget, e a ão-reflexão, enquanto ação prática e saber reflexivo
43
dessa ação (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2010, p. 23), nos termos de
Freire; uma educação que leve a uma consciência que faz escolhas, que
toma decisões, que luta, que age, que se engaja, que participa e que liberta.
O objetivo fundamental da educação deve ser uma consciência que inclui
perceber-se como sujeito histórico, situado em um espaço e em um tempo,
dentro de uma sociedade, dentro de um contexto real. Essa realidade, que
pressupõe aspectos físicos e sociais, estabelece com o sujeito relações que o
desafiam e que o levam à necessidade de reflexão e de respostas. Tais
respostas são fruto da atividade do homem ou da mulher, de suas criações
e recriações, podendo ser respostas de obediência e resignação ou de
questionamentos e de libertação.
A ação prática sozinha, mesmo que tenha obtido êxito, não é o
bastante para termos certeza que o sujeito desenvolveu conhecimento. É
preciso agir em pensamento sobre essa ação que deu certo, tomar
consciência dessa ação, apropiar-se dela, torná-la melhor. Tanto em Piaget
como em Freire, notamos que o sujeito não consegue produzir mudanças
ou redimensionar a própria ação, se não tomar consciência dela e
conscientizar-se.
Enquanto Piaget se dedicou à evolução da consciência, desde o
nascimento até o limiar da vida adulta, Freire trabalhou,
predominantemente, com a consciência de adultos. E as características da
consciência que Freire destaca nos adultos analfabetos, vítimas da opressão,
coincidem com a consciência intuitiva que Piaget encontra nas crianças
pequenas. Como pensar o desenvolvimento dessa consciência, quer nas
crianças, quer nos adultos?
Para compreendermos melhor a questão do desenvolvimento e da
construção do conhecimento, que nos ajudará a entender a questão da
moral, faz-se necessário tratarmos da questão da tomada de consciência,
processo essencial para que o sujeito passe de um nível menos desenvolvido
44
para um nível mais desenvolvido de consciência. A questão da tomada de
consciência nos auxilia a tornar mais clara a relação entre ação e
consciência, presente na teoria desses autores.
Tomada de consciência
A tomada de consciência é um conceito presente tanto na teoria de
Paulo Freire como na teoria de Jean Piaget. Ambos tratam da construção
do conhecimento, considerando esse processo como fundamental. Na
moral, igualmente, a tomada de consciência nos ajuda a compreender
melhor a questão do desenvolvimento. Por isso, optamos por aprofundar
esse conceito.
Piaget trata da questão da tomada de consciência em várias de suas
obras, inclusive em O Juízo Moral na Criança ([1932], 1994),
reconhecendo sua importância para a construção do conhecimento. Em A
tomada de consciência ([1974], 1977) e em Fazer e compreender ([1974],
1978), ele se dedica especialmente a explicar o processo de tomada de
consciência, de forma mais detalhada, explicitando o mecanismo de
tomada de consciência como um todo, trabalhando o porquê e o como.
Em um primeiro momento, ao tratar da tomada de consciência em
Piaget, é preciso destacar que não se trata de uma “iluminação” ou uma
apropriação, mas uma construção progressiva; podemos falar, portanto,
em diferentes níveis de tomada de consciência. A tomada de consciência
ocorre por um processo que evolui das ações práticas à conceituação.
No processo de tomada de consciência, inicialmente, o sujeito não
consegue, apesar da realização da ação com êxito, coordenar as relações
envolvidas e apresenta uma conceituação deformada. Somente após a
45
tomada de consciência daquilo que já realiza, na ação, o sujeito é capaz de
conceituar.
Piaget nos chama a atenção para o fato de que a tomada de
consciência seda periferia para o centro e passa da ação prática para a
interiorização dessa ação. A consciência do objetivo a ser atingido
encontra-se no que Piaget chamou de periferia, sendo imediata e exterior,
em termos de reação do sujeito para com o objeto. Portanto, a consciência
evolui, em uma relação de interação entre sujeito e objeto, da periferia na
direção ao centro de ambos, correlativamente.
Conforme o conhecimento tende à centralidade, aproxima-se do
sujeito e do objeto, tornando-se mais consciente. Isto é, quanto mais se
compreende o objeto, mais se compreende o próprio sujeito. Diante de
uma situação-problema e de suas soluções, o sujeito poderá obter êxito ou
fracassar; no caso de fracassar, se o sujeito possuir esquemas para
reconhecer o fracasso, poderá buscar explicações para ele, considerando as
características do objeto.
Piaget denomina periferia a análise que os sujeitos costumam fazer
apenas sobre as relações mais aparentes do que fazem na ação, sem levar
em conta os motivos que levam à realização de uma determinada ação e
como isso acontece. Tomar consciência, por conseguinte, seria aprofundar
essa análise, considerando o conhecimento de si e do objeto, uma passagem
do que é inconsciente para o consciente, por meio de reconstruções,
transformando o esquema de ação em conceito.
Em Piaget ([1974], 1977), encontramos estudos que analisam a
tomada de consciência de situações em que há êxito precoce do sujeito, em
determinadas ações, como no caso do andar de gatinhas e do arremesso da
funda. Notamos, pois, que a ação é uma forma de conhecimento
independente da conceituação, porque o sujeito é capaz de realizar diversas
46
ações e lograr êxito nelas sem que seja capaz de conceituá-las. A
conceituação irá acontecer, posteriormente, da periferia para o centro, ou
seja, das adaptações mais superficiais até as coordenações internas das
ações.
Também em Piaget ([1974], 1978) encontramos uma confirmação
dessa visão da tomada de consciência em relação à autonomia da ação e à
direção da periferia para o centro, mas ela é ampliada, pois trata igualmente
das situações em que o êxito acontece progressivamente e não
precocemente, devido à resistência dos objetos, e de quando a conceituação
passa a influenciar a ação. Quer dizer, o sucesso do sujeito nas ações pode
ocorrer por etapas, com coordenações progressivas. Inicialmente, a ação e
a conceituação são do mesmo nível e realizam trocas entre si, e,
posteriormente, a conceituação passa a apoiar a ação, reforçando a sua
capacidade de coordenação.
Mais do que se dar conta do saber fazer, que é um compreender
em ação algo para que se possa alcançá-lo, a tomada de consciência é um
processo de conceituação, fruto de progressivas reconstruções, que é um
compreender no pensamento esse algo que se faz, atingindo o porquê e o
como se faz, de sorte que a própria ação pode ser afetada por esse
compreender. Contudo, essas reconstruções não partem do nada, mas de
esquemas anteriores, os quais, muitas vezes, precisam ser corrigidos,
adaptados a novas situações:
As ações do sujeito, ao contrário, são vistas por ele e assimiladas mais
ou menos adequadamente por sua consciência como se se tratasse de
ligações materiais quaisquer situadas nos objetos, donde a necessidade
de uma construção conceitual nova para explicá-las: na realidade, trata-
se, então, de uma reconstrução, mas não trabalhosa quanto o seria se
não correspondesse a nada de já conhecido do próprio sujeito, e
apresentando os mesmos riscos de omissões e de deformações que
47
existiriam se a questão consistisse em explicar a si mesmo um sistema
exterior de conexões físicas. (PIAGET, [1974], 1977, p. 201-202).
É preciso considerar que, nesse processo de conceituação através de
reconstruções, podem ocorrer deformações nas observações do sujeito, que
acaba não acreditando no que vê e não percebendo outras possibilidades.
Como no caso do experimento da funda, descrito por Piaget ([1974],
1977, p. 20-38), no qual o sujeito observa a posição correta em que soltou
a funda para atingir o alvo, mas ainda não consegue admitir o movimento
realizado; por isso, deforma a explicação em favor de um movimento reto
em frente ao alvo ou a si próprio. Das deformações podem decorrer os
“recalques”, que fazem com que a consciência não aceite aquilo que o
sujeito observa.
Piaget (1973c) explica que há, no processo de tomada de
consciência, o “recalque inconsciente ou recalque cognitivo”, isto é, o
sujeito ignora, do ponto de vista da consciência, o esquema antes de se
tornar um conceito, porque esse conceito representativo vai de encontro
aos esquemas anteriores, tornando difícil a tomada de consciência da ação.
A tomada de consciência acontece na perspectiva de uma
assimilação prática para uma assimilação por meio de conceitos, assim, se
o sujeito se limita às reações elementares, deforma conceitualmente os
dados de observação e não os registra como são.
Entre o êxito em umaão e o início da tomada de consciência
existem compromissos que levam a uma consciência incompleta e a graus
de consciência, os quais dependem das formas de integração. A tomada de
consciência não se dá de maneira instantânea, mas por meio de elaborações
graduais. Podemos considerar que, conforme aconteçam novas percepções
conscientes que se integrem à consciência anterior, um novo grau de
48
consciência se apresente. Na visão de Piaget ([1974], 1977, p. 204), tais
graus não se constituem por passagens bruscas da inconsciência à
consciência, mas por graus de integração:
Em suma, o mecanismo de tomada de consciência aparece em todos
esses aspectos como um processo de conceituação que reconstrói e
depois ultrapassa, no plano da semiotização e da representação, o que
era adquirido no plano dos esquemas de ação. Não há, portanto,
diferença de natureza, numa tal perspectiva, entre a tomada de
consciência da ação própria e o conhecimento das sequências exteriores
ao sujeito, comportando ambos uma elaboração gradativa de noções a
partir de um dado, quer este consista em aspectos materiais da ação
executada pelo sujeito, quer em aspectos materiais das ações que são
realizadas entre os objetos. (PIAGET, [1974], 1977, p. 204).
A tomada de consciência, como já mencionado, acontece das
regiões periféricas para as regiões centrais da ação e da conceituação, sendo
o conhecimento o mecanismo comum nesse processo. Da perspectiva
funcional, podemos assinalar que ocorrem desequilíbrios e reequilibrações
que conduzem ao conhecimento. E mesmo o saber prático constitui-se
como uma forma de conhecimento, que, a despeito de não ser conceitual
e ser inconsciente, é fonte de tomadas de consciência.
Quando Piaget se refere a uma tomada de consciência da periferia
para o centro, está tratando de fatores internos, porém, a tomada de
consciência se inicia da interação entre sujeito e objeto, considerada
periférica tanto em relação ao sujeito como em relação ao objeto, mas que
se orienta em direção aos mecanismos centrais da ação do sujeito
(coordenações inferenciais), e às propriedades intrínsecas (coordenações
causais) dos objetos e não mais àquelas superficiais. Portanto, haverá
tomadas de consciência progressivas, das situações de êxito e das de
fracasso, que propiciarão o progresso da consciência.
49
Ao definir a tomada de consciência, o autor salienta que esta se
constitui “[...] numa reconstrução no plano superior do que já está
organizado, mas de outra maneira, no plano inferior. (PIAGET, 1973c,
p. 41). Podemos entender que o saber fazer na ação será conceituado
posteriormente mediante as tomadas de consciência, tornando-se um saber
compreender, que transforma esquemas de ação em operações.
Quando passa à conceituação, o sujeito pode, progressivamente,
inserir as coisas que já sabe fazer em um plano de possibilidades, chegando
a conceituação a antecipar-se em relação à ação. Por isso, em determinado
nível, passamos a utilizar a teoria como suporte para as nossas ações, nas
mais diversas áreas.
Quando observamos as crianças pequenas notamos que elas
brincam e conquistam determinados resultados positivos, em suas
brincadeiras, sem se dar conta do porquê e do como o fizeram, como no
caso de quando acertam a bola na cesta de basquete. Não sabem conceituar
aspectos envolvidos na situação, como seus movimentos, distância e altura
da cesta, sua força ou o peso da bola. Porém, nos adolescentes, de forma
mais abrangente, já podemos notar uma conceituação da ação, fruto das
progressivas tomadas de consciência, que os fazem, inclusive, pensar
previamente a jogada e modificar a ação, se necessário, como quando a
cesta está mais baixa ou mais alta, por exemplo.
O processo de tomada de consciência é bastante complexo, sendo
o responsável por construir estruturas mentais cada vez mais elaboradas e
capazes de compreender e conceitualizar aquilo se faz, em termos de ação,
na prática. É esse processo que explica a relação entre a ação e a consciência.
A tomada de consciência não é uma solução mágica, que transforma a ação
em conceito; como vimos, é um processo gradual de constantes
reconstruções, que implica “desmontar, em pensamento, as ações que se
conseguiu fazer, para compreendê-las.
50
Quanto à moral, em O juízo moral na criança ([1932], 1994),
Piaget levanta uma problemática muito importante: o juízo moral que a
criança faz sobre uma situação hipotética trata-se de uma tomada de
consciência daquilo que faz na prática, em termos morais, ou não? A fim
de responder a essa queso, Piaget realizou pesquisas com crianças sobre
as regras do jogo e entrevistas com histórias hipotéticas com conteúdos
morais. Os resultados de Piaget demonstram uma relação entre os juízos
morais e as ações morais das crianças.
Para Piaget ([1932], 1994), o juízo verbal da criança no campo da
moral corresponde aos juízos práticos e, podendo haver um atraso do juízo
teórico com respeito ao juízo prático.
A moral é constituída de um processo que abrange a ação e a
consciência. Apenas podemos separá-los com fins didáticos, no entanto,
não podemos compreender o desenvolvimento da consciência, se não
considerarmos a ação moral já vivenciada, como não podemos
compreender a ação moral isoladamente, sem ter em vista que ela interfere
na consciência do sujeito.
Dongo-Montoya (2017b) evidencia a relação entre o juízo e a
prática moral, com base nos estudos de Piaget ([1932], 1994). O autor
ressalta a importância da tomada de consciência, nessa relação, destacando
as condições e desafios para que ela aconteça. Ele explica que os
fundamentos da moral do bem estão presentes já nas primeiras condutas e
sentimentos das crianças, e evoluem, passando por transformações
estruturais, até se tornarem noções e sentimentos conscientes. Porém, há
entre as condutas e sentimentos iniciais e a moral do bem a intervenção da
coação adulta e do egocentrismo infantil, os quais precisam ser superados.
Para Dongo-Montoya, a relação entre ação e consciência moral
deve ser compreendida dentro de um sistema teórico. E, diante do fato de
51
Piaget ter indicado a relação entre juízos teóricos e a prática moral, nas
crianças, é preciso entender qual a natureza dessa relação. Como os sujeitos
tomam consciência moral nas relações vividas?
A tomada de consciência moral, embora seja análoga e solidária à
tomada de consciência intelectual e dela dependa, não se reduz a ela, pois
possui características próprias, uma vez que está direcionada a normas
associadas a ações e coordenações que exigem uma afeição mútua.
Como já vimos anteriormente, no campo intelectual, o
pensamento evolui com certo atraso quanto às construções já efetivadas na
ação. Os desafios já superados na ação se prolongam ou reaparecem, em
termos de representação. Na moral também isso acontecerá. Contudo,
mesmo havendo, inicialmente, esse atraso da consciência em refencia à
ação prática, chegará o momento em que prática e teoria se equilibram,
graças à cooperação.
Na perspectiva piagetiana, a despeito da tendência inicial da
criança à afeição recíproca, o egocentrismo e a coação adulta (inevitável,
mesmo em ambientes em que se preze pela cooperação) geram um respeito
unilateral que a leva ao realismo moral (que explicaremos mais adiante). A
tomada de consciência inicial da criança é tributária desse realismo moral;
a consciência pode estar atrasada em relação à prática, já que ela consiste
de reconstruções do que já foi vivido na ação, ou seja, o realismo moral
pode já estar superado na ação e prevalecer no juízo teórico.
É interessante que, de acordo com Piaget ([1932], 1994) o
realismo moral ocorre, na prática, depois da tendência inicial da criança à
afeição recíproca, contudo, é a primeira noção da qual o pensamento moral
toma consciência. Isso reafirma, segundo ele, a tese de Claparède sobre a
tomada de consciência, para a qual o que acontece primeiro na ação está
em último na tomada de consciência.
52
Quanto ao realismo moral, a criança consegue se afastar dele, no
plano teórico, primeiramente, em relação a si própria, uma vez que percebe
suas próprias intenções, mas demora mais tempo em relação ao outro,
porque a ação do outro aparece com mais intensidade em sua materialidade
do que em sua intencionalidade, levando a criança a critérios de avaliação
objetivos.
Existem, conforme Piaget, atrasos e deformações na tomada de
consciência moral próprios ao próprio mecanismo de reflexão. Assim como
acontece no campo intelectual, no campo moral, no nível do pensamento,
podem interferir na avaliação da criança diversos tipos de ilusões, inclusive
inerentes ao egocentrismo. Até mesmo na ação moral podem intervir
sentimentos, como a compaixão e a simpatia, que, no plano verbal teórico,
não apareçam.
O realismo moral mantém-se por muito tempo e é difícil de ser
superado. Para Dongo-Montoya (2017b), as regras impostas pelos mais
velhos são primeiramente exteriores à consciência, não são consideradas
como um bem necessário às relações, que a coação adulta reforça as
características do egocentrismo, não possibilitando que se desenvolvam os
sentimentos de afeição mútua, os quais permitem que a criança considere
as intenções e os atenuantes nas faltas morais ou que leve em conta
verdadeiramente o outro, nas relações.
Dongo-Montoya, fundamentado na teoria de Piaget, ressalta que
existem, já nos primeiros anos de vida da criança, sentimentos e ações
espontâneas de necessidade de afeição mútua. As primeiras reações afetivas
da criança, apesar de não serem morais, pois não possuem o caráter
normativo constituído de estrutura e equilíbrio, serão a base das condutas
morais posteriores. A afeição recíproca inicial impulsiona a criança a
atitudes de reciprocidade, desde muito cedo.
53
A autonomia, ou moral do bem, exige reciprocidade. Quando o
respeito mútuo prevalece, o sujeito sente a necessidade de tratar o outro
como gostaria de ser tratado. Essa necessidade de reciprocidade realiza-se
por uma tomada de consciência das relações iniciais vividas pela criança.
As relações de reciprocidade vividas inicialmente, embora ainda não
morais, consistem de relações funcionais das quais se tomará consciência
durante o processo de desenvolvimento:
Tal é o a priori: não é nem um princípio, do qual os atos reais possam
se deduzir, nem uma estrutura, da qual o espírito possa tomar
consciência como tal, mas um conjunto de relações funcionais,
implicando a distinção dos desequilíbrios de fato e de um equilíbrio de
direito. Portanto, como o espírito tirará deste desequilíbrio funcional
normas propriamente ditas? Constituindo estruturas por meio de uma
tomada de consciência adequada. Basta, para que a procura funcional
de organização, a qual atesta a atividade sensório-motora e afetiva
inicial, dê nascimento a regras propriamente ditas de organização, que
o espírito tome consciência desta procura e de suas leis, e traduza, deste
modo, em estrutura o que até aí era simples funcionamento. (PIAGET,
[1932], 1994, p. 297).
A moral do bem, altruísta, é a forma maior de equilíbrio. Permeada
pelo respeito mútuo, ela possibilita a construção de regras de reciprocidade
internas ao seu próprio funcionamento. E, assim como acontece em
relação ao realismo moral na moral do dever, que se baseia na coação, na
moral do bem a afeição mútua também poderá estar em atraso no
pensamento teórico em relação à ação prática, sendo que o egocentrismo e
a coação interferem para que a afeição mútua se desenvolva.
54
A superação da moral do dever só acontecerá à medida que
progredirem as relações de cooperação, em que predomina a afeição
recíproca.
Quando evidencia a relação entre ação e consciência moral, tendo
como base o processo de tomada de consciência, Dongo-Montoya (2017b)
nos deixa claro que a autonomia moral não é fruto da transmissão, mas de
uma reconstrução das regras de reciprocidade que permeiam os
sentimentos de afeição mútua desde muito cedo, nas crianças, mesmo
diante das dificuldades encontradas no processo.
Compreendemos que a tomada de consciência no campo da moral
consiste em reconstruções progressivas. As primeiras condutas e
sentimentos de afeição mútua, vivenciadas inicialmente na ação prática da
criança, são reconstruídas no plano da consciência, podendo chegar a uma
forma superior de equilíbrio da reciprocidade. Essa tomada de consciência
enfrenta desafios para acontecer adequadamente, em especial, devido à
coação adulta que, juntamente com o egocentrismo infantil, impedem que
os sujeitos sintam a necessidade da reciprocidade, o que só acontecerá nas
experiências reais de cooperação e respeito mútuo, especialmente, entre
pares.
Em Paulo Freire, como podemos compreender a questão da
tomada de consciência? Podemos iniciar enfatizando que, Para Freire, a
tomada de consciência é um processo importante, o qual possibilita a
relação entre ação e consciência. Em diversos momentos, ele faz referência,
em seus textos, a esse processo. No entanto, não explica como compreende
os mecanismos da tomada de consciência, somente explicita o caminho
percorrido pela consciência humana.
Freire se declarou a favor da educação como prática da liberdade,
considerando a educação, quando não é opressora e domesticadora, como
55
possibilidade de homens e mulheres assumirem uma postura crítica nas
relações, tanto nas relações com o mundo quanto nas relações com outros
homens e mulheres. Lutou por uma educação em que, vivenciando a nossa
condição humana de ser mais, podemos transformar a nossa realidade e
o mundo em que vivemos.
Segundo Freire ([1980], 2001, p. 29-30), somente o ser humano é
capaz de distanciar-se do mundo, para admi-lo e objetivá-lo, e, com isso,
poder agir conscientemente sobre ele. Isso constitui a práxis humana,
constituída pela relação ação e reflexão sobre o mundo e sobre si mesmo.
Inicialmente, a consciência de mulheres e homens sobre o mundo
não é crítica. A primeira aproximação que eles têm com o mundo é
espontânea e simples; um conhecimento baseado nas aparências só
possibilita uma consciência ingênua. Para Freire, essa consciência ingênua
constitui uma tomada de consciência, apesar de não se tratar de uma
consciência crítica ou conscientização (FREIRE, [1980], 2001, p. 30).
A tomada de consciência, conforme Freire, é uma forma de
reconstruir em pensamento a ação, devendo alcançar uma criticidade nessa
reconstrução. Enfatiza o autor: “Não é o discurso o que ajuíza a prática,
mas a prática que ajuíza o discurso.” (FREIRE, [1992], 2000, p. 20). A
partir da vivência, da ação, o sujeito será capaz de ir formulando sua
própria teoria sobre determinada situação. Assim, a conceituação expressa
pelo sujeito não é inicialmente anterior à ação, mas fruto dela. Por isso, a
educação que se queira efetiva deve considerar que precisamos agir para
poder formular uma teoria. Todo aprendizado deve estar intimamente
associado à tomada de consciência de uma situação real e vivida pelo
aluno.” (FREIRE, [1980], 2001, p. 59). As tomadas de consciências
possibilitarão que, progressivamente, o homem e a mulher saiam de uma
posição ingênua frente à realidade e assumam uma posição crítica e
transformadora.
56
Freire fala de níveis de consciência. Quanto aos níveis da tomada
de consciência, havia expressado, em Educação e mudança ([1976],
1986), a passagem de uma consciência ingênua para uma consciência
crítica, enquanto processo; porém, em Conscientização ([1980], 2001),
Freire arremata sua ideia, estabelecendo três níveis diferentes de
consciência: consciência semi-intransitiva, consciência ingênuo-transitiva
e consciência transitivo-crítica.
Para pensar esses níveis, Freire está convicto de que “[...] devemos
considerar a realidade histórico-cultural como uma superestrutura em
relação com uma infraestrutura.” (FREIRE, [1980], 2001, p. 74). Para o
autor, a relação dominador e dominado, em que um impõe sua cultura ao
outro, é reflexo das relações sociais entre a sociedade metrópole e a
sociedade dependente. Dominados e sociedades dependentes vivem,
igualmente, a cultura do silêncio. Há uma forma de consciência que está
relacionada a essa sociedade dependente, uma consciência que vive quase
imersa na realidade, que não se distancia da realidade para analisá-la
criticamente.
Esse seria o primeiro nível de consciência, a consciência semi-
intransitiva. Tal nível de consciência, devido à sua quase imersão na
realidade, não consegue notar os desafios propostos por essa realidade, ou
os percebe de forma equivocada. Não é capaz de pensar e transformar o
presente, tendendo a achar que o passado é sempre melhor. Não se insere
em conteúdos ou investigações científicas, a verdade é sempre a do outro,
especialmente a que vem do dominador. A consciência dominada só
consegue captar os fatos de sua própria experiência, sem ter uma percepção
estrutural, objetiva, e atribui as causas dessa situação de dominação a uma
realidade superiorou aos próprios indivíduos que a vivenciam. Há uma
relação de manipulação, como há uma explicação mágica dos fatos. É o
próprio quadro da alienação.
57
A consciência semi-intransitiva é marcada por uma falta de
distanciamento da realidade, a qual impossibilita o olhar crítico sobre ela.
A consciência fica presa apenas à própria experiência e de maneira muito
rígida; não consegue perceber os questionamentos, as contradições ou
qualquer tipo de objetivação da realidade. É uma espécie de consciência
em que sobressai a dependência e a submissão.
Freire ([1980], 2001) destaca que essa consciência é muito comum
em países de terceiro mundo, citando como exemplo as sociedades latino-
americanas, em que se encontra amplamente instalada a cultura do
silêncio. Mais tarde, no exílio, encontrará o mesmo quadro em países
africanos.
A cultura do silêncio é resultado das relações estruturais
estabelecidas entre dominador e dominado, as quais supõem que os
dominados acatem a cultura do dominador, seus valores e costumes, de
sorte a tornar-se uma sociedade dependente e silenciosa. Para a superação
dessa situação, o povo precisa romper com a cultura do silêncio e dizer a
sua palavra, para que a sua sociedade deixe de ser dominada.
Às sociedades dependentes corresponde um tipo de consciência
historicamente condicionada pelas estruturas sociais. Mas, quando as
fendas dessa estrutura opressora começam a aparecer, a sociedade
dominada entra em transição, não rompe imediatamente com a cultura do
silêncio, porém, transita para uma consciência ingênuo-transitiva, que
continua dominada, mas mais bem disposta a perceber a origem de sua
existência. Esse movimento atinge não só a classe dominada, mas
conjuntamente a dominadora. “Nos processos de transição, o caráter
eminentemente estático da sociedade fechada dá lugar, progressivamente,
a um dinamismo que se apresenta em todas as dimensões da vida social.
(FREIRE, [1980], 2001, p. 80).
58
É nesse segundo nível de consciência, marcado pela transição, que
a dependência e a submissão começam a estremecer. A “consciência
ingênuo-transitivaé um tipo de consciência que, apesar de reprimida,
começa a perceber as ambiguidades. As consciências passam a viver
inquietações e, progressivamente, entram em uma postura mais dinâmica.
Nesse nível de transição, as contradições vão ficando mais nítidas
na consciência do sujeito, e os conflitos da consciência vão favorecendo o
seu movimento. Podemos perceber que, nesse nível de consciência
ingênuo-transitiva, amplia-se a capacidade de compreensão dos desafios
impostos pela realidade, apesar de permanecer presa à dominação.
Por fim, o terceiro nível de consciência, a “consciência transitivo-
crítica, é capaz de se distanciar da realidade e analisá-la criticamente.
Trata-se de uma consciência que permite perceber as relações com o
mundo e com as pessoas, que enseja perceber-se a si. A consciência crítica
é capaz de compreender corretamente e criticamente os mecanismos e
estruturas sociais.
A consciência crítica das sociedades dominadas começa a se
desenvolver, ao passo que as contradições da sociedade em transição vão
ficando mais claras e evidentes, e os grupos progressistas começam a se unir
e a distinguir melhor as características de sua sociedade e as relações em seu
interior. Acredita-se que a realidade pode ser modificada. Essa espécie de
consciência, mais equilibrada, busca a compreensão verdadeira da
realidade, constrói cultura e compreende a realidade histórica. Há uma
assimilação crítica da realidade, que percorre caminhos intelectuais mais
completos, com princípios coerentes de causalidade. É inquieta, faz
indagações, investiga, anseia a análise dos fatos. Segundo Freire, é
característica da consciência crítica amar o diálogo e nutrir-se dele.
59
Essa passagem da consciência semi-intransitiva para a consciência
transitivo-crítica, passando pela consciência ingênuo-transitiva, deve ser
objetivo da educação.
A relação da mulher e do homem com o mundo, enquanto
experiência real, é o ponto de partida de toda aprendizagem, de toda
tomada de consciência. “Todo aprendizado deve estar intimamente
associado à tomada de consciência de uma situação real e vivida pelo
aluno.” (FREIRE, [1980], 2001, p. 59). Tal relação é revestida da ação do
homem e da mulher, que trabalha, que planta, que colhe, que brinca, que
dança, que canta, que faz sua comida, que lava sua roupa etc. Somente
haverá libertação, se os oprimidos reconhecerem a opressão, em sua própria
vivência, e olharem para ela de forma distanciada e crítica.
Sobre a relação entre ação e consciência, Freire também vai tratar
da conscientização. “A conscientização é mais que uma simples tomada de
consciência. Supõe, por sua vez, o superar a falsa consciência, quer dizer,
o estado de consciência semi-intransitivo ou transitivo-ingênuo, e uma
melhor inserção crítica da pessoa conscientizada numa realidade
desmitificada.” (FREIRE, [1980], 2001, p. 104).
A conscientização ultrapassa os níveis elementares da tomada de
consciência descritos por Freire e abrange uma forma de consciência crítica
e engajada, a qual está diretamente ligada à ação transformadora. A
educação deve assumir o compromisso de promover o processo de
conscientização, no sentido de que esse processo é obra de cada um, em
comunhão com os demais.
A conscientização faz com que mulherer e homens se apoderem da
sua própria ação que já é vivida e que assumam uma postura em favor de
sua transformação, pela própria ação. Assim, a conscientização seria uma
evolução crítica da tomada de consciência, pois implica, além da leitura
60
crítica da realidade, um comprometimento com sua transformação.
Buscamos, na sequência, compreender melhor o conceito de
conscientização.
Conscientização
O comprometimento que pressupõe a conscientização faz parte da
práxis humana, traduzida como ação-reflexão-ação. O comprometimento
é, portanto, um posicionamento ativo, o qual requer consciência da
realidade e engajamento na luta por sua transformação, como vemos na
descrição de conscientização no Dicionário Paulo Freire (STRECK;
REDIN; ZITKOSKI, 2010, p. 88-89).
