(Organizador)
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
Marcelo Augusto Totti (Org.)
FLORESTAN
FERNANDES
legado de ciência e
militância
Marcelo Augusto Totti
100 anos de
Florestan Fernandes completaria 100
anos em 2020. Filho de Maria Fernandes
imigrante portuguesa que veio trabalhar
nas lavouras brasileiras, conheceu as
agruras da vida desde sua infância,
segundo suas próprias palavras nunca
teria se tornado o sociólogo que se foi,
sem sua origem “plebeia” e sua
socialização pré e extraescolar. Essa
aprendizagem sociológica se iniciou aos 6
anos de idade quando precisou ganhar a
vida como adulto, trabalhando como
engraxate. Mas eu diria que ela é anterior,
sua mãe desiludida com o trabalho nas
lavouras do interior paulista decide se
mudar para a capital e passa a trabalhar
como doméstica na casa da família
Bresser. Grávida de Florestan, Hermínia
Bresser de Lima que seria a madrinha de
Florestan, de origem abastadas e com
hábitos requintados recusava a chamá-lo
pelo nome de Florestan, nome de origem
alemã fruto de um personagem de uma
ópera de Beethoven, não era um nome
para um filho de uma lavadeira, assim a
madrinha “rebatiza-o” chamando-o de
Vicente. Florestan vivenciara outra
experiência sociológica, que é o
preconceito das elites brasileiras para com
o povo brasileiro oriundo das classes
subalternas. Tal preconceito, Florestan
estudou de forma mais aprofundada em
suas pesquisas sobre as relações raciais e a
inserção do negro na sociedade de classes,
identificando as origens históricas e
estruturais do racismo no Brasil que
remontam à nossa herança de um passado
escravocrata.
Enfrentou as dificuldades como grande
parte da população brasileira, trabalhou
como garçom no bar do Bidu, lia atrás do
balcão nos momentos de menor
movimento, o que despertou o interesse
de professores frequentadores do local. O
incentivo dos professores que ali
frequentavam rendeu frutos, realizou os
estudos no antigo curso de madureza e
através de um desses frequentadores
desse bar conseguiu um emprego em uma
empresa de produtos químicos,
possibilitando melhores condições
socioeconômicas.
As dificuldades para o jovem de origem
“plebeia” não se resumiriam aí, o desafio
de entrar no ensino superior era algo
muito distante. A recém-criada
Universidade de São Paulo, pública e
gratuita, era uma alternativa. Criada pelas
elites e para as elites, a entrada de
estudante trabalhador com formação em
curso de madureza contrastava com o tom
aristocrático e erudito dos professores e
dos estudantes da elite paulista. Para
sanar o que denominou de um déficit
cultural empreende uma rotina monástica
de estudo que incluía leituras em bondes,
bancos de praças e permanecendo até o
apagar das luzes na biblioteca municipal.
A aprovação no vestibular não foi das
mais fáceis, com uma banca composta por
dois professores franceses, com prova oral
em francês de um livro de um sociólogo
francês, parecia uma barreira quase
intransponível para o egresso do curso de
madureza. Florestan lia em francês e
conhecia bem o livro de Durkheim Da
divisão do trabalho social e pede para
realizar a prova em português, os
arguidores acharam a situação inusitada,
mas acatam o pedido do candidato que é
aprovado (dos 29 concorrentes apenas 6
foram aprovados).
Florestan Fernandes não foi apenas um
sobrevivente, foi um vencedor! Remou
contra a maré em mares turbulentos,
enfrentou temas e pesquisas pouco afeitos
em sua época na sociologia, imprimiu um
modelo de ciência sociológica colocando a
sociologia ao lado dos problemas
reclamados pela sociedade. Lutou pela
escola pública, pela universidade pública,
esteve ao lado dos deserdados da terra,
militante socialista, seu mandato como
deputado funcionava como uma forma de
tribuno da plebe: uma voz para aqueles
que não tem voz.
Em uma sociedade como a brasileira
marcada por graves problemas
estruturais, de desigualdades étnicas,
raciais e sociais, as ideias e os escritos de
Florestan Fernandes são mais que
necessários e se mantém vivos na luta dos
trabalhadores, na Escola Nacional do
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
que leva seu nome, nas escolas públicas,
nas universidades públicas, nos debates e
esse livro pretende ser mais uma
contribuição para manter a chama de suas
ideias acesa, que iluminam o caminho de
um passado obscuro e guiam para um
futuro alternativo de utopia e de
esperança para a sociedade brasileira.
FLORESTAN FERNANDES, Sempre
Presente!
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Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
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legado de ciência e militância
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Cláudia Vieira Cardoso
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2022, Faculdade de Filosoa e Ciências
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Ficha catalográca
C394 100 anos de Florestan Fernandes : legado de ciência e militância / Marcelo Augusto Totti
(organizador). – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2022.
282 p.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-5954-297-0 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-298-7 (Digital)
DOI https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7
1. Fernandes, Florestan, 1920-1995. 2. Sociologia - Brasil. 3. Educação. 4. Ativistas
políticos. 5. Socialismo. 6. Capitalismo. 7. Instituto Superior de Estudos Brasileiros. I. Totti,
Marcelo Augusto.
CDD 301.0981
Telma Jaqueline Dias Silveira –Bibliotecária – CRB 8/7867
Imagem capa: https://stock.adobe.com/br - Arquivo nº107925628. Acesso em 09/09/2022
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Apresentação ------------------------------------------------------------------------- 07
Seção I – educação, relaçõeS racIaIS e conStrução de uma SocIologIa
crítIca
A educação em Florestan Fernandes ---------------------------------------------- 17
Débora Mazza
Florestan Fernandes e a questão do negro: batalhas acadêmicas e políticas - 29
Paulo Henrique Fernandes Silveira
Sociologia crítica: obra-documento da história política contemporânea
(1975-1995) ------------------------------------------------------------------------ 47
Paulo Henrique Martinez
Seção II – o debate com o ISeb
O signicado e a presença do ISEB no Brasil dos anos 1950 e 1960 -------- 71
Caio Navarro de Toledo
O "debate" USP versus ISEB: o caso dos Cadernos do Povo Brasileiro -------- 83
Angélica Lovatto
Entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes: aspectos da formação
de uma sociologia no Brasil -------------------------------------------------------- 107
Marcelo Augusto Totti
Seção III – SocIalISmo e mIlItâncIa polítIca
Florestan Fernandes no exílio ------------------------------------------------------ 127
Marcos Tadeu Del Roio
Florestan Fernandes, a ciência como política, a política como ciência ------ 145
Haroldo Ceravolo Sereza
Capitalismo dependente, revolução burguesa e socialismo no pensamento
de Florestan Fernandes ------------------------------------------------------------- 165
Guilherme Rocha e Adelar João Pizetta
Florestan Fernandes e o processo Constituinte (1987-1988) ----------------- 179
Maria Selma de Moraes Rocha
Seção IV – capItalISmo dependente, autocracIa e reVolução burgueSa
O capitalismo dependente na visão de Florestan Fernandes ------------------ 229
Francisco Luiz Corsi
O sentido da autocracia burguesa no Brasil ------------------------------------- 247
Anderson Deo
Capitalismo dependente, Revolução burguesa e universidades --------------- 259
Roberto Leher
Sobre os autores ---------------------------------------------------------------------- 277
| 7
A
Florestan Fernandes foi um dos poucos intelectuais que tiveram
sua obra discutida de modo tão caloroso e sistemático, tanto nos meios
acadêmicos, intelectuais e na militância política. Sua contribuição ao
campo das Ciências Sociais e ao entendimento da sociedade brasileira é
inestimável, percorrendo temas e áreas que atravessam com um intercurso
teórico rico e uma articulação ímpar. Essa característica privilegia o debate
em torno da obra do sociólogo sob diversos ângulos, interpretações e
matizes teóricas, constituindo um campo fértil ao trabalho do pesquisador
interessado nos grandes problemas da sociedade brasileira.
O I Encontro sobre pensamento social brasileiro da Unesp de Marília:
100 anos do nascimento de Florestan Fernandes procurou retomar as
Jornadas de Ciências Sociais realizadas pela Unesp de Marília que marcaram
época nas Ciências Sociais brasileira com discussões de pensadores de relevo
que interpretaram o nosso país e sua estrutura social de diversos ângulos,
matizes teóricas e ideológicas diversas. Foi em uma dessas jornadas que
Florestan Fernandes teve sua obra discutida e lançou sua candidatura a
deputado constituinte. Na mencionada jornada realizada entre os dias 22
a 24 de maio de 1986, discutiu-se a obra do sociólogo de diversos ângulos
e pontos de vista, as conferências e debates desse importante evento foram
transcritas no livro O Saber militante, que se tornou uma das principais
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p7-14
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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referências de estudo do autor com interpretações clássicas de sua obra.
Desses debates surgiram duas interpretações que marcaram as análises da
obra de Florestan Fernandes, uma delas foi de Gabriel Cohn (1987, p.49)
que salientou “três modalidades básicas de tipos de que orientam a busca
da explicação sociológica – associados aos três grandes mestres, Weber,
Durkheim e Marx.”. De outra perspectiva, na mesma Jornada, Bárbara
Freitag (1987, p.164) partiu daquilo que denominou de uma “ruptura
epistemológica” na obra de Florestan distinguindo “uma fase acadêmico-
reformista de uma fase político-revolucionária. Biogracamente, o
momento do corte coincide com sua aposentadoria compulsória pelo AI-
5, em 1968.”.
Essa amplitude de intepretações denota a riqueza dos debates que
ocorreram na jornada de Marília em 1986, propiciada, evidentemente
pela magnitude da obra de Florestan Fernandes. A magnitude da obra do
sociólogo pode ser evidenciada no relato de Carlos Guilherme Mota em
conversa com Eric Hobsbawn sobre as diculdades para se compreender
a história e as possibilidades do processo de abertura política vivenciada
sob a ditadura civil-militar, “o grande historiador sorriu discretamente,
fazendo notar que um dos cinco maiores intérpretes de nossa época,
embora estivesse no Canadá, era brasileiro: Florestan Fernandes
(MOTA, 1998, p.11).
Nosso intuito, para além de um evento comemorativo, foi contribuir
para o debate e aprofundamento dos estudos em torno da obra do sociólogo
e partir de suas análises para entender os desaos que marcam a sociedade
brasileira contemporânea, aprofundada por uma crise política, social e
econômica que assola o país. O alto nível das exposições e debates, nos
grupos de trabalho, nas mesas redondas podem ser consubstanciados nos
textos que compõem esse livro e zeram jus ao pensamento e a obra de
Florestan Fernandes.
Organizado em quatro seções vinculadas as mesas e aos debates do
evento, procurou-se debater a obra do sociólogo sobre diversos ângulos
e temáticas. A primeira seção denominada Educação, relações raciais e
construção de uma sociologia crítica, buscou abordar temáticas fundamentais
no pensamento e a constituição da chamada sociologia crítica. O capítulo
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 9
de Débora Mazza resgata o itinerário da educação no pensamento de
Florestan, distante de inédito, a análise da questão educacional no sociólogo
perpassa a tradição das reformas estaduais nos anos 1920, o movimento
dos pioneiros na educação, da participação de inúmeros intelectuais na
coordenação de órgãos institucionais como demonstra no texto o legado
de Anísio Teixeira e Lourenço Filho. Mazza trabalha com o conceito de
mudança social permeando as diversas fases da produção do sociólogo,
tendo como fundamento empírico a formação social brasileira e como
material analítico o modo de produção da vida material e imaterial das
relações sociais vigentes.
Paulo Henrique Fernandes Silveira trabalha a questão do negro,
temática muito cara e importante a Florestan Fernandes. O autor retoma
a polêmica com Guerreiro Ramos partícipe do Teatro Experimental do
Negro, que cobrava originalidade da sociologia brasileira ao questionar a
pesquisa patrocinada pela Unesco lideradas por Roger Bastide e Florestan
Fernandes. Paulo Silveira retoma os pressupostos da pesquisa da Unesco,
o debate sobre o negro no pensamento social brasileiro e a inuência de
Gilberto Freyre para destacar a ausência de similaridade e de que a pesquisa
sobre os negros não sucumbiu aos interesses de seu patrocinador, algo posto
em dúvida por Guerreiro Ramos, mas, ao contrário, além de contrariar os
objetivos iniciais da Unesco abriu um diálogo constante e fortuito com o
movimento negro.
A partir do conceito cunhado por Caio Navarro de Toledo “obra
documento”, Paulo Henrique Martinez realiza um percurso histórico
do papel do intelectual e do militante em Florestan Fernandes, tendo
como parâmetro o ano de 1986, ano de lançamento de sua candidatura
constituinte. A partir dessa data concentra-se no período de 1978 a 1986,
período em que coordenou a coleção Grandes Cientistas Sociais, realizou
o curso na PUC (Pontifícia Universidade Católica) e inúmeros projetos.
O texto de Martinez dá pistas e sugere caminhos a serem explorados e
investigados nesse recorte histórico, suscitando uma série de possiblidades
aos interessados na obra de Florestan Fernandes.
A seção II - O debate com o Iseb, retoma um período central na
formação da Sociologia que foi o debate entre a “escola de sociologia
Marcelo Augusto Totti (Org.)
10 |
paulista” liderada por Florestan Fernandes e o Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB) tendo como principal liderança nesse debate Guerreiro
Ramos. Os textos reunidos nessa seção não se concentraram apenas nesse
debate, mas deram um panorama mais amplo da formação do Instituto e
da sua importância para a formação das Ciências Sociais no Brasil. O texto
de Caio Navarro de Toledo, O signicado e a presença do Iseb no Brasil dos
anos 1950 e 1960, resgata a importância cultural e ideológica inovadora
do Instituto na história política do Brasil. O autor ao partir de um
contexto histórico apresenta o que denominou de “ideias força”, ideologia,
alienação e as bases da nacional-desenvolvimento são chaves para entender
o caráter inovador do Instituto. Diante disso, Caio Navarro traça um
paralelo entre ISEB e a USP de controvérsias públicas que são silenciadas
sintomaticamente, descortinando uma relação conituosa e de nenhuma
colaboração. Angélica Lovatto analisa os Cadernos do Povo Brasileiro e
seu obscurecimento na literatura e nas pesquisas acadêmicas, sua hipótese
consiste no fato da chamada “escola de sociologia paulista” ignorar tais
escritos e produções, visto que na concepção da escola uspiana os isebianos
não faziam ciência e sim ideologia. Assim, não haveria necessidade de
estabelecer diálogo com os isebianos. Para isso, a autora percorre os debates
e centra-se nos conceitos de autonomismo e populismo desenvolvidos pelos
autores alinhados a “escola de sociologia paulista” entendo-os como uma
crítica manipulatória e de pouco caráter construtivo. O capítulo escrito
por Marcelo Augusto Totti recupera o debate entre Guerreiro Ramos e
Florestan Fernandes como elemento crucial na formação da sociologia
brasileira. Essa discussão se desdobra sobre a noção de ciência e no caráter
metodológico da disciplina.
A seção III – intitulada Socialismo e militância política concentra
os textos sobre as análises da estrutura da sociedade da capitalista e
militância política em prol da superação da sociedade de classes e da
construção do socialismo. O texto de Marcos Tadeu Del Roio trabalha
a partir do conceito de desenvolvimento e dependência e das discussões
oriundas na Cepal ao qual analisa a particularidade da posição de Florestan
Fernandes, como os processos de dominação externa, capitalismo, classes
sociais e poder dual e a questão do intelectual englobam os temas que
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 11
zeram o sociólogo dar uma guinada e pensar que a saída para a América
Latina seria uma saída revolucionária e socialista. Haroldo Ceravolo
Cereza em seu capítulo Florestan Fernandes, a ciência como política, a
política como ciência recobre aspectos da trajetória recuperando a tensão
intrínseca entre ciência e política, mas do que pensar em polos distintos
de vocações ao modo weberiano, Ceravolo encontra em Wright Mills e
Michael Burawoy a essência da sociologia pública dedicada as questões
candentes da sociedade e ao encontro da imaginação sociológica aos
problemas profundos da realidade brasileira ao qual se dedicou Florestan
Fernandes. Adelar João Pizetta, em seu capítulo Capitalismo dependente,
revolução burguesa e socialismo no pensamento de Florestan Fernandes. realiza
uma leitura contemporânea de quem denomina o patrono da sociologia
brasileira, priorizando uma leitura no âmbito dos movimentos sociais e
populares e do movimento dos trabalhadores sem-terra (MST). Pizetta
destaca na obra de Florestan Fernandes o conceito de “circuito fechado”,
dadas as características de dominação externas e internas adotadas pela
burguesia brasileira, impedindo qualquer tipo de avanço civilizacional
ao proletariado e as classes subalternas. Dentro desse quadro de “circuito
fechando” não restaria alternativas, senão o processo revolucionário dentro
da ordem e contra a ordem.
Selma Rocha, no capítulo Florestan Fernandes e o processo Constituinte
(1987-1988), trabalha o papel do sociólogo enquanto deputado
constituinte ainda abordado de forma tímida na literatura especializada,
a autora retoma o papel dos trabalhos de Florestan na Constituinte, sua
importância e participação nas comissões que tiveram papel decisivos nas
questões ligadas à defesa das liberdades democráticas, da educação, dos
direitos civis, políticos e sociais.
A seção IV – Capitalismo dependente, autocracia e revolução burguesa,
reúne capítulos de Francisco Luiz Corsi, Anderson Deo e Roberto
Leher, destacam o papel do capitalismo dependente na formação social
brasileiro. O capítulo de Francisco Luiz Corsi destaca o papel das análises
de Florestan Fernandes na dinâmica da sociedade de classes e seu processo
de desenvolvimento. Luiz Corsi aborda o conceito de desenvolvimento
capitalista de Florestan Fernandes na crítica realizada a Caio Prado Jr
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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e demais correntes do pensamento social brasileiro que abordaram a
questão do desenvolvimento. Retomando as origens do passado colonial
de cunho escravocrata e estamental sob dominação externa, o capitalismo
dependente sob a égide do imperialismo total impunha algumas
alternativas: a manutenção da ordem social vigente, o aperfeiçoamento
de um capitalismo de Estado capaz de levar a cabo lentas transformações
dentro da ordem e a revolução socialista, que seria contra a ordem.
Certamente, Florestan Fernandes optou pela última alternativa. Anderson
Deo em seu texto O sentido da autocracia burguesa no Brasil retoma o
conceito de sentido da colonização de Caio Prado Jr. e aponta similaridades
entre o outro conceito desenvolvido por Florestan Fernandes de autocracia
Burguesa. O capítulo de Roberto Leher Capitalismo dependente, Revolução
burguesa e universidades destaca os conceitos de capitalismo dependente
e revolução burguesa apontando o papel das Universidades abordando
dentro dos dilemas vivenciados atualmente na sociedade brasileira, de
crise político/econômico e social e intervenção do governo Bolsonaro nas
universidades. Como se vê nesta breve apresentação, o I Encontro sobre
pensamento social no Brasil: 100 anos de Florestan Fernandes foi um
momento ímpar e fértil, marcado por um conjunto difícil de crise política,
social e sanitária com mais quinhentos mil brasileiros mortos em função
de uma política do governo federal inepta e genocida, que jogou o país
no caos, levando milhares de brasileiros a se contaminarem e perderem a
vida. Os textos aqui reunidos muito além de manterem acesa as ideias de
Florestan Fernandes denotam a atualidade do seu pensamento, das suas
ideias e de suas análises sobre a estrutura social brasileira. Mais do que
comemorar, precisamos retomar as ideias e atuar na construção de uma
sociedade mais igualitária, justa e fraterna, que nas ideias de Florestan
Fernandes é a construção do socialismo!
Boa leitura a todas e todos!
Marcelo Augusto Totti
(organizador)
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
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referêncIaS
COHN, Gabriel. O ecletismo bem temperado. In: D’INCAO, M. A. (org.). O saber
militante: ensaios sobre Florestan Fernandes. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo:
UNESP, 1987.
FREITAG, Bárbara. Democratização, universidade, revolução. In: D’INCAO, Maria
Angela. O saber militante: ensaios sobre Florestan Fernandes. Rio de Janeiro: Paz e Terra;
São Paulo: UNESP, 1987.
MOTA, Carlos Guilherme. Florestan: memória e utopia. In: MARTINEZ, Paulo
Henrique. Florestan ou o sentido das coisas. São Paulo: Boitempo, 1998.
14 |
Seção I
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Profa. Dra. Débora Mazza
1
Gostaria de iniciar agradecendo o convite que me foi feito para
participar do I Encontro sobre o Pensamento Social Brasileiro
da FFC/Unesp/Marília “100 anos do nascimento de Florestan
Fernandes e parabenizar a UNESP Campus de Marília, a Faculdade
de Filosoa e Ciências, o Departamento de Sociologia e Antropologia
e a Linha de Pesquisa Pensamento Social Brasileiro, através da pessoa
do Prof. Marcelo Totti, com quem mantenho contato desde 2015
quando fui convidada pelo Centro Acadêmico Florestan Fernandes
para participar da I Semana Florestan Fernandes. Agradeço a todo/as
que nos apoiam e participam remotamente.
Cumprimento também a Prof. Fabiana de Cassia Rodrigues, minha
querida colega de trabalho, pesquisadora de Florestan e que divide comigo
essa mesa.
Docente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Faculdade de Educação (FE), Departamento
de Ciências na Educação (DECISE), membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas, Estado e Sociedade
(GPPES), Pesquisadora PQ CNPq.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p17-28
Marcelo Augusto Totti (Org.)
18 |
O tema que nos foi proposto é A educação em Florestan Fernandes,
assim, circunscrevi a minha reexão fazendo uma circunferência em torno
destas duas variáveis: Educação e Florestan.
A meu ver, as experiências mais radicais de Florestan, as instituições
mais marcantes, foram a sua classe social, o cenário urbano periférico da
cidade de São Paulo, a formação escolar, muitas vezes interrompida, e a
Sociologia enquanto um campo disciplinar e prossional.
A cidade de São Paulo, a experiência escolar e o olhar sociológico
interromperam o ciclo da herança cultural restrita, ampliaram as disposições
familiares e as heranças de classe, promoveram um giro pessoal político
prossional e uma mobilidade social sem que, no entanto, Florestan
se envergonhasse e apagasse as suas origens de classe, aburguesasse seus
costumes, debandasse para uma visão conformada, acomodada e indiferente
diante das duras condições de existência dos de baixo. Ele se assume como
alguém que vem de baixo e diz: “A criança estava perdida nesse mundo
hostil [...] Éramos varridos pela tempestade da vida [...] Todos nós éramos
rústicos e desenraizados [...] e estávamos aprendendo a viver na cidade.
(FERNANDES, 1976a, p. 142- 144).
Entendo que o sentido construído por meio de sua forma de inserção
neste mundo urbano peculiar riscou com um o vermelho:
- As problemáticas de pesquisa,
- As escolhas eletivas dos grupos sociais pesquisados
- O exercício da docência
- A radicalidade do pensamento
- A militância político partidária
- E a luta em defesa da escola pública
A compreensão que Florestan afere à educação vinca uma certa
sensibilidade ao corte sociológico.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
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Florestan não foi inédito, ele se banhou em uma pauta encampada
por Lourenço Filho e Anísio Teixeira desde as décadas de 1920 e 1930
quando participaram das reformas dos sistemas regionais de ensino no
Ceará (1922-1923), na Bahia (1924-1929), em São Paulo (1930-1931)
e no Distrito Federal (1931-1935). Foram signatários do Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova (1932) e, a partir dessas experiências
exploraram desenvolver pesquisas sistemáticas sobre os problemas nacionais
vinculando-os com a situação de ensino.
Nas décadas de 1950 e 1960 Anísio Teixeira acumula cargos e
funções na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES 1951), no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
(INEP/1952 a1964), cria o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
(CBPE/1955), os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais
(CRPE/1956) (Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador, Recife e SP), e põe
em marcha uma pauta desenhada no documento de fundação do INEP,
em 1937. Contando com esta ossatura institucional, as décadas de 1950
e 1960 promoveram continuidades e descontinuidades que inuenciaram
a formação e inserção prossional de Florestan. Ela criava interfaces
entre: o diagnóstico das tendências de desenvolvimento de cada região
e da sociedade brasileira como um todo, a superação dos estudos sociais
realizados por intelectuais brasileiros a partir de uma tradição bacharelesca
e autodidata, o desenvolvimento das ciências sociais, o equacionamento
de separatismo deixados pelo movimento revolucionário de 1930 e a “[...]
tomada de consciência cientíca e crítica sobre os processos de mudanças
sociais.” (COSTA PINTO; CARNEIRO,1955, p. 16).
Costa Pinto e Edson Carneiro (1955) realizaram, a pedido de Anísio
Teixeira, um estudo sobre “As ciências sociais no Brasil”, e produziram um
relatório que traça um panorama geral dos problemas sociais destacando: a
necessidade de tomada de consciência da mudança estrutural em curso, a
urgência das ciências sociais cumprirem a tarefa de analisar, compreender
e transformar a situação social e cultural brasileira e o papel da educação
na reconstrução nacional visando a formação de mão de obra qualicada,
inclusive dos cientistas sociais, a emergência de uma educação popular e o
Marcelo Augusto Totti (Org.)
20 |
m de uma educação voltada para os grupos privilegiados. A ideia central
de Anísio é incorporada ao relatório: Educação não é privilégio.
Florestan Fernandes se relacionou organicamente com estas
discussões, atores e instituições desde os projetos preliminares de criação
dos Centros Brasileiro e Regionais de Pesquisas Educacionais, dos quais foi
parecerista (FERNANDES, 1966, p. 565-578) e articulador do CRPE SP
(FERREIRA, 2006).
As questões transversais em sua obra constam no relatório de Pinto
e Carneiro (1955) e dizem respeito a:
- Quem são os atores impulsionadores das mudanças sociais?
- Quais os rumos e o ritmos das mudanças nas diferentes esferas da
vida social - Qual o sentido da mudança social na vida dos diferentes
grupos que compõem esta sociedade tão extensa, diversa e desigual?
- Quem são os grupos que verdadeiramente se beneciam com as
mudanças sociais em curso?
Não por acaso, os estudos de Florestan se voltam para: crianças, índios,
negros, trabalhadores urbanos, América Latina, subdesenvolvimento,
ordem democrática inacabada, Brasil e autocracia.
A mudança social é uma obsessão recorrente nos seus escritos e
podemos trazer vários exemplos:
- Os estudos sobre o folclore foram reunidos em um livro intitulado
Folclore e mudança social na cidade de São Paulo (FERNANDES,
1979a),
- Suas pesquisas sobre a sociedade Tupinambá produzem, a meu
ver, dois textos de sínteses intitulados “Notas sobre a educação na
sociedade Tupinambá” (FERNANDES, 1975a, p. 33- 83) e “A
ciência aplicada e a educação como fatores de mudança cultural
provocada” (FERNANDES, 1976b, p. 160- 219). Estes dois
artigos podem ser lidos de modo espelhados pois em um Florestan
descreve a função ocupada pelas práticas educativas numa formação
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 21
societária tradicionalista, sagrada, fechada e gerontocrática e no
outro Florestan aponta o signicado e a função que a educação e
a escolarização podem desempenhar em uma sociedade de classes,
secular, em processo de mudanças e marcada por rumos e ritmos
desalinhados que podem ou não desembocar na ordem democrática.
A educação poderia neutralizar os efeitos negativos do passado
arcaico e provocar atitudes e motivações favoráveis para o progresso
econômico, desenvolvimento social e participação política.
Esta linha de pensamento é explorada de modo intenso no livro
Mudanças sociais no Brasil (FERNANDES, 1979b) que reúne artigos das
décadas de 1940 a 1970 e apresenta reexões sobre a industrialização no
Brasil, a democracia, a colonização portuguesa, a cidade de São Paulo, os
ciclos econômicos e a Revolução Constitucionalista.
As pesquisas sobre relações raciais no Brasil, que contaram com a
participação de Florestan, apontam para este mesmo imbricamento. Elas
constam no relatório de Costa Pinto e Edson Carneiro como estudos que
mudaram o foco da assimilação do negro à sociedade brasileira para estudos
sobre “os processos de interdição da integração na sociedade e sobre as
mudanças em processo no padrão das relações raciais no Brasil” (COSTA
PINTO; CARNEIRO, 1955, p. 56).
No entanto, Florestan radicaliza e politiza esta agenda e na virada da
década de 1950/60 agrega às suas frentes de trabalho de ensino, pesquisa,
militância e publicista, as lutas em prol da Educação pública como
componente de responsabilidade cívica na construção, no alargamento e
esgotamento da ordem democrática.
Foi uma luta inglória e depois da derrota do processo de aprovação
da LDBEB 4024/1961, Florestan escreve sobre A conspiração contra a escola
pública (1966, p. 345- 537), e diz
O enfrentamento e a solução do dilema educacional é condição de
superação da posição de atraso do Povo, do subdesenvolvimento e
da dependência [...]
Marcelo Augusto Totti (Org.)
22 |
Existe um ostensivo apego a uma mentalidade que desdenha da
educação popular, teme a democratização do ensino e se opõe
a expansão da rede de escolas públicas. O Senado (quando vota
contra a exclusividade dos recursos públicos para as escolas públicas)
exprime o estado de espírito mais consolidado e geral das camadas
dominantes; impõem-se, portanto, organizar uma campanha e
uma luta demorada e difícil. Os males que precisamos combater são
por demais arraigados e só desaparecerão mediante uma alteração
profunda da mentalidade média do brasileiro. Teremos que dotá-la
de um órgão regular, uma Sociedade para o progresso da educação
popular. (FERNANDES, 1966, p. 348).
Isto não signica que Florestan considerasse a nossa rede escolar, os
nossos métodos de ensino e a postura dos professore/as excelentes, pelo
contrário, ele aponta que:
O esforço de reconstrução educacional requer uma verdadeira
revolução em nossa rede escolar, em nossas técnicas e hábitos
educacionais, na mentalidade dos nossos educadores e no modo
pelo qual a pessoa comum dene a importância da educação
escolarizada. [...] É preciso uma imensa revolução para ajustar
quantitativa e qualitativamente, às funções que as escolas brasileiras
precisam preencher na nova ordem econômica, política e social.
Temos de voltar, corajosamente, as costas para o passado, e
introduzir no nosso meio novas técnicas e práticas educacionais,
mais consistentes com a democratização de garantias sociais, a
modernização da tecnologia e da economia e a própria dinâmica
da sociedade de classes. Teimamos em preservar modelos de
organização das escolas e padrões de avaliação do ensino de uma era
em que a educação escolarizada se destinava a elites de composição
rala, altamente fechadas, privilegiadas e egoístas. Ora, uma coisa é a
educação de elites e para as elites; outra, bem diversa, é a educação do
Povo para o Povo. “[...] não existem formulas magicas... precisamos
de um sistema educacional aberto para todos. (FERNANDES,
1966, p. 349).
E denuncia: “Estamos dentro de um perfeito ciclo vicioso. Em vez
de polarizar a ordem democrática, o legislador se apega a concepções e
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
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valores do antigo regime. Daí resulta um beco sem saída.” (FERNANDES,
1966, p. 350).
A revolução que Florestan vislumbra não estava circunscrita à
escola, ele diz no artigo “A geração perdida” (FERNANDES, 1976a, p
213- 252) que sua geração tinha “[...] uma obsessão política que nascia da
cultura e gravitava dentro dela, irradiando-se para os problemas da época
e os dilemas da sociedade.” (FERNANDES, 1976a, p. 217). Entretanto,
como o horizonte cultural era ideologicamente limitado e excludente e
as elites dominantes se apropriaram privadamente do Estado republicano
conservando seus privilégios restavam poucas brechas para fazer avançar as
mudanças sociais e a escola pública era uma dessas brechas.
Em uma carta escrita em Toronto para Bárbara Freitag, em 1971,
Florestan avalia seu envolvimento com a luta pela escola pública nas
décadas de 1950/60 e diz:
Estava engajado numa merda de uma política pequeno-burguesa
[...]. Um punhado de intelectuais, estudantes, líderes sindicais
e políticos de esquerda, tentando enfrentar a avalanche da fome
católica pelo controle das consciências e dos setores conservadores
pela destruição da escola pública independente. Naquela situação,
recorri aos pressupostos do Estado democrático. Uma maneira
de fazer a crítica moral, que desarma os inimigos e cria aliados.
(FREITAG, 1996, p. 152).
Ainda na A conspiração contra a escola pública (FERNANDES, 1966)
ele conclui:
Os países subdesenvolvidos são os que mais dependem da
educação como fator social construtivo. Eles precisam da educação
para mobilizar o elemento humano [...] para alargar o horizonte
cultural [...] formar novos tipos de personalidade, fomentar novos
estilos de vida, incentivar novas formas de relações [...] expandir
a ordem social democrática. Todavia, esses países não encontram,
na situação sócio cultural herdada, condições que favoreçam
essa compreensão. [...] Ninguém deve esperar que a solução dos
problemas educacionais brasileiros pressuponha, por si mesma,
a solução dos demais problemas que nos aigem. Ela representa
Marcelo Augusto Totti (Org.)
24 |
apenas uma condição essencial, para que tais problemas tenham
condições de ser enfrentados [...] Em vários episódios sucessivos
[...] desde a abolição da escravidão, a universalização do trabalho
livre, a proclamação da República, as sedições político-militares, a
industrialização e urbanização, nunca se tentou ajustar o sistema
nacional de ensino [...]. As novas escolas continuam a ignorar as
ideias e os alvos da educação popular numa sociedade desigual. Elas
seguem cuidando de instigar nos espíritos atitudes conformistas.
(FERNANDES, 1966, p. 351- 353).
No livro A Sociologia numa era de revolução social (FERNANDES,1963),
Florestan retoma o tema da mudança social e diz:
Nos modernizamos por fora e com frequência o verniz não
aguenta o menor arranhão. É uma modernidade postiça, que se
torna temível porque nos leva a ignorar que os sentimentos e os
comportamentos profundos da quase totalidade das pessoas cultas
se voltam contra a modernização. [...]. Estamos aconchegados em
um nicho que confere segurança, conforto e prestigio, aquilo que
se poderia chamar de círculos sociais privilegiados da Nação. Se
houvesse verdadeiro patriotismo e autentico desejo de conservar,
esses círculos voltariam suas responsabilidades na direção mais
ativa: impunham-se o dever de tornar a segurança, o conforto
e o prestígio acessíveis a números cada vez maiores de pessoas,
até atingir-se a totalidade dos cidadãos. (FERNANDES, 1963,
p. 204-206).
Entre as décadas de 1960/70 Florestan inicia e conclui A revolução
burguesa no Brasil e faz um diagnóstico ardiloso da situação brasileira
dizendo:
As burguesias sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido
detêm um forte poder econômico, social e político; possuem o
controle da maquinaria do Estado nacional, e contam com o suporte
externo para modernizar as formas de socialização, cooptação,
opressão ou repressão inerentes à dominação burguesa. Torna-se
assim, muito difícil desloca-las politicamente através de pressões e
conitos mantidos “dentro da ordem”, e é quase impraticável usar
o espaço político assegurado pela ordem legal, para fazer explodir
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 25
as contradições de classe. [...]. A burguesia não está lutando para
consolidar vantagens relativas ou para manter privilégios de classe.
Ela luta, simultaneamente, por sua sobrevivência e pela sobrevivência
do capitalismo. [...] O idealismo burguês nos países dependentes
precisa pôr de lado seu compromisso com qualquer mudança ou
reformismo [...] A sua inexibilidade e sua decisão para empregar
a violência institucional na defesa dos interesses materiais privados,
de ns políticos particularistas; e sua coragem de identicar-se com
formas autocráticas de autodefesa e de autoprivilegiamento enceta,
assim, um último giro, fundindo a republica parlamentar com o
fascismo. (FERNANDES, 1975b, p. 296).
Esta dupla articulação entre o desenvolvimento desigual interno
e a dominação imperialista externa engendra uma dominação burguesa
que resiste organizada e institucionalmente às pressões igualitárias das
estruturas nacionais sobrepondo-se e negando as imposições integradoras
e produzindo uma ordem autocrática que não se converte em ordem
democrática. (FERNANDES, 1975b, p. 302)
E nalmente, na década de 1980 Florestan se lia ao PT e na
condição deputado federal, nos mandatos de 1987 a 1991 (Assembleia
Nacional Constituinte) e 1991 a 1995 retoma sua luta em defesa da escola
pública.
Os livros O desao educacional (FERNANDES, 1989) e A contestação
necessária (FERNANDES, 1995) registram os embates que o parlamentar
enfrentou com o Congresso Nacional, os grupos dentro do próprio Partido
dos Trabalhadores e demais partidos de esquerda em prol da educação dos
de baixo e contra os privilégios dos de cima. Ele reitera a defesa das verbas
públicas exclusivas para o ensino público, a democratização radical de
todos os níveis de educação, a revolução da escola (os materiais didáticos,
as metodologias de ensino e os processos de avaliação), o combate a todo
e qualquer tipo de preconceito, exclusão, opressão dentro e fora da escola,
a identicação dos professores, gestores e funcionários da educação com as
condições de opressão dos de baixo e não com os interesses dos de cima.
Em todos estes momentos Florestan adotou como unidade empírica:
a formação social brasileira e, como unidade analítica: o modo de produção
Marcelo Augusto Totti (Org.)
26 |
da vida material e imaterial e as formas de interação social. Para tanto, a
educação era mediação e mediadora na construção de sociedades menos
desiguais e menos violentas sem perder de vista o horizonte revolucionário
de uma sociedade de trabalhadora/es livres, iguais e organizados.
O que impulsionou Florestan a pensar sociologicamente o problema
educacional brasileiro como um dilema social que ganhava destaque na
paisagem da mudança social?
Nossa resposta é: a origem de classe, a ambiência urbana da cidade
de São Paulo, o papel da escola e giro epistemológico da sociologia. Ele diz
no Prefácio do livro Educação e Sociedade no Brasil:
Produzi muitos escritos ao longo da tormentosa Campanha
em Defesa da Escola Pública […]. Tudo se passou como se me
transformasse em porta voz dos meus companheiros de infância e
juventude […] O professor universitário falou em nome da antiga
criada e lavadeira portuguesa e daquele menino que teve que ganhar
a vida antes de completar 7 anos engraxando sapatos, carregando
compras etc. Coube-me o dever de levar ao mundo cultivado do
Brasil as angústias dos esbulhados […] não trepidei […] Professor,
sociólogo, socialista- não foi dessas condições que extrai o elemento
inconformista que deu sentido à minha participação [...] atirei-
me a uma luta desigual e considerei-me como um representante
fortuito das massas populares” (FERNANDES, 1966, p. XIX-XX).
Neste momento, em que o mundo reúne mais de 4.800.000
mortes pela Covid 19, sendo mais de 704.000 nos USA e 570.000 no
Brasil (JOHN HOPKINS UNIVERSITY & MEDICINE, 05/10/2021)
gostaria de destacar que o rigor e estilo hermético de forma e conteúdo
na obra de Florestan revelam um sentimento de mundo e uma angústia
de quem busca encontrar um lugar para todo/as na sociedade brasileira,
latino-americana e periférica alinhada de modo desigual e expoliatório na
ordem capitalista global.
A partir de Hegel, diria que Florestan não realizou a poesia do
coração mas exercitou a prosa do mundo e foi possuído pela compaixão,
este sentimento nos faz mais fraternos, humanos e preocupados com o
outro e não fechados em nossas bolhas individuais.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 27
Em 1989, 6 anos antes de seu falecimento, Florestan encerra o livro
Desao educacional com a frase:
Temos que quebrar as barreiras que connam a educação
escolarizada, favorecem a desumanização no ensino, preparam os
mais pobres para a serem trabalhadores alienados. [...] É preciso
acabar com a exclusão do oprimido e varrer de seu corpo e de
sua cabeça a aprendizagem que o socialize para ser um cidadão
de segunda ou terceira categoria. [...] Esse desdobramento caberá
principalmente aos professores como companheiros (e não mestres
autoritários a serviço da reprodução da ordem existente). São tarefas
histórico-pedagógicas, mais do que matérias de currículo. [...] Eles
devem alcançar mentes e corações, na formação do intelecto, na
descoberta do mundo, no uso ativo da inteligência criadora, no
experimento [...] na recriação da pessoa, da natureza, da sociedade
e da cultura. [...] O objetivo último da educação escolarizada não
está em ‘fazer a cabeça do estudante’, mas em inventar e reinventar
a civilização sem a barbárie. (FERNANDES, 1989, p. 263-264).
Florestan nunca se acomodou a frieza do estilo de vida e da educação
burguesa que estimula o distanciamento social, a atitude calculista e
a insensibilidade com o sofrimento alheio. Valoriza a competição em
detrimento da cooperação, o interesse privado à frente da proteção do
bem-comum, o bem-estar econômico à custa do mal-estar ético e moral do
coletivo. Fernandes denuncia: “A mesquinharia do trabalhador de gravata
e o universo de tricas e futricas da vida pequeno burguesa através dos quais
a frustração se dissolve no nível das tensões pessoais e dos entrechoques
individuais” (FERNANDES, 1977, p. 151). A frieza é um projeto
cognitivo, moral, ético e político em curso nas sociedades burguesas que
educa as mentes, os corpos e os corações (GRUSCHKA, 2014).
E no momento em que entrou na sala de cirurgia, antes de vir a
falecer Florestan disse uma frase que, a meu ver, retrata sua paixão pela
vida: “O que me mantém vivo é a chama do socialismo que está dentro de
mim” (FERNANDES, 1995b, p. 5).
Muito obrigada.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
28 |
referêncIaS
COSTA PINTO, Luis A.; CARNEIRO, Edison. As ciências sociais no Brasil. Estudo
realizado para a CAPES. Rio de Janeiro: Serie Estudos e Ensaios- 6, 1955.
FERNANDES, Florestan. A Sociologia numa era de revolução social. São Paulo: Editora
Nacional, 1963.
FERNANDES, Florestan. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus; Ed. da
USP, 1966.
FERNANDES, Florestan. Elementos de Sociologia Teórica. 2. ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1974.
FERNANDES, Florestan. A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1975a.
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de
interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975b
FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976a.
FERNANDES, Florestan. Ensaios de Sociologia geral e aplicada. 3. ed. São Paulo:
Pioneira, 1976b.
FERNANDES, Florestan. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. 2. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1979a.
FERNANDES, Florestan. Mudanças Sociais no Brasil. 3. ed. São Paulo: DIFEL, 1979b.
FERNANDES, Florestan. O desao educacional. São Paulo: Cortez: Autores Associados,
1989.
FERNANDES, Florestan. A contestação necessária. São Paulo: Ática, 1995a
FERNANDES, Florestan. Entrevista. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 ago. 1995b.
Caderno Mais, p. 4-5.
FERREIRA, Márcia Santos. Centros de Pesquisas do INEP: pesquisas e políticas
educacionais entre as décadas de 1950 e 1970. 2006. Tese (Doutorado em Educação) -
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
FREITAG, Barbara. Florestan Fernandes por ele mesmo. Estudos Avançados, São Paulo,
v. 10, n. 26, p. 129-172, 1996.
GRUSCHKA, Andreas. Frieza Burguesa e educação. A frieza como mal-estar da cultura
burguesa na educação. Campinas, SP: Autores associados, 2014.
JOHN HOPKINS UNIVERSITY & MEDICINE. Coronavirus resource centre.
Baltimore, 2021. Disponível em: https://coronavirus.jhu.edu/map.html. Acesso em: 5
out. 2021.
| 29
F F   
 :   

1
Paulo Henrique Fernandes Silveira
2
Parafraseando o Prof. Florestan Fernandes, esperamos que nossas
atividades enquanto ‘homem de ação’ possam contribuir para a
efetivação do ‘homem de ciência
(Eduardo de Oliveira e Oliveira, “Ideologia racial – estudo de
relações raciais”).
3
Agradecemos a Artur Perrusi, Cristiano Ramalho e Gabriel Peters, editores da revista Estudos de Sociologia
(UFPE), a autorização para uma nova publicação desse texto, originalmente publicado em 2020, no Dossiê
Florestan Fernandes: 100 anos, v. 2, n. 26, p. 123-142.
Professor, pesquisador e orientador da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).
Pesquisador do grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto de Estudos
Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Email: paulo.henrique.fernandes@usp.br
Eduardo de Oliveira e Oliveira formou-se em ciências sociais em 1964, na Universidade de São Paulo, nos
anos 70, teve papel central na organização política do movimento negro. O projeto de pesquisa “Ideologia
racial – estudo de relações raciais” encontra-se na coleção de textos e documentos desse autor, preservados pela
Universidade Federal de São Carlos (TRAPP, 2018, p. 109).
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p29-46
Marcelo Augusto Totti (Org.)
30 |
Num texto publicado em 1953, o sociólogo e militante do movimento
negro Guerreiro Ramos argumenta que, em países culturalmente
colonizados, como o Brasil, uma parte signicativa da sociologia não visa
à autenticidade, restringindo-se a glosar “[...] as orientações doutrinárias
vigentes nos centros de cultura estrangeiros.(RAMOS, 1953, p. 10).
Segundo Ramos (1953, p. 9), as sociologias autênticas, especialmente,
aquelas desenvolvidas nos países europeus, assumem direção e problemática
próprias, seus conceitos são historicamente condicionados e suas
formulações são “[...] caudatárias de tradições militantes, orientadas no
sentido pragmático.”. Pela primeira vez em seus trabalhos teóricos, Ramos
cobrava autenticidade da sociologia brasileira, princípio que estava presente
no movimento da Negritude seguido pelo Teatro Experimental do Negro
(TEN), no qual o sociólogo militava com Abdias do Nascimento.
Prontamente, o texto de Ramos teve uma resposta de Roger Bastide,
sociólogo francês que, meses antes, havia publicado, com Florestan
Fernandes, sua pesquisa sobre a situação dos negros no Estado de São Paulo.
Numa carta aberta, Bastide aponta para o perigo das posições defendidas por
Ramos. Em primeiro lugar, Bastide arma que sua pesquisa com Fernandes,
mesmo tendo sido patrocinada pela UNESCO, não sucumbiu aos interesses
da instituição (BASTIDE, 1953). Além disso, Bastide questiona a tese de
que o sociólogo, por causa das condições nacionais e econômicas de cada
país pesquisado, deva trabalhar pragmaticamente, a favor de uma nação ou
de uma classe, e não objetivamente (BASTIDE, 1953). Por m, Bastide
alega que a autonomia sociológica depende, justamente, da construção de
uma ciência universal desligada de qualquer causa particular.
Essas posições de Ramos sobre a sociologia também foram repudiadas
por Fernandes. Em julho de 1953, Ramos apresentou propostas para o
desenvolvimento da sociologia no Brasil, no II Congresso Latino Americano
de Sociologia. Essas propostas foram rejeitadas pela maioria dos membros
do congresso responsáveis pelo tema; Fernandes foi um dos que votou
contra elas (SHIOTA, 2010).
Ainda na década de 50, Fernandes (1958, 1959) desenvolve uma série
de pesquisas sobre os fundamentos da sociologia aplicada. Em meados dos
anos 70, Fernandes sustenta uma concepção de sociologia militante que, em
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 31
certa medida, contrapõe-se à sociologia militante de Ramos (1995).
4
Por um
lado, Fernandes questiona qualquer engajamento intelectual que restrinja a
liberdade acadêmica (FERNANDES, 1977b). Por outro lado, ele advoga
por uma sociologia que realmente esteja a serviço do povo e não das modas
acadêmicas ou dos interesses particulares dos próprios intelectuais:
Numa era de palavras gastas, impõem-se evitar as orgias verbais.
O que devemos fazer não é ‘lutar pelo Povo’. As nossas tarefas
intelectuais possuem outro calibre: devemos colocar-nos a serviço
do Povo brasileiro, para que ele adquira, com a maior rapidez
e profundidade possíveis, a consciência de si próprio e possa
desencadear, por sua conta, a revolução nacional que instaure no
Brasil uma ordem social democrática e um Estado fundado na
dominação efetiva da maioria. (FERNANDES, 1977a, p. 246).
No texto “Em busca de uma sociologia crítica e militante”, Fernandes
(1977b) elabora um perl biográco e político da sua formação e da sua
produção acadêmica. Numa passagem desse texto, Fernandes identica
um dos princípios do movimento da Negritude em suas pesquisas com
Bastide sobre a situação dos negros no Brasil: a revolta contra a miséria,
a humilhação e a servidão, engendrada na espoliação e no sofrimento
(FERNANDES, 1972). A partir da sua experiência como lho de mãe
solteira, humilde e muito pobre, Fernandes enfrentou toda sorte de
preconceitos e de barreiras econômicas para ter acesso aos estudos e ao
mercado formal de trabalho:
Essa situação, por sua vez, voltou à minha observação mais tarde,
na pesquisa com Bastide: o tema do ‘emparedamento do negro’.
Esse tema foi agitado pelos movimentos de protesto. Muitos não
acreditavam nele, especialmente, os brancos. Todavia, antes de
investigá-lo em relação aos outros, eu conhecera a realidade que ele
evoca bem de perto e muito a fundo. Uma sociedade de classes em
Nos anos 70, o próprio Fernandes reconhece uma alteração profunda na sua maneira de lidar com os assuntos
da sociologia (SOARES, 1997). Todavia, como sugere o sociólogo Gabriel Cohn (1987), é possível traçar uma
relação direta entre a metodologia e as teses defendidas por Fernandes nas pesquisas dos anos 50 sobre o negro,
suas pesquisas e textos teóricos sobre a sociologia aplicada, nos anos 50 e 60, e suas pesquisas e posicionamentos
políticos nos anos 60 e 70.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
32 |
formação não é tão aberta quanto muitos pensam e, tampouco, é
aberta em todas as direções. (FERNANDES, 1977b, p. 150).
5
Num texto em homenagem a Roger Bastide, originalmente publicado
em 1984, Fernandes (1989) relembra os pormenores da pesquisa para a
UNESCO. Novamente, Fernandes ressalta a importância da sua origem
social para a compreensão da situação dos negros que, desde a sua infância
nos porões e cortiços da cidade de São Paulo, foram seus companheiros
de privações e misérias. O sociólogo também destaca o papel central dos
militantes do movimento negro na orientação da pesquisa, formulando
hipóteses que foram: “[...] ampliadas, vericadas empiricamente e testadas
interpretativamente, aprofundadas e incorporadas ao horizonte cultural da
explicação sociológica.” (FERNANDES, 1989, p. 106-107).
O objetivo desse texto é apresentar, ainda que sucintamente, as
posições dos principais sociólogos e correntes de pensamento com os quais
Florestan Fernandes dialoga em suas pesquisas sobre a questão dos negros,
indicando as batalhas acadêmicas e políticas que ele enfrentou nesse campo.
Esse debate sociológico dimensiona a originalidade e a importância dos
trabalhos de Fernandes no interior da chamada “Escola sociológica paulista”.
Por outro lado, as interpretações e as teses sociológicas de Fernandes apontam
para outras batalhas que também precisavam ser enfrentadas, não apenas no
horizonte dos debates acadêmicos, mas na organização e no fortalecimento
dos movimentos sociais e do protesto negro.
aS polítIcaS da cIêncIa
Como lhe ensinaram os professores e pesquisadores brasileiros e
estrangeiros da Universidade de São Paulo e da Escola Livre de Sociologia e
Política, em seus trabalhos, Fernandes e a nova geração de cientistas sociais
paulistas dialogam com os principais autores de cada tema. Com relação à
questão do negro, um desses autores trazidos para o debate foi o médico e
A expressão “emparedamento do negro” foi utilizada pelo militante José Correia Leite numa entrevista para a
pesquisa de Bastide e Fernandes (FERNANDES, 1965, p. 11). É provável que Correia Leite tivesse em mente
o poema “O emparedado”, de Cruz e Souza (GUIMARÃES, 2004, p. 272).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 33
siologista francês Louis Couty. Suas descrições e análises sobre a escravidão
no Brasil em meados do século XIX são parcialmente incorporadas por
Fernandes (1955), Celso Furtado (1974) e Gilberto Freire (2003).
Pautado pelas teorias cientícas da sua época, Couty (1988, p. 97)
sustenta que o negro cativo possui “[...] todas as características intelectuais
e morais de uma criança que não pode se ajustar facilmente às condições da
vida adulta civilizada.”. Baseado em suas próprias observações, o médico
francês arma que, quase sempre, o negro porta-se como um grande
preguiçoso, cuja indolência está na base de todas as suas relações individuais
e sociais (COUTY, 1988). Para Couty (1988, p. 93), em qualquer região
do mundo, o negro encontra-se numa fase primitiva da evolução humana,
na qual o trabalho é considerado um castigo ou uma punição: “[...] é por
isso que, para ele, o supremo bem corresponde à ausência de qualquer
atividade”.
6
Diferente do que ocorre nas Antilhas e na América do Norte,
onde o negro é tratado como um pária e corre o risco constante de ser
aniquilado, no Brasil, onde o negro liberto é comumente tratado como
igual, inexiste preconceito racial (COUTY, 1988).
Sobre o tema da passagem do trabalho escravo para o trabalho livre
destacam-se as cartas abertas de Joaquim Nabuco e do embaixador norte-
americano Henry Hilliard, em 1880. Ao ser instigado por Nabuco para
compartilhar a experiência abolicionista em seu país e na Europa, Hilliard
enfatiza duas medidas importantes: a criação de uma universidade em
Atlanta, nos EUA, voltada para a formação e a qualicação prossional
dos ex-escravos (HILLIARD, 1880, p. 14), e um conjunto de medidas do
parlamento inglês que visava oferecer um período de quatro ou cinco anos
de aprendizado e um auxílio para moradia (HILLIARD,1880).
No Brasil, a discussão sobre possíveis reparações aos ex-escravos foi
levantada pela primeira vez por José do Patrocínio (1996), num artigo
publicado em 6 de setembro de 1880, um mês após Nabuco ter um projeto
Num estudo sobre as referências teóricas de Celso Furtado em suas pesquisas nos anos 50, o economista
Tamás Szmrecsányi destaca a importância das análises de Couty (SZMRECSÁNYI, 1999). Uma passagem
do livro Formação econômica do Brasil parece dialogar com as ideias do médico francês: “O homem formado
dentro desse sistema colonial está totalmente desaparelhado para responder aos estímulos econômicos. Quase
não possuindo hábitos de vida familiar, a ideia de acumulação de riqueza é praticamente estranha. Demais, seu
rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente suas ‘necessidades’. Sendo o trabalho para o escravo
uma maldição e o ócio o bem inalcançável” (FURTADO, 1974, p. 167).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
34 |
de emancipação dos escravos negado na Câmara (NABUCO, 1881). Em
seu projeto, que previa o m da escravidão num prazo de dez anos, Nabuco
recomenda que o estado indenize os senhores que ainda tivessem escravos
ao término desse processo, mas não sugere nenhuma forma de reparação
aos próprios ex-escravos. Em seu artigo, Patrocínio (1996) repudia as
indenizações aos senhores de escravos e aprova que os mesmos paguem
uma reparação aos negros escravizados após a lei de 1831, que proibia o
tráco. Num paneto da Confederação Abolicionista, formada por José do
Patrocínio, Luiz Gama, André Rebouças e outros abolicionistas, defende-
se que os senhores de escravos paguem os salários devidos aos negros por
300 anos de escravidão no país (BRASIL, 1883).
Um dos autores que teve um papel importante nas análises do
processo abolicionista foi o jurista, escritor e deputado Silvio Romero. Num
artigo publicado em 1881, Romero critica veementemente as posições de
Nabuco e Hilliard em suas cartas abertas sobre a emancipação dos negros:
O verdadeiro problema que nos ocupa vem a ser: a substituição
do trabalho escravo pelo livre, o m do regime colonial pelo
democrático, a vitória da ciência sobre a rotina. (...) A ciência
política de hoje não aceita mais soluções imprevistas. A economia
política, a ciência do trabalho, é que deve procurar a solução do
debate. (ROMERO, 1881, p. 195-196).
Segundo Romero, não é preciso forjar uma antropologia para
resolver a questão do processo abolicionista. Seguindo as teorias cientícas
vigentes, o deputado assevera que os negros nunca chegaram a civilizar-
se (ROMERO, 1881). Nesses termos, para o bem da economia e do
desenvolvimento dos negócios, é preciso investir na imigração europeia
e promover a concorrência do trabalho livre, tornando-o ainda mais
barato (ROMERO, 1881). Como consequência dessa medida, conclui o
deputado: “[...] o trabalho livre deve matar o trabalho escravo.” (ROMERO,
1881, p. 198, grifos do autor).
Leitor e admirador de Romero, o médico Raimundo Nina
Rodrigues foi outra grande referência intelectual da virada do século XIX
nos estudos e na discussão sobre a questão do negro. Em suas pesquisas,
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 35
Nina Rodrigues mescla teorias médicas e investigações etnológicas. Ao
mesmo tempo em que procura referendar suas posições com explicações
etnológicas que atestam a evolução das raças, o médico simpatiza com
teorias explicitamente eugenistas.
No livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil,
publicado em 1884, Nina Rodrigues cita e ratica um texto do médico e
sociólogo francês Armand Corre (1889):
O negro crioulo libertou-se dos labores embrutecedores e das
misérias degradantes do seu congênere africano, adquiriu algum
verniz pelo atrito com elementos étnicos superiores; melhorou, mas
não deixou de pertencer à sua raça que não é adaptável às mesmas
condições sociais do Ariano. (RODRIGUES, 1938, p. 158-159).
Na interpretação de Elide Bastos, esse racismo cientíco presente
em Silvio Romero e Nina Rodrigues visa conferir um cunho legal à
discriminação racial. Através da erudição e da linguagem cientica,
esses intelectuais tentam legitimar a desigualdade racial, naturalizando a
liderança branca sobre os negros (BASTOS, 1991).
Em Casa grande & senzala, publicado em 1933, o sociólogo Gilberto
Freire (2003) rechaça as teorias eugenistas endossadas por Nina Rodrigues
e Oliveira Viana. Essa posição inspira os versos de Manuel Bandeira,
numa homenagem que foi incluída nas edições recentes de Casa grande &
senzala: “A mania ariana/ Do Oliveira Viana/ Leva aqui sua lambada/ Bem
puxada.” (FREIRE, 2003, p. 12).
Por outro lado, Freire (2003) retoma a tese, já defendida por Couty,
de que não se cultivam preconceitos inexíveis no Brasil . A partir de uma
interpretação sociológica e pretensamente cientíca, Freire sustenta que
a intensa e frequente miscigenação nas famílias brasileiras promoveria a
diluição de todas as formas de conitos raciais (BASTOS, 1991).
Essa posição de Gilberto Freire é imediatamente corroborada por
inúmeros intelectuais brasileiros e estrangeiros. Um dos seus divulgadores
mais convictos foi o médico e etnólogo Arthur Ramos. Mesmo sendo
um fervoroso crítico do racismo cientíco, Ramos se apresenta como um
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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pesquisador da “Escola Nina Rodrigues”, destacando, fundamentalmente,
a importância do seu trabalho etnológico (RAMOS, 1942a). No m
de 1942, em meio à Segunda Guerra mundial, Arthur Ramos funda a
Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia (SBAE), e participa
da elaboração de um manifesto contra o nazismo que seria assinado por
seu amigo Gilberto Freire e por outros intelectuais. Esse manifesto foi
encaminhado ao então Ministro de Educação e Saúde, Gustavo Capanema:
O Brasil é uma nação formada dos elementos étnicos mais
heterogêneos. Aqui se misturaram povos de procedências étnicas
indígena, europeia e africana, num tal ambiente de liberalismo e
ausência de restrições legais à miscigenação que o Brasil se tornou
a terra ideal para a vida em comum dos povos das procedências
étnicas mais diversas. Esse grande ‘laboratório de civilização’, como
já foi chamada a nossa terra, apresentou a solução mais cientíca
e mais humana para o problema, tão agudo entre outros povos, da
mistura das raças e de culturas. [...]
Esta losoa brasileira no tratamento das raças é a melhor arma
que podemos oferecer contra a monstruosa losoa nazista que,
em nome da raça, trucida e saqueia, nas tentativas de dominação
do mundo. (RAMOS, 1942b).
7
a cIêncIa da “eScola SocIológIca paulISta
Após a Segunda Guerra Mundial, em resposta aos horrores do
antissemitismo e do Holocausto, a ONU cria a UNESCO. Um dos
objetivos da instituição é promover pesquisas e discussões sobre os fatores
que teriam contribuído para a perseguição racial e para o genocídio judeu.
Além disso, “[...] a persistência do racismo, especialmente, nos EUA e
África do Sul, o surgimento da Guerra Fria e o processo de descolonização
africana e asiática mantiveram a atualidade da questão racial.” (MAIO,
1999, p. 43). No nal dos anos 40, trabalhando na UNESCO com outros
sociólogos brasileiros, Arthur Ramos sugere que a instituição promova
No artigo “Brazil, laboratory of civilization”, publicado em 1929, o antropólogo alemão Rüdiger Bilden
utiliza pela primeira vez essa expressão. Foi Gilberto Freire, que havia estudado com Bilden na Universidade
de Columbia, quem o colocou em contato com Arthur Ramos (RAMOS, 1937). A tese central de Bilden,
desenvolvida por Freire em Casa grande & senzala, era de que a intensa e diversicada miscigenação no Brasil
não implicou, como pressupunha o racismo cientíco, numa degeneração racial (PALLARES-BURKE, 2013).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 37
uma pesquisa sobre o preconceito racial para conhecer o “laboratório de
civilização” que existiria no Brasil. Segundo Fernandes (1989, p. 7), com
essa pesquisa, a UNESCO pretendia sensibilizar o governo brasileiro para
a adoção de medidas legais favoráveis ao negro e “[...] demonstrar que
negros e brancos podem conviver democraticamente.”.
Um dos intelectuais contatados por Ramos para realizar a pesquisa
foi o sociólogo norte-americano Donald Pierson, que tinha sido professor
de Fernandes no mestrado da Escola Livre de Sociologia e Política.
No livro Brancos e negros na Bahia, publicado no Brasil em 1945, com
introduções de Ramos e Robert Park (orientador da pesquisa), Pierson
chega às seguintes conclusões:
Existe na Bahia pouco preconceito de raça (se é que existe), no
sentido em que este termo é usado nos Estados Unidos. Não
existem castas baseadas na raça; existem somente classes. Isto não
quer dizer que não exista algo que se possa chamar propriamente de
preconceito”, mas sim que o existente é um preconceito de classe
e não de raça. (PIERSON, 1945, p. 402).
Um ano antes da realização da Pesquisa UNESCO, sob a coordenação
de Abdias do Nascimento, o Teatro Experimental do Negro (TEN)
promoveu no Rio de Janeiro o I Congresso do Negro Brasileiro. Entre os
convidados estavam pessoas ligadas a Ramos, falecido um ano antes. Na
comissão de pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Escola Livre
de Sociologia e Política, estavam o professor Roger Bastide, e alguns dos
seus jovens assistentes, entre eles, Florestan Fernandes e Gilda de Mello e
Sousa (OLIVEIRA, 2018).
Nos debates organizados pelo congresso, todos os participantes
argumentam, opinam, tomam posições e votam, aprovando ou
desaprovando as teses apresentadas (NASCIMENTO, 1982). Nesses
encontros, uma série de teorias antropológicas, etnológicas, médicas,
jurídicas e políticas são apresentadas e discutidas por todos, esmiuçando
seus possíveis desenlaces práticos na vida cotidiana do negro brasileiro.
Negros e brancos pensam juntos os encaminhamentos a serem tomados
nas pesquisas acadêmicas e na atuação política do movimento negro. Em
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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sua participação, representando a comissão paulista no congresso, Bastide
tratou do estereótipo “[...] subentendido no preconceito racial e que
justica aos olhos do branco que o negro seja impulsivo, ladrão, preguiçoso,
tornando-se, com facilidade, um criminoso.” (NASCIMENTO, 1982,
p. 163). Utilizando a mesma estratégia de Ramos, que separa o etnólogo
Nina Rodrigues das suas teorias eugenistas, Bastide recupera ideias do
médico sobre o tema. Após analisar dados relativos aos altos índices de
criminalidade dos negros no estado de São Paulo, Bastide encerra sua
comunicação defendendo a mudança desse quadro através de um intenso
trabalho educativo.
Alguns meses após o I Congresso do Negro Brasileiro, Bastide e
Fernandes começam a preparar a pesquisa encomendada pela UNESCO.
A princípio, a pesquisa em São Paulo deveria ser dirigida por Pierson. No
entanto, o sociólogo se desinteressou pelo projeto quando soube “[...]
que a UNESCO não colocara fundos sucientes para realização de uma
pesquisa de envergadura.” (FERNANDES, 1989, p. 102).
Num cuidadoso trabalho a partir do Acervo Florestan Fernandes da
Biblioteca Comunitária da UFSCAR, Antonia Campos (2014) examina
as metodologias utilizadas na Pesquisa UNESCO em São Paulo: a análise
teórica de livros, documentos e material da imprensa, os questionários
e entrevistas com representantes da classe patronal e a organização de
encontros com militantes do movimento negro. Com esse material
teórico e empírico, Bastide e Fernandes colhem dados e desenvolvem suas
hipóteses. Segundo Fernandes (1989), os encontros com os militantes
foram fundamentais para a pesquisa. O negro foi convocado para falar
sobre si mesmo.
Num dos textos produzidos a partir dessa pesquisa, “Do escravo ao
cidadão”, publicado em 1953, na revista Anhembi, Fernandes faz ecoar
uma hipótese que foi levantada por Soa de Campos Teixeira, professora,
jornalista e militante do movimento negro. Para a militante, a condição
do negro naqueles anos 50 reetia diretamente as injustiças do processo de
abolição (CAMPOS, 2014).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 39
Em seu texto, Fernandes (1955, p. 47) desenvolve essa hipótese:
Aos escravos foi concedida uma liberdade teórica, sem qualquer
garantia de segurança econômica ou de assistência compulsória;
aos senhores e ao Estado não foi atribuída nenhuma obrigação
com referência às pessoas dos libertos, abandonados a própria sorte
dai em diante. Em suma, prevaleceram politicamente os interesses
sociais dos proprietários dos escravos, a medida em que aqueles
interesses não colidiam com o m explicito da lei abolicionista.
As condições econômicas e políticas do processo de abolição
não permitiram a passagem do escravo ao cidadão, como também não
promoveram a integração do negro na sociedade de classes.
8
Seguindo a
proposta de Silvio Romero, a competição promovida pelo Estado com a
mão-de-obra de centenas de milhares de imigrantes europeus empurrou
o negro para a margem da sociedade burguesa. Nessa perspectiva, explica
Ramatis Jacino (2012, p. 188), historiador, professor e militante do
movimento negro:
A base da cidadania da sociedade burguesa, que no Brasil emerge
do nal do período escravista, é o trabalho que, não obstante, foi
negado ao ex-escravizado e seus descendentes. Ao dar um término
legal à escravidão, teoricamente todos se tornaram cidadãos com
os mesmos direitos e deveres, mas os impedimentos criados para
que os negros tivessem acesso ao trabalho zeram se estender ao
capitalismo em ascensão as diferenças estamentais do escravismo.
