Como construir uma História de Vida?
O que posso utilizar para compor a his-
tória? Como analisar as narrativas do
participante? Como apresentar ao leitor
a redação nal da História de Vida?
Inspirados pelas experiências da autora
Anabel Moriña, este livro contempla as
principais dúvidas e anseios de pesqui-
sadores que desejam explorar a emocio-
nante jornada de (re)construir histórias e
evidenciar vozes, especialmente daque-
les que as têm silenciadas pela sociedade,
por meio de uma escuta atenta, sensível,
cientíca.
Com esta nalidade, os autores contam
com a impactante história de Beatriz que
ao sofrer uma brutal agressão depara-se
com a cegueira aos 28 anos de idade. O
leitor poderá acompanhar e se emocio-
nar com esta construção, conhecer os
papeis exercidos em que pesquisadores
e participante mantém uma postura de
igualdade, colaboração mútua, respeito
e proximidade, o que faz desse método
essencial para a explicitação de trajetórias
de lutas e enfrentamentos.
HISTÓRIA DE VIDA EM PESQUISAS QUALITATIVAS:
Alves e Silva
o caso Beatriz
Neste livro, o leitor conhecerá o passo a passo para utilizar o método
História de Vida em pesquisas qualitativas. De forma clara e objetiva,
os autores expõem exemplos práticos de cada instrumento que compõe
o método e para além, a análise que melhor corresponde a este tipo de
coleta e o formato nal do texto editado em tese, dissertação ou outros.
Tendo em consideração as dúvidas que emergem no momento de co-
letar, analisar e escrever a história de vida e constatando escassa litera-
tura na área, trata-se de um guia que reúne todas as etapas e percalços
que o futuro pesquisador poderá encontrar no processo.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 396/2021
Processo 23038.005686/2021-36
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HISTÓRIA DE VIDA EM PESQUISAS QUALITATIVAS:
o caso de Beatriz
Ana Paula Ribeiro Alves
Nilson Rogério da Silva
Ana Paula Ribeiro Alves
Nilson Rogério da Silva
HISTÓRIA DE VIDA EM PESQUISAS QUALITATIVAS:
o caso de Beatriz
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Graziela Zambão Abdian
Patrícia Unger Raphael Bataglia
Pedro Angelo Pagni
Rodrigo Pelloso Gelamo
Maria do Rosário Longo Mortatti
Jáima Pinheiro Oliveira
Eduardo José Manzini
Cláudia Regina Mosca Giroto
Auxílio Nº 0396/2021, Processo Nº 23038,005686/2021-36, Programa PROEX/CAPES
Capa: Canva (uso gratuito) -
https://www.canva.com/design/DAFBjSp7mhw/FGFGX8oHNm1E8TZda_0VZQ/edit?ui=eyJEIjp7IkIiOiJNQUZCalVrVn
VvZyJ9fQ
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Alves, Ana Paula Ribeiro.
A474h História de vida em pesquisas qualitativas: o caso de Beatriz / Ana Paula Ribeiro Alves,
Nilson Rogério da Silva. Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica,
2022.
179 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-300-7 (Digital)
ISBN 978-65-5954-299-4 (Impresso)
DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-300-7
1. Pesquisa qualitativa. 2. Metodologia. 3. Entrevistas. I. Nilson Rogério da Silva.
II. Título.
CDD 001.42
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Copyright © 2022, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
SUMÁRIO
Prefácio | Lúcia Pereira Leite
...
...........................................................7
Apresentação.......................................................................................9
Introdução........................................................................................11
1 A Construção da História de Vida...................................................17
2 A Escolha da Participante...............................................................27
3 Entrevistas em Profundidade..........................................................31
4 Os Instrumentos............................................................................49
5 Análise Narrativa............................................................................63
6 A História de Vida de Beatriz..........................................................83
Conclusão.......................................................................................173
Referências......................................................................................175
Sobre os autores..............................................................................177
7
Prefácio
A ciência tem buscado formas para melhor conhecer o humano, de
maneira que abranja a riqueza dos seus comportamentos e de sua
subjetividade. Métodos diversos têm sido empregados para o intento, uma
vez que se pretende melhorar as condições de vida em sociedade. Tais
tentativas ocorrem tanto na esfera individual como nos processos sociais e
tem como foco a árdua missão da construção de uma sociedade plural e
generalista, que tenha como seus alicerces o respeito e o acolhimento aos
diferentes modos de pensar e agir num convívio comum, buscando
legitimar a cidadania de todos.
Estudos de natureza qualitativa despontam-se no cenário e ganham
novos formatos nas investigações do campo das Ciências Humanas e
Sociais para que se possa chegar mais perto desse compromisso.
Ilumina-se à História de Vida, que tem se configurado como um
robusto procedimento metodológico para possibilitar aos pesquisadores o
conhecer com profundidade a trajetória de vidas de modo bastante
singular. Com isso, tem-se a possibilidade do compartilhamento de
vivências carregadas de idiossincrasias, permitindo a aquele que pesquisa,
num intenso mergulho conjunto, investigar e desvelar com propriedade as
narrativas que datam e marcam a subjetividade humana dos participantes.
Em outros termos, propicia apreender nos discursos proferidos o
movimento humano de modo particular na sua intensidade. Lançar mão
de tal procedimento possibilita identificar e analisar esses processos sociais.
A leitura deste livro surpreende, uma vez que provoca uma mistura
de pensamentos, angústias, respiros e reflexões. Nas páginas que seguem,
os autores trazem a riqueza das narrativas de Beatriz, mulher que
abruptamente se torna cega aos 28 anos. Da data em diante,
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-300-7.p7-8
8
atravessamentos ocorrem na sua vida, implicando em consideráveis
mudanças nas mais diversas esferas.
Como falar de deficiência e suas implicações num contexto
marcado de estigmas e preconceitos? A vida pode ser interrompida e vivida
de outra forma, como se morrêssemos e nascemos novamente numa
mesma pessoa? O rompimento de quem era, com seus amigos, seu
trabalho, sua relação com à família, com seus sonhos e medos deixam de
existir ou passam a se configurar de outro modo? É possível ter uma nova
identidade?
Tais questões, e muitas outras, são trazidas em detalhe, permitindo
o leitor atuar como espectador de uma vida repleta de movimentos
singulares que implicam no cotidiano das pessoas com deficiência,
possibilitando observar que, mesmo após a promulgação de uma série de
normas e políticas tidas como inclusivas, fica evidente como ainda falta
muito para que possamos sair de uma postura em que pouco respeitamos
corpos e comportamentos tidos como diferentes.
O livro nos apresenta uma postura ética e cuidadosa daquele que
conduz a pesquisa, com a preocupação devida de garantir uma escuta
atenta. Por meio da apresentação de questões, possibilita ao participante a
oportunidade de revisitar acontecimentos e, igualmente, de pensar ações
futuras, deslocando o olhar de si para o contexto mais amplo durante os
momentos dialógicos.
Reunidas nas páginas que seguem, é possível encontrar
informações sobre os passos procedimentais na utilização da História de
Vida e de seus instrumentos adjacentes, que, no caso tratado, trazem uma
digressão do que se constitui o vir a ser uma pessoa cega, que necessita
trilhar uma nova constituição humana num universo tão desafiador.
Lúcia Pereira Leite
9
Apresentação
Já no estudo de mestrado, concluído no ano de 2018 (ALVES,
2018) o método História de Vida despertava grande interesse e de fato, foi
o caminho metodológico escolhido e percorrido com algumas
dificuldades, mas também com ricas aprendizagens. O método História de
Vida realizado na época com dois participantes com deficiência intelectual
sofreu ajustes metodológicos que considerassem as especificidades dos
mesmos e teve como inspiração Rosana Glat que no ano de 1989 o utilizou
com mulheres com deficiência intelectual que falaram sobre suas vidas em
uma época em que não era comum ouvirem suas vozes (GLAT, 2009).
Desde então, o interesse pelo método não diminuiu, antes, aumentou na
medida em que evoluiu também o conhecimento sobre outros autores que
o utilizaram de diferentes formas, destacando entre eles, Anabel Moriña
(MORIÑA, 2016).
História de Vida é um método com a profundidade necessária para
a compreensão dos conflitos humanos, especialmente daqueles que são
silenciados permanecendo à margem da sociedade, no entanto, a riqueza
desse método e a diversidade de instrumentos que podem ser utilizados
para a composição da história de vida é pouco conhecida, o que gera
dúvidas acerca de sua realização, validade e cientificidade. Tendo em vista
esta preocupação, ainda no início do curso de doutorado cursei a disciplina
intitulada “TÓPICOS ESPECIAIS: Investigar com histórias de vida em
estúdios com personas com colectivos vulnerableministrada pela professora
Anabel Moriña, da Espanha, ocorrida na UNESP/Marília no segundo
semestre de 2019.
10
Anabel possui experiência e amplo conhecimento sobre as
diferentes possibilidades do método. Suas publicações divulgadas na
Espanha, onde reside, na área de Educação Especial tornaram-se referência
para esse estudo abrindo novos caminhos e novo olhar para utilização na
coleta de doutorado, originando o texto que deu vida a esse livro, cujo
objetivo é auxiliar pesquisadores que queiram se apropriar e
aprofundarem-se por meio da escuta de histórias de vidas humanas.
Partindo desse pressuposto, o que propomos neste estudo é uma
das diferentes formas de pesquisa com esse método para além do modelo
padrão difundido, com instrumentos diversificados detalhadamente aqui
exemplificados. Antes, se faz necessário uma sucinta apresentação sobre o
método História de Vida em pesquisa qualitativa que se torna um campo
promissor para aplicação.
11
Introdução
A abordagem qualitativa faz emergir a relevância e materialidade
da palavra do indivíduo, autor de suas vivências, memórias e identidade,
tornando-se uma potente ferramenta capaz de entrar no universo da
identidade, significações, saberes práticos e cotidianos que permeiam as
relações, o que permite a identificação e reconstrução pessoal e cultural de
tais vivências (BOLIVAR; DOMINGO, 2006).
Os autores acrescentam ainda que mediante a linguagem é que se
dá a devida relevância à dimensão discursiva da individualidade, forma
como a pessoa humana vivencia e significa acontecimentos de sua vida.
Nesse sentido, ao contar suas próprias vivências enquanto pessoa com
deficiência que vive em determinada sociedade, cultura e tempo, que
trabalha, enfrenta e ajusta-se aos padrões, permite que sejam interpretadas
e (re)significadas, se constituindo em perspectiva peculiar e promissora de
investigação. De acordo com Bolivar e Domingo (2006) isto inclui a
subjetividade como condição necessária ao conhecimento social que por
meio de um diálogo consigo mesmo e também com o interlocutor, busca
a construção de novas compreensões e significações acerca da realidade,
para além daquelas impostas e óbvias, ampliando o eu narrativo e
dialógico para a natureza relacional e comunitária.
Isto implica em conhecer como a pessoa de determinado grupo que
teve sua voz silenciada pelos padrões dominantes, comporta-se, reage e vive
dentro das normas sociais para ela construídas. Nesta perspectiva cria-se o
que Bolivar e Domingo (2006) denominaram retrato cultural em que por
12
meio dos relatos subjetivos de uma pessoa (representante de um grupo)
reflete-se sobre vivências, conflitos, valores e cotidiano. Pode ser utilizado,
nessa vertente, inclusive relatos de outros informantes que comporão uma
polifonia de vozes, enriquecendo o conhecimento e a compreensão acerca
da realidade apresentada.
Nesse estudo adotou-se como princípio a pesquisa qualitativa
pautada na narrativa pessoal por meio do método História de Vida em que
se pretendeu valorizar e incluir a subjetividade de uma pessoa com
deficiência que vivencia situações de estigma na sociedade. Moriña (2018
[1911]) elenca as seis principais características deste tipo de pesquisa, sendo
a primeira, a prioridade dada à escuta das vozes de pessoas que comumente
as têm silenciadas e excluídas do discurso científico. Ressalta-se que essa
voz assume um papel protagonista na pesquisa, uma vez que não se fala ou
pesquisa sobre ela, mas se fala e pesquisa com ela. O participante tem o
direito de ser ouvido ao contar experiências por ele vividas com suas
próprias palavras de acordo com as suas percepções e ter a sua voz
protagonizando o discurso acadêmico.
A segunda característica se dá no papel da subjetividade,
reconhecida e valorizada na compreensão da realidade a partir das
experiências da pessoa que narra sua vida. O pesquisador precisa ser fiel ao
significado que o participante confere à sua vida, sendo visto como
testemunha especializada da história relatada, constituindo-se como via de
acesso para que outros a conheçam e interpretem de acordo com a
subjetividade de cada leitor (MORIÑA, 2017). Nessa vertente, o papel do
pesquisador é consideravelmente repensado para que de fato inclua a
subjetividade e entenda as experiências e situações que lhe são contadas sob
outro ponto de vista. Dessa forma, o participante não se reduz a apenas
um objeto de estudo, desaparecendo em sua pessoalidade. Antes, esse
participante tem vida, voz e participação que são reconhecidas e
13
valorizadas. Diante disto, sua narrativa poderá ser colocada no texto
acadêmico em primeira pessoa, ressaltando que não estamos falando por
eles.
A escuta atenta àquele que durante muito tempo teve seu discurso
desconsiderado pretende garantir e valorizar a subjetividade do
participante e requer um tipo de análise que contemple tais escolhas, o que
remete à terceira característica do método História de Vida: a análise
narrativa dos dados. Faz-se necessário, segundo Moriña (2018 [1911])
contemplar as narrativas em sua totalidade, sem fragmentá-las, uma vez
que a análise produz histórias e busca aspectos singulares de uma vida,
revelando sua natureza única. No entanto, é importante destacar que a
subjetividade do participante não será a única presente, uma vez que a dos
pesquisadores estará inevitavelmente incorporada na interpretação e
análise realizada, conforme será detalhada em tópico posterior.
Dando continuidade, chegamos à quarta característica que se
relaciona ao papel do narrador como participante ativo e não apenas objeto
do estudo. Esse tipo de relação construída entre participante e pesquisador
coloca ambos em novos papéis pouco vivenciados em pesquisas científicas:
o primeiro assume o protagonismo e tem sua narrativa valorizada como
capaz de provocar mudanças sociais e o segundo perde a tradicional
posição de poder de quem toma sozinho a decisão de como conduzir as
entrevistas e análises causando uma mudança na forma como a produção
de conhecimento é entendida. Desta forma, pesquisador e narrador são
colocados em posição de igualdade ao intervirem juntos no estudo,
explicitando a aceitação social quando o narrador passa de objeto à
participante ativo em uma relação dinâmica de constantes aprendizagens e
transformações entre ambos (MORIÑA, 2018 [1911]).
Nota-se até aqui o caráter democrático desse tipo de pesquisa o que
nos conduz à quinta característica do método: a dimensão emancipatória
14
em que se busca capacitar o participante a atuar na pesquisa. A
intencionalidade está para além da mera descrição e interpretação do
mundo, busca provocar transformações sociais por meio do método
narrativo trazendo a voz que antes habitava o silêncio para atuar como
agente de transformação social e pessoal. Essa estrutura de entrevista pode
causar desconforto ao repensar papéis e concomitantemente garantir que
ambas as partes se sintam confortáveis e próximas o bastante para que
compartilhem crenças, vivências, vulnerabilidades (MORINÃ, 2017;
2018 [1911]).
Nessa perspectiva o pesquisador é um canal para que compartilhem
suas habilidades e aptidões tendo em vista a capacitação do participante
para também atuar e contribuir em todo o processo desde a coleta até a
disposição final do trabalho, promovendo seu empoderamento na
pesquisa. O pesquisador assume ainda uma posição de empatia por meio
de uma escuta respeitosa diante da capacidade do participante em explorar
e determinar seus limites e possibilidades (MORIÑA, 2017). Ao assumir
um novo papel e nova forma de fazer pesquisa desvencilha-se do
tradicional em que se constituía em um intérprete especialista, distante e
imparcial. Ao ser transformado o papel do pesquisador, transforma-se
ainda, por conseguinte, o papel do participante e que pode como
consequência transformar contextos à sua volta desencadeando o processo
emancipatório ao questionar papéis em toda a sociedade (MORIÑA, 2018
[1911]).
Diante das cinco características expostas acima é pertinente
destacar a sexta que se constitui em elemento chave de tudo o que foi
exposto até aqui: a ética em pesquisa. Segundo Moriña (2018 [1911]) a
ética é a parte vital e se refere à forma como devemos nos comportar em
relação à pessoa com quem estamos interagindo, preocupação essa que
deve permear todo o processo de desenvolvimento de uma pesquisa.
15
Especialmente em pesquisas que têm como base as narrativas, a
questão ética se torna complexa e envolve duas diferentes dimensões: a
ética processual e a ética prática (MORIÑA, 2018 [1911]). A primeira se
refere aos trâmites legais quando se trata de pesquisa com seres humanos,
ou seja, sobre o Comitê de Ética em Pesquisa, sendo necessária sua
aprovação antes de dar início à coleta. A segunda dimensão está relacionada
às tensões e conflitos éticos que surgem ao decorrer da pesquisa na
interação com o participante e estas podem ser diferentes em cada estudo,
fase e contexto. As questões mais comuns que podem emergir em pesquisas
com narrativas são a respeito do anonimato do participante e sobre as
informações escolhidas para publicação, visto que estas podem cumprir um
papel inverso de estigmatizá-lo ainda mais, o que obviamente é o oposto
do desejado.
Diante dessa síntese sobre o que é o método História de Vida nos
apropriamos e compartilhamos do pensamento de Anabel Moriña (2017;
2018 [1911]) que o define como um tipo de pesquisa mais alinhada com
modelos democráticos, emancipatórios e inclusivos e que possibilita um
maior envolvimento e proximidade com o participante ao não o
reconhecer como mero objeto a ser estudado, mas como uma pessoa com
voz ativa, protagonizando em todo o estudo. Dessa forma, trabalhar com
história de vida implica em não apenas descrever e interpretar, mas em
transformar realidades pessoais, sociais, humanas. No entanto, não se trata
de um caminho simples, sendo ainda mais desafiador quando questionado
em relação à cientificidade, objetividade e representatividade, o que leva o
pesquisador a se sentir “nadando contra a maré hegemônica” (MORIÑA,
2018 [1911], p. 11). Nessa perspectiva, explicitaremos nos próximos
tópicos os caminhos a que tal escolha metodológica levou, bem como as
dificuldades, desafios, rumos e conquistas.
16
17
1.
A Construção da História de Vida
O campo em que se tem utilizado o método História de Vida tem
sido cada vez mais amplo, abrangendo pesquisadores de diversas áreas de
conhecimento, no entanto, ainda dúvidas em relação às formas distintas
de realizá-lo, sendo importante o conhecimento do modelo adotado neste
estudo. Moriña (2017) pontua de forma esclarecedora a diferença entre
Relato de Vida (Life Story) e História de Vida (Life History) uma vez que
frequentemente confundem-se, o que leva a equívocos, inclusive, da
validade do método.
Segundo Moriña (2017) o Relato de Vida (Life Story) se constitui
em uma narrativa biográfica que uma pessoa faz de toda a sua vida ou parte
dela por meio de entrevistas pouco estruturadas com o intuito de captar
suas percepções, ou seja, a história de uma vida, da forma como a pessoa a
conta. O participante assume uma postura passiva quando narra sua vida,
mas não se envolve com o modo que essas informações serão tratadas e o
pesquisador se limita a estimular as narrativas e ouvi-las. Nesse modelo a
única fonte de informações é o relato do participante, que por sua vez é
publicado sem nenhuma edição, ou seja, sem correções ortográficas ou
outras conservando as características linguísticas do narrador da forma
como foi transcrita.
A História de Vida (Life History) por sua vez é mais abrangente e
inclui o relato de vida (Life Story) como um dos instrumentos para
reconstruir uma história sem, entretanto, limitar-se a ele. Trata-se de
18
reconstruir uma história da forma como ela é vivenciada (e não apenas
contada) e o relato do participante, a principal fonte de informações, pode
não ser apresentado ao leitor em sua forma literal de transcrição, mas após
edições que garantam uma leitura agradável e compreensível ao leitor sem,
contudo, alterar o sentido do que foi dito. Quando se fala em edições,
entendem-se como as correções ortográficas para a linguagem escrita e
contextualizações podendo incluir outros relatos que complementem
trechos de falas do participante e ainda uma nova organização de tudo o
que foi dito objetivando uma sequência e continuidade que, por vezes, se
perde na linguagem oral. Para (re)construir uma história se faz necessário,
portanto, utilizar-se de outras fontes para complementar e contextualizar
o relato apresentado, como por exemplo, provas documentais, dados
históricos, laudo médico, entrevista com outros informantes, fotografias,
textos, observações, dentre outros, com a intencionalidade de possibilitar
uma análise intertextual e intercontextual.
Na História de Vida (Life History) ocorre uma mudança nos papéis
desempenhados por participante e pesquisador. O primeiro passa de mero
narrador de sua vida para investigador, participando ativamente em todos
os processos da pesquisa, como exemplo, nas decisões de como será
apresentada sua história, quais informações serão publicadas ou não. O
segundo também sofre mudança quando para além de simplesmente
escutar e estimular a narrativa se coloca a serviço do participante
capacitando-o para atuação e se envolvendo com a construção textual e
contextual da pesquisa. Nessa perspectiva, a história de vida se constitui no
texto final que chega às mãos dos leitores com todos os processos de
reconstrução, edição e participação, sem, contudo, perder a validade desde
que seja claramente explicitado no método do estudo tudo o que foi
realizado.
19
É possível que o pesquisador e participante construam a história de
vida por meio de duas formas: toda a trajetória de vida desde o nascimento
ou pela história de vida temática em que se delimitam recortes da vida em
relação a um período ou tema de sua história que serão explorados a fundo,
sendo esta última realizada no presente estudo em que apresentaremos a
história de uma pessoa com deficiência no enfrentamento do estigma.
Seguimos então, aos passos para essa construção.
O primeiro passo foi a opção de como trabalhar com a narrativa
pessoal e o segundo de optar por uma única história de vida e em
profundidade, respectivamente nesta ordem (PUJADAS, 2000;
MORIÑA, 2017).
Pode-se compreender por narrativa a forma de usar a linguagem
ou outro sistema simbólico para interpretar os eventos da vida respeitando
a ordem temporal e lógica estabelecendo-se coerência entre passado,
presente e futuro. A narrativa é a representação que o participante faz de
sua vida em um dado momento e contexto permitindo aos pesquisadores
que a transforme em uma história de vida por meio de um tratamento
metodológico em que constrói um novo relato em trabalho conjunto com
o participante (PUJADAS, 2000).
Cabe ainda ao pesquisador estimular o participante em suas
narrativas, orientá-lo quando houver algum lapso de memória e manter o
direcionamento pelo tema de interesse. Não é apropriado que interrompa
a narrativa, antes se faz necessária sensibilidade diante daquilo que é
importante para o participante e que precisa ser dito e respeitosamente
escutado, mesmo que não publicado. No entanto, por vezes, desses relatos
não esperados e ininterruptos emergem temas que se tornam informações
valiosas e relevantes para a pesquisa.
20
Faz-se importante que as entrevistas sejam realizadas
preferencialmente na própria casa do participante, isto porque a memória
é o ponto central do narrador que pode reviver e revisitar experiências com
o auxílio de fotos, diários pessoais, vídeos, objetos, enfim, suportes de
apoio que o remetam a contextos e tempos diferentes e que o ajude a
compor sua história, sendo, portanto, imprescindível que sejam de fácil
acesso.
Pujadas (2000) sugere que para delineamento do trabalho, o
pesquisador crie quatro arquivos que garantam a exaustividade de cada
sessão de entrevista levando o mesmo a explorar, de forma abrangente,
cada aspecto da história narrada. São eles “Literal, Tetico, Cronológico
e por Pessoas”, isto implica que em cada entrevista, o relato será transcrito
e organizado nesses arquivos: primeiramente o registro literal das sessões
de entrevista que o pesquisador realiza com o participante; após, os
fragmentos referentes a cada título citado como temas emergidos -
temático; a ordem em que os fatos aconteceram - cronológico; e as pessoas
mencionadas pelo narrador, permitindo ao pesquisador perceber antes da
próxima entrevista, possíveis lapsos e descontinuidades que podem ser
supridos - pessoas.
Ao iniciar a nova entrevista o pesquisador deve revisitar com o
participante por meio de texto escrito ou trechos da transcrição os
principais aspectos abordados na conversa anterior, o que demonstra todo
o comprometimento e interesse com o que está sendo dito, além de
proporcionar ao participante conhecimento da forma escrita que seus
relatos têm adquirido, permitindo ainda comentar, corrigir ou acrescentar
algo se desejar.
É válido ressaltar que o participante assume uma postura de
coautor do trabalho construído, sendo ele a figura principal em todo o
processo. Ser coautor abrange entre outras coisas, ter direito de escolha da
21
própria imagem que está sendo construída por meio de seus relatos e que
será tornada pública. Assim, o participante precisa se reconhecer nas
transcrições de suas narrativas podendo não aceitar a forma literal de
transcrição com os comuns erros e vícios típicos da linguagem oral, mas
preferir que haja uma correção para as normas da língua escrita. Não
significa que o sentido e conteúdo do que disse se alterado de forma
alguma, mas apenas que há um cuidado ao respeitar o desejo do
participante de evitar exposição e o não reconhecimento ou
constrangimento daquilo que foi transcrito.
Além disso, o cuidado em não publicar o relato sem correções
prévias se deve ao fato de que se assim o fizéssemos poderíamos reproduzir
ainda mais o estigma em relação à pessoa com deficiência. Nesse sentido,
a transcrição literal armazenada em um dos quatro arquivos é para uso do
pesquisador e não será publicada sem antes passar por uma edição das
normas da língua escrita e da aprovação do coautor (PUJADAS, 2000).
O segundo passo adotado foi a escolha de trabalhar com uma única
história de vida, ou seja, com um único participante. A escolha se deve ao
fato de que com um único participante é possível dedicar tempo e
profundidade, inúmeras e detalhadas entrevistas até que se esgote o tema
de interesse e a história seja (re)construída, o que não é possível com muitos
participantes. Trata-se de um equívoco considerar que o critério
representatividade se dá pela quantidade de informantes e não pela
qualidade e profundidade do discurso em desenvolvimento.
Segundo Moriña (2018 [1911]) esse tipo de abordagem requer do
pesquisador e do participante que passem muito tempo juntos, no início
reunindo os dados e posteriormente discutindo os resultados, constituindo
em um processo lento, intenso e profundo de envolvimento e que
demanda vários encontros. Nessa perspectiva, se faz necessária a
sensibilidade do pesquisador para perceber os momentos de respeitar o
22
espaço pessoal do participante, como visitas médicas, trabalho, atividades
e problemas pessoais que o sobrecarregue e o impossibilite de estar presente
nos encontros programados, mesmo que resulte na extensão do processo
de realização e análises das entrevistas.
Diante do exposto, o recomendável é que a pesquisa se delineie
com amostras pequenas, constituindo-se em importante característica que
define a pesquisa com História de Vida. Um único caso ou no máximo
três participantes seria o desejável uma vez que, um número maior não
permitiria o aprofundamento necessário (MORINÃ, 2018 [1911];
PUJADAS, 2000). Ressalta-se que embora haja um único protagonista,
uma polifonia de vozes, ou seja, outros testemunhos que acompanham a
voz da protagonista do estudo.
Após o conhecimento do que é e como trabalhar com narrativas e
com uma única história, chegamos ao momento de construir a história de
vida” propriamente dita. Construir uma única história de vida está longe
de ser um processo simples, isso porque, se faz necessário encontrar um
participante que tenha a capacidade de elaborar um discurso coeso e em
profundidade sobre sua vida, fiel aos acontecimentos na medida do
possível (uma vez que depende da memória e própria interpretação dos
fatos) e crítico o bastante para que seja uma representação de todos aqueles
que enfrentam as mesmas circunstâncias. Dessa forma, é possível perceber
que a escolha do participante se torna o fator fundamental para o sucesso
da construção da história de vida, pois ele é a figura central do estudo e
dele dependerá todo o seu percurso, uma vez que, por mais hábil que sejam
os pesquisadores não podem “criar” uma história, sendo dependentes da
forma como ela é vivida e contada.
Isto não significa que pessoas com dificuldades de se expressarem
devam ser excluídas da pesquisa com narrativas, pois embora requeiram
mais estratégias e instrumentos que a auxiliem na composição de sua
23
história, como exemplo, o uso de fotografias, tempo prolongado,
intervenções, entre outras, podem reconstruir histórias que necessitem
ainda mais serem contadas e ouvidas (ALVES, 2018; MORIÑA, 2017).
Além da escolha de um participante que tenha o desejo de narrar
suas experiências, é preciso que o mesmo tenha disponibilidade de tempo
para as várias e exaustivas sessões de entrevistas que comporão sua história
de vida. Esse talvez seja um dos principais desafios do pesquisador, manter
o participante estimulado e envolvido o bastante para que não se enfade e
desista no meio do percurso, não perca a confiança em seu interlocutor,
mantendo-o próximo o bastante para sentir o desejo de confidenciar sua
vida. Há ainda entraves circunstanciais que podem emergir nesse percurso
e que independem do pesquisador e talvez do próprio participante
podendo interferir ou mesmo interromper todo o longo processo, mas isto
será detalhado adiante.
É importante ressaltar que a história de vida se constitui, portanto,
no texto final que chega às mãos do leitor, resultante de todas as edições e
extensos processos pelo qual passou a narrativa inicial com coautoria do
participante. É necessário que o leitor tenha conhecimento de que existem
outras formas de desenvolver o método como, por exemplo, o estilo com
micro histórias de vida, em que há vários participantes com histórias
paralelas ou cruzadas e as entrevistas são breves e realizadas em curto
período de tempo, contam com poucos instrumentos ou apenas o relato e
podem ser coletados por vários pesquisadores (PUJADAS, 2000;
MORIÑA, 2017). No entanto, nos ateremos neste livro apenas ao modelo
história de vida única e em profundidade, o que demanda tempo,
proximidade e instrumentos variados.
Ressalta-se que o processo percorrido para a edição da história de
vida envolveu classificar todas as informações em arquivos de ordem literal,
temática, cronológica e de pessoas; retomar sempre as transcrições antes da
24
próxima entrevista para que se identificasse qualquer lapso ou
descontinuidade; utilizar fotos, textos, objetos do participante para
compor o relato de sua história; compartilhar com o participante a forma
escrita que o trabalho está adquirindo de forma a obter seu consentimento,
crítica, correção ou sugestão; realizar ajustes na escrita dos relatos, mínimos
para que não comprometa o seu sentido e estilo, mas suficientes para não
constranger o participante na imagem pública que dará de si mesmo,
garantindo ao leitor a fluidez na leitura, segundo as sugestões de Pujadas
(2000) e Moriña (2017).
Na construção da história desse estudo em questão, houve uma
combinação de estratégias com ênfase no relato da participante baseada em
sua memória e interpretação da realidade e ainda relatos de familiar, cliente
e professor que contextualizaram/complementaram e reconstruíram os
fatos, assim como outros instrumentos, imprimindo diferentes
interpretações para a mesma situação, as quais serão explicitadas adiante.
Ao finalizar a história de vida, aos pesquisadores coube a função de
expressar suas interpretões subjetivas dos relatos narrados. Isto implica
em refletir sobre os sistemas e categorias que a sociedade constrói para
estigmatizar as pessoas com deficiência, sobre as formas de enfrentamento
da participante e que a coloca em uma posição de luta, muitas vezes,
solitária. A luta da participante em questão pode representar a de todas as
pessoas com deficiência estigmatizadas pela sociedade e oportunizar a
compreeno, reflexão e discussão sobre o estigma.
Antes de discutirmos o próximo tópico, é válido apresentar uma
síntese das principais escolhas que envolveram o delineamento do método
utilizado, ressaltando que estão no Quadro I, a seguir em itálico e
sublinhado.
25
Quadro I - Escolhas metodológicas
Tipos de Histórias
de Vidas:
Número de histórias:
Relatos Múltiplos (vários participantes)
Relato único
Profundidade da coleta dos dados:
Micro histórias de vida (com menos
instrumentos e entrevistas em curto período)
História de vida em profundidade
Alcance:
História de vida completa (toda a trajetória
desde o nascimento)
História de vida Temática (enfoque no estigma)
Fonte: Da autora, baseado em Moriña (2017).
26
27
2.
A Escolha da Participante
Para fim de contextualização ao leitor, será apresentada nesse
capítulo a participante que ilustrará a aplicação do método, assim como o
porquê do tema abordado. O interesse por falar sobre o tema estigma
surgiu a partir do estudo de mestrado (ALVES, 2018) em que se
identificou a importância do trabalho para o desenvolvimento humano dos
participantes da pesquisa, duas pessoas com deficiência intelectual.
Constatou-se que o trabalho contribuiu para a diferenciação de suas
trajetórias, as quais contrariaram o que comumente a sociedade espera de
pessoas em suas condições, ou seja, a incapacidade laboral. No entanto, foi
possível identificar diversas situações em que o trabalho também
contribuía para sua estigmatização no ambiente laboral, bem como
identificar a presença de estratégias que aqueles participantes utilizavam no
enfrentamento dessas questões, assunto que não pôde ser contemplado
devido ao objeto de estudo definido para o mestrado.
Findado o estudo de mestrado, a temática trabalho continuou se
constituindo em critério importante para a pesquisa de doutorado, uma
vez que, esse ambiente pode facilitar a propagação de estigmas construídos
acerca das capacidades da pessoa com deficiência, sendo, portanto, de
interesse conhecer estratégias utilizadas quando se depara com a realidade
construída por outros acerca de sua identidade (GOFFMAN, 2008).
Segundo Goffman (2008) a pessoa com deficiência busca formas de lidar
com o estigma, podendo se retrair e aceitar passivamente cumprindo o
papel que dela se espera ou enfrentar de forma até mesmo agressiva,
provocando reações a este posicionamento. No ambiente de trabalho em
decorrência das relações face a face revela-se a construção social a respeito
28
de sua identidade e a oportunidade de (re)construir a sua verdadeira
identidade.
O foco foi em estratégias de enfrentamento criadas ou propiciadas
no e pelo trabalho, no entanto, não foi desconsiderado o contexto de vida
dessa participante, suas experiências anteriores ao trabalho, deficiência e
maneira como vivencia o estigma, experiência essa, que certamente a
constituiu e contribuiu com a forma como se posiciona no presente,
portanto, importantes para a compreensão sobre quem é essa pessoa.
Diante do exposto, os critérios que nos levaram a escolha da
participante foram: ser uma pessoa com deficiência, independentemente
se congênita ou adquirida e que desenvolvesse alguma atividade de
trabalho. Além disso, buscávamos uma participante com disponibilidade e
interesse em manter uma participação ativa, por um longo período e por
vezes, exaustiva. Dessa forma, trata-se de uma amostra de conveniência em
que a participante envolvida não foi aleatoriamente escolhida, mas
intencionalmente selecionada de forma que atendesse ao objetivo e
critérios do estudo. O conhecimento da história da participante escolhida
aconteceu por meio de uma amizade em comum que a mencionou como
possível candidata a atender o interesse do estudo.
Tivemos uma única participante, como explicitado anteriormente,
uma mulher de 37 anos de idade, com cegueira adquirida aos 28 anos,
ficticiamente denominada Beatriz preservando sua real identidade. Beatriz
possui o ensino médio completo e cursos de profissionalização realizados
antes e após a deficiência. Atualmente trabalha como massoterapeuta,
profissão que escolheu após a deficiência.
Na primeira fase das entrevistas, Beatriz residia com os pais e
irmãs, além de uma tia muito próxima em casa ao lado da sua. Na segunda
fase (as fases serão esclarecidas mais adiante) Beatriz casou-se e mudou de
29
residência obtendo maior privacidade e conforto. Na nova residência,
adquiriu maior autonomia quando passou a cozinhar e cuidar da casa de
forma independente, uma vez fica sozinha durante o dia, o espaço físico
também atendeu melhor às suas necessidades quando obteve um cômodo
reservado e exclusivo para seus atendimentos às clientes.
Delimitou-se que a participante falaria sobre a sua vida adulta, no
trabalho, especialmente por compreendê-lo como o ambiente que mais
pode propagar o estigma, segundo Goffman (2008).
Antes de entrarmos no objeto de interesse do estudo que eram suas
vivências como pessoa com deficiência que lida com estigmas a seu
respeito, precisávamos compreender a vida como uma pessoa que não
lidava com estigmas, dificuldades, limitações advindas da deficiência. Sua
trajetória de vida foi marcada por um “antes e depois” e buscamos conhecer
o antes da deficiência para compreendermos o depois. Na primeira
entrevista, portanto, falamos sobre a vida como era vivida sem a
deficiência. A partir daí, iniciamos as conversas sobre um determinado
período da vida, a história de vida temática, como é vivenciada pela
participante.
Sem mais, é importante que o leitor saiba quem é Beatriz e porque
foi considerada para o estudo e, por sua vez, porque considerou participar
do estudo. Beatriz não apenas foi aceita pelos pesquisadores, mas
principalmente, aceitou a pesquisadora com quem manteria um contato
próximo e de confiança. Como dito anteriormente, até os 28 anos de
idade, era considerada uma pessoa normal, sem deficiência e seguia sua
trajetória marcada por trabalho, sonhos e planos até que bruscamente
foram interrompidos por uma agressão que a teve como consequência a
deficiência. No ano de 2008, foi brutalmente agredida por um primo que
sofre de esquizofrenia, o qual partiu seu rosto ao meio à marteladas
arrancando um olho, nariz, quebrando os ossos da face, o que quase a levou
30
à morte. Dentre outras sequelas, perdeu o olfato, paladar, parte da audição
e movimentos da mão esquerda, além da visão.