A educação, como a vê Freire, deve atingir a conscientização. O
método de alfabetização de Paulo Freire, como a educação de forma geral
pensada por ele, procura desafiar a consciência crítica de homens e
mulheres, para que eles possam, por sua própria experiência e atividade,
conscientizar-se.
Todavia, não podemos pensar a conscientização como condição da
alfabetização; mas, como o objetivo daquela. Logo, não podemos pensar a
educação e a conscientização como processos separados, em que um
depende do outro:
Seria um erro imaginar a conscientização como uma simples preliminar
da aprendizagem. Não se trata de fazer suceder a alfabetização à
conscientização, ou apresentar esta como condição daquela. Segundo a
pedagogia de Paulo Freire, a aprendizagem é já uma maneira de tomar
consciência do real e, portanto, não pode efetuar-se a não ser no seio
desta tomada de consciência. (FREIRE, [1980], 2001, p. 60).
61
Aos homens e mulheres cabe descobrirem-se como criadores e
inventores de cultura (para Freire, cultura significa aquilo que não é dado
pela natureza, mas é produzido pelo homem e a mulher, em suas relações
com o mundo e com as pessoas). Descobrir que aquilo que eles fazem tem
sentido e é importante. Essa descoberta é uma tomada de consciência da
sua condição ontológica, humana, de “Ser Mais”.
O primeiro contato da mulher ou do homem com o objeto, essa
realidade que os cerca, não é acompanhado de uma reflexão crítica, ou de
uma consciência crítica; Paulo Freire trata dessa primeira aproximação
como uma aproximação espontânea e ingênua. O homem e a mulher,
nesse momento, apenas experienciam o mundo, agindo nele.
Conforme Freire, já há nesse momento uma tomada de
consciência, mas não uma conscientização. A conscientização é uma forma
de consciência mais crítica; ela é mais que a aproximação espontânea e
ingênua da realidade, é uma forma de consciência bem mais envolvida com
essa realidade, em que se uma postura epistemológica, de conhecer, refletir,
analisar, questionar e transformar a realidade. Assim, há uma necessidade,
na conscientização, de que se instaure uma relação dinâmica entre ação e
consciência.
Como estabelece essa relação entre ação e consciência, a
conscientização resulta em uma ação transformadora, em um
compromisso histórico e utópico, que insere a mulher e o homem em um
movimento de reconstrução da realidade.
E esse processo de ação e reflexão crítica, da conscientização, não
se esgota, pois, mesmo quando o homem e a mulher se engajam na
transformação da realidade, continuam a refletir criticamente a nova
realidade que constroem.
62
Freire pensa a conscientização visando à ação. A conscientização só
está completa quando envolve a ação, uma ação que liberta.
A conscientização é o princípio norteador da educação na qual
acredita Paulo Freire. A educação, enquanto ato de conhecimento, tem
como princípio a conscientização, porque se traduz em um olhar crítico
para a realidade, a fim de transformá-la.
A conscientização, tão discutida e assumida por Freire, é essa
relação entre ação e consciência, em que a mulher ou o homem se afastam
do mundo que experimentam para refleti-lo criticamente, denunciando
suas mazelas e anunciando uma realidade melhor, possível de ser
conquistada pela ação.
Nesse sentido, o processo de alfabetização segundo Paulo Freire é
um ato de criação, que abre caminhos para que os homens e as mulheres
se engajem em outras ações criadoras. Em sua visão, é necessário que o
educando descodifique o código; para isso, parte-se da experiência no
contexto real. Da experiência real que viveram ou vivem os educandos com
aquela realidade que será codificada é possível estabelecer um
conhecimento crítico. É por atividade dos próprios educandos que se
extraem da própria realidade os temas geradores. Essa busca é ativa, porque
parte justamente da realidade em que os sujeitos estão inseridos e depende
da sua ação, para se tornar consciente; ao tomarem consciência da
realidade, tomam consciência de si mesmos. Para que a alfabetização seja
possível - não a alfabetização mecânica -, é necessário conscientizar-se. A
conscientização é nuclear no processo de alfabetização.
Conforme Freire, o aprofundamento da consciência possibilita a
conscientização, que torna os homens e mulheres capazes de transformar a
realidade social e cultural. A conscientização implica o compromisso dos
seres humanos para com o mundo, pois, conscientes da realidade
63
opressora, daquilo que já foi vivido, será possível uma ação em favor da sua
superação.
A mulher e o homem são seres da ação, pois agem nas relações e
podem transformar a realidade em função dessa ação. Toda ação possui
uma teoria, a qual pode ou não ser dialógica (FREIRE, [1969], 1977).
Existem as teorias que embasam as ações de opressão e mantêm a ordem
de dominação. Contudo, é necessário, para que haja transformação da
realidade, que homens e mulheres se conscientizem das ações dialógicas.
A conscientização significa ir além da tomada de consciência,
porque ela possui um caráter de responsabilidade com a transformação da
realidade. A conscientização assume o compromisso de denunciar a
realidade opressora e anunciar uma nova realidade, mais humana e justa.
A conscientização não se dá fora da ação-reflexão, mas enseja a
passagem de uma visão setorial para uma visão global:
[...] a conscientização não consiste em estar frente à realidade
assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não
pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta
unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou
de transformar o mundo que caracteriza os homens. (FREIRE, [1980],
2001, p. 30).
O conceito de conscientização, apesar de não ter sido criado por
Freire, é central em suas ideias sobre educação, que, para ele, é prática da
liberdade, é ato de conhecer, é aproximação crítica da realidade. “A
conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de
apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a
realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma
posição epistemológica.” (FREIRE, [1980], 2001, p. 30).
64
A conscientização é compromisso histórico e consciência histórica.
Enquanto processo, deve sempre estar e nunca acabar. Está baseada na
relação consciência-mundo, nunca em um mundo pronto, porém, em um
mundo em construção. A conscientização requer uma posição utópica
frente ao mundo, não de idealismo, mas de denúncia de uma estrutura
desumanizante e anúncio de uma estrutura humanizada:
Quem, melhor que os oprimidos, está preparado para compreender o
terrível significado de uma sociedade opressora? Quem sofre os efeitos
da opressão com mais intensidade que os oprimidos? Quem com mais
clareza que eles pode captar a necessidade de libertação? Os oprimidos
não obterão a liberdade por acaso, senão procurando-a em sua práxis e
reconhecendo nela que é necessário lutar para consegui-la. E essa luta,
por causa da finalidade que lhe dão os oprimidos representará
realmente um ato de amor, oposto à falta de amor que se encontra no
coração da violência dos opressores, falta de amor ainda nos casos em
que se reveste de falsa generosidade. (FREIRE, [1980], 2001, p. 67).
Freire deixa clara a ideia de que o polo contrário à opressão é a
libertação. E que, muitas vezes, os oprimidos, pela relação de dependência
vivida, tendo consciência de sua situação, não procuram a superação dessa
situação opressora, contudo, uma identidade com o opressor, pois não
conseguem identificar que a superação da situação de oprimido não é
alcançar o estado de opressor, mas sair totalmente dessa relação de opressão
e viver a liberdade.
Freire ([1969], 1977) defende uma educação que situa educador e
educando em uma relação de iguais, na busca do conhecimento, porque
esse encontro é que possibilita o diálogo, que considera os saberes e os
valores de ambos os sujeitos, que respeita e não impõe, que trata o outro
65
como sujeito e não como objeto, que estabelece uma relação amorosa e não
a violência.
A pedagogia, que comumente tende a ser adotada nas relações
educativas, é a pedagogia das classes dominantes, que, de forma opressora,
mantém a relação de dominação e de manipulação das massas, não dando
espaço para que a consciência crítica se instale. Contrariando essa ordem,
Freire propõe uma pedagogia do oprimido, a qual possibilita a tomada de
consciência e a conscientização, para que a mulher e o homem possam se
empoderar de sua realidade e transformá-la. O diálogo é o centro dessa
pedagogia, pois é encontro entre as pessoas, encontro amoroso, que não
supõe uma relação vertical, de dominação, em que um polo é tornado
objetomas uma relação de iguais, que humaniza a todos.
A comunicação implica uma reciprocidade, uma relação em que
não há sujeito passivo: a comunicação é entendida como diálogo. Nessa
perspectiva, a educação deve ser compreendida como uma forma de
comunicação, observada em seu aspecto dialógico. A educação, enquanto
ação dialógica, comunicativa e que insere o homem e a mulher em relações
que não são opressoras, mas libertadoras, deve buscar aprofundar a tomada
de consciência, alcançar a conscientização, que só é possível dentro das
relações e nunca isoladamente. Para Freire ([1969], 1977), a tomada de
consciência se dá mediante a defrontação da mulher e do homem com o
mundo, que objetivam, contudo, quando a realidade objetivada é inserida
em um sistema de relações, em uma totalidade, de maneira crítica, a
tomada de consciência aprofundou-se e chegou a ser conscientização. A
conscientização não é neutra, requer engajamento e transformação, não dá
espaço para a imposição.
Os próprios oprimidos, ao reconhecerem a relação de opressão,
vendo nela a si e ao outro, partem em busca da libertação, engajados de
fato nessa busca enquanto práxis libertadora, uma busca que é cheia de
66
dilemas, pois é preciso negar a tudo que se conhece e vivencia, para
afirmar-se em outra realidade, que possibilita o nascer de um novo homem
ou uma nova mulher. O mesmo se aplica ao opressor, reconhecendo-se
como tal. Destacamos, junto a Freire, que o reconhecer a relação de
opressão é necessário, entretanto, não suficiente para transformá-la; a
tomada de consciência daquilo que está sendo vivido é fundamental, mas
a essa consciência é preciso unir a transformação objetiva dessa situação
opressora, considerando a importância da subjetividade em uma relação
dinâmica com a objetividade nesse processo. Estando o sujeito dentro da
relação opressora, de tal maneira que se encontra imergido nela, somente
através de uma práxis autêntica, que Freire ([1970], 2011, p. 52) define
como “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transfor-lo”,
poderá libertar-se, o que não será por meio de palavreados sem sentido:
A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora,
terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão
desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis,
com a sua transformação; o segundo, em que transformada a realidade
opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a
pedagogia dos homens em processo de permanente libertação. [...]
No primeiro momento, o da pedagogia do oprimido, objeto da análise
deste capítulo, estamos em face do problema da consciência oprimida
e da consciência opressora; dos homens opressores e dos homens
oprimidos, em uma situação concreta de opressão. Em face do
problema de seu comportamento, de sua visão do mundo, de sua ética.
Da dualidade dos oprimidos. E é como seres duais, contraditórios,
divididos, que temos de encará-los. A situação de opressão em que se
“formam”, em que “realizam” sua existência, os constitui nesta
dualidade, na qual se encontram proibidos de ser. Basta, porém, que
homens estejam sendo proibidos de ser mais para que a situação
objetiva em que tal proibição se verifica seja, em si mesma, uma
violência. Violência real, não importa que, muitas vezes, adocicada pela
67
falsa generosidade a que nos referimos, porque fere a ontológica e
histórica vocação dos homens, a do ser mais. (FREIRE, [1970], 2011,
p. 57-58).
Para ele, a resposta dos oprimidos, por mais que pareça uma
violência contra a violência que os faz oprimidos, é, na verdade, o modo
de inaugurar o amor, porque dá início à busca pelo “Ser”, é uma busca pela
liberdade. E não se trata de opressão ou violência, justamente porque não
buscam o “Ser Menosdo outro, mas o “Ser Mais” de todos.
No entanto, em face dessa libertação, vão os antigos opressores se
sentir oprimidos, pois só conseguem ver direito em poder comer, vestir,
estudar, comprar coisas, desfrutar de bons cuidados, passear, ter luxo,
enquanto outros não comem, não vestem, não têm acesso à saúde e muito
menos à educação. Eles têm como certo o ser dono de tudo que está à sua
volta, inclusive dos outros homens e mulheres. O que vale, nesse caso, é o
ser e o ter mais, mesmo que à custa do ser e ter menos dos outros. O outro
é uma coisa, que não pensa, que não sente, inanimado, é um objeto de sua
posse.
Conforme Freire, a libertação será possível por meio da ação
acompanhada da reflexão, enquanto práxis, em busca da independência, e
não puro ativismo ou verbalismo sem sentido. A libertação é resultado da
conscientização, não podendo ser depositado no oprimido o desejo de lutar
pela sua libertação. E, por não ser possível a luta e a libertação ser feita por
um sujeito sozinho ou outros libertarem a um, é que somente dentro das
relações dialógicas se possível a conscientização, o engajamento.
Sobre a conscientização, Freire ([1992], 2008, p. 32) assinala: “É
por isso que, alcançar a compreensão mais crítica da situação de opressão
não liberta os oprimidos. Ao desvelá-la, contudo, dão um passo para
68
superá-la desde que se engajem na luta política pela transformação das
condições concretas em que se dá a opressão.
Becker, ao relacionar a tomada de consciência de Piaget e a
conscientização de Freire, visando a uma contribuição para a teoria da
aprendizagem, enfatiza: “A aprendizagem, pensada por Piaget, implica
consciência: muito além de uma aprendizagem prática, buscamos, com
Piaget, uma aprendizagem mediante tomadas de consciência e, com
Freire, uma aprendizagem mediante conscientização.” (BECKER, 2011,
p. 175).
O autor explica que se pode verificar que, nessa relação entre
tomada de consciência e conscientização, sob o ponto de vista de Freire, a
consciência inicial - um contato espontâneo e ingênuo com o mundo, sem
que esse mundo possa ser pensado de forma crítica - não se aproxima da
tomada de consciência de Piaget. Afinal, para Piaget, não, na tomada
de consciência, a ideia de que basta ser mulher ou homem para que exista
um nível de consciência, pois o meio pode dificultar ou impedir isso; não
há como o sujeito ser passivo, no processo de tomada de consciência. Esse
modo de pensar anularia a ideia de processo da tomada de consciência:
Há, aqui, duas pequenas discordâncias que devemos atender para
continuar a crescer nessa relação entre Piaget e Freire. Primeira, não
basta ser homem para tomar consciência porque o meio pode obstruir
esse processo; sabemos o quanto o meio pode fazer isso impedindo, sob
os pontos de vista psicológico e social, dificultando ou obstruindo os
caminhos da tomada de consciência. Segunda, o sujeito da tomada de
consciência não é mero espectador, pois é sua ação que realiza esse
processo. Isso quer dizer que a prise de conscience a que se refere Freire
não passa de uma concepção do senso comum e não coincide com a
concepção de Piaget. (BECKER, 2011, p. 176).
69
Esse nível de consciência espontânea e ingênua, que descreve
Freire, foi encontrado por Piaget, de maneira bem básica, no período pré-
operatório. Mas Freire o encontra, infelizmente, em populações adultas.
É evidenciada por Becker (2017, p. 21-22) uma importante
diferença entre os níveis sucessivos de tomada de consciência de Piaget e
de conscientização de Freire: na tomada de consciência, Piaget trata de
etapas que necessariamente são vividas pelo sujeito, as quais estimularão
sua evolução; porém, Freire, ao tratar dos níveis inferiores de consciência,
afirma que eles devem ser superados pela sua negatividade, mesmo não
sendo inevitáveis, porque são uma forma de consciência sem consciência.
Por outro lado, quando a mulher e o homem alcançam uma forma
de apreensão crítica da realidade, não mais espontânea, não um conhecer
passivo, mas um conhecer ativo, engajado, compromissado com a
transformação da realidade, aparecem as importantes relações da
conscientização com a tomada de consciência. De acordo com o autor, a
tomada de consciência, como entende Piaget, é condição para a
conscientização de Freire, devido à sua reversibilidade, entretanto, a
conscientização ultrapassa a tomada de consciência, pois se insere nela o
compromisso histórico de transformação social. O ponto alto, contudo, da
aproximação entre Freire e Piaget, segundo Becker, é o papel atribuído à
ação, que se estende aos dois processos acima mencionados:
[...] a tomada de consciência piagetiana é condição necessária para a
conscientização freireana, pois esta não é possível sem a reversibilidade
conceptual; e, ainda melhor, a reversibilidade completa de nível formal
[...] a conscientização freireana não se reduz à tomada de consciência
(processo universal) piagetiana, pois lhe acrescenta elementos
compromisso histórico de transformação da sociedade que implica o
elemento utópico... particularizantes; a “conscientização”, no
entanto, não se opõe à tomada de consciência, antes a supera,
70
realizando-a como uma entre todas as possibilidades de interação
sujeito-objeto, interação que produz as sucessivas tomadas de
consciência [...] a inequívoca proximidade, sob alguns aspectos a quase
identidade, entre Freire e Piaget, reside na função atribuída à ação.
(BECKER, 2011, p. 180).
Para Freire, a dimensão histórica é essencial para a conscientização;
não é possível conscientizar-se da realidade atual, sem inserir-se dentro de
um contexto histórico, pensando passado e futuro. Essa inserção crítica na
história é que permite o engajamento, ou seja, um compromisso histórico
e crítico com a realidade, para transformá-la. A conscientização implica
utopia, não no aspecto idealista, mas pensando que é necessária a
dialetização entre denunciar a estrutura desumanizadora e anunciar uma
estrutura humanizadora. A utopia é, ao mesmo tempo, um ato de
conhecimento e de compromisso, porque, na conscientização, ao conhecer
a realidade opressora, assume-se o compromisso de denunciá-la e de lutar
pela sua superação. Essencialmente, esse ato de conhecer, de avaliar a
realidade e de construir novos conhecimentos capazes de transformá-la
coincide com a interação proposta pela Epistemologia Genética de Piaget,
e que se faz tão presente na tomada de consciência. “O conhecimento da
realidade leva-nos a agir sobre ela para transformá-la; essa ação produz
novos conhecimentos que modificarão a ação e assim interminavelmente
[...]” (BECKER, 2011, p. 179).
É pela ação, segundo Freire, que se superam as diversas visões de
mundo opressoras; a ão conduz à reflexão da realidade pela consciência,
que se reconstrói para transformar a própria realidade, e essa nova realidade
produz, graças à ação, uma nova consciência, em um processo gradativo
que se amplia cada vez mais, como em uma espiral. Freire chama de práxis
a unidade estabelecida entre ação e reflexão que transforma a realidade.
Nesse sentido, o que o poder repressor busca é inibir ou reprimir essa ação,
71
pois, quando evita a ação, evita a conceituação e, por consequência, a ação
transformadora. De acordo com Piaget, a ação é a explicação para a gênese
e o desenvolvimento do conhecimento, afinal, as operações são ações
interiorizadas, as coordenações das ações são fruto da ação dos esquemas e
os próprios esquemas são, inicialmente, prolongamentos das ações reflexas.
A operação, ou ação interiorizada, transforma o objeto, real ou virtual.
Olhando para o papel atribuído à ação, por Piaget e Freire, fica claro que
a educação que contempla suas teorias não pode ser pautada pela
transmissão e pela passividade.
Tanto a tomada de consciência como a conscientização somente
são possíveis mediante a atividade do sujeito, na interação entre sujeito e
mundo, em que o sujeito assimila o meio e, nessa assimilação, constitui a
si mesmo e ao mundo (BECKER, 2011).
Fica evidenciado que, diante dessas aproximações descritas entre
ambos os autores, a educação autoritária e opressora não faz sentido para
nenhum deles. Pelo contrário, a educação deve ser ativa, favorecendo o
alcance de uma consciência crítica:
Portanto, a “conscientização” em Freire e a “tomada de consciência”
em Piaget rejeitam, pelos seus próprios fundamentos, qualquer
hipótese de uma educação especificamente, de uma aprendizagem
que tenha, de um lado, um transmissor ativo e, de outro, um receptor
passivo. Ou a aprendizagem realiza-se em forma de um processo de
interação sujeito-objeto (ou sujeito-sujeito) ou nada tem a ver com
esses dois autores. Entenda-se, ainda, que, nessa relação educador-
educando, ambos aprendem, desde que não se sacrifique a assimetria
própria dessa relação. (BECKER, 2011, p. 182).
72
Piaget está direcionado à formação da consciência de maneira
geral, à tomada de consciência do sujeito, como evoluem os mecanismos
formadores dos sujeitos em geral. Já Freire descreve a consciência dos
indivíduos dominados, oprimidos, e como ela pode levá-los a transformar
sua ação e chegar à libertação dessa situação. Fala de como a
conscientização pode se apresentar em um nível muito mais profundo e
amplo do que a tomada de consciência, e sua ação requer um engajamento
com a transformação da realidade de tal forma que aquele que sofre a
violência possa lutar, de modo respeitoso, pela superação dela.
Toda a explicação teórica de Freire sobre a conscientização retoma
a questão da relação entre a ação e a consciência, a qual possibilita uma
inserção crítica na realidade, uma atuação e uma consciência engajada, que
possui aspectos essencialmente morais. Pensar as questões da tomada de
consciência e da conscientização é essencial para compreendermos aspectos
importantes sobre a moral, questões da teoria e da prática moral; pensar
como chegar, de fato, à autonomia. Passemos, no capítulo seguinte, às
questões relacionadas propriamente à moral.
73
Capítulo 2
Piaget e Freire: Questões de Moral
Aprofundar-se na temática da moral não é tarefa simples, pois,
tanto para sua definição como para o modo como se desenvolve a moral
no sujeito, encontramos diversas explicações, de acordo com as diversas
concepções teóricas. Outro fator que torna o tema complexo de ser
estudado é o fato de tratar de questões tão inerentes aos valores que cada
um possui, que traz à tona diversos sentimentos, diante de cada reflexão.
Tudo isso torna mais importante e necessário o aprofundamento nessa
temática.
Para pensarmos a aproximação entre Piaget e Freire em relação à
moral, é preciso, primeiramente, que compreendamos como Jean Piaget,
que estruturou uma teoria do desenvolvimento moral, entendeu tal
desenvolvimento, ou seja, como se passa de uma determinada condição
moral para outra condição mais desenvolvida.
Ressaltamos, assim como Freitag (1992), que os escritos de Piaget
sobre a moral constituem parte de seu objetivo maior de fundamentar
experimentalmente sua Epistemologia Genética. Portanto, as afirmações
de Piaget sobre a moral não são ideias soltas, mas constituem uma
totalidade que se relaciona com a sua obra, de forma geral.
Iniciamos este capítulo, baseando-nos, principalmente, na obra
central de Piaget sobre a moral, O juízo moral na criança ([1932], 1994),
74
levantando pesquisas, ideias e construções teóricas nela expressas, para
melhor entendermos sua teoria do desenvolvimento moral.
Quanto a Freire, poderíamos encontrar aspectos sobre a moral,
extraídos de sua obra, que evidenciem como o autor concebe o
desenvolvimento moral do sujeito? Trataremos um pouco sobre isso,
demonstrando como identificamos alguns desses aspectos, na teoria,
delineando o caminho do desenvolvimento moral que encontramos em
Freire.
Por fim, procuraremos estabelecer algumas aproximações
observadas entre as teorias de Freire e Piaget, no que diz respeito à moral,
seguindo um percurso de como esses autores compreendem as relações
sociais, enquanto contexto para o desenvolvimento moral e, a partir dessa
reflexão, abordaremos a questão do respeito, como eixo fundamental para
o sentimento de dever em relação às regras e para uma convivência moral
em sociedade; a heteronomia e a autonomia moral, esta última vista como
fim desejável, sublinhando o caminho do desenvolvimento moral humano.
Ao tratar da questão do respeito, enquanto fator essencial do
desenvolvimento moral, abordaremos a temática do ponto de vista
explícito como aparece na obra de Piaget e explicaremos como, de maneira
não tão direta, Freire traz a sua contribuição sobre essa questão.
É notável a importância atribuída ao respeito para o
desenvolvimento moral, na teoria de Piaget, de sorte que, sobre isso, não
poderíamos deixar de remeter às ideias, debatidas por Piaget ([1932],
1994), de Pierre Bovet
2
, o qual apresenta uma teoria sobre o respeito que
2
Pierre Bovet foi um educador e psicólogo suíço. Contribuiu amplamente no campo da moral,
com suas pesquisas sobre a natureza dos sentimentos morais e da religião. Defendeu a subjetividade
da moral e o uso de métodos experimentais para seu estudo.
75
fundamentou as ideias de Piaget e suas pesquisas, permitindo, inclusive, a
ampliação de tal teoria.
Mostraremos como a forma de respeito, que se estabelece
prioritariamente nas relações, conduz a formas diferentes de moral,
distinguindo heteronomia e autonomia. As ideias de Freire sobre
autonomia trazem mais explicitamente sua teoria da moralidade, que não
aparece tão explicitada como a de Piaget.
O ápice dessa reflexão encontrar-sena sua relação direta com a
educação. O que Piaget e Freire, distantes em espaços e tempos, cada qual
com seus próprios objetivos e suas teorias, podem nos dizer sobre a
educação moral? Nossas escolas, perpassadas pela opressão, a violência e a
falta de respeito, podem valer-se da síntese dessas teorias, para transformar
a realidade?
A moral em Piaget
Piaget interessou-se profundamente pela questão do
conhecimento. Entretanto, junto a isso estavam suas indagações sobre a
moral. Explicando como é possível ao homem e à mulher construir
conhecimento, seria possível tratar das questões morais? Nesse sentido,
segundo Freitas (2003, p. 55), Piaget acreditou que, em todos os domínios
da vida, é preciso compreender que não existem elementos isolados, mas
totalidades, que possibilitam a organização das partes, mesmo sendo
qualitativamente diferentes delas. “O equilíbrio orgânico entre o todo e
suas partes é a lei interna dos fenômenos vitais, em todos os seus níveis.
(FREITAS, 2003, p. 55). Isso se aplica, igualmente, à moral.
76
Para Piaget, compreendendo o sujeito epistêmico, o que há de
comum a todos os sujeitos, em seu desenvolvimento cognitivo, seria
possível pensar como se chega a uma moral cuja obrigação é interna,
altruísta. O bem seria o equilíbrio ideal (do todo e das partes), para onde
tenderia a moral dos indivíduos e da sociedade.
Ao tratar da moral, ele apresenta um olhar específico para a questão
do respeito. Interessava-lhe compreender como a consciência do sujeito
chega a respeitar as regras morais, constituindo o sentimento de obrigação
moral. O Juízo Moral na Criança ([1932], 1994), segundo Freitas (2003,
p. 60), “[...] pode ser entendido como um estudo psicogenético das
relações entre o respeito e a obrigação moral”.
É importante frisar que a moral, na concepção de Piaget, apesar de
estar diretamente ligada às regras, deve ser compreendida com base no
modo como o sujeito se relaciona com essa regra, fruto da relação que
mantém com a pessoa que a cria ou que a transmite. Por conseguinte, para
Piaget, a moral não é a própria regra, a regra é social e o respeito que se
estabelece entre os indivíduos nessa relação social é que legitima tal regra,
o que já inclui a teoria sobre a moral de Piaget em uma perspectiva que crê
em uma essência humana da moralidade, presente nas relações sociais:
Uma regra é um fato social, que supõe uma relação entre pelo menos
dois indivíduos. E esse fato social repousa sobre um sentimento que
une esses indivíduos uns aos outros, que é o sentimento de respeito: há
regra quando a vontade de um indivíduo é respeitada pelos outros ou
quando a vontade comum é respeitada por todos. (PIAGET, 1998, p.
63).
Em geral, heteronomia e autonomia, na concepção piagetiana,
devem ser compreendidas não apenas como lugares de partida e de
77
chegada, mas como processos, construções que englobam uma relação
entre a ação e a consciência, os quais não dizem respeito ao indivíduo
apenas, mas também ao contexto em que ele está inserido, enquanto
relações, ou interações, que ele estabelece.
E, se as construções morais acontecem progressivamente na vida
do sujeito, desde o nascimento, e desenvolvem-se à medida da interação
sujeito-meio, constituído de pessoas, situações, objetos, lugares etc., a nós
deve interessar compreender não a ação ou o juízo moral isoladamente,
mas ambos, uma vez que, no sujeito, eles não caminham separados e
constituem, juntos, as tendências morais.
Nós, enquanto seres humanos, agimos e temos ideias sobre
questões morais, desde crianças. Do nascimento aos primeiros anos de
vida, vivemos um período de ausência de regras, que Piaget definiu como
anomia, mas, ainda bem pequenos, somos inseridos em um contexto
regrado e iniciamos a construção de tendências morais. É muito comum
encontrarmos, entre as crianças, ainda pequenas, a verbalização de ideias
sobre a mentira e a justiça, entre outras.
Os questionamentos de Piaget a esse respeito eram: as ideias e falas
que o sujeito tem sobre as questões morais, que se apresentam a ele, são
consequências de uma tomada de consciência ou constituem formulações
isoladas? E, quando chega a determinadas ideias ou ações, é por respeito às
regras ou às pessoas?
Geralmente, as regras são apresentadas às crianças pelos adultos,
isto é, são regras prontas, que não passam pela necessidade ou interesse das
crianças. Mas, como a consciência da criança chega a respeitar tais regras?
Nesse respeito, o que é proveniente do próprio conteúdo da regra e o que
é fruto do respeito aos pais? Piaget, na busca de responder a tais questões,
iniciou suas pesquisas sobre o juízo moral das crianças a partir de situações
78
de jogos infantis
3
, os quais constituem um sistema complexo de regras
dentro do universo das crianças. Relacionando a prática e a consciência das
regras, buscou compreender a natureza psicológica das realidades morais.
Piaget, de forma muito particular, ressaltou em sua pesquisa sobre
moral que ação e consciência estão intimamente ligadas. Ele ainda
demonstrou que, além da moral da obrigação, existe uma moral do bem
ou do altruísmo, que seria o ideal da consciência moral autônoma.
Piaget verificou que a prática e a consciência das regras evoluem
gradativamente no sujeito em direção à autonomia, sendo o respeito fator
essencial desse desenvolvimento. Em seus estudos sobre a prática e a
consciência das regras, Piaget ([1932], 1994) definiu alguns estádios de
desenvolvimento.
Quanto à prática, no primeiro estádio, as regras são práticas rituais
individuais e não coletivas. A criança primeiramente procura compreender
os objetos, acomodando seus esquemas motores a essa realidade; realiza,
assim, experiências diversas com esses objetos (arremessar, apertar etc.) e
os utiliza a favor de sua fantasia. Todavia, tais comportamentos particulares
acabam por se esquematizar e ritualizar, apresentando certa regularidade.
, nesse momento, um simbolismo que se insere na atividade da criança
com o objeto, com caráter de jogo.