Considerando o nível de interdependência das várias dimensões da
análise histórica, infere-se que a marginalização econômica gerou
a marginalização social, cultural e política de parte signicativa da
população brasileira, promovendo sua invisibilidade, no futuro e
no passado, sempre reescrita à luz das concepções do presente.
Segundo Elide Bastos (2002), o programa de investigação proposto por Fernandes não se limita à questão
racial. Partindo da hipótese de que a condição do negro após a abolição estaria diretamente relacionada à
peculiaridade da revolução burguesa no Brasil, que implicou na exploração da mão de obra e nas restrições no
acesso dos negros ao mercado formal de trabalho, Fernandes desloca o debate sobre a questão racial do âmbito
da cultura para o da estrutura e organização social (BASTOS, 1991). No início dos anos 60, esse programa
inuenciou os trabalhos de Fernando Henrique Cardoso (2003) e de Octávio Ianni (1988), colaboradores de
Fernandes na “Escola sociológica paulista”.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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Numa pesquisa publicada em 1951, também para a UNESCO, o
antropólogo espanhol Juan Comas trata dos inúmeros mitos raciais que
passam a assombrar o mundo no período do pós-Holocausto (COMAS,
1951). A esses mitos, Fernandes acrescentou o mito da democracia racial,
que não poderia coexistir com a segregação econômica e social dos negros.
Pelas análises de Octavio Ianni (1987), os mitos dominantes
visam à preservação de uma estrutura social que garante os interesses
materiais e políticos de determinados setores da sociedade. Nesse sentido,
o estudo cientíco das relações raciais no Brasil contribui para “[...] o
desmascaramento de padrões que obstam o processo da sociedade em
direção da democracia.” (IANNI, 1987, p. 292).
Num célebre ensaio, a historiadora Emília Viotti da Costa (2007)
avalia quais setores da sociedade brasileira seriam beneciados com o mito
da democracia racial. Em suas reexões, Costa destaca as relações entre
esse mito racial e a cultura ou ideologia do “branqueamento”: o Brasil
superaria todos os seus problemas raciais através da miscigenação. As
poucas alternativas de ascensão social do negro se restringiriam àqueles
que tivessem a pele o mais branca possível. Essa democracia racial não
impediu a sustentação do princípio racista da superioridade dos brancos
sobre os negros, como o fez em seus trabalhos o “mulato” (negro de pele
clara) Nina Rodrigues. Desse modo, o mito beneciaria os brancos em
geral e a parcela dos negros que cumprisse as exigências dessa ideologia do
“branqueamento”, além de dicultar a criação de uma unidade no interior
do movimento negro.
No início de um artigo publicado em 1977, numa revista de grande
circulação, Beatriz Nascimento, historiadora, professora, poeta e militante
do movimento negro, denuncia a ambiguidade dessa democracia racial:
Certa vez, em Salvador, conversava com um jovem chefe de família
que tentava convencer-me de como a Bahia era o maior centro
de tolerância racial do mundo. Ao justicar tal pretensão para o
seu estado, mostrou-se um adepto apaixonado da miscigenação e
recorreu ao seu exemplo. Mostrou-me seus dois lhos pequenos,
ambos mulatos, mas com diferenças de tonalidade de pele, e disse:
“Está vendo? Este aqui saiu quase como eu (referindo-se ao menino
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 41
mais escuro), mas este já saiu melhor; quase louro”. Dizendo isto,
enquanto eu e o primeiro menino olhávamos atônitos para ele,
concluiu: “Deste jeito o negro vai desaparecendo e não teremos
conito racial como nos Estados Unidos”. (NASCIMENTO,
2006, p. 106).
Estudiosa das pesquisas de Fernandes e de toda a “Escola sociológica
paulista”, Lélia Gonzalez, antropóloga, professora, pesquisadora e
militante do movimento negro tornou-se uma fervorosa crítica do mito da
democracia racial. Em 1987, numa das suas participações na Subcomissão
da Constituinte Negros, Populações Indígenas, Pessoas Decientes e
Minorias, Gonzalez analisa:
Então é que vamos perceber que nesse período que vem de 1888
para cá as grandes promessas da campanha abolicionista não se
realizaram; aquelas promessas de que o negro pode ser doutor, que
pode ser isto e aquilo, que pode pretender a uma ascensão social,
nada disso aconteceu. (...) Não é por acaso que essa população
acabou por ser atirada na periferia do sistema de produção que
se instalou no país. (...) O negro deixava de ser escravo para se
transformar em proletário, mas só que ele não teve espaço para isto,
porque vieram os italianos, vieram os japoneses, vieram os alemães,
vieram os poloneses, e ele cou à margem. Nós estamos brigando,
hoje, é para sair dessa marginalidade. (BRASIL, 1987, p. 65).
concluSõeS
Como armou Roger Bastide (1953) na carta aberta a Guerreiro
Ramos, denitivamente, a pesquisa coordenada por ele e Florestan
Fernandes sobre a situação dos negros em São Paulo não sucumbiu aos
interesses da UNESCO. Com o intuito de questionar e de combater o
racismo cientíco no pós-Holocausto, a instituição apostava na tese
endossada por Gilberto Freire, Arthur Ramos, Donald Pierson e outros
sociólogos sobre a democracia racial praticada no Brasil. Atrelado ao
processo de miscigenação e à ideologia do “branqueamento”, esse mito
racial não ameaçava acabar, apenas, com os conitos raciais, mas com a
própria existência do povo negro. Na estrutura de poder estabelecida após
Marcelo Augusto Totti (Org.)
42 |
a abolição, esse mito garantia os interesses de determinados setores da
sociedade brasileira, especialmente, da aristocracia branca.
Nas palavras de Fernandes (1989, p. 7), as pesquisas da “Escola
sociológica paulista” ousaram questionar, no âmbito da academia, a falsa
consciência fomentada por uma propaganda tenaz e alimentada por
estudiosos “[...] que deveriam ter uma posição crítica em relação ao nosso
dilema racial.”. Travada a batalha teórica na academia, restava trabalhar
para o fortalecimento do movimento negro. A militância do sociólogo
junto ao meio negro se deu de várias maneiras. Além do diálogo constante
com algumas lideranças, como Abdias do Nascimento e José Correia Leite,
dos artigos para a grande imprensa, das palestras em inúmeras instituições e
dos prefácios e apresentações dos livros de intelectuais do movimento, logo
após a Pesquisa UNESCO, Fernandes passou a frequentar e a colaborar com
a Associação Cultural do Negro (SILVA, 2012). Ao desvendarem o mito
da democracia racial, as pesquisas de Fernandes e dos seus companheiros
da “Escola sociológica paulista” contribuíram na formação intelectual e
política de grandes pensadoras e pensadores do movimento negro.
Num artigo publicado em meados dos anos 70, Eduardo Oliveira e
Oliveira reconhece o comprometimento dos movimentos sociais no meio
negro brasileiro, já nas primeiras décadas do século XX, com a “congregação
de todos os negros do Brasil” (1974, p. 72). Esse foi, justamente, um dos
objetivos de Fernandes em suas pesquisas e em sua militância. Segundo o
sociólogo, mais do que estimular uma “consciência de situação”, ou de lutar
pela ascensão a tudo o que lhe foi proibido ou negado, “o negro precisa
lutar para ser aceito como negro, preservar sua concepção do homem e sua
herança cultural” (FERNANDES, 1972, p. 195).
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S : -
   
 (1975-1995)
Paulo Henrique Martinez
1
Na concepção destas páginas ocorreu-me tomar de empréstimo ao
professor Caio Navarro de Toledo a ideia e a expressão “obra-documento
(TOLEDO, 1998, p. 61). A expressão é utilizada aqui para designar um
conjunto de escritos e livros de Florestan Fernandes que notadamente,
a partir de 1975, conferem fundamento ao projeto editorial da Coleção
Grandes Cientistas Sociais, publicada entre 1978 e 1990, pela Editora
Ática, de São Paulo. Entendida nestes termos, a obra-documento adquire
o sentido de uma hipótese de investigação a ser aprimorada e desenvolvida.
Os debates motivados pelo centenário de nascimento de Florestan
Fernandes (1920) nos remetem a 1986. Em maio daquele ano, o curso
de Ciências Sociais da Faculdade de Filosoa e Ciências da Universidade
Estadual Paulista (UNESP), no campus de Marília, promoveu a Jornada
de Estudos Florestan Fernandes, que contou com a presença e participação
Professor na Universidade Estadual Paulista, Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de
Assis.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p47-68
Marcelo Augusto Totti (Org.)
48 |
do próprio sociólogo. Foi uma ampla e extensa programação dedicada
ao conjunto de seu trabalho desenvolvido na Universidade de São Paulo,
da trajetória de vida, da obra sociológica, da reexão política sobre a
sociedade brasileira e o pensamento marxista. Posteriormente os trabalhos
apresentados foram reunidos em livro, organizado pela professora Maria
Ângela D’Incao: O saber militante, publicado em 1987.
O livro conheceu duas edições. Hoje, encontra-se disponível em
bibliotecas universitárias e particulares e nas livrarias virtuais, visto que as
edições são já antigas. A Jornada de 1986 e o livro que dela resultou são
marcos para quem queira conhecer e estudar a obra de Florestan Fernandes,
tomada em conjunto, em momentos de ensino, pesquisa e de reexão
teórica, pensamento político e demais temas abordados em sua profícua
bibliograa, artigos, textos avulsos, correspondência, pronunciamentos e
propostas parlamentares (1987-1995), atuação na Assembleia Constituinte
(1987-1988) e na revisão constitucional (1993), entre outros.
No decorrer dos anos O saber militante adquiriu caráter introdutório,
de apresentação e de balanço de seu trabalho intelectual, universitário
e extrauniversitário. Os estudos sobre a obra de Florestan Fernandes
multiplicaram-se desde então e existe hoje numerosa e diversicada
bibliograa abordando questões, períodos e análises de suas ideias e
interpretações, nas dimensões teórica, empírica e prática. A reunião dos
artigos e ensaios de autoria de ex-alunos e colegas e os debates com jovens
professores e estudantes na universidade pública, durante a Jornada de
Estudos, foram também marcos para a nova etapa, tanto na biograa
quanto na militância de Florestan Fernandes.
Em maio daquele mesmo ano, Florestan deu início à sua campanha
eleitoral, bem sucedida, para o Congresso Nacional e que se reuniu
também como Assembleia Constituinte, a partir de 1987. Partira para a
contestação e o enfrentamento da misticação política da autodenominada
Nova República, empossada em março de 1985. Em 1990, Florestan
Fernandes foi reeleito para segundo mandato como deputado federal, na
legenda do Partido dos Trabalhadores (PT) de São Paulo, para a legislatura
encarregada pela própria Constituição de fazer a revisão do texto
constitucional, em 1993. O término deste mandato legislativo, em janeiro
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 49
de 1995, foi também o encerramento de um período bastante destacado
em sua militância política e partidária, iniciada ainda quando estudante,
em oposição à ditadura do Estado Novo (1937-1945).
Este meio século de vida adulta, familiar e prossional em que
Florestan dedicou com maior e menor intensidade tempo e energia aos
movimentos político-partidários, foi lembrado pelo professor Octavio
Ianni, como uma “época peculiar da vida”. O período correspondeu ao das
tensões e rivalidades – política, econômica, ideológica e militar – entre as
potências vencedoras da II Guerra Mundial, a polarização entre Estados
Unidos e União Soviética, que cobriu em escala mundial a segunda
metade do século XX com o manto da Guerra Fria. Foi um momento
em que os posicionamentos políticos estiveram condenados a atuar em
defesa da ordem ou contra a ordem social, econômica e ideológica. Foi
igualmente um importante período em mudanças históricas e culturais
no Brasil, notadamente, entre 1945 e 1964. Na esfera da política nacional
os brasileiros suportaram duas ditaduras sangrentas: a do Estado Novo
(1937-1945) e a militar (1964-1985) (IANNI, 1998, p. 190).
Florestan Fernandes tomou posição de crítica e oposição aos
dois regimes ditatoriais. Em ambas as situações enfrentou o dilema da
preponderância de dedicação individual no âmbito da universidade ou
das rotinas político-partidárias. Na contestação à ditadura encabeçada por
Getúlio Vargas, ingressou nas leiras do Partido Socialista Revolucionário
(PSR), de orientação trotskista. Após o término do regime do Estado
Novo, restava-lhe tomar a decisão do rumo a ser seguido. Optou pela
formação intelectual e a atuação como professor na Universidade de São
Paulo (USP). Após a sua aposentadoria compulsória na USP, ditada pelo
regime militar, em abril de 1969, perseverou em seu ofício, ao longo da
década de 1970, em universidades estrangeiras – Toronto (1969-1972) e
Yale, nos Estados Unidos (1977) – e no Sedes Sapientiae (1976-1977) e
na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo (1978-1986). A
tensão entre intelectual e cidadão, o dilema vida universitária e partido
político, reapareceram em cena em 1986, quando, já acolhido na UNESP,
em Marília, liou-se ao PT para disputar a eleição dos deputados federais
constituintes. Desta vez, fazia a opção pelo partido. Nos oito anos em
Marcelo Augusto Totti (Org.)
50 |
que esteve na Câmara dos Deputados, entre 1987 e 1995, perseverou em
seus esforços de aproximação do conhecimento fundamentado e rigoroso
e suas contribuições ao desao de empreender as transformações políticas
e sociais dentro da ordem, promovendo uma revolução democrática no
país, e contra a ordem, descortinando oportunidades e caminhos para a
revolução e o engate da transição socialista no Brasil.
No primeiro semestre de 1995, Florestan retirou-se na expectativa
de retomar seus projetos intelectuais, particularmente, a pesquisa sobre
sírios e libaneses em São Paulo, da qual dispunha dos dados coletados
anteriormente e nunca encontrara a oportunidade desejada para a elaboração
e a redação das análises. Este foi o projeto intelectual ao qual pretendia se
dedicar após a experiência de oito anos no Congresso Nacional. Para tanto
providenciara a instalação de sua biblioteca e de seus arquivos de trabalho,
próximo ao local onde residia. Pode-se ter uma dimensão do alcance e
do signicado deste ato nas observações de sua lha, Heloísa Rodrigues
Fernandes, quando da transferência da biblioteca, arquivos e materiais de
trabalho de Florestan, em agosto de 1996, para a Universidade Federal de
São Carlos, no Estado de São Paulo (FERNANDES, 1998, p. 47-52). Havia
toda uma preparação para o novo momento, mas o agravamento de sua
condição de saúde e o tratamento médico impediram que desempenhasse
a tarefa. Tarefa que ele mesmo se propunha a concluir, tantas vezes referida,
em inúmeras ocasiões, entrevistas, conversas e palestras. Infelizmente,
embora pudesse ser o momento ideal, Florestan Fernandes não teve tempo
suciente para a realização do projeto. O agravamento de sua condição de
saúde caminhou mais rápido.
Fiz menção, resumidamente, ao ano-marco de 1986 e depois para
que se tenha a dimensão assumida pela Jornada de Estudos e do livro O
saber militante nos anos seguintes. O ano-marco também se impõe pelo
signicado na cronologia da trajetória individual e da militância política
de Florestan Fernandes. O momento de entrada em campo aberto,
dedicando-se intensa e constantemente a atividades políticas que foram
o desdobramento, nessa sua etapa de vida, de uma contínua atividade
intelectual, voltada para o que o professor Paulo Silveira identicou
como a dinâmica atuação de um publicista (SILVEIRA, 1987, p. 288). A
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 51
elaboração analítica e criativa de recorrer a textos curtos e comunicativos,
escritos tanto para jornais de grande circulação quanto para a imprensa
alternativa, revistas, entrevistas, conferências, debates, seminários, reuniões
políticas e palestras. A ampla, diversicada e rica atividade intelectual esteve
voltada, prioritariamente, ao debate de temas contemporâneos. Fosse no
âmbito da política internacional, como o imperialismo e a hegemonia
norte-americana, o fascismo e a revolução dos Cravos, em Portugal, a
revolução em Cuba, na América Central e na América do Sul, os desaos
do socialismo na Europa e na China. Fosse no âmbito da política brasileira,
como a crise da ditadura, a campanha pela anistia dos perseguidos, presos
e exilados políticos, a organização dos partidos, enm, o calendário e a
agenda política daquilo que a ditadura tinha o cinismo e a petulância
de classicar como “abertura democrática” e que sempre foi rejeitada e
criticada dura e diretamente pelo sociólogo Florestan Fernandes.
1986: mIlItâncIa polítIca
Feita essa demarcação no tempo, é preciso esclarecer que concentro
minhas observações em redor de 1986, sendo possível identicar o início
daquela nova etapa caracterizada pela militância política em campo aberto.
Considero oportuno pensar o período imediatamente anterior, entre 1978
e 1986. Neste intervalo de tempo Florestan Fernandes desenvolveu intensa
atividade intelectual e crescente atividade política e militante de crítica das
ações da ditadura, em defesa da democracia, da politização e da organização
da sociedade, do movimento operário, do movimento negro e da massa
popular. Quem examinar o conjunto de escritos e livros publicados nos
anos nais da década de 1970 vai constatar a atividade intelectual e política,
notadamente no campo editorial e do ensino em cursos livres, na USP e
fora dela, e de pós-graduação na PUC. Uma dedicação que tomou impulso
com a publicação de A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica, em 1975, de um lado, e frente às artimanhas políticas que
compunham a “abertura democrática” da ditadura militar, de outro.
Há interesse e relevância neste período no projeto editorial de largo
signicado na ação política e educacional de Florestan Fernandes. Foi a
Marcelo Augusto Totti (Org.)
52 |
concepção, a coordenação e o início da publicação da Coleção Grandes
Cientistas Sociais. Em 1978, saiu o volume 1, referente ao sociólogo francês
Émile Durkheim, organizado pelo professor José Albertino Rodrigues. Os
volumes da Coleção Grandes Cientistas Sociais traziam na quarta capa a
seguinte apresentação:
Textos básicos de Ciências Sociais, selecionados com a supervisão
geral do Prof. Florestan Fernandes. Abrangendo seis disciplinas
fundamentais da ciência social – Sociologia, História, Economia,
Psicologia, Política e Antropologia – a coleção apresenta os
autores modernos e contemporâneos de maior destaque mundial,
focalizados através de introdução crítica e biobibliográca, assinada
por especialistas da universidade brasileira. A essa introdução
crítica segue-se uma coletânea dos textos mais representativos de
cada autor. (RODRIGUES, 1978, 4ª Capa).
Posteriormente, houve a incorporação de mais uma disciplina,
a Geograa, quando foram publicados três autores estrangeiros: Ratzel,
Reclus e Sorre. Vale o registro de que apenas uma mulher integrou a
relação de grandes cientistas sociais publicados. Na área de Psicologia, o
volume 32 foi dedicado a Melanie Klein (1882-1960). Já na organização e
na coorganização dos volumes editados houve a participação de quatorze
professoras e pesquisadoras, nas seis disciplinas inicialmente denidas.
2
O
número da participação de mulheres correspondeu a menos de um quarto
dos títulos publicados na Coleção. As coletâneas dos respectivos volumes
proporcionaram aos leitores, dentro e fora das universidades, acesso a
vários autores e textos ainda inéditos, em português e no Brasil, além de
estudos críticos sobre o conjunto de suas obras. Caberia para efeito de
comparação um cotejo desta Coleção com a anteriormente publicada pela
editora Abril, durante a década de 1970 e suas sucessivas reformulações
editoriais, nas décadas seguintes, os volumes da coleção Os pensadores.
Convém lembrar que, em 1971, a editora Zahar havia lançado o livro Os
Foram elas: Antropologia (1): Eunice Ribeiro Durham. Economia (1): Lenina Pomeranz. História (2): Maria
Odila Leite da Silva Dias e Walnice Nogueira Galvão. Política (3): Anna Maria Martinez Corrêa, Marta Elena
Alvarez e Paula Beiguelman. Psicologia (3): Jacqueline Nadel-Brulfert, Maria José Garcia Werebe e Rachel
Rodrigues Kerbauy. Sociologia (4): Bárbara Freitag, Heloísa Rodrigues Fernandes, Maria Isaura Pereira de
Queiróz e Marialice Mencarini Foracchi.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 53
precursores das ciências sociais, organizado por Timoth Raison, publicado
dois anos antes, na Inglaterra. O livro contém 24 biograas intelectuais,
sendo Beatrice Webb, a única mulher, referida no capítulo “Os Webbs”,
ao lado do marido, Sidney. Os autores selecionados são da Sociologia e
da Antropologia, dez dentre eles guram na Coleção Grandes Cientistas
Sociais: Comte, Durkheim, Engels, Malinowski, Mannheim, Marx,
Pareto, Radclie-Brown, Simmel e Weber.
Em 1990 a editora Ática encerrou a Coleção coordenada por
Florestan Fernandes. O lançamento do volume 60, dedicado a Nikolai
Bukhárin, contendo textos de Economia desse pensador marxista, líder
e dirigente da Revolução Russa, perseguido e morto sob o stalinismo
na década de 1930, foi o término do projeto editorial. Curiosamente o
destino da Coleção que terminava no ano intermediário entre a queda do
muro de Berlim (1989) e a dissolução da União Soviética (1991), parecia
denunciar a incompreensão e a relativa aceitação que sua proposta editorial
continha e sustentara ao longo dos doze anos em que seus volumes foram
publicados, tendo alguns deles conhecido reedições.
Os 60 volumes possuem identidade editorial e pedagógica precisa e
bem denida. Tendo como nalidade o suporte didático para disciplinas
e cursos de ensino universitário, a Coleção Grandes Cientistas Sociais
constitui um seguro posto de observação para os entrelaçamentos entre
vida política, atividade intelectual e trajetória biográca do Florestan
Fernandes. Vistos em conjunto, os volumes da Coleção cumprem um
papel singular. Formam uma espécie de porta giratória, que dá vida e que
permite o acesso tanto para a militância política quanto para o pensamento
sociológico de Florestan Fernandes, que operavam nesse projeto editorial.
Cabe registrar ainda um núcleo de insinuações e de preocupações
iniciais, a partir desta hipótese de trabalho. Hipótese que contém signicado
biográco e elementos para a compreensão da saída da crise intelectual e
existencial, enfrentada pelo indivíduo e o sociólogo. Uma crise detonada
em ns de 1972 quando regressou denitivamente ao Brasil, depois de
uma temporada de três anos trabalhando na Universidade de Toronto,
no Canadá. A fundamentação para a validação dessa hipótese quanto ao
signicado da militância política e intelectual de Florestan Fernandes, nos
Marcelo Augusto Totti (Org.)
54 |
anos compreendidos entre 1978 e 1986, encontra ressonância em alguns
pontos, ainda que não exaustivamente, no ensaio introdutório – “Mills, o
sociólogo artesão” – que a professora Heloísa Rodrigues Fernandes escreveu
para o volume 48 da Coleção Grandes Cientistas Sociais, dedicado ao
sociólogo norte-americano Charles Wright Mills (1916-1962).
Voltei-me para essa introdução, um pouco inadvertidamente,
fazendo a leitura de um pequeno livro de Florestan Fernandes, muito pouco
lembrado, raramente citado e nunca referido em listas de expectativas e de
reedições. Trata-se de A natureza sociológica da sociologia, publicado em 1980,
resultado de apontamentos de aulas do curso ministrado no programa de
pós-graduação em Ciências Sociais da PUC, durante o primeiro semestre
de 1978. Os capítulos que compõem o livro tomam a forma de um amplo
ensaio crítico e interpretativo da trajetória da sociologia, desde o século
XIX, até o momento da sua redação. Curiosamente, ao longo de todo
o livro, em alguns momentos mais, em outros menos, chama a atenção
do leitor a incidência que a expressão “imaginação sociológica” conheceu
nessas páginas. A expressão adquire tal presença que acaba por converter-se
em palavra-chave na compreensão do ordenamento tanto das aulas quanto
da compartimentação dos capítulos. A expressão nos remete ao título do
livro de Charles Wright Mills, A imaginação sociológica, publicado em
1959, no qual o autor fez um ajuste de contas intelectual com a sociologia
norte-americana.
O curso na PUC e o livro A natureza sociológica da sociologia guardam
algo desse espírito e o teor de um ajuste de contas político do professor e
sociólogo paulista com a sociologia no Brasil e com sociologia internacional.
Há na nota explicativa, no início do livro, algumas observações que situam
o leitor e são elucidativas para aquilo que estamos pensando nos debates
sobre o centenário, momentos da biograa e da militância política do
Florestan Fernandes. A primeira delas é o seu compromisso em empreender
aquilo que tantas vezes chamou e condensou na expressão “sociologia
crítica”. Uma sociologia que incorporasse o nível de engajamento da Nova
Esquerda, um movimento político bastante difuso, nos Estados Unidos e
na Europa Ocidental, e o engajamento da sociologia marxista das décadas
de 1960 e 1970. A nota explicativa nos esclarece que os temas abordados no
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
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pequeno volume A natureza sociológica da sociologia, já haviam assombrado
as intenções reexivas de seu autor, em 1962, quando da publicação do
livro A sociologia numa era de revolução social, naquele mesmo ano, mas não
o fez. Posteriormente, sob nova tentação, quando da segunda edição do
livro, em 1976, ressurgiu a intenção e, novamente, não foi concretizada.
Em leitura crítica dos prefácios escritos por Florestan Fernandes
para as respectivas edições de A sociologia numa era de revolução social, a
professora Élide Rugai Bastos chamou a atenção para três pontos principais
e comuns em cada um deles, apesar do intervalo de tempo compreendido
entre 1962 e 1976. Em primeiro lugar, a preocupação com a singularidade
social do Brasil. Em segundo lugar, atenção ao papel do intelectual e suas
tarefas, diagnósticos e soluções para os problemas desta sociedade. Por
m, a retomada das “contribuições universais do pensamento, criticando-
as, utilizando-as na operacionalização dos diagnósticos e na formulação
de ‘saídas’ políticas”. Em sua avaliação, nestes três pontos, Florestan
Fernandes, “impõe-se o papel a ser desempenhado pelo sociólogo: o de
crítico e inovador das instituições” (BASTOS, 1998, p. 153-154).
1978: curSo na puc
Ao oferecer o curso na PUC, Florestan encontrara a oportunidade
de pensar sobre o tema. Criou-se também uma situação nova e que ele
nos condencia na referida nota explicativa e no prefácio de A natureza
sociológica da sociologia. O livro nascera das aulas, é fato. Contudo, ao
preparar os respectivos apontamentos, já tinha em vista a elaboração deste.
Florestan faz uma série de considerações sobre o insucesso do projeto,
os problemas pedagógicos daí decorrentes, mas o curso fora realizado na
íntegra, atendera ao cronograma de trabalho estabelecido, a redação e a
publicação do livro.
Basicamente o que o Florestan propõe em A natureza sociológica
da sociologia, sinalizando as suas preocupações, é que o curso e o livro
foram estruturados em torno de uma polaridade. Uma tensão permanente,
formada por um polo de dominação social e por um polo de revolução
social, em torno dos quais gravitaram autores, análises e obras das ciências
Marcelo Augusto Totti (Org.)
56 |
sociais, em geral, e do pensamento sociológico mundial e nacional, em
particular. Uma polaridade que tomou corpo no século XIX, com Augusto
Comte, como a referência inicial, no polo dominação, e com Karl Marx
e Friedrich Engels, no polo revolução (RAISON, 1971). Esta polaridade
seria constante, teria caráter dinâmico e antagônico, mas também caráter
de interação e de diálogo, em alguns momentos, em determinadas obras,
em distintos autores. Quando Florestan desenvolve este raciocínio, pensa
especicamente no desao da sociologia, do pensamento sociológico de
sua época, o m da década de 1970. Momento em que o pensamento
sociológico acumulava duzentos anos de experiências em debate, ensino,
investigação, desenvolvimento e aplicabilidade de técnicas sociais que
cobriam um amplo quadro social, da assistência ao planejamento, entre os
quais meio século de desaos e de inspiração no equacionamento teórico
do socialismo revolucionário (FERNANDES, 1980).
A Revolução Russa (1917) e as experiências revolucionárias ao
longo do século XX – Iugoslávia, China, Cuba, Vietnã – teriam lançado
um novo desao e a necessidade de um novo esforço para aquilo que
Florestan Fernandes chamou de “uma imaginação sociológica criadora
(FERNANDES, 1980, p. 103). Esta teria o objetivo de suplantar a
sociologia do polo dominação, ou a sociologia burguesa, identicada
com os momentos sociais em que a burguesia emerge como classe social
revolucionária, como classe social dominante e, nalmente, como classe
social contrarrevolucionária, diante da experiência da luta de classes e dos
objetivos do socialismo. Este seria o desao do pensamento sociológico no
nal dos anos 1970, abrir as comportas para um pensamento sociológico
de novo tipo, voltado para a construção do futuro. Florestan Fernandes,
então, adverte: “Nesse amplo processo, o pensamento sociológico ligado
à polaridade revolução ganhou alguma densidade, mas ele não foi alvo de
um esforço deliberado e concentrado de ‘construir uma nova sociologia’”
(FERNANDES, 1980, p. 77).
Eis aqui a tarefa intelectual e política, da qual ele se auto investira,
nos últimos anos da década de 1970, e que adquiria materialidade nas
duas coleções editoriais das quais foi coordenador desde aquele período.
Uma, na Editora Hucitec, sobre o movimento e o pensamento socialista
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
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– série Linha de frente, em pequeno formato, e Pensamento socialista –
com a edição de obras de pensadores marxistas, como Lênin e Kautsky,
por exemplo. Outra, foi a referida Coleção Grandes Cientistas Sociais,
na Editora Ática. Certamente, Florestan valeu-se da experiência pessoal
adquirida na Editora Flama, para a qual traduziu e redigiu a introdução ao
livro de Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política, publicado
em 1946. Criada e alinhada aos dirigentes do PSR, a Editora tinha em
seu catálogo obras cientícas, literatura e autores marxistas, como Rosa
Luxemburgo, Kautsky, Bukhárin, além de Marx e Engels. Estes integravam
a série Pensamento e Ação. Vale lembrar que este título seria invocado por
Florestan Fernandes, em 1989, quando publicou Pensamento e ação: o PT
e os rumos do socialismo.
As primeiras páginas de A natureza sociológica da sociologia trazem a
convidativa observação: “[...] não se trata de uma sociologia crítica e militante
ligada ao funcionamento de um partido revolucionário ou incrustada em
movimentos revolucionários in ux, a sociedade brasileira revelou-se débil
demais para tal transformação institucional.” (FERNANDES, 1980, p.
17). Vemos aqui uma frustração, a decepção, menor com a sociologia, em
geral, e maior com a própria estrutura social e a sociologia emanada do
polo revolução. Embora a realidade da sociedade brasileira fosse instrutiva
para nutrir esse processo intelectual, ela mesma desponta nesta passagem
como evidência a mais na busca de fundamentação empírica da hipótese
em elaboração nestas páginas.
Esta atenção conferida por Florestan Fernandes às relações entre
pensamento socialista revolucionário e demais esferas da vida intelectual
e cultural encontra em debates sobre a autonomia da criação artística e
o papel de artistas, intelectuais, escritores e cientistas um elucidativo
caminho. Não apenas ao sondar estas relações, mas também as expectativas
e potencialidades que abrigam, o seu fracasso ou sucesso, pleno ou
parcial, a elaboração de testemunhos e de registros de procedimentos
adotados e sugeridos, a formulação autônoma das análises e a busca de
interpretações próprias diante da multiplicidade de vozes, temas, métodos,
obras, documentos presentes nas articulações possíveis e inventivas no
Marcelo Augusto Totti (Org.)
58 |
amplo escopo dos grandes cientistas sociais (FACIOLI, 1985, p. 11).
3
O
historiador Carlos Guilherme Mota destaca a frequência e abundância de
reexões desta natureza na obra de Florestan Fernandes: “Não creio que
outro cientista social ou escritor tenha reetido tanto e tão compulsivamente
sobre seu próprio papel institucional e político e sobre a signicância de
sua disciplina ao longo de nossa História.” (MOTA, 1998, p. 12).
Os conteúdos e os propósitos de A natureza sociológica da sociologia
colocam o livro e as tarefas já referidas na linha de frente da sociologia
crítica, explicitamente na perspectiva do materialismo dialético e do
materialismo histórico. Este debate e a Coleção Grandes Cientistas Sociais
foram lembrados pelo professor José Paulo Netto, no texto introdutório que
escreveu para o livro publicado pela Editora Expressão Popular, reunindo as
duas introduções que Florestan Fernandes redigiu aos volumes da Coleção
dedicados ao pensamento político de Lenin (volume 5) e ao pensamento
histórico e ao materialismo histórico, de Karl Marx e de Friedrich Engels
(volume 36). As duas introduções foram reunidas e publicadas sob o título
Marx, Engels, Lenin - a história em processo.
O professor José Paulo Netto colocou em evidência a pertinência
das introduções escritas por Florestan Fernandes aos referidos volumes no
que diz respeito ao conhecimento empírico e teórico, político, histórico e
sociológico dos três autores dos textos selecionados. Podemos e devemos ir
mais fundo e mais longe, em busca da compreensão de sentidos e signicados
do empreendimento editorial do sociólogo paulista. Para além do debate
político de mobilização social dos partidos, das greves, da crise econômica,
do terrorismo de direita, das denúncias de graves violações de Direitos
Humanos, da tortura, dos desaparecimentos de opositores e de presos
políticos, a atividade de Florestan Fernandes, envolveu tanto a participação
em atos e reuniões políticas quanto esta intensa atividade editorial.
Na segunda parte do livro de André Breton, Por uma arte revolucionária, Valentim Facioli utiliza em epígrafe
ao seu texto “Intelectual: democracia e cidadania” uma longa citação de Florestan Fernandes, sem indicação da
fonte: “Na verdade o essencial é a tensão do escritor com o mundo que lhe é oferecido para realizar-se como
criador de cultura, como ser humano e como cidadão. Essa tensão desloca uma grande massa de escritores para
combates análogos aos que são travados pelos de baixo. Eles também precisam civilizar a sociedade civil para
conquistar um mínimo de autonomia relativa na atividade criadora. Por este lado, os escritores podem ser (e
efetivamente o são) um fermento explosivo das comoções que sacodem a sociedade civil e que estão conduzindo
à sua implosão inexorável. Nada poderá evitá-la.” (grifos no original) (FACIOLI, 1985, p. 123).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 59
Seria suciente lembrar que em 1980, quando foi publicado A
natureza sociológica da sociologia, integrando a Coleção Primeiros Passos,
da Editora Brasiliense, apareceu o pequeno livro O que é revolução. Outros
livros de Florestan Fernandes contendo ásperas críticas e contestação
frontal à ditadura militar foram editados, um pouco antes, um pouco
depois, sendo o último rebento desse conjunto de diversicadas iniciativas
intelectuais – artigos na imprensa, conferências, entrevistas – o livro Que
tipo de República?, publicado em 1986. A cristalização desse período de
militância política e da biograa intelectual, de sociologia crítica, ocorre
no contexto de sua liação ao Partido dos Trabalhadores e da campanha
eleitoral para o Congresso Constituinte. Naquele mesmo ano, houve
o lançamento do volume 58 da Coleção Grandes Cientistas Sociais,
organizado e apresentado pelo professor Octávio Ianni, e dedicado ao
pensamento sociológico de Florestan Fernandes. Anteriormente, na
passagem de 1985 para o ano seguinte, a editora Jorge Zahar lançara em
sua coleção “Brasil, os anos de autoritarismo”, o volume Nova República?,
no qual Florestan fazia a crítica do processo político da chamada transição
democrática, no período compreendido entre a rejeição da emenda das
Diretas-já, em abril de 1984, a eleição indireta, pelo colégio eleitoral, de
Tancredo Neves e José Sarney para a presidência e a vice-presidência da
República, e os primeiros meses do governo Sarney, em 1985.
Em A natureza sociológica da sociologia encontramos vários sinais das
diretrizes intelectuais e editoriais presentes na Coleção Grandes Cientistas
Sociais. Quero lembrar a pertinência da observação compartilhada pelo
professor Marcelo Augusto Totti, em diálogo recente, quanto aos saberes e
fazeres de uma sociologia pública, a partir do destaque dado por Florestan
Fernandes à sociologia e à estatística no volume Lênin: Política, e que
nos sugere pensar a sociologia empírica. A menção ao artigo de Lênin,
publicado em 1917, no volume 5 da Coleção, por exemplo, ilumina
aquilo que Florestan vislumbrou em A natureza sociológica da sociologia,
remetendo-nos à sociologia do bloco soviético, particularmente, da União
Soviética. Florestan viu com bons olhos a experiência sociológica que estava
surgindo no mundo socialista e no mundo soviético, ainda que tenha feito
inúmeras observações críticas quanto aos desaos, insuciências e vínculos
Marcelo Augusto Totti (Org.)
60 |
com o passado. Em síntese, Florestan destacou o espírito da exposição
e da abordagem de Lênin sobre as estruturas e os dinamismos sociais,
(FERNANDES, 1978, p. 22-23).
Estes três textos, o derivado do curso na PUC e as duas introduções
aos volumes 5 e 36, respectivamente, são certamente, os últimos textos de
reexão teórica e densidade interpretativa no âmbito da sociologia crítica,
antes de Florestan Fernandes postar-se inteiramente a serviço da ação
política. Rompia-se o “desterro intelectual”, que lhe fora imposto com a
aposentadoria compulsória na USP, em 1969, pela produção de publicista,
de análises à queima-roupa dos acontecimentos sociais e políticos, entre
as décadas de 1970 e 1990 (ARRUDA, 2005, p. 9). Caio Navarro de
Toledo destacou que este período assinala também a incorporação perene
do tema do socialismo na reexão de Florestan Fernandes. Esta seguiu
balizada pela análise das lutas e dos movimentos sociais, do movimento
socialista e a revolução social, na Europa e fora dela, pensamento e ação,
teoria e política, cristalizada, por exemplo, no estudo da revolução cubana
(TOLEDO, 1998, p. 62 - 63). São Da guerrilha ao socialismo – outro livro
derivado de curso ministrado na universidade – e os escritos reunidos,
por exemplo, em Brasil em compasso de espera, A ditadura em questão, Que
tipo de República? e demais títulos, publicados regularmente até 1995. É
fato que a dimensão teórica nunca desapareceu do horizonte intelectual de
Florestan Fernandes, até porque este foi um diálogo constante, intrínseco
ao próprio desenvolvimento de seu pensamento sociológico (IANNI,
1998, p. 195-196).
Aqueles três textos compõem os últimos esforços de motivação teórica,
antes de ingressar na política partidária, à qual devotou menos tempo e
energia, e parlamentar, à qual entregou-se de corpo e alma, particularmente,
nos trabalhos das comissões e nas sessões do Congresso Constituinte e, em
seguida nos debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação
Nacional (FERNANDES, 1993). Referindo-se à Comissão de Educação,
Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados, Florestan registrou: “Nela
realizei a maioria das minhas tarefas parlamentares.” (FERNANDES,
1995, p. 5).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 61
A introdução que escreveu para o volume sobre o pensamento
político de Lenin é de 1978. O curso na PUC e o livro A natureza sociológica
da sociologia, são do primeiro semestre do mesmo ano. A redação do livro
estava concluída já no nal do semestre, o prefácio encontra-se datado em
meados dele, embora a publicação tenha ocorrido apenas em 1980. Em
seguida, houve a introdução à coletânea de Marx e Engels. A organização
deste volume fora conferida a outra pessoa e, conforme previamente
acordado com a Editora Ática, deveria conter praticamente o dobro do
número de páginas dos demais volumes da Coleção, além de traduções
de textos inéditos, sobretudo cartas. Florestan acabou assumindo a sua
organização, em substituição ao nome inicialmente programado, então, na
impossibilidade de fazê-lo. Este acaso talvez responda pelo tom cienticista
que o volume 36, Marx/Engels: História, adquiriu e que o distingue em
nossa bibliograa sobre o pensamento marxista, conforme observou o
historiador Fernando Antonio Novais, em rememoração de sua própria
experiência no grupo de jovens professores reunido para a leitura e debate
de O Capital, na primeira metade da década de 1960:
Agora, de maneira geral, todos éramos discípulos do [José
Arthur] Gianotti, pois ele trazia uma leitura original de Marx. O
Florestan até cou agastado com o pessoal do grupo, mas sempre
digo aos meus alunos que a melhor exposição que conheço sobre
o materialismo histórico é a introdução ao volume Marx/Engels:
História, na Coleção Grandes Cientistas Sociais, feita pelo
Florestan. A introdução é sua e é a melhor exposição de conjunto
do marxismo que eu conheço. Porém, ele tem aquela leitura
muito cienticista de Marx e nossa formação no grupo era mais
voltada aos problema teóricos, losócos, metafísicos. (NOVAIS,
2002, p. 127).
Em sequência e em paralelo a estes três textos de natureza teórica,
houve uma avalanche de textos curtos, espécie de segunda e de terceira
geração dos denominados “compactos críticos”, elaborados a partir dos
anos 1970, em busca da comunicação direta, ágil, objetiva e combativa. É
importante que se diga isso porque a análise sociológica que anima aqueles
três ensaios é densa, dura, contundente. São análises que apontam em
Marcelo Augusto Totti (Org.)
62 |
outras direções políticas e de forma muito enfática, clara e precisa. Torna-se
pertinente a percepção e o signicado desses textos. Quando Florestan fala
da sociologia que estava nascendo no âmbito do socialismo revolucionário,
recorre a uma expressão: sociologia concreta. A esta menção, cabe lembrar
que Heloísa Rodrigues Fernandes fez alusão a Charles Wright Mills como
cientista social prático” (FERNANDES, 1985, p. 18).
Há canais de comunicação entre estes dois sociólogos. A motivação
intelectual de Florestan Fernandes para esse momento, quando o
pensamento de Lenin converge para A natureza sociológica da sociologia.
Diz Florestan:
[...] minha tentativa persistente de enlaçar a sociologia como ciência
ao socialismo, como movimento político revolucionário (nas várias
gradações: da revolução dentro da ordem e da revolução contra
a ordem; alternativas históricas que não dependem da vontade
pessoal – eu prero a última, a ela dei minha adesão denitiva...).
(FERNANDES, 1980, p. 15).
Isto foi o que ele chamou de momento do pensamento sociológico,
no Brasil e no mundo, em que tocava à sociologia realizar tanto a crítica da
sociedade de classes do capitalismo quanto descortinar o futuro possível nas
sociedades então consideradas em transição para o socialismo. Este duplo
desao surgiu entrelaçado, algo desequilibrado, e o seu enfrentamento
não caberia apenas à sociologia gestada no mundo do socialismo. Haveria
que contar, nessa perspectiva, também com a sociologia identicada
como burguesa, no polo dominação, visto que na história que se abria ao
século XXI, as sociedades capitalistas, desenvolvidas ou não, alcançariam
semelhante patamar e haveriam de padecer o mesmo desao intelectual e
material. Voltamos a Lênin.
O dirigente russo realçou a importância da crítica e da negação,
na perspectiva da transformação do mundo, a partir da atividade política
concreta. Este é o elogio e o exemplo que Florestan foi buscar no pensamento
de Lênin. Na condição de dirigente político e revolucionário, Lênin não
sacricava os dados da realidade, não instrumentalizava os formulários,
as respostas e as enquetes. Não distorcia o material sociológico obtido
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 63
para legitimar esta ou aquela posição política, ao contrário, reelaborava
a massa de dados estatísticos. Em seu estudo sobre o desenvolvimento
do capitalismo na Rússia há uma profusão de dados, tabelas, quadros e
projeções. Lênin tinha familiaridade e destreza na utilização desse tipo de
dados, empíricos e estatísticos (FERNANDES, 1978).
Florestan coloca em evidência este compromisso e a delidade
para com a ciência. Isto signica que para falar em socialismo cientíco,
compete à ciência desempenhar um papel fundamental, seja a ciência
econômica, sejam as ciências sociais, como um todo, a sociologia, em
particular. Aqui reside o espírito que move a Coleção Grandes Cientistas
Sociais, o engate das ciências sociais na história do seu tempo, nos desaos
da situação histórica do seu tempo. Trata-se de mobilizar os economistas,
tanto a economia política clássica, quanto os críticos da economia política,
a sociologia da ordem burguesa, de Auguste Comte e de Émile Durkheim,
quanto da ordem socialista existente, de Stálin, Mao Tse-Tung, Ho Chi
Minh e Fidel Castro. E além, na crítica da ordem socialista vigente, em
nome da aceleração e do aprofundamento da transição do socialismo,
e na armação da utopia revolucionária da instauração do comunismo,
de Isaac Deutscher, Che Guevara, György Lukács e Nicos Poulantzas. O
importante estava em pensar a crítica da sociedade e em descortinar as
perspectivas de futuro. Voltamos a Wright Mills.
Florestan Fernandes e Charles Wright Mills defenderam a validade do
estabelecimento de uma agenda de trabalho da sociologia que respondesse
aos desaos de suas épocas históricas. Wright Mills referindo-se ao início
dos anos 1960, a revolução cubana e a crise vivida nos Estados Unidos
na década anterior. Florestan nos anos 1970, pensando a bipolaridade
socialismo e capitalismo, instauradora de uma bipolaridade sociológica,
a sociologia do polo da dominação e a sociologia do polo da revolução.
A valorização do pensamento político e sociológico de Lênin reside nas
atividades intelectuais contestatórias deste dirigente da Revolução Russa.
Contestatórias no sentido de um enfrentamento da política concreta e o
apreço pelas atividades intelectuais no sentido de que há rigor cientíco, há
o controle e a apreciação objetiva dos dados, mais até, há uma observância,
Marcelo Augusto Totti (Org.)
64 |
um respeito aos dados, e não a manipulação deliberada ao sabor de
circunstâncias sociais e de preferências individuais.
Talvez por tudo isso, pelo título e texto demasiadamente teóricos,
publicado em um contexto de ampla mobilização e de chamados à ação, A
natureza sociológica da sociologia tenha cado numa espécie de penumbra
intelectual e política. O livro contém inegavelmente muitos elementos
para se pensar o projeto editorial da Coleção Grandes Cientistas Sociais e
o signicado do projeto político e intelectual da qual foi portadora. Um
projeto derradeiro, para o qual Florestan Fernandes mobilizou um grupo
histórico de pesquisadores e de pesquisadoras, dedicado a um tema e a
uma causa comum, a transformação da realidade social brasileira, nas duas
últimas décadas do século XX, e na construção deste objeto teórico, empírico
e prático, de pensamento e de ação dos cientistas sociais e do movimento
socialista e revolucionário no Brasil. Entendida nesta perspectiva, a reexão
sobre a participação dos intelectuais nos processos de mudanças sociais e
de transformação da sociedade reitera o sentido de sua presença tanto no
ponto de partida quanto no ponto de chegada da trajetória individual e da
biograa intelectual e política de Florestan Fernandes (ARRUDA, 1998).
Os livros A contestação necessária e Em busca do socialismo, publicados em
1995, encerram essa persistência da crítica e da negação, seja na sociologia
acadêmica seja na sociologia crítica.
Diante das evidências, até aqui reunidas, cabem quatro observações
para que se possa melhor reetir e investigar sobre elas. Em primeiro lugar,
àquelas pessoas interessadas na dimensão da militância política de Florestan
Fernandes, para esse período, será oportuna uma leitura de conjunto dos
volumes que compõem a Coleção Grandes Cientistas Sociais. A segunda
observação, àquelas pessoas interessadas na dimensão da reexão sobre as
teorias sociológicas, no âmbito da saída da crise intelectual existencial em
que Florestan Fernandes se encontrava, até os anos nais da década de
1970, torna-se elucidativo a leitura de A natureza sociológica da sociologia.
Terceira observação, àquelas pessoas interessadas na dimensão da história
comparada do pensamento sociológico, vale a pena explorar os diálogos
possíveis que se estabelecem a partir de A natureza sociológica da sociologia e
o livro A imaginação sociológica, de Charles Wright Mills. Aqui, o ensaio da
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
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professora Heloísa Rodrigues Fernandes sobre o sociólogo norte-americano
contém inúmeras e sugestivas sinalizações. Por m, àquelas pessoas
interessadas na dimensão biográca seria fecundo pensar a colaboração
intelectual explícita, visível e facilmente identicável, rica e instigante,
entre Florestan Fernandes e sua lha, a professora e socióloga Heloísa
Rodrigues Fernandes, particularmente, a partir do volume da Coleção
Grandes Cientistas Sociais dedicado a Wright Mills, por ela organizado e
autora da introdução, escrita em 1979, e dos Apontamentos sobre a teoria
do autoritarismo, ensaio que Florestan publicou em 1979 e que contém
o prefácio de Heloísa Rodrigues Fernandes. Na outra via pode-se ler o
prefácio de Florestan ao livro de Heloísa, Política e Segurança, publicado
em 1974.
Há uma série de elementos e caminhos para se pensar a aproximação
entre Wright Mills e Florestan Fernandes. A imaginação sociológica do
sociólogo norte-americano pode ser lida como uma tomada de consciência
ou como contraponto, como inspiração e como desao para a imaginação
sociológica criadora e a sociologia crítica, do sociólogo brasileiro. Nos
escritos de Florestan Fernandes esta última expressão – sociologia crítica
– preponderou sobre a primeira - imaginação sociológica criativa. Antes
e mais do que rivalidade, podemos enxergar neste binômio complemento
e unidade, distintos momentos e tarefas intelectuais e políticas. Ambas
as expressões comportam possibilidades compreensivas da militância e
da biograa de Florestan Fernandes e poderão ser abordadas, em outro
momento, e em diversas perspectivas de análise por aquelas pessoas
interessadas no estudo sistemático da obra e do pensamento sociológico e
político de Florestan Fernandes.
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68 |
Seção II
O    ISEB
| 71
O      ISEB
 B   19501960
Caio Navarro de Toledo
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros se constituiu numa
experiência cultural e ideológica inovadora na história política brasileira.
O ineditismo da experiência isebiana consistiu no fato de que intelectuais
de várias orientações teóricas e de distintas correntes ideológicas – na sua
maioria, não acadêmicos – se reuniram não apenas para reetir sobre os
problemas cruciais da realidade brasileira”; deliberadamente, visavam
também intervir no processo político e econômico do país. A meu ver, foi
o ISEB, no Brasil contemporâneo, a instituição cultural que tenha talvez
melhor simbolizado e concretizado a noção (e a prática) do engajamento
do intelectual na vida política e social de seu país.
Este comprometimento, contudo, foi uma experiência difícil e
conitiva, pois, além das tensões e crises internas, o Instituto sofreu um
permanente e cerrado cerco ideológico e político por parte de inuentes
setores da direita brasileira (empresários, entidades patronais, grande
imprensa, militares, religiosos, agências de inteligência e embaixada dos
EUA etc.)
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p71-
Marcelo Augusto Totti (Org.)
72 |
Uma frente intelectual e política
Nos seus primeiros anos, o ISEB tinha as características de uma
grande frente intelectual e política. Nele conviviam liberais, nacionalistas,
social-democratas, católicos progressistas (alguns deles, recém egressos
do integralismo) etc. Da perspectiva de suas origens teóricas, pode-se
dizer que no Instituto conviviam liados ao marxismo, hegelianismo, do
existencialismo de Sartre e Max Scheler, da fenomenologia de Jaspers, da
sociologia do conhecimento de Mannheim, do historicismo de Dilthey, do
culturalismo de Ortega y Gasset e de outras correntes losócas.
No entanto, apesar de expressarem uma multiplicidade de orientações
teóricas e políticas, esses intelectuais convergiam na convicção de que,
através do debate e do confronto das ideias, seria possível formular um
projeto ideológico comum para o Brasil. O nacional-desenvolvimentismo
foi então concebido como essa ideologia-síntese capaz de levar o país –
através da ação estatal e do desenvolvimento industrial – à superação do
atraso econômico-social e da alienação cultural. Uma Nação desenvolvida
e soberana estava, assim, no horizonte ideológico desses intelectuais
quando tomaram a primeira iniciativa de, em 1952, criar o IPESP e, três
anos depois, o ISEB. Mas, como outros também observaram, divergentes
concepções acerca do nacionalismo e do desenvolvimento econômico e
social dicultarão o consenso em torno da ideia-matriz que originou a
fundação do Instituto.
Se é correto armar que, nos anos seguintes à sua criação, a ampla
frente intelectual e política foi se estreitando – com o afastamento de
autores de orientação liberal e social-democrata –, não se pode deixar de
reconhecer que houve uma continuidade político-ideológica durante os
nove anos de existência do ISEB.
Seja em sua primeira fase - “teorizante” ou “nacional-
desenvolvimentista” –, seja em seu “último momento” (“fase militante
de esquerda”), o ISEB sempre esteve comprometido com a defesa de
reivindicações sociais progressistas e politicamente democráticas. Seu
ativo engajamento na luta pelas reformas sociais, a defesa da soberania
nacional e a reivindicação da ampliação da democracia política no Brasil
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 73
explicariam, assim, a fúria obscurantista e destrutiva que se manifestou
pelo golpe militar de 1964.
Como outras entidades progressistas e democráticas no pré-1964,
o ISEB teve, logo nos primeiros dias da ditadura militar, seus arquivos,
publicações e biblioteca destruídos e seus membros sofreram prisões e
extensos inquéritos político-militares (IPM´s).
o contexto polítIco-cultural
Examinemos então o contexto político-cultural brasileiro, por
ocasião da criação do ISEB.
O período que vai da redemocratização de 1946 até o golpe de 1964
teve enorme importância para a história social, política e cultural brasileira:
paralelamente à crescente politização da vida social – particularmente no
pré-1964 quando a atividade política deixava de ser privilégio do legislativo
e do executivo, vários projetos econômicos e sociais foram produzidos e
debatidos pelos partidos, sindicatos, intelectuais e estudantes.
Apenas para citar alguns desses protagonistas e seus ideários: (segundo
o estudo de Ricardo Bielschowsky – Pensamento Econômico Brasileiro).
Liberais não-desenvolvimentistas, não-industrialistas (neoliberais):
FGV, Conselho Nacional de Economia, Associação Comercial do Estado
de São Paulo.
Seus intelectuais: Eugênio Gudin, Octávio Bulhões;
Liberais desenvolvimentistas não-nacionalista: Vinculados à
burocracia pública - BNDE, Comissão Mista Brasil-EUA; Roberto
Campos, Lucas Lopes, Glycon de Paiva etc.
Desenvolvimentistas privatistas: CNI, FIESP; (herdeiros de
Roberto Simonsen: João Paulo de Almeida Magalhães, Nuno Figueiredo,
Hélio Jaguaribe etc.)
Desenvolvimentistas nacionalistas: BNDE, ISEB, Cepal – Celso
Furtado, Ignácio Rangel, Rômulo de Almeida, Evaldo C. Lima, Guerreiro
Ramos, Vieira Pinto;
Marcelo Augusto Totti (Org.)
74 |
Desenvolvimentistas comunistas e socialistas – PCB, PSB: N.
Werneck Sodré, Caio Prado Jr., Alberto Passos Guimarães etc.
Inúmeras revistas e publicações traduziam e expressavam essas
tendências teóricas e ideológicas. No caso destas últimas: Revista Brasiliense,
Estudos Sociais, entre outras.
A ideologia desenvolvimentista na visão do ISEB.
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros foi criado em 1955,
no governo de Café Filho, por intelectuais e técnicos especializados da
burocracia pública. Funcionando com verbas do Ministério da Educação
e Cultura, o ISEB, conforme seus estatutos, se denia como um “centro
permanente de altos estudos políticos e sociais de nível pós-universitário
(tendo) por nalidade o estudo, o ensino e a divulgação das ciências
sociais, notadamente da Sociologia, da História, da Economia, da Política,
especialmente para o m de aplicar as categorias e os dados dessas ciências à
análise e à compreensão crítica da realidade brasileira, visando a elaboração
de instrumentos teóricos que permitam o incentivo e a promoção do
desenvolvimento nacional”.
Embora a expressão não aparecesse aqui explicitamente, tratava-
se de criar e difundir uma “ideologia do desenvolvimento nacional”
que contribuísse para o Brasil se constituir plenamente como Nação
desenvolvida, através da consolidação da industrialização e de reformas
sociais e políticas.
Do primeiro ISEB faziam parte Hélio Jaguaribe, Alberto Guerreiro
Ramos, Nelson Werneck Sodré, Roland Corbisier, Álvaro Vieira Pinto,
além de guras renomadas, embora com presença circunstancial – entre
elas, Celso Furtado, Ignácio Rangel, Roberto Campos, Anísio Teixeira etc.
Podemos armar que dois teriam sido os momentos decisivos na
trajetória do ISEB:
a) Período do nacionalismo-desenvolvimentista (1956-1960):
nacionalismo popular de VP, NWS, RC ao lado de um nacionalismo
burguês de HJ e GR.
b) Defesa de reformas sociais e políticas: 1961-64: (correspondente
ao governo J. Goulart): politização e esquerdização da Instituição.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 75
Ideias-forças presentes no ISEB
Quais teriam sido as principais idéias-forças do nacional-
desenvolvimentismo do ISEB? De forma sintética, entendemos elas seriam
as seguintes:
a) noção de ideologia.
Armação positiva da ideologia. Ideologia como força material, força
organizadora e efetiva no interior da sociedade (não simples especulação
ou forma ilusória); papel instrumental na arregimentação e coesão das
forças sociais na direção da construção da Nação.
Sem a ideologia do desenvolvimento, advertiam os isebianos,
não poderia haver desenvolvimento nacional (p/ Lênin, sem teoria
revolucionária não haveria movimento revolucionário).
b) noção de alienação.
Para os isebianos, o subdesenvolvimento era entendido sob a matriz
hegeliana/existencialista/marxista de alienação. A nação pobre não possuía o
comando de si mesma, da sua autonomia política e cultural. Era controlada
de fora, por outras forças (nações ricas, desenvolvidas). Os países SD’s se
conguravam, assim, como autênticas nações proletárias. Na condição do
proletário, na ordem capitalista, eram, pois, expropriadas de sua essência,
que passava a ser incorporada, apropriada pelas nações desenvolvidas.
Nas palavras de V. Pinto: “ (...) [o SD] é por natureza um estado
de alienação, no qual o homem ca distanciado do seu ser, alheio a ele
(...) A nação SD é um ser social igualmente alienado, um ser cuja essência
está fora dele, é possuída por outros, no caso as nações desenvolvidas que
detêm o comando de sua economia, e por esse meio, o do seu destino”.
A condição para a superação da alienação, dos trabalhadores
individualmente e da nação, apenas se dará com o desenvolvimento
industrial em bases nacionalistas. Arma VP que “para os trabalhadores o
desenvolvimento não traz qualquer perigo, a parada do desenvolvimento é
que seria o único e sério perigo”. Por sua vez, o desenvolvimento econômico
possibilitará a “recuperação” do ser histórico; ou seja, a passagem da nação de
Marcelo Augusto Totti (Org.)
76 |
objeto” a “sujeito” da sua história. Ou seja, ter-se-ia então a nação autônoma,
livre e independente, não mais periferia do mundo rico e metropolitano.
c) aS baSeS da IdeologIa nacIonal-deSenVolVImentISta.
Para o conjunto dos isebianos (liberais e de esquerda), a formação
social brasileira SD apesar das mudanças sociais e econômicas advindas com
a Revolução de 30, ainda não se constituía uma Nação propriamente dita.
Forças antinacionais ou retrógradas ainda tinham hegemonia no conjunto
da formação social, impedindo-a de se realizar plenamente – política e
culturalmente. De um lado, pois havia os proprietários rurais (o chamado
latifúndio improdutivo), a burguesia mercantil agro-exportadora e setores
das classes médias tradicionais solidamente apoiados pelo imperialismo
nanceiro e comercial. Todas essas forças constituíam uma Frente
tradicionalista, anti-Nação, pois se opunham sistematicamente à adoção
de uma política industrializante e à modernização de suas instituições
políticas e sociais.
A ideologia nacional-desenvolvimentista formulada pelos isebianos
visava precipuamente convencer os setores modernos da formação social
brasileira – em especial a burguesia industrial - da urgente necessidade de
se proceder a uma reforma das instituições políticas, visando a criação de
um Estado com uma estrutura burocrática mais racional e moderna.
A possibilidade da realização da ideologia nacional-desenvolvimentista
era possível, pois estava fundada na própria realidade social. Haveria,
assim, segundo os isebianos, uma conuência dos interesses das classes
sociais mais dinâmicas de nossa formação social. O nacionalismo-
desenvolvimentista se impunha pois os setores modernos e dinâmicos da
burguesia, do proletariado e das classes médias passavam a perceber que a
industrialização e as reformas sociais e institucionais correspondiam aos
seus interesses objetivos mais imediatos – a curto e longo prazo.
Nos países SD’s a luta de classes, pois, não teria primazia; a luta
de classes seria uma realidade válida e pertinente basicamente para os
países capitalistas metropolitanos. Aqui a contradição fundamental que
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 77
atravessa a formação social é a que se estabelece entre Nação x anti-Nação;
entre as forças modernizantes x os setores retrógrados (articulados com o
imperialismo comercial e nanceiro).
Para os isebianos de esquerda, incluindo também a visão do PCB,
esta aliança desenvolvimentista se impunha para derrotar o imperialismo e
o latifúndio e as demais forças conservadoras.
A tarefa dos intelectuais do ISEB residia, pois, em formular a
ideologia nacionalista e ser uma “vanguarda esclarecida e ecaz, apta a
despertar, nas novas forças dirigentes (...), a consciência de seus interesses
e das possibilidades de serem eles atendidos em termos convenientes para
toda a comunidade”.
d) a queStão da hegemonIa de claSSeS na IdeologIa e no
proceSSo do deSenVolVImento nacIonal:  
  J versus     
 V P.
Se entre os autores do ISEB existia um consenso na identicação
dos setores ou classes sociais que constituíam os termos da contradição
principal, as divergências começavam a ocorrer a partir do momento em
que se procurava denir qual grupo social deveria ter a hegemonia no
processo de desenvolvimento nacional.
De um lado, estavam aqueles que defendiam a burguesia industrial,
como portadora da razão histórica e dos verdadeiros destinos nacionais;
de outro, aqueles que viam na direção ideológica das massas populares
e trabalhadoras as únicas possibilidades de a nação alcançar a sua plena
autonomia e um real desenvolvimento econômico e social.
Nacionalismo burguês (HJ, GR) x nacionalismo popular (NWS, AVP)
Contrapondo-se a H. Jaguaribe, Vieira Pinto armava que a ideologia
do desenvolvimento procedia da consciência das massas trabalhadoras;
ou ainda, a ideologia do desenvolvimento constituía-se, na verdade, no
pensamento natural” destas. São as massas trabalhadoras “que impõem
a exigência de desenvolver-se o país”. (PINTO, 1959, p.37) A ideologia
Marcelo Augusto Totti (Org.)
78 |
do desenvolvimento só pode provir da consciência das massas, pois são
estas que, em última instância, mais interesses tinham no processo de
desenvolvimento. Além do mais, eram elas que podiam revelara as direções
objetivas desse mesmo processo, posto que eram detentoras de uma
consciência verídica ou crítica.
1
Numa arrojada armação, estabelecia que: “O povo não erra,
simplesmente se pronuncia com o teor de compreensão que lhe é
permitido ter nas circunstâncias em que existe”. Adiante: “(...) a massa
não se engana, nem se corrompe; só lhe pode acontecer estar privada de
perfeita consciência.” (PINTO, 1960, p. 111).
No entanto não são as organizações dessas amplas camadas sociais
que teriam o privilégio de traduzir em termos conceituais e práticos este
pensamento natural” ou a consciência verídica das massas trabalhadoras.
Esta tarefa cabia estritamente aos seus “intelectuais orgânicos”; dito em
outros termos, aos pensadores - entre eles os do ISEB - “comprometidos
existencialmente” com a perspectiva daquelas categorias sociais. Assim,
embora as massas detenham um conhecimento de sua situação objetiva,
bem como reconheçam nitidamente os seus interesses fundamentais,
encontram-se ainda na transição para o capitalismo desenvolvido, privadas
dos instrumentos lógico-conceituais adequados para se expressarem de
forma rigorosa e ecaz. Arma Vieira Pinto: “Antes que o pensador seja
capaz de dar corpo lógico às novas representações conceituais implicadas
nos acontecimentos, o povo mesmo as vai esboçando, num balbucio
ideológico onde tem suas primeiras tentativas de expressão de ideias que,
depois, os sociólogos e lósofos procurarão anunciar em forma límpida e
doutrinária”. (PINTO, 1960, p. 44, grifo nosso).
Dentro destes limites ca, pois, justicada a atividade dos intelectuais
dos países em luta pelo desenvolvimento: dar forma lógica àquilo que foi
produzido pela prática coletiva das massas. Ou seja, ordenar e sistematizar
Para Vieira Pinto, não há nestas armações qualquer exaltação mística, nem tampouco “afeição ou simpatia
moral exterior” pelas massas trabalhadoras. Para ele, o trabalho é fator essencial não só da transformação da
realidade material, como também da consciência. “A ideologia de que necessita a sociedade subdesenvolvida será
transformadora se for autêntica, e só será tal se surgir uma consciência que represente veridicamente o real; esta,
por sua vez, só terá essa qualidade se tiver sido congurada na prática, a qual (...) se dene fundamentalmente
como trabalho”. (PINTO, 1960, p. 111).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 79
numa teoria - no caso, a ideologia do desenvolvimento - as verdades presentes
na consciência crítica das massas trabalhadoras. Porém, ao contrário de um
projeto de caráter totalitário ou fascistizante - que imporia às massas uma
consciência” ou um ideário -, os pensadores dos países periféricos nada
mais seriam do que os arautos das representações verídicas da consciência
popular. Isso era o que julgava Vieira Pinto: “A transmissão da ideologia
é obra de sua verdade interior, que não é senão a sua concordância com a
realidade e a viabilidade do projeto que a conduz. A persuasão que possui
decorre dessa verdade e não é obtida por artifícios psicológicos, muito
menos pela coação. Ao ser reconhecida pela consciência das massas como
o autêntico pensamento de que careciam para exprimir seu projeto de
existência, a ideologia assume automaticamente caráter operatório [...]”.
(PINTO, 1960, p. 50-51, grifo nosso). Mas, apesar desse automatismo, a
m de que toda a sociedade fosse alcançada, tornavam-se necessários uma
divulgação persuasiva” e um “proselitismo consciente e esclarecido” por
parte dos ideólogos. Porém, rearmava, isto não seria condenável, desde
que se “apoie na certeza de se estar dizendo às massas aquilo que exprime o
próprio ponto de vista delas e que, por isso, só precisa ser conhecido para
ser reconhecido(PINTO, 1960, p. 53).
ISEB & USP: ideologia versus ciência?