Além das consequências já ditas, Beatriz lida com outro fator
estigmatizante, a desfiguração de seu rosto. Mesmo passando por inúmeras
cirurgias de reconstrução facial, não possui um dos olhos, sendo que o
outro se mantêm fechado, uma vez que a pálpebra caiu sobre si. Perdeu as
sobrancelhas e nariz que foi recolocado, porém sem que cumprisse sua
função original, pois Beatriz não respira por ele e não possui o olfato.
Possui cicatrizes no braço e pernas que remetem à aparência de
queimaduras devido a retirada de pele para enxerto no rosto. A região da
testa apresenta uma depressão (afundada), consequente da destruição dos
ossos, além de sentir muitas dores na face. Perdeu as expressões faciais
queixando-se de que algumas vezes as pessoas não percebem se está
manifestando sentimentos como alegria, tristeza ou irritabilidade.
Segundo Beatriz, seu rosto assusta as pessoas e devido a isso, tenta
escondê-lo usando óculos em tamanhos grandes lidando duplamente com
o estigma, por não ter a visão e por ter uma imagem que se distancia dos
padrões de beleza construídos pela sociedade. Beatriz se reinventou em
todas as áreas de sua vida de acordo com sua nova identidade e papel na
sociedade, dentre elas, na vida profissional.
As conversas com a pessoa que fez a mediação entre nós,
marcamos um encontro e Beatriz desde o início se mostrou solícita e
interessada em participar. Esse primeiro contato foi algo informal, apenas
para conhe-la pessoalmente e tecer as primeiras impressões sobre se de
fato, era a pessoa que buscávamos para o estudo. Ao conhecê-la
pessoalmente nasceu definitivamente o interesse por sua história e ao
conhecer o objetivo do estudo nasceu em Beatriz o desejo por contribuir
com sua história.
31
3.
Entrevistas em Profundidade
A entrevista em profundidade também denominada de entrevista
biográfica constitui em um dos instrumentos utilizados para compor a
história de vida, porém não o único. No entanto, setratada em destaque
por compreendê-la como o principal dos instrumentos, os demais serão
explicitados em tópicos posteriores. Trabalhar com entrevistas abertas e em
profundidade, ou seja, sem um roteiro de perguntas estruturadas, requer
do pesquisador que estimule a narrativa do participante de forma que este
consiga elaborá-la de forma cronológica, clara, detalhada e reflexiva sobre
os acontecimentos de sua vida deixando explícita sua interpretação sobre
estes (MORIÑA, 2017).
A narrativa do participante deve responder ao objetivo do estudo e
mesmo que tenha a liberdade de falar livremente sobre aquilo que julga
importante é necessário que se tenha a devida cautela para que não destoe
completamente do tema do estudo e perca o sentido para a pesquisa. Por
isso, a importância da total concentração do pesquisador naquilo que está
sendo dito, nos estímulos fornecidos, na frase que desencadeará a narrativa,
na orientação quando houver lapsos de memória, na sensibilidade de
identificar durante a conversação aquilo que necessita ser aprofundado na
narrativa e o momento certo de esclarecer dúvidas ou estimular o
aprofundamento de algo.
Trabalhar com a entrevista em profundidade nesse estudo teve
como fator favorecedor e decisivo para o seu desenvolvimento as
especificidades da participante que demonstrou desde a primeira entrevista
32
estar solícita e disposta a narrar sua vida com riqueza de detalhes e
reflexões. No entanto, o fato de a entrevista não contar com roteiro
estruturado de questões não significa ausência de direção, de um tema, de
um norteamento. Isto implica em ter claro para si aquilo que se busca em
cada entrevista ou expectativas em relação ao diálogo que é apresentado ao
participante por meio de uma única frase ou pergunta que o norteará sobre
o que se espera que fale em cada sessão. A cada entrevista, o participante
avança no tempo cronológico da história de sua vida rememorando e
reconstruindo com sua narrativa, assim como no tema de interesse da
pesquisa.
Antes de avançar se faz necessário esclarecer como foi a construção
até o momento da entrevista. O primeiro encontro foi algo informal em
que não mencionamos a pesquisa, embora a participante soubesse dessa
intenção. Marcamos um café da tarde em sua casa com a presença da
pessoa que fez o elo entre nós e de seus familiares. O fato de sermos
apresentadas por meio de alguém conhecido e de total confiança da
participante pode ter facilitado nossa interação e por isso, a opção por
realizar esse encontro com a presença do mediador.
Tivemos um segundo encontro, novamente em sua casa, e então
falamos sobre a pesquisa. Expliquei minuciosamente sobre o estudo
explicitando seu objetivo, tema e forma como aconteceria sua participação.
Esclareci que poderiam ser muitas sessões, que conversaríamos sobre
assuntos dolorosos para ela como o dia da agressão, que teria participações
e atividades para acrescentar ao estudo e que poderia desistir em qualquer
momento, se julgasse pertinente. Descrevi ainda a importância que teria
sua colaboração para o estudo. Depois de esclarecidos esses aspectos, a
participante expressou imediatamente seu desejo em participar, porém,
pedi que pensasse um pouco mais e que respondesse posteriormente e
assim o fez.
33
Após os dois encontros iniciais iniciou-se a coleta e ocorreu de fato
a primeira entrevista e participação por meio de narrativa. É importante
esclarecer que antes do início da coleta que aconteceu dois meses após o
primeiro contato, mantivemos proximidade por telefone estabelecendo
um vínculo e construindo uma relação de confiança para que não fôssemos
desconhecidas no momento em que falaria sobre sua vida.
Na primeira entrevista pedi autorização para ligar o gravador e após
o consentimento explicitei novamente o objetivo do estudo, como se daria
sua participação e a importância da mesma, perguntando se aceitaria
colaborar. Novamente a participante expressou seu interesse e autorizou as
gravações o que permitiu que obtivesse também seu consentimento livre e
esclarecido verbal e gravado. Ainda sobre a primeira entrevista, falamos
sobre sua vida antes da deficiência, o que fazia, quais eram seus planos,
como vivia, com o que se preocupava. Essa entrevista teve duração de
02h13minutos e teve como frase desencadeadora da narrativa a seguinte
Gostaria que você falasse sobre a sua vida quando ainda não tinha
deficiência”. É importante ressaltar que o pesquisador em entrevista aberta
pode fazer perguntas quando algo não ficar suficientemente claro ou pedir
para que o participante fale um pouco mais sobre algo para
aprofundamento, sem induzir respostas. Estratégias como repetir algo que
o próprio participante falou, também estimula sua narrativa e demonstra
que está atento ao que ele diz.
Como já existia certa proximidade, sua narrativa aconteceu de
forma espontânea, como em uma conversa, chegando ao ponto de esquecer
a gravação e contar coisas íntimas de sua vida, o que sugere que a
manutenção do contato e tentativa de construção do vínculo antes da
primeira entrevista pode ter contribuído para a interação. O fato de em
determinado momento ter esquecido que a conversa estava sendo gravada
gerou desconforto na participante, o que me levou no dia seguinte a ligar
34
e esclarecer novamente que só seria publicado aquilo que fosse de sua
aprovação. Essa consideração com o seu desconforto gerou confiança por
parte da participante e de forma clara e honesta fomos, aos poucos,
construindo um vínculo de confiança e ética.
A proximidade e confiança é uma forte característica do método
história de vida e pode ocorrer momentos em que o participante, tomado
pela emoção de sua narrativa, fale mais do que gostaria que outros
soubessem, além do pesquisador. No entanto, as questões éticas neste
método estão para além do documento de consentimento assinado no
início da pesquisa e ao pesquisador cabe a sensibilidade de respeitar a linha
tênue entre ser fiel às narrativas e ser cruel com o participante publicando
informações que posteriormente podem levá-lo à exposição desnecessária,
constrangimentos e até mesmo estigmas, sendo exatamente isto o que se
busca enfrentar. Desta forma, ainda que “consentidopor meio de um
documento, se faz necessário constantes acordos, revisões, oportunidades
de prosseguir ou desistir e acima de tudo, manter compromisso com a
pessoa que narra, considerando-a não como mero objeto de pesquisa, além
de consciência sobre que nem tudo o que for dito, será necessariamente
publicado.
Ao final da primeira entrevista pedi que escolhesse o nome pelo
qual seria chamada no estudo para manter seu anonimato, uma vez que,
ninguém melhor que si mesma para saber qual melhor a representaria.
Beatriz” foi o nome escolhido porque, segundo ela, é um nome doce e
que sempre achara bonito, podendo dessa forma representá-la. Ainda
acordamos a frequência com que seriam nossos encontros, dias da semana
e horários sempre respeitando e me adaptando à sua rotina e
disponibilidade. Ficou definido que os encontros aconteceriam uma vez
por semana, em sua própria residência, por tempo indeterminado, às
14h00 das segundas-feiras, com flexibilidade caso Beatriz tivesse algum
35
compromisso ou indisposição. Os dias, frequência, horários e local foram
decididos exclusivamente por Beatriz, uma vez que como pesquisadora
estava à sua total disposição.
Uma semana após a primeira entrevista que ocorreu de forma
tranquila e espontânea, realizamos a segunda e esse foi um momento de
muita tensão de ambas as partes. Nessa entrevista falaríamos sobre o dia
em que sua vida mudou a que nomeamos “O dia da agressão” para que
compreendêssemos como Beatriz adquiriu a deficiência.
Antes dessa tensa conversa já havia feito a transcrição da primeira
entrevista e elaborado um texto para relembrar os principais aspectos que
conversamos na semana anterior para que ela avaliasse se a pesquisadora a
estava compreendendo, se as informações estavam corretas, se aprovava a
escrita. Neste texto, foram contemplados os principais aspectos
conversados, no entanto, também incluía a subjetividade da pesquisadora
que selecionava pontos que a impactaram mais profundamente trazendo
ainda uma interpretação sobre o mesmo. Foi lido para a participante que
ao término da leitura, se mostrou surpresa com a forma como foi, em suas
palavras, bem compreendida e representada afirmando que a pesquisadora
realmente compreendeu o que intencionava expressar, especialmente no
que se relacionava ao que sentia diante de determinadas situações.
Também se tranquilizou por notar que o assunto íntimo que falara no
encontro anterior e que causara desconforto posteriormente, não havia
sequer mencionado no texto. Não mudou e não alterou as informações e
foi notória sua satisfação com o momento da leitura. Essa leitura instigou
ainda mais o interesse de Beatriz sobre a apresentação de sua história de
vida, os processos que passaria e seu formato final. Beatriz fez perguntas e
fizemos acordos acerca do texto como a escrita em primeira pessoa, as
edições, colocando-o em uma ordem cronológica para facilitar o
entendimento do leitor, das correções, entre outros.
36
Foi possível perceber que a leitura de textos interpretativos acerca
de sua narrativa poderia ser um importante instrumento a ser explorado,
uma vez que Beatriz se sentiu respeitada, valorizada e surpresa com o
interesse e cuidado com tudo que foi dito durante a entrevista. De fato, o
momento de ler sobre o que conversamos se tornou algo muito esperado
por Beatriz nos encontros seguintes em que sempre elogiava, surpreendia-
se, emocionava-se. Ouvia a leitura atentamente, em silêncio quase absoluto
que era interrompido apenas quando sorria, chorava ou acenava a cabeça
em concordância sussurrando algo como se falasse a si mesma. De simples
resumo para relembrar tópicos importantes da transcrição da conversa
anterior, passou a ser uma espécie de presente, recompensa ou estímulo
para Beatriz que apreciava os textos sobre sua vida.
Também foi importante para preparar o ânimo para o assunto que
estava por vir. A frase desencadeadora foi Gostaria que contasse como e
quando perdeu a visão. Poderia relembrar desse dia para mim?”. Beatriz falou
por 02h47min ininterruptamente. Não foi preciso nenhum estímulo para
sua narrativa, apenas uma mão estendida para que a tocasse no momento
mais difícil para ela. Embora estivesse claro que poderia parar a conversa a
qualquer momento e que não precisaria falar sobre o que não conseguisse
ou quisesse, Beatriz não parou, falou, se emocionou, se assustou com os
trovões da tarde chuvosa e com o latido do cachorro que estava aos nossos
pés embaixo da mesa e concluiu a sua narrativa de forma intensa quando
trouxe à tona suas emoções, sendo impactante pelos detalhes minuciosos
com que expôs a violência sofrida.
Esta foi a entrevista mais importante, não apenas pelo teor de seu
conteúdo, mas também por ser a mais difícil para a participante ao revisitar
seus medos e também para a pesquisadora ao conduzir um momento de
dor que seria decisivo para a continuidade ou não de Beatriz na pesquisa.
Rememorar, reviver um dia tão terrível, mexeu com emoções, traumas,
37
sentimentos. Após essa entrevista voltou a sonhar com o agressor que
sequer conseguiu pronunciar o nome durante a narrativa e como
consequência passou a evitar a pesquisadora.
No dia marcado para a terceira entrevista se esqueceu do
compromisso e embora a chamasse no portão de sua casa, ligasse e
mandasse mensagens em seu celular avisando que estava ao portão, foi o
pai quem atendeu e a chamou. Nesse dia a percebi distante e sugeri que
fizéssemos a entrevista em outro momento, mas Beatriz insistiu em
continuar até que a concluíssemos. Realizei a leitura do texto sobre a
entrevista anterior em que contou sobre a agressão e foi um momento de
intensa emoção. Antes da leitura, Beatriz se certificou de que a sobrinha
não estava por perto para não a ouvir pelo teor de violência. Ao escrever
este texto, especificamente, houve a preocupação em não destacar a
agressão em si que foi minuciosamente detalhada por Beatriz, mas os
sentimentos, incertezas, percepções dela decorridas, tornando, à medida
do possível, o momento menos temeroso para a ouvinte. As informações
sobre a terceira e próximas entrevistas não foram descritas neste momento
para não nos estendermos demasiadamente, o leitor encontrará mais
adiante contadas pela própria Beatriz em sua História de Vida.
No dia marcado para a quarta entrevista, Beatriz ligou minutos
antes desmarcando, sem muitas explicações. Remarcamos para outro dia e
novamente desmarcou demonstrando resistência. Foi necessário dar esse
tempo de duas semanas sem entrevistas para a participante, respeitar seu
distanciamento e silêncio, compreender que nesse momento não poderia
falar sobre si, deixando sempre claro que estava à sua disposição para
conversar mesmo que não para a pesquisa, mesmo que não com um
gravador. Foram dias de tensão por perceber que a participante estava em
conflito e que poderia desistir.
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Quando Beatriz se sentiu confortável para a quarta entrevista que
ocorreu quinze dias após, houve a necessidade de rever seu consentimento
e escolha em participar. Novamente fiz a pergunta se realmente queria
continuar colaborando, mesmo diante da última conversa e como esta
reverberou em sua vida. Beatriz respondeu que gostaria de continuar e que
mesmo tendo revivido momentos difíceis, falar e refletir sobre o assunto
estava fazendo bem para a ela. Propus que nossos encontros fossem mais
espaçados, a cada quinze dias para não a sobrecarregar, porém preferiu
continuar com encontros semanais. Perguntei se gostaria de mudar algo na
dinâmica de nossos encontros e afirmou que não.
Ao ler o texto da última conversa se emocionou com sua própria
história e com a forma como estava sendo compreendida, porém ainda a
percebia distante como se regredíssemos na cumplicidade que construímos
até ali. Foi então que pedi para que escrevesse seu Autoinforme (será
detalhado no próximo tópico) sobre os motivos que a levaram a escolher a
sua profissão e lhe enviei o meu próprio Autoinforme sobre o porquê de
estar fazendo um doutorado, para que conhecesse um pouco mais ao meu
respeito. Beatriz me ligou dias depois dizendo ter lido o Autoinforme e
estar muito feliz por me conhecer um pouco além e conseguir
compreender a dedicação à pesquisa. A partir de então, nosso vínculo,
comprometimento e envolvimento com a pesquisa foi crescente, o que nos
levou à superação da entrevista mais difícil e também do obstáculo que
ainda estava por vir.
Assim, nossas entrevistas posteriores aconteceram com a mesma
tranquilidade da primeira, porém com proximidade cada vez maior em que
podia identificar os significados de cada gesto, pausa, suspiro e até mesmo
quando buscaria minha mão posta à mesa. Ao todo foram seis entrevistas
e em cada uma delas Beatriz perguntava sobre o andamento da pesquisa,
sobre as transcrições, sobre a escrita, sobre o que e como seria publicado e
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negociávamos como tudo se apresentaria. Beatriz aprovou a ideia de falar
em primeira pessoa e pediu para que de fato corrigisse possíveis erros de
linguagem no texto, embora se expressasse bem e com facilidade.
Quadro II - Primeiras entrevistas realizadas
1ª ENTREVISTA
Duração: 02h13min
Assunto de interesse: Como era a vida antes da deficiência.
Frase desencadeadora: “Gostaria que você falasse sobre a sua vida quando ainda
não tinha a deficiência”.
Participação:
Beatriz narrou sua vida desde a infância, adolescência, juventude
quando ingressou no trabalho, rememorando quais eram seus planos e sonhos.
Beatriz foi incumbida de, durante a semana, pensar em um nome para proteger
sua identidade e escolher um objeto que representasse sua vida antes da
deficiência.
2ª ENTREVISTA
Duração: 02h47min
Assunto de interesse: Como adquiriu a deficiência.
Frase desencadeadora: “Gostaria que contasse como e quando perdeu a visão.
Poderia relembrar desse dia para mim?”.
Participação: Falou sobre a agressão descrevendo tudo o que aconteceu
naquele dia e nos posteriores. Narrou como foi o dia, um ano após a agressão,
em que soube que definitivamente não voltaria mais a enxergar com o olho
que restara. Relembrou momentos de dores, incertezas, insegurança e medo de
como seria sua vida. Descrev
eu sentimento de impotência, revolta,
desesperança e também de gratidão por estar viva.
3ª ENTREVISTA
Duração:
03h05min
Assunto de interesse: As mudanças no cotidiano e relações após adquirir a
deficiência.
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Frase desencadeadora: “Você poderia falar sobre se mudou algo em sua vida após
perder a visão?”.
Participação: Beatriz narrou as dificuldades cotidianas, sobre as mudanças na
relação com a família e amigos, sobre pessoas que se afastaram e outras que se
aproximaram após a deficiência, sobre a ambiguidade de hora a tratarem como
incapaz, hora exigirem habilidades como se não houvesse deficiência.
Falou sobre amigos que passaram a ignorá-la quando a encontram nas ruas e
redes sociais, assim como pessoas que não se desviam para que ande pela
calçada com a guia chegando por vezes, a derrubá-la. Também falou sobre
momentos em que ela própria joga a bengala ao chão em sinal de protesto
quando é bruscamente desviada por quem a acompanha para que não esbarre
em outrem, questionando sobre quem deveria desviar-se.
4ª ENTREVISTA
Duração: 02h06min
Assunto de interesse: A forma como é vista pela sociedade, segundo sua
interpretação.
Frase desencadeadora:
“Hoje eu gostaria de saber como é a sua vida social”.
Participação: Beatriz narrou coisas que antes praticava e que atualmente não
fazem sentido para si, também sobre escolhas de lazer que atendam suas
necessidades. Refletiu sobre a mudança de postura diante da sociedade quando
passou a preocupar-se com temas que antes passavam despercebidos, assim
como a mudança de postura da sociedade diante de si após se tornar uma
pessoa com deficiência.
Falou sobre a ambiguidade na forma como é vista pela sociedade que hora a
rotula de “guerreira”, hora de “coitada”. Falou ainda sobre a falta de união
entre as pessoas com cegueira em relação à luta por seus direitos.
Combinamos como e quando faríamos “Um dia na vida de Beatriz” que
ocorreu uma semana após a quarta entrevista.
Fonte: Da autora.
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Sempre ao final dos encontros anunciava sobre o que
conversaríamos no posterior para que diminuísse a sua ansiedade e após
tomávamos uma xícara de café, momentos em que falávamos sobre
assuntos corriqueiros e sobre a pesquisadora, conversávamos com seus
familiares e ríamos o que nos reafirmava igualdade de papéis, confiança e
proximidade. Beatriz sempre soube que mesmo que dissesse algo além do
que desejasse que outros conhecessem, não seria publicado, repetido ou
dito pela pesquisadora nem mesmo em nossas conversas informais no café
da tarde.
É importante descrever esses detalhes e dificuldades ao leitor para
que compreenda que são possíveis e suscetíveis nas entrevistas em
profundidade pelo grau de proximidade, de convivência, de tempo em que
participante e pesquisador passam juntos ao reconstruir a história de uma
vida, sendo esta proximidade uma das principais características do método.
Para além de tecer perguntas e coletar respostas existe um envolvimento,
empatia e o pesquisador lida com uma linha tênue entre intimidade
exagerada, proximidade e confiança suficiente, cujo desequilíbrio pode
interferir no andamento do trabalho. As nuances advindas das
singularidades do método história de vida comprovam seu caráter
democrático, inclusivo e humano. Logo abaixo, o Quadro III apresenta ao
leitor um recorte de um dos textos lidos para Beatriz antes da nova
entrevista:
Quadro III - Trecho texto lido antes da terceira entrevista
No encontro anterior falamos sobre o objeto escolhido para representar
toda a fase discutida na primeira entrevista. O violão batizado de Ariel trouxe
lembranças de bons momentos em uma das melhores fases de uma garota de vinte
anos, cheia de vida e de expectativas. Ariel ficou esquecido por algum tempo até
que Caroline o traz de volta, com toda a alegria e empolgação infantil. Ariel nos
faz pensar sobre palavras que motivam ou, ao contrário, podem enterrar desejos ou
42
sonhos. Foi assim quando o pai diz que não leva jeito, que deveria parar com o
barulho que incomoda. Depois dessas
palavras, Ariel foi deixado de lado, o
desânimo tomou conta do que antes era tentativa e possibilidade e dessa forma o
silêncio ocupa o espaço do que antes eram notas, acordes, canto e músicas.
Em seguida falamos sobre o dia da agressão e principalmente sobre os dias
que sucederam a agressão. Beatriz começa me contando que aquele parecia um dia
normal, como outro qualquer. Era apenas mais um dia em que acordou, limpou a
casa, foi ao supermercado, trouxe pães. Mais um dia em que mexeu em seu
computador, conversou com amigos, atendeu um telefonema, fez planos, tomou seu
banho. Um dia que deveria ter sido como outro qualquer, mas não termina assim.
Alguma coisa rompeu com toda a normalidade daquele dia. Um barulho
estrondoso. Um susto. Um olhar do mal. Uma agressão brutal, sem explicação, sem
que merecesse, sem que pudesse entender o porquê, sem que tivesse qualquer
possibilidade de se defender. Mas, aquele dia foi apenas o primeiro de muitos dias
difíceis, dias de dores, dias de medo, de insegurança, de não saber em quem confiar.
O primeiro de muitos dias nada normais na vida de uma jovem de vinte e oito
anos.
Um dia em especial, a Beatriz, a menina medrosa e pacata, adolescente
quieta e tímida, a jovem com amigos, planos e trabalho, em um dia específico,
talvez no pior de todos eles, enterrou em si todos os seus sonhos. Esse dia foi aquele
em que perdeu a última esperança de manter viva um pouco das versões da Beatriz
de antes [...].
Nesse mesmo dia, naquela mesma hora, nasce a Beatriz que conheço hoje:
forte, ainda generosa, capaz de silenciar seu grito, aplacar a sua revolta, calar o seu
pranto, disfarçar a sua dor simplesmente para que a tia pudesse parar de chorar.
Tão forte que é capaz de consolar quando deveria ser consolada, de entender o outro
e se colocar no lugar quando na verdade deveria apenas ser compreendida e deixar
que outros se colocassem em seu lugar. Forte o bastante para se reinventar a cada
dia, fazer outros e novos planos, conviver com um trauma sem deixar de lado a
doçura. Fez-se forte, mas não se tornou dura [...].
Muitos desafios ainda se levantariam em seu caminho. Como lidar com
pessoas que se vitimizam quase desrespeitando e banalizando a brutalidade que
sofreu? Como lidar com pessoas que a culpabilizam como se tivesse feito algo terrível
43
o bastante para merecer o que lhe aconteceu, como se tivesse ofendido ou enganado
o agressor, como se o algoz pudesse ser a vítima e a vítima assumisse o papel de
culpada? Como lidar com comparações, como se não fosse desafiador o bastante se
tornar uma pessoa com deficiência?
Falamos sobre medos e desamparo. Falamos sobre os amigos que se foram
e outros que vieram. Falamos sobre o quão difícil é não poder se ver, não ter uma
imagem de seu próprio rosto. Rimos um pouco das reações de algumas pessoas ao
virem seu rosto. Hoje, rimos disso, mais um dia isto já a incomodou. Não pode
deixar de reviver tantos momentos de dores e incertezas em cirurgias, hospitais, com
médicos, enfermeiras. Momentos de tanta dor que inevitavelmente veio a revolta
“Por quê?” “Por que comigo?”. Mas mesmo sem resposta a essa pergunta foi capaz
de aquietar a si mesma dizendo “Obrigada, por ter sido comigo!”.
Terminamos falando de uma pessoa muito especial. Falamos de um anjo
salvador. Um anjo de setenta e nove anos, de cabecinha branca, de passos lentos,
porém capazes de parar um agressor. Uma pessoa amiga e leal, que respeitava a sua
autonomia, que elogiava o seu crochê, que confiava tanto em uma sobrinha a ponto
de permitir um banho no momento mais frágil da vida ou uma simples desvirada
de alça de seu sutiã. Uma pessoa que sentava ao seu lado apenas para olhar o
horizonte e que não a deixava na escuridão mesmo quando já não via mais a luz
fazendo questão de acender as lâmpadas quando anoitecia. Preta era o tipo de
pessoa que poucas vezes encontramos na vida e com quem Beatriz teve o privilégio
de conviver.
E assim... conheci um pouquinho mais da Beatriz!!
Há alguma informação que queira acrescentar ou corrigir?
Fonte: Da autora.
Retomando as entrevistas, quando estávamos mais engajadas e
acostumadas com o compromisso habitual dos encontros, um contexto
histórico marca significativamente nossa interação e entrevista. O mundo
enfrenta, até o momento da escrita deste texto, uma Pandemia (Covid-19).
Trata-se de uma doença respiratória causada pelo coronavírus SARS-CoV-
2 com alta transmissibilidade e gravidade sendo adotado o isolamento em
quarentena e nessa condição como opção mais segura para preservar a
44
segurança da participante e pesquisadora foi tomada a decisão de suspensão
das entrevistas. No dia 23 de março de 2020 nossas entrevistas foram
interrompidas com o decreto do governador do Estado de São Paulo para
que as pessoas se mantivessem em casa. Como atravessar uma fase de
distanciamento social quando se utiliza um método que requer intensa
proximidade com a participante? Essa era a grande questão que se colocava
e precisava ser superada com estratégias, assim como foi com a crise da
entrevista mais difícil que versou sobre a agressão.
Após quarenta dias da última entrevista, Beatriz e eu cogitamos a
ideia de a realizarmos por videochamada. No entanto, era preciso
considerar as especificidades de Beatriz, sua visão se dá por meio do toque,
sua atenção requer silêncio longe de ruídos externos. Durante as entrevistas
ficávamos a sós, portas e janelas fechadas para que nada interferisse em seu
raciocínio e audição e quando queria chamar a pesquisadora para o
diálogo, perguntar sobre algo ou simplesmente encontrar um acalento
buscava o dorso de minha mão com a palma da sua e o encontrava sempre
estendido sobre a mesa a aguardando ou em outras vezes, repousava sua
mão sobre meus ombros. Era possível perceber seus sinais de cansaço ou
desconforto quando estendia as costas sobre o encosto da cadeira e então,
como pesquisadora sabia que era hora de parar. Como esses detalhes seriam
percebidos por uma chamada de vídeo? Como Beatriz se comunicaria com
a pesquisadora sem a tocar? Como garantiríamos que ruídos não
prejudicariam o diálogo?
Decidimos esperar o fim do distanciamento social para dar
continuidade às entrevistas, mas falávamos diariamente por telefone,
mensagens no WhatsApp e e-mail. Beatriz era informada sobre o
andamento da escrita, até mesmo das leituras, leu um artigo publicado de
autoria dos pesquisadores, também trabalhou realizando sua linha de vida
que será detalhada posteriormente.
45
Cinco meses transcorreram desde nosso último contato
pessoalmente e com a flexibilização do isolamento retomamos as
entrevistas presenciais, porém seguindo os protocolos de segurança como
o uso de máscara, álcool e certa distância. Neste período, Beatriz se casou
e passou por uma mudança de residência experimentando novas vivências,
desafios, maior autonomia e independência.
Na área profissional, Beatriz também se aprimorou durante o
período de distanciamento em que não pode atender os pacientes,
aprendendo novas técnicas em um curso online sobre Reflexologia. Para
apreender o conteúdo do curso foi necessário criar estratégias e contar com
o auxílio de outra pessoa que visualizava os movimentos, aplicava em
Beatriz, que por sua vez, praticava na pessoa. Como resultado dos novos
conhecimentos, prolongou o período da massagem acrescentando novos
movimentos e utilizando outros instrumentos como pedras terapêuticas,
além de criar um ambiente mais confortável para atendimento em cômodo
reservado.
Apesar do novo formato de relação, mais distante do que estávamos
habituadas, encontramos novas formas de expressar a cumplicidade entre
ambas e tivemos maior privacidade e silêncio necessários para os diálogos.
Não foi difícil retomarmos do ponto em que paramos, uma vez que nos
mantivemos ativas tanto no contato, quanto no envolvimento com a
pesquisa durante todo esse período de distanciamento, ou seja, próximas
mesmo distantes. Como demonstração dessa proximidade, Beatriz decidiu
se apresentar por inteiro e em um gesto de plena confiança e aceitação com
sua interlocutora, retirou os óculos que encobriam grande parte de sua
face. No Quadro IV logo abaixo, apresentamos uma síntese das entrevistas
realizadas durante a flexibilização do isolamento:
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Quadro IV - Entrevistas realizadas após flexibilização isolamento
ENTREVISTA
Duração: 02h46min.
Assunto de interesse: O papel do trabalho na vida de Beatriz e as relações nele
estabelecidas.
Frase desencadeadora:
Gostaria que falasse sobre o seu trabalho, aquilo que seja
importante para você”.
Participação: Beatriz inicia seu discurso contando sobre a falta que o trabalho
lhe fez no período de isolamento e o quanto reduziu o número de
atendimentos mesmo com a flexibilização.
Falou sobre a formação recebida antes da deficiência e após a deficiência
refletindo sobre as diferenças entre forma de aprender e compreender a
massagem.
Narrou a importância que o trabalho tem em sua vida, especialmente no
aspecto psicológico, sobre como lida com aqueles que marcam por mera
curiosidade, sobre os motivos e momento em que escolheu essa profissão.
Refletiu sobre como a deficiência poderia ser considerada como vantagem em
sua profissão, especificamente e em o quanto ela mesma se sentiu mais
desenvolta ao não enxergar com os olhos o corpo do outro.
Beatriz termina sua narrativa falando sobre o sentimento que o trabalho lhe
proporciona de ser útil e ajudar o próximo, quando comumente ocorre o
contrário em outras áreas de sua vida.
Ao final da conversa, Beatriz anunciou que queria revelar seu rosto, retirou os
óculos grandes que o encobrem e se apresentou à pesquisadora.
ENTREVISTA
Duração: 02h04min.
Assunto de interesse: Identifica situações em que sofreu estigma e se/como
enfrenta essas situações?
Frase desencadeadora:
“Gostaria que contasse se já sofreu alguma situação de
estigma e como reagiu a ela”.
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Participação:
Iniciamos o diálogo refletindo sobre a definição de Estigma
segundo Erving Goffman a pedido da própria Beatriz, uma vez que esse
assunto suscitou seu interesse durante as conversas ao t
elefone no
distanciamento social.
Beatriz contou algumas situações vivenciadas recentemente com um familiar
que rejeitou sua oferta de ajuda por julgá-la incapaz, e com uma vendedora
que agiu como se não a conhecesse anteriormente.
Ponderou que sofre estigma na sociedade e no próprio âmbito familiar, mas
não o identifica no ambiente de trabalho.
Descreveu
como reage e quais estratégias utiliza quando ocorrem essas
situações.
Considera que a cegueira em sua profissão especificamente, pode ser
considerada como vantagem quando suprime a inibição de alguns pacientes
em expor o corpo e quando ela mesma obteve maior desenvoltura ao não
enxergar o corpo do outro.
Reflete sobre o fato de conhecer o ponto de vista de quem estigmatiza, uma
vez que já vivenciou como uma pessoa sem deficiência observando as reações
das pessoas diante da deficiência.
Fonte: Da autora.
48
49
4.
Os Instrumentos
O método História de Vida é dotado de diversas particularidades
que o diferencia significativamente dos demais. Uma dessas
particularidades é a forma como ocorre a participação do entrevistado, por
isso chamado de “participante” ou “coautor” ao invés de “sujeito de
pesquisa. Isto implica que a pessoa de fato, terá conhecimento e
participação ativa em todo o processo da pesquisa, inclusive em tomadas
de decisões como a forma como sua história será apresentada ao leitor.
Houve intensa participação de Beatriz em vários momentos deste
estudo, como nas entrevistas em profundidade, nas decisões sobre quais
informações seriam publicadas, assim como a forma que seriam. Beatriz
foi informada sobre todo o processo desde as transcrições até a
apresentação final e fez escolhas como falar em primeira pessoa, ter
correções ortográficas em sua fala ao passá-la para a forma escrita e aspectos
que não poderiam ser publicados. Além dessas, a edição final de sua
história de vida passou antes por seu consentimento e aprovação.
Beatriz participou de alguns instrumentos selecionados para
reconstrução de sua história. Esses instrumentos foram baseados em
Moriña (2017; 2018) e tiveram como objetivo levantar o máximo de
conhecimento e informações acerca da história de vida do participante por
meio de diferentes nuances, assim como de envolvê-la ativamente na
reconstrução de sua própria história. Os instrumentos escolhidos para
delineamento deste estudo serão detalhados a seguir, ressaltando-se que
existem outros, no entanto, restringimos a explicação àqueles que
50
consideramos apropriados ao contexto e objetivo da presente investigação.
São eles, respectivamente nesta ordem: Um dia na vida de...; Autoinforme;
Linha de vida e Entrevista com outros informantes.
Um dia na vida de
O primeiro instrumento realizado com a participação de Beatriz
ocorreu após a quarta entrevista e foi nosso último contato pessoalmente
antes do decreto de isolamento social consequente da pandemia. “Um dia
na vida de...” é uma técnica de coleta de dados em que o pesquisador passa
um dia com o participante para conhecer mais sobre seu cotidiano. Pode
ser realizada de diferentes maneiras, uma vez que não há uma definição
exata sobre a forma de realizá-la, o que pode ser ajustado de acordo com o
contexto e intencionalidade de cada investigação.
Nessa perspectiva, pesquisador e participante decidem qual a
melhor versão para atender ao objetivo da pesquisa sem desconsiderar a
disponibilidade do último. Como exemplo, podem optar por passarem
juntos durante um dia inteiro e o pesquisador acompanhar toda a sua
rotina, desde o momento em que acorda até o final de seu dia. Mora
(2017) afirma que essa técnica pode adotar outras formas como uma
entrevista sobre a rotina do participante desde o seu despertar até o
adormecer, o que já garantiria informações sobre seu cotidiano. Caso a
opção seja por passar o dia juntos, podem registrar os acontecimentos por
meio de fotografias e filmagens ou simplesmente registros das observações.
Em seu estudo sobre as dificuldades e obstáculos que estudantes
com deficiência encontram na universidade, Moriña (2017) juntamente
com os demais pesquisadores que a auxiliaram na coleta de dados, optaram
por acompanhar apenas o período em que o estudante passava na
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universidade, seja em sala de aula ou em outros ambientes como biblioteca
e cafeteria, com o intuito de presenciar os obstáculos que emergiam, em
alguns casos foi registrado por meio de fotografias em outros apenas com
observações, dependendo do consentimento de cada estudante. A autora
ressalta que independentemente do modelo adotado o importante é que
propicie um aprofundamento na vida do participante de forma que
apreenda a singularidade e subjetividade, contemplando e compreendendo
sua história de vida como um todo por meio de seus atos cotidianos.
No caso deste estudo, novamente analisamos o contexto e
especificidade de Beatriz, uma vez que mora e trabalha no mesmo
ambiente e convive com outras pessoas (no momento de realização deste
instrumento). Passar um dia inteiro com Beatriz implicaria invadir a
privacidade dos moradores da casa como pais, irmãs, sobrinha e tia. Nesse
sentido, ponderamos que seria mais interessante acompanhar o período de
seu trabalho uma vez que esse ambiente também constitui em interesse da
pesquisa para compreender como/se enfrenta o estigma.
No entanto, Beatriz levantou outra questão que novamente
invadiria a privacidade de outrem, já que trabalha com massagem.
Acompanhar seu dia de trabalho implicaria em acompanhar momentos
íntimos de seus pacientes que não se sentiriam confortáveis com a presença
de uma terceira pessoa. Adaptando-nos ao contexto de sua vida, acordamos
que no dia marcado para “Um dia na vida de...” a ppria pesquisadora
seria a paciente de Beatriz e poderia dessa forma, conhecer como é
desenvolvido seu trabalho, como constrói o ambiente para receber seus
clientes, como é a interação entre a massagista e a paciente, por quanto
tempo, o contato, o vínculo entre ambos, o que poderia ou não ser um
entrave ou dificuldade, dentre outras coisas. Para maior detalhamento de
como ocorre a massagem com outros pacientes realizamos as entrevistas
sobre o trabalho.