Para Piaget, no entanto, os rituais e símbolos individuais
vivenciados pela criança, nesse primeiro estádio da prática das regras, não
3
Suas pesquisas com as crianças sobre os jogos aconteceram em Genebra e em Neuchâtel. Escolheu
o jogo de bolinhas de gude, para investigar os meninos, no qual algumas regras e denominações são
fruto da cultura local. Piaget ([1932], 1994) explica que existem diversas formas de se jogar
bolinhas, além das variações de cada uma dessas formas, e cada criança pode conhecer, a partir das
suas experiências anteriores, algumas dessas formas de jogar e algumas variações de um mesmo jogo.
Além disso, realizou pesquisas com meninas, na situação do jogo de “pique”. Apesar da diferença
estrutural dos jogos, o autor encontrou o mesmo processo evolutivo, no que tange à psicologia da
regra.
79
são responsáveis pela constituição das regras coletivas, são apenas condições
necessárias para que elas se desenvolvam. A fim de que haja certa obrigação
ou obediência em relação à regra, é necessário que exista um contexto de
sociedade, ou seja, que a criança esteja se relacionando com um adulto ou
com outra criança e, dependendo de como se estabelece essa relação, a
consciência da regra se estabelecerá. Portanto, em relação ao primeiro
estádio da prática das regras, podemos afirmar que não existem regras
propriamente ditas, mas rituais motores que já possuem regularidade, os
quais o individuais e não provocam a submissão a algo maior do que o
eu.
Essa definição de Piaget de que são necessárias as relações sociais
para que possamos pensar em uma relação moral com as regras já nos
indica sua posição de que as regras, por si só, não são capazes de
impulsionar o sujeito a agir de forma ética.
Quanto ao segundo estádio da prática das regras, o egocêntrico,
podemos compreendê-lo como uma conduta intermediária entre o
primeiro estádio em que as condutas são individuais e o terceiro estádio,
no qual as condutas serão socializadas. Há, nesse momento, uma primeira
forma de socialização da criança, mas se trata de uma relação em que a
criança fica centrada em um único ponto de vista. A criança já está
submetida a uma grande quantidade de regras e de exemplos dos adultos,
contudo, não tem condições de se posicionar em situação de igualdade
com esses adultos e acaba por utilizar para si mesma, mesmo que sem
consciência disso, todos os exemplos e regras que aprende.
Nesse estádio, a criança joga sozinha, mesmo estando entre outras
crianças. Seu interesse não é competir, e cada criança tem seus objetivos
para o mesmo jogo. É interessante saber que, para as crianças desse estádio,
é muito importante estar junto com as crianças mais velhas, que sabem
jogar com as regras e que são até idealizadas por elas, mas, ao participar do
80
jogo, a criança se convence de que suas regras estão de acordo com as
estabelecidas socialmente e fica feliz em poder exercitá-las para si, uma vez
que não tem interesse de jogar com os companheiros, com as regras que
viu os demais jogarem.
Percebemos que, mesmo na ação, o sujeito, inserido em um
contexto social em que as regras estão presentes, inicialmente, tem essas
regras voltadas para si. O outro, sendo mais velho, assume, então, uma
posição muito desigual.
No terceiro estádio da prática das regras, as crianças passam a sentir
a necessidade de um entendimento mútuo no jogo, de jogar com os
parceiros, adotando regras comuns. O prazer do jogo deixa de ser motor
ou egocêntrico e passa a ser social. Torna-se social, porque há um interesse
de regulamentar o jogo, para garantir a reciprocidade, e porque a
cooperação passa a acontecer, não se joga mais para si mesmo ou para
imitar, porém, firma-se uma relação de cooperação entre os jogadores.
A diferença do terceiro para o quarto estádio da prática das regras
está apenas em uma questão de grau, pois, para as crianças do terceiro
estádio, as regras não são pensadas e discutidas em seus pormenores; há um
consenso quanto às regras do jogo e um desejo de que se jogue sob o efeito
de regras fixas, mas ignoram situações de dúvida que surgem, durante o
jogo, ou seguem o exemplo dos maiores, em tais situações. Já no quarto
estádio, as crianças conhecem os pormenores das regras do jogo e estão
interessadas, inclusive, em discutir sobre elas, em casos de dúvida. No
entanto, percebemos que, no terceiro estádio, há, de fato, um fim social
em relação ao jogo e, principalmente, há uma intenção de cooperação entre
as crianças no jogo, conseguindo realizar coordenações coletivas, apesar de
cada uma ter uma opinião pessoal sobre as regras do jogo e não conseguir
legislar sobre ele. Mas, no quarto estádio da prática das regras, além de
cooperar, as crianças se preocupam em pensar todas as possibilidades do
81
jogo e em estabelecer regras para as mais diferentes situações. Surge um
interesse, na verdade, pela regra em si.
A prática em relação às regras evolui, portanto, no sentido da
reciprocidade, em que se considera cada vez mais o eu e o outro,
promovendo ações que sejam justas e boas para todos. Cada vez mais,
deixam-se de lado as condutas individuais e de obediência cega, para
alcançar o bem coletivo e as regras assumirem sentido.
Nas brincadeiras e nas demais relações que as crianças e
adolescentes travam, na escola, encontramos muito explicitamente essa
evolução da prática egocêntrica para a cooperação e a reciprocidade.
Quando propomos um trabalho em grupo na Educação Infantil,
solicitando que desenvolvam coletivamente as ações, vemos as crianças,
mesmo juntas, inclusive sentadas em círculo, realizar as atividades
isoladamente e com dificuldade para compartilhar objetos. Em uma roda
de conversa, na qual as regras são ouvir o outro e esperar sua vez de falar,
vemos as crianças pequenas falando enquanto o outro fala, não observando
o espaço de fala do colega. Por outro lado, entre os maiores, encontramos
uma maior coordenação entre o eu e o outro: além de, geralmente,
conseguirem respeitar o espaço do colega, conseguem coordenar sua
própria ação com a do outro e, muitas vezes, isso acontece
independentemente do comando do adulto, quando são propostos
trabalhos em grupo.
Piaget, consciente de que não é possível estudar a vida moral da
criança apenas do ponto de vista prático, buscou compreender a
consciência da criança sobre as regras, como ela as sente e interpreta. E, ao
tratar da consciência da regra, o autor parte de uma questão fundamental:
“Os simples regulamentos individuais, que precedem as regras impostas
pelo grupo social dos jogadores, podem dar ou não origem a uma
consciência da regra e, em caso afirmativo, seria essa consciência
82
indiretamente influenciada pelas instruções adultas?” (PIAGET, [1932],
1994, p. 50).
A consciência moral desenvolve-se, assim como acontece com a
prática moral, no sentido da autonomia. Mesmo estando em atraso quanto
à prática, a consciência também passa por estádios diferentes de
desenvolvimento, os quais se constituem de progressivas tomadas de
consciência da ação.
O primeiro estádio da consciência da regra corresponde ao estádio
puramente individual de prática da regra. Piaget chama a atenção para o
fato de que, desde muito cedo, as crianças sofrem pressões do mundo
exterior, que acabam por lhes impor certa noção de regularidade, como o
anoitecer todos os dias, por exemplo. Algumas regras são impostas à
criança desde muito cedo pelos adultos, como escovar os dentes, alimentar-
se em determinados horários, entre outras. Portanto, estando a criança
submersa em um contexto que lhe impõe muitas regras e rituais, desde
muito cedo, é difícil em uma determinada situação perceber, em nível de
consciência, o que vem da criança e o que é fruto da imposição do adulto,
porém, é essencial saber que ambas as realidades existem, havendo
situações em que a criança adere à regra ou mesmo a inventa por si própria,
fruto de rituais motores, e situações nas quais adere a elas por obrigação,
graças à autoridade do adulto.
No jogo, no primeiro estádio da consciência da regra, a criança
realiza rituais individuais, considerando que nunca tenha visto outro jogar
antes, e, gostando da repetição desse ritual, ela o executa várias vezes, sem
que haja, de fato, um sentimento de obrigação. No entanto, é preciso
considerar que, por estar desde muito cedo em contato com um contexto
de regras e rituais, a criança percebe que algumas coisas são permitidas e
outras não, e isso interfere, evidentemente, na sua ação.
83
No segundo estádio da consciência, a criança já começa a querer
jogar de acordo com as regras exteriores, seja por imitação, seja por contato
verbal. A criança, nesse estádio, não admite a modificação das regras, nem
mesmo se for por um contrato coletivo, mostrando-se muito conservadora.
As regras são tidas como sagradas e imutáveis, fazem parte da autoridade
do mais velho, e é obrigatório para a criança segui-las sem questionar.
Já no terceiro estádio da consciência da regra, que compreende a
segunda metade do estádio da cooperação e todo o estádio da codificação
das regras, no que se refere à prática, a regra do jogo deixa de ser
considerada como exterior e sagrada, e passa a ser entendida como
resultado de um acordo entre os jogadores. A criança aceita que se
modifiquem as regras, desde que todos participem, que as opiniões de
todos sejam levadas em conta e todos respeitem a conclusão a que o grupo
chegar. Os próprios acordos entre as crianças garantem que as regras mais
imorais não se fixem. As crianças passam a considerar possível a mudança
das regras de forma democrática, e deixam de lado as ideias teocráticas e
gerontocráticas. As regras deixam de ser tomadas como eternas e
transmitidas através das gerações, já que as crianças passam a ter a ideia de
que a origem do jogo de bolinhas e suas regras se deram com o arremesso
de bolinhas por algumas crianças para se divertirem e, gradativamente, as
regras foram sendo construídas pelas próprias crianças.
A pesquisa de Conti (2015) reafirmou os resultados encontrados
por Piaget sobre a relação entre a prática e a consciência da regra moral.
Utilizou-se do jogo de “bola queimada” junto a crianças brasileiras. As
crianças menores, que se encontravam no estágio da prática egocêntrica ou
a maioria das que se encontravam na prática da cooperação nascente
apresentavam uma consciência heterônoma, enquanto as crianças que se
encontravam na codificação das regras estavam em um processo de
construção de uma consciência mais autônoma. Os resultados não
84
somente confirmaram o desenvolvimento da prática e da consciência, na
direção da cooperação e da autonomia, como também evidenciaram a
relação entre a prática e a consciência da regra. Segundo a autora, o juízo
moral das crianças se relaciona com a ação moral já vivenciada, e possui
um atraso em relação a ela.
A consciência, assim como a prática moral, evolui no sentido da
reciprocidade. Deixa gradativamente de ser egocêntrica e guiada pelo que
é externo e vai sendo permeada da coordenação entre o que é bom para
mim e o que é bom para o outro. A consciência chega à autonomia moral,
quando é capaz de guiar-se por si mesma, com seus próprios princípios,
mas tendo em vista o todo; essa autonomia moral é fruto da lei de
reciprocidade que a consciência encontra nas relações de cooperação.
Daqui por diante, a regra é concebida como uma livre decisão das
próprias consciências. Não é mais coercitiva nem exterior: pode ser
modificada e adaptada às tendências do grupo. Não constitui mais uma
verdade revelada, cujo caráter sagrado se prende às suas origens divinas
e à sua permanência histórica: é construção progressiva e autônoma.
Deixaria, portanto, de ser uma regra verdadeira? Longe de ser um
processo, marcaria um período de decadência em relação ao estágio
precedente? Eis o verdadeiro problema. Ora, os fatos parecem nos
autorizar a concluir o contrário e mesmo da maneira mais decisiva: é a
partir do momento em que a regra de cooperação sucede à regra de
coação que ela se torna uma lei moral efetiva. (PIAGET, [1932], 1994,
p. 64).
Dizemos que as regras serão resultado da decisão da própria
consciência, ou seja, que o sujeito tem consciência das regras, porque as
regras se tornam construções progressivas e autônomas das regras
vivenciadas na prática. O sujeito torna-se capaz de compreender a si
85
mesmo e suas relações com as regras e com os outros, podendo se
autogovernar. A regra deixa de ser coercitiva à consciência, acaba o
conformismo e a imutabilidade, e passa a ser cooperativa, tornando-se de
fato uma lei moral, coerente e efetiva; a obrigação de segui-la é devida à
cooperação e à reciprocidade existente entre os indivíduos.
As relações de cooperação costumam acontecer primeiramente ou
especialmente nas relações entre pares, quando é mais fácil a criança se
posicionar de forma equivalente aos demais. As relações entre pares, muitas
vezes permeadas pelo sentimento de amizade, possibilitam que tanto
intelectualmente como afetivamente a criança assuma uma relação
horizontal com os demais. Por isso, a escola, por ser um dos primeiros
espaços coletivos da criança junto a outras crianças, é lugar privilegiado
para que se desenvolvam as relações de cooperação.
E qual a relação entre a autonomia e o respeito verdadeiro à regra?
Segundo Piaget ([1932], 1994), há um sincronismo entre o terceiro estádio
de consciência da regra e o momento na prática da regra em que, no estádio
da cooperação, vai surgindo a necessidade de codificação e aplicação das
regras. Por conseguinte, quando a regra passa a não ser mais exterior à
criança, mas fruto de um acordo coletivo, e a cooperação possibilita a
reciprocidade, a regra torna-se intrínseca à consciência individual e a sua
obediência passa a ser uma escolha. Por fazer parte de uma democracia,
legislando sobre as próprias leis, a criança toma consciência da razão dessas
leis e elas passam a ser condição necessária.
Antes disso, a criança estava totalmente voltada para o costume, ou
seja, considerava a regra como uma tradição imposta pelos mais velhos,
que deve ser seguida, sem questionamentos, eternamente. Da mesma
maneira agem alguns adultos, extremamente conservadores, que ficam
presos aos costumes em detrimento das regras verdadeiras e racionais.
86
A partir do terceiro estádio da consciência da regra, a criança passa
a cooperar com seus iguais, agindo pela reciprocidade e se tornando capaz
de separar o costume e o ideal racional. Ademais, para que haja
reciprocidade entre os iguais, tudo que possa comprometê-la, como
grandes desigualdades de habilidades entre os indivíduos, por exemplo,
precisará ser eliminado. As crianças vão concebendo como justas as novas
regras, de acordo com a reciprocidade que há nelas, pois, “[...] desde que
haja cooperação, as noções racionais do justo e do injusto tornam-se
reguladoras do costume, por que estão implicadas no próprio
funcionamento da vida social entre iguais [...]” (PIAGET, [1932], 1994,
p. 67).
Para Piaget, a crença é um reflexo da ação; somente o exercício da
cooperação e a tomada de consciência dessas relações possibilitarão à
criança compreender que é possível modificar as regras.
Segundo Menin (1996, p. 46),
[...] primeiro a criança pratica a construção das regras, aplica-as, muda-
as no grupo, cria novas... depois é que descobre que as regras não são
sagradas, imutáveis, eternas... E quando a criança acha imutáveis e
sagradas as regras que vêm dos mais velhos consciência , sua prática
é ainda imitativa e egocêntrica! Ou seja, na prática a criança faz o que
quer e na fala é rígida e “moralista”. Portanto: primeiro é fazer para
depois compreender!
Não podemos, nessa perspectiva, desvincular a ação e a consciência
moral, porque elas estabelecem entre si uma relação essencial. O
desenvolvimento moral é uma construção em que inicialmente a ação
precede a consciência. Todavia, não se trata de uma relação tão simples.
87
É preciso esclarecer que, quando nos referimos a estádios, tanto no
que concerne à prática como à consciência, não estamos tratando de
estádios estanques de autonomia ou de heteronomia, mas de fases
sucessivas dentro de um processo. Assim, a mesma criança pode estar
vivenciando, na prática, uma determinada regra de forma mais autônoma,
enquanto, na consciência, para essa mesma regra, as tendências sejam mais
heterônomas. Pode ocorrer de a mesma criança estar, quer na prática, quer
na consciência, tratando uma determinada regra de maneira autônoma e
outra regra de modo mais heterônomo.
[...] não poderíamos falar de estágios globais caracterizados pela
autonomia ou pela heteronomia, mas apenas de fases de heteronomia
e de autonomia, definindo um processo que se repete a propósito de
cada novo conjunto de regras ou de cada novo plano de consciência ou
de reflexão. (PIAGET, [1932], 1994, p. 75).
As relações sujeito-sujeito e sujeito-mundo são importantes para o
desenvolvimento moral, na teoria piagetiana. A cooperação é fator
essencial para que a criança abandone gradativamente a posição centrada
ou egocêntrica, conseguindo estabelecer trocas e coordenar pontos de
vistas, em prol de uma posição moral mais autônoma; é, inicialmente, na
prática, dentro de um contexto social, que isso acontecerá. E
posteriormente a essa vivência prática das relações sociais é que será
possível estabelecer uma consciência de tais relações.
Quanto ao juízo moral propriamente dito, isto é, quanto às
questões referentes à consciência moral das crianças em relação às regras,
Piaget também realizou estudos, como os sobre a mentira e a justiça, entre
outros, os quais reafirmam que as primeiras formas de consciência do dever
moral nas crianças são heterônomas e estão associadas com as ações morais.
88
na criança, segundo Piaget, principalmente nas menores, uma
tendência, chamada de realismo moral, que consiste em tomar as regras e
os valores como algo que independe da consciência e que deve ser seguido
independentemente das condições em que se está inserido. Para essa
criança, o dever é heterônomo, sendo considerado bom seguir fielmente as
regras e as orientações dos adultos, e mau descumprir as regras. As regras
são externas à consciência, tidas como sagradas e imutáveis, devem ser
seguidas de forma literal e nunca interpretadas em seus princípios. Outra
característica do realismo moral é a responsabilidade objetiva, ou seja, a
tendência de considerar os resultados dos atos e não as intenções diante de
uma situação moral.
As características do realismo moral e da responsabilidade objetiva
são muito facilmente identificadas, nas crianças pequenas. Na escola, as
crianças seguem as regras literalmente, sobretudo aquelas determinadas
pelo professor, que é uma figura de autoridade para a criança, inspirando
admiração e medo. No caso do desenho, por exemplo, elas ouvem uma
orientação do tipo ‘Você deveria colocar uma grama embaixo dessa flor
como uma regra, independentemente de sua vontade e da ideia inicial do
desenho. Também julgam como pior a atitude de uma criança que ‘rabisca’
seu próprio desenho inteiro, no intuito de aprimorá-lo, do que aquele que,
para aborrecer um colega, esconde temporariamente o lápis de que ele
precisaria para acabar o desenho. O mesmo ocorre com regras de
convivência, como quando o professor pede que a criança delate o colega
que fez ‘bagunça’, e ela o faz, para obedecer ao professor, em detrimento
da cumplicidade inerente à amizade; ou quando as crianças entendem
como mais erradas e cobram as crianças que deixaram de fazer uma
atividade determinada pelo professor, a fim de ajudar um amigo a recolher
todos os seus lápis que derrubou de sua carteira, do que uma criança que
89
deixa um colega caído e ri dele, em um momento em que não havia
nenhuma atividade para ser feita.
Piaget ([1932], 1994) procurou conhecer a avaliação que a criança
faz de uma situação moral, que não necessariamente corresponde à ação
que a criança teria, diante da mesma situação, naquele momento.
Interessava-lhe compreender se as avaliações feitas pelas crianças
funcionam como tomadas de consciência de suas ações ou apenas como
fabulações, palavreado solto, meras narrativas que nada têm de relação com
a prática. Por saber que aspectos da inteligência podem interferir em uma
avaliação enquanto narrativa, sem nada ter de relação com um sentimento
moral que interfira de fato na ação da criança, Piaget se limitou a verificar
se o juízo de valor que a criança faz, no discurso sobre histórias hipotéticas,
em um interrogatório, corresponde ao juízo de valor que a mesma criança
teria na ação, independentemente da sua ação real, isto é, da escolha efetiva
que é capaz de fazer.
A hipótese inicial de Piaget, confirmada posteriormente em seus
resultados, é de que, na moral, do mesmo modo como acontece no
desenvolvimento intelectual, o pensamento verbal da criança constitui-se
de tomadas de consciência progressivas dos esquemas já construídos na
ação. O pensamento verbal sofreria um atraso com respeito à ação, pois se
trataria de reconstruir representativamente aquilo que, no concreto, já se é
capaz de fazer.
A coação adulta desencadeia na criança o realismo moral e leva a
criança à avaliação de situações morais com responsabilidade objetiva, isto
é, sem considerar as intenções, mas apenas os danos materiais. entre os
menores uma predominância de avaliar segundo o prejuízo material, e isso
vai diminuindo entre os mais velhos, que predominantemente avaliam as
situações observando as intenções envolvidas. Há, portanto, no
desenvolvimento moral da criança, dois processos distintos e sucessivos:
90
primeiramente, a responsabilidade objetiva em que predomina o olhar
sobre a questão material, e, depois, a responsabilidade subjetiva, em que a
intenção é o foco da análise.
Desde muito cedo, a criança vivencia, além das instruções vindas
dos mais velhos, o exemplo dos próprios adultos, os quais, muitas vezes,
ficam muito mais bravos com ela quando mostra uma atitude bem
intencionada, mas que causa um estrago material grande, do que quando
ela age mal intencionada, mas não causa grande prejuízo material.
Contudo, os adultos, apesar de repreenderem as crianças, comumente não
veem na atitude que causou prejuízo material uma falta moral,
diferentemente da avaliação da criança, que julga, recorrendo à
responsabilidade objetiva, como pior um ato que causa prejuízo material
maior.
A predominância da responsabilidade objetiva notada nos juízos
das crianças é também fruto da coação, que se apresenta verbalmente nas
regras impostas desde muito cedo pelos adultos, como não roubar, por
exemplo, e, por outro lado, se apresenta materialmente em questões como
os castigos. Os juízos verbais pautados na responsabilidade objetiva já
foram efetivamente vividos pelas crianças, na prática; observando as
crianças pequenas, constata-se facilmente a responsabilidade objetiva em
suas ações, porque elas ficam com o sentimento de falta proporcional ao
tamanho do estrago material causado e não consideram as intenções
empregadas na ação.
A criança passa da responsabilidade objetiva à responsabilidade
subjetiva, quando começa a agir pensando em agradar aos pais, ao invés de
obedecê-los, o que supõe o respeito mútuo e a cooperação. Embora muito
difícil de ser vivenciado, o respeito mútuo, que exige que os adultos se
coloquem no nível da criança e atribuam a ela um sentimento de
igualdade, possibilitará que possam ir pontuando para a criança sobre suas
91
próprias obrigações, necessidades e dificuldades, a fim de que perceba as
consequências de seus atos e compreenda a reciprocidade. Mas, se não há
tais atitudes e prevalece fortemente a coação adulta, ela acaba, mesmo que
a grandes custas, por desenvolver a responsabilidade subjetiva de alguma
forma e até mesmo como reação contra a coação; com o passar do tempo,
o seu sentimento de injustiça quanto às avaliações que sofre dos adultos vai
ficando mais forte. Por outro lado, se há uma convivência de fato entre
iguais, seja com irmãos, seja com amigos, a criança desenvolve a verdadeira
reciprocidade e a cooperação, que a levam a ter em vista as intenções.
Há, como em relação às regras do jogo, no que diz respeito ao juízo
moral infantil, dois processos distintos que se constroem gradativamente,
um e depois o outro. Primeiramente, a coação adulta ou do mais velho,
unida ao egocentrismo infantil, leva à noção exterior e realista da regra;
depois, a cooperação diminui o egocentrismo e a influência da coação e
resulta em uma noção subjetiva, interiorizada e compreensiva da regra.
Em primeiro lugar, o realismo moral nasce do encontro da coação com
o egocentrismo. A criança, em virtude de seu egocentrismo
inconsciente, é levada espontaneamente a transformar a verdade em
função de seus desejos e a ignorar o valor da veracidade. A regra de não
mentir, imposta pela coação adulta, lhe parecerá, desde então, tanto
mais sagrada e exigirá, a seus olhos, uma interpretação tanto mais
“objetiva” quanto, de fato, não corresponde a uma necessidade real e
inferior de seu espírito. Daí o realismo moral e a responsabilidade
objetiva, indícios de uma colocação em prática inadequada da regra.
Em segundo lugar, é na medida em que os hábitos da cooperação
tiverem convencido a criança da necessidade de não mentir que a regra
lhe parecerá compreensível, que ela se interiorizará e dará origem
apenas a julgamentos de responsabilidade subjetiva. (PIAGET, [1932],
1994, p. 131).
92
Sobre o egocentrismo, Menin explica:
O egocentrismo é uma incapacidade emocional, intelectual, social e até
perceptiva das crianças pequenas. Sendo egocêntricas, centradas em si
mesmas, elas não conseguem perceber que há pontos de vista diferentes
do próprio; elas não conseguem se colocar no lugar do outro e enxergar
qualquer coisa do mundo de uma perspectiva que não seja a própria.
(MENIN, 1996, p. 51).
Para Piaget, as regras, que inicialmente são ligadas ao respeito
unilateral pela pessoa que as apresenta, são, posteriormente, elaboradas
pela consciência, tornando-se obrigatórias independentemente das sanções
e assumindo um caráter universal. Nas relações de cooperação e de respeito
mútuo, as crianças vão aprendendo a importância da confiança e da
solidariedade, elas vão estabelecendo entre si um acordo mútuo. Há,
portanto, um desenvolvimento em favor da reciprocidade.
De acordo com Piaget, o pensamento moral teórico se constitui
por uma tomada de consciência do pensamento moral efetivo, ou seja, as
reflexões feitas pelas crianças, nas avaliações morais teóricas ou hipotéticas,
já foram vividas por elas na ação. “Na realidade, acreditamos que, mesmo
na criança, a reflexão moral teórica consiste numa tomada de consciência
progressiva da atividade moral propriamente dita.” (PIAGET, [1932],
1994, p. 140).
A tomada de consciência, como explica Piaget, inverte a sequência
das noções: aquilo que aparece primeiro na ação, esem último na ordem
da tomada de consciência. E tomar consciência não é apenas olhar para
noções já elaboradas, mas reconstruir, no plano da consciência, aquilo que
se faz no plano da ação, o que explica o atraso da consciência em relação à
93
prática, além, obviamente, das deformações inerentes ao próprio
mecanismo de reflexão.
Por mais cooperativa e pautada no respeito mútuo que seja a
relação dos pais com a criança, diversas regras são inevitavelmente
apresentadas desde muito cedo a ela, de forma coercitiva, e a aceitação da
criança a essas regras a leva ao realismo moral, que gera um sentimento de
dever e culpa que dificilmente é atenuado por alguma conduta ulterior.
Esse realismo vivido na ação será mais tarde observado no plano teórico.
O juízo que a criança faz de seus próprios atos é bem mais tênue
do que o que faz em relação aos atos de outras crianças, porque a conduta
do outro aparece para a criança mais facilmente em sua materialidade do
que em sua intencionalidade. Para compreender o outro em suas intenções,
mais que na materialidade de seus atos, será necessário um grande esforço
de simpatia e de generosidade, o qual será possível nas relações de
cooperação e de reciprocidade.
O realismo moral é fruto do próprio pensamento realista
espontâneo da criança frente à coação adulta. A criança pequena, de
maneira geral, é realista (seja no campo intelectual, seja no moral);
podemos perceber nela uma forma objetiva de olhar as coisas. Além disso,
como já foi destacado anteriormente, desde muito cedo o sujeito es
exposto a regras impostas pelos mais velhos, regras que são fruto dos
costumes ou mesmo regras racionais, as quais são, na verdade, exteriores
ao sujeito. A coação reforça o egocentrismo e acentua o realismo moral
infantil.
Temos que considerar que, apesar da tendência da criança a superar
o egocentrismo infantil, o adulto, na maior parte do tempo, age de forma
contrária a essa superação. Nota-se em muitos pais atitudes que conduzem
a criança à noção objetiva de responsabilidade, reforçando a tendência
94
natural e fazendo-a persistir por mais tempo, como, por exemplo, pelo
prazer em aplicar sanções, fazendo a criança sentir-se inferior.
Há, graças às regras exteriores que são impostas coercitivamente
desde cedo às crianças, uma moral exterior ao sujeito que leva ao realismo,
porém, há na criança alguns elementos que mais tarde conduzirão à
reciprocidade e que precisarão chegar a um equilíbrio com a moral
heterônoma.
La Taille (2006) aponta que, nos primórdios da vida moral, não
existe apenas a coação adulta. É possível perceber nas crianças pequenas
traços de sentimentos altruístas. O autor chama a atenção para as ações de
generosidade que encontramos nas crianças, independentemente das
ordens dos adultos.
Mas, se a criança está exposta desde muito cedo a regras exteriores,
se há nela a junção do egocentrismo infantil e da coação adulta,
conduzindo-a a uma moral heterônoma, como poderá ela chegar à
autonomia?
A criança chega à moral do bem, à autonomia, graças às relações
de cooperação, à medida que o respeito mútuo, a igualdade e a
reciprocidade se tornam a base das relações.
, em todas as idades, crianças que optam por tendências mais
autônomas, assim como existem, em todas as idades, aquelas que preferem
tendências mais heterônomas. Os mais novos, em sua maioria, tratam os
fatos de uma forma mais objetiva e materialista, sem considerar as questões
psicológicas presentes, ou seja, agem de forma bem próxima ao realismo
moral. Já a maior parte dos mais velhos, quer pelas experiências vividas,
quer pelas observadas, olha para os fatos de forma igualitária e com
reciprocidade, com uma compreensão moral mais interior ou subjetiva.
95
Há, de fato, entre esses últimos, uma espécie de regra moral diferente
daquelas impostas pela coação.
Há uma forma de equilíbrio para a qual a moral tende a evoluir. E,
apesar de não existirem relações puras de coação e relações puras de
cooperação, as relações de cooperação são um ideal a ser cada vez mais
vivenciado, pois seus efeitos são qualitativamente diferentes dos da coação
(PIAGET, 1998, p.118).
É, por conseguinte, nas relações de respeito mútuo e de cooperação
que se desenvolvem as noções de igualdade, reciprocidade e solidariedade.
Essas relações podem ser encontradas especialmente entre as crianças. Nas
relações da criança com o adulto, tem-se, inevitavelmente, certa coação,
que alguns adultos fazem questão de tornar mais evidente, seja por
acreditarem no acerto de sua consequência, seja pelo simples prazer de ver-
se “mais forte” em uma relação.
A cooperação, segundo Piaget, é mais do que participar de uma
interação ou concordar; cooperar é uma forma de operar com, o que requer
olhar para o outro de fato como outro, compreender que seu ponto de
vista pode ser diferente, requer descentrar-se; isso diminui o egocentrismo
e põe os sujeitos em uma relação mais igualitária. Conforme afirma Menin
(1996, p. 52): Cooperação, para Piaget, é operar com... É estabelecer
trocas equilibradas com os outros, sejam estas trocas referentes a favores,
informações materiais, influências etc...”.