De forma breve, façamos um paralelo com outro estilo de intervenção
intelectual contemporâneo ao do ISEB. Nos anos 50/60, cientistas sociais e
lósofos da Universidade de São Paulo estiveram comprometidos com um
projeto teórico e político distinto ao do ISEB. Fazendo um paralelo entre
o ISEB e a USP, no campo das ciências humanas, um estudioso francês
anotou:
No Rio de Janeiro (...), o papel do intelectual implica uma
intervenção direta no campo político e a reivindicação de uma
representatividade popular e nacional. Já em São Paulo, remete
antes à inserção num meio especíco de inter-reconhecimento e à
referência a normas gerais do trabalho teórico”. (PÉCAUT, 1990,
p. 115-116).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
80 |
Embora nem isebianos nem uspianos defendessem uma oposição
entre as esferas da produção cientíca e da ação política, na prática efetiva,
não deixavam de a elas conferir ênfases e prioridades distintas.
Esclareça-se que a produção intelectual e as atividades do ISEB
reduzida repercussão tinha junto aos acadêmicos reunidos em torno da
USP. Praticamente nenhuma cooperação ou controvérsia pública, entre
eles, se fazia ouvir. Silêncio sintomático. Dois mundos quase à parte,
incomunicáveis entre si, pretensamente autossucientes. Bem se sabe
que, até poucas décadas, o intercâmbio entre a intelectualidade do Rio e
São Paulo sempre foi bastante limitada. Neste sentido, ISEB e USP nada
mais faziam do que reproduzir este quadro típico de provincianismo e
paroquialismo no interior da intelectualidade brasileira.
A rigor, na perspectiva dos lósofos e cientistas sociais da USP,
os autores do ISEB não eram considerados interlocutores competentes
para qualquer debate produtivo e nenhuma forma de colaboração entre
ambos foi cogitada nos anos 1950-1960. Embora mais distantes, as
instituições francesas, em particular, e os professores visitantes dali
procedentes eram privilegiados para o diálogo por parte dos intelectuais
radicados em São Paulo.
No caso do Departamento de Filosoa da USP, foram dois professores
visitantes franceses – Michel Debrun e Gérard Lebrun – que tomaram a
iniciativa de debater a produção isebiana. Seus artigos foram publicados
pela Revista Brasiliense, dirigida por Caio Prado Jr.
Michel Debrun – autor de um livro editado pelo ISEB sobre a questão
da Ideologia, antes de ingressar na USP – teve dois artigos publicados na
revista paulistana. Por sua vez, G Lebrun escreveu uma alentada resenha
sobre o mais importante livro de Vieira Pinto, Consciência e Realidade
Nacional, a grande obra losóca do ISEB. Resenha crítica, mas rigorosa e
extremamente respeitosa ao lósofo isebiano.
Faça-se, contudo, justiça a João Cruz Costa, decano do DF da USP:
foi ele a única voz dissonante dentro do Departamento de Filosoa, pois
tinha um apreço especial pela obra de N. Werneck Sodré. Um artigo elogioso
ao autor marxista do ISEB foi publicado pela Revista Brasiliense: “As
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 81
transformações do pensamento brasileiro no século XX e o nacionalismo
(COSTA, 1962) .
Sob a perspectiva dos acadêmicos da USP, tratava-se de criar os
recursos teóricos e metodológicos para a constituição de um pensamento
social sólido e consistente, com a mesma qualicação que tinham os
trabalhos que se realizavam se realizavam em outros centros do exterior.
O compromisso fundamental dos cientistas sociais deveria ser o de realizar
pesquisas de acordo com os padrões mais rigorosos do trabalho cientíco.
Devia-se produzir ciência, não forjar ideologias...
2
Seria uma apreciação injusta e incorreta armar que - ao contrário
dos isebianos - os sociólogos paulistas estavam (e desejavam permanecer)
distantes das lutas sociais e políticas de seu tempo; reconheça-se que alguns
deles tinham convicções de esquerda e socialista. No horizonte deles estava
também a vontade de participar nos “processos em curso de mudança sócio-
cultural”. No entanto, a possibilidade de intervir ecazmente na esfera social
e política exigia, preliminarmente, a elaboração de conhecimentos rigorosos.
Nas palavras de Florestan Fernandes:”(...) nenhum cientista
conseguirá pôr a ciência a serviço de sua comunidade, sem observar de
modo integro e rigoroso as normas e os valores que regulam a descoberta,
a vericação e a aplicação do conhecimento cientico”.
3
A ênfase, no
entanto, é para a construção teórico-cientíca, não visando, assim,
primacial e diretamente a intervenção no plano da realidade social tal
como se apresentava o projeto da maioria dos isebianos.
Ao se comparar USP e ISEB não se pode nunca perder de vista as especicidades de cada uma das duas
instituições. No caso do ISEB, trata-se uma instituição vinculada diretamente à Casa Civil do governo federal
que ministra cursos de curta duração para um público amplamente diversicado (sindicalistas, políticos,
prossionais liberais, militares, universitários etc). Poucos professores do ISEB se dedicam integralmente à
pesquisa e à docência. Centro de debates e estudos, o ISEB era, antes de tudo, um aparelho ideológico em seu
sentido mais amplo.
Fernandes, Florestan - Padrão de Trabalho Cientíco dos Sociólogos Brasileiros. apud Ramos, Guerreiro(1958,
p.23) Os dois sociólogos acima foram talvez os únicos a abrirem uma polêmica por um breve momento. Cada
um representaria um estilo de intervenção cientíca em particular. Preconceitos de ambas partes dicultavam
o diálogo frutífero e o possível entendimento posto que além das diferenças de estilo, existiam convicções
(substantivas) comuns entre ambos. O próprio Guerreiro Ramos reconhecerá - após sua veemente crítica
ao “provincianismo”, “convencionalismo” e “bovarismo” representado pela sociologia paulista -, em escrito
posterior, que F. Fernandes avançava para a aceitação da chamada sociologia militante.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
82 |
O chamado Seminário Marx talvez se constitua num bom exemplo
desse estilo de prática intelectual predominante na USP nos anos 50/60.
Jovens pesquisadores (sociólogos, economistas, historiadores, lósofos) se
reúnem para conhecer em profundidade a obra fundamental do marxismo,
insatisfeitos com as interpretações pouco rigorosas (das vulgatas a duvidosas
apropriações” ideologizadas) de Marx. Quase todos são de esquerda (e à
esquerda do PCB). A motivação que reúne o grupo, no entanto, não é
política. É fundamentalmente teórica.
Em anos recentes, alguns dos pesquisadores da USP procederam a
revisões sobre o projeto isebiano. Reconheceram a existência de preconceitos
bloqueando uma colaboração intelectual que poderia ter sido fecunda.
Tendo alguns destes uspianos, a partir dos anos 1970, entrando de “corpo
e alma” na política institucional, penitenciaram-se pelo isolamento que se
autoimpuseram e, hoje, reabilitaram o projeto político do ISEB.
4
referêncIaS
COSTA, João Cruz. As Transformações do Pensamento Brasileiro no Século XX e o
Nacionalismo. Revista Brasiliense, São Paulo, n. 40, 1962.
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990.
PINTO, Álvaro Vieira. Ideologia e desenvolvimento Nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 1959.
PINTO, Álvaro Vieira. Consciência e realidade nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 1960.
RAMOS, Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editoral MEC/ISEB, 1958.
A meu ver, Fernando Henrique Cardoso produziu a mais enfática autocrítica dos intelectuais paulistas face
ao ISEB. Entre outras formulações, reconheceu: “(...) o pessoal do ISEB nos parecia pouco rigoroso, não tinha
a nossa bagagem acadêmica. Para o ISEB, o povo era o sujeito da História, enquanto para nós esse sujeito era
indeterminado. Enquanto pensávamos em classes, o ISEB pensava em povo. Nós éramos, assim, uma “esquerda
acadêmica”. A verdade é que, na prática, o ISEB teve uma inuência muito maior do que a de nosso grupo,
que cou isolado em São Paulo. Reconheço que fomos bastante cegos com relação às mudanças que ocorriam.
Conclui que a “a ideologia do ISEB prevaleceu politicamente”. Entrevista concedida ao jornalista Lourenço
Dantas Mota, O Estado de S. Paulo. 7.8.83.
| 83
O “” USP versus ISEB:
   Cadernos do Povo
Brasileiro
1
Angélica Lovatto
2
Os Cadernos do povo brasileiro, publicados de 1962 a 1964, puderam
selar uma grande contribuição às lutas de classes no século XX. Eles
exerceram inuência sobre distintos setores dos trabalhadores do campo e
da cidade, à época, não só por uma tiragem numerosa, mas pelo esforço de
sindicatos, centrais, partidos e movimentos que se responsabilizaram por
sua divulgação massiva em âmbito nacional. Essa coleção tinha uma sólida
proposta teórico-política, mas não necessariamente acadêmica.
Mas o que era essa Coleção de 28 volumes que vendeu mais de
um milhão de exemplares? E o que fez com que seu formato de mão-em-
mão ampliasse ainda mais sua extraordinária difusão? Para entender esse
Este capítulo de livro é resultado das reexões feitas na Mesa de Debates sobre o tema no I Encontro do
Pensamento Social Brasileiro, realizado em 2020, na FFC/Campus Marília da UNESP, organizado pelo Prof. Dr.
Marcelo Augusto Totti.
2
Professora do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da FFC-Marília, UNESP. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa CNPq “Pensamento Político Brasileiro e Latino-Americano (PEPO)”. Autora do livro A utopia
nacionalista de Hélio Jaguaribe: os tempos do ISEB (São Paulo, Xamã, 2010). Email: angel.lovatto@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p83-106
Marcelo Augusto Totti (Org.)
84 |
fenômeno rapidamente, imagine-se um brasileiro comum, vivendo em
pleno ano de 1962, tomando contato com o seguinte texto: Por que os ricos
não fazem greve?, seguido do texto Quem pode fazer a revolução no Brasil? E,
ainda: Quem dará o golpe no Brasil?. Ou então, imagine-se em pleno ano de
1963, tomando contato com o texto: Como seria o Brasil socialista?, seguido
de Como atua o imperialismo ianque? e depois Como são feitas as greves no
Brasil? ou Que são as Ligas Camponesas?. Ou também os seguintes temas:
Por que existem analfabetos no Brasil?, A Igreja está com o povo?, Quem faz as
leis no Brasil?, De que morre o nosso povo?.
Depois dessas leituras críticas, o que você faria? Bem, no mínimo, ia
ser obrigado a parar e pensar um pouco. O resultado, provavelmente, seria
de indignação diante do conteúdo lido. E talvez surgisse a disposição de se
movimentar, de agir, diante das propostas ali defendidas. Enm, surgiria a
disposição de não car passivo frente aos candentes problemas brasileiros
daquele período histórico ímpar. Foi com essa intenção que foram escritos
os Cadernos do povo brasileiro, que circularam por milhares de mãos no
período anterior à deagração do golpe de estado de 1964 que, inclusive,
encerrou sua circulação. Foi um momento profícuo na história, na política
e na cultura brasileira: estava-se diante do Cinema Novo, da Bossa Nova,
do Teatro de Arena, da arte na rua, do CPC da UNE,
3
de novos métodos
de alfabetização de adultos associados à leitura da realidade, ao crescente
movimento das Ligas Camponesas, à crescente sindicalização, greves e
organização da classe operária, para citar o mínimo.
Os Cadernos do povo brasileiro foram editados pela Civilização
Brasileira, no Rio de Janeiro, sob a coordenação do editor Ênio Silveira,
gura emblemática da propagação do livro e da cultura brasileira antes
e depois da ditadura militar. Os diretores dessa coleção eram o próprio
Silveira e Álvaro Vieira Pinto, este último pertencente aos quadros do
ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros (1955-64). A coleção
retratava o debate nacionalista naqueles anos 1960 e discutia um projeto de
revolução brasileira, em diferentes frentes táticas e estratégicas, a depender
dos autores que a formulavam.
CPC – Centro Popular de Cultura, da UNE – União Nacional dos Estudantes.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 85
1. ISeb versus uSp: o debate que o aconteceu
A chamada escola de sociologia paulista,
4
concentrada
hegemonicamente na USP, não combatia o ISEB em geral ou, muito
menos, os Cadernos do povo brasileiro em particular. Fazia algo talvez
pior: simplesmente não discutia com eles, mantendo um silêncio que
contribuía para o não conhecimento desta Coleção pelas gerações pré e
pós-golpe, e muito menos seu reconhecimento teórico e prático. Pois o
pressuposto uspiano era de que os autores isebianos não faziam ciência
faziam ideologia – e se não faziam ciência, não havia por que empreender
qualquer diálogo, mesmo crítico, com aqueles intelectuais.
5
E isso não se
deu apenas em relação ao último ISEB (aquele que foi encerrado pelo
golpe militar de 1964 e que defendia um projeto de revolução brasileira),
pois desde a montagem inicial do instituto – na fase onde o nacionalismo-
desenvolvimentista foi hegemônico – seus principais integrantes não
tinham a característica de estarem vinculados à carreira acadêmica, exceção
feita a Vieira Pinto, professor na Universidade Nacional de Filosoa
(Universidade do Brasil). Apenas para efeito de constatação, tive a chance
de empreender uma busca nos temas que aqueles intelectuais uspianos
faziam em São Paulo no mesmo momento em que os Cadernos estavam
sendo produzidos, no Rio de Janeiro. Observei que as teses produzidas por
eles naquele período tratavam basicamente do Brasil colônia e império,
notadamente as contradições do escravismo e seus efeitos sobre a sociedade
brasileira. Sem dúvida eram importantes estudos que até hoje são referências
para a análise da sociedade brasileira. Porém, estavam localizados num
distante passado, e tudo indica que ainda não atingiam o período pós-
4
Alguns uspianos formaram, no nal dos anos 1950, o “Grupo de Estudos d’O Capital”, cujos objetivos parecem
ter se congurado mais com preocupações de ordem acadêmica do que para fundamentar uma intervenção
prática na realidade, tal como o ISEB. Deste grupo participaram guras da referida escola sociológica paulista,
tais como José Arthur Gianotti, Fernando Henrique Cardoso, Fracisco Weort, entre outros. Sabemos hoje
que, depois do golpe, alguns deles reconguraram suas posições. Uma análise desse grupo de estudos encontra-
se em Luiz Fernando da SILVA (1995), O pensamento social brasileiro entre 1960 e 1980: trajetória de um grupo
de marxistas acadêmico. Florestan Fernandes também pertenceu a este grupo, mas sempre foi um ponto fora da
curva, no sentido de seu compromisso com a militância política, para além do projeto acadêmico propriamente
dito. Inclusive o debate entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes foi um dos exemplos isolados dessa
discussão. Não foi propriamente um debate entre ISEB e USP, mas um debate entre dois intelectuais atuantes
em duas instituições distintas.
5
Caio Navarro de Toledo (2005) trata do assunto na publicação comemorativa dos 50 anos do ISEB e apresenta
como única exceção o texto de Gerard Lebrun, professor da USP à época, que Toledo inclusive resgata,
reeditando-o nesta publicação sob o título “A ‘realidade nacional’ e seus equívocos”. (L, 2005).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
86 |
1930, salvo poucas exceções.
6
Sabemos, no entanto, que este último
período, de 1930 a 1964, será analisado após o golpe militar por alguns
intelectuais uspianos e dará origem, inicialmente, à teoria do populismo,
na vertente de Francisco Weort e à teoria da dependência associada, de
Fernando Henrique Cardoso. Duas outras teses também serão produzidas
formando um quarteto teórico hegemônico da sociologia paulista: a teoria
do autoritarismo (formulada por um conjunto de autores, com destaque
para Marilena Chauí - losoa USP) e a teoria do autonomismo, formulada
especialmente por Eder Sader (sociologia USP).
Podemos dizer que foi produzida toda uma historiograa no pós-
1964 que silenciou não só sobre a Coleção, mas também sobre outras
publicações e autores importantes do pré-1964, especialmente os que
tinham sido exilados. É o que venho caracterizando em meus estudos e
pesquisa com a hipótese da alternância combinada entre a historiograa do
silêncio e a historiograa da desqualicação.
7
Quando não é mais possível
silenciar sobre um tema, acabam sendo produzidos estudos “críticos” por
essa historiograa hegemônica, e que, no caso dos Cadernos do povo brasileiro,
não levaram em conta a Coleção como um todo e suas especicidades. Meu
trabalho de pesquisa
8
sobre os Cadernos do Povo Brasileiro foi o primeiro
no Brasil a estudar a coleção inteira. Intrigava-me o fato de os Cadernos
não terem sido estudados, mesmo que de forma parcial, antes dos anos
1980 e, ainda assim, foi feito por um setor que os escolheu com o intuito
de combatê-los, a partir de uma concepção de viés autonomista.
9
Ainda
assim, não foi uma tese, mas um seminário na FUNART levado a cabo por
Marilena Chauí, sobre o qual faremos referência daqui a pouco. Um dos
motivos que parecem explicar por que os Cadernos não foram estudados
logo após o golpe de 1964, é que, literalmente, seus autores foram exilados,
presos, torturados e tudo mudou num período muito curto de tempo, de
Mesmo assim, foi em 1964 que Fernando Henrique Cardoso publicou seu livro Empresário industrial e
desenvolvimento econômico (1964), onde defendia que não havia, de fato, uma burguesia nacional no Brasil.
Em função dos limites do presente capítulo de livro, não desdobrarei essa hipótese, que sairá posteriormente
desdobrado em artigo.
 LOVATTO (2010).
Exceção principal feita ao estudo do sociólogo Marcelo Ridenti, da Unicamp, publicado no ano 2000 e que
tratou, entre outros aspectos, da série Violão de Rua, numa perspectiva de resgate do valor histórico dessas
publicações.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 87
mais ou menos quatro anos (1964 a 68). O panorama político-ideológico
tinha dado uma guinada de 180 graus, do progressismo à repressão
ditatorial. A popularidade e os projetos de políticos progressistas, como
por exemplo Jango e Brizola, tinham se transformado, no mínimo, em
esquecimento.
10
O PCB tinha praticamente desaparecido, em função
da derrota catastróca em 1964.
11
E os militantes da POLOP e da AP
também zeram parte dos primeiros alvos da repressão em abril. Outras
esquerdas foram surgindo, outros “rachas de rachas” e de opções por luta
armada foram se delineando. Os Cadernos estavam vinculados a todas
essas circunstâncias anteriores ao golpe. A repressão, logo no primeiro dia
do golpe, tinha incendiado a UNE (que divulgava os Cadernos), tinha
invadido a casa onde funcionava o ISEB e destruído todos os seus arquivos,
e tinha invadido a Livraria e editora Civilização Brasileira, que ao longo de
anos voltaria a ser vítima de bombas e destruição pela ditadura. E, o que é
mais grave: a situação de prisão, tortura e exílio de muito brasileiros ligados
aos Cadernos era uma realidade concreta. Grupos inteiros de lideranças
sindicais estavam presos ou tinham desaparecido. Lideranças camponesas
já vinham sofrendo o mesmo destino e, com o golpe, sua situação só havia
se agravado. Em suma, houve um desaparecimento e/ou exílio literal dessas
pessoas. A tendência que se apresentou em substituição, por assim dizer,
parece ter sido a da emergência de setores radicalizados de classe média,
antes menos hegemônicos, principalmente a partir da grande inuência da
UNE
12
e de intelectuais também radicalizados, agora em confronto direto
com o governo e com o regime e, às vezes, com o próprio Estado.
Nem por isso, a Coleção escapou a análises estigmatizantes, quando
a historiograa se viu obrigada a falar dela. E o que mais intriga é que foram
produzidas no momento da chamada reabertura pós-1979, não por acaso
o momento da volta de muitos exilados, onde a chance de retomar aqueles
temas era questão de tempo. Essas teorias foram produzidas no embalo do
10
Mesmo com a tentativa de articulação de uma frente que os dois petebistas tentaram no exílio juntamente com
Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda.
11
Também pesava e, neste caso, não só sobre o PCB mas a outros partidos, a desarticulação que a repressão
provocava na verdadeira caça que se implementou contra suas principais lideranças.
12
Ressalte-se que, no caso da UNE, sua presença marcante nos movimentos de resistência à ditadura, deu-se
apesar da atuação em plena ilegalidade da legenda. Em 1967, a maioria dos DCEs – Diretórios Centrais dos
Estudantes – já tinham sido retomados pelas forças de esquerda.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
88 |
encantamento dos anos 1980 com os chamados novos movimentos sociais
e que rejeitavam a concepção do nacional-popular desenvolvido nos idos
do início dos anos 1960.
Nelson Werneck Sodré, em texto escrito na década de 1980,
13
estava
atento às análises produzidas sobre o ISEB no pós-1964. E deu excelentes
indicativos de como o problema do ISEB foi tratado, principalmente em
São Paulo, mais especicamente na USP. Ele explica que a campanha
contra o ISEB foi uma das mais poderosas já orquestradas no Brasil e que a
direita fazia uso muito ecaz dos meios de comunicação. Explica também
que uma dada intelectualidade paulista, nada fez contra essa campanha e,
sob certos aspectos, aprofundou-a. Sodré arma que “em nosso país e no
exterior, a sigla ISEB despertava paixões, por vezes infrenes, e provocava e
mantinha curiosidade”. E que:
Se, do ponto de vista da luta ideológica, suscitou controvérsias
violentas, teve o condão, paralelamente, de despertar calorosa
inveja nos meios universitários, principalmente em São Paulo: os
donos de algumas cátedras, habituados ao monólogo e embalados
no empirismo, sentiam-se diminuídos pelo gigantesco prestígio
de que desfrutava o ISEB em certa época. Eles viviam na redoma
universitária; o ISEB ampliava a ressonância do que fazia pelo país
inteiro e chegava ao exterior. (SODRÉ, 1987, p. 77).
Mas a questão não se resumia a este aspecto, evidentemente. A
aparência da questão revelava uma essência de ordem teórica e metodológica.
Segundo Sodré, haveria pelo menos duas ordens de problemas. O primeiro
consistia na formação universitária da USP, caracterizada por insuciências
notórias “no campo das ciências da sociedade” (SODRÉ, 1987, p. 79).
O segundo, era o cultivo ao modelo da ciência do particular – que ele
arma ser um problema não só da USP, mas de maneira geral, de toda a
universidade brasileira – isto é, a um modelo emprestado das universidades
norte-americanas, que reetia o empirismo dominante nas ciências
humanas, “como acontece com os chamados brazilianists”:
13
Sob o título “O problema do ISEB” faz parte do livro publicado em 1985, e reeditado em 1987, História e
materialismo histórico no Brasil.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 89
Trata-se de uma numerosa coleção de fatos, sem chegar à relação
que os une. É o domínio do particular. E não há ciência do
particular, só há ciência do geral, já dizia o mestre. Via de regra
– e só se discute à base da regra e não da exceção –, as teses, lá
como cá, resumem-se em arrolamentos mais ou menos extensos
de dados, de material bruto. São trabalhos de Sísifo, porque não
abandonam o nível do particular, e o particular é innito. Resultam
do esforço – às vezes apenas físico – da acumulação informativa.
Seus autores sabem tudo e não sabem nada: sabem tudo a respeito
de determinado fenômeno ou processo e não sabem nada desse
fenômeno ou processo. Os trabalhos resultantes são necessários,
como fontes, aos estudiosos: constituem a pesquisa preliminar, a
montagem de andaimes informativos, que cada um deve realizar,
antes da análise de temas propostos. (SODRÉ, 1987, p. 78-79).
Com base nesses dois pressupostos equivocados, Sodré diz que “[...]
a incompreensão e a animadversão ao ISEB” foram “notas dominantes
no círculo docente universitário paulista.” (SODRÉ, 1987, p. 77). Sodré
direciona sua crítica, pelo menos neste texto, aos autores Carlos Guilherme
Mota, Maria Sylvia de Carvalho Franco e Francisco Weort. Sem deixar de
reconhecer que o ISEB cometeu alguns erros táticos e estratégicos à época,
Sodré esclarece que, no que diz respeito à perseguição sofrida pelo Instituto
em função de suas posturas progressistas, principalmente às vésperas do
golpe, quando a campanha foi brutal, “[...] a chamada intelectualidade
paulista e os quadros universitários docentes assistiram a tudo do ponto de
vista de Sirius.”, como se nada tivessem a ver com isso, e marcando posição
típica da “cumplicidade dos omissos”. (SODRÉ, 1987, p. 77). Ele mostra
o resultado a que isso levou no pós-1964, ou seja, apenas num primeiro
momento “a tempestade arrasou o ISEB”. Depois “[...] arrasou também a
USP e a enxurrada carregou os omissos – não todos, evidentemente, pois
salvaram-se, isto é, permaneceram em suas cadeiras, alguns rapazes de bom
comportamento.” (SODRÉ, 1987, p. 77). Sodré expõe cruelmente como
a autofagia entre as forças de esquerda, ou pretensamente de esquerda, só
leva a um vitorioso: a classe dominante.
Entendo que a postura generalizada da historiograa produzida
no pós-1964, de simplesmente estigmatizar o pré-1964, o conjunto de
Marcelo Augusto Totti (Org.)
90 |
forças políticas atuantes naquele momento, o ISEB, seus expoentes e, por
consequência, os Cadernos do povo brasileiro, levam ao citado processo de
ter um único vitorioso no embate das lutas de classes no Brasil – as forças
dominantes – e, neste caso, notadamente no aspecto da luta ideológica.
Portanto, após minha pesquisa sobre a totalidade dos 28 volumes dos
Cadernos, de fato contesto aqueles autores que consideraram os Cadernos
do povo brasileiro apenas como uma mera agitação e propaganda de nível
não acadêmico, com estilo pedagógico autoritário, de caráter histórico-
panetário e resultado político-manipulatório, expressões utilizadas por
Marilena Chauí no citado Seminário da FUNARTE.
Aliás, é importante acentuar que o quadro que resulta da leitura dos
Cadernos tem uma dada incompletude, justamente porque era o reexo de
uma incompletude das próprias classes sociais nos anos 1960, no Brasil:
a burguesia era ainda uma classe incompleta, do ponto de vista de seu
desenvolvimento histórico, o mesmo valendo para o proletariado. Fui
até os Cadernos com o objetivo de resgatá-los, para tentar demonstrar o
que foram de fato e não aquilo que uma dada corrente de interpretação
convencionou atribuir-lhes. E resultado foi o de que, em seus limites
históricos, mas também em suas qualidades, a coleção desempenhou uma
função social junto ao movimento de massas daquele período que, no
mínimo, merece atenção.
Além de Sodré, Ridenti e Augusto Buonicore
14
– os raros trabalhos
críticos à teoria do populismo produzida no pós-1964 –, recorro também
a Paulo Pontes,
15
que defende enfaticamente que no subdesenvolvimento
a inteligência também se desenvolve. Emprestando aqui suas reexões, o
teatrólogo defende que teria sido gerada uma contradição típica de uma
sociedade atrasada: os problemas são muito maiores e complexos do que a
capacidade que a sua elite política e intelectual tem de pensá-los. Isso teria
levado à busca de respostas para além dos limites dessa elite. Ele questiona:
quem caminhou no sentido de dar essas outras respostas? Foi a “geração
que botou a cabeça de fora no começo dos anos 60” e “[...] deu um passo
gigantesco para encurtar a distância entre a realidade e a capacidade de
14
Será referido adiante.
15
PONTES (1994).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 91
pensá-la, no nosso país.” (PONTES, 1994, p. 17). Em meu entendimento,
os cadernistas foram uma parte dessa geração que “botou a cabeça para fora
naquele momento. Pontes argumenta que dessa geração nasceu uma sociologia
brasileira indagativa, um pensamento econômico preocupado em formular
saídas ao subdesenvolvimento, planejadores, educadores, cientistas sociais (a
grande maioria colocada no exílio em seguida). E diz que estes setores não
paravam de publicar suas reexões sobre os problemas da realidade brasileira,
dando origem a uma moderna ensaística, um moderno jornalismo etc.
(PONTES, 1994, p. 18). Eu acrescentaria: surgiu uma renovação editorial
liderada por Ênio Silveira, e, mais que isso, uma nova concepção editorial
com várias frentes, sendo que uma delas foi levar o livro às grandes massas.
O exemplo emblemático desse projeto de popularização do livro foram os
Cadernos do povo brasileiro, que, reitero, venderam à época mais de 1 milhão
de exemplares, associados que foram aos projetos de alfabetização de adultos
desenvolvidos por Paulo Freire então.
É exemplar a síntese que Paulo Pontes apresenta, mas infelizmente
não foi autor hegemônico. Essa síntese demonstra que, apesar de uma
tentativa de ruptura – vitoriosa em muitos aspectos – que o golpe de 1964
provocou, essa geração conseguiu, principalmente no campo da criação
artística, mostrar que não estava morta:
O Brasil vivia, em 1960, talvez a sua fase mais criadora em todo o
século (...) No plano que mais de perto nos interessa, o da criação
artística, essa geração fez, apenas, o Arena, o Ocina, o Opinião,
os CPCs, o Cinema Novo e a Bossa Nova. Tinha fôlego, a turma.
Eles vieram de Tom Jobim e João Gilberto até Chico Buarque de
Holanda; de Dias Gomes e Guarnieri a Plínio Marcos; de Nelson
Pereira dos Santos e Glauber Rocha a Arnaldo Jabor; de Boal a José
Celso Martinez Correia; de Ferreira Gullar a Zuenir Ventura; de
Paulo Francis a Ziraldo. E foi uma geração que teve muito boas
relações com gente como Millor e João Cabral de Melo Neto,
Celso Furtado e Vinícius de Moraes, Otto Maria Carpeaux e
Jorge Andrade, Antonio Calado e Ênio Silveira, Antonio Houaiss
e Darcy Ribeiro, Nelson Werneck Sodré e Cavalcanti Proença –
guras singulares de diversas gerações que ultrapassaram cacoetes
e limitações do seu tempo e se encontram, todos, para produzir
Marcelo Augusto Totti (Org.)
92 |
a grande obra cultural saída do período a que estou me referindo.
(PONTES, 1994, p. 17-18).
16
2. a dIScuSSão Vanguarda versus maSSa: repercuSSão Sobre aS
propoSIturaS polítIcaS
Essa discussão reveste-se de aspectos estratégicos, mas
fundamentalmente de aspectos táticos. Era quase uma unanimidade nos
anos 1960 a concepção da necessidade de uma vanguarda do povo, por
mais que as interpretações táticas fossem distintas. O que se contestava
sobre o conceito de vanguarda não era sua necessidade, considerada em
si mesma. Ao contrário, reconhecia-se que, por exemplo, o movimento
operário tinha a função de ser vanguarda do movimento de massas. Mas a
diferença estava em como car próximo a esta massa: ser uma vanguarda
intelectual ou integrar-se a elas, trabalhando ao lado delas, muitas vezes
literalmente. Neste último caso, principalmente a partir de 1962, cou
muito difundida (e até mesmo praticada) a concepção inspirada na
revolução chinesa no sentido de os militantes irem trabalhar na agricultura
para estar junto aos setores populares, especialmente o camponês. Em
menor escala, mas também praticado, estava a inserção do militante
diretamente no trabalho das fábricas, no caso do proletariado urbano-
industrial. Em termos de partido político essas práticas permearam, por
exemplo, setores da AP e da POLOP, entre outros. Muitos estudantes
secundaristas e universitários foram trabalhar no campo ou na fábrica. E
permeou também setores de militância religiosa progressista católica: os
praticantes e simpatizantes da teologia da libertação, através da pastoral
operária, pastoral agrária, pastoral da juventude etc., que funcionavam
através de organismos tais como JOC (Juventude Operária Católica),
JUC (Juventude Universitária Católica) e outros.
Nesse sentido, os Cadernos estavam impregnados dessas concepções
vanguardistas e suas nuances, pois reetiam o conjunto de forças políticas
e sociais atuantes naquele momento no Brasil.
16
Essas observações do teatrólogo estão em texto que fez parte do programa da peça Alegro desbum, de Oduvaldo
Viana Filho, montado em 1976, no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo. Vianinha tinha falecido naquele
ano e o mesmo veio a ocorrer com Paulo Pontes, em 26 de dezembro. Ambos vitimados pelo câncer.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 93
No entanto, decorridos muitos anos da repressão que encerrou
os Cadernos do povo brasileiro, em meados dos anos 1980 surgiu uma
crítica estigmatizante da publicação, talvez a primeira que tenha colocado
diretamente em foco seus textos, formulada pela lósofa Marilena Chauí
(CHAUÍ, 1984), que havia referido em momento anterior deste texto.
Não foi uma tese defendida na universidade, nem muito menos um livro
especíco escrito sobre o tema, resultado de apurada pesquisa, mas tão
somente um conjunto de seminários realizados sobre o tema geral da cultura
popular. O seminário da autora sobre os Cadernos aparece publicada numa
coleção da FUNARTE que havia surgido para retratar aquela discussão,
sob a coordenação de um Núcleo de Estudos e Pesquisas daquele órgão.
Na qualidade de entidade vinculada ao governo federal, a FUNARTE
patrocinava, nos anos 1980, um conjunto de pesquisas sobre os conceitos
de “nacional e popular na cultura brasileira” nas áreas de losoa, cinema,
teatro, artes plásticas, música, literatura, televisão e rádio. É neste ato que
os Cadernos são transferidos, por assim dizer, da historiograa do silêncio
para a historiograa da desqualicação.
17
3. o autonomISmo como rejeIção àS VanguardaS
Nos anos 1980, depois da anistia de 1979 e em torno de 16 anos
após o golpe militar, o Brasil não era mais o mesmo da efervescência
característica dos anos 1960-64. Pelo contrário, tinha diversas cicatrizes,
a maioria ainda abertas. Havia um grande número de exilados retornando
ao país e, na perspectiva dos trabalhadores, estava-se sob o impacto do
ressurgimento do movimento operário de forma candente, através das
greves do ABC paulista de 1978-79-80.
Esse ressurgimento do movimento operário e sindical foi de fato um
divisor de águas decisivo contra as mordaças que os movimentos sociais
17
Não desconsidero que o enfrentamento desta temática mereceria ultrapassar os limites do texto apresentado
no seminário de Marilena Chauí, embora somente nele apareça a citação direta aos Cadernos. Porém, para
não ser leviana no tratamento dessa questão, e para não ultrapassar e confundir os limites de meu recorte
no presente capítulo de livro, adianto que faço esse enfretamento em artigo que lançarei brevemente, supra
citado. Tal empreitada tem demandado, no mínimo, defrontar-me com os pressupostos losócos no campo do
existencialismo que a autora utiliza, na competente e numerosa produção intelectual que Chauí tem no Brasil
e fora dele.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
94 |
em geral haviam sofrido na ditadura militar. Muitas correntes quiseram
se apresentar como a vanguarda desse movimento, mas uma delas tinha
justamente a concepção de não se colocar numa perspectiva de vanguarda.
Pelo menos inicialmente. Essa corrente, embora recusasse ser rotulada,
cou conhecida como autonomista.
Assim, o chamado autonomismo não se constituiu exatamente num
grupo ou coisa do gênero. Era muito mais um setor que ao invés de defender
algumas coisas, estava contra outras. Exemplo: era contra as vanguardas,
contra o chamado populismo do pré-64, contra o comunismo em geral e
contra o PCB em particular. Enm, não podemos dar a essa vertente um
estatuto de grupo organizado porque isso não aconteceu, e parece-nos que
não era nem mesmo a intenção de algumas das guras intelectuais que se
puseram nessa perspectiva. Sem dúvida, aquele que mais se destacou como
expressão dessa vertente foi o sociólogo da USP, Éder Sader (1941-1988).
Envolvido em todo o processo de fundação do Partido dos
Trabalhadores,
18
Sader representava – num dado momento – o maior
expoente teórico dessa corrente autonomista, tendo sido também um dos
principais articuladores da Revista Desvios, lançada em novembro de 1982,
e destinada a inuir, entre outras coisas, no debate interno do recém-
fundado PT. Grosso modo, os autonomistas queriam desviar, a todo custo,
o movimento operário de qualquer espécie de concepção de vanguarda.
Aquele primeiro número da revista dedicou-se a um debate sobre um
texto conhecido como “Onze teses sobre a autonomia”, publicado com o
título “A autonomia em questão” (1982), assinada pelo coletivo da Revista
Desvios, entre eles Éder Sader, conhecido como seu autor mais destacado
(CHAUÍ, 2003b, p. 273).
19
Portanto, entendo que a discussão realizada por Chauí nos
seminários de cultura popular contra os Cadernos do povo brasileiro situa-se
nessa perspectiva. Até porque ela também esteve diretamente envolvida
na fundação do PT e, portanto, em toda a discussão autonomista que
18
Fundado em 10 de fevereiro de 1980, em São Paulo.
19
Há uma síntese das 11 teses autonomistas em C (2003a, p. 308-309).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 95
permeou o período. Publicou também um texto nessa linha de análise no
primeiro número da Revista Desvios.
20
É sintomática uma frase de Marilena Chauí que aparece em seu livro
Cultura e democracia (2003), pois revela de modo cabal sua aversão pela
concepção de cultura popular e nacional popular no pré-1964:
Para aqueles, como nós, que passaram pela experiência histórica
do populismo, as expressões “cultura popular” e “cultura do povo
provocam certa desconança e vago sentimento de mal-estar.
(CHAUÍ, 2003a, p. 61).
21
4. a eStIgmatIzação doS Cadernos do povo brasileiro
Na esteira das críticas autonomistas, Chauí desenvolve em seus
textos de análise do período do pré-1964, as posições que aquela corrente
divulgou e, mais que isso, das quais ela foi uma das formuladoras:
antivanguardismo, antipopulismo, anticomunismo e, por consequência,
um antimarxismo. E, num âmbito mais geral, essas posições coincidiam
com os pressupostos da teoria do populismo.
22
Portanto, a leitura de Chauí sobre os Cadernos do povo brasileiro
parte desses pressupostos. É uma crítica implacável, destruidora, com o
propósito de fazer “terra arrasada” daquela publicação, especialmente em
sua concepção de revolução brasileira. A intolerância de Chauí, bem como
de autores que, como ela, estiveram empolgados, nos anos 1980, com os
novos movimentos sociais”, é analisada de maneira não intolerante por
Marcelo Ridenti em seu importante estudo Em busca do povo brasileiro
(2000), onde o autor faz uma demonstração de análise crítica pautada por
pressupostos de ordem teórica e histórica que deveriam ser referência a
20
A autora reedita um texto sob o título “Representação ou participação?” (C, 2003b), dedicado à memória
de Éder Sader. O texto originalmente tinha sido um seminário realizado em 1982 e foi publicado sob o título
“Por uma nova política” (C, 1982), no número 1 da Revista Desvios.
21
Esta frase de Chauí é usada como epígrafe em artigo de Augusto Buonicore (2004b), no Jornal Vermelho, onde
analisa o CPC da UNE. O autor critica a posição da autora e seu texto tem o título “Centro Popular de Cultura
da UNE: crítica a uma crítica”.
22
Reitero que a crítica que constitui objeto de meus estudos é àquela teoria do populismo na vertente de
Francisco Weort. Outras vertentes se desenvolveram que, não necessariamente, constituíram-se como
hegemônicas e desenvolveram diferentes hipóteses.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
96 |
muitos dos estudos sobre o período. Em momento do texto onde está
analisando o lme Cabra marcado para morrer, Ridenti arma que o lme
seria revelador das contradições das classes médias intelectualizadas, em
busca da aproximação do suposto homem autêntico do povo. E continua:
Contudo, essas contradições passam longe de mera manipulação
populista, como sugeria uma série de críticas de esquerda,
sobretudo nos anos [19]80, de intelectuais então empolgados com
os chamados novos movimentos sociais e sua suposta autonomia
– esquerda cujos limites logo viriam a revelar-se e está por merecer
uma crítica tão radical (mas nem tão intolerante) quanto a que
impôs à tradição nacional popular que a antecedeu. (RIDENTI,
2000, p. 99).
Um outro momento onde Ridenti refere-se a essas interpretações,
e que vale a pena destacar aqui, é quando caracteriza a posição terceiro-
mundista que artistas e intelectuais defendiam. Esse terceiro-mundismo
seria posteriormente acusado de mascarar os conitos de classe na
sociedade brasileira, espécie de trunfo dos intelectuais para ganhar
poder”. E, identicando as origens daquela corrente – que vai se armar
denitivamente nos anos 1980 – o autor, novamente de maneira
equilibrada, pondera que:
este tipo de avaliação ganhou terreno a partir do m dos anos
70, quando alguns intelectuais procuraram fazer um acerto
de contas com a experiência de engajamento imediatamente
passada, praticamente descartando o nacional-popular como mero
populismo: exageraram seus limites, talvez sem avaliar a fundo
seus alcances, supondo consciente ou inconscientemente que a
intelectualidade de esquerda dos anos 80 tivesse alcançado um
patamar superior – suposição hoje muito discutível. (RIDENTI,
2000, p. 35).
23
23
Ridenti, neste item do texto, está se referindo justamente aos textos da coleção da FUNARTE, onde escreveram
Marilena Chauí e outros. Ele o faz através de longa nota de rodapé. (R, 2000, p. 58).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 97
Marilena Chauí faz observações de duas ordens contra os Cadernos
da coleção: a) do ponto de vista de seu estilo e forma; b) do ponto de vista
de seu conteúdo.
No primeiro caso, classica-os como impositivos e autoritários, e
arma que eles fariam uso de um tom normativo, axiomático e maniqueísta,
que resultaria numa pedagogia autoritária (CHA, 1984). No segundo
caso, classica-os como doutrinários, onde exerceria papel preponderante
muito mais a persuasão do que a discussão e o esclarecimento (CHAUÍ,
1984, p. 83). Segundo a autora, o autoritarismo dos cadernistas se revelava
no estilo pedagógico manipulatório, onde relatos históricos feitos para
exemplicar um dado tema eram escolhidos segundo critérios baseados
nas conclusões a que se desejava chegar. Entendo que Chauí opera uma
inversão: ao invés de criticar o autoritarismo da ditadura militar iniciada
em 1964, a autora (des)qualica os Cadernos como “autoritários” (que,
lembremos, defendiam uma proposta de revolução brasileira).
Sua análise recai sobre os 25 volumes de temática histórico-social.
Não são citados, em momento algum, os três volumes artístico-culturais
Violão de rua e sua respectiva concepção sobre a cultura popular. O que
é estranho, pois o tema principal da autora no seminário dizia respeito
justamente a essa concepção.
24
Dos volumes analisados, Marilena Chauí
constrói uma tipologia, onde procura encaixar cada um dos autores e seus
temas. Ele divide as publicações em quatro tipos: 1) estilo informativo;
2) doutrinários e programáticos; 3) de combate direto; 4) histórico-
panetários. (CHAUÍ, 1984, p. 73). Ao discriminar os títulos, só
aparecem 22 dos 25 volumes. Não são classicados os volumes Que são
as Ligas Camponesas? (comentado posteriormente), Que é a Constituição?
(nenhum comentário, mesmo posteriormente) e Que é o imperialismo?
(nenhum comentário).
Chauí também faz uma observação sobre a tônica marxista das
publicações, ressalvando que apenas dois autores não trabalhavam sob esta
ótica teórica: Barbosa Lima Sobrinho, no seu texto sobre o nacionalismo e
o Padre Aloísio Guerra, no texto que explica se a Igreja estava com o povo.
24
Talvez essa omissão se deva ao fato de que no mesmo seminário a autora foi responsável por fazer a crítica ao
documento de fundação do CPC, escrito por Carlos Estevan Martins, Manifesto do CPC.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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Nem por isso os dois autores escapam às críticas da autora, pois teriam
escrito no mesmo diapasão autoritário do restante da coleção.
A maior aversão de Chauí ao marxismo é o que ela chama de
concepção feuerbachiana do jovem Marx, quando este último arma que
a teoria quando penetra na massa se torna uma força material. (CHAUÍ,
1984, p. 83). Para a autora, a massa não seria “passiva” e, por isso, não pode
ser penetrada, como se necessitasse de algo vindo de fora. Lembremos que
esse é o principal ponto sobre o qual se debruçam os esforços dos autores dos
anos 1980 em criticar a teoria das classes sociais em Marx. Outra aversão
teórica e política de Chauí é ao leninismo, especialmente no livro Que
fazer?, quando, segundo a autora, ele arma que a consciência das massas
deve vir de fora dela. Fica patente o antileninismo das teorias pós-1964 –
Chauí como uma de suas principais expressões teóricas, que se colocavam
como críticos do nacional-popular – substituindo-o pelo autonomismo.
(CHAUÍ, 1984, p. 83). O trecho da autora que mais simboliza essa aversão
ao marxismo é quando se refere ao resultado nal dos Cadernos, a partir de
uma espécie de disputa que teria havido entre os autores:
Creio ser por isso, anal, que o debate travado entre os Cadernos é
uma disputa entre eles na denição da linha justa de pensamento,
de ação e de direção do povo e da nação, não carecendo de que estes
se façam presentes, pois só se tornam ativos quando ativados pela
consciência que lhes vem de fora, quando a teoria penetra na massa,
torna-se uma força material”. (CHAUÍ, 1984, p. 86, grifo nosso).
A autora tem uma tendência em tratar os autores de forma
homogênea, como se todos estivessem no mesmo nível teórico e na
mesma trajetória política e/ou acadêmica, para não dizer social. Assim,
não há nenhum senão às diferenças intelectuais daquilo que foi – em meu
entendimento, respaldado por fundamentações históricas e teóricas em
minha pesquisa – um aspecto muito positivo dos Cadernos: a coexistência
de autores consagrados (como Nelson Werneck Sodré, Álvaro Vieira Pinto,
Osny Duarte Pereira, Barbosa Lima Sobrinho, Virgínio Santa Rosa) e
autores iniciantes (no caso, os alunos da Faculdade Nacional de Filosoa
convidados a escrever pela primeira vez, tais como Wanderley Guilherme
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 99
dos Santos, eotônio dos Santos, Helga Homann, Jorge Miglioli etc).
Ignora-se, ainda, um terceiro bloco de autores que talvez se localizassem
entre as duas anteriores: jornalistas, educadores, cientistas sociais e até
mesmo um padre. A heterogeneidade de autores que, em minha avaliação,
signicou justamente o cuidado para que não prevalecesse uma só
visão de mundo nos projetos de esquerda – notadamente a pecebista –
não é observada pela autora, no afã de colocar todos os cadernistas no
mesmo saco descartável do populismo do pré-1964. Todos são jogados
indiscriminadamente na lata de lixo da história construída pela teoria
do populismo hegemônica. Importante ressalvar que o próprio editor
Ênio Silveira tinha essa preocupação de a coleção não tornar-se um mero
instrumento do PCB, resultado de sua presença hegemônica na esquerda
do período. Só que neste caso, não se tratava de nenhum tipo de postura
anti-comunista. Ao contrário, trata-se de um cuidado editorial que ele já
desenvolvia com o restante das publicações da Civilização Brasileira e que
possibilitava justamente o encontro teórico e político de várias alternativas
do pensamento de esquerda no Brasil. Ademais, se o predomínio de
uma dada concepção de revolução brasileira etapista, semelhantes aos
moldes defendidos pelo PCB, acabou sendo uma tônica dos Cadernos isso
correspondeu da própria inuência que o PCB teve no período e que não
se revelou apenas nos Cadernos do povo brasileiro.
Desta forma, nivelados na mesma régua “anti-populista” e anti-
vanguardista de Marilena Chauí, os autores são vistos indiferenciadamente.
Justamente para “embasar” a crítica da autora que reclama pela
heterogeneidade. Outro ponto observado pela autora, que seria comum a
todos os cadernistas, era a suposta postura anti-democrática (sic!) de cada
um deles:
Uma análise detalhada dos Cadernos poderia mostrar que o
contraste das posições defendidas chega a um resultado curioso: o
debate, enquanto tal, é democrático, mas cada um dos autores não
parece sê-lo o bastante. (CHAUÍ, 1984, p. 82).
Quando a autora reconhece uma dada heterogeneidade nos Cadernos,
refere-se a isso apenas como aspectos tópicos e que buscavam uma
Marcelo Augusto Totti (Org.)
100 |
solução denitiva para a proposta da revolução brasileira. “Subjacente às
divergências tópicas entre os autores, encontra-se uma que não só atravessa
todos os Cadernos, mas que é ainda a tônica das diferenças políticas do
período: revolução socialista ou democrático-burguesa?” (CHAUÍ, 1984,
p. 74) Neste último aspecto a autora está parcialmente correta, pois de fato
eles divergiam entre duas propostas estrategicamente opostas.
Para Chauí a publicação não tratava seriamente da teoria e da
prática. “Só” tratava de informação e de programa para a ação. Como não
conseguiam retratar devidamente a teoria, acabavam sendo maniqueístas
(leia-se “ideológicos” e não cientícos, essência da crítica uspiana ao ISEB(),
pois “[...] todos os Cadernos são construídos sobre dicotomias, antinomias
e antíteses que, retoricamente, são apresentadas como ‘contradições’, sendo
porém tão imóveis e positivas que não chegam a ultrapassar o contraponto.
(CHAUÍ, 1984, p. 75) Depois a autora tenta dar uma justicativa histórica
para esses eventuais equívocos dos Cadernos onde, de novo, embute uma
crítica mordaz: “É possível que a hostilidade crescente da direita levasse
os Cadernos a esse maniqueísmo, deslizando dos dados empíricos para os
arquétipos e destes para os estereótipos.” (CHAUÍ, 1984, p. 75).
A autora insiste na seguinte questão: o povo não poderia ser, ao
mesmo tempo, o objeto e o destinatário dos Cadernos. Isto é, tudo na
publicação era imputado ao povo e à nação – desejos, ideias, modos de ser,
práticas, ações, aspirações – “sem que nenhum deles apareça de viva voz”.
Isso porque “[...] os Cadernos constroem o popular e o nacional, embora
tenham a pretensão de estarem a expô-los.” (CHAUÍ, 1984, p. 84). Não
ca muito claro nesta crítica de Chauí como se daria o processo inverso,
ou seja, como o popular e o nacional podiam brotar por si próprios nas
páginas da coleção ou de qualquer outra publicação. Aliás, este é um
dos pontos mais frágeis da corrente autonomista, cuja resposta vaga vai
sempre na direção de que é o povo, indistintamente, que terá que descobrir
isso e não os intelectuais. Parece haver aí uma visão ahistórica, onde as
situações produzidas socialmente não pudessem exercer qualquer tipo de
inuência sobre a existência dos seres humanos. E, no limite, tal visão
levaria a uma eventual dispensa de qualquer processo de educação popular!
O que signica um paradoxo da tese autonomista defendida por Chauí.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 101
Anal, tudo que venha “de fora” do popular, não contribuiria para sua
real descoberta enquanto povo. Talvez por isso, em nenhum momento da
crítica de Chauí apareça a expressão “lutas de classes” e muito menos sobre
a dinâmica contraditória entre capital e trabalho.
Essa ressalva é importante de ser feita neste momento da exposição,
porque Chauí – em sua crítica aos cadernistas – procede de tal modo no
recorte dos textos que, frequentemente, destaca as frases mais apocalípticas
e ainda fora do contexto em que foram produzidas, privilegiando em
demasia o aspecto a ser criticado. Isso resulta, para usar um eufemismo,
num desequilíbrio da análise. Com isso, repito, não estou negando a
existência desse tom de agit-prop, ao contrário, mas apenas vendo sem
preconceito essa forma de escrever, como parte de uma tradição nos escritos
de esquerda, sustentada pela necessária divulgação contracorrente (agitação
e propaganda de classe, como momento político da formulação teórica).
Porém, a crítica de Chauí passa a impressão de que existe apenas esse tipo
de frase na coleção. A tal ponto que, se alguém tiver contato primeiramente
com a crítica dela do que com os escritos dos Cadernos, corre o sério risco
de não ter coragem de sequer abrir as páginas da coleção. Anal, esse era
o propósito da crítica autonomista empreendida. E é essa historiograa
paulista que hegemoniza até hoje a leitura, não só sobre os Cadernos, mas
sobre praticamente todo o período das esquerdas do pré-1964.
Com certeza, teria sido mais interessante se a crítica dos defensores do
autonomismo tivesse se revelado através de pressupostos de ordem teórico-
histórica que justicassem uma outra maneira de ler a formação social
brasileira, e não simplesmente pela simplicação argumentativa – pelo menos
neste caso – de um preconceito que parece ser de ordem ideológica, embora
com as cores de uma crítica no campo da esquerda e, fundamentalmente,
por um dado setor da intelectualidade paulista.
25
25
“No nal da década de 1970 constituiu-se uma opinião bastante crítica às experiências do movimento
nacional, democrático e popular, hegemonizado pelos comunistas e nacionalistas, no início da década de 1960.
Tudo, ou quase tudo, que foi produzido foi taxado de populismo. Nada escapou à devastadora onda crítica:
ISEB, CPC, PCB, sindicatos etc. O centro desta nova produção foi, sem dúvida, a Universidade de São Paulo
(USP)”. (BUONICORE, 2004, p. 1-2).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
102 |
5. concluSão
Analisando toda a fecundidade que os anos imediatamente
anteriores ao pré-1964 apresentava, ca realmente muito difícil
simplesmente armar – como o faz a teoria do populismo e a teoria do
autonomismo – que tudo ali fazia parte do ardil de um pacto populista
manipulatório que não levaria a lugar algum. Principalmente quando se
estuda o período numa perspectiva de resgate do que vinha realmente
acontecendo naquela sociedade, pois apresentava um nível de contestação
e de reivindicações políticas que, até então, o Brasil nunca tinha assistido,
pelo menos naquela intensidade.
Diante disso, podemos fazer várias perguntas: anal, quem em sã
consciência – do ponto de vista da classe trabalhadora – poderia considerar
ruim que um conjunto de pessoas em crescente politização se manifestasse
constantemente seja através de greves, de comícios, de ligas camponesas, de
federações e confederações sindicais, etc.? Quem, em sã consciência, poderia
considerar ruim que fossem disseminadas formas de manifestação artística
que tivessem como objetivo contribuir para o processo de humanização do
homem? Quem poderia considerar maléco que se preservasse a mínima
condição democrática que, bem ou mal, possibilitava a existência de um
solo básico para o livre pensar, o livre agir e que, sabemos muito bem,
nem era tão livre assim? Ou seja, mesmo nos estreitíssimos limites de
uma democracia constantemente ameaçada, a emergência de lutas e de
manifestações culturais no Brasil do pré-1964, fruticou e se disseminou
de maneira tão intensa que seria difícil acreditar que o incômodo provocado
por ela às classes dominantes não pudesse ter como resposta uma saída
absolutamente radical no sentido literal de cortá-la “pela raiz”, daí a saída
ditatorial militar. Será mesmo que tudo isso correspondia apenas e tão
somente a uma manipulação partidária ou politicamente sectária de
líderes populistas interessados em se manter a qualquer custo no poder?
Será que acreditar nisso não seria atribuir demasiada importância a uma
armação político-mental estranhamente sosticada e, paradoxalmente,
desrespeitar justamente a capacidade de pensar e de reagir das massas
populares que essas correntes interpretativas julgam estar defendendo? Ou
será que as camadas sociais interessadas em procurar um caminho para a
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 103
concretização da revolução brasileira, independentemente de seus erros e
acertos, estavam tão somente sendo teleguiadas por mentalidades sórdidas
e mal-intencionadas de governos populistas e não por forças históricas e
políticas contraditórias que, no embate das lutas de classes possibilitado
por um mínimo de democracia, procuravam estabelecer sua hegemonia no
movimento popular, a m de construir uma contra-hegemonia no âmbito
do capitalismo?
Senão, vejamos. Como armou muito apropriadamente Paulo
Pontes, sobre o período imediatamente anterior ao pré-64, “[...] pouco mais
de uma década de democracia foi capaz de gerar o processo, interrompido
abruptamente em 1964, quase no nascedouro, de intercomunicação entre as
classes sociais não comprometidas com o grande latifúndio e com o capital
estrangeiro.” (PONTES, 1994, p. 17) Ele identica nesse “nascedouro
de que maneira aquele contexto fecundo se estruturava: “A sociedade se
dividia, se debatia, se agitava, dormia, acordava, respirava em torno dessas
questões – e, nessas condições, ia-se formando a mais criadora geração
de economistas, sociólogos, técnicos, pensadores, educadores, artistas e
escritores que o país conheceu neste século.” (PONTES, 1994, p. 17).
Indico em síntese, apenas dois aspectos sobre os Cadernos do povo
brasileiro que merecem uma menção nal: a) em primeiro lugar, a coleção
congurou uma imagem do Brasil no pré-1964, isto é, lendo agora, em
pleno século XXI, a descrição histórica trazida pelos cadernistas é possível
ter um quadro do país desde o processo de colonização até as vésperas
do golpe, formando um Brasil contado pelos cadernistas; em segundo, os
Cadernos cumpriram uma função social naquele momento da história
brasileira: como difusão de conhecimentos históricos, políticos, teóricos,
sociais e culturais; e, paralelamente, como um elemento de agitação e
propaganda na luta de classes no Brasil. Prova disso foi a discussão que
suscitaram a partir da inserção da publicação nos sindicatos, nas fábricas,
nas Ligas, na UNE, no CPC, no CGT, nos partidos, nas universidades etc.
Ou seja, no primeiro aspecto a Coleção mostrou como o Brasil tinha sido;
no segundo, como o Brasil poderia ser.
Acredito que, com essa postura estigmatizadora dos Cadernos, as
correntes teóricas hegemônicas paulistas eliminaram possibilidades de
Marcelo Augusto Totti (Org.)
104 |
discussão sobre uma das partes mais signicativas da história brasileira
e, consequentemente, da constatação do ascenso da luta de massas e
das lutas de classes no Brasil. Não podemos desprezar o fato de que esse
ascenso se deu em caráter nacional. No nal dos anos 1950 e início dos
anos 1960 as lutas se desenvolviam tanto no campo como na cidade, tanto
nas ligas como nos sindicatos operários. Nesse sentido, os Cadernos são
uma parte – e uma parte nada desprezível – do resgate desse momento e,
nessa medida, eles têm o poder de remeter-nos à discussão sobre aquele
momento fecundo, sobre aquelas manifestações. Inclusive para a análise
de seus eventuais erros, mas também para a análise de suas positividades.
E isso tudo sem jamais esquecer o âmbito isebiano em que a coleção se
desenvolvia, marcado de maneira sobrepujante pelo compromisso do
intelectual público e não apenas do intelectual acadêmico.
E, para encerrar, cabe referir a importância daqueles brasileiros do pré-
1964, que leram e divulgaram de mão-em-mão os Cadernos do povo brasileiro,
bem como a importância de todos os autores que trabalharam no último
ISEB. Hoje, algumas décadas distantes, e com as possibilidades de difusão
do pensamento multiplicadas de forma on-line – no paradoxo de parecerem,
por um lado, quase banalizadas e, por outro, de acesso imprescindível –
talvez seja difícil de entender, pelo menos para as gerações mais recentes, a
importância de uma publicação daquele tipo. Mas a devida análise de sua
conjuntura histórica não deixa dúvidas sobre a importante função social
que o ISEB, a editora Civilização Brasileira e seu editor desempenharam,
propiciando a publicação da coleção. Resta agora reetir se o preço que
aquela geração pagou por escrever tais textos, ou simplesmente por divulgá-
los – respondendo a Inquéritos Policial-Militares, sendo presos, torturados,
exilados ou mortos – foi suciente para que as gerações atuais e futuras
não desprezem aquela contribuição e aquele esforço empreendidos com
dedicação, suor, e algumas vezes com a própria vida.
referêncIaS
BUONICORE, Augusto. Centro Popular de Cultura da UNE: crítica a uma crítica
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 B
Marcelo Augusto Totti
Nos cursos ao qual ministro na Faculdade de Filosoa e Ciências
da Unesp de Marília, um deles é história do pensamento social brasileiro,
um dos autores estudado é Guerreiro Ramos, faço questão de retomar o
pensamento de Guerreiro Ramos para entendermos a formação das ciências
sociais brasileira a partir desse contraponto com a escola de sociologia paulista
e com Florestan Fernandes.
Essa perspectiva analítica não é muito usual nas ciências sociais
brasileiras e muito menos na sociologia, há uma prevalência muito forte
da discussão em torno da vertente uspiana. Colocar a discussão sobre
o ISEB em um evento comemorativo dos 100 de Florestan é muito
singular, os eventos que acompanhei sobre o centenário do sociólogo
uspiano falaram pouco ou quase sobre o debate com o ISEB, o que
entendo ser fundamental importância para estabelecer um contraponto
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p107-124
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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crítico e histórico. Assim, gostaria de começar com duas frases, a
primeira de Renato Ortiz em artigo publicado na Revista Brasileira de
Ciências Sociais, onde discute o que denomina como as ciências sociais e
a diversidade de sotaques, argumenta que:
[...] o pensamento latino-americano subdividia-se, portanto, em
unidades menores: brasileiro, mexicano, argentino, chileno. A
história das ciências sociais é narrada no plural, não no singular:
sociologia brasileira, sociologia peruana, sociologia mexicana etc.
Aspecto que acirra a contradição entre o autóctone e o estrangeiro,
pois toda identidade contém uma dupla face: ela delimita um
espaço interior (moradia da autenticidade) e o separa doque lhe
seria estranho. (ORTIZ, 2012, p. 18).
Continua Ortiz (2012, p. 18, grifos do autor) “[...] a rigor não
faria sentido falar na existência de um pensamento francês ou alemão,
para Durkheim e Weber, seriam universais, Parsons tampouco poderia
ser identicado como norte-americano, ele era o autor de A estrutura da
ação social.” Esse é o debate que coloca em campos opostos, de um lado
o Florestan Fernandes apontando a perspectiva dos métodos universais da
ciência e Guerreiro Ramos, que vai defender uma sociologia de caráter
nacional. No interior dessa contenda que foi criada os rumos e o caráter da
formação da sociologia no Brasil.
Ainda no interior desse debate cito a segunda frase de autoria de
Gabriel Cohn na abertura do III Congresso Brasileiro de Sociologia,
ocorrido em Brasília, em 1987, quando classicou a ácida e polêmica
contenda entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes “en passant como
diálogo de surdos’” (MATOS, 1997, p. 149). pois ambos estavam corretos
visto que no fundo versavam sobre questões aparentemente distintas. Aliás,
Gabriel Cohn é muito bom em produzir frases de efeitos, uma delas está
no livro organizado pela Maria Angela D’Incao, oriundo da 1ª Jornada de
Ciências Sociais da Unesp, que se realizou no Campus de Marília em 1986,
em capítulo intitulado “O ecletismo bem temperado”, destinado a analisar
as relações entre sociologia e antropologia no pensamento de Florestan
Fernandes, destaca que para o sociólogo uspiano os procedimentos
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
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metodológicos se sobrepõe a questão analítica: “Em Florestan o que importa
fundamentalmente são os procedimentos de análise da realidade, os modos
de enfrentar a realidade pela via do pensamento analítico. Interessa mais a
ordem dos procedimentos para se dar conta da realidade do que a ordem
dos conceitos na teoria internamente consistente.” (COHN, 1987, p.
49) o que levaria a um “ecletismo bem temperado” não simplesmente
relativizador” nem atomizador dos procedimentos analíticos (COHN,
1987, p. 50).
Feito esse preambulo inicial, é importante retomar o contexto do
debate acadêmico nos anos 1950 e 1960 ao qual Florestan é gura central,
como também, o debate travado com Guerreiro Ramos. Em 1949, Florestan
Fernandes já havia defendido e publicado a dissertação de mestrado A
organização social dos tupinambás, que teve uma enorme repercussão
acadêmica, levando um antropólogo de relevo como Lévi-Strauss a
classicá-la como uma obra que havia revolucionado a antropologia. A
importância dessa obra é tão signicativa ao contexto intelectual brasileiro
e seu início, que Antonio Candido em conversa com o próprio dimensiona
o impacto da publicação: “Florestan, vendo o seu trabalho a gente não tem
inveja dos ingleses. Agora temos um livro para mostrar.” (CANDIDO,
1978 apud FERNANDES, 1978, p. 85).
O trabalho desenvolvido por Florestan sobre os tupinambás era
muito incomum aos padrões da sociologia da época, ele reconstruiu a
organização dos tupinambás, povo que havia sido extinto no século XVIII,
através da utilização rigorosa de métodos cientícos e “[...] materiais
utilizados pelos paleontólogos, biólogos e antropólogos que estudavam
aspectos particulares dela.” (CERQUEIRA, 2004, p. 48). A idade do
autor também chama atenção, vinte e sete anos, Antonio Candido chega
a chamá-lo de maluco, porque as diculdades de realizar um trabalho
de linhagem estrutural-funcionalista que dada as características dos
trabalhos desenvolvidos no período com povos indígenas requeria uma
perspectiva etnográca.
Esse trabalho tem como premissa um rigoroso e extenso labor
metodológico, que dá a Florestan Fernandes as credenciais necessárias para
novos desaos de forma aprofundada, com referencial teórico consolidado
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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e maturidade na elaboração do chamado artesanato sociológico, de um
trabalho de comunidade com reconstrução de uma sociedade a partir de
relatos de viajantes, cronistas e documentos do período e para o trabalho de
doutoramento com dados mais sensíveis e pertinentes ao desenvolvimento
cientíco. Assim, abre-se uma nova etapa na carreira sociólogo,
[...] a monograa sobre A Função Social da Guerra na sociedade
tupinambá tinha outra signicação teórica, em si mesma e para
mim. Foi a primeira tentativa que z de ‘sair do chinelo’ e de
enfrentar o trabalho de elaboração teórica propriamente dito. A
teoria que estava em jogo era a teoria da solidariedade coletiva
nas sociedades tribais. E é em alguma coisa que eu poderia fazer
depois de ter contemplado um trabalho de reconstrução pura e
simples, como no livro anterior. Quem leu os dois livros vai nota
que eu avanço muito mais no segundo, porque a reconstrução está
estabelecida. (FERNANDES, 1978, p. 87, grifos do autor).
O trabalho de mestrado oferece os alicerces necessários para
realizar uma sistematização teórica muito mais condensada e densa
para uma contribuição cientíca muita mais sistemática à sociologia
brasileira. Esse trabalho ele foi duramente criticado por vários setores
da intelectualidade, muitos deles do campo da esquerda em função do
seu caráter funcionalista, ao qual o próprio autor questiona “[...] foi o
trabalho mais rigoroso que eu realizei, embora hoje ele pareça um trabalho
menos importante porque hoje se condena de maneira preconceituosa e
dogmática toda a espécie de análise funcionalista. Todavia, eu duvido que
alguém possa tratar as relações sincrônicas de uma perspectiva dialética.
(FERNANDES, 1978, p. 85).
Para ele, esse livro teve a maior contribuição teórica e de rigor que já
realizou, justamente por isso considera essas críticas como infundadas, visto
que o sociólogo uspiano avalia esse trabalho como um trabalho sincrônico
que é uma análise interpretativa e analítica de um sistema de regularidade
concreta do tempo e na vida da sociedade tribal, que buscava-se renovar
incessante na busca do seu passado. Uma análise que não poderia ser
realizada pela perspectiva dialética, visto que não se buscava considerar
a mudança no tempo, pois sua intenção não era estudar a transformação
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 111
daquela sociedade, e muito menos o processo de transformação dentro
de uma totalidade, ali procurou fazer como a sociedade recupera o seu
passado de maneira incessante para inclusive renovar-se, essa renovação
ocorria mantendo suas bases estruturais. então, o uxo da vida social
une, perpetua e se renova a partir de um padrão estático de equilíbrio de
personalidade, de economia, da sociedade e da cultura.