52
Assim, “Um dia na vida de Beatriz” aconteceu em uma tarde em
que fui recebida como paciente e pude experimentar cada detalhe como a
acolhida, a massagem, os comandos de Beatriz, a forma como conhece o
corpo do outro sem o auxílio da visão, a música que coloca para o
momento, a forma como organiza o espaço, a preocupação com o bem
estar de quem está sendo atendido, como reage aos imprevistos, por
exemplo, quando o massageador foge de suas mãos ou o ventilador que
não está direcionado para o local desejado, como confere o pagamento,
dentre várias outras situações que emergiram. Vivenciando um dia em seu
trabalho foi possível compreender como emergem situações que podem ser
estigmatizantes e posteriormente essas observações complementaram e
contextualizaram as narrativas sobre o trabalho e estigma. Não julgamos
necessário o uso de instrumentos tecnológicos como fotos ou vídeos, antes,
a ênfase foi dada à experiência vivenciada e rememorada. Dessa forma, as
decisões sobre quando e como seria realizado “Um dia na vida de...” foram
tomadas em conjunto com Beatriz respeitando seu contexto e
necessidades.
Para ilustrar destaca-se no Quadro V abaixo um pequeno recorte
do registro do instrumento “Um dia na vida de...”:
Quadro V - Trecho registro observação Um dia na vida de Beatriz
Beatriz abre o portão para me receber, vestida de branco, com um jaleco
sobreposto e seu nome bordado, cabelos presos e óculos escuros. Seu semblante
transmite seriedade estando mais silenciosa que o habitual e com poucas palavras
conduz-me ao local em que receberei a massagem. Q
uando entro na sala
imediatamente fecha a cortina e tranca a porta. A maca branca está preparada
logo abaixo da janela, há uma música instrumental no ambiente, um ventilador
sob uma cadeira e alguns instrumentos como massageador e cremes sobre o sofá.
Beatriz pede que eu retire a blusa, deite-me de lado e a informe sobre qual lado
53
escolhi para me acomodar. Também pede silêncio absoluto para que conheça meu
corpo com suas mãos.
No início, demonstra uma certa ansiedade diante da
pesquisadora, talvez por saber que esse dia seria descrito em sua História de Vida.
O dia ensolarado faz com que sintamos calor no ambiente fechado e Beatriz percebe
que não posicionou o ventilador adequadamente. Pede desculpas e redireciona o
ventilador até que sinta o vento em nossos corpos. Durante a massag
em, um
utensílio com rodinhas (massageador) escapa de suas mãos e cai ao chão. Beatriz o
deixa sem demonstrar preocupação. Com o passar dos minutos, perde a ansiedade
inicial e com segurança executa cada movimento, com voz suave convida-me a
movimentar-me na maca para que contemple todos os pontos do corpo.
Durante todo o processo de massagem, Beatriz permanece em silêncio e eu
faço o mesmo, respeitando sua orientação já que é a primeira vez que me toca e
precisa concentrar-se para conhecer-me. Seus movimentos são precisos e atentos,
percebe cada detalhe e pergunta sobre os mesmos, toca em pontos que de fato eram
sensíveis e doloridos e explica os motivos das tensões. Informa sobre um pequeno
desvio na coluna, percebe uma hérnia de disco na lombar e faz algumas
recomendações.
A massagem, a música escolhida, os instrumentos utilizados levam a um
profundo relaxamento e alívio das dores decorrentes da má postura e tensões. A
timidez inicial de minha parte, logo é substituída por uma entrega àquele
momento, resultante do profissionalismo de Beatriz. Embora cansada pelo processo,
Beatriz demonstra satisfação com o resultado e com a devolutiva quando respondo
como me sinto após receber a massagem.
[...]Ao final de aproximadamente duas horas de massagem
, faço o
pagamento e Beatriz decide dar um desconto devolvendo-me uma nota. Pergunto
sobre como sabe se me devolveu o valor correto e sorrindo diz que pelo tamanho da
nota. Pisa no utensílio perdido (massageador) e exclama “encontrei!”.
Fonte: Da autora.
54
Autoinforme
Trata-se de um documento em que o próprio participante narra
em primeira pessoa sobre os aspectos que julga importante para a
composição de sua história de vida e interesse da pesquisa. De acordo com
Moriña (2017) esta técnica de coleta pode ser complementar a outras
utilizadas, proporcionando informações relevantes em um momento em
que o participante tem a oportunidade de tecer uma autorreflexão sobre
sua vida, no contexto e tempo escolhido por ela e sem a presença do
pesquisador. Nessa perspectiva pode ter o tempo que julgar necessário para
a autorreflexão e não há delimitação de páginas para a escrita. O
participante é orientado sobre o tema de interesse, porém se mantém livre
para realizar sua interpretação e significação imprimindo sua subjetividade
e avaliando o que julga importante e necessário informar. Este documento
pode conter informações essenciais para conhecer e construir a sua história
de vida.
Beatriz foi orientada a refletir sobre os motivos que a levaram a
escolher sua profissão e sobre a importância do trabalho, com a intenção
de compreender qual o significado e espaço do trabalho em sua vida. No
entanto, novamente era preciso considerar as especificidades da
participante, assim como, eventuais necessidades e pensamos juntas sobre
qual a melhor maneira de escrever o Autoinforme. Digitar um texto é algo
que exige muito de Beatriz, uma vez que encontra dificuldades ao trabalhar
no computador por não se adaptar às condições ofertadas. Cogitamos a
hipótese de escrever o texto pelo celular, via WhatsApp que é a modalidade
em que tem maior facilidade, o que foi descartado pela própria participante
que não teria a oportunidade de rascunhar, corrigir ou apagar algo se fosse
necessário. Realizar a escrita no papel também foi desconsiderado pela
dificuldade espacial. Sugeri que gravasse em áudio e por fim, decidiu
55
enfrentar a dificuldade com o computador e digitar o Autoinforme
enviando-me por e-mail. Beatriz pediu ajuda para uma amiga com cegueira
que conheceu na Associação de Deficientes Visuais e que segundo ela,
domina a formatação do programa necessária em seu computador em
digitação de textos.
Desde o início se mostrou determinada a escrever o Autoinforme
alegando que seria interessante, porém, o que a afligia era como conseguiria
escrever e enviar (nessa fase já estávamos em isolamento social). Chamou
atenção o fato dela não pedir ajuda aos familiares videntes para digitação
ou envio, preferindo uma amiga na mesma condição, talvez porque o
Autoinforme constituía em algo confidente e íntimo, em um exercício de
olhar para dentro de si mesma e não se sentiu confortável em revelar
naquele momento à família ou então pela necessidade de provar que seria
capaz de superar as dificuldades e concluir a tarefa mesmo sem o auxílio
da visão.
Ao final, Beatriz conseguiu digitar no corpo do e-mail e enviá-lo.
Disse que gostaria de ter escrito mais conteúdo, porém teve que ser sucinta
devido à dificuldade de digitação. Beatriz estava orgulhosa por ter
ultrapassado esse obstáculo e confiante em sua capacidade de aprender, não
se sentiu subestimada, tão pouco, incapaz. No Quadro VI abaixo é
apresentado o Autoinforme sobre o trabalho, ressalta-se que a edição no
texto foi mínima mantendo as expressões da participante e limitando-se às
pontuações e acentuações como circunflexo, crase e pontos de interrogação
não localizados pela participante no momento da digitação.
56
Quadro VI - Trecho AUTOINFORME
[...]Mas, foi no meu segundo e terceiro curso agora já cega que eu
realmente me encontrei, a massagem terapêutica me faz entrar em uma paz interior
quando a aplico, penso em como o corpo é tão grande e ao mesmo tempo tão
pequeno, os pontos que se aliviam com um toque, mas que também podem ser
facilmente machucado
s com uma massagem errada. Fazer minhas mãos
percorrerem um caminho que leva a pessoa que está recebendo a massagem ao avio
e relaxamento. Eu só me dediquei realmente à massagem quando comecei a fazer
o curso novamente já sem enxergar. No início era só mais um curso para mim,
como já tinha uma noção básica do que era, decidi fazer mais um, mas sem a
intenção de que se tornasse minha profissão, afinal já recebia a aposentadoria. Era
só mais um curso para eu ocupar a mente, passar o tempo. Comecei a fazer e me
interessei porque percebi que era muito além do que eu imaginava que poderia ser,
foi mais intenso do que quando fiz enxergando. Agora eu tinha outra visão de
mundo e também me identifiquei com a massagem terapêutica. Poder ajudar
outros com a terapêutica, ter uma utilidade para alguém, mesmo em minha atual
condição, foi decisivo para mim. É muito triste perceber que as pessoas veem que
você se tornou apenas alguém que precisa de ajuda e nunca alguém que pode
ajudar.
Não tem palavra que expresse a sensação de poder ajudar o próximo, não
sei se todos sentem a mesma felicidade e valorizam o toque como eu valorizo, mas
gostaria que todos sentissem o mesmo prazer em trabalhar naquilo que gostem, em
amar sua profissão, em reconhecê-la também como um dom. o quero parar de
fazer novos cursos, mesmo sabendo que para o deficiente
as coisas são mais
complicadas, mesmo assim, nunca podemos parar de buscar novos conhecimentos.
Fonte: texto de Beatriz.
57
Linha de Vida
Quando Beatriz construiu a sua linha de vida estávamos na fase de
isolamento social e além do objetivo original, a utilização do instrumento
naquele momento teve ainda a intencionalidade de diminuir o
distanciamento entre nós e mantê-la envolvida com a pesquisa. A linha de
vida se constitui em um instrumento de apresentação visual que pode
combinar informações quantitativas e qualitativas por meio de uma
ilustração, ou seja, de um gráfico. Pedir ao participante que desenhe a linha
de vida é o mesmo que pedir para que faça uma relação entre passado e
presente de forma clara e coerente, em ordem cronológica revelando a
importância e significado de cada evento em sua história. Trata-se de
simplificar de forma visual o processo de comunicação substituindo textos
extensos por símbolos, figuras ou palavras chaves (MORIÑA, 2017).
Segundo Moriña (2017) há variadas formas de realizar a linha de
vida que pode ser linear sem incluir nenhum tipo de mensuração, pode
incluir números para quantificar como mais ou menos, maior ou menor,
ou ainda utilizar-se da valoração de eventos como negativos ou positivos.
Seja qual for a opção escolhida, a autora ressalta que esta é uma técnica que
complementa ou confirma uma história de vida de forma simplificada
sendo, todavia, utilizada em combinação com outros instrumentos,
podendo ser necessária uma entrevista semiestruturada para esclarecer os
fatos.
Atendendo as singularidades da participante deste estudo,
conversamos sobre a melhor forma para delinear a linha de sua vida
considerando a falta de vio e dificuldades no uso do computador. Ficou
estabelecido, de acordo com as suas necessidades, que faria um texto linear,
em ordem cronológica, sem quantificações como maior, menor, mais,
menos, positivo, negativo, ou seja, sem juízo de valor, mas com palavras
58
chaves e ano do acontecimento registrando apenas aqueles significativos
no percurso de sua vida. Beatriz enviou por e-mail um texto com datas e
eventos marcantes para si e foi notória a evolução e rapidez com que o fez
quando comparado à primeira vez na escrita do Autoinforme, fato que a
entusiasmou. Acordamos que a pesquisadora o organizaria em um
infográfico, uma vez que se fez inviável para a participante, no entanto,
acompanharia o processo de construção do gráfico com o seu texto.
Após o envio, conversamos por meio de vídeochamada sobre a
disposição na linha do tempo e se recordou de dois fatos que esquecera,
mas que gostaria que constassem. Quando concluída a linha de vida com
os dados que enviara e na ordem em que construíra, descrevi
minuciosamente à Beatriz como ficaria, qual o tipo de gráfico utilizado e
ainda, realizei a leitura de todo o conteúdo obtendo sua aprovação final.
Como um processo democrático e de intensa participação e envolvimento
a palavra de Beatriz foi sempre valorada nas tomadas de decisões durante a
coleta de suas narrativas, transcrições e tratamento dos dados, bem como,
na apresentação, disposição e escrita. Ressalta-se que os títulos das datas na
linha de vida foram dados pela própria participante e mantidos pela
pesquisadora. No Quadro VII abaixo segue o texto enviado, cuja linha de
vida concluída o leitor contemplará no texto final de sua história de vida.
Não houve a necessidade de uma entrevista semiestruturada para
conversarmos sobre os acontecimentos mencionados em seu texto, uma
vez que foram espontaneamente comentados durante as entrevistas em
profundidade.
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Quadro VII - Texto “Linha de Vida”
2003- Trabalho na padaria.
2004- Ano bom, em que comecei a namorar.
2005- Comecei fazer curso de inglês, computação e açúcar e álcool.
2006- Fiz um curso de massagem.
2007- Sofri um grave acidente e comecei curso de alimentos e bebidas.
2008- Terminei o curso de alimentos, formatura que alegria!
2009- Estágio na vinagreira fui à praia.
2010- Novo emprego e novos planos.
2011- Sofri a agressão.
2012- Nascimento da minha sobrinha, uma alegria em minha vida.
2012- Descobri que não voltaria mais a enxergar.
2013- Conheci a Associação Deficientes Visuais (ADVAR).
2014- Meu agressor saiu da cadeia e foi para o manicômio.
2015- Andei de bicicleta sozinha na associação.
2016- Curso de Braile e computação.
2017- Vendi minha moto, que triste. Assisti a uma palestra para mulheres
cegas.
2017- Comecei um curso de Massagem Terapêutica.
2017- Fiz um curso de Massagem Relaxante e de crochê.
2018- Meu agressor saiu do manicômio, acabou a minha paz!
2018- A tia que salvou a minha vida faleceu.
2020- Aceitei participar da pesquisa.
Fonte: texto de Beatriz.
60
Entrevista com Outros Informantes
O último instrumento utilizado para a construção da história de
vida de Beatriz foi a entrevista com outros informantes, realizadas após a
flexibilização do isolamento social, no entanto, tomando todas as medidas
preventivas necessárias. Segundo Moriña (2017) essa técnica é composta
de entrevistas semiestruturadas realizadas com pessoas consideradas chave
na trajetória da protagonista da história de vida. Esse instrumento permite
a construção de diferentes vozes e pontos de vista que dialogam e
complementam a fala da protagonista o que resulta em múltiplos olhares
sobre uma mesma realidade formando uma polifonia de vozes (PUJADAS,
2000; MORIÑA, 2017).
As pessoas entrevistadas foram escolhidas por Beatriz tendo em
consideração a importância de cada uma na reconstrução da história de sua
vida representando fases diferentes e essenciais para o entendimento de sua
trajetória. As entrevistas semiestruturadas foram construídas em conjunto
com Beatriz que, inclusive, elaborou algumas perguntas para cada
entrevistado, as quais considerava importante para a composição de sua
história. Após a escolha dos participantes e delineamento das perguntas,
Beatriz entrou em contato com cada um deles para fazer o convite. Todos
aceitaram de imediato e então acordaram o melhor dia e formato com a
pesquisadora.
O primeiro a ser entrevistado foi Wagner, professor de Beatriz nos
cursos de Massagem Terapêutica e Massagem Relaxante que realizou após
perder a visão. Para Beatriz, se trata de uma pessoa essencial na construção
de sua história. A partir de um sonho de ensinar as técnicas de massagem
para pessoas com deficiência visual e a oferta dos cursos, em algumas
ocasiões com seus próprios recursos financeiros, é que Wagner viabilizou a
61
atual profissão de Beatriz, adequando todo o conteúdo às suas necessidades
e oferecendo suporte, esclarecendo dúvidas até nos dias atuais quando
necessário.
A entrevista com Wagner foi realizada presencialmente, na casa da
pesquisadora e teve duração de 02h04m. Como dito anteriormente, as
perguntas foram elaboradas em parceria com Beatriz e abrangeram
questões como seu desempenho no curso, dificuldades, potencialidades,
superações.
A segunda entrevistada foi Bela, tia de Beatriz, por quem sente
muito apreço e gratidão. Beatriz morava com Bela no período em que
sofreu a agressão e a tia esteve ao seu lado em todos os momentos difíceis
como cirurgias, viagens para São Paulo, recuperação, etc. As perguntas
permearam o olhar de Bela para a agressão, os momentos posteriores, as
mudanças em Beatriz e sua identidade atual. Foi realizada na residência de
Bela com duração de 01h34m em que se emocionou algumas vezes.
Por fim, a terceira entrevistada foi Ivana, cliente de Beatriz há dois
anos, que mantém constância nos atendimentos, por isso, escolhida para
falar sobre Beatriz como massoterapeuta. Ivana sofre de fibromialgia e esse
foi o motivo que a fez recorrer às massagens. A entrevista teve duração de
18 minutos e ocorreu por meio de chamada de vídeo, e embora em curto
período de tempo, foi precisa e com informações relevantes para a
reconstrução da história de vida.
As três entrevistas foram transcritas, lidas diversas vezes e
sublinhados os aspectos chave para a composição da história de vida. No
Quadro VIII abaixo, a caráter de exemplificação, apresentamos o roteiro
de uma delas, elaborado pela pesquisadora e Beatriz. Ressalta-se que se
trata de uma entrevista semiestruturada, o que pressupõe que estas foram
apenas as perguntas iniciais, sendo que algumas foram respondidas
62
espontaneamente pelo entrevistado, outras emergiram ao decorrer do
diálogo. O Quadro VIII abaixo apresenta um dos roteiros de entrevista:
Quadro VIII - Entrevista com Wagner
1. Como você conheceu Beatriz?
2. Qual foi sua impressão sobre ela no momento em que a conheceu?
3. Você poderia me falar um pouco sobre a experiência de ministrar o
curso de massagem Terapêutica para pessoas com cegueira e baixa
visão?
4. Poderia descrever a aluna Beatriz?
5. Beatriz teve dificuldades durante o curso?
6. Se sim, quais foram?
7. Como superou as dificuldades?
8. Você percebeu alguma potencialidade em Beatriz?
9. Se sim, quais eram as potencialidades?
10. Percebeu alguma mudança em Beatriz ao decorrer do curso?
11. Se sim, que mudança?
12. Você imaginava que a Massagem Terapêutica se tornaria a profissão
de Beatriz? Por quê?
13. Como você descreveria a profissional Beatriz?
14. Tem alguma informação que gostaria de acrescentar?
Fonte: Da autora em conjunto com Beatriz.
63
5.
Análise Narrativa
A escolha de como os dados de uma pesquisa serão analisados deve
corresponder aos ideais de cada método proposto para que não deixe de
contemplar a intencionalidade do estudo, invalidando todo o caminho
metodológico percorrido e impossibilitando a interpretação e significação
do que foi coletado. Nessa perspectiva, a análise narrativa parte do
princípio de dar voz e manter-se fiel às percepções da própria pessoa que
narra experiências de vida, o que corresponde perfeitamente ao método
adotado História de Vida.
Esse tipo de análise é realizado ao mesmo tempo em que os dados
estão sendo coletados concomitantemente e é favorecido quando se tem
um único participante, como no caso deste estudo, uma vez que se analisa
junto com o protagonista sem a intencionalidade de criar categorias ou
comparar sua história com a de outrem. A preocupação maior existente é
manter o mais fiel possível à vida do narrador reconstruindo sua trajetória,
o que implica em organizar os elementos coletados de forma que se torne
uma história coerente, clara, permeada de sentido e significados que
expressem de modo autêntico a individualidade de uma vida, sem
manipular a voz daquele que narra (MORIÑA, 2017).
Em suma, a análise narrativa busca contemplar a história como um
todo, sem qualquer fragmentação, por isto a importância de coletar e
analisar os dados simultaneamente evitando que o pesquisador se depare
com um grande montante de informações acumuladas e cujos detalhes e
sentidos tenham se perdido com o tempo. Os dados quando analisados em
64
conjunto com o narrador, como já explicitado nos tópicos anteriores,
permitem que as informações sejam organizadas seguindo uma lógica
temporal, o que propicia sentido ao leitor.
Moriña (2017) explica que as pessoas contam as histórias de suas
vidas e aos pesquisadores cabe o papel de converter esses relatos com o
tratamento metodológico mais adequado ao método história de vida.
Segundo a autora, na análise narrativa a história deve ser abordada
considerando a sua singularidade e a narrativa constitui o ponto central da
análise. Nesse sentido, a autora elenca alguns passos que se constituem
essenciais para o percurso de análise, como realizar a leitura de toda a
informação coletada, em seguida organizar essas informações em uma
ordem cronológica do passado até o presente e identificar os momentos
chaves narrados pelo participante.
Por último, ressalta a importância de manter a neutralidade no
momento da análise em relação à história narrada. O pesquisador não está
ali para julgar, questionar ou priorizar a sua interpretação sobre a história
em si, mas para de maneira fiel dar visibilidade e voz àquele que a narra.
Dessa forma, se faz de relevantes os momentos em que participante e
pesquisador negociam e juntos analisam a escrita do texto. No momento
adequado o pesquisador se colocará, apresentando sua subjetividade e
interpretação deixando explícito ao leitor que nesta fase é o investigador
quem está falando.
Moriña (2017, p. 82) explica que tem denominado de modelo
omnicompreensivo a análise em que o pesquisador realiza diferentes leituras
para cada história de vida considerando-as únicas, singulares, o que resulta
em um direcionamento de cinco olhares para a história contada, que
garantam o respeito, fidedignidade e sensibilidade às suas particularidades
e são eles holístico; focalizado; temático; cronológico e subjetivo aos quais
adotamos e elencamos a seguir:
65
Olhar Holístico
O olhar holístico se refere a contemplar a história como um todo
centrando-se na individualidade e especificidades da pessoa que narra sua
vida. Olhar o todo é possível quando as gravações das entrevistas são
ouvidas, transcritas e lidas diversas vezes. O processo da análise narrativa
começou já nas transcrições das entrevistas que por sua vez, constitui
momento importante para que o pesquisador se aprofunde, se envolva e
interprete o relato do narrador. A transcrição foi sempre realizada no dia
seguinte à entrevista para que os detalhes como silêncio, pausa, lágrimas,
riso, incertezas, hesitação ou outros ainda estivessem presentes na
memória, uma vez que esses detalhes podem passar despercebidos quando
se conta apenas com o recurso do áudio. Essas peculiaridades da narrativa
de Beatriz foram explicitadas nas transcrições dentro de parênteses.
Utilizamos caixa alta para designar a voz alterada e os pontos de exclamação
para identificar indignação ou surpresa.
O processo de transcrição é denso, moroso e requer total
disponibilidade, concentração, além de resistência física e emocional. As
entrevistas tiveram duração de duas a três horas, o que demandaram de
treze a dezoito horas de transcrições, totalizando cerca de trinta a quarenta
páginas de texto em cada entrevista. Conforme acordado com a
participante, durante a transcrição houve edição passando às normas
ortográficas da língua escrita, o que implica em corrigir apenas erros de
português, conjugação verbal, plural, entre outros. A intencionalidade em
editar o texto foi não propagar estigmas acerca da participante quando
poderia deixar de ouvir sua voz por manterem-se presos às normas
ortográficas, barrando a fluidez da leitura e a silenciando. As expressões
que caracterizavam o estilo de Beatriz foram mantidas, assim como o
sentido. Beatriz manteve-se ciente de todas as edições e reviu todos os
66
textos para que avaliasse se esses correspondiam de fato à sua forma de
expressar-se.
Nessa perspectiva, imediatamente após a realização da entrevista o
relato era transcrito, editado e os principais aspectos elencados em um
novo texto que durante o próximo encontro era lido para Beatriz para que
aprovasse, corrigisse, alterasse ou acrescentasse algo. Os textos eram lidos
sempre no início da entrevista para que relembrasse os pontos centrais da
última conversa, sendo enviados por e-mail para a participante, que assim
os ouvia pausadamente e os analisava sem a emoção do momento e
presença da pesquisadora. Nesse período a pesquisadora realizou várias
leituras do texto transcrito, processo que propiciava uma análise sobre o
que estava sendo levantado, bem como os caminhos trilhados, o que
poderia ser aprofundado, os temas que surgiam, o que não fora
contemplado e consequentemente, por onde começaríamos no próximo
encontro, ou seja, um olhar holístico.
Olhar Focalizado
Após olhar para o todo se faz importante um olhar focalizado, ou
seja, perceber os detalhes dos relatos e isto é possível por meio dos dados
obtidos em cada instrumento utilizado. Os instrumentos anteriormente
descritos nesse estudo foram sistematicamente registrados em arquivo,
lidos várias vezes para que os detalhes que emergiram e que talvez não
surgissem de outra forma, fossem apreendidos.
Os detalhes observados e registrados pela investigadora em “Um
dia na vida de...” trouxe à tona elementos que talvez não fossem ditos pela
participante como, por exemplo, sua postura séria e concentrada, a
necessidade de silêncio para que conheça o corpo com as mãos, a
67
preocupação com o bem estar de seu paciente, como reage a imprevistos
como a queda do massageador, o ventilador que não foi posicionado na
direção desejada, estratégia para conferir o pagamento. Embora esses
detalhes possam parecer pequenos e pudessem ser ignorados até mesmo
por Beatriz que lida com eles cotidianamente, podem ser significativos para
compreender o ambiente laboral, intercorrências e estratégias de
superação, a forma de se apresentar.
Da mesma forma, o “AutoInforme” trouxe informações relevantes
que posteriormente originaram conversas por meio de frases
desencadeadoras. O Autoinforme propiciou olhar para um detalhe contido
em uma frase escrita por Beatriz em que evidenciou o estigma relacionado
à deficiência e que pode pautar, inclusive, a escolha profissional quando
refere à preferência por algumas deficiências consideradas mais leves em
detrimento de outras. A orientação foi para que escrevesse sobre seu
trabalho e a importância que tem em sua vida, e para am, a participante
levantou a questão do estigma.
Um olhar focalizado na linha de vida de Beatriz evidenciou temas
que foram considerados importantes para ela e revelaram com clareza
como a mesma identifica sua vida por um antes e depois da deficiência.
Beatriz levanta na linha detalhes de uma vida agitada dentro da
normalidade cotidiana de quem trabalha, estuda, planeja e após, como
reaprendeu a comemorar conquistas que anteriormente pareceriam
pequenas como andar de bicicleta. Alguns temas destacados em sua linha
de vida não haviam sido levantados nas narrativas, no entanto, emergiram
no texto construído nesse instrumento e comporiam os próximos diálogos
em entrevistas abertas.
Embora pareçam pequenos os detalhes emergidos dos
instrumentos, revelam o que faz desta história única e de seu cotidiano
autêntico, rico em vivências, sentimentos, reações, enfrentamento,
68
aceitação diante da sociedade, do estigma, de suas próprias limitações e
deficiência.
Olhar Temático
Até aqui já tivemos um olhar holístico quando observamos o todo
através de inúmeras leituras das transcrições e ainda, um olhar focalizado
quando observamos e registramos detalhes propiciados pelos
instrumentos. Esta é a fase da análise em que se adota o olhar temático, o
que implica em explorar cada relato transcrito sem um sistema de
categorias pré-concebido. Antes, os temas emergiram da narrativa da
própria participante, daquilo que considerou importante ser dito, de suas
percepções sobre o que era necessário narrar (MORIÑA, 2017). Assim, as
informações foram organizadas pautadas nos diferentes temas que Beatriz
levantou e interpretou como significativos para a entrevista.
Faz-se necessário esclarecer que a pesquisadora foi a campo tendo
claro o principal tema do estudo, a saber, o estigma vivenciado pela pessoa
com deficiência, como/se o reconhece e como/se o enfrenta. No entanto,
o tema de interesse da pesquisadora não é lançado sobre a participante
como se pudesse ou devesse fornecer uma resposta pronta e acabada. Antes,
a participante fala livremente sobre os temas de seu interesse e escolha, aos
quais julgam importantes e significativos e com base nas informações
gentilmente concedidas, a pesquisadora pôde contemplar traços, indícios
e evidências daquilo que buscou investigar. Nesta fase entra a subjetividade
da pesquisadora, além daquela colocada pela participante, quando
interpreta como estigma as situações narradas sob outros temas levantados
autonomamente por Beatriz. Ao lançar olhar para algo dito sobre
69
percepção do outro, é possível contemplar novo ângulo, mas isto será
detalhado adiante.
Diante do exposto, adotamos alguns passos para organizar todas as
informações sob um olhar temático. O primeiro deles foi novamente a
leitura do todo. O texto transcrito foi lido demoradamente com o máximo
de atenção para identificar cada tema levantado pela participante em sua
narrativa. Em uma próxima leitura, os temas já claros para a pesquisadora
foram anotados totalizando 13: Identidade; Família; Amizades;
Relacionamentos; Formação; Trabalho; Planos; Medos; Fé; Agressão;
Agressor; Deficiência; Sociedade. Ressalta-se que os treze temas
explicitados foram levantados por meio das quatro primeiras entrevistas até
o momento do isolamento social, ou seja, foram construídos até que o
contato pessoal fosse interrompido. Após cinco meses de interrupção das
entrevistas presenciais, retornamos e realizamos mais duas entrevistas
emergindo o tema Estigma.
O terceiro passo sucedeu as anotações dos temas emergidos por
meio de nova leitura e constituiu em separar cada tema de seu texto
original alocando-o em um quadro com título. Desta forma, todas as falas
que se relacionaram à personalidade, gostos, aptidões e características
pessoais de Beatriz foram agrupadas em quadro intitulado “Identidade”.
Na sequência, tudo o que foi dito sobre seus pais, irmãs, tias e outros com
parentesco abrangendo relações, afinidades, desentendimentos e
sentimentos foram agrupados no quadro intitulado “Família”. Da mesma
forma, as narrativas a respeito de amigos da época em que enxergava, bem
como aqueles que conheceu após ter perdido a visão foram colocados no
quadro “Amizades”. Dando sequência, os relacionamentos amorosos
vivenciados antes e depois da agressão sofrida foram agrupados no quadro
“Relacionamentos”. Tudo o que se referiu à vida escolar e cursos
profissionalizantes se encontram no quadro “Formação”. No quadro
70
“Trabalho” agrupou-se as falas sobre funções realizadas antes da deficiência
e a interação que ocorria, a escolha da nova profissão na segunda fase de
sua vida e vivências. Nesta perspectiva, as informações sobre os planos que
fazia até o momento em que foi agredida e os planos que traçou até o
momento atual foram colocadas no quadro “Planos”. As narrativas sobre
o que lhe causa temor foram sistematizadas no quadro “Medos”, assim
como, relatos sobre a espiritualidade que serviram como base par compor
o quadro “Fé”.
Os relatos mais difíceis sobre como foi o dia em que foi agredida,
bem como, os dias do primeiro ano após a agressão foram selecionados
para o quadro “A Agressão”. Ressalta-se aqui que a escolha por agrupar o
dia da agressão com os que o sucederam e não separadamente em quadro
específico para os momentos pós-agressão, justificado pelo fato de estarem
intensamente interligados para Beatriz, como se os dias posteriores,
extensão do dia da agressão, fossem um único e mesmo dia, um mesmo
pesadelo, uma sucessão de dores e descobertas lentas e dolorosas para si. O
dia da agressão e o primeiro ano após, são para Beatriz como um único dia
e só após o primeiro ano é que desconstruiu a antiga identidade e aceitou
a nova que se apresentava. Isto foi percebido durante a entrevista, escuta
do áudio e leitura minuciosa da transcrição em que Beatriz fala sobre o
primeiro ano com a mesma dor, intensidade e veemência não distinguindo
a separação temporal, não diferenciando o tempo percorrido. Foi
necessário intenso esforço por parte da pesquisadora para compreender o
que aconteceu no dia em que foi agredida (cirurgias, circunstâncias,
posturas de terceiros) e o que ocorreu meses após. Mesmo tendo
esclarecido, em respeito à percepção de Beatriz, é que foi tomada a decisão
de um único quadro, uma única dor:
71
Foi um ano em que eu tinha muita coisa na cabeça. O primeiro ano para
mim eu tinha toda aquela esperança de voltar a enxergar, eu fiquei um ano
querendo enxergar. As minhas amigas vinham e mostravam alguma foto e
diziam vou guardar para você ver depois, fotos, reportagens... então eu
vivia com aquela expectativa, sem saber como seria (fala de BEATRIZ).
Logo em seguida foram realizadas as separações sobre quem é o
homem que a agrediu, o parentesco e amizade que possuía e as vivências e
supostos motivos, e ainda, sua situação atual em um quadro denominado
“O Agressor”.
O quadro “Deficiência” contempla narrativas sobre especifici-
dades da cegueira, dificuldades, limitações, descobertas, novas formas de
ser e estar no mundo. Nesse momento, houve a separação daquilo que se
referia a sua identidade como quem é, o que gosta e faz (já agrupados no
quadro “Identidade”) do que se relacionava a deficiência em si e
consequências. Embora pareçam falas semelhantes e indissociáveis na
própria narrativa da participante, compreendemos como relatos distintos,
ou seja, para além da deficiência, anteriormente olhamos para a pessoa. Por
fim, separamos as narrativas sobre a forma como é vista, rotulada e julgada
pelas pessoas externas ao seu contato familiar, sobre os entraves de
acessibilidade e outros os alocando no quadro “Sociedade”.
Mais uma vez destaca-se que estes foram os temas emergidos por
Beatriz, no período que antecedeu o isolamento social durante as quatro
entrevistas realizadas e em cada um deles foi possível contemplar a presença
do estigma, ainda que não dito explicitamente. Por fim, as novas
entrevistas realizadas durante a flexibilização do distanciamento social
também passaram pelo mesmo tratamento das iniciais e foi acrescentado o
quadro “Estigma” em que Beatriz discorreu sobre situações vivenciadas em
que se sentiu estigmatizada pela sua condição de pessoa com deficiência.
72
Findo o terceiro passo que demandou um olhar mais demorado,
prosseguimos para o quarto que se constitui em a leitura de cada quadro
considerando se os textos selecionados correspondiam aos temas
intitulados. Nessa fase foi possível perceber que um mesmo trecho poderia
corresponder a mais de um tema, sendo necessário decidir em qual seria
priorizado ou em outros casos, de fato permaneceria em mais de um
quadro, como no exemplo:
No meu ponto de vista, a Paola não consegue entender que não
enxergo mais, que eu sou deficiente hoje em dia. Ela não quer
aceitar, ela acha que sou... sou “eu” de antes. Mas não sou mais
aquela de antes, hoje eu tenho limitações (fala de BEATRIZ).
O trecho acima foi colocado no quadro “Identidade” por refletir
sobre quem é a pessoa de hoje e quem era a pessoa anterior. Foi ainda
agrupado no quadro “Família” por tratar da relação conflituosa com a
irmã. O mesmo trecho foi agrupado no quadro “Deficiência” quando
narra especificamente limitações consequentes.
Até esse momento, os dados refletiam um absoluto caos e parecia
não fazer sentido fragmentar os textos desta forma. No entanto, dando
sequência ao quinto passo que foi uma nova leitura de todos os quadros
com um olhar para o todo e não mais para pequenos trechos fragmentados,
assim foi possível contemplar o sentido e o novo texto que estava sendo
estabelecido, revigorando o ânimo para continuidade. Desta forma, foi
possível compreender a importância de valorizar o olhar para o todo, até
quando vivenciando o caos.
Ressalta-se que nesta fase vivíamos um momento histórico de
pandemia mundial e relações sociais interrompidas quando todos se
73
mantiveram em isolamento para segurança, no entanto, a participação de
Beatriz na análise de dados fez-se necessária e o fizemos por meio de
conversas em chamadas de vídeo e áudios gravados. Beatriz esteve ciente
do que se tratava o olhar temático, dos temas que levantou e das
informações contidas em cada um deles, concordando com a disposição e
organização, reconhecendo-as como legítimas.
A sensação de absoluto caos vivida pela pesquisadora também foi
experimentada por Beatriz no início, antes do olhar para o todo, que se
mostrou interessada em compreender cada tema e ainda surpresa com a
quantidade de informações que construiu. O processo que no início lhe
pareceu difícil afirmando que seria incapaz de construí-lo se estivesse
sozinha, ao final, foi visto como gratificante e interessante.
Nesta fase, Beatriz levantou vários questionamentos de dúvidas que
surgiram, entre elas, como suas falas foram colocadas de tal forma que
puderam se manter fieis inclusive às suas pausas, risos, hesitações e
expressões. A pergunta foi esclarecida com a explicação de que no
momento da transcrição, sempre imediatas às entrevistas, essas
particularidades presentes na linguagem oral estavam ainda presentes na
memória o que possibilitou os registros por meio de parênteses como
(risos); (... hesitação); (silêncio). Na realidade, essa pergunta foi importante
devolutiva para a pesquisadora quando a participante se reconheceu nas
transcrições e textos dos temas. Beatriz explicitou ainda quais os trechos
que não gostaria de observar publicado na tese, os quais foram selecionados
com cores fortes que os destacassem. Deixou claro ainda, qual o quadro
que gostaria de não expor na tese para preservar sua identidade e vida
íntima, vontade que também foi respeitada o que leva a desconsideração
do tema “Relacionamentos” na escrita de sua história de vida, ou seja,
embora esse quadro permaneça no arquivo de análise de dados e todas as
74
conversas posteriores sobre a temática continuem sendo agrupadas nele,
estas informações não serão publicadas.