A cooperação é fator essencial para que a moral se desenvolva, no
sentido da autonomia. Em diversos momentos, Piaget ([1932], 1994,
1998) salienta que o operar com envolve aspectos não somente
intelectuais, mas também morais, assim, além de coordenar pontos de vista
e descentrar-se intelectualmente, é preciso fazê-lo em termos dos
sentimentos morais.
96
Acrescenta Menin (1996, p. 49): “A ‘moral do bem’, como
chamou Piaget, é aquela guiada não pelo risco de punição ou promessa
imediata de prêmio, mas pela solidariedade aos outros, ou como o autor
enfatiza, pelaregra de ouro’ da reciprocidade.”
Entre as crianças mais velhas, é comum notarmos uma forma de
relação que se baseia na cooperação e na reciprocidade. Percebemos como
elas, por exemplo, se preocupam com o colega que, por alguma limitação,
não pode participar de uma brincadeira e criam possibilidade para que ele
possa ser acolhido e se sinta na mesma condição que os demais; ou, ainda,
como as crianças ficam sensibilizadas e dispostas a ajudar as crianças que
não têm brinquedos ou lanche, por exemplo.
Piaget nos chama a atenção para as reações de altruísmo e partilha
que são percebidas já nos bebês. Porém, não é possível considerar que
apenas essas reações individuais sustentem o desenvolvimento moral em
favor da moral da autonomia: elas conduzem, de fato, à simpatia, mas, para
que a igualdade e a reciprocidade se estabeleçam realmente, é necessária a
regra coletiva, a qual só é possível na vida em sociedade. Segundo Piaget
([1932], 1994, p. 239), “[...] é necessário que, das ações e reações dos
indivíduos uns sobre os outros, nasça a consciência de um equilíbrio
necessário, obrigando e limitando, ao mesmo tempo, o alter e o ego.
A despeito da importância das relações de respeito unilateral, na
vida moral da criança, especialmente no que se refere ao sentimento de
dever necessário à criança pequena, ele não pode ser tomado como
responsável pelo desenvolvimento em favor da autonomia. Somente a
cooperação, inicialmente entre crianças e depois entre a criança e o adulto,
será capaz de desenvolver a reciprocidade e a noção de igualdade e
equidade. A igualdade e a solidariedade caminham juntas e não dependem
somente de fatores políticos, mas de certo equilíbrio social de caráter
97
psicológico, que pressupõe a cooperação em detrimento da coação, que
reforça o egocentrismo infantil.
A moral heterônoma tende a dar lugar a uma moral autônoma, já
que a própria vida exige a reciprocidade. Como é interior e autônoma, a
reciprocidade de fato começa a ser vivenciada inicialmente de maneira
prática pela criança, contudo, depois que está habituada a essa forma de
equilíbrio, na vida prática, a criança reflete isso em termos de conteúdo;
constata-se um aperfeiçoamento dos comportamentos, em sua orientação
íntima.
Piaget reconhece, assim, duas tendências morais distintas: a moral
da heteronomia, ou do dever, e a moral da autonomia, ou do bem. A
solidariedade entre as crianças é a origem de diversas noções morais
coerentes, que caracterizam a mentalidade racional. A moral do dever, da
sanção, heterônoma, não oferece à criança um equilíbrio estável, já que
nela não é possível encontrar um desenvolvimento completo. No entanto,
na medida em que o respeito unilateral é superado pelo respeito mútuo,
vislumbra-se a possibilidade de se chegar a uma forma de equilíbrio moral
estável.
As pesquisas compiladas em O juízo moral na criança são até hoje
atuais, atestam um desenvolvimento moral do sujeito em direção à
autonomia e apontam para como esse desenvolvimento ocorre. Tais
estudos afirmam que há uma participação ativa do sujeito, para que tal
desenvolvimento aconteça, e ressaltam a relação indissolúvel entre ação e
consciência no desenvolvimento moral.
98
A moral em Freire
Em Paulo Freire, diferentemente do que vemos em Jean Piaget,
não se encontra descrita em uma obra específica uma teoria estruturada
sobre a moral. Freire não objetivou diretamente, ao que nos parece,
descrever uma teoria ou mesmo uma sistematização de suas ideias sobre o
desenvolvimento moral do homem e da mulher. Isso não quer dizer que
ele não o tenha considerado, ao realizar seus estudos, e que aspectos
pertinentes à moral e ao seu desenvolvimento não se encontrem em toda a
sua obra, como parte fundamental de suas explicações.
Freire preocupou-se, para além da construção do conhecimento,
com a realidade na qual o sujeito estava inserido, com a circunstância de
como essa realidade pode ser desumanizadora e com as possibilidades de
intervenção do sujeito, para transformá-la. Sua intenção de compreender
a realidade dos mais desfavorecidos e de pensar uma educação para aqueles
que dela mais necessitam revelou como, para Freire, as questões que
partem das relações sociais assumem papel importante para sua
compreensão de como o sujeito, enquanto totalidade, se desenvolve e qual
a direção desse desenvolvimento.
Os aspectos referentes à moral podem ser extraídos do pensamento
de Freire, revelando sua concepção de desenvolvimento moral. Tais
aspectos perpassam sua visão de como o homem e a mulher se relacionam
com os outros, com o mundo e com as regras sociais. Segundo Freire, as
mulheres e os homens aceitam determinadas regras arbitrárias e ficam
presos a uma determinada realidade desumanizadora, à medida que
vivenciam uma relação de opressão com aqueles que são considerados,
inclusive por eles próprios, como superiores.
99
A opressão de que trata Freire é uma espécie de relação baseada na
coação, em que predomina o respeito unilateral. Baseados nessa relação, os
homens e as mulheres não conseguem assumir uma postura moral pautada
em princípios interiores; guiam-se pelas regras impostas, que lhes são
exteriores.
Em alguns momentos, Freire refere-se, de maneira explícita, à
ética, tratando de questões específicas de moral e associando-as à educação.
Em Pedagogia da Autonomia (FREIRE, [1996], 2016), por exemplo, Freire
fala incisivamente da ética necessária à prática docente, em favor da
autonomia dos educandos. Trata da ética universal, coerente, e que leva
em conta o respeito entre as pessoas:
Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de
comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper,
por tudo isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo.
Estar sendo é a condição entre nós para ser. Não é possível pensar os
seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. (FREIRE,
[1996], 2016, p. 34).
O autor mostra uma visão de ser humano como totalidade; ele
acredita na especificidade humana de ser, que está intimamente ligada à
sua condição ética e, por isso, não é possível pensá-lo fora da ética.
Também alude a uma capacidade de escolher. Enquanto seres
humanos, podemos escolher quais regras seguir, e essas escolhas estão
apoiadas em nossos valores e princípios.
Quando trata da ética, Freire não nos coloca na condição de seres
individuais, mas de seres sociais, que se relacionam com o mundo e com
as outras pessoas. Essas relações não são únicas, segundo o autor, elas se
firmam de forma opressora ou dialógica.
100
Freire ([1996], 2016) menciona igualmente a responsabilidade
ética dos educadores na formação dos educandos, em favor da construção
de sua autonomia. Não se refere a uma ética restrita, que se curva ao
interesse do mercado, mas a uma ética verdadeira, que possa se aplicar a
todos e que está a favor da verdade, do bem, da coerência entre teoria e
prática, do respeito:
Falo, pelo contrário, da ética universal do ser humano. Da ética que
condena o cinismo do discurso citado acima, que condena a exploração
da força de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir
dizer, afirmar que alguém falou A sabendo que foi dito B, falsear a
verdade, iludir o incauto, golpear o fraco e indefeso, soterrar o sonho e
a utopia, prometer sabendo que não cumprirá a promessa, testemunhar
mentirosamente, falar mal dos outros pelo gosto de falar mal. A ética
de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos imorais
como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que
falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça,
de gênero, de classe. É por esta ética inseparável da prática educativa,
não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que
devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vive-la em nossa
prática, é testemun-la, vivaz, aos educandos em nossas relações com
eles. (FREIRE, [1996], 2016, p. 18).
Por reconhecer a possibilidade de diferentes formas de relacionar-
se dos homens e mulheres e das consequências de cada uma delas, Freire
sempre se colocou a favor de uma ética que considera a reciprocidade e a
justiça, pautada em valores do bem. A educação é uma possibilidade de
formação humana que deve ter em vista a ética nessa perspectiva, visando
à formação para a autonomia.
Pensando na condição ética, Paulo Freire trata da questão da
humanização e da desumanização, olhando para os aspectos ontológico e
101
histórico, enquanto possibilidade. Vê a humanização como vocação da
mulher e do homem, a qual é negada nas situações de injustiça, de
opressão, de violência, mas que é afirmada na busca da luta dos oprimidos,
pela justiça e pela liberdade. Para ele, não só o oprimido vive a
desumanização: o opressor a vivencia por outro lado, à medida que distorce
a sua vocação do “Ser Mais”, distoão porque a desumanização não é uma
certeza dada a ninguém. Conforme Freire, “[...] a desumanização, mesmo
que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas
resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta,
o ser menos.” (FREIRE, [1970], 2011, p. 41).
Em Paulo Freire, encontramos a visão de que as relações sociais não
são únicas e podem conduzir a espécies diferentes de respeito entre os
homens e as mulheres e, logo, a formas diferentes de relação com as regras.
As relações opressoras levam a um respeito ao outro que é marcado pela
desigualdade de forças, na verdade, é uma forma de submissão. As relações
dialógicas proporcionam um respeito de indivíduos que se consideram
como iguais e se valorizam. Somente essa segunda modalidade de relação
pode levar a uma consciência autônoma, que se guia por princípios de
justiça e humanidade, independentemente de qualquer tipo de coerção.
Essa autonomia é que caracteriza a plenitude da vocação do homem e da
mulher de Ser Mais”.
“Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma
forma como falo de sua vocação ontológica para o Ser Mais, como falo de
sua natureza constituindo-se social e historicamente não como a priori da
história.” (FREIRE, [1996], 2016. p. 19-20).
O Ser Mais é, na realidade, essa característica humana de
posicionar-se racionalmente e afetivamente no mundo, de viver
dignamente, de ter suas potencialidades valorizadas, de poder fazer
escolhas e de ser respeitado. Todavia, o Ser Maiscompreende também
102
não ser só para si, ser coletivamente, respeitando e valorizando também o
Ser Maisdo outro. Afinal, como posso Ser Maisse, para isso, preciso
que o outro tenha que ser menos?
Quando o Ser Maisse torna um ser superior e dominador, que
se sente e age como de maior valor e poder sobre o outro, há uma
exacerbação da autoridade, a qual se transforma em um tipo de
autoritarismo.
Freire refere-se à questão da autoridade versus liberdade,
discutindo a problemática a partir da postura ética docente e da formação
ética discente. Freire defende a autoridade necessária à prática docente
democrática, autoridade concebida não como autoritarismo, mas como
uma autoridade que orienta e que possibilita a formação ética autônoma,
uma vez que ninguém se torna autônomo primeiro, para depois realizar
escolhas ou tomar decisões, mas, inversamente, constrói-se a autonomia
com base nas vivências de democracia, num clima de liberdade:
O grande problema que se coloca ao educador ou à educadora de opção
democrática é como trabalhar no sentido de fazer possível que a
necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade. Quanto
mais criticamente a liberdade assuma o limite necessário tanto mais
autoridade tem ela, eticamente falando, para continuar lutando em seu
nome. (FREIRE, [1996], 2016, p. 103).
Vemos que Freire levanta uma problemática sobre a obrigação em
relação à regra. Como chegamos de forma livre e autônoma a compreender
a regra como uma necessidade? Sua teoria é de que a vivência das relações
dialógicas, permeadas pela reciprocidade, torna possível ao homem e à
mulher sentir como necessárias as regras legítimas, as quais são boas para
todos.
103
E o autor questiona, ainda: como pode o educador tratar da ética,
se ela não for uma vivência sua também? A ética não é vista como
conteúdo, mas como vivência especificamente humana, que deve envolver
toda a comunidade escolar. Afinal, a atitude ética está implícita no trabalho
docente, por exemplo, desde a escolha pelo ser professor, pela tarefa de
formar não apenas bons profissionais ou pessoas que saibam ler e escrever,
mas pessoas mais humanas.
Esses exemplos nos ajudam a compreender que Freire não excluiu
de sua teoria as questões referentes à moral; pelo contrário, ele as trouxe
como parte importante de sua tese em favor da autonomia e da liberdade.
O olhar específico para as questões morais, em Freire, nos permite perceber
uma proposição de que a moral, inicialmente heterônoma, deve caminhar
no sentido da autonomia, da moral que impulsiona a capacidade humana
de Ser Maise de transformar a si e ao mundo, por meio de suas próprias
escolhas, de suas próprias decisões, da sua luta.
A concepção de autonomia de Freire é inseparável de uma postura
amorosa e criativa. Transcendendo o aspecto puramente intelectual, a
autonomia deve visar a uma capacidade de sentir-se parte de uma sociedade
e nela atuar, para o bem individual e coletivo.
E a forma própria de assumir a construção da autonomia, cognitiva
e moral, percebemos viva em Freire, em sua obra e em sua trajetória
pessoal. Por suas próprias palavras, notamos como ele buscou manter uma
coerência, entre sua teoria e sua vida. Em diversos trechos de sua obra,
resgata vivências e sentimentos de sua história. Em Pedagogia da Esperança
([1992], 2008), Freire conta um pouco de sua trajetória de vida, das
experiências que o fizeram chegar à Pedagogia do Oprimido, que lhe
possibilitaram sentir como o outro sentia, respeitar a si e ao outro, se
encontrar e se engajar em uma realidade que precisava ser transformada.
104
Ao retomar sua trajetória, dentre tantas experiências revividas,
Freire relembra uma pesquisa que fez, preocupado com as relações entre
pais e filhos, e entre escola e família. Nessa investigação, perguntava aos
pais sobre os castigos, a relação das crianças com essas vivências, os
motivos, a frequência e as consequências; em seus resultados, deparou-se
com a ênfase nos castigos físicos, violentos, porém, justificados: quanto
mais severos fossem, mais eficazes seriam, no intuito de tornar os filhos
homens e mulheres fortes e capazes de enfrentar a vida. Era preocupação
de Freire saber como esse tipo de relação ética interferiria na política, na
constituição da democracia:
Uma de minhas preocupações, na época, tão válida ontem quanto hoje,
era com as consequências políticas que um tal tipo de relação pais-
filhos, alongando-se depois nas relações professores-alunos, teria com
vistas ao processo de aprendizagem de nossa incipiente democracia, era
como se família e escola, completamente subjugadas ao contexto maior
da sociedade global nada pudessem fazer a não ser reproduzir a
ideologia autoritária. (FREIRE, [1992], 2008, p. 22).
Ao tratar da importância e das consequências dessa pesquisa, Freire
([1992], 2008) discute as relações de autoridade e liberdade, da relação de
cada uma delas com a democracia, expressando-se convencido de que a
escola precisa democratizar-se e, para tanto, necessita da formação
permanente de todos que estão envolvidos nelas, sejam pais, sejam
professores ou funcionários. Ele se aprofunda nessa convicção e começa a
realizar encontros, para tratar com esse público de sua pesquisa e dos seus
desdobramentos.
Freire mostra grande sintonia com a concepção piagetiana de
moral, ao remeter-se a O Juízo Moral na Criança, adjetivando-o de
105
excelente”. O autor assinala que o livro trata das sanções e deixa claro que
a relação dialógica e amorosa entre adulto e criança é a que pode substituir
a relação violenta.
A concepção de Piaget sobre a relação entre a criança e o adulto,
no sentido da autoridade que se estabelece e da forma como a criança
respeita esse adulto e suas regras, chamou a atenção de Freire. Sensível às
especificidades humanas, Freire vislumbrou a possibilidade de
transformação da realidade opressora que se perpetua de geração para
geração, através da formação moral das crianças. Por isso, levou aos pais
uma maneira de olhar para as relações, a qual questiona as atitudes
autoritárias e violentas:
Baseando-me num excelente estudo de Piaget sobre o código moral da
criança, sua representação mental do castigo, a proporção entre a
provável causa do castigo e este, falei longamente citando o próprio
Piaget, sobre o assunto, defendendo uma relação dialógica, amorosa,
entre pais, mães, filhas, filhos, que fosse substituindo o uso dos castigos
violentos. (FREIRE, [1992], 2008, p. 25).
Freire reconhece, no entanto, que sua experiência com essa fala
baseada em Piaget teria sido mais rica, provocadora e formadora, se ele
tivesse contextualizado o lugar e a época de onde ele falava e de onde falou
Piaget. Contudo, admite que seu maior erro foi não ter aproximado sua
linguagem daquela dos que o ouviam, e de não ter dado atenção, de fato,
à dura realidade deles. percebeu isso depois que um dos homens simples
que o assistiam levantou-se e questionou-o sobre o quanto sabia da
realidade que eles viviam e de quão dura era a vida de suas famílias, isto é,
convidava-o a compreender o mundo deles, que era muito diferente do
seu. Essa fala marcou-o profundamente e lhe mostrou que o educador,
106
antes de falar ao povo, precisa falar com o povo. E Freire afirma que a
Pedagogia do Oprimido focaliza, de fato, a teoria embutida nessa vivência.
Freire vê, na teoria de Piaget sobre a moral, expressa especialmente
em O juízo moral na criança ([1932], 1994), uma forma adequada de
compreender as questões morais, a qual é abordada pelo aspecto das
sanções e a relação de autoridade e de liberdade. A liberdade é reconhecida
como contrária às relações opressoras, igualada às relações em que se
instaura o respeito mútuo, e como necessária para que se firmem a
autonomia e a democracia.
Destacamos que, em Freire, a questão moral se expressa fortemente
na sua visão sobre a opressão, que distorce a condição humana e leva a
mulher e o homem à condição de coisa. Na opressão, Freire vê violentado
o direito de pessoa do homem e da mulher. O oprimido tem sua
consciência voltada para o outro, por isso, Freire remete a uma necessidade
de liberdade da consciência, a fim de que a mulher e o homem assumam
suas escolhas e possam agir segundo suas próprias vontades e seus próprios
valores e princípios.
Quando alude à distorção do ser, Freire denuncia uma forma de
violência e adentra questões morais, de negação do outro. Salienta
Andreola (1999, p.76):
Na denúncia dessa perversão ontológica, que passa a ser uma perversão
ética das mais nefastas para a convivência humana hoje, Freire
argumenta baseado na relação dialética entre o ser e o ter, sendo o ter
absolutizado por parte da classe dominante [...] As relações opressor-
oprimido, dominador-dominado, senhor-escravo não se situam mais
no nível do ser e do amor, mas sim do ter e da possessividade.
107
A visão de Freire sobre as relações de coação e cooperação extrapola
o campo intelectual, porque não é só de uma (in)capacidade cognitiva de
se colocar no lugar do outro que Freire trata. É, especialmente, de um
aspecto humano, afetivo, permeado pelos sentimentos de solidariedade,
justiça e compaixão. Segundo Freire, não basta ensinar ao outro o que é a
fome, enquanto escassez de alimento, se fico indiferente à fome do meu
semelhante.
Freire fala de tudo que temos alcançado enquanto sociedade
moderna, mais tecnológica, mais globalizada, mais cheia de recursos
materiais, mais rápida, porém, tão precária de valores humanos e de
princípios morais. “Essa modernidade que tanto nos deslumbra com suas
inovações tecnológicas tem muito pouco de compromisso ou de
compaixão.” (FREIRE, [1995], 2013, p. 18). Fala de como vivemos sós
em meio à multidão; inseridos em um contexto social, os homens e
mulheres têm vivido mais sozinhos do que coletivamente, porque o olhar
está para si mesmo, muitas vezes acabando com o direito do outro, no
próprio egoísmo.
O homem e a mulher o seres éticos, capazes de fazer escolhas, de
tomar decisões, de romper com as situações e transfor-las, mas fazem
suas escolhas, se lhes são dadas condições para tal. Uma sociedade menos
opressora pode ferir o interesse das classes dominantes, por isso, o espaço
para essas escolhas é difícil de ser conquistado.
Quando Freire aborda a importância da conscientização, para que
haja engajamento na luta pela liberdade, por uma sociedade mais
democrática, é porque reconhece que é preciso conscientizar-se para
abandonar a consciência domesticada, guiada pelo outro, e perceber-se
como ser humano igual aos outros, com deveres e direitos. Freire insiste
veemente nas relações dialógicas, porque reconhece a importância das
108
vivências de reciprocidade, a fim de que a consciência possa se aprofundar
nessas relações e vislumbrar um mundo mais justo e amoroso.
Enquanto educador, Freire, especialmente em Pedagogia da
Autonomia ([1996], 2016), guiado por sua luta em favor da libertação dos
oprimidos, evidencia que as relações de cooperação, as quais trazem em si
as leis da reciprocidade que a consciência vai reconstruir, podem ser vividas
na educação. Freire expõe a importância da formação dos educadores, para
que a ética universal possa ser experimentada na relação educando-
educando, mas também na relação educador-educando.
Tendo em vista as questões morais que se encontram presentes na
teoria de Paulo Freire, talvez pouco exploradas ou consideradas por seus
estudiosos, formando um todo inseparável em sua forma de compreender
o homem e a mulher, passamos, agora, a relacionar aspectos essenciais das
teorias de Piaget e Freire sobre moral, sem mais separar as ideias dos
autores.
As relações sociais e o respeito
É possível desenvolver a moralidade individualmente? Qual o
papel das relações sociais para o desenvolvimento moral? Como se chega
ao respeito, pelas regras morais? São algumas questões importantes que nos
fazemos, quando começamos a refletir sobre moral.
O homem e a mulher são sociais; ele mantém relações com outras
pessoas, desde muito cedo. As crianças, ainda muito pequenas, já começam
a estabelecer relações com as pessoas que as cercam; inicialmente, as
relações são com os pais e familiares, porém, progressivamente, elas vão se
ampliando e se estendem aos professores, amigos e demais pessoas que
109
frequentam os mesmos ambientes que a criança. Essas relações interferem
significativamente no desenvolvimento, já que a criança vivencia, a partir
dessas relações, o mundo real, composto por regras e por pessoas que são
diferentes dela. Regras e pessoas que a instigam, que a desafiam a
compreender, a incorporar, a refletir e a agir.
Essas vivências constituídas de regras e de pessoas a serem
respeitadas tornam morais as teorias e ações do homem e da mulher. Nas
relações sociais, especialmente naquelas em que há cooperação, o sujeito é
convidado a equilibrar o que é bom para ele com o que é bom para o
coletivo. A regra moral deve, progressivamente, ser admitida e valorizada
pela consciência, de tal modo que ela subsista, como princípio,
considerando o contexto, a necessidade da sua aplicação,
independentemente de controles externos:
Isto significa que a vida social é necessária para permitir ao indivíduo
tomar consciência do funcionamento do espírito e para transformar,
assim, em normas propriamente ditas, os simples equilíbrios funcionais
imanentes a toda atividade mental ou mesmo vital. [...]
Para que uma conduta possa ser qualificada de moral, é preciso mais
que um acordo exterior entre o seu conteúdo e o das regras comumente
admitidas: convém, ainda, que a consciência tenda para a moralidade
como para um bem autônomo e seja capaz, ela mesma, de apreciar o
valor das regras que lhe propomos. (PIAGET, [1932], 1994, p. 297,
299).
Encontramos, em Freire ([1969], 1977, [1967], 2007), que a
mulher e o homem são seres de relações, relações com o mundo e relações
com outros homens e mulheres. Não há homem ou mulher isolados,
portanto, não há pensamento isolado. E as relações dos homens e
mulheres, que pensam coletivamente, são concretizadas pela comunicação.
110
Essas relações possibilitam que o homem e a mulher criem, recriem,
decidam, transformem, humanizem. São essas relações que, por desaf-
los, ajudam que eles sejam dinâmicos, no tempo e no espaço. Todavia,
pode a mulher e o homem, em função das relações que estabelecem, serem
passivos diante da realidade:
Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está
em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela
publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando
cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso
da órbita das decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo
homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as
interpreta e lhes entrega em forma de receita, de prescrição a ser
seguida. E, quando julga que se salva seguindo as prescrições, afoga-se
no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé,
domesticado e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se a puro objeto.
Coisifica-se. (FREIRE, [1967], 2007, p. 51).
Há em Freire, portanto, uma ideia de que o sujeito se constrói nas
relações sociais que vivencia. O autor, em toda sua obra, se mostra reflexivo
quanto às relações sociais que se firmam, majoritariamente, em nossa
sociedade. Histórica e culturalmente, as relações de opressão,
especialmente entre classes, são muito presentes em nossa sociedade.
As relações opressoras, para Freire, retiram do homem e da mulher
a capacidade crítica de fazer escolhas, obrigam a agir e a pensar segundo a
vontade de outro. São relações em que um lado domina o outro. Em
contrapartida, as relações dialógicas, nas quais os homens e as mulheres se
consideram em posição de igualdade e de respeito mútuo, possibilitam
posturas mais coerentes e críticas.
A sociedade não é única, assim como as relações que nela se
instauram também não são. Basta olharmos para nós mesmos e para a
111
nossa sociedade, para facilmente identificarmos as relações de coação ou
de cooperação que vivemos. Vemos diariamente grupos de pessoas serem
violentados, física, verbal ou psicologicamente, por não se fazerem parte
de padrões, de maiorias e, também, de minorias, ou de supostas verdades
que se impõem. Por outro lado, também vemos pessoas que lutam, unidas,
por causas diversas, as quais nem sempre são suas propriamente ditas, mas
que se impõem pela justiça que clamam.
Mesmo no contexto escolar, essas relações de coação e de
cooperação estão presentes. Estamos diante de relações de coação, quando
vemos o professor, graças à sua posição de “autoridade”, ter atitudes como:
a partir de uma situação de conflito, instituir uma regra arbitrária, como,
por exemplo, a partir de hoje não se empresta mais material para
ninguém, evitando a convivência e a solidariedade entre as crianças, ou
quando diante do descumprimento a uma regra, geralmente aquelas que
ele instituiu (como a que fora citada antes), deixa a criança de castigo sem
parque, aplicando uma sanção que não tem coerência com a falta. Por
outro lado, há também as relações que, por suas características
cooperativas, saltam igualmente aos olhos: quando o professor, na intenção
de tornar democrática a sala de aula, divide a função de estabelecer as regras
junto às crianças, partindo das necessidades da turma, como que em
assembleia, ou quando se propõe pensar com as crianças ações que reparem
as faltas ou que colaborem com o bem-estar de todos, vivenciando a
reciprocidade e valores como a generosidade e a solidariedade.
Podemos mencionar, nesse contexto, formas distintas de relações
sociais que conduzem a formas distintas de respeito. Piaget ([1932], 1994)
discute as ideias de Bovet, para quem os sentimentos morais, como as
obrigações morais, só podem desenvolver-se nas relações sociais, e o
respeito não constitui uma consequência da regra racional, mas justamente
o respeito é proveniente das relações sociais e é por esse respeito que se
112
constituem as regras. Para Bovet (1951, p. 156), o amor e o medo são
sentimentos que levam à construção do respeito. Basta que exista uma
relação de pelo menos dois indivíduos, para que um respeite o outro e,
desse respeito, se construam os valores morais.
De acordo com Bovet (1951), o respeito se pela pessoa, pelas
ideias ou ações que percebemos nessa pessoa. O autor trata do respeito que
se constitui pela religião, em que amor e medo se fazem tão presentes.
Respeitamos aquele que amamos ou que tememos; muitas vezes, esses
sentimentos aparecem misturados, e esse respeito direciona a nossa
atividade. O respeito é, portanto, uma disposição afetiva imposta pela
presença ou ideia de uma pessoa que amamos ou tememos; assim, todas as
atitudes que não estão de acordo com a pessoa respeitada são inibidas.
É nas relações sociais entre os sujeitos que está a possibilidade de
sentir e de agir moralmente, porque somente inseridos nas relações sociais
é que as mulheres e os homens sentirão a necessidade de respeitar e de
vivenciar as regras.
Conforme Piaget, a sociedade se organiza como um sistema de
relações, em que cada uma dessas relações transforma os próprios
elementos que a constituem, rompendo, assim, com a dicotomia entre
indivíduo e sociedade. Ressalta Dongo-Montoya:
Para Piaget, defender as relações ou interações como base da
organização social, longe de apelar para características individuais,
como muitos dos seus críticos pensam, significa reafirmar uma posição
dialética relacional, significa postular uma sociedade concreta focada
na interação e distante da sociologia apoiada nos caracteres individuais.
(DONGO-MONTOYA, 2017a, p. 165).
113
A sociedade é um sistema de relações ou de interações, portanto, é
um sistema de ações, com leis de equilíbrio, as quais possibilitam a
construção do pensamento. Paulo Freire, como Piaget, acredita que a
sociedade não é única em suas relações e que essas relações levam os sujeitos
a terem pensamentos e ações distintas.
Essas ideias iniciais de como as relações se estabelecem é a primeira
espécie de aproximação desses autores, no campo da moralidade. Conceber
que as formas de relações podem ser distintas significa conceber que
existem formas distintas de respeitar as pessoas e de se posicionar quanto
às regras. O predomínio de uma dessas formas de relação interfere na
organização de toda a sociedade:
Em todos os níveis e em todos os campos de atuação, o que se constata
são relações ou interações que modificam os termos que as unem; tanto
as relações de coerção como as relações de cooperação produzem efeitos
nos termos que as unem e desse modo, interferem de algum modo -
estabilizando ou desequilibrando - o sistema de relações ou interações.
As ações técnicas, morais e intelectuais podem ser de natureza
coercitiva ou de opressão e de cooperação ou de solidariedade. Ambas
as formas de relação têm efeitos opostos. São justamente estas últimas
que possibilitam a transformação das formas sociais de opressão e que
afetam tanto o oprimido quanto o opressor, tanto os indivíduos como
as estruturas de opressão, como bem observa Paulo Freire. (DONGO-
MONTOYA, 2017a, p. 166).