Florestan Fernandes buscava então entender as formas culturais do
passado recuperadas na vida indígena no presente, não para negar essas
realidades atuais, mas sim como fonte de inovação e modernização, “[...]
onde ele estabeleceu a relação entre a análise funcional e marxista ... houve
uma certa relação entre funcionalismo e marxismo que muito anos depois
se tornou uma coisa, talvez, impensável, mas que existiu não só no Brasil,
mas também em outros países.” (MARTINS, 1987, p. 55). Hermínio
Martins refere-se a escola de antropologia de Manchester dirigida por Max
Gluckman, que apesar de se considerar funcionalista bebia de fontes de
marxista e tinha entre seus integrantes inúmeros marxistas, muitos deles
membros do Partido Comunista Britânico.
A defesa do doutorado rendeu a Florestan Fernandes reconhecimento
acadêmico e um prestígio ímpar, ainda em sua fase de elaboração, ocorreu
o convite de Roger Bastide para participar de uma pesquisa encomendada
pela Unesco sobre as relações raciais no Brasil. Roger Bastide, já tinha
uma carreira consolidada e era um sociólogo respeitado quando convida
Florestan a participar dessa pesquisa. Florestan recusa convite várias vezes,
pois estava atarefado com sua tese, até que um determinado dia e isso pesou
fortemente na decisão de Florestan, pois Florestan foi durante 4 anos aluno
de Roger Bastide
1
, depois de muita insistência de Bastide e ao “[...] ao sair
da sala em que conversávamos e, no vão da porta, me perguntou: ‘o senhor
não aceita só escrever? eu colho os dados para o senhor.’” (FERNANDES,
1
A relação com Roger Bastide chegou a render certos embaraços para Florestan: “Diz respeito à minha
transferência da cadeira de sociologia II para a de sociologia I. O professor Roger Bastide, que num dado
momento precisava voltar para a Europa, colocou o departamento diante do problema de que eu poderia ser
a pessoa indicada que deveria car em seu lugar. Fernando de Azevedo não gostou da história, pois foi uma
interferência direta, em público, na estrutura da cadeira de sociologia II. Ele não perdia grande coisa mas, de
qualquer maneira, queria ser o autor da iniciativa. Roger Bastide, que era uma espécie de santo em matéria de
inocência e em outros aspectos, não teve o cuidado de vericar como uma transferência dessas envolvia uma
negociação complicada. O fato é que comecei a trabalhar nas duas cadeiras, cheguei a dar catorze aulas por
semana.” (FERNANDES, 1995, p. 195-196).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
112 |
1978, p. 94). Evidente que Florestan Fernandes caria estremecido com
tal atitude, Bastide foi o grande professor e mestre, aquele com quem já
tinha trabalhado sobre o folclore e havia reconhecido o potencial do jovem
Florestan, “[...] tão comovido, que saíram lágrimas dos meus olhos. Aí eu
me levantei e lhe respondi: ‘está bem o senhor venceu.’” (FERNANDES,
1978, p. 94). O reconhecimento do mestre e grande sociólogo falou mais
forte do acúmulo de tarefas e trabalho que teria pela frente.
O aceite para realizar a pesquisa não signicava um caminho sem
obstáculos, apesar do nanciamento e interesse da Unesco, as condições
para a realização da pesquisa eram extremamente precárias. A Unesco havia
oferecido um aporte de apenas $1000, o que era algo ínmo na época
para realizar uma pesquisa de grande porte, e havia também uma visão da
Unesco ao nanciar a pesquisa de que as relações raciais no Brasil eram
menos conituosas, mais harmoniosas, a miscigenação causaria uma certa
ausência de segregação mais forte como a experiência norte-americana, o
que gerava contornos de que os conitos sociais não eram tão intensos e
essa características brasileira mereceria ser estudada mais de perto.
Foi nesse espírito que se deu o convite da Unesco a Roger Bastide,
adicionado o complicador dos recursos parcos, Florestan e Bastide decidem
pagar a Renato Jardim Moreira e a Lúcia Herman para serem assistentes
na pesquisa fazendo a coleta dos dados e foram remunerados recebendo
$1000, cada um. recebendo $500. Essa pesquisa teve um caráter muito
inovador para a sociologia brasileira, o trabalho realizado foi intenso, com
reuniões coletivas constante com as principais lideranças negras da cidade
de São Paulo e de pesquisadores da universidade. Os pesquisadores levaram
a população negra para dentro da universidade, não como mero objeto
de pesquisa, mas como sujeito e partícipe do processo de elaboração dos
questionários onde as lideranças negras formavam comissões e discutiam os
resultados a cada 15 dias, os questionários e entrevistas eram padronizados.
De outro lado, havia uma perspectiva bastante realçada por Roger
Bastide que era de realçar o elemento aleatório nas colegas e nas amostras
técnicas, pois cada situação ocasional que envolvesse uma relação entre
negros e brancos deveria ser abordada como uma observação etnográca
e coleta de campo, isso poderia ocorrer durante um passeio, corridas de
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 113
táxi, viagens de ônibus como se fossem coletas instantâneas das relações
sociais em plena vida cotidiana
2
. A pesquisa chega a resultados bastante
promissores sobre as relações raciais na cidade de São Paulo, contrariando
as premissas vislumbradas pela Unesco, que apesar das diferenças com o
racismo norte-americano
3
mantinha os resquícios no período escravocrata
e que o preconceito se manifestava fundamentalmente na estrutura social,
criando uma barreira segregadora do preconceito de cor mantida pelo
poder senhoril. Ao chegar nessas conclusões, além de contrariar as teses
da Unesco também questionava toda uma tradição que se vinha até então
racista e arianizantes como de um Oliveira Vianna e de nascer especial com
as relações raciais “harmoniosas” em Gilberto Freyre,
Após esse trabalho, Florestan assume a cadeira de sociologia 1 e
começa a impor um estilo de pesquisa com enorme rigor cientíco e
metodológico baseado em fundamentos empíricos e com um grupo de
pesquisadores dedicados a remodelar as bases da sociologia brasileira e
formar o que foi a denominada na literatura da chamada escola de sociologia
paulista. Aliás, a utilização do termo escola de sociologia paulista não foi
bem aceito pelo próprio Florestan, porque ele não acreditava que o que
construiu na Universidade de São Paulo não chegou aos moldes de uma
escola com um legado como a escola de Chicago. Entendo ser importante
utilizar essa denominação em virtude dos trabalhos coletivos realizados
e da importância que tiveram nas formulações de investigações e nos
modelos que norteavam suas pesquisas e suas interpretações sociológicas
sobre o Brasil.
Contudo, a denominação escola de sociologia paulista certamente
ganha relevo pelas polêmicas travadas com o sociólogo baiano Alberto
Guerreiro Ramos e a disputa travada com o ISEB. As polêmicas entre
ambos ocorreram de forma mais acirrada em dois eventos fundamentai
2
As críticas do ponto de vista metodológico foram observados pelo sociólogo Levy Cruz que chegou a questionar
os resultados apresentados, visto a falta de rigor metodológico: O uso de amostras intencionais e assistemáticas,
privilegiando informações prestadas por famílias tradicionais e por estrangeiros e descendentes; o trabalho de
campo baseado principalmente em conversas informais em circunstâncias aleatórias; e a análise dos dados, sem
uma organização adequada dos mesmos e sem os testes necessários, levaram a amostras com vieses que põem em
cheque a representatividade dos resultados referentes ao universo pesquisado (CRUZ, 2006, p. 69).
A referência ao racismo nos Estados Unidos da América é importante, pois baseado nesse modelo de segregação
racial que a Unesco se interessa no caso brasileiro vislumbrando aqui uma suposta “democracia racial”.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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ISEB, que é o segundo congresso latino-americano de sociologia em 1953
na cidade de São Paulo
4
. Nesse evento, pensando em uma sociologia como
um dos alavanques do seu desenvolvimento nacional, Guerreiro Ramos
defendia uma sociologia fosse ligada aos interesses nacionais e de melhoria
das condições de vida do povo, não à toa que um dos temas fundamentais
para a sociologia deveria ser a industrialização: “[...] compreender que
a melhoria das condições de vida das populações latino-americanas está
condicionada à industrialização.” (RAMOS, 1995, p. 148). Assim, a
industrialização deveria ser uma categoria sociológica.
Observo que ao levantar tais questões e enfrentá-las passando por
enxergar os problemas mediante as estruturas nacionais e regionais dos
país latino-americanos, Guerreiro Ramos propõe uma sociologia de caráter
particularista, não que o que o sociólogo baiano negasse as determinações
universais da ciência, mas entendia que elas tinham que se adaptar à
realidade nacional e regional e pensava fundamentalmente uma sociologia
de redenção nacional. Ao adotar tal posição, concordo com o termo utilizado
por Caio Navarro de Toledo de que o Guerreiro Ramos faz uma sociologia
com uma perspectiva engajada. Retomando o congresso latinoamericano
de sociologia, o isebiano apresentou 7 teses que procuravam redimensionar
o estilo dos métodos e técnicas de se fazer sociologia em nosso continente,
dentre elas que a sociologia devia focar os problemas sociais de acordo com
suas estruturas nacionais e regionais, seria desaconselhável aplicar recursos
nas práticas e pesquisas sobre minudências da vida social, o renamento
da sociologia decorrem das estruturas nacionais e regionais, os métodos
e procedimentos nos países latino-americanos devem estar incorporados
com os seus respectivos recursos de ordem econômica adjuntos de técnicos
com nível cultural comum respectivo de suas populações.
Além dessas proposições de cunho metodológico, o trabalho
sociológico deveria ter em vista a melhoria das condições de vida atrelado
ao desenvolvimento industrial e a organização do ensino de sociologia
deve obedecer ao propósito fundamental de contribuir para emancipação
cultural dos discente, todas as “[...] teses foram ruidosamente desaprovadas,
4
Sobre a formação do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) uma leitura importante é de um de seus
fundadores Nelson Werneck Sodré (1977).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 115
por 22 votos contra 9, com o agravante ainda de o autor deste estudo ter
sido francamente agredido com demonstrações de ódio e desapreço por
um dos seus opositores.” (RAMOS, 1995, p. 106).
A menção que Guerreiro Ramos faz quanto ao ódio e desapreço é
refere-se a Florestan Fernandes, que rebate as teses do isebianos com os
seguintes argumentos:
[...] as ideias defendidas por guerreiro ramos e mario lins ilustram
com vigor típicos essas duas orientações extremas ora ideal nível
conhecido, nesse caso, primeiro, os sociólogos brasileiros precisam
associar suas questões teóricas a investigação de fenômenos sociais
que ocorrem na sociedade brasileira, segundo eles não devem
esquecer-se ao realizar tais trabalhos que precisam contribuir tanto
para o conhecimento sociológico do brasil quanto para o progresso
da sociologia como ciência. (FERNANDES, 1958, p. 213).
O argumento de Florestan está voltado a dizer que o trabalho
de Guerreiro Ramos e Mário Lins não são oriundos de uma sociologia
cientíca, pois se amparavam em autores e teses consideradas por Florestan
Fernandes como pré-cientícos. Guerreiro Ramos rebaterá tal tese no
prefácio da segunda edição da Redução Sociológica
[...] o bovarismo é uma espécie de personalidade, o signicado é
outra falácia que incorre o senhor Florestan Fernandes. Consiste em
extremar a distância entre o mundo dos sociólogos e o dos ‘leigos’,
ao ponto de considerá-los cindidos, o que, obviamente é falso. O
Sr. Florestan Fernandes reitera, repisa a distinção entre o cientista
e o ‘leigo’, e parece considerá-la como ideal. Considera ‘o cientista
como participantes de um cosmos cultural autônomo’ e arma que
o sistema cientíco pode ser entendido ontologicamente como
uma subcultura’. Nas condições atuais da civilização existe, de
fato, essa distância que, até certo ponto é necessária, mas o saber
cientíco e em particular o sociológico só é largamente privilégio
de círculos restritos por conta de condições históricas que limitam
acesso das massas ou dos leigos à cultura. (RAMOS, 1996, p. 27).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
116 |
A resposta de Guerreiro Ramos centra-se na necessidade de
massicação ou nas palavras do autor de “vulgarização” da sociologia,
para ele a sociologia se volatizará caminhando para um processo global de
conhecimento diminuindo a distância entre cidadão comum e cientista
ou como ingrediente comum da conduta dos cidadãos, o que na visão de
Guerreiro escandalizaria o “aristocratismo do professor paulista” (idem). E
continua o sociólogo baiano:
O professor paulista é ideólogo de uma sociologia insustentável, que
nunca existiu, não existe, nunca existirá. A sociologia não é exterior
à sociedade global. Pode, é certo, transcender a conduta vulgar, mas
dentro dos limites prescritos pela sociedade global, à maneira de
que lembrava Karl Marx, na terceira tese sobre Feurbach, quando
apontava o utopismo dos pensadores do século XVIII, que queriam
educar os outros, esquecendo-se que o ‘educador também deve
ser educado’ e que, só no mundo das quimeras, a sociedade está
dividida em duas partes, uma muito acima da outra. (RAMOS,
1996, p. 28).
Talvez Florestan Fernandes não fosse um inimigo e atuasse
contrariamente a democratização da cultura e do conhecimento, pelo
contrário, em texto dos anos 1950 e na campanha em defesa da escola
pública o “professor paulista” das palavras de Guerreiro Ramos defendeu a
democratização dos conhecimentos cientícos.
As duras críticas as teses apresentadas por guerreiro ramos, em que ele
salienta que levantar a sociologia a patamares pré-cienticos, retrocedendo
em termos metodológicos e cientícos a adoção de estudos genéricos, o
que do ponto de visa metodológico são evidentes as inconsistências das
recomendações apresentadas pelo sociólogo baiano diante das implicações
de conhecimento cientíco e acima de tudo ressalta a tendência de
considerar as imposições, as obrigações do sociólogo, em relação ao que
deve de lealdade e ao mesmo tempo que deve negligenciar as obrigações
dele, relacionadas com o sistema de normas e de valores do saber cientíco.
Essa tendência oculta-se em uma formidável falácia, a contenda
entre ambos estava longe de ser apaziguada e estava relacionada a
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 117
parâmetros aos quais a sociologia enquanto ciência deveria seguir, adotar
modelos metodológicos de caráter universal que dessem conta de aplicação
de técnicas e modelos cientícos em diferentes estruturas sociais, ou
modelo de caráter nacional que abrangesse as necessidades de determinada
estrutura social nacional e regional: esse era o grande dilema! Florestan
não descartava a necessidade dos estudos sociológicos focarem na realidade
nacional, grande parte de sua obra foi direcionada para análise das
estruturas sociais da realidade brasileira, mas lembrava que a ciência tinha
procedimentos metodológicos de caráter universal, e a sociologia brasileira
não seria diferente disso.
Esse debate se estende ao primeiro Congresso Brasileiro de
Sociologia, no ano de 1954, realizado em conjunto com as festividades
do quarto centenário da cidade de são Paulo. A temática do evento era
diversa e Florestan Fernandes apresenta uma comunicação defendendo
a retomada da sociologia na escola secundária, segundo o sociólogo
uspiano, as sociedades necessitavam de demandas que somente as lentes
das técnicas sociológicas poderiam fornecer. Além disso, a escola contaria
com instrumentos e conhecimentos cientícos para dar cabo a solução
dos problemas sociais e educacionais que estariam mais adiantados em
outros países.
Florestan coloca o sociólogo, o cientista social, como um intelectual
nos termos manheimianos
5
, a ciência deveria indicar os caminhos de uma
mudança cultural provocada. Em outro texto apresentado no congresso
internacional de relações internacionais, Florestan coloca a sociologia
dentro de um espectro especíco das relações internacionais, sendo ela e o
sociólogo fundamentais na resolução dos conitos internacionais, fazendo
da sociologia quase que uma prossão de fé.
O texto da introdução da sociologia na escola secundária não
foge muito desse viés, ali argumenta-se que o ensino secundário no
Brasil preenchia funções estáticas, tinha um caráter meramente auxiliar
independentemente do restante do sistema de ensino, e não um papel de
uma educação dinâmica, que poderia vir a ser alcançada com o ensino
Para uma melhor apreensão desse debate, observar o texto de Cepêda; Mazucato (2015).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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de sociologia “[...] a ideia de introduzir inovações no currículo da escola
secundária, ganha outra signicação quando examinada a luz da inuência
construtiva da educação pelas ciências sociais em um país de informação
como o Brasil.” (FERNANDES, 1955, p. 105).
Ao observar os textos de Florestan Fernandes em especial mudanças
sociais no Brasil a ênfase é a perspectiva de transformação da sociedade
brasileira dentro de uma ampliação da democracia e dos princípios de um
processo de revolução burguesa em curso nos anos 1950 com conquista
à melhoria das condições de vida da população e a educação teria um
elemento de fator modernizantes versus uma mentalidade atrasada ainda
em vigor:
A argumentação desenrolada tenta mostrar que um dos fatores
que prejudicam o desenvolvimento da democracia no Brasil é a
persistência de uma mentalidade política arcaica, inadequada para
promover ajustamentos dinâmicos não só a situações que se alteram
socialmente, mas que estão em uxo contínuo no presente. A
contribuição que a educação sistemática pode oferecer para alterar
semelhante mentalidade, exprime, naturalmente, as tarefas políticas
que ela pode preencher um uma esfera neutra. (FERNANDES,
2008, p. 112).
Em carta a Barbara Freitag, anos mais tarde rearma sua posição.
Até Trotsky, o mais radical dos socialistas revolucionários, sabia que
a revolução burguesa não constitui um “episódio histórico” e que
ela se atrasa (aliás, sua “lei do desenvolvimento desigual e ampliado
“ poderia ser aplicada ao tema fora do contexto russo). Por aqui,
parece que pensam que já não existe burguesia e que a dominação
que nos sujeita é puramente astral. Tão pouco entendem que o
processo descrito teria de ocorrer de modo muito diverso. A
burguesia que retarda ou que não completa a revolução nacional
precisa, naturalmente, usar o Estado Nacional para se fortalecer e se
privilegiar. Mas o que fazer? Preciso munir-me de muita paciência
para suportar, ao lado da marginalização, uma incompreensão
generalizada. (FERNANDES, 1996, p. 159).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 119
Retornando a Guerreiro Ramos, apesar de considerar importante
a divulgação dos estudos sociológicos na escola secundária, questiona as
condições de oferecimento dessa disciplina diante da realidade brasileira.
Na visão do sociólogo baiano ocorria uma alienação da sociologia brasileira
frente à realidade nacional, tanto na formação como na metodologia e
os manuais estariam atrelados aos pressupostos teóricos estrangeiros, o
que levou Guerreiro Ramos a classicar a sociologia brasileira como uma
sociologia enlatada.
Os manuais aos quais o autor se refere estavam embebedados de
autores estrangeiros e não conseguiam fazer uma mediação com a realidade
nacional, o que para Guerreiro “[...] apenas dois brasileiros podiam ser
considerados sociólogos sistemáticos originais, capazes de transmitir a
discentes uma visão sociológica amadurecida e de primeira mão: Oliveira
Viana e Pontes de Miranda.” (RAMOS, 1995, p. 124). Oliveira Viana,
apesar das críticas as bases metodológicas que partiu, contribui de modo
decisivo para uma análise sociológica do povo brasileiro, para uma
mudança em termos sistemáticos, sendo na sua avalição um dos primeiros
sociólogos comprometidos com e dedicados a entender nossa realidade.
Pontes de Miranda foi o autor do compêndio de maior magnitude teórica
e autonomia intelectual no Brasil .
Desse modo, defendia que o ensino de sociologia devolva ao educando
sua capacidade de autonomia e de assenhoramento das forças particulares da
sociedade em que vive, o ensino da sociologia não deve distrair educando da
tarefa essencial, de promoção da autarquia do seu país.
O I Congresso Brasileiro de Sociologia além de aprovar a introdução
da sociologia como disciplina regular no ensino secundário, colocou a
comunicação de Florestan Fernandes como uma referência para posteriores
inquéritos e estudos para as seções estaduais da Sociedade Brasileira de
Sociologia e como documento dos sociólogos brasileiros a ser encaminhado
para a Câmara dos Deputados para providências quanto à inclusão da
sociologia como disciplina regular de ensino médio.
Fruto dessa polêmica com Guerreiro, Florestan Fernandes publica o
texto Padrão cientíco dos sociólogos brasileiros como um dos capítulos
Marcelo Augusto Totti (Org.)
120 |
do livros A etnologia e a sociologia no brasil. Outro texto secular nessa
discussão é Fundamentos empíricos da explicação sociológica, nele o sociólogo
uspiano vai denir o que são as instâncias empírico-indutivas e defender
que as instâncias empíricas reproduzem fatos ou fenômenos sociais e que
a realidade não é uma mera apreensão imediata, há uma necessidade de
descrição e explicação cientíca dessa realidade, que será reproduzida
fundamentalmente em totalidades.
Todos esses procedimentos são universais e as ciências da observação
não são fontes fundamentais para as ciências sociais, nesse processo de
observação da realidade a partir dos dados empíricos, que Florestan vai
defender os fundamentos metodológicos da sociologia. Tendo como base
esses elementos, a sociologia de Florestan utilizará dados estatísticos como
elementos empíricos.
Guerreiro Ramos não questionará a validade dos dados empíricos,
criticará o que denomina de uma “ortodoxia metodológica”, o que
em sua ótica não haveria uma ortodoxia em pesquisa. Para ele, não
haveria necessidade de adaptar os métodos e técnicas com renamento
e exigências de precisão cientícas em países com parcas estruturas e
condições de pesquisas. A metodologia sociológica deve decorrer do nível
de desenvolvimento das estruturas nacionais e reginais, assim nos países
de subdesenvolvidos “[...] a precisão é secundária em nosso meio, como
porque é até impossível atingir o renamento em pauta, tendo em vista
as deciências do nosso aparelho estatístico, as condições culturais das
populações brasileiras e ainda as disponibilidades nanceiras do Estado.
(RAMOS, 1995, p. 154).
Para sustentar sua tese, Guerreiro cita como exemplos os índices de
mortalidade infantil dos países latino-americanos e os compara com os
países europeus, via de regra mais baixos que os países latinos. Contudo,
segundo Guerreiro estudos de especialistas europeus salientam que o
nascimento de uma criança inicia-se na fase de gestação, o que revelaria
problemas de ordem endógena oriunda de problemas de traumatismo no
nascimentos entre outros, mas também, de ordem exógena concernente
a fatores ambientes e socioculturais de cada região e país. Por isso, tais
instrumentos metodológicos devem se ater a realidade das estruturas
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 121
nacionais e reginais, e o pesquisador deve ter conhecimento da realidade,
caso contrário é o sociólogo encarará uma alienação da realidade.
Dessa contenta que marcou a sociologia brasileira e relega aos tempos
áureos de nossa formação, caria com as palavras de Bariani Junior (2012,
p. 78) que deniu muito bem essa disputa:
Eruditos, intelectuais públicos, de brilho incomum. Oponentes
e talvez complementares, senão paradigmáticos ao menos
signicativamente únicos. Dois ‘weberianos’ e mannheimianos
particulares, ecléticos na aparência, de uma originalidade sem
preconceitos; ambos exilados, engajados e eleitos deputados: dois
inconformistas, radicais – cada qual a seu modo. A sociologia –
para eles – era muito mais que uma disciplina, a ela dedicaram
suas vidas, mas ambos projetos ‘fracassaram’: nem autonomia, nem
revolução, nem paixão, nem sociologia nacional, o que os sucedeu
foi a tecnologia do controle social como prossionalização do
saber, agora como intervenção racional e rebeldia política ou forma
por excelência de conscientização social, mas como ocupação
universitária e inserção institucional.
Ao denir como momento “heroico” de nossa sociologia, Bariani
Junior (2012) dá os devidos contornos do que signicou esse debate em uma
conjuntura favorável as mudanças sociais vivenciadas no país. Como não
foram apenas caminhos tranquilos, poderíamos qualicar um dos fatores
do denominado “fracasso”, que reposicionaria como algo desalentador
aos projetos de Florestan Fernandes foi a criação do grupo do Capital ou
“Grupo Marx”, que teve a intensa participação de seus assistentes.
O grupo criado inicialmente por José Arthur Giannotti que havia
voltado da França e participado do grupo “Socialismo ou barbárie” era
uma corrente crítica ao marxismo soviético. O grupo de estudos formado
por jovens intelectuais muitos deles em busca de armação e de inserção
no debate universitário brasileiro através de materialismo dialético em
oposição ao estrutural-funcionalismo herdado da formação francesa. O
fato inusitado é que o grupo do capital contava com vários assistentes
de Florestan e nem por isso que acharam na obrigação de convidar o
mestre. Segundo um de seus membros, Fernando Henrique Cardoso
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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“‘[...] ele pertencia a outra geração. E acrescentou “ele não era marxista.”’
(CARDOSO, [19–] apud SOARES, 1997, p. 60) ou que seu marxismo era
demasiadamente técnico. De fundo havia o caráter inibidor do professor
catedrático que impunha Florestan Fernandes. Em que pese tal armativa
sobre o marxismo do Florestan, havia uma premissa da chamada escola de
sociologia paulista de que o método dependeria da escolha do objeto de
sua análise, conforme já trabalhamos no decorrer desse texto. Não obstante
a criação do grupo do capital, há toda uma mudança conjuntural e social
do país que necessariamente zeram que Florestan Fernandes observasse
essa nova realidade e a conjuntura política e social do país com maior
radicalidade e desse maior ênfase em seus estudos ao materialismo histórico.
Essa retomada já pode ser observada em sua tese de livre docência
para o concurso de cátedra, A integração do negro na sociedade de classes e
a na campanha de defesa da escola pública em 1959. Ela teve contornos
também bem especiais, visto o projeto substitutivo do deputado udenista
Carlos Lacerda previa que o Estado não poderia exercer o monopólio
educacional, sendo também dever da família desempenhar o seu papel
educativo optando entre o ensino público e o privado. com isso os recursos
estatais também deveriam ser destinados as escolas privadas na mesma
proporção que o investimento estatal.
Outro fator que entendo ser importante é o papel que a
sociologia deveria empenhar enquanto uma ciência aplicada, aos moldes
manheinianos, foi o momento de encarar a sociologia como uma ciência
capaz de intervir na sociedade através dos instrumentos teóricos. Para isso,
Florestan mobilizou toda a cadeira de sociologia 1 com assistentes e demais
colaboradores da Universidade São Paulo e travou uma batalha na sociedade
civil contrariamente aos ideais privatistas do deputado Carlos Lacerda e da
Igreja Católica. Foram realizados inúmeros debates, palestras, com setores
da elite paulista ligadas ao jornal Estado de São Paulo. As relações com os
movimentos sociais também foram intensas, com inúmeras conferências
com setores operários, líderes sindicais de diversos setores perfazendo uma
inexão da universidade indo ao povo: “como intelectual aproveitei muito
e principalmente descobri que a sociologia precisa responder as expectativas
que não devem nascer dos donos do poder, mas sim de critérios nacionais
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
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da reforma, que levem em conta a nação como um todo, ou das pressões
históricas dos grupos inconformistas”.
A educação popular seria o elemento denidor da diminuição das
desigualdades sociais no país, o Estado educador somente se efetivaria
dentro um estado democrático na realidade brasileira. Florestan via na
educação e na campanha um elemento impulsionador da cidadania civil e
política, derivada das mudanças sociais necessárias no país. Em sua ótica,
uma sociedade mais democrática e mais equitativa passava por reformas
que abrangeria não só educação, mas outras reformas e a partir daí que o
Florestan começa a desenvolver as suas teses que são a revolução dentro da
ordem e contra ordem.
referêncIaS
BARIANI JUNIOR, Edison. A sociologia no Brasil: uma batalha, duas trajetórias
(Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos). Curitiba: Editora CRV, 2012.
CERQUEIRA, Laurez. Florestan Fernandes: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular,
2004.
CEPÊDA, Vera Alves; MAZUCATO, iago. Ciência, intelectuais e democracia no
centro e na periferia: o diálogo teórico entre Karl Mannheim e Florestan Fernandes. In:
CEPÊDA, Vera Alves; MAZUCATO, iago. (org.) Florestan Fernandes, 20 anos depois:
um exercício de memória. São Carlos: Ideias Intelectuais e Instituições: UFSCar, 2015.
p. 65-86.
CRUZ, Levy. Roger Bastide e a pesquisa da Unesco em São Paulo: introdução a uma
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FERNANDES, Florestan. O ensino de sociologia na escola secundária brasileira. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 1., 1954, São Paulo. Anais [...].
Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Sociologia, 1955. p. 80-106.
FERNANDES, Florestan. A etnologia e a sociologia no Brasil. São Paulo: Anhembi,
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Seção III
S   
| 127
F F  
Marcos Tadeu Del Roio
1
Introdução
Florestan Fernandes era um nome conhecido e respeitado no
ambiente ainda muito restrito da Universidade brasileira e, mais em
particular, na grande área da Humanidades. Nos anos 60, apareceu como
militante pela ampliação da escola pública e pelo acesso a Universidade,
além de notável estudioso da questão do negro brasileiro na sociedade
classista racista. O ponto que centralizava as preocupações das ciências
sociais no Brasil e em todo o continente era a questão que girava
em torno do problema do desenvolvimento / subdesenvolvimento e
dependência. Sobre esse problema também a contribuição de Florestan
Fernandes foi maiúscula.
O debate fora pautado pela CEPAL, que apontava na reforma
agrária e na industrialização o caminho a ser trilhado na luta contra o
subdesenvolvimento. Nesse caminho a ruptura com o imperialismo e o
papel da burguesia industrial seriam de grande importância para que se
desenvolvesse um capitalismo autônomo. Nos anos 60, a discussão avançou
para formas de contestação dessa tese original. Uma linha, inuenciada
 Prof. Titular de Ciências Políticas da UNESP-FFC.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p127-144
Marcelo Augusto Totti (Org.)
128 |
pela revolução cubana, negava a possibilidade de a burguesia cumprir o
papel anti-imperialista e percebia a revolução socialista como meio único
de superação da dependência e do subdesenvolvimento. Ruy Mauro
Marini (1969; 1973) e eotonio dos Santos (1972) podem ser sugeridos
como expressão dessa vertente. Por outra face, apareceu quem armasse
a possibilidade do desenvolvimento com a manutenção da dependência,
desde que a burguesia pudesse redenir o seu papel na associação com o
imperialismo. Nesse caso podemos indicar Fernando Henrique Cardoso
como expoente na defesa dessa tese (CARDOSO, 1970).
A argumentação cientíca não esconde as diferentes posições
políticas, os diferentes projetos históricos. Ambas, contudo, trazem a crítica
explicita às interpretações do Partido comunista. Apesar de ser aproximada
de maneira forçada à leitura cepalina, na verdade a teoria da revolução
brasileira do PCB insistia, desde 1929, que a revolução democrática
deveria proceder a reforma agraria e a ruptura com o imperialismo pela
ação política coletiva do proletariado industrial, campesinato sem-terra e
pequena burguesia urbana. Em alguns momentos foi aventada a hipótese
de aliança com fração da burguesia que escolhesse se aliar a essa pretendida
frente única. Essa hipótese ganhou força desde 1958 no PCB e as críticas
dentro e fora do partido forma duríssimas, principalmente depois da
catástrofe de 1964. De todo modo, o que importava para o PCB é que
no Brasil seria instaurado um capitalismo de Estado (que poderia estar
endereçado ao socialismo), no qual a hegemonia estaria em disputa, fosse
ou não apregoada a aliança com um setor burguês de ideologia nacionalista
(DEL ROIO 2012).
A intenção deste capítulo, porém, não é expor as diferentes posições
político ideológicas que se confrontaram no Brasil e na América Latina em
torno da enunciada pauta das ciências sociais e da formulação política de
diferentes grupos político sociais. Trata-se sim de observar não mais do que
a particularidade da formulação de Florestan Fernandes em determinado
momento de sua reexão, a qual teve indiscutível incidência nas ciências
sociais institucionalizadas e também no movimento político de oposição à
ditadura militar burguesa, em particular aqueles postados mais à esquerda.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 129
oS padrõeS externoS de domInação
Logo após o golpe de março de 1964, que instaurou a ditadura
militar burguesa, Florestan começou a se preocupar mais com um enfoque
que levava o tema da revolução burguesa em maior consideração, um
tema próprio da tradição comunista. Em 1966 começou o trabalho
de interpretação da revolução burguesa no Brasil, mas o intento foi
abandonado por falta de estimulo e interlocutores com boa disposição.
Não era bem um tema de boa aceitação na USP, que preferia a discussão
em torno do chamado “populismo” (IANNI, 1968; WEFFORT, 1978).
Envolvido com os estudantes e com suas angústias, Florestan passou
os anos de intensa mobilização contra a ditadura, a até que foi expulso da
Universidade com base no arbitrário Ato Institucional nº 5, verdadeiro
emblema de ação coercitiva contra a oposição política e contra a cultura.
Passou de 1969 a 1972 como professor convidado em Universidades do
Canadá e Estados Unidos, período no qual debruçou-se a estudar história
das revoluções do século XX, a obra de Lenin e outros autores da tradição
marxista. Não pode deixar de notar que essas revoluções todas ocorreram
na zona periférica do capitalismo. Da mesma maneira não se pode deixar
de notar o deslocamento teórico e ideológico de Florestan Fernandes, cuja
reexão passa a ter como eixo a questão da emancipação do trabalho.
Nesse período de exílio, Florestan Fernandes, que se autodenia
sociólogo militante e socialista, parece então ter passado por uma fase de
redenição da sua visão de Brasil e América Latina. A expressão inicial
dessa mudança está nos ensaios escritos entre 1969 e 1971 e juntados para
compor o livro Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina,
publicado no Brasil em 1973, pela Zahar Editores. Logo na “Explicação
prévia” Florestan avança que os temas tratados são cortados pela visão
que tem da “crise estrutural por que está atravessando a América Latina
de nossos dias” e “o dilema do capitalismo dependente” (FERNANDES,
1973, p. 8). A dramaticidade da situação obriga a que a uma “interpretação
militante” e que ao m “temos que colocar a problemática humana de
nossos países acima da Sociologia” (FERNANDES, 1973, p. 9).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
130 |
As determinações externas iniciam a exposição do autor. Para
Florestan, “[...] as nações latino-americanas são produtos da ‘expansão da
civilização ocidental’, isto é, de um tipo moderno de colonialismo organizado
e sistemático.” (FERNANDES, 1973, p. 11). O desenvolvimento do
capitalismo garantiu a persistência da dependência da América Latina em
relação às nações que se faziam hegemônicas em diferentes fases de modo
a determinar diferentes padrões de dominação.
O padrão inicial seria o “antigo sistema colonial” no qual os
colonizadores estavam submetidos aos monarcas de Portugal e Espanha
ao modo de vassalos. A preservação dos interesses da Coroa e dos
colonizadores foi processada “[...] pela transplantação dos padrões ibéricos
de estrutura social, adaptados aos trabalhos forçados dos nativos ou à
escravidão (de nativos, africanos ou mestiços).” (FERNANDES, 1973, p.
13). Quais eram esses padrões ibéricos? Uma explicação indica que seriam
padrões de um feudalismo particular denido em zona de fronteira e de
conquista de territórios ocupados por árabes. Os conquistadores da parte
da península controlada pelos árabes se zeram nobres e vassalos dos reis
cristãos, os conquistados convertidos em servos cristãos. Essa mesma lógica
se estendeu às Américas, onde se tentou estabelecer um feudalismo de
fronteira expandida.
No entanto, a explicação de Florestan segue outra possibilidade e faz
uso de categorias da sociologia de Max Weber para observar uma sociedade
colonial formada por estamentos e castas, incapaz de sustentar as relações
mercantis que demandava. De fato, o capital mercantil tinha também uma
externalidade própria, já que se originava e se acumulava em outras partes
da Europa, tal como a Holanda. Em seguida França e Inglaterra entraram
para disputar as benesses que o comercio colonial oferecia. Em torno do
m do século XVIII, as revoluções burguesas na América do Norte e na
Europa induziram a formação de um novo padrão de dominação externa.
Os originais colonizadores foram descartados e formaram-se Estados
dos setores sociais que controlavam internamente a vida econômica
colonial. O antigo padrão foi apenas reformado com o estabelecimento
de relações diretas de comercio entre os dominantes das ex-colônias
com a Inglaterra, dona do comércio internacional. Florestan identica
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 131
esse período como neocolonial e também como de transição. Nessa fase
aparecem as possibilidades de acumulação mercantil dentro dos Estados
do continente latino-americano, mas isso, por si só, não levaria a região ao
capitalismo.
Foi, de novo, o desenvolvimento do capitalismo e sua expansão a
redenir o padrão de dominação externa ainda uma vez. O ingresso do
capitalismo na fase imperialista ensejou o ingresso dos interesses econômicos
dos países dominantes no interior do território e da economia dos países
dependentes pela necessidade advinda de exportar capitais. Florestan
arma a proposito que “[...] a dominação externa tornou-se imperialista,
e o capitalismo dependente surgiu como uma possibilidade histórica na
América Latina.” (FERNANDES, 1973, p. 16).
O que Florestan parece armar é que o capitalismo dependente surge
como uma indução externa, quase que uma imposição do imperialismo às
suas necessidades, muito mais do que por ação de forças internas que o
colonialismo não fora capaz de gerar. Pelo contrário, as forças surgidas
com o colonialismo se viram reforçadas nos seus interesses vinculados
a exportação de bens primários: o arcaísmo ganhava força em vez de se
enfraquecer. Por m, Florestan apresenta um quarto padrão de dominação
externa, que surgiu com a expansão das grandes empresas corporativas
que representam o capitalismo monopolista e que passam a exercer o “[...]
controle interno das economias dependentes pelos interesses externos.
(FERNANDES, 1973, p. 18).
Esse padrão de dominação é identicado como imperialismo total,
que se caracteriza, com efeito, pela organização interna da dependência e é
impeditivo de qualquer desenvolvimento autônomo por iniciativa da sua
burguesia. Assim que pode ser observado que os padrões de dominação
dependência externa induzem transformações adaptativas sobre os países
dependentes de modo a continuar a espoliação da riqueza produzida nesses
países e garantir que não ocorra um desenvolvimento capaz de extirpar as
mazelas sociais mais escandalosas.
Trata-se de um processo de recolonização frente ao qual as classes
dominantes internas apresentaram a sua capitulação. Como é um processo
Marcelo Augusto Totti (Org.)
132 |
de dominação ncado no interior signica que se difunde para muito além
da força econômica das corporações. A incorporação ao espaço econômico
e sociocultural dos Estados Unidos inclui instituições “[...] encarregadas de
conduzir a política de controle global de nanças, da educação, da pesquisa
cientíca, da inovação tecnológica, dos meios de comunicação em massa,
do emprego extranacional das políticas, das forças armadas e mesmo dos
governos.” (FERNANDES, 1973, p. 24).
O capitalismo pode se desenvolver, apenas que delimitado por
interesses que não são nacionais, que não visam a autonomia e a integração.
Trata-se de um capitalismo que articula interesses da dominação externa
com a dominação interna, que não correspondem às necessidades
de combater a miséria e a ignorância das massas. Se a situação é essa a
interrogação que decorre é sobre a possibilidade de se alcançar os objetivos
travados pelo nexo da dominação externa / interna serem alcançados sem
uma ruptura anticapitalista. Não há possibilidade de se compor um novo
capitalismo no lugar do capitalismo dependente, pois “[...] os setores
sociais que possuem o controle das sociedades latino-americanas são tão
interessados e responsáveis por essa situação quanto os grupos externos,
que dela tiram proveito.” (FERNANDES, 1973, p. 26).
Numa situação como essa -- que aparenta não oferecer saída --,
diante do agudizar-se das contradições sociais, Florestan vislumbra duas
possibilidades para se romper com esse circuito de dependência e exploração:
o nacionalismo revolucionário, uma revolução dentro da ordem conduzida
por setores dominantes por meio de um capitalismo de Estado, ou então
a revolução socialista, uma revolução contra a ordem, produto de uma
radical rebelião popular. Há que se notar aqui que Florestan observa duas
possibilidades para a transformação social, uma que não escapa dos marcos
de uma revolução burguesa e outra que implica uma ruptura radical
com a ordem social existente, ao modo de uma revolução socialista. Não
considera a probabilidade de o nacionalismo revolucionário ser um ponto
da passagem para a revolução socialista, como, aliás, aconteceu em Cuba.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 133
capItalISmo e claSSeS
Nos anos 60/70 ganhou muita difusão na América Latina a chamada
teoria do populismo. O pressuposto dessa teoria era precisamente aquele
de que na América Latina não haveria classes constituídas ou sociedade
civil organizada, o que seria o ponto de partida para explicar a relação
existente entre liderança carismática e massas populares manipuláveis. Para
Florestan Fernandes, que não aceita essa hipótese, de um ponto de vista
abstrato, classes sociais e capitalismo estão entrelaçados intrinsicamente.
No chamado “capitalismo moderno” as classes sociais tem nitidez
expressas na organização social e política-ideológica porque o capitalismo
se desenvolveu sobre bases próprias e superou ou incorporou as relações
sociais pregressas. A questão sobre a existência ou não de classes sociais na
América Latina exige então uma discussão prévia sobre a particularidade
do capitalismo formado nessa região.
Em primeiro lugar há que se constatar que o capitalismo e a
sociedade de classes na América Latina não são resultado de uma evolução
interna produzida pelas contradições das formas sociais pré-existentes,
mas produto da dominação externa. Há que se constatar também que
por conta da dominação externa, “[...] o capitalismo evoluiu na América
Latina sem contar com condições de crescimento autossustentado e de
desenvolvimento autônomo.” (FERNANDES, 1973, p. 35).
Assim que se tem é um capitalismo relativamente frágil, cujas
classes sociais se sobrepõem a uma série de grupos sociais mais ou menos
numerosos, que são produto da desagregação ou da sobrevivência de
formas sociais anteriores. Há então uma signicativa massa popular que
ainda não se fez classe. A partir dessa leitura, Florestan conclui que “[...] as
insatisfações de uma classe potencial são mais perigosas para uma sociedade
de classes em formação e em consolidação, que o querer coletivo de uma
classe em si e para si’ numa sociedade de classes plenamente constituída.
(FERNANDES, 1973, p. 36).
Se a sociedade de classes em formação não consegue conduzir essas
massas para o seu interior, terá que conviver com a permanente instabilidade
e crise. Ao m, Florestan quer dizer que a eclosão revolucionaria é mais
Marcelo Augusto Totti (Org.)
134 |
provável nas condições em que o capitalismo e a sociedade de classes não
estão plenamente consolidados e há uma massa explorada e oprimida
desesperada, que pode se fazer classe no decorrer e depois de um movimento
revolucionário. Por estar na América Latina, Cuba é o exemplo citado, mas
poderia também ser a China e o Vietnam.
A América Latina tem então características que apresentam um
desao interpretativo para a Sociologia. Mais especicamente é preciso
observar se e como a herança da sociologia clássica pode ser redenida
para essa empreitada. Certo que Florestan oferece apenas três questões para
fazer, digamos, esse teste. A primeira questão, cuja resposta poderia parecer
óbvia, mas enfrentava muitas restrições, era sobre a existência de classes
sociais na América Latina.
Assim era porque em vastas regiões do continente, mesmo em áreas
urbanas, o núcleo integrado a partir do qual se disseminava o capitalismo
era restrito e pouco dinâmico. Maior era a complicação pois as classes não
se reconhecem como tais e se escondem atrás de um véu ideológico arcaico
que fortalece uma visão hierárquica e estamental das relações de classe.
Trata-se de reconhecer então a particularidade do capitalismo, como se
objetiva e se irradia na América Latina.
A dependência externa determina a objetivação do capitalismo
no continente e essa característica impede qualquer “correção” no
desenvolvimento da sociedade de classes. A tendência, na verdade, é “[...] a
de uma persistência e de um agravamento contínuos da presente ordenação
em classes sociais, [...]” (FERNANDES, 1973, p. 40).
Essa tendência pode ser identicada na quase impossibilidade de a
burguesia falar em nome do Estado-nação e pelo necessário uso da violência
explicita na defesa de seus interesses e privilégios. O resultado só pode ser,
em perspectiva, a crescente visibilidade da divisão entre as classes sociais,
que pode gerar um forte sentimento anticapitalista.
A dramaticidade do quadro social surge de sua rigidez. A sobrevivência
de aspectos e características sociais que o surgimento das classes sociais
não conseguiu diluir e a destruição das condições econômicas e políticas,
impediram a realização de revoluções nacionais burguesas. Assim é que
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 135
as classes sociais dominantes cam recobertas com a caracterização da
ordem social hierárquica e estamental pré-capitalista e o moderno sofre
um processo de arcaização, mesmo com o crescimento industrial e urbano.
Nesse passo, para Florestan nem uma revolução dentro da ordem parece ser
mais possível, pois haveria o bloqueio das classes proprietárias privilegiadas
e as classes despossuídas estão ocupadas no aprendizado de como se
fazer a revolução contra a ordem. Dito de outra maneira, não há mais
possibilidade de revoluções democrático burguesas e o único caminho é o
que leva a revolução socialista.
Se é verdade que há classes sociais na América Latina é preciso explicar
porque são frágeis e mal constituídas. A resposta encontra-se, antes de tudo,
na particularidade do capitalismo que surgiu e se desenvolveu na América
Latina, mas também na forma e dinamismo das classes até culminar na
sociedade de classes vinculada ao capitalismo dependente. O capitalismo
que se formou na América Latina, além da obviedade de contar com todos
os elementos distintivos do capitalismo em geral, Florestan destaca que
a as classes dominantes internas do capitalismo dependente não tem o
monopólio do produto da exploração dos trabalhadores, que é compartido
com as empresas e Estados imperialistas. Trata-se assim de um capitalismo
que “[...] possui um componente adicional especíco e típico: a acumulação
do capital institucionaliza-se para promover a expansão concomitante dos
núcleos hegemônicos externos e internos (ou seja, as economias centrais e
os setores sociais dominantes).” (FERNANDES, 1973, p. 45).
Florestan volta às origens e fundamentos do capitalismo dependente,
mas com considerações algo diferentes de quanto havia sustentado no
primeiro ensaio. Desta feita Florestan parece seguir mais de perto a tese
da Caio Prado Jr sobre o Brasil. Fala das “vinculações do antigo sistema
colonial com o capitalismo comercial” e de como “a conexão capitalista
pura e irredutível da economia colonial procedia do circuito comercial e
realizava-se no mercado europeu.” (FERNANDES, 1973, p. 46). Insiste
ainda no “caráter capitalista do empreendimento colonial” e que “[...] o
elemento capitalista do mercado colonial era imposto de fora para dentro e
realizava-se de fato, através dos dinamismos jurídico-políticos e econômicos
dos mercados metropolitanos.” (FERNANDES, 1973, p. 47).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
136 |
Em seguida, nalmente, quando chega no processo produtivo da
riqueza, começa por rearmar que
[...] o elemento capitalista central da economia colonial provinha
do comércio colonial interno e externo, o qual impunha formas
de apropriação e de expropriação – e, portanto, de acumulação
do capital – pré-capitalistas. O reverso do capitalismo comercial,
na América Latina, era um sistema de produção colonial, [...]
(FERNANDES, 1973, p. 48).
É de se perguntar se o “capitalismo comercial” não é também uma
forma pré-capitalista de produção. Sabido que para Marx a acumulação
primitiva do capital ocorre dentro de uma forma social e produtiva que
não é capitalista no sentido de que o capital se apropriou do processo
produtivo da riqueza a da vida social, algo que só ocorre com o surgimento
da indústria, das maquinas que produzem maquinas. Mais correto seria
dizer então que o “sistema de produção colonial”, como chama Florestan
nessa ocasião é parte importante no processo de acumulação primitiva,
mas isso não responde a eventual pergunta sobre qual era a natureza desse
sistema, a não ser que era colonial (FERNANDES, 1973, p. 48).
Então é preciso ir mais a fundo e Florestan anota então que
[...] o caráter precursor de tal sistema de produção aparecia nas
combinações da escravidão, servidão e de modalidades meramente
suplementares de trabalho pago com a criação de uma riqueza
destinada a apropriação colonial, ordenada legalmente e praticada
por meios político-econômicos. (FERNANDES, 1973, p. 48).
Mas Florestan se apressa em dizer que que tal sistema de produção
não era feudal, pois que no contexto histórico do colonialismo “o
feudalismo seria uma aberração regressiva” (FERNANDES, 1973, p. 48).
Anteriormente, dentro do universo weberiano, Florestan havia visto a
América Latina colonial como um conjunto de sociedades estamentais e de
casta sem capacidade de se desenvolver autonomamente, que sem dúvida
poderiam serem chamadas de regressivas, mas mesmo assim adaptações das
estruturas sociais ibéricas. Pode ser importante lembrar que na dialética
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 137
critica elaborada por Nelson Werneck Sodré, de fato teria havido um
feudalismo no Brasil e de caráter efetivamente regressivo, mas não como
uma aberração, mas como fenômeno decerto explicável dentro do contexto
colonial (SODRÉ, 1962).
o capItalISmo dependente e o poder dual
Na sequência de sua reexão, Florestan observa que a “revolução
política” que teria redundado na fundação dos Estados nacionais na
América Latina não foram mais do que “[...] uma autentica depuração
consolidadora das estruturas econômicas e sociais herdadas da sociedade
colonial.” (FERNANDES, 1973, p. 49) e o início de uma fase de transição
identicada como neocolonial. Florestan prefere não tratar especicamente
dessa fase para logo adentrar na discussão da formação do “capitalismo
moderno.” (que pressupõe o capitalismo mercantilista como antigo).
O “capitalismo moderno” surge quando da internalização do
mercado capitalista e a criação, assim, de dois polos interligados que se
retroalimentam, mas sempre em maior benefício do polo externo. O
surgimento de um mercado interno resulta da expansão do mercado
mundial, sem que haja alterações de fundo na forma social neocolonial.
O capitalismo se instala e se adequa aos interstícios da ordem já existente,
sem desagrega-la.
O primitivo capitalismo mercantilista, que impregnou as atividades
econômicas no período colonial e na transição neocolonial, não se
evapora: ela continua entrando no espírito dos agentes econômicos
externos ou internos, todos orientados por uma mentalidade
especulativa predatória. (FERNANDES, 1973, p. 51).
Decerto é de se provocar perplexidade essa formulação e também a
que se segue. O que é o espírito dos agentes econômicos com mentalidade
especulativa predatória?? Apenas se sabe na sequência que esses agentes com
tal mentalidade são o “produtor rural”, o grande e pequeno comerciante
e o trabalhador assalariado. Com eles a mercantilização se reabilita e se
converte em “fator da racionalidade”. Assim que “[...] a ‘revolução burguesa
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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se desenrola com um dado da estrutura, não como processo histórico.
(FERNANDES, 1973, p. 52). Aqui nos encontramos em pleno mundo
idealismo weberiano e do estruturo-funcionalismo! Aqui não se percebe a
presença de classes sociais que fazem história!
A revolução burguesa ocorre pela interação e pelo dinamismo
que procede de fora com o dinamismo interno. O impacto externo é a
constante de todo o processo dessa interação, cujo momento culminante
– o qual apenas alguns países da América Latina alcançam -- se mostra
na aceleração da revolução industrial. Mas o capitalismo dependente
tem nessa dualidade a sua particularidade, daí ter uma lógica econômica
própria, que implica a sobre apropriação capitalista. Essa lógica econômica,
por sus vez, decorre do predomínio permanente do polo externo, situação
aceita pelo polo interno como vantajosa. Se sairmos da abstrusa linguagem
sociológica de Florestan, pode-se dizer que as classes dominantes internas
se beneciam com a aliança subalterna com os interesses do núcleo
imperialista do capitalismo mundial, às custas do interesse na construção
de um povo/nação.
A burguesia no capitalismo dependente se origina das oligarquias
e se apresenta como uma burguesia compósita e plutocrática. Essas suas
características impõem limites estruturais difíceis de serem rompidos: a
diculdade de incorporar os trabalhadores na vida civil e a diculdade
de apresentar melhores condições de negociação com o polo externo. As
tentativas de construção da hegemonia burguesa no capitalismo dependente
falharam exatamente por não terem rompido com o polo externo dinâmico
e assim terem tido de se adequar mais uma vez ao movimento externo.
Assim, a única forma da burguesia se realizar como classe e impor a sua
hegemonia é preservando a aliança entre os polos interno e externo.
Florestan não diz explicitamente, mas é óbvio que essa hegemonia só pode
ser débil e ter que contar muito com a violência.
Florestan Fernandes, na análise da sociedade de classes organizada
no capitalismo dependente, faz uso das categorias weberianas para
descrever o período pré-capitalista e do método estruturo-funcionalista
para o capitalismo dependente propriamente dito. Mostra como mesmo
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
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o desenvolvimento do polo interno – industrialização, urbanização, novas
tecnologias –, mantida a forma dual de dominação,
[...] a evolução do capitalismo não conduz, nessas condições, da
dependência a autonomização, mas à consolidação e ao crescente
aperfeiçoamento de uma ordem social competitiva capaz de
ajustar o desenvolvimento capitalista a formas ultra espoliativas
de dominação econômica (interna e externa) e de exploração do
trabalho. (FERNANDES, 1973, p. 76).
Signica então que a dinâmica do capitalismo dependente aponta
para sua constante renovação e transformação desde que mantida a forma
dual de exploração atuada por um polo externo de dominação articulado
com o polo interno de dominação. A dinâmica da transformação, porém,
é determinada pelo polo externo. A articulação externo / interno explica
a necessidade da superexploração e explica também que a ruptura da
dependência não pode ser feita a partir do polo interno de dominação,
não pode ser feita dentro dos marcos do capitalismo, mas apenas em
função antiburguesa e anticapitalista. Diz Florestan a esse propósito: “Só a
revolução contra a ordem”, negadora ao mesmo tempo da dependência,
do subdesenvolvimento e do capitalismo, oferece uma alternativa real
ao padrão dependente de desenvolvimento capitalista.” (FERNANDES,
1973, p. 89).
Em tom de conclusão parcial, com a perspectiva estruturo-
funcionalista, Florestan emenda:
Como sucede com os fatos de estrutura, os fatos de funcionamento
e de evolução sugerem que uma ordem social competitiva fraca
não possui condições para coordenar as transformações críticas
do sistema do sistema de produção capitalista, da sociedade de
classes e da civilização cientíco-tecnológica. Inibindo todas
as inuencias, exceto as que procedem do tope e combinam a
mudança socioeconômica, cultural e política à preservação mais
ou menos rígida de privilégios de classes, ela só deixa uma porta
aberta à superação do subdesenvolvimento: a revolução socialista.
(FERNANDES, 1973, p. 89).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
140 |
A ordem social competitiva, na América Latina, tem origem na
dominação oligárquica, de sua transformação induzida pelo polo externo.
A sua preocupação é aquela de preservar os privilégios e vantagens das
classes dominantes, que persistem e se adequam aos interesses do polo
externo de dominação. De fato, a ordem social competitiva é exclusiva
das classes possuidoras. As classes dominadas tem baixíssima a capacidade
de inuenciar a ordem social competitiva por conta de sua debilidade
organizativa. Eventual atividade disruptiva tende a ser facilmente reprimida
pela ação policial ou militar.
No entanto, o dinamismo do capitalismo dependente leva
inevitavelmente a conguração da sociedade de classes, de modo que os
dominados acabam também eles por se constituir em classe, ainda que dentro
da ordem. Com o capitalismo monopolista imperialista o polo exterior se
internaliza e cria uma condição simétrica ao antigo padrão colonial. O
polo interno adapta a ordem social competitiva às novas condições com
o reforçamento das instancias repressivas do Estado, sempre com o to
de manter os privilégios das classes “altas”. Assim é que se completa a
revolução burguesa, não com o discurso da liberdade e igualdade, mas com
a defesa aguerrida dos privilégios da burguesia associada ao imperialismo.
As tarefas da revolução burguesa original – a questão nacional, a questão da
terra, a questão da democracia – passa às mãos dos explorados pelo capital,
que só podem resolve-las na revolução socialista.
Esse segundo ensaio é o único que mostra ampla bibliograa de
referência. Percebe-se a presença de muitos autores hispano-americanos,
alguns brasileiros, apenas Caio Prado Jr. como notório marxista. Nem
mesmo os chamados clássicos da Sociologia aparecem.
a queStão doS IntelectuaIS
O terceiro texto do livro foi o primeiro a ser escrito, em abril de
1970, e apresentado no X Congresso Latino-Americano de Sociologia,
realizado em Santiago do Chile. Decerto trata-se de um escrito da maior
importância no qual Florestan questiona a lugar e a papel dos intelectuais,
da Sociologia e dele mesmo num contexto de crise e de mudança social.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 141
Por suposto, Florestan reconhece que a Sociologia surge nos países
hegemônicos do capitalismo com uma função de estabilização da ordem,
constrói métodos e conceitos e se difunde para outros países. A questão
que se coloca é como essa Sociologia, receptada em países dependentes,
como os da América Latina, também contribui para a defesa da ordem
social competitiva. Intelectuais em sentido amplo, incluindo sociólogos,
trabalham inseridos em instituições apropriadas para a preservação ou
mudanças dentro da ordem dentro dos polos de poder político econômico
característicos do capitalismo dependente. Assim que há um campo
ideológico unicado, mesmo que distinto, em ambos os polos do padrão
de dominação.
No período de conclusão da revolução burguesa no capitalismo
dependente ocorre também a internalização do polo de dominação externo,
numa reprodução mimética do antigo padrão colonial. Esse movimento
induz um processo de “modernização dependente”, que não passa de
nova adequação da dependência. Para a Sociologia, para o conjunto
das Ciências Sociais, para os cientistas a questão que se coloca é sobre a
possibilidade da autonomização do desenvolvimento. Ora, para Florestan
há certa obviedade na assertiva de que no capitalismo dependente também
a produção cientica e tecnológica, assim como seus usos, encontram-se
limitados pela situação de dependência. A organização e o nanciamento
da ciência cam condicionados aos interesses, em última instancia, do
capital nanceiro transnacional. Da mesma maneira a educação e a cultura
na sua materialidade.
Um processo da autonomização a partir da modernização
dependente não parece ser possível, na acepção de Florestan, ainda que essa
ideia seja bastante difundida. Seria esse o caminho de um nacionalismo
democrático revolucionário, mas a preservação de laços com o com
os centros hegemônicos tende a car difícil até o ponto de haver uma
limitação muito grande de transferência de tecnologia. O enfrentamento
dessa diculdade implica um investimento grande na produção cientica
nacional, seguindo os interesses e necessidades nacionais e alterando as
relações internacionais, com privilegiamento de países que entraram nessa
senda de produção cientica e tecnológica autônoma.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
142 |
A Sociologia pode colaborar nesse processo de autonomização
nacional? A resposta é positiva com a ressalva de vir a ser uma importância
instrumental,
[...] e só adquire ecácia prática quando os conhecimentos
sociológicos são absorvidos e dinamizados por comportamentos
coletivos que desencadeiam, reforçam e consolidam mudanças
sociais de natureza revolucionaria (como ‘revolução dentro da
ordem’ ou como ‘revolução contra a ordem’). (FERNANDES,
1973, p. 141).
A modernização começa como um processo imposto de fora voltado
para a acentuação da dependência dos povos frente aos centros hegemônicos
do grande capital e torna-se inevitável. Cabe então a Sociologia servir a
uma inversão do processo de modernização, fazê-lo um movimento interno
com vistas a emancipação nacional e social. Mas é tão evidente que os
sociólogos não podem ser os atores da mudança social, quanto não podem
também car alheios às transformações em andamento. O sociólogo tem
que tomar partido, dado que a opção pela neutralidade não existe.
Assim que Florestan, ao concluir que a revolução na América Latina
só pode ser uma revolução socialista, passa a associar a sociologia crítica e
militante do socialismo como caminho necessário pra a emancipação dos
povos América Latina. A Sociologia, quer faça uso da análise estrutural
funcionalista ou da dialética, “[...] se converte numa ciência dos processos
histórico-sociais in ux.” (FERNANDES, 1973, p. 156).
concluSão
Ao se completar a análise desses três ensaios de Florestan Fernandes
algumas poucas conclusões parecem certas. Mais do que antes Florestan
se fez o sociólogo critico, militante, socialista, um homem de partido
no sentido de alguém que está do lado e ao lado das massas desvalidas
e exploradas. O seu entendimento era de que a América Latina entrava
nos anos 70 numa situação revolucionária ainda que vivesse sob regimes
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 143
ditatoriais repressivos. Na verdade, era essa a demonstração da situação
revolucionária.
A conclusão da revolução burguesa na fase do capitalismo monopolista,
com a internalização do capital nanceiro levava a exacerbação da
autocracia burguesa e a saída viável não era outra que a revolução socialista.
Sobre esse ponto Florestan chega a ser contraditório, pois às vezes aceita a
viabilidade de uma revolução nacionalista que implantaria alguma variante
de capitalismo de Estado. Chama muito atenção que Florestan tenha feito
essa avaliação basicamente por meio de análise estrutural funcionalista. As
referências a dialética ou ao marxismo são incidentais.
O passo ulterior que Florestan daria na sua aproximação com o
marxismo se apresenta já quando estava de volta ao Brasil e retoma os
estudos interpretativos sobre a revolução burguesa no Brasil. O livro
lançado no m de 1974, trazia exatamente o título de A revolução burguesa
no Brasil: ensaio de interpretação sociológica, lançado também pela Zahar
editores. Não é difícil notar as diferenças entre os primeiros capítulos,
escritos ainda nos anos 60 e a terceira parte, que trazia ecos do exilio.
No prefácio à segunda edição desse livro (FERNANDEES, 1975, p. 7),
escrita em março de 1976, Florestan apresenta outra leitura da época
colonial, agora vista como dominada pelo modo de produção escravista.
A partir dessa constatação aparece a pergunta sobre o papel da escravidão
na acumulação originaria do capital no Brasil. O enfoque teórico já não
é o estruturalismo funcional e é bastante visível o empenho para se fazer
uma análise de cunho marxista, ainda que os traços da Sociologia clássica
weberiana persistam acentuados.
referêncIaS
CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na
América Latina. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970.
DEL ROIO, Marcos. O PCB e a estratégia da revolução brasileira. Novos Temas: revista
do Instituto Caio Prado Jr., São Paulo, n. 7, p. 217-235, 2012.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
144 |
FERNANDES, Florestan. Capitalismo Dependente e classes sociais na América Latina. Rio
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IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968.
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dilema latinoamericano. Santiago: Ed. PLA, 1972.
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1962.
WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz & Terra,
1978.
| 145
F F,  
 ,   

Haroldo Ceravolo Sereza
1
Primeiramente, gostaria de registar minha alegria por participar
deste livro, que inevitavelmente nos faz lembrar da Jornada de Estudos
Florestan Fernandes, cujas falas integram a obra O saber militante,
organizado por Maria Angela D’Incao. O encontro de 1986, organizado
no campus de Marília pela Universidade Estadual Paulista, tornou-se um
marco na trajetória do político Florestan Fernandes, que naquele ano
seria eleito deputado federal, e também no reconhecimento e releitura de
sua obra. Brincando com o célebre problema, diga-se de passagem, não
resolvido pelo personagem Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de
Assis, ali uniram-se não exatamente “as duas pontas” da vida de Florestan,
mas, seguramente, duas delas, de uma vida cheia de ramicações: a do
cientista social que assiste à consagração por seus pares e a do político que,
a partir deste capital social acumulado, se lançará em uma nova e arriscada
 Doutor em Letras – Professor convidado do PPGLit-Ufscar
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p145-164
Marcelo Augusto Totti (Org.)
146 |
empreitada, na qual se destacaria como constituinte e como parlamentar.
Florestan ali era o sociólogo militante e o militante sociólogo
2
.
Temos aqui uma nova oportunidade de fazer um balanço da obra de
Florestan, desta vez num momento dramático para a história do país, em
meio ao governo do presidente Jair Bolsonaro e à pandemia do coronavírus.
Hoje, está ainda mais claro do que em 1986 que as contribuições de
Florestan para a pesquisa e o debate racial no Brasil serão duradouras, ainda
que eventualmente questionadas e colocadas em perspectiva. O mesmo se
aplica a suas contribuições na construção dos campos da sociologia e da
antropologia, nas intersecções da sociologia com a educação e, sobretudo,
nos debates sobre a revolução burguesa brasileira e o caráter autocrático
dessa burguesia, além, claro, dos problemas do subdesenvolvimento do
Brasil e da América do Sul. Há farta bibliograa sobre esses temas em
que a obra de Florestan é invocada, debatida e usada como referência. São
contribuições que remetem a anos de intensa atividade intelectual e debate
metodológico, com o cumprimento também de muitos projetos e tarefas
burocráticas. Florestan, por conta desses debates, acumulados ao longo das
décadas de 1940, 1950, 1960 e 1970, frequentemente é lembrado como
sociólogo, antropólogo e educador.
Eu queria, no entanto, priorizar um outro Florestan, o Florestan
político e, a seu modo, cientista político. Florestan que pensou o Brasil
dos anos 1980, os limites da “transição transada”, como ele se referia ao
processo que nos levou à Constituição de 1988, e os apontamentos do risco
que o país corria por, uma vez mais, não realizar sua “revolução burguesa”.
No espaço da política, Florestan escreveu na segunda metade dos
anos 1980 e início dos anos 1990 regularmente para veículos dos mais
variados portes, com destaque para a Folha de S.Paulo e para o Jornal do
Brasil, além de numerosos jornais partidários e sindicais ligados ao PT
e à CUT, procurando analisar a conjuntura a quente e a partir de uma
posição privilegiada, mas respeitando os limites éticos da sua posição como
Este texto traz mudanças signicativas em relação à fala apresentada no encontro de 2020, mas, ao mesmo
tempo, procura preservar muitas das digressões e derivas presentes numa apresentação oral. Creio que esse é o
melhor meio de não frustrar os que participaram das conversas e têm interesse na versão escrita e, por outro lado,
não causar a sensação de incompletude que uma simples transcrição da fala traria.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 147
candidato e depois como deputado – e, portanto, negociador do texto
constitucional de 1988. Ao mesmo tempo, seus textos procuram desnudar
os impasses sociais e políticos presentes na vida política e no Parlamento,
para que os instrumentos das classes trabalhadoras pudessem agir com mais
precisão e sucesso. Na “nota explicativa” (terminologia signicativa adotada
por Florestan na introdução da maior parte de seus livros) de A Constituição
inacabada, Florestan (1989, p. 9) armou viver uma dupla condição, a de
parlamentar e de observador, o que gerava conitos de lealdade que ele
procurou solucionar privilegiando a condição de observador. Mais do que
sociologia a quente, portanto, ele fazia ciência política a quente, apontando
os caminhos possíveis para os setores populares e progressistas, mas também
as barreiras presentes nos processos, de modo a indicar, tanto quanto
poderia, onde se dariam os conitos presentes e futuros provocados pela
luta de classes naquele Brasil em que o debate socialista se via bloqueado,
pelo menos no que tange à Assembleia Nacional Constituinte. Se Florestan
(1989, p. 10) cita Weber e sua experiência na República de Weimar na
mesma nota, é preciso lembrar também que, desde o nal dos anos 1970,
é na gura de Lênin que ele busca um ideal. Sem a energia e uma trajetória
política que permitissem a ele liderar o PT, Florestan toma como tarefa
manter viva a teoria marxista e, mais especicamente, as ideias socialistas
durante a década de 1980, sob inspiração muitas vezes explicitada dos
escritos do revolucionário soviético.