Questionou sobre o que a pesquisadora mostraria em apresentações
da tese em eventos e bancas. Neste momento surgiu o tema estigma que
embora mencionado na leitura do termo de consentimento livre e
esclarecido, foi esquecido pela participante. A pesquisadora explicou como
é feita uma apresentação passando por uma introdução do tema
investigado, o objetivo e método, a história de vida e as considerações finais
sobre o todo. Beatriz quis saber sobre o significado do estigma ao qual lhe
foi explicado e se mostrou interessada em fazer reflexões sobre situações em
que foi estigmatizada, já narradas para a pesquisadora, porém sem ter
consciência do que de fato significavam na sociedade.
Este assunto desencadeou a curiosidade sobre outras formas de
fazer pesquisa, perguntando se é possível em uma única entrevista obter
tantas informações como as que construímos. A pesquisadora descreveu
que esta é a principal característica do método que realizamos, ou seja, a
profundidade e proximidade que não podem ser construídas em entrevistas
rápidas ou em um único dia. Como devolutiva, narrou sobre a empatia
que sentiu desde a primeira entrevista, alegando que a confiança,
identificação e proximidade foram cruciais para que falasse
confortavelmente e de forma livre, detalhada e espontânea sobre a sua vida,
o que não ocorreu em outras entrevistas que já concedeu para emissoras
que a procuraram devido à grande repercussão e comoção que a agressão
sofrida causou.
Diante do exposto, é válida uma síntese sobre a participação de
Beatriz no momento da análise temática:
75
Quadro IX - Participação na análise
Olhar temático: Inicialmente considerou um processo denso e difícil e em
seguida o compreende considerando-o interessante.
Apresentação da tese:
Pergunta sobre o que será dito em apresentações da tese
em eventos e bancas. Interessa-se e levanta questões.
Estigma: Pergunta sobre o que é estigma, interessa-se, compreende e reflete
sobre situações que descreveu anteriormente à pesquisadora em que foi
estigmatizada, porém sem saber o significado.
Particularidades do método: Pergunta sobre o método e instiga-se a conhecer
sobre como as informações são levantadas em outros tipos de coleta, encanta-
se pelas especificidades do método história de vida.
Devolutiva: Narra sua experiência com as entrevistas, da proximidade e
confiança que sentiu com a pesquisadora, sobre outras entrevistas concedidas
nas quais não abriu inteiramente sua vida, no quanto se sente à vontade e
segura para contar detalhes de sua vida e participar do estudo.
Temas:
Ouve atentamente a leitura sobre cada tema e trechos que o representa,
conversa com a pesquisadora sobre eles, concorda com a organização e se
mostra satisfeita com o olhar sobre o todo.
Beatriz pergunta como a
pesquisadora conseguiu retratar inclusive suas expressões e momentos em que
sorriu ou enfatizou alguma explicação. Fez observações sobre trechos e quadro
que não gostaria de expor na tese.
Fonte: Da autora.
As conversas online sobre a pesquisa no momento de pandemia e
distanciamento social oportunizaram que nos mantivéssemos próximas
preservando o vínculo construído e ainda mantiveram o crescente interesse
de Beatriz pela pesquisa, pelo impacto que causaria na sociedade, sobre as
reflexões que levantaria sobre a deficiência e estigma. Inteirar-se e
participar do processo de análise se constituiu muito relevante para que
vivenciasse de maneira plena o significado de um método em que os papéis
são compartilhados. Beatriz se apoderou inclusive de termos próprios da
76
linguagem acadêmica se apropriando do conhecimento acerca do método
do qual participa e realizando leituras de artigo sobre a temática deficiência
e trabalho.
No método História de Vida o pesquisador coloca-se no lugar do
participante, a participante no lugar de pesquisador, desconstruindo
hierarquias, construindo conhecimento, empatia, ou seja, a capacidade de
enxergar o mundo pela visão do outro. A pesquisadora aprende com a
participante sobre o estigma na prática, sobre enfrentamento, sobre
vivências diferentes da sua. A participante aprende com a pesquisadora
sobre o estigma na teoria, sobre método, análise, sobre significar sob outro
olhar suas próprias experiências. Ambas aprendem sobre a importância de
cada uma na construção de uma história de vida.
Olhar Cronológico
Após o olhar temático em que todas as informações, sem exceções
foram agrupadas em quadros com os temas correspondentes formando
novos textos, o próximo passo foi organizar estas informações em uma
sequência temporal. É sabido que na linguagem oral, por mais que haja a
intencionalidade, as narrativas não seguem uma lógica rígida de ordem
cronológica, ou seja, ao mesmo tempo em que narra o presente faz-se
menções ao passado ou futuro, o que não produz um discurso em
sequência evolutiva.
Houve a preocupação em respeitar o estilo temporal da própria
participante que narra sua história marcada explicitamente em três tempos:
a vida antes da agressão; a vida no primeiro ano em que sofreu a agressão
e a vida após o primeiro ano da agressão até a atualidade. Seguindo a
mesma vertente, na fase do olhar cronológico, construímos três novos
77
quadros para (re) agrupar as informações já separadas por temas. O
primeiro quadro foi intitulado “Primeiro Tempo: a Normalidade” e nele
foram agrupadas todas as informações temáticas que aconteceram quando
Beatriz vivenciava a vida dentro do que conhecemos como normalidade.
Seguimos respeitando a ordem temática o que implica em manter os títulos
com seus respectivos textos, entretanto, dentro de um novo quadro
temporal.
Da mesma forma ocorreu com o segundo quadro intitulado
“Segundo Tempo: a Agressão” em que mantivemos as informações com os
títulos correspondentes (família, fé, medos, agressão, etc.), porém em um
novo quadro correspondendo ao tempo em que ocorreram, (o dia da
agressão ao primeiro ano após) pelos motivos explicitados no tópico
anterior em que se justifica a junção do dia da agressão com o primeiro
ano após. Na sequência, foram agrupados todos os temas levantados
durante o terceiro tempo da vida de Beatriz no quadro intitulado “Terceiro
Tempo: a Deficiência” que se refere aos fatos ocorridos desde os dias que
se passaram após o primeiro ano da agressão em que se descobriu como
uma pessoa com deficiência até o momento da construção de sua história
de vida.
Organizar as narrativas que já estavam separadas tematicamente foi
um processo que embora não tão exaustivo quanto o olhar temático,
demandou atenção e tempo, uma vez que perder-se em meio aos dados
quando os transferindo e reorganizando-os era algo fácil de ocorrer. Como
estratégia, em cada trecho selecionado era repetido em voz alta o tema e
tempo a que se referiam, como exemplo “Tema Família, Terceiro Tempo”.
Fez-se necessário criar estratégias como esta, para manter a concentração e
ativar a memória quando a partir da décima página, o processo para
encontrar o local em que o texto seria inserido tornava-se demorado o que
consequentemente poderia resultar em equívoco quanto ao tempo ou
78
esquecimento do tema. Ainda foi possível refinar pequenos trechos que
nesta fase, pareciam claramente pertencer a outro tema, mas que passaram
despercebidos outrora.
Semelhantemente à fase do olhar temático, um novo caos parecia
se impor com as narrativas, assim como, novas fragmentações em um
único parágrafo ou frase para que obedecessem a lógica cronológica
pareciam não fazer sentido ou ter um porquê. No entanto, ao final, por
meio de um novo olhar para o todo foi possível perceber o quanto esta
organização propiciou maior foco para aquilo que realmente era necessário
ser contemplado na história de vida facilitando o momento de reconstr-
la. Diversas informações que estavam “inseridas” em uma mesma frase ou
parágrafo ao serem separadas nos quadros cronológicos puderam ser
facilmente excluídas, quando desnecessárias para a composição da história,
considerando o limitado número de páginas (embora não haja uma regra
rígida ou explícita, o desejável é que a história ocupe aproximadamente
quarenta páginas) fato que oportunizou um olhar focalizado e um texto
claro e contínuo sem desviar-se do interesse e objetivo do estudo.
Finalmente, em uma última leitura dos quadros cronológicos foi
realizada nova organização dentro de cada tempo, ou seja, as informações
que foram apenas agrupadas dentro dos três tempos sem a preocupação em
deixá-las na ordem de acontecimentos (mas apenas se ocorreram no
primeiro, segundo ou terceiro tempo), foram nesta fase detalhadamente
organizadas em uma sequência fiel da infância a os dias atuais. Por
último, foram destacados do texto, juntamente com Beatriz, aspectos
considerados fundamentais e trechos chaves para a composição e
apresentação da história de vida no texto final que se apresenta aos leitores.
79
Olhar Subjetivo
Segundo Moriña (2017) a subjetividade é compreendida sob uma
dupla perspectiva que envolve a do protagonista da história de vida, ou
seja, aquele que narra sua vida e ainda, a do pesquisador. Para imprimir e
valorizar a subjetividade do participante é preciso ofertar as condições
necessárias para que participe de todo o processo, desde quando aceita
narrar sua história até a organização e análise de dados. Beatriz se viu
refletida na história construída, certificou-se de que a pesquisadora foi fiel
às suas palavras e experiências, assim como às suas dores e emoções, teve a
última palavra nas tomadas de decisões, revisou cada texto sobre sua
história, bem como sobre cada tema emergido decidindo quais seriam
contemplados, aprovou, completou e analisou tudo o que estava sendo
construído. Apoderou-se do conhecimento sobre estigma e ressignificou
suas próprias vivências e foi ao final de todo este processo garantiu e
reconheceu sua subjetividade no estudo.
Por outro lado, para Moriña (2017) é inevitável não imprimir
também a subjetividade do pesquisador, uma vez que é ele quem realiza as
transcrições e edições que posteriormente organizadas constituem a
história de vida para o leitor, que desencadeia por meio de uma frase o
diálogo que se segue, ouve, dialoga e interpreta o que lhe está sendo dito e
para além, seu olhar subjetivo é colocado quando manifesta na análise a
sua interpretação da história que até então permanecia dentro de si.
Faz-se necessário ressaltar que por meio dos cinco olhares descritos,
a voz de Beatriz esteve presente de forma marcante, foi respeitada e
valorizada e à pesquisadora coube o papel de estar o mais neutra possível
para que sobressaísse o protagonismo da participante. No entanto, ao final
do processo há uma conclusão, e esta, sob outra perspectiva pressupõe uma
releitura e interpretação sob o olhar e percepções de quem ouviu e conviveu
80
em todo o processo, ou seja, as conclusões sob o olhar da pesquisadora, ao
qual estará explícito no título de que, neste momento, é quem está falando.
Ao final de inúmeras leituras desde o momento das entrevistas, elaboração
dos resumos para leitura com a participante, transcrições e análise narrativa
mediante os cinco olhares, a pesquisadora encontrou-se profundamente
envolvida com os dados, ao ponto de conhecê-los em cada vírgula,
exclamação, riso, lágrimas ou silêncio.
Nesta perspectiva, o próximo capítulo mostra a história de vida,
narrada em primeira pessoa em que sobressai a voz de Beatriz por meio de
um texto neutro, ou seja, a narrativa da participante não será interrompida
com comentários dos pesquisadores, antes, o texto será contínuo assim
como o foram as entrevistas. A intencionalidade neste momento em que
se manteve a neutralidade dos pesquisadores assim como ocorreu durante
as entrevistas por meio de uma escuta que Augras (2009) denomina
respeitosa, foi que a voz de Beatriz pudesse ser ouvida sem interferências
de outras vozes sejam elas dominantes, políticas, acadêmicas ou ainda dos
próprios pesquisadores.
No capítulo “A História de Vida” o leitor encontra a voz de Beatriz
que narra os momentos marcantes de sua história que a tornaram a pessoa
que é hoje. Beatriz explica, em primeira pessoa, suas percepções sobre tudo
o que lhe aconteceu, sobre a deficiência, sociedade e estigma. Fala ainda de
atitudes, enfrentamento e sentimentos. O leitor poderá identificar os
instrumentos aqui explicitados na construção da história que auxiliam a
composição final da história. Em alguns momentos aparecerão vozes de
familiares e amigos que falarão sobre a própria Beatriz, porém entendidas
como complementares e não protagonistas, as quais estão destacadas por
recuo e fonte menor para que o leitor as diferencie de imediato. A “linha
de vida”, “Autoinforme” e o diálogo emergido a partir do instrumento
81
“Um Dia na Vida De...” também estarão sinalizados entre parênteses para
identificação.
A apresentação da história de vida de Beatriz nesse trabalho não
terá um caráter de discussão sobre a deficiência, mas um fim
exclusivamente didático sobre possibilidades no caminho de construção de
histórias de vidas.
82
83
6.
A História de Vida de Beatriz
Normalidade
Meu nome é Beatriz, tenho 37 anos, sou massoterapeuta e casada
com Elis. Até os vinte e oito anos vivi uma vida normal, como qualquer
pessoa da minha idade. Minha infância foi tranquila, minha mãe
trabalhava como empregada doméstica e meu pai em uma usina produtora
de açúcar e álcool. Sou a filha mais velha e tenho duas irmãs, Paola que é
a filha do meio e Juliana, dez anos mais nova. Eu sempre fui uma criança
quieta, dócil, não era de brigar com ninguém, nunca fiz uma peraltice e
quando eu apanhava era porque minha irmã Paola aprontava algo. Tive
responsabilidades desde cedo. Quando a Juliana nasceu, eu lavava e passava
as suas roupas enquanto minha mãe esteve no hospital. Quando minha
e voltou ao trabalho, era eu quem cuidava do bebê, o que me entristecia
às vezes, pois queria poder brincar como a irmã do meio.
Uma coisa que considero estranha era a minha preferência por uma
brincadeira que inventei. Eu brincava de ser cega! Lembro nitidamente que
com o cabo do rodo caminhava desde o quarto da minha mãe, de olhos
fechados, batendo-o para me guiar, passava pelo meu quarto, cozinha, sala,
me guiando com a bengala inventada, tateando e imaginando como era ser
cega. Eu não tinha convívio com nenhum cego, mas brincava disso e ficava
imaginando como seria estar nesta condição. Quando a Juliana nasceu,
minha mãe nos levou a uma benzedeira com cegueira. Ela tinha os dois
olhos brancos e eu achava que ela enxergava. Eu lembro que sentávamos
84
perto e não me aproximava, sentia medo, ficava observando seu rosto
duvidando de que realmente fosse cega. Olhava para seus olhos brancos e
pensava “essa mulher está me enxergando”. Acho que as pessoas também
pensam isto sobre mim, que talvez eu as enxergue.
Certo dia, ao chegar à casa dessa senhora observei que ela estava
cortando frango e cozinhando. Aí então tive a certeza de que a mulher
enxergava. Tudo me amedrontava naquela mulher, suas expressões,
trejeitos, seus olhos brancos e até mesmo suas mãos com as marcas do
tempo, pele fina e ressecada. Esse foi meu único convívio com uma pessoa
com cegueira, no entanto, eu já brincava e imaginava que também o era
muito antes de conhecer essa senhora.
Eu não sei explicar o porquê, isto é uma coisa que não entendo,
mas eu simplesmente pegava um pau, o transformava em minha bengala e
andava pela casa de olhos fechados imaginando que era cega, me sentindo
cega. Deus sabe de todas as coisas na vida da gente, sabe de tudo o que
iremos passar e talvez estivesse me preparando. Por que uma criança
brincaria dessa maneira? Eu não tinha convivência com uma pessoa em tal
situação, não teria por que desejar brincar dessa forma.
O meu lugar...
Na adolescência fiquei ainda mais recatada e tímida, não falava
com ninguém, era de poucas palavras. Sentia muita vergonha, eu sempre
fui muito quieta na escola, estava sempre com as mesmas pessoas no
intervalo das aulas, sentada, conversando com poucos amigos mais
próximos. Só saía para ir à igreja, às vezes tomava um sorvete, mas às dez
horas da noite já tinha que estar em casa. Não tive uma adolescência com
85
namoros. Era muito tranquila e sentia vergonha de tudo. Eu sempre fui
aquela que ficava quieta.
Era uma adolescente estudiosa, fazia parte de grupos que
colaboravam com a escola e sonhava em ser psicóloga. Lembro que eu
tinha um livro com o título “Psicologia”, não tinha nem capa, falava sobre
a mente e aquilo me interessava, chamava-me à atenção. Eu gostava de ler
e escrever em agendas, porém, sempre muito introspectiva. Meus
familiares convidavam minha irmã para passeios e não me chamavam
porque eu não gostava de falar, conversar, e por isso não me levavam.
Quando estava prestes a completar dezoito anos, fui morar com as
minhas tias que tinham a casa no mesmo quintal. Eram três tios solteiros
que moravam na casa ao lado. O meu tio faleceu e eu comecei a dormir lá,
fazendo companhia às tias. Passei a frequentar a casa dos meus pais apenas
a noite, como uma visita. Em todo o tempo ficava com as minhas tias em
um ambiente que era o oposto da casa dos meus pais. Era um ambiente
calmo, tranquilo, um verdadeiro refúgio. Por eu ser tão jovem, essa
convivência com pessoas mais velhas acabou me modificando muito e
positivamente.
Beatriz foi uma menina que nos ouvia muito, obedecia
muito a mim e à Carina, minha irmã que faleceu. A Carina
sempre a ensinava a guardar a roupa direito, a tirar o calçado
e guardar no lugar, então ela cresceu sendo organizada.
Você pode notar que na casa dela é tudo muito organizado,
considerando a situação atual, se fosse outra pessoa deixaria
tudo desorganizado, mas ela não, ela faz tudo bem feito. Ela
aprendeu tudo aqui com a gente. Então a gente pegou
muito amor por conviver o próximo! Depois ela cresceu,
estudou, foi trabalhar (fala de BELA, Tia de Beatriz).
86
Com minhas tias idosas, entre outras coisas, eu aprendi a ter
empatia. Por exemplo, com elas aprendi a respeitar o próximo desde as
menores coisas, como o cuidado em não fazer barulho se ao chegar em casa
quando estivessem dormindo. Quando estive morando com elas, eu saía
muito porque era jovem, mas sempre ao chegar, tirava os sapatos ainda na
porta de entrada, entrava com cuidado, ia ao banheiro com a luz apagada,
pois elas estavam dormindo. Eu tinha esse cuidado, assim como vários
outros, mas na casa dos meus pais e irmãs era o oposto do que era na casa
de minhas tias. Tinha barulho, impaciência por parte de todos, pessoas
nervosas, palavrões, então não me adaptava mais a isso.
Fui me modificando e me aperfeiçoando no lar das minhas tias que
passou a ser o meu próprio lar em que ganhei até um quarto onde guardava
todas as coisas mais preciosas para mim, como a minha coleção de
sabonetes, meu violão chamado de Ariel, as agendas com minhas
anotações, meu urso em formato de lua pendurado na lâmpada, as estrelas
colocadas no teto.
Nesse tempo da minha vida éramos apenas nós três, minhas duas
tias e eu. Meus pais e irmãs na casa ao lado e se quando os visitasse, por
algum motivo presenciasse alguma discussão, simplesmente ia embora para
a casa de minhas tias, eu não ficava mais onde não me cabia porque agora
tinha para onde voltar, havia encontrado o meu lugar, a minha paz, o
esconderijo que tanto busquei na infância, o meu silêncio, no entanto, até
mesmo isso foi abruptamente arrancado de mim...
87
Uma nova fase em minha vida...
Passei a me tornar mais comunicativa e a me socializar melhor
quando comecei a trabalhar em uma padaria em que permaneci por sete
anos e convivi com a diversidade das pessoas. Comecei como balconista e
em pouco tempo dava sinais de meu desenvolvimento, já me tornava mais
comunicativa, conversava com o proprietário, colegas de trabalho e
clientes.
Apesar da timidez, eu amava trabalhar, me relacionava bem com
todos e tinha uma afeição especial pelos idosos que frequentavam a padaria.
Eu ficava com pena porque não tinham alguém que os ajudasse e me
preocupava em como voltariam para suas casas, com o que encontrariam
de obstáculos pelo caminho da volta, já me preocupava a questão da
acessibilidade.
Até hoje, têm pessoas que vêm até mim para falar que eu sempre
os tratava muito bem e reclamam do atendimento atual. Como eu sempre
atendia os clientes com gentileza, não posso imaginar alguém os
maltratando, são pessoas idosas, inocentes, eu não suportaria presenciar
qualquer grosseria com essas pessoas. Lembro-me que os idosos em sua
inocência e confiança, compravam os produtos e colocavam o dinheirinho
deles para que eu conferisse e pegasse a quantia correta. Às vezes quando
tinham dificuldades para descer os degraus da padaria, eu saía do balcão
para ajudá-los ou até mesmo acompanhá-los até as suas casas. Hoje, com
minhas limitações eu vejo quantas pessoas me ajudaram e continuam
ajudando, então eu penso que estou colhendo o que fiz lá atrás. Eu fiz tudo
de coração, sem interesse, mas hoje recebo de volta.
Eu era balconista, faxineira, atendente, pizzaiola e padeira sem
ganhar nada a mais pelos serviços extras. Nunca ganhei um centavo a mais,
88
nunca ganhei para trabalhar nos feriados, absolutamente nada! Os patrões
sempre foram muito bons comigo em outros aspectos, mas eu não recebia
pelas horas excedentes, não tinha tempo para a vida pessoal, não tinha vida
fora do ambiente de trabalho. Trabalhava de segunda a sábado e até aos
domingos. Como era eu quem fazia os pães, tinha que entrar antes dos
demais funcionários. Quando os outros chegavam já estava assando os
es. Eram horários exaustivos, quando deixava o trabalho não tinha
ânimo para sair com os amigos de tão cansada, mas ainda assim foi o
melhor tempo que vivi, dos vinte anos até os vinte e sete anos, sem dúvida
foi a melhor fase, eu passava a maior parte do meu tempo lá, comia lá,
enfim... eu aprendi muito, cresci, amadureci, sofri, chorei, mas também
tive alegrias, fiz amizades, algumas delas verdadeiras, outras nem tanto,
aprendi a lidar com fregueses, com pessoas de todos os tipos...
Como tudo em nossas vidas é um ciclo, encerrou meu tempo na
padaria, entrei em uma fábrica de bebidas, e era um ambiente totalmente
diferente do que eu estava habituada. Comecei a pegar gosto pelo o que eu
nunca havia experimentado, como mais tempo livre para cuidar e investir
em mim mesma, sair e me relacionar com outras pessoas.
A Beatriz era muito esforçada e trabalhadeira, se você emprestar um
centavo para ela, ainda que você esqueça e nem queira mais de volta,
ela faz questão de te pagar, ela é uma menina muito honesta e muito
pontual. Depois ela passou a trabalhar na fábrica de bebidas, de manhã
levantava bem cedo e eu nunca a deixei sair sem o café da manhã,
nunca! Ela tomava o café da manhã e me dizia ‘Tchau, Bela’, e eu
respondia Tchau, Beatriz! Vá com Deus, que Deus a acompanhee ela
ia embora com a motinha dela (fala de BELA, Tia de Beatriz).
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Muitos planos e o fim de um ciclo...
Nesse período em que trabalhei na fábrica de bebidas, despertou
em mim o desejo pelos estudos. Estudei para ser massagista e fiz o curso
de Massagem Linfática, apaixonando-me por esse universo. Eu lia muitos
livros e pesquisava sobre o assunto que passou a ser tudo em minha vida.
Eu dependia totalmente da visão e pouco exercitava os outros
sentidos, no entanto, a vantagem era que com a visão eu podia pesquisar
nos livros quantas vezes fossem necessárias e se tornava muito mais fácil
esclarecer dúvidas. Hoje é tudo muito mais difícil nesse sentido, mas
naquela época, eu não conseguia sentir tanto cada parte do corpo humano
como sinto agora.
Eu queria prosseguir fazendo os cursos de massagem, queria fazer
um curso em que aprenderia a caminhar com os pés sobre as costas da
pessoa, infelizmente esse curso não deu um número de inscritos suficiente
para abrir uma sala. Mas, o verdadeiro motivo que me fez deixar a
massagem, foi a timidez. Eu tinha muita vergonha de tocar em uma pessoa.
Logo que concluí o curso muita gente queria que eu aplicasse a massagem,
inclusive a Nívea, uma massagista que foi como uma mãe para mim e a
pessoa que mais me incentivou a fazer o curso, foi ela quem me presenteou
com a primeira maca.
No entanto, deixei a ideia de trabalhar como massagista de lado e
continuei trabalhando muito na fábrica. Eu sou uma pessoa que prioriza e
valoriza o trabalho, tenho que trabalhar, penso em ganhar dinheiro.
Sempre fui assim, e nesse tempo em que estive na fábrica, também tinha
outro emprego como babá no período da noite. Aguentava a dupla jornada
de trabalho porque amava o dinheiro recebido no começo do mês. Para
mim, a fábrica de bebidas foi um lugar que me amadureceu, aprendi a me
90
valorizar em relação ao dinheiro, à formação, aprendi a dirigir, planejava
ingressar na faculdade. Escolhi cursar uma graduação em meio ambiente e
já tinha preenchido os papéis, já estava tudo certo para eu começar a
faculdade. Eu trabalhava durante o dia na fábrica, à noite como babá e
estava namorando, com planos de uma união conjugal. Era uma vida
corrida, não tinha muito tempo, por isso optei pela faculdade à distância.
Eu admiro tudo em Beatriz! Eu admiro tudo! Desde que ela
nasceu, eu sempre a admirei, e ela foi crescendo e se
tornando uma menina educada, caprichosa em tudo o que
faz, ia na igreja com a gente, uma menina segura, ajuizada,
começou a trabalhar cedo cuidando de criança e não era
uma menina de gastar seu dinheiro com bobagens. Hoje eu
a admiro muito mais por superar tanta coisa diante de tudo
o que ela passou. Mas, eu sempre a admirei em tudo, a sua
boa memória, os seus sonhos, a sua força, o fato de querer
fazer faculdade, os cursos que fez para se tornar uma
massagista (fala de BELA, tia de Beatriz).
Muitos planos, uma vida agitada e infinitas possibilidades se
apresentando à minha frente. Em setembro de 2011 a fábrica me deu
férias, embora eu não quisesse, gostava da minha vida ativa. Saí de férias
com protestos, mas pensei que talvez fosse bom ter um tempinho para
descansar e visitar amigos, já que em breve minha vida se tornaria ainda
mais corrida com a faculdade e matrimônio. No entanto, o que eu não
sabia, era o quanto a minha vida mudaria para sempre nessas férias e que
as coisas nunca mais seriam como antes.
Saí da fábrica de bebidas sem saber que não voltaria. Na saída passei
por um andarilho que sempre parava para conversar comigo, sorrimos e
conversamos. Fitei seu rosto sem saber que seria a última vez que o veria.
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Ele desejou que Deus me acompanhasse e eu saí pilotando a moto, com a
convicção de que em breve voltaria. Hoje, posso dizer que Deus realmente
me acompanhou assim que saí daquela fábrica, protegendo o que tenho de
mais valioso... a vida!
Agressão
Era setembro de 2011. Até o dia da agressão eu estava cheia de
planos. É bem verdade que não queria rias naquele mês, comentei com
uma colega de trabalho que gostaria que fossem em outubro, mas nada
pode ser feito a respeito. Se eu não estivesse de férias, a tragédia que marcou
a história da minha vida, talvez tivesse sido evitada porque eu não estaria
em casa, estaria trabalhando.
No dia em que tudo aconteceu eu visitaria uma amiga que deu à
luz a um bebê. Como em breve voltaria a trabalhar e não teria tempo para
visitá-la, combinamos que eu iria até a sua casa naquele dia. Ela respondeu
que faria um bolo para me esperar. No entanto, naquele dia não estava
com vontade de sair. Fico pensando que se não estivesse de férias mesmo
contra a minha vontade... e se não estivesse me preparando para visitar
uma amiga, mesmo contra a minha intuição... e se não tomasse banho
naquele momento...se minha tia não tivesse que usar o banheiro na casa ao
lado porque eu estava usando o nosso... eu não teria ficado sozinha e
vulnerável...se...se...
Mas, antes de contar o que aconteceu, deixe-me contar quem foi o
meu agressor. Peço desculpas por não poder pronunciar o nome daquele
homem, é doloroso e assustador demais para mim, especialmente por se
tratar de alguém da minha família, em quem eu tinha total confiança, que
cresceu comigo, com quem, sentada na garupa de sua bicicleta, passeava
92
pela cidade sem nenhuma preocupação ou temor, alguém que inclusive
morou em minha casa, o meu próprio primo!
Um dia comum...
Era um dia como qualquer outro, tudo aparentemente normal,
exceto pela intuição que insistia em me dizer para não sair naquela tarde,
para não ficar sozinha.
Eu acordei bem cedo, limpei toda a casa, fui ao supermercado e trouxe
pães. Entrei em minhas redes sociais, conversei com uma amiga e disse a
ela que faria uma visita a outra pessoa, mesmo sem vontade. Essa amiga
me aconselhou a não ir, mas me despedi e ignorei o seu conselho, até
mesmo porque em breve como já mencionei, voltaria ao trabalho e não
teria outra oportunidade, as coisas seriam bem mais corridas para mim.
Estávamos nós três, minha tia, meu pai e eu. Meu pai descansava em sua
casa, logo ao lado, minha tia Carina e eu estávamos sozinhas em nossa casa.
Ao me preparar para tomar um banho, lembrei que o meu primo
havia dito que nos visitaria naquela tarde, ele sempre ligava avisando
quando pretendia nos visitar. Meu primo sofre de esquizofrenia, éramos
muito amigos, sempre o tratei com respeito e consideração, nunca o tratei
com indiferença ou discriminação como outras pessoas costumavam fazer.
Ele estava sempre em minha casa, conversávamos, eu o ajudava quando
precisava de algo, meu sentimento por ele sempre foi de amizade, o tratava
como se fosse um irmão. No entanto, meu primo deixou de usar as
medicações para a esquizofrenia e isto me preocupava, às vezes ficava
agressivo com outras pessoas, mas nunca comigo.
Naquele dia eu não o vi pela casa antes de entrar no banho, não
tenho nenhuma memória, mas levei a roupa comigo ao banheiro, por
93
precaução, normalmente saía enrolada na toalha para me vestir em meu
quarto. Eu sabia que meu primo estava lá, mas não me lembro de -lo,
não consigo dizer se falei com ele...não tenho essa lembrança. Não me
recordo de passar por ele pela sala, ou de ter conversado, cumprimentado,
ou mesmo o visto de relance. NÃO LEMBRO de ter visto, esbarrado ou
falado com ele. Mas, lembro-me do anúncio de sua presença naquela
tarde...
Quando saí do banho, já vestida e com o cabelo envolto por uma
toalha, avistei minha tia Carina abrindo o portãozinho que separava as
duas casas e se dirigindo para a casa de meu pai. Lembro-me de avistar sua
cabeça coberta por cabelos branquinhos se distanciando de mim... Minha
tia estava indo para a casa de meus pais para usar o banheiro, já que eu
estava ocupando o de nossa casa. Pensei em chamá-la, mas apenas a
observei se distanciar, pensando comigo mesma “A Preta está indo para a
casa do meu pai”...
Nesse momento eu fiquei sozinha em casa, ao menos, parecia estar
sozinha, embora minha tia e pai estivessem próximos, logo ao lado. Eu não
o vi em minha casa... talvez, por causa da toalha que encobria parte do meu
rosto. Dei um passo subindo o degrau que vai para a sala e apenas ouvi um
estrondoso barulho... era o primeiro golpe que eu recebia na cabeça.
Assustada, olhei para trás e avistei meu primo com o rosto transtornado,
com um olhar de ódio sobre mim. Soltei apenas um suspiro de terror e
surpresa sem entender o porquê de ter me golpeado com um martelo,
tentei correr, mas pude dar apenas dois passos para frente.
Ele me puxou pela toalha enrolada em meus cabelos e derrubou-
me ao chão. Caí de lado, na porta do meu quarto e ele se sentou sobre
minha cintura imobilizando-me. Meu corpo ficou de lado virado para a
porta com ele sobre mim e começou a dar marteladas na lateral do meu
94
rosto, na altura da orelha. Pedi que parasse, perguntei o porquê de estar
fazendo aquilo comigo.
Ele respondia “você matou meu cachorrinho”, ao que eu me
defendia “Não, não matei seu cachorrinho”, eu repeti muitas vezes que não
havia matado o seu cachorro, aliás, cachorro este que sequer existia, mas
nada o parava. A única coisa que consegui fazer foi grudar seu pescoço
com a minha mão, mas ele afastou a cabeça para trás e não o alcancei mais.
Eu gritava muito alto, com todas as minhas forças “Pare! Socorro! Preta...
Pai... socorro!! Minha tia e meu pai, embora tão perto, não ouviram meus
pedidos de socorro. Talvez se eu estivesse na cozinha fosse mais provável
que ouvissem, mas na sala um pouco afastada, era difícil. Eu chamei muito
por meu pai e por minha tia, mas não puderam ouvir. Eu gritei e ninguém
me escutou.
Totalmente imobilizada apenas conseguia alcançar a porta com
meu olhar e a única esperança naquele momento, a única saída que me
ocorria era que entrasse alguém por aquela porta, só pensava nisto,
alguém... alguém... qualquer um que entrasse e pudesse parar os golpes em
meu rosto...
Eu estava caída na sala e ele bateu muito na lateral direita do meu
rosto até que não pude mais aguentar e desmaiei. Quando desmaiada, ele
me arrastou para a porta do quarto de minha tia. Continuou golpeando
meu rosto com o martelo, tirou meu olho, nariz, toda a pele, quebrou o
maxilar, partiu meu rosto ao meio. Minha tia chegou nesse momento. Ela
demorou a voltar porque era idosa, tinha os passos lentos e qualquer
atividade, por mais simples que fosse, para ela era mais difícil e demorada.
No entanto, mesmo com passos curtos, lentos e inúmeras dificuldades em
se locomover, seus passos e voz foram fortes o bastante para parar o
agressor. Para mim, a tia Carina a quem eu chamava carinhosamente de
“Preta” foi um anjo salvador, a quem devo a vida.
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Quando minha tia chegou e o avistou agachado golpeando,
imaginou que estivesse agredindo o cachorro. Ela entrou um pouco mais
e avistou minhas pernas, gritou com ele, que se levantou imediatamente.
Ela se aproximou e tentou me virar, eu já estava engasgando com meu
próprio sangue. Minha tia não teve forças para me virar, então voltou,
devagar porque não tinha agilidade e chamou o meu pai.
Meu pai se deparou com o agressor em pé na porta, com as roupas
sujas de sangue. Sem saber o que exatamente tinha acontecido, meu pai
apenas exclamou “Vá embora, porque senão eu mato você!” Ele abriu o
portão e foi embora. Quando meu pai entrou na casa, encontrou meu rosto
totalmente aberto. Até então meu pai achava que ele havia me batido, mas
não imaginava a gravidade da situação, não imaginava que tinha feito tudo
aquilo. Meu pai conta que a cena que presenciou foi simplesmente
estarrecedora. Em meio ao sangue espalhado por todo o ambiente, paredes,
cortinas, tapete, identificou o osso do meu nariz no chão e guardou-o no
bolso, meu rosto estava partido ao meio e sem a pele que o cobria. Meu
pai conseguiu me virar e ficou comigo enquanto minha tia foi chamar uma
ambulância. Eu o ouvia falando, transtornado: “Nossa senhora, ele matou
a minha filha!”. Do jeito que eles me viram... meu pai pensou que eu havia
morrido.
Meu irmão então... que judiação... foi para o hospital com um
pedacinho de osso do rosto de Beatriz guardado no bolso, não
sabia de onde era aquele pedaço de osso. Lá no hospital ele
pegava aquele pedacinho de osso e chorava... ele dizia aos
prantos para uma amiga enfermeira que trabalhava no hospital
olha o osso da minha filha aqui na minha mão’ (fala de BELA,
tia de Beatriz).
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A minha luta pela vida não terminou com a chegada da
ambulância. Quando cheguei ao hospital, eu estava deitada na maca com
um lençol jogado sobre meu rosto porque ninguém tinha coragem de me
atender. Estava perdendo todo o sangue porque nenhum médico queria
me socorrer. Os médicos erguiam o lençol que me cobria, olhavam meu
estado e cobriam-me novamente. As enfermeiras não conseguiam sequer
olhar, ninguém queria me atender porque meu rosto estava destruído.
O doutor Ruy não estava trabalhando naquele dia, ele só tinha ido
lá para dar alta a um paciente. Quando chegou e deparou-se com o meu
caso, decidiu que iria me operar, mesmo não estando a trabalho. Ele e uma
enfermeira que sempre o acompanhava, pegaram minha maca e subiram
para o andar de cirurgias. Chegando lá, as enfermeiras daquele andar,
barraram a porta e disseram que ali eu não entraria, que eu não seria
responsabilidade daquele hospital. O doutor empurrou a maca contra a
porta que se abriu e afirmou “Ela será operada aqui sim, pegue sangue para
ela imediatamente!”.
Não sobrou um osso inteiro no rosto dela. Beatriz perdeu um olho e
está com hemorragia no outro (Delegada que atendeu o caso, trecho
de entrevista à reportagem local, setembro de 2011).
Meus batimentos já estavam chegando à zero, eu estava perdendo
muito sangue e precisava repor urgentemente. A primeira cirurgia durou
aproximadamente dezesseis horas. Foram muitas horas de cirurgia, apenas
com esse médico que se responsabilizou e sua enfermeira auxiliar. Os
demais se eximiram. Não auxiliaram em nada. O doutor Ruy para mim
foi um anjo em minha vida, assim como minha tia que se não tivesse
interrompido... mais alguns minutos e eu não teria resistido. Fiz essa
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cirurgia e quatro dias depois acordei do coma, não me lembrava do que
havia acontecido, não sabia o que estava fazendo ali, nem imaginava que
não enxergava, não tinha a dimensão de que minha vida mudara para
sempre!
Por que comigo? Obrigada, porque foi comigo!