Mas, como o homem e a mulher, sendo seres sociais, passam a
aceitar e vivenciar as regras sociais? Piaget concorda com Bovet em que,
para que o sujeito assuma uma obrigação da consciência, é preciso que ele
receba ordens e que respeite aquele que lhe dá as ordens. Havendo regras,
elas por si só não são capazes de obrigar a consciência, de fazer surgir um
114
sentimento de dever, afinal, não emana das regras e nem mesmo do
indivíduo sozinho essa consciência; não é a psicologia puramente
individual que caracteriza esse fato. Todavia, uma vez que há pelo outro
de quem emana essas regras certo respeito, a obrigação de respeitá-las
torna-se presente:
É, afirma Bovet, que a ordem não obriga por si mesma: para que
acarrete na consciência o aparecimento do sentimento de dever, é
preciso que o conselho emane de um indivíduo respeitado pelo sujeito.
Que este indivíduo tenha, ele mesmo, criado o conteúdo da ordem ou
que transmita sem mais uma ordem que recebeu tal qual, pouco
importa. O essencial é que seja respeitado pelo sujeito considerado:
então e então somente, a ordem produzirá, na consciência deste, o
sentimento do dever. (PIAGET, [1932], 1994, p. 279).
Portanto, o respeito pelas pessoas é que faz com que as ordens
dadas por essas pessoas assumam caráter de lei. E, como vemos em Piaget
([1932], 1994), se, entre os adultos, é difícil distinguir o respeito pela regra
e pelo indivíduo, na criança é muito fácil fa-lo, pois a criança, quando
está junto a seus pais, por exemplo, sente que eles são superiores a ela, logo,
o respeito tem suas raízes em sentimentos anteriores, uma mistura singular
de medo e afeição.
Antes da própria linguagem, a criança bem pequena respeita as
regras que são expressas pelos pais, como aquelas relativas ao dormir, ao
comer e à higiene, por exemplo; afinal, são impostas por um adulto, por
quem a criança tem simpatia e medo. Mesmo depois da linguagem,
podemos observar que as crianças costumam continuar a obedecer as regras
expressas pelos pais. Não somente as regras sociais mais gerais, mas
inclusive regras bem particulares, as quais se referem unicamente àquela
pessoa, como, por exemplo, não mexer nos seus pertences pessoais – e fica
115
evidente que o respeito da criança é pela pessoa e, por isso, segue a regra,
sem que a sociedade de forma geral ou a própria regra em si sejam
responsáveis.
De início, a criança vê o adulto como superior em tudo; é, pois,
heterônoma; contudo, como surgirá a consciência pessoal do dever? Para
Piaget, assim como para Bovet, a razão elabora as regras morais, como o
faz em outros campos que não o da moral. A razão chega a uma
compreensão formal das regras morais: generaliza, coordena e tende a
universalizar tais regras. E há as intervenções das influências recebidas ao
longo do desenvolvimento, pois, diante da variedade de indivíduos
respeitados e da diversidade de regras que vêm deles, muitas vezes
contraditórias, há que se conciliar tudo isso, buscando, por meio da razão,
uma unidade de consciência moral. Ademais, como existem essas
divergências entre as regras que chegam ao sujeito, a razão passa a
hierarquizá-las, o que possibilita um progresso quanto à consciência do
dever. Por conseguinte, o dever, inicialmente, é fruto do respeito dos
pequenos pelos maiores e, progressivamente, a autonomia da consciência
do dever vai acontecendo mediante o entrecruzamento das influências
vividas.
Para além da consciência do dever, Piaget, juntamente com Bovet,
reconhece uma consciência do bem, que trata de um ideal interior mais
autônomo; mas o autor não busca suas raízes psicológicas. A grande
questão é saber: como se constituirá a consciência autônoma? Nesse caso,
para Bovet, a razão e a interferência do meio não são suficientes, não
bastam para superar a heteronomia. Bovet deixa a questão em aberto, com
indicativos de um prolongamento.
Nesse sentido, Piaget ([1932], 1994) descreve que, além do
respeito unilateral do menor pelo maior, há outra forma de respeito, o
respeito mútuo, para o qual o sujeito tende, nas relações entre iguais. O
116
medo que existe na relação desigual diminui, dando lugar a outro tipo de
medo, o medo de decair aos olhos do outro. Essa nova forma de relação
estabelece uma reciprocidade entre os sujeitos, ao invés da coação,
ensejando o acordo mútuo, em detrimento da imposição das regras; tais
regras passam a ser racionais e interiores, serão as verdades morais do
sujeito. A possibilidade da autonomia reside no fato de que a razão pode
situar-se em uma perspectiva e coordenar-se com outras, mantendo uma
coerência interna, não existindo respeito mútuo puro, já que existem por
toda parte relações de coação e o respeito unilateral. O respeito mútuo é
uma forma de equilíbrio para a qual tende o respeito unilateral. Mas,
convém diferenciá-los, pois se inserem em sistemas de equilíbrio diferentes.
Tanto Piaget como Freire concebe o ser humano enquanto sujeito
em si, que possui uma história e um desenvolvimento próprio, porém, que
precisa ser considerado dentro de uma sociedade, porque não vive sozinho,
relaciona-se com outros seres humanos e, nessas relações, se constrói e se
reconstrói. Para ambos, as relações firmadas entre os homens e mulheres
não são únicas, podem ser relações desiguais, autoritárias e dominantes,
como podem ser relações de igualdade, de trocas amorosas e respeitosas,
em que todos se consideram e valorizam. Reconhecemos que, para os
autores, essas diferentes formas de relações sociais conduzem a relações
distintas com o mundo e com as regras, conduzem a formas diferentes de
se posicionar frente às questões morais.
Tendo em vista as questões levantadas por Piaget, refletimos sobre
as relações opressoras descritas por Freire e nos questionamos: as relações
de opressão têm suas bases em quais sentimentos morais? Por que as
pessoas oprimidas se calam e seguem as regras impostas pelos opressores?
Que tipo de respeito se estabelece nas relações de opressão descritas por
Freire? E que tipo de respeito se encontra nas relações dialógicas? Ambas
117
as formas de relação, opressoras ou dialógicas, coercitivas ou cooperativas,
levam o sujeito a respeitar as regras morais?
A consciência inicial do dever manifesta-se por uma obrigação
relativa à aceitação, sem questionamentos, de regras exteriores. É, portanto,
heterônoma. Os sentimentos morais estão relacionados ao respeito que o
sujeito sente pelo outro, contudo, existem duas formas possíveis de
respeito, de naturezas distintas: o respeito unilateral e o respeito mútuo.
Segundo Piaget ([1932], 1994), o respeito unilateral, aquele entre
o menor e o maior, ou entre a criança e o adulto, resultado das relações nas
quais predomina a coação, é importante no desenvolvimento moral, pois
leva a criança inicialmente a aceitar as instruções impostas pelos pais. Mas,
progressivamente, através das vivências de cooperação que vão se
formando, principalmente nas relações entre iguais, em que prevalece o
respeito mútuo, vão se tornando possíveis as normas racionais, em especial
a reciprocidade:
O respeito mútuo aparece, portanto, como a condição necessária para
a autonomia, sob seu duplo aspecto intelectual e moral. Do ponto de
vista intelectual, liberta as crianças das opiniões impostas, em proveito
da coerência interna e do controle recíproco. Do ponto de vista moral,
substitui as normas da autoridade pela norma imanente à própria ação
e à própria consciência, que é a reciprocidade na simpatia. (PIAGET,
[1932], 1994, p. 91).
As relações de coação são aquelas em que há certa desigualdade,
como do maior para o menor ou do mais velho para o mais novo, e em
que as regras são impostas de forma coercitiva e exterior. As relações de
cooperação são aquelas que implicam certa igualdade entre as pessoas, em
que as regras o construídas internamente e se constituem certos ideais. A
118
maior parte das relações que se estabelecem em nossa sociedade são relações
de coação, as quais levam a um respeito unilateral, já as relações de
cooperação, levando ao respeito mútuo, são uma forma de equilíbrio.
De acordo com Petersen (1967), tratando da questão da disciplina
e da autonomia, toda coação é opressora, repressora, limitadora, pois
restringe a liberdade. As relações de coação levam a um respeito que se
impõe pelo medo, em especial medo da punição.
No entanto, não existem relações puramente coercitivas ou
puramente cooperativas, portanto, não existe respeito unilateral puro ou
respeito mútuo puro. Além disso, precisamos lembrar que o respeito
mútuo é a forma de equilíbrio para qual caminha o respeito unilateral,
apesar dos resultados de cada uma dessas formas de respeito ser bem
distinta.
Quando convivemos socialmente, experimentamos a coação e a
cooperação, seja no mesmo ambiente, seja em lugares diferentes. Nesse
aspecto, uma criança pode ter uma relação opressora na família, por
exemplo, e viver situações distintas na escola, ou vice-versa. Um adulto
pode, mesmo vivenciando a opressão, em seu ambiente de trabalho,
estabelecer relações de cooperação e reciprocidade com sua família. Nem a
coação e nem a cooperação estão determinados a um espaço ou condição
social específica. São as pessoas que estabelecem entre si essas relações.
Quanto mais cooperação vivenciamos, mais se impõem o respeito mútuo
e a consciência das regras, como uma construção interna.
Enquanto seres humanos, podemos fazer escolhas, decidir como
agir. Nossas escolhas estão relacionadas a princípios e valores. Paulo Freire
([1995], 2013) fala das escolhas éticas que fazemos enquanto seres
humanos e, em determinado momento, salienta que a tecnologia, por
exemplo, pode servir tanto a práticas perversas como a práticas
119
humanizadoras, mas quem decide se ela servirá a uma ou a outra é a mulher
e o homem, a partir dos seus princípios éticos.
O respeito unilateral, de acordo com Piaget ([1932], 1994), é
predominante nas relações de coação do adulto ou do mais velho para com
a criança. Esse tipo de respeito está ligado à regra coercitiva e se aproxima
muito da conduta egocêntrica que apresentam as crianças, com idade
aproximada entre três e sete anos. O egocentrismo é característico de tal
período. A criança pequena não é capaz de perceber seu próprio eu, não se
distinguindo do que é externo. Os adultos ou os mais velhos acabam por
impor suas vontades e opiniões à criança, que cede facilmente e sem tomar
consciência da situação. Pom, a falta ou a pouca separação entre a criança
e o mundo externo faz com que as interferências subjetivas, não percebidas
pela criança, sejam constantes, dificultando a sua socialização. Há falta,
nessa fase egocêntrica, de relações de cooperação, porque, para cooperar, é
necessário reconhecer-se em relação ao outro e ter consciência de seu
próprio pensamento, em face do pensamento do outro.
A crença de que a regra é de origem divina se relaciona com o
egocentrismo infantil, pois a indiferenciação entre o eu e o mundo social
possibilita que todas as instruções adotadas pareçam transcendentes. Como
a ação não é elaborada pela consciência autônoma, permanece externa e é
considerada transcendente.
Freire focaliza, em algumas relações entre os adultos, essa espécie,
predominantemente unilateral, de respeito. Entre aqueles que Freire
chamou de oprimidos, notou características que avaliamos que muito se
assemelham a essa primeira forma de respeito que Piaget descreveu nas
crianças pequenas. Reconhecendo o opressor como alguém superior, o
oprimido acata as regras que dele emanam, cede às suas imposições, sem
ter consciência. Há, nos oprimidos, uma dificuldade de reconhecer-se na
120
relação e de perceber a posição do opressor e a sua própria posição. A
crença é de que as coisas devem ser assim, não há questionamento.
Contrariamente ao respeito unilateral, o respeito mútuo, segundo
Piaget ([1932], 1994), está relacionado às regras racionais, é pautado pelas
relações de cooperação e se liga à autonomia da consciência. Quando
prevalecem o respeito mútuo e a cooperação, a relação da criança com a
regra se modifica, pois o que vigora já não é mais a tradição, mas a
reciprocidade. A regra pode ser modificada, desde que haja um acordo
mútuo. Isso só é possível, porque a criança, vivendo a cooperação, passa a
diferenciar-se do mundo; torna-se capaz de compreender o outro e se fazer
compreender, o que permite o verdadeiro respeito entre iguais e a
autonomia. Enfatiza Piaget:
[...] desde então, não só descobre a fronteira entre o eu e o outro, como
aprende a compreender o outro e a se fazer compreender por ele. Logo,
cooperação é fator de personalidade, se entendermos por personalidade
não o eu inconsciente do egocentrismo infantil, nem o eu anárquico
do egoísmo em geral, mas o eu que se situa e se submete, para se fazer
respeitar, às normas da reciprocidade e da discussão objetiva. A
personalidade é, deste modo, o contrário do eu, o que explica porque
o respeito mútuo de duas personalidades, uma pela outra, é um respeito
verdadeiro, em lugar de se confundir com o mútuo consentimento de
dois “eu” individuais, suscetíveis de ligar parte do mal e parte do bem.
Sendo a cooperação fonte de personalidade, na mesma ocasião as regras
deixam de ser exteriores. Tornam-se, ao mesmo tempo, fatores e
produtos da personalidade, segundo um processo circular tão frequente
no decorrer do desenvolvimento mental. A autonomia sucede assim à
heteronomia. (PIAGET, [1932], 1994, p. 82-83).
Nota-se que a diferença entre a coação e a cooperação está,
principalmente, no fato de que a primeira impõe à criança as regras
121
prontas, elaboradas pelos adultos ou pelos mais velhos, enquanto a segunda
oferece um método de construção das regras morais que devem ser
consentidas pelo indivíduo e pelo grupo. Porém, acordo mútuo e respeito
mútuo são coisas diferentes, porque o respeito, mais do que uma aceitação
ou concordância, implica certa admiração por uma pessoa, que do mesmo
modo se submete a regras. Assim, “[...] só poderá haver respeitotuo
por aquilo que os próprios indivíduos considerarem como moralidade.
(PIAGET, [1932], 1994, p. 84).
Podemos notar que as relações dialógicas, em que a cooperação é a
essência, favorecem a consciência autônoma das relações e das regras. Só
que não se passa do respeito unilateral ao respeito mútuo como um passe
de mágica: sempre que se considerar a transição, nesse processo.
Piaget nos traz, portanto, uma importante contribuição no estudo
da moralidade, quando distingue dois tipos de respeito provenientes de
duas formas diferentes de relação. Ele nos esclarece como o contato do
sujeito com a regra, levando em conta a questão do respeito e da obrigação,
são diferentes, devido à relação que o sujeito mantém com a pessoa que é
a portadora daquela regra, como já afirmava Bovet.
Pensamos nessas relações, como descritas por Freire, quer as
opressoras que ele critica, quer as dialógicas que ele propõe. Mesmo que
ele não o tenha feito explicitamente, em termos do respeito, o que elas têm
em comum com a concepção de Piaget sobre esse tema?
Encontramos em toda a obra de Paulo Freire uma tradução das
relações chamadas por ele de opressoras como relações coercitivas, em que
há uma desigualdade, em que um polo da relação é mais que o outro e esse
outro é desconsiderado ou tratado como objeto. Compreendemos que,
entre o oprimido e o opressor, tem-se um tipo de respeito unilateral. Há
uma aceitação das situações e das regras por medo, por submissão, por
122
reconhecer-se inferior ao outro, algumas vezes até por admiração, já que o
opressor é visto como uma autoridade inquestionável.
Podemos citar, como exemplo, que Paulo Freire ([1969], 1977, p.
41) se refere, como ação antidialógica, à invasão cultural que ocorre em
algumas relações opressoras, como aquelas do agrônomo extensionista, o
qual impõe seu saber aos camponeses. Sobre essa invasão cultural, Freire
distingue aquele que invade daquele que é invadido; quem invade impõe
ao outro os seus valores, tratando-o como objeto de sua própria ação; esse
tipo de relação põe os sujeitos em posições contrárias. Trata-se de relações
autoritárias. Quem invade conquista e manipula de alguma forma o outro,
domestica o outro.
Não raro, agrônomos consideram os camponeses ignorantes.
Desconhecem as técnicas agrícolas utilizadas no meio rural, ignoram a
experiência e os saberes adquiridos dessa experiência, no meio rural;
reduzem os agricultores a ignorantes e incapazes. Pensam que estes não são
capazes de dialogar ou que dialogar demandaria muito tempo; preferem
-los como almas dóceis. Dessa maneira, retiram-lhes o direito de dizer
sua palavra, de expressar suas ideias e sentimentos; estabelecem uma
relação unilateral e não o os respeitam como sujeitos; ignoram-los e os
massacram, impondo-lhes conhecimentos e valores que não são deles, mas
são daqueles que “são mais” que eles.
Mas, por que os camponeses aceitam calar e viver essa cultura do
silêncio que lhes é imposta? Há, de fato, uma estrutura social opressora,
rígida e vertical, que historicamente os posiciona como inferiores e não
permite sentir-se numa relação igualitária, condição para o diálogo. Eles
respeitam o que vem de fora, as teorias e práticas do outro, pois dedicam a
esse outro um tipo de respeito submisso, fruto da admiração e do medo.
123
Para Freire, a atitude opressora é um ato de desamor, é um ato de
violência, mesmo quando disfarçada de “generosidade”, falsa generosidade.
Um elemento mediador da relação opressores-oprimidos é
chamado por Freire de “prescrição”; trata-se da imposição de uma
consciência sobre a outra, fazendo com que essa última realize ações que
foram prescritas por outros, que são exteriores a ela. “Os oprimidos, que
introjetam a ‘sombra’ dos opressores e seguem suas pautas, temem a
liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta sombra,
exigiria deles que ‘preenchessem’ o ‘vazio’ deixado pela expulsão com outro
‘conteúdo’ o de sua autonomia.” (FREIRE, [1970], 2011, p. 46).
A relação de opressão é uma relação de violência, pela qual se nega
a humanidade do outro; tem-se o outro como objeto, com desamor. Quem
assim procede só consegue amar a si próprio. “Quem inaugura a negação
dos homens não são os que tiveram sua humanidade negada, mas os que a
negaram, negando também a sua.” (FREIRE, [1970], 2011, p. 59).
Notamos que, em Freire, as relações de respeito unilateral são
expressas nas relações de opressão que ocorrem entre patrão e empregado,
entre as classes dominantes e as classes dominadas, entre o agrônomo
extensionista e os trabalhadores rurais etc., e, igualmente, em algumas
relações de ensino e aprendizagem. Freire, em toda a sua obra, concebe a
educação como uma das formas de transformação social, como
possibilidade de conscientização e libertação; como crítica às formas
autoritárias, opressoras, antidialógicas e violentas de relação professor-
aluno.
Na opinião de Freire ([1992], 2008), a disciplina intelectual e
moral não pode ser ensinada de fora para dentro, mas deve ser construída
e assumida pelos alunos, mediante a intervenção de um professor
devidamente preparado, pronto para desafiá-los, para questioná-los; do
124
docente que possa propor a eles uma realidade democrática e ética, em que
se possa ter uma visão de mundo e entender que há outras, além dela.
A prática docente, de acordo com Freire ([1996], 2016), exige
respeito do professor para com o aluno, sua autonomia e identidade; tal
atitude reflete o respeito do professor para com ele mesmo. Se não há o
respeito para com sua prática e para com a sua postura, se não há o respeito
para com a liberdade de criar, de pensar e de ser do aluno, ocorre uma
transgressão ética, uma ruptura com a decência, uma negação da natureza
humana, enquanto ser inacabado.
Piaget caracteriza o respeito unilateral como mais característico das
crianças pequenas, presas ao egocentrismo e à coação adulta, que
vivenciam um realismo moral. Por sua vez, Freire, ao descrever os
oprimidos, trata de uma população adulta que vivencia uma espécie de
realismo moral, pois, sem condições de posicionar-se criticamente frente
às relações sociais e à realidade, esse adulto acredita que as regras não devem
ser questionadas; ele as aceita e as segue ao pé da letra, crendo em seu
caráter divino.
Mas, pensando as relações mais dialógicas e democráticas, Freire
expressa a possibilidade de relações cooperativas, marcadas pelo respeito
mútuo. Percebemos que o autor focaliza, nesse caso, as relações em que os
sujeitos se reconhecem como iguais, em sua condição de ser humano, em
sua condição de “Ser mais”, respeitando os saberes e os pontos de vista do
outro.
Quem é oprimido e vive em uma condição diminuída e
acomodada tem medo da liberdade, vive a falta e o medo de uma
convivência autêntica, que, segundo Freire, é mais crítica e amorosa:
125
Ao mesmo tempo, porém, inclinando-se a um gregarismo que implica,
ao lado do medo da solidão, que se alonga como medo da liberdade,
na justaposição de indivíduos a quem falta um vínculo crítico e
amoroso, que a transformaria numa unidade cooperadora, que seria a
convivência autêntica. (FREIRE, [1967], 2007, p. 53).
Essa relação amorosa e crítica expressa-se como uma forma de
respeito mútuo, pois exige que aqueles que nela estão inseridos se vejam
como iguais, respeitem o outro em seus saberes e em suas vivências,
respeitem a si mesmos, troquem pontos de vista, pensem essa relação e o
mundo.
O diálogo, amplamente defendido por Freire como essencial nas
relações humanas, sobretudo nas relações educativas, exige respeito mútuo;
pode-se mesmo assegurar que ele é a expressão do respeito mútuo.
Ao tratar da ação antidialógica, Freire explica que, nesse tipo de
ação, se impõe uma relação de conquista, em que alguém conquista algo,
que, no caso das relações humanas, será o outro, seja em atitudes mais
severas, seja de forma mais sutil. E, ao conquistar o outro, sente-se dono
dele, negando sua condição humana de ser mais e de olhar de forma
crítica para a realidade. Ora, “[...] não há realidade opressora que não seja
necessariamente antidialógica, como não há antidialogicidade em que o
polo dos opressores não se empenhe, incansavelmente, na permanente
conquista dos oprimidos.” (FREIRE, [1970], 2011, p. 189).
Igualmente antidialógica é a ação de dividir a classe oprimida, para
que não tenha força e não se torne uma ameaça para a classe opressora;
manipular os oprimidos, a fim de que não pensem e continuem na posição
de dominados; e, por fim, exercer a invasão cultural, inserindo-se
brutalmente na cultura da classe oprimida e impondo-lhes a sua visão de
126
mundo, negando-lhes a capacidade de criar e recriar, e fazendo com que
permaneçam estagnados.
Por outro lado, a ação dialógica, segundo Freire ([1970], 2011), é
composta de colaboração, de união, de organização e de uma síntese
cultural. Colaboração porque, ao invés de conquistar e dominar o outro,
os sujeitos se encontram para pronunciar e transformar o mundo, num
encontro em que, mesmo havendo funções diferentes, mesmo havendo os
líderes revolucionários, não se age como proprietários dos outros, mas em
comunhão, estabelecendo uma relação de confiança e de diálogo. União
porque, ao invés de desunir para tornar fraca a classe oprimida, a classe
oprimida mantém-se unida entre si e com seus líderes, a fim de lutar pela
transformação da realidade desumana que vivencia. Organização porque,
contrariamente à manipulação, o testemunho, ousado e amoroso, que
une e torna coerentes as ões. Síntese cultural, porque nunca se chega à
cultura do outro para impor, para negar, para mudar, mas para conhecer,
para respeitar, para valorizar.
Em oposição à forma opressora de relacionar-se, Freire propõe o
diálogo: “O diálogo é o encontro amoroso dos homens, que mediatizados
pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o,
o humanizam para a humanização de todos.” (FREIRE, [1969], 1977, p.
43). No diálogo, portanto, não cabe a conquista ou a manipulação, não
cabe o domínio de um sobre o outro, mas o reconhecimento do outro
como sujeito, com seus valores, suas ideias, suas ações, seus pensamentos,
enfim, como agente transformador.
E ele prossegue, em outro lugar: “Não há diálogo, porém, se não
há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronuncia
do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a
infunda.” (FREIRE, [1970], 2011, p. 110). O amor é o fundamento do
diálogo. Não é possível encontrar diálogo nas relações de dominação,
127
afinal, o amor é uma forma de compromisso e troca entre os sujeitos. Não
há diálogo nas relações de respeito unilateral; há nelas imposições e
aceitações. Há diálogo no respeito mútuo, porque nele existem trocas e
nele a consciência pode intervir sobre as regras.
O diálogo requer humildade. Não há diálogo se um de seus polos
perde a humildade e age de maneira arrogante, se em tudo vejo no outro a
ignorância e me vejo como superior, não vejo nas outras pessoas outros eu
mesmo. “Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto
os outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar, parra chegar ao lugar
de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes
absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão buscam
saber mais.” (FREIRE, [1970] 2011, p. 112).
Igualmente a fé, não ingênua, mas crítica, é condição necessária ao
diálogo, é, segundo Freire, um a priori dele, que possibilita que a confiança
se instaure. Fé nas mulheres e nos homens e em sua capacidade de
transformar a realidade.
Por conseguinte, Freire assevera: “Ao fundar-se no amor, na
humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em
que a confiança de um polo no outro é consequência óbvia.” (FREIRE,
[1970], 2011, p. 114).
Não existe diálogo sem esperança, uma esperança ativa, pois, como
seres inconclusos, vivemos em uma eterna busca, a qual não acontece no
individual, mas no coletivo, necessitando do diálogo, que não se dá dentro
de situações violentas.
Para Freire, por fim, o diálogo requer o pensar, um pensar crítico,
relacionado à ação, que percebe a realidade como processo e não como algo
estático.
128
O respeito unilateral e o respeito mútuo encontram-se
perfeitamente explicitados nas relações opressoras e dialógicas,
respectivamente. Essas formas de respeito conduzem a diferentes formas
de moral. Quais as consequências disso para o sujeito e para sua vida em
sociedade?
Heteronomia e Autonomia Moral
Piaget ([1932], 1994) reconhece que há um paralelismo entre o
desenvolvimento moral e o desenvolvimento intelectual, de sorte que nem
as normas lógicas e nem as normas morais são inatas no sujeito. Antes
mesmo da linguagem, é possível reconhecer na criança certas ações que
apontam para a lógica de classes e relações, da mesma forma que
encontramos, nesse mesmo período, tendências à simpatia e reações
afetivas que darão origem, posteriormente, às condutas morais. E esses
aspectos encontrados anteriormente à linguagem serão considerados, de
fato, lógicos ou morais, depois que alcançarem uma dada estrutura e leis
de equilíbrio.
Apesar de não se poder falar de um caráter inato, existe, segundo
Piaget, um a priori da moralidade. Não se trata de um princípio do qual se
possa deduzir a ação e nem uma estrutura da qual se possa tomar
consciência, contudo, de fato, de um conjunto de relações funcionais, o
qual tende a um equilíbrio ideal. E desse equilíbrio, por meio de
progressivas tomadas de consciência, é que emergem essas estruturas
morais ou as normas morais propriamente ditas.
Individualmente, o sujeito não consegue tomar consciência desse
funcionamento e construir as normas morais, pois a razão, lógica ou moral,
é um produto coletivo realizado individualmente. A vida social, enquanto
129
relações sociais que estabelecemos, é necessária para que o espírito possa
tomar consciência das relações e possa construir as normas. Longe disso,
ou seja, fora das relações sociais, o sujeito permanece egocêntrico,
indiferenciado do mundo, preso em seu próprio ponto de vista. Para estar
consciente do seu próprio ponto de vista, é necessário o confronto entre o
eu e o outro. Somente quando se está em contato com os juízos e as
avaliações dos outros, sofrendo a pressão das normas intelectuais e morais
coletivas, é que se pode superar a anomia, tanto moral quanto intelectual.
Sendo as relações sociais necessárias para o desenvolvimento moral,
a primeira dessas relações que o sujeito vivencia, a relação de coação e de
respeito unilateral, é importante para a vida moral do sujeito, pois se trata
de uma primeira forma de controle lógico e moral. Todavia, esse controle
não é suficiente para superar o egocentrismo infantil, pois muitas vezes
acaba por reforçá-lo. No que concerne à moral, a criança acredita
firmemente na onisciência do adulto e na verdade absoluta das regras que
recebe dele, graças ao respeito unilateral, vivendo uma forma de realismo
moral, o que é importante para a vida moral, porque constitui a primeira
consciência do dever e uma primeira forma de controle normativo. Mas,
será preciso, para que se possa falar realmente de moral efetiva, que a
consciência tenda para uma autonomia, em que as regras sejam apreciadas
interiormente em favor do bem moral, e isso só é possível dentro do
respeito mútuo, das relações de cooperação e reciprocidade. Como
acontece no desenvolvimento intelectual, a autonomia moral só é possível
a partir da cooperação. A cooperação e o respeito mútuo levam às normas
imanentes, catalisam e direcionam a moral; assim, diferentemente da
obediência, pode-se pensar em um ideal interno, em um bem moral que
não é imposto, mas construído.
Primeiramente, as relações de coação conduzem ao respeito
unilateral, do qual resulta uma moral heterônoma, a moral do dever, da
130
obrigação, na qual é bom obedecer ao adulto, mesmo sem compreender a
regra. Sobre a heteronomia moral, Menin explicita:
Coagido socialmente a obedecer, o pequeno imita o mais velho;
coagido psiquicamente pelo egocentrismo, o pequeno não sabe que
imita e age como se sempre tivesse sido assim [...] Isso explica a prática
imitativa-egocêntrica das regras e sua consciência heterônoma: as
crianças jogam como os mais velhos e o que vem deles é sagrado,
imutável, sempre existiu; mas, por necessidades próprias, elas
modificam as regras não percebendo o que estão fazendo. O novo
transforma-se em velho no momento em que aparece [...] As crianças
pequenas comportam-se como nos governos gerontocráticos: o que
vem dos mais velhos, da tradição, é sagrado e deve conservar-se
eternamente! Eis a moral do dever a heteronomia! (MENIN, 1996,
p. 52).
Portanto, a heteronomia moral põe o sujeito na condição de
submisso à ordem ou regra do mais velho ou do que, por algum motivo,
exerce poder sobre ele, constituindo-se como uma autoridade. Essas ordens
ou regras são proposições inquestionáveis, as quais não devem ser
analisadas em seus princípios. O sujeito heterônomo é um sujeito passivo
e acrítico. A heteronomia não deve ser tomada como um estádio, mas uma
grande etapa do desenvolvimento moral que deve ser superada, tendendo
para uma moral mais autônoma.
É preciso esclarecer que, embora os estudos de Piaget tenham se
concentrado nas crianças, podemos estender seus resultados também a
casos da vida adulta. A heteronomia não é somente vista nas crianças, mas
também nos adultos. Da mesma maneira, a heteronomia pode estar
presente em relação a alguns conteúdos e a outros não. Apesar de se tratar
da primeira forma de ação e juízo moral do sujeito, a heteronomia não es
131
determinada para uma idade ou conteúdo, pom, está relacionada às
interações e tomadas de consciência do sujeito, é uma construção
individual, dentro de um contexto coletivo.