Num artigo bastante detalhado e instigante sobre a Coleção Grandes
Cientistas Sociais (CGCS) – coordenada por Florestan Fernandes e
publicada pela editora Ática, que lançou 60 títulos (com trechos selecionados
de obras de 58 autores) entre 1978 e 1990 –, Lidiane Soares Rodrigues
(2018, p. 683) arma que, após a aposentadoria, “[...] Florestan não se
dedicou a novas pesquisas”. Rodrigues (2018, p. 687) escreve ainda que a
seleção dos autores dos 14 volumes dedicados à política e os 8 à economia
da CGCS “[...] não foi regrada pelo campo cientíco, mas pelas vicissitudes
da vida política: são dirigentes políticos, líderes revolucionários ou quadros
burocráticos do Estado.
3
. Tal composição difere signicativamente de
Lenin, Engels, Che Guevara, Trotsky, Joaquim Nabuco, Mariátegui, Isaac Deutscher, Stalin, Mao Tse-
Tung, Sarmiento, Bolívar, Ho Chi Minh, Proudhon e Fidel Castro estão na seção “Política”; Keynes, Kalecki,
Lange, Malthus, Marx, Furtado, Quesnay e Bukharin foram publicados na seção “Economia”. Acredito que
Marcelo Augusto Totti (Org.)
148 |
outras sessões, como “Sociologia”, “História” e “Antropologia”, da mesma
coleção, para citarmos as mais numerosas.
Sem desconsiderar as qualidades da análise de Soares, creio que as
armações destacadas merecem ser recompreendidas. Mais do que escolher
autores cuja trajetória “não foi regrada pelo campo cientíco”, Florestan
busca, com esse recorte, dizer o que entende por ciência política. Ou seja,
para ele, são esses atores políticos que zeram ciência política, ou pelo
menos a ciência política que lhe interessa. A tensão se expressa, inclusive,
no nome escolhido para a fração – política, em vez de ciência política.
Desconheço se a motivação da escolha foi explicitada na própria coleção,
mas, independentemente de essa justicativa ter sido apresentada, ela cria
uma ambiguidade e, por sua vez, resolve um problema prático, que é o de
evitar uma repetição (“grandes cientistas”/“ciência política”). Além disso, é
evidente e relatado em múltiplos espaços, nesse momento de sua trajetória,
o desconforto de Florestan com o rumo tomado pela prossionalização
universitária, ou, o que dizia quando usava palavras menos dóceis, pelo
carreirismo universitário. Não se trata, a meu ver, de rebaixar a política
a uma não-ciência e fazê-la “pegar carona” numa coleção de “grandes
cientistas sociais”, mas de dar status de ciência a um tipo de análise e leitura
da realidade que lhe interessava naquele momento. É revelador,
durante o processo de escrita dos textos reunidos em A Constituição
inacabada, por sua vez, que Florestan (1989, p. 9-10) perceba que muitas
vezes seus escritos têm mais impacto entre seus colegas parlamentares que
seus discursos: “Passei, desse modo, a escolher entre um discurso e um
artigo, e a avaliar os dois modos de comunicação do pensamento. O artigo
mostrou-se mais maleável, com penetração relativa mais ampla e uma
inuência potencial maior”. A preocupação com a intervenção política por
meio dos textos que escreve, inicialmente voltada prioritariamente para a
própria esquerda, se expande: eles se tornam um meio de inuir, de modo
decisivo, nas leituras e decisões dos colegas parlamentares, de variadas
tendências políticas. Se a sociologia devia ser militante, a ciência política
também deveria ser pensada como um instrumento de ação militante.
é importante salientar, aqui, que a economia é uma ciência frequentemente produzida dentro da burocracia
do Estado ou de empresas, e não apenas na academia, o que torna a seleção dos cientistas políticos ainda mais
signicativa.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 149
Seguindo, novamente, os paradigmas da Revolução Russa, lembraria
a proposição de Michael Burawoy (2014) no livro Marxismo sociológico.
Num dos capítulos da obra, Burawoy toma o exemplo de Trotsky como um
cientista social” mais efetivo, por seus métodos, do que a cientista política
norte-americana eda Skocpol. Numa análise comparativa, Burawoy
conclui que Trotsky prevê, a partir da análise do passado e do presente,
eventos com mais precisão do que Skocpol, ainda que a cientista política
trabalhe com muito mais dados quantitativos. Burawoy defende que é o
método marxista que faz Trotsky ser mais conável em suas previsões do
que Skocpol.
Florestan, fora da academia e longe da possibilidade de levantar
tantos dados quanto Skocpol, faz outra ciência, muito diferente da ciência
política abrigada na universidade. Burawoy, como arma Paula Marcelino
(2017), contrapõe a ciência reexiva à ciência positiva. Podemos tomar
os livros de Florestan dos anos 1980 com a mesma perspectiva: se
queremos, como queria Florestan, promover uma revolução democrática
no país, precisamos de cientistas políticos que sejam também militantes, e
militantes que sejam capazes de pensar cienticamente – do ponto de vista
do socialismo cientíco – a política.
penSar para agIr, agIr para penSar
Antes de tratar especicamente dos textos desta época, que me
parecem urgentes nos dias de hoje, vou retomar um pouco a formação
de Florestan e de como entendo o seu modo de construir uma “ciência
reexiva”. Uma das coisas mais difíceis para mim quando escrevi Florestan –
A inteligência militante, publicado em 2005, foi justamente citar seus textos.
Para um autor como ele, temos de levar em conta, permanentemente, o
funcionamento dialético das reexões. Praticamente tudo o que Florestan
diz entra, em seguida, num processo de reanálise pelo próprio Florestan.
Assim, não há, em suas obras, muitas frases denitivas, que sintetizem uma
discussão, porque essas frases, imediatamente após serem enunciadas, são
problematizadas e novos limites são apontados, e então seu pensamento
segue adiante.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
150 |
Vou fazer, portanto, um exercício temerário aqui: citarei o início do
capítulo 1 do livro Sociedade de classes e subdesenvolvimento, que, inclusive,
dá nome ao volume:
O capitalismo não é apenas uma realidade econômica. Ele é
também, e acima de tudo, uma complexa realidade sociocultura,
em cuja formação e evolução histórica concorreram vários fatores
extraeconômicos (do direto e do Estado nacional à losoa, à
religião, à ciência e à tecnologia). (FLORESTAN, 1981, p. 21).
Ou seja, Florestan rejeita a ideia dogmática de que o capitalismo
explica tudo por si só; se assim fosse, no limite, o capitalismo não precisaria
ser explicado, e a dimensão econômica daria conta de tudo. Pelo contrário,
para Florestan, a dimensão econômica da vida é apenas uma parte da vida.
Em outro trecho do mesmo livro, desta vez do capítulo 5, “A revolução
brasileira dos intelectuais”, resultado de um discurso proferido após o
golpe de 1964, diz, entre outras coisas:
Quaisquer que tenha sido nossas preferências ou aições, nada do
que ocorreu pode ser tachado de imprevisível na situação histórico-
social e cultural do Brasil. Pagamos por erros e omissões que se
acumularam ao longo de quatro séculos e meio. Transformar o
algoz em vítima de nada nos adiantaria. Precisamos fazer algo mais
complexo e denitivo: lutar contras as causas que tornam essas
ocorrências inevitáveis, ou seja, com os fatores que perturbam,
desequilibram e desorientam o desenvolvimento nacional.
(FLORESTAN, 1981, p. 177).
Esse segundo trecho poderia, muito bem, ter sido escrito em 2014,
quando o candidato do PSDB Aécio Neves se recusa a aceitar a vitória nas
urnas ou, mais precisamente, em 2016, quando Câmara dos Deputados e
Senado levaram a presidente Dilma Rousse ao impeachment. Não que
a situação seja idêntica, mas o diagnóstico de fundo permanece intacto.
Não se trata de uma simples repetição anacrônica dos acontecimentos,
mas do acúmulo de anos em que a esquerda e os setores progressistas
não encontraram forças e meios sucientes para “lutar contra as causas
que tornam essas ocorrências inevitáveis”. A escrita é precisa e perene
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 151
justamente porque ela entende o fenômeno de 1964 não como um evento
isolado na história nacional e a partir de suas causas superciais, mas como
uma recorrência passível de nova repetição caso não se enfrentassem suas
causas de fundo.
Citei esses dois trechos porque, primeiro, acho que eles estão
relacionados a uma forma de pensar complexa, uma forma de pensar
que, ao mesmo tempo, passa pelo desejo de apreender e de transformar
a realidade. Ou seja, cada palavra que Florestan escreve tem esse duplo
desejo, e isso já é perceptível, ainda de forma incipiente, em seu primeiro
texto afamado, sobre as trocinhas do Bom Retiro, incluído no livro Folclore
e mudança social na cidade de São Paulo. Nesse estudo, realizado ainda
na graduação, sobre as brincadeiras infantis, já se mostra presente essa
vontade de apreender, o que se manterá até os últimos textos publicados
na Folha de S.Paulo, nos anos 1990. Uso a palavra transformar pensando
que ela poderia ser substituída por reformar ou por revolucionar: ao longo
de sua vida, Florestan vai advogar reformas e revoluções, algumas reformas
(como a educacional) com potencial revolucionário, outras revoluções
com necessidades reformadoras.
Esse desejo de compreender para transformar se explica muito
pela trajetória pessoal do escritor Florestan Fernandes
4
. Como sabemos,
Florestan é, segundo suas próprias palavras, de origem lumpemproletária,
ou seja, na “hierarquia social” da sociedade capitalista, encontrava-se abaixo
do proletário. Ele é o lho de uma lavadeira e dependeu de favores para
superar os primeiros anos. Herdeiro do que chamou de “orgulho selvagem
da mãe, recebia esses favores de forma altiva, porque eles sempre vinham
com uma moeda de troca muito pesada.
Uma criança nessas condições enfrenta as violências que estão em casa,
muitas simbólicas e algumas físicas, da própria família ou dos padrinhos, e
outras que estão nas ruas, incluindo ameaças de violência sexual e constantes
brigas entre seus pares lumpemproletários. Claro que essa trajetória não é
suciente, porque nem todos que passam por este processo de sair do “poço
Gosto de me referir a Florestan também como escritor. Escritor aqui pensando não como ccionista, mas
como alguém que elabora textos de maneira recorrente, em diferentes campos só saber. Para mais detalhes sobre
a vida de Florestan, cf. SEREZA, 2005; CERQUEIRA, 2004; GARCIA, 2002.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
152 |
social desenvolvem tal capacidade de reetir sobre ele. Mas não me parece
acaso, portanto, que, à primeira oportunidade, Florestan decida estudar
as trocinhas, ou seja, grupos rivais de crianças. Para entrar num grupo, a
criança recém-chegada tinha de participar do embate contra as trocinhas
rivais e, assim, mostrar-se útil (expressão também usada por Florestan),
para só então ser aceito e legitimado. Durante sua vida, Florestan precisou
adentrar em muitos grupos, em especial a universidade, em que sua presença
não era natural e precisava ser construída, como a entrada de uma criança
numa trocinha. Estudar as trocinhas, de algum modo, já era decifrar,
psicologicamente, numa espécie de autoanálise, a própria vida. Se para
o estudo universitário aquilo tinha um valor coletivo, para Florestan era,
também, ciência reexiva, para compreender a própria vida.
O estudo das trocinhas mostra toda a perspicácia e a sensibilidade
de Florestan para entender a partir da vida cotidiana, o povo, o popular
e as relações que se estabelecem entre as pessoas e a sociedade como um
todo. Wright Mills, que com frequência é citado quando pensamos na
sociologia militante ou na sociologia pública, deixou-nos uma denição
fantástica sobre o que é ter imaginação sociológica, que é ter consciência
da estrutura social e utilizá-la com sensibilidade, identicando as ligações
e a grande variedade de ambientes entre a pequena escala e a grande
sociedade. Portanto, ser capaz de apreender e descrever a relação da grande
estrutura com os eventos de pequena escala, ou seja, essa dupla dimensão,
é, para Wright Mills (1969, p. 17), valer-se da tal imaginação sociológica.
A imaginação do cientista social, e não apenas do sociólogo, é que faz
Florestan ser tão importante para pensar problemas profundos de qualquer
sociedade, em especial da sociedade brasileira. Para ele, os temas em tela não
devem ser observados como quadros estáticos, mas como algo dinâmico,
numa relação sosticada entre as coisas pequenas e as coisas grandes. É essa
característica, retomando a explanação de Paulo Fernandes Silveira neste
nosso encontro, que explica a capacidade de Florestan de desarmar a bomba
que a Unesco jogou em seu colo e no de Roger Bastide, na pesquisa sobre
as relações raciais em São Paulo. O exercício de construção dessa pesquisa
foi um desao imenso porque, como Paulo Fernandes Silveira destacou,
tudo estava sendo realizado para rearmar a tese de Gilberto Freyre. Não
por conservadorismo intrínseco, mas porque sociologicamente Freyre e
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 153
seus colegas estavam muito bem situados, sendo capazes de inuir nas
decisões do organismo internacional a ponto de tal organismo entender
que estudar o Brasil permitiria apontar, para o mundo, soluções para a
questão da desigualdade racial.
A pesquisa sobre as questões raciais em São Paulo chega a Bastide
e Florestan com este recorte. Foi preciso grande articulação intelectual e
política para que Bastide e Florestan buscassem ferramentas, fórmulas e
parcerias, principalmente como o movimento negro, para desmontar o
projeto de mostrar o Brasil e São Paulo, em particular, como exemplos
de “democracia racial”. Num dos debates, cuja documentação Silveira
recentemente me facultou, sobre a questão da mulher negra, a presidência
da mesa foi passada para o movimento negro, deixando intencional
e metodologicamente de ser conduzida por um dos pesquisadores da
USP
5
. Ou seja, a forma como essa pesquisa foi feita foi uma invenção,
uma capacidade de construção metodológica e de observação muito rara,
especial e livre.
É essa liberdade de pensar de maneira autônoma e não dogmática
a pesquisa é que leva ao desmonte dos argumentos que são construídos
por Gilberto Freyre. Florestan também recorre a algo muito presente na
pesquisa do próprio Freyre, que é a busca de situações cotidianas, de detalhes
do discurso de brancos e negros, do relato de experiências pessoais. Uma
etnograa que alguns podem julgar pouco rigorosa, mas que na realidade é
capaz de captar o racismo estrutural presente nas práticas de instituições e
indivíduos. É, digamos com alguma liberalidade, uma resposta freyriana a
Gilberto Freyre. Mais que uma fragilidade, essa é uma das razões do sucesso
dessa resposta: se não recorresse, em alguma medida, aos mesmos métodos
do sociólogo pernambucano, parte da obra do autor de Casa-grande &
senzala e Sobrados e mucambos caria sem contraponto e, portanto, poderia
ter tido uma vida muito mais longa.
Registre-se que Florestan recusava a posição de uma leitura denitiva sobre a situação do negro no Brasil.
Numa carta enviada ao militante negro gaúcho Edilson Amaral Nabarro, preservada por Nabarro e datada de 28
de dezembro de 1983, Florestan escreveu textualmente que a pesquisa que fez com Bastide era “uma picada e um
ponto de partida”, para completar: “O negro se manifestará através de sua presença e da alteração que provocará
mais cedo ou mais tarde na organização da sociedade brasileira. Sem o negro e sua participação revolucionaria
a luta de classes jamais atingirá o seu zênite, o negro é o diamante que cortará a linha da democracia social e
racial no Brasil”..
Marcelo Augusto Totti (Org.)
154 |
O desmonte que Florestan, Bastide e o movimento negro fazem da
tese da democracia racial é, também por essa razão, denitivo. E tanto
mais admirável porque feito a partir do que era, de certo modo, também
uma espécie de homenagem da Unesco à construção sedutora elaborada
por Freyre nos anos 1930, ainda que vez ou outra Freyre volte no discurso
dos grupos mais reacionários até na gura do injustiçado, como ocorreu na
Festa Literária de Paraty de 2010, quando o sociólogo pernambucano foi o
escritor homenageado. Cabe registrar que essa imagem de injustiçado não
tem nenhum alicerce na realidade: Freyre é pensado e é tratado como um
autor canônico no país e nunca foi escanteado ou perseguido por ser um
sociólogo conservador ou mesmo reacionário. Pelo contrário, colecionou
ganhos, sobretudo simbólicos, dessa posição.
O debate intelectual e a realidade, mostram todos esses casos,
não são óbvios. A realidade não apenas expressa ou reete (verbos que
costumeiramente encontramos quando as ciências humanas se deparam
com um tema), ela também provoca a imaginação. Os mecanismos de
observação de dada realidade precisam ser imaginados, e a descrição e a
compreensão da realidade exigem também espaço para a criação por parte
do escritor, seja ele sociólogo, antropólogo, educador, jornalista ou – como
vamos tratar aqui – cientista político. É essa capacidade de imaginar a
realidade e de pensar as alternativas que estão em jogo em diferentes
momentos que faz da obra de Florestan um pensamento vivo, que permite
entender o passado, perceber o presente e projetar os futuros possíveis.
o polítIco cIentISta polítIco
Essa capacidade de projeção, presente nos escritos políticos dos
anos 1980 e 1990, é o que hoje me parece mais urgente resgatar na obra
de Florestan. São textos que versavam sobre a situação do país naquele
momento e que, por outro lado, falam muito do Brasil de hoje. E que nem
sempre recebem a mesma atenção dos intelectuais quando comparados
com a produção anterior.
Florestan elaborou nesses anos um conjunto de reexões que
permitem pensá-lo não apenas como um político e deputado, ou seja, um
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 155
ator privilegiado do jogo parlamentar, mas também como um cientista
político que busca expressar os problemas da política para o proletariado e
para o conjunto dos trabalhadores. É também nessa época que o cuidado
de Florestan com a edição dos textos em livro é radical, revelando um
pensador que já imagina que seus escritos terão vida longa e que serão
postos a prova do crivo não só dos contemporâneos, mas das gerações
vindouras; alguém que tem a clareza de que sua vida chegaria ao m antes
da vida do que escrevia.
Em livros como Brasil, em compasso de espera (1980), A ditadura
em questão (1982), Que tipo de República? (1986), culminando em A
Constituição inacabada (1989) e com reexos em Em busca do socialismo
(1995), Florestan elabora de maneira prática, mas também teórica, questões
fundamentais da transição democrática no país, ou seja, da transição da
ditadura militar pra vida civil tutelada pelos militares. Tomo, assim, A
Constituição inacabada como um livro paradigmático do período. Além da
preocupação temática (a política contemporânea no Brasil), algo presente
em todos esses livros, é possível perceber também um ganho estilístico na
prosa de Florestan, que se mostra progressivamente mais solta, nem por
isso menos rigorosa, no correr dos artigos, organizados cronologicamente,
do mais antigo para o mais recente.
O segundo texto do livro, intitulado “A crise institucional”, foi
publicado originalmente em 13 de julho de 1986 (FLORESTAN,
1989, p. 21-23), portanto no início da campanha eleitoral que o levaria
à Constituinte e em meio ao sucesso do Plano Cruzado, que elevou a
popularidade do governo José Sarney. Neste texto, Florestan, entre outras
questões, coloca em debate a volubilidade do eleitorado brasileiro, analisa
seu signicado e propõe uma pauta para os partidos de esquerda:
O sintoma mais ostensivo e perigoso do que acontece reponta nas
oscilações das massas, que buscam heróis populistas e saltam de
galho em galho, a cada eleição. Elas não são um termômetro de que
os de cima detêm o ‘controle do poder e da sociedade’. Ao inverso,
são um índice de que milhões de humildes, oprimidos e espoliados
estão desorientados e aceitam ‘qualquer coisa’ para ‘sair do atoleiro
– de Jânios a Malufs.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
156 |
Nessa conjuntura, “os partidos da ordem” não são capazes de
socializar politicamente com a massa errática, mas, por outro lado, “[...] os
partidos de esquerda não contam com meios para estender a sua atividade
política organizada aos núcleos mais expressivos, na cidade e no campo”.
O próprio PT “[...] não dá conta dos oprimidos que não conhecem o sal
da Terra e sequer podem comer o pão que o diabo amassou”. Florestan
advogava uma Assembleia Constituinte exclusiva, o que foi barrado
pela ação do presidente José Sarney e de sua Nova República. Diante da
impossibilidade, arma que cabem explicitar as reivindicações proletárias
“[...] em termos socialistas, mesmo quando elas são propostas para serem
atendidas dentro da ordem e através da ordem”. O objetivo seria “[...]
conquistar o centro dinâmico da ordem e da sociedade [...]” para que este
centro conquistasse a capacidade de “[...] alterar as estruturas, os conteúdos
e o rendimento do Estado”.
Temos, aqui, um método de compreender e de reportar uma
situação política (a diculdade dos partidos de interagirem com amplos
setores da sociedade numa situação de crise institucional), uma proposta
de abordar as demandas por meio de um discurso socialista (mesmo que
o objetivo não seja a revolução, mas a reforma institucional), a busca
pela conquista do “centro dinâmico da ordem” (a fração do Estado capaz
de agir) “e da sociedade” com o objetivo de, a partir dessa conquista,
promover as mudanças necessária rumo ao “socialismo proletário”.
Tal abordagem se repetirá em muitos dos artigos do livro, variando o
grau de otimismo em relação à conjuntura, mas sempre apontando o
espaço de crise, o meio de intervir e o que se deve fazer com um poder
eventualmente conquistado após disputas necessariamente entendidas
como parte da luta de classes, mesmo quando ocorrem no Parlamento
ou em outra instância “dentro da ordem”.
Diferentes aspectos dessa conjuntura política de então serão
tratados pelo livro. Em “Nem ditador, nem Kerensky” (FLORESTAN,
1989, p. 67-70), de 6 de março de 1987, no início dos trabalhos da
Constituição, Florestan arma que Sarney foi elevado a “[...] uma altura
que o amedronta e imobiliza [...]” e que ele se intromete na Assembleia
Nacional Constituinte “[...] subalternizando-a aos desígnios do Executivo
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 157
[...]”, desconhecendo “[...] a natureza da situação histórica que o Brasil e
a América Latina enfrentam”. Florestan também diz que, para Sarney, é
desnecessária a “vocação ditatorial”, bastando a ele o “[...] compromisso
com a ordem, com a defesa cega de sua reprodução e fortalecimento”.
Numa análise que se revelaria precisa sobre os limites que ANC enfrentaria
até o m, Florestan escreve que ela aparecia “[...] como o elo tolerado de
uma cadeia, que se inicia com o golpe militar de 1964, atinge o seu apogeu
com o triunvirato de 1968-1969 e alcança maturidade com as políticas de
transição dos governos dos generais Geisel e Figueiredo”.
Num outro artigo, publicado pouco à frente, em 26 de junho de
1987, “As perspectivas do PMDB” (FLORESTAN, 1987, p. 100-102),
também vemos a precisão da leitura de um partido que se desgurou
ideologicamente e pôs-se em “contradição com suas raízes populares”.
Entronizado como “[...] o núcleo principal de uma pseudo-Aliança
Democrática, pela qual seria o principal partido da ordem a serviço
do governo (e servindo-se dele) [...]”, o PMDB, ao mesmo tempo
que sustentava Sarney, poluía-se “[...] com a gangrena clientelista e
paternalista”. Neste cenário, em que o PMDB, especialmente seus radicais
antigos e novos, cava entre a potência de dar impulso à “revolução
democrática” e a de “[...] fornecer um fortíssimo alento às forças políticas
da contra-revolução, que se acham mais vivas do que em 1964 [...]”, “[...]
não existe revolução democrática”. Num outro texto (“O novo partido”,
de 10 de julho de 1988, p. 304-307), Florestan identica os limites do
projeto do PSDB, embora o saúde e deseje-lhe boa sorte:
Sabemos, de antemão, que uma esquerda da burguesia estará
sempre presa a uma camisa-de-força insuperável, por maior e mais
honesta que seja sua radicalidade. A nossa burguesia não cultiva
a generosidade política e quer a sua parte em riqueza, poder e
preservação da ordem existente. Ela não comporta uma esquerda
radical em seus quadros e a esmagará, se ela avançar demais no
campo das lutas sociais.
Sabemos, hoje, o quanto o PSDB aceitou esses limites e, para não ser
esmagado, recuou até o limite de conduzir o golpe contra Dilma, entregar
Marcelo Augusto Totti (Org.)
158 |
o poder ao PMDB de Michel Temer e abrir o caminho para a extrema-
direita bolsonarista.
Num dos momentos mais otimistas do livro, e portanto do processo
constituinte, Florestan, no artigo “Adeus à transição” (FLORESTAN,
1989, p. 157-160), explica que a “[...] ANC foi concebida e montada
para legitimar a transição lenta, gradual e segura, conforme a alvos de uma
democracia ritual”. Mas nem tudo ocorreu de acordo com esse desenho
inicial, diz Florestan. “Ao contrário, ela gestou e está gerando uma
verdadeira Constituição, desigual e contraditória – como tinha de ser, em
vista da iniquidades e impossibilidades decorrentes do desenvolvimento
desigual –, e substantivamente democrática”. Ainda segundo ele, a “[...]
ANC foi bitolada pela dialética venenosa e destrutiva da ‘transição’. Mas
se contrapôs a ela e a superou, embora os frutos da vitória não sejam
aqueles que os democratas liberais, radicais, nacionalistas, socialistas ou
comunistas aspiravam”. Esse otimismo com as vitórias alcançadas, ainda
que limitadas, se mantém, mas ca mais equalizado em “Derrota das
esquerdas’?” (FLORESTAN, 1989, p.189-1991). Aqui, Florestan arma
que, diante do cenário da ANC, a esquerda concentrou-se em “[...]
infundir à Constituição liberdades políticas e direitos sociais que reduzem
o despotismo burguês e, simetricamente, criem espaço político legal para
a luta de classe”.
Esse “espaço legal para a luta de classe” seria a grande conquista
democrática da Constituição. Essa luta, na ANC, diante da atuação do
“Centrão” (denido, posteriormente, em “Ideologia e utopia do ‘Centrão’”,
de 27 de janeiro de 1988, p. 207-210, como “[...] conglomerado de facções
de classes burguesas [...]” que carrega consigo “[...] todas as maldições do
capitalismo rústico, perverso e selvagem – e nenhuma das virtudes do
liberalismo autêntico e do radicalismo democrático-burguês” [...]), teria
desmascarado “[...] o compromisso dos partidos da ordem e dos políticos
prossionais com a resistência à mudança na sociedade brasileira [...]”
e deixado claro que conquistar “[...] a Constituição mais democrática
de uma sociedade burguesa [...]” não é “[...] o equivalente histórico da
revolução social”.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 159
A leitura do processo e das conjunturas particulares raramente
escapa dessa análise: uma Constituição construída sob permanente ataque
das forças da reação que, no entanto, saiu-nos a mais democrática da nossa
história, graças às pressões dos trabalhadores e da sociedade civil. Mas que
manteve laços fortes com o passado que esses trabalhadores teriam, de
alguma forma, de encarar.
Debater artigo a artigo do livro tornaria este texto longamente
enfadonho e talvez inútil, mas é sintomático que em um texto publicado
na véspera da promulgação, em 4 de outubro de 1998, Florestan recorra,
mais uma vez, a uma pergunta em seu título: “A Constituição de 1988:
conciliação ou ruptura?” (FLORESTAN, 1989, p. 360-362). Nele,
Florestan arma que a Constituição de 1988 “[...] não responde às
exigências da situação histórica [...]”, porém “[...] parece melhor que não
desperte grandes paixões e deixe em aberto um vasto campo à renovação e à
atualização” (uma referência à revisão prevista no próprio texto para 1993,
o que acabou não ocorrendo). Se “[...] a ditadura, a ‘Nova República’ e
o bloco histórico no poder enredaram-se na ‘conciliação conservadora
e tentaram submetê-la [...]” à transição “lenta, gradual e segura”, os
constituintes “radicais” e de “esquerda” evitaram que isso fosse levado até o
m. O resultado teria sido uma peça que não era “[...] homogeneamente
conservadora, obscurantista ou reacionária [...]”, mas, ao revés, abria “[...]
múltiplos caminhos, que conferem peso e voz ao trabalhador na sociedade
civil e contêm uma promessa clara de que, nos próximos anos, as reformas
estruturais reprimidas serão soltas”.
Sem ser uma promessa de revolução mesmo dentro da ordem,
“[...] a revolução que a burguesia deveria ter realizado [...]”, ela reporia
uma ameaça aos privilegiados. Da nova Constituição emergia “[...]
uma quebra de pequenas bastilhas encadeadas, que faziam do Brasil
uma bastilha colossal”. No futuro próximo, para fazer essas vitórias se
tornarem realidade, seria preciso socializar “os de baixo” cultural, legal
e politicamente para utilizarem a Constituição. No meio de um artigo
otimista, no entanto, vem a crítica cirúrgica: essa socialização seria central
para “[...] extinguir-se a tutela militar, os golpes de Estado e a autocracia
burguesa”: “A Constituição só é um recurso para atingir tal objetivo caso
Marcelo Augusto Totti (Org.)
160 |
ela se converta em valor e caso se insira no quadro real das lutas políticas
da maioria para conquistar liberdade com igualdade”.
Essa leitura de Florestan inuenciou signicativamente a posição
do PT diante do texto constitucional naquele momento. Num texto
publicado na Folha de S.Paulo de 10 de outubro de 1988, Luiz Inácio
Lula da Silva faz uma síntese do que pensava o partido que liderava e
que, embora tenha votado contra a Constituição, a assinou e defendeu
em muitos aspectos. É uma leitura muito parecida com a de Florestan e
eu conjecturaria que o texto teria, inclusive, passado por ele. De modo
mais sintético, como já disse, e objetivo, Lula arma categoricamente:
A Constituição de 1988, simbolicamente, joga no lixo a colcha de
retalhos arranjada pela Junta Militar de 1969. Nesse sentido, ela pode
abrir caminhos, liberar energias da sociedade civil, surpreendentemente
entorpecida pelo comodismo.” A Constituição, no entanto, acolheria,
simultaneamente, avanços políticos e sociais conquistados pela classe
trabalhadora e, contraditoriamente, “[...] a tutela militar, o sistema de
representação antidemocrático, as regalias para o capital e a antirreforma
agrária – expressões máximas de seu texto conservador”.
Relidos mais de 30 anos após a promulgação os artigos de Florestan
(e o de Lula), é possível perceber a clareza da análise feita a quente do
cenário político. A tal “Constituição inacabada” expressou avanços, mas,
também, a incapacidade do país em superar as amarras desse passado,
mantendo fortes elementos estruturais relacionados a questões como
sistema escravista e a construção de uma sociedade de classes autocrática
e militarizada. Armadilhas perfeitamente identicadas pelos constituintes
da esquerda de 1988, que não tiveram forças – ou imaginaram não as ter
– para modicá-las na estrutura social e no texto constitucional quando
chegaram ao poder, em 2003. A tutela militar e os temas da segurança
pública, aliados a uma supervalorização da propriedade, sobretudo da
propriedade de terra, sugeriam que aquela Constituição, deixada ao uxo
dos acontecimentos, permitiria que a burguesia, em algum momento,
adotasse a mesma estratégia de 1964, que é de fechar o regime, ou
encontrasse novos caminhos para desmontar os avanços sociais previstos
em outros pontos do texto constitucional.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 161
Esse pensamento dialético e a atenção ao pequeno e ao grande, à vida
individual e à vida coletiva é que permitem a Florestan indicar com uma
precisão fulminante qual seria o destino do país se em algum momento não
se desmontassem as armadilhas que havia no texto constitucional. Nesse
sentido, volto a dizer, como no trecho que citei de Sociedade de classes e
subdesenvolvimento, que infelizmente nada do que aconteceu de 2014 para
cá era imprevisível. Pelo contrário, foram previstos nos textos do político
cientista político Florestan Fernandes.
O Florestan pessimista que emerge de A Constituição inacabada acerta
na mosca, nessas previsões, em que espaços se dariam os conitos e como
esses conitos seriam tratados e eventualmente resolvidos pela burguesia.
Ou seja, como a burguesia mobilizaria suas forças e alianças para lidar
com uma sociedade cada vez mais altiva, que luta pelas igualdades, como
as de gênero e raça, pela criação de um maior equilíbrio econômico, pela
educação pública, por caminhos que ampliassem a universidade pública
e fortalecessem o sistema público de saúde. É preciso reconhecer aqui
também que essa pauta foi mantida pela esquerda, que aprendeu muito
bem a utilizar-se do texto legal para fazer valer os direitos dos de baixo. E,
nesse sentido, também acertou o Florestan otimista, que via no fechar da
Constituição espaços novos para os de baixo lutarem pelos novos direitos
recém-conquistados.
Entretanto, os mecanismos que a sociedade brasileira encontrou a
partir de 1988 para reduzir desiguais estruturais (não necessariamente de
renda), e que colocaram em xeque o processo de acumulação, assustaram
a burguesia brasileira. Com sua resistência patológica à mudança social,
diagnosticada por Florestan nos anos 1960 ainda antes do golpe, ela
recorreu a instrumentos jurídicos retorcidos para afastar Dilma ao mesmo
tempo que ameaçava com o aparato legal e militar quem ousasse questionar
o processo. A burguesia brasileira, mais uma vez, preferiu ceder os anéis
para car com os dedos, ou seja, aceitou perder dinheiro e colocar o país
na rota do retrocesso para não perder o poder.
As análises precisas de Florestan, fossem as otimistas, fossem as
pessimistas, sugerem que, mais que político, Florestan atuou como um
cientista político na Constituinte. Um “observador participante”, como
Marcelo Augusto Totti (Org.)
162 |
poderia classicar um antropólogo. E usou, para isso, os instrumentos dos
cientistas políticos” que selecionou para a Coleção Grandes Cientistas
Sociais, ou seja, sem os arranjos e suportes típicos da comunidade
universitária e também sem os recursos que considerava inadequados
de uma ciência política contemporânea, voltada excessivamente para as
instituições e valendo-se em demasia de meios quantitativos. Uma ciência
que, para Florestan, não se comprometia sucientemente com a reforma
social, quanto mais com a revolução social.
Numa introdução a Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios,
de Wright Mills, Celso Castro armou que, à medida que aumentava
o afastamento do sociólogo norte-americano em relação a seus pares
acadêmicos, Mills “buscava escrever mais e mais para o grande público
(CASTRO, 2009, p. 10). Ainda no campo da sociologia, ele teria buscado
fazer “a defesa da ‘tradição clássica’ das ciências sociais, inspirado nas maiores
inuências intelectuais de sua vida – os alemães Karl Marx, Max Weber
e Karl Manheim, além dos norte-americanos William James, orstein
Veblen e John Dewey” (CASTRO, 2009, p. 10). Florestan, afastado da
universidade, mas imerso no jogo político, não faz diferente, buscando
novos públicos para sua ciência.
É interessante notar que, nesses ensaios, Mills relativiza a absolutização
da pesquisa empírica no trabalho do sociólogo: “Ora, não gosto de fazer
trabalho empírico a menos que isso seja inevitável. Quando não se tem
uma equipe de assistentes, é muito trabalhoso; quando se emprega uma
equipe, esta muitas vezes dá ainda mais trabalho.” Ele dizia ainda que, “[...]
na condição intelectual das ciências sociais hoje, há tanto a fazer em matéria
de ‘estruturação’ inicial (…) que muita ‘pesquisa empírica’ está fadada a
ser rala e desinteressante.” E, não menos importante, Mills subordina a
pesquisa empírica ao império da razão:
Não há mais virtude na investigação empírica que na leitura. O
objetivo da pesquisa empírica é dirimir discordâncias e dúvidas
acerca dos fatos, e assim tornar as discussões mais frutíferas ao
basear todos os lados de maneira substantiva. Fatos disciplinam a
razão; mas a razão é a vanguarda em qualquer campo do saber.
(MILLS, 2009, p. 33, e para todas as citações acima).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 163
É preciso tomar cuidado e não ler essa posição de Mills de maneira
absoluta. Ele está, claro, forçando o argumento, mas toma uma posição
clara no debate, opondo-se a uma subordinação do pesquisador à lógica
dos nanciadores da pesquisa. Essa questão é também central na vida
intelectual de Florestan, em seu afastamento progressivo da universidade
e de instituições para universitárias que poderiam abrigá-lo, como o
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Parece haver, em ambas as
trajetórias, contudo, a adoção das ciências humanas como um instrumento
de intervenção e como forma de pensar organicamente os problemas da
sociedade. Na perspectiva de um intelectual dos trabalhadores ou de um
intelectual proletário, essa ciência tem mais diculdade de encontrar
instituições que a sustentem e, como tal, deve recorrer aos recursos que a
estão a seu alcance. O método de análise marxista, entre eles, por sua vez,
confere às análises de Florestan uma precisão muito maior do que a de
tantos cientistas políticos que conavam num aprimoramento progressivo
das instituições a partir de 1988 ou que tantas vezes insistiram que nada
substantivo havia mudado nos governos petistas.
Se fazer ciência política é analisar os instrumentos (entre eles os
partidos) que a sociedade civil constrói para intervir na vida social, os
escritos dos anos 1980 são ciência da mais alta qualidade. Nesse sentido,
Florestan viveu a política como ciência, sem jamais deixar de ver a ciência
como uma forma de ver e fazer política.
referêncIaS
BURAWOY, Michael. Marxismo sociológico: quatro países, quatro décadas, quatro
grandes transformações e uma tradição crítica. São Paulo: Alameda, 2014.
CASTRO, Celso. Introdução: sociologia e a arte da manutenção de motocicletas. In:
MILLS, Charles Wright. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro:
2009. p. 7-20.
CERQUEIRA, Laurez. Florestan Fernandes: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular,
2004.
FERNANDES, Florestan. A Constituição inacabada. São Paulo: Estação Liberdade,
1989.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
164 |
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 4. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1981.
FERNANDES, Florestan. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
GARCIA, Sylvia Gemignani. Destino ímpar: sobre a formação de Florestan Fernandes.
São Paulo: Editora 34, 2002.
MARCELINO, Paula. Marxismo sociológico: quatro países, quatro décadas, quatro
grandes transformações e uma tradição crítica. Revista Crítica Marxista, Campinas, n.
44, p. 159-161, 2017. Resenha.
MILLS, Charles Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969.
MILLS, Charles Wright. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Tradução de Maria
Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
RODRIGUES, Lidiane Soares. Centralidade de um cosmopolitismo periférico: a
“Coleção Grandes Cientistas Sociais” no espaço das ciências sociais brasileiras (1978-
1990). Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 33, n. 3, p. 675-708, dez. 2018.
SEREZA, Haroldo Ceravolo. Florestan: a inteligência militante. São Paulo: Boitempo,
2005.
| 165
C ,
   
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F F
Guilherme Rocha:
Exatamente no tempo. 27 minutos. Vamos passar agora para o
professor, agora de fato, professor Adelar João Pizetta.
Adelar João Pizetta:
Olá, boa noite a todos que nos acompanham remotamente nesse
importante ato em homenagem a Florestan Fernandes. Boa noite
Marcelo, Marcos, Francisco e ao Guilherme.
Inicialmente, quero agradecer o convite e a oportunidade de
participar desse momento de resgate, de recuperação do legado teórico e
político do nosso grande mestre Florestan Fernandes. Marcelo, parabenizo
pela organização e realização desse encontro de celebração do centenário de
nascimento do Patrono da Sociologia brasileira. Sei das diculdades que a
própria pandemia impôs, mas me parece que é muito justa e necessária essa
homenagem, estudando, discutindo e nos apropriando da arma teórica
para potencializar as “batalhas” em nossos espaços de atuação política
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p165-178
Marcelo Augusto Totti (Org.)
166 |
prossional, nessa “guerra cultural” que estamos enfrentando e cada vez se
torna mais difícil. Parabéns pelo evento e obrigado pelo convite.
Como já estamos conversando, a minha leitura de Florestan é de certa
maneira recente e ela se deve a uma função que eu ocupei no Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), quando da criação e da edicação
da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema no estado
de São Paulo, a partir do ano 2000. Tive a oportunidade de acompanhar o
processo de construção da estrutura física, mas também de coordenar a parte
mais pedagógica e da formação política no movimento. Então é a partir desse
contexto que começo a estudar, ler sobre o Florestan e os primeiros contatos
com a sua obra. Portanto, minha leitura do Florestan não se dá no âmbito
da universidade, mas sim, na dinâmica de formação, organização e lutas dos
Movimentos Populares, em particular do MST. Neste sentido, o estudo que
eu tenho feito é basicamente, a partir da função que a gente ocupa nessa
luta, com o intuito de potencializar os processos no âmbito da formação
da consciência crítica, na formação da consciência de classe, da organização
autônoma dos trabalhadores, e contribuir com as transformações que
possam signicar mudanças revolucionárias. Procuramos nos apropriar de
elementos dessa monumental obra do Florestan reetindo de que maneira
e em que sentido ela nos potencializa do ponto de vista da interpretação e
transformação da realidade.
Penso que essa é uma dimensão importante, um tanto particular
dessa leitura que deixa lacunas e limites na sua assimilação e que vai se
aprofundando conforme avançam os processos formativos, organizativos e
de lutas, assim, é um estudo em processo. A minha participação aqui tem o
sentido de trazer alguns elementos, não com a profundidade que merecem,
dada a complexidade das temáticas, mas que possibilitam certas reexões
a partir daquilo que nós temos feito nesses últimos anos. São basicamente
quatro ou cinco grandes ideais que recuperam dimensões dessa temática
que está posta a partir daquilo que vamos compreendendo na dinâmica da
luta popular e da luta social, isto é, no âmbito das lutas de classes.
Primeiro na nossa compreensão, é fundamental, é extremamente
importante compreendermos o sentido da formação da sociedade
brasileira e da sua dinâmica de funcionamento. Trata-se de compreender
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 167
a essência da nossa sociedade buscando as inter-relações, os nexos e laços
construídos historicamente numa relação sempre direta com os dinamismos
econômicos e políticos mundial. Isto porque para entender o processo de
desenvolvimento capitalista no Brasil Florestan parte da análise de como
se dá a inserção desse desdobramento na dinâmica do desenvolvimento do
capitalismo em nível internacional ou mundial. Desde os primórdios esta
é uma inserção subordinada aos interesses econômicos, políticos e culturais
do colonialismo e do imperialismo, como o professor vinha demonstrando.
Segundo Florestan, essa subordinação não é um mero fruto de uma
imposição de fora, o que ela também é, mas é articulada aos próprios
interesses da burguesia brasileira que reproduz internamente as relações
de exploração econômica, de dominação política e ideológica, atendendo
aos interesses externos e sendo contemplada, subordinadamente, também.
Segundo Florestan (2009, p. 64),
As estruturas do capitalismo dependente estão preparadas para
organizar a partir de dentro as ‘condições ótimas’ da sobreapropriação
repartida do excedente econômico e para renovar continuamente as
condições de reincorporação ao espaço econômico, sociocultural e
político das sociedades hegemônicas preponderantes.
É assim que dependência e subdesenvolvimento é um bom negócio
para os dois lados. Então essa tese é extremamente importante porque
explicita que essa inserção se deu e se mantém historicamente de forma
dependente e subordinada, instituindo um “Padrão de acumulação de
capital, inerente à associação dependente, que promove ao mesmo tempo
intensicação da dependência e a redenição constante das manifestações
do subdesenvolvimento” (FERNANDES, 2009, p. 62). Dessa maneira a
burguesia brasileira já nasce umbilicalmente ligada a burguesia Internacional
e imperialista o que remete a uma análise de classes não dogmática, pois é
praticamente impossível se falar de uma burguesia nacional clássica aqui.
Mais ainda, esse fenômeno vai forjar uma burguesia antinacional,
antidemocrática e antissocial, que a caracterizam por sua intolerância
e “medo pânico” contra o povo que busca lutar para romper com essa
dinâmica burguesa. Então compreender o caráter dessa burguesia só
Marcelo Augusto Totti (Org.)
168 |
é possível se compreendermos como isso se processou na história. Uma
burguesia submissa aos interesses de fora, muito obediente aos interesses
colonialistas e imperialistas, mas muito autoritária, truculenta, repressiva,
onipotente com os de baixo, com os trabalhadores aqui dentro. É uma
burguesia portanto que vai ter muitos limites, ela não inova, ela não cria,
praticamente mimetiza e adapta desde fora. Os próprios impulsos de
desenvolvimento econômico da sociedade brasileira eles são, vamos dizer
assim, patrocinados, são intencionadas dentre os impulsos do capitalismo
externo. Isso se dá em todas as esferas da sociedade, no âmbito econômico,
político, cultural, educacional e perpassa todo o tecido social. Assim, essa
burguesia reproduz internamente relações de dominação econômica,
política, cultural e ideológica, como algo ligado, vinculado aos interesses de
fora desde a sua fundação colonial. O Florestan (1991, p. 4) vai dizer que:
“O Brasil não é somente um país de origem coloniais: nele o colonialismo
não foi destruído até o m e até o fundo.”. Então me parece que essa é uma
dimensão de análise importante que articula de forma dialética o geral e o
particular.
Segundo, é que essa lógica, essa forma particular de desenvolvimento,
muito bem caracterizada pelo professor que me antecedeu, não é capaz de
gerar aqui o surgimento de um dinamismo de classes ou da formação de
classes a estilo do desenvolvimento do capitalismo fruto das revoluções
burguesas, que ocorreram na Europa, por exemplo. Vejam, não é que aqui
não existam classes. Não é essa a questão do Florestan. A ideia é analisar e
compreender as classes não a partir de esquemas e análises estabelecidas à
priori. Mas, sim, observando o processo da sua constituição enquanto classe
e, nesse caso, constata-se que essas classes possuem certas deformações,
tanto a burguesia como também a classe proletária, a classe trabalhadora.
Em grande medida em decorrência desse dinamismo, dessa forma especíca
de desenvolvimento capitalista e sua inserção na dinâmica internacional,
condicionando ainda a um quase “não movimento” das próprias classes,
porque essa também, como o professor dizia, se dá dentro de um “circuito
fechado”. Então esse dinamismo e dada a característica autoritária da
classe dominante, as lutas e iniciativas políticas da classe trabalhadora
quase sempre foram impedidas de acontecer e isso é próprio, é típico
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 169
desse capitalismo que nós estamos caracterizando aqui e para Florestan
é o capitalismo dependente. É nessa dupla articulação dos dinamismos
externos e internos, que essa forma especíca desenvolvimento do
capitalismo produziu aqui uma burguesia resultante de uma metamorfose,
isto é, ela não ela não surge enquanto classe a partir de uma luta, de um
confronto com a antiga ordem vigente, ela apenas se modica. Ou seja,
o próprio grande fazendeiro/latifundiário vai ser o capitalista agrário, o
grande comerciante e o pequeno industrial atingindo todas as esferas da
economia, da política e da cultura. E é por isso que o professor dizia que
se mantém a dinâmica do arcaico modernizado, no qual o arcaico se torna
moderno em novas bases e dimensões.
Dessa maneira, essa burguesia brasileira se torna incapaz de levar
adiante tarefas democráticas, como por exemplo, a reforma agrária que
é o nosso campo de atuação e caracteriza inclusive o Brasil como um dos
únicos países do mundo que nunca mexeu na estrutura fundiária, nunca
distribuiu terra. Além da reforma agrária, outras reformas que o próprio
desenvolvimento do capitalismo industrial em outros países levou adiante
e é por isso que o Florestan vai dizer que a burguesia aqui ela apenas se
modicou - combinando essas dimensões arcaicas com esse moderno em
novas bases – e, portanto, ela não pode, nem podia levar adiante essas
tarefas vamos dizer assim seriam típicas da revolução burguesa, pois seria,
ou exigiria a sua própria transformação, ou ainda, signicaria o seu próprio
suicídio enquanto características de sua classe. Consequentemente a classe e
operária, a classe trabalhadora em geral também possui certas deformações
na sua formação. Um aspecto, já evidenciado anteriormente, refere-se a um
certo grau de diculdade, algumas debilidades em relação à construção de
instrumentos organizativos e de lutas que pudessem forjá-la e constituí-la
enquanto classe ativa e autônoma, independente política e ideologicamente.
Por outro lado, ela é também nova, com pouco tempo de experiência, de
certa maneira, a classe operária no Brasil é do século 20. Então possui
ainda um nível teórico insuciente para as demandas da revolução. Aqui,
uma advertência se faz necessário: na formação da sociedade brasileira,
todas as vezes que os de baixo tentaram entrar na dinâmica da história
através de suas lutas, de suas organizações, essas iniciativas foram, segundo
Marcelo Augusto Totti (Org.)
170 |
Florestan, “solapadas”, isto é, reprimidas, destruídas, impossibilitadas de
prosperarem. Então essa é uma característica muito importante para nós
compreender porque sempre que houve uma tentativa, uma iniciativa, do
ponto de vista da classe trabalhadora e dos subalternos, dos explorados –
dada às características dessa burguesia - essas experiências foram destruídas,
controladas dentro de um “circuito fechado”, não abrindo espaços para
seguir adiante na sua organização e de lutas concretas que fortaleceriam
a sua identidade, consciência e construção do “sujeito político coletivo”.
Diante disso, aparece então uma questão muito importante para o
Florestan e para nós também que a problemática da Revolução. Florestan
dizia que a revolução não é um simples slogan, não é uma palavra de
ordem. A revolução é um processo histórico, longo, de ruptura profunda
e a fundo com as amarras do passado e do presente numa perspectiva
de construção de algo novo. Compreende-se que essa construção
necessariamente requer, a duras penas, a superação da condição anterior,
exige o rompimento com essa cultura colonial e neocolonial. Essa é
uma decisão política importante que requer colocar como estratégia
política a revolução, pois, mudanças profundas e a fundo na sociedade
brasileira somente serão realidade por intermédio da revolução. Mas aí
aparecem novas questões: como desencadear um processo de ruptura e
revolucionário, na sua essência, com essa forma de organização social
que nós temos e essas características da luta de classes? Então a grande
questão de como levar adiante esse processo uma vez que, pra Florestan, a
revolução burguesa no Brasil é o que foi possível a burguesia fazer até 1964.
Se houve alguma possibilidade de avanço nessas questões democráticas,
etc., elas se esgotam em 1964 com o golpe cívico-militar, chamado de
contrarrevolução” por Florestan. Esses acontecimentos elucidam uma
série de questões postas para o sentido da revolução brasileira, pois,
esgota as possibilidades de uma revolução burguesa, tudo aquilo que
não foi feito do ponto de vista das reformas de ampliação democrática,
participação nas conquistas de direitos só será possível por intermédio da
pressão, da luta e da organização dos próprios trabalhadores.
Ou seja, está posto agora para os trabalhadores a necessidade de
desencadear também esses processos da revolução dentro da ordem, mas
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 171
numa dialética articulando a revolução contra a ordem. Essa dialética da
revolução dentre e contra ordem é muito importante para que a gente
possa levar adiante processos de ruptura, pois, do contrário, corre-se o
risco de cair no reformismo que não está muito distante, muito longe
do que também nós viemos observando nos últimos anos. Então, como
fazer, como levar adiante esse processo de mudança nas condições do
Brasil? Porque é aqui nessa objetividade, nessa realidade construída
historicamente, não estamos falando em revolução em luta de classes, em
formação das classes, em formação da consciência de classe em abstrato.
O que nós temos entendido nessa perspectiva, é que sem o envolvimento,
sem a incorporação, sem organizar os debaixo os trabalhadores explorados
sem fazer formação desse sujeito coletivo e articular isso tudo em torno de
um projeto político estratégico socialista, se torna muito difícil projetar
essas mudanças essas transformações na realidade.
Compreendemos, como fundamental, que a força da transformação
social está na organização, no nível e caráter da formação política e
ideológica, na consolidação dessa força em luta dos explorados os sem
classes, dos de baixo. Esse processo, nos faz pensar em uma categoria
do Florestan muito pouco conhecida, que é essa ideia da formação
de um “Movimento Socialista”. Para ele o movimento socialista é uma
conuência de muitas forças, de todas as forças sociais e políticas que se
voltam, de alguma forma, contra a ordem existente ou para introduzir
reformas da ordem que possam alimentar uma revolução contra ordem e
organizar a sociedade e a economia, o sistema de poder em outras bases
(FLORESTAN,1980). Essa mobilização, articulação real das pessoas em
lutas passa a ser importante na construção do um movimento socialista,
pois, esse consenso, essa consciência coletiva das possibilidades das
mudanças e de que é possível construir uma ruptura em torno de um
projeto popular, um projeto socialista para o país.
E por último, na nossa compreensão, essa perspectiva da revolução
brasileira aponta na análise e práxis do Florestan o socialismo como
horizonte. Florestan nunca titubeou, nunca cou um dúvidas acerca dessa
perspectiva revolucionária e socialista da emancipação dos trabalhadores
no Brasil, pois, sem uma revolução socialista não há emancipação. Como
Marcelo Augusto Totti (Org.)
172 |
eu já adverti, essa, revolução não é um momento, mas sim, um processo
de ruptura radical com uma ordem do capital e a construção de uma nova
racionalidade, e uma nova sociedade alicerçada nos princípios e valores
humanistas e socialistas. Aqui é importante pois, o Florestan apresenta
essa saída socialista não por sua vontade simplesmente, mas é alicerçada
na sua análise da sociedade e da luta de classes no Brasil. Ou seja, como
um bom marxista criativo e não dogmático, conhecedor profundamente
da teoria social de Marx e demais teóricos, inclusive brasileiros, constroem
bases muito sólidas dessa perspectiva revolucionária socialista. Tem uma
passagem que eu acho muito importante em que o Florestan (1989, p.
170) arma: “Eu não sou só um marxista, eu sou marxista que acha que a
solução para os problemas dos países capitalistas está na revolução.”. Aqui
deixa muito explícito essa perspectiva e ele continua dizendo: “isso não
é uma fanfarrice, é assumir de forma explícita o dever político mínimo
que pesa sobre alguém que é militante embora não esteja em um partido
comunista e que anal de contas tentou durante toda a vida manter uma
coerência que liga a responsabilidade intelectual, a condição de socialista
militante e revolucionário” (FLORESTAN, 1989, p. 170). Em outra
passagem arma que a Revolução não é uma revolução anticapitalista e
antiburguesa, é uma revolução socialista! Me parece que a perspectiva é
muito clara: ou há uma ruptura, uma revolução e uma emancipação dos
trabalhadores ou não há.
Termino com o propósito de que a obra do Florestan continue a
atormentar as classes dominantes e também aos pós-modernos porque ela
está sendo incorporada às nossas organizações e às nossas lutas e porque
é assim que ela se mantém viva e desaadora. É na academia, mas, é
fundamentalmente na dinâmica da organização, da formação e luta
popular, que o legado do Florestan mantém sua vitalidade, sua força. Por
isso, estudamos o Florestan para sermos mais fortes na luta de classes, para
estarmos mais e melhor preparados do ponto de vista teórico, buscamos
nos apropriar do vigor das ideias e das suas práticas políticas e teóricas
materializando-as em nossos estudos, em nossas organizações autônomas,
como ele defendia e nas lutas concretas pela emancipação humana.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 173
Por último uma linda passagem do mestre Florestan (2000, p.
140) que nos toca a todo momento: “Quanto ao sonho o que se deve
dizer é que sem sonhos políticos realistas não existem nem pensamento
revolucionário nem ação revolucionária. Os que não sonham estão
engajados na defesa passiva da ordem capitalista ou na contrarrevolução
prolongada”, contrarrevolução todos nós sabemos que é repressão, circuito
fechado, autocracia. Então precisamos continuar sonhando e lutando para
que a revolução e o socialismo se tornem realidade histórica conquistadas
a duras penas, como bem nos alertou Florestan. Se não estivermos no dia
da vitória, ao menos tenhamos feito a nossa parte.
Bom, essas são algumas reexões de certa maneira um tanto
pulverizadas, mas que nos permitem fazer com que nós tenhamos uma
posição mais ofensiva, mais radical e mais coerente na luta de classes como
o pensamento de Florestan. Obrigado pela atenção de todos e mais uma vez
um agradecimento ao Marcelo e toda a sua equipe pela bela homenagem
e oportunidade.
guIlherme rocha: Obrigado professor Adelar, pela apresentação
que foi bem interessante e que colocou várias questões pertinentes para
a gente pensar na nossa atualidade. Agora vamos passar a palavra para o
professor Marcos Tadeu Del Roio.
aS perguntaS
guIlherme rocha: À você, Del Roio, muito obrigado pela apresentação.
Porque realmente, né, com um colega disse no chat, você é uma enciclopédia
em alguns aspectos. Professor, por falar nisso, vamos enviar uma pergunta
para você para começar aqui. Inclusive, quem tiver mais perguntas pode
mandar no chat, tá? Vamos começar com uma pergunta ao professor
Del Roio, do Aldair. “Professor, poderíamos pensar de acordo com essa
particularidade da “burguesia brasileira” de que ela já nasce decadente,
Marcelo Augusto Totti (Org.)
174 |
quando comparamos aos países capitalistas centrais?” Então essa é a
pergunta do Adair. Se o senhor quiser responder agora, que à vontade.
M T: Acho que a mesa pode responder essa pergunta, né, os três.
M D R: Eu estou só um pouco cansado.
M T: Quem se habilita primeiro?
adelar joão pIzetta: É, bem rapidamente, porque os professores já
explicitaram essa visão que eu também comparto. Penso que a burguesia
não nasce decadente, ela nasce subordinada. No fundo a burguesia
brasileira é lha do latifúndio, como já foi dito aqui, e ela é também lha
do capitalismo mercantil do período português e inglês, então é nesse
contexto que ela vai “aparecer” e como Florestan diz, na verdade havia
um espírito burguês, um pensamento e certas formas de vida burguesas,
mas sem existir enquanto uma classe burguesa típica. Então acho que essa
origem se torna importante, como nós já colocamos antes, que a caracteriza
com ao menos três posturas que se unicam na sua práxis: Primeiro, dela
ser antinacional. Ela não pensou e não pensa um projeto de nação, vamos
dizer assim, um projeto de desenvolvimento autônomo do país. Segundo,
uma burguesia antissocial e antidemocrática, ela tem um “medo pânico
dos de baixo, pois quando estes pensam em se organizar, a se mobilizar, a
se levantar contra a ordem, ela se antecipa, não permite o desenvolvimento
desses processos e corta ainda no seu nascedouro. Por isso, precisamos
ser inteligentes, resistentes e intransigentes não se deixando esmagar por
essa burguesia intolerante, que não admite qualquer nova forma, novos
pensamentos nessa direção. Mas por outro lado também observamos que na
história a intransigência dos de baixo que nunca se deram por derrotados.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 175
É assim que nós hoje estamos aí, nós somos herdeiros, vamos dizer
assim, desse povo brasileiro que ricamente resistiu e lutou heroicamente
em todos os períodos da nossa história. Então a burguesia dependente
submissa, não é uma burguesia débil ou fraca, como alguém também
diz. Porque ela é profundamente interligada ao imperialismo, então isso
também é importante, a nossa luta hoje contra a burguesia Brasileira
é uma luta contra o imperialismo. No campo, na questão da reforma
agrária, da luta pela terra não é diferente. A luta pela terra hoje é uma
luta anti-imperialista nesse sentido, porque as grandes corporações
transnacionais é que vão se defrontando com os camponeses em seus
territórios. Então essa burguesia é conservadora no verdadeiro sentido de
conservar isso que foi a sua origem no nascedouro e, portanto, não eleva
o país a uma nação e permanece mantendo a mesma lógica de inserção e
subordinação. Em grande medida ela se mantém por causa desse circuito
fechado no qual ela organizou a sua forma e o exercício de poder, a
questão é como romper com esse circuito fechado?
guIlherme rocha: Começamos então pela pergunta do Conrado, né?
Ele faz uma pergunta, uma discussão, uma questão ontem muito discutida
foi a respeito do sentido da revolução brasileira e suas variações ao longo
da passagem do tempo. Gostaria de ouvir os professores a respeito
do modo como enxergam o destino dessa revolução inconclusa e seu
papel para a superação do desenvolvimento dependente. E aí continua,
teríamos, então, também uma burguesia subdesenvolvida? É a pergunta do
Conrado. Depois tem uma pergunta muito interessante do Professor Fábio
Ocada: pergunto aos colegas se poderiam dizer algo a respeito do papel da
política de branqueamento como ingrediente do projeto de modernização
da burguesia nacional. É uma segunda pergunta. Nós temos a pergunta
do Amaury que faz a seguinte pergunta: se nossa burguesia é uma sub-
burguesia, espécie de sabujo da elite internacional, ela não consegue ver
que poderia ser maior, melhor, se fosse nacionalista, desenvolvimentista?
Então basicamente são essas três perguntas, né? Agora gostaria que os
professores se organizassem. Dê preferência o professor Adelar que não
Marcelo Augusto Totti (Org.)
176 |
falou na última rodada, né? Começar respondendo uma dessas questões
para abrir novamente o debate.
adelar joão pIzetta: Penso que os professores tem mais elementos e podem
contribuir com essas reexões acerca das questões. Muito rapidamente eu
acho sim que essa questão da revolução e da revolução da burguesia, são duas
temáticas que no curto espaço de tempo se torna difícil dar conta de tudo,
né? E quando falamos em burguesia dá ideia que ela é monolítica, que ela é
única, e todos sabem que existem frações, segmentos e disputas internas na
própria burguesia, na própria classe, mas como nós vínhamos colocando,
ela jamais deixa ltrar para baixo as cisões que por ventura possam aparecer
entre os seus interesses. Isso também o Florestan explica. Então diante de
uma situação em que essa burguesia é colocada meio contra a parede, ela
se unica para reprimir, para destituir as forças de baixo e se manter no
topo. Então, mesmo hoje no Brasil existem disputas que se manifestam
em diferentes momentos e esferas, né? As próprias eleições desse nal de
semana, se nós olharmos assim em muitos lugares há manifestação desses
interesses e dessas frações dessa burguesia. Tem uma parte mais autoritária,
mais repressiva, etc. e uma outra parte mais ligada à própria indústria, ao
setor produtivo. Do ponto de vista da revolução, bom, nós argumentamos,
eu argumentei essa questão da revolução socialista, né? É, mas eu disse
também que isso é pensado nas condições reais objetivas e subjetivas do
nosso país, então estamos também abstratamente discutindo os sujeitos
da revolução, quem pode levar adiante esse processo, haja vista que, como
nesta análise eu compreendo que a burguesia não vai fazer nenhum tipo de
transformação, de mudança que enfrente os problemas, ou que resolvam
os problemas do povo. É claro que os problemas do povo só são, só vão ser
resolvidos pelo próprio povo, não há outra possibilidade.
Eu penso que é uma ilusão você acreditar que os problemas sociais,
educacionais, de habitação, de moradia, de salário, de trabalho, de renda,
etc, a burguesia vai resolver, não! Então isso está colocado para a classe
trabalhadora levar adiante e buscar construir alternativas. É isso que eu
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 177
estava querendo dizer antes: não há uma revolução burguesa no Brasil,
o que houve é uma contrarrevolução preventiva e prolongada que a
partir de 1964 se mantém. Eu acho que isso nos coloca grandes desaos,
grandes tarefas, do ponto de vista da organização da formação e das lutas
de massas que precisam ser articuladas no seio da sociedade. Eu entendi
um pouco assim do Florestan, não é que é uma revolução etapista, mas,
com essa ideia de que quem tem que fazer a revolução é os explorados, os
trabalhadores, então é necessário que haja de certa maneira uma revolução
democrática, que a incorpore as ações desses sujeitos em algum espaço de
articulação política, que estão dispersos e todo mundo sabe disso. Nós
precisamos articular força, construir força social e força social então, é gente
organizada com nível de consciência elevado e instrumentos autônomos
e potentes de luta. Me parece que essa é uma questão importante, em
que a revolução democrática possa colocar o povo como sujeito e em
condições de fazer história. Segundo é que, para resolver os problemas
do povo brasileiro, essa revolução também tem um caráter nacional que
requer o rompimento completo e a fundo com o imperialismo, é romper
com aquela dupla articulação. Então ela tem também um sentido nacional
e na minha compreensão da análise do Florestan, isso só é possível com
uma revolução socialista, senão não teremos nem a Revolução democrática
nem a Nacional. Me parece que esse é um debate importante. Como já se
colocava antes, é claro que antes de 64 havia uma ideia de uma revolução
Brasileira a partir de uma análise, e que não é que a que análise era mal
feita, é que os óculos que se olhava para fazer a análise acabaram meio que
direcionando para isso. E era a possibilidade de a classe operária emergente
se constituindo, fazer aliança com a burguesia, entre aspas aqui, nacional,
para levar adiante uma revolução anti-imperialista e anti-feudal, para que
num segundo momento se zesse então a revolução socialista. E isso com
o golpe de 1964, com a contrarrevolução de 64 também desvelou, cou
evidente e explícito que esse setor da burguesia não existe no Brasil, não
existe uma burguesia nacional. Por isso não é uma sub burguesia, não é
uma burguesia débil ou fraca, mas é essa burguesia que se forma intrínseca
e umbilicalmente ligada ao imperialismo e, romper com isso é também um
novo e grande desao. Eu co por aqui, obrigado.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
178 |
referêncIaS
FERNANDES, Florestan. O desao educacional. São Paulo: Cortez-Autores Associados,
1989.
FERNANDES, Florestan. O PT em Movimento: contribuição ao I Congresso do Partido
dos Trabalhadores. São Paulo, 1991.
FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a revolução brasileira. São Paulo: Expressão
Popular, 2000.
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 4.
ed. rev. São Paulo: Global, 2009.
| 179
F F   
C (1987-1988)
Maria Selma de Moraes Rocha
A compreensão é interminável e, portanto, não pode produzir
resultados nais; é a maneira especicamente humana de estar vivo
[...].