Beatriz apresenta o seguinte quadro, segundo a assessoria de
comunicação da Saúde: Mutilação facial, afundamento do osso frontal,
fratura naso etmoidal, arrancamento parcial do nariz com perda total
dos ossos próprios de nariz e anexos, fratura do processo palatino da
maxila, perda óssea dos maxilares superiores, fratura de órbita em
Blow-out bilateral, laceração e perda de substância da região frontal,
laceração das pálpebras superiores, laceração de lábio superior e trauma
ocular grave. No momento ela se encontra estável, consciente, calma,
traqueostomizada, em ventilação espontânea (Trecho retirado de
reportagem do jornal local em 29 de setembro, 2011).
É tão estranho, acho que é Deus, porque eu não fiquei apavorada.
Eu recebia tantas pessoas em meu quarto de hospital, muitas visitas e... eu
ainda sorria para todas, as consolava por meio de gestos, sinalizava que
estava bem! As pessoas brincavam comigo e como eu não podia falar
porque estava com a traqueostomia, eu pegava em suas mãos, queria
demonstrar que estava bem, eu não tinha a noção da gravidade do que me
acontecera.
Eu recebia visitas em todo momento, mesmo em uma UTI, não
sei explicar como aquelas pessoas conseguiam, mas elas entravam em meu
quarto o tempo todo para me visitar. Eram pessoas que trabalhavam no
hospital e queriam falar comigo, amigos, familiares e outras que eu sequer
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conhecia, curiosos, já que a minha história teve grande repercussão.
Chegavam e se apresentavam e eu as tratava bem, não tinha noção do que
me acontecera, não me lembrava, eu não conseguia raciocinar, não sei
explicar aqueles dias confusos.
As enfermeiras escovavam meus dentes e quando eu passava a
língua por eles, sentia algo estranho... preocupava-me, planejava ir ao
dentista assim que saísse daquele hospital. Essa era a minha maior
preocupação naquele momento, achava que meus dentes estavam com
algum problema, quando na verdade, meu maxilar inteiro estava caído.
Todo o meu rosto foi costurado por dentro. Meu nariz estava caído em
cima da maca quando o doutor Ruy simplesmente o pegou e colocou no
meu rosto. A única sobrancelha que tenho hoje, na verdade é cabelo que
foi implantado, tudo foi arrancado, eu não tinha sequer a pele do rosto.
Ele pegou o que sobrou lá do alto de minha testa, esticou e costurou
embaixo. Mas, eu estava preocupada em ir ao dentista sem a capacidade de
mensurar o tamanho das mudanças em meu rosto desfigurado pela
agressão.
Eu não tocava em meu rosto, sempre ficava com as mãos para baixo
por medo de me tocar. Eu sempre fui muito de cutucar, minha cabeça era
coberta por pontos porque todo o meu rosto foi reconstruído. Eu fui
tirando ponto por ponto da cabeça, cutucando, mas não encostava no
rosto. Certo dia, tomei coragem e com muito sacrifício toquei na área da
sobrancelha, com muita delicadeza, meu medo não era de machucar, meu
medo era de saber como estava. A hora que eu toquei ao lado esquerdo da
face e perguntei pasma, “cadê a minha sobrancelha?”. Minha tia
respondeu: “Beatriz, você não tem sobrancelha desse lado”. Continuei:
“Mas, vai crescer, não é?”, “Não, não vai mais nascer sobrancelha aí, você
terá apenas uma”. Nesse momento meu mundo caiu. Eu chorei tanto por
99
causa dessa sobrancelha até que descobri que não teria sequer o olho, aí
então a sobrancelha ficou de menor importância.
Um dia, quando ela pode levantar da cama do hospital, a levei para
tomar um banho. Enquanto caminhávamos até o banheiro, ela
perguntou: Bela, será que eu vou ficar cega?”. Nossa, no momento em
que ela fez essa pergunta, você não faz ideia... (voz embargada)... o que
eu poderia responder pra ela? (choro) Eu falei Provavelmente você
vai!Eu não podia esconder, né? Eu falei Ah Beatriz, provavelmente
você vai ficar cega e ela começou a chorar. É até chato eu ficar
chorando... ela começou a chorar e eu também. A levei para a cama, as
duas sem falar, apenas chorando (fala de BELA, tia de Beatriz).
Aos poucos fui recordando do que havia acontecido e tomando
consciência do porquê de estar havia tanto tempo no hospital. Eu demorei
vários dias para me lembrar de tudo o que aconteceu e contar para a minha
família. Quatro dias após o coma acordei, mas ainda não lembrei, fui para
São Paulo, fiz outra cirurgia, as únicas coisas que escrevia para a minha
família era para que cuidassem de minha tia, apenas isto, ainda não me
lembrava do que realmente acontecera.
Só comecei a lembrar de quando tirei a traqueostomia. Eu não me
lembro da data certa em que me lembrei de tudo, mas me recordo de que
já estava falando, com muita falta de ar e dificuldade. Já havia passado por
cirurgias, já deveria ser com mais de um mês provavelmente. Comecei a
contar para a minha tia fragmentos do acontecido, aos poucos, quando
surgiam em minhas lembranças ou pesadelos. Lembrei-me do olhar de
ódio do meu primo enquanto me agredia. Era um olhar mal. Um olhar de
fúria. Ele colocava a língua para fora e a apertava entre os dentes enquanto
me batia no intuito de colocar mais força nos golpes que desferia. A última
100
coisa de que lembro antes de desmaiar e perder a visão é desse olhar de
ódio...
Eu não fiz nada!! Naquele dia eu não havia feito nada para ele, nem
em qualquer outro, eu nunca fiz nada para ele. A gente não discutiu, não
se desentendeu, sempre o tratei com muito carinho e respeito, eu não fiz
nada! Quando acordei do coma, eu não sabia o porquê de ter me batido e
só me lembro de ter agradecido muito a Deus por não ter sido com a minha
tia que já era idosa e não resistiria. Eu pensava “ainda bem que foi comigo”,
era assim que eu pensava.
Meu primo foi preso em flagrante e na delegacia confessou que
gostava de mim para além do parentesco e que como não foi
correspondido... O advogado alegou que ele teve um surto por não estar
fazendo uso dos medicamentos. No entanto, não acredito nisto porque ele
premeditou, planejou dias antes, no caminho para a minha casa passou em
uma loja de materiais de construção e comprou o martelo para me agredir,
esperou o momento certo em que me encontraria sozinha na casa, se
escondeu para que eu não o visse, esperou pela chance de me golpear pelas
costas sem ser visto. Para mim e para a delegada do caso, não foi um surto!
Foi muito difícil ter que me lembrar do que ele fez... eu dormia
por noites inteiras segurando as mãos das minhas tias que não conseguiam
dormir, passavam as noites sentadas em uma cadeira ao meu lado enquanto
eu apertava as suas mãos. Em todo momento eu acordava assustada, tinha
pesadelos, na verdade, até hoje quando estou muito ansiosa sonho coisas
terríveis relacionadas a ele. Relembrar o que aconteceu e reconstruir a cena
para a minha família, para a polícia e para mim mesma, foi muito difícil,
mas não foram estes os únicos momentos de dificuldade e sofrimento. As
dores físicas, as inúmeras cirurgias e procedimentos afligiam meu corpo,
enquanto as lembranças afligiam minha alma. Eram nos momentos de
intensa dor física que surgia a revolta contra o que me aconteceu.
101
Foi um processo muito longo, mas de tudo o que já passei no meu
rosto, a retirada de pele do pulso foi o mais dolorido, sofri muito. Abriram
a área do meu punho, cerca de três dedos de pele e a costuraram deixando
uma ferida aberta, como se dobrasse um lençol deixando o colchão
exposto. Em quinze dias aproximadamente, minha pele se regenerava e
nascia uma nova para cobrir a área exposta. Os médicos retiravam essa pele
recém-nascida e reimplantavam no local do meu olho. A área doadora doía
muito, muito. A dor que eu sentia na parte doadora, segundo as
enfermeiras que faziam o curativo, era semelhante a dor de uma
queimadura, tanto que fiquei na ala dos queimados. Escutava aquelas
pessoas gritando de dor.
Fiquei hospedada na casa de uma prima que reside em São Paulo,
já que eu passaria muito tempo fazendo o tratamento lá. Eu ia com minha
tia na Unidade Básica de Saúde UBS e as enfermeiras faziam os curativos
na área do olho que foi retirado e na região do pulso de onde pele para
meu rosto foi retirada. Nem todas as enfermeiras conseguiam descobrir
meu rosto, certa vez, uma delas passou mal ao ver meu rosto, teve que se
retirar e pedir para outra enfermeira fazer o curativo.
A filha da prima que me hospedou é da área da saúde e passou a
fazer pessoalmente os curativos em mim. A dor era intensa e foram os
momentos em que eu mais me revoltei, me perguntei o porquê de ter feito
isto comigo. A revolta emergia na hora da dor física. Depois parei de me
questionar e só agradecia por estar viva, a revolta era por causa da dor
intensa, naquele dia especialmente, uma dor que eu não desejo para
ninguém! Por tanta dor, é que decidi dar um basta nas cirurgias. Os
médicos queriam dar continuidade, até colocar uma prótese retirando um
ossinho da bacia para reimplantar no meu nariz porque atualmente ele não
tem o osso e cartilagem, não tem nada. Eu não respiro por ele, não sinto
cheiro, perdi o olfato também.
102
Fizeram uma camada com cavidade tentando dar uma
profundidade para o formato do olho, mas não foi possível fazer um globo
ocular.
Decidi que não me submeteria a nenhuma cirurgia mais, se fosse
apenas pela estética. Continuei com os procedimentos que permitiriam
maior qualidade de vida, como o tratamento com terapeuta ocupacional.
O médico dizia que minha mão não iria voltar ao normal, mas me esforcei
muito e ela voltou. Minha mão é adormecida, mas eu consigo fazer minhas
tarefas do cotidiano e trabalhar com a massagem.
Meu rosto perdeu as expressões por falta de pele, se eu tentar fazer
alguma expressão de brava ou uma careta, não consigo, mesmo que me
esforce muito. A pele esticada retrai e não consigo fazer a expressão por
mais força que eu coloque. Às vezes estou séria, mas as pessoas acham que
estou sorrindo. Em determinadas situações por ter esticado muito a pele,
ao extremo, eu não consigo ter expressões faciais, como séria, brava ou
triste.
Conforme fui amadurecendo e obtendo maior discernimento, fui
fazendo escolhas sobre quais cirurgias e tratamentos valeriam o sacrifício
de dores e esforços e quais não valeriam. Então, a agressão foi algo súbito,
de repente, rápida, mas o período pós-agressão foi muito longo, vivi muita
coisa. A coisa mais impactante para mim era não poder me ver e não poder
ver uma pessoa. No entanto, ainda mantinha uma grande esperança em
relação ao olho que não fora arrancado... a esperança de voltar a enxergar...
103
E foi naquele dia que morreu a Beatriz...
Voltar para a casa dos meus pais foi muito difícil. A casa de minhas
tias era o meu mundo e meu desejo era voltar para lá após um período tão
longo e doloroso em hospitais, casa de parentes, cirurgias. Talvez porque
eu pensasse que voltar para lá seria o mesmo que voltar a ser o que eu era
antes e isto não conseguiria mais, no entanto, aquela casa era o que eu
conhecia como lugar de aconchego, ternura, respeito e já não era possível
entrar naquele ambiente sem que fosse atormentada por lembranças e
medos.
Foi um ano em que eu tinha muita coisa na cabeça. No primeiro
ano após a agressão eu tinha esperança de voltar a enxergar. Eu fiquei um
ano desejando, acreditando que iria enxergar através do olho que não fora
arrancado. As minhas amigas me visitavam, mostravam fotos, reportagens
e diziam “vou guardar para que você veja depois” e essas falas alimentavam
minhas esperanças, eu vivia com aquela expectativa, certeza de que poderia
recuperar ao menos uma parte do que eu tive, do que eu era. Apesar da
esperança e crença de que enxergaria o mundo novamente, foi também um
ano de ansiedade e incertezas sem saber como seria a minha vida caso o
pior acontecesse e o voltasse a enxergar.
Contudo, na maior parte do tempo minhas expectativas eram
positivas, afinal, eu havia perdido um olho, mas ainda tinha o outro. A
pupila do centro foi para baixo. Eu imaginava que eles ergueriam a
pálpebra e que com isto, eu voltaria a enxergar.
Os meses foram passando e com eles foram crescendo a minha
ansiedade, expectativas e planos para quando o pesadelo e a escuridão
acabassem. Quando completou exatamente um ano fui fazer uma
ultrassonografia do olho. Sentei diante do médico, com alegria, esperança
104
e fui surpreendida por uma pergunta fria, direta e incompreensível para
mim: “Você conhece Laramara?”. Respondi que sim e o médico continuou
“E você já fez algum curso de mobilidade?”.
Eu já ouvira falar da Laramara que se trata da Associação Brasileira
de Assistência ao Deficiente Visual, quando recebi a visita de integrantes
da associação dos cegos de minha cidade. Indicados pelo médico que me
operou, vieram me dar um suporte, orientações, indicações de cursos que
facilitariam minha nova vida e perguntaram se eu conhecia o Braile, ao que
prontamente respondi que não haveria tal necessidade, visto que, em breve
voltaria a enxergar.
Enfim, o doutor me disse que seria bom eu realizar algum curso na
Laramara, o que me causou estranhamento e desconforto, eu não
compreendia o porquê de ter que fazer tais cursos já que voltaria a enxergar.
Ele entregou o resultado da ultrassonografia e me encaminhou a outro
médico que foi bem mais claro e preciso.
O outro médico explicou que não havia o que fazer pelo olho, nem
no Brasil e nem fora dele, não havia ninguém que pudesse fazer algo para
que eu voltasse a ter visão. Disse ainda que me aconselharia, com o mesmo
conselho que daria à sua filha, que se alguém quisesse mexer em meu olho,
para eu não permitir. Que talvez daqui há quatro ou cinco anos poderia
ser que com os avanços da medicina, algo pudesse ser feito, mas que
naquele momento não havia. Passaram-se oito anos e ainda não houve
nenhum avanço que pudesse mudar essa situação.
No momento dessa notícia estávamos minha tia Bela e eu. Eu saí
de dentro daquele consultório em pânico. Sentei no colo da minha tia e
um buraco se abriu sob os meus pés. Uma mulher esbarrou em mim e
minha vontade foi de agredi-la e descontar em alguém tudo o que me
aconteceu, senti vontade de bater no mundo, de gritar, de xingar, de exigir
justiça, de voltar o tempo, de tudo!
105
Só que então, minha tia Bela começou a chorar comigo, um choro
sofrido de alguém que parecia forte até aquele momento, mas que também
não resistira mais. Eu não pude suportar ouvi-la naquele estado e tive que
ser forte um pouco mais, por nós duas... Eu cessei o meu pranto, fiquei
quieta, parei de chorar por fora, mas continuei por dentro. Não estava
aguentando ouvir o choro sofrido de minha tia. Lembro que na volta para
casa, ela chorava e soluçava e eu a consolava e pedia para que ficasse calma,
mas na realidade eu estava com vontade de gritar. Silenciei meu pranto,
aplaquei minha dor, chorava apenas por dentro. Claro que quando cheguei
a minha casa, deitei em meu travesseiro, eu comigo mesma, foi outra
situação, então pude chorar sem ser vista ou ouvida.
Não foi fácil chegar em casa, encarar minha família, minha mãe, a
tia Carina, e dizer que não voltaria a enxergar. NÃO VOU VOLTAR A
ENXERGAR! Foi muito difícil essa parte, porque como poderia ver todos
os meus sonhos desmoronarem? A partir dali não tinha mais sonhos. Não
tinha mais!! Simplesmente tinham acabado. O que faria da minha vida?
Eu não era mais a Beatriz, acabou a Beatriz. No fundo a Beatriz que eu
sabia ser, independente, sonhadora, ativa, morreu ali... naquela hora,
mesmo eu não tendo morrido, ela se foi com a minha cegueira.
Oi, ainda sou eu... a Beatriz...
Os psicólogos disseram que são dois anos de luto, assim como
quando morre alguém e foram de fato, dois anos muito difíceis até me
reerguer, reconstruir e me reinventar novamente. Eu estava acostumada a
conhecer o mundo enxergando e a minha mentalidade era de uma pessoa
que enxergava. É totalmente diferente de alguém que nasceu cego, é outra
106
situação. Aos poucos tentava aprender a olhar para o mundo de uma nova
forma.
No início recebia muitas visitas de amigos, parentes e até
desconhecidos que queriam saber como eu ficara. As pessoas choravam
copiosamente e eu constrangida e até amedrontada em muitas ocasiões,
apenas as consolava pedindo para que ficassem calmas, que tudo daria
certo. Na realidade, eu mesma não sabia ainda como as coisas dariam certo
para mim...
Certo dia, ainda no começo, logo quando voltei de São Paulo para
passar alguns dias em casa, eu estava na sala conversando com uma visita e
me chamaram para ir até a cozinha. Quando cheguei tinha gente por toda
a parte, amigos que vieram me parabenizar pelo meu aniversário, cantaram
parabéns, era uma festa surpresa! Naquele dia eu fui conhecendo todos,
um por um, através do tato. Errei uma ou duas pessoas, mas a maioria eu
reconheci ao tocar seus rostos. Como a perda da visão era algo recente, eu
ainda tinha suas fisionomias em minha memória. Estavam todos ali e
naquele momento aquelas pessoas eram muito importantes para mim.
O tempo foi passando e tudo foi se modificando muito, logo as
visitas ficaram cada vez mais escassas, os curiosos já começavam a se
esquecer do meu caso, os parentes seguiam suas vidas com cotidianos de
trabalho e correria, os colegas de trabalho perderam o contato, os amigos
já não tinham mais assuntos em comum. Apenas a minha vida estava
parada no tempo. Só ficaram ao meu lado poucos amigos, os verdadeiros
e que permanecem até hoje, além de meus pais, irmãs e tias. Eu sofri muito
com a perda das amizades porque eu tinha muitos amigos, da padaria, do
bairro, do trabalho, da época de escola, enfim, todos sumiram depois do
que me aconteceu. Eu não esperava que fosse assim, que me tornaria
invisível, que cairia em esquecimento mesmo estando viva.
107
A Alessandra foi uma dessas pessoas que tanto me decepcionaram,
a qual eu acreditava que se tratava de uma amizade verdadeira, mas que
não resistiu à adversidade. Éramos muito íntimas, estava sempre em minha
casa, eu ficava com o filho dela aos meus domingos de folga porque ele
adorava estar comigo. Certo dia, eu estava no supermercado com a Elis
passando no caixa e a Alessandra com sua família comendo em uma mesa
ao lado. Eles terminaram a refeição e saíram da mesa ao mesmo tempo em
que saímos do caixa. Fomos andando atrás deles. Ela olhou para trás, eu
ainda não sabia que estavam próximos, passei por eles e quando cheguei
ao carro, Elis me disse “Beatriz, passamos por uma amiga sua”. Perguntei
quem era e pela descrição eu soube que era a Alessandra. Elis disse que
estavam ela e o esposo, que olharam um para o outro após fitarem meu
rosto e fingiram que não me conheciam.
Aquilo me deu uma sensação inexplicável, de nervoso, de raiva. No
dia seguinte mandei uma mensagem para ela: “Alessandra, era você que
estava no supermercado ontem?”, ela respondeu “Sim, Beatriz!”.
Continuei “Mas, por que não me cumprimentou?”. Respondeu-me “Eu
estava com o marido e aí você sabe como é...”. Não, eu não sabia e ainda
não sei “como é...”.
Ela pediu desculpas e eu disse que estava tudo bem, no entanto,
dentro de mim fiquei muito mal com aquela situação. Acabou. Eu deveria
ter feito a seguinte pergunta “Se eu estivesse enxergando, você me
cumprimentaria?”. São situações que me entristecem porque eram pessoas
que conviveram intensamente comigo. Hoje já não falo mais com ela,
excluí de minhas redes sociais. Eu não sou rancorosa, passam-se os dias e
eu me acalmo. Mas, foi aniversário dela e eu mandei uma mensagem pelo
WhatsApp desejando felicidades e parabenizando. Nunca me respondeu.
Então, eu excluí porque aquilo estava me fazendo mal e a amizade acabou,
108
perdemos o contato. Não vejo mais nada e deixo ela lá no canto dela, é o
que ela escolheu e eu não sei o porquê.
Em outra ocasião, a Antônia que mora aqui nos fundos de minha
casa e que cresceu comigo, fez algo semelhante. Estávamos sentadas em um
posto, eu estava com a minha irmã Juliana e senti que tinha uma pessoa
do meu lado. A Antônia conversava com a Juliana, contando novidades da
sua vida. Em certo momento da conversa, Juliana me avisou quem era a
pessoa ao meu lado. Eu fiquei pasma “A Antônia?”. Ela respondeu: “Sim
Beatriz, sou eu, a Antônia”. Ela estava do meu lado e não tinha se dirigido
a mim, como se fosse custoso falar comigo e dizer quem era. Nessas
situações eu fico realmente irada porque estava do meu lado, eu estava ali,
há quanto tempo nos conhecíamos, é como se eu não fosse nada para as
pessoas.
A Beatriz sente que têm pessoas que a discriminam por não enxergar
mais. Ela fala que têm pessoas que ela sabe quem é, pela voz ela
reconhece, mas a pessoa não a cumprimenta. Até pessoas da própria
família, que já a viram passar e nem a chamaram. Ela não enxerga,
então se a pessoa sabe que ela não enxerga e a vê passando, pode mexer
com ela dizendo oi Beatriz, estou aqui, como você está?. Ela sente isso
aí, isso ela sente muito e ela nota, inclusive eu já notei. Ela fica muito
triste, ela diz ‘Poxa, só porque a pessoa não enxerga, a pessoa tem uma
deficiência, ela tem que ficar isolada? Não é assim...’. ela sente sim. Até
mesmo a gente se entristece, às vezes relevamos porque queremos
acreditar que a pessoa realmente não a viu, não a notou, então damos
um desconto. O duro é que ela conhece a voz né. Ela sabe quem é,
nessa parte ela sente muito sim (fala de BELA, tia de Beatriz).
E desde então, passo por situações como essas quase diariamente,
sempre que vou ao supermercado, restaurante, lojas, que caminho pelas
109
ruas. Conto com o apoio da minha família e de alguns poucos amigos,
somente. Procuro me apegar ao que me fortalece e que me faz sentir viva,
útil de alguma forma, como por exemplo, o nascimento da minha
sobrinha. O nascimento de Caroline aconteceu em um momento muito
importante da minha vida em que eu estava em processo de aceitação e
redescoberta. Caroline nasceu um ano após a agressão e desde então ela me
ajudou a ter mais força. No começo, quando eu dava um banho naquele
bebê ou fazia qualquer coisa por ela, eu me via como uma pessoa capaz
novamente, eu conseguia entender que ainda era eu e apesar da deficiência
tinha alguma coisa de mim ainda, sentia que poderia ajudar alguém.
Sentia-me da mesma forma quando fazia algo pela minha tia
Carina que adoecera. A tia Carina já estava com idade avançada quando
fui agredida. Antes da agressão, ela limpava a casa, lavava as roupas, fazia
tudo, mas o que aconteceu comigo foi tão traumatizante para ela que foi
definhando aos poucos até o dia de sua morte. Ela sentia medo, teve
traumas tanto quanto eu porque ela me viu daquele jeito. Eu não conseguia
entrar na sala em que tudo acontecera, então ela sentava na sala e eu ficava
na área ao lado de fora. Ela me dizia “Acenda a luz, Beatriz”. Eu não
precisava de luz, mas ela insistia “acenda a luz, Beatriz” e eu acabava
acendendo por causa dela, não queria que eu permanecesse na escuridão
ao lado de fora da casa. Em seus últimos dias de vida, era eu quem dava o
banho, colocava a roupa, a ajudava em tudo o que podia. Nesses momentos
não era ninguém fazendo nada por mim, inválida, limitada, cega, mas, era
eu quem fazia algo por alguém que eu amava, outra pessoa precisava de
mim e não o contrário. Dessa forma, pude ir aprendendo e descobrindo
tudo de que ainda era capaz!
Foi um processo em que eu precisei de alguém me dando força,
sempre teve alguém estendendo ou pegando em minha mão para que eu
não desistisse. Deus colocou pessoas em minha vida quando mais precisei
110
e com palavras inesperadas que me fortaleciam novamente e me faziam
seguir em frente.
Deficiência
Eu já tentei ver meu rosto várias vezes. Peço a Deus que me mostre
em sonhos, mas ao mesmo tempo tenho medo... eu já me vi com apenas
um olho branco e o outro normal. Nos sonhos, já cheguei a quase me olhar
no espelho, mas bem na hora que apareceria meu rosto eu sa correndo,
avistando-o apenas de relance. Quando toco com as mãos em volta, por
dentro, não é possível imaginar como está porque não tenho essa imagem
armazenada na memória.
Se antes de ficar cega tivesse visto um rosto sem olho, poderia ser
que minha mente trouxesse alguma imagem do que sou hoje, mas como
eu não vi, é difícil de imaginar. Mesmo não visualizando a figura de um
rosto como o meu, sei o impacto que causa nas outras pessoas quando
verbalizam expressões de susto ou piedade. Em certa ocasião, o filho
pequeno de uma amiga chorou desesperadamente e aterrorizado por me
ver sem óculos, chamando-me de monstro. Nesses momentos
constrangedores é que posso imaginar o quão desfigurado está...
Algumas pessoas já me disseram que teriam morrido se algo
semelhante acontecesse com elas. Quando você se coloca no lugar de uma
pessoa não é o mesmo que estar vivendo a situação. Você pode tentar
sentir, tentar imaginar, porém cada pessoa terá a sua própria forma de
vivenciar. A dor que sinto em meu rosto hoje pode ser que para você não
seja nada ou então muito pior do que é para mim. Para cada ser humano
será uma forma, ainda que passe pela mesma situação, não significa que
sentirá o mesmo. Mas, tenho certeza absoluta que do mesmo jeito que
111
Deus me deu forças, daria a outras pessoas também. Antes de contar os
desafios de uma vida com deficiência, fiz uma síntese dos fatos que para
mim foram marcantes em minha história de vida...
(Instrumento “Linha de (Linha de vida”)
2003 - Trabalho na padaria
2004 - Ano bom, comecei a namorar.
2005 - Comecei a fazer o curso de inglês, computação e açúcar e álcool.
2006 - Fiz um curso de Massagem.
2007 - Sofri um grave acidente de moto.
2008 - Terminei o curso de Alimentos, formatura, que alegria!
2009 - Estágio na Vinagreira. Fui à praia.
2010 - Novo emprego, novos planos.
2011 - Sofri a agressão.
2012 - Nascimento da minha sobrinha, uma alegria na minha vida. Descobri
que não voltaria a enxergar.
2013 - Conheci a Associação de Deficientes Visuais.
2014 - O agressor saiu da cadeia e foi para um manicômio.
2015 - Andei de bicicleta sozinha na instituição.
2016 - Fiz curso de braile e computação.
2017 - Vendi minha moto, que triste. Assisti a uma palestra para mulheres
cegas. Comecei um curso de Massagem Terapêutica. Fiz um curso de
Massagem Relaxante e Crochê.
2018 - O agressor saiu do manicômio, acabou minha paz. A tia que salvou
minha vida faleceu.
2020 - Aceitei participar dessa pesquisa.
112
O mundo não é para nós...
Quando a sociedade olha para mim com pena, me considera
incapaz e percebo que as palavras da pessoa são de muita piedade, sempre
tento desconversar, modificar essa visão de coitada sobre mim dizendo o
quanto estou bem. O que me ajudou no processo de aceitação da
deficiência foi em primeiro lugar Deus, não conseguiria nada sem minha
fé, foi a minha base. Depois a família, poucos amigos, psicólogos,
psiquiatras, um conjunto de coisas que me ajudaram a chegar até aqui
porque a mente é a parte mais difícil de ser curada. Algumas coisas
mudaram ao meu ver, outras continuam da mesma forma, embora as
pessoas pareçam não mais me reconhecerem.
Eu acho que a Beatriz superou primeiramente dentro dela o problema
da falta da visão. Acho que é uma coisa de aceitação, achei que ela
aceitou ‘eu estou assim e vou ter que me adaptar para viver’ e isso foi
primordial para a vida dela. Ela nunca reclamou ou se lamentou, nunca
vi essa mulher dizer ‘ah eu sou cega, ai sou uma coitada’, nunca a ouvi
dizer coisas desse tipo. Nunca chorou, nunca reclamou! Eu no lugar
dela, não sei se me comportaria assim. Teve uma aceitação muito boa,
o psicológico dela foi trabalhado. Eu sempre falo pra ela que isso é um
tapa na cara de muita gente, porque existem pessoas que encontram
obstáculos em tudo, para trabalhar, para sair de casa e com a Beatriz, o
obstáculo não a impede de viver (fala de IVANA, cliente de Beatriz).
Curiosamente, sou mais vaidosa hoje a antes de ficar cega. Quando
estou com as unhas e o cabelo sem fazer, já fico pedindo para a Juliana me
ajudar, me levar ao salão porque eu dependo de outros para fazerem por
mim. Antes eu ia até o salão e fazia o cabelo... EU! Agora não, dependo da
Juliana ou de outra pessoa que possa me levar. Eu aprendi a ser mais
113
vaidosa do que era antes, isso porque o cego, o deficiente é muito mais
visto do que uma pessoa normal. Se uma pessoa sem deficiência entra em
um mercado, pega o que quer e passa despercebida. O deficiente não.
Quando uma pessoa com deficiência está entrando, as pessoas olham e o
acompanham com o olhar, param o que estão fazendo para observá-la. Às
vezes minhas irmãs dizem “Pelo amor de Deus, se arrume, se vier uma
pessoa aqui vai pensar que não cuidamos de você”, então eu vou, troco a
roupa, me arrumo, mais para agradar aos outros do que porque por mim
mesma, por saber que estou sendo alvo de observações e comentários. Para
mim o que realmente importa é o conteúdo do que vou conversar com a
pessoa e não a aparência de ambas.
No cotidiano até esqueço que sou cega, no entanto, têm situações
em que a cegueira sobressalta e me irrito, me questiono, me revolto,
normalmente situações provocadas por outros. Estávamos na chácara no
final de semana, eu quis pegar algo dentro da casa, minha irmã Paola foi
me orientar. Tinha uma subida e eu fui batendo com a bengala para me
localizar. Ela dizia “Tome cuidado! Vai bater nos outros!”. Eu respondi
“Paola, como vou bater em alguém se sei que aqui é apenas uma subida,
não tem nada e não tem porque alguém ficar parado aqui?”. Um homem
que passava e ouviu disse rindo, descontraído “Tem que bater mesmo, tem
que sair da frente!”.
Falas como essa da Paola me mostram que as pessoas não se põem
no lugar do deficiente como se fosse apenas meu dever adaptar-se aos
outros. Eu fico irritada quando alguém está orientando e pega na minha
bengala subitamente e a leva bruscamente para outra direção. A minha
mão acompanha o movimento súbito me desnorteando. “Ah Beatriz, tem
gente aí!”. Isso me dá um nervoso por dentro e eu penso comigo mesma
“Puxa, é como se o mundo fosse cego e eu a única vidente nesse momento,
114
eu que tenho que me desviar das pessoas!!”. Fico com tamanha
irritabilidade que tenho vontade de jogar a bengala para longe.
Se estou me orientando, a bengala naquele momento se torna meus
olhos e não posso usá-la se constantemente a tomarem de mim, mudarem
sua direção. A primeira coisa que as pessoas fazem é puxar a minha
bengala, tiram de mim sem nenhum aviso prévio. Então, entrego-a logo
para quem a tirou e quando dizem “Tome a sua bengala”, respondo “Não!
Você quer u-la!”. Eu fico brava com isso. Fiquei tão brava certa vez a
ponto de soltar a bengala largando-a no chão dentro do mercado. A Elis
me diz que faz isso para evitar que eu bata em algo e quebre. Nessas
ocasiões eu relevo e em lugares repletos de coisas eu mesma me policio e
tomo mais cuidado porque sei que posso quebrar. Nessas vezes seguro mais
no ombro de que quem me acompanha do que utilizo a bengala.
aconteceu de eu derrubar determinadas coisas no mercado.
Inclusive, fiquei muito brava com a Elis por algo assim. Fomos a
uma loja e eu estava vendo xícaras. Encontrei uma xícara que parecia ser
linda. Terminei de ver e fui devolvê-la ao lugar e acabei tombando-a na
prateleira. Embora não tenha caído ao chão e nem quebrado, a Elis se
alterou exageradamente me tratando como se eu fosse uma criança e
precisasse ser repreendida. A minha cara deve ter ficado vermelha de
vergonha, de nervosa, pela forma como falou comigo. Eu me senti um
nada, uma criança, como se eu não tivesse condições de me virar, sendo
que o incidente poderia ter acontecido com qualquer pessoa.
Ela replicava que eu iria quebrar e teria que pagar, portanto deveria
parar de mexer. Lembrei-me de uma amiga da associação que quebrou
todos os potes de doces que estavam à venda em uma banqueta no meio
de uma calçada e fiquei ainda mais nervosa. A diferença era que eu não
havia quebrado nada e qualquer pessoa poderia ter desequilibrado a xícara,
mas a questão era visivelmente porque sou deficiente. Fiquei muito mal
115
com a atitude da Elis, só não chorei naquele momento porque me segurei
muito, respirei e fiquei quieta.
Se eu ainda enxergasse, seria outra situação, porque eu
simplesmente viraria as costas e a deixaria falando sozinha quando me
magoou. Mas, a minha deficiência me impede de fazer as coisas, de reagir
como eu gostaria e isto me irrita, a deficiência me impede de ser eu mesma.
Eu sempre fui assim, se houvesse uma discussão me envolvendo eu apenas
virava as costas e saía, nunca permanecia nesse tipo de situação, hoje tenho
que ficar e isso me deixa muito nervosa. Quero resolver minhas coisas e
não posso sair sem precisar dos outros e isto me deixa ansiosa, irritada.
Quando você se torna deficiente é sempre o outro que faz por você,
eu sou dependente do outro, se quero ir a algum lugar precisam me levar.
Parece que quando você se torna um deficiente não tem mais a sua vida,
parece que não é mais dono de você, não tem mais a sua opinião. Você
acaba fazendo até o que não queria, perde a voz para dizer qual é a sua
vontade, se quer ou não fazer aquilo. Por exemplo, como se eu dissesse a
você (Pesquisadora), me desculpe, mas não quero fazer essa entrevista” e
você me respondesse “Não Beatriz, faça, você tem que fazer!” “Mas, Ana
Paula, eu não quero.” “Faça assim mesmo!”. A minha opinião não conta
mais. Sou cega, mas é como se também não falasse além de não enxergar,
como se não tivesse mais raciocínio, voz e escolha, então me tornei um
nada para as pessoas.
Cada pessoa tem uma personalidade e seu interior acompanha isto,
mas parece que depois que a gente fica cega, a irritabilidade e o nervosismo
tornam-se maiores. Fica mais aflorado, pelo fato de não conseguir fazer
determinadas coisas. Nesse momento as pessoas dizem “o deficiente é tão
nervoso”, o cadeirante ou o surdo, mas é por não conseguirmos fazer o que
queremos e ficamos mais vulneráveis. O mundo não é para nós. As pessoas
não nos enxergam e não nos ouvem, as ruas e calçadas não são acessíveis,
116
todo o formato desse mundo é para videntes. Somos considerados
inadequados, incapazes, fardos e ao mesmo tempo somos vistos em um
pacote fechado em que todos têm que ter as mesmas habilidades. Quero
dizer que se uma pessoa com cegueira é capaz de fazer determinada coisa,
tenho que ser capaz também como se fossemos todos iguais! “Como você
não consegue?”. Carrego um peso por ser deficiente, tenho que provar que
sou capaz de fazer aquilo. Não basta ser cego, você tem que fazer. Tem que
ser capaz e ainda assim, rotulado de coitado e incapaz.
Mas, eu tenho que entender que não consigo mais. Às vezes eu
planejo, se tenho que ir ao dentista, por exemplo, planejo chamar o Uber
aqui e pedir que me deixe lá, eu penso em fazer isto, mas nunca o fiz porque
imediatamente vem o medo junto com o planejamento. Acho que
conseguiria ir sozinha apenas até a minha cabelereira que é muito perto,
fica há um quarteirão adiante e eu conseguiria fazer sozinha o trajeto.
Ainda assim, claro que minha tia estaria me olhando escondida. Quando
eu saio aqui na calçada mesmo, apenas para dar a volta e entrar na casa de
minha tia, sei que está me vigiando, sinto sua presença. Certa vez, ela
garantiu que me deixaria ir sozinha, me daria um voto de confiança e não
ficaria me observando. No entanto, quando fui atravessar a rua ela soltou
um grito “Cuidado com a árvore!”.
Entendo que em certas ocasiões pode ser que eu mesma me limite,
também tem esse lado, muitos cegos se limitam, acham que não
conseguirão realizar certas coisas e acabam não conseguindo mesmo! É
como já mencionei, cada pessoa tem seu próprio dom, o seu dom
certamente é diferente do meu, são situações diferentes, mas nada impede
o cego de tentar e ver se aquilo é para si. Tente e constate se gostou ou não,
e tudo bem, agora nem tentar por acreditar que não conseguirá por causa
da cegueira... O tentar ou não envolve muito o medo, medo de se frustrar,
medo do que vão falar a seu respeito, medo de mais uma derrota, tem
117
muitas questões envolvidas. Eu não tenho mais cem por cento de nenhum
dos meus sentidos. Os movimentos da mão foram prejudicados, o olfato
eu perdi, o paladar foi comprometido, a audição também, então todos os
meus sentidos foram comprometidos além da perda da visão. Ainda assim
trabalho e tento com o que tenho.