Um adulto que reproduz um discurso político divulgado pela
mídia ou facilmente encontrado entre o seu grupo de amigos e age em
favor dele, sem buscar informações sobre os fatos, sem escutar diferentes
opiniões e sem refletir, é um exemplo de heteronomia moral. Afinal, a sua
opção por uma regra é exterior à sua própria consciência, está ligada à
influência de pessoas ou instituições que se impõem como superiores e
donos da verdade, e são aceitas assim pelo sujeito.
A passagem da heteronomia à autonomia não se dá de forma
brusca, mas gradativa. Há uma fase intermediária, em que a criança
obedece à ordem do adulto e a regra por ela própria, podendo generalizá-
la, inclusive.
Na vida social, não há espaço apenas para as relações de coação.
Existe também uma afeição mútua, que conduz a atos de generosidade e
até mesmo de sacrifício, que são a origem da moral do bem, que é produto
da cooperação, em que predomina o respeito mútuo e a reciprocidade. “A
autonomia só aparece com a reciprocidade, quando o respeito mútuo é
bastante forte, para que o indivíduo experimente interiormente a
necessidade de tratar os outros como gostaria de ser tratado.” (PIAGET,
[1932], 1994, p. 155). E isso exige reversibilidade operatória; inicialmente
concreta e, posteriormente, formal. Isto é, a evolução da moral individual
depende do desenvolvimento cognitivo. Porém, não basta
desenvolvimento cognitivo para ocorrer desenvolvimento moral.
Acrescenta Menin sobre a saída da heteronomia para a autonomia:
132
Como esta reprodução do sempre igual pode deixar de existir? Segundo
Piaget só se, no mínimo, duas coisas acontecerem: a cooperação e a
descentração. (MENIN, 1996, p. 52).
A autonomia é, por consequência, para Piaget, uma forma de
equilíbrio ideal para onde deve caminhar o desenvolvimento moral.
Descentrar-se, ou seja, deixar de considerar somente o próprio eu como o
centro ou o único ponto de vista possível, e cooperar, em outras palavras,
travar com os outros mais relações de trocas igualitárias, nas quais ambos
contribuem para o consenso, são elementos necessários para que se possa
pensar uma maneira de agir e de pensar moralmente, guiados por
princípios internos, aplicáveis a todos.
Guiar-se não mais pela ação ou opinião dos outros, mas ser
coerente com as próprias verdades e considerar que é bom para si o que
não acessa negativamente o outroeis a autonomia moral!
Na autonomia, o sujeito já não pensa mais que as ordens ou regras
que lhe são impostas por outro são inquestionáveis. Pelo contrário, elas são
levadas à análise pela consciência e avaliadas, tendo em conta o bem
individual e coletivo. O sujeito autônomo age sobre a realidade a sua volta,
seja com ideias, seja com práticas, com transformações, pois leva em
consideração aquilo que sabe, seus valores, juntamente com os daqueles
que vivenciam uma situação junto a ele.
A autonomia moral é uma construção. Tanto nas crianças como
nos adultos, serão as vivências de cooperação e de reciprocidade, associadas
aos valores altruístas, como a justiça e a solidariedade, que abrirão espaço
para que essa construção se concretize. Quando, na escola, a criança é
inserida em relações que priorizem essas vivências, ela tem espaço para sair
do próprio eu, egocêntrico, e realizar trocas que evidenciam o respeito
mútuo. Na vida adulta, isso será essencial para que mulheres e homens não
133
vivam em um mundo à parte, mesmo estando em sociedade, e a fim de
que também não sejam conduzidos pela vontade dos outros. A escola, logo,
não está preparando para a vida no futuro, ela já é a vida, que precisa ser
vivida na cooperação e no respeito mútuo.
Sobre o que abordamos acerca da heteronomia e da autonomia
moral, em Jean Piaget, encontramos posicionamento muito próximo nas
concepções de Paulo Freire.
Em Freire, como para Piaget, a autonomia realiza-se por uma
construção; não é inata nem transmitida. O ser humano não é
determinado, intelectual ou moralmente. Não nasce pronto para ser algo,
mas, sabendo-se inacabado, constrói-se ao longo de sua história. Essa
construção depende de duas instâncias: de cada um, pois não é imposta
apenas pelo que está fora, e do entorno social. É uma construção em que
o sujeito tem papel ativo; é nessa relação com o mundo e com as outras
pessoas que ele se faz. Isso o faz assumir uma responsabilidade ética,
política, histórica e social em sua existência. É isso que o faz sujeito.
Segundo Freire ([1970], 2011), a autonomia, ou libertação da
relação opressora, não é dada ao sujeito, porém, construída por um
movimento contínuo de busca pelos próprios homens e mulheres,
enquanto seres inacabados, implicando, obviamente, um reconhecimento
crítico.
A violência, a injustiça, a opressão, enfim, as situações coercitivas,
nas quais prevalece o respeito unilateral, levam à desumanização, à
condição de ser menosda própria pessoa. Nas relações de opressão, não
há um desrespeito só com o outro, mas também consigo mesmo, embora
isso não seja percebido. Nesta perspectiva, há também uma questão moral
a ser considerada na postura do opressor, que, ao desrespeitar o outro,
134
desrespeita também a si mesmo. E, ainda, será que o opressor tem
consciência da sua posição imposta dentro de um sistema pronto?
Na mesma linha, Tognetta (2005, 2008, 2010), baseada nos
estudos de Piaget, afirma que a violência traduz uma forma de desrespeito
ao outro; esse tipo de desrespeito implica uma ausência de autorrespeito.
Humanizar-se requer um olhar respeitoso para si e para o outro, deixar de
coisificar as pessoas e as relações, estabelecer relações de igualdade,
permeadas pelo amor, pela generosidade, pela justiça. Humanizar-se exige
respeito mútuo.
As relações de opressão descritas por Freire põem o oprimido em
uma situação de conformidade e obediência ao que vem do opressor. As
regras intelectuais e morais são ditadas pelo opressor, que se constitui, na
relação, como uma autoridade; são incutidas como uma verdade, não
havendo questionamentos ou reflexão. As coisas são porque são, porque
sempre foram assim, e questionar significa transgredir ou afrontar. Nessa
perspectiva, o sujeito fica preso a uma moral que é externa, que não
compreende ou até com que não concorda, todavia, que aceita e que não
é passível de mudança. Freire alude, portanto, a heteronomia moral, assim
como a encontramos em Piaget.
As regras sociais, principalmente as mais arbitrárias, são aceitas por
muitos homens e mulheres pela condição de submissão e de opressão que
vivenciam e não por compreensão e concordância com a sua necessidade.
O empregado, analfabeto e sem informações sobre seus direitos, muitas
vezes aceita trabalhar de maneira exploradora, desgastante e sem a devida
remuneração, em troca de favores, por vezes acreditando que o patrão sabe
o que é melhor para sua família.
A militância de Freire por liberdade se caracteriza por uma certeza
de que ter consciência das relações, perceber-se oprimido, enxergar a
135
possibilidade de transformação e engajar-se nessa luta é para onde deve
caminhar o sujeito. Freire, portanto, acredita na possibilidade da saída de
uma situação de heteronomia para a autonomia. A liberdade implica
autonomia, à medida que é possibilidade de discutir as regras, de ouvir o
outro, de se posicionar, de considerar a si e ao outro nas relações, de dizer
sua palavra, de ter seus próprios princípios e valores, coordenando-os para
o bem individual e coletivo, e de lutar pela transformação das relações
opressoras e pela construção de relações cooperativas.
O que seria a autonomia moral, senão uma liberdade da
consciência apoiada na conscientização? Para além do aspecto intelectual,
o qual permite ao sujeito, mediante sua própria curiosidade e interesse,
encontrar formas novas para os problemas reais, levando em conta as
formulações em nível de pensamento que elas implicam, levantando
hipóteses possíveis de serem refletidas e comparadas com o que se vive e
que, a partir disso, atua para transformar, podemos pensar em uma
conscientização moral que possa abarcar todo esse refletir e agir,
considerando o eu e o outro, o respeito que se estabelece e o fim desejável
como bom para ambos. Se a conscientização pode ser moral, com certeza,
é de uma moral altruísta, autônoma que se trata.
Na visão de Freire, a conscientização é necessária para o ser
humano, enquanto aprofundamento da consciência do mundo e do ser
inacabado que é, não apenas por ser inacabado, mas por ter consciência de
tal inacabamento. Essa consciência de inacabamento nos faz responsáveis
por nossas escolhas frente ao mundo e, por isso, seres éticos:
O mundo da cultura que se alonga em mundo da história é um mundo
da liberdade, de opção, de decisão, mundo de possibilidade, em que a
decência pode ser negada, a liberdade, ofendida e recusada. Por isso
mesmo a capacitação de mulheres e homens em torno de saberes
136
instrumentais jamais pode prescindir de sua formação ética. (FREIRE,
[1996], 2016, p. 56).
Freire ([1996], 2016) insiste que, como seres conscientes de seu
inacabamento, somos capazes de escolhas e de decisões; como seres éticos,
podemos agir de forma contrária à própria ética, e a educação deve assumir
um compromisso com a formação ética:
O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo
ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros.
Precisamente porque éticos podemos desrespeitar a rigorosidade da
ética e resvalar para a sua negação, por isso é imprescindível deixar claro
que a possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação
senão a de transgressão. (FREIRE, [1996], 2016, p. 58).
Freire insiste, em sua obra, sobre a necessidade de a consciência ir-
se aprofundando nas relações dialógicas, para que o sujeito possa ir
compreendendo melhor o mundo e as relações, a fim de que possa intervir
de forma autônoma nesse mundo.
Que autonomia é essa de que trata Freire? Autonomia que é fruto
de relações mais igualitárias e menos autoritárias e opressoras, que se
constrói nas trocas, no diálogo, em que todos são considerados, valorizados
em seus valores e princípios. Construída mediante a tomada de consciência
e conscientização das relações vividas. Autonomia que pressupõe fazer
escolhas, respeitar o outro em sua integridade, que acarreta um
posicionamento criativo e reflexivo. Contrária à cultura do silêncio, uma
autonomia em que é possível dizer sua palavra e em que há escuta. Uma
autonomia que supõe regras que possam ser aplicadas a todos e um respeito
mútuo entre mulheres e homens.
137
Essa construção da autonomia moral, reflexo de uma
conscientização, tal como concebida por Freire, distancia-se da autonomia
moral concebida por Piaget? Não acreditamos em distanciamento, quanto
ao cerne da questão. Reconhecemos, porém, a veemência com a qual Freire
sustenta que a liberdade, que a autonomia moral proporciona, deve vir
carregada de um compromisso com a transformação social, fato que Piaget
discute em segundo plano, em suas obras específicas sobre a moral, uma
vez que seu foco era entender o desenvolvimento moral (considerando
nossa leitura de obras específicas). Piaget insiste na importância das
relações democráticas como meio para a construção da autonomia e a
importância da autonomia para uma sociedade mais justa. Freire, além de
afirmar as relações democráticas e dialógicas como forma de se conquistar
a autonomia, insiste intensamente que a autonomia é possibilidade de
transformação da sociedade em uma sociedade mais justa e humana e que
o homem e a mulher precisam engajar-se nessa luta.
Freire lutou, na teoria e na prática, por uma democratização da
escola, pela autonomia do ser dos educandos; nesse sentido, a autonomia
pode ser entendida como um valor. Ele concebe a educação como prática
da liberdade, por conseguinte, sua pedagogia é democrática, estabelecida
por uma prática dialógica e não autoritária, que, negando a dominação, a
domesticação e a opressão, insiste pela liberdade da intervenção no mundo,
não como reprodução, mas como transformação, comprometida com a
autonomia do ser.
Segundo Lima,
[...] toda a pedagogia freireana pode ser interpretada como uma
pedagogia da autonomia, orientada para a formação de sujeitos capazes
de decisões livres, conscientes e responsáveis [...] Porém, esta
valorização da autonomia é assumida por referência a valores
138
democráticos e do domínio público, e não, obviamente, como
categoria fundada na ética do mercado, no individualismo possessivo e
na competitividade, tão em voga nos discursos neoliberais e nas práticas
gerencialistas. (LIMA, 2009, p. 82-83).
O mesmo autor acrescenta:
Em Paulo Freire, muito especialmente, as suas concepções de
democracia radical e de cidadania crítica encontram-se fortemente
inspiradas pelas teorias críticas, conferindo a autonomia um significado
que põe em evidência a capacidade dos seres humanos produzirem
juízos informados, conscientes e livres, não influenciados nem
distorcidos por relações assimétricas e por desigualdades sociais, de
conhecimento ou de poder. (LIMA, 2009, p. 83).
A responsabilidade ética está amplamente discutida em Pedagogia
da Autonomia, obra na qual Freire realiza um reencontro com a Pedagogia
do Oprimido, refletindo e propondo a democratização, em seu país, numa
posição a favor de uma política e de uma pedagogia crítica e democrática:
Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da
ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser
assumindo-nos como sujeitos éticos. Neste sentido, a transgressão dos
princípios éticos é uma possibilidade, mas não é uma virtude. Não
podemos aceitá-la. (FREIRE, [1996], 2016, p. 19).
Encontramos, em suas palavras, assim como em Piaget, a
necessidade de uma educação que, além de construir ao invés de transferir
conhecimentos, se preocupe com a formação moral dos homens e
mulheres.
139
Diante das aproximações entre as formas de compreender as
questões morais que encontramos entre Piaget e Freire, nós nos
perguntamos: quais as implicações dessas aproximações para a educação,
mais especificamente, para a educação moral? Na sequência, abordaremos
essa questão.
140
141
Capítulo 3
Educação Moral: Novos Caminhos
Procuraremos verificar, a partir das aproximações encontradas
sobre pontos fundamentais da moral, como a questão da importância do
respeito mútuo e da construção da autonomia moral, nas teorias de Paulo
Freire e Jean Piaget, os possíveis encontros dessas teorias, no que diz
respeito à educação moral.
Considerando as aproximações das teorias de Piaget e Freire sobre
a moral, nós nos questionamos: qual é a autonomia que a escola busca?
Que ambiente sociomoral possibilita o desenvolvimento moral dos
educandos a favor da autonomia? Qual a importância do diálogo, na
educação para o desenvolvimento moral? A educação democrática é uma
forma de alcançar uma democracia social verdadeira? Qual o papel do
educador, no desenvolvimento moral dos educandos? O desenvolvimento
moral do educador é importante para o desenvolvimento moral do
educando?
A síntese dessas teorias nos ajuda a pensar caminhos pedagógicos
para uma educação para a autonomia, para uma educação transformadora.
142
Piaget: uma educação ativa e para a autonomia
A fim de pensarmos como deve se estabelecer uma educação moral,
primeiramente é preciso pensar qual é o fim dessa educação. Deseja-se
formar sujeitos autônomos, conscientes das regras morais e de seus valores,
respeitosos, que buscam a justiça e o bem comum? Ou, pelo contrário,
deseja-se formar sujeitos heterônomos, conformados às regras morais
impostas, submissos e acríticos? Essa escolha conduzirá a procedimentos
totalmente distintos.
Tanto Piaget quanto Freire acreditam na importância de a
educação ter como fim a formação para a autonomia moral, além da
autonomia intelectual. É essencial que a educação favoreça a tomada de
consciência moral e a conscientização, para que homens e mulheres
vivenciem sua vocação de “Ser mais, de ser humanos e de todos viverem
bem.
Não sendo pedagogo, Piaget não elabora uma pedagogia, uma
metodologia de ensino ou uma didática que contemple as propostas de sua
teoria. Ele apenas deixa explícita sua opção pelos métodos ativos, os quais
priorizam o trabalho em grupo, a investigação, a escolha, em que as
crianças possam viver uma espécie de sociedade infantil, democrática e
participativa; uma pedagogia em que a criança possa assumir um papel
ativo, no processo de desenvolvimento e, por consequência, de
aprendizagem.
Conforme Piaget ([1932], 1994, 1998), se o que se deseja é
alcançar a autonomia, tendo em vista o desenvolvimento moral infantil,
não é possível pensar em uma educação autoritária e com métodos
puramente individualistas. É inútil querer impor coercitivamente uma
disciplina pronta às crianças e querer incutir verdades exteriores ao seu
143
pensamento, pois a criança, com seu espírito ativo, criativo e investigativo,
somente se desenvolverá dentro das relações de cooperação e reciprocidade;
portanto, por metodologias que contemplem sua ação.
Piaget critica a educação que tem como base exclusivamente as
relações pautadas no respeito unilateral, em que o mestre impõe suas regras
e as faz cumprir coercitivamente. Nesse tipo de educação, a autoridade do
professor é colocada acima de tudo e de todos, e, desconsiderando o aluno
em sua constituição humana, em seus saberes, somente há espaço para as
verdades impostas pelo professor. A disciplina é muito rígida, exigindo
submissão e docilidade, além do silêncio, e é punitiva, regada a castigos
muito árduos. Nessa educação, é comum o professor utilizar-se de métodos
verbais para ensinar moral. Esses procedimentos de educação moral
servem à heteronomia.
Podemos compreender que a escola ativa, a qual, para Piaget
([1932], 1994, 1998), possibilita a formação para a autonomia, supõe a
atividade do aluno, isto é, as regras morais não devem ser impostas de fora
para dentro, mas construídas internamente, nas experiências morais que
são vivenciadas. Assim, a moral perpassa todos os conteúdos e atividades
escolares, de maneira a ser vivenciada e não apenas verbalizada. As relações
são prioritariamente pautadas no respeito mútuo, na cooperação e na
reciprocidade. As escolas devem proporcionar o trabalho em grupo, a troca
de pontos de vista, a oportunidade de falar sobre os próprios sentimentos,
propor ideias, debater assuntos, criar, refletir, tomar decisões, entre outras
ações.
nessa educação, com certeza, disciplina e regras, porém, longe
de serem autoritárias e exteriores, são construídas em um consenso, com a
participação de todos, o que garante o seu cumprimento. Essa educação
não se pauta por sanções expiatórias, mas se ampara em sanções de
reciprocidade, prezando a justiça e a equidade. Para tudo isso, o adulto
144
deve sair do seu posto de “ensinador”, de “dador de aula”, e assumir um
papel dialógico, articulador, de verdadeiro mestre, que possa promover o
desenvolvimento moral e intelectual dos educandos.
É muito comum, nos objetivos educacionais expressos nas
propostas pedagógicas, encontrar-se a intenção de uma educação que vise
ao pleno desenvolvimento do aluno, uma educação integral. No entanto,
como vemos em Piaget ([1971], 1973b), o desenvolvimento da
personalidade, enquanto consciência intelectual e moral, que acontece
mediante o respeito aos direitos e liberdades de cada um, é muitas vezes
deixado de lado para privilegiar uma formação que molde o sujeito de
acordo com um modelo pré-estabelecido. Sobre essa educação, Piaget
explica que seu objetivo é “[...] impor às jovens gerações o conjunto das
verdades comuns, isto é, das representações coletivas que já asseguram a
coesão das gerações anteriores.” (PIAGET, [1971] 1973b, p. 60).
A educação que cala e que inibe, aquela que adestra e padroniza, é
aquela que não constrói uma moral interna e autônoma, mas que quer
sujeitos heterônomos, os quais perpetuam as desigualdades e as violências.
O fim da educação, segundo Piaget, deve ser o desenvolvimento de
indivíduos capazes de vivenciar a autonomia intelectual e moral, que
saibam respeitar a autonomia do outro, graças à reciprocidade. Pensando
a realidade que predomina em nossa sociedade, como formar para esse fim,
por meio de uma metodologia que propõe a submissão?
Piaget, revestido por uma consciência política, a qual não admite
que a educação seja neutra ou domesticadora, defende uma educação de
qualidade, no sentido amplo do termo, que forme intelectualmente e
moralmente:
145
O direito à educação, por ele formulado tão claramente, não é apenas
o direito de frequentar escolas: é também, na medida em que vise a
educação ao pleno desenvolvimento da personalidade, o direito de
encontrar nessas escolas tudo aquilo que seja necessário à construção
de um raciocínio pronto e de uma consciência moral desperta.
(PIAGET, [1971] 1973b, p. 61).
A educação de qualidade não é aquela que conta com grandiosos
recursos materiais e técnicos ou aquela que obtém altos índices de
aprovações externas. A educação de qualidade é aquela que promove a
possibilidade de o sujeito construir seu conhecimento, de vivenciar as
relações com o mundo e com os outros. Quando a educação busca, para
além dos conteúdos, as experiências de vida, o sentir, o refletir e o criar, ela
está sendo, de fato, de qualidade.
Quanto à moral propriamente dita, ele acrescenta que, se o que se
deseja é formar para uma moral da obediência, as lições de moral, a
autoridade do professor e as sanções expiatórias serão suficientes para o
êxito da proposta. Mas, se o fim é uma educação que forme consciências
livres e autônomas, é necessário que os alunos vivenciem relações sociais
de cooperação e respeito mútuo, em que lhes seja permitido o
autogoverno. A possibilidade de uma transformação social, de renovação
das relações sociais, encontra-se nessas ditas sociedades infantis em que as
crianças vivenciam uma espécie de autogoverno, experimentando desde
muito cedo oportunidades de democracia.
Temos acompanhado, no dia a dia e também pela mídia, as
inúmeras situações de violência presentes em nossa sociedade; muitos casos
de pessoas que não conseguem resolver seus conflitos, divergências de
opiniões e insatisfações, de forma passiva, e partem para as agressões sicas,
verbais ou psicológicas. Mas, mesmo as situações mais corriqueiras do dia
146
a dia, desde a relação com os vizinhos até a organização de trabalho, têm
sido permeadas pela opressão, pela falta de respeito, pelo egoísmo, pela
intolerância, entre outros sentimentos. Parece que tem faltado em nossa
sociedade um saber, ou melhor, um valor, muito íntimo das relações
humanas, a convivência democrática. Vinha et al. (2017) fazem um
questionamento muito coerente sobre essa incapacidade que nossa
sociedade tem demonstrado de conviver: será que nos falta viver em nossa
educação esse valor, para que possamos levá-lo vida afora?
A escola é uma das instituições responsáveis pela educação. Deve
ter como finalidade desenvolver o ser humano em todos os aspectos, para
que ele possa atuar ativamente na sociedade. Todavia, educar para a
convivência democrática não é tarefa simples.
Como destaca Piaget ([1971] 1973b), existem duas consideráveis
dificuldades encontradas na educação moral: promover a descentralização
da atividade própria e estabelecer uma disciplina autônoma. A disciplina
imposta, exterior ao indivíduo, não possibilita a descentralização, pois não
insere o sujeito em situações de reciprocidade; ela somente forma um
espírito submetido ao conformismo. Já a vivência do respeito mútuo e da
reciprocidade, em relações de cooperação, permite que a disciplina se torne
uma necessidade proveniente da própria ação, ensejando perceber o outro
e estabelecer com ele vínculos que necessitam de manutenção.
A vida social por muito tempo exigiu dos sujeitos somente o
conformismo, a submissão e a heteronomia. Porém, à medida que a
cooperação foi-se tornando mais presente nas relações sociais, começou-se
a sentir a necessidade de uma liberdade individual. A cooperação exige que
cada sujeito possa agir sobre diversos outros que têm outras funções, outros
valores e outras ideias, respeitando-os e agindo com reciprocidade. “A
cooperação supõe, então, a autonomia dos indivíduos, ou seja, a liberdade
147
de pensamento, a liberdade moral e a liberdade política.” (PIAGET, 1998,
p. 154).
A nossa sociedade atual, apesar das constantes recaídas e
retrocessos, tem vivido possibilidades de engajamento e de transformação.
Muitas fendas têm-se aberto, por onde é possível visualizar as mazelas
sociais e os novos caminhos a seguir. Mas, para-las e vive-las, é preciso
um movimento individual e coletivo em direção à tomada de consciência,
à reflexão crítica, à autonomia moral.
A liberdade, compreendida como autonomia, exige uma educação
da inteligência, pois necessita de um espírito crítico que tenha coerência
lógica. É necessário ensinar os alunos a pensar - como? Pensando: não basta
encher a memória de conteúdos, é preciso saber coordenar os
pensamentos, avaliá-los, sintetizá-los, construir novos pensamentos,
investigar, criticar, opinar etc. Entretanto, para além dessa educação da
inteligência, é essencial conquistar uma liberdade moral e social, a qual
é possível nas relações de cooperação, em que a autonomia pode superar a
heteronomia. “É a educação da liberdade na disciplina autônoma que
assim se dá no jogo coletivo, nos esportes, no escotismo e, de maneira geral,
na vida social entre iguais.” (PIAGET, 1998, p. 157).
Piaget (1998) destaca o papel fundamental do professor, para que
a educação moral seja, de fato, uma educação para a autonomia,
acreditando que a ele cabe imbuir-se de um ideal democrático que seja
vivenciado, não só no discurso, mas na prática, buscando uma coerência
entre o que se diz e o que se faz.
A fim de que o professor possa oferecer aos alunos um ambiente
sociomoral que seja um espaço de democracia e de autogoverno, ele precisa
ser um sujeito que experimenta o respeito mútuo e a cooperação.
Consciente das próprias experiências morais, o professor é mais capaz de
148
refletir sobre o que favorece a autonomia e o que serve à heteronomia, para
fazer suas escolhas. Experimentar a cooperação, a reciprocidade e o respeito
mútuo, na sala de aula, não é uma tarefa simples, porque exige um
contínuo vir a ser, um construir-se e reconstruir-se. Mas, não há como ser
autônomo na intenção ou na teoria, se não o é na prática.
É assim, nesse contínuo vir a ser, que o professor não consegue,
por exemplo, exigir dos alunos a tolerância e a generosidade, se ele mesmo
não as vivencia com seus alunos, em momentos de conflito. Mesmo as
crianças pequenas notam nas pequenas atitudes, como jogar um papel de
bala no chão, a incoerência entre o discurso e a prática do professor.
Os métodos que melhor se adequam à formação moral para a
autonomia, segundo Piaget, são o do trabalho em grupo e o do self-
government. O trabalho em grupo, que consiste na organização de
trabalhos em comum, propõe que os alunos se juntem para resolver
problemas, para produzir trabalhos, entre outras tarefas. “Além do
benefício intelectual e da aprendizagem, da discussão e da verificação,
adquire-se um sentido de liberdade e de responsabilidade conjunta, de
autonomia na disciplina livremente estabelecida.” (PIAGET, 1998, p.
158). O self-government consiste em atribuir aos alunos funções que
colaborem para a disciplina e para uma gestão democrática da sala de aula,
que, de maneira muito efetiva, auxiliam a instaurar o respeito mútuo, a
reciprocidade, uma construção interna das regras etc.
Estar constantemente cooperando com o outro requer que
compreendamos a ele e que, assim, nos descentralizemos de nós mesmos.
Essa iniciativa de compreender o outro pode não começar com o objetivo
de uma relação mútua e coerente, porém, estabelece uma proposta de
reciprocidade e de troca que conduz a fins positivos. Com efeito, “[...] à
medida que nos submetemos às condições necessárias para compreender
os outros isto é, à medida que nos separamos de nossas falsas ideias e de
149
nossos preconceitos pessoais , adquirimos simultaneamente uma nova
atitude de reciprocidade e nos libertamos de nosso egocentrismo inicial.
(PIAGET, 1998, p. 134).
Piaget afirma, de modo intenso, a essencialidade dos professores
dentro do processo de formação intelectual e moral dos alunos,
enfatizando a importância da formação desse professor. De acordo com
Piaget, devemos insistir sobre o papel fundamental dos professores, desde
que bem formados, pois “[a] psicologia infantil pode multiplicar os dados
de fatos e nossos conhecimentos sobre o mecanismo do desenvolvimento:
esses fatos ou essas ideias não atingirão jamais a escola se os professores não
os incorporarem até traduzi-los em realizações originais.” (PIAGET,
[1969], 1970, p.123). Para Piaget, a formação do professor é uma questão-
chave para a educação de qualidade, e essa formação deve promover uma
coerência entre a prática e a teoria.
Uma grande dificuldade da educação passa por esse ponto. O
professor é convidado a formar para autonomia, utilizando-se de métodos
ativos. Contudo, sua formação é majoritariamente autoritária e passiva.
Como pode alguém que passou por toda uma trajetória escolar básica,
historicamente herdada, impositiva e massificadora, e que na formação
superior não vivenciou algo muito diferente disso, fazer opção e atuar de
forma contrária? Podemos contar só com o que é de cada um? A formação
de professores deve considerar isso.
Apesar de não ter-se dedicado diretamente à educação, Piaget
deixou um legado que nos proporciona compreender como os
conhecimentos sobre o desenvolvimento infantil e a construção do
conhecimento se aplicam à realidade educacional, contemplando uma
perspectiva de educação que forma para a autonomia intelectual e moral.
Diversos estudiosos da teoria de Piaget buscaram suas concepções de
educação, aplicando pesquisas em ambientes educativos, aprofundando a
150
teoria, no que tange à educação, e elaborando métodos pedagógicos
baseados em seus estudos e em sua teoria.
Nesse sentido, podemos citar, por exemplo, o PROEPRE
4
, que se
constitui como um programa de educação, baseado na teoria piagetiana, o
qual atua na formação de professores, firmando um vínculo coerente entre
a teoria e a prática, visando a uma educação que forme sujeitos autônomos,
intelectual e moralmente. O PROEPRE atua efetivamente na formação de
professores, utilizando-se da metodologia ativa e proporcionando um
ambiente formador diferenciado do tradicional.
Vários pesquisadores brasileiros têm atuado na área da moralidade,
com trabalhos que ampliam as pesquisas de Piaget. E alguns desses
trabalhos têm abordado questões que colocam a teoria da moralidade de
Piaget em relação bem direta com a prática educacional. Esse é um dos
méritos de pesquisas como as de Vinha (2000), Vinha e Tognetta (2011),
Tognetta (2015), dentre outras.
Piaget aposta em uma educação ativa, no que diz respeito à
educação moral, que preconiza a participação dos alunos na construção das
regras e na manutenção da vida social no ambiente escolar, vivenciando
relações de cooperação, respeito mútuo e reciprocidade. A educação moral
que encontramos nos direcionamentos de Piaget é aquela que forma
cidadãos críticos e capazes de atuar nas relações sociais. O respeito mútuo,
enquanto cerne dessa educação, possibilita a construção de um espírito de
disciplina e de ações baseadas em valores como a solidariedade e a justiça.