Hannah Arendt (1993, p. 38)
o deputado conStItuInte: “contra aS IdeIaS da força a força
daS IdeIaS
Em 1987, Florestan Fernandes, um dos mais importantes intelectuais
brasileiros, foi eleito deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores,
ao qual se liou em 1986. Teve dois mandatos parlamentares, de 1987
a 1991 e de 1991 a 1995. A partir do rigor cientíco de sua sociologia
crítica e da perspectiva de transformação da sociedade, orientadora de
sua militância socialista, o sociólogo que inaugurou uma nova época na
história da sociologia brasileira, como diria Otávio Ianni (1996), tornou-se
uma referência para todos aqueles que, como o PT à época, posicionaram-
se em defesa de uma Assembleia Nacional Constituinte Livre Democrática
e Soberana, e se comprometeram com a participação popular como
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p179-226
Marcelo Augusto Totti (Org.)
180 |
condição da transformação institucional do país e da realização de reformas
estruturais em benefício das maiorias sociais.
Basta considerar sua profunda dedicação à compreensão dos
problemas acerca do Estado, do desenvolvimento do capitalismo, da
conguração da sociedade de classes no Brasil e na América Latina,
além dos estudos sobre as questões indígenas e sobre o negro, que
transformaram a história da consciência sobre o problema racial no país,
embasados na virtuosidade metodológica e teórica de sua investigação
sociológica. Todos esses aspectos marcaram, a um só tempo, sua
condição de perspicaz intérprete do processo constituinte, expressa em
suas manifestações e artigos, assim como na referência política para
interlocução com as forças sociais progressistas, democráticas e de
esquerda que se organizavam para apresentar formulações e propostas
no processo de elaboração da nova carta.
As análises por ele produzidas nos anos 1960, em que identicava a
educação como um dos principais problemas sociais, e os compromissos de
Florestan Fernandes com a Campanha pela Escola Pública, desencadeada
durante a I Convenção Estadual em Defesa da Escola Pública, ocorrida
em São Paulo em 5 de maio de 1960 (ZANETIC, 2006) se constituíram
em marcante experiência, inspiradora e orientadora para o diálogo e para
a elaboração; isso se deu, em particular, com o Fórum de Educação na
Constituinte em Defesa da Escola Pública e para a prática política no
interior da Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes, que integrou
a Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e
Tecnologia e da Comunicação.
Ao longo do processo constituinte, Florestan tornou-se uma das
principais referências de interlocução com os movimentos de educação,
foi respeitado por seus opositores e adversários políticos, não obstante a
condição de sua prática parlamentar e suas manifestações públicas terem
expressado uma interpretação profundamente crítica acerca da transição
democrática e das condutas políticas dos setores conservadores, que
representavam diferentes segmentos das elites no país.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 181
Tanto o movimento das ideias e proposições de Florestan no contexto
da elaboração política do PT quanto o envolvimento permanente com as
causas e formulações das forças sociais que traziam à cena o compromisso
com a emancipação cultural, social e política das maiorias foram ambos
processos a tornar possível a produção de formulações que concorreram
para denição do texto constitucional e das estratégias políticas a partir dos
interesses e, sobretudo, propostas e projetos apresentados. Essa experiência
marcaria indelevelmente as dinâmicas de organização e elaboração de
políticas, e a democracia interna no PT nas décadas seguintes
1
. Com
efeito, a cultura política do país no que se refere à elaboração das políticas
públicas e realização de direitos não seria mais a mesma, não obstante a
persistência das práticas políticas autoritárias, de tutela e/ou cooptação
e a permanência de representações e vetores de políticas que pretendiam
hipostasiar os pobres na condição de carentes, incapazes e, por conseguinte,
de subalternos, deslegitimando-os para a participação política (CHAUÍ,
1993, p. 95).
tranSIção, noVa repúblIca e o congreSSo conStItuInte.
Durante o governo de Ernesto Geisel, quarto presidente militar
depois do golpe civil-militar de 1964, teve início o chamado processo de
distensão política, que pretendia abrir o regime sob o controle das Forças
Armadas.
A derrubada do governo João Goulart visando a impedir o
prosseguimento das reformas e a organização e manifestação de diferentes
segmentos de trabalhadores foi um processo complexo, que combinou
construção de hegemonia junto a diferentes setores do capital industrial
e nanceiro, e às classes médias (DREIFUSS, 1987); isso, porque havia o
temor da chamada Guerra Revolucionária, que poderia, segundo a doutrina
da Escola Superior de Guerra (ESG), ser operada em nível nacional pelo
Ainda na década de 80, começaram a se organizar os chamados setoriais do PT. A área da educação realizou
seu primeiro Encontro em 1989. Lá nasceu a Comissão que deu origem à Comissão Nacional de Assuntos
Educacionais do PT (CAED), um espaço de elaboração da política educacional que tem envolvido militantes
do PT com atuação em entidades sindicais, movimentos sociais, além de parlamentares, assessores, secretários
de educação e demais gestores públicos.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
182 |
então nomeado comunismo internacional. Amparados nas hipóteses da
Guerra Total e Global e do decorrente risco à segurança nacional e ao
desenvolvimento, os militares no poder levaram a efeito a perseguição
às diferentes manifestações e expressões divergentes, identicadas com a
gura do inimigo interno, representação fundamental para construção das
práticas do estado de exceção.
Porém, a legitimação da violência a partir dos fundamentos da
doutrina militar voltada à segurança nacional não impediu que sua
exacerbação e a violação de todos os direitos humanos e democráticos
decorrentes se convertessem nas bases da crise do próprio Estado. Tal crise
foi justicada pelo então presidente Ernesto Geisel: “Temos sabido [...]
adaptar-nos agilmente, desde os remotos tempos coloniais e passando pelo
Império e a 1ª República a essa permanente oscilação entre centralização
e descentralização, que tão bem caracteriza a evolução do povo brasileiro.
(GEISEL, 1975, p. 10).
Golbery do Couto e Silva corroboraria tal visão. Em primeiro lugar,
justicando o golpe de Estado e seu recrudescimento em 1968, consolidado
pelo Ato Institucional 5. Dizia ele que a chamada revolução de 31 de
março, sem propósitos de centralização ou autoritarismo, deveria durar
um instante de redenção; entretanto, teve que adotar o caminho referido
em face da necessidade de manutenção da ordem pública, do saneamento
da economia e depois contra às investidas irracionais de um terrorismo
urbano-rural, tudo em benefício do que chamou de reconstrução nacional
e a transformação do Brasil em uma potência emergente (COUTO E
SILVA, 1981, p. 12).
Considerou também que as ações promotoras controladoras e
coercitivas do Estado, uma vez se estendendo a todos os campos da vida
nacional, iriam se constituir em não mais do que o “anverso” do” verso”,
isto é, signicaria aquilo que nomeia como descentralização.
Dirá Golbery que a centralização e a descentralização se congurariam
em momentos complementares dos processos evolutivos dos Estados
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 183
modernos, uma nascendo da outra, como um processo natural, considerado
por ele como dialético.
2
No entanto, sobre o processo de sístole e a diástole da vida dos Estados,
adverte Golbery que cada fase não deveria ser longa, e as oscilações entre elas
não deveriam ter um ritmo regular. Recorrendo ao conceito de imanência,
Golbery admite um quantum intransponível a ser tolerado em relação ao
fenômeno da centralização, assim como da descentralização. Com isso,
estavam estabelecidas as balizas e os limites acerca da legitimidade do poder.
O discurso de Golbery trazia as marcas da identicação da crise do
Estado brasileiro, percebida pelo grupo da ESG, a partir da progressiva
autonomização do aparato de segurança, sem que os militares, à frente
do poder, tivessem pleno domínio e controle da situação. Evocando Max
Weber, justicou a violência descontrolada dos órgãos de segurança em
função da entropia do sistema, causada pelos processos crescentes de
fortalecimento da burocracia. Tratava-se de manifesta preocupação com
a expressiva força do Serviço Nacional de Informações, mas também de
outras organizações, a saber: Centro de Informações do Exército (CIE),
Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), Operação Bandeirantes
(OBAN), criados entre 1967 e 1972.
A partir da lógica da doutrina da ESG, os setores ligados ao
pensamento de Castelo Branco e Golbery justicavam a perseguição
aos opositores, mas anteviam que a perda de controle dos aparatos de
segurança pudesse comprometer a chamada Segurança Nacional e
Hemisférica, assim como o processo de modernização capitalista levado
a efeito pelos governos militares no contexto da Guerra Fria, mediante o
estabelecimento da aliança estratégica, militar e econômica com os EUA
(ROCHA, 2015, p. 13).
O processo de abertura desencadeado por Geisel respondia “às
tensões freadoras” no interior das Forças Armadas, nos dizeres de Golbery,
mas era particularmente a oposição que pretendia controlar, dessa maneira
denotando o caráter instrumental atribuído à democracia. Tratava-se, com
Golbery destacou, no entanto, que a visão dialética por ele evocada poderia excluir Marx (COUTO E SILVA,
1981, p. 18).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
184 |
efeito, de ações de contenção das forças consideradas de esquerda, de abrir
o aparelho de Estado para que o empresariado retomasse o controle direto
da economia do país, todavia, sem transformar as instituições do Estado.
Esse processo foi marcado a partir de então pela dialética entre as
mobilizações e conquistas da sociedade e as concessões e a contenção
realizada pelo regime. A movimentação de entidades, como a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)
e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em defesa da
democratização do país representou um marco no processo de engajamento
de diferentes setores da sociedade pela retomada do Estado de Direito.
Nessa conjuntura, foi notadamente importante o resultado das
eleições realizadas em 1974. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB)
aumentou de 87 para 165 o número de deputados eleitos para a Câmara
Federal, enquanto a Aliança Renovadora Nacional (Arena) teve redução do
número de deputados, passando de 223 para 199.
Em 1975 as manifestações da imprensa aumentaram em função do
assassinato de Vladimir Herzog, e a crise política no país se intensicou.
Nos anos seguintes, tiveram início as mobilizações. Os estudantes saíram
as ruas em 1977; entre os anos 1978 e 1979, as greves dos metalúrgicos
impulsionaram a mobilização de outros setores prossionais. Nesses anos,
ganhava força a campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita, cujos
primeiros movimentos tiveram início em 1974.
Seguiram-se os movimentos contra a carestia impulsionados pelas
Comunidades Eclesiais de Base, os Empates no Acre e movimentos em
defesa dos direitos humanos. Em tal contexto se mostrava clara a posição
do governo de retomar a democracia, garantindo o controle político do
processo a partir de orientações conservadoras voltadas para a preservação
da ordem econômica capitalista e para a garantia de impunidade das Forças
Armadas.
Com a aprovação da Lei de Anistia Política, em agosto de 1979, e
da Lei Orgânica dos Partidos, em dezembro do mesmo ano, durante o
governo do Figueiredo, teve m o bipartidarismo. No começo dos anos
80, cinco partidos se organizaram: Partido Democrático Social (PDS),
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 185
herdeiro da extinta Arena; o Partido do Movimento Democrático Brasileiro
(PMDB), sucessor do extinto MDB; o Partido dos Trabalhadores (PT),
criado a partir do movimento desencadeado depois das greves do ABC;
o Partido Democrático Trabalhista (PDT), que passou abrigar Leonel
Brizola; e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ambos reivindicando a
herança getulista.
Tais partidos participaram das eleições de 1982, a primeira eleição
direta para vereadores, prefeitos de municípios que não se constituíam em
Área de Segurança Nacional, governadores, deputados estaduais, deputados
federais e senadores. A oposição saiu fortalecida, elegendo 22 governadores,
entre os quais Franco Montoro (PMDB) em São Paulo, Leonel Brizola
(PDT) no Rio de Janeiro, Tancredo Neves (PMDB) em Minas Gerais,
assim conquistando uma pequena maioria na Câmara Federal.
Em março de 1983, o deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT)
apresentou no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) nº 5, a conhecida Emenda das Diretas Já. Tal condição ensejou
as mobilizações por liberdades democráticas e o primeiro Comício
pelas eleições diretas no Brasil, em 1983, em São Paulo; inicialmente
impulsionado pelo PT, tornou-se um comício da oposição. O processo
de mobilizações desencadeado a partir daí representou uma ruptura com
as eleições indiretas, estabelecidas por meio de um Colégio Eleitoral, que
usurparam a soberania popular em cinco eleições presidenciais no país.
Depois de várias manifestações populares, que culminariam com os
comícios realizados na Candelária, no Rio de Janeiro, e Praça da Sé, em
São Paulo, a emenda das Diretas Já seria derrotada.
O PMDB lançou a candidatura de Tancredo Neves à Presidência da
República pelo Colégio Eleitoral, com apoio de outros partidos de oposição,
tendo como candidato à vice-presidente, José Sarney, ex-integrante da
Arena, dissidente do Partido Democrático Social (PDS) e recém-liado ao
PMDB. A chapa foi sustentada pela Aliança Democrática, integrada pela
Frente Liberal (dissidência do PDS) e pelo PMDB.
A candidatura de Tancredo combinava dois movimentos que
evidenciavam o caráter da transição: o anúncio de mudanças econômicas
Marcelo Augusto Totti (Org.)
186 |
sociais visando a dialogar com as forças sociais que nas ruas reivindicavam
mudanças nas condições de vida e liberdades democráticas, e o
compromisso com as Forças Armadas de que a transição não conduziria o
país ao julgamento dos crimes do regime.
A transição tutelada – ou, nos dizeres de Raimundo Faoro (2008,
p. 68), a transação operada no interior do PMDB e fora dele – tomou
contornos programáticos na carta intitulada Compromisso com a Nação,
que, assinada também pelo PFL, propunha a “conciliação entre sociedade
e Estado”, “sem ressentimentos, com os olhos voltados para o futuro
(COMPROMISSO..., 1984, p. 5).
A mesma carta propunha o reestabelecimento imediato das eleições
diretas, livres, com sufrágio universal para presidente da república,
prefeitos das capitais dos estados e dos municípios, considerados estâncias
hidrominerais e os declarados de interesse da segurança nacional, além de
propor a convocação de uma Constituinte, livre e soberana em 1986.
A Aliança Democrática tendo vencido a eleição no colégio eleitoral
3
,
em janeiro de 1985, deu-se início ao reordenamento institucional do país
sob a direção de José Sarney, em função do falecimento de Tancredo Neves.
O debate em torno da convocação de uma Constituinte foi iniciado
em 1971 pelo grupo dos chamados “autênticos do MDM”, rearmado
em 1977, ao lado da luta pela anistia política. As duas bandeiras foram
consideradas possibilidades de redemocratização do país pela OAB que,
sob a presidência de Raymundo Faoro, considerava como principal questão
naquele momento o retorno do habeas corpus.
A Carta aos Brasileiros (TELLES JÚNIOR, 1977), produzida
por um conjunto de juristas, liderados por Goredo da Silva Telles Jr.,
manifesta o compromisso com o Estado Democrático de Direito e com o
exercício da autoridade soberana pelo povo, favorecendo a manifestação
de diversos setores e entidades da sociedade em favor de uma Constituinte
Livre, Democrática e Soberana. Tais setores consideravam necessário que a
Constituinte tivesse plenos poderes, razão pela qual seria imperativo que os
representantes fossem eleitos especicamente para esse m.
Tancredo Neves obteve 480 votos, Paulo Maluf, 180 votos e 17 integrantes do Colégio Eleitoral se abstiveram.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 187
O processo de eleições diretas foi retomado. Em 1985, foram
eleitos prefeitos das cidades; em 1986, deputados federais e estaduais,
governadores e senadores.
A partir de Mensagem enviada em junho de 1985, o presidente
Sarney indicava que o Congresso Nacional deveria ter poderes constituintes
(SARNEY, 1985). Pretendiam os partidos da ordem e a presidência que as
mudanças institucionais fossem feitas sob a inspiração do pacto político
que forjou a Nova República e sustentou a transição amparada no controle
da soberania popular.
Nesse mesmo contexto, foi criada a Comissão Provisória de Estudos
Constitucionais
4
presidida por Afonso Arinos de Melo Franco, cujas
proposições nais não foram encaminhadas ao Congresso Constituinte.
Para Sarney, tratava-se de um processo que deveria ter como parâmetro
um pacto acima dos homens e dos partidos; no entanto, a proposta da
comissão de “notáveis” gerou a reação de muitos constituintes. Estava em
questão o alcance da tutela política sobre o processo.
Florestan Fernandes considerou que os setores alinhados com o
compromisso de Tancredo Neves não consideravam a existência de uma
ordem ilegal, mas de um “entulho autoritário” a ser removida, posição que
estaria na origem da negação de uma Assembleia Nacional Constituinte
exclusiva e soberana. Identica ele que, ao contrário, era precisamente a
ordem ilegal intocada que condicionaria o processo de reconstrução da
sociedade civil e do Estado, podendo o Congresso Constituinte estar
submetido à instância judiciária ou ao poder militar com a anuência dos
partidos da ordem: PMDB e PFL.
Considerando a transição um “parto da ditadura”, aponta que
a Constituição de 67, os complementos de 69 e o conjunto de atos
institucionais e decretos conformariam a ordem institucional ilegal a
ser derrubada. Valendo-se do pensamento de Max Weber, indicou a
importância de uma revolução na esfera do Direito, a qual deveria ter sido
Instituída pelo Decreto 91.450 de 18 de julho de 1985, a Comissão Afonso Arinos, como cou conhecida,
contou com 50 membros.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
188 |
iniciada com a natureza de ruptura quando das mobilizações pelas “diretas
” (FERNANDES, 1988, p. 61).
A outra visão tem na origem aqueles que estavam comprometidos
com o movimento das Diretas-já, muitos dos quais compartilhavam
da perspectiva de que o capitalismo e a existência de classes sociais
conduziram a sociedade a um impasse histórico superável apenas pela voz,
pelo peso e pelo controle ativo sobre o Estado, dos setores oprimidos e dos
trabalhadores (FERNANDES, 1988, p. 16). Dizia ele:
A emancipação dos oprimidos e das classes trabalhadoras precisa
começar dentro da sociedade civil e do Estado existente, através
de uma luta global que tome por objeto encetar uma revolução
política dentro da ordem. O que se coloca em questão não é o
ponto de chegada; é o ponto de partida. Nas condições brasileiras,
esse ponto de partida envolve uma ruptura com a ordem existente
no plano mais sensível e popular do sistema do poder; o Parlamento
considerado como poder Constituinte. Como poder emanado do
povo, neste momento, a Assembleia Nacional Constituinte derroga
a ordem ilegal vigente e a ilegitimidade da Nova República, e arma
a própria faculdade de instituir normas constitucionais civilizadas
para o funcionamento da sociedade civil e normas constitucionais
democráticas para a organização do Estado. O presente e o futuro
pertencem à Nação, não a minoria no poder. (FERNANDES,
1988, p. 16).
Mas não é menos verdadeiro e relevante que, apesar das limitações
institucionais do Congresso Constituinte, as classes dominantes seriam
forçadas a travar a luta de classes dentro do Parlamento (FERNANDES,
1988, p. 13). Com isso, estaria nas ruas a chave para compreensão da
questão. As grandes manifestações por eleições diretas teriam trazido
consigo questões sociais, nacionais e democráticas não resolvidas pelas
classes dominantes no Brasil, de modo que a luta pela realização de
tais tarefas democráticas se expressaria no que o deputado constituinte
interpretou como sendo uma revolução democrática e nacional que
envolveria, por exemplo, a reforma agrária e a revolução urbana
(FERNANDES, 1988, p. 61).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 189
a conStItuInte e aS tarefaS nacIonaIS e democrátIcaS
A revolução política, prevista por Florestan, é consentânea a sua
análise sociológica sobre a dinâmica do desenvolvimento capitalista e a
condição de dependência do país. Como um intelectual comprometido
com a perspectiva socialista, considerou o aprofundamento e o alargamento
da revolução burguesa, em diferentes países do mundo, como resultado da
organização e da pressão dos despossuídos, que teriam forçado concessões
a partir da luta social (FERNANDES, 1987 p. 280-281).
A compreensão do conito e da natureza da luta política como
instrumento dos trabalhadores e excluídos decorre do percurso interpretativo
de sua análise, especicamente em relação às diferentes possibilidades de
realização das tarefas históricas da revolução burguesa no Brasil.
Diante do que nomeia como uma economia capitalista competitiva
– iniciada por volta da última década do século XIX, encontrando seu
apogeu no período entre as duas grandes guerras –, destaca como marcas
dessa fase uma dupla articulação, a saber: no plano interno do setor arcaico
e moderno, ou urbano-comercial (em evolução para urbano-industrial);
e no externo, o setor agrário-exportador orientado para as economias
capitalistas dos países centrais.
Depois da Revolução de 30, a industrialização teria um ciclo de
expansão mais intenso do que na década anterior, em função das políticas
voltadas para a substituição de importações e em função do desenvolvimento
da economia competitiva.
Todavia o capitalismo competitivo não teria logrado a superação dessa
dupla articulação, de tal maneira que o mercado e o sistema de produção
internos não teriam levado a efeito um movimento econômico capaz de
impulsionar uma crise decisiva, não obstante o crescimento populacional, a
concentração urbana e a tendência à universalização das relações capitalistas
de mercado e de produção tivessem alterado a articulação em nível interno
(FERNANDES, 1987, p. 245). O crescimento do mercado interno não teve
como consequência a superação de práticas pré-capitalistas ou sub capitalistas,
muitas das quais foram fortalecidas. A Reforma Agrária não foi realizada,
Marcelo Augusto Totti (Org.)
190 |
não houve correção dos salários dos trabalhadores urbanos, mantinha-se a
compressão do mercado e a concentração social e racial da renda.
Em resumo, apesar do desaparecimento dos bloqueios que
excluíam o setor arcaico da modernização capitalista, a situação
global ainda convertia a economia num verdadeiro conglomerado
de formas de mercado e de produção de desenvolvimento desigual.
(FERNANDES, 1987, p. 246).
Merece destaque a manifestação do autor em relação ao fato de a
dupla articulação mencionada não ter sido questionada pelos diferentes
segmentos da burguesia, ainda que temas, como o chamado entreguismo,
a remessa de lucros, o intervencionismo econômico do Estado e a reforma
agrária, tenham ocupado a pauta nacional até o advento do Estado Novo
(FERNANDES, 1987, p. 241).
Em que medida as condições estruturais descritas tornariam possível
uma reação burguesa em direção à superação das práticas pré-capitalistas
ou subcapitalistas a partir de concepções nacionalistas em direção a uma
revolução democrático-burguesa? Eis um dos problemas recorrentes e
centrais nas análises de Florestan Fernandes.
O capitalismo brasileiro se transformaria antes e depois da Segunda
Guerra. Durante as décadas de 50 e 60, o país viveria uma crise de
adaptação burguesa às condições econômicas que se criaram e aceleraram
desde fora. A passagem para o capitalismo monopolista foi lenta. Até o
início da Segunda Guerra, as grandes corporações operaram no Brasil
por meio do que o autor considera um controle econômico segmentar
em áreas diversas. A evolução do processo se assentaria tanto na decisão
externa de alocar recursos sucientes no Brasil para transformar as
condições de produção internas quanto na decisão interna (econômica,
psicossocial política) de favorecer e acelerar uma transição estrutural para
o capitalismo monopolista.
A transição estrutural e histórica para o padrão de desenvolvimento
econômico inerente ao capitalismo monopolista, nas condições
assinaladas, requer alterações tão profundas dos mecanismos de
mercado, na organização do mercado nanceiro e de capitais,
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 191
nas dimensões da produção industrial, e medidas correlatas tão
complexas (e, ao mesmo tempo, tão nocivas para vários grupos
e classes sociais, inclusive empresariais), referentes à política
econômica e à aplicação de incentivos que privilegiam as economias
industriais de escala e a exportação, que ela se torna impraticável
sem um apoio interno decidido e decisivo, fundado na base de
poder real das classes possuidoras, dos estratos empresariais mais
inuentes e do Estado. (FERNANDES, 1987, p. 258).
A reconguração do capitalismo no Brasil aprofundou as históricas
desigualdades econômicas, sociais e culturais que marcavam a sociedade
brasileira, permitindo que as elites tivessem o controle das vantagens diretas
e indiretas possibilitadas pelas mudanças na estrutura econômica. No
entanto, o reconhecimento das alterações na estrutura social decorrentes se
constitui, para o autor, em uma das questões analíticas fundamentais para
compreensão das relações entre as classes nos anos seguintes, até o golpe de
64 e depois dele.
O deslocamento da população do campo para as cidades em função
da não realização da reforma agrária, a universalização das relações de
mercado no campo e o crescimento industrial favoreceriam a ampliação
dos empregos e o ritmo de crescimento da classe operária urbano-
industrial; isso tornaria possível uma maior organização e atuação na luta
por direitos e equidade, nos marcos da ordem capitalista, bem como o
acesso à educação, à cultura e aos benefícios da tecnologia. Essa análise
permitia ao autor entrever que:
[...] A importância do aparecimento de um novo tipo de operário
é óbvia. Ele acarretará a renovação (para dizer o menos) do
movimento sindical e, em um plano mais amplo e profundo, levará
a sociedade brasileira, nalmente, a conhecer qual é a natureza e
o sentido das pressões econômicas, sociais e políticas das classes
operárias, quando estas se conguram como uma ‘força socia’ da
história. (FERNANDES, 1987, p. 284).
Estava, pois, em questão a possibilidade de que conquistas sociais,
políticas, nacionais e democráticas pudessem nascer em função da
Marcelo Augusto Totti (Org.)
192 |
participação política dos trabalhadores assalariados, particularmente da
classe operária, motivados e impulsionados por suas necessidades concretas
e pela consciência de seu lugar como sujeitos e cidadãos portadores de
direitos sociais, políticos e civis.
Para Florestan, a alteração das relações de classe que permitiram a
ampliação da inserção de parcelas expressivas dos trabalhadores nas lutas
sociais, na conjuntura anterior a 64, não teve a força necessária. Entretanto,
estavam orientadas para impedir que, no contexto das intensas e violentas
pressões imperialistas resultantes da guerra fria, a crise intraburguesa fosse
resolvida em benefício das maiorias sociais.
As condições do Estado autocrático instalado em 64 não inibiriam,
contudo, a contradição estrutural resultante do crescimento industrial que
fortaleceu a condição de classe e o poder da burguesia.
Quando ‘instaura o seu poder de dominação e de controle do
Estado, segundo padrões autocráticos, a burguesia se defronta
com efeitos ou com exigências do desenvolvimento capitalista
que afetam as bases de seu poder real como classe [...] Todavia, se
essa situação estrutural e histórica vai abrir caminho, ou para um
autêntico ‘ nacionalismo burguês’ e para uma ‘genuína democracia
burguesa’; ou para uma ‘revolução dentro da ordem’ pró-capitalista
mas antiprivatista e anti-imperialista; ou, nalmente, para uma
‘revolução contra a ordem’, denitivamente antiburguesa – é algo
que só a evolução futura nos dirá’. (FERNANDES, 1987, p. 287).
Reconhecendo a força das dinâmicas externas, isto é, naquele
contexto da guerra fria no quadro geopolítico internacional, entendia que
seria do conito entre capitalismo e socialismo que dependeria a evolução
das possibilidades internas ao país. Nesse cenário, a luta anti-imperialista
se tornaria questão estratégica.
Na conjuntura especíca da abertura democrática, os rumos das
transformações dependeriam das pressões da classe operária, dos extratos
mais baixos das classes médias em expansão, cuja movimentação, num
clima de “revolução de expectativas”, deniria as proporções do radicalismo,
econômico, social e político capazes de conduzir a sociedade à democracia
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 193
burguesa, ao fortalecimento do socialismo ou a revoluções socialistas
(FERNANDES, 1987, p. 285).
Quando os trabalhos da Constituinte tiveram início
5
, as questões
afeitas à defesa das liberdades democráticas, dos direitos civis, políticos
e sociais emergiram com força. Florestan considerava o contexto como
sendo de eclosão de uma revolução democrática e nacional, na qual
outras transformações capitalistas, como a revolução urbana e a reforma
agrária eram reivindicadas. Considerando a Constituição a ser elaborada
no início de 1987, a mais importante da história do país – não obstante
a vigência de uma ordem institucional ilegal resultante do pacto político
que engendrou a Nova República –, aquela deveria reorganizar o Estado
para construir uma constituição verdadeiramente burguesa, para todas
as nações, dentro da nação. Tratava-se de atender às reivindicações
e levar a efeito as transformações exigidas “[...] pelos operários, pela
massa dos miseráveis da terra, pela pequena burguesia enraivecida, pelos
setores da classe média baixa, que perdiam status e renda e pelos outros
setores que, movidos por outras reivindicações, reclamavam por justiça.
(FERNANDES, 1988, p. 61-62).
Florestan atuou na Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes
(Subcomissão A), que integrava a Comissão da Família, da Educação,
Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação
6
(Comissão
VIII). Ao mesmo tempo em que exercia seu trabalho como deputado
constituinte ocupou-se, por meio de seus pronunciamentos e artigos, da
O processo constituinte teve início em 1º de fevereiro de 1987 e foi concluído em 5 de outubro de 1988, com
559 parlamentares titulares: 487 deputados federais e 49 senadores eleitos em 15 de novembro de 1986, além de
23 dos senadores eleitos em 1982. Os trabalhos tiveram sete etapas, a saber: preliminar, subcomissões temáticas,
comissões temáticas, comissão de sistematização, plenário, comissão de redação e epílogo.
Os seguintes parlamentares compuseram a Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes (Subcomissão A):
Hermes Zaneti (Presidente da Comissão – PMDB/RS), Aécio Borba (1º vice-presidente – PDS/CE), Pedro
Canedo (2º vice-presidente – PFL/GO), senador João Calmon (PMDB/ES), o relator. Os parlamentares titulares
da comissão, eram os os seguintes parlamentares: Louremberg Nunes Rocha, Antônio de Jesus Bezerra de Melo,
Márcia Kubitschek, Otávio Elísio, Oswaldo Sobrinho, Paulo Silva, Tadeu Franca, Ubiratan Aguiar, Flávio
Palmier da Veiga, França Teixeira – todos esses pela bancada do PMDB; pelo PFL, havia os deputados Átila
Lira, Cláudio Ávila, José Moura, José Queiroz, Agripino Lima, Dionísio Hage; pelo PDT, Chico Humberto;
pelo PTB, Sólon Borges dos Reis; pelo PT, Florestan Fernandes; e pelo PL, Álvaro Valle. Os membros suplentes
eram: Irapuan Costa Junior, Carlos Benevides, Eduardo Moreira, Felipe Cheidde, Ivo Lech, Jorge Hage, José
Carlos Sabóia, José Dutra, Leopoldo Bessone, Mário de Oliveira, Maurício Nasser e Renato Bernard (PMDB)i;
Evaldo Gonçalves, Geovani Borges, Pedro Ceolin, Francisco Coelho, Eraldo Trindade (PFL); Ruberval Pilloto
(PDS): Fábio Raunheitti (PTB); Gumercindo Milhomen (PT); e José Carlos Coutinho (PL).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
194 |
interpretação das relações entre as classes e setores de classe no interior do
Congresso e fora dele, e das políticas do governo Sarney, no contexto de
uma profunda crise do Estado que se estendia desde o início do processo
da abertura política.
O lugar atribuído à educação nos trabalhos do congresso
constituinte foi objeto de críticas contundentes por parte do deputado
Florestan Fernandes. Considerava ele que a educação estava sendo tratada
como assunto secundário, uma vez que era discutida no âmbito de uma
subcomissão responsável por outras áreas.
Mas essa condição não impediu que a Subcomissão (A) se tornasse
um dos espaços onde o debate com as forças organizadas da sociedade
civil fosse dos mais intensos. Para suas reuniões auíram diferentes setores
sociais em defesa de projetos e proposições. Destaque-se a presença do
Fórum Nacional da Educação na Constituinte em Defesa do Ensino
Público e Gratuito
7
, além de distintas representações do setor privado,
entre as quais a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP),
grandes conglomerados com atuação no ensino e entidades confessionais.
uma conStItuIção SIntétIca ou detalhada?
Um dos debates mais relevantes desenvolvidos no interior da
Subcomissão de Educação referiu-se à natureza do texto constitucional
a ser elaborado. Os deputados Álvaro Valle (PL-RJ) e Ubiratan Aguiar
(PMDB-CE), na nona reunião ordinária da Subcomissão de Educação,
em 21 de abril de 1987, defenderam a existência de uma constituição
sintética, ressalvada a proposta de tratamento no texto constitucional das
conquistas previstas em outras constituições, e a necessidade de discussão,
O Fórum Nacional da Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito teve a participação
de quatorze entidades: Associação Nacional de Educação – ANDE; Associação Nacional de Docentes de Ensino
Superior (ANDES); Associação Nacional de Prossionais de Administração da Educação (ANPAE); Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd); Confederação dos Professores do Brasil (CPB);
Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES); Central Geral dos Trabalhadores (CGT); Central Única
dos Trabalhadores (CUT); Federação das Associações dos Servidores das Universidades Brasileiras (FASUBRA);
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC); Sociedade
de Estudos e Atividades Filosócos (SEAF); União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e União
Nacional dos Estudantes (UNE).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 195
com as entidades representativas de educadores, de leis ordinárias ou
complementares que pudessem regulamentar denições gerais a serem
estabelecidas no texto constitucional.
Contradizendo o deputado Álvaro Vale, o deputado Florestan
Fernandes defendeu que a nova constituição abrigasse denições detalhadas,
voltadas a orientar a denição de políticas sociais, especialmente visando
a atender às necessidades das camadas populares. No caso da educação,
sua defesa foi no sentido de que o texto constitucional estabelecesse tanto
quanto possível denições menos abstratas e detalhadas, expressando uma
democracia que reconhecesse as diferenças em oposição ao autoritarismo
que as rejeita.
Tratava-se de assegurar na Constituição, como apontado, aquilo que
o Estado e as elites não tinham sido capazes de realizar no país. Para ele,
em vez de enxuta, a Constituição deveria ser molhada e salgada (ROCHA,
2015, p. 47).
Em verdade, uma parte dos constituintes vinculados aos partidos de
centro ou de direita, herdeiros das políticas dos governos militares, pretendia
deslocar a regulamentação das determinações do texto constitucional para
as leis orgânicas municipais. É o caso do deputado Sólon Borges dos Reis
que, armando a ideia de que apenas a educação poderia fazer do Brasil
uma grande nação, nomeia como descentralização o referido deslocamento
das competências dos entes federados. Segundo o deputado, também uma
Lei de Diretrizes e Bases, tal qual a 5692/71, representaria uma camisa de
força, uma uniformidade nacional, ainda que a necessidade de unidade
nacional fosse defendida.
A questão, contudo, mostrava-se mais intrincada e complexa.
A perspectiva de detalhar direitos sociais, políticos e civis se mostrava
coerente com a promoção da justiça social e da garantia de liberdades
democráticas. A manifestação de uma nação em conito por meio da
expressão dos diferentes interesses de classe e setores de classe no transcorrer
do processo constituinte tornava possível a conquista de reivindicações e o
acolhimento de proposições em meio às contradições. Tratava-se do futuro
dos direitos das maiorias sociais e da democracia no país. Inversamente,
Marcelo Augusto Totti (Org.)
196 |
para os conservadores, a defesa de um texto “enxuto” era condição, não
de impedir a força e o uxo das discussões e do processo de elaboração
de propostas para os que não tinham a hegemonia necessária, mas de
assegurar a impermeabilidade do texto às proposições vocacionadas a
mudar ou diminuir as desigualdades estruturais do capitalismo, suas formas
especícas de desenvolvimento no caso do Brasil, bem como a herança do
autoritarismo, do clientelismo e do patrimonialismo.
Eis a maneira de ganhar a batalha sem travar o combate, como
apontou Florestan na vigésima quarta reunião da Subcomissão, em diálogo
com o então ministro Celso Furtado. Tal debate teve relevância particular,
malgrado os posicionamentos institucional e político distintos. A discussão
desvela as leituras de dois grandes intelectuais brasileiros sobre o papel do
processo constituinte
Reconhecendo que as constituições modernas tenderam a ser mais
analíticas, Celso Furtado procura situar em termos históricos o signicado
das constituições norte-americanas. A Constituição nos Estados Unidos
“[...] na verdade está sendo feita permanentemente dentro da tradição do
Direito americano e pela própria Justiça, pela Suprema Corte dos Estados
Unidos. É como se o país vivesse em processo permanente de adaptação de
sua Constituição a sua realidade” (BRASIL, 1988b, p. 423), só comparável
à Inglaterra, com a Constituição mais sintética, em verdade dois países que
praticam o Common Law
8
.
Celso Furtado tomou como questão essencial a possibilidade de a
nova Constituição ser programática e de estatuir de imediato, após sua
aprovação, as denições previstas. Reconhecendo as expectativas sociais
em torno do novo texto constitucional, o então Ministro da Cultura
previa que a não referência aos problemas dos negros, das pessoas com
deciência, dos jovens, dos movimentos feministas, entre outras questões,
frustraria a expectativa de diferentes setores e limitaria as forças de ruptura
que representavam em relação à dominação que sobre eles se fez exercer
Common Law é um sistema de direito que se funda nos costumes e na jurisprudência, razão pela qual as
práticas nos tribunais têm mais importância dos que os atos do Legislativo e do Executivo; é praticado, com
características distintas, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Distingue-se, por tal condição, do direito de
tradição romano-germânica, realizado em vários países, especialmente no Brasil (SOARES, 1997).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 197
por décadas e séculos. Para tal intento deveria estar voltada a Constituição.
A perspectiva de que as classes oprimidas, “escondidas dentro da vida” se
tornassem agentes históricos, como defendia Florestan, criava pontos de
convergência entre os dois intelectuais quanto ao destino da Constituinte
e da Constituição, não obstante as contradições da transição negociada,
materializadas no governo Sarney.
Por último, eu diria que é um grande orgulho para mim pertencer
a uma geração que trouxe o Brasil a este processo Constituinte. [...]
Creio que em nenhum lugar do mundo houve uma Constituição
feita com tanta participação como se está fazendo hoje no Brasil
[...] isso creio que foi de verdade um fato histórico que vai marcar
nossa vida. (BRASIL, 1988b, p. 425).
As conuências discursivas nesse aspecto advinham da interpretação
do Brasil a partir da economia e da sociologia. Celso Furtado considerava a
necessidade de que, além das elites, outros sujeitos se manifestassem na vida
política e social, de sorte a promover transformações na herança política e
econômica capazes de impulsionar o desenvolvimento em associação com
a criatividade
9
Tais transformações seriam necessárias em sociedades de economia
dependente, como a brasileira, onde não se encontrariam formas sociais
Celso Furtado considerou que a compreensão do desenvolvimento é inseparável da ideia de criatividade. O
que chama de civilização industrial resultaria de dois processos convergentes de criatividade cultural: a revolução
burguesa e a revolução cientíca. A primeira foi por ele entendida como a imposição progressiva da racionalidade
instrumental à organização da produção “transferindo-a, progressivamente para a esfera do ‘econômico’”; e a
segunda, como o predomínio da visão da natureza num sistema dotado de estrutura racional. Dessa forma o
processo de acumulação, ao se impor, faz com que as atividades-m da ação humana se subordinem à lógica
dos meios, fazendo com que a criatividade esteja submetida a uma racionalidade instrumental. Tal condição,
na visão do autor, marcaria a história dessa civilização. Os avanços e recuos do processo de acumulação nos
países que realizaram a revolução burguesa, ao se reetirem na estrutura social, tornariam possível a formação
de consciência de grupos e classes, dando origem ao que dene como pluralismo institucional, daria origem
também à ampla massa de trabalhadores, tornando possível novas formas de ação política. Nas sociedades
em que se congura o fenômeno da dependência, o processo de acumulação e a atividade política teriam
características próprias. Na fase por ele nomeada de primário-exportadora, o processo de acumulação teria
pouco alcance, limitando a atividade política à luta pelo excedente. Na fase da industrialização, o descompasso
entre acumulação e desenvolvimento cientíco e tecnológico endógeno herdado de um mercado abastecido
pelas importações geraria contradições sociais mais profundas, e a participação social dos assalariados ocorreria
sob controle das elites e das formas tradicionais de exercício do poder. Considerando que as sociedades de
capitalismo dependente estariam marcadas pela instabilidade e por um autoritarismo preventivo crescente, o
esforço de criatividade política estaria comprometido, podendo erodir as bases do próprio desenvolvimento
(FURTADO, 2012, p. 43-48).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
198 |
estáveis, o que facilitaria a ascensão de governos autoritários voltados a
cercear a consciência crítica e a expressão política dos diferentes setores e
classes da sociedade.
Essa compreensão sustenta a interpretação de que a presença dos
movimentos populares representava a negação do autoritarismo e um
impulso às formas criativas do desenvolvimento (ROCHA, 2015, p. 60),
razão pela qual a Constituição deveria abrigar formulações e contribuições
desses setores sociais.
Em termos históricos e sociológicos, Florestan situa a participação
dos movimentos sociais a partir da ideia de ruptura, necessária naquela
conjuntura e como horizonte de futuro. Era preciso transformar a ordem,
profundamente, no contexto da democracia. Em seu discurso, apontava a
necessidade de transformação da relação dos excluídos e oprimidos com o
poder, isto é, com a sociedade civil e com o Estado.
A ruptura. Ela veio de baixo, espontaneamente como produto do
recente modelo de desenvolvimento capitalista e suas repercussões
sociais. Além disso, há a ruptura com a herança deixada pela ditadura
e com os seus resíduos, a ‘transição lenta, gradual e segura’ e o seu
garante político-militar, a Nova República. Essa dupla ruptura é
imperativa. Fala-se que o povo é ignorante e apático. No entanto,
o povo se opõe à continuidade e se bate pela ruptura. As reações
populares às frustrações da política econômica após às eleições do
ano passado atestam experimentalmente essa interferência [...].
Este debate comporta uma conclusão construtiva. O projeto de
Constituição, que não pode ser forjado organicamente a partir
dos partidos da ordem, é viável, apesar disso, a partir do concreto.
(FERNANDES, 1998, p. 90).
O destino dos “povos maltratados, impiedosamente excluídos da
nação e reduzidos a múltiplas subnações de gente sem terra, de miseráveis
escorraçados e condenados ao jugo do cativeiro de uma falsa cidadania”,
estaria entre dois caminhos: derrotar a conspiração concretizada no pacto
social do Governo Sarney com os poderosos por meio da mobilização
permanente em benefício de uma República democrática, construída
a partir da soberania popular; e na escolha da forma de sociedade que
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 199
lhes poderia assegurar liberdade com igualdade, isto é, uma República
democrática proletária e socialista (FERNANDES, 1998, p. 85-86).
A luta pela expressão dos diferentes setores no processo constituinte
dizia respeito à luta pelo poder, pelo desenvolvimento do país, pela
realização tarefas nacionais e democráticas entrelaçadas com a luta por
transformações sociais e estruturais futuras.
Observando que, de diferentes formas e maneiras, o povo inundava
as subcomissões, em especial da Educação, onde “um indígena, um
negro, um portador de defeito físico, um professor modesto” saíam “da
obscuridade” e se ombrearam “com os notáveis” (FERNANDES, 1989,
p. 87), o deputado entendia como possibilidade que as pressões a serem
exercidas sobre os constituintes resultassem em maior exibilidade e força
de todos aqueles que pretendessem enfrentar o conservadorismo dos
partidos da ordem.
Durante o processo constituinte, Florestan defendeu uma
Constituição analítica e detalhada como forma de resolução no debate
público de conitos históricos, assim como de direitos negados no país
(ROCHA, 2015, p. 59-60).
a defeSa da educação públIca e gratuIta para todoS: uma
queStão nacIonal
Florestan considerava a educação o problema mais grave do
Brasil. Em um de seus pronunciamentos no plenário do Congresso
Constituinte, apontava que 34% da população se encontrava em situação
de analfabetismo, sendo que 4 milhões (30% dessa população) tinham
de 10 a 14 anos. O analfabetismo tinha aumentado: em 1960, o país
tinha 16 milhões; em 1970, 18,1 milhões; em 1980, 18,7 milhões
10
(FERNANDES, 1988, p. 26).
As pessoas com menos de 1 ano ou sem instrução totalizavam 35,9
milhões; aquelas que possuíam de 1 a 3 anos, 24,3 milhões; com 4 anos,
10
Dados do censo de 1980, segundo o qual a população brasileira era de 121.150.573 de pessoas. Apresentados
em sessão plenária da Constituinte em 13 de agosto de 1987.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
200 |
18 milhões; com 12 anos ou mais de instrução, 3,2 milhões. Tomando-se a
população economicamente ativa, entre os trabalhadores, 10,2% estavam
em situação de analfabetismo, o que correspondia a 1/5 da população
trabalhadora. Analisando dados de matrícula no 1º grau, constatava que
na primeira série havia cerca de 6,9 milhões de estudantes; na segunda, 3,9
milhões; na quarta, 2,7 milhões; e na oitava, 1,3 milhões. A progressiva
diminuição do número de alunos matriculados em cada série era explicada
por Florestan em função do ingresso precoce das crianças no mercado de
trabalho (FERNANDES, 1988, p. 27).
Os números de 1983 revelavam 27,8 milhões de matrículas no então
1º grau (80%) da população escolar; 2,9 milhões no segundo grau (10%
da população escolar); 1,3 milhão no ensino superior (4% da população
escolar) (FERNANDES, 1988, p. 27).
Florestan considerou que a falta de acesso à educação prejudicaria
os trabalhadores tanto quanto a fome e a miséria, na medida em que os
privaria da possibilidade de tomada de consciência sobre sua situação,
representando um fator de difusão da ignorância e do atraso cultural,
de reprodução da desigualdade, da concentração social, regional e racial
da riqueza e de poder. Uma minoria era dona da riqueza socialmente
produzida, não apenas da terra.
Sua interpretação da realidade brasileira sustentava sua defesa
incondicional da educação pública, condição do atendimento da maioria
das crianças, jovens e adultos da classe trabalhadora.
Indicava que a Lei de Diretrizes e Bases de 1961 e a política
educacional dos governos militares limitaram a expansão do ensino
público, que teve início especialmente depois de 1930. Tal limitação
permitiu o crescimento do setor privado, que se tornou preponderante,
particularmente, em nível do ensino médio e superior, de tal forma que,
segundo os dados apresentados pelo deputado, em 1983, havia 183.023
unidades educacionais de ensino público, como mais de 19 milhões de
alunos, representando 86% da matrícula geral. O setor privado tinha 9.958
estabelecimentos de ensino com 2.958.156 estudantes, 13,3% da matrícula
geral. No caso do 2º grau, 4.243 unidades educacionais eram públicas, com
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 201
1.696.682 matrículas, 59% do total de matrículas, enquanto a rede privada
contava com 4.211 e 1.177.823 estudantes (41% da matrícula geral). No
caso do ensino superior, a situação se inverte: 47 estabelecimentos são
universidades públicas, com 349.977 estudantes, 218 estabelecimentos
isolados, com 100 mil e poucos estudantes (38% das matrículas). O setor
privado contava com 20 universidades, com cerca de 230 mil estudantes e
593 estabelecimentos isolados com 522.718 estudantes (62% da população
universitária) (FERNANDES, 1988, p. 30-31).
A constatação acerca do crescimento do setor privado, especialmente
em nível do ensino superior, evidenciava a desigualdade da oferta
educacional no país com consequências dramáticas em relação à qualidade,
além da transformação da educação em negócio, notadamente no caso do
ensino superior.
Diante dos efeitos e resultados das políticas dos governos militares, o
principal desao por ele identicado em relação à Assembleia Constituinte
era o de “estabelecer um sistema de ensino comum. Um sistema de ensino
em que os pobres e ricos sejam postos na mesma situaçãoTratava-se de
uma “revolução no topo e uma revolução na base” (FERNANDES, 1988,
p. 30-31). que assegurasse à massa pobre da população o acesso ao sistema
de ensino, fazendo com que a educação se deslocasse da condição de
privilégio para direito. A essas duas revoluções, três prioridades deveriam
ser articuladas.
A primeira se refere à garantia, de fato, de igualdade de oportunidades
educacionais como “norma imperativa e auto-aplicável” que, não tendo o
poder de suprimir as desigualdades de classe, poderia “regular a reprodução
da sociedade civil”, de sorte a não excluir os trabalhadores pobres “da cultura
cívica, da cidadania e da participação política (FERNANDES, 1988, p.
33). Florestan manifestava, uma vez mais, o quanto estava inconformado
com a recusa das elites nacionais em assumir suas responsabilidades
culturais, sociais e políticas, exercendo a condição de cidadãos e não apenas
de privilegiados.
A segunda era estabelecer uma nova visão sobre o professor, o aluno
e os funcionários, a m de conferir um novo valor social à educação.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
202 |
Atribuindo à escola o papel de “principal ‘laboratório’ de uma sociedade civil
civilizada, plural e democrática” (FERNANDES, 1988, p. 33), considerava
necessária a superação de todas as formas de degradação e estigmatização
que atentassem contra a condição humana dos funcionários. No mesmo
sentido, apontava a necessidade de que os estudantes não fossem tratados
de forma subalterna, ignorando-se seus saberes.
A terceira diz respeito ao que chama de autoemancipação pedagógica
em escala nacional, superando a colonização das mentes e a imposição de
pacotes pedagógicos e tecnológicos, como o MEC-USAID, por exemplo.
Evocando a obra de Paulo Freire, especialmente a Pedagogia do Oprimido,
indica nossa capacidade de realizar “uma pedagogia apta a transformar
o mundo”. Estava em causa, para Florestan, “a emancipação nacional,
o respeito por nossa soberania e pelo desenvolvimento com democracia
como uma delicada e complexa produção interna, que apenas povos cultos
podem conseguir” (FERNANDES, 1988, p. 34).
O dilema evolvendo a realização das tarefas da revolução burguesa
ou a transição para o socialismo reaparecia aqui quando ele atribuía papel
essencial à formação cultural como condição ou pré-requisito da estabilidade
das conquistas nacionais e da conguração da classe operária enquanto
classe “para si”. Novamente se refere à conduta das classes dominantes, cuja
inação e o apego aos privilégios impediam o país de realizar plenamente as
transformações proporcionadas pelo capitalismo em sua fase concorrencial.
Armava:
[...] o regime de classes preenche funções positivas, relacionadas
com a constituição das condições apropriadas ao funcionamento
e ao desenvolvimento de uma economia fundada na apropriação
privada dos meios de produção, na mercantilização do trabalho e
na organização capitalista das relações de produção e do mercado.
Nesse plano ao pressionar as estruturas sociais preexistentes, o
regime de classes tende a transformar formas de concentração
social da renda, do prestígio e de poder típicas de sociedades
estraticadas estatalmente. O que signica que essa pressão tende
concomitantemente a alterar a posição relativa dos estratos baixos,
melhorando, elevando e intensicando os níveis dentro dos quais
eles participam da renda, do prestígio social e do poder. Em
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 203
suma, embora o regime de classes não nivele os estratos sociais
em presença, sob nenhum aspecto, ele dá origem a um mínimo
de homogeneidade e de equidade[...]. O espectro estrutural
descrito nas páginas precedentes sugere, por si mesmo, o quanto
o capitalismo dependente interfere e restringe, normalmente, tais
funções do regime de classes [...]. No contexto histórico-social
do capitalismo dependente, o regime de classes preenche apenas
algumas de suas funções essenciais e, assim mesmo, de maneira
variavelmente unilateral. (FERNANDES, 2008, p. 74-75).
O debate sobre direitos nessas condições supõe a consideração do
percurso histórico de sua constituição na sociedade capitalista. Marshall
considerou que a história dos direitos diferiu de natureza e caráter entre
os séculos XVIII e XX, mais precisamente distinguiu temporalmente a
ascensão dos direitos civis, cujo período de constituição se estenderia pelo
século XVIII, envolvendo o Habeas Corpus
11
, direito à justiça, abolição da
censura à imprensa, liberdade de imprensa, de pensamento e fé, garantia
de liberdade individual, direito de ir e vir, direito de propriedade e direito
ao trabalho, e direito aos tribunais. Os direitos políticos teriam início
do século XIX, consistindo inicialmente na extensão de direitos civis a
setores não beneciados por eles, no direito de participação no poder
político, como eleito ou eleitor dos parlamentos ou governos locais, sendo
o direito de voto censitário assegurado aos homens (o sufrágio universal
seria alcançado apenas em 1918). Os direitos sociais no século XX são
por ele denidos como aqueles que asseguram um mínimo de bem estar
econômico e direito a participar da herança social por meio especialmente
da educação e dos serviços sociais. Para Marshall, a igualdade implícita
no conceito de cidadania, ainda que limitada, teria minado o sistema
de classes (MARSHALL, 1967, p. 66- 77). A formulação abrigava uma
continuidade discursiva que moldou sua abordagem sociológica sobre a
conguração da cidadania na Europa.
Todavia, como apontou Hirschman (2019, p. 15-18), o processo
de concepção, alcance e garantia dos direitos civis, políticos e sociais
11
O autor retrocede no tempo ao incorporar o Habeas Corpus, etimologicamente: tenhas o corpo, que, tendo
origem no direito romano, arma-se no direito inglês no século XIII por meio da Magna Carta.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
204 |
teve contrainvestidas ideológicas e políticas que tanto originaram recuos
ou mesmo a destruição de programas progressistas quanto estiveram na
origem quer de lutas sociais intensas quer da perpetuação de iniquidades.
Exemplo disso seriam os ataques à Declaração dos Direitos do Homem e
a circunstância que gerou sua elaboração; a oposição ao sufrágio universal,
especialmente entre o nal do século XIX e a Primeira Guerra; e os ataques
ao Welfare State, visando a subtrair direitos sociais.
O problema posto por Hirschman indica que, em termos históricos,
a construção da cidadania foi marcada pelo enfrentamento, em diferentes
condições, de políticas deletérias; descontinuidades oriundas de conitos
explosivos e violentos e antinomias que tornam visíveis a natureza instável
da democracia e dos direitos no capitalismo. A ordem legal que promete
igualdade, embora imprescindível, não transcende as dinâmicas da
sociedade de classes.
Também a garantia do direito à educação não é um fenômeno
intemporal. Canário considerou que, entre a Revolução Francesa e o m da
Primeira Guerra, a educação viveu a “idade do ouro”. Os sistemas escolares
estruturados pelos Estados-Nação que se construíram na Europa desde o
século XVIII, sob a égide das revoluções industrial e liberal, enfrentaram
um conjunto de paradoxos, entre os quais a vinculação entre educação e a
ideia permanente de progresso e a concomitância com problemas sociais,
como a guerra, a pobreza e a desigualdade (CANÁRIO, 2005, p. 60-88).
Entretanto, vale apontar que a obrigatoriedade e a massicação do
acesso à escola ocorreram no século XX, mais especicamente depois da
Segunda Guerra Mundial (CRAHAY, 2002, p. 9-19). Os mais de 100 anos
transcorridos entre a Revolução Francesa e a Primeira Guerra evidenciam
que a escola, como herdeira do triunfo da razão e materialização da vitória
do direito sobre os privilégios, custou muito a se estabelecer. Malgrado o
ensino tenha sido alvo de preocupação constante na França revolucionária,
não é menos verdadeiro que, ao nal do período diretorial (1795-1799), a
educação continuava a ser um privilégio. A contradição entre a igualdade
de direitos e a liberdade econômica se justicava em nais do século
XVIII pela falta de recursos para criar escolas e pela necessidade de que
as massas populares estivessem disponíveis para realização do trabalho.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 205
A unidade nacional nascia com as marcas da exclusão e da desigualdade
social (SOBOUL, 1974, p. 540-545).
No caso da América Latina, a universalização da Educação Básica,
especialmente no ensino fundamental, ocorre nos anos 1990 (CASTRO,
2008, p. 183). No Brasil, constituía-se em desao no contexto da
redemocratização, como demonstrou Florestan.
Nos primeiros meses do processo constituinte, as discussões
da Subcomissão de Educação evidenciaram as contradições acerca da
massicação da educação pública de qualidade e democrática no Brasil.
Em nosso país, não estavam em questão apenas o volume de recursos
públicos a serem investidos, o alcance do atendimento a crianças, jovens
e adultos, a organização e o funcionamento da educação nacional, mas
também a disputa dos fundos públicos pelos setores privados. A história das
constituições republicanas, especialmente a partir de 1937, esteve marcada
pelo conito entre o público e o privado, seja pela desobrigação do Estado
em relação à oferta da educação pública, seja pela transferência de recursos
públicos para o setor privado por meio de bolsas de estudo visando a
atender à demanda educacional, como estabelecido na Constituição de
1967 e na Emenda Constitucional nº 1 de 1969, sob os governos militares.
É necessário considerar que o debate a esse respeito remonta ao
relatório Afonso Arinos, que apresentava o anteprojeto constitucional
elaborado pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, com dez
capítulos dedicados à educação (BRASIL, 1986).
A educação é apresentada como direito de todos e dever do Estado.
Diferentemente de todas as outras constituições da história republicana,
não há referência às responsabilidades da família no texto inicial. No
entanto, no artigo 386 do anteprojeto, a educação é apontada como
dever dos pais e, desde o nível pré-escolar, do Estado” (BRASIL,
1986). Coerente com essa denição, o texto apresenta uma proposta de
vinculação de recursos, reatando laços com as constituições de 34 e 46,
que também previram tal vinculação.
O texto estabelecia que a União deveria investir treze por cento, e
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no mínimo vinte e cinco
Marcelo Augusto Totti (Org.)
206 |
por cento do que lhes fosse devido em relação ao produto da arrecadação
dos respectivos impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino
(BRASIL, 1986).
No artigo 390 do referido anteprojeto, o texto assegura a
gratuidade em todos os níveis da educação, mas não aponta o alcance
da oferta pública. Os chamados “candidatos carentes”, desde que
habilitados, teriam acesso até o limite de 50% das vagas. A expansão
dessa gratuidade deveria, contudo, ser realizada por meio de bolsa de
estudos. Além disso, em relação ao salário-educação
12
, as empresas
comerciais, industriais e agrícolas poderiam oferecer ensino gratuito para
os lhos dos trabalhadores entre seis e dezesseis anos de idade ou pagar
esta contribuição social (BRASIL, 1986).
A defesa dos interesses mercantis se completa com o estabelecimento
de critérios para a transferência de recursos públicos para o ensino
superior privado. A proposição previa, dentre outros aspectos, que na
atribuição de tais recursos deveriam ter prioridade instituições de interesse
social reconhecidas pelos poderes públicos e capazes de compensar,
progressivamente, com recursos alternativos o aporte recebido pelo Estado
(BRASIL, 1986).
Quando a Comissão Afonso Arinos encerrava seus trabalhos, foi
divulgada, em setembro de 1986, a Carta de Goiânia, formulada na IV
Conferência Brasileira de Educação (CBE)
13
, que se constituiu, naquela
conjuntura, no contraponto mais signicativo ao anteprojeto Afonso
12
É uma contribuição social recolhida por empresas à Secretaria da Receita Federal, instituída como fonte
adicional de nanciamento da educação e destinada ao atendimento de programas, projetos e ações da educação
básica. O salário-educação foi criado em 1964, através da Lei nº 4.440 (BRASIL, 1964), para custear o ensino
primário e, posteriormente, foi estendido ao nanciamento do ensino de 1º grau, do ensino fundamental e,
mais recentemente, da educação básica. Ao longo dos anos, foi sofrendo diversas modicações, parte das quais
será objeto deste artigo. Em termos gerais, o salário-educação passou por reformulações no que diz respeito aos
critérios de cálculo da contribuição, à distribuição entre as esferas de governo, ao segmento da educação em que
deveria ser aplicado e às possibilidades de isenções e de seu uso no nanciamento da rede privada de ensino. O
foco deste texto é a trajetória da normatização referente à distribuição entre níveis governamentais a partir da
Constituição da República de 1988 (FARENZENA, 2017).
13
Ocorreram cinco Conferências Brasileiras de Educação (CBEs) na década de 1980, a saber: I CBE (1980,
PUC, SP com 1400 participantes); II CBE (1982, UFMG, Belo Horizonte com 2.000 pessoas); III CBE
(1984. UFF, Niterói, com 5.000 participantes); IV CBE (1986, UFG, Goiânia com 6.000 pessoas); V CBE
(1988, Brasília com 6.000 participantes). Foram promovidas pela Associação Nacional de Pós-Graduação
em Educação (ANPEd), pelo Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e Associação Nacional de
Educação (ANDE), conforme Cunha (2009, p. 94).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 207
Arinos. A carta apresentava seus signatários como sujeitos de uma Nação
democrática “onde os cidadãos podem exercer plenamente seus direitos
sem discriminação de qualquer espécie”. Ao realizar uma profunda crítica
à destinação de verbas públicas para as instituições privadas no país, assim
como antevendo os conitos e confrontos no interior da Constituinte, a
carta declara o compromisso com o direito de todos os brasileiros “à educação
pública básica comum, gratuita e de qualidade, independentemente de
sexo, cor, idade, conssão religiosa e liação política, assim como da classe
social ou da riqueza regional, estadual ou local”. A carta a partir de tal
fundamento aponta um conjunto de proposições para garantir o acesso
obrigatório à educação ao ensino fundamental, o atendimento em creches
e pré-escola aos decientes físicos, mentais, sensoriais, ao ensino do então
2º grau aos jovens e adultos. Apontava a necessidade de estabelecimento
de “uma carreira nacional do magistério, para todos os níveis de ensino,
provimento de cargos por concurso público, condições satisfatórias de
trabalho, aposentadoria com proventos integrais e direito à sindicalização”.
Sobre as condições de nanciamento, a carta indicava que os recursos
públicos deveriam ser destinados exclusivamente aos sistemas de ensino
criados e mantidos pela União, Estados e Municípios. Apontava ainda que
os investimentos em merenda escolar não deveriam ser considerados gastos
com educação. (CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO,
1986, p. 1-5).
No já referido debate na Subcomissão de educação de 21 de abril
de 1987, o Constituinte Álvaro Valle (PL-RJ), ao defender a garantia do
direito à pré-escola, manifestou restrição à ideia de que os recursos públicos
deveriam ser destinados à escola pública, a partir de uma operação discursiva
em que a escola pública é apresentada como ineciente, por meio da qual
visa a demonstrar, inversamente, a eciência da educação privada. Sem
qualquer evidência das armações, o discurso se mostra comprometido
com o objetivo maior de atendimento dessa demanda.
No contexto do debate travado na Subcomissão, Florestan Fernandes
se contrapôs a tais argumentos, evidenciando como as escolas privadas
eram beneciadas por isenções tributárias que favoreciam os seus lucros e
que a referida eciência não seria mais que uma fantasia.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
208 |
Na discussão inicial, apontava a necessidade de extinção do
analfabetismo para crianças e adultos. Apontou que o país tinha 50
milhões de analfabetos e que o Mobral não cumpriu seus objetivos, como
a reformulação da organização do Sistema de Ensino e, por conseguinte,
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
14
; a criação de um Conselho
Nacional de Desenvolvimento da Educação que deveria estar voltado a
todos os graus de ensino. Considerava ele que as políticas educacionais
deveriam ter maior perenidade, em vez da condição de subordinação a
interesses políticos imediatos. Por isso, defendeu a construção de um Plano
Democrático na área da educação capaz de prever metas de atendimento no
tempo, beneciando os alunos, de qualquer camada social, de modo que
pudessem chegar até à universidade. Estas orientações deveriam assegurar
à recuperação da dignidade da escola como unidade básica do sistema de
ensino (BRASIL, 1988b, p. 22).
Em sua abordagem, Florestan ampliava a compreensão sobre
a democracia, uma síntese que singulariza a relação entre o PT e os
movimentos sociais naquela circunstância. Estavam em causa novos
padrões de representação social e a transcendência do circuito que cingia
a democracia ao sufrágio universal. Ao avesso das práticas e discursos
que pretendiam mitigar a participação social e enfraquecer a ampliação
do espaço público, apresentava a indissociabilidade entre democracia
e planejamento para garantia da educação, justamente como forma de
diminuir a submissão da política pública às práticas políticas movidas pelas
relações de clientela e pelo patrimonialismo reconhecidos como marcas
históricas da cultura política brasileira.
Note-se que, ao alargar a visão sobre a democracia, amplia a
possibilidade de incidência de diferentes setores da sociedade nas denições
sobre política educacional, tornando possível a atualização ou mesmo a
mudança de pressupostos e ações previstas nos programas eleitorais que,
no contexto da redemocratização e das condições de realização das eleições,
eram pouco conhecidos pelos eleitores. O problema democrático assim
posto lança questões sobre as formas de representação política e sobre as
14
Florestan se referia à Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 209
relações entre o planejamento, o saber e o poder, especicamente, no caso
da educação.
Baia Horta (1998, p. 217) tratou da questão indicando que a
referida articulação, sendo dialeticamente tratada, pode ensejar no âmbito
do planejamento a consciência do poder; inversamente, a abordagem
funcionalista torna o planejamento um instrumento do poder.
Planejar a educação a partir do debate e da participação social
signicava a possibilidade de que os conitos e as assimetrias de todas as
ordens fossem tratados no âmbito da esfera pública (ARENDT, 2014,
p. 64-71), alargando-a e tornando possível a ampliação da consciência
social sobre o signicado na educação. Tratava-se de elevar os patamares
de consenso sobre os objetivos, as metas e as bases de nanciamento da
educação nacional, especialmente pública, com o forte intuito de consagrar
direitos e mitigar os deslocamentos e ataques que pretendiam sustentar
o discurso sobre as carências e o acometimento aos fundos públicos.
Mostrava-se possível não mais reduzir a esfera pública às decisões de Estado.
As propostas apresentadas pelo Fórum da Educação na Constituinte
em Defesa do Ensino Público trataram da participação social na elaboração
e controle da política educacional e de seu planejamento.
Previa que competiria à União a elaboração do Plano Nacional
de Educação, com a participação dos Estados, Distrito Federal e
Municípios (art. 16) e a regulamentação, pela lei, das responsabilidades
dos Estados e Municípios, com a participação da União, visando
assegurar padrões de qualidade (art. 17). O artigo 18 previa também
que a lei deveria regulamentar a participação da comunidade escolar
(professores, estudantes, funcionários e pais), da comunidade cientíca
e das entidades representativas da classe trabalhadora em organismos
democraticamente constituídos para a denição e controle na execução
da política educacional em todos os níveis (federal, estadual e municipal)
(BRASIL, 1988b, p. 243).
O aperfeiçoamento da democracia por meio da ampliação do
espaço democrático, público e comum, e a perspectiva de planejamento
da educação por parte do Estado deveriam estar voltados à garantia de
Marcelo Augusto Totti (Org.)