Eu não sou mais a Beatriz de antes...
A Beatriz de hoje é... uma guerreira! (risadas). Estou brincando, as
pessoas costumam me chamar de guerreira, mas me considero apenas
determinada. Eu vejo que hoje sou muito mais determinada em algumas
situações do que seria antes. Hoje, digo que vou fazer algo e não desisto
até que consiga! Apesar de sempre ter sido persistente nas coisas, agora sou
mais determinada, consigo concretizar o que quero e ir até o final, tento e
faço, mesmo que no meio do caminho chute um balde ou fique com raiva,
jogue a bengala ao chão (risadas) mesmo que eu faça essas coisas eu vou
conseguir. Hoje, também sou mais sensível, às vezes mais grossa, não sou
nada delicada dependendo da situação.
As situações que comumente me causam irritabilidade,
sensibilidade e indelicadeza, são aquelas em que a minha própria família
esquece a minha condição de pessoa com cegueira. No meu ponto de vista,
a Paola, por exemplo, não consegue entender que eu não enxergo mais,
que eu tenho uma deficiência. Ela não quer aceitar, ela acha que eu sou a
mesma de antes. Mas, eu não sou mais aquela de antes, hoje eu tenho uma
limitação.
Eu sei que ninguém está apto a lidar com o deficiente. Ninguém!
Se chegar um deficiente e ficar em sua casa, você também vai ficar perdida,
isto é normal. Só que o tempo vai passando e você precisa ir se adaptando
118
ao deficiente, conhecendo suas necessidades. Eles não me veem como uma
pessoa cega. Não me veem, me veem como a Beatriz de antes. Às vezes eu
até quero que me vejam assim, inconscientemente tento ser a Beatriz de
antes. Aquela que podia sair sem precisar da ajuda de ninguém e sem ter
que ficar pedindo coisas em tantas situações, porém, por mais que eu deseje
e tente não posso ser a mesma e ter o mesmo desempenho.
Na casa dos meus pais não se adaptaram ao cego ainda, ao
contrário, eu é que tenho que me adaptar e superar todos os obstáculos
que me impõem. Mudam as coisas de lugar e não me avisam. A Paola vive
mudando tudo de lugar e só descubro quando bato meu rosto ou pernas
em algo. Preciso respirar fundo para não discutir. Mas, muitas vezes bato,
machuco, fico com raiva, nervosa. A Paola tem o hábito de ficar mudando
a posição da cama no quarto. Quando a Caroline dormia e eu a levava para
a cama no colo, inúmeras vezes a colocava deitada no lado oposto à
cabeceira por causa das mudanças na disposição dos móveis sem aviso
algum. Há pouco tempo atrás fui levar Caroline para o seu quarto e
quando cheguei com a menina nos braços e fui colocá-la na cama, senti os
s da Paola no lugar que seria de Caroline, eu disse “Mas, você já mudou
de novo a posição das camas?”. Eu peço para ela me avisar quando mudar
as coisas de lugar, mas não avisa.
Deixavam a moto no meio do quintal, bem no espaço de passagem
para a casa da minha tia, eu chegava a cair e atravessar a moto. Deixam os
sapatos na porta de entrada e toda vez eu tenho que recolher para que não
tropece e caia. Todos os dias eu tenho que fazer a mesma coisa, recolher os
sapatos, descobrir onde estão os móveis no quarto, mas não tenho o que
fazer, a não ser me adaptar a isso.
Se limpo a casa, claro que não é do mesmo jeito que a limpeza de
alguém que enxerga, mas eu dou o meu melhor, eu tento. Quantas vezes a
Paola chegou e refez tudo o que eu tinha feito e isso me chateia e
119
desmotiva. Eu me esforço tanto para fazer, é difícil para eu realizar tudo o
que fazia antes e ela reclama que está mal feito. É mais difícil a convivência
com a Paola, pode ser que para ela seja muito difícil lidar com a minha
deficiência e com a tragédia que me aconteceu, pode ser que a incomodo
com minhas limitações e medos, eu não sei o que se passa dentro da cabeça
dela. Às vezes é a forma dela não querer encarar a realidade e aceitar que a
irmã agora é ... uma pessoa com deficiência.
É muito difícil porque a gente quer mudar a percepção dos outros
e não tem como. Minha mãe sempre repete a frase “Eu não tive uma filha
cega!”. Muitas vezes minha mãe está me orientando e para bruscamente
em minha frente e eu simplesmente esbarro ou tropeço nela. Ela grita
irritada “Ai!!”. Isso me incomoda porque parece que eu estou errada. Acho
que meu professor de mobilidade deveria dar uma aula para a família, o
primeiro passo deveria ter sido orientar a família.
Eu queria tapar os olhos deles para virem como é. Não é mais a
mesma coisa, é muito diferente, são situações que às vezes eu não consigo
mudar, porque no fundo eu acho que eles... Por vezes, penso que eles
compreendem a realidade de que eu não enxergo, mas na maioria das vezes
percebo que eles não acreditam ou não aceitam. Hoje, eu estava varrendo
o quintal e percebi que tinha alguém à porta, perguntei quem era e minha
irmã respondeu rispidamente “Sou eu, a Paola, Beatriz! Quem mais
poderia ser?”. Respondi: “Como eu saberia quem é? Eu não enxergo”. Aí
fiquei pensando sobre isso... será que eles não entendem?
Chego a planejar em um dia entrar no quarto em horário que esteja
dormindo, no escuro, tocar em seus pés e então ela me perguntará quem é
e eu responderei da mesma forma ríspida para que ela sinta como é para
mim, para que compreenda que agora eu vivo no escuro, então quando
pergunto quem é, é como se estivesse enxergando com os olhos. Outra vez,
eu, a minha sobrinha Caroline e a Juliana rodopiamos, nos demos as mãos,
120
elas de olhos fechados e depois de muito girar propus que achássemos a
porta da sala. Eu me senti o máximo porque encontrei a porta
rapidamente. Basta que eu identifique qualquer coisa do local em que
estou que me localizo rapidamente porque já conheço. Agora ela, sendo
vidente, não sabe trabalhar com a parte da audição que temos que utilizar
para nos orientar. Estas ocasiões em que eu possa me sentir superior e não
em desvantagens me trazem muita satisfação.
É difícil para as pessoas compreenderem as necessidades dessa nova
Beatriz e quase sempre interpretam como chatice minha. Ontem Elis e eu
brigamos porque eu estava tentando contar algo importante sobre um
assunto familiar e ela estava ouvindo música enquanto eu tentava falar. A
Elis gosta muito de barulho, som alto, música, e eu também gosto de
música, mas quando eu estou conversando não gosto porque isto atrapalha
a minha atenção, já que só conto com a audição que também foi
prejudicada.
Começamos a conversar e pedi para que abaixasse o som, ela
abaixou um pouquinho, mas não o suficiente. Eu disse que quando
estivesse em silêncio, eu contaria. Para me irritar ela começou a cantar a
música em tom ainda mais alto, assim me recusei a falar, não falaria
enquanto o barulho estivesse me atrapalhando. No momento em que você
estava lendo o resumo do nosso encontro anterior eu me lembrei dessa
situação... se de repente eu exclamasse “Caramba, eu sou cega, eu só tenho
a audição, o barulho me atrapalha” eu seria chamada de ignorante, ela diria
que eu apelo!
Às vezes eu apelo mesmo, mas quando chego a apelar é porque eu
já estou no meu limite, em determinadas situações eu tenho que ser
enfática e apelar. Nessa situação com a Elis eu não quis ser rude, não quis
falar desse jeito, mas poderia, para que ela entendesse que aquilo me
incomoda. Às vezes, na casa da minha sogra, eu sempre abaixo o som,
121
porque se vem falar comigo por trás, por exemplo, não entendo e fico ainda
mais irritada.
Outro dia na casa de minha sogra, a televisão estava tão alta a ponto
de eu não conseguir lavar as mãos, voltar para a sala, parecia que eu estava
em um lugar em que nunca estive antes, por causa do barulho tão alto em
minha cabeça. Eu me sentei no sofá e disse para ela Nossa, parece que
hoje eu estou cega!”. Minha cunhada é cismada comigo porque ela acha
que eu enxergo. Elas dizem que eu fico seguindo-as com os olhos quando
se movem e isto gera a desconfiança de que eu enxergue. Elas ficam
andando e eu as acompanho com o olhar porque a minha audição me
orienta. Quando disse que estava me sentindo cega, elas até riram porque
no fundo acreditam nisto. Eu expliquei “Não que eu enxergue alguma
coisa, mas hoje estou enxergando menos!” (risadas). Elas responderam “ah
é Beatriz?”. Minha sogra chegou em casa no domingo à noite e eu estava
sentada na sala, ouvindo um audiolivro, quando ela entrou exclamou: “o
que você está fazendo no escuro?”. Essa é uma das coisas que eu mais escuto
“O que eu estou fazendo no escuro?”. Não respondo, apenas sorrio. Meu
pai já me perguntou “Por que você está fazendo comida no escuro?”. Eu
fico com uma cara indignada. Se eu ficasse com as luzes todas acesas as
pessoas poderiam até desconfiar de que eu não sou cega, mas eu não preciso
de luz.
Muitas vezes, se todos saem de casa e eu estou aqui sozinha, eu
desligo tudo, não quero mais o som para que eu preste atenção ao que está
acontecendo lá fora, ao portão... fico mais atenta. A Paola quer ouvir o
som muito alto e eu peço para abaixar. Ela diz “Pelo amor de Deus, você
enche o saco! Vai lá para dentro!”. Eu entro no meu quarto, fecho a porta
e fico escutando, mas dependendo da altura que está eu não consigo fazer
nada! O meu celular é digital e dependo da audição para digitar ou receber
algo. É como se o som tapasse a minha visão e eu não consigo fazer mais
122
nada. São essas coisas que acontecem no cotidiano e me deixam pensativa,
eles não se colocam em meu lugar, esquecem que realmente não vejo. Hoje
mesmo, pela manhã fui colocar a maca na sala e bati na perna da minha
mãe. Ela me perguntou: “Beatriz, não está vendo que está batendo em
minha perna?”. Eu disse “Mãe, realmente não estou vendo!!”.
Em determinadas situações eu acredito que as pessoas esquecem
mesmo. Como eu presto atenção à voz e olho em direção à pessoa que fala,
pode ser que esqueçam que não enxergo. Têm cegos que ficam pacatos,
olham para outro lado enquanto você fala e não articulam com a cabeça,
então o fato de eu fazer isso, faz com que as pessoas até esqueçam queo
estou enxergando. No entanto, quando a sua família esquece isso, é mais
complicado, porque eu penso “Poxa, se eles esquecerem, quem vai se
lembrar? Se eles não conseguem se colocar em meu lugar, quem o fará?”.
Nesses momentos é que o futuro me preocupa.
Um futuro incerto
Outro dia estava conversando com minha sobrinha Caroline que
me contava que tem o sonho de conhecer um apresentador de televisão e
alguns personagens da novela infantil que assiste. Caroline me perguntou
qual era o meu sonho. Eu parei, fiquei pensando e respondi que não tenho
sonhos. Ela insistiu inconformada me perguntando se não sonhava com
nada. Eu passei o dia pensando sobre isso, sobre qual sonho eu teria.
Mesmo tendo refletido tanto, não consegui pensar em nenhum sonho.
Gostaria de fazer um curso de bambu (massagem), mas acho que isso é
uma meta e não tem a força de um sonho, como eu tinha antes com a
moto ou com a faculdade, hoje eu não tenho mais sonhos...
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Não que para mim seja triste deixar de sonhar como pode parecer
para outras pessoas. Não é triste, não ter sonhos pode não ser algo negativo.
Antigamente tinha o sonho de ser psicóloga, eu tinha, mas não deu e tudo
bem. Hoje, quando eu consigo realizar algo que quero, alguma coisa que
parecia difícil para mim, isto já me faz feliz. Faz com que eu consiga
momentos felizes e para mim já é o suficiente.
Os sonhos cederam espaço para preocupações reais em minha vida.
Eu penso muito no meu futuro, na velhice, penso bastante em como será
se ficar sozinha. Não sei se ainda estarei com a Elis, se terei alguém que
cuide de mim ou se estarei em um asilo. Não tenho medo do futuro, apenas
me preocupo com ele. Penso que por hoje eu viver com a constante
incerteza, lá no futuro possa sentir medo de estar sozinha, vivendo sem
mãe, pai ou irmãs. Porque um dia tudo acaba, nada é para sempre. Pode
ser que eu morra primeiro como era para ter acontecido. Também fico
imaginando como seria se eu ficasse em um lugar onde só vivessem cegos,
todos velhos e cegos, em Minas tem esse tipo de lugar. Penso mais sobre
preocupações do que em sonhos!
Considero o meu futuro incerto. Acho que a deficiência faz a gente
pensar dessa forma “o que será que vai acontecer no futuro?”. Porque
quando eu tinha tudo, sabia que um dia ficaria velha e estaria na situação
de velhice, de fragilidade. Mas, imagine você sendo cega nessa mesma
situação. Ter deficiência, precisar de alguém. Eu sei que têm muitos idosos
que moram sozinhos, assim como o senhor que veio me visitar hoje, com
91 anos. Mas, será que eu conseguiria estar sozinha com a minha
deficiência? Porque com a velhice, vai acabando a audição, diminuindo
tudo. Penso em como seria difícil para mim, além de cega estar surda, por
exemplo. Por isso, penso que se chegar a ser uma idosa, no futuro, ficaria
em um asilo para que não atrapalhasse ninguém, ou para não ficar sozinha
à mercê de minha própria sorte. Enquanto a incerteza do futuro não chega,
124
tento fazer a minha história no presente, buscando o máximo de
conhecimento e independência possível, seja na minha vida pessoal ou
profissional.
No início, era apenas mais um curso...
Lembro-me bem do curso de massagem Linfática que fiz quando
ainda contava com a visão. Os olhos faziam toda a diferença na forma de
aprender, eu visualizava o corpo da pessoa. Na parte teórica também era
tudo diferente, pois eu tinha mais possibilidades para estudar
autonomamente, além das aulas, poderia ler os livros, apostilas, fazer
pesquisas, era tudo muito mais abrangente e acessível. Era muito mais fácil
fazer o curso enxergando, foi muito rico nesse aspecto. Quando estava
enxergando não conseguia sentir tanto cada parte humana como agora que
sou cega, hoje o toque é muito diferente porque antes eu me pautava
predominantemente no que via, mesmo tocando, confiava nos olhos, agora
confio realmente no que estou sentindo. A pessoa que enxerga acredita no
que vê, eu acredito no que sinto e toco.
Naquela época, apesar de acreditar que tinha uma vocação especial
para a massagem, uma vez que minhas amigas já me pediam para massageá-
las mesmo antes de pensar no curso, eu tinha trabalho e uma infinidade
de afazeres e possibilidades. Como era muito tímida deixei a massagem de
lado e passei a me dedicar a outras coisas e planos. Eu tinha o curso de
massagista, mas não pensava em trabalhar com isto.
Eu só me dediquei realmente à massagem quando comecei a fazer
o curso novamente já sem enxergar. No início era só mais um curso para
mim, como já tinha uma noção básica do que era decidi fazer mais um,
mas sem a intenção de que se tornasse minha profissão, afinal já recebia a
125
aposentadoria. Era só mais um curso para eu ocupar a mente, passar o
tempo. Comecei a fazer e me interessei porque percebi que era muito além
do que eu imaginava que poderia ser, foi mais intenso do que quando fiz
enxergando. Agora eu tinha outra visão de mundo e também me
identifiquei com a massagem terapêutica. Poder ajudar outros com a
terapêutica, ter uma utilidade para alguém mesmo em minha atual
condição foi decisivo para mim. É muito triste perceber que as pessoas
pensem que você se tornou apenas alguém que precisa de ajuda e nunca
alguém que pode ajudar.
Passei a me preocupar com questões como O que será do meu
futuro? Em que e como posso trabalhar? O que sou capaz de realizar sem
o auxílio da visão e de outras pessoas?. A massagem voltou a ser uma
possibilidade de trabalho, renda, independência e acima de tudo, uma
possibilidade de realização ao ajudar outras pessoas! Diante dessas reflexões
fiz dois novos cursos de Massagem Relaxante e Massagem Terapêutica.
Sim, foi muito mais difícil para aprender, memorizar, tive que ter muita
persistência, muitas vezes não sentia vontade de ir ao curso diante de tantos
obstáculos.
Apesar do cansaço e dificuldades, até mesmo da falta de disposição
em muitos dias, tocar um corpo depois de cega foi uma sensação muito
boa, de descobertas e de olhar atento, porque a maioria das pessoas só a
superficialidade quando se baseiam na visão. Posso enxergar que a pele tem
um machucado aparente, mas não percebo um caroço escondido por trás
do machucado, a menos que o toque e o sinta. Durante a massagem, se
houver algum nódulo vou sentir, mas se apenas dependesse da visão
poderia não o perceber. Quando enxergava não sentia inteiramente braços,
mãos, pernas, cada parte do corpo de uma pessoa, era algo pautado apenas
no olhar. Reaprender a olhar para além da visão, sentir, tocar, é que me
deu forças para continuar.
126
Além de mim, outras pessoas com a mesma deficiência estavam
matriculadas, era um curso ofertado especificamente para pessoas com
cegueira por iniciativa própria de um professor da associação. Ministrar
esse curso para a pessoa com cegueira era um sonho antigo do professor
Wagner desde que se formou como massoterapeuta muitos anos atrás.
A turma era formada por pessoas com baixa visão e cegueira, apenas o
professor era vidente. Foi um curso intermediado pela associação de
deficientes. A prefeitura cedeu um espaço, conseguiram algumas macas e
nós tínhamos as aulas. Muitas vezes, esse professor teve que utilizar de seus
próprios recursos para que nossas necessidades fossem atendidas.
Conheci a Beatriz na associação que aceitou minha proposta de
ministrar o curso como voluntário, já que não poderiam me contratar
naquele momento. A Beatriz chegou com a intenção de fazer o curso e
persistiu muito, frequentava todas as aulas, dificilmente faltava, a
menos que tivesse algum compromisso médico ou algo assim. Beatriz
realizou todos os cursos ministrados e é visível o resultado, nada
adiantaria se apenas quisesse se tornar uma profissional da área sem
dedicação suficiente, se não frequentasse as aulas. O mérito maior é
sem dúvida da dedicação, esforço e compromisso de Beatriz. Em cada
turma, três ou quatro alunos se destacavam como melhores e a Beatriz
sempre esteve entre esses. Eu pedia para que os alunos aplicassem a
massagem em mim, treinassem e para que eu percebesse se estavam
pegando certo, sentisse a pressão que colocavam, embora eu não tenha
aprendido assim, ensinei assim. Na atividade prática, a Beatriz estava
sempre entre os poucos que se destacavam e que faziam direitinho (fala
de WAGNER, professor do curso de massagem).
No início éramos quinze pessoas entre cegos e com baixa visão, ao
final apenas três pessoas com cegueira se formaram e dessas, apenas eu
trabalho com a massagem. O grupo de alunos cegos não é unido e nem
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interessado nas coisas, essa é a verdade! Os cegos não são unidos, quando
começam logo não se interessam, complicam as coisas e eu fico muito
irritada com isto.
O maior obstáculo desse curso foi o fato de que a maioria estava
fazendo apenas por entretenimento e não para realmente aprender uma
profissão. Eram poucos os que realmente tinham o dom para a massagem.
Também era desafiador lidar com tanta diversidade de necessidades de
cada um, afinal, não é porque somos cegos que somos todos iguais, temos
dificuldades e habilidades diferentes.
Por exemplo, como hoje eu só tenho a audição se estou
conversando com você e tem barulho e conversas paralelas, me incomodo.
Conversas paralelas daqueles que não levavam o curso a sério me impediam
de me concentrar. Também havia uma aluna que além de cega era surda,
usava aparelho, então imagine como foi difícil. O professor falava e para
mim estava tudo bem, mas quando ele perguntava para ela, respondia que
estava ouvindo muito baixo ou quase nada. O professor recomeçava a aula
do ponto de partida e quase não avançávamos.
O professor ensinava cada aluno pelo tato, deitávamos em decúbito
ventral, dorsal, direito e esquerdo, os princípios básicos sabíamos. Wagner
partia do início falando sobre os três pontos e mostrava a cada aluno com
suas próprias mãos quais eram os três pontos. O curso foi demorado por
ter que ensinar individualmente os alunos, durou um ano. Em cada aula,
ele tinha que relembrar o que aprendemos na anterior fazendo na prática
novamente para só então apresentar o conteúdo novo e assim foi indo. Era
nossa maneira de memorizar o conteúdo já que não contávamos com o
recurso de ler uma apostila. Apenas duas pessoas no curso sabiam braile, o
restante não. A minha estratégia em particular para memorizar, além da
que o professor fazia, era praticar em casa com as pessoas. O professor
brincava dizendo para fazermos nos cachorros, gatos e ursinhos (risadas).
128
Eu fazia nos meus familiares. Quando eu não lembrava pedia para alguém
ler a apostila. Era difícil decorar certas coisas como todos os pontos e deles
decorrentes, além de todos os movimentos.
A Beatriz não teve dificuldades, ela ainda ajudava, dava carona para
outras pessoas, sempre trazia mais uma ou duas colegas consigo. Eu
não imaginava que se tornaria a sua profissão, eu quis ensinar sem
expectativas, sabia que isto dependeria apenas deles, eu ensinava sem
esperar que se tornassem profissionais. Cumpria o meu papel de
ensinar o todo, desde como atender o paciente até como cobrar pelo
serviço, enfim, como receber uma pessoa, como fazer uma ficha de
anamnese, como oferecer pacotes, o que e como cobrar. Quando a
Beatriz falava durante o curso que estava praticando em casa para
memorizar, eu ficava muito contente, porque são seiscentos
movimentos, só no braço são trinta movimentos, uma sequência
grande e se não praticar esquece. O domínio vem pela repetição, pela
prática, assim pedia para que repetissem para mim o que estavam
aprendendo. Eles aprenderam dessa forma, usando o toque e oralidade,
eu pegava na mão de cada um e mostrava o movimento, a pressão, as
pessoas que não podiam ser tocadas tinham que perder isso, pois era
necessário (fala de WAGNER, professor do curso de Massagem).
Era preciso muita flexibilidade, criatividade e adaptações para que
aprendêssemos. Durante um dos cursos, aprendi que deveria aplicar a
técnica através do tecido, sem que a pessoa precisasse tirar a roupa, no
entanto, cega, eu não teria total dimensão do corpo. Essa massagem é
muito antiga, veio da China, se trata da técnica An e nos tempos da
realeza, os escravos que a aplicavam não podiam tocar nos senhores, então
aplicavam por cima dos tecidos.
Mesmo na atualidade, têm pessoas que não gostam de ser tocadas
dependendo de quem está fazendo isto. O Wagner queria muito que
129
aplicássemos a técnica por sobre o tecido, mas intervi e expliquei a ele que
para nós cegos, não dá! Expliquei o porquê e ele acabou entendendo que
para nós é realmente importante o contato direto com o corpo, uma vez
que o toque substitui a nossa visão. O Wagner ouviu e olhou para a nossa
necessidade de aprendizagem e adaptou a técnica para que a aplicássemos
sem o tecido por cima da pele.
Foi um curso simples, mas rico ao mesmo tempo, durante um ano
ensinou muita coisa! Com a intenção de aprender mais, também ia à casa
do professor acompanhada de outros dois alunos que levaram o curso a
sério. Esse curso possibilitou que eu recebesse algo muito requisitado hoje
em dia que é o diploma. Eu sei fazer a massagem, mas só posso provar
tendo um certificado. Então era algo importante em que sempre pensei
para provar minha capacitação. Eu pensei que fazendo o curso reconhecido
e certificado seria importante! Um certificado que comprove que sou
capaz, que estou apta para o trabalho, que tenho uma profissão. Um
certificado demonstra que realmente me esforcei, aprendi, superei e que
posso estar no mercado de trabalho da mesma forma que outras pessoas
sem deficiência.
A Beatriz é uma pessoa normal como as outras, mas ela se identificou
com a técnica, ela gostou e quis se dedicar. Eu não a tratei de forma
diferente dos outros, mas ela se destacou, aqueles que desistiram é
porque não se identificaram. Ela fazia e gostava que eu a avaliasse,
sempre me perguntava se estava certo, se eu a estava observando, como
aluna sempre teve uma seriedade a mais do que os outros. Ela sabia
brincar na hora da brincadeira, mas também sabia ser séria quando
precisava de seriedade. Beatriz era especial dessa forma, ela não era
avoada, mas uma aluna dedicada, esforçada. Eu sempre dizia que
gostaria de passar aos alunos na formação 100% do que eu sabia, mas
conseguiria apenas transmitir 80% e disso, eles apreenderiam 60% e
aplicariam 30%. Sabendo disso, a Beatriz buscava aproveitar o
130
máximo, se preocupava em sempre me questionar se estava fazendo
certo, estava sempre se corrigindo, sempre (fala de WAGNER,
professor do curso de massagem).
Eu nunca passei por uma seleção de emprego depois de cega, mas
tenho amigas cegas que passaram e me contaram como foi. A preferência
nunca será pela pessoa cega, mas por alguém que não tem um dedo ou algo
parecido ou então mesmo o surdo está em vantagem porque ele vê e pode
realizar o trabalho ainda que não escute. Para o cego é muito mais difícil.
Lembro que em São Paulo recebi a notícia de que não voltaria a
enxergar, disseram em uma tentativa de consolo que eu poderia trabalhar
e que havia muitos cegos que trabalhavam em clínicas. Só não me disseram
que esses são exceções, que têm nível superior ou que realizam funções
específicas da área em que são formados. Os profissionais cegos
mencionados pelo médico, que trabalham em clínicas em São Paulo têm
nível superior e atuam em áreas que não exigem a visão. Eu tive um amigo
cego que trabalhava em uma fábrica em uma cidade grande, produzindo
caixotes. Como ele sabia o serviço, não precisava de olhos para construí-
los.
Os médicos não consideraram que eu moro em uma cidade do
interior, um tanto limitada no que diz respeito à inclusão, as pessoas com
deficiência visual em minha cidade estão trabalhando em quê? Estão
pedindo esmolas nas ruas! Se alguém procurar não encontrará pessoas com
cegueira total trabalhando em minha cidade. Talvez encontre alguém com
baixa visão, mas não um cego total. Como disse, eu não passei por
experiências como essas de procurar trabalho, mas sei como seria pelas
vivências de amigos que passaram.
131
Como na atualidade, existe muito erotismo sobre a massagem, foi
renomeada massoterapia, mas percebo que as portas estão sempre
fechadas para o profissional dessa área. Então, passo tudo isso na
formação para os meus alunos, das dificuldades e obstáculos que
encontrarão nessa profissão, ainda mais eles tendo deficiência e
buscando inclusão, procuro passar essa consciência. No entanto, eu
tenho que mostrar que apesar de todos os obstáculos, no final é
gratificante, é transformador, não é um trabalho mecânico (fala de
WAGNER, professor do curso de Massagem).
Eu sempre busco continuar me aperfeiçoando e nunca deixo de
estudar, a medida do possível. Hoje em dia têm muitos cursos, até mesmo
pelo Youtube, em que poderia me aperfeiçoar, mas sendo cega, como?
Quando fiz o curso, o professor pediu para entrar no Youtube e procurar
por um conteúdo. Encontrei e não adiantou nada, porque simplesmente
falavam como se todos fossem videntes, como eu saberia onde é o ponto
que ele está apontando? Só ouvindo não dá para saber. Quando quis
pesquisar mais sobre fibromialgia porque atenderia uma cliente com isto,
precisei de outras pessoas. Então precisei dos olhos da Elis, da Juliana, da
Paola, vários pontos de vista porque nem sempre sabiam explicar o que
viam, precisei de várias pessoas para eu chegar à minha própria conclusão.
Eu contei a ela no primeiro atendimento que sofria com fibromialgia
e então aconteceu uma coisa incrível, ela foi estudando sobre a minha
doença e adaptando a massagem. Começou a pegar em pontos como
nuca, abaixo dos ombros, joelhos e me dizia que estava estudando sobre
o assunto... e é fantástico para mim, eu não posso ficar sem a
massagem. Ela foi se adaptando ao meu problema, foi estudando como
seria a massagem para as minhas dores específicas e esse foi o diferencial
que fez com que eu ficasse com ela até hoje, já faz dois anos que estou
com ela. Eu já fui a outros massagistas e fisioterapeutas e eles nunca
132
fizeram isso, nunca adaptaram a massagem só para as minhas
necessidades, mas a Beatriz fez. Essa foi a grande diferença da Beatriz
para outros profissionais que conheci. Ela mistura outros tipos de
técnicas como da relaxante e instrumentos como pedras e isso pra mim
é ótimo, já pude tirar vários medicamentos por causa da massagem que
ela faz. Tem sido muito importante (fala de IVANA, cliente de
Beatriz).
Ela ainda hoje tem vontade de crescer, de estar realizando outros cursos
para se aprofundar. Ela gostaria de fazer uma formação de Reiki, são
dois dias de curso e teria que ir para outra cidade, tem despesas e será
que lá aceitariam um deficiente visual? Tem toda essa luta. Ela também
gostaria de fazer um curso de técnica de bambu e será que os professores
teriam a disposição de se adaptarem às necessidades dela? A Beatriz tem
sede de aprender e se ela tivesse mais oportunidades, ela não perderia.
Eu não sei quais as possibilidades de sua família, mas se ela tivesse um
apoio, ajuda maior, alguém para disponibilizar para ela um carro, de
repente, a própria Secretaria da Saúde que deveria investir na formação
dela, dar condições para ela que com certeza aproveitaria tudo isso. A
Beatriz é alguém que merecia um apoio do Governo, um apoio
político, um apoio maior de alguém (fala de WAGNER, professor do
curso de massagem).
Hoje, sinto orgulho de minhas escolhas e trajetória, sou uma
profissional certificada, segura, capacitada e trabalho autonomamente já
que seria muito difícil uma inserção no mercado de trabalho formal.
Poucas pessoas querem lutar em prol dessa causa,
mais resistências do que ajudas ...
Eu estava lendo a introdução do seu artigo e pensando como é
triste a realidade da pessoa com deficiência! Os dados da Relação Anual de
Informações Sociais - RAIS mostram que é muito baixo o número de
133
contratados. Curso, faculdade, envolve o trabalho de muita gente, nossa,
muita coisa, e mesmo que um empresário queira de forma isolada ajudar
não teria força suficiente para mover alguma coisa por estar isolado, o
deficiente acaba desistindo por não ter força para lutar. Poucas pessoas
querem lutar em prol dessa causa. Lendo o artigo, fiquei pensando que
antigamente a igreja católica via o deficiente como um pecador que
merecia ser isolado e viver de esmolas, as pessoas nem se aproximavam.
Atualmente as coisas mudaram, mas se pararmos para refletir, mesmo hoje
os deficientes continuam sendo deixados de lado, não são vistos como
pecadores, mas são vistos como dignos de pena e incapazes de viverem do
trabalho.
Pensei até mesmo em montar uma equipe com a Beatriz e mais duas
pessoas que também se destacaram para que juntos oferecêssemos
massagem em um clube esportivo e hotel em uma cidade próxima, mas
não aceitaram bem a ideia. Disseram que não achavam conveniente aos
cegos estarem trabalhando com massagem, talvez pensassem que eu
estava querendo me aproveitar da deficiência, o que não era verdade,
eu notei a capacidade dessas pessoas e estaria trabalhando junto com
elas, eu também aplicaria a massagem com eles, seria uma
oportunidade para ambos (fala de WAGNER, professor do curso de
massagem).
Por mais que as pessoas evoluam, que o mundo evolua, acredito
que o deficiente nunca será visto de outra forma, nunca. Por mais que
lutem, tentem e eu tenho certeza que lutarão... ao final apenas um ou outro
conseguirá chegar em algum lugar, a maioria desisti. Desistem por ser
uma luta cansativa. A gente precisa lutar, lutar, lutar para conseguir uma
coisa pequena. Tudo é muito burocrático e difícil para o deficiente, talvez,
134
já com a intenção de que ele desista mesmo. Imagine como seria fazer uma
faculdade? Muito difícil! Complicado mesmo!
O problema do trabalho para o deficiente... muitos têm vontade,
mas não têm onde trabalhar. É como sempre conversamos entre nós
deficientes, quando surge uma vaga, esta nunca será daquele que tem uma
deficiência grave. Inclusive dias atrás apareceu um anúncio de uma loja
que estava precisando contratar deficientes dizendo para levarem
currículos. Mas, vai lá um cego, um surdo total ou um cadeirante para ver
se eles contratam. Não contratam! Eles pegam aqueles deficientes que
apenas mancam”, então para esses tipos de deficientes tem trabalho,
entendeu? Mas para um cego ou surdo total, um cadeirante ou outra
deficiência mais séria não tem.
No meu trabalho EU estou fazendo alguma coisa por alguém!
Quando se pode ver as maravilhas e oportunidades que os olhos
lhe trazem, as coisas ficam um pouco mais fáceis e com isso as chances de
trabalho acabam sendo mais favoráveis para quem enxerga. Já, se não tem
a mesma visão, o deficiente vê sua oportunidade ser logo preenchida por
outra pessoa que tem uma deficiência bem pequena se comparada à sua.
Como concorrer com alguém que tem uma baixa visão sendo que eu sou
cega total? Sem dúvidas, quem conseguiria o cargo? Mas, nem por isso
posso ficar me lamentando, sou muito mais que isso tudo e por esse motivo
eu não me sentirei inferior.
O trabalho edifica o homem, não é assim que dizem? Quando eu
fiz meu primeiro curso de massagem eu enxergava e com isso era mais fácil,
afinal eu podia ler as apostilas várias vezes, os desenhos ilustravam as
posições de cada movimento, a massagem linfática me mostrou um mundo
135
de conhecimento maravilhoso onde o corpo humano fica tão grande
perante minhas mãos. No entanto, foi no meu segundo e terceiro curso
agora já cega que eu realmente me encontrei, a massagem terapêutica me
faz entrar em uma paz interior quando a aplico, penso em como o corpo é
tão grande e ao mesmo tempo tão pequeno, os pontos que se aliviam com
um toque, mas que também podem ser facilmente machucados com uma
massagem errada.
Poder fazer minhas mãos percorrerem um caminho que leva a
pessoa que está recebendo a massagem ao alívio e relaxamento, não tem
palavra que expresse a sensação de poder ajudar o próximo. Não sei se
todos sentem a mesma felicidade e valorizam o toque como eu valorizo,
mas gostaria que todos sentissem o mesmo prazer em trabalhar naquilo
que gostem, em amar sua profissão, em reconhecê-la também como um
dom. Não quero parar de fazer novos cursos, mesmo sabendo que para o
deficiente as coisas são mais complicadas, mesmo assim, nunca podemos
parar de buscar novos conhecimentos (Texto retirado do instrumento
Auto Informe).
Eu percebia essa sensibilidade na Beatriz, ela evoluiu muito nessa
questão não só na massagem, tato, mas também na questão energética,
na troca de energia. Eu percebia que ela passava alguma coisa boa. Ela
conseguiu entender que era um veículo que transmitia boas energias,
não precisou fazer um curso específico para ter essa compreensão, eu
jogava no ar e pegava quem queria e Beatriz sempre pegou. Não
precisou de um certificado de Reiki, mas aprendeu vendo o professor
fazer, ouvindo sobre como se faz, ela compreendeu isso e a massagem
que eu recebia dela, eu percebia que me curava (fala de WAGNER,
professor do curso de massagem).
136
A técnica que utilizo se chama Anmá, uma técnica muito
tradicional e antiga chinesa. A Massagem Terapêutica é a que mais me
identifico e gosto de fazer. No entanto, misturo as técnicas, eu faço três
tipos de massagem em uma pessoa. Posso utilizar uma técnica de
bombeamento que faz parte da linfática, um oitonas costas que faz parte
da massagem relaxante e todos os pontos são da terapêutica. Na
terapêutica, apenas vou pegar e apertar os pontos, então eu misturo três
tipos de massagem em uma só. A maioria das pessoas espera uma massagem
relaxante, então por que não finalizar com uma massagem relaxante?
Adapto um pouco de uma, um pouco de outra para ficar completa,
abrangendo todos os aspectos.
Por hoje eu ter outra visão de mundo estou identificada com a
massagem terapêutica. Poder ajudar os outros com a terapêutica foi
decisivo para a escolha da minha profissão. Ter uma utilidade para alguém
mesmo em minha atual condição foi decisivo.
Agora, vou contar como é a minha rotina de trabalho... eu nunca
gosto de deixar as coisas para a última hora, me dá um nervoso. Se aparecer
um cliente de repente e a minha casa estiver desarrumada, vou dizer que
não posso atendê-lo. Primeiro pelo fato de eu ter uma deficiência e
demorar mais pra fazer as coisas. Como eu gosto que esteja tudo certo para
não ter nenhuma preocupação no momento da massagem, estabeleci uma
rotina para garantir isto. No dia em que tenho cliente, acordo mais cedo,
limpo a casa inteira, pois nunca atenderia um cliente com a casa suja! Com
certeza o cliente olha para a limpeza do ambiente, eu mesma repararia nisto
ao ser atendida e poderia até ser que não comentasse com ninguém, mas
eu iria reparar. A limpeza diz muito sobre a pessoa, por exemplo, se eu
recebesse uma massagem em uma casa toda suja, em uma maca suja eu
teria nojo, é um conjunto de coisas para uma boa massagem. Arrumo a
casa e o ambiente da massagem, retiro os tapetes ou objetos que não
137
pertencem ao ambiente, preparo tudo para a pessoa, se estiver frio aqueço
o cobertor, embora nunca permaneça quente até a pessoa chegar (risos).