Apesar de a preocupação de Piaget não ter sido exclusivamente a
de se debruçar de maneira explícita sobre as questões de transformação
4
Programa de Educação Pré-Escolar, fundado pela professora Orly Zucatto Mantovani de Assis,
atualmente, professora colaboradora e coordenadora do LPG Laboratório de Psicologia Genética
da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.
151
social, em relação a situações de desigualdade, de opressão de classes, raças
ou gêneros etc., notamos, em algumas de suas obras ([1971], 1973b, 1998,
[1969], 1970), baseada em suas concepções sociológicas e morais, sua
posição crítica quanto à educação, seu posicionamento com respeito à
educação para a paz e para a liberdade, suas preocupações com a sociedade
em que vivemos e com os caminhos para renová-la.
Freire: uma educação transformadora e libertadora
Quanto a Paulo Freire, diante de sua explícita e veemente crítica à
estrutura social opressora, encontramos os elementos de uma educação
moral. Sobre o aspecto ético ou moral da educação, Freire assume: “[...]
me acho convencido da natureza ética da prática educativa enquanto
prática especificamente humana.” (FREIRE, [1996], 2016, p. 19).
O educador Paulo Freire, diferentemente de Piaget, se debruçou
no objetivo de descrever uma pedagogia. Mas, igual a Piaget, denuncia a
educação autoritária e opressora, defendendo, ao contrário, uma educação
ativa, que visa à democracia, autonomia, transformação e libertação. Em
toda a sua obra, Freire deixa explícita a pedagogia na qual acredita.
Essa opção pela educação como prática libertadora, Freire expressa
tanto em relação à educação escolar como ao contexto mais amplo de
educação. Ele exprime essa sua concepção de busca pela conscientização e
pela autonomia nas relações de forma geral.
Freire deixa clara a sua posição de que conhecer exige uma
atividade por parte do sujeito, demandando uma curiosidade e uma ação
criativa e transformadora sobre o mundo; com isso, aprender significa
apropriar-se do que se aprende e reinventá-lo. E esse sujeito que conhece,
152
que aprende, faz tudo isso dentro de uma relação com o mundo, que exige
dele uma práxis.
Para Freire, a sociedade brasileira é uma sociedade em trânsito, que
partiu de uma sociedade fechada, colonial, exploradora, escravocrata,
antidemocrática, sem povo; nossa colonização não foi um período de
integração, mas de dominação, sem possibilidade de uma vivência de
comunidade, de participação, marcada pela violência, por relações
humanas de poder e de coação de uma elite sobre uma massa oprimida, a
qual se submeteu ao poder do patrão. Essa sociedade brasileira se anuncia,
contudo, em vias de novas possibilidades, dentre recuos e avanços, em
processo, inexperiente em termos de democracia. Uma sociedade
caracterizada pelas experiências do passado, cheia de injustiças e de
heranças negativas. No entanto, que tem na educação uma das
possibilidades de libertar-se, de construir-se, na própria construção dos
homens e mulheres, mais humana e democrática, mais crítica e amorosa.
A pedagogia do oprimido é uma pedagogia que suscita a reflexão
sobre essa relação opressora e leva o oprimido a se perceber enquanto tal,
e a reconhecer o opressor, de sorte que possa, com essa atitude, superar essa
situação de opressão; por isso, a pedagogia do oprimido é uma pedagogia
libertadora. Mas, para os oprimidos, em um primeiro momento, libertar-
se da situação de oprimido é tornar-se igualmente opressor, afinal, essa é a
contradição que sempre vivenciaram e o libertar-se não é claro enquanto
sair dessa relação violenta, não há uma transformação; libertar-se,
inicialmente, é apenas sair da situação de oprimido. “A sua aderência ao
opressor não lhes possibilita a consciência de si como pessoa, nem a
consciência de classe oprimida.” (FREIRE, [1970], 2011, p. 45).
Convencido da Pedagogia do Oprimido, a crítica de Paulo Freire se
faz à educação bancária. Ele discorda dessa educação, a qual, em
detrimento da possibilidade de diálogo, de conscientização e de
153
engajamento, defende uma posição de passividade do aluno, que recebe os
ensinamentos, em uma relação autoritária e de transferência do
conhecimento, por parte do professor. Opõe-se à educação verbalista,
presa à narração de uma realidade estática, domesticadora, que procura o
aluno “bem comportado”, aquele que aceita, sem nenhum
questionamento, as regras arbitrárias.
Segundo Freire, as classes sociais oprimidas precisam sair do estado
de miséria total, para que a classe dominante deixe de exercer tanto
domínio sobre elas, para que se abra espaço para a democracia. Mas, à
medida que as classes oprimidas emergem, as classes dominantes se
movimentam no sentido de impedir essa emersão; por esse motivo, é
necessária uma educação que, compromissada com a libertação, seja
dialógica e possibilite ao homem e à mulher a “[...] discussão corajosa de
sua problemática.” (FREIRE, [1967], 2007, p. 97).
A liberdade, enquanto autonomia, conforme Freire, é a matriz de
uma educação que, para ser efetiva e ter êxito, necessita que os educandos
a vivenciem de forma livre e crítica; a liberdade precisa ser encarada como
uma maneira de ser da mulher e do homem. A conscientização, que
favorece uma liberdade engajada, não pode ser vista como uma preliminar
da aprendizagem, visto que a própria aprendizagem já implica uma tomada
de consciência.
A compreensão de Freire é de que, quanto mais crítico seja o
processo de aprendizagem, mais se desenvolve a curiosidade
epistemológica, necessária para a construção de conhecimento. E, por isso,
critica a educação bancária, a qual restringe a capacidade curiosa e criativa
do sujeito, impondo-lhe autoritariamente conteúdos já prontos.
Uma postura ética ou moral desejável seria de conscientização e,
por conseguinte, de engajamento na transformação da realidade opressora.
154
Formar moralmente é formar para uma intervenção social efetiva,: “[...]
preservar situações concretas de miséria é uma imoralidade.” (FREIRE,
[1996], 2016, p. 77).
Engajar-se na mudança não significa impor aos oprimidos que se
rebelem, mas que cada um de nós, independentemente de em qual campo
atue, seja na educação, seja na saúde, seja ainda na evangelização etc., possa
desafiar essa população a olhar criticamente para a sua realidade, para a
violência e a injustiça presentes nela, vendo isso não como destino dado ou
como a vontade de Deus, porém, como uma realidade que está sendo, mas
que não precisa ser, que pode ser mudada. Assim, mais do que uma
educação verbalista, faz-se fundamental uma educação do diálogo, do
debate, das vivências democráticas, das quais emerge a necessidade da
reciprocidade e do respeito mútuo.
A educação, que é uma especificidade humana, é intervenção no
mundo, por isso, é política e pode sê-lo, tanto no sentido de transformação
da realidade como de mantê-la como está. Para uma ou outra forma de
intervenção, a educação se faz de forma diferente, mais autônoma ou mais
dominadora. Freire acredita na possibilidade de transformação que a
educação possui, prezando pelo respeito ao educador, ao educando e ao
espaço educativo como um todo; sabe que, se a educação sozinha não pode
transformar a realidade, ela pode ser parte fundamental dessa
transformação.
Segundo Freire, a educação deve considerar o homem e a mulher
como sujeitos e não como objetos, sujeitos que estão inseridos em um
tempo e em um lugar, tendo em vista sua realidade concreta, seu contexto.
A educação deve conceber a mulher e o homem como sujeitos que
estabelecem relações com sua realidade, relações com o mundo e com os
outros homens e mulheres e, dessas relações, produzem cultura e fazem
história. Para Freire ([1980], 2001, p. 45), a educação precisa estar
155
preparada para reconhecer a mulher e o homem como sujeito e permitir
que ele se construa como tal, que seja ativo, que tome consciência de sua
capacidade transformadora da realidade, que estabeleça interações em
relações de reciprocidade, e que seja criador de cultura e de sua história.
Paulo Freire insiste que a esperança e a alegria são necessárias à
educação. Como seres inacabados, é fato que vivemos uma eterna busca, a
qual não pode se dar fora da esperança e da alegria. Nesse sentido, o tempo
não é algo determinado, já sabido, o tempo deve ser problematizado. É
correto pensar que a realidade é assim, desigual, violenta e desumana com
algumas pessoas simplesmente “por que é assim”? Será mesmo que as coisas
são assim? Ou estão assim? Entregar-se ao determinismo, acreditando em
um futuro inexorável, foge de uma realidade possível, viva, da liberdade,
do direito de decisão, da luta, da esperança, da ética; entregar-se a ele é
aceitar docilmente a condição de oprimido, de silenciado.
Sobre a esperança, Freire explica que a história é vista como
processo, como possibilidade e não como determinante, e possibilidade
que engloba sonho, esperança. Há lugar para a educação e não para a
domesticação:
Por isso, venho insistindo, desde a Pedagogia do Oprimido, que não há
utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente
tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser
criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e
homens. A utopia implica essa denúncia e esse anúncio, mas não deixa
esgotar-se a tensão entre ambos quando a produção do futuro antes
anunciado e agora um novo presente. (FREIRE, [1992], 2008, p. 91-
92).
156
Para o autor, (FREIRE, [1992], 2008), homens e mulheres são
entendidos como sujeitos, vivendo histórica, cultural e socialmente,
construindo e reconstruindo seus caminhos, capazes de, pela capacidade
imaginativa e curiosa, distanciar-se da realidade para conhecê-la. Entende
o ser humano como “programado”, mas não determinado. Nem a
humanização e nem a desumanização são destino certo. “Libertação e
opressão, porém, não se acham inscritas, uma e outra, na história, como
algo inexorável. Da mesma forma a natureza humana, gerando-se na
história, não tem inscrita nela o ser mais, a humanização, a não ser como
vocação de que o seu contrário é distorção na história.” (FREIRE, [1992],
2008, p. 100).
Percebemos o quanto Freire e Piaget se aproximam nessa ideia de
que nada, inclusive o desenvolvimento moral, está determinado. Tudo que
vivemos e pensamos é fruto daquilo que, ao longo da vida, mediante as
relações que vivemos, vamos construindo. Podemos pensar essa dinâmica
de construção da moralidade enquanto sujeitos, mas também enquanto
sociedade. Nossa sociedade também se encontra em processo de
desenvolvimento.
Freire, tal como Piaget que rejeita empirismo e apriorismo, rejeita
a posição mecanicista e idealista; em contraste a ela, propõe a
conscientização como possibilidade de transformação da realidade, não
acha que se esperem as condições materiais adequadas da sociedade para
que a educação, enquanto ação cultural para a liberdade, ocorra. Apenas
uma compreensão dinâmica da relação consciência e mundo pode perceber
a introjeção do opressor pelo oprimido, a dificuldade, devido às condições
a que estão submetidos, de se localizar nessa relação.
Conforme Freire ([1996], 2016), um dos saberes relevantes à
prática educativa crítica é que o docente, por causa de sua formação,
reconheça que “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
157
possibilidades para a sua produção ou a sua construção.” (FREIRE,
[1996], 2016, p. 24). Portanto, mesmo sendo diferentes, educador e
educandos participam de uma relação dentro da prática educativa em que,
ao mesmo tempo, quem ensina aprende e quem aprende ensina. E, nesse
sentido, a relação é uma experiência com diversos aspectos: política,
pedagógica, gnosiológica, estética e ética, que se faz bonita, à medida que
é decente e séria.
Viver ativamente as experiências morais é fundamental para a
construção das noções morais. As experiências morais não podem ser
ensinadas, no sentido da transmissão, porque elas são aprendidas, à medida
que são vivenciadas. É por isso que não adianta o professor ter regras bem
definidas, expostas em belos cartazes, ou receitas de como intervir em
conflitos. A fim de que as experiências morais possam acontecer
verdadeiramente, todos, professores e alunos, devem aproveitar os espaços
e tempos da escola, todas as vivências de construção de conhecimento, para
vivências de construção democrática das regras, para discutir pontos de
vistas, para falar sobre os sentimentos, para pensar soluções para os
problemas etc.
Todavia, a escola muitas vezes está tão preocupada com a sua
“disciplina” que não percebe a necessidade das vivências de cooperação,
reciprocidade e democracia. A disciplina da escola, geralmente, é aquela
forma de se comportar que é rígida e opressora, que impõe o silêncio e a
aceitação das regras, mesmo das mais arbitrárias, sem nenhuma
possibilidade de questionamento. Mas, ao invés de instrumentalizar os
alunos para a vida, dando a eles a oportunidade de questionar e de
transformar, essa disciplina os amordaça e mantém suas mentes
aprisionadas. Longe da educação para a liberdade, é vivida a educação para
o conformismo.
158
A educação, enquanto prática da liberdade, é uma educação que se
dá numa relação horizontal, em que educando e educador são polos
importantes da relação, em que os saberes e valores de ambos são
importantes e em que a autoridade não é mais questão de dominação.
Opondo-se à educação antidialógica a que estamos acostumados,
Freire propõe o diálogo como caminho para a liberdade, um caminho de
amor, de comunhão, de esperança, de coragem, de criticidade, de
engajamento:
O antidiálogo que implica numa relação vertical de A sobre B, é o
oposto de tudo isso. É desamoroso. É acrítico e não gera criticidade,
exatamente porque desamoroso. Não é humilde. É desesperançoso.
Arrogante. Auto-suficiente. No antidiálogo quebra-se aquela relação de
“simpatia” entre seus pólos, que caracteriza o diálogo. Por tudo isso, o
antidiálogo não comunica. Faz comunicados. (FREIRE, [1967], 2007,
p. 116).
A relação dialógica é aquela que entende os sujeitos das relações
como iguais, capazes de refletir e de trocar pontos de vista. Contrapõem-
se, em termos de educação, ao que Paulo Freire chamou de “educação
bancária”, aquela em que se “deposita” no outro aquilo que se tem como
verdade, aquela educação autoritária, a qual não considera o saber do
educando e vê o educador numa posição de dono do conhecimento. A
educação em que Paulo Freire acredita, no entanto, é dialógica e
libertadora, porque, nela, educador e educando vivem relações igualitárias,
de respeito mútuo, em que ambos podem ensinar e aprender, podem
transformar sua realidade.
De acordo com Freire, o diálogo, enquanto palavra e não silêncio,
traduz-se em uma práxis e, portanto, é uma forma de transformar o
159
mundo. A palavra fora da ação e da reflexão se torna sem sentido, um
verbalismo oco ou um ativismo. Dizer sua palavra é direito de todos e não
apenas de alguns.
“O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo,
para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu.”
(FREIRE, [1970], 2011, p. 109). O diálogo é um encontro que dá
significado ao ser mulher e homem, em que o agir e o pensar se
solidarizam, buscando um mundo mais humanizado, de sorte que não
cabe dentro das relações de coação, autoritárias e violentas.
No diálogo, encontram-se sujeitos diferentes com ideias diferentes,
portanto, o diálogo exige respeito entre aqueles que nele se encontram. A
ética se faz presente nesse ato e o não respeitar, o discriminar, requer que
nos posicionemos contra, que lutemos a favor do respeito e contra a
discriminação.
Destacamos que as relações que se estabelecem na educação podem
ser as relações entre educador e educandos, como as relações entre os
próprios educandos. Aa relações entre os educandos constituem-se
essenciais no processo de aprendizagem. Nelas é ainda mais evidente a
constituição de relações cooperativas, diagicas, de respeito mútuo.
A educação deve se pautar em uma relação dialógica, na qual a fé
nos homens e mulheres, o amor, a humildade, a esperança e o pensar
possam ser as características principais, a fim de que educador e educando
se eduquem mutuamente, conscientizem-se e se sintam capazes e
motivados a engajar-se na luta pela liberdade, pelas formas mais humanas
da realidade. Na educação, como na ação política, devemos pensar
criticamente o conteúdo desse diálogo.
Freire acredita, assim como Piaget, em uma educação que pense
em relações mais democráticas, dialógicas, em que possa haver trocas de
160
ideias entre os alunos e entre alunos e professores. “O diálogo entre
professores e alunos não os torna iguais, mas marca a posição democrática
entre eles ou elas.” (FREIRE, [1992], 2008, p. 117). É um diálogo que
não nivele e não reduza os sujeitos; diálogo que “[i]mplica, ao contrário,
um respeito fundamental dos sujeitos nele engajados, que o autoritarismo
rompe ou não permite que se constitua.” (FREIRE, [1992], 2008, p. 118).
Para Freire, o diálogo não pode ser espontaneísta, convertendo-se em bate-
papo, e tão pouco deve se fazer disfarce para as relações autoritárias de
imposição.
Para uma educação democrática, que vise à autonomia, é
importante ensinar e aprender a escutar, e transformar o discurso em uma
fala com o outro. Quando se acredita em um futuro determinado, que as
coisas são porque são e que não é possível a mudança, a educação não é
problematizadora e pressupõe a transmissão de conteúdos e só. Mas, se,
pelo contrário, o amanhã é visto como possibilidade, a formação integral é
exigência e o falar de cima para baixo não tem valor, é o “falar com” que
possibilita a democratização, a formação integral, que capacita para intervir
no mundo.
Escutar o outro e, a partir disso, aprender a falar com ele não
significa apenas ouvi-lo, no sentido da audição, mas estar aberto a escutar
sua fala, seus gestos, suas ideias, suas diferenças e suas opções, uma escuta
disponível e sem preconceitos, na qual não se precisa e nem deve ser mais
ou menos que o outro, em que é possível discordar, porém, é preciso
compreender. Assim, a escuta exige virtudes, como a amorosidade, o
respeito, a tolerância e a generosidade, que são construídas nas relações
democráticas. Não podemos admitir que nessa relação um saiba mais que
o outro, que um imponha a verdade a outro; tendo em vista que ele não a
tenha, a relação de humildade de reconhecer a verdade presente na
161
experiência e na ideia do outro é que faz que a educação aconteça,
enquanto formação.
Quando tratamos da escuta, que encontramos descrita de forma
tão peculiar em Freire, nos remetemos ao respeito mútuo, como assinala
Piaget. Respeitar mutuamente o outro exige a escuta, a escuta que acolhe.
Acolhimento não quer dizer aceitar a verdade do outro como sua, mas
compreender que as ideias podem ser diferentes, que cada um tem seus
valores e princípios e que as ações e julgamentos do outro dependem, não
do que você vive ou pensa, mas do que ele vive e pensa. Acolhimento
significa abrir espaço para que se instaure o diálogo, que não existe fora do
respeito mútuo.
Escutar e dialogar, ações fundamentais à educação, exigem do
educador disponibilidade, abertura respeitosa para com o outro. O sujeito
que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação
dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como
inconclusão em permanente movimento na história.” (FREIRE, [1996],
2016, p. 133). É fundamental, à prática pedagógica, que o educador esteja
aberto a compreender a realidade dos educandos, diminuindo a distância
entre eles. Abrir-se à realidade negadora e desumana, em que muitas vezes
se encontram, movimenta a possibilidade de intervir no mundo de ambos.
A abertura cabe ao fato de querer bem aos educandos, de não
separar a seriedade docente da afetividade; é uma disponibilidade à alegria
de viver, de acreditar que é possível vencer os obstáculos que impedem o
“Ser Mais”, crer na educação como experiência capaz de desenvolver a
autonomia.
A seriedade e a autoridade docente não estão colocadas em dúvida,
quando abordamos a abertura do professor em relação às questões morais
dos e com os alunos. É preciso saber separar a autoridade, construída pelo
162
respeito, do autoritarismo, tanto quanto é preciso ser coerente, de sorte
que não se vá de um extremo ao outro, chegando à passividade.
Na perspectiva da escuta e do diálogo, há um encontro muito
grande entre as perspectivas de educação de Freire e Piaget, pois, para
ambos, o desenvolvimento moral, a construção da autonomia, somente
pode acontecer nessa proposta cooperativa, em que predomina o respeito
mútuo, em que a moral do bem se constrói como uma necessidade dentro
das relações. O trabalho em grupo ou o self government, citados por Piaget,
possuem os mesmos princípios dos círculos de cultura ou do diálogo
citados por Freire.
Esses princípios que encontramos no self-government e nos círculos
de cultura perpassam a solidariedade, a cooperação, a reciprocidade, o
respeito mútuo e a democracia. O interessante é que essas ações educativas
contribuem para o desenvolvimento individual e coletivo, ao mesmo
tempo. São promotores de uma disciplina interna que se coordena com a
convivência boa. Como descreve Piaget (1998, p. 126), “[...] é fonte de
disciplina interior e de solidariedade”.
É nessa perspectiva que, nas experiências das escolas democráticas,
podemos observar, de modo mais evidente, as crianças comprometidas
com seus ideais e responsabilidades, mas ao mesmo tempo agindo em
comunhão com os colegas e prezando pelo bem-estar comum. Também as
relações delas com os adultos são diferentes; saem com maior facilidade da
total dependência dos direcionamentos dos adultos e conseguem assumir
mais responsabilidades e tomar decisões, todavia, prezam pela boa
convivência nessas escolhas, por uma convivência mais justa.
Em Menin e Bataglia (2017), vemos que a justiça, enquanto valor
essencial à convivência democrática, deve se fazer presente nas relações
educativas. As autoras, ao abordarem a adesão a esse valor, na educação,
163
citam algumas escolas democráticas, inclusive no Brasil, em especial
Escolas Integrais e algumas escolas no município de São Paulo e Região
Metropolitana, que vivenciam essa experiência.
5
A educação só pode se dar entre sujeitos, educador e educandos,
que aprendem e ensinam ambos, em uma relação de construção e não de
“depósito”:
A prática educativa implica ainda processos, técnicas, fins, expectativas,
desejos, frustrações, a tensão permanente entre prática e teoria, entre
liberdade e autoridade, cuja exacerbação, não importa de qual delas,
não pode ser aceita numa perspectiva democrática, avessa tanto ao
autoritarismo quanto à licenciosidade. (FREIRE, [1992] 2008, p. 109-
110).
Quando há exacerbação da autoridade, que se prolonga em
autoritarismo, o educador se torna “dono” do saber e da forma de ensiná-
lo, manipula o conteúdo e os educandos. Por outro lado, se há exacerbada
licenciosidade, não há um fazer pedagógico, de fato. A proposta é a
democratização dos conteúdos e das relações.
De acordo com Freire, a relação entre autoridade e liberdade é
essencial à prática educativa. Autoritarismo e licenciosidade são rupturas
dessa relação e levam a situações que negam a condição de ser maisdo
ser humano. “Somente nas práticas em que autoridade e liberdade se
afirmam e se preservam enquanto elas mesmas, portanto, no respeito
5
Podemos citar, como exemplo, as escolas Amorim Lima e Politeia (uma da rede pública e uma da
rede privada), ambas em São Paulo, que vivenciam propostas diferentes de educação democrática.
Conhecemos pessoalmente essas experiências, em projeto de visita a escolas democráticas junto aos
professores da UNESP, Adrian O. Dongo-Montoya, Patrícia U. R. Bataglia e Alessandra de Morais,
e destacamos os resultados positivos que essas escolas alcançam, em termos de desenvolvimento
moral dos alunos e professores, logrando uma formação mais crítica, justa e democrática.
164
mútuo, é que se pode falar de práticas disciplinadas como também em
práticas favoráveis à vocação do Ser Mais.” (FREIRE, [1996], 2016, p. 86).
Apesar de a nossa história social e cultural fazer pesar sobre nós as práticas
autoritárias e licenciosas, devemos experimentar equilibrar autoridade e
liberdade, em nossas vivências, avaliando-as e reformando-as, fazendo viver
experiências dialógicas, traduzidas em um ideal comum de respeito. Como
professores, independentemente do conteúdo que estamos trabalhando,
somos mais democráticos ou mais autoritários?
A autoridade docente precisa ser exercida com segurança, o que só
é possível se há competência profissional, intimamente ligada com sua
formação e com seu esforço em estar preparado para exercer sua tarefa. É
necessário, para que a autoridade e a liberdade sejam presentes na prática
docente, que haja generosidade. Agindo com generosidade e humildade,
não com arrogância e humilhações, o respeito valida o caráter formador da
relação.
Conforme Freire, a prática docente democrática de autoridade e
liberdade permite a criatividade do educando e a construção de uma
disciplina verdadeira: não de uma postura silenciada, mas de uma
inquietação curiosa, vivida na ética que prevê a liberdade e o risco da
escolha. Nesse sentido se constrói a autonomia, pautada na liberdade e na
responsabilidade.
Toda liberdade implica limites, pois, sem eles, ela se transforma em
licenciosidade. Contudo, como, a partir de uma opção democrática,
possibilitar que a necessidade do limite seja assumida de forma ética pela
liberdade? A liberdade se desenvolve ao confrontar-se com outras
liberdades, no exercício das escolhas, de assumir a responsabilidade das
decisões. “A autonomia vai se constituindo na experiência de várias,
inúmeras decisões que vão sendo tomadas.” (FREIRE, [1996], 2016, p.
105) “É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar
165
centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade,
vale dizer, em experiências respeitosas de liberdade.” (FREIRE, [1996],
2016, p. 105).
A relação entre autoridade e liberdade é outro ponto importante
de aproximação entre as teorias de Freire e Piaget. Para esses autores, a
autoridade é relevante, dentro do processo de desenvolvimento moral,
desde que não seja confundida com o autoritarismo. É essencial que o
sujeito construa sua própria disciplina, interna, como os autores defendem,
o que só ocorrerá nas vivências coletivas, nas quais as liberdades se chocam
e precisam se respeitar, onde as necessidades de respeito e de dever partem
da necessidade própria da vida social.
De acordo com Freire, a nossa educabilidade, enquanto seres
humanos, está diretamente relacionada ao fato de que somos seres
inacabados e possuímos a capacidade de aprender, não de receber
passivamente conhecimentos, mas de construí-los em uma relação
dinâmica com o mundo e com os outros. O educador assume papel
importante, nessa tarefa de formar, de intervir no processo de ensino e
aprendizagem, firmando uma relação, com o educando, em que ambos
aprendem e ensinam, que em nada pode ser neutra: a educação é um ato
político. Ao professor cabe um papel fundamental de possibilitar que o
educando apreenda o objeto do conhecimento, engaje-se na busca do
conhecimento e na transformação da realidade opressora. Ressalta Freire
([1996], 2016, p. 68-69):
Se trabalho com crianças, devo estar atento à dicil passagem ou
caminhada da heteronomia para a autonomia, atento à reponsabilidade
de minha presença que tanto pode ser auxiliadora como pode virar
perturbadora da busca inquieta dos educandos; se trabalho com jovens
e adultos, não menos atento devo estar com relação a que o meu
166
trabalho possa significar como estímulo ou não à ruptura necessária
com algo defeituosamente assentado à espera de superação.
No entanto, no auxílio dessa passagem ou dessa ruptura, não se
pode esquecer que é preciso respeitar o educando, mesmo que as opções
do educador sejam apresentadas, pois, como educador, não lhe cabe a
neutralidade: é preciso compreender que o educando tem direito de rejeitar
essa opção. Enquanto educador, cabe instigar a comparação de pontos de
vista, a possibilidade de escolha e de decisão, o direito de romper.
Tanto Freire como Piaget não são neutros e não acreditam que seja
possível ou importante ser neutro, na educação. A educação é, em si, um
ato político, não admite neutralidade.
Atualmente, discute-se muito o que pode e o que não pode ser dito
ou vivido na escola. Guardadas as devidas situações extremas, em que o
bom senso e o respeito são esquecidos, qual é, de fato, o papel da escola,
senão possibilitar o diálogo, a reflexão crítica e a troca de pontos de vistas?
Sobre quais conteúdos? Sobre aqueles que se constituem fonte de saber e
de desenvolvimento humano.
Constatar o mundo não deve ser apenas para adaptar-se a ele,
resignar-se; constatar o mundo deve levar-nos à busca de compreen-lo
e, se necessário, modificá-lo. Por isso, estudar não deve ser apenas estudar,
é preciso problematizar. Em favor de que estudo? Contra o que estudo?
Como estamos sendo?
O educador democrático deve prezar pela criticidade, curiosidade
e insubmissão do educando, e deve ele, educador, igualmente ser assim. É
função do educador não somente ensinar conteúdos, mas ensinar a pensar
certo. Pensar certo significa aprofundar-se na compreensão, poder revisar
aquilo que se sabe e ter a possibilidade e o direito de mudar de opinião,
167
por isso, não existe pensar certo afastado dos princípios éticos. Para isso,
ele precisa não estar demasiadamente certo de suas certezas, contudo, cheio
de um pensamento rigorosamente ético e gerador de boniteza, distante de
um pensamento arrogante. Ensinar a pensar só é possível dentro da
curiosidade e da criticidade; isso se dá na pesquisa.
De acordo com Freire ([1996], 2016), para ensinar a pensar certo,
é necessário respeitar os saberes dos educandos, principalmente os das
classes populares, e discutir o porquê desses saberes. A passagem da
ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente: há uma
superação da curiosidade ingênua pela curiosidade crítica, e a educação
tem papel importante no desenvolvimento dessa curiosidade. E esse
desenvolvimento da curiosidade deve acontecer solidariamente à formação
ética e estética:
Estar longe ou, pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é
uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa
em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de
fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter
formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos
conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando.
Educar é substantivamente formar. (FREIRE, [1996], 2016, p. 34-35).
A prática do professor que se propõe a ensinar a pensar certo deve
ser coerente com o seu discurso. Não há como dizer-se progressista, falar
de transformação, de respeito, de criticidade, se cultiva, com o educando,
uma relação acomodada, que não se refaz, que está presa aos próprios
conhecimentos e que não promove reflexão. Igualmente, a formação ética
exige que o educador assuma uma postura ética.
168
A prática pedagógica crítica, que fundamenta o pensar certo, exige
um fazer e um pensar sobre o fazer, ou seja, uma reflexão crítica sobre a
própria prática, a qual transforma a curiosidade ingênua em curiosidade
epistemológica e crítica do sujeito. Nesse sentido, Freire ([1996], 2016)
salienta que a formação permanente de professores deve estar pautada na
reflexão da própria prática docente, pois é nesse exercício de olhar para sua
ação e refleti-la, compreendendo as razões de ser da própria ação, que o
professor pode avaliar, repensar, decidir, mudar. Na formação docente,
deve-se ter em vista o valor dos sentimentos, das emoções, da segurança,
da afetividade. Freire insiste que a ética e a estética são indispensáveis ao
pensar certo e não devem ser ignoradas, na formação dos professores.
Formar moralmente, assim como formar intelectualmente, exige
do educador muitas habilidades e competências. Na prática educativa,
pensar as relações e resolver conflitos pela reciprocidade, respeito mútuo e
cooperação, elaborar regras e tomar decisões conscientes e críticas, dentre
outras ações e pensamentos morais, demandam muito preparo e dedicação
do professor. Ainda mais se considerarmos que a maioria de nós,
educadores, não fomos educados em ambientes sociomorais cooperativos,
pelo contrário, vivemos a educação coercitiva. Por conseguinte, o professor
precisa vivenciar, em sua formação inicial e continuada, relações diferentes,
mais autônomas. Frente à prática, é preciso pensá-la e repensá-la, tomar
consciência dos caminhos percorridos, conscientizar-se, buscar novas
formas de fazer.
Acreditamos, diante das análises realizadas neste estudo, que pensar
as próprias ações, as já vividas e as que se estão vivendo, seja uma forma
muito coerente para encontrar possibilidades de transformação da prática.
Nunca tivemos nossos conflitos ou de nossos alunos resolvidos pela
reciprocidade? Pensemos, pois, no porquê desses conflitos, como poderiam
ter sido resolvidos, as consequências dos modos de resolvê-los.
169
Encontremos novos caminhos para as situações que costumeiramente se
repetem.
A certeza de que ensinar não é transferir conhecimento deve ser
presente na formação e na prática do educador, deve ser dita e
testemunhada, pois, quando entra em uma relação educativa, o professor,
da mesma forma que o aluno, deve ser curioso, crítico e questionador. É
essa coerência entre a teoria e a prática, seja no que concerne ao pensar
crítico, seja quanto à vivência da democracia, que torna a prática
pedagógica verdadeira e significativa, transformadora, que vence o caráter
de extensão e se faz prática para a liberdade.
O ser humano é sempre um ser inacabado, o qual, consciente disso,
vai, ao longo da história, fazendo e refazendo a si e ao mundo em que vive,
construindo sua linguagem, seus objetos, suas atividades etc. A mulher e o
homem são capazes de tornar o mundo, com suas ações, mais bonito ou
mais feio. Tendo a possibilidade de fazer escolhas, de criar, de mudar, de
decidir, o ser humano pode agir com decência, com honestidade, com
dignidade, com respeito, com o bem, ou, ao contrário, indecente,
desonesto, com indignidade, com desrespeito, com o mal. E é por isso que
devemos acreditar na intervenção formadora, essencialmente ética, da
educação, pois não está certo que agiremos pelo bem ou pelo mal, não está
certo que seremos mentirosos, injustos e desrespeitosos: estamos em
construção, individual e coletiva.
Ao professor cabe o bom-senso que o fará, frente às situações do
dia a dia com os educandos, ser coerente e encontrar o equilíbrio entre a
autoridade e a liberdade. Dessa maneira, será capaz de se assumir no
processo educativo não como aquele que impõe suas vontades e seus
conhecimentos, mas como aquele que sabe indagar, que desperta a
curiosidade, a criatividade e a criticidade. Poderá se posicionar, de forma
ética, nas relações e em suas posturas em face dos conteúdos e da realidade
170
do mundo, da realidade dos educandos e de suas famílias. Não será
indiferente ou pouco crítico frente aos desafios.
Ele também deve avaliar constantemente sua prática pedagógica,
para que se diminua a distância entre a teoria e a prática, para que se
construam virtudes e qualidades que garantam a coerência e o respeito. Por
sua função formadora, o professor assume uma responsabilidade ética; ele
é visto e avaliado sempre por seus alunos, sua postura respeitosa e amável
ou desrespeitosa e agressiva sempre deixa “marcas” em seus educandos.
Coerência na prática pedagógica, inclusive, diz respeito à luta por
melhores condições de trabalho aos professores e por uma educação de
qualidade, entendendo que a qualidade não significa bons resultados nas
avaliações.
A curiosidade movimenta a formação, movimenta em favor do ser
mais do sujeito. Quando se promove e valoriza a curiosidade dos
educandos, conjuntamente, o educador vive a sua própria curiosidade:
O bom clima pedagógico-democrático é o em que o educando vai
aprendendo, à custa de sua prática mesma, que sua curiosidade, como
sua liberdade, deve estar sujeita a limites, mas em permanente
exercício. Limites eticamente assumidos por ele. Minha curiosidade
não tem o direito de invadir a privacidade do outro e expô-la aos
demais. (FREIRE, [1996], 2016, p. 82).
Ao contrário da curiosidade domesticada, que memoriza, aceita
sem questionar e torna passivo o sujeito, a curiosidade crítica possibilita a
verdadeira aprendizagem, a construção de conhecimento, pois abre espaço
para a pergunta, para a reflexão, para a atividade.
171
Freire tem uma posição interessante para pensar a ação pedagógica
do professor, asseverando que pensar uma prática pedagógica que permita
a curiosidade crítica, que seja dialógica, não significa que o professor não
possa falar sobre o objeto do conhecimento, contudo, situa essa fala, não
como uma palestra para um auditório, como uma fala inquestionável que
deve ser introduzida e não refletida, mas que a fala, seja do professor, seja
do aluno, deve estar aberta ao diálogo e à curiosidade, que esse espaço de
explicação seja prioritariamente um espaço de perguntas e de diálogo. Para
isso, o professor precisa trazer o aluno para a intimidade do movimento de
seu pensamento; é preciso desenvolver a curiosidade espontânea para a
curiosidade epistemológica.
Segundo Freire, assim como para Piaget, não é possível separar o
ensino dos conteúdos da formação ética, e a esse respeito não é possível
separar o discurso da prática; a experiência educativa deve, de fato,
contemplar o respeito mútuo, a curiosidade, a pergunta, a criatividade, a
autonomia. A aproximação entre educandos, e entre educador e educando,
é certa na relação educativa: mais certo é que, nessa aproximação, o
educador tem uma função política, a qual não pode ser neutra, devendo
apresentar coerência entre o que se diz e o que se faz.
A educação é uma forma de intervir no mundo, por isso não pode
ser neutra. O professor deve estar a favor da decência, da liberdade, da
autoridade, da democracia, da luta contra a discriminação e a dominação,
da esperança, contra a ordem capitalista injusta, que joga na miséria uma
grande parte da população, a favor da boniteza e da ética. A educação deve
ser, para além dos conteúdos, como formação do sujeito humano,
formação que só é possível na coerência entre a teoria e a prática.
Ensinar é um modo de assumir sua autonomia, pois ensinar é
tomar decisões, assumir responsabilidades, considerar o outro, seus saberes
172
e valores, tomar consciência do seu papel, agir em função da
transformação.
Notamos, portanto, que além de os fins da educação que propõe
Freire e Piaget serem os mesmos, os autores concordam sobre os
procedimentos necessários para que essa educação se concretize. Piaget e
Freire não concebem a educação como uma forma de fazer aceitar a regra
do outro e resignar-se perante ele. Para eles, a educação tem uma função
muito mais ampla e significativa, porque ela deve transformar o homem, a
mulher e o mundo, ela deve levá-los a respeitar a si, aos outros e ao mundo,
ela considera o bem como fim a ser vivido por todos.
173
Conclusões
Jean Piaget e Paulo Freire preocuparam-se, cada um em seu tempo,
em seu espaço e com métodos diferentes, em formular uma teoria que
explicasse como o sujeito constrói o conhecimento, enquanto capacidade
de conhecer e não somente enquanto conteúdo. O êxito nesse intuito foi
amplo e, mesmo que o objetivo principal e o enfoque tenham sido
diferentes, constituem duas teorias de grande consistência e significado
para diversas áreas, em especial, para a educação.
Nosso objetivo principal foi verificar quais são as aproximações
possíveis entre as teorias de Jean Piaget e Paulo Freire, no que se refere a
aspectos do desenvolvimento moral, e analisar quais as implicações dessas
aproximações para a teoria e a prática educativa. E, diante de todos os
dados já apresentados, expomos agora nossos resultados.
Reafirmamos em nossos resultados que a ação é aspecto central na
teoria de ambos os autores no que concerne as suas epistemologias. Para
Freire e Piaget o conhecimento trata-se de uma construção ativa, que se dá
na interação sujeito-meio. Tomada de consciência e conscientização são
processos em que a ação tem papel fundamental; partindo da ação prática,
a consciência evolui, progressivamente, de forma ativa, podendo chegar a
uma consciência crítica e engajada com a transformação da realidade.
A moral, para Piaget e Freire, desenvolve-se, igualmente, nessa
perspectiva ativa da relação entre ação e consciência. Nessa relação, o
respeito que o sujeito estabelece com as pessoas é essencial para que a regra
moral seja considerada efetiva e coerente, e deva ser respeitada. Mas, as
174
formas de se relacionar das pessoas podem ser distintas e levar a formas
diferentes de respeito e, logo, de moral. Nas relações de coação, prevalece
o respeito unilateral, que leva a uma moral heterônoma. Nas relações de
cooperação, prevalece o respeito mútuo, que leva à autonomia. A
autonomia moral, ou moral do bem, equilíbrio ideal para onde deve tender
o desenvolvimento moral tanto em Freire como em Piaget, é aquela em
que o sujeito guia-se pelos seus próprios princípios e valores, sendo capaz
de fazer escolhas, assumir responsabilidades e estabelecer regras que possam
ser aplicadas a todos. Verificamos, ainda, que a conscientização, como
propõe Freire, é permeada por sentimentos e valores morais, que
impulsionam o sujeito a, para além da consciência crítica, engajar-se na
ação por uma transformação da realidade.
Diante de tais aproximações, a educação deve considerar que o
desenvolvimento do sujeito engloba não somente construções cognitivas,
mas também morais, imbricadas de tal forma que é impossível sepa-las.
Assim, as propostas devem sempre considerar que o respeito mútuo e a
reciprocidade sejam vividos para que a consciência possa reconstruí-los. A
educação moral que se pauta em experiências ativas de aprendizagem em
que se estabele relações sociais qualitativamente boas, por serem baseadas
no respeito tuo, na reciprocidade, na cooperação, no diálogo e na
democracia é aquela que pode ser abstraída das teorias de Freire e Piaget.
Ampliaremos, agora, a discussão dos resultados inserindo nossas
considerações e levantando questões de âmbitos mais gerais que surgem
dessa discussão.
Como notamos, a epistemologia que embasa as teorias de Piaget e
Freire atribui à ação do sujeito um papel importantíssimo o sujeito age
no mundo para conhe-lo, compreendê-lo e transformá-lo. A ação, tanto
prática como interiorizada, é de fundamental importância para que o
sujeito construa conhecimento. Não é de uma ação mecânica ou
175
reprodutora que tratam Piaget e Freire, mas de uma ação inventiva,
problematizadora, a qual faz com que homens e mulheres estejam
envolvidos no processo de conhecer. A relação entre a ação e a consciência
é essencial para tais teorias, inclusive no que concerne à moral.
Em ambos os autores, observamos que é a partir da ação prática da
cooperação, nas relações em que predomina o respeito mútuo, que os
sujeitos tomam consciência das leis de reciprocidade e, compreendendo-se
como iguais, passam a pensar e a agir, com base na solidariedade, na justiça,
na generosidade e em outros valores altruístas. Piaget coloca as experiências
de relações de respeito mútuo e de cooperação como essenciais para a
superação da heteronomia, ou seja, da aceitação passiva das regras, fruto
do respeito unilateral; assim, o sujeito é capaz de pensar e agir moralmente,
guiado pela autonomia, a moral do bem e não do dever. Freire insiste sobre
a importância da vivência das relações dialógicas, as quais são permeadas
pelo respeito mútuo e pela cooperação, para que mulheres e homens saiam
da condição de oprimidos, de silenciados, se percebam em sua condição de
“Ser mais”, sem ter que para isso diminuir o outro, e assumam uma postura
crítica e coerente, permeada pela justiça e pela solidariedade.
Quer para Piaget, quer para Freire, a coação exercida nas relações
desiguais, daquele que é considerado “superior” (em idade e/ou em poder)
com aquele que se considera inferior, interfere na organização e
reorganização da sua consciência em favor da reciprocidade, necessária à
autonomia. Piaget alude às dificuldades enfrentadas no processo de tomada
de consciência das tendências à afeição recíproca, causadas pela coação em
conjunto com o egocentrismo infantil. Em Freire, vemos a insistência
sobre a barreira causada pela opressão, concebida como uma forma de
coação, no desenvolvimento dos homens e mulheres, para que assumam
uma posição mais autônoma e libertadora. Freire não trata do
egocentrismo nos moldes como o aborda Piaget, afinal, fala de adultos,
176
porém, ao descrever mulheres e homens em situação de opressão, vemos
claramente, por suas palavras, que são sujeitos que ainda não são capazes
de se descentrar, de olhar para as situações de perspectivas diferentes e de
se colocar, intelectual e moralmente, no lugar do outro.
Freire traz para a sua teoria o conceito de conscientização, o qual
amplia a questão da tomada de consciência, com a inserção do
engajamento. A conscientização implica uma consciência que se coloca em
prol da luta, da transformação da realidade opressora. Olhando para a
questão da tomada de consciência em cada uma das teorias e também sobre
a conscientização, compreendemos que, mais do querer encontrar entre
elas uma igualdade de níveis ou uma hierarquização, devemos procurar sua
essência, isto é, em ambas, partindo da ação, o sujeito caminha, não de
maneira mágica, mas por progressivas reconstruções, da ação à
conceituação, em favor de uma transformação da sua maneira de pensar e
de se posicionar.
E, isso, está diretamente ligado à moral. A moral, mais do que um
sistema de regras, para Piaget e também para Freire, diz respeito à forma
como homens e mulheres estabelecem relações com essas regras e com as
pessoas que criam, transmitem ou vivenciam, junto a eles, tais regras. A
moral não pode ser transmitida e não é inata: ela é construída a partir das
relações sociais entre os sujeitos. No desenvolvimento moral, assim como
no desenvolvimento intelectual, o sujeito passa por progressivas tomadas
de consciência, vivendo níveis diferentes de consciência.
A importância atribuída às relações sociais é uma grandiosa
aproximação que encontramos, nas teorias de Piaget e Freire. É nas relações
sociais que o sujeito instaurará o respeito pelo outro e, então, pelas regras.
Ambos concordam que existem dois tipos diferentes de relações, que
conduzem a dois tipos diferentes de respeito. De acordo com Piaget, há as
relações de coação e as relações de cooperação, que levam respectivamente
177
ao respeito unilateral e ao respeito mútuo. Freire contrapõe as relações
opressoras às relações dialógicas; as primeiras são aquelas que fazem com
que o sujeito respeite o outro, em condição de desigualdade, pela
autoridade (enquanto autoritarismo) que exerce, pelo medo, pela
submissão ou por uma admiração diante de alguém que ele vê como
superior e que nunca poderá alcançar, já as segundas são aquelas em que o
respeito se firma porque o sujeito reconhece nesse outro um semelhante,
com quem pode realizar trocas.
As relações de coação e de opressão culminam, diretamente, no
respeito unilateral, pois conduzem a um respeito em que há uma
desigualdade entre quem respeita e quem é respeitado, em que um exerce
poder sobre o outro, não possibilitando outra coisa que não seja a
imposição sem questionamento das verdades e das regras que lhe são
favoráveis. Inversamente, as relações de cooperação e as relações dialógicas
alcançam o respeito mútuo, pois são permeadas pela reciprocidade, que,
de forma desinteressada, eleva ambos os sujeitos de uma relação à mesma
posição, como iguais, ensejando a troca de pontos de vista e a vivência de
valores sociomorais voltados para o bem individual e coletivo.
De modo explícito, em Piaget e inserida na essência da teoria em
Freire, a moral é parte fundamental da constituição humana e interfere
no posicionamento dos homens e mulheres com o mundo e com o outro.
Estamos, portanto, diante de mais uma das aproximações. Existem dois
tipos de moral, fortemente ligadas às duas formas de respeito. A
predominância do respeito unilateral permite a vivência da moral da
heteronomia, a qual, tanto em Piaget como em Freire, é aquela em que o
sujeito aceita as regras sem uma compreensão verdadeira de seus princípios,
como algo externo, imposto por alguém. Não é possível refletir ou
questionar, é preciso cumprir estritamente essas regras, e o seu não
cumprimento é passível de punições severas. Por outro lado, e nesse ponto
178
se encontra o ideal moral, seja em Piaget, seja em Freire, a predominância
do respeito mútuo nas relações permite que mulheres e homens reflitam
acerca das regras, busquem seus princípios, analisem se elas são boas para
todos. Essa autonomia moral, vivenciada antes na ação e depois na
consciência, propicia a análise das consequências das decisões tomadas,
inserindo nessa análise o outro como igual. Somente na autonomia moral
homens e mulheres serão capazes de se posicionar de forma altruísta, e agir
em função da transformação das relações de opressão, da saída da violência,
em busca de um mundo melhor para todos, de um mundo mais humano.
Acreditamos que a conscientização extrapola, profundamente, os
aspectos cognitivos, porque ela é permeada por princípios morais. Como
se engajar ativamente na luta pela transformação social, em prol de uma
sociedade mais justa e mais humana, se não pensarmos e sentirmos a
reciprocidade e o respeito mútuo?
Sabemos que Piaget se dedicou ao estudo das crianças e
adolescentes, pois lhe interessava, principalmente, saber como ocorre o
desenvolvimento cognitivo humano. Contudo, a despeito de sustentar que
a heteronomia antecede a autonomia moral, ele não colocou a autonomia
como uma certeza, mas como um equilíbrio ideal para onde deve tender o
desenvolvimento. Freire se dedicou a compreender as relações entre os
adultos e discutiu a predominância das relações opressoras e da forma
heterônoma de lidar com situações morais. Tudo isso nos direciona o olhar
para o fato de que a autonomia é uma conquista almejada, quando o fim
é a moral do bem, mas que não necessariamente tem sido atingida por
todos, em nossa sociedade. Basta olharmos para nossas próprias relações e
para a nossa sociedade e nos questionarmos: quais são os princípios e os
valores morais que temos vivenciado, prioritariamente? E como podemos
passar dessa moral da heteronomia para a moral da autonomia? Eis aí outro
ponto em que Piaget e Freire concordam. Não são os discursos morais que
179
possibilitarão esse desenvolvimento, porém, a prática efetiva das relações
de cooperação e de reciprocidade, em que predomina o respeito mútuo,
que provocarão desequilíbrios morais nos quais a consciência poderá se
aprofundar. A tomada de consciência das leis de reciprocidade necessária
ao desenvolvimento da moral do bem necessita do fortalecimento das
relações solidárias, de cooperação e respeito mútuo.
Tanto Freire como Piaget apontam a educação como uma
possibilidade dessas relações de cooperação e respeito mútuo se
estabelecerem. A educação assume, nessa perspectiva, um formato que
ultrapassa o da formação intelectual e que vislumbra a formação mais
humana, meninos e meninas, ou homens e mulheres, capazes de pensar
intelectualmente e moralmente, de maneira coordenada.
Contrária à educação bancária, “conteudista”, que predomina em
nossa sociedade há anos, a educação transformadora, que busca o “Ser
maisda nossa condição humana, fundamenta-se em princípios ativos e
baseia-se em valores como o respeito, a justiça, a liberdade, o amor, a
democracia, a solidariedade, entre outros. Nesse sentido, podemos pensar
em uma prática efetiva de trabalhos em grupo, de autogoverno e de
diálogo. Essa prática pode ser concretizada de diversas maneiras, não com
atividades isoladas, mas com uma rotina diária de vivências cujos
princípios sejam o respeito mútuo e a cooperação. Rodas de conversa,
resolução de conflitos pelo diálogo, construção coletiva das regras, dentre
outros, são exemplos de situações que podem compor essa rotina.
Freire insistiu sobre a importância do diálogo, nas relações
educativas. E o diálogo nada mais é do que a possibilidade de descentrar-
se e de trocar pontos de vista de forma respeitosa e amorosa, como também
insistiu Piaget sobre as relações desejáveis para o desenvolvimento.
Propostas como, por exemplo, os trabalhos em grupos e os círculos de
cultura atingem plenamente os princípios de troca e de respeito necessários
180
à educação moral. Os princípios que norteiam a educação moral devem ter
como essência o respeito mútuo e a cooperação, a favor da reciprocidade.
Essa educação deve priorizar as vivências nas quais o sujeito é convidado a
refletir, a se colocar no lugar do outro, a falar sobre os sentimentos, a se
autorregular, a exercer a democracia e a agir moralmente.
Quando Piaget cita o self government como uma possibilidade de
educação que se volta para a formação moral, fundamenta-se no princípio
da convivência democrática, que favorece a gestão democrática da sala de
aula, em que educador e educandos dividem a responsabilidade de pensar
regras, de prezar pela convivência, de resolver conflitos e de estabelecer
trocas de ideias e de sentimentos. A democracia, que Freire tanto afirmou
ser fundamental para o desenvolvimento da autonomia e para uma
vivência em sociedade mais justa, pode ser experimentada em sala de aula.
É pensando na vida em sociedade, para além dos muros da escola, que
precisamos oferecer para as crianças, jovens e adultos a experiência da
educação democrática, em um ambiente sociomoral que conduza à
autonomia.
O educador, nessa perspectiva, assume um papel diferente daquele
que estamos acostumados a encontrar. Não menos importante, porém,
menos soberano, o educador tem um papel articulador. É ele que,
intencionalmente, pensará formas para que as situações reais de cooperação
e de democracia se estabeleçam, nas atividades diárias de ensino e
aprendizagem, mesmo que o foco seja um outro conteúdo, fazendo
questionamentos capazes de levar o outro a pensar e sentir moralmente. É
ele que se posicionará como sujeito de uma relação de troca e de construção
de conhecimento. Enquanto educadores, somos convidados, por essa
proposta, a cultivar a coerência entre a teoria e a prática, a tomar
consciência de nossas próprias ações e transfor-las.
181
No Brasil, infelizmente, ainda temos poucas experiências efetivas
de escolas democráticas. A nossa sociedade vem, predominantemente,
reproduzindo o mesmo modelo de escola, há anos. A escola que mais
conhecemos, aquela que frequentamos enquanto alunos e na qual atuamos
enquanto educadores, ainda vive presa à ideia de que o professor é detentor
de um conhecimento superior e de que está em suas mãos passá-lo aos
alunos; esses, por sua vez, estão lá para isso: para receber o conhecimento
digerido, engessado, definido. É forte a crença de que a disciplina se traduz
em uma sala de aula silenciosa, em que os alunos copiam o conteúdo, não
fazem perguntas (já que supostamente estão aprendendo), não entram em
conflitos e atingem notas altas nas avaliações. É forte também a ideia da
educação voltada para o aspecto intelectual, que negligencia ou camufla a
importância da educação moral, para formar sujeitos que, mais do que
discutir e verificar objetivamente as coisas, sejam capazes de colocar-se no
lugar do outro, em sentimento. Algumas vezes, o discurso camufla a
prática: na teoria, temos uma educação para a autonomia, e, na prática, a
plena vivência da heteronomia.
Acreditamos que não é com o propósito de errar que educadores se
propõem a reproduzir essa escola. Até porque nos formamos nela e aqui
estamos “bem”, não é mesmo? Esse pensamento de que a escola tem
cumprido seu papel é muito comum, consciente ou inconscientemente.
Talvez nos falte refletirmos mais sobre qual é, de fato, a espécie de
consciência que a nossa escola está formando.
Não podemos generalizar, no entanto, em nossa sociedade, a
maioria das pessoas corruptas e desumanas, capazes de enganar e de
violentar o outro, mas revestidas de uma capacidade intelectual primorosa,
foram formadas pela nossa escola brasileira. O que faltou a elas, em termos
de educação?
182
Em nossas escolas estão os futuros professores, médicos,
advogados, políticos, veterinários, comerciantes, pedreiros, funcionários
públicos, cozinheiros, eletricistas, padeiros, enfim, todas as pessoas que
farão com que a sociedade continue a funcionar. Todavia, é de pessoas
cheias de conteúdos e vazias de humanidade, de princípios e valores que
precisamos?
Não acreditamos que a escola deva deixar de tratar dos conteúdos
e de desenvolver a capacidade cognitiva. Aliás, com base nos estudos de
Piaget e Freire, pensamos que é preciso transformar o modo como se faz
isso, para que, de fato, se alcance a autonomia intelectual, para além da
reprodução dos conteúdos prontos e das ideias do outro. Mas, enxergamos
que Freire e Piaget dizem claramente a educação que é fundamental, que
ampliemos a atuação da escola para uma formação moral de qualidade; que
formemos pessoas humanas, que se consideram como iguais, que
conduzam de forma justa e democrática a sociedade.
Uma mente intelectualmente desenvolvida, capaz de coordenar
pontos de vista, que pensa de forma reversível e descentrada, pode avaliar
uma situação moral e encontrar a melhor resposta para ela ou, pelo menos,
buscá-la, porque é intelectualmente que ela está fazendo isso. Ela pode,
igualmente, utilizar-se do melhor discurso para enganar e fazer acreditar
que sua ação é em prol do bem. Isso não significa, definitivamente, que ela
seja autonomamente moral. A moral exige, na verdade, um colocar-se no
lugar do outro e coordenar pontos de vista, voltando todo o tempo à
reflexão do que é bom para o individual e para o coletivo, porém, ela é, em
sua essência, constituída pelo respeito, isto é, ela exige uma capacidade de
pensar combinada aos valores e sentimentos.
É disso que Freire e Piaget tratam! Da necessidade de uma
autonomia que não desconsidere o outro, que se ponha a favor de uma
183
sociedade justa e solidária. É por uma sociedade que dialoga, não apenas
que se comunica, que Freire e Piaget se posicionaram.
Não acreditamos que seja possível separar, em termos de educação,
os aspectos intelectuais e os morais. Afinal, nas relações de aprendizagem
os sujeitos estão construindo conhecimento e se desenvolvendo
moralmente ao mesmo tempo. Mas, o que percebemos é que a escola está,
de fato, preocupada com os conteúdos que desenvolvam cognitivamente,
ignorando ou deixando em segundo plano (como se fosse possível) a
intencionalidade de promover o desenvolvimento moral.
Quando olhamos para a nossa sociedade atual, o que encontramos?
Uma sociedade mais globalizada e mais tecnológica, sem barreiras, em que
é possível alcançar o outro lado do mundo em fração de segundos. Uma
sociedade rápida e “eficiente”, na qual todos parecem estar próximos uns
dos outros. Por outro lado, vemos também uma sociedade de guerras, de
disputas, competitiva, avassaladora, tão rápida e gananciosa que não tem
parado muito para pensar e para sentir moralmente.
Quais são os valores morais que estão sendo vividos pela nossa
sociedade? Qual é a moral que a escola tem ajudado a desenvolver?
Piaget e Freire referiram-se, o tempo todo, a uma educação de
qualidade. E qual é essa qualidade? Hoje, vemos a escola brasileira lutar
pelas notas altas e pelas aprovações em avaliações internas e externas. O
ranking das melhores escolas e universidades traz uma quantificação dos
melhores resultados, ou seja, aquelas que conseguiram melhor atingir o
conteúdo e reproduzi-lo fielmente. Todavia, elas também conseguiram
formar pessoas mais capazes de olhar para si próprias e para o outro e
pensar no que podemos fazer com todo esse conhecimento, a fim de que
todos nós possamos usufruir de uma sociedade melhor?
184
Piaget e Freire fazem uma crítica à forma como a escola
tradicionalmente conduz a educação, ressaltando que, mesmo no que
concerne às questões intelectuais, a escola preocupa-se que o sujeito tenha
contato com os conteúdos e exercite esses conhecimentos, embora eles não
assumam significado e caiam, inevitavelmente, no esquecimento. Até os
exercícios que a escola propõe não contribuem para uma interpretação
ativa, por parte do sujeito, eles se baseiam no verbal e na escrita, enquanto
reprodução.
Se, para a educação intelectual, o caminho é pensar situações que
promovam o pensamento, que incitem a reflexão, que priorizem a ação, na
educação moral não será diferente. A autonomia moral, assim como a
autonomia intelectual, exige ação e reflexão por parte do próprio sujeito, o
qual precisa vivenciar ações morais reais, experiências de convivência, com
todos os elementos fáceis e difíceis que as envolvem. Na vida, de maneira
geral, e na escola, especificamente, é preciso viver em sociedade, mas não
em uma sociedade passiva. A vida social é necessária, pois sozinho ninguém
toma consciência da reciprocidade; e essa consciência é essencial, para que
se ultrapasse a heteronomia, a qual, mesmo importante enquanto uma
primeira forma de dever em relação às regras, não nos possibilita pensar
moralmente por nós mesmos; a cooperação e o respeito mútuo serão,
assim, a espécie de relação em que poderemos chegar à moral do bem.
Nunca foi nossa pretensão esgotar a temática abordada nesta
pesquisa, reconhecemos o quão ampla ela é e sabemos que merece mais
estudos. Além do aprofundamento das questões conceituais e das
especificidades da educação, é relevante que estudos futuros ampliem a
discussão da relação entre as teorias de Freire e Piaget e outras áreas do
conhecimento, como as neurociências ou a linguagem, por exemplo. Aqui,
os nossos resultados nos permitem alcançar aquele que foi nosso primeiro
intuito: iniciar uma discussão e reflexão sobre a temática da moral, sob a
185
ótica de dois autores, os quais formularam teorias consistentes que
fundamentam o discurso ou a prática de educadores brasileiros. É para
pensarmos cada vez mais sobre a nossa teoria e prática educativa e em como
transformá-la que insistimos em compreender tema tão atual e de extrema
importância para a transformação da nossa sociedade.
É por uma sociedade em que o valor não seja o do ter mais ou do
poder mais, em detrimento do outro, mas que se estabeleça a
reciprocidade, o respeito, a solidariedade, a justiça, a democracia e outros
valores altruístas, que Piaget e Freire pensaram uma educação para a
autonomia moral.
186
187
A mudança do mundo implica a dialetização entre
a denúncia da situação desumanizante e o anúncio
de sua superação, no fundo, o nosso sonho [...]
Mudar é difícil, mas é possível.
(FREIRE, [1996], 2016, p. 77).
Então, realizemos na escola um meio tal que a
experimentação individual e a reflexão em comum se
chamem uma à outra e se equilibrem.
(PIAGET, [1932], 1994, p.300)
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SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Lívia Pereira Mendes
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
JEAN PIAGET
E
PAULO FREIRE
respeito mútuo, autonomia moral e educação
JEAN PIAGET E PAULO FREIRE: respeito mútuo, autonomia moral e educação
Sabrina Sacoman Campos Alves
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 396/2021
Processo Nº 23038.005686/2021-36
Alves