210 |
uma educação para todos os brasileiros, sem distinção de sexo, raça,
idade, conssão religiosa, liação política ou classe social (art. 1º) visando
o “desenvolvimento do saber crítico e compromisso com a realidade
social e sua transformação”. Estava em questão “o desenvolvimento
da capacidade de pensar, julgar e agir” (FÓRUM DA EDUCAÇÃO
NA CONSTITUINTE EM DEFESA DO ENSINO PÚBLICO E
GRATUITO, 1987 apud BRASIL, 1987a, p. 1226-1227). A ampliação
do direito estava consubstanciada na garantia de educação básica: ensino
de primeiro grau obrigatório de 8 anos, extensivo aos jovens e adultos que
a ele não tiveram acesso; ensino de segundo grau, como segunda etapa da
do ensino básico, como direito de todos, sendo oferecido como formação
geral ou prossionalizante e formação de professores para as séries iniciais
do primeiro grau e da pré-escola. As Instituições de Ensino Superior
deveriam ter plenamente garantidas sua autonomia pedagógica, cientíca,
administrativa e nanceira como condições de padrão de qualidade e da
garantia da soberania cultural, cientíca, artística e tecnológica do país. Para
tanto, o texto apontava a necessidade de vinculação de recursos: a União
deveria aplicar nunca menos de 13%, e os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios, no mínimo 25% da Receita Tributária, exclusivamente na
manutenção e desenvolvimento dos sistemas ociais de ensino. No mesmo
sentido, o salário-educação era rearmado como contribuição social,
devendo ser destinado, exclusivamente, ao ensino público (FÓRUM DA
EDUCAÇÃO NA CONSTITUINTE EM DEFESA DO ENSINO
PÚBLICO E GRATUITO, 1987 apud BRASIL, 1987a, p. 1226-1227).
Observe-se que a grande maioria das entidades que participaram
das reuniões da Subcomissão apresentou documentos com reivindicações
e proposições para o país. Destaque-se que as entidades a se organizar no
Fórum, como espaço de formulação e articulação das forças progressistas
e de esquerda, constituíram-se e se apresentavam de maneira singular, isto
é, como sujeitos da elaboração da política pública na área da educação.
Ao se tornarem visíveis, naquela circunstância, as entidades de educadores
contribuíam para que a sociedade conhecesse e compreendesse seu projeto,
bem como para que se dissipasse a opacidade dos interesses e movimentações
dos setores privatistas.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 211
Isso marca a singularidade de atuação do Fórum, que instalava
e anunciava novas dinâmicas de exercício da cidadania no Brasil, bem
como de cada uma das entidades que dele participaram, papel ativo e
relevante nos processos que ensejaram diálogos, negociações, rupturas,
convergências, continuidades e descontinuidades discursivas e políticas,
e marcaram os confrontos, acordos e sínteses durante a Constituinte
(ROCHA, 2015, p. 122).
No contexto da ação da bancada do PT e dos partidos de esquerda,
Florestan foi um interlocutor comprometido com o projeto de educação
por eles apresentado, que alimentou e foi alimentado pelas informações
e formulações partidárias. Tal relação de reciprocidade contribuiu
para o deslocamento de certa exclusividade dos partidos políticos e dos
parlamentares no debate sobre temas nacionais, ao mesmo tempo em que
fortaleceu práticas e experiências democráticas no interior dos próprios
partidos, as quais pretendiam levar em conta os desaos gerais e especícos
dos sindicatos e movimentos sociais. Ainda nesse processo, a relação política
de mútua colaboração e reexão lançava questões sobre a legitimidade
da representação, isto é, sobre a identicação entre representantes e
representados e sobre a relevância da relação entre eles de forma sistemática.
Cabe ainda destacar que as várias manifestações das entidades e
a constituição do espaço da Subcomissão como lugar de expressão das
pluralidades, diferenças e conitos colaboraram para a erosão das imagens
de uma nação una, indivisa e homogênea construídas pelos militares.
Havia assim uma ênfase no respeito pelas especicidades culturais de um
país pluriétnico e plurilíngue, evocada pelas entidades indigenistas e pelos
representantes das nações indígenas; pelos debates sobre a desigualdade
racial e o racismo; e pelas denúncias e proposições dos seringueiros que,
como povos da oresta, tornaram conhecíveis e reconhecíveis experiências
e imagens sobre os territórios, sobre a relação com a natureza, com a
alimentação e com diferentes formas de conhecimento.
Florestan fortaleceu o uxo dessas ideias, tornando possível desvelar
o movimento interno e profundo da sociedade brasileira.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
212 |
Temos que seguir um novo caminho, um caminho que é de respeitar
as culturas, não nos museus; na sua integridade como realidade
viva, como ele falou aqui. Estamos vivos e criamos vivendo [...].
Vimos aqui o homem total, o homem que não se decompõe e que
sabe fazer a defesa de sua causa de uma maneira íntegra e global.
15
(BRASIL, 1988a, p. 176).
entre dIreItoS e prIVIlégIoS: a dISputa peloS fundoS públIcoS
O debate sobre o destino dos recursos públicos foi tratado pela
maioria das entidades, pesquisadores e intelectuais que se manifestaram
nas audiências da Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes, entre 23
de abril e 20 de maio de 1987
16
. As discussões e as proposições revelaram
números, desvelaram processos e tornaram possível a identicação das
antinomias acerca das responsabilidades do Estado, do alcance dos direitos
no caso da educação e das condições de seu nanciamento.
Dentre as entidades do Fórum, pesquisadores e intelectuais que
se manifestaram favoravelmente à destinação de recursos públicos
exclusivamente à escola pública, merece destaque a manifestação do
professor Jaques Veloso
17
. A partir de sua investigação sobre o salário-
educação, tornou público que a arrecadação desta contribuição social, em
1986, era da ordem de 12 bilhões de cruzados, 35% da despesa realizado
pelo Ministério da Educação, e que, mais da metade desse valor nanciava
bolsas de estudo em vez do ensino público (ROCHA, 2015, p. 165).
As revelações causaram grande impacto, seja pelo mérito seja pela
necessidade de construção de estratégias para obtenção das informações
que, por óbvio, deveriam ser públicas. Evidenciou-se que a mercantilização
da educação pelos governos militares não sofreu rupturas ou sequer
inexões no governo da Nova República; antes sustentava-se a indistinção
15
Florestan Fernandes se referia à manifestação de Ailton Krenak na Audiência Pública da Subcomissão de
Educação, Cultura e Esportes, em 29 de abril de 1987
16
Entre 7 de abril de 1987, quando tiveram início os trabalhos, e 25 de maio de 1987, data de conclusão das
atividades da Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes trabalhos, ocorreram 35 reuniões. Nesse período
ocorreram oito audiências. Quarenta e duas pessoas se manifestaram (ROCHA, 2015, p. 287-290).
17
O professor Jaques Veloso se manifestou como representante da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (ANPEd).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 213
entre o público e o privado como característica da cultura política e das
práticas do Estado. As ambiguidades presentes no discurso do Ministro da
Educação, Jorge Bornhausen, na Subcomissão demonstravam-no de modo
inescapável. Declarando-se liberal, defendia o ensino livre à iniciativa
particular, vedada a transferência de recursos públicos às entidades com
ns lucrativos. Todavia, retomava as formulações dos textos constitucionais
de 1946, 1967 e da Emenda Constitucional de 1969, que previam a
gratuidade apenas para aqueles que comprovassem falta ou insuciência
de recursos e efetivo aproveitamento, induzindo que os níveis ulteriores à
educação obrigatória, segundo ele de 7 a 14 anos, fossem prioritariamente
oferecidos pelo setor privado, devendo o Estado atender aos “carentes” por
meio de bolsas de estudo.
As operações políticas que pretendiam perpetuar o Estado como
articulador das orientações liberais se entrecruzam com os discursos que
promoviam o deslizamento semântico entre o público e privado. Foi o
caso da manifestação da Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros
(BRASIL, 1988b, p. 291), que, mobilizando um sentido ambíguo de
humanidade, legitimaria as práticas individuais e associativas realizadas em
seu nome e atribuiria ao Estado, de caráter supostamente educador, o papel
de reconhecê-las para com elas compartilhar a oferta de educação por meio
da transferência de recursos públicos. Tal operação discursiva mostrava-
se como fundamento de uma difusa pluralidade social que, portadora de
ideais de humanismo, faria frente a um imaginado Estado absoluto – o
qual supostamente competiria com a família no que diz respeito ao poder
de educar. Sem permitir a explicitação de intencionalidades ou antinomias,
o discurso xa verdades que amparam a condição intercambiável de
signicados em benefício da luta política pelo acesso aos fundos públicos
(ROCHA, 2015, p. 174-7).
Outras propostas estavam enfeixadas nos discursos liberais,
notadamente aquelas que identicavam descentralização e municipalização
da educação como marca das relações federativas, fazendo crer que
os municípios deveriam assumir mais responsabilidades na oferta da
educação, devendo para tanto receber mais recursos. A orientação
apresentada como válida era a de que a municipalização aproximaria os
Marcelo Augusto Totti (Org.)
214 |
cidadãos de comunidades locais de contornos pouco nítidos, aproximando
os munícipes do poder
18
. A desconsideração das relações de clientela,
das transações entre poder econômico e o poder público, das relações de
mando e obediência, das desigualdades regionais e sociais, da presença
de várias formas de violência, marca de relações societárias em termos
históricos no Brasil, favoreciam a tese da municipalização, tendo como
horizonte próximo a redução da participação do Estado no nanciamento
das políticas públicas e permitindo que os setores privados tivessem
melhores condições de exercer pressão sobre os executivos e parlamentos
locais, já que distantes e protegidos do controle mais efetivo e reconhecível
do Estado Nacional (ROCHA, 2015, p. 169-173).
Quando teve início a discussão do anteprojeto do texto de educação,
ainda inconcluso, apresentado pelo relator, senador João Calmon, as
contradições manifestas nos debates da Subcomissão se expressaram
de maneira indubitável. As propostas que ampliavam direitos estavam
mescladas com distintas formas de deslocamento dos recursos públicos
materializando vetores ideológicos do liberalismo. Florestan demonstrou
o quanto o relatório abrigava diferentes aspectos das propostas do
governo Sarney, a maioria das quais era coincidente com os interesses
dos setores privatistas, sem traduzir e dignicar o trabalho intenso e rico
da Subcomissão. Na sessão de 14 de maio, ao armar que o relator João
Calmon se apresentava mais como instrumento do Governo do que do
processo vivido no âmbito da Subcomissão, Florestan identicou que a
crise do PMDB estaria esmagando a Assembleia Nacional Constituinte,
quase antevendo a situação desencadeada pela formação do chamado
“Centrão” e sua conduta em relação ao regimento interno
19
.
18
Ver a esse respeito as manifestações de Gilda Poli Loures, representando o Conselho Nacional de Secretários
em 23 de abril de 1987, do presidente do Conselho Federal de Educação, Fernando Fonseca (BRASIL, 1988b,
p. 81-83).
19
O Movimento autodenominado Centrão foi um bloco suprapartidário, de centro-direita, de perl conservador,
contrário à democracia participativa, que se constituiu para defender as propostas do governo Sarney em
contraposição ao projeto apresentado pela Comissão de Sistematização. Entre as questões controversas, estavam
o tempo do mandato presidencial e da forma de governo. De acordo com o Regimento em vigência, ao longo
do ano de 1987, a maioria dos parlamentares ligados à Aliança Democrática não teria condições de alterar o
projeto apresentado por Cabral, que previa quatro anos de mandato para Sarney e a adoção do parlamentarismo
entre outras questões. Visando a combater o que chamavam a “tirania das minorias”, propuseram alterações
regimentais, por meio de uma resolução, aprovadas em 3 de dezembro de 1987. A partir da mudança
regimental, para que um texto destacado fosse mantido seria necessária maioria absoluta. Tratava-se de deslocar
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 215
Os debates que se realizaram na Subcomissão nas sessões seguintes
20
se desenvolveram a partir do anteprojeto apresentado pelo relator João
Calmon (BRASIL, 1987c). Marcadamente, este previa a expansão do
direito à educação, a ampliação da vinculação de recursos assegurada a
liberdade da iniciativa privada de atuar na área educacional, tendo para
isso acesso aos recursos públicos.
O dever do estado deveria garantir o ensino fundamental (regular
ou supletivo), sendo o ensino fundamental regular, obrigatório e se
constituindo em direito público subjetivo, gratuito com duração de
oito anos; além de garantir oferta de vagas em creches e pré-escolas, e
atendimento ocializado e gratuito às pessoas com deciência.
O texto previa ainda que os estados e o Distrito Federal organizariam
seus sistemas de ensino e que a União teria papel supletivo na oferta do
ensino em todo país, a exemplo do que previa a Constituição de 1967 de
1969
21
– ressalvando-se que, nas duas constituições dos governos militares,
tal caráter supletivo estava restrito aos limites das deciências locais.
O relator ampliou a perspectiva de vinculação de recursos da União
de 13% para 18%,
22
e dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, em
no mínimo 25% da receita resultante de impostos, inclusive provenientes
de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino, devendo
ser excluídos desses valores o auxílio-suplementar aos educandos.
Contudo, tal ampliação se combinava com três artigos que,
relacionados, favoreciam a transferência de recursos públicos para o setor
privado. O primeiro se referia à liberdade do ensino à livre iniciativa; o
para o plenário e para o Colégio de Líderes a negociação das principais questões a serem tratadas. Em função
dessa manobra regimental, foram aprovados o regime presidencialista, o mandato presidencial de cinco anos, e
rejeitadas várias propostas voltadas a realização ou ampliação de direitos (MUNHOZ, 2011).
20
Referimo-nos às sessões de 18 e 20 de maio de 1987, quando ocorreram as discussões do anteprojeto
apresentado pelo senador João Calmon, e a sessão de 25 de maio do mesmo, ano na qual foi apresentada a
redação nal do projeto.
21
Conforme, respectivamente os artigos 169 da Constituição de 1967 e 177 da Emenda Constitucional nº 1
de 1969 (BRASIL, 1969).
22
A proposta de vinculação de 13% da receita tributária pela União e 25% no mínimo pelos Estados, Distrito
Federal e Municípios foi defendida por várias entidades, entre as quais o Fórum da Educação na Constituinte
em Defesa do Ensino Público e Gratuito no documento intitulado Proposta Educacional para a Constituição
(BRASIL, 1988a, p. 243).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
216 |
segundo dizia respeito à regulamentação da transferência de recursos
públicos para o setor privado e o terceiro fazia referência a uma contribuição
tributária cujas características eram semelhantes às do salário-educação.
João Calmon, o relator, defendia o texto mobilizando na Subcomissão
uma espécie de temor projetivo em torno do risco de que os que chamou de
inimigos da educação pudessem destruir a vinculação. Melhor explicando:
o aumento da vinculação se constituía em recurso para atender à rede
pública e privada.
Evocando a lutas em defesa da escola pública nas décadas de 1950
e 1960 e as derrotas na elaboração da LDB de 1961, Florestan referiu-se
novamente ao relatório
23
. Ao reconhecer o entrelaçamento entre as lutas de
sua vida e as dinâmicas da sociedade brasileira, armou:
Foi doloroso para mim encontrar, dentro do relatório, essa muralha,
uma muralha que vai nos jogar num precipício se não soubermos
nos entender aqui e chegarmos a um entendimento comum de
natureza republicana, efetivamente democrático na sua substância
e que permita entender que se é preciso resguardar os recursos
públicos dos chamados mercadores de ensino, é preciso resguardar
os recursos públicos em todos os outros ns, destinando-os à
criação do sistema público de ensino [...] capaz de levar a todos
os pontos, a todos os cantos do Brasil, o ensino fundamental,
novas oportunidades educacionais para todos, e fazer a revolução
educacional e cultural a partir da escola. (BRASIL, 1988b, p. 470).
Quando da apresentação de novo anteprojeto pelo relator senador
João Calmon, em 18 de maio de 1987, Florestan retomaria a questão
do público e do privado, não deixando espaço para ambiguidades que
fortalecessem a identicação semântica entre o que se congura como
substantivamente distinto: os interesses públicos e os privados; o Estado e
o mercado; os direitos e os privilégios. Dizia ele:
Agora, o ponto mais importante para mim era o que dizia respeito
à iniciativa privada. Não estou envolvido numa cruzada contra
a iniciativa privada, não sou inimigo da escola, seja ela leiga ou
23
28ª Reunião da Subcomissão ocorrida em 15 de maio de 1987.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 217
confessional [...]. Estou envolvido numa cruzada diferente, de que
os recursos públicos sejam investidos, não prioritariamente, mas
exclusivamente no sistema público de ensino e isso porque , de
uma lado a empresa de ensino, enquanto operação industrial e
mercantil, como se qualica no passado, ela própria deve prover
os lucros da sua dinâmica interna e é lamentável, que no Brasil, o
Ministério da Educação tenha intervido, de uma forma reiterada ,
no sentido de impedir que essa dinâmica funcione adequadamente.
(BRASIL, 1988b, p. 493).
A crítica fundamental se referia ao processo de mercantilização
levado a cabo pelo MEC por meio de bolsas de estudo.
Então, o Ministério da Educação não deveria fazer gentileza com
o chapéu dos outros: quem escolhe uma escola privada para seus
lhos, uma escola-pagamento, está sujeito a pagar o valor daquele
ensino [...]. O Ministério da Educação jamais deveria ter feito
isso; se ele reconhece a liberdade de existência do ensino privado,
ele deve reconhecer que o ensino privado tem que seguir critérios
próprios e determinação do seu valor intrínseco. (BRASIL, 1988b,
p. 493).
Também a transferência de recursos públicos para instituições de
ensino confessionais foi fortemente criticada por ele pelas mesmas razões.
A opacidade das operações de deslocamento de fundos públicos para o
setor privado e a contradição interna do discurso liberal se tornavam
evidentes. A defesa da livre concorrência se confundia com a liberdade
dos entes privados de disputar as políticas do Estado e os recursos sob
seu controle.
Completa essa abordagem a preocupação expressa por Florestan
com a municipalização que, em face da heterogeneidade dos municípios
brasileiros, iria se tornar uma denição perigosa no que se refere à garantia
da oferta de educação pública (BRASIL, 1988b, p. 564).
Orientavam as concepções defendidas por Florestan os objetivos
a serem estabelecidos para a educação. Realizando a crítica à repetição
mecânica de denições constitucionais anteriores, destaca que algumas
Marcelo Augusto Totti (Org.)
218 |
delas poderiam ser denidas como jusnaturalistas e, portanto, indevidas
para um texto constitucional. Por outro lado, distingue democracia e
igualdade para demonstrar que as denições não poderiam ser tomadas
como sinônimos, posto que a solidariedade humana estaria sujeita a
várias limitações, e o bem comum não ultrapassaria a condição de uma
proclamação ideológica, em particular, difundida pela igreja católica.
O texto por ele indicado pretendia assegurar a igualdade de direitos
por meio da igualdade de oportunidades. A educação deveria ser considerada
um direito fundamental, universal e inalienável, garantido pelo Estado,
visando ao desenvolvimento da personalidade humana, não só “de quem
pode, de quem é rico, mas a personalidade humana daquele que é oprimido
e excluído”, de modo que a escola não deveria subalternizar as classes por
meio da ideologia de um setor dominante (BRASIL, 1988b, p. 526). Estava
em questão a relação entre educação e a diminuição das desigualdades
estruturais produzidas pelo capitalismo voltada para conquistar uma
sociedade mais justa e igualitária como objetivo estratégico. Considerando
o trabalho como valor maior em qualquer sociedade, por meio do qual
o homem mudou a natureza, criou a cultura e deu origem à história,
Florestan propôs que as aptidões para sua realização se constituíssem em
um dos objetivos da educação. Também indicava, como um dos objetivos
da educação, a formação de uma consciência crítica das condições de
existência e a preparação para vida em uma sociedade democrática.
24
Malgrado ser aprovado pela Subcomissão, o relatório que previa,
no artigo 7º, a proibição de repasse de verbas públicas para criação e
manutenção de entidades de ensino particular
25
(BRASIL, 1988b, p.
565), a discussão foi recuperada por João Calmon quando tiveram início
os debates na Comissão VIII. Retomava então a iniciativa de negociação
com os setores privatistas, explorando a diferença entre o artigo 7º e o
artigo 11º, que se referia à destinação de verbas públicas para o ensino em
24
O texto da Emenda 800019-1 era o seguinte: “Art. 1º - Educação, direito fundamental, universal e inalienável,
é dever do Estado e será promovida. visando ao desenvolvimento pleno da personalidade humana, a aquisição
de aptidões para o trabalho, a formação de uma consciência social crítica e a preparação para a vida em uma
sociedade democrática” (BRASIL, 1987b, p. 8).
25
A redação do art. 7º do anteprojeto aprovado na Subcomissão era a seguinte: “O ensino é livre a iniciativa
privada, observadas as disposições legais, sendo proibido o repasse de verbas públicas para criação e manutenção
de entidades de ensino particular”.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 219
geral, não apenas ao ensino público. No transcorrer do debate, o relator da
Comissão VIII, Artur da Távola (PMDB-RJ) incorporou as formulações
defendidas por João Calmon.
O relator elaborou dois substitutivos que tinham o acordo da chamada
centro-direita, mas terminaram por serem rejeitados pelos parlamentares
identicados com a chamada centro-esquerda. Rejeitados pela Comissão
VIII, ambos foram encaminhados à Comissão de Sistematização, junto
com as emendas que a maioria do plenário se recusou a examinar
26
.
Sob a forte e opaca pressão da Federação Nacional dos
Estabelecimentos de Ensino (FENEM) – e sem a ampla participação
social vericada na Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes –,
estabeleceu-se uma aliança entre os constituintes ligados às empresas de
comunicação, de ensino e aos evangélicos visando a constituir maioria na
Comissão VIII que, todavia, conclui seus trabalhos sem lograr a aprovação
dos substitutivos propostos pelo relator. O material produzido foi enviado
à Comissão de Sistematização com uma carta, subscrita por 37 dos seus
membros, retomando representações que evocam o direito de as crianças
carentes terem acesso ao que apresentam como excelência da escola privada
a partir de uma sequência de simplicações, entre as quais consta a suposta
recusa da elitização da escola brasileira, que estaria materializada na escola
para ricos e escola para pobres.
Os dissensos se tornariam mais intensos na Comissão de
Sistematização.
27
Florestan se manifestaria na sessão de 24 de junho, quatro
dias antes da discussão do anteprojeto do relator. Falando em seu nome e
do PT, fazia referência às notícias que indicavam que a exclusividade de
recursos públicos para escola pública teria sido eliminada. Uma vez mais
se manifestava sobre a impossibilidade de um grande futuro para o país
caso o analfabetismo e a evasão escolar não fossem superados e as camadas
pobres não tivessem acesso ao então ensino de 2º e 3º graus. Anunciava
que a Assembleia Constituinte tinha falhado em sua principal missão de
26
O Segundo substitutivo do relator foi apresentado e discutido em sessão de 11 de junho 1987. O primeiro
substitutivo foi retomado e discutido em 13 de junho de 1987.
27
A Comissão teve como presidente o senador Afonso Arinos de Melo Franco (PFL-RJ) e como relator o
deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
220 |
revitalizar o sistema público e amparar uma revolução democrática, no
contexto de um amplo processo de revolução educacional.
No contexto da apresentação de emendas que pleiteavam a destinação
de recursos públicos para instituições privadas, Florestan apresentou
emenda que recolocava a questão dos fundos públicos para a escola
pública. O discurso de Sandra Cavalcanti (PFL-RJ), para se manifestar de
forma contrária, deslocava a educação do campo dos direitos para o dos
serviços, expressão que teria o atributo de igualar o que é público e privado
e justicar a repartição de recursos entre instituições.
No contexto dos trabalhos da Comissão, teve origem o
autodenominado Centrão, o bloco suprapartidário apoiado pelo governo,
que expressava as contradições da Aliança Democrática, no contexto
dos efeitos de uma profunda crise do Estado que marcou a transição
democrática. Os prazos para conclusão da Comissão de Sistematização não
foram cumpridos até a aprovação do novo Regimento, em 3 de dezembro
de 1987
28
; após isso, a Comissão de Sistematização deixou de existir e
seria substituída pela gura do relator geral, cando a redação nal sob
responsabilidade de uma comissão especíca (ROCHA, 2015, p. 222).
O Centrão apresentou um projeto alternativo de constituição
visando a substituir o Projeto A da Comissão de Sistematização, que, para
Florestan, pouco se distinguiam. Em verdade, para ele, a ação do Centrão
estava voltada a proteger interesses econômicos de diferentes setores da
burguesia e também interesses particularistas (FERNANDES, 1989, p.
106), mobilizando de forma recorrente elementos das representações de
matrizes de pensamento autoritárias que marcaram nossa cultura política
e a formação militar. Uma vez mais a ideia de um povo homogêneo
que partilha um destino comum amparava os interesses das elites e a
desqualicação e deslegitimação das manifestações de diferentes setores
da sociedade.
A defesa dos interesses privados da área da educação continuava a
ser um dos eixos políticos que articulava o Centrão e se constituiu em
28
O Regimento foi aprovado com 290 votos a favor, 16 contrários e três abstenções, os partidos de esquerda e
parte do PMDB se retiraram do Plenário.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 221
vetor da elaboração dos Projetos B e C
29
. No contexto da tramitação do
projeto B, Florestan apresentou emenda supressiva do artigo que garantia
transferência de recursos para as escolas comunitárias, a qual também foi
derrotada. Ele levou até as últimas consequências as proposições das forças
sociais que se apresentaram como sujeitos da elaboração na nova carta
constitucional, alargando o espaço público e fortalecendo a democracia.
Ao manifestar-se na sessão de 14 de novembro, Florestan recuperava
fundamentos losócos e práticos do que chamou de pluralismo
democrático na Educação, de acordo com os quais, diferentes tipos de
escola concorrem para resolver o atendimento das necessidades básicas do
ensino. Todavia, apontava que:
Se o Estado tiver de patrocinar todos três tipos de escolas, então,
não há razão nenhuma para a existência de um pluralismo. O que
existia seria um parasitismo dos tipos de escolas que não forem
estatais sobre os recursos públicos, postos à disposição da Educação.
(FERNANDES, 1988, p. 112).
Promulgada a Constituição, os princípios estabelecidos
reconguraram o campo do direito à educação no Brasil, especialmente
se comparados às constituições anteriores. O direito à educação (art.
205), concebido como dever do Estado e da família, a ser promovido
com a colaboração da sociedade se traduz em três grandes objetivos:
pleno desenvolvimento da pessoa, preparo para o exercício da cidadania e
qualicação para o trabalho (BRASIL, 1988c).
O texto constitucional se articula em torno de três princípios
indissociáveis. O primeiro diz respeito à liberdade. O artigo 206 trata
do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; da liberdade de
aprender e ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.
Tal liberdade está associada no texto à gestão democrática da educação. O
29
Funcionando sob as regras no novo Regimento interno, o plenário tratou dos projetos B, C e D. O Projeto
B foi distribuído em 05 de julho de 1988, a partir do que ocorreu a discussão das emendas. Foi elaborado o
Projeto C, distribuído pela Comissão de Redação em 15.09. Feitas as emendas, a discussão em plenário se
desenvolveu entre 19 a 21 de setembro. Nova versão foi materializada no projeto D, apresentado em 21 de
setembro foi discutido e votado em Plenário em 22 de setembro com votação global. Em 5 de outubro, ocorreu
a promulgação e publicação da Constituição.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
222 |
segundo se refere ao papel do Estado na determinação de gratuidade e na
garantia de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola
(art. 206), assegurada a liberdade do ensino à iniciativa privada mediante
cumprimento de normas gerais da educação nacional e autorização e
avaliação do Poder Público (art. 209). O terceiro se refere à ascendência
da qualidade da educação à condição de direito expresso nas denições
relativas à valorização dos prossionais, por meio da garantia de piso
salarial prossional e ingresso exclusivamente por concurso público de
provas e títulos, garantido regime jurídico único para instituições mantidas
pela União (art. 206).
O dever do Estado para com a educação é previsto a partir de um
conjunto de determinações: ensino fundamental obrigatório e gratuito,
inclusive para os que a ele não tiveram acesso em idade própria, tornando-
se direito público subjetivo
30
; educação de jovens e adultos; progressiva
extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; atendimento
educacional especializado aos portadores de deciência, preferencialmente
na rede regular de ensino; atendimento em creche e pré-escola às crianças
de zero a seis anos de idade (art. 208). Pela primeira, a Constituição tratava
de todos os níveis e modalidades de ensino apontando para a conguração
da educação básica como direito (CURY, 2008).
Observe-se que a determinação da obrigatoriedade autoaplicável ou
as obrigações projetadas a partir da perspectiva de progressividade, associada
às competências estabelecidas para os entes federados a serem organizadas
em regime de colaboração
31
, atribuíam sentido à denição de realização
plurianual do Plano Nacional de Educação que, integrando as iniciativas
do poder público, deveria conduzir à erradicação do analfabetismo, à
universalização do atendimento escolar, à melhoria da qualidade do
30
O Direito Público Subjetivo é uma faculdade, incorporada à esfera jurídica do sujeito em face da determinação
normativa do direito objetivo. Trata-se de um instrumento jurídico institucional capaz de tornar efetivo o
direito na perspectiva de democratização do acesso à educação (CURY, 2005, p. 20).
31
De acordo com o artigo 211, à União competiria organizar e nanciar o sistema federal de ensino e o dos
Territórios, bem como prestar assistência técnica e nanceira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à escolaridade obrigatória; aos
Municípios caberia a responsabilidade de atuar prioritariamente no ensino fundamental e pré-escolar. Note-se
que tal prioridade, embora favorecesse a municipalização, não a tornava impositiva como pretendiam muitos
dos constituintes representantes do espectro de centro-direita.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 223
ensino, à formação para o trabalho e à promoção humanística, cientíca e
tecnológica do País.
Associados à retomada do planejamento da política educacional,
os direitos e responsabilidades assim congurados circunscreviam a
movimentação e a destinação dos fundos públicos. A vinculação da
receita de impostos e transferências – União 18% e Estados, Distrito
Federal e Municípios, 25%, no mínimo (artigo 212) – estava associada às
determinações do artigo 213, destinação de recursos às escolas públicas,
às escolas confessionais, comunitárias ou lantrópicas sem ns lucrativos
e à destinação de bolsas ao ensino fundamental e médio, apenas quando
demonstrada a falta de vagas e ressalvada a obrigatoriedade de o Poder
Público investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.
Essa conguração era estabelecida em um contexto em que diferentes
movimentos sociais formularam políticas diante do Estado e dos
constituintes, conferindo à Assembleia singularidade histórica (ROCHA,
2015, p. 229-233).
Por meio das garantias individuais e coletivas, a Constituição armou os
de baixo de direitos sociais e colou em suas mãos meios legais de autodefesa
e contra-ataque. O nó da conciliação foi desatado e a luta de classes não
permaneceria mais contida (FERNANDES, 2014, p. 289). Apoiados na
Carta Constitucional, esses sujeitos sociais seguiriam tornando a luta pelo
direito à educação e pelos fundos públicos em uma questão nacional e
democrática de primeira grandeza nas décadas seguintes.
Florestan, um militante incansável, nos dizeres de Antonio Cândido
(apud MARTINEZ, 1998, p. 37), sabia que a eles caberia seguir abrindo
os circuitos da história.
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Seção IV
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| 229
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1
Francisco Luiz Corsi
2
I – Introdução
Florestan Fernandes foi um dos principais autores que discutiram
a questão do desenvolvimento do capitalismo no Brasil a partir de uma
perspectiva crítica, objetivando a emancipação da classe trabalhadora. A
contribuição de Florestan transcende de muito essa questão. Poderíamos
colocá-lo como um dos grandes interpretes do Brasil ao lado de Caio
Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire. Entretanto, nosso
objetivo aqui é bastante limitado, pretendemos apenas tecer algumas breves
reexões sobre a visão do autor acerca do capitalismo dependente.
No intenso debate sobre o desenvolvimento, entre os anos de
1950 e 1970, Fernandes tinha uma posição crítica em relação aos
desenvolvimentistas, que desde logo cou evidente na sua polêmica
com Guerreiro Ramos, que defendia uma sociologia que desse conta das
Capítulo baseado amplamente em exposição realizada no I Encontro Sobre Pensamento Social Brasileiro da
UNESP de Marília: 100 anos do nascimento de Florestan Fernandes e em Corsi (2017).
Professor de Economia Política e Economia Brasileira da Faculdade de Filosoa e Ciências (FFC) da
Universidade Estadual Paulista (UNESP).
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p229-246
Marcelo Augusto Totti (Org.)
230 |
especicidades da sociedade brasileira e isto implicava, segundo Ramos,
desenvolver “recursos conceituais, metodológicos e teóricos especícos
e exclusivos” para compreender a nossa complexa realidade. Florestan
considerava essa posição insustentável, pois a teoria sociológica teria validade
universal. Porém, isso não signicava de forma alguma que o cientista social
não devesse debruçar-se sobre as especicidades da realidade brasileira,
aplicando mecanicamente a teoria na análise da sociedade nacional. Pelo
contrário, o cientista social deveria buscar ajustar-se constantemente ao seu
objeto de pesquisa, só assim poderia produzir conhecimentos relevantes
(FERNADES, 2008, p. 29)
3
.
As insuciências da análise dos desenvolvimentista não se
reduziriam, no entanto, apenas a perspectiva metodológica, referiam-se
também a incapacidade desses teóricos articularem organicamente na
análise os processos históricos, sociais, econômicas e culturais para explicar
o desenvolvimento da América Latina. Deciência presente, por exemplo,
nas contribuições da CEPAL, que ao tentar explicar o desenvolvimento
latino-americano enfatizou a economia e não conseguiu perceber que sem
uma discussão das estruturas, dos processos sociais e políticas e da luta de
classes não seria possível entender as contradições e os inúmeros obstáculos
ao desenvolvimento do capitalismo na região. Ponto assinalado por Cardoso
(CARDOSO; FALETTO, 2011) e que foi incorporado por Fernandes. A
esse respeito, uma de suas principais contribuições é a sua discussão acerca
do capitalismo dependente (FERNANDES, 1981a, 1981b, 2008).
O desenvolvimentismo desde o nal da década de 1950 sofria
duras críticas. Para Paul Baran (1984), que inuenciou a teoria da
dependência e Fernandes, o subdesenvolvimento seria resultado do
próprio desenvolvimento contraditório do capitalismo, que seria desigual,
Esta questão é polêmica. Os teóricos cepalinos comungavam as preocupações de Guerreiro Ramos, criticando
a universalidade da teoria econômica, pelo menos no que se refere a lei das vantagens comparativas, um dos
pilares da teoria econômica. A crítica de Prebisch a essa validade universal foi importante para a elaboração do
Estruturalismo Histórico da CEPAL, uma das mais importantes contribuições latino-americana às ciências
sociais, apesar de seus limites e de sua forte carga ideológica. A teoria das vantagens comparativas não seria
falsa, mas não teria validade universal. Dessa forma, não seria possível aplicar os modelos de desenvolvimento
elaborados para outras realidades para a América Latina, sem levar em consideração as suas peculiaridades, que
explicariam porque aquela teoria não seria universal. Estas constatações levaram Prebisch a elaborar uma teoria
do subdesenvolvimento em contrapartida a teoria ortodoxa do desenvolvimento econômico. (RODRIGUEZ,
2009; SANTOS, 2011).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 231
combinado e hierárquico. Na fase monopolista do capitalismo, o
desenvolvimento autônomo estaria bloqueado para a periferia, que estaria
condenada ao subdesenvolvimento, a não ser que zesse a revolução
socialista, não obstante seu insuciente desenvolvimento.
A corrente marxista da teoria da dependência, cujos principais
representantes eram André Gunder Frank, Rui Mauro Marini e
Teotônio dos Santos, inuenciados por Baran, também advogavam
que na fase monopolista do capitalismo não haveria possibilidade de
um desenvolvimento autônomo na periferia, que estaria fadada ao
subdesenvolvimento, devido sobretudo à debilidade das burguesias
periféricas e a perda de grande parte do excedente econômico. Diante do
insuciente excedente, as burguesias latino-americanas imprimiam uma
superexploração do trabalho, o que requeria regimes autoritários. Os
países periféricos mais fortes, segundo Marini, para obter mais excedente
estabeleceriam uma relação imperialista com as regiões em seu entorno, um
subimperialismo. A expansão do capitalismo em escala mundial geraria,
portanto, o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. A única saída seria
a revolução socialista (VALENCIA, 2008).
A corrente liderada por Cardoso, fortemente inuenciada pelas
ideias da CEPAL e por Weber, defendia que a dependência não se reduzia
a relação de subordinação e a apropriação de excedente, que se impõe de
fora para dentro, mas seria uma relação incrustrada na própria estrutura
das sociedades periféricas. Para esta corrente também não existiria a
possibilidade de um desenvolvimento autônomo, pois não existiria uma
burguesia nacionalista capaz de sustentar um projeto de autonomia
nacional e a crescente internacionalização do capital boquearia a partir
da chamada internacionalização do mercado interno em meados dos anos
de 1950 saídas nacionalistas. O projeto desenvolvimentista careceria de
sustentação social e política. A única alternativa seria o desenvolvimento
associado, embora este não assegurasse a superação da miséria e das
desigualdades sociais, mesmo sem bloquear o crescimento econômico. A
estreiteza do mercado interno, ao contrário do que pensava Furtado, não
bloquearia o crescimento, que se sustentaria nos investimentos e no elevado
Marcelo Augusto Totti (Org.)
232 |
consumo das classes dominantes e médias (FIORI, 1995; MELLO, 2009;
CARDOSO; FALETTO, 2011).
Florestan Fernandes tinha pontos de contato com as diferentes
correntes da dependência. Enfatizava a articulação das determinações
externas e internas, ao mesmo tempo em que considerava ser a economia
mundial uma totalidade em movimento, na qual a periferia ocupa uma
posição subordinada. Discordava que a saída fosse o desenvolvimento
associado. Defendia a revolução socialista, como Marini, Frank e dos
Santos (PAIVA; SILVA, 2011).
Fernandes aprofunda essa discussão sobretudo nas suas obras
o Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, de 1972, e
Sociedade de classes e subdesenvolvimento, de 1968. Estas contribuições
vieram a luz quando o desenvolvimentismo já estava em crise aberta depois
do golpe militar de 1964, que evidenciou as ilusões dessa corrente, em
particular a crença na existência de uma burguesia nacionalista, capaz
de levar a cabo, em aliança com o proletariado, um projeto nacional de
capitalismo autônomo, embora outros obstáculos ao desenvolvimento
autônomo já se zessem presentes desde a década anterior em inúmeros
países latino-americanos e não apenas no Brasil. O esgotamento do
nacional desenvolvimentismo foi marcado por um acirramento da luta de
classes, à medida que a classe trabalhadora passou a denunciar o modelo
de desenvolvimento. A reação capitalista foi a implantação de regimes
ditatoriais em vários países da região em um contexto de agudização da
guerra fria, especialmente depois da revolução cubana. Tendo como pano
de fundo este contexto, as notas que seguem discutem o capitalismo
dependente, que seria o caminho pelo qual o capitalismo se desenvolveu
na América Latina.
O texto está dividido em dois itens, além desta introdução. Em
seguida, discutimos o capitalismo dependente segundo de Fernandes. Por
último, tecemos alguns comentários gerais.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 233
II – o capItalISmo dependente
Para entender o capitalismo dependente, Florestan retoma a discussão
do processo histórico de constituição da sociedade brasileira a partir de
uma perspectiva sociológica. Entender o processo de desenvolvimento do
capitalismo no Brasil e no conjunto da América Latina implicaria, para o
autor, discutir o processo de formação das sociedades latino-americanas
no bojo da expansão do capitalismo, da qual fazem parte, e das condições
encontradas tanto em Portugal e na Espanha quanto das encontradas
no novo mundo. Ou seja, Fernandes, seguindo os passos de Prado Jr
4
.,
considerava a formação da sociedade brasileira, que serviria de referência
para a análise da América Latina, como um dos elementos constitutivos
do processo de expansão capitalista a partir do século XVI. A compreensão
da estrutura e da dinâmica da sociedade e da economia brasileiras não
seria possível sem inseri-las na economia mundial, entendida como uma
totalidade hierarquizada e caracterizada pelo desenvolvimento desigual e
combinado de suas partes (FERNANDES, 1981a, 1981b).
O subdesenvolvimento teria surgido e se reproduz continuamente
no interior do processo de expansão capitalista. Constituiria um de
seus momentos. Dessa maneira, a continua reprodução da situação de
subdesenvolvimento faz com que este não seja uma etapa a ser superada,
mas sim uma forma de ser das economias periféricas dominadas pelo
capital e pelos países centrais. São evidentes a inuência de Furtado e
Prado Jr. neste ponto, assim como a convergência com as ideias Marini
e Gunder Frank. A preocupação parece ser entender a via especíca
de desenvolvimento do capitalismo no Brasil e na América Latina
(FERNANDES, 1981a, 1981b; PRADO JÚNIOR, 1987; FURTADO,
2000; TRASPADINI; STEDILE, 2011).
Entretanto, Florestan (1981, a;b) não comungava da interpretação
de Caio Prado Jr. (1987) segundo a qual o Brasil seria uma formação
social capitalista desde o início do período colonial, pois este tipo de
Prado Jr., com base na teoria marxista, já tinha assinalado a importância da elaboração de conceitos que dessem
conta das especicidades históricas da sociedade brasileira. Neste aspecto, o conceito chave seria o do sentido
da colonização que norteia toda a sua análise. Um dos erros da esquerda brasileira teria sido justamente o de
aplicar de forma mecânica modelos desenvolvidos para explicar outras realidades ao Brasil. Ver, entre outros,
Corsi (2003).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
234 |
análise não daria conta das relações sociais, da dinâmica interna da
sociedade colonial. As determinações externas e a forma subordinada de
inserção do Brasil na economia mundial não seriam capazes de conferir,
sozinhas, um caráter capitalista a sociedade aqui estabelecida, embora
fossem fundamentais para explicar suas estruturas e dinâmica. Como
também discordava daqueles que defendiam ter o Brasil passado por
uma fase feudal, encontrando-se nas décadas posteriores à Revolução de
1930 em plena transição para o capitalismo, dentre os quais poderíamos
destacar Nelson Werneck Sodré (1971).
Para Fernandes (1981a, 1981b), a sociedade colonial seria uma
sociedade estamental escravista. O desenvolvimento do capitalismo no
Brasil teria como base essa sociedade escravista, que teria condicionando
sua dinâmica e suas estruturas sociais, políticas e econômicas. Porém,
isso não signicava que Florestan não teria compreendido claramente,
como já tinha defendido Caio Prado, que a economia brasileira teria sido
constituída para produzir excedente para os países centrais, e dessa forma
contribuiria de maneira relevante para o desenvolvimento dos mesmos.
Este processo de apropriação de grande parte do excedente aqui produzido
seria um dos pilares estruturais da economia brasileira e de sua inserção na
economia mundial, que transcenderia a fase colonial, que estaria inserida
no processo de acumulação primitiva, e perpassaria toda a nossa historia
até os dias atuais. Não por acaso, Fernandes toma como base na sua análise
das formas que o capitalismo assumiu ao longo da história do Brasil as
fases de dominação externa da América Latina, quais sejam: colonialismo,
neocolonialismo, imperialismo e imperialismo total. O capitalismo
impunha de fora para dentro novos padrões sociais, políticos, culturais e
econômicos. Contudo, esses padrões eram reelaborados e modicados a
partir das condições sociais, políticas e econômicas internas. Ou seja, eram
absorvidos seletivamente e adaptados às circunstâncias locais, gerando
diferentes e peculiares articulações entre aspectos sociais e econômicos
modernos e atrasados.
No período colonial, compreendido entre os séculos XVI e início
do XIX, a dominação externa estava calcada em relações políticas,
econômicas e jurídicas impostas por Portugal e Espanha à América
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 235
Latina. As metrópoles se apropriavam do grosso de excedente por meio
do monopólio do comércio externo das colônias latino-americanas. Para
extração desse excedente, dados as condições encontradas na América,
os limites da capacidade econômica e populacional das metrópoles, os
objetivos da empreitada colonial e as características sociais, políticas,
culturais e econômicas das sociedades ibéricas, a organização social
e da produção de bens primários para as exportações nas colônias
ibéricas foram compelidas a se basearem em relações de produção pré-
capitalistas e na grande propriedade. Essas sociedades eram estamentais,
apresentando baixíssima mobilidade social e uma enorme concentração
da riqueza, do prestígio social e do poder local nas mãos das classes
proprietárias e comerciais. A grande maioria da população compunha as
castas e os estratos dependentes, o que implicava, entre outros aspectos,
um elevadíssimo grau de exploração. Em suas palavras:
Em termos sociológicos, os fundamentos legais e políticos dessa
dominação colonial exigiam uma ordem social em que os interesses
das Coroas e dos colonizadores pudessem ser institucionalmente
preservados, incrementados e reforçados, sem outras considerações.
Isso foi conseguido pela transplantação dos padrões ibéricos de
estrutura social, adaptados aos trabalhos forçados dos nativos
ou à escravidão (de nativos, africanos ou mestiços). Assim, uma
combinação de estamentos e castas produziu uma autêntica
sociedade colonial, na qual apenas os colonizadores eram capazes de
participar das estruturas existentes de poder e de transmitir posição
social através da linhagem ‘europeia’. A estraticação resultante,
porém, possuía grande exibilidade, favorecendo a absorção e o
controle de massas de nativos, africanos e mestiços, classicados em
categorias de castas ou mantidos fora das estruturas estamentais,
como estratos dependentes. Sob tais condições societárias, o
tipo legal político de dominação colonial adquiriu o caráter de
exploração ilimitada, em todos os níveis da existência humana
e da produção para o benefício das Coroas e dos colonizadores.
(FERNANDES, 1981a, p. 13).
A crise da dominação colonial decorreu sobretudo da decadência da
Espanha e de Portugal, da consolidação da Inglaterra como nova potência
Marcelo Augusto Totti (Org.)
236 |
mundial a partir da Revolução industrial e do crescente descontentamento
de setores internos às colônias, que se desenvolveram ao longo de três século
de colonização, com a dominação externa. Observa-se uma transformação
nas formas de dominação e de extração de excedente, que passaram a ser
fundamentalmente econômicas e nanceiras, assentadas em relações de
mercado, mas respaldadas pelo poder militar e político da Inglaterra. A
dominação externa passou a ser sobretudo indireta. Os novos Estados que
emergiram da crise do sistema colonial eram frágeis, suas importações,
exportações e nanças externas eram controladas pelos países centrais.
Dessa maneira, parte do excedente continuou uindo para os países
centrais, sustentando a acumulação de capital nestes países. A nova fase do
capitalismo aberta com a revolução industrial criou uma extensa periferia
fornecedora de bens primários, que gravitava em torno da Inglaterra. Esta
nova fase seria denominada de neocolonial e se estenderia até meados do
século XIX (FERNANDES, 1981a, 1981b; CASTELO, 2012).
Por um lado, essas transformações não implicaram no m da
sociedade colonial, mas esta teve que adaptar-se a nova dinâmica da
economia capitalista mundial, sem a necessidade de imprimir quaisquer
mudanças estruturais de fundo, pois as economias latino-americanas já
estavam organizadas para produzirem produtos primários. Os estímulos
advindos do incremento das exportações e da retenção de parte considerável
do excedente no interior das nações recém formadas reforçaram muitas
das estruturas da sociedade colonial nesta nova fase. As classes dominantes
locais não lutaram por uma maior autonomia. Segundo Fernandes,
estavam conformadas em atuar como forças subalternas. A fragilidade das
classes dominantes da América Latina devia-se sobretudo a incapacidade de
desenvolver o capitalismo a partir de recursos internos e ao perigo latente de
revolta das classes dominadas. Dessa forma, abdicaram, receosas de perder
a posição social que ocupavam, de promover qualquer transformação
estrutural de mais largo escopo. Este comportamento tornar-se-ia recorrente
na história da região. Ou seja, tornou-se um padrão de comportamento
das classes dominantes (FERNANDES, 1981a, 1981b).
Por outro lado, na fase neocolonial, abriram-se novas possibilidades
de desenvolvimento, em particular devido à constituição de Estados
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 237
formalmente independentes. Observa-se certo desenvolvimento comercial,
com a emergência de mercados capitalistas nos maiores centros urbanos.
Parte do excedente, que anteriormente era apropriado pelas metrópoles,
passou a car retido internamente, o que contribui para impulsionar a
atividade econômica. Ademais, foram introduzidas novas instituições
econômicas, novas técnicas sociais e novas formas de associação entre
interesses internos e externos. No entanto, as estruturas da sociedade
pouco se alteraram. Florestan deixa claro os limites dos novos impulsos
observados nesta fase:
Entretanto, a dominação externa era uma realidade concreta
e permanente, a despeito do seu caráter como processo
puramente econômico. Os efeitos estruturais e Históricos dessa
dominação foram agravados pelo fato de que os novos controles
desempenhavam uma função reconhecida: a manutenção dos
status quo ante da economia, com o apoio e a cumplicidade das
classes exportadoras’ (os produtores rurais) e os seus agentes ou
os comerciantes urbanos. O esforço necessário para alterar toda
a infraestrutura da economia parecia tão difícil e caro que esses
setores sociais e suas elites no poder preferiram escolher um papel
econômico secundário e dependente, aceitando como vantajosa a
perpetuação das estruturas econômicas construídas sob o antigo
sistema colonial. (FERNANDES, 1981a, p. 16-17).
Apenas a partir do nal do século XIX, possibilidades mais amplas de
mudança seriam observadas. Mais uma vez o impulso para essas mudanças
viria de fora para dentro. As transformações ocorridas no capitalismo
neste período inauguraram outra fase na dominação externa na América
Latina, a fase imperialista. O imperialismo impôs uma integração mais
ampla e profunda da região à economia mundial e, ao mesmo tempo,
desencadeou o desenvolvimento do capitalismo dependente na região.
Segundo Fernandes, o capitalismo dependente, que se forma e expande
na fase imperialista, se desenvolveu tendo como como ponto de partida
uma sociedade escravista em crise terminal. O capitalismo dependente
constituiria a via de desenvolvimento do capitalismo no Brasil e de todos
Marcelo Augusto Totti (Org.)
238 |
os outros países latino-americanos
5
. Esta perspectiva seria desenvolvida
pela corrente do capitalismo tardio, embora essa corrente também tenha
sofrido inuência de outras perspectivas teóricas.
Contudo, nesta nova fase não se observa um aprofundamento
da revolução burguesa, apesar do desenvolvimento do capitalismo,
caracterizado, entre outros aspectos, pelos avanços ocorridos na
infraestrutura, na urbanização, no desenvolvimento de uma indústria leve
e sobretudo na introdução do trabalho livre
6
. Cada vez mais a sociedade
torna-se uma sociedade competitiva, com consequências para as formas
de classicação social, pautadas agora pela ampliação crescente da forma
mercadoria. Mas isso em nada alterou o comportamento subalterno da
burguesia, pois seu medo atávico das classes subalternas a impedia, como
já assinalado, de promover qualquer transformação social de fundo, que
pudesse ameaçar ou comprometer sua posição social, seus privilégios e seus
interesses. O moderno continuou como dantes articulado ao atrasado.
A manutenção dessa articulação era considerada por Florestan como
fundamental para garantir os privilégios das classes dominantes. No entanto,
o desenvolvimento do capitalismo dependente ampliou consideravelmente
os espaços de acumulação de capital para os países imperialistas e para
os capitais nacionais, em decorrência de uma série de fatores, cabendo
destaque para a ampliação dos mercados internos, dos investimentos
na infraestrutura e das dívidas dos países latino-americanos. Embora o
processo de revolução burguesa se estendesse no tempo e caminhasse de
forma lenta, a crescente mercantilização da sociedade e o impulso sofrido
pelo processo de acumulação levaram o capitalismo dependente entrar,
em um período relativamente curto, na fase monopolista, pelo menos
para alguns poucos países da América Latina, dentre eles principalmente o
Brasil (FERNANDES, 1981a, 1981b).
Nas palavras de Florestan: “As inuências externas atingiram todas as esferas da economia, da sociedade e da
cultura, não apenas através de mecanismos indiretos do mercado mundial, mas também através da incorporação
maciça e direta de algumas fases dos processos básicos de crescimento econômico e de desenvolvimento
sociocultural. Assim, a dominação externa tornou-se imperialista, e o capitalismo dependente surgiu como uma
realidade histórica na América Latina.” (FERNANDES, 1981a, p. 16).
Segundo Fernandes: “Na realidade, a revolução burguesa não foi acelerada, mesmo nos países mais avançados
da América Latina, através de um impulso econômico deliberado procedente da Europa.” (FERNANDES,
1981a, p. 17).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 239
O período que se seguiu a II Guerra Mundial, sob a hegemonia
dos Estados Unidos, teve início, segundo Florestan (1981a), outra fase da
dominação externa, por ele denominada de imperialismo total. Nesta fase, se
observa o aprofundamento do processo de internacionalização do capital. As
empresas multinacionais penetram profundamente em algumas economias
periféricas, dominando seus setores mais dinâmicos e introduzindo novas
formas de consumo, de organização empresarial, de concorrência, de
propaganda e de produção. Como no passado, esta nova forma de penetração
do capital estrangeiro foi obrigada a se adaptar à situação interna dos diferentes
países, resultando em um capitalismo monopolista bastante peculiar. Este
processo, contudo, reforçaria o subdesenvolvimento, dissolvendo qualquer
ilusão de desenvolvimento autônomo (FERNANDES, 1981a; PAIVA;
SILVA, 2011; CASTELO, 2012).
A partir dessa trajetória histórica, que levou a constituição de um
capitalismo dependente na América Latina, seria importante, mesmo
que esquematicamente, discutir as principais características e a dinâmica
dessa via de desenvolvimento. A concentração da renda, da propriedade,
do poder e do prestígio social, características estruturais do capitalismo
dependente, geraram a exclusão social, política e econômica do grosso
da população. A sociedade extremamente desigual, fruto desse processo
histórico, não corresponderia necessariamente a uma situação de baixo
crescimento e estagnação das forças produtivas (FERNANDES, 2008).
No caso do Brasil, pelo menos até o nal dos anos de 1970, observamos
intenso crescimento econômico.
Não obstante o crescimento econômico, o capitalismo dependente
mostra-se incapaz de superar a situação de dependência que é imposta
de fora para dentro, mas que é, simultaneamente, uma opção política
das classes dominantes, que reconhecem no subdesenvolvimento e
na dependência o seu interesse e a única possibilidade de manter sua
posição social. A resistência por parte dos dominantes em promover
transformações estruturais na sociedade e a manutenção de muitos de seus
aspectos arcaicos se devem sobretudo a duas razões, a saber: o receio de um
levante das massas populares e a fraqueza das classes dominadas em termos
de organização e consciência política, pois no capitalismo dependente
Marcelo Augusto Totti (Org.)
240 |
estas classes apresentariam grande diculdade de forjar uma organização
independente e um projeto revolucionário. Ao que se soma às imposições
do imperialismo, voltadas para manter a dependência. Dessa maneira,
a articulação de elementos internos e externos impede a superação da
dependência, que é central na determinação do subdesenvolvimento.
A análise de Fernandes indica que o projeto das classes dominantes da
América Latina seria o capitalismo dependente (FERNANDES, 2008).
A persistência das situações de dependência indica] a incapacidade
dos países latino-americanos de impedir sua incorporação
dependente ao espaço econômico, cultural e político das sucessivas
nações capitalistas hegemônicas […] Quando uma determinada
forma de organização capitalista da economia e da sociedade era
absorvida, isso ocorria em consequência de uma mudança da
natureza do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos e novos
padrões de dominação externa emergiam inexoravelmente. Por outro
lado, uma organização aristocrática, oligárquica ou plutocrática da
sociedade sempre concentrou extremamente a riqueza, o prestígio
social e o poder em alguns estratos privilegiados. Em consequência,
a institucionalização política do poder era realizada com a exclusão
permanente do povo e o sacrifício de um estilo democrático de
vida. A integração nacional, como fonte de transformações
revolucionárias e de desenvolvimento econômico, sociocultural
e político tornou-se impossível […] uma economia satélite ou
dependente não possui as condições estruturais e dinâmicas para
sobrepujar nacionalmente pelos esforços de sua burguesia (isto
é, lato sensu, os setores dominantes das classes alta e média), o
subdesenvolvimento e suas consequências. Como ocorre com os
interesses privados externos, os interesses privados internos estão
empenhados na exploração do subdesenvolvimento em termos de
orientações de valor extremamente egoístas e particularistas […] A
ilusão de uma revolução industrial liderada pela burguesia nacional
foi destruída conjuntamente com os papéis econômicos, culturais e
políticos estratégicos das elites no poder latino-americanas. Agora,
uma nova imagem do capitalismo […], da ‘burguesia nacional’ e
da ‘interdependência internacional’ das economias capitalistas está
sendo reconstruída, para justicar a transição atual e para criar
a nova espécie de ideologia e de utopias burguesas dependentes.
(FERNANDES, 1981a, p. 11-19).
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 241
O capitalismo dependente como projeto poderia ser interpretado
como a integração associada ao capital estrangeiro na fase do imperialismo
total. A estratégia de integração neoliberal na fase de mundialização
do capital, inspirada no chamado Consenso de Washington, seria um
desdobramento desse projeto, que avançou de forma avassaladora pela
América Latina a partir do nal da década de 1980. No caso brasileiro, a
forma pela qual se deu a inserção no capitalismo global, sob o comando
de Fernando Henrique Cardoso, seria o aprofundamento do projeto da
burguesia dependente brasileira. Este padrão histórico de comportamento
político das classes dominantes expressa as suas fraquezas, que derivam
em última instância da própria situação de dependência, que por sua
vez também condiciona o desenvolvimento desigual e combinado do
capitalismo dependente.
No capitalismo dependente as transformações estruturais são
truncadas, lentas, limitadas e seguem a reboque das mudanças do
capitalismo mundial, que obriga a sociedade periférica a seguir as mutantes
condições da acumulação de capital, embora este processo seja marcado
por inúmeras adaptações às circunstâncias internas de cada país. Ou seja,
os novos padrões sociais e econômicos impostos pelo imperialismo são
adaptados às circunstâncias locais. As velhas estruturas não são destruídas,
mas modicadas e servem de base para a modernização da economia e da
sociedade. Este processo ocorre sob o comando das classes dominantes,
que logram impor seus interesses e sustentar suas posições por meio de
uma modernização conservadora. Neste processo, os dominantes buscam
de todas as maneiras fechar qualquer brecha para uma revolução social. As
ameaças reais ou potenciais das classes dominadas desencadeiam o pânico e
reações violentas por parte da burguesia. Dessa forma, só existe espaço para
mudanças dentro da ordem.
Estruturas econômicas pré-capitalistas […] coloniais ou
neocoloniais, serviram de patamar para a criação e a alimentação
inicial do ‘setor moderno’ da economia […] Doutro lado, em
nenhum momento dinamismos econômicos procedentes de fora
passaram para o plano secundário […] sempre se mantiveram muito
fortes e sempre desempenharam inuências estruturais e funcionais
determinantes. O que variou foi a capacidade da organização
Marcelo Augusto Totti (Org.)
242 |
interna da economia de lidar com tais dinamismos, explorando-os
com maior exibilidade e projetando-os em estruturas econômicas
mais adequadas à expansão do capitalismo […] O primitivo
capitalismo mercantilista, que impregnou as atividades econômicas
no período colonial e na transição neocolonial, não se evapora: ele
continua entranhado no espírito dos agentes econômicos externos
e internos, todos orientados por uma mentalidade especulativa
predatória […] todos compreendem a ‘necessidade’ e as ‘vantagens
da coexistência do antigo regime dentro do novo. Por isso, não
lutam contra tal coexistência […] a modernização processa-se de
forma segmentada e segundo ritmos que requerem a fusão do
moderno’ com o ‘antigo’ ou, então do ‘moderno’ com o ‘ arcaico’,
operando-se o que se poderia descrever como a ‘modernização do
arcaico’ e a simultânea ‘arcaização do moderno’. (FERNANDES,
1981a, p. 51-80).
Neste padrão de desenvolvimento histórico, a revolução burguesa
não destrói as formas sociais pré-capitalistas. Tal revolução consiste em
um processo de lenta transformação das estruturas sociais, econômicas e
políticas dentro da ordem. Esta revolução burguesa peculiar é constitutiva
do capitalismo dependente, que se desenvolveu a partir do nal do século
XIX, já na fase imperialista, e adquiriu novo impulso a partir da crise de 1929,
com o avanço da industrialização. As oligarquias não tiveram problemas
em se adaptar às novas condições sociais, passaram por um processo de
aburguesamento, adotando os padrões sociais, culturais e econômicos da
sociedade competitiva, amalgamando-os com os padrões patrimonialistas.
A burguesia, por seu turno, contemporiza com os interesses oligárquicos,
não confrontando com essas forças, mas articulando-se a elas. As classes
dominantes rapidamente se unicam ante qualquer ameaça considerada
mais perigosa dos de baixo. As divergências seriam de caráter secundário e
não poriam em risco o controle da modernização conservadora por parte
das classes dominantes. As várias frações das classes dominantes se iriam
se articular em torno do Estado, cujo controle é fundamental tanto para
incrementar a acumulação por meio de diferentes políticas de fomento, de
subsídios e de ação direta no campo econômico quanto para controlar as
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 243
classes dominadas com mão de ferro, o que é fundamental para manter a
ordem (FERNANDES, 1981a).
Para Fernandes, as três alternativas estariam colocadas, quais
sejam: a manutenção da ordem social vigente, o aperfeiçoamento de
um capitalismo de Estado capaz de levar a cabo lentas transformações
dentro da ordem e a revolução socialista
7
. Florestan aparentemente não
descartava a possibilidade de um desenvolvimento capitalista autônomo e
com reformas. Porém, sem superar completamente a ordem social vigente.
Hoje, verica-se que o Brasil e o restante da América Latina continuam na
via do capitalismo dependente.
III conSIderaçõeS fInaIS
O capitalismo dependente consiste em uma via não clássica
de desenvolvimento capitalista na qual o atrasado e o moderno estão
articulados, caracterizando uma forma de desenvolvimento desigual e
combinado. A situação histórica de dependência permanece intocada,
assim como a situação de profunda desigualdade social. Continuamos no
caminho do capitalismo dependente. A reprimarização das exportações, a
desindustrialização em curso em vários países latino-americanos, dentre
eles o Brasil, a incapacidade das forças de centro esquerda, que alcançaram
vários governos na região na primeira década do século, em diversicar
a economia e imprimir transformações estruturais de fundo indicam os
gigantescos obstáculos para romper com o capitalismo dependente. O
golpe de Estado no Brasil ilustra a diculdade de mudanças mesmo dentro
da ordem, pois os governos Lula e Dilma buscaram implementar, com
algum sucesso, um crescimento com modesta distribuição da renda, sem
mexer nos interesses e privilégios da classe dominante e sem mobilização
Em suas palavras: Sob as condições econômicas, socioculturais e políticas dos países latino-americanos [uma]
alternativa implica a implantação e aperfeiçoamento de um novo tipo de capitalismo de Estado, capaz de ajustar
a velocidade e a intensidade do desenvolvimento econômico e da mudança sociocultural aos requisitos da
‘revolução dentro da ordem social’. A outra resposta alternativa só pode surgir de uma rebelião popular e radical
de orientação socialista […] A última alternativa, sem dúvida, abre caminho para a realização dos padrões mais
elevados da razão humana e para a liberação real das sociedades latino-americanas. Todavia, ambas as soluções
poderiam dar início novas vias de evolução da América Latina, na direção de uma história de povos livres e
independentes (FERNANDES, 1981a, p, 31-32).
Marcelo Augusto Totti (Org.)
244 |
popular. Este desfecho conrma as proposições de Fernandes. Entretanto,
o circuito da história, como próprio Florestan assinalava, não se fecha
permanentemente e cabe às classes dominadas criar alternativas.
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O   
  B
Anderson Deo
Camaradas, companheiras e companheiros, boa noite! Antes de mais
nada, quero agradecer pelo convite e deixar aqui uma efusiva saudação aos
organizadores do I Encontro sobre Pensamento Social Brasileiro. Saudar
e agradecer ao professor Marcelo Totti, assim como aos estudantes que
compõem o Grupo de Estudos Intelectuais de Esquerda e Movimentos
Sociais. Nós que organizamos eventos e atividades no cotidiano da nossa
universidade, sabemos que sem a colaboração, sem o trabalho e a dedicação
dos nossos estudantes de graduação e de pós-graduação essas atividades
seriam praticamente impossíveis. Dizer da honra e do prazer que é dividir
uma mesa com professor Roberto Leher, companheiro de muitas jornadas
no Andes, como o próprio Marcelo citou. É um prazer enorme, uma
satisfação, poder compartilhar de sua exposição brilhante, com reexões
que nos instiga, que nos faz pensar, que nos faz reetir e nos incomoda. E
isso é fundamental no trabalho teórico e intelectual, o incômodo que vai
para muito além da atividade academia propriamente dita. Saudar a todos
aqueles e aquelas que nos acompanham e dividem esse espaço de debates
teórico-políticos.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p247-258
Marcelo Augusto Totti (Org.)
248 |
Um espaço como o que nós construímos cotidianamente na
faculdade de Filosoa e Ciências de Marília! Talvez nós não tenhamos a
dimensão, nós que vivemos esse cotidiano - e o cotidiano nos atropela com
vários problemas, com a sua dinâmica própria - de como um evento desse
tipo organizado pelo Marcelo e pelo grupo de estudo e estudantes que o
compõem, como esse tipo de evento é importante não só para o debate
acadêmico, mas para as reexões que suscita, esse e outros eventos. Foi dito
aqui durante todos os debates ao longo do evento, foram feitas referências
ao fato de que Florestan Fernandes, em 1986, na nossa faculdade, lançou,
digamos assim, ocialmente a sua candidatura para então Deputado da
Assembleia Nacional Constituinte, que viria a ser reunida em 1987. Penso
que esse tipo de atividade proposta pelo Grupo de Intelectuais de Esquerda
e Movimentos Sociais, resgata, digamos assim, uma prática teórico-política
que os departamentos que compõem o curso de Ciências Sociais e o
próprio Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais desenvolveram ao
longo de sua existência. Já tivemos várias “Jornadas do Curso de Ciências
Sociais”, como a já citada em 1986 sobre o pensamento de Florestan
Fernandes, jornada sobre o pensamento de Caio Prado Jr, Octavio Ianni,
Nelson Werneck Sodré, além de uma série de outros importantes eventos
que realizamos periodicamente. Grandes nomes nacionais e internacionais
das Ciências Sociais que já passaram pelo anteatro da FFC. Que eu
me recorde nesse momento, até porque estive diretamente envolvido,
os últimos grandes nomes internacionais que estiveram na FFC, foram
Domenico Losurdo, em 2017, e Istvám Mészáros, em 2013, em noites
memoráveis na nossa faculdade. Essa faculdade que tem esse histórico de
contribuição, eu diria extremamente positiva, do ponto de vista de uma
perspectiva humanamente emancipadora.
Para falar propriamente da minha exposição, daquilo que aqui eu
modestamente pretendo apresentar para vocês, talvez vocês possam ter a
impressão de que eu e o professor Roberto Leher combinamos pelo menos
uma parte das nossas apresentações. Não se trata disso. Obviamente que os
organizadores do evento pensaram as mesas de forma a convidar autores,
pesquisadores e debatedores que de alguma forma dialogam nas suas
pesquisas - não propriamente que concordem entre si, não se trata disso.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 249
Mas muito do que vou aqui colocar, muito do que eu vou aqui apresentar
vai dialogar em alguma medida com aquilo que o professor Roberto Leher
apontou, sobretudo no início da sua exposição.