Tomo um banho, visto meu jaleco de trabalho e em seguida seleciono as
músicas. Tento não colocar sempre as mesmas músicas para o cliente,
procuro sempre variar. O cliente chega e eu aplico a massagem (Conversas
decorrentes do instrumento Um Dia na Vida De...).
Procuro agendar uma única pessoa por dia, exceto se for alguma
urgência, isto porque prezo pela qualidade do atendimento e também pela
situação do meu braço. O fato de ele ter sido agredido e também por ter
tirado pele para repor no rosto, deixou sequelas, é um braço que não posso
passar meia hora em uma mesma posição porque quando tentar mudar
estará adormecido e dolorido, então preciso massagear e fazer exercícios
para que volte. O ato de fazer a massagem em uma cliente exige muito
esforço dos dois braços, em um aspecto é bom para estimulá-lo e não o
deixar atrofiar, mas por outro lado, alguns movimentos repetitivos e
circulares podem causar dor e então eu evito fazê-los com este braço, até
mesmo para que eu consiga oferecer à cliente o que ela merece.
Não gosto de atender duas pessoas em um mesmo período porque
a qualidade que ofereci à primeira, não será possível à segunda. São mais
de duas horas de massagem, sempre excede porque eu não fico presa aos
minutos, não me importo em passar dez minutos ou meia hora do tempo
estabelecido. Evito marcar duas clientes no mesmo dia ou período porque
a qualidade do atendimento cairia muito, eu sei que não conseguiria por
causa da dor. Prefiro não fazer um trabalho mal feito apenas para ganhar
mais dinheiro, por uma ganância que hoje, para mim, não é o que
verdadeiramente importa. O dinheiro é sim muito importante, sobrevivo
com ele, mas não é o principal para mim, não é o foco. O trabalho me
ajuda mentalmente, me ajuda muito!
138
Com a pandemia, fiquei muito tempo sem atender e mesmo com
a flexibilização não é a mesma coisa, os clientes assíduos ainda não
voltaram por medo. Para mim foi muito difícil lidar com isto, muito difícil
mesmo! Mais pela parte psicológica porque fazia pouco tempo que eu havia
me casado e mudado para essa casa quando o isolamento começou e parei
de fazer as massagens. Trabalhar me acalma, penso até que o bem que faz
para mim é maior do que para a própria pessoa que a recebe, no sentido
de que quando estou aplicando a massagem consigo sair do meu mundo.
Se a pessoa falar comigo não tenho essa sensação, mas se o cliente ficar em
silêncio é apenas eu e o corpo em toda a sua grandeza. Vou para longe dali,
me desconecto das coisas externas, estou explorando um ser humano em
toda a sua grandeza, desvendando cada mistério. Por ser cega, se não estiver
totalmente conectada com esse ser humano, algumas coisas podem passar
despercebidas como alguns pontos, então preciso estar muito atenta ao que
estou realizando.
Claro que quando já é um corpo conhecido é mais fácil, mesmo
com a pessoa falando, consigo realizar a massagem em todos os pontos, no
entanto, se a pessoa falar muito durante toda a massagem pode ser que ela
não preste atenção no que foi realizado e pode se questionar se eu
realmente o fiz. Pode achar que foi rápida demais ou não foi feito algo,
mas na realidade é porque não estava conectada, sentindo os efeitos, não
estava prestando atenção. Eu acredito que por ser cega, tenho a vantagem
de estar mais sensível a cada ponto e necessidade de meu cliente, em
dimensões muito maiores do que um vidente.
A principal motivação para eu trabalhar é a mente. O trabalho é
uma coisa que me ajuda muito. Depois da agressão que eu sofri o meu foco
passou a ser o medo que sinto e era difícil me desvincular dele. O trabalho
me ajuda a focar e pensar em outra coisa que não seja a agressão e permite
parar de pensar no que me aconteceu e até mesmo esquecer no dia em que
139
estou atendendo. No dia em que eu atendo uma cliente tenho tantas coisas
para fazer que não fico pensando naquilo. Claro que se eu estiver
trabalhando e escutar algum vizinho batendo com o objeto com que fui
agredida ficarei perturbada, mas sei que vai passar porque estarei focada
em outra coisa.
Por isso volto ao ponto de que quando estou fazendo massagem,
eu estou ajudando alguém, ao mesmo tempo em que estou me ajudando
também, estou sendo útil. O período em que a minha tia ficou muito
doente e cuidei dela dando banhos, foi para mim muito gratificante, em
primeiro lugar porque estava fazendo para alguém que amava, mas ainda
que fosse para um estranho, também seria. Eu estava sendo útil para
alguém, eu quem estava fazendo.
Esse aspecto ainda é para mim muito difícil de lidar, antes era
independente, saía e pagava minhas próprias contas, resolvia meus
problemas, não precisava de ajuda das pessoas. Hoje eu preciso de alguém
e infelizmente vou precisar para o resto da minha vida, em certas ocasiões,
claro, apenas naquelas que não consigo realizar algo sozinha.
Mas, no trabalho realizando a massagem, é diferente porque ali EU
estou fazendo alguma coisa por alguém. Trabalho pelo dinheiro, para
esquecer o que me aconteceu, para ajudar alguém e para ser eu quem está
fazendo algo por você! Não somos você e eu fazendo, sou eu apenas. Não
estou precisando de alguém para aplicar a massagem, estou fazendo
sozinha e estou conseguindo fazer. É claro que às vezes preciso que a Elis
olhe se está tudo certo no local, preciso que olhe se está perfeitamente
limpo o lençol, toalhas, detalhes, mas o principal sou eu exclusivamente
que faço, sou eu!
140
Tenho boas relações com as clientes, mas uma massagista
cega desperta a curiosidade...
Tenho uma relação muito boa com as minhas clientes, não consigo
me limitar apenas ao momento da massagem sem me importar com a
pessoa após o término. Não consigo deixar de mandar uma mensagem no
outro dia perguntando se está melhor. A pessoa pode até imaginar que é
porque quero que ela volte, mas é realmente pela preocupação com ela. O
meu intuito é fazer a pessoa se sentir bem, fazer com que melhore ao menos
um pouco da sua dor, então eu sou sincera quando quero saber e desejo
que a pessoa esteja melhor ou aliviada de sua dor. Sou sempre honesta com
as minhas clientes e não faço falsas promessas.
As clientes se sentem à vontade comigo, nunca percebi alguém com
vergonha de receber a massagem. Acho que as pessoas não sentem tanta
vergonha por eu ser cega, isto faz com que a pessoa não sinta
constrangimento porque pensa “ela não está me enxergando”. Claro que
há exceções, tem gente que acredita que enxergo um pouco, mas ainda
assim, é diferente para elas, por mais que pensem que eu veja um pouco.
Isto pode ser uma vantagem para mim em relação aos outros massagistas
que enxergam porque por mais que eu toque não estou vendo.
Você acha que eu a conheço? Você me conhece? Mas eu não te
conheço, porque eu sou cega. A minha amiga cega me disse certa vez “Olhe
Beatriz, por mais que a gente tenha amizade há tantos anos, eu não te
conheço e você não me conhece!” foi muito triste ouvir isto por saber que
é verdade. Por mais que eu toque na pessoa, nunca a verei, por mais que
eu queira muito, nunca a verei. Na massagem, a cegueira pode acabar
ajudando, se eu fosse tímida também iria a uma pessoa cega para receber
uma massagem, sem inibição.
141
O fato de eu ser uma massagista cega também desperta a
curiosidade de algumas pessoas, pois marcaram massagem apenas para
perguntar sobre a minha história e porque sabiam que eu era cega.
Sinceramente... não me importo! Se a pessoa quer ver como é ser
massageada por uma pessoa cega, eu mostro. A Regina, por exemplo, fez
muitas perguntas sobre a agressão e queria falar sobre coisas que eu não
poderia falar naquele momento porque eu estava fazendo uma massagem
e não poderia ficar tão tensa. Se conversarmos sobre coisas que eu vou rir
e descontrair tudo bem, mas falar sobre uma tragédia justamente no
momento em que estou fazendo uma massagem, é bem diferente.
Como era o primeiro dia explorando o corpo dela, eu não poderia
falar muito por estar conhecendo, no entanto ela não parava de perguntar.
Eu parava de massagear quando respondia e essas duas horas pareceram
uma eternidade para mim. Cheguei ao ponto de pedir para que parasse de
falar comigo para que pudesse continuar. Para piorar a situação ela ainda
trouxe uma amiga como acompanhante e que me indagava também. Eu
não tinha tanta experiência e segurança que tenho hoje para pedir silêncio
e explicar que era necessário, hoje eu já sei me colocar nessas situações.
Essa mulher foi uma das pessoas que nunca mais voltou, veio
por curiosidade. Ela seria uma pessoa que eu gostaria muito que voltasse
porque eu aplicaria a massagem da maneira correta, sem ela ficar falando,
gostaria de ter a oportunidade de mostrar o meu trabalho, mas ela não
retornou. Sei que nesse caso em específico, a minha inexperiência também
prejudicou por eu não conseguir colocar o limite e mostrar o meu trabalho.
No começo eu tinha vergonha e medo de fazer alguma coisa errada, agora
eu já tenho confiança, um local apropriado que me permite fechar a porta
se houver acompanhante para que não interfira e eu me concentre, mas no
começo não tinha nada disso.
142
Então, alguns clientes se aproximaram por se sentirem à vontade
com alguém que não vê os seus corpos, outros por curiosidade seja pela
minha história ou para saber como é ser massageado por uma pessoa com
cegueira. Existem pessoas que buscam uma massagista cega por
acreditarem que ela é uma profissional mais intuitiva e sensível ou com um
dom especial.
A Beatriz tem muito essa questão da espiritualidade, os
massoterapeutas são chamados de ‘anjos de luz da terra’, pelo tempo
que se dedicam a outra pessoa, pela paciência, pelo o que transmitem
ao outro. A Beatriz não é apenas uma boa profissional, mas alguém que
transmite uma luz, é uma instrutora, uma agente de luz, então está
acima de uma mera profissão de massagista. A profissão de massagista
é apenas o veículo para o que ela está transmitindo, a formação dela, o
sofrimento dela, o resultado de um diamante lapidado, quebrado. Foi
ainda mais quebrada do que qualquer outro profissional,
materialmente falando, ela foi ainda mais quebrada. Por isso, ela está
brilhando mais do que nós. Ela tem muito a passar para as pessoas (fala
de WAGNER, professor do curso de massagem).
Certa vez, eu recebi um telefonema de uma cliente que queria
receber a massagem justamente por saber que eu era cega. Como ela estava
grávida, eu não poderia aplicar essa massagem em uma gestante. Ela dizia
que queria muito porque quando estava morando em São Paulo recebeu a
massagem de um cego e gostaria de receber novamente. Como não pude
na época, acabei perdendo o contato dela e não a procurei mesmo depois
que teve o bebê. Também tem outra questão, quando é uma pessoa
estranha, é difícil você anunciar que é cega, é difícil, por receio de
preconceito, porque existe o preconceito.
143
Também há aquelas que questionam a minha cegueira. Muitas
pessoas já me perguntaram durante a massagem “você é cega mesmo?” ou
“você enxerga um pouquinho?”. Já aconteceu de uma pessoa ligar para
marcar uma massagem e eu avisar que sou cega, normalmente a pessoa não
demonstra o preconceito, ao contrário, responde de forma bem natural
“ah, tá bom, não tem problema” e eu que fico mais ansiosa aguardando a
resposta do que a pessoa, pela sua reação. A Ivana é uma das minhas
clientes mais antigas, mas demorou em acreditar que eu de fato sou cega.
No curso eu passei essa postura para os alunos, essa preocupação com
o que o outro está sentindo, pensando e eu percebia que a Beatriz, por
mais que não fosse cega desde o nascimento, mas após o acidente que
houve com ela, mesmo quando estava de costas ao perceber que eu
chegava, em silêncio, já se virava e se posicionava em minha direção,
até dizia ‘Wagner, você já está aí’. E eu respondia, ‘Sim Beatriz, já estou
aqui’. Eu percebia que para onde eu andava, ela me acompanhava. Eu
andava de um lado para o outro observando todos, ela me
acompanhava com a cabeça, me buscando para que eu a avaliasse. Ela
desenvolveu essa capacidade de acompanhar alguém com o rosto,
mesmo que a pessoa esteja a quatro ou cinco metros de distância. Eu
não a conheci antes do curso, mas acredito que as atividades
desenvolvidas no curso contribuíram de alguma forma na evolução da
Beatriz e isto chamava minha atenção (fala de WAGNER, professor de
massagem).
Não sei nem o que dizer, ou os outros cegos são muito limitados
ou não sei o que é. Eu encaro como elogio e não me ofendo, aliás, é muito
difícil eu me ofender por algo relacionado à minha deficiência, a menos
que em uma discussão você me chamar de cega com ar de xingamento, aí
sinto vontade de arrancar os seus olhos também, mas, fora isto, levo de
boa. A Helena, minha amiga, não pode ser chamada de cega nem em
brincadeira, diz que não é cega, é deficiente. Eu penso o contrário, aceito
144
ser cega, não gosto é de ser deficiente, me parece algo tão limitado. Prefiro
ser cega, sou cega! Não é uma mentira!
Entretanto, independentemente dos motivos que trazem cada
cliente até aqui, o que sei é que atendo a cada uma com a mesma satisfação
e dedicação. Nunca senti tipo algum de discriminação, o que percebo é a
curiosidade alheia, mas não discriminação. Sinto que sou eu mesma quem
me discrimina quando penso que não fiz bem feito, mas não que a outra
pessoa pense ou diga o mesmo.
Sou perfeccionista e exigente com o meu trabalho não para provar
que por ser cega sou capaz, mas pela minha própria personalidade de gostar
que as coisas sejam certas. No entanto, sei que acaba ajudando a mudar o
conceito que algumas pessoas têm sobre a pessoa com cegueira, claro que
a sua maioria tem uma opinião formada e não se permite olhar de outra
forma para o deficiente. Mas, alguns mudam o conceito “nossa, ela é cega
e mesmo assim trabalha, é esforçada, é capaz”. Isto abre outra visão para os
deficientes, quebra aquela concepção de que o deficiente não serve para
nada!
Depois que comecei a fazer massagem mudei muito, não que eu
faça muitas porque eu me limito nos atendimentos, por causa da
deficiência, pela dificuldade no braço, por causa do preconceito em relação
a minha orientação sexual, são vários os obstáculos que me impedem de
realizar ainda mais, mas ainda assim escolho trabalhar e vencer meus
limites. Escolho trabalhar porque quando faço a massagem, aplico algum
procedimento novo que aprendo, termino e pergunto como a cliente está
se sentindo e ouço o que a Ivana me respondeu que estava se sentindo bem,
que se sente uma diva após a massagem, uma enorme alegria me invade e
não tem dinheiro nessa hora que supere.
145
Às vezes o que eu ganho não dá para suprir as despesas que acabo
tendo com instrumentos que uso, mas ninguém precisa saber. Se eu não
trabalhasse as coisas poderiam ser bem piores, o trabalho realmente me
edifica. Todos temos que trabalhar, todos deveriam ter o direito de
trabalhar porque isso ajudaria muito na superação. Mesmo trabalhando
aqui dentro, não saindo de casa e interagindo com poucas pessoas, ainda
assim é gratificante até porque não me sinto totalmente exposta ao estigma
da sociedade.
O trabalho para mim é uma forma de eu enfrentar a minha
deficiência. É a forma que encontrei de vencer os meus próprios limites,
eu consigo, eu consegui!o tenho a pretensão de que mude a concepção
das pessoas ao meu respeito e nem faço para provar aos outros qualquer
coisa, apenas para mudar a minha própria concepção sobre mim mesma e
provar para mim que consigo. Eu poderia estar quieta em casa recebendo
meu auxílio, não precisava estar fazendo massagem, poderia estar protegida
no meu mundinho, mas sinto a massagem mais benéfica para mim do que
para quem a recebe porque me ajuda a cuidar da mente.
O trabalho modificou a minha mente, faz bem mentalmente. Eu
sempre gostei de trabalhar, então isto continua igual. Fico bem por saber
que eu estou limpando a casa, me arrumando porque vou trabalhar. O
trabalho sempre fez parte de mim, saber que eu posso trabalhar mesmo
sendo cega, é muito melhor! Não faço para provar nada para o outro, mas
para fazer bem a mim mesma, embora eu acredite que acabe repercutindo
no outro...
A minha profissão representa muito mais que um salário,
representa a minha autonomia, algo que eu faça sem precisar de outra
pessoa fazendo por mim. Não preciso da outra pessoa nesse momento, só
preciso de mim. Pode ser que precise que alguém olhe se algo está bem
limpo ou bem posicionado, detalhes que me ajudam, claro, mas para
146
aplicar a massagem, não preciso de mais ninguém, apenas de mim mesma.
Isto me ajuda a crescer, a me fortalecer, crescer até mesmo espiritualmente.
Em resumo, meu trabalho significa para mim, força, crescimento,
autonomia, dedicação, paixão e amor pelo próximo!
Todos os profissionais deficientes no mesmo pacote...
Quando estou fazendo massagem, se estou estressada é o que me
alivia. Quando sei que a pessoa chegou com dor e saiu melhor, me faz bem.
Hoje eu não iria fazer massagem, mas a Ivana mandou mensagem dizendo
que estava com dor, passando mal e perguntando se poderia atendê-la.
Imediatamente disse que sim, acordei cedo, arrumei tudo para recebê-la.
Quando estou fazendo a massagem nela, sei que isso vai aliviar a sua dor,
me sinto bem em ajudar. Sinto-me bem!
Evito trabalhar com os homens, é mais difícil, tem todo um
contexto envolvido. Entre outros motivos, pela sensibilidade do homem,
é preciso mais cuidado, você o toca e ele já interpreta de outra forma. A
visão do homem para a massagista é muito diferente da visão da mulher.
Se for algum conhecido, marido de alguma amiga, até faço, mas se um
estranho me perguntar se faço massagem, respondo que não porque não
sei como ele é, tem muita gente safada e que vem com outras intenções.
Eu conheço massagistas cegas que não fizeram o curso e anunciam
que fazem massagem, porém oferece outro tipo de serviço, uma massagem
erótica. Alguns homens buscam esse tipo de massagem porque não
diferenciam a profissional que tem a capacitação da que não tem,
generalizam. Existem vários tipos de massagem e já aconteceu do homem
me perguntar se faço a Tailandesa, em que a suposta massagista se esfrega
no homem e pega em determinados pontos. São muitas coisas envolvidas,
147
eu explico muito bem o tipo de massagem que realizo para que não haja
dúvidas, além de evitar atender homens e mesmo mulheres dependendo
de quem seja.
Conheci uma pessoa cega na associação que adotou esta postura de
mesmo sem nenhum curso e conhecimento sobre o assunto, oferece outro
tipo de massagem. Isto me indigna muito porque o cliente está com dor e
acaba sendo enganado, é um abuso, um roubo, a pessoa estar com dor e
confiando na profissional que nem sequer tem conhecimento e capacitação
para isto. Apesar de que a maioria dos clientes desta pessoa são homens e
posso imaginar o porquê... buscam exatamente o erotismo e sensualidade
que ela oferece como massagem.
O fato da pessoa que mencionei realizar as tais massagens sem curso
que a capacitasse e com conotação erótica me prejudica muito porque as
pessoas tendem a colocar todos os profissionais deficientes no mesmo
pacote. Ela não quis realizar esse curso de um ano que fiz para se capacitar,
ela apenas foi a uma massagista, recebeu uma massagem e saiu aplicando
nas pessoas como se fosse profissional.
Por esse motivo, preciso tomar muito cuidado acerca de quem é o
homem que viria até a minha casa para receber a massagem, às vezes é
melhor dizer que sou massoterapeuta do que massagista porque a
massagista abrange coisas que as pessoas acabam confundindo.
Dependendo da pessoa com quem estou falando me apresento como
massoterapeuta para que não confunda o meu trabalho com elementos
eróticos geralmente associados à palavra “massagem”. Nessa semana, um
homem com quem já tive um relacionamento no passado ligou dizendo
que quer receber uma massagem, mas eu sei que não é exatamente isto o
que quer, pelo seu tom de voz já percebi. Como saio dessa situação? Eu
respondi que estava sem horário, mas que o avisaria quando surgisse, no
entanto, não vou retornar porque sei que não estaria ali pelo meu trabalho.
148
Por isso prefiro atender as mulheres ou homens casados com amigas
minhas, porque exige certo cuidado quando se trata de homens.
Para nós cegos já é muito difícil a colocação no trabalho e em
cursos, porque somos considerados incapazes e ainda me deparo com uma
pessoa que se diz massagista quando na verdade não o é, não tem
capacitação e ainda coloca conotação sensual no que realiza. O que
acontece com o meu trabalho? É desvalorizado! Além de aumentar o
preconceito sobre nós. A maioria dos homens da associação procura a
massagem dela e isto me angustiava porque eu sabia que ela não era uma
profissional e estava contribuindo para concepções erradas sobre os
profissionais verdadeiros. Ela sabia fazer movimentos comuns que
qualquer pessoa faz em seu cotidiano, sem técnica e nenhum
conhecimento sobre o corpo, os pontos, resultados, doenças.
Já veio gente aqui receber uma massagem apenas por curiosidade
acerca de diferentes motivos, mas o motivo que de fato me incomoda é
sobre a seriedade do meu trabalho. Não sou melhor que ninguém, existem
pessoas melhores que eu, e assim vai indo. Mas, se estou aplicando a
massagem em alguém, esse alguém pode ter certeza de que estou o fazendo
com profissionalismo, respeito e com amor à profissão, o que hoje em dia
é difícil, as pessoas prezam pela ganância ou charlatanismo.
Já estive do outro lado...
Nesta semana aconteceu algo que me deixou muito triste. Minha
madrinha estava com pedra na vesícula e precisou ir para a Unidade de
Pronto Atendimento sozinha. Quando me disse que estava lá com dor e
sozinha perguntei o porquê de não ter me pedido para eu ir com ela. No
dia seguinte voltaria para pegar os exames e me ofereci para acompanhá-la
149
e ela perguntou para que eu iria se não adiantaria em nada. Ouvir isto foi
como sentir uma faca apunhalando o peito. Eu respondi que minha
companhia serviria ao menos para ligar para o bombeiro pedindo ajuda ao
que me respondeu que isso ela mesma poderia fazer. Eu chorei muito,
fiquei triste e achei uma droga ser cega. Tempos atrás me ofereci para ser
acompanhante no quarto de um hospital quando ela fez cirurgia e me
respondeu que não poderia ter acompanhante, mas logo em seguida ela
postou em suas redes sociais agradecimentos à pessoa que a acompanhou...
Puxa vida! Um amigo cego ficou uma tarde inteira no hospital
internado e eu o acompanhei, ajudei em tudo o que pude, eu sirvo para
alguma coisa, fiquei muito mal com a resposta dela. As pessoas limitam
muito o cego. Têm situações em que eu mesma sei que posso atrapalhar e
prefiro não participar. Se for uma situação que exija pressa e agilidade eu
me recuso a participar porque sei que não consigo e posso atrapalhar. No
entanto, há situações em que eu posso ajudar de alguma forma como fazer
companhia, conversar, pegar alguma coisa, mas se é o que minha madrinha
pensa, eu respeito, não quero mais ter que escutar isto, não me ofereço para
mais nada em relação a ela porque se sou comparada com outra companhia
por causa da visão, é certo que estarei em desvantagem.
É muito difícil eu me sentir em desvantagem com alguém porque
procuro sempre dar um jeito de acompanhar tudo o que estão fazendo,
porém já tive momentos em que me senti em desvantagem. O profissional
que está fazendo um móvel planejado para a minha sala, sempre que vem
para acertar os detalhes do móvel ou orçamentos, pede para falar com a
Elis e se não é possível, simplesmente não trata os assuntos comigo por me
considerar incapaz de resolvê-los. Ele veio no dia da folga da Elis, trouxe
os exemplares e tratou com ela. No entanto, a parte relativa ao orçamento
financeiro combinamos que seria resolvido comigo. Ainda assim, quando
me entregou o papel com os valores, pediu para que a Elis ligasse para ele,
150
duvidando totalmente da minha capacidade. A Elis ressaltou que não iria
ligar porque isto seria resolvido comigo, mas o profissional nunca se dirige
a mim e sempre a quem tem a visão, isto me irrita, porém não falo nada.
Isto me deixa em desvantagem, fico irritada.
Em uma loja sou sempre ignorada como se não estivesse ali ou
como se Elis fosse minha babá. As pessoas acreditam que a Elis trabalha
para mim, que é minha cuidadora. Certa vez quando passava em um caixa
de supermercado, a moça perguntou se não estava trabalhando naquele dia
por não estar comigo. Constantemente as pessoas mencionam como sou
bem cuidada por ela. Puxa vida, será que pensam que eu não faço nada?
Uma mulher na igreja chegou a me dizer que ela cuida muito bem de mim
porque estou sempre limpinha”. m pessoas que me perguntam o
seguinte “Você toma banho sozinha? Você consegue tomar seu banho
sozinha?”. Eu não sei se eu fosse vidente também pensaria dessa forma, não
sei, estou do outro lado da história agora, mas como não conseguiria tomar
um banho? Como posso ser ríspida na resposta, prefiro ficar quieta, mas
me sinto muito irritada com a situação.
E se em alguma situação como essas em que mencionei, realmente
ficasse brava e expressasse ou dissesse para essas pessoas que não sou uma
inútil, que eu mesma lavo e passo minhas roupas, as pessoas diriam que é
porque sou uma “cega ignorante” ou que estou “nervosa por ser cega”. Eu
sei que as pessoas deduzem isto, pois já estive do outro lado e ouvia o que
diziam acerca das pessoas com deficiência. Quando eu trabalhava na
fábrica tinha dois funcionários surdos. Eles arrastavam os objetos grandes
que faziam um barulho estridente e quase nos ensurdecia também. Eu fazia
gestos para que parassem de arrastar e as pessoas ouvintes me criticavam
dizendo que era devido à deficiência, que isto os transformava em “pessoas
muito nervosas”. Eles falariam o mesmo sobre mim se eu reclamasse ou me
explicasse e na realidade, até tem um pouco de razão porque não temos
151
mais paciência com todos os que não nos entendem, o que acontece com
a maioria das pessoas e acabamos nos tornando mais sensíveis. Então,
falariam “a pessoa cega é tão nervosa!”.
Eu consigo prever e imaginar a pessoa me olhando com piedade ou
incredulidade ou até mesmo trocando olhares com outros sobre mim.
Consigo imaginar essas situações porque já as presenciei quando era
vidente. Então, prefiro não discutir com as pessoas, apenas se estiver em
um dia muito irritada.
Em determinadas situações eu percebo que param para me
olharem. Às vezes estou andando com minha irmã e logo mais à frente tem
duas pessoas conversando, em muitas dessas vezes, não me dão licença para
passar, simplesmente não se movem para o lado, então eu tenho que sair à
rua para me desviar ou pedir licea. A Juliana se irrita e fala para a pessoa
“será que você pode dar licença para a gente passar?” como quem diz, “você
não está vendo que ela é deficiente?”. Às vezes é preciso tocar a pessoa com
a bengala e ainda assim não dá licença, esbarram em mim e eu sei que a
pessoa está me vendo, mas não se preocupa em desviar. Eu fico muito
nervosa, não por estar esbarrando em mim, mas por estar esbarrando em
um deficiente! Eu penso “Puxa vida, o que custa você dar um passo para
trás para que passe um deficiente, um cadeirante ou um idoso que seja?”.
Pare e preste atenção nas ruas ao seu redor, o que acontece com os
deficientes. As pessoas não se importam, estão sempre andando apressadas,
falando no celular e esbarram em mim diversas vezes, o tempo todo, já
derrubaram a minha bengala inúmeras vezes por causa dos esbarrões.
Assisti a uma reportagem em que o dono de uma loja de
departamentos estava criticando o fato de ter que colocar um piso tátil na
calçada de sua loja porque modificaria o padrão da fachada. Sugeriu que
quem estivesse tão preocupado com o piso tátil que fosse colocar. Os cegos
deveriam se unir para que nenhum entrasse e comprasse na loja de uma
152
pessoa como esta! As pessoas não se importam com o deficiente, a
sociedade não liga para isto. As pessoas nunca acreditam que podem se
tornar um deficiente, assim como eu não acreditava nisso. Quando eu
poderia imaginar que ficaria cega aos vinte e oito anos? Jamais imaginaria.
Não temos esse preparo, pensamento e não olhamos para essas coisas.
Lá no hospital em são Paulo, que é muito grande, tem o piso tátil
e, além disso, tem a barra de apoio. Às vezes eu tento caminhar
independentemente, mas as pessoas escoram nas barras de apoio e
permanecem lá conversando, impedindo a passagem de quem depende
daquilo para caminhar. Ou seja, além da barreira estrutural, quando essa é
remediada, temos que lidar com a barreira da postura de desrespeito das
pessoas diante dessas situações.
Nas ocasiões em que duas ou mais pessoas estão conversando, eu
escuto pelo som que estão olhando para trás para me observarem depois
que passei por elas. Eu percebo que viraram para mim. Sinto que sou
completamente ignorada e invisível quando se relaciona a respeitar minhas
necessidades e o contrário acontece, quando se relaciona a rótulos sou vista,
observada e exposta, me tornei alvo de comentários, piedade, curiosidade,
críticas, comparações, um ponto de referência, quase sempre negativa.
Tornei-me um ponto de referência
O problema de ser cego é que tem muita comparação. Se outro
cego anda sozinho, que faz isso ou aquilo, que tem outra habilidade que
eu não tenho, então o que acontece, as outras pessoas que nos veem juntos
começam a questionar “Nossa Beatriz, mas aquela sua amiga cega sabe
fazer tal coisa e você não?”. O que mais tem é comparação. “Nossa, mas
aquela cega dá aulas, palestras e você não?”. Existe muita comparação como
153
se um devesse ser igual ao outro. Cada um tem o seu dom, sendo cego ou
não.
Tem ainda muito preconceito. Até o próprio cego acaba tendo
preconceito consigo mesmo, mas isto devido à sociedade ser dessa forma.
Por exemplo, se você assiste a programas de televisão, em quantos viu a
participação de pessoas cegas? Outro dia vi em um programa de televisão
a história de uma cabelereira cega. Fiquei interessada pela história e
começaram narrando que a pessoa era cega desde determinada data, etc.
Eu parei o que estava fazendo para assistir, achando aquilo muito legal,
comecei a imaginar como ela consegue tal coisa e que eu não conseguiria
nem em imaginação. Quando me refiro a uma pessoa cega, não estou
pensando em pessoa com baixa visão.
Acompanhei o programa até o final e descobri que ela perdeu
totalmente uma das visões, mas que tinha uma porcentagem da outra. Ou
seja, não era cega. Nessa hora me levantei nervosa, minha vontade era de
escrever para o apresentador do programa e explicar para ele o que é ser
cega. Essas situações me causam raiva porque as pessoas generalizam e
acreditam que o indivíduo é realmente um cego total, então eu também
deveria fazer o que ele faz. As pessoas rotulam, colocam todos em uma
categoria como se fossemos todos iguais. É a categoria de deficientes, sem
diferenciação entre os que têm cegueira e os que têm baixa visão. E com
base nisso, te comparam, se um cadeirante consegue circular sozinho em
sua cadeira de rodas, por que o outro também não consegue?
O cego não é um povo unido. Não conseguem nos unir para lutar
por uma coisa em benefício de todos. Não têm pulso firme e são
individualistas, cada um tenta sozinho aquilo que trará apenas benefício
próprio. Não lutam por seus direitos. Cada um por si. Eu votei naquela
vereadora cadeirante e ela sim luta por nós porque se não fosse por ela
perderíamos muitos direitos. Mas, penso que não é fácil para ela estar
154
sozinha naquele ambiente. As pessoas não se importam, não vão colocar
uma rampa para que apenas ela suba. Não ligam para o deficiente porque
é apenas um.
Hoje, eu tenho certeza de que minha deficiência me tornou alvo
de comparação e um ponto de referência “Sabe a Beatriz, aquela que é
cega?”. No entanto, não me importo com isso, mas têm pessoas que tratam
isso com desrespeito. Tem uma grande diferença entre você brincar e
discriminar, tratar com inferioridade dizendo “Aquela ceguinha ali”. Tem
diferença! Na maioria das vezes eu levo na brincadeira porque se eu ficar
brava com tudo seria muitas coisas para eu me estressar e ser considera
como ignorante em tudo. Claro que também depende muito da pessoa que
brinca. Cego com cego, a gente se entende, porque somos cegos, estamos
no mesmo nível, no mesmo patamar. Quando estou com meus amigos
cegos, me sinto eu mesma. Temos todos as mesmas dificuldades, todos se
esbarram, se batem, as histórias são as nossas, as dificuldades também são
nossas, então é muito diferente do que quando estou com meus amigos
videntes. Se colocar um monte de cegos aqui onde estamos... nossa... é
conversa que vai e conversa que vem! Brincamos uns com os outros “Dá a
mão aqui, parece que é cega!” (RISADAS).
Agora se outra pessoa vidente for brincar dizendo “Ai, sua cega!”,
estará me ofendendo e eu também vou querer ofendê-la! Normalmente
isto não acontece, apenas com as pessoas da minha família dentro de casa,
pessoas de fora nunca o fizeram. Exceto certa vez em que uma ex-namorada
da Elis, que já não gostava de mim antes de me tornar cega, soube que Elis
e eu nos reaproximamos e disse “Você vai largar de mim para ficar com
aquela cega!?”.
155
Tenho uma história para além da cegueira...
O mundo não é para pessoas com deficiência, as pessoas falam de
inclusão, mas eu sou contra essa forma de incluir, excluindo. Se eu fosse
cega desde criança, não gostaria que minha mãe me colocasse para estudar
em meio às pessoas que enxergam. Eu preferiria estudar em uma escola em
que todos fossem cegos. Eu gostaria... porque tem muita diferença. Por
mais que me digam que há inclusão, que respeitam minhas necessidades,
eu não sou totalmente incluída. Têm muitas barreiras, os olhares são
diferentes. Eu acabo sentindo que está prejudicando os demais, que estou
incomodando alguém. Eu me incomodo! Como não quero incomodar
ninguém, me retraio... não sou a favor da inclusão. Eu não quero conviver
em meio às pessoas com quem não me sinto a vontade, sem poder ser eu
mesma. Nessa tal inclusão “você tem que conviver junto, você tem, você
tem”, tudo é uma imposição.
Pergunte a qualquer cego que fez uma faculdade ou estudou em
meio a videntes, eu tenho certeza disso, pergunte se foi fácil. É muito
difícil! Imagine todos enxergando, você a única que não está enxergando,
com dificuldades de acompanhar, tentando fazer algo que sabe que tem
capacidade para fazer, mas que precisa de alguma outra pessoa que te ajude,
é muito difícil. Então eu prefiro estar ali no meu mundinho. As pessoas
não têm conhecimento dos suportes necessários para incluir a pessoa com
deficiência.
Para começar, as pessoas não têm a noção sequer de como se guia
um cego, que é o começo de tudo. As mulheres que trabalham na
associação, por exemplo, não sabem nos orientar mesmo trabalhando com
isto! Puxam a gente pelo braço, quando a forma correta é que eu me apoie
na pessoa. Você não precisa tocar no cego, pode perguntar se pode ajudá-
156
lo e ele irá segurar em seu braço, é ele quem segura em você e não o
contrário. As pessoas equivocadamente grudam o cego pelo braço e o cego
não consegue andar! Definitivamente passo a ser cega mesmo, não consigo
enxergar nada, sequer sair do lugar. O ideal é que o cego te segure e não o
contrário. Se for ajudar um cego a se sentar, basta levá-lo em frente à
cadeira e dizer a ele que ali está a cadeira e deixar que ele mesmo toque a
cadeira e se sente. Ao invés disso, as pessoas falam “Se afaste, se afaste, vai
afastando” te empurrando com as mãos.
Perco facilmente a paciência com essas situações e em seguida me
arrependo, sei que a pessoa estava tentando ajudar, porém, o excesso de
cuidado irrita! Não sei se para quem já nasceu cego é diferente porque
também é outra perspectiva, mas como antes eu tinha a minha liberdade,
independência, fazia sozinha as minhas coisas, é difícil passar a depender
totalmente de outros. É difícil aceitar que coloquem comida para mim,
que façam tudo por mim, é difícil. Há momentos que preciso de ajuda,
mas em outros posso agir sozinha. Já costurei com agulha sozinha, foi só
alguém passar a linha para mim que consegui costurar sozinha. Eu faço.
Eu consigo fazer, eu consigo!
Eu faço um curso de croconde todas são videntes e apenas eu
sou cega. Estou nesse curso há um ano, claro que nem tudo o que elas
fazem conseguirei fazer, porém, tem um ponto russo que ninguém
conseguiu fazer e eu consegui. Ao mesmo tempo em que é gostoso realizar
algo, tem também o outro lado. Por exemplo, sei que meu ponto não está
bom, sei que cometi alguns erros, no entanto as pessoas pasmam e
exclamam “nossa, parabéns, está lindo!!” e mostram para todos, comentam
admirados e eu fico olhando a cena e pensando “Nossa, não foi para
tanto!”.
O primeiro tapete redondo que fiz me deu um nervoso, dor de
cabeça, e desisti de fazê-lo, disse que não conseguiria. Aprendi o ponto do
157
tapete oval e reconheci que ficou bonito. Quando outra pessoa faz e recebe
parabéns, eu percebo que é outro tom de voz e eu queria que utilizassem
comigo o mesmo tom, sem tanto espanto, sem admiração exagerada.
Mas, comigo é sempre diferente, as pessoas chegam e ficam falando
que sou uma guerreira e que adoram me ver, o marido de uma pessoa disse
que sou incrível, etc., mas eu não vejo isso! É uma coisa estranha, de
repente virei objeto de inspiração para os outros. É estranho, parece que
não sou mais eu. Tenho que estar o tempo todo arrumada porque sou mais
visada agora, tenho que ter etiqueta para não me julgarem uma coitada ou
sem educação por ser cega. As pessoas podem me apontar e dizer “ah
coitada, é cega, deixa ela”, como se não tivesse problema eu derrubar
comida ou comer com as mãos pelo fato de ser cega. O coitado do cego
não tem etiqueta, ele não precisa! Reconheço que há cegos que de fato são
assim, talvez por falta de oportunidade de aprenderem, por não terem sido
ensinados, pela educação que receberam e têm mais dificuldades sociais.
As pessoas tendem a generalizar, veem um cego que não sabe se portar à
mesa, eu também sou cega então julgam que serei igual a ele até mesmo
para comer, tomar um café, seremos em tudo iguais. As pessoas acham que
se colocarem vários cegos à mesa todos serão iguais.
O cego é visado, então se saio para algum lugar as pessoas irão me
olhar pelo fato de eu ser cega, por estar com uma mulher, tem todo um
contexto, embora muitos pensem que a Elis é minha cuidadora e não
minha companheira. Perguntam “É você quem cuida dela?” ou se eu vou
à determinada loja comprar algo e a pessoa se dirige a ela como se eu fosse
surda também, como se não tivesse voz. A Elis passa a pergunta para mim
e eu respondo, mas fico irritada, isso acontece com todos os cegos, as
pessoas não se dirigem a nós, mas a quem está do nosso lado. Com isso eu
me sinto uma inútil. Após um tempo a pessoa acaba conversando comigo,
mas de início nunca se dirige a mim. Como a Elis me conhece muito bem
158
e sabe que isso me irrita, ela mesma já pede para que a pessoa se dirija
diretamente a mim ou mesmo sai de perto quando estou comprando
alguma roupa, por exemplo, deixa que eu resolva com a vendedora para
que não perguntem a ela.
Hora estou em exibição como um objeto na vitrine, hora estou
invisível, não se dirigem a mim. Tem gente que passa por mim na rua e
não cumprimenta e isso me magoa muito. Têm alguns que passam por
mim na rua e gritam “Oi Beatriz”, não se identifica, muitas vezes não sei
quem é, mas respondo o cumprimento, feliz por ter tido a consideração de
me cumprimentar, por ter sido educada comigo.
Eu gostaria que as pessoas me vissem como uma pessoa normal,
que me cumprimentassem quando me vissem na rua, que continuassem
com a mesma visão que tinham sobre mim antes do acidente. Isso porque
eu tenho toda uma trajetória de vida, toda uma história sem ser cega, tenho
uma personalidade, uma história do que eu era antes da cegueira e as
pessoas não entendem isso. Quem foi aquela Beatriz? Só tem hoje a Beatriz
que é cega, como se apagassem o meu passado. Claro que até mesmo para
mim, hoje existe outra Beatriz, só que em certas situações e não o tempo
todo, porque ainda tenho em mim a Beatriz de antes e vou levá-la comigo
para o resto de minha vida. São momentos bons que passei e que serão
eternos, não tem como simplesmente descartá-los. Mas, a sociedade me
como “coitadinha”.
Claro que independente da deficiência se existe uma situação em
que precise de ajuda, esteja perdida, passando por um período difícil, sem
conseguir realizar determinada coisa e oferecerem ajuda... aí é uma situação
totalmente diferente, eu vou querer ajuda, para mim será uma glória ser
ajudada em um momento difícil. Mas, não é o tempo todo que precisam
me ver como “Ah que coitadinha”, eu consigo me virar sozinha e para a
159
sociedade sou uma incapaz. Mesmo sabendo fazer determinada coisa, sou
vista como incapaz!
Eu não sei se nós deficientes... se a gente tenta se encaixar na
sociedade, tenta estar presente, tenta fazer com que a sociedade nos olhe
como uma pessoa normal, nos olhe com normalidade, mas no fundo,
no fundo, eu sei que não é assim, as pessoas olham e imaginam que
determinadas coisas serão sempre impossíveis para mim por causa da
cegueira. Em determinadas situações eu quero fazer certas coisas, mas sou
barrada. Eu sei que não vou conseguir realizar certas coisas se eu não tentar,
mas as pessoas não permitem que eu faça nada. Eu me sinto limitada e
nisto o tempo vai passando, passando... daqui pouco envelheço... e
acabou!
As pessoas pensam que além de não enxergarmos, também não
ouvimos, falamos ou pensamos...
Nesta semana, aconteceu algo que me deixou chateada, embora
seja algo que sempre acontece ainda me chateia. Eu fui comprar óleos
essenciais em uma loja de produtos exotéricos. Pedi o que queria para uma
vendedora enquanto a Elis olhava algumas coisas. Eu queria escolher os
óleos, os aromas e também as pedras terapêuticas para utilizar durante as
massagens. A Elis começou a perguntar para a vendedora que nos atendia
sobre as pedras e a moça respondia. Eu perguntei a ela se tinha óleo de
rosas e ela respondeu brevemente, voltou-se para a Elis novamente e disse
que tinha estudado comigo. Eu a ouvi dizendo que estudou comigo e me
dirigi a ela perguntando seu nome. Fiquei surpresa porque era uma amiga
que conviveu muito comigo e nunca me cumprimentou na loja em que
estava trabalhando há dois anos. Perguntei o porquê de nunca ter falado
160
comigo na loja e respondeu que nunca me atendeu, porém, todas as vezes
em que estive na loja, não havia outros clientes por ser uma loja bem
tranquila, ou seja, ela poderia ao menos me cumprimentar. Eu sempre me
demorei na loja, encantada com os sinos e outros objetos e ela estava lá,
mas nunca me cumprimentou. O que mais me chateia é que ela não falou
para mim que estudou comigo, disse para a Elis, eu estava ao lado e ela não
se dirigiu a mim e isso é uma das coisas que mais acontece. Nós cegos
achamos que as pessoas pensam que além de cegos somos surdos, mudos,
temos certeza disto! Até mesmo no supermercado, a pessoa fala com quem
está do meu lado, mesmo que eu esteja passando o produto no caixa, não
se dirige a mim. Às vezes, eu deveria ou saberia responder ou então estou
dando o dinheiro para pagar e o troco não é devolvido para mim, mas para
quem está ao meu lado.
Como a Elis sabe que esta é uma das coisas que mais me irrita, diz
para a pessoa que pode se dirigir a mim ou me devolver o troco. Eu sempre
chamei isto de preconceito, mas vejo que é o estigma, são pequenas coisas
cotidianas que a maioria de nós deficientes sofre. Acho que o cego em
relação às outras deficiências sofre ainda mais quando se trata de ser
ignorado em lojas, em supermercados e em todos os lugares, é sempre “O
que ela precisa?” e nunca “o que você precisa?”. Sou eu que preciso do
objeto, eu quem deveria responder.
Certa vez fui a uma loja comprar um sapato para o meu pai.
Devido à pandemia, não podia entrar na loja. A moça mostrava o sapato
para a Elis através da vitrine de vidro, mas eu não podia ver. Eu disse
“moça, preciso ver, antes de comprar”. A vendedora respondeu que a Elis
estava vendo! Como se bastasse. Mas, e eu? Respondi “moça, é para
mim, sou eu quem vai comprar”. Elis ajudou: “Ela precisa ver porque é ela
quem vai comprar”. Só após a intervenção da Elis que ela permitiu que eu
tocasse os sapatos. As pessoas me veem como incapaz de decidir qualquer
161
coisa, como o que vou comprar, calçar, comer, vestir, o jeito que ando,
para tudo sou considerada uma incapaz. Eu gostaria de entender o porquê
de as pessoas acreditarem que nós somos incapazes de realizar qualquer
coisa. Temos sim limitações, mas conseguimos muitas coisas.
Conseguimos!
Como essa minha amiga de escola que não me cumprimentou, eu
me lembro dela, convivemos muito. Depois que fiquei cega, procurei por
ela no facebook, mas ela não me tinha mais e eu não sei o que aconteceu.
Ela disse que poderia ser que seu marido tivesse me excluído por engano,
enfim... são umas coisinhas que não entendo.
Em relação à deficiência, sempre sinto o estigma em lojas ou
quando tenho que resolver coisas e fazer escolhas como o painel da minha
sala em que o profissional estava mostrando as cores exclusivamente para
a Elis e quando me aproximei para saber as opções de cores ele não se
dirigiu a mim também e para que isso acontecesse, a Elis teve que sair de
perto me deixando só com ele. Voltando na história das pedras que eu
queria para massagem, sou eu quem trabalha com elas, mas a vendedora
queria mostrá-las apenas para a Elis, mesmo eu me aproximando, ela não
se dirigia a mim. A minha reação a essas atitudes é me retrair, não consigo
falar com a pessoa, fico séria e quieta. A Elis já percebe e sai de perto para
que a pessoa não tenha outra alternativa, senão me atender.
Muitas vezes, a Elis diz “mostra para ela, pode mostrar para ela,
deixe-a pegar, ela sabe decidir”, na maioria das vezes é o que acontece. As
pessoas precisam do aval da Elis, ela é a minha porta voz, eu não tenho voz
como se fosse uma coitada e não conseguisse me virar sozinha. Eu imagino
o que passam os cegos que andam sozinhos ou vão ao supermercado
sozinhos... compram roupas sozinhos...
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São muitos os estigmas e preconceitos, as pessoas pensam que
somos incapazes de qualquer coisa, que além de não enxergar, nós cegos
também não ouvimos, falamos ou pensamos. Muitas vezes, quando
clientes vêm aqui em casa para receber uma massagem, ficam admiradas e
perguntam “nossa, é você quem limpa a casa? Você consegue? Nossa, que
belezinha... como você consegue?”. Sinto vontade de responder que é
obvio que consigo, parece óbvio, mas apenas respondo “a gente aprende e
consegue”.
As perguntas são tão absurdas que sinto vontade de rir, como
aquela sobre se consigo tomar banho sozinha. Tento não manifestar minha
irritação para a pessoa, mas por dentro de mim, estou extremamente
irritada. Se eu pudesse reagir da forma que eu quisesse, espontaneamente,
acho que diria coisas como “olha, existo, estou aqui e você pode falar
diretamente comigo”. Mas, não falo essas coisas para que a pessoa não se
magoe. Eu prefiro ser magoada a magoar.
Além de que o deficiente já é um pouco mais nervoso e irritado do
que a pessoa sem deficiência. Tinha essa percepção já antes quando ainda
enxergava e via as atitudes de dois surdos no meu trabalho e ouvia as
pessoas comentando que era pelo fato de serem deficientes. Hoje, sinto na
pele, porque é muita coisa que precisamos para nos defender diante das
pessoas que nos limitam por causa da deficiência, pelas coisas que temos
que explicar, desmistificar o tempo todo e isso se torna cansativo. Se eu
agisse da forma irritada com que sinto vontade, falariam o mesmo sobre
mim, ou seja, que sou nervosa devido à deficiência, “aquela cega é brava”,
não me veriam de outra forma, tudo o que eu fizesse de bom acabaria e só
enxergariam a deficiência, só prestariam atenção no detalhe do que fiz
errado, na ignorância, no nervosismo, o resto acabaria.
É claro que muitas vezes sinto vontade de reagir sem pensar muito
no que dizer, de tratar com o mesmo desrespeito com que me sinto tratada.
163
Quando vou comprar algo em uma loja e o vendedor não se dirige a mim,
me retraio e fico irritada, mas a vontade seria falar que, por favor, se
dirigisse a mim, consigo entender, ouvir e falar. Quando amigos me
encontram na rua e não cumprimentam fico muito magoada, pois nunca
deixei de cumprimentar ninguém na rua, as pessoas até brincavam que eu
deveria ser vereadora (risos), mas a minha vontade seria voltar e falar
claramente para a pessoa “oi, tudo bem? você não me viu, mas eu te viou
esbarrar com minha bengala sem querer e dizer que não a vi (gargalhadas).
Quando o marceneiro prefere tratar os assuntos apenas com a Elis,
tento explicar que pode falar comigo, que pode mandar o orçamento no
meu WhatsApp, tento negociar e convencer a pessoa a falar comigo, mas
nem sempre funciona e a pessoa insiste em falar apenas com a Elis. A
minha vontade é falar explicitamente “pode falar comigo porque entendo,
sei entender uma droga de nome de uma cor”. Quando são nomes novos
de cores e estranhos, eu não entendo realmente, mas se me disser com o
que se assemelha eu sei identificar. Atualmente, com as mudanças, roupas,
por exemplo, falam nomes de algumas peças que não conhecia, mas basta
me explicar o que é.
Quando julgam que todo cego é igual e deve fazer a mesma coisa,
ter as mesmas habilidades e dificuldades, eu apenas peço desculpas e digo
que não consigo, quando minha vontade verdadeira é de responder de
forma agressiva à pessoa. No início da deficiência eu não conseguia passar
manteiga no pão. Eu ainda não conseguia enxergar com os ouvidos e as
mãos estando cega de todos os sentidos. As pessoas me arrastavam para
onde e como queriam, eu não conseguia fazer nada ainda. Imagine uma
prima que você só viu quando criança trocando sua fralda? Muito
vergonhoso. Logo eu que não me trocava nem na frente de minhas irmãs.
A comparação é uma coisa que me irrita muito porque nenhuma pessoa é
igual ou tem as mesmas capacidades que a outra, por que o deficiente tem
164
que ser? A Clara lê em Braile e minha tia sempre a elogiou para mim,
dando um toque porque eu não consegui aprender o Braile. A Elisângela
que já era cega há mais tempo, achava um absurdo eu não conseguir passar
a manteiga no pão e falou para o meu pai que era vergonhoso que eu não
conseguisse. Hoje, sinto vontade de ligar para ela e dizer em tom de
provocação que consigo lavar roupas e ela não. Essas situações me irritam,
queria falar “nós não somos iguais, eu não consigo fazer isto!”.
No entanto, se eu agisse e respondesse dessa forma nessas situações
e a todas as pessoas que comparam, rotulam, limitam e discriminam o foco
não sairia da deficiência, sentenciariam que as atitudes ou palavras são por
causa da minha deficiência e não pelo comportamento delas. Então,
prefiro fazer a falar, no episódio da moça da loja, por exemplo, quando
conversei com ela e escolhi o que queria, ao final do atendimento eu
havia a adicionado no Facebook, conversado bastante e ela viu que sou
capaz. Se eu brigasse, ela apenas pensaria que eu sou nervosa, não me
atenderia nunca mais, me chamaria de revoltada porque sou cega ou
revoltada porque sou uma mulher que foi agredida. São coisas que tenho
que estar atenta porque senão me chamam de ignorante e nervosinha. Esse
preconceito acontece sempre, não apenas com vendedores, amigos, mas
também com os próprios familiares.
Eu estava passeando com a Elis no comércio e passei pelo
camelódromo, tenho primos que trabalham lá. Passei pela minha prima
que estava de costas e a Elis me avisou. Eu disse “oi Larissa” e ela não
respondeu. Eu disse que ela deveria estar ocupada, mas a Elis contou que
ela não estava fazendo nada. Passei pelo meu primo que estava sentado me
olhando e não me cumprimentou. Por eu ser cega acredito que pensem
“não precisamos cumprimentá-la porque ela não está vendo”. É isso o que
acontece na maioria das vezes e não tenho o que dizer a essas pessoas. Isto
165
não acontece apenas comigo, mas meus amigos cegos relatam as mesmas
situações e isto para mim é um estigma.
Eu estava conversando com uma pessoa que me disse “esses dias eu
te vi no mercado”. Perguntei o porquê de não ter me cumprimentado ao
que me respondeu “eu estava ocupado, estava com pressa”, são sempre as
mesmas desculpas ainda que passem ao meu lado. Eu não sei se pensam
que meu intelectual foi afetado ou que fiquei intocável... Eu acredito que
algumas pessoas não saibam como agir diante de tudo o que me aconteceu
e da deficiência, mas não são todas, muitas me ignoram por puro
preconceito. Eu mesma já fiquei sem reação diante de uma amiga que ficou
acamada e sofrendo muito, mas são casos diferentes, eu ando, falo, trabalho
e as cumprimento, mas preferem me ignorar. O curioso é que logo após a
agressão, quando ainda estava no hospital, o que mais recebi foram visitas
de pessoas que queriam ver o que me acontecera, não era preocupação, era
curiosidade, agora como estou bem, não se importam mais.
Evitar o confronto é uma forma de fugir do estigma...
Evitar o confronto é uma forma de fugir do estigma. Eu perdi a
visão, mas as pessoas me associam a outras deficiências como a intelectual,
surdez, física, e deduzem que eu não consigo falar, logo eu que falo muito
(risos). Acho que têm pessoas que conseguem enfrentar o estigma sobre
nós de uma forma mais direta, confrontando, debatendo, mas eu evito o
confronto na maioria das vezes, mesmo eu sendo brava por natureza prefiro
engolir e não enfrentar porque a consequência é que as pessoas me veriam
de outra forma, como revoltada e nervosa, raros seriam os que notariam
firmeza, convicção ou que eu estava mudando uma situação, a maioria me
rotularia de cega nervosa e brava.
166
Não reconheceriam que estaria exigindo os meus direitos e apenas
me rotulariam de ignorante. Embora quase não usemos esses direitos por
ser tão difícil usá-los, tão difícil conseguir uma rampa, etc. Para conseguir
comprar um carro, por exemplo, é preciso pegar um atestado com o
médico, ir lá ao DER (Departamento de Estradas de Rodagem) e obter
outro formulário para preencher. Além desse formulário é preciso ir ao
médico pegar outro em que passa por uma banca de médicos em que todos
devem te autorizar a comprar pela deficiência. Isto é pago, não é
simplesmente ir e passar por toda a burocracia, é preciso pagar para fazerem
isto, o valor é alto, em torno de R$ 700,00. algum tempo atrás me
informei e descobri que é preciso ir até outra cidade porque não há esse
serviço em nossa cidade. Além de outras inúmeras exigências para cumprir,
documentos e papéis para serem entregues, laudos e consultas. O meu
laudo especificamente precisa ser lá de São Paulo e é ainda mais
burocrático, mesmo sendo visível minha deficiência. É tudo tão
burocrático que parece ser proposital para que a pessoa com deficiência
desista de seus direitos.
O preconceito hoje em dia abrange o negro, o pobre, mas o
deficiente é o mais estigmatizado em minha opinião, já é visto como
alguém incapaz e que vai gerar trabalho para as outras pessoas. No meu
ponto de vista, a inclusão não deveria ter, na escola, por exemplo, não
deveria haver. Deveria ser cego com seus iguais, separados, para
aprenderem de acordo com as suas necessidades, deficiente com deficiente,
porque nós nos sentiríamos muito melhor e aprenderíamos muito melhor
do que quando misturados com pessoas que não têm deficiência e não
sabem lidar com a inclusão. Há preconceitos por parte dos colegas, por
parte dos professores, despreparo.
Se os pais não ensinam os filhos pequenos a lidarem com a
deficiência do próximo, ele irá para a escola e vai isolar o deficiente, não o
167
chamarão para brincar e quem sofrerá com isso? Agora, se a criança cega
estiver em um ambiente com crianças cegas que a compreendem, elas irão
interagir, brincar porque são todas iguais. Quando minhas amigas cegas
m à minha casa, não existe o preconceito e acabamos sendo nós mesmas,
se derrubarmos algo no chão, rimos, aceitamos e encaramos com
naturalidade. Se eu fizer o mesmo, como já aconteceu na presença de
videntes em um restaurante ou esbarrar em algo, todos olham, eu sinto as
pessoas me olhando como se eu tivesse feito algo terrível. Preciso ficar
atenta e tomar cuidado ao comer, ao cortar os alimentos para não derrubar,
então peço para a Elis cortar a pizza ou a carne para evitar que eu derrube
e passe vergonha, para evitar o olhar preconceituoso.
Se você me deixar sozinha em uma UBS (Unidade Básica de Saúde)
ou em uma lanchonete, ninguém virá falar comigo, a menos que seja o
garçom perguntando se desejo alguma coisa. Antigamente, quando eu
estava aguardando atendimento em uma UBS, o que mais fazia era
conversar com as pessoas, eu adorava conversar. Agora... eu entro e saio
calada, sou invisível em determinadas situações e em outras, como quando
derrubo algo, todos os olhares estarão sobre mim ou quando chego em
algum lugar e a Elis me diz que estão todos olhando para nós. Eu tento
levar com bom humor e respondo que estão me achando bonita e por isso
estão nos olhando, mas sei que olham porque estou com uma mulher e sou
cega. Tenho um duplo estigma.
É a minha forma de evitar o estigma...
Realmente não sei se as pessoas me julgam incapaz de realizar meu
trabalho por causa da deficiência, não sei porque elas nunca me dirão
diretamente o que pensam. Como posso saber se as pessoas não vêm até
168
mim com a intenção de constatar se eu realmente vou conseguir? Essa é
uma resposta que não tenho. Acredito que já tenha acontecido como essas
que vieram uma única vez e não voltaram, talvez tenham vindo só pela
curiosidade perguntando-se “será que ela consegue mesmo?”. Eu acredito
nisto.
No começo eu fiquei intrigada, eu pensei como uma pessoa deficiente
visual vai fazer massagem?” Eu fui lá e ela me falou que já tinha feito o
curso antes de perder a visão. Ela me perguntou se eu tinha alguma dor
específica e respondi que tinha fibromialgia e que doíam todos os
músculos, disse apenas isso. Na primeira vez que recebi a massagem
fiquei maravilhada, não sei se pelo fato de ela não enxergar, ela
desenvolveu mais o contato com as mãos.
O que mais admiro na Beatriz como profissional é a coragem dela.
Muito corajosa! Eu acredito que ela já tenha sofrido preconceito no
trabalho por ser cega. Ela nunca me falou, mas eu acredito que sim.
Quando eu menciono que a minha massagista é deficiente visual, as
pessoas se espantam e me perguntam “Como? Mas, como?” muito
surpresas. Eu explico que por ela ser deficiente desenvolveu muito o
toque, mas as pessoas duvidam. Por isso que falo, ela é uma pessoa
muito corajosa, admiro muito ela, como pessoa e como profissional
então, mais ainda. Ela foi muito inteligente, foi adaptando a massagem
ao meu caso, estudando a minha doença, nem profissionais formados
fazem isso, não tem tempo de atender de acordo com a necessidade de
cada paciente, é uma única massagem para todos, ela mesmo com a
falta de visão, estudou e adaptou. Hoje ela sabe todos os pontos da
fibromialgia. Mas, as pessoas não acreditam nisso (fala de IVANA,
cliente de Beatriz).
Penso que não sou visivelmente ou ainda mais estigmatizada por
causa do meu comportamento. O fato de eu ter certas habilidades como
olhar em direção a quem fala comigo, andar com desenvoltura, entre
outras coisas, faz com que a pessoa acabe me olhando de outra forma como
169
se eu estivesse enxergando mesmo. A Ivana, até hoje duvida que eu não
enxergue nada. Eu pedi o braço dela porque não estava encontrando a
porta e ela surpresa com a minha dificuldade respondeu que eu estava a
acompanhando tão bem, conversando e olhando para o seu rosto, que até
se esquece de minha condição. Acho que se eu começasse a atender sem
óculos as pessoas se convenceriam mais, estranhariam porque aí teriam algo
visível que provaria minha deficiência.
Se eu tirasse os óculos durante a massagem, talvez as pessoas me
tratassem com mais preconceito, mas eu não faria isso, primeiro porque
não tiro os óculos para todos, tenho muitos amigos que nunca me viram
sem óculos. Eu não tiro porque me enxergariam do jeito que eu estou hoje.
Eu não quero que as pessoas me enxerguem do jeito que eu estou hoje, eu
não gosto que as pessoas me enxerguem como uma deficiente, eu gosto
que as pessoas me vejam simplesmente como a Beatriz que sou, com os
defeitos e as qualidades, mas não como a deficiente, isto eu não gosto. Não
gosto de piedade, de pena, que digam “ai que dó”.
Fico angustiada em pensar que se eu estivesse sem óculos escuros
a pessoa estaria me olhando com olhar de piedade, pena, enquanto eu
conversaria naturalmente sem me dar conta desse olhar e sem poder
encará-la com ar de protesto para que não me olhe assim com pena. Eu
não quero isso para a minha vida. Eu não quero que as pessoas me olhem
com piedade porque realmente não é necessário. Quando vejo alguma
pessoa na rua passando necessidade, eu sinto pena, deficiente jogado em
uma calçada, tenho dó dessa pessoa como um ser humano, mas eu não
estou nessa situação, não estou doente, acamada ou vegetando, não preciso
de pena.
Usar óculos é uma estratégia, uma fuga para me proteger da
piedade. Não fico sem óculos. A maioria dos cegos amigos meus não usam
óculos. São situações diferentes da minha, eles não precisam usar porque
170
os olhos deles estão ali, não foram arrancados como no meu caso, é uma
outra visão de um rosto. Eu não posso me comparar a essas pessoas,
dizendo que sou deficiente como elas, então também vou ficar sem óculos,
eu preciso de minhas próprias estratégias. Quando fiz um curso de
automaquiagem para cegos, estavam todas sem óculos, eu não deixei tirar
fotos de mim. Todas sem óculos, aprendendo a passar lápis nos olhos, eu
já não posso... um olho sequer tenho e o que restou só fica fechado. Então,
eu tomo muito cuidado com fotos porque tenho medo de que as pessoas
coloquem na internet porque a curiosidade é grande, eu tomo cuidado. Eu
tento sair arrumada do meu estilo, como eu gosto - limpa, arrumada, eu
tento. É claro que às vezes acontece como recentemente, passei pela
psicóloga com a roupa suja com pó de café (risadas), que raiva me deu.
Mas, é a cegueira... droga, ser cega é uma droga! (risadas).
Mas, também uso os óculos para que as pessoas não se assustem
com a minha aparência, por isto também, mas não é o principal motivo.
Minhas estratégias para me proteger do estigma se resumem em usar
óculos, estar sempre bem arrumada, deixar a casa organizada e limpa para
receber as clientes, ter certos comportamentos esperados como olhar em
direção a quem fala comigo e não ser áspera com as palavras mesmo diante
das perguntas mais absurdas. Às vezes, penso que me preocupo mais com
a pessoa do que de fato deveria e isso já é parte de minha personalidade
mesmo antes da deficiência. Não sou exagerada nos meus cuidados comigo
mesma. Mas, me preocupo com minha aparência, sou mais vaidosa hoje
do que era antes da deficiência. Acho importante o que o outro enxerga
em mim.
171
O estigma nunca vai acabar...
Ontem eu estava voltando da cabelereira próxima à casa da minha
tia e andando sozinha, pois fica no meio do quarteirão. Estava passando
um carro de som e eu na calçada, quando o carro passou por mim, virei a
cabeça e fui o acompanhando propositalmente para que ficasse na dúvida
se eu era realmente cega. Mas, esbarrei em uma árvore da minha tia com
aqueles galhos enormes enroscando todos em mim e fiquei morrendo de
vergonha. Entrei em casa pisando duro e falei para o meu pai fazer o favor
de cortar a árvore (risadas). Eu queria rir do homem que dirigia, ergui a
cabeça e andei toda confiante e segura de mim, até esbarrar na árvore.
Eu consigo ver os dois lados de uma situação. Eu era uma pessoa
sem deficiência, independente, agitada, com uma vida normal. Hoje, sou
uma pessoa com a deficiência, dependente do outro em muitas situações,
com muitos obstáculos no cotidiano. Eu conheço os dois lados. Têm
situações que paro e penso como pensaria a Beatriz de antes. Eu também
não tinha convívio com cegos, eu também não sabia, eu também tinha
medo, então por eu conhecer os dois lados, acabo pensando e entendendo
certos comportamentos um pouco mais do que uma pessoa que nunca
enxergou.
Uma pessoa que é cega e nunca enxergou se pauta apenas naquilo
que você diz para ela como verdade. Eu tenho lembranças e muitas vezes a
realidade não é como nos dizem, é outra. Eu sei distinguir os dois lados.
Eu vejo isso como algo positivo, como uma vantagem porque consigo em
certas situações, parar e refletir sobre como era o comportamento social de
uma pessoa quando eu enxergava e tento me lembrar de expressões que ela
fazia com o rosto, com os olhos, com a boca e tento reproduzir também.
Imagino que naquele contexto a pessoa pode estar revirando os olhos para
172
mim daquela forma de antigamente ou dando de ombros e quero retribuir
da mesma maneira. Antes, eu tinha muita facilidade com o olhar e
expressava apenas com o olhar o que eu queria ou não. Hoje já não dá, por
mais que eu tente, me esforce, feche a cara, a pessoa não vai poder olhar
nos meus olhos... primeiro por causa dos óculos, segundo porque não
tenho mais um dos olhos para ela poder olhar. Então, preciso aprender
ainda certas coisas porque ser cego é a cada dia aprender uma coisa
diferente também.
Eu tenho certeza de que o estigma em relação à pessoa com
deficiência nunca vai acabar. Não é possível um mundo sem estigma, ele
vem desde há muito tempo atrás, é mais provável que o mundo acabe e o
estigma continue firme e forte (riso). Não tenho essa esperança. Mesmo
que as pessoas evoluam no sentido de prestarem mais atenção ao próximo,
prestar atenção no outro ser humano, mesmo que isso aconteça, sempre
haverá os que não prestam atenção e que propagam estigma. Sempre
haverá aquele que não se importa, que passa por mim pela rua e me
atropela, que se sinta melhor do que eu porque enxerga. Sempre haverá
algo para que estigmatizem. E se o estigma não acaba, as pessoas com
deficiência é que têm que se adaptar ao mundo, nós que temos que mudar,
desviar a bengala de um vidente que bloqueia a nossa passagem, tirar os
obstáculos que colocam em nosso caminho porque o mundo não se
adaptará a nós!!
173
Conclusão
A construção de História de Vidas, como já dito ao longo do texto,
é um processo democrático e emancipatório por se tratar de um método
em que se prioriza a escuta e o respeito à voz do participante de pesquisa.
Não compreendido como mero objeto de estudo, o participante
desempenha o papel de coautor de sua história em que em posição de
igualdade com o pesquisador, constrói, elabora, analisa, aprova ou corrige
informações, decide como e o que de sua história será publicado.
Especialmente com o público de pessoas com deficiência que enfrentam
estigma e descrença a respeito de suas capacidades, esse método se torna
ainda inclusivo ao evidenciar o discurso de pessoas que têm muito a dizer
sobre suas vidas e sociedade.
Nesse sentido, Beatriz trouxe temáticas importantes para reflexão
sobre sua (ex)inclusão em uma sociedade que a estigmatiza diariamente,
em um mundo que, segundo suas palavras, não foi feito para si, mas para
aqueles cujo desenvolvimento ocorra dentro dos padrões estabelecidos.
Falas como as de Beatriz impactam, incomodam no sentido de
perplexidade, emocionam, indignam, trazem reflexão, encontram espaço e
acolhimento no método História de Vida.
Embora, neste livro em questão, sua história tivesse a finalidade de
exemplificar cada instrumento necessário à construção, é impossível passar
por ela, ouvir essa voz sem se modificar e desejar que o mundo se torne por
direito, também de Beatriz e de todas as pessoas. Beatriz tem uma história
para além da cegueira e aqui foi contada, cabe ao leitor a decisão de como
refletir sobre esta narrativa, o papel da sociedade e quais as suas
contribuições para que outras histórias encontrem espaço para se
174
manifestarem, sobre como construir outras histórias de vidas, de lutas, de
enfrentamento. Utilizar este método com toda a sua seriedade, rigor e
cientificidade pode ser um caminho profícuo para tais intenções.
O caminho percorrido na construção da história de Beatriz trouxe
momentos delicados e de obstáculos em que os pesquisadores e
participante precisaram constantemente avaliar, adaptar, rever acordos e
recomeçar, além de refletirem juntos sobre a melhor forma de compor a
história de vida com a seriedade e dedicação necessárias. Isso demonstra o
quão complexo é um método que em toda a sua profundidade, necessita
de cumplicidade, empatia e sensibilidade, sem deixar de lado o rigor
científico. Esperamos que essa experiência possa de alguma forma
contribuir com aqueles que desejarem se comprometer com o emocionante
percurso de construção de Histórias de Vidas.
175
Referências
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a partir da percepção da pessoa com deficiência intelectual. 2018.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual “Júlio de
Mesquita Filho”, UNESP, Marília, 2018.
AUGRAS, M. Prefácio. In: GLAT, R. Somos iguais a vocês:
depoimentos de mulheres com deficiência mental. Rio de Janeiro: ED. 7
Letras, 2009.
BOLIVAR, A.; DOMINGO, J. La investigación biográfica y narrativa
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Qualitative Social Research, v. 7, n. 4, set. 2006.
GLAT, R. Somos iguais a vocês: depoimentos de mulheres com
deficiência mental. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade
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MORIÑA, A. Investigar com histórias de vida: metodologia biográfico-
narrativa. In: NARCEA, S. A. de. Madrid: Ediciones, 2017.
MORIÑA, A. La experiencia universitária de los estudiantes com
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MORIÑA DÍEZ, 2016.
MORIÑA, A. Using life history with students with disabilities:
researching with, rather than researching on. Educational Review, 2018
[1911]. DOI 10.1080/0013.
176
PUJADAS, J. J. El método biográfico y los géneros de la memoria.
Revista de Antropologia Social, v. 9, p. 127-158, 2000.
177
Sobre os autores
Ana Paula Ribeiro Alves
Possui graduação em Pedagogia pela Universidade
Paulista- UNIP (2015). Especialista em Neuropedagogia
na Educação pela Faculdade de Tecnologia do Vale do
Ivaí-
FATEC (2015). Mestrado em Educação pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho-
UNESP (2018). Participa do Grupo de Estudos e
Pesquisas sobre Trabalho, Saúde e Deficiência
(UNESP/MARÍLIA). No momento é professora da
Rede Municipal de Ensino da cidade de Assis/SP e
doutoranda em Educação pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho- UNESP, campus de
Marília.
178
Nilson Rogério da Silva
Possui graduação em Terapia Ocupacional pela
Universidade Federal de São Carlos, mestrado em
Engenharia de Produção pela Universidade
Federal de São Carlos, doutorado em Educação
Especial pela Universidade Federal de São Carlos.
Pós-Doutorado pela Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo-
USP. Professor Associado junto ao Curso de
Terapia Ocupacional da Universidade Estadual
Paulista - Unesp Campus de Marília, Livre-
Docência em Terapia Ocupacional em Saúde do
Trabalhador, atua nas áreas de Saúde do
Trabalhador e Reabilitação Profissional nas
seguintes temáticas: terapia ocupacional,
educação especial, ergonomia, saúde ocupacional,
saúde do trabalhador e prevenção. Docente junto
ao Programa de Pós-Graduação em Educação da
Unesp Campus de Marília - SP, Linha: Educação
Especial. Coordena o Grupo de Pesquisa
Trabalho, Saúde e Deficiência - Unesp Campus
de Marília. Participa dos
Grupos de Pesquisas
Aprendizagem, Desenvolvimento e Saúde Mental
do Escolar da Universidade de São Paulo e
Estudos em Terapia Ocupacional: Ocupação,
Reabilitação Física, Tecnologia Assistiva e
Funcionalidade - UFSCar.
179
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Lívia Pereira Mendes
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Como construir uma História de Vida?
O que posso utilizar para compor a his-
tória? Como analisar as narrativas do
participante? Como apresentar ao leitor
a redação nal da História de Vida?
Inspirados pelas experiências da autora
Anabel Moriña, este livro contempla as
principais dúvidas e anseios de pesqui-
sadores que desejam explorar a emocio-
nante jornada de (re)construir histórias e
evidenciar vozes, especialmente daque-
les que as têm silenciadas pela sociedade,
por meio de uma escuta atenta, sensível,
cientíca.
Com esta nalidade, os autores contam
com a impactante história de Beatriz que
ao sofrer uma brutal agressão depara-se
com a cegueira aos 28 anos de idade. O
leitor poderá acompanhar e se emocio-
nar com esta construção, conhecer os
papeis exercidos em que pesquisadores
e participante mantém uma postura de
igualdade, colaboração mútua, respeito
e proximidade, o que faz desse método
essencial para a explicitação de trajetórias
de lutas e enfrentamentos.
HISTÓRIA DE VIDA EM PESQUISAS QUALITATIVAS:
Alves e Silva
o caso Beatriz
Neste livro, o leitor conhecerá o passo a passo para utilizar o método
História de Vida em pesquisas qualitativas. De forma clara e objetiva,
os autores expõem exemplos práticos de cada instrumento que compõe
o método e para além, a análise que melhor corresponde a este tipo de
coleta e o formato nal do texto editado em tese, dissertação ou outros.
Tendo em consideração as dúvidas que emergem no momento de co-
letar, analisar e escrever a história de vida e constatando escassa litera-
tura na área, trata-se de um guia que reúne todas as etapas e percalços
que o futuro pesquisador poderá encontrar no processo.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 396/2021
Processo Nº 23038.005686/2021-36
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