Se nós fossemos atribuir um título a essa apresentação que vou
propor aqui para vocês, poderíamos dizer que esse título seria “Sentido
da Colonização e Autocracia Burguesa no Brasil”. Qual seria o objetivo
ou dois objetivos fundamentais dessa minha exposição? Primeiro,
identicar aquilo que nós poderíamos denominar como os fundamentos
da autocracia burguesa no país, e o segundo objetivo é o de vericar como
esses elementos se reproduzem na atualidade. Da forma como entendo,
Florestan Fernandes - o professor, o militante - nos oferece um instrumental
teórico e conceitual riquíssimo, para compreender aspectos fundamentais
da particularidade brasileira. Ou seja, o modo de produção capitalista
se reproduz universalmente. No entanto, a forma particular como as
nações, como os países reproduzem o modo de produção capitalista,
faz com que a história, faz com que esse modo de produção se objetive
historicamente a partir de características muito singulares. Eu penso que
esse instrumental teórico-conceitual oferecido pelo Florestan Fernandes
nos permite identicar elementos da maior importância que caracterizam
essa objetividade do capitalismo no Brasil, e esse instrumental teórico e
conceitual, eu particularmente procuro articular nas minhas pesquisas, nos
meus debates, nos meus escritos, com outro autor que é Caio Prado Jr,
também citado aqui pelo professor Roberto Leher. Sobretudo o conceito
de Sentido da Colonização. Penso não ser aqui o momento, pelo menos
no formato dessa primeira apresentação, de apontar as trajetórias ou toda a
complexidade da composição da teoria social desses dois autores, sobretudo
aquilo que nós poderíamos identicar como as diferenças entre ambos.
Isso poderia car por um outro momento, porque como a forma de análise
e as leituras, sobretudo do período colonial e mesmo do processo em si da
revolução burguesa no Brasil, não são idênticas em Florestan Fernandes e
Caio Prado Júnior.
Mas o que quero privilegiar aqui, na minha abordagem? As
aproximações! Exatamente as aproximações entre essa compreensão que
Caio Prado Jr. propõe de Sentido da Colonização e o conceito de Autocracia
Marcelo Augusto Totti (Org.)
250 |
Burguesa desenvolvido por Florestan Fernandes. E por que isso? Porque,
da forma como eu pretendo demonstrar, pelo menos em linhas gerais, a
articulação desses conceitos nos permite analisar de uma forma bastante
adequada e bastante precisa o que nós presenciamos nos dias de hoje.
Bem, dessa maneira, então, gostaria de apontar elementos, digamos assim,
essenciais do conceito de sentido da colonização. Para Caio Prado Jr,
a forma de sociabilidade que se funda na colônia se alicerça em alguns
pilares, por assim dizer, que se reproduzem ao longo da história do Brasil,
ao longo do processo de formação social do país. É óbvio que nós não
podemos cair no erro, no anacronismo de achar que a história brasileira,
que a sociedade brasileira não se modica, que a forma colonial é a mesma
até hoje. Não se trata disso. Aliás, da forma como entendo, os críticos que
apontam esse suposto problema na leitura de Caio Prado Jr, incorrem aí ou
em desonestidade intelectual, ou em alguns equívocos que comprometem
a própria leitura. E por que isso? Porque o próprio autor, ao elaborar o
conceito de sentido da colonização na abertura de seu livro A Formação do
Brasil Contemporâneo, está indicando que há determinados elementos, há
determinadas características essenciais que marcam a formação histórica
de um povo que permanecem ao longo da sua história, mesmo que do
ponto de vista fenomênico ocorram transformações. Então o que é que
Caio Prado Jr. está chamando de sentido da colonização?
O Brasil nasce como um território associado de forma subordinada
aos grandes centros de reprodução econômico no período colonial, ou seja,
do período da acumulação originária do capital, do período Mercantil.
Posteriormente, essa subordinação se reproduzirá em relação aos núcleos
centrais do processo da Revolução Industrial e do desenvolvimento do
imperialismo. Encontramos aqui um elemento essencial de permanência.
Que elemento essencial? A dependência externa. Mas uma dependência
que não é uma, como porque poderia dizer, uma mera subordinação, não
é uma associação qualquer – o professor Roberto Leher utilizou a expressão
uma associação passiva, uma dependência passiva”. O que Caio Prado Jr.
está apontando é a forma de ser da reprodução econômica, da reprodução
social no país, que vai fazer com que a estrutura econômica se associe de
forma subordinada, o que implica em dizer que a burguesia que aqui vai se
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 251
formando se associa ao capital externo porque ela ganha com isso, ela tem
interesse. É a forma-de-ser dessa burguesia, seja no período colonial, seja no
período do Império, ou depois, na República. Essa burguesia que aqui vai se
desenvolvendo, constrói uma forma de sociabilidade onde essa associação
subordinada é a forma de rentabilidade ou de buscar rentabilidade nos
seus negócios, e é por isso que esse “caráter débil” da burguesia só pode ser
assim identicado quando comparamos com outros exemplos históricos
de revolução burguesa, como por exemplo os casos clássicos.
Mas, se do ponto de vista, por assim dizer, estritamente econômico
essa associação subordinada marca geneticamente, ou para usar uma
expressão mais rigorosa metodologicamente, marca de forma ontogenética
a forma de ser dessa burguesia, para que se mantenha – do ponto de vista
interno – a reprodução social de seu domínio, essa burguesia constrói
formas políticas fundamentalmente antidemocráticas, mesmo do ponto
de vista de uma democracia liberal burguesa. Então, se nós percorreremos
a história do Brasil, nós vamos observar que as estruturas de dominação
que são reproduzidas, de dominação política, desde o período colonial,
primeiro excluem totalmente os “de baixo”, excluem totalmente a força
de trabalho, ou melhor, mais do que exclui, explora intensivamente e
extensivamente essa força de trabalho desde o período colonial, sejam as
populações escravizadas de origem africana ou mesmo os povos autóctones
(os indígenas), seja posteriormente os imigrantes e a força de trabalho que
aqui se formou.
Com isso, historicamente temos toda uma estrutura que exclui do
ponto de vista político a massa da força de trabalho de qualquer processo
político e, portanto, aquilo que Marx identicava como o caráter
politicamente emancipatório das revoluções burguesas clássicas, aquilo
que aconteceu na França e na Inglaterra – de certa forma na Holanda
e nos Estados Unidos –, não se reproduz na nossa particularidade. Essa
burguesia que vai aqui se constituindo, constrói reformas políticas
onde a exclusão dos de baixo, para usar uma expressão mais genérica,
a exploração intensa dessas classes sociais – dessa classe que é a força de
trabalho – é uma constante.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
252 |
Todo o processo de ampliação de direitos sociais, de direitos
trabalhistas e políticos, ou seja, aquilo que poderíamos chamar de
uma ampliação da emancipação política, essa classe trabalhadora, esse
proletariado que vai aqui se constituindo, só conquistou através de
grandes, de intensas lutas políticas e sociais. O que implica em reconhecer
que por mais contraditório que possa ser essa revolução burguesa, sua
forma particular de reprodução histórica freia, impede e aborta qualquer
projeto minimamente emancipatório, mesmo nos marcos da legalidade
burguesa. E mais, quando o proletariado se organiza e começa a avançar
em conquistas, através de muita luta, essa mesma burguesia não titubeia em
se utilizar do instrumento político do golpe de estado para frear qualquer
tipo de avanço minimamente democrático (ou em termos teóricos, de um
liberalismo progressivo).
Quando nós observamos o que estou tentando caracterizar de
uma forma muito genérica, como o conceito de sentido da colonização,
onde é que identico aproximações ou aderências, por assim dizer, com a
análise do Florestan Fernandes? Vejam, o que Florestan vai apontar sobre
o processo da revolução burguesa no Brasil. Pois bem, essa burguesia
que aqui vai se constituindo ao longo do século XX, promove uma
modernização do ponto de vista econômico. Uma modernização que
explicita uma série de contradições próprias do momento histórico em
que essa modernização está se realizando. Como podemos visualizar tais
contradições? No processo de industrialização do país, sobretudo no
processo de industrialização que se abre pós-1930; vejam, esse processo de
industrialização explicita contradições e a principal delas é exatamente a
contradição que se fundamenta numa sociedade que está se modernizando,
mas exclui a grande maioria, a grande massa de força de trabalho, não só
dos direitos imediatamente econômicos e trabalhistas - porque isso como
nós já apontamos aqui vai sendo conquistado ao longo do tempo através
das lutas políticas e sociais -, mas exclui, também, direitos fundamentais
próprios do princípio burguês de cidadania.
Acontece que essas classes elas se movimentam e se organizam, se
movimentam e se chocam na luta cotidiana. E qual vai ser a resposta
dessa burguesia segundo, Florestan Fernandes? Essa burguesia abre
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 253
mão da própria legalidade democrático-burguesa para promover, para
avançar no seu processo de consolidação do capitalismo no Brasil, ou
seja, essa burguesia abre mão de qualquer tipo de avanço democrático
em termos do próprio liberalismo para avançar na revolução burguesa
ou na contrarrevolução preventiva que se explicita no golpe de 1964. Da
forma como entendo, essa aproximação entre os conceitos de sentido da
colonização e de autocracia burguesa, expressa o conteúdo políticossocial
– histórico, portanto – de uma burguesia que vai se constituindo no
país de forma totalmente autocrática. É uma burguesia que mesmo nas
disputas entre as frações de sua classe, sempre se utilizou do expediente do
golpe de estado, ou seja, da interrupção de uma determinada legalidade
institucional, ou institucionalizada, para fazer valer os seus próprios
interesses. É uma burguesia que não tem o menor escrúpulo – lembrem-se
de Jarbas Passarinho, quando da assinatura do AI-5, “às favas com todo e
qualquer escrúpulo” –, ou ainda, se preferimos, podemos buscar um outro
exemplo mais recente que nos foi revelado, entre tantos outros, como o
vazamento de áudio do então líder do governo na Câmara dos Deputados,
Romero Jucá, “Vamos dar um golpe armado com tudo, com um congresso,
com judiciário, com todo mundo”. Vejam e percebam, esse expediente
político do golpe de estado, e seus princípios de uma maneira clássica
naquilo que Marx identicaria como um “golpe bonapartista”, onde a
burguesia lança mão do expediente da força militar para suspender todo e
qualquer processo de ampliação de direitos democráticos, mesmo que nos
marcos do liberalismo burguês. Mas por que faz isso? Porque demonstra
os limites históricos do princípio de igualdade e liberdade, nos marcos
próprios da burguesia, de uma concepção ideologicamente orientada por
interesses burgueses. Ou seja, essa burguesia, na particularidade brasileira,
desenvolve e reproduz um projeto de dominação e, portanto, um projeto
de reprodução socioeconômica em que a democracia mesmo, volto a
dizer, mesmo nos marcos da legalidade burguesa, só é admitida até um
determinado momento. Qual o momento? Um momento em que os seus
interesses não são colocados à prova, ou melhor, mesmo que não estejam
sendo colocados à prova – porque, por exemplo, em 2016 os interesses da
burguesia não estavam sendo colocados à prova – mas a articulação que
se constrói no golpe para derrubar o governo Dilma, é uma articulação
Marcelo Augusto Totti (Org.)
254 |
que coloca burguesia internamente instalada, coloca essa burguesia no
momento e no movimento de ataque de avanço profundo ao pouco que
resta de conquista dos trabalhadores ao longo do século XX, no país.
Então vejam, essa caracterização fundamental, penso eu, para indicar
o elemento autocrático da burguesia brasileira, nos permite inclusive
pensar no momento que vivemos. Eu vou aqui muito rapidamente
pensar o período pós-1985, que é genericamente chamado período da
redemocratização. Da forma como entendo, já é um equívoco chamar de
período de redemocratização. Porque só é possível redemocratizar algo
que um dia já foi democrático, democratizado, e uma democracia em
termos, volto a dizer, mesmo que em termos liberais burgueses, sempre foi
extremamente limitada no país.
Então, a partir de 1985, temos todo uma reestruturação
institucional do Brasil, que se consolida na Constituição de 1988. No
entanto, da forma como eu proponho a leitura, essa democratização, ou
melhor, o restabelecimento dentro da democracia, ou o estabelecimento
de uma democracia – e as instituições instrumentalizam essa democracia
– reproduzem na verdade uma forma de institucionalização da própria
autocracia burguesa. E porque uma forma de institucionalização da
própria autocracia burguesa? Porque vejam, e o quê estou chamando
de uma institucionalização da democracia burguesa, ou melhor, uma
institucionalização da autocracia burguesa? Nós temos, sem dúvida
alguma, como resultado inclusive das lutas sociais que eclodem em meados
da década de 70, que forçam, empurram para o m da ditadura militar, da
ditadura civil-militar que se inaugura em 1964, nós temos sem dúvida um
avanço no campo da própria democracia liberal que se manifesta na carta de
1988. No entanto, se nós observamos a partir de 1992, essa mesma Carta
Constitucional (para pensarmos em termos jurídicos), passa a sofrer uma
série de modicações, em determinado momento chamado de Revisão,
outro Reforma Constitucional, mas ela vem sendo desmontada desde então
e esse processo de desmonte ocorre e não é única e exclusivamente um
desmonte jurídico, é um desmonte que diz respeito ao avanço do Capital
frente a todo aquele processo que se abre em meados de 1970, , que se
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 255
consolida com a Constituição de 1988. Ou seja, é o capital avançando
sobre as conquistas dos trabalhadores.
É claro que no modo, aqui, da exposição, procuro oferecer um
panorama muito amplo, mas a questão é a seguinte: essa Constituição vai
sendo transformada, e as instituições, vão permanecendo, ou melhor, vão
– percebam a linguagem que o léxico liberal se utiliza – se aperfeiçoando.
Mas o que que signica aperfeiçoar as instituições democráticas dentro do
léxico Liberal? Signica afastar cada vez mais as instituições democráticas,
ou melhor, as instituições do Estado de um processo verdadeiramente
democratizante. Cada vez mais o Estado se organiza a partir da generalidade
abstrata das leis, e essas leis são instrumentalizadas e manipuladas,
organizadas de forma que já impõe ao conjunto da sociedade uma lógica
burguesa. Volto a dizer, existe resistência e existe luta de classe. Mas se
nós observarmos em retrospectiva, veremos que essa burguesia interna, a
partir das suas frações, vai se recompondo, se recompondo de tal forma a
propor uma hegemonia do capital nanceiro, hegemonia essa que retira,
que espolia, cada vez mais direitos dos trabalhadores. Que promove uma
redenição das próprias instituições.
Se avançamos nesse processo, podemos pensar o signicado, por
exemplo, do golpe de 2016, da reforma trabalhista, da reforma do Ensino
Médio, de toda a legislação que que impede o gasto com demandas sociais
– a chamada “PEC do m do mundo”, ou “PEC da morte” – como saúde
e educação, da reforma da Previdência. Vejam, todas essas mudanças foram
realizadas dentro da ordem, da chamada ordem do Estado democrático
de direito. O que é isso senão uma forma de reprodução de uma ditadura
através da Lei? E aí não há como tergiversar, quando Lenin arma que a
ditadura burguesa, ou melhor, que a democracia burguesa nada mais é do
que a ditadura de uma minoria, sobre a maioria da sociedade. Mas uma
ditadura que tem o verniz e tem, por assim dizer, a camuagem, o véu – um
no véu, é verdade – de democracia, de legalidade, mas que por exemplo,
na particularidade brasileira, e aqui me amparo em um outro autor de
origem ítalo-germânico, chamado Johannes Agnoli, que desenvolveu o
conceito de “autocracia do parlamento”.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
256 |
Segundo Agnoli, os processos políticos afastam cada vez mais a
população como um todo, as classes sociais e, principalmente, a classe
trabalhadora da ação política propriamente dita. Isso se dá porque o próprio
parlamento e sua forma de organização garantem uma autonomia àqueles
que são eleitos, de forma a se deslocarem, se distanciarem das suas bases
eleitorais. É claro que temos aqui uma série de elementos que contribuem
para manipulação, para construção de uma hegemonia propriamente dita,
em sentido gramsciano, que passa sobretudo pela captura, se é que eu posso
chamar assim, da subjetividade do conjunto dessa classe trabalhadora. Esso
é um outro complexo social, o da ideologia, extremamente importante
para analisarmos o momento presente. Basta vericar como é que as
igrejas, sobretudo as religiões de corte neopentecostal, agem em função
de um determinado projeto político-econômico, que identicamos
genericamente como “bolsonarismo”.
Caminhando para o nal da minha exposição, poderíamos citar
vários exemplos de como é que está autocracia burguesa se reproduz no
cotidiano. O professor Roberto Leher – que me antecedeu – fez referência
ao espancamento de João Alberto no Carrefour
1
, em mais um episódio de
reprodução da barbárie cotidiana que presenciamos no país. Poderíamos
citar vários outros. Poderíamos citar, por exemplo, toda a repressão que as
populações pobres sofrem cotidianamente nas periferias, e sofrem pelas
mãos de uma das instituições que expressam de forma explícita isso que
nós caracterizamos como a autocracia na sua versão institucionalizada, que
são as Polícias Militar. Ou seja, aquelas forças públicas de segurança, que
foram criadas durante a ditadura militar, transformando a guarda pública
estadual em polícia militar, para reprimir, exatamente com essa função de
reprimir a população. Então, a tortura passa a ser um elemento cotidiano
nas delegacias de polícia, nas abordagens das forças públicas, das forças do
Estado que, ao contrário, deveriam garantir o direito da população.
Podemos pensar em outros elementos que o governo Bolsonaro
explícita. O projeto político-econômico – nós não podemos nos equivocar,
há um projeto político e econômico sendo construído e colocado em
João Alberto de Freitas foi espancado e morto por asxia por seguranças de uma loja da rede Carrefour, em
Porto Alegre – RS, na noite de 19 de novembro de 2020.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 257
prática –, um processo que envolve a desindustrialização do país (o
professor Roberto Leher falou em um processo de descomplexicação
das cadeias produtivas). Um projeto que envolve, necessariamente,
um investimento maciço no agronegócio e, portanto, no avanço da
fronteira agrícola”. Avançar a fronteira agrícola signica se utilizar da
legislação existente, ou mesmo, burlar a legislação existente para promover
deliberadamente uma política de incêndio, de destruição e devastação do
meio ambiente. E é claro, isso gera contradições das mais diversas. Desde
a hipocrisia externa do imperialismo que passa a reproduzir um discurso
de “defesa do meio ambiente e das orestas brasileiras”, mas também a
reação das populações originárias, dos povos indígenas, das comunidades
quilombolas, dos trabalhadores rurais sem-terra. Mas de qualquer forma
o que estou tentando demonstrar, é que esse projeto político é um projeto
extremamente autocrático! E é extremamente autocrático porque o
neoliberalismo, o capitalismo em si, mais ainda, o capitalismo na sua fase
neoliberal, expressa o aprofundamento da barbárie, que se manifesta numa
exploração constante da humanidade, numa exploração constante da
natureza, numa exploração intensa do ser humano e uma exploração que,
para ser garantida, necessariamente, deve ser garantida através da força,
seja através da força aberta, deliberada dos golpes militares, seja através
da força do Estado democrático de direito. Então todos nós podemos nos
manifestar, desde que respeitemos a ordem tal como ela existe. Percebam
esses elementos políticos e jurídicos.Por mais que existam alguns freios,
por mais que a burguesia a partir de algumas de suas frações começa a se
escandalizar” com Bolsonaro, por mais que a Rede Globo, de alguma
forma, passe a reproduzir um discurso contrário ao Governo Bolsonaro,
essa mesma emissora não reproduz um discurso contrário ao ministro da
economia Paulo Guedes. Porque esse é o projeto da burguesia internamente
instalada, cuja Rede Globo é uma das principais responsáveis pelo governo
que aí está.
Governo que reproduz essa autocracia que estou chamando aqui
de forma institucionalizada e que avança, inclusive, com um discurso na
direção da explicitação propriamente, digamos assim, de uma autocracia
clássica. Isso implica do ponto de vista do projeto político-econômico,
Marcelo Augusto Totti (Org.)
258 |
do projeto de nação que está se reproduzindo, necessariamente, em uma
forma de regressividade das formas societais do país, em todos os níveis,
em todas as dimensões, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de
vista político, seja do ponto de vista das relações pessoais. Nós observamos
em várias dimensões do nosso cotidiano aquilo que poderíamos chamar de
uma regressividade total das relações sociais no país.
Para terminar, gostaria de apontar o seguinte: Florestan Fernandes
foi um militante de partido, um militante que tomou partido na sua
vida, e tomou partido pelos trabalhadores. Esses trabalhadores e essas
trabalhadoras, essa força de trabalho, que se reproduz hoje no país de
forma profundamente precária, nas mais diversas frações proletariado.
Lutou até o m de sua vida. Permitam-me encerrar com uma nota de
depoimento pessoal: não por acaso, no seu velório, primeiro no Salão
Nobre da Reitoria da Universidade de São Paulo, depois no crematório de
Vila Alpina, também em São Paulo, não são por acaso foi entoado o Hino
da Internacional Comunista em sua homenagem. Como jovem militante
pude participar de forma emocionada daquele momento. São momentos
que marcam a nossa vida. Da mesma forma como em outros momentos,
em que pude presenciar a participação do professor, do militante Florestan
Fernandes em vários comícios, em vários debates. Posso dizer que, de certa
forma, tais experiências serviram de “inspiração”, não só na sua referência
enquanto quadro político da esquerda brasileira, mas também enquanto
instrumental analítico para analisar o país e para oferecer respostas para o
nosso futuro. Obrigado pela paciência de vocês!
| 259
C ,
R  

Roberto Leher
M T. O professor Roberto Leher é professor titular da
Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em educação, professor
colaborador da Escola Nacional Florestan Fernandes e pesquisador bolsista
do CNPQ. Além de ter uma atuação acadêmica, possui uma atuação
sindical signicativa. Foi presidente do nosso Sindicato Nacional –
ANDES-SN (2000), um Sindicato de luta e defesa da universidade pública
e, mais amplamente, da educação pública.
A produção intelectual do professor Roberto Leher versa sobre
a universidade pública e sobre o pensamento de Florestan Fernandes,
em especial as discussões sobre capitalismo dependente e a questão da
Universidade. Além disso, o professor Roberto Leher foi reitor da UFRJ
(2015-2019) em um período em que os vencedores da lista tríplice
eram nomeados, processo de escolha por meio de consultas realizadas
com voto paritário, o que foi algo bastante signicativo em sua eleição.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-298-7.p259-276
Marcelo Augusto Totti (Org.)
260 |
Leher tem importante atuação militante do campo progressista, não
só na universidade, mas no Rio de Janeiro. Então tem uma grande
contribuição a nos dar essa noite. Então é com enorme satisfação que
apresento o professor Roberto Leher. Em sua exposição Leher vai discutir
o pensamento do Florestan abordando o capitalismo dependente como
determinante da heteronomia cultural.
E o nosso colega Professor aqui da casa, né, nosso amigo, posso dizer
assim, nosso amigo professor Anderson Deo que é graduado em Ciências
Sociais pela Fundação Santo André, fez mestrado e doutorado aqui na
unidade, o professor Anderson fez um recém pós doutorado em teoria
política contemporânea na universidade Degli Studi di Urbino Carlo
Bo, e tem também trabalhos que versam aí sobre a temática de Florestan
Fernandes que é a discussão da questão da autocracia burguesa em seus
trabalhos aí do doutorado e do mestrado e tem inúmeros artigos sobre
Ducati entre outros autores do campo marxista. Então convido a todos, a
quem se interessar a discutir os temas aí a estudarem os textos do Professor
Anderson e também do professor Roberto Leher. Bom, eu vou encerrar
aqui rapidamente e dar tempo aos nossos palestrantes aí pra falarem, eu
passo então ao professor Roberto Leher que tem o tempo disponível,
professor, que à vontade.
R L: É uma alegria enorme estarmos juntos. A Unesp
tem assegurado uma contribuição muito importante para manter vivo o
pensamento de Florestan Fernandes, a exemplo da 1
a
Jornada de Ciências
Sociais da UNESP, 1986 (que foi sistematizada no excelente livro O saber
militante: ensaios sobre Florestan Fernandes, organizado por Maria Angela
D’Incao, 1987) e, sobretudo, para ampliar o diálogo das atuais gerações
com a sua obra, por meio do presente evento.
É uma imensa honra dividir a mesa com o Professor Anderson Deo.
Registro a felicidade de estar junto com todas e todos os que estão nos
acompanhando nesta noite em que se realiza um evento tão luminoso.
Hoje é uma data muito signicativa. Seguramente, Florestan Fernandes
teria feito pronunciamentos muito densos e profundos neste Dia da
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 261
Consciência Negra (20 de Novembro). Ontem vimos uma cena que vem
se repetindo em nosso país: a morte por asxia de João Roberto Silva
Freitas no supermercado da multinacional Carrefour. Aconteceu algo
muito parecido aqui no Rio de Janeiro em 2019, no Supermercado Extra,
em que um jovem rapaz de 19 anos, Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga,
foi igualmente sufocado pelos seguranças e que, ate o momento, não
foram julgados. É imperioso destacar que no dia do assassinato de João
Roberto, as ações do Carrefour subiram 1.5%. Neste dia, o vice-presidente
da República, o general Mourão atestou que no Brasil inexiste racismo. A
obra do Florestan, particularmente o seu trabalho elaborado no contexto
da sua tese “A integração do negro na sociedade de classes”, investiga sobre
como o povo emerge na história, é uma obra viva e de enorme importância
para pensarmos no racismo classista em nosso país. Minha solidariedade
à família do João Roberto, às lutas de todos os coletivos e movimentos
antifascistas de nosso país.
**
Destaco, por relevância, os conceitos de capitalismo dependente
e sua análise da particularidade da revolução burguesa no Brasil para
subsidiar o encerramento de um ciclo de debates que, a meu ver, coloca a
obra de Florestan Fernandes em interação com um dos contextos sociais
mais dramáticos da história do Brasil, conjugando as consequências
devastadoras da pandemia de Covid, a fome, a destruição de postos de
trabalho e o espectro neofascista.
capItalISmo dependente
O primeiro ponto que eu gostaria de salientar e destacar em relação
à obra de Florestan Fernandes diz respeito justamente ao capitalismo
dependente. O percurso teórico que permitiu Florestan chegar a esta
problemática, como salienta o magistral estudo de Miriam Limoeiro
Cardoso, inaugura uma maneira muito original, muito profunda, muito
Marcelo Augusto Totti (Org.)
262 |
densa, muito penetrante de pensar a particularidade do capitalismo no
Brasil. Esse percurso teórico resulta de um brilhante estudo cientíco de
Florestan que, em minha análise, contribuiu ontem e hoje para pensarmos
as relações de classe em nosso país e, sobretudo, como as frações burguesas
locais interagem com as frações hegemônicas.
Em Sociedade de classes e subdesenvolvimento, 1968 ele vai
desenvolver sistematicamente o conceito de capitalismo dependente. Este
estudo conforma, de fato, um momento novo da reexão Florestaniana.
Miriam Limoeiro Cardoso em seu ‘clássico’ sobre a génese do conceito
de Capitalismo dependente reconstrói o percurso teórico que leva nosso
autor a sistematizar o conceito. É necessário salientar que este trabalho de
Florestan tem uma riqueza metodológica imensa, particularmente porque
nele Florestan inova o modo de pensar as classes e o capitalismo no Brasil.
Fernandes conclui que não podemos estudar o Brasil como um campo
de estudo fechado, como um campo de estudo que se basta, porque,
justamente, o Brasil é parte do capitalismo mundial, é parte de um sistema
Mundial, é parte do modo de produção capitalista. Florestan destaca,
ainda, que a particularidade do modo de produção capitalista no Brasil não
pode ser pensada na perspectiva do evolucionismo vulgar que prevaleceu
inclusive no campo da esquerda e até mesmo no pensamento marxista
e que, de alguma forma, esteve presente na perspectiva da Revolução
Nacional Democrática que marca a estratégia da esquerda brasileira nos
anos 1950 e até o golpe empresarial-militar de 1964. Naquele contexto,
em conformidade com a Declaração de Março de 1958 do PCB, perdurava
a perspectiva de que no Brasil existiam grandes enclaves pré-capitalistas,
grandes enclaves de características feudais. Para que tais bolsões fossem
removidos seria preciso capilarizar o capitalismo moderno, industrial,
referenciado no assalariamento de todas as relações de trabalho. Decorre
desta leitura que somente em aliança com os segmentos modernos da
burguesia seria possível acelerar a universalização do modo de produção
capitalista em todo o território. Desse modo, a esquerda estaria fadada
a construir uma aliança burguesa para acelerar a Revolução Nacional
Democrática, burguesa, sem a qual o Brasil não poderia ser um país
hegemonizado pelo modo de produção capitalista. A estratégia para o
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 263
socialismo envolveria, por conseguinte, duas etapas, a burguesa e, com o
amadurecimento das condições capitalistas, a socialista. Foi nesse ambiente
de reexões que aconteceu o golpe empresarial-militar que dirimiu a dúvida
sobre o lugar histórico das frações burguesas dominantes locais, quase que
integralmente envolvidas na construção do golpe. Os supostos setores
modernos e propensos a uma via nacional de desenvolvimento estavam
essencialmente engajados no golpe.
Destoaram dessas avaliações dois grandes intérpretes do Brasil,
Florestan Fernandes e Caio Prado Jr. Estes autores nos mostraram que, nos
anos 1950, o Brasil já era um país capitalista. Florestan precisou ainda mais
a análise: o capitalismo no Brasil tem que ser lido no prisma especíco
do desenvolvimento desigual do capitalismo. Isso altera em profundidade
toda a perspectiva estratégica.
Na ótica Florestaniana, o golpe demonstrou – e ele teorizou isso –
a estratégia política da esquerda não passa por uma aliança com os setores
ditos modernos das frações burguesas locais que, apoiadas pela classe
trabalhadora, acelerariam a Revolução Nacional Democrática, armando
um projeto auto propelido de nação. Sua elaboração certamente resulta
da interpelação do golpe empresarial-militar de 1964. Equaciona de uma
maneira muito sistemática e profunda a natureza do capitalismo e, por
isso, essa formulação do Florestan, a meu ver, pode ser elencada como
uma das suas grandes contribuições para o pensamento social crítico em
nosso país.
É importante destacar que a partir da teoria do capitalismo
dependente se arma na ciência social brasileira uma robusta análise que
altera as visões correntes sobre o imperialismo. Em sua interpretação, a
acumulação do capital no Brasil se dá, concomitantemente, em circuitos
nacionais, com o real protagonismo das frações burguesas locais e, o que
é crucial, em interação com os núcleos hegemônicos externos. Florestan
inova teoricamente ao demonstrar que o imperialismo não é uma realidade
externa ao país. O imperialismo não é uma realidade que vem de fora
para dentro como se a nossa burguesia fosse uma vítima indefesa dos
grilhões imperialistas; ao contrário, o imperialismo expressa inextrincável
interação com entre as frações burguesas locais – sem estas não teríamos
Marcelo Augusto Totti (Org.)
264 |
uma ecácia tão grande do imperialismo que, embora mantendo forte
depleção de riqueza para os núcleos hegemônicos, não impede que o Brasil
esteja no rol dos países que têm o maior PIB Mundial, entre as dez maiores
economias do mundo. Ademais, a grande burguesia local está muito bem
ranqueada na lista dos bilionários que a revista Forbes elenca todos os anos,
destacando os mais ricos do mundo: o país possui 65 bilionários, uma
posição expressiva. A inclusão social dos bilionários na lista da Forbes é
sumamente relevante para pensar o capitalismo no Brasil e a força relativa
de sua poderosa burguesia. Florestan compreende que a acumulação no
nosso país deve ser capaz de propiciar uma margem signicativa de mais-
valia para que possa ser compartilhada com os sócios maiores dos centros
hegemônicos, sem descurar dos ganhos das frações burguesas locais. O que
é necessário ressaltar é que determinadas frações burguesas locais logram
obter mais do que migalhas da mais-valia extraída no país.
Florestan Fernandes sustenta que o capitalismo no Brasil está
assentado num padrão de exploração muito severo do trabalho e em um
movimento permanente de expropriações, o que pode ser vericado pela
ausência da reforma agrária no Brasil, mas, também, por expropriações de
segunda ordem, como a negação de direitos sociais e, após a Constituição
de 1988, como a destruição das conquistas, situação em curso no Brasil.
a reVolução burgueSa no braSIl
O segundo ponto que eu destacaria da contribuição do Florestan
é o seu trabalho sobre a Revolução Burguesa no Brasil, obra concluída
em 1975, sobretudo a terceira parte deste livro. O livro nos mostra que a
revolução burguesa no Brasil é ‘sui generis’ e não pode ser interpretada a
partir de modelos que aconteceram em outros países, particularmente as
revoluções burguesas a quente como a revolução francesa e a revolução
estadunidense.
No caso brasileiro tivemos uma revolução sem revolução, ou seja,
uma revolução que não engendrou condições para que os subalternos,
os expropriados, os explorados e os humilhados da terra alcançassem um
patamar de efetiva cidadania e de direitos sociais inseridos no projeto de
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 265
nação, inseridos em um projeto auto propelido de nação. Ao contrário,
Florestan nos mostra que esta revolução burguesa ‘sui generis’, revolução
sem revolução, revolução pelo alto, propiciou condições de enorme
mobilização industrial e tecnológica, porém sem integração dos de baixo.
Em condições muito adversas, pois em uma ditadura, constituímos um
Estado com forte inteligência entranhada em suas vísceras. Isso ocorreu
principalmente no período da ditadura empresarial-militar. A expansão da
pesquisa e da pós-graduação brasileiras se deu justamente neste período.
Esta revolução burguesa ‘sui generis’ tem caráter modernizante, dinâmico,
não signica atraso e uma burguesia débil; não congura, em suma, uma
burguesia vitimada pelos centros hegemônicos.
É um capitalismo dependente. Florestan não está falando em
dependência. Está falando em capitalismo, e, no caso particular brasileiro,
de um capitalismo dependente. É importante destacar que a análise que
Florestan faz sobre a revolução burguesa no Brasil está profundamente
imbricada a uma reexão complexa e muito controversa. Na época em que
o livro foi publicado, nal dos anos 70 sobretudo, a chamada sociedade
civil estava sendo reorganizada e muitos viam que o horizonte futuro seria
de ‘ocidentalização’ da sociedade brasileira. Distintamente, em seu livro,
Florestan preconiza a centralidade da autocracia burguesa como forma
especíca do capitalismo dependente. E justamente a análise que Florestan
vai fazer sobre autocracia burguesa foi muito mal compreendida em vários
círculos da época, como se fosse equivalente a formas arcaicas de negação
da Democracia. Florestan demonstra que a autocracia burguesa tem um
caráter modernizante, mas que está profundamente assentada na lógica e
na estrutura de poder autocrática. De fato, quando Florestan publicou seu
trabalho em 75, o país vivia a chamada abertura “lenta, gradual e segura”.
No nal dos anos 70, irrompe um acentuado ascenso das lutas sociais no
Brasil. Muitos imaginavam, então, que a autocracia estava sendo superada,
varrida e que, com o processo constituinte, seria uma realidade superada
historicamente. De fato, a constituinte que contou com o protagonismo
do Deputado Florestan (PT) resultou em uma Constituição muito mais
favorável aos direitos sociais do que a correlação de forças entre os partidos
permitia antever. Por isso, grande parte dos cientistas sociais acreditou
Marcelo Augusto Totti (Org.)
266 |
que o país entraria em um longo período virtuoso de democracia. Na
realidade, como podemos acompanhar no golpe de 2016, ao contrário
daquelas expectativas, traços autocráticos seguiram subjacentes no país,
contudo, em 2016 ca patenteado que os setores dominantes, em sua
quase totalidade, atuou deliberadamente em prol da autocracia com
características extremamente perigosas. O bolsonarismo não foi, por
conseguinte, um raio em céu azul.
unIVerSIdade no capItalISmo dependente
Finalmente, gostaria de enfatizar as contribuições de Florestan
para pensarmos a universidade e a educação pública. Florestan escreveu
um livro muitíssimo luminoso que, na realidade, é uma compilação
articulada de intervenções e de debates que ele participou, sobretudo com
o movimento estudantil. Os debates institucionais estavam interditados
em 1968 e poucos espaços ousaram/ puderam enfrentar a ditadura.
Os escritos de Fernandes foram elaborados a quente, no contexto das
lutas pela reforma universitária. Originalmente, a obra “Universidade
brasileira: reforma ou revolução?” seria publicada em 1969, mas a edição
do AI-5 e do Decreto 477/1969 levou a editora a postergar a publicação.
Desse modo, o livro somente foi publicado em 1975. Ademais, o leitor
se beneciou de um brilhante e esclarecedor prefácio à segunda edição
(1978) elaborado por seu autor que faz um primoroso diagnóstico da
política universitária da ditadura e de como as medidas governamentais
foram recepcionadas pelas universidades.
Entendo que, ao contrário da própria avaliação de Florestan
Fernandes, o livro não é uma produção menor em sua grandiosa obra.
Nesta publicação ele faz indicações muito valiosas, penetrantes, densas
sobre a universidade, a educação em nosso país e a heteronomia cultural.
Florestan conclui que as amarras que nos aprisionam à heteronomia
cultural não decorrem de heranças e correntes do passado, mas do próprio
capitalismo dependente, ou seja, a heteronomia cultural que caracteriza o
país está fortemente vincada à natureza do capitalismo dependente.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 267
Florestan elenca os desaos para projetarmos o futuro da universidade
brasileira. O sociólogo destaca que é imperioso fazer um severo ajuste
de contas com o modelo universitário engendrado no contexto do Ato
Institucional n
o
5, especialmente a forma heterônoma de denição das linhas
de pesquisa em espaços externos à universidade, lugares ocupados, sobretudo,
pela inteligência contrarrevolucionária que atuou vivamente no interior
da universidade brasileira. No referido prefácio a Universidade Brasileira:
reforma ou revolução? Fernandes conclamou, instou, que uma das tarefas da
chamada redemocratização era fazer um rigoroso ajuste de contas com o
modelo universitário ditatorial. Mesmo na constituinte, que logrou avanços,
os fundamentos da organização da universidade e das políticas de ciência e
tecnologia herdados da ditadura não foram inteiramente derrubados. Foi
criado o ministério da Ciência e Tecnologia ainda na Nova República, mas
o fato é que a lógica de produção do conhecimento, por meio de linhas e
editais de pesquisa, não foi enfrentada, nos aprisionando aos circuitos de
produção do conhecimento estabelecidos com os governos, em detrimento
da autonomia universitária que não pode ser livremente exercida.
Evidência disso é o fato de que as grandes problemáticas cientícas
que, com avanços e recuos marcaram o debate social dos anos 50 na
América Latina, de uma forma geral desapareceram da agenda, pelo menos
da agenda central de pesquisa em nosso país. Eu me rero particularmente
aos estudos que abordam os determinantes do subdesenvolvimento, o que
caracteriza o subdesenvolvimento, porque que as nações têm processos
tão desiguais de desenvolvimento, porque temos pobreza, o que são
os determinantes da pobreza, enm, essas perguntas deixaram de ter
centralidade na universidade brasileira.
A ditadura nos legou, ademais, uma estrutura universitária muito
pouco democrática. Essa autonomia tutelada pelo governo é incompatível
com a autonomia universitária. O não enfrentamento da questão
democrática, a exemplo das eleições para reitor, cobram altíssimo preço no
atual contexto, claramente de inspiração neofascista.
É por tudo isso uma obra essencial para tornar pensáveis os dilemas
atuais da educação, da ciência, da cultura, da arte. A proposição que ele fez
sobre o capitalismo dependente e seus nexos com a heteronomia cultural,
Marcelo Augusto Totti (Org.)
268 |
no citado prefácio e nos demais capítulos do livro, conrma que Florestan
está munido de uma reexão que amadurecida teoricamente. Nesta obra
encontramos, além disso, preciosas reexões sobre a relação educação e
desenvolvimento já embebidas desses novos marcos teóricos que Florestan
foi capaz de engendrar.
**
A obra de Florestan é necessária para pensarmos o contexto atual
de nosso país. Tenho sustentado – e não é uma formulação original, pois
presente em muitas análises – que não podemos dissociar 2016 de um novo
momento da autocracia burguesa em nosso país. É importante destacar
que a destituição da presidenta Dilma contou com o imenso apoio do
andar de cima, todas as principais frações burguesas apoiaram a ruptura
democrática, e com uma concepção muito nítida, muito explícita, do que
deveria acontecer no dia seguinte após a destituição da Presidenta Dilma:
uma mudança na radicalidade da agenda neoliberal sem precedentes,
estreitando as vias democráticas, ainda que formais.
A defesa de que a Constituição de 1988 deveria ser interrompida,
bloqueada, travada, tornada sem efeito, particularmente e seus dispositivos
relativos à área social (que consubstancia o nome “Constituição Cidadã”)
foi um consenso entre os patrocinadores do golpe, como expresso na “Ponte
para o Futuro”. O principal movimento nessa direção foi a aprovação em
tempo recorde da Emenda Constitucional n
o
95/2016. De modo acertado,
os seus elaboradores criaram um ardil orçamentário para que os modestos
avanços nos direitos sociais, previdenciários e trabalhistas tivessem que
ser extirpados, em nome da responsabilidade scal. Para segurar o (falso)
décit da previdência iniciaram o processo de redução relativa do salário-
mínimo e, ao mesmo tempo, foram empreendidas ações para exibilizar
de modo extremo os direitos trabalhistas, o que foi feito com a reforma
trabalhista de 2017.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 269
No contexto imediatamente após o golpe, o bloco no poder buscou
repactuar a agenda neoliberal, retirando os seus elementos sociais e
salvaguardas para as frações burguesas locais. Embora estejamos dentro
de um sistema de acumulação neoliberal desde os anos 1990, o sistema
de acumulação neoliberal tem particularidades: Collor não é igual a
FHC, Lula da Silva não é idêntico a FHC e, a rigor, Dilma Rousse não
é igual ao governo Lula da Silva. Florestan nos ajuda muito a pensar essas
particularidades.
Nos dias de hoje, temos um reposicionamento do papel dos militares,
importantes segmentos das forças armadas aderiram aos preceitos da
chamada guerra cultural, um movimento que muito supunham no baú dos
acontecimentos históricos. Conhecemos novas formas de desestabilização,
como ocorreu no governo Dilma Rousse em que a chamada revolução
dos algoritmos foi aplicada para corroer o senso comum que até então
simpatizava com os governos do PT. Formas de interpelação e acionamento
de elementos reacionários foram acionados nas massas populares, em
benefício da extrema-direita que se nutriu e foi alicerçado pelo chamado
lava-jatismo. O fato é que o bolsonarismo encontrou o seu Bolsonaro e
quando o bolsonarismo encontra o seu Bolsonaro, passamos a viver uma
combinação muito perigosa entre o ultra neoliberalismo e as perspectivas
neofascistas. É isso que marca o contexto atual de guerra cultural que
conjuga o fundamentalismo econômico neoliberal extremo – nas palavras
do ministro Paulo Guedes: “colocamos uma granada no bolso do inimigo”,
o inimigo, no caso, é o servidor público que cará por mais de uma década
sem reajuste, em um contexto de enorme inação; anteriormente, o mesmo
ministro mostrou indignação com o fato de que até a empregada estava
podendo viajar para Miami, enm, todos esses processos ultrarreacionários
passam a compor o cotidiano balizado pela referida guerra cultural. Outra
faceta da guerra cultural é o profundo ataque a toda a herança de um Estado
que ainda continha setores de inteligência e que hoje é tido como um
estorvo: pensemos no fechamento dos órgãos de ciência e tecnologia, o nos
ataques à ANVISA, ao IBGE, ao INPE, às universidades e, cotidianamente,
aos cientistas qualicados pelo presidente como “canalhas”.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
270 |
O governo Bolsonaro se notabiliza pelas intervenções nas
universidades. Desde sua posse, ocorreram 45 processos de escolha de
dirigentes no nosso país, destes, somente 18 novos reitores foram os
vencedores a consulta, conrmando o avanço autocrático nas instituições
universitárias. É uma situação muito estruturante, muito grave, visto que,
ao mesmo tempo, temos mudanças na Capes, no sistema de avaliação, na
tentativa de esvaziamento das revistas cientícas brasileiras, e mudanças
de editais para suprimir problemáticas que entram em confronto com as
concepções governamentais. Tenho argumentado que a política de editais é
uma marca da heteronomia construída no período da ditadura empresarial-
militar, visto que as linhas de pesquisa passaram a ser denidas em âmbito
externo às instituições universitárias.
Tudo o que ocorre de antidemocrático nas universidades revela
um quadro extremamente preocupante. É uma situação que precisa ser
alterada de modo profundo; daí a atualidade da elaboração estratégica
realizada por Florestan por meio da dialética “revolução dentro da ordem
e da “revolução fora da ordem”. A inquietação social está ganhando corpo
em nosso país. Estamos vivendo um período muito vivaz e luminoso de
elaboração do pensamento crítico. As diversas atividades que aconteceram
nos últimos meses no contexto da pandemia demonstram a pujança da
reexão social brasileira, como pode ser visto, por exemplo, na qualidade
das perguntas do público que acompanha os debates, por meio de “lives”,
aulas públicas, debates, seminários, encontros diversos. Quando estamos
fazendo perguntas interessantes, estamos construindo as condições para
conduzir essas perguntas até o m, na perspectiva de superação de uma
ordem social que, conforme apontei no início da minha fala, é marcada
pelo racismo, é marcada pela brutalidade e por formas de reprodução das
desigualdades sociais que se caracterizam como uma das mais perversas
do mundo. Os aportes de Fernandes, nesse sentido, são imprescindíveis
enfrentar as interpelações do tempo histórico. Fico por aqui para a prosear
com o público e, assim, construir nossa reexão conjunta.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 271
M T: Obrigado Roberto pela brilhante exposição, uma
análise que vai do capitalismo dependente até a análise conjuntural atual.
Esse é um pouco o espírito do nosso evento. Vou começar aqui pela do
Henrique: “é possível armar que a política educacional da ditadura já
tinha princípios e fundamentos neoliberais?”
R L: Henrique, registro a alegria de estarmos
compartilhando o evento! No período da ditadura encontramos proposições
neoliberais? Eu entendo que sim. Apesar de termos uma situação muito
heterogênea no período da ditadura empresarial-militar brasileira, o
campo da educação sempre foi fortemente centralizado pelos liberais
de direita. Não podemos nos esquecer que foi no período da ditadura
que tivemos a chegada ao Brasil da chamada teoria do capital humano,
atualizada na Escola de Chicago, justamente no contexto de sistematização
da doutrina neoliberal. A chamada teoria do capital humano chega ao
Brasil com objetivos explicitamente políticos. Em 1963/1964, antes do
golpe, a inuência da USAID era enorme. Nos documentos da USAID era
recorrente o diagnóstico de que a educação brasileira era muito marcada
pelo marxismo e por outras perspectivas ditas populistas que colidiam com
as concepções “do mundo livre”. Naquele contexto, um analista da USAID
recomendou como antídoto ao marxismo a incorporação dos trabalhos
de Schultz sobre a teoria do capital humana na educação brasileira. A
perspectiva educacional liberal-conservadora, neoclássica, individualista,
é o fundamento do neoliberalismo. O tema central da chamada teoria
do capital humano (e do neoliberalismo) é a liberdade do indivíduo
no mercado: cada indivíduo forja seu próprio capital humano e faz uso
dele no mercado. Um bom capital humano pressupõe que a criança e os
jovens saibam mostrar os seus ‘dentes no mercado’ para assegurar melhores
condições de venda da força de trabalho ou, atualmente, para se desenvolver
no mercado por meio do empreendedorismo. O neoliberalismo no Brasil
sempre esteve associado ao pensamento reacionário de direita. A reforma
da pós-graduação brasileira que a institucionalizou foi feita pelo Newton
Sucupira, meu colega na Faculdade de Educação da UFRJ – quando
z o concurso de ingresso, ele estava se aposentando. Newton Sucupira
Marcelo Augusto Totti (Org.)
272 |
estava referenciado numa perspectiva moral conservadora ancorada no
liberalismo de direita. Ainda que os liberais conservadores não tenham
ocupado o cargo de ministro da Educação foram quadros da escola de
Chicago que referenciaram parte relevante das concepções praticadas pela
ditadura, sobretudo após o agravamento da crise econômica dos anos 1970,
a exemplo do ex-presidente do Banco Central Geraldo Langoni (1980-
1983), um quadro que inuenciou o pensamento educacional da ditadura
empresarial-militar; antes dele outros quadros podem ser inseridos no
âmbito neoliberal, como Eugênio Gudin e Octávio Gouveia de Bulhões
(Ministro da Fazenda entre 1964-1967).
M T: baseado em seus estudos sobre o capitalismo
dependente teorizado por Florestan, historicamente não tivemos
investimentos relevantes em ciência e tecnologia. Após 2016 foi
aprovada uma reforma trabalhista que exibiliza as relações de
trabalho (intermitente, precário) e uma reforma do ensino médio que
retira conteúdo cientíco da formação dos jovens, tudo isso atrelado a
uma diminuição drástica dos investimentos em Ciência e Tecnologia.
Como estamos vendo na pandemia, o país encontra-se vulnerável em
relação aos insumos para as vacinas, assim como em relação a produção
de medicamentos básicos. Qual o papel da Universidade no próximo
decênio? Qual o nosso no futuro daqui a dez anos diante desse quadro?
R L: Uma excelente questão, mas muito difícil de
desenvolver. É uma pergunta necessária e dolorosa, mas precisamos
fazer esta pergunta. Há tempos que o Brasil está descomplexicando
suas cadeias produtivas. Enquanto nos anos 1960 e 70 falávamos em
liais das multinacionais, hoje falamos em montadoras. Não se trata
apenas de nomenclatura. É uma mudança de conteúdo: uma montadora
monta”, faz acoplamento de peças e estruturas em geral produzidas em
outros países, atualmente, notadamente na China, mas não apenas. Uma
lial normalmente desenvolvia industrialmente todos os componentes,
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 273
efetivando certo encadeamento produtivo. Um exemplo que não pode ser
esquecido foi o encadeamento da indústria automobilística entre 1960 e
1980. Tivemos empresas públicas importantes no Brasil; os casos óbvios
são a Embraer e a Petrobras. A primeira tem sua história associada ao ITA,
a petroleira também está alicerçada em um desenvolvimento tecnológico
muito signicativo: possui um grande centro de pesquisa (CENPES) com
muita capilaridade nas nossas universidades, a exemplo da UFRJ. Mas cada
vez mais falamos em empresas de alta tecnologia como exceções no parque
industrial brasileiro. Em um estudo que o IBGE realizou sobre a inovação
(PINTEC), é possível vericar que a inserção no setor privado dos mestres
e doutores, inclusive os provenientes das ciências duras, mesmo no período
de expansão Econômica como 2007/2009, é muito baixa. Dos cerca de
50 mil Mestres e Doutores formados nas chamadas ciências duras, menos
de 1% trabalha no setor privado com pesquisa e desenvolvimento. Esta
situação é completamente distinta da existente nos Estados Unidos, em
que cerca de 90% atuam no setor privado, parte signicativa em áreas am
e conexas à pesquisa e desenvolvimento.
O padrão de acumulação no Brasil está sofrendo mudanças que
expressam as contradições do capitalismo dependente. Todas essas
mudanças estão profundamente imbricadas com o sistema político de
dominação que está em curso hoje em nosso país. Qual é o cenário em
nosso país para o futuro da universidade? Nenhuma fração burguesa
dominante, grifo, nenhuma, coloca a universidade pública, autônoma,
gratuita, referenciada na indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e
a extensão, como parte do seu projeto de futuro. Até a agricultura que
ensejou grande desenvolvimento cientíco e tecnológico brasileiro mudou.
Os pacotes tecnológicos associam transgênicos, insumos e mercado. Isso
reduz a necessidade de pesquisa e desenvolvimento em nosso país. É forçoso
reconhecer que, se olharmos uma escala mais ampla, vamos constatar que
o Brasil está se afastando de uma inserção na economia mundial a partir de
cadeias produtivas sosticadas, com pujantes departamentos de pesquisa e
desenvolvimento etc.
Entendo que esse panorama explica muito as motivações
governamentais, após o golpe, ao promover mudanças, como as do
Marcelo Augusto Totti (Org.)
274 |
chamado Novo Ensino Médio, conforme muito bem destacado por
Marcelo Totti. Qual é mensagem que está sendo passada para os jovens?
É que a formação, mesmo no nível médio, diferente do que aconteceu
na Coreia e em outros os países, pode ser aligeirada e alicerçada em uma
formação cientíca supercial. Isso não é um tema secundário. Hoje
todas as áreas do conhecimento, sem exceção, compreendem que uma
formação cultural ampla é necessária para fazer ciência. É impensável
uma engenharia que seja incapaz de pensar problemas socioambientais.
Seria anacrônico conceber pedagogos e prossionais de educação que
não consigam interpretar o racismo, as mudanças nos setores produtivos,
e compreender a formação das estruturas de pensamento nas crianças.
Todas as áreas exigem uma formação mais completa e complexa do Ensino
Médio. O Brasil está ceifando a formação da juventude e isso não deixa
de ser uma mensagem sobre o futuro. Os recursos nanceiros associados a
função ciência e tecnologia despencaram de R$ 12 bilhões em 2014 para
4,5 bilhões em 2021. As 63 universidades federais brasileiras possuíam já
escassos R$ 2,8 bilhões para investimentos em 2014, em 2021 a previsão é
de menos de R$ 200 milhões; no mesmo período, o custeio das 63 Federais
derreteu: despencando de R$ 9 bilhões para R$ 5,5 bilhões (previsto na lei
orçamentária de 2021).
Então, qual é a projeção do capital? Na lógica atual do capital o
cenário é de manter a universidade zumbi, ou seja, a universidade
formalmente está aberta, com trabalhos de pesquisa aqui e ali, atividades
de ensino, mas já sem condições de uma seiva vital para levar adiante seu
desenvolvimento institucional, já sem condições de manter minimamente
a assistência estudantil, a democratização importantíssima do perl social
dos nossos estudantes, enm, e é isso que eu caracterizo como universidade
zumbi: ela está viva, mas não está viva.
Somente com alterações políticas substantivas (m do governo
Bolsonaro) vamos ter novamente a universidade como uma instituição
capaz de projetar o futuro. A pandemia nos mostra de uma maneira cabal
que os países que não têm universidades públicas não são capazes de
produzir com soberania insumos para a saúde etc., e que, por isso, estão
no pior dos mundos. Vejam a situação exótica que vivemos no Brasil: o
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
| 275
país foi surpreendido com a crise do just-in-time: não é verdade que é só
apertar o botãozinho que uma semana os produtos estão na nossa mão.
Vimos até saque de navios, bloqueio (ou atraso) de saída de insumos de
certos países. O Brasil se viu sem condições de produzir máscaras e álcool
em gel. O país tem tecnologia para fazer testes diagnósticos para vírus e
vacinas, mas não temos os insumos. Isso nos mostra que o afastamento do
país de cadeias produtivas mais complexas nos coloca numa situação de
muita vulnerabilidade.
Entendo que devemos voltar a pensar o que signica uma soberania
não apenas nacional, mas eu diria continental. Nossa produção tecnológica
tem de estar em conexão com a América Latina e a África, projetando
uma renovada concepção de Nova Ordem Econômica Internacional,
questão que foi discutida nos anos 60. Sem transformações políticas
substantivas desgraçadamente a minha leitura é de que o risco maior é
o da universidade zumbi, o que não vamos permitir. A juventude tem
sido capaz de emocionante protagonismo, como no 15 de Maio 2019.
Precisaremos lutar muito para impedir que o projeto dominante se
realize. O Ministério da Educação virou uma trincheira do negacionismo
e da Guerra cultural. O governo federal não gastou os recursos mínimos
para melhorar a infraestrutura das escolas e universidades para permitir
a volta presencial. Necessitamos superar esse terrível período em que
setores sociais encontraram o seu Bolsonaro. Será preciso cambiar o senso
comum. A história é dinâmica. Há indícios, lampejos, de que é possível
mudar substantivamente a brutal realidade, mas precisamos acelerar o
tempo histórico.
M T: Muito obrigado, Roberto, pela excelente
exposição e pelas colocações no debate. É um prazer ter você aqui, ainda
que virtualmente. Você discutiu o papel da universidade e sua relação
com a sociedade de maneira brilhante e fazer uma análise de conjuntura,
incorporando o papel da Universidade nos próximos anos e os desaos que
nós temos que enfrentar. Então eu agradeço
Marcelo Augusto Totti (Org.)
276 |
R L: Eu peço desculpas pelo problema de agenda que
não deveria ter acontecido. Estou frustrado por ter que acelerar a minha
participação, mas seguramente vou acompanhar o debate do Anderson
Deo. Reitero meus agradecimentos pelo honroso convite e, também, a
alegria de estar junto com tantas pessoas que eu admiro por suas imensas
contribuições para o adensamento do pensamento crítico em nosso país.
Estamos juntos, um abraço muito grande a todas e todos!
Sobre autoreS
| 279
adelar jo pIzetta
Graduado em Pedagogia pela Fundação de Ensino do Desenvolvimento
do Oeste, Chapecó/SC (1982), Mestrado e Doutorado em Educação pela
Universidade Federal do Espírito Santo. Professor da UFES/CEUNES, em
São Mateus, no Departamento de Educação e Ciências Humanas (DECH)
e Colaborador/Educador da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).
anderSon deo
Doutor em Ciências Sociais. Docente do Departamento de Ciências
Políticas e Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da UNESP/Marília. Pós-Doutorado na Università Degli Studi di
Urbino “Carlos Bo”. Líder do Grupo de Pesquisa – Núcleo de Estudos
de Ontologia Marxiana-Trabalho, Sociabilidade e Emancipação Humana
(NEOM/CNPq).
angélIca loVatto
Doutora em Ciências Sociais (PUC-SP). É professora do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp-Marília e do Departamento
de Ciências Políticas e Econômicas, onde coordena o Grupo de Pesquisa
CNPq Pensamento Político Brasileiro e Latino-Americano (PEPO).
Integrou a Comissão de Altos Estudos do Centro de Referência das Lutas
Políticas no Brasil (1964-1985) - Memórias Reveladas (Arquivo Nacional-
RJ), de 2014 a 2016.
caIo naVarro de toledo
Doutor em Filosoa pela Unesp, professor aposentado do Departamento
de Ciência Política da Unicamp. Foi coordenador do Cemarx e autor
de Iseb: fábricas de ideologias e Governo João Goulart e o golpe de 64,
além de autor de inúmeros artigos e capítulos de livros sobre o Iseb e o
pensamento político brasileiro.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
280 |
debora mazza
É docente do Departamento de Ciências Sociais na Educação e do Programa
de Pós-Graduação da Unicamp onde foi diretora associada da Faculdade de
Educação. Possui pós doutorado em Sociologia pelo Laboratoire Genre,
Travail e Mobilité (GTM), e pós doutorado em Sociologia pelo Centre de
Recherche sur le Brésil Contemporaim (CRBC), Ecole des Hautes Etudes
en Sciences Sociales (EHESS), ambos em Paris- França e Doutorado em
Ciências Sociais. É bolsista produtiva pelo Cnpq e publicou o livro A
produção sociológica de Florestan Fernandes e a problemática educacional.
francISco luIz corSI
Possui graduação em Economia pela Universidade de São Paulo(1984),
graduação em Ciências Sociais pela USP, mestrado em Ciência Econômica
pela Unicamp (1991), doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp
(1997) e pós-doutorado pelo Instituto de Economia da Universidade
Estadual de Campinas(2011). Atualmente é Professor Assistente Doutor
da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Membro de
corpo editorial do Mundo e Desenvolvimento, da Universidade Federal de
Pernambuco e Membro Associado do Associação Brasileira de Pesquisadores
em História Econômica.
haroldo ceraVolo Sereza
Graduado em comunicação social - habilitação em jornalismo pela ECA-
USP e Doutor em Literatura Brasileira pela USP Dirige o site Opera
Mundi desde 2010. É editor da livros da Alameda Casa Editorial desde
2004. Autor dos livros “Florestan - A inteligência militante” (Boitempo,
2005), “À Espera da Verdade - histórias de civis que zeram a ditadura
militar” (Alameda, 2016) e “Trinta e tantos livros sobre a mesa” (Ocina
Raquel, 2018). Professor convidado do programa de pós-graduação em
Literatura da Universidade Federal de São Carlos.
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
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marcelo auguSto tottI
É sociólogo e docente do Departamento de Sociologia e Antropologia
da Unesp de Marília, líder do grupo de pesquisa: “Intelectuais, esquerdas
e movimentos sociais” e pesquisa temáticas relacionadas ao pensamento
social brasileiro.
marIa Selma de moraeS rocha
Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1985),
mestrado em História Econômica pela Universidade de São Paulo (1996)
e doutorado em História Social (2015), pela FFLCH/USP. Foi docente
da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e diretora da
Fundação Perseu Abramo (2003-2010).
paulo henrIque martInez
Professor Associado na Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis.
Com mais de 300 publicações em diferentes modalidades de produção
bibliográca e técnica, publicou o livro Florestan ou o sentido das coisas.
paulo henrIque fernandeS SIlVeIra
Doutor em Filosoa pela Universidade de São Paulo. Docente e pesquisador
na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Faz parte do
grupo de pesquisa Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória, do
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e coordena o
grupo de estudos sobre Educação, Filosoa, Engajamento e Emancipação,
vinculado à FEUSP.
Marcelo Augusto Totti (Org.)
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roberto leher
Professor Titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFRJ e bolsista produtividade nível 2 do Cnpq.
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (1998), desenvolve
pesquisa em políticas públicas em educação. Coordena o Coletivo de
Estudos em Marxismo e Educação - COLEMARX. Pesquisador do
CNPq e colaborador da Escola Nacional Florestan Fernandes, foi reitor da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (julho de 2015 a julho de 2019).
catalogação na publIcação (cIp)
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
normalIzação
Elizabete Cristina de Souza de Aguiar
Monteiro
CRB - 8/7963
Janaína Celoto Guerrero Mendonça
CRB-8/6456
capa e dIagramação
Gláucio Rogério de Morais
produção gráfIca
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
aSSeSSorIa técnIca
Renato Geraldi
ofIcIna unIVerSItárIa
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
formato
16 x 23cm
tIpologIa
Adobe Garamond Pro
papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
tIragem
100
ImpreSSão e acabamento
2022
Sobre o lIVro
(Organizador)
100 anos de Florestan Fernandes: legado de ciência e militância
Marcelo Augusto Totti (Org.)
FLORESTAN
FERNANDES
legado de ciência e
militância
Marcelo Augusto Totti
100 anos de
Florestan Fernandes completaria 100
anos em 2020. Filho de Maria Fernandes
imigrante portuguesa que veio trabalhar
nas lavouras brasileiras, conheceu as
agruras da vida desde sua infância,
segundo suas próprias palavras nunca
teria se tornado o sociólogo que se foi,
sem sua origem “plebeia” e sua
socialização pré e extraescolar. Essa
aprendizagem sociológica se iniciou aos 6
anos de idade quando precisou ganhar a
vida como adulto, trabalhando como
engraxate. Mas eu diria que ela é anterior,
sua mãe desiludida com o trabalho nas
lavouras do interior paulista decide se
mudar para a capital e passa a trabalhar
como doméstica na casa da família
Bresser. Grávida de Florestan, Hermínia
Bresser de Lima que seria a madrinha de
Florestan, de origem abastadas e com
hábitos requintados recusava a chamá-lo
pelo nome de Florestan, nome de origem
alemã fruto de um personagem de uma
ópera de Beethoven, não era um nome
para um filho de uma lavadeira, assim a
madrinha “rebatiza-o” chamando-o de
Vicente. Florestan vivenciara outra
experiência sociológica, que é o
preconceito das elites brasileiras para com
o povo brasileiro oriundo das classes
subalternas. Tal preconceito, Florestan
estudou de forma mais aprofundada em
suas pesquisas sobre as relações raciais e a
inserção do negro na sociedade de classes,
identificando as origens históricas e
estruturais do racismo no Brasil que
remontam à nossa herança de um passado
escravocrata.
Enfrentou as dificuldades como grande
parte da população brasileira, trabalhou
como garçom no bar do Bidu, lia atrás do
balcão nos momentos de menor
movimento, o que despertou o interesse
de professores frequentadores do local. O
incentivo dos professores que ali
frequentavam rendeu frutos, realizou os
estudos no antigo curso de madureza e
através de um desses frequentadores
desse bar conseguiu um emprego em uma
empresa de produtos químicos,
possibilitando melhores condições
socioeconômicas.
As dificuldades para o jovem de origem
“plebeia” não se resumiriam aí, o desafio
de entrar no ensino superior era algo
muito distante. A recém-criada
Universidade de São Paulo, pública e
gratuita, era uma alternativa. Criada pelas
elites e para as elites, a entrada de
estudante trabalhador com formação em
curso de madureza contrastava com o tom
aristocrático e erudito dos professores e
dos estudantes da elite paulista. Para
sanar o que denominou de um déficit
cultural empreende uma rotina monástica
de estudo que incluía leituras em bondes,
bancos de praças e permanecendo até o
apagar das luzes na biblioteca municipal.
A aprovação no vestibular não foi das
mais fáceis, com uma banca composta por
dois professores franceses, com prova oral
em francês de um livro de um sociólogo
francês, parecia uma barreira quase
intransponível para o egresso do curso de
madureza. Florestan lia em francês e
conhecia bem o livro de Durkheim Da
divisão do trabalho social e pede para
realizar a prova em português, os
arguidores acharam a situação inusitada,
mas acatam o pedido do candidato que é
aprovado (dos 29 concorrentes apenas 6
foram aprovados).
Florestan Fernandes não foi apenas um
sobrevivente, foi um vencedor! Remou
contra a maré em mares turbulentos,
enfrentou temas e pesquisas pouco afeitos
em sua época na sociologia, imprimiu um
modelo de ciência sociológica colocando a
sociologia ao lado dos problemas
reclamados pela sociedade. Lutou pela
escola pública, pela universidade pública,
esteve ao lado dos deserdados da terra,
militante socialista, seu mandato como
deputado funcionava como uma forma de
tribuno da plebe: uma voz para aqueles
que não tem voz.
Em uma sociedade como a brasileira
marcada por graves problemas
estruturais, de desigualdades étnicas,
raciais e sociais, as ideias e os escritos de
Florestan Fernandes são mais que
necessários e se mantém vivos na luta dos
trabalhadores, na Escola Nacional do
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
que leva seu nome, nas escolas públicas,
nas universidades públicas, nos debates e
esse livro pretende ser mais uma
contribuição para manter a chama de suas
ideias acesa, que iluminam o caminho de
um passado obscuro e guiam para um
futuro alternativo de utopia e de
esperança para a sociedade brasileira.
FLORESTAN FERNANDES, Sempre
Presente!